Patrimônio cultural e pertencimento:
contribuição para pensar o currículo na educação infantil
Cultural heritage and belonging:
contribution to thinking about early childhood curriculum
Jeane Costa AMARAL1
Lenira HADDAD2
Maria Assunção FOLQUE3
Resumo
Abstract
O artigo apresenta parte de uma pesquisa que
buscou compreender as dimensões teóricas e
práticas que compõem a relação criança, cidade
e patrimônio no âmbito da educação infantil e
abrangeu duas cidades históricas. A análise decorre da pesquisa de cunho etnográfico realizada
em Penedo, AL, envolvendo o acompanhamento
das crianças de duas escolas municipais em suas
saídas às ruas da cidade, mobilizadas por diversos motivos. Cinco episódios que dimensionam
a força da cultura local são considerados esteio
para a participação, significação e/ou ressignificação do patrimônio cultural pelas crianças
rompendo com a distância que separa os saberes
e fazeres da cultura local da cultura escolar.
The article presents part of a research that sought
to understand the theoretical and practical dimensions that make up the relationship between child,
city and heritage in the context of early childhood
education and covered two historic cities. The
analysis stems from the ethnographic research
carried out in Penedo, AL, involving the monitoring of children from two municipal pre-schools
on their way out onto the city streets, mobilized
for several reasons. Five episodes that measure
the strength of local culture are considered the
mainstay for the participation, meaning and / or
resignification of cultural heritage by children, breaking the distance that separates knowledge and
practices from local culture from school culture.
Palavras-chave: Educação Infantil. Cidade.
Infância. Patrimônio cultural.
Keywords: Early Childhood Education. City.
Childhood. Cultural heritage.
1
Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Alagoas, Mestre em Educação pela Universidade
Federal de Sergipe (2015), possui graduação em Pedagogia pela Universidade Estadual de Feira de Santana
(1996) e Pós-graduação em Supervisão escolar (2004) pela Universidade Estadual de Feira de Santana.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9396258504107696; Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7837-3697. E-mail:
[email protected]
2
Doutorado em Educação pela Faculdade de Educação da USP, Mestrado em Psicologia Escolar pelo
Instituto de Psicologia da USP, graduação em Psicologia pela FFCL-USP Ribeirão Preto. É professora
associada da Universidade Federal de Alagoas, pesquisadora associada do Centro Internacional de Estudos
em Representações Sociais e Subjetividade / Educação (CIERS-ed) da Fundação Carlos Chagas, membro
do Centro de Investigação em Educação e Psicologia da Universidade de Évora. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/2781919765100738. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3588-2846. E-mail:
[email protected]
3
Doutora em Educação pelo Institute of Education University of London. Professora no Departamento Pedagogia e
Educação na Universidade de Évora e diretora dos Mestrados profissionais em Educação Pré-escolar e em Educação
Pré-escolar e Ensino do 1º ciclo do ensino básico da Universidade de Évora. É membro integrado do Centro de
Investigação em Educação e Psicologia da Universidade de Évora. Consultora da Fundação Calouste Gulbenkian,
assumindo a coordenação cientifica no Projeto Intesys – Serviços Integrados para a Infância para apoiar crianças e
famílias em situação de vulnerabilidade, financiado pelo Programa Erasmus em parceria com a Fundação Aga Khan.
Orcid: http://orcid.org/0000-0001-7883-2438. E-mail:
[email protected]
ISSN 2238-2097
Revista de Educação Pública, v. 30, p. 1-21, jan./dez. 2021
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Patrimônio cultural e pertencimento: contribuição para pensar o currículo na educação infantil
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2
Introdução
O presente artigo apresenta os resultados parciais de uma pesquisa realizada em
duas cidades históricas com relevantes patrimônios culturais, Évora, em Portugal,
e Penedo, no estado de Alagoas, no Brasil, que buscou compreender as dimensões
teóricas e práticas que compõem uma proposta que relaciona Criança, Cidade e
Patrimônio, no âmbito da Educação Infantil (CCP_EI). O estudo se insere em
um programa mais amplo de pesquisa e extensão denominado “A criança, a cidade
e o patrimônio: diálogos entre os saberes e fazeres das comunidades penedense e
eborense” (HADDAD, 2018), que tem como campo de investigação e ação essas
duas cidades, a partir de uma parceria entre a Universidade Federal de Alagoas e a
Universidade de Évora. Os vários projetos que compõem esse programa têm como
base o pressuposto de que o reconhecimento do patrimônio cultural é um recurso
imprescindível para a educação da infância, para a formação dos profissionais e
para a elaboração de um currículo que espelhe as características regionais e locais
da cultura de uma sociedade na sua diversidade. A visão de patrimônio defendida
no projeto referido não é aquela que vê o edifício como pedra sobre pedra, mas
a que postula a perspectiva de que o patrimônio só faz sentido a partir do seu
reconhecimento e do seu uso pelos cidadãos (HADDAD et al, 2021, no prelo).
O conceito tradicionalmente difundido de patrimônio muitas vezes nos
remete a bens materiais tangíveis: edifícios, palácios, monumentos, obras de arte,
enfim, algo palpável, visível e de grande “vulto” e destaque histórico que nos foi
deixado de herança. Nogueira e Ramos Filho (2019, p. 6) chamam atenção para
o sentido etimológico da palavra patrimônio:
[...] advém de patrimonium, uma junção de “patri”,
termo designador de “pai”, com “monium”, que exprime
“recebido”, para referir-se à “herança”. Desde a noção mais
antiga que manifesta o desejo de transmitir os bens da
família, até a noção mais contemporânea, que desenvolve
a ideia de um patrimônio a ser transmitido para as gerações
futuras, nota-se como o conceito é uma construção social.
(NOGUEIRA, RAMOS FILHO, 2019, p. 6)
Nessa perspectiva, patrimônio é uma herança que será transmitida pelas
gerações, pelo desejo de perpetuar a história, de garantir que os ensinamentos e as
tradições do passado se eternizem. Dessa maneira, podemos pensar que não existe
apenas herança no campo do tangível, mas do intangível; que todas as boas ou
más memórias, vivências, práticas culturais, saberes e fazeres também podem ser
transmitidos e considerados um patrimônio.
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O francês Hugues de Varine Bohan faz uma análise abrangente acerca do
patrimônio, apresentando-o em três categorias e definições: “[...] os elementos
pertencentes ao meio ambiente, que tornam o local viável para habitar; os
saberes e fazeres das comunidades que habitam esse meio ambiente; e os objetos
construídos pela mão do homem, desde uma colher até as edificações mais
sofisticadas” (VARINE BOHAN,1975 apud DUARTE, 2019, p. 20).
No Brasil, só no final do século XX, com a redemocratização política e o
fortalecimento de grupos organizados que buscavam o fortalecimento do direito à
memória como elemento de cidadania, é que o conceito de patrimônio começa a ter
outros contornos segundo uma perspectiva mais crítica. Nogueira e Ramos Filho
(2019) destacam alguns momentos processuais que contribuíram para a ampliação
desse conceito no Brasil: 1) momento em que foram privilegiados o patrimônio
material e as memórias luso-coloniais até a década de 60; 2) incorporação do
conceito de bem natural para o patrimônio com a criação do Centro Nacional
de Referência Cultural, em 1975; e 3) reconhecimento e institucionalização das
diferenças e do direito à memória da cidadania, preconizadas no artigo n.º 216
da Constituição de 1988.
O patrimônio cultural brasileiro é assim definido no referido artigo da
constituição:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens
de natureza material e imaterial, tomados individualmente
ou em conjunto, portadores de referência à identidade,
à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e científico.
§ 1º O poder público, com a colaboração da comunidade,
promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro,
por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento
e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e
preservação. (BRASIL, 1988, p. 100)
O reconhecimento do patrimônio cultural como um direito a memórias de
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, implementado como lei na
Constituição de 1988, contribuiu para o fortalecimento de políticas públicas em
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defesa e em prol da visibilidade de saberes e fazeres de diferentes grupos étnicosculturais. Na atual legislação, destaca-se o Decreto nº 3551/2000, que institui o
Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, bens que constituem patrimônio
cultural brasileiro, e cria o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI).
Ambos ampliaram a preservação e o registro das formas e expressões, dos modos de
vida, de criar e de fazer, bem como dos objetos, artefatos e lugares, salvaguardando
bens de caráter processual e dinâmico e que fazem parte do patrimônio cultural
brasileiro, ampliando esse conceito, abarcando as nossas diferenças e trazendo à
cena manifestações antes silenciadas.
Contudo, esse reconhecimento e as iniciativas de registro e catalogação
desse arcabouço patrimonial trazem subjacentemente a necessidade de outros
reconhecimentos históricos e de uma política educativa que garanta que a
interpretação do patrimônio cultural seja feita, “antes de tudo, ‘com’ e ‘para’ a
população local” (NOGUEIRA, RAMOS FILHO, 2019, p.14, destaque dos
autores). Implica dizer que o patrimônio cultural, independentemente de ser
considerado um patrimônio instituído por algum órgão de proteção patrimonial,
só se constitui enquanto memória e história quando valorizado, vivenciado e
explorado por seus cidadãos e ressignificado por eles. Conforme aponta Gonçalves,
[...] o patrimônio cultural é derivado da combinação
de agentes e ações, de escolhas individuais e decisões
coletivas, de procedimentos, recomendações e normas,
de circunstâncias históricas: não pode simplesmente ser
assumido como um dado natural, e as ações educativas que
o tomam como objeto restringem seu potencial quando não
explicitam seus condicionantes históricos. (GONÇALVES,
2014, p. 91)
Ao falar da legitimação do patrimônio cultural, a autora chama a atenção
para as ações educativas que restringem o potencial desse patrimônio quando
apenas mapeiam, identificam, selecionam, estudam e protegem, por meio de
tombamentos, de registro ou de outros mecanismos de salvaguarda, mas ignoram
os processos sociais de memórias, de representações e agentes que o produzem.
Dessa maneira, as práticas educativas devem também favorecer a reflexão
sobre a noção de patrimônio cultural ligada aos valores e significados atribuídos
no presente e no passado, para diferentes sujeitos e grupos. Essa noção põe sob
suspeição a ideia do processo educativo que opõe educadores e educandos como
esclarecidos e não esclarecidos. (GONÇALVES, 2014).
Ao tratar das relações entre a experiência da infância e da cultura, Pereira
(2016, p. 48) afirma que “a cultura é ao mesmo tempo o mundo que se apresenta
para nós e a forma como esse mundo nos diz quem somos nós”. Dessa maneira,
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considerar os saberes locais como saberes válidos carregados de sentido e
significados junto à educação das crianças, percebendo-as como parte de suas
vivências em diferentes contextos, é um dos pressupostos fundamentais para a real
valorização do patrimônio cultural de onde se vive.
Buscar articular as experiências e os saberes das crianças, valorizando as
manifestações culturais locais e vivenciais, promovendo a integração intergeracional
em seus territórios está implicado no Art. 3º das Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Infantil (DCNEI):
O currículo da Educação Infantil é concebido como um
conjunto de práticas que buscam articular as experiências
e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem
parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico
e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento
integral de crianças de 0 a 5 anos de idade (BRASIL, 2009,
p. 1).
A partir dessa premissa trazida pelas DCNEI, podemos afirmar que dar
visibilidade às experiências e aos saberes das diferentes infâncias contribui para a
compreensão, no âmbito da educação infantil, de como é possível proporcionar
o encontro do patrimônio cultural com a cultura escolar, abrindo trilhas e
estabelecendo diálogos com diversos atores, em busca de sentidos.
Infelizmente, temos assistido ao distanciamento entre a atividade de aprender
na escola e a vida em toda a sua complexidade e riqueza cultural, artística, cientifica
que, como nos diz Niza (1996, apud FOLQUE, 2014, p. 958), cria uma cultura
própria e “está em muitos aspetos totalmente afastada da herança social e cultural
e das atividades autênticas em que nos envolvemos na vida”. A escola tem criado,
ao longo do tempo, um conjunto de atividades que só acontecem na escola e
que se manifestam e reproduzem através da produção de materiais didáticos de
massa vendidos em todo e qualquer contexto. São exemplos dessas atividades os
exercícios desprovidos de significado, como o treino de escrita fazendo páginas
de letras ou de números; o treino da coordenação óculo-manual através do
colorir entre os traços de figuras pré-desenhadas e promovidas nas apostilhas;
a fragmentação da vida e da cultura num planejamento desprovido de sentido
social e cultural (aprender as cores pela semana do amarelo, a semana do azul,
etc.); a estimulação dos sentidos, um a um, em atividades sensoriais; ou trabalhar
as formas geométricas em fichas, perdendo a noção que todos estes conceitos ou
dimensões apenas existem como partes integrantes de um todo complexo que é a
atividade humana (FOLQUE, 2014).
Aprender se dá por meio da mudança na participação das crianças nas atividades
próprias da(s) cultura(s) (LAVE, WENGER, 1991; ROGOFF, 1998), e podemos
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verificar que “quando a participação legítima periférica dos indivíduos evolui para
uma participação e um domínio de aptidões e conhecimentos mais complexos, que
são relevantes para a prática da comunidade que lhes permite assumir um papel de
participação plena” (FOLQUE, 2017, p. 53, destaque da autora).
O estado de Alagoas, segundo o mapeamento do Patrimônio Cultural de Alagoas
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)4, embora seja
o segundo menor estado do Brasil, detém um amplo e rico patrimônio imaterial
derivado das suas vertentes étnicas: brancos, indígenas e negros. Bumba meu boi,
Guerreiro, Coco de Roda, Pastoril, Fandango, Cavalhada, Chegança, Maracatu,
Reisado são exemplos dentre as 30 manifestações que compõem o seu folclore.
Penedo, como um dos municípios mais antigos do estado, para além do
patrimônio histórico traduzido no arcabouço arquitetônico ainda conservado e
tombado pelo IPHAN/AL em 1996, também possui uma vasta riqueza no que diz
respeito ao patrimônio cultural. No Inventário Nacional de Referências Culturais
(INRC) do IPHAN (2015), foram identificadas as seguintes referências culturais
no município de Penedo: cinco celebrações – Festa do Bom Jesus dos Navegantes,
Festa da Padroeira Nossa Senhora do Rosário, Festa de Santo Antônio, Lavagem
do Beco e Corrida de Embarcações; duas edificações – Casa de Axé do Pai de
Santo Bobô e Casa de Farinha de Manoel Vieira (povoado Tabuleiro dos Negros);
cinco formas de expressão – Guerreiro, Pastoril, Coco de Roda, Banda de Pífano e
Lenda do túnel do Convento Nossa Senhora dos Anjos; dois lugares – Feira Livre
e Várzea da Marituba; e treze ofícios – Modos e saberes da pesca, Caça de jacaré,
Modo de fazer culinário, Moqueca de jacaré, Macasada e quebra-queixo, Modos
e práticas da rizicultura, Artesanato com palha de Ouricuri, Ofício de santeiro,
Modo de fazer escultura em pedra, Artesanato de miniatura em madeira, Modo
de fazer bonecos de carnaval, Práticas e modos de construir em taipa e Ofício de
tirador de coco.
Diante dessa diversidade de saberes e fazeres, que certamente há de ser
muito maior, ainda invisibilizados ou silenciados, em sua maioria oriundos de
origem africana e indígena que resistem, ainda hoje, no município de Penedo,
cabe perguntar: esses saberes e fazeres estão sendo acessados como patrimônios
culturais nos currículos escolares, como componentes importantes? Estão sendo
valorizados como elementos que interligam gerações, conectam memórias e
ressignificam práticas sociais locais?
Em levantamento realizado na cidade de Penedo, antes da nossa entrada em
campo com 190 profissionais da educação infantil (coordenadores, professores
e auxiliares), por meio de um questionário com oito questões relacionadas à
4
Informação disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/959/ > Acesso em 03/04/2021.
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temática criança, cidade e patrimônio, verificou-se que a aproximação das crianças
dos saberes e fazeres locais via instituição escolar era incipiente. Apenas 40%
das respondentes afirmaram já terem realizado algum trabalho com as crianças
voltado para o patrimônio imaterial, e apenas 3,8% indicaram estabelecer algum
vínculo com grupos culturais da cidade.
Neste artigo, trataremos de uma das dimensões que se destacou nas saídas
com as crianças nas ruas da cidade de Penedo, AL, ao longo de uma pesquisa de
cunho etnográfico, que evidenciou a força da cultura popular e a valorização da
cultura local como esteio para a participação, a significação e/ou a ressignificação
do patrimônio cultural pelas crianças. A seguir, apresentamos o recorte da referida
pesquisa e cinco episódios que deram visibilidade ao patrimônio cultural latente
nas ruas de Penedo, AL.
A pesquisa
O recorte da pesquisa de que se trata o artigo, refere-se à etapa que envolveu
duas ações interrelacionadas que se desenvolveram concomitantemente. Uma,
refere-se ao desenvolvimento de um projeto denominado A cidade de Penedo,
com objetivo de promover saídas na cidade e de ocupar seus espaços. A outra ação
refere-se à realização de um projeto de correspondência entre as crianças de duas
cidades históricas, Penedo, AL, e Évora, em Portugal, denominado Projeto cá e lá,
que tinha como objetivo comunicar características de suas cidades às crianças dos
distintos países. Esses projetos contaram com a colaboração de uma professora
que havia se destacado na realização do diagnóstico por já promover algumas
atividades que envolviam saídas com as crianças pela cidade. Ambos os projetos
envolveram duas turmas de crianças de 5 e 6 anos de duas escolas municipais
distintas da cidade de Penedo, uma situada no centro histórico da cidade (turma
A) e outra em área rural do município (turma B), sob a responsabilidade dessa
mesma professora. No decorrer do projeto A cidade de Penedo, essas crianças
trocaram correspondências com duas turmas de crianças de 3 a 6 anos de dois
jardins de infância.
Em Penedo, essas duas ações ocorreram no período de outubro a dezembro de
2019 com uma periodicidade de uma a duas vezes por semana e se concretizaram
por meio de atividades e saídas na/pela cidade, planejadas e organizadas com a
colaboração da professora das duas turmas de crianças. Algumas das saídas às
ruas relativas ao projeto de correspondência não foram definidas a priori, mas
surgiram das interlocuções que foram se desencadeando a partir das perguntas
e curiosidades feitas pelas crianças por meio das cartas trocadas e do grupo
de WhatsApp das professoras envolvidas nos dois países. Essas comunicações
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possibilitaram que desenvolvêssemos com as crianças proposições que incluíram:
visitas contextualizadas aos espaços patrimoniais materiais; descobertas do
patrimônio imaterial; contato com o patrimônio natural da cidade; exploração
dos espaços públicos abertos; e incursões à deriva pela cidade. Dessa forma, a
correspondência entre as turmas de crianças serviu como uma metodologia para
ampliar o olhar das crianças para a sua própria cidade.
Ambos os projetos foram apresentados às crianças das duas escolas de
Penedo, juntamente com a notícia de que a respectiva professora iria a Portugal,
pois naquele momento tinha sido selecionada para participar do Programa de
Residência Pedagógica e Cultural em Évora5.
Um total de 11 saídas foram realizadas com as crianças das duas escolas de
Penedo. Com a turma A, composta de 20 crianças de 5 a 6 anos, foram realizadas
nove saídas a pé para os seguintes lugares: feira livre; praça do coreto Jácome
Calheiros; Correios; Teatro Sete de setembro; loja de artesanato Zureta; orla do
Rio São Francisco; saída à deriva no entorno da escola; saída à deriva no centro
histórico; e Casa do Patrimônio. Vale ressaltar que a localização da escola no
Centro Histórico possibilitou que as saídas ocorressem a pé, sem a necessidade de
fazer uso do ônibus escolar.
Com as crianças da turma B, composta de 7 crianças da escola localizada
na zona rural da cidade, foram realizadas apenas duas saídas: a primeira para o
Balneário Santa Amélia, e a segunda, com toda a escola, para o Circuito Penedo
de Cinema6, ambas com uso do ônibus escolar. Foram programadas ainda mais
duas saídas que não foram realizadas: a ida aos Correios e a visita à Casa de
Farinha. No primeiro caso, segundo a coordenação da escola, havia dificuldade
de ajustar o horário do transporte; no segundo, pela não localização por parte
da professora de uma Casa de Farinha em funcionamento no período em que a
pesquisa foi realizada.
Para esta etapa da pesquisa, foram utilizados como instrumentos de produção
de dados: registros de áudio, fotos e vídeos, diário de campo, além de duas
entrevistas semiestruturas com a professora partícipe da pesquisa e com a técnica
5
Esse programa constitui a segunda etapa do projeto A criança, a cidade e o patrimônio que consistiu na imersão
de 15 profissionais do município de Penedo em instituições de jardins de infância eborenses cooperantes da
Universidade de Évora que desenvolvem trabalho com a cidade/comunidade, habitando a cidade e o seu
patrimônio numa relação cotidiana. A residência envolveu a imersão dessas profissionais em instituições
de educação infantil eborense para conhecer o cotidiano das práticas pedagógicas, o acompanhamento das
crianças em suas saídas pela cidade, a participação em eventos oferecidos na Universidade de Évora e vivências
em locais culturalmente relevantes do ponto de vista do patrimônio cultural.
6
Evento histórico realizado entre as décadas de 1970 e 1980 e resgatado há quatro anos. É realizado sempre
no mês de novembro. Para mais informações, ver: https://circuitopenedodecinema.com.br/. Acesso em: 25
abr. 2021.
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da Secretaria Municipal de Educação, que coordenava a educação infantil do
município de Penedo.
Para este artigo, foram selecionados cinco episódios que se revelaram como
encontros que possibilitaram um desvelamento da cultura local latente na vida
cotidiana, nas ruas e nos diversos espaços territorializados pelas crianças e que,
muitas vezes, são silenciados ou invisibilizados nas práticas educativas escolares.
Os quatro primeiros episódios ocorreram com as crianças da turma A, e o último
com a turma B, conforme Quadro 1.
Quadro 1 – Patrimônios culturais vivenciados com as crianças nos percursos realizados nas ruas de
Penedo/Alagoas
Episódios
Lugares/saberes e fazeres
1- Turma A
Feira Livre
2- Turma A
Hábitos e Costumes
3- Turma A
Lenda da Carranca
4- Turma A
Coco de Roda
5 – Turma B
Casa de Farinha
Participantes
13 crianças (5 e 6 anos)
4 adultos
15 crianças (5 e 6 anos)
2 adultos
15 crianças (5 e 6 anos)
2 adultos
18 crianças (5 e 6 anos)
2 adultos
7 crianças (5 e 6 anos)
2 adultos
Fonte: elaborado pelas autoras (2021).
Manifestações potencializadoras da cultura popular vivenciadas
pelas crianças a partir do seu território
Neste tópico, apresentamos os cinco episódios selecionados que dimensionam
a força da cultura local e que são considerados esteio para a participação,
significação e/ou ressignificação do patrimônio cultural pelas crianças.
O primeiro episódio refere-se à ida à feira livre da cidade. Segundo o
Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) do IPHAN (2015), a
feira livre de Penedo é um patrimônio cultural inventariado como um lugar da
tradição popular. Entretanto, essa foi a primeira vez que as crianças foram a esse
lugar como uma atividade escolar: havia o intuito de comprar frutas para fazer
uma salada de frutas na escola. Nos deparamos com toda a singularidade presente
naquele espaço, no qual se misturam diversos tipos de mercadorias, pessoas,
trocas e saberes.
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As crianças tiveram oportunidade de consumir, comprar e explorar frutas e
verduras, assim como experimentar, negociar com os feirantes, encontrar familiares
e personalidades icônicas da cidade, como a Poderosa, um animador de festas que
se veste de Boneca e que fez questão de anunciar a presença das crianças na Feira no
alto-falante, e Dona Neide da Banana, que tem uma barraca de artesanato de palha
tradicional. Também se depararam com o ofício de sapateiro, pois Maria Vitória (5
anos) teve seu sapato descolado durante a passagem pela feira, e foi preciso recorrer a
esse serviço, encontrado por Victor (6 anos). O sapateiro não cobrou pela gentileza.
Um exemplo de interação com os feirantes ocorreu quando o Alejandro (5
anos), que foi comprar bananas e a feirante lhe deu meia dúzia a mais que a dúzia
que havia comprado e ele ficou feliz ao pagar apenas R$4,00, agradecendo à
feirante pela gentileza. Circular livremente pela feira no meio das barracas com
um grupo de crianças pequenas chamou a atenção dos feirantes e transeuntes,
que questionavam de que escola eram e porque estavam na feira, demostrando
estranhamento por perceberem aqueles corpos que se encontram invisibilizados
nos espaços da educação infantil.
Em pesquisa intitulada A Feira no Centro Histórico do Penedo: um cotidiano
urbano (MORAES, 2013), localizada no acervo de outro projeto7 do mesmo
programa de pesquisa e extensão mencionado anteriormente, a autora aponta a
Feira Livre do Centro Histórico de Penedo como um traço da identidade local que
se faz presente desde suas primeiras manifestações, no início do século XIX, até os
dias atuais. Para a autora, que retrata a feira na perspectiva da arquitetura urbana,
é preciso que a Feira Livre do Centro Histórico de Penedo, enquanto patrimônio
cultural, seja percebida de outro ponto de vista, ou seja, há necessidade de se
atentar ao contexto das práticas sociais que a geram e que lhe conferem sentido,
pois é por meio das práticas culturais costumeiras que os agentes sociais tendem
a atribuir novos sentidos aos itens culturais patrimoniados ao reinseri-los em seu
cotidiano, podendo reiterar ou modificar os sentidos preexistentes.
Se considerarmos os objetivos preconizados no Artigo 3ª dos DCNEI (BRASIL,
2009), que fomenta o estreitamento dos laços entre a vida da escola e a vida fora dela,
a vivência na Feira Livre oportuniza experiências ricas de interação com os agentes
do lugar, encontros intergeracionais com feirantes, transeuntes e familiares. Segundo
Nogueira e Ramos Filho (2019), se faz necessário pensar os silêncios e ocultamentos,
assim como o que deve ser protegido e valorizado dentro do que se considera
patrimônio e que sempre esteve presente, mas que não era considerado como tal.
7
Projeto intitulado A criança, a cidade e o patrimônio: construindo um acervo dos saberes e fazeres da comunidade
penedense (HADDAD, 2020) é voltado à realização de um levantamento da produção acadêmica sobre o
patrimônio cultural da cidade de Penedo, AL no período de 2013 a 2020.
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O segundo episódio decorreu de uma saída à deriva pelas ruas do Centro
Histórico de Penedo. No caminho, houve um encontro fortuito com um músico
amador cantando na porta da sua casa; o som da cantoria advinda do violão chamou
a atenção das crianças que entusiasmadas pararam em frente à calçada onde o
músico estava. Ao ser perguntado se poderíamos sentar para ouvir à música, o
músico disse que sim, e continuou a tocar o que estava tocando. Logo em seguida,
solicitou que as crianças sugerissem algumas músicas do repertório delas para
que ele acompanhasse. Elas cantaram algumas canções que costumavam entoar
na escola, como O sapo não lava o pé, Borboletinha, dentre outras. As crianças
ficaram um bom tempo cantarolando na calçada com o músico e depois seguiram
o caminho. Foi um momento ímpar, genuíno e culturalmente significativo, por
proporcionar às crianças vivenciarem um hábito cultural dos moradores de
ficarem sentados à porta de suas casas, observando o movimento das ruas.
Se considerarmos que nas práticas escolares usuais na educação infantil as
crianças passam grande parte de seu tempo emparedadas dentro dos muros
da escola, fica a pergunta: como esse tempo é usado? Como articular as
intencionalidades pedagógicas com os hábitos culturais como esse de cantar e
tocar violão na porta de casa? Entendemos que privilegiar memórias afetivas
nos diferentes espaços do território pode colaborar para o fortalecimento do
sentimento de pertencimento ao lugar.
O terceiro episódio ocorreu em uma saída para uma loja de artesanato da
cidade, com o objetivo de comprar lembranças que seriam enviadas às crianças
de Évora por intermédio da professora que participaria da Residência Pedagógica
e Cultural. Tendo em vista a correspondência com as crianças de Portugal,
uma ação realizada com as crianças da turma A, na qual, a partir da contação
da lenda da Carranca8, o grupo foi mobilizado a conhecer uma tradição local
que envolve também um modo de fazer, o esculpir em madeira. Para que as
crianças eborenses pudessem conhecer esse artefato (a carranca) e sua lenda, foi
programada uma visita à loja de artesanato Zureta, onde é possível encontrar
várias peças de carranca, além de comprar amostras em miniatura, escolhidas
para serem levadas a Portugal.
Em Évora, a referida professora contou a lenda para a turma de crianças do
jardim de infância com o qual estabeleceu correspondência. Segundo a professora, as
crianças eborenses ficaram curiosas e atentas à história e repetiam o nome Carranca
várias vezes, achando o soar engraçado, o mesmo impacto provocado nas crianças
no Brasil, que pediram, inclusive, para aprender a escrever essa palavra. Para as
crianças de Portugal, essa aproximação quanto à cultura penedense significou o
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Escultura que imita uma cabeça humana ou de animais utilizada nas embarcações do Rio São Francisco.
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despertar do imaginário de uma expressão cultural demarcada por características de
saberes e fazeres locais e regionais que podem aguçar curiosidades atuais ou futuras
a respeito das nossas histórias e trocas de saberes.
No quarto episódio, as crianças se depararam com a música e o teatro de
uma vez só, por meio de uma experiência imprevista, não programada. Decorreu
da saída aos Correios para que fosse postada uma carta direcionada às crianças
de Évora. Em nosso planejamento, estava prevista a apreciação da exposição de
fotos de animais da Mata Atlântica no hall de entrada do Teatro 7 de setembro,
na calçada oposta à calçada dos Correios.
As crianças apreciavam as fotos, quando algumas delas começaram a perceber
uma movimentação que vinha de dentro da área interna do teatro e, então,
começaram a se amontoar debruçados na escadaria que dava entrada ao pórtico do
grande salão do teatro. No palco, estava ocorrendo o ensaio de uma peça teatral.
As crianças ficaram ali abaixadas, ouvindo os gracejos que saiam do palco, quando
veio em nossa direção o diretor do espetáculo que, gentilmente, perguntou se
gostaríamos de adentrar o teatro e acompanhar o ensaio. As crianças, de prontidão,
aceitaram o convite e assim entraram para apreciar o ensaio do espetáculo.
Tratava-se de uma peça teatral denominada O Território é um Livro, dirigida
por Alê Santos, diretor da Companhia de Teatro Lampejo, um dos grupos de
teatro amador da cidade de Penedo. O espetáculo retrata a feira livre de Penedo
em sua essência e homenageia Neide da Banana, que é uma das feirantes mais
antigas da região e é dona de uma das barracas que as crianças visitaram no
primeiro encontro mencionado.
O artista resumiu o espetáculo em poucas palavras para as crianças, que
naquela altura já estavam devidamente acomodadas nas poltronas do teatro. Elas
acompanharam o ensaio absortas e visivelmente empolgadas quando uma das
personagens entoou, ao som de um pandeiro, uma música em ritmo de Coco de
Roda, que trazia no refrão o chamamento que se faz na feira livre: “Quem quer
comprar, quem quer comprar!”; um refrão bem ritmado e que foi acompanhado
pelas palmas das crianças.
Ao término do ensaio, que se tratou apenas de um recorte para a apreciação,
em primeira mão, das crianças convidadas, a turma agradeceu e seguiu caminho.
Foi surpreendente perceber como a música ao ritmo de Coco de Roda foi cantada
pelas crianças, espontaneamente, por todo caminho no retorno à escola. Além
do refrão da música ter sido cantado durante todo o trajeto do retorno, no
compasso do coco de roda, a partir daquele dia tornou-se a música mais cantada
pelas crianças nas rodas iniciais de contação de história, na fila do lanche, em
momentos de espera na sala, nas nossas saídas às ruas, sendo o ritmo batucado
nas carteiras da sala em vários momentos. Foi um momento ímpar, tanto pelo
conteúdo do espetáculo, que parecia traduzir nossa experiência recente na Feira
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Livre com as crianças, como também contemplava os elementos referentes à
cultura da tradição popular e da vivência na cidade como fundantes na formação
da identidade cultural e do pertencimento local.
O quinto e último episódio aqui relatado denota a necessidade de as crianças
externarem suas vivências e suas histórias e pode ser resumido em uma das frases
contidas no espetáculo descrito acima: “Cada canto tem uma história e alguém para
nos contar”.
Esse episódio decorreu de uma roda de conversa realizada com as crianças
da turma B para responder à uma carta das crianças de Évora em que indagavam
sobre o que tinha na cidade das crianças dessa turma. As crianças penedenses se
voltaram para os lugares do povoado de onde eram oriundas e os espaços da escola
que queriam mostrar. Sugeriram o campinho localizado nos fundos do terreno
da escola, onde tinha uma enorme jaqueira e onde gostavam de estar; a horta da
escola; a frente e o muro da escola.
Fora do âmbito escolar, sugeriram o balneário Santa Amélia, o qual já
tinham visitado; a barragem da Usina Paisa, que fica no povoado vizinho de
Santa Amélia; e, por fim, uma das crianças, Carlos Gabriel (6 anos), sugeriu
a Casa de Farinha. Foi retrucado pelo Jhony (6 anos), que nesse momento
fez o seguinte comentário: “Não dá para ir lá não, agora. Tá sem vida!”. A
professora, percebendo o interesse das duas crianças, pergunta às demais se elas
também gostariam de mostrar a Casa de Farinha para as crianças portuguesas;
algumas crianças acenaram positivamente. Carlos Gabriel disse: “Vamos, sim!”.
A professora, retomando a fala de Jhony, disse que só poderíamos ir quando
estivesse com vida, ou seja, funcionando, e teríamos que solicitar o transporte
à coordenadora da escola. Sugeriu que fôssemos em grupo pedir o transporte
à coordenadora, na secretaria da escola. As crianças concordaram, e Gabriel se
ofereceu para fazer o pedido. Já na secretaria, transcorreu um longo diálogo
que expressava seu conhecimento sobre o processo da produção da farinha de
mandioca, como podemos verificar a seguir:
Gabriel: Bom dia, Tia Eva!
Eva: Bom dia!
Gabriel: Porque, assim, nos quer que a senhora arranje um
motorista, para o motorista levar nós para conhecer a casa de
farinha, pra fazer farinha...
Eva: Vocês querem um transporte para levar vocês para a casa
de farinha. Tá certo, vamos anotar todos os pedidos. Tá bom?!
Gabriel balançou a cabeça que sim.
Professora: Mais alguma coisa, Gabriel?
Gabriel acenou negativamente.
Professora: Então vamos agradecer à tia Eva?!
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Crianças: Obrigada!
Professora: Tia Eva, depois você responde para a gente qual é
o dia que o motorista pode, que você pode?
Eva: Olhe, para facilitar e não precisar fazer pedido de
motorista, se o meu carro der para fazer isso eu me disponibilizo.
Professora: Cabe no carro da tia Eva, nós duas e vocês todos?
Perguntou para as crianças.
Crianças pensativas!
Eva: É hoje? Onde fica?
Professora: Onde fica, Gabriel?
Gabriel ficou calado e Jhony levantou a mão.
Professora: Explique, Jhony...
Eva: Me explique, eu não sei, eu também quero conhecer.
Jhony: É lá na Santa Amélia!
Gabriel: Tem um portão assim, aí alguém desce para abrir, aí
eu abro, a senhora entra, aí tem uma casa assim e outra assim,
aí tem um pé de coisa, aí nós entra dentro de casa...
Jhony: Tem uma em cima e outra embaixo...
Professora; E já tá lá, né?
Gabriel: Aí tem umas coisas lá, tem dois fogão, tem um fogão
assim (fazendo o gesto circular). E outro assim! (outro gesto
circular).
Professora: E esse fogão faz o quê?
Jhony: Faz farinha.
Professora: Faz farinha nesse fogão?
Gabriel: Não, é assim...
Eva: O que cozinha para fazer a farinha?
Gabriel: Nós pega, nós pega mandioca, bota no coisa e vai
fazendo assim, e a mandioca vai descendo (começa a mexer
o corpo para mostrar como amassa a mandioca), depois
nós pega, bota no caixão, aí nós vai fazendo a farinha, vai
botando no fogo, vai fazendo assim (fazendo gestos de quem
está mexendo uma panela), aí vai coisano.
Professora: E quando é que sabe que a farinha está pronta?
Gabriel ficou pensativo.
Professora: Hein, Alan, quando é que sabe que a farinha está
pronta?
Allan: Não sei!
Professora: Quem é que sabe?
Sofia: Tira.
Professora: Tirar é provar, né?
Sofia balançou a cabeça que sim.
Allan: Tá muito quente.
Eva: Ah, gente, já estou curiosa!
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Professora: E o cheiro é bom?
Gabriel: Não, é assim! Pega a mandioca, bota no saco, bota no
coisa, baixa o pau e começa a coisar (começou a remexer o
corpo todo para demostrar como mexia a mandioca).
Crianças: (Risos)
Professora: E vai mexendo (imitando o gesto do Gabriel).
Sofia: E começa a bater...
Gabriel: Não! É assim não... (Fez o gesto de apertar) E aí vai
coisando (mexendo o corpo novamente).
Eva: Ah, estou adorando!
Gabriel: Pega um coisa de um saco e vai coisando, tira de outro
e bota no outro (fazendo os gestos), aí chega desce o leite,
aí tira, bota no coisa, aí tira do saco, bota dentro, raspa, aí
quando o leite sair, pega e bota no coisa, aí bota mais outro
saco, coisa, aí consegue descer, aí faz a farinha.
Professora: Mas pega a farinha e faz o quê?
Gabriel: Bota um pouquinho de farinha.
Professora: Aí bota no forno?
Gabriel: É!
Professora: Aí vai mexendo... Como é que mexe?
Gabriel: Mexe assim, tem um pau, que ele é um rodo. Faz
assim, faz assim... (gesticulando como se estivesse puxando
o rodo).
Professora: Aí quando está pronto, aí tira?
Gabriel: Pega uma folha de bananeira, vai tirando as folhas
de bananeira, vai botando em umas tiras, assim... (mostrando
gestualmente como é), vai cortando assim, assim, vai botando
o bolo...
Professora: Aí já é o bolo, né?
Gabriel balança a cabeça que sim.
Eva: É uma delícia esse bolo!
Professora: Então nós vamos aguardar Tia Eva dizer que pode
e nós vamos, né?
Gabriel: É!
Professora: Agradeça à tia Eva!
Gabriel: Obrigada, tia Eva.
Eva: A gente vai ver o dia, pode ser semana que vem?
Crianças: Pode!
Eva: Pronto, então a gente vai escolher um dia e a gente vai,
certo?! Eu também quero conhecer, quem está curioso?
Crianças: EU!!!
[...]Professora: A gente já organiza tudo, né?
Gabriel: E eu vou na frente.
Professora: Ah, entendi! Mas, rapaz!!!
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Eva: Me dá um beijo!
Gabriel beija Eva.
Professora: Obrigada, tia Eva, pela atenção. Vamos embora!
As crianças se despediram e voltamos para a sala (AMARAL,
2021, p. 290-291.).
O episódio nos mostra a potência da cultura popular em relação ao modo
de fazer, apresentado na narrativa de Carlos Gabriel (6 anos), que busca na
memória e expressa com os movimentos do corpo o modo de manipulação da
mandioca e todo o processo de fazer a farinha até chegar à confecção do bolo
enrolado na casca da bananeira. Enquanto narrava, Johny e Sofia, que também
compartilhavam desse saber, o apoiavam ou discordavam dele em algum ponto.
Esse apoio também se manifestou na interlocução da professora, instigando-o
a falar mais e, como também era conhecedora desse modo de fazer, contribuía
com conectivos para ajudá-lo a comunicar os seus saberes. Por outro lado, a
escuta atenta da coordenadora pedagógica também ajudou Gabriel a verbalizar
e expressar o seu desejo legítimo de saída para mostrar às demais crianças e à
professora a casa de farinha que tanto conhecia.
Infelizmente, essa ida não se concretizou; não foi encontrada nenhuma Casa
de Farinha “com vida” para ser visitada pelas crianças na semana seguinte, e nas
outras semanas, já em dezembro, a escola foi invadida por ensaios e atividades
finais de outros projetos e trabalhos natalinos.
Nesse episódio foi possível revelar a intenção da professora, que para além
de valorizar os saberes trazidos pelas crianças do território local, foi de mobilizar
a gestora para a importância dada por ela e pelas crianças com relação às saídas,
já que, nessa escola, as saídas para lugares distantes eram sempre um impeditivo,
relacionado, às vezes, à questão do transporte, à mudança de rotina ou ao não
envolvimento da coordenação pedagógica com essa temática.
Esse episódio também contribuiu para o despertar, pelo menos momentâneo,
da coordenadora pedagógica para a temática. No nosso penúltimo dia na escola,
ela entregou para a professora um banner que havia encontrado no depósito da
loja de seu esposo e que achou interessante, pois retratava saberes e fazeres de um
povoado vizinho ao da escola denominado Cerquinha das Laranjeiras. A professora
levou o banner para a sala e muitas crianças reconheceram os espaços que estavam
ali retratados. Inclusive, Arthur Miguel (5 anos), morador daquele povoado,
reconheceu moradores locais nas fotografias e até mesmo sua casa. O banner foi
entregue à professora para ser usado em outros momentos, em anos seguintes.
O processo de confecção da farinha é encontrado no acervo de outra pesquisa
do projeto mencionado anteriormente intitulada A prática educativa da mandiocada
nas comunidades quilombolas Tabuleiro dos Negros e Sapé – Alagoas (ARAÚJO,
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2019). Mandiocada é o termo que se refere ao processo que vai da colheita da
mandioca até o seu estado final, que é o armazenamento da farinha pronta para
consumo. Entre o início e o fim, a mandioca passa pelas etapas descritas por Gabriel
em sua narrativa: raspagem, ralagem, descanso no paiol, prensagem, peneiragem,
cozimento, peneiragem novamente e armazenamento do produto.
Ao buscar compreender os saberes tradicionais dessa prática cultural nas
comunidades quilombolas remanescentes em dois municípios alagoanos, Penedo
e Sapé, a autora identificou a presença das crianças nesse processo.
As crianças não são excluídas de nenhuma atividade, mas
não tem as mesmas responsabilidades dos adultos. Entre
as menores, observamo-las ajudar a recolher as cascas
em cestas, distribuir a água ou lanche entre as (os) que
trabalham ou ainda raspar a mandioca, mas não todo
o tempo. A sua mão-de-obra estava presente sempre
em caráter de auxílio e nunca em atividade contínua. A
própria forma de trabalhar, assim, adquire um caráter de
brincadeira, podendo ser abandonada quando a criança
se cansar. Elas mesmas, em outros momentos, poderiam
ficar ao lado de suas mães ou avós apenas observando-as,
ou brincavam de correr com as outras ao redor. Os saberes
aqui são passados a elas pela vivência corporal, em que os
olhos, ouvidos e corpo completo vivenciam experiências e
as crianças reproduzem da sua maneira. Atentamos para
um momento em que, ao final da raspagem e ralagem
da mandioca, quando o dia termina, Luzinete e Daniel
começam a cantar e dançar, junto com os filhos. Não foi
uma roda de samba, mas momentos de dança entrecortados
por risadas das pessoas que observavam ao redor, no caso
dos homens, já mais alegres pela cachaça. Uma das crianças
que pararam de brincar de correr entre si para observar o
canto e dança dos adultos tinha um semblante de seriedade
e concentração. [...] Importante também observar a atração
que o canto e dança provocou nos pequenos e pequenas:
sempre que os mestres Luzinete e Daniel começavam, elas
se aglutinavam ao redor, e repetiam alguns versos depois
entre elas. Não escutamos nenhuma palavra de proibição às
crianças. Elas portavam facas quando queriam, assim como
o carro de mão ou outros instrumentos pesados, e não
presenciamos nenhuma sofrer algum acidente. Escutamos
que já aconteceram acidentes como uma pequena de nove
anos ter se cortado com a faca de raspagem, mas a forma
dos adultos lidarem com o acontecimento foi de cuidar do
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machucado, mas com a noção de que, quando sarar, ela
voltará a praticar o ofício, dessa vez pensando no que a fez
se cortar para evitar outro acidente. Algumas tarefas eram
disputadas por elas, como a de recolhimento das cascas com
uma vassoura para folhas. Todos os instrumentos utilizados
por elas eram os mesmos dos adultos, exceto algumas facas,
que poderiam ser menores, de acordo com a faixa etária
da pessoa. Elas não levaram brinquedos para o momento.
(ARAÚJO, 2019, p. 92 e 93)
O processo narrado pela autora pôde ser confirmado através da narrativa
trazida por Gabriel e ilustra o que está sendo posto neste artigo sobre o conceito
de patrimônio cultural e sua articulação com a prática educativa na educação
infantil. Traz como elemento balizador e reflexivo para a prática escolar a
consideração de uma outra prática cultural e pedagógica calcada na oralidade e,
como afirma Araújo (2019, p. 102), “uma prática educativa não dominada pela
racionalidade moderna, a Mandiocada é transmitida através da fala, da observação
e da experiência. Ensinar, neste contexto, está relacionado a tornar-se pessoa, a
incluir-se no mundo”.
Para o geógrafo Milton Santos (2007), a história do homem se realiza
plenamente a partir das manifestações existenciais no seu território, no seu lugar
de origem. Partindo desse pressuposto, conhecer as manifestações que traduzem
a nossa existência, nossos modos de vida, de subsistência e, mais do que isso,
saber compartilhá-las é uma forma de garantir que nossa identidade cultural se
fortaleça e que nosso espaço de origem possa ser valorizado.
Abrir espaço na escola, desde a infância, escutando as histórias e memórias
das crianças, contribui para fortalecer os saberes próprios de seus territórios, como
também suas identidades culturais, pois, como mostrou Carlos Gabriel (6 anos),
ao descrever, detalhadamente, o processo de fazer farinha, as crianças produzem
narrativas acerca das suas próprias memórias e identidades coletivas. Cabe também
à instituição de educação infantil e seus profissionais acolher os saberes das crianças,
reconhecê-los como importantes e significativos, assim como ampliar o seu
repertório, contribuindo para que possam melhor nomear as tradições.
Conclusão
Conhecer as manifestações que traduzem a nossa existência, nossos modos de
vida, de subsistência e, mais do que isso, saber compartilhá-las, é uma forma de
garantir que nossa identidade cultural se fortaleça e que nosso espaço de origem
possa ser valorizado.
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De maneira geral, os momentos/episódios nos mostram que, para além da
valorização do patrimônio cultural, vivenciar a cidade e seus territórios, no âmbito
da educação infantil, requer investimento em dois elementos fundamentais. O
primeiro diz respeito à força da vivência de experiências reais que se reflete
na compreensão de que estar nas ruas com as crianças constitui uma perspectiva
de interação e interlocução com a cultura presente em qualquer território. O
segundo é a escuta das crianças e seus interesses, considerando as crianças como
cidadãos que têm direitos e podem opinar sobre suas infâncias. Oportunizar
que as crianças vivam suas infâncias, com todas as possiblidades constitui uma
perspectiva intrínseca à educação infantil.
Os momentos/episódios demonstram que os interesses e percepções das
crianças estão atrelados às suas vivências reais e, portanto, perpassam manifestações
culturais que são expressadas e vividas nos seus territórios. Dessa maneira, a cultura
latente percebida e que faz parte do “espaço banal” ou da “horizontalidade”
(SANTOS, 1998) não pode ser silenciada nas práticas pedagógicas da educação
infantil. As culturas locais devem ser valorizadas e inseridas como patrimônios a
serem valorizados e ressignificados.
Assim, ouvir as crianças e dar a elas a oportunidade de viver experiências reais
na cidade de Penedo contribuiu para a compreensão, no âmbito da educação
infantil, de como podemos proporcionar o encontro entre a cidade e o patrimônio
cultural em seus diferentes aspectos. Com a cultura escolar abrindo trilhas e em
diálogo com diversos atores, em busca de sentidos, ajuda na participação da criança
com toda a sua “positividade” (ABRAMOWICZ, 2011), tanto na construção da
obra da cidade quanto na preservação e consequente renovação do patrimônio
cultural do seu território.
Referências
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infância. In: FARIA, A. L. G. de; FINCO, D. (Org.) Sociologia da infância no
Brasil. Campinas: Autores Associados, 2011.
AMARAL, J. C. A criança, a cidade e o patrimônio no âmbito da educação infantil:
identidade cultural, pertencimento e participação. Tese de Doutorado. Programa de
Pós-Gradução em Educação, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2021.
ARAÚJO, L. G. de. A prática educativa da mandiocada nas comunidades
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Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Sergipe, São
Cristovão, 2019.
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Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI). Brasília, 2009.
FOLQUE. A. Reconstruindo a cultura em cooperação mediado pela pedagogia
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Florianópolis: Centro de Ciências da Educação da UFSC, V. 32, N.3, pp. 951 – 975,
2014. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5007/2175-795X.2014v32n3p951.
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FOLQUE. A. O lugar da criança na educação infantil numa perspectiva históricocultural. In: ALMEIDA DA COSTA, S.; AMARAL MELLO, S. (Org.). Teoria
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HADDAD, L. A criança, a cidade e o patrimônio: construindo um acervo dos
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A criança, a cidade e o patrimônio: diálogos com os saberes e fazeres das
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IPHAN. Gabinete da Presidência. Portaria nº 169 de 18 de dezembro de 1995.
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Recebido em 01/05/21.
Data de aceite 24/07/21.
ISSN 2238-2097
Revista de Educação Pública, v. 30, p. 1-21, jan./dez. 2021
DOI: https://doi.org/10.29286/rep.v30ijan/dez