Palmira, o sentido das transformações urbanas
Pressupostos e enunciação
Manar Hammad1
ESIT, Paris III
Observações iniciais
Inscrito entre um trabalho anterior (Hammad, 1998) e uma continuação em
processo de elaboração consagrada à cidade de Palmira, este texto desenvolve
as consequências de uma ideia pouco difundida nos meios semióticos: aquela
de uma análise enunciativa dos enunciados não-verbais. Em 1986, demonstramos a possibilidade de uma tal hipótese (Hammad, 1986). Tiramos aqui as
conclusões arqueológicas e históricas, ilustrando as possibilidades práticas viabilizadas graças a esta ideia teórica. Por meio da arquitetura, mostramos que é
possível tirar conclusões não triviais relativas à maneira de pensar a cidade e o
território urbano, como na maneira de pensar as relações entre a cidade e seus
vizinhos. Diretamente ligadas às categorias da atorialização, da espacialização,
e da temporalização (eu, aqui, agora), estas conclusões se inscrevem no quadro
de uma enunciação enunciada, analisada com ajuda de conceitos narrativos
(Hammad, 1983).
Em Palmira, a cidade material observável é o traço de um processo de
estratiicação, ocorrido ao longo de diversos milênios: diferentes grupos semitas, ditos Amorritas, Aramaicos, Assírios, Árabes..., cuja sucessão cumulativa
constitui o fundo da população local, foram seguidos por elementos Gregos,
Partas e Romanos, cujos rastros culturais são marcantes. Olhando o aspecto
da cidade, conclui-se que a inluência cultural dos últimos teria modelado a
bagagem dos primeiros. Os luxos antigos de substrato humano não determinaram a expressão das manifestações arquiteturais que chegam a nós; em
outros termos, a culturogênese de Palmira não relete sua etnogênese.
Um deslocamento paralelo entre fatores étnicos e culturais se manifesta
pelos usos linguísticos de Palmira: encontra-se ali em torno de três mil ins1. Tradução do francês para o português de Marília Jardim e revisão de Paolo Demuru.
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Palmira, o sentido das transformações urbanas: Pressupostos e enunciação
crições lapidárias em aramaico, menos de quinhentas em grego, e um pequeno
número em latim. Uma hipótese implícita, herdada do século dezenove e
pouco discutida, leva certos autores a supor a existência de um grupo étnico
a partir da constatação da utilização de uma língua.2 O bilinguismo das inscrições palmirianas, no entanto, não deveria distorcer esta perspectiva. Pois
o estudo dos nomes próprios certiicados testemunha um pequeno número
de Helenas nesta cidade, onde a língua grega é uma língua de cultura e de
expressão política. A onomástica testemunha ainda que uma parte apreciável
da população foi falante do árabe, em uma época na qual a língua árabe não
era ainda escrita: este grupo não pôde, portanto, deixar inscrições na língua
que falava. Em breve, o bilinguismo epigráico mascara um trilinguismo verbal
dos habitantes e não testemunha a composição étnica da população.
Neste contexto histórico, partiremos das ruínas do monumento conservado mais antigo de Palmira, o santuário de Bel, aim de extrair de sua arquitetura os elementos suscetíveis de esclarecer o processo de desenvolvimento da
cidade. Tomamos o termo Cidade sob dois signiicados reconhecidos pela
língua francesa: a cidade como grupo humano, inscrito no espaço social e a
cidade como aglomeração urbana, inscrita no espaço físico. Entre o social e
o físico, tentaremos assinalar os organismos de gestão, as maneiras de pensar
e de fazer. Exposta em seus dois aspectos às inluências concomitantes de
poderes vizinhos e de populações locais, a cidade traduz em suas estruturas e
suas formas o equilíbrio dinâmico que lhe permite prosperar entre o primeiro
século antes da Era Comum e o terceiro século de nossa era.
Documentos selecionados
Sendo o edifício mais antigo observável na região, o santuário de Bel (Hammad, 1998) é também o mais importante do ponto de vista da dimensão, do
estilo, e da plenitude. As escavações (Seyrig, 1940) mostraram que este templo foi precedido por um outro, mais antigo, do qual descobriram-se apenas
fragmentos. Pesquisas recentes (Bounni, 1996) efetuadas no têmeno a Leste
do templo atualizaram-nos sobre as bases de colunas helênicas, pertencentes
a um estado anterior do santuário. A reconstrução do templo foi feita a partir
de uma escala inusitada: a cidade foi evacuada e o santuário ocupou toda a
2. Ao longo do século XIX, o despertar dos nacionalismos se apoia sobre a diferenciação das línguas,
depositando na linguística, ainda nascente, a garantia dita cientíica a um argumento especioso,
segundo o qual uma língua faz referência a um grupo étnico de um lado, e serve de fundamento a
uma nação de outro. A história e a geograia, no entanto, fornecem múltiplas provas do contrário.
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Manar Hammad
acrópole. A cidade expulsa se desenvolveu na pequena planície situada entre o
tell3 e as colinas ocidentais. Sua evolução e sua crença foram contemporâneas
do canteiro de obras do templo de Bel, depois da construção de seu períbolo.
Estes dois desenvolvimentos concomitantes (o santuário, a cidade) exerceram uma inluência um sobre o outro, mesmo sem ocorrer uma coordenação
geométrica estrita, de onde surgiu uma questão interessante: é possível recuperar um local entre as formas da cidade e a atividade do templo?
O templo, dotado de um papel ritual em primeiro lugar, nos levou a estudar os ritos declarados e reconhecíveis (Hammad, 1998) a partir da arquitetura. A este corpus não-verbal (santuário, cidade, ritos), é necessário associar o
corpus verbal das inscrições, aim de completar um pelo outro. O catálogo das
inscrições aramaicas de Palmira de Hillers e Cussini (1996) era já exaustivo no
momento de sua preparação. As descobertas e publicações ulteriores, porém,
lhe tornaram incompleto. Entretanto, continua ainda muito conveniente para
o estudo dos textos, desde que se leia aramaico.4 Se o conteúdo dedicatório,
honoríico ou funerário5 da maioria das inscrições não oferece mais que pouco
interesse direto para o estudo das formas físicas da cidade, por outro lado ele
nos informa sobre sua forma social, em particular a respeito de suas estruturas
familiares, clânicas, econômicas...
3. [N.T.] Termo arqueológico que designa uma colina artiicial formada pela acumulação prolongada de ruinas de sucessivos estabelecimentos humanos ao longo dos séculos.
4. Para as traduções, continua necessária a consulta a publicações dispersas.
5. Estas são as categorias semânticas gerais reservadas pelos autores selecionados para a classiicação
das inscrições. Tomamos estas e aquelas, centrando nossa aproximação sobre as condições de sua
enunciação: é possível extrair uma informação apreciável para a análise conjunta do conteúdo da
inscrição, de sua data e de sua localização na cidade.
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Palmira, o sentido das transformações urbanas: Pressupostos e enunciação
Pressupostos semânticos da reconstrução do santuário de Bel
A reconstrução do santuário de Bel fora uma operação complexa, cuja realização exigiu vinte anos para a cela, e mais de um século para a conclusão do
têmeno e do períbolo. Ela constitui um ato performativo, suscetível de ser
submetido à análise semântica.
Pressupostos do ato de reconstrução
A re-construção de um santuário em atividade nunca é um ato desprovido de
razões. O desgaste e a obsolência da estrutura anterior são frequentemente
evocadas como justiicativa: assim, Alexandre empreendeu a reconstrução da
grande zigurate da Babilônia. Não é, contudo, difícil de ler nos gestos do
conquistador macedônio, sob as piedosas motivações declaradas, um projeto
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Manar Hammad
político visando reunir as populações locais subjugadas. Em outras circunstâncias e outros lugares, a destruição e/ou a profanação da estrutura anterior
foram evocadas: em Atenas, por exemplo, no saque realizado em 480 aec.
Beneiciou-se da ocasião para apagar toda a referência orientalizante,6 airmando o estilo grego. Em Jerusalém, o saque e a profanação de Antíoco IV
em 168 aec corresponde à re-consagração do Templo em 165 aec. Uma nova
dedicatória a Jeová foi vista como necessária, com a inalidade de excluir o
intermédio da consagração a Zeus Olímpico.
Numa tal perspectiva, é lógico supor que a reconstrução do santuário de
Bel foi motivada, não mais que parcialmente, pela expedição mal sucedida dos
cavalheiros de Marco Antonio em 41 aec. A cidade fora evacuada, nos conta
Appien (1991). Os templos, que eram os lugares comuns de conservação dos
tesouros coletivos das cidades, foram certamente “visitados” pelos soldados
interessados. A repartição daquilo, que pôde parecer como profanação, tomou
o aspecto de uma reconstrução completa, com expansão. Com o apoio de
uma tal hipótese, pode-se citar o interesse imperial romano, exprimido em 19
ec pela dedicação ao santuário de Bel de uma tripla escultura, representando
Tibério, Druso, Germânico, mas o templo não foi inaugurado antes de 32 ec,
como nos mostra uma inscrição. Por consequência, a dedicatória imperial teve
lugar em pleno canteiro, o que faz supor7 uma contribuição inanceira romana
à obra de ediicação. Suscetível de explicar em parte a celeridade com a qual o
edifício foi concluído, a reconstrução do templo de Bel se inscreveria em um
processo de restauração de relações contratuais entre o poder central romano e a
cidade periférica de Palmira, localizada nos conins do Império.
O ato de reconstrução não se inscreveria, portanto, unicamente na dimensão religiosa. Seu volume, seu estilo, as oferendas recebidas testemunham
sua inscrição simultânea na dimensão política. Diicilmente seria diferente: a
autoridade imperial praticava os cultos oiciais na extensão do império, mas
todo ato político deveria receber uma garantia religiosa, ao mesmo tempo
em que todo gesto religioso, realizado na escala de uma cidade, possuía uma
incidência política.
Substituída no encadeamento dos eventos, a reconstrução do templo
de Bel manifesta as articulações de uma operação semântica de denegação
(negação de uma negação, ou seja uma forte airmação): no plano religioso,
a re-consagração sucederia a uma profanação; no plano político, o ato de
6. Manifestas nas ruínas dos santuários anteriores, atualizadas pelas escavações.
7. Opinião compartilhada por I. Browning, H. Stierlin, A. R. Colledge, E. Will.
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Palmira, o sentido das transformações urbanas: Pressupostos e enunciação
doação sucede um ato de saque. A reconstrução dá ocasião de desenvolver,
na pedra e em termos não verbais, o núcleo de uma igura mítica, do restabelecimento da ordem depois da introdução de uma perturbação. Em suma,
pode-se então ler, no plano religioso, a restauração da relação contratual entre
uma comunidade e seus deuses, e, no plano político, a restauração da relação
entre um território periférico e um imperador.
Pressupostos da dimensão do santuário
A dimensão do santuário de Bel é signiicativa. Ele constitui a maior estrutura
da cidade,8 dominando sua massa. Na escala regional, ele é comparável apenas
aos santuários de Baalbak, que lhe são muitas décadas posteriores. No momento de sua construção, ele aparecia como o maior da região. Resulta-se que
o templo de Bel não pode ter sido concebido como o templo de uma pequena
cidade provincial: ocupante da superfície do tell que havia abrigado a cidade
inteira, o têmeno é capaz de acolher a totalidade da população extra-urbana
para um ritual de circumambulação, tal como praticado pelos semitas.
A construção de um santuário desta dimensão equivale a um ato enunciativo dirigido pelos palmirianos aos outros, i.e. às populações exteriores à
cidade, tanto àquelas de Palmira quanto àquelas da Síria e da Mesopotâmia.
Fazendo isso, Palmira se posicionava em um universo ultrapassando seu
próprio território. Um paralelo tomado na mesma região, mas emprestado
de outra época, é esclarecedor: o cronista Ahmad al Ya'qubi nos conta que,
erigindo a mesquita chamada Domo do rochedo, em Al Quds-Jerusalém, Abd
al Malik bin Marwan (687-705 ec) intencionava canalizar os luxos de peregrinos na direção de Al Quds, no momento em que o insurgente Abdallah bin
az Zubayr havia se apoderado de Makkat, proclamando-se califa. Um projeto
político transparecia em um programa que poderia ter se restringido àquele de
um empreendimento religioso. Na ocorrência, a população convidada a se deslocar para rezar neste local era constituída principalmente por muçulmanos.
Se um tal modelo é pertinente, sua projeção no passado convida a determinar qual a comunidade destinatária da mensagem palmiriana. Considerando que o santuário é consagrado a Bel, divindade babilônica certiicada desde
o meio do segundo milênio, e que os Partas instalados na Mesopotâmia no
segundo século separam a parte oriental do reino selêucida de sua parte ocidental, é possível supor que o santuário de Bel se dirigia a uma população re8. Cella 13,9 x 39,4m; colunas 18,5m; fundação 36,7 x 62,2m; têmeno 200 x 200m aproximadamente.
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Manar Hammad
gional que se encontrava à frente da Babilônia em suas devoções e, ao mesmo
tempo, entrecortada pelas circunstâncias políticas. Palmira se revela, portanto,
como uma cidade que pretende uma primazia religiosa regional de substituição
para uma população anterior, orientada na direção da Mesopotâmia. Tanto
mais que os palmirianos se refugiam aquém do Eufrates quando são atacados,
seu mesopotropismo é recorrente.
Recapitulemos: pela análise do ato magistral e da dimensão do santuário,
Palmira é posicionada em relação à esfera divina, ao império romano, e às
populações aramaicas dos arredores. Podemos identiicar tais vínculos como
as relações exteriores da cidade, convêm agora examinar o incidente sobre suas
estruturas internas.
Pressupostos da evacuação do tell
Se a cidade primitiva, cujas ruínas superpostas constituíram o tell – aquele
contendo os elementos da Idade do Bronze antigo (Du Mensil Du Buisson,
1966) – foi evacuada, expulsando o conjunto de habitantes de suas casas,
é porque uma decisão foi tomada. Na ausência de um rei,9 é de se supor
que a decisão foi tomada por seus habitantes. O que poderíamos saber a
este propósito?
Quando uma divindade expulsa os homens de seu habitat para melhor os
instalar em seu lugar, a operação parece “natural” àqueles que pensam que a
divindade é a proprietária última de todas as coisas, em particular do espaço
de vida. Deslocando seus iéis, ela nada faz além de exercer sua autoridade
principal e inaugural. A terra que ela lhes concede é um dom augusto, os
homens não sendo mais que locatários na casa dos deuses proprietários, em
um “sempre ali” mítico e atemporal. Tal teria sido a situação de certos territórios mesopotâmicos, devolvidos aos proprietários divinos. No entanto,
não parece que uma tal concepção prevalecera em Palmira, onde o direito de
propriedade é atestado nas inscrições das sepulturas, construídas pela família
de X ou de Y. O caráter clânico e coletivo destas sepulturas autoriza postular
uma propriedade coletiva das instalações. Tal hipótese é ainda mais plausível
se pensarmos que a propriedade coletiva e indivisa é atestada na Síria rural no
início do século xx (regime dito Musha') (Weulersse, 1946). Se fosse tal o caso
9. Os reis selêucidas preservaram ciosamente o privilégio de fundar ou re-fundar cidades. Se eles
o houvessem feito em Palmira, poderia-se identiicar traços presentes nos textos, de um lado, ou
vestígios urbanos, de outro: em todos os lugares onde ocorreram intervenções, traçados hipodâmicos foram impostos.
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Palmira, o sentido das transformações urbanas: Pressupostos e enunciação
no habitat urbano de Palmira, a evacuação do tell não seria simples: os clãs
proprietários são mais difíceis de mover que os indivíduos.
A evacuação efetiva manifesta a existência de uma instância comum superior, dispondo da autoridade necessária, a qual não sabemos nem nomear,
nem caracterizar em termos institucionais (Polis, à grega? Ou alguma forma
nativa?). Ela corresponde àquilo que poderia-se designar pela ediicação do
templo de Bel. Para seu encadeamento, esses dois atos correlacionados provam a eicácia de uma entidade coletiva dotada de um querer fazer e de um
poder fazer.
Fazendo erigir uma tripla escultura no recinto do templo, Germânico
realizou um ato que não se restringe à esfera religiosa: ele toma o ato de existência da entidade política palmiriana e a legitima indiretamente nos termos
do Império. Escolhendo se exprimir na dimensão religiosa, ele comprova um
sentido diplomático, selecionando uma isotopia semântica menos sensível
que o terreno explícito da autoridade política. Assim fazendo, ele reconheceu
uma forma de legitimidade na entidade coletiva palmiriana na origem do
projeto religioso.
Se alguma inscrição selecionada conservou a designação da autoridade
pública palmiriana na época desta operação, encontramo-la em um texto
datando do ano 35 ec (Cantineau, 1930) (pouco depois da inauguração do
templo de Bel, em 32 ec) onde a coletividade é designada pelo vocábulo gbl
(a escrita aramaica é consonântica, notando apenas vogais longas). Na versão
grega paralela, o termo gbl é traduzido por démos: se trata do povo de uma cidade. Um termo foneticamente similar, e cuja transcrição consonante é quase
idêntica, existe na língua árabe. O dicionário Lisân al 'Arab (Ibn Mandhour,
1979) lhe da a deinição “população numerosa tomada em sua totalidade”.
Este termo, cujo uso tornou-se raro nos nossos dias, é ocorrente duas vezes
no Alcorão (início do 7˚ século ec), onde ele é vocalizado gibill. O texto epigráico, no qual este termo é ocorrente, utiliza uma variedade do aramaico do
império Palmiriano. Se o vocábulo gbl é por sua vez aramaico e árabe, com
um sentido similar, senão idêntico, nas duas línguas, sua utilização pública
é portadora de uma informação nada trivial: a comunidade palmiriana, em
sua totalidade, é designada pelo vocábulo aceito por sua vez pelos Árabes e pelos
Aramaicos coabitantes em Palmira. É portanto um termo potencialmente uniicador, sobre os dois planos de expressão e do conteúdo. Sua utilização em
tal data e contexto é signiicativa: em um dos textos palmirianos ulteriores,
onde este termo é ocorrente (Cantineau, 1930), o sentido totalizante de gbl
é conirmado pelo uso concomitante de klhn = todos.
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Manar Hammad
O termo mdynt', certiicado em língua acádia em Mari, no século 18
aec, designando ulteriormente as cidades em aramaico e em árabe, e utilizada
em Palmira para qualiicar a cidade de Babel em uma inscrição do ano 24 ec,
não é ainda utilizado para qualiicar Palmira ela mesma. Uma diferença de estatuto é, portanto, pressuposta entre as duas cidades. O termo grego de Boulé,
utilizado para designar a assembléia eletiva das cidades históricas10 helenizadas, será utilizado bem mais tarde em Palmira. Nestes primeiros anos da era
comum, o único certiicado da existência de funções municipais institucionais
é a menção de tesoureiros, ditos argyrotamiai em grego, anosh anoshta
em Aramaico. A expressão aramaica, associando duas formas derivadas de
uma raiz única, testemunha a existência de uma instituição possuindo membros. Em termos atuais, nos diríamos que havia “tesoureiros” pertencendo a
uma “tesouraria”.
Em 24 ec, os tesoureiros são associados à comunidade GBL para honrar
Malku, ilho de Nesha, em uma inscrição. A formulação, associando um
pequeno grupo a um grande grupo, evoca aquela que tornar-se-á a norma
ulterior, onde a boulé é associada ao démos para honrar os cidadãos. Este texto
identiica portanto, a este período da vida de Palmira, uma estrutura social
urbana a dois termos institucionais, diferenciados por sua dimensão: um grupo
reduzido, de uma parte, uma comunidade extensa reunindo a população, de
outra. A presença dos tesoureiros deve remontar, como supõe Teixidor, à época selêucida, pois a administração macedônica não fazia pagar o imposto aos
indivíduos, mas às coletividades (seja das cidades, seja dos ethnoï ou povos),
sendo os tesoureiros os interlocutores locais do isco central. A estrutura que
restituímos seria, portanto, a estrutura sociopolítica da época selêucida. O
fato de que houvera quatro tesoureiros poderia reletir a existência de quatro
grupo de contribuintes, ou seja, os quatro reagrupamentos que recebiam a
denominação de tribos nas inscrições ulteriores. A origem destas tribos seria,
então, anterior à administração romana.
Uma outra forma de organização da cidade transparecia nas inscrições
recolhidas no santuário de Bel: alguns personagens palmirianos izeram generosas contribuições pessoais (mn kysh = do próprio bolso) para a ediicação
do templo. A dedicatória de agradecimento (Cantineau, 1930) oferecida em
contrapartida pelos negociantes palmirianos de Babel e datada de 24 ec,
acrescenta que o gesto à Malku, ilho de Bolha, não possuíra precedentes. O que
10. [N.T.] Aqui Manar Hammad deixa de utilizar o termo ville e adota a forma cité, reforçando
tratar-se da cidade em seu sentido histórico ou de uma parte particularmente antiga de uma cidade.
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Palmira, o sentido das transformações urbanas: Pressupostos e enunciação
deixa entender que o inanciamento anterior do santuário não possuía caráter
individual; ele era, portanto, coletivo.
A menção coletiva dos “sacerdotes de Bel” em um ato dedicatório, datando
de 44 aec (Cantineau, 1930-1936), convida a supor que o santuário desfrutava do que poderia-se chamar, em linguagem jurídica moderna, da personalidade moral, e que dispunha, a este título, de bens próprios. Reconhecia-se
ainda, na pessoa jurídica “templo”, o papel de mestre de obras inanciando a
operação de reconstrução. Tais recursos possuiriam um caráter semi-público.11
Os arquivos dos templos mesopotâmios certiicam que pertenciam a grandes
proprietários de terras, que se submeteram a um comércio internacional de
longa distância. Uma situação similar não é impensável em Palmira, mas os
textos não a conirmam. Na inscrição evocada, que se pensa ser a mais antiga
conhecida em Palmira, o conjunto de sacerdotes de Bel aparece agindo em
conjunto ao titulo de um grupo constituído.
Retornemos à inscrição do ano 24 ec, honrando Malku: ela nos faz descobrir que o costume conhecido como evergetismo na Grécia (prática pela qual
as personagens eminentes das cidades inanciavam, sobre seus bens próprios,
trabalhos de interesse público) faz sua entrada em Palmira. Desenvolvido na
Grécia, difundido no conjunto do mundo helênico pelos Macedônios, o costume é mantido no Oriente na época romana. Em Palmira, sua aparição testemunha que a vida pública se heleniza de um lado, e que, de outro, os recursos
do templo ou da cidade12 não bastam para a ambição dos trabalhos lançados
pela comunidade. Uma outra inscrição, datada do ano 19 ec (Cantineau,
1930) atesta que Yedi'bel, ilho de 'Azyzo, ilho de Yedi'bel, já tinha feito
uma grande doação para a construção do santuário de Bel. Esta inscrição é
anterior, em data, àquela de Malku, ilho de Nesha (19 < 24), mas as doações
podem ter sido efetuadas na ordem inversa, antes que as inscrições honoríicas
tivessem sido gravadas. Em todo caso, a data do mês de Ab 19 ec nos da um
terminus ante quem para a aparição do evergetismo em Palmira.
O evergetismo tornou-se uma verdadeira instituição em Palmira: a
abundância de dedicatórias honoríicas, assim como os fatos relatados para
lhes justiicar, testemunham que a prática é adotada como um dos meios
preferidos de expressão da riqueza e do poder no seio da comunidade mer11. O estatuto de “bens da igreja” durante o antigo regime, na França, oferece um ponto de comparação interessante. No Oriente, a civilização islâmica elaborou o estatuto original dos “waqf,
awqâf ” ou “bens de mão morta”, destinados a fazer viver as instituições piedosas.
12. Ainda que esta disponha do título de uma pessoa jurídica.
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Manar Hammad
cantil. Ela toma as dimensões de um verdadeiro potlatch13 (Mauss, 1950): as
oferendas e dedicatórias se multiplicam, rivalizando com a riqueza e a visibilidade, ocasionando agrupamentos no tempo, seja na primavera ou no outono.
A constatação de um tal reagrupamento temporal em torno dos meses de
Nisannu e de Tishry convida a associar a prática aos períodos festivos. O referenciamento tribal dos doadores reforça a reconciliação com o potlatch ritual,
tal como reconhecido pelos antropólogos. Retornaremos a isso.
Recapitulemos: no momento em que o santuário de Bel se eleva, a cidade
possui uma entidade coletiva totalizante dita gbl, uma tesouraria coniada a
quatro tesoureiros, que poderiam representar quatro divisões políticas chamadas tribos, um grupo de sacerdotes agindo de acordo, e notáveis engajados em
uma competição evergética, aparentada a um potlatch clânico.
Enquanto o santuário é erigido sobre o tell, uma cidade se estende no
nível inferior. Na ausência da grade ortogonal regular hipodâmica, supomos
que a extensão resulta de uma multiplicidade de atos individuais, o que não
signiica atos não coordenados: é preciso pressupor uma coordenação social,
mesmo que seja apenas aquela que diz respeito à alocação dos espaços e à transplantação dos habitantes. Mas a coordenação social não é exprimida por uma
coordenação geométrica, imposta à matéria urbana, o que diferencia a operação
daquelas lideradas pelos Gregos na Asia Menor ou na Sicília. Nem as autoridades selêucidas, nem as autoridades romanas deixaram traços geométricos
em uma operação onde reconhecemos uma maneira semítica.
Pressupostos da dedicatória a Bel
Bel é um deus urbano: nem o deus de um clã, nem aquele de uma tribo. A
observação é trivial: nas inscrições palmirianas, as referências de linhagem,
clânicas e tribais, deinem os indivíduos. A prática é normativa, quer as inscrições sejam honoríicas, funerárias ou culturais.
O quadro de pensamento clânico se exprime claramente nas sepulturas
(torre, casa ou túmulo): elas acolhem aos grupos unidos pelas ligações de
parentesco. Não se conhecem sepulturas monumentais individuais em Pal13. Marcel Mauss analisa a instituição do Potlach, identiicada de início pelos etnólogos nos
Ameríndios Tlingit e Haïda, na costa do Noroeste americano, e reconhece práticas estruturalmente
idênticas nas diversas populações antigas, dentre as quais ele cita os Gálatas (celtas) da Ásia menor,
cujos costumes são descritos pelos autores gregos. Ele nos dá um modelo geral da instituição em seu
“Essai sur le don”, em Sociologie et Antropologie, Paris: PUF, 1950.
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Palmira, o sentido das transformações urbanas: Pressupostos e enunciação
mira; para a casa da eternidade, como dizem os textos aramaicos, todos os
indivíduos que tiveram direito a uma sepultura são inseridos em grupos. Os
reagrupamentos na morte nos deixam pressupor os reagrupamentos paralelos
na cidade: o indivíduo sozinho não possui existência honorável em Palmira.
Semelhantes às sepulturas, os outros santuários palmirianos são oponíveis
ao santuário de Bel14 (Wiegand, 1932) no que diz respeito aos subgrupos da
cidade. As inscrições dos santuários de Baalshâmîn e de Allat mencionam
frequentemente os Bene Maazin, do templo de Arsu os Bene Mathabol, do
santuário de Nabû os Elahbel e os Belshuri... Cinco inscrições, estudadas por
Daniel Schlumberger (1971) fazem referência a quatro santuários atribuídos
às quatro tribos da cidade.
Da oposição arquitetural do templo de Bel com as instalações funerárias
ressurge um efeito de sentido de uma claridade luminosa: as sepulturas exprimem a fração clânica da sociedade palmiriana, enquanto que seu santuário
maior exprime a unidade.
Edifícios funerários
clãs tribais
frações de linhagem
/vs/
/vs/
/vs/
santuário de Bel
comunidade tadmoreana
unidade política
Ao oposto de um pensamento de linhagem, a ediicação do santuário de
Bel manifesta, pelo conteúdo territorial reconhecido, a existência de um pensamento territorial tomando em consideração a dimensão social. Em termos
gregos, poderia-se dizer que um pensamento patrono está na obra da reconstrução do templo de Bel. Temos aqui a prova material que, em Palmira, o
espaço físico (territorial) serve de referência ao grupo social, lhe fornecendo a
base de um lugar social que não depende da iliação, a qual constituía a referência ordinária. Dotado de um fundamento independente deste último, o lugar
territorial permite abraçar um grupo social de uma escala superior, reunindo os
grupos que seriam separados do ponto de vista da linhagem. Disto resulta que
a reconstrução do santuário de Bel contribuiu para ediicar o conceito de um
território reconectado à cidade de Palmira, bem como a destacar a sua existência
na realidade.
14. O autor destaca que os edifícios mais antigos conservados em Palmira são os templos e/ou as
sepulturas.
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Manar Hammad
Pressupostos do culto de Bel
Se o nome de Baal é conhecido em todos os ares oeste-semíticos (certiicado
em Ebla desde o século 18 e em Ugarit no século 16), a forma Bel do nome é
babilônica. A data da inauguração do santuário palmiriano (6 Nisannu), notado em uma dedicatória, remete aos ritos de Akîtu, celebardos na Babilônia
no equinócio da primavera. Tanto o nome quanto a data remetem na direção
da Mesopotâmia, em particular da Babilônia, cidade fundada pelos Amorritas, i.e. Os Semitas vindos do Oeste.
Quer Palmira tenha conservado uma componente amorrita latente, quer
sua componente aramaica tenha ligações estreitas com Babel, ela marca, pela
dedicatória de seu santuário principal, uma ligação com a Babilônia no momento em que, pela tríade divina e pelo estilo arquitetural, ela marca uma
ligação com Roma e com a cultura grega. Nesta dupla referência, existe uma
busca de equilíbrio entre o Leste e o Oeste. Nada prova que Bel tenha sido
a divindade dominante de Palmira muitos séculos antes do período que nos
interessa. É certiicado, sem dúvida. Conhecemos, antes, a era comum dos
nomes teóforos comportando um Bol ou um Bel inal – tais como Gaddibol,
ou Zabdibel, comandando as tropas árabes nos arredores de Antíoco iii em
Ráia, 217 aec (Seyrig, 1971). Os portadores de tais nomes são considerados
palmirianos. A reviviicação de um culto adormecido, na ocasião desta construção, parece pouco provável; já praticado em Palmira, o culto de Bel parece
tomar, contudo, uma forma nova em um novo contexto sociopolítico.
O mito de Bel, tal como é contado por Enuma Elish,15 faz do deus o
campeão das águas doces (ele é o ilho de Anu, ilho de Apsû), combatendo
e matando Tiamat, a deusa das águas salgadas. Em seguida, ele torna-se um
deus soberano, estabelecendo a ordem dos deuses e das coisas no mundo.
Bel é então portador de um duplo sistema de valores: aquele da soberania no
espaço social, e aquele da vida no espaço físico.16 Dotado de tais valores, Bel
dispõe de todos os meios para jogar um papel uniicador no oásis de Palmira.
15. Poema acádio narrando a cosmogênese e a teogênese.
16. A água doce assegura a vida dos nômades no deserto, assim como ela assegura a vida dos agricultores sedentários; somente a água doce é portadora da vida, enquanto que a água salgada é
portadora da morte.
13
Palmira, o sentido das transformações urbanas: Pressupostos e enunciação
Pressupostos da tríade divina (Bel, 'Aglibol e Yarhibol)
A inscrição mais antiga conservada em Palmira, encontrada nas fundações
do muro T do santuário (Seyrig, 1940), datada do mês de Tishry 44 aec,
menciona o deus Bel sozinho, sem assessores17 (Teixidor, 1979, p. 2). Uma
inscrição de Doura Europos, datada de Siwan 33 aec, associa os deuses Bel e
Yarhibol, na dedicatória de um templo local. É apenas em Tishry 45 ec que
uma inscrição de Palmira menciona a dedicatória (tendo lugar em Nisannu 32
ec) do maior santuário da cidade aos deuses Bel, Yarhibol e Aglibol. Seguiremos então Javier Teixidor em seu raciocínio, quando reconhece uma evolução
teológica, com duração de aproximadamente 80 anos, fazendo transitar de
um deus isolado a uma tríade divina, passando por uma fórmula diádica intermediária. Esta mudança conceitual se completou no curso de um período
que precede e inclui este, no qual se reconstrói o santuário de Bel. De onde
surge a interrogação sobre a ligação possível entre as duas transformações: a
que concerne aos deuses, e a que transforma sua casa.
Em Palmira, Bel foi colocado em equivalência com Zeus, enquanto divindade superior aos outros deuses. A etimologia semítica do nome signiica
mestre, senhor. Na tríade, Yarhibol ocupa o segundo lugar; uma dedicatória de
Doura Europos o fez deus da fonte (Du Mensil Du Buisson, 1939). Outras
inscrições dizem que o curandeiro da fonte, Efqa, fora escolhido por Yarhibol
(Teixidor, 1979, pp. 32-33; Starcky e Gawlikowski, 1985, p. 95). O termo
neo assírio YARHU (Dalley, 1995, p. 140) signiicando bacia, unido ao suixo
BOL, querendo dizer senhor, o nome composto Yarhibol signiicaria o senhor
da bacia.18 A partir da língua árabe, a etimologia semântica mostra que Yarhibol poderia ser o deus do espaço eufórico conjugando a terra e a água.
O deus Aglibol, colocado no terceiro lugar da tríade, diicilmente é mencionado sozinho. Ele dividia com Malakbel (= o enviado de Bel) o santuário
do jardim sagrado, mencionado em certas inscrições. Uma análise semântica,
conduzida a partir do árabe,19 permite atribuir a Aglibol o papel de senhor dos
17. [N. T.] A versão original do artigo apresenta o termo parèdre, que individua uma divindade de
classe subalterna, cujas funções estão associadas àquelas de uma divindade superior. Optamos aqui
para traduzir tal vocábulo por assessor.
18. Em posição pré-deinida, o vocábulo Bel atribui o título de “senhor vitorioso” ao deus que
qualiica. Em posição pós-deinida, o vocábulo Bol = Bel designa o senhor do elemento que lhe
precede: aqui, o senhor da bacia.
19. O Árabe é uma língua semítica aparentada ao Aramaico. Ela possui a vantagem de ser uma
língua viva, dispondo de um conjunto de declinações potenciais a partir de suas raízes, o que facilita o trabalho de interpretação. Na medida em que a raiz retida é binária, ela tem boas chances de
14
Manar Hammad
limites (inicial e inal). Seria próximo do Janus latino, atribuído aos limites
espaciais e temporais, dotado de duas faces para olhar simultaneamente os
inícios e os ins. O que corrobora a colocada em correspondência de Aglibol
com a lua, cujas fases medem o tempo: a mudança de forma da lua20 marca
a passagem do limite inal de um mês ao limite inicial do mês seguinte, a
passagem de um ao outro permitindo pensar na indistinção possível do limite
inicial e do limite inal.
Combinemos estes elementos às conclusões da análise arquitetural do
templo de Bel (Hammad, 1998): alinhando-o à direção Norte-Sul, a mudança
de orientação inscreve na arquitetura uma marca cósmica universalizante. O
hemisfério esculpido no teto do tálamo norte inscreve uma isotopia astrológica, especiicando Bel como o mestre dos céus. Em Yarhibol, dispõe-se de um
assessor que controla o espaço, aquele onde se reúnem a água e a terra. Em
'Aglibol, dispõe-se de um assessor que controla os limites temporais. Emerge
portanto, uma coniguração sintética, pela qual Bel reina diretamente sobre o
espaço cósmico dos planetas, ao mesmo tempo em que seu reino sobre o espaço
terrestre e seus limites é indireto, passando pela intervenção de dois assessores.
Os três deuses formam uma trilogia, ou seja, uma coniguração familiar
aos romanos: a trilogia capitolina (Júpiter, Juno, Minerva) sucede a trilogia
funcional arcaica, reconhecida por G. Dumézil (Júpiter, Marte, Quirino). Ela
oferece uma similitude com as trilogias de santuários etruscos citados por
Vitruve, assim como a quaisquer trilogias divinas do Egito, cuja inluência
foi exercida sobre os ritos funerários palmirianos (os corpos mumiicados, as
sepulturas chamadas moradas da eternidade, a organização espacial das criptas assemelhando-se à criptas alexandrinas). Por este ar familiar, a sociedade
palmiriana estaria em processo de oferecer aos seus poderosos vizinhos uma
imagem à sua semelhança e, assim, melhor se integrar a seu universo.
Uma estrutura ternária introduziu um princípio de ordem entre os deuses,
no momento em que a sociedade palmiriana introduziu as novas hierarquias
em seu jogo social. Os dois processos são, provavelmente, dependentes. Sobre
a reforma teológica, destacamos o traço de uma reforma sociopolítica afetando o conjunto da comunidade, a moda de expressão religiosa servindo como
terreno de elaboração intelectual, precedendo a aplicação sociopolítica.
elevar-se de um nível pansemítico. É claro que não se pode proceder sem precauções e veriicações
a posteriori. A presença de uma importante população árabe em Palmira argumenta em favor deste
procedimento.
20. [N. T.] No original “Le changement de forme du croissant(...)”, da expressão francesa croissant de
lune, que faz referência ao formato da Lua no quarto crescente e minguante.
15
Palmira, o sentido das transformações urbanas: Pressupostos e enunciação
Recapitulemos. Se Bel marca um projeto de soberania não clânica sobre
a cidade e sobre o território que a cerca, a trilogia de Bel, Yarhibol e Aglibol
exprime, liberando um núcleo semântico comum aos três deuses, um projeto
de controle sobre o espaço territorial (em sua extensão por Yarhibol, em suas
fronteiras – limites espaciais – por Aglibol), introduzindo uma relação de
ordem neste universo.
Pressupostos das escolhas arquitetônicas
A forma dada à cela do templo de Bel é a de um templo grego pseudo díptero
cujo modelo, atribuído ao arquiteto Hermógenes de Priene, é o templo de
Artemis em Magnésia, de Meandro. A referência formal é, portanto, grega.
Simultaneamente, o caráter semítico dos cultos célebres transpareceu pelo
posicionamento da porta no terceiro grande lado, precedida por um portal
monumental ocupando duas entre-colunas. Quatro pares de janelas altas denunciam uma necessidade de claridade interior, não habitual na Grécia. Se,
sobre o nível da cimalha, todos os detalhes de execução obedecem aos estritos
cânones gregos, um deslocamento é visível no nível da coroação: por trás dos
merlões decorados, um terraço acessível foi adaptado para os ritos realizados
sob seu teto. A forma dos merlões é atestada nas representações assírias. Os
ritos de terraço, realizados à noite, com tochas, são citados pela plaquetas
rituais acádias (hureau-Dangin, 1921, pp. 39-41-45). Neste conjunto de
caracteres, a referência formal é mesopotâmica.
Em seu interior, a presença de dois thalamoï, colocados sobre os pequenos
lados do retângulo, nos coloca um problema de interpretação. O único precedente conhecido de uma tal disposição se encontra no Palácio de Mari. Embora esta cidade não se localize a mais de duzentos quilômetros, seu palácio
datado do Bronze Antigo se encontrava, na época, soterrado sob dezoito
séculos de terra e de poeira, ou seja, tal disposição amorrita não poderia ser
diretamente conhecida pelos construtores de Palmira. Se não se trata de uma
manifestação do acaso, houve intermediários: seja dos edifícios desaparecidos,
seja uma descrição textual, sejam as práticas culturais similares. A primeira
hipótese é pouco provável. Continuam as outras duas possibilidades, as quais
não se excluem.
A presença de três escadas caracol levando ao terraço, dotadas de gaiolas e
de núcleos de formas diferentes (círculo, quadrado, retângulo), testemunham
a importância dos ritos de terraço, realizados por cada um dos deuses da tríade.
Tais feitos, assim como a simetria direita/esquerda dos dispositivos puriica16
Manar Hammad
dores e sacriiciais do têmeno (Hammad, 1998), impõem uma consequência
maior: a sintaxe espacial regulando a disposição dos elementos uns em relação
aos outros é semítica, enquanto que o vocabulário, no qual os elementos são
exprimidos, é helênico. Temos aí uma característica não trivial do santuário de
Bel: a combinação descrita não se limita a admitir duas inluências diferentes,
vindas do Leste e do Oeste. Se o vocabulário helênico faz o papel de um hábito ixado, a sintaxe semítica se revela como a estrutura portadora do conjunto,
capaz de lhe dar seu sentido profundo. Ou ainda, a sintaxe sobredetermina o
vocabulário, inserindo-o no espaço semítico. Por consequência, os elementos
helênicos são re-semantizados por meio de sua inserção em espaço semítico.
Isto se produz no universo ideológico e conservador da religião. A implementação arquitetônica desta lógica, no limite da era comum, testemunha
um pensamento ancorado localmente, dando prioridade a uma articulação
semítica em relação aos componentes estrangeiros.
Uma outra transformação advém, após a realização da cela, quando o
períbolo é inserido no canteiro. A operação é, em parte, justiicada pela extensão do têmeno projetado (200 x 200m aproximadamente). O tell original,
sobre o qual foi erigido, não era suicientemente amplo: foi necessário elevar
os muros de sustentação e aterrá-los, assegurando sua extensão. O tell era
relativamente saliente, o que teria gerado um declive de volume considerável.
A solução adotada foi arrasar a parte mais alta do tell, utilizando as terras
centrais como aterros periféricos. A economia de materiais era substancial. No
entanto, criando um desnível de 91cm, o degrau (fundação) do templo tornou-se impraticável: este foi então imerso, em um podium de estilo romano.
Pela primeira vez, uma característica arquitetônica propriamente romana era
trazida a um ambiente que era, até então, exclusivamente helênico e semítico.
Simultaneamente, o nível do solo dos dois thalamoï foi elevado. O efeito
desta elevação, combinado ao rebaixamento do nível do têmeno, foi o de
aumentar a distância entre o nível dos homens (= têmeno) e aquele dos deuses
(= tálamo). Independente da referência romana do podium, a forma vertical
das bordas deste último estabelecia uma barreira intransponível 21 entre o nível
do têmeno e o do peristilo da cela.
Consequentemente, três operações arquitetônicas distintas (rebaixar o
têmeno, elevar os thalamoï, transformar o degrau da fundação em plataforma
de podium) contribuem com o aumentar a distância física e semântica entre
o nível dos homens e o nível dos deuses. Pode-se traçar um paralelo com os
21. Somente a rampa de acesso permitia a passagem no eixo da porta da cella.
17
Palmira, o sentido das transformações urbanas: Pressupostos e enunciação
escritos de P. Brown, partir dos textos da antiguidade tardia (Brown, 1978),
nos quais demonstra que as relações entre os deuses e os homens submetem-se
a uma mudança profunda, correlativa às transformações das relações de autoridade entre os governantes e os governados: estas mesmas relações se distendem, simultaneamente, no conjunto do mundo romano. Em outros termos,
o que lemos, inscrito na pedra de Palmira, é paralelo ao que lê Peter Brown
nos textos gregos e latinos do império. O que signiica que nesta segunda
fase de transformações, visíveis na matéria, Palmira é integrada à evolução
do resto do mundo antigo e segue seus movimentos. Ela não joga mais um
papel periférico: a mudança, que manifestamos nas premissas no momento da
construção do santuário de Bel, aquela da integração de Palmira no mundo
romano pelo restabelecimento de relações contratuais entre estes dois termos,
parece, então, concluída.
A polarização de Palmira em torno do santuário de Bel
No curso do período que nos interessa, o do inal do reino selêucida e do início
da ocupação romana, o templo de Bel parece constituir o polo principal da
atividade de Palmira. Não apenas as habitações são deslocadas, mas também
as estruturas políticas da comunidade são organizadas em função da grande
operação coletiva de construção. O grupo de palmirianos adota um nome
semítico (gbl) aceitável tanto pelos Aramaicos quanto pelos Árabes, quatro
tesoureiros gerem as inanças públicas, e os notáveis solicitados se transformam em evergetistas. A prática do evergetismo, que dotará a cidade de um
grande número de monumentos, é adotada em conjunto com o canteiro de
obras do templo de Bel. A ediicação do templo de Bel teve, portanto, um efeito
estruturante sobre a cidade. Durante cinco décadas, o potlatch de doações concorrentes se exprimiu principalmente sobre as colunatas do têmeno de Bel.
É ali que é inalizada a fórmula dos consoles portando as estátuas honoríicas:
J. Cantineau, H. Seyrig e D. Schlumberger mostraram que um número considerável de inscrições deste sítio, originalmente inscritas sobre pedestais no
solo, foram regravadas em consoles. Tal processo reduz o volume de estátuas,
multiplicadas pela concorrência evergética.
A polarização é tal que pode-se perguntar se a própria cidade não é dedicada ao deus Bel, nos anos que ocupam nossa análise. Um lugar religioso privilegiado, entre a cidade e o deus Bel, seria coerente com o papel de Palmira enquanto centro de peregrinação regional. Não se encontra a dedicatória formal
neste sentido, mas nossa atenção é atraída pelas implicações semânticas do uso
18
Manar Hammad
do termo mhwz para designar a cidade de Palmira. Este uso muda próximo
à metade do primeiro século, o assinala J. Teixidor (1984), em um estudo do
Tarif de Palmira, datado de 137 ec. O antigo termo semítico mhwz, comum
na primeira metade do primeiro século, não é mais ocorrente. Em seu lugar,
encontra-se o termo lmn', o qual é simplesmente a transcrição Aramaica do
grego limên, equivalente do latim portus. Para a administração romana, portus
designa um lugar de coleta dos impostos e pedágios, tanto no litoral quanto no
interior. O sentido latino de portus, percebido sobre a tradução grega limên,
fez projetar sobre mhwz o sentido de lugar de coleta de impostos, e o termo
aramaico pode se prestar a esta projeção. No entanto, em Árabe, a raiz hwz
deriva dos termos relativos a posse e a tomada de posse, tanto para os bens
materiais quanto para o espaço imaterial. Ela também convém para designar
a atribuição do controle ou da propriedade. Encontra-se ainda, nestes textos
acádios antigos (hureau-Dangin, 1921, p. 57), o uso do termo Mahâzu para
designar uma cidade consagrada a um deus, local de templo e sítio de culto.
Tiraremos desta aproximação, ao estabelecer um parentesco de vocábulos
acádios e árabes, uma hipótese de continuidade, na duração englobante, do
Aramaico de Palmira – hipótese que continua a conirmar, mas que conduz ao
seguinte: a substituição da palavra mhwz pela palavra lmn' no texto do Tarif,
traduzida em mudança da maneira administrativa de ver Palmira. Isso marcaria
a transformação, em uma data que resta precisar, do mhwz em portus. mhwz
teria designado em Aramaico, no começo do primeiro século, uma cidade em
ligação estreita com uma divindade, em uma maneira semítica aparentada
àquela que é designada pelo termo acádio. Esta ligação nunca foi helenizada
com intento de produzir uma consagração formal do território à divindade,
operação que era praticada de jure na época selêucida e servia de etapa prévia
à atribuição do estatuto de Asilo22 a uma cidade. Henri Seyrig (1939) destaca que o estatuto de asilo foi atribuído pelos Selêucidas apenas às cidades
portuárias ameaçadas por piratas.23 Não restará que aproximar este fato do
estatuto portuário (no sentido romano) de Palmira, àquele da presença de nômades saqueadores no deserto vizinho, com a situação das cidades marítimas
ameaçadas pelos piratas.
Na Mesopotâmia, os privilégios acordados às cidades por razões religiosas
são atestados desde o Bronze Antigo. Eles continuam a ser praticados até o
22. O estatuto de Asilo colocava uma cidade em relação com os deuses e ao abrigo das guerras.
O homicídio tornava-se proibido. Neste sentido, acordos formais eram assinados com as outras
cidades, ratiicados pela autoridade real.
23. À exceção de Alabanda.
19
Palmira, o sentido das transformações urbanas: Pressupostos e enunciação
império neobabilônico, Nabonide tendo conferido, ou conirmado, os privilégios a Harrân, em honra do deus Sîn. A concepção subentendendo o que fazia
designar Palmira pelo termo mhwz é local, aparentada às ideias mesopotâmicas
e às práticas oeste-sirianas e/ou Árabes. O templo de Allat gozava em Palmira
de uma forma de asilo, certiicado pela inscrição entalhada sobre a escultura do
leão protegendo uma gazela na entrada de seu têmeno; no século 6, a Makkat
politeísta desfrutou de um estatuto de Haram, semelhante ao de asilo. Maurice
Sartre (2001, p. 704) assinala em seguida de Kent Rigsby (1996) que Tibério
e o Senado Romano revisaram, em 22 EC, os privilégios do asilo, colocando um
termo na concessão deste estatuto. A razão desta mudança de política residia
na diferença de concepção que os Latinos tinham de asilo (oposta às concepções
helênicas). A data da mudança evocada corresponde aos inícios da intervenção
sistemática dos romanos nas atividades de Palmira. Portanto, é plausível concluir que o abandono do vocábulo MHWZ, no último quarto do primeiro
século, para pouco que este vocábulo tenha sido ligado à idéia de asilo, se
inscreve no quadro da revisão geral mencionada. Tudo estando em conjecturas,
esta hipótese projeta sobre Palmira um esclarecimento que modiica o estatuto
na Síria no im do período selêucida e início do período romano.
Conclusões
Frequentemente, a análise discursiva privilegia os dados veiculados pela
componente enunciva. Favorecendo os valores subjacentes e pressupostos,
centramos a atenção sobre a componente enunciativa. Nos beneiciando
de nossa dupla posição de sujeito enunciatário, em relação aos documentos
analisados, e de sujeito enunciador, para a análise realizada, dirigimos nossa
atenção e a vossa para a mesma ocasião, em direção a um certo número
de fenômenos enunciativos, em particular aqueles que estão ligados a uma
expressão não verbal.
Pela reconstrução do santuário de Bel, Palmira se exprimiu na pedra, elaborando um discurso não verbal explicitamente inscrito nas dimensões religiosas,
implicitamente portador de implicações políticas e sociais. Fazendo isso, realizou um ato de tipo mítico, restabelecendo as relações contratuais com os deuses, de um lado, e com os novos mestres políticos, de outro. Simultaneamente,
se dirigiu a uma população regional, face a face àquela que se airmava como
uma entidade, entretendo com o deus Bel uma relação privilegiada. Dotando
Bel de dois assessores, ela o apresentou como um deus soberano e protetor, no
que diz respeito às competências territoriais. A integração de um vocabulário
20
Manar Hammad
arquitetônico estrangeiro em uma sintaxe nativa manifestava a primazia fundamental desta última, fazendo uma concessão à sua novidade. Se exprimindo
de maneira arquitetônica sobre a dimensão religiosa, Palmira enunciava suas
ambições de maneira não verbal. Fazendo isso, ela evitava declarações verbais –
que poderiam chocar o poder militar romano pelas suas pretensões.
Estes resultados são coerentes entre si. A imagem que eles permitem dar
às estruturas sociais e políticas de Palmira é tão ina que não pareceria possível
realizá-la a partir de um tal material. De qualquer forma, é ainda necessário
pesquisar, com apoio destas deduções, os elementos de coerência externa suscetíveis e fazer o papel de uma realidade veridictória.
Seria ainda interessante inventariar o vocabulário institucional e político
de Palmira. As numerosas transcrições fonéticas de termos gregos e latinos
(ex: stratégos, hégémon, centurion) nas inscrições atestam que certas palavras
foram adotadas, sem tradução. Mas estamos longe de ter certeza de que estes
termos não sustentaram, quando emprestados, uma distorção semântica, tornando-os mais adequados ao uso local do que, de fato, foi feito. Em particular, nos interrogamos sobre a ausência de termos que, tais que o civis latino,
ou o politès grego, teriam designado os cidadãos comuns e caracterizado
suas ligações mútuas implícitas: a belíssima análise que fez Émile Benveniste
(1969) destes termos é esclarecedora sobre a diferença conceitual profunda,
dos Gregos e dos Latinos, a este respeito. Pois, designando o cidadão grego
por politès, a koiné deriva seu nome comum do nome da cidade, polis, que
lhe pré-existe, portanto, sobre o plano conceitual. Em oposição, derivando civitas de civis, os Latinos derivam a cidade da relação contratual pressuposta
entre os cidadãos, cuja comunidade pré-existe ao estabelecimento urbano.24
Ignoramos, ainda, o que poderiam dizer os palmirianos neste contexto, em
diferentes períodos de sua história. Resta fazer uma análise semântica do vocabulário das instituições semíticas.
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