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Dor e Cuidados Paliativos SB de Anestesiologia Ano 2018

• Presidente da Comissão de Treinamento em Medicina Paliativa da SBA-CTMP. • Médica anestesiologista com certificação na área de atuação em dor e medicina paliativa. • Professora adjunta da disciplina de farmacologia da Universidade Federal do Amazonas. • Mestre e doutora em farmacologia pela Universidade Federal do Ceará.

EDITORES Sérgio Luiz do Logar Mattos Mauro Pereira de Azevedo Mirlane Guimarães de Melo Cardoso Rogean Rodrigues Nunes SBA Sociedade Brasileira de Anestesiologia Rio de Janeiro 2018 Dor e Cuidados Paliativos Copyright© 2018, Sociedade Brasileira de Anestesiologia Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer sistema, sem prévio consentimento da SBA. Diretoria, gestão 2018 Sérgio Luiz do Logar Mattos Erick Freitas Curi Tolomeu Artur Assunção Casali Augusto Key Karazawa Takaschima Armando Vieira de Almeida Marcos Antonio Costa de Albuquerque Rogean Rodrigues Nunes Comissão de Treinamento e Terapêutica da Dor – CTTDor Mauro Pereira de Azevedo - Presidente e Coordenador do livro Breno José Santiago Bezerra de Lima - Secretário Welma Rezende Fuso de Assis - Membro Vinicius Sepulveda Lima - Membro eleito para 2018 Comissão de Treinamento em Medicina Paliativa – CTMP Mirlane Guimarães de Melo Cardoso - Presidente e Coordenadora do livro Guilherme Antônio Moreira de Barros - Membro Inês Tavares Vale e Melo - Membro Diretoria, gestão 2017 Ricardo Almeida de Azevedo Sérgio Luiz do Logar Mattos Tolomeu Artur Assunção Casali Augusto Key Karazawa Takaschima Enis Donizetti Silva Erick Freitas Curi Rogean Rodrigues Nunes Capa e diagramação Marcelo de Azevedo Marinho Supervisão Maria de Las Mercedes Gregoria Martin de Azevedo Revisão Bibliográfica Teresa Maria Maia Libório Auxiliar Técnico Marcelo de Carvalho Sperle Ficha catalográfica S678d Dor e Cuidados Paliativos / Editores: Sérgio Luiz do Logar Mattos, Mauro Pereira de Azevedo, Mirlane Guimarães de Melo Cardoso e Rogean Rodrigues Nunes. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Anestesiologia/SBA, 2018. 240 p.; 25cm.; ilust. ISBN 978-85-98632-39-1 Vários colaboradores. 1. Anestesiologia – Estudo e ensino. I. Sociedade Brasileira de Anestesiologia. II. Mattos, Sérgio Luiz do Logar. III. Nunes, Rogean Rodrigues. IV. Azevedo, Mauro Pereira de. V. Cardoso, Mirlane Guimarães de Melo. CDD - 617-96 O conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade de seu(s) autor(es). Produzido pela Sociedade Brasileira de Anestesiologia. Material de distribuição exclusiva aos médicos anestesiologistas. Produzido em abril/2018 Sociedade Brasileira de Anestesiologia Rua Professor Alfredo Gomes, 36 - Botafogo - Rio de Janeiro - RJ CEP 22251-080 - Tel.: (21) 3528-1050 - E-Mail: [email protected] - Portal: https://www.sbahq.org/ Fanpage: https://www.facebook.com/sociedadebrasileiradeanestesiologia - YouTube: https://www.youtube.com/user/SBAwebtv EDITORES Sérgio Luiz do Logar Mattos • • TSA – SBA, Presidente da Sociedade Brasileira de Anestesiologia, gestão 2018 Instrutor Corresponsável pelo CET/SBA Hosp.Universitário Pedro Ernesto da UERJ. Mauro Pereira de Azevedo • • • TSA – SBA, Presidente da Comissão de Treinamento e Terapêutica da Dor – CTTDor, gestão 2017. Diretor de Eventos e Divulgação da Sociedade de Anestesiologia do Estado do Rio de Janeiro - SAERJ. Instrutor Corresponsável CET/SBA Hospital Naval Marcilio Dias. Mirlane Guimarães de Melo Cardoso • • • • • Presidente da Comissão de Treinamento em Medicina Paliativa da SBA - CTMP. Médica anestesiologista com certificação na área de atuação em dor e medicina paliativa. Professora adjunta da disciplina de farmacologia da Universidade Federal do Amazonas. Mestre e doutora em farmacologia pela Universidade Federal do Ceará. Responsável pelo Serviço de Terapia da Dor e Cuidados Paliativos da Fundação Centro de Controle de Oncologia do Amazonas – STDCP/FCECON. Rogean Rodrigues Nunes • • • • TSA – SBA, Diretor do Departamento Científico da SBA. Instrutor Corresponsável pelo CET Hospital Geral do Inamps de Fortaleza. Mestre e doutor em anestesia; pós-graduado em cardiologia; pós-graduado em engenharia clínica. Professor de medicina da UNICHRISTUS. AUTORES/COAUTORES Alexandre Annes Henriques • • • • • Médico psiquiatra, mestre em ciências médicas pela UFRGS. Psiquiatra contratado exclusivo do Serviço de Dor e Medicina Paliativa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Coordenador do Programa de Psiquiatria e Dor – Prodor/HCPA. Preceptor das residências médicas de psiquiatria, dor e medicina paliativa do HCPA. Professor do Curso de Especialização em Tratamento da Dor e Medicina Paliativa da Faculdade de Medicina da UFRGS. Ana Cláudia Mesquita • • • Enfermeira. Doutora em ciências pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Pós-doutoranda do Departamento de Anestesiologia da Faculdade de Medicina de Botucatu (UNESP). Ana Paula dos Santos • • • • Médica Anestesiologista do SMA/ Hospital Sirio Libanês. Especialização em Dor pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Especialização em Cuidados Paliativos pelo Pallium Latinoamérica - Buenos Aires/AR. Mestrado e Doutorado em Pesquisa em Cirurgia pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (2009 e 2013). André Filipe Junqueira dos Santos • Vice-presidente da ANCP. André Marques Mansano • • • • MD, PhD, FIPP, CIPS, TSA – SBA. Área de atuação em Dor -AMB. Fellow of Interventional Pain Practice - World Institute of Pain. Membro do Comitê de Educação do “World Institute of Pain”. Anita Perpétua Carvalho Rocha de Castro • • Doutora em anestesiologia pela Universidade Estadual Paulista (Botucatu). Anestesiologista com certificado de atuação na área de dor. Breno José Santiago Bezerra de Lima • • • • • MD, MSc, PhD, FIPP, TSA – SBA. Secretário da Comissão de Treinamento e Terapêutica da Dor-SBA. Fellow of Interventional Pain Practice - World Institute of Pain. Mestre e Doutor em Ciências Médicas - FMRP/USP. Área de atuação em Dor e Medicina Paliativa. Cristina Clebis Martins • • • TSA – SBA. Área de atuação em Dor – AMB. Especialização em anestesia regional guiada por ultrassom no Hospital Sírio-Libanês. Danielle Soller Lopes • • • Médica com formação em clínica médica e geriatria. Mestrado profissional em cuidados paliativos en el paciente oncologico – Universidad Autónoma de Madrid, UAM, Espanha. Mestrado em master en bioética y derecho – Universitat Barcelona, UAE, Espanha. Durval Campos Kraychete • • TSA – SBA. Professor associado do Departamento de Anestesiologia e Cirurgia da Universidade Federal da Bahia. Edison Iglesias de Oliveira Vidal • • • Mestrado e doutorado em saúde coletiva pela Unicamp. Livre-docência em geriatria pela FMB – Unesp. Docente da disciplina de geriatria da FMB – Unesp. Elaine Gomes Martins • • • • Residência Médica em Anestesiologia pelo Hospital Sírio Libanês. Aperfeiçoamento em Anestesia Regional - IEP/Sírio-Libanês. Especialização Dor - IEP/Sírio-Libanês. Certificado Atuação em Dor AMB/SBA. CIPS - Certified interventional Pain Sonologist - World Institute of Pain. Érica Brandão de Moraes • • Enfermeira doutora pela Universidade de São Paulo. Orientadora da Liga de Dor do Maranhão da UFMA. Érica Carla Lage de Oliveira • • • • TEA – SBA. Anestesiologista com área de atuação em dor. Especialista em medicina da dor pelo Hospital das Clínicas da UFMG. Médica da Clínica de Dor do HC UFMG, da Rede Mater Dei de Saúde e da ClinD’Or. Esther Alessandra Rocha • • • • TSA – SBA. Instrutora corresponsável do Centro de Ensino e Treinamento da Faculdade de Medicina do ABC. Professora adjunta da disciplina de anestesiologia da Faculdade de Medicina do ABC. Anestesiologista do Hospital Estadual Mário Covas da Faculdade de Medicina do ABC. Fernanda Bono Fukushima • • Doutorado em anestesiologia pela Faculdade de Medicina de Botucatu – Unesp. Especialista em anestesiologia, título de área de atuação em dor e cuidados paliativos pela AMB. Docente da disciplina de terapia antálgica e cuidados paliativos da FMB – Unesp. Guilherme Antônio Moreira de Barros • • • • • Membro da Comissão de Treinamento em Medicina Paliativa da SBA - CTMP. Médico anestesiologista com certificação na área de atuação em dor e medicina paliativa. Professor adjunto da disciplina de dor e cuidados paliativos da Faculdade de Medicina de Botucatu, Unesp. Mestre e doutor em anestesiologia da Faculdade de Medicina de Botucatu, Unesp. Responsável pelo Serviço de Terapia Antálgica e Cuidados Paliativos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu, Unesp. Gustavo Rodrigues Costa Lages • • • Anestesiologista TSA – SBA, CAAD, TEMI AMIB. Corresponsável pelo CET do Hospital das Clínicas da UFMG. Coordenador da Clínica de Dor do HC UFMG, da Rede Mater Dei de Saúde e da ClinD’Or. Inês Tavares Vale e Melo • • • • • Membro da Comissão de Treinamento em Medicina Paliativa da SBA – CTMP. Médica anestesiologista com certificação na área de atuação em dor e medicina paliativa. Coordenadora da especialização latu sensu de cuidados paliativos da Unimed/Unifor. Coordenadora do Serviço de Cuidados Paliativos do Hospital Regional Unimed Fortaleza. Membro da Câmara Técnica de Cuidados Paliativos do Conselho Federal de Medicina – CFM. Irimar de Paula Posso • • • • TSA – SBA. Instrutor corresponsável do Centro de Ensino e Treinamento da Faculdade de Medicina do ABC. Anestesiologista do Hospital Israelita Albert Einstein. Presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor. Joana Angélica Vaz de Melo • • Anestesiologista, TEA – SBA. Especialista em clínica de dor pelo Hospital das Clínicas da UFMG. João Batista Santos Garcia • • • Prof.Dr., TSA – SBA. Professor doutor associado da disciplina de anestesiologia, dor e cuidados paliativos da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Responsável pelo Serviço de Dor e Cuidados Paliativos do Hospital Universitário da UFMA e do Hospital do Câncer do Maranhão. José Cristovão Ferreira • • TEA – SBA, Anestesiologista do Hospital Evangélico de Londrina. Membro da Comissão de Cuidados Paliativos - Hospital Evangélico de Londrina. Karen Santos Braghiroli • • • MD, FIPP, TEA – SBA. Fellow of Interventional Pain Practice - World Institute of Pain. Médica da equipe de Dor do Hospital Alemão Osvaldo Cruz e Professora Assistente na pós-graduação em Dor do Hospital Sírio-Libânes. Lúcia Miranda Monteiro dos Santos • • • • Médica anestesiologista TSA/SBA com área de atuação em dor e cuidados paliativos. Mestre em neurociência pela UFRGS. Ex-chefe do Serviço de Dor e Medicina Paliativa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA, 2008-16). Coordenadora do Programa de Cuidados Paliativos do HCPA. Professora do Curso de Especialização em Dor e Medicina Paliativa da Fac.de Medicina da UFRGS. Luís Fernando Rodrigues • • • • MD, MAHR Palliative Care. Médico da Unidade de Cuidados Paliativos – Physician at the Palliative Care Unit. Hospital São Judas Tadeu, Fundação Pio XII – PIO XII Foundation. Hospital de Câncer de Barretos – Barretos, São Paulo. Mauro Pereira de Azevedo • • • TSA – SBA, Presidente da Comissão de Treinamento e Terapêutica da Dor da SBA - CTTDor. Diretor de Eventos e Divulgação da SAERJ. Instrutor Corresponsável CET/SBA Hospital Naval Marcilio Dias. Mirlane Guimarães de Melo Cardoso • • • • • Presidente da Comissão de Ensino e Treinamento em Medicina Paliativa da SBA - CTMP. Médica anestesiologista com certificação na área de atuação em dor e medicina paliativa. Doutora em farmacologia e professora adjunta da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Responsável pelo Serviço de Terapia da Dor e Cuidados Paliativos da Fundação Centro de Controle de Oncologia do Amazonas – STDCP/FCECON. Mestre e doutora em farmacologia pela Universidade Federal do Ceará. Paulo Adilson Herrera • • • TSA – SBA, CAAD, MSc, Membro da Comissão de Educação Continuada SBA - CEC. Professor auxiliar da disciplina de anestesiologia da PUC/PR – Campus Londrina. Corresponsável de CET de Anestesiologia - Hospital Evangélico de Londrina. Paulo Renato Barreiros da Fonseca • • • • TEA – SBA. Médico anestesiologista com especialização na área de atuação em dor. Diretor científico da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor. Ex-professor de anestesiologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Pedro Paulo Kimachi • • • • • TSA – SBA. Residência Médica em Anestesiologia pela Universidade de São Paulo. Médico Anestesiologista do SMA - Serviços Médicos de Anestesia. Coordenador da Pós-Graduação - Aperfeiçoamento em Anestesia Regional, Hospital Sírio Libanês Coordenador do curso de Ultrassonografia Point of Care, Hospital Sírio Libanês. Roberto Henrique Benedetti • • • TSA – SBA, Membro da Comissão de Ensino e Treinamento da SBA - CET. Responsável pelo CET/SBA Sianest/Hospital Florianópolis – Cepon. Professor do curso de medicina da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). APRESENTAÇÃO É com grande orgulho e satisfação que a SBA apresenta mais um trabalho de enorme importância social, que contribui, de maneira incontestável, para a consolidação dessa associação como a principal incentivadora na promoção e qualificação técnica e científica do anestesiologista brasileiro. Este livro representa não só o papel referencial de qualidade da SBA na especialidade, mas o empenho e o esforço de todos aqueles que se dedicaram e trabalharam para que esta obra se concretizasse de maneira tão qualificada. A dor e, mais recentemente, os cuidados paliativos são áreas de atuação do médico anestesiologista, e a SBA não poderia deixar de atender às novas demandas de uma sociedade cada vez mais exigente e dinâmica. Portanto, essas áreas precisam ser fortalecidas para que os espaços sejam ocupados de maneira efetiva e competente e, assim, no final, os pacientes possam se beneficiar de uma assistência especializada mais aprimorada. Esta obra comprova a histórica tradição da SBA no cumprimento de sua missão de garantir a qualidade e a segurança da medicina perioperatória e, com isso, deixar seus sócios orgulhosos em fazerem parte de tão respeitável entidade. Bons estudos! Rogean Rodrigues Nunes Diretor do Departamento Científico da SBA Sérgio Luiz do Logar Mattos Presidente da SBA, gestão 2018 SUMÁRIO Prefácio - Partes I e II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Parte I Capítulo 01 Epidemiologia, Fisiopatologia e Classificação da Dor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .15 João Batista Santos Garcia, Érica Brandão de Moraes Capítulo 02 Estratégias para o Controle da Dor Pós-Operatória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 Paulo Adilson Herrera, José Cristovão Ferreira Capítulo 03 Uso de Ultrassonografia no Tratamento da Dor Pós-Operatória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 Pedro Paulo Kimachi, Elaine Gomes Martins Capítulo 04 Analgesia Pós-Operatória no Paciente com Dor Crônica em Tratamento . . . . . . . . . . . . 47 Durval Campos Kraychete, Anita Perpétua Carvalho Rocha de Castro Capítulo 05 Dor Crônica Pós-Operatória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 Gustavo Rodrigues Costa Lages, Érica Carla Lage de Oliveira, Joana Angélica Vaz de Melo Capítulo 06 Dor Crônica Pós-Operatória e Influência da Técnica Anestésica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67 Mauro Pereira de Azevedo Capítulo 07 Tratamento Farmacológico da Dor Crônica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .81 Paulo Renato Barreiros da Fonseca, Irimar de Paula Posso, Esther Alessandra Rocha Capítulo 08 Tratamento Intervencionista da Dor Crônica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 André Marques Mansano, Breno José Santiago Bezerra de Lima, Karen Santos Braghiroli Capítulo 09 Dor Oncológica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105 Breno José Santiago Bezerra de Lima, Roberto Henrique Benedetti, Paulo Adilson Herrera Capítulo 10 Síndromes Dolorosas Crônicas Não-Oncológicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115 Breno José Santiago Bezerra de Lima, Cristina Clebis Martins, Roberto Henrique Benedetti Parte II Capítulo 11 Cuidados Paliativos: Aspectos Conceituais e Princípios Essenciais . . . . . . . . . . . . . . . . 129 Mirlane Guimarães de Melo Cardoso, Inês Tavares Vale e Melo, Guilherme Antônio Moreira de Barros Capítulo 12 Informação e Comunicação em Cuidados Paliativos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .141 Guilherme Antonio Moreira de Barros, Danielle Soller Lopes, Mirlane Guimarães de Melo Cardoso Capítulo 13 Cuidados Paliativos: Quando Indicar e Como Reconhecer Critérios de Terminalidade . . . .159 João Batista Santos Garcia Capítulo 14 Organização e Modelos de Assistência em Cuidados Paliativos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .167 Ana Paula dos Santos Capítulo 15 Estratégias no Manejo da Dor Total . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .173 Mirlane Guimarães de Melo Cardoso Capítulo 16 Sintomas Respiratórios em Cuidados Paliativos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183 Fernanda Bono Fukushima, Edison Iglesias de Oliveira Vidal Capítulo 17 Avaliação e Controle de Sintomas Neuropsiquiátricos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191 Lúcia Miranda Monteiro dos Santos, Alexandre Annes Henriques Capítulo 18 Terapia de Sedação Paliativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199 Inês Tavares Vale e Melo, Luís Fernando Rodrigues Capítulo 19 Hipodermóclise: Via Alternativa em Cuidados Paliativos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207 Ana Cláudia Mesquita, Guilherme Antônio Moreira de Barros Capítulo 20 Sintomas Gastrointestinais em Cuidados Paliativos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .219 Edison Iglesias de Oliveira Vidal, Fernanda Bono Fukushima Capítulo 21 Assistência ao Fim da Vida: Identificação e Manejo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229 André Filipe Junqueira dos Santos, Mirlane Guimarães de Melo Cardoso PREFÁCIO Parte I - Dor A Sociedade Brasileira de Anestesiologia investe continuamente na atualização e no aperfeiçoamento de seus associados. Nesse contexto, a Comissão de Treinamento e Terapêutica da Dor (CTTDor/SBA) participou da elaboração deste livro, cujo objetivo é lançar uma luz nos meandros da dor, voltada especialmente para o anestesiologista que não é clínico de dor. Uma preocupação particular sempre foi incentivar o trabalho do anestesiologista clínico, aquele que atua diariamente no centro cirúrgico, na prevenção e no tratamento da dor, além de estimular aquilo que é feito de modo corriqueiro. Pensar na dor como um momento inexorável no curso da cirurgia é esquecer a existência de efeitos a longo prazo, especialmente sua cronificação. Quanto mais se falar em fisiopatologia da dor pós-operatória, nos fatores envolvidos em sua cronificação e na importância de uma técnica anestésica adequada como principal fator de prevenção, mais estaremos ajudando na redução dessa importante patologia que pode acometer um número expressivo de pacientes em determinadas cirurgias, com grande impacto físico, social, emocional e econômico para os pacientes e para o sistema de saúde. Procuramos também atualizar o anestesiologista sobre novos aspectos da dor crônica e oncológica, temas fundamentais que com frequência se apresentam diante do clínico e para os quais devemos estar preparados para ao menos orientar o paciente. Colegas importantes e com experiência foram convidados a participar desta empreitada e prontamente aceitaram a tarefa. A esses colegas agradeço imensamente em nome da SBA e, especialmente, em nome da CTTDor/SBA. A intenção é atualizar anualmente este livro, para que ele cresça e se aprimore sempre. Novidades aparecem todos os dias, e a SBA estará sempre empenhada em levar o melhor a seu associado. Agradeço a confiança na SBA e seu apoio, sem o qual este livro não existiria. Comissão de Treinamento e Terapêutica da Dor – CTTDor Mauro Pereira de Azevedo - Presidente e Coordenador do livro Breno José Santiago Bezerra de Lima - Secretário Welma Rezende Fuso de Assis - Membro Prefácio | 11 PREFÁCIO Parte II - Medicina Paliativa Com esta mensagem simples e clara, nós, da Comissão de Treinamento em Medicina Paliativa da Sociedade Brasileira de Anestesiologia, criada em 2015, queremos iniciar um Plano de Informação, Comunicação e Sensibilização dos anestesiologistas para a mais nova área de atuação de nossa especialidade, que é cuidados paliativos (CP), uma modalidade de assistência solidária que surgiu na década de 1960, em Londres, com uma filosofia de cuidados integrais destinados a proporcionar bem-estar, conforto e apoio aos pacientes portadores de doenças ameaçadoras da vida e suas famílias, incluindo o cuidado pós-morte. A morte é um tema que, à primeira vista, é muito difícil de ser abordado no dia a dia das famílias. No ambiente hospitalar, paradoxalmente, acontece fenômeno similar. Os médicos, apesar de, muitas vezes, lidarem com pacientes em final de vida, ignoram essa realidade. A arte de “fugir da morte” é exercida na presença daqueles que vão morrer, seja numa conspiração silenciosa entre a equipe de saúde e familiares que impedem a autonomia do paciente, seja pela incapacidade de se buscarem novas possibilidades de se lidar com o final da vida. Mas enquanto houver vida deve haver a dignidade de poder vivê-la, com a dor e o sofrimento sendo cuidados de forma adequada. Um primeiro passo para isso é falar sobre a finitude e avaliar as possibilidades de se trabalhar com uma equipe multiprofissional, considerando como foco da atenção o doente, e não a doença incurável, tendo os princípios bioéticos como base para a tomada de decisões. Queremos, com esta obra, que conta com parceiros de destacada qualidade científica e humana, transmitir as muitas experiências de intensidade da vida que todos nós que trabalhamos no CP vivenciamos na primeira pessoa, todos os dias, acompanhando milhares de pacientes no final de suas vidas e suas famílias. Este livro é o primeiro movimento da comissão que vai ao encontro dos paliativistas da SBA e dos anestesiologistas interessados em participar desse projeto e trabalhar conosco. Todas as mãos serão poucas para construir a SBA influente em suas áreas de atuação que queremos. Seguiremos estimulando a elaboração de eventos de treinamento multidisciplinar em CP, com prioridade da qualidade científica, que servirão como pontos de encontro e participação dos anestesiogistas paliativistas nos eventos oficiais da SBA. Desejamos transmitir nosso entusiasmo. Desejamos que você nos acompanhe. Desejamos boa leitura! Comissão de Treinamento em Medicina Paliativa – CTMP Mirlane Guimarães de Melo Cardoso - Presidente e Coordenadora do livro Guilherme Antônio Moreira de Barros - Membro Inês Tavares Vale e Melo - Membro 12 | Dor e Cuidados Paliativos Parte I DOR 01 Capítulo Epidemiologia, Fisiopatologia e Classificação da Dor João Batista Santos Garcia Érica Brandão de Moraes Incidência A dor está associada a elevados custos para o sistema de saúde, além de comprometer também o humor e a qualidade de vida das pessoas. A dor crônica tem sido o foco dos estudos epidemiológicos pelo grande impacto na vida dos indivíduos, além de ser considerada hoje um problema de saúde pública mundial. Estudo conduzido por meio de inquérito por telefone, com 17.543 pessoas em uma cidade da Austrália, observou que os pacientes com dor crônica apresentaram maior probabilidade de acesso dos serviços e estiveram mais propensos a serem usuários frequentes desses serviços. O estudo mostrou ainda que a dor crônica está associada ao aumento duas vezes maior de hospitalização e consultas médicas nos últimos 12 meses. As pessoas que tinham dor crônica procuraram cinco vezes mais os serviços de emergência comparado com as pessoas que não tinham dor crônica1. O impacto da dor reflete também na qualidade de vida das pessoas. Fatores como depressão, incapacidade física e funcional, dependência, afastamento social, mudanças na sexualidade, alterações na dinâmica familiar, desequilíbrio econômico, desesperança, sentimento de morte e outros encontram-se associados a quadros de dor crônica2. Estima-se que a prevalência de dor crônica possa variar de 12% a 80%3, e a dor crônica com característica neuropática atinge em média 7% a 8% da população geral e cerca de um terço da população com dor crônica4,5. O maior estudo epidemiológico foi realizado em 2006, na Europa, com a participação de 15 países. Um total de 46.394 pessoas respondeu ao questionário. A Epidemiologia, Fisiopatologia e Classificação da Dor | 15 prevalência média de DC para toda a Europa foi de 19%. Nesse estudo, as mulheres referiram mais dor do que os homens. A dor foi mais prevalente entre 41-60 anos. Somente 12% dos respondentes sofriam de dor crônica há menos de dois anos, quase 60% sentiam dor entre há 15 anos e muitos reportaram dor com duração maior do que 20 anos (21%). Uma em cada cinco pessoas tinha dor de cabeça e nos membros inferiores6. A dor foi intensa em 34% das pessoas, e 31% delas não toleravam mais a dor. Um em cada quatro indivíduos afirmou que sua dor influenciava na situação de trabalho em que se encontravam. A dor teve também grande impacto no estado emocional deles: 21% dos respondentes disseram que tiveram diagnóstico de depressão por causa da dor. Somente 25% foram a um especialista em dor. Em relação ao tipo de medicamento utilizado para o tratamento da dor, a maioria utilizava anti-inflamatórios não esteroides, AINEs (55%), 43% usavam analgésicos, 13% eram opioides. Em relação à satisfação com o tratamento, 40% estavam insatisfeitos com o tratamento recebido6. Alguns estudos mostram maior prevalência de dor entre pessoas do sexo feminino. Um estudo populacional realizado na Noruega comparou homens e mulheres. Em relação à intensidade dolorosa, as mulheres tiveram significantemente maior intensidade dolorosa em relação à dor no momento da entrevista e também no pior momento. As mulheres também tiveram dor em mais locais do que os homens7. As mulheres também tiveram maior porcentagem no consumo de medicamentos como analgésicos. A dor crônica também teve uma grande influência na qualidade de vida das mulheres, que deixaram de fazer suas atividades diárias7. Outro aspecto importante é o aumento da prevalência com o avançar da idade. Um estudo realizado com idosos em Londrina observou que 51,4% dos entrevistados apresentaram queixa de dor crônica. Os locais mais prevalentes foram região dorsal (21,7%) e membros inferiores (21,5%). A intensidade foi moderada em 38,4% dos casos e em 9,5% foi descrita como intensa. A maioria dos idosos apresentava frequência diária de dor e 18% referiram sentir dor contínua (31,3%)2. No Brasil ainda existem poucos estudos epidemiológicos sobre dor crônica. O primeiro estudo populacional foi realizado em 2008, na cidade de Salvador, Bahia. Participaram desse estudo 2297 indivíduos. A prevalência de dor crônica foi de 41,4%, com predominância maior nas mulheres (48,4%). A região lombar foi a mais presente, representando 16,3%. No modelo final, idade, ser ex-fumante e obesidade central estiveram associadas à dor crônica em ambos os sexos. O consumo excessivo de álcool na mulher e o fumo para os homens também estiveram associados à dor crônica8. Em 2012 foi realizada uma pesquisa populacional na cidade de São Luís (MA), com enfoque na dor crônica com e sem características neuropáticas. A amostra consistiu de 1.597 indivíduos. A prevalência de dor crônica (DC) em São Luís foi 42%, e 10% apresentaram dor com características neuropáticas, percentual maior que no Reino Unido (8%)5 e na França (6,9%)4 . O aumento da idade foi um forte fator associado, observando-se que a prevalência de DC aumentou nos indivíduos mais velhos. O tempo de duração da dor, nesse estudo, concentrou-se entre 6 meses e 4 anos, com frequência predominantemente diária, com a intensidade dolorosa 16 | Dor e Cuidados Paliativos e o tempo de dor maior nas pessoas que tinham dor crônica com característica neuropática. Houve predominância da dor nos membros inferiores nessa população (51%). Grande parte da população ainda não sabia a causa da dor (50,89%). Os medicamentos mais utilizados para o tratamento da dor crônica nesse estudo foram analgésicos e AINEs9. Quinto Sinal Vital O reconhecimento da dor como o quinto sinal vital surgiu nos Estados Unidos, em 1996, por James Campbell, presidente da Sociedade Americana de Dor. A ideia dessa inclusão é que a dor seja avaliada periodicamente, da mesma forma que os demais sinais vitais, e que essa avaliação passe a ser uma rotina nas instituições. A avaliação da dor e o registro sistemático e periódico de sua intensidade são fundamentais para que se acompanhe a evolução dos pacientes e se realizem os ajustes necessários ao tratamento. As construções de rotinas de avaliação da dor e protocolos de conduta são de extrema importância para fomentar essa prática. Deve-se estabelecer um local de registro de avaliação da dor, de preferência junto com os demais registros dos sinais vitais. Outro aspecto importante é o treinamento da equipe, sobretudo da equipe de enfermagem, que é quem terá maior contato com os pacientes. A implantação da avaliação da dor como o quinto sinal vital deve ser tido como uma meta institucional, com monitoramento dos indicadores de adesão pela equipe. Considerar a dor como o quinto sinal vital é uma maneira de melhorar a qualidade do atendimento ao paciente10. A Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED)11 recomenda que os componentes iniciais dessa iniciativa devam ser: • adotar uma rotina de avaliação de ocorrência e intensidade da dor para todos os pacientes, usando uma escala visual analógica (EVA); • documentar a ocorrência de dor e de sua intensidade para todos os doentes; • documentar as intervenções planejadas para o tratamento e controle da dor, bem como o período determinado para a reavaliação; • realizar um planejamento para seu efetivo desenvolvimento, preferencialmente designando um membro da equipe que fique responsável pela coordenação da implantação do quinto sinal vital; • estabelecer um plano de ação com prazos e designação de responsáveis para sua implantação em todas as unidades da instituição; • definir a folha de registro da avaliação, intervenção e reavaliação; • definir o instrumento de avaliação (EVA) que será utilizado; • estabelecer normas e procedimentos para avaliação e reavaliação da dor para os pacientes em que a dor seja identificada; • educar a equipe de saúde quanto à avaliação da dor (componentes de uma avaliação, aplicação da EVA, registro adequado e reavaliação) e seu manejo (intervenções farmacológicas e não farmacológicas); • desenvolver um plano para educação do paciente e seus familiares quanto à avaliação e ao manejo da dor. Epidemiologia, Fisiopatologia e Classificação da Dor | 17 Avaliação da Dor A dor é extremamente subjetiva, e os pacientes podem ter dificuldade para expressá-la, portanto, sua avaliação e mensuração são consideradas tarefas difíceis por agrupar aspectos individuais, valores e fatores próprios da doença. Uma avaliação apropriada torna-se fundamental no tratamento do paciente, pois possibilita uma terapia analgésica adequada, que conduz a mudanças necessárias no manejo da dor, permitindo melhoria na qualidade do cuidado12. Aspectos importantes na avaliação da dor: 1. Sempre avaliar a dor no momento da admissão e visita do profissional ao paciente. 2. Quando houver alguma alteração do estado clínico do paciente, a dor deve ser reavaliada. 3. Antes, durante e após qualquer procedimento invasivo no paciente. 4. Usar instrumentos adequados para grupos específicos de pacientes: • neonatos, lactentes e crianças; • idosos com comprometimento cognitivo (demência avançada); • pacientes em estado grave ou inconscientes (entubados, sedados); • pacientes oncológicos. 5. Realizar uma avaliação abrangente da dor, investigando: • a localização da dor - observar a região afetada e se há irradiação; • a intensidade da dor - avaliar a dor atual e no contexto geral, em repouso e movimento; • o tempo da dor - quando iniciou, a duração de cada episódio e se é intermitente ou contínuo; • a qualidade da dor - avaliar os descritores utilizados pelos pacientes (formigamento; pontada; queimação etc.); • os fatores de piora e melhora - avaliar em que momento do dia piora e melhora; • o tratamento atual e prévio - considerar os fatores farmacológicos e não farmacológicos; adesão ao tratamento; efeitos colaterais e reações adversas; • a interferência na vida diária - sono e repouso; trabalho; apetite; humor; convívio social e espiritualidade, entre outros. Os resultados da avaliação da dor devem ser sempre documentados para que todos os profissionais envolvidos no cuidado com o paciente possam realizar o manejo ideal da dor. São inúmeros instrumentos disponíveis para serem aplicados durante o processo de avaliação da dor. Estes podem ser unidimensionais (avaliam apenas a intensidade da dor) e multidimensionais (avaliam diferentes dimensões da dor). Os instrumentos unidimensionais são escalas que quantificam apenas o nível de intensidade da dor; são ferramentas rápidas, fáceis de serem aplicadas, fornecem resposta sobre a eficácia das intervenções e têm sido amplamente utilizadas no meio hospitalar. As mais utilizadas são a Escala Descritiva Verbal, a Escala Analógica Visual (EAV) e a Escala Numérica Verbal13. Os instrumentos multidimensionais são escalas utilizadas para avaliar e mensurar as diferentes dimensões da dor. As principais dimensões avaliadas são a sensorial, afetiva e avaliativa. A mais utilizada é a Escala de Dor de McGill14. 18 | Dor e Cuidados Paliativos Fisiopatologia da Dor e Mecanismos Periféricos e Centrais A dor resulta da ativação de receptores periféricos por estímulos térmicos, químicos ou mecânicos potencialmente lesivos. Esses receptores ou terminações nervosas livres possuem alto limiar de excitabilidade e são chamados de nociceptores. A informação da lesão tecidual é transmitida ao sistema nervoso central através de fibras nervosas do tipo Aδ e C, que se dirigem para a medula espinhal, por meio da raiz dorsal15. Quando o estímulo é muito intenso e prolongado, no local da lesão tecidual há a liberação de substâncias responsáveis pela resposta inflamatória, que pode durar horas ou dias. A persistência das lesões periféricas pode causar modificações, direta ou indiretamente, no sistema nervoso, nas vias de processamento da dor16. A dor que se segue à manipulação cirúrgica, por exemplo, normalmente provoca mudanças na sensibilidade das fibras nervosas, que caracteriza o fenômeno de sensibilização periférica. Este se manifesta pelo aumento na atividade espontânea neuronal, diminuição do limiar necessário para ativação dos nociceptores e aumento da resposta a estímulos supraliminares. A sensibilização dos nociceptores aferentes primários provoca hiperalgesia, que é definida como uma resposta exagerada aos estímulos dolorosos. Há a hiperalgesia primária, que ocorre dentro dos limites da área de lesão tecidual, e a hiperalgesia secundária, que se dá nas circunvizinhanças da lesão. Uma proporção de aferentes primários não mielinizados normalmente não são sensíveis a estímulos térmicos e mecânicos intensos, entretanto, na presença de sensibilização tornam-se responsivos. São os chamados nociceptores silentes, que passam a responder de maneira intensa mesmo a estímulos não nociceptivos17. A resposta inflamatória que ocorre após a lesão do tecido, que leva à sensibilização periférica, é caracterizada pela liberação de substâncias tanto das células do tecido lesado como das células inflamatórias, como mastócitos, macrófagos e linfócitos. Ocorrem mudanças na permeabilidade vascular e no fluxo sanguíneo local, ativação e migração de células do sistema imunológico e mudanças na liberação de fatores tróficos e de crescimento pelos tecidos próximos18. Há liberação de cininas (principalmente a bradicinina) e de ácido araquidônico, que sob a ação da cicloxigenase e da lipoxigenase origina as prostaciclinas, as prostaglandinas, o tromboxano e os leucotrienos. A liberação de prostaglandinas, principalmente PGE2, provoca diminuição do limiar de excitabilidade dos nociceptores, tornando-os sensíveis a estímulos menos intensos. Há ainda a liberação de mediadores como potássio, serotonina, óxido nítrico, substância P, histamina e citocinas (IL-1, IL-6, IL-8 e TNFα). Embora alguns mediadores possam agir diretamente nos canais iônicos das membranas, alterando a permeabilidade e a excitabilidade celular, a grande maioria age indiretamente pela ativação de receptores de membrana que estão usualmente, mas não exclusivamente, acoplados a segundos mensageiros, ativando cinases específicas com fosforilação de canais iônicos de membrana18. Com a estimulação persistente dos nociceptores, observa-se redução do limiar de sensibilidade, fazendo com que estímulos normalmente não dolorosos resultem em dor (alodínia), além do aparecimento de dor espontânea, hiperalgesia primária e secundária, que podem persistir, mesmo após a resolução da lesão tecidual. Isso sugere Epidemiologia, Fisiopatologia e Classificação da Dor | 19 que a sensibilização periférica não é responsável por todas essas mudanças, devendo haver um envolvimento significante do sistema nervoso central nesse processo, que caracteriza o fenômeno de sensibilização central19,20. O sistema nervoso central apresenta mudanças estruturais e funcionais, denominadas plasticidade, com adaptações positivas (apropriadas às mudanças do meio) ou negativas (anormalidade de função). A sensibilização central é desencadeada por impulsos sensoriais transmitidos através de fibras amielínicas C, que terminam nas camadas mais superficiais do corno posterior da medula espinhal. Essa sensibilização se caracteriza por atividade espontânea aumentada, redução de limiar ou aumento na responsividade a impulsos aferentes, descargas prolongadas após estímulos repetidos e expansão dos campos receptivos periféricos de neurônios do corno dorsal. Além do componente medular, há evidências de que as lesões periféricas também possam induzir plasticidade em estruturas supraespinhais, afetando a resposta à dor19,20. Para que ocorram alterações no corno dorsal da medula, é necessário que a ativação dos aferentes primários de pequeno diâmetro resultem na liberação de neuropeptídeos (substância-P, neurocinina-A, somatostatina e peptídeo geneticamente relacionado com a calcitonina) e de aminoácidos excitatórios (glutamato e aspartato). Essas substâncias estão relacionadas com a geração de potenciais pós-sinápticos excitatórios, que podem ser lentos (produzidos pelas fibras amielínicas C, podendo durar até 20 segundos) e rápidos (produzidos pelas fibras A de baixo limiar de excitabilidade, durando milissegundos)21. Os potenciais pós-sinápticos excitatórios rápidos geram correntes iônicas de curta duração para dentro da célula e são mediados pela ação do glutamato via receptores AMPA (ácido alfa-amino-3-hidróxi-5-metil-4-isoxasolpropiônico), ligados a canal iônico de sódio e receptores metabotrópicos, ligados a proteína-G e fosfolipase-C da membrana, que são conhecidos como receptores não-NMDA (N-metil-D-aspartato). Os potenciais pós-sinápticos excitatórios lentos podem também ocorrer por meio dos receptores AMPA, mas seu mecanismo de geração mais consistente é através da ação do glutamato e da glicina (coagonista obrigatório) sobre os receptores NMDA e da ação de taquicininas, como a substância-P e a neurocinina-A. Há três tipos de receptor para as taquicininas: neurocinina-1 (NK1), neurocinina-2 (NK2) e neurocinina-3 (NK 3), sendo todos pós-sinápticos, acoplados à proteína G e localizados nas lâminas I, II e X do corno dorsal medular. A substância-P age preferencialmente pelo NK1 e a neurocinina-A via NK221. A duração prolongada dos potenciais lentos permite que, durante os estímulos repetitivos dos aferentes, esses potenciais possam ser somados temporariamente, produzindo aumento cumulativo na despolarização pós-sináptica (poucos segundos de impulsos pelas fibras C resultam em vários minutos de despolarização). Esse aumento progressivo na descarga do potencial de ação às estimulações repetidas é conhecido como o fenômeno de wind up19,21. Para que esse fenômeno ocorra é necessário que haja a ativação dos receptores NMDA. Esses receptores ionotrópicos são multímeros tetra ou pentaméricos que, além de altamente permeáveis ao cálcio, também são permeáveis ao sódio e 20 | Dor e Cuidados Paliativos potássio. Identificam-se três famílias de receptor, formadas por subunidades denominadas NR1, NR2, NR3. O NR2 pode ainda ser subdividido em NR2 A, B, C e D e o NR3 em A e B. A subunidade NR1 é essencial na formação do receptor, sendo largamente distribuída no sistema nervoso central. A subunidade NR2 está implicada na patogênese de doenças como a esquizofrenia. A associação mais funcional e importante desses receptores é a NR1-NR2B, que tem sido alvo de pesquisas dos antagonistas terapêuticos22. As condições necessárias para a ativação desses receptores são complexas e envolvem, além de sua ligação com o glutamato, a remoção do íon magnésio (que normalmente bloqueia o canal) e a ação moduladora de taquicininas. O deslocamento do magnésio acontece quando há despolarização prolongada e repetitiva da membrana (efeito voltagem-dependente), permitindo a passagem de cálcio para o interior da célula. Se os estímulos através das fibras C forem mantidos com a frequência e a intensidade adequadas, o receptor NMDA ficará ativado e o resultado disso será a amplificação e o prolongamento das respostas implicadas na hiperalgesia22. As taquicininas têm um papel proeminente na potencialização das respostas mediadas pelos receptores NMDA. A substância P e a neurocinina-A ativam seus receptores NK1 e NK2, havendo como consequência um aumento de diacilglicerol (DAG) e formação de inositol 1,4,5-trifosfato (IP3). Na presença de fosfatidilserina e de cálcio (em concentrações intracelulares próximas às condições de repouso), o DAG causa ativação de proteína cinase C (PKC). Esta é translocada do citoplasma para a membrana, fosforilando proteínas, inclusive os receptores NMDA. A fosforilação dos receptores NMDA muda a cinética de ligação do íon magnésio, deslocando-o e facilitando, assim, a entrada de cálcio para dentro da célula. O aumento do cálcio intracelular tem um efeito adicional na ativação de PKC. A formação de IP3 pode causar liberação de cálcio das vesículas intracelulares e induzir mais ativação de PKC, formando um ciclo de ativação do receptor NMDA (feedback positivo)22. O aumento do cálcio também gera a ativação da enzima óxido nítrico-sintetase (NOS) e a estimulação da transcrição de protoncogenes (genes reguladores do processo transcricional de DNA). Os protoncogenes c-fos e c-jun, também chamados genes precoces, são originariamente descritos como uma classe de genes expressos nas células do sistema nervoso central de forma rápida e transitória após várias formas de estimulação. O produto proteico da transcrição (Fos) é encontrado nos neurônios das lâminas I, II e V da medula espinhal (que são áreas sabidamente receptoras de fibras nervosas que conduzem a dor) e tem ação sobre a expressão de outros genes23. A ativação de Fos pode causar a transcrição de ARN mensageiros controladores da síntese de proteínas, fundamentais para o funcionamento do neurônio, como receptores do glutamato (que aumenta sua densidade na membrana e torna o neurônio mais sensível ao glutamato), canais iônicos (aumenta sua excitabilidade) e enzimas como fosforilases e proteinocinases. Essas mudanças causam alteração da expressão fenotípica, são duradouras e eventualmente permanentes, tornando esses neurônios hipersensíveis por longos períodos23. Importante ainda salientar a participação das células gliais do sistema nervoso central em todo esse processo – sabe-se hoje que elas participam de forma dinâmiEpidemiologia, Fisiopatologia e Classificação da Dor | 21 ca, com destaque para a micróglia. Esta exibe uma série de respostas especialmente quando há lesão nervosa periférica. Há uma proliferação dessas células no terceiro dia após a lesão, com aumento da expressão de um número de marcadores proteicos, como os receptores toll-like 4(TLR4), CD14, CD4, proteína complexa de histocompatibilidade classe II. Além desses, há uma regulação ascendente dos receptores purinérgicos P2X424. Com os dados citados anteriormente, é coerente pensar que antagonistas dos receptores NMDA, de neurocininas e da geração de Fos tenham um papel protetor, bloqueando o desenvolvimento e a manutenção da sensibilização central. A ativação dos receptores NMDA é, em última análise, o mecanismo principal da sensibilização do corno posterior da medula espinhal, caracterizada por atividade espontânea, redução do limiar ou aumento da resposta a impulsos aferentes, descargas prolongadas após estímulos repetidos e expansão dos campos receptivos dos neurônios do corno dorsal. Antagonistas dos receptores NMDA, como ácido aminofosfonovalérico (AP5), dizocilpina (MK-801), cetamina, dextrometorfano e outros, têm sido testados em modelos animais e em humanos, mostrando uma ação redutora nos fenômenos de sensibilização central e de wind up. Os opioides e os anestésicos locais também teriam uma ação semelhante, tendo sido, inclusive, demonstrada redução da geração de Fos com esses fármacos. Agonistas α-2, como a medetomidina, também têm efeito supressor de Fos na medula espinhal quando usada de forma preemptiva. Com esses resultados promissores, há um redimensionamento de estratégias para um melhor controle da dor25. Efeitos da Dor nos Órgãos e Sistemas A dor, especialmente a aguda, pode gerar reflexos somáticos e autonômicos que podem influenciar, de forma adversa, o funcionamento de vários órgãos e contribuir para o aumento da morbidade26 (Quadro 1). Quadro 1 – Consequências fisiológicas da dor aguda Cardiovascular ↑ FC, ↑ PA, ↑ RVS, ↑ trabalho cardíaco Pulmonar Hipóxia, retenção de CO2, atelectasia, dificuldade em tossir, ↓ VC, ↓ CRF, alteração da ventilação/perfusão Gastrointestinal Náusea, vômito, íleo paralítico Renal Oligúria, retenção urinária Sistema nervoso central Ansiedade, medo, fadiga, falta de sono Imunológico Imunossupressão Extremidades Dor muscular, estase venosa, tromboembolismo FC - frequência cardíaca; PA - pressão arterial; RVS - resistência vascular sistêmica; VC - volume corrente; CRF - capacidade residual funcional. No sistema cardiovascular, a dor aumenta o risco de isquemia miocárdica, infarto e insuficiência cardíaca e o risco de tromboembolismo. No sistema respiratório, causa redução de volumes e capacidades pulmonares, espasmo reflexo da musculatura ab22 | Dor e Cuidados Paliativos dominal, resultando em dificuldade para respirar profundamente e para tossir, acumulando secreções, causando atelectasias e maior risco de pneumonia26. Outras consequências da dor aguda incluem retardo do funcionamento normal do intestino; retenção urinária; alterações do sistema imunológico e incapacidade física27. A dor pós-operatória associada ao trauma cirúrgico desencadeia, além de uma resposta neural, caracterizada por elevados valores circulantes de catecolaminas, uma resposta endócrina manifestada pelo aumento dos níveis séricos de hormônios catabolizantes e pela diminuição dos hormônios anabolizantes, o que resulta em retenção de água e sódio, aumento de glicemia, radicais ácidos livres, corpos cetônicos e lactato. Evidências sugerem que essas mudanças autonômicas, endócrinas e metabólicas estão relacionadas com o aparecimento de eventos adversos no período perioperatório27. Há uma valorização crescente para os aspectos mentais da dor, sabendo-se que o paciente reage não só do ponto de vista anatômico e fisiológico. Observa-se, com frequência, o aparecimento de sintomas psicológicos negativos em pacientes com dor aguda, como sofrimento, tristeza, depressão, pânico, desespero, ansiedade, sentimento de desamparo e diminuição da motivação, além de alterações do sono27. Em um estudo europeu com pacientes com dor crônica não oncológica, a qualidade de vida e o humor foram significativamente afetados em relação à população geral. Quase 60% dos pacientes apresentaram escores que indicavam depressão ou ansiedade. Ansiedade e transtorno depressivo têm se mostrado associados à presença ou ao curso clínico de dor crônica. Pesquisas anteriores mostraram que indivíduos com dor crônica na população geral são mais propensos a terem um transtorno psicológico ou psiquiátrico28,29. Pacientes com dor crônica utilizam muito mais frequentemente o sistema de saúde, acarretando maiores custos com o tratamento, e também apresentam menor produtividade com maior número de horas de trabalho perdidas30. Conclusões A dor é um fenômeno complexo e individual, de prevalência importante, com impactos físico, psíquico, social e econômico negativos na vida dos indivíduos. Deve ser bem compreendida em seus mecanismos, avaliada corretamente e de forma sistemática, para que estratégias de tratamento sejam estabelecidas o mais cedo possível. Referências 1. Blyth FM, March LM, Brnabic AJ et al. Chronic pain and frequent use of health care. Pain, 2004;111:51-8. 2. Dellaroza MS, Pimenta CA, Matsuo T. Prevalencia e caracterizacao da dor cronica em idosos nao institucionalizados. Cad Saude Publica, 2007;23:1151-60. 3. Abu-Saad Huijer, H. Chronic pain: a review. J Med Liban, 2010;58:21-7. 4. Bouhassira D, Lantéri-Minet M, Attal N et al. Prevalence of chronic pain with neuropathic characteristics in the general population. Pain, 2008;136:380-7. 5. Torrance N, Smith BH, Bennett MI et al. The epidemiology of chronic pain of predominantly neuropathic origin. Results from a general population survey. J Pain, 2006; 7:281-9. 6. Breivik H, Collett B, Ventafridda V et al. Survey of chronic pain in Europe: prevalence, impact on daily life, and treatment. Eur J Pain, 2006;10:287-333. Epidemiologia, Fisiopatologia e Classificação da Dor | 23 7. Rustoen T, Wahl AK, Hanestad BR et al. Gender differences in chronic pain--findings from a population-based study of Norwegian adults. Pain Manag Nurs, 2004;5:105-17. 8. Sá KN, Baptista AF, Matos MA et al. Chronic pain and gender in Salvador population, Brazil. Pain, 2008; 139:498-506. 9. Moraes Vieira EB, Garcia JBS, Silva AA et al. 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Dis Manage Health Outcomes, 2005; 13: 201-8. 24 | Dor e Cuidados Paliativos 02 Capítulo Estratégias para o Controle da Dor Pós-Operatória Paulo Adilson Herrera José Cristovão Ferreira Introdução Mesmo com todo o avanço médico e novos tratamentos clínicos para várias doenças, o número de procedimentos cirúrgicos tem aumentado. Mais de 230 milhões de procedimentos cirúrgicos são realizados anualmente em todo o mundo. A dor pós-operatória é a principal preocupação dos pacientes antes da cirurgia e está relacionada com as complicações cirúrgicas e com o aumento da morbidade no período pós-operatório. Postula-se que a dor não tratada no período pós-operatório pode aumentar a incidência de pneumonias, isquemia miocárdica, eventos tromboembólicos, íleo paralítico, náuseas e vômitos, tempo de internação. Apesar de todo o conhecimento e os fármacos disponíveis, a dor pós-operatória continua subtratada. Mais da metade dos pacientes submetidos a cirurgias relatam dor moderada a severa no pós-operatório, 40% dos pacientes relatam dor intensa mesmo após receberem seus analgésicos prescritos1,2. A dor pós-operatória possui características únicas. Dor mista, em parte somática (inflamatória e relacionada com o trauma tecidual), em parte neuropática (lesão axonal decorrente da cirurgia) só pode ser adequadamente tratada se ambos os componentes forem considerados após correta avaliação. Novos tratamentos têm emergidos fundamentados nos conhecimentos científicos atuais. Terapêuticas multimodais e tratamentos ditos preemptivos e preventivos têm sido recomendados com base nos conhecimentos derivados dos conceitos de sensibilização neuronal central e periférica2. Estratégias para o Controle da Dor Pós-Operatória | 25 Tratamento Clínico da Dor Pós-Operatória O tratamento da dor pós-operatória envolve uma equipe de saúde que entende que seu tratamento não se limita simplesmente a prescrever analgésicos anti-inflamatórios e opioides. A dor aguda pós-operatória deve ser vista como um fenômeno complexo de interações desencadeadas pela agressão tecidual cirúrgica, moduladas pelo sistema nervoso periférico e central em um paciente que possui um contexto histórico pessoal emocional com expectativas em relação ao procedimento. Seu tratamento inicia na avaliação e orientação da família e do paciente, passa por estratégias farmacológicas que endereçarão a sensibilização periférica (inflamação) e central (neuropática) e se extende até a alta do paciente com orientações e cuidados que visam aumentar a satisfação do paciente no período domiciliar e até identificar precocemente pacientes que vão apresentar a cronificação da dor pós-operatória. Recomendações para o tratamento da dor pós-operatória foram desenvolvidas em 2014 por um painel de expertos da Sociedade Americana de Dor com o aval da Sociedade Americana de Anestesiologistas3. As 32 recomendações apresentadas estão resumidas na Tabela 1. Baseadas em evidências, refletem o princípio de que o tratamento da dor inicia-se no período pré-operatório, deve ser individualizado e extende-se além da alta do paciente. Tabela 1 - Recomendações no Tratamento da Dor Pós-Operatória (American Pain Society, 2016) Recomendação Grau Recomendação/Evidência Educação e Planejamento Perioperatório Informar paciente e família das opções para o Recomendação forte/Evidência baixa qualidade tratamento da dor PO e documentar o plano Pais de crianças submetidas a cirurgias recebam Recomendação forte/Evidência baixa qualidade instruções para avaliar a dor Avaliação pré-operatória sobre comorbidades, Recomendação forte/Evidência baixa qualidade doenças psiquiátricas, uso de analgésicos, história de dor crônica, experiências passadas Reajuste do plano de tratamento de acordo com a Recomendação forte/Evidência baixa qualidade eficácia em aliviar da dor e efeitos adversos dos analgésicos Métodos de Avaliação Utilizar métodos validados de avaliação da dor Recomendação forte/Evidência baixa qualidade Princípios Gerais de Tratamento Multimodal Recomenda o tratamento multimodal com Recomendação forte/Evidência alta qualidade diferentes analgésicos, técnicas de administração e tratamentos não farmacológicos Utilização de Modalidades Físicas Considerar TENS ( estimulação transcutânea) Recomendação fraca/Evidência moderada qualidade Nem encoraja, nem recomenda acupuntura, Evidência Insuficiente massagem ou crioterapia Uso de Modalidades Cognitivas comportamentais Considerar a utilização de modalidades Recomendação fraca/Evidência moderada cognitivo comportamentais em uma abordagem qualidade multimodal 26 | Dor e Cuidados Paliativos Recomendação Grau Recomendação/Evidência Tratamento Farmacológico Sistêmico Recomenda tratamento oral nos pacientes que Recomendação forte/Evidência moderada podem utilizar esta via qualidade Evitar a via intra-muscular Recomendação forte/Evidência moderada qualidade Recomenda PCA ( analgesia controlada pelo Recomendação forte/Evidência moderada paciente) quando existe necessidade de via qualidade parenteral Considerem lidocaína IV em pacientes Recomendação fraca/Evidência moderada submetidos a procedimentos abdominais qualidade laparoscópicos se não há contraindicação Uso de Tratamentos Farmacológicos Locais/Tópicos Considerar Infiltrações de anestésicos locais nas Recomendação fraca/Evidência moderada cirurgias em que a evidência demonstra eficácia qualidade Anestésicos tópicos junto com a infiltração local Recomendação forte/Evidência moderada em circuncisões qualidade Não recomenda analgesia interpleural após Recomendação forte/Evidência moderada toracotomias qualidade Anestesia Regional Periférica Anestesia Regional é recomendada em adultos e Recomendação forte/Evidência alta qualidade crianças nos procedimentos em que há evidência de eficácia Anestesia regional continua se a necessidade de Recomendação forte/Evidência moderada analgesia excede a duração de uma única injeção qualidade Adição de clonidina como coadjuvante para Recomendação fraca/Evidência moderada prolongar a analgesia de um bloqueio regional qualidade periférico em uma única injeção Terapias Neuroaxiais Recomendam analgesia neuroaxial para Recomendação forte/Evidência alta qualidade procedimentos torácicos e abdominais maiores, particularmente em pacientes de alto risco cardiovascular/pulmonar ou íleo prolongado Evitar a administração neuroaxial de magnésio, Recomendação forte/Evidência moderada cetamina, midazolam, neostigmine, tramadol qualidade Monitoramento pós-operatório apropriado para Recomendação forte/Evidência baixa qualidade os pacientes que recebem analgesia neuroaxial Estrutura Organizacional, Políticas e Procedimentos Instalações que realizam cirurgia/analgesia Recomendação forte/Evidência baixa qualidade refinem seus processos e políticas para a oferta segura de analgesia PO Acesso a um especialista em dor para os casos de Recomendação forte/Evidência baixa qualidade analgesia inadequada ou pacientes de alto risco para inadequação da analgesia ( dependentes químicos, uso crônico de opioides) Recomendação forte/Evidência baixa qualidade Políticas de segurança e pessoal treinado para a realização de anestesias neuroaxiais e bloqueios periféricos Transição para os Cuidados Ambulatoriais Recomendação forte/Evidência baixa qualidade Prover educação para paciente e cuidadores do plano de analgesia em casa e de como devem reduzir e retirar os analgésicos Estratégias para o Controle da Dor Pós-Operatória | 27 Analgesia Preemptiva A importância da modulação periférica e central na nocicepção apoiou o conceito da “analgesia preemptiva” em pacientes que serão submetidos a cirurgia. Este tipo de tratamento induz farmacologicamente um estado analgésico antes do trauma cirúrgico. Analgesia preemptiva é definida como um tratamento pré-operatório que é mais efetivo do que o tratamento idêntico administrado após a incisão. O objetivo é estender a duração dos analgésicos administrados para além da duração esperada. Estes tratamentos podem ser a infiltração da ferida com anestésico local, bloqueio neuroaxiais ou periféricos ou ainda administração sistêmica de doses efetivas de opiáceos, anti-inflamatórios, anestésicos locais ou bloqueadores NMDA (cetamina). Evidências experimentais sugerem que a analgesia preemptiva pode atenuar efetivamente a sensibilização periférica e central para a dor. Apesar de alguns estudos terem falhado em demonstrar a analgesia preemptiva em humanos, outros estudos registram reduções significativas nas necessidades analgésicas pós-operatórias em pacientes recebendo analgesia preemptiva. Porém os objetivos principais, a prevenção da dor aguda intra e pós-operatória, prevenção da dor neuropática e prevenção da dor pós-operatória persistente e da dor crônica pós-cirúrgica, não são consistentemente alcançados com esta modalidade analgésica. É consensual que os mediadores inflamatórios devem ser inibidos por mais tempo, abrangendo-se o período de lesão tecidual associado a inflamação pós-operatória. A sensibilização central pode não ser prevenida se o tratamento terminar precocemente, deve haver um balanço entre lesão incisional e lesão inflamatória, que depende da natureza do procedimento cirúrgico. Em algumas situações, a resposta inflamatória é um fator dominante. Temos evidências fundamentadas em estudos amplos e de boa qualidade de que algumas intervenções específicas, como a analgesia peridural, podem gerar efeito preemptivo clinicamente significativo. Entretanto, essa afirmação não é valida para todas as técnicas analgésicas, e, algumas, como a utilização dos receptores de NMDA, permanecem controversas e merecem maior investigação4,5. O alívio adequado da dor é importante para reduzir a incidência de dor crônica, devendo ser feito de forma preventiva e com duração suficiente para evitar sensibilização central pela dor prévia, pelo trauma cirúrgico e pela inflamação pós-operatória4. Analgesia Preventiva A crença prévia de que a incisão cirúrgica desencadeia a sensibilização central tem sido expandida para incluir os efeitos dos estímulos pré-operatórios e de outros estímulos nocivos, intra e pós-operatórios, o que sugere que a definição prévia de analgesia preemptiva é muito restritiva. A analgesia preventiva difere da analgesia preemptiva por procurar estender a duração da analgesia pelo período pós-operatório, por todo o tempo em que os mecanismos de lesão tecidual e sensibilização persistem. Assim, o termo analgesia preventiva foi introduzido para enfatizar o fato de que a sensibilização central é induzida por 28 | Dor e Cuidados Paliativos estímulo nocivo pré- e pós-operatório, e tem sido usado para descrever a redução da dor, do consumo de analgésicos, ou ambos, durante toda a intervenção. O objetivo da analgesia preventiva é reduzir a sensibilização central durante todo o período perioperatório e, portanto, tem maior relevância clínica do que a analgesia preemptiva. O termo analgesia preventiva também se refere ao objetivo de prevenção da dor pós-operatória crônica. Dor crônica pós-operatória é relativamente comum acometendo cerca de 10 % de todos os pacientes operados. Aproximadamente 2% dos pacientes continuam a apresentar dor severa após 1 ano de operados com clara redução do bem-estar e da qualidade de vida destes indivíduos6. Há um corpo de evidência que a dor intensa sofrida no período pós-operatório imediato pode ser um fator de risco significativo para o processo de cronificação da dor. O papel da prevenção estaria na redução do tempo em que o paciente permanece com dor neste período. Estima-se que a cada aumento de 10% no tempo em que o paciente fica com dor no pós-operatório imediato corresponde a um aumento de 30% na incidência de dor crônica pós-operatória aos 12 meses6. Porém ainda nenhuma farmacoterapia sistêmica (gabapentinoides, lidocaína, clonidina, cetamina, esteroides, opioides e anti-inflamatórios) demonstrou eficácia em diminuir a incidência de dor crônica pós-operatória7, e mais estudos de qualidade serão necessários para determinar este benefício. Bloqueios neuroaxiais (peridural e paravertebral) parecem reduzir a incidência de DCPO em toracotomias e mastectomias, respectivamente8. Ainda assim uma estratégia para analgesia pré- e pós-operatória deve ser considerada em todos os pacientes cirúrgicos, tendo em mente os fatores que podem influenciar no planejamento como o tipo da cirurgia, alergias associadas, condições clínicas e o risco benefício da técnica. Analgesia Multimodal O conceito de analgesia multimodal é definido como a utilização de diferentes fármacos analgésicos, diferentes técnicas analgésicas ou mesmo diferentes vias de administração para obtenção de melhor analgesia pós-operatória com redução dos efeitos adversos. Na analgesia multimodal procura-se prescrever analgésicos ou métodos que atuam em diferentes vias ou receptores, periféricos e centrais, proporcionando sinergismo da atividade analgésica. Também pode se associar métodos não farmacológicos aos métodos farmacológicos com esta finalidade. Bloqueios anestésicos no neuroeixo ou bloqueios regionais periféricos podem ser úteis no controle da dor com redução do consumo de opioides no pós-operatório imediato, especialmente naquelas cirurgias/pacientes em que os efeitos adversos dos opioides podem ser mais limitantes (por exemplo, pacientes com reserva pulmonar reduzida) ou ainda buscando uma recuperação cirúrgica mais precoce (por exemplo, redução do tempo de íleo em cirurgias colônia). Componentes de terapia multimodal comumente utilizadas e sua indicação em algumas cirurgias por evidência ou consenso de expertos são resumidas na Tabela 2. Estratégias para o Controle da Dor Pós-Operatória | 29 Ainda que o objetivo maior da terapia analgésica multimodal seja a recuperação do paciente demonstrado pela redução do tempo de internação, isto não tem sido observado na maioria dos estudos que abordam este desfecho. Mesmo assim estes achados não invalidam os benefícios da analgesia multimodal. Acontece que a recuperação acelerada do paciente depende de muitos outros fatores que em conjunto podem atingir este objetivo, como demonstrado por diversos protocolos institucionais de recuperação acelerada (ERAS, Projeto ACERTO, por exemplo). Além do mais estes estudos demonstram maior satisfação do paciente e redução dos efeitos adversos com a analgesia multimodal. Tabela 2 - Opções de Componentes de Analgesia Multimodal para Cirurgias Comumente Realizadas Cirurgia Tratamento Sistêmico Tratamento Local, Intrarticular, Tópico Técnicas de Anestesia Regional, Técnicas Neuroaxiais Terapias Não Farmacológicas Toracotomia Opioides, AINES, Gabapentinóides, Cetamina, Lidocaína Laparotomia Aberta Opioides, AINES, Bloqueio no Peridural com Modalidades Gabapentinóides, Anestésico local plano transverso ou sem Opioide, Cetamina, na incisão, Cognitivas, TENS abdominal (TAP) Opioide intratecal Lidocaína Artroplastia Total Quadril Opioides, AINES, Anestésico local Gabapentinóides, Intraarticular e/ Cetamina, ou Opioide Lidocaína Artroplastia Total de Joelho Bloqueio femoral, Opioides, AINES, Anestésico local Peridural com bloqueio ciático, Modalidades Gabapentinóides, ou sem Opioide, Intraarticular e/ Cetamina, fáscia do ilíaco, Cognitivas, TENS Opioide intratecal ou Opioide Lidocaína paravertebral Artrodese de Coluna Opioides, AINES, Gabapentinóides, Anestésico local Cetamina, na incisão, Lidocaína Cesariana Opioides, AINES, Bloqueio no Peridural com Gabapentinóides, Anestésico local Modalidades plano transverso ou sem Opioide, Cetamina, na incisão, Cognitivas, TENS abdominal (TAP) Opioide intratecal Lidocaína Revascularização do Miocárdio Opioides, AINES, Gabapentinóides, Cetamina, Lidocaína Bloqueio Paravertebral Peridural com Modalidades ou sem Opioide, Cognitivas, TENS Opioide intratecal Bloqueio Fáscia Peridural com do ilíaco, Modalidades ou sem Opioide, paravertebral Cognitivas, TENS Opioide intratecal lombar Peridural com Modalidades ou sem Opioide, Cognitivas, TENS Opioide intratecal Opioide intratecal Modalidades Cognitivas, TENS *Adaptado de CHOU, Roger et al. Management of Postoperative Pain: a clinical practice guideline from the American Pain Society, the American Society of Regional Anesthesia and Pain Medicine, and the American Society of Anesthesiologists’ committee on regional anesthesia, executive committee, and administrative council. Journal of Pain, 2016. 30 | Dor e Cuidados Paliativos Tratamento Farmacológico Por questões econômicas, muitas das intervenções que antes eram executadas com o paciente internado, atualmente são realizadas em hospital dia, nas diversas especialidades, como cirurgias artroscópicas, laparoscópicas, oftálmicas, otorrinolaringológicas e estéticas. A dor constitui uma das principais causas de retardo para alta hospitalização inadvertida após cirurgia ambulatorial, sendo considerado um indicador importante da qualidade do atendimento. Assim com uma analgesia preemptiva somando a uma boa analgesia preventiva conseguiremos diminuir as doses individuais de cada fármaco com menor incidência de efeitos colaterais. Anti-Inflamatórios Não Hormonais (AINEs) São úteis como analgésicos isolados após cirurgias de pequeno porte e maior e ainda podem ser associados a dipirona ou a paracetamol. Como parte de uma estratégia multimodal, potencializam a analgesia, diminuindo o consumo de opioides e a necessidade de medicações de resgate após cirurgias de maior porte, promovendo por isso uma redução do íleo e da incidência de náuseas e vômitos no pós-operatório. Os inibidores seletivos de COX-2 (coxibs) produzem efeito antiagregante plaquetário menor que os AINEs não seletivos podendo ser utilizados em situações onde o sangramento excessivo pode ser uma preocupação primária. Além disso, os coxibs têm menor incidência de hemorragia digestiva e não causam broncoespasmo em pacientes com asma exacerbada por AINEs. Os AINEs apresentam fenômeno de efeito teto, doses acima preconizadas não correlacionam com maior grau de analgesia, mas sim com um aumento de incidência de efeitos adversos. Ao contrário dos opioides são mais eficazes no controle da dor somática do que na de caráter visceral, apresentando maior eficácia que os opioides em relação à dor provocada por movimento. Corticosteróides A dexametasona é largamente empregada na prática anestésica cirúrgica por potencializar o efeitos dos antieméticos e reduzir a incidência de náuseas e vômitos no pós-operatório imediato. Também reduz a dor e o consumo de opioides no pós-operatório em menor extensão. Há uma preocupação com os efeitos adversos dos corticosteroides, aumento da glicemia, hipertensão arterial e imunossupressão. Opioides Apesar do grande número de agentes e técnicas de analgesia, o opioide continua sendo padrão ouro no tratamento da dor aguda, e o médico, no entanto, lida com o medo da possibilidade de provocar dependência ou enfrentar efeitos colaterais graves, como a depressão respiratória. Estes agentes opioides podem ser divididos em: Opioides fracos - Aqui podemos citar a codeína e o tramadol, estão mais indicados para procedimentos ambulatoriais e pós-operatório de cirurgias de peEstratégias para o Controle da Dor Pós-Operatória | 31 queno e médio portes. A dose máxima de codeína é de 360 mg/dia e tramadol de 400 mg/dia. Opioides fortes - Nesta classe temos a morfina, buprenorfina, oxicodona, metadona e fentanil, não tendo dose limite para uso, sendo o que limita são os efeitos colaterais (obstipação, retenção urinária, vômitos, sonolência, depressão respiratória). Podemos, também, utilizar a analgesia controlada pelo paciente (ACP), sendo este primariamente um método de administração de opioides por via endovenosa, podendo também ser utilizados para a administração de anestésicos locais e/ou opioides no neuroeixo. A analgesia proporcionada pela ACP aumenta a satisfação do paciente e reduz o consumo de opioides quando comparada a outros métodos de administração intermitente de opioides. Gabapentinoides Gabapentina e Pregabalina - Estes alfa-2 delta ligante possuem mecanismos de ação semelhantes. Modulam a α2 δ-1 subunidade do canal de cálcio voltagem dependente no corno dorsal da medula espinhal e em outros sítios do sistema nervoso central reduzindo a liberação de neurotransmissores excitatórios. Esses agentes podem ser utilizados em dose única uma a duas horas antes da cirurgia, para reduzir a dor e o consumo de opioides. Também possuem propriedade ansiolítica. Potencializam a analgesia, reduzem tolerância induzida por opioides e reduzem seu consumo, resultando em menor incidência de efeitos adversos relacionados com os opioides. Efeitos adversos podem ser limitantes. Tontura e sedação principalmente. São medicamentos excretados via renal e só devem ser utilizados em pacientes com prejuízo da função renal com cautela. Anestésicos Locais Os anestésicos locais são bloqueadores de canal de sódio. Podem ser utilizados em infusão venosa, infiltração da ferida operatória ou nos bloqueios regionais e de neuroeixo. Reduzem o consumo de opioides, a incidência de náuseas e vômitos, melhoram a qualidade de analgesia e o grau de satisfação do paciente. Em cirurgias abdominais, torácicas e de membros quase sempre é possível indicar um bloqueio regional anestésico. O advento do ultrassom criou técnicas novas de bloqueios regionais e trouxe facilidade para execução e redução das complicações para a execução de técnicas regionais. Por outro lado a infiltração de parede com anestésico local, pode ser útil após laparotomia, cesárea e correção cirúrgica de hemorroida. O emprego da clonidina associada ao anestésico local no bloqueio de nervo periférico pode aumentar o tempo de analgesia. Na técnica contínua por via peridural, o cateter deve estar próximo à área de maior estímulo nociceptivo, os anestésicos locais tendem a acelerar o peristaltismo e melhorar a perfusão da mucosa intestinal, a reduzir a adesão plaquetária, melhorar a microcirculação e diminuir a incidência de trombose venosa profunda. Na via subaracnóidea, o anestésico pode ser utilizado em dose única e associado à opioide em cirurgias de médio porte, com duração de analgesia dose-dependente podendo durar até 24 horas. 32 | Dor e Cuidados Paliativos Nos casos onde os bloqueios não são possíveis ou contraindicados, ou ainda em procedimentos laparoscópicos sob anestesia geral a lidocaína pode ser utilizada por via endovenosa sistêmica. A dose recomendada varia de 1-2 mg/kg/hora iniciando na indução da anestesia e mantendo até 6-24 horas no pós-operatório. A lidocaína venosa reduz o consumo de opioides nas primeiras 24 horas, diminuindo o tempo de alta hospitalar. Cetamina O receptor NMDA é um dos principais regulador da neuroplasticidade no fenômeno doloroso, estando envolvido nos processos de manutenção de dor crônica, nos fenômenos de tolerância e hiperalgesia induzida por opioides. A cetamina é um inibidor não competitivo dos receptores NMDA. O uso do isômero S(+) determina algumas vantagens em relação à forma racêmica, como o dobro da potência analgésica, biotransformação hepática 20% mais rápida, menor tempo para emergência e recuperação funcional e menor incidência de distúrbios psicomiméticos. A administração intraoperatória pode ser realizada na forma de infusão contínua em dose ao redor de 0,1 mg/kg/hora, ou em bolus, ambos interrompidos de 30 a 60 minutos antes do fim da cirurgia. A limitação de sua utilização fica por conta do aumento de náuseas no pós-operatório imediato, que podem ser compensadas pela redução no consumo de opioides e alucinações produzidas por esta droga. O efeito da cetamina parece ser mais pronunciado naquelas cirurgias com maior intensidade da dor e componente neuropático mais evidente (toracotomias, por exemplo). Alfa2 – Adrenérgicos O uso sistêmico da dexmedetomidina e da clonidina determina sedação, hipnose, ansiólise, analgesia moderada, hipotensão, redução das necessidades de opioides e da CAM de halogenados por sua ação em receptores pré-sinápticos alfa-2 presentes na medula espinhal, locus ceruleus e outras áreas do sistema nervoso central. Revertem a hiperalgesia e a tolerância induzidas por opioides e diminuem seu consumo pós-operatório. A clonidina intensifica os bloqueios sensitivo e motor resultante da aplicação peridural ou em bloqueio periférico com anestésico local. Ela também pode ser utilizada como medicação pré-anestésica, tendo como vantagem sua ação sedativa, ansiolítica, simpatolítica e antissialogoga. Produz sedação dose-dependente na dose de 50 a 900 microgramas com instalação rápida (< 20 minutos) independente da via de administração. Tratamentos Não Farmacológicos Tratamentos não farmacológicos, físicos e cognitivos apesar de não serem utilizados isoladamente no tratamento da dor pós-operatória podem ser considerados como adjuvantes ao tratamento farmacológico convencional. Diferentes métodos físicos têm sido avaliados: TENS, aplicação de calor e frio, mobilização, acupuntura, aurículo acupuntura, massagem. Apesar de virtual ausência Estratégias para o Controle da Dor Pós-Operatória | 33 de contraindicações a estes métodos e o baixo potencial de complicações, somente o TENS tem demonstrado alguma evidência. Os demais métodos usualmente não são indicados por carecerem de benefícios claros demonstrados com sua utilização. Técnicas cognitivo-comportamentais podem ser oferecidas por uma equipe multiprofissional de saúde como adjuvante ao tratamento farmacológico. Técnica de relaxamento, imagens, música diminuem a ansiedade e podem reduzir a ansiedade e a dor reduzindo a necessidade de analgésicos no pós-operatório imediato e reduzindo os efeitos colaterais dos mesmos. Considerações Finais O tratamento da dor pós-operatória é um grande desafio, sendo necessário educação continuada sobre o tema, enfocando os mecanismos da dor aguda, avaliação e mensuração da dor e tratamento farmacológico e não farmacológico. As evidências para um manejo multimodal da dor pós-operatória é significante no momento. O tratamento da dor pós-operatória além de conforto ao paciente tem um potencial de reduzir a morbimortalidade perioperatória, e outras complicações tardias como é o caso da dor crônica pós-operatória. Referências 1. Gan TJ, Habib AS, Miller TE et al. Incidence, patient satisfaction, and perceptions of post-surgical pain: results from a US national survey. Curr Med Res Opin, 2014; 30: 149-160. 2. Pogatzki-Zahn EM, Segelcke D, Schug SA. Postoperative pain - from mechanisms to treatment. Pain Rep, 2017; 2: e588. 3. Chou R, Gordon DB, de Leon-Casasola OA et al. Management of postoperative pain: a clinical practice guideline from the American Pain Society, the American Society of Regional Anesthesia and Pain Medicine, and the American Society of Anesthesiologists’ committee on regional anesthesia, executive committee, and administrative council. J Pain, 2016; 17: 131-157. 4. Cangiani LM, Carmona MJC,Torres MLA et al (Ed.). Tratado de anestesiologia SAESP. 8.ª ed. São Paulo: Atheneu, 2017. 5. Carneiro AF, Valverde Filho J, Auler Junior JOC et al (Ed.). Anestesia regional : princípios e prática. São Paulo: Manole, 2009. 6. Fletcher D, Stamer UM, Pogatzi-Zahn E et al. Chronic postsurgical pain in Europe: an observational study. Eur J Anaesthesiol, 2015; 32:725-734. 7. Chaparro LE, Smith SA, Moore RA et al. Pharmacotherapy for the prevention of chronic pain after surgery in adults. Cochrane Database Syst Rev, 2013; 7: CD008307. 8. Lavand’homme PM, Grosu I, France MN et al. Pain trajectories identify patients at risk of persistent pain after knee arthroplasty: an observational study. Clin Orthop Relat Res, 2014; 472: 1409-1415. 9. Vance CG, Dailey DL, Rakel BA et al. Using TENS for pain control: the state of the evidence. Pain Manag, 2014; 4: 197-209. 34 | Dor e Cuidados Paliativos 03 Capítulo Uso de Ultrassonografia no Tratamento da Dor Pós-Operatória Pedro Paulo Kimachi Elaine Gomes Martins Introdução A técnica anestésica escolhida e seu impacto nos desfechos dos pacientes cirúrgicos consistem em temas importantes atualmente. Muitas discussões sobre tratamento de dor pós-operatória baseiam-se na análise comparativa de anestesia geral versus regional e complicações perioperatórias. Quando revisamos a literatura sobre o assunto, a anestesia regional destaca-se, em várias situações específicas, como uma técnica que é associada tanto à diminuição de complicações como ao melhor controle álgico1,2. A prática de anestesia regional cresceu consideravelmente nas últimas décadas e esse aumento pode ser atribuído a várias causas: ênfase atual na analgesia perioperatória; melhores resultados descritos; destaque na formação médica; aprimoramento em técnicas, equipamentos e drogas. Um artigo interessante publicado em 2000 tentou vislumbrar sobre como seria o futuro da anestesia regional3, e o passado recente apontava para contínua inovação e criatividade. O uso de técnicas de imagem modernas que possibilitassem identificar a localização anatômica exata de agulhas e soluções injetadas é criticamente importante;, desse modo o uso do ultrassom continua se destacando consideravelmente. Dados recentes sugerem que o uso de ultrassom no tratamento de dor pós-operatória aumenta as taxas de sucesso dos procedimentos e reduz o tempo de performance em comparação com outras abordagens, entre outras inúmeras vantagens que vamos discutir na sessão de cada procedimento específico neste capítulo. Bloqueios guiados por ultrassonografia exigem um conjunto único de habilidades. Assim, normas e diretrizes estão constantemente sendo desenvolvidas pelas sociedaUso de Ultrassonografia no Tratamento da Dor Pós-Operatória | 35 des de liderança para promover a educação e a formação adequadas na especialidade. A visualização ideal das estruturas anatômicas depende de uma variedade de fatores, incluindo a experiência do operador e o conhecimento de anatomia. Vamos discutir objetivamente as aplicações práticas da ultrassonografia no tratamento de dor pós-operatória descrevendo os principais procedimentos realizados em nosso serviço para o controle de dor aguda, como também mostrar as evidências científicas atuais sobre o assunto. Anestesia Regional Contínua O bloqueio do nervo periférico contínuo consiste em um cateter inserido percutaneamente através do qual o anestésico local pode ser administrado. Essa infusão de anestésico local proporciona um bloqueio prolongado do nervo periférico que pode ser titulado para o efeito desejado. Uso de cateteres de nervos periféricos para analgesia pós-operatória proporcionou melhor controle de dor tanto em cirurgias com grande estímulo álgico, como também em procedimentos cirúrgicos nos quais a dor pós-operatória precisa ser mais bem controlada para proporcionar reabilitação precoce e tratamento fisioterápico. Controle de dor pós-operatória deve estar sempre associado à reabilitação, pensando também em alta precoce e melhores desfechos a longo prazo4. A passagem de cateteres plexulares possibilita o uso de Patient Controlled Analgesia (PCA) através de bombas de infusão controladas pelo paciente. Nesse raciocínio, o uso do ultrassom permite a passagem rápida dos dispositivos, a confirmação de localização exata e os melhores resultados em geral. O sucesso da inserção do cateter é maior quando guiado por ultrassom em comparação com estimulação nervosa para a maioria dos locais de inserção5. Iremos destacar os procedimentos mais realizados atualmente. Anestesia regional contínua para cirurgias de artroplastia total de quadril A artroplastia total de quadril (ATQ) é uma cirurgia com o pós-operatório extremamente doloroso, cujo quadro é agravado ao movimento. Técnica analgésica eficaz e com mínimos eventos adversos se faz necessária para essa cirurgia que, assim, permite o início precoce da fisioterapia e movimentação do paciente, com a finalidade de evitar contraturas capsulares e atrofia muscular que podem levar a um retardo na reabilitação funcional do paciente e prejuízo ao desfecho da cirurgia e aumento no tempo de internação6. Atualmente, as técnicas mais utilizadas em cirurgia de membros inferiores são os bloqueios de neuroeixo com a raquianestesia associada ou não à peridural, que, apesar de eficácia comprovada, é uma técnica com efeitos adversos: hipotensão arterial, cefaleia pós-punção, retenção urinária, sintomas neurológicos transitórios. Daí o interesse em buscar uma técnica de analgesia com menos efeitos colaterais, principalmente pelo perfil de paciente submetido especificamente a essa cirurgia: idosos com múltiplas comorbidades. Bloqueio de plexo lombar (BPL) consegue promover anestesia seletiva do único membro, como também diminuir a incidência de bloqueio motor. Ele promove, portanto, o início precoce da fisioterapia, o que se demonstrou ser um dos fatores mais importantes no pós-operatório de ATQ. 36 | Dor e Cuidados Paliativos Quando comparamos as técnicas como raquianestesia com morfina versus bloqueio do plexo lombar (BPL) em injeção única, estudos mostram que a morfina intratecal é superior no controle da analgesia, diferentemente da técnica do BPL com infusão contínua, que não demonstrou superioridade de uma técnica sobre a outra de modo significativo. Porém, como citado anteriormente, a raquianestesia apresenta maior incidência de complicações. Portanto, com a finalidade de prolongar a analgesia, o BPL pode ser realizado com infusão contínua através do cateter plexular, aumentando o poder analgésico e levando a uma redução de efeitos adversos7. Assim, entendemos que o BPL injeção única tem um benefício limitado nas primeiras 4-8 horas do pós-operatório e não demonstrou superioridade em relação às técnicas de neuroeixo, principalmente na dor à movimentação8. Com a finalidade de prolongar analgesia o BPL pode ser realizado com infusão contínua através do cateter plexular. Figura 1 – Posicionamento e fixação de cateter de plexo lombar Tabela 1 – Doses usuais de anestésico local e taxas de infusão para bloqueio de plexo lombar com cateter. Bloqueio de plexo lombar Cateter plexular Dose inicial do bloqueio Anestésico local Ropivacaína Concentração 0,5% Volume 20 mL Configuração da PCA com solução padrão 0,2% 4 a 6 mL/hora Bolus 5 mL a cada 30 min Anestesia regional contínua para cirurgias torácicas O bloqueio paravertebral torácico (BPVT) foi inicialmente descrito por Hugo Selheim em 1905, procurando uma estratégia anestésica mais segura como alternativa às abordagens neuroaxiais. O uso do ultrassom oferece várias vantagens potenciais em relação às técnicas baseadas em marcos anatômicos9. A visualização da agulha Uso de Ultrassonografia no Tratamento da Dor Pós-Operatória | 37 e da pleura durante o procedimento diminui o risco de punção pleural e confirma a entrada da ponta da agulha no espaço paravertebral. Além disso, a confirmação do espraiamento do anestésico local no espaço paravertebral pode ser documentada observando o deslocamento da pleura. Sua indicação de uso é extensa, já que os metâmeros torácicos contemplam quase toda inervação toracoabdominal. O uso BPVT em cirurgia torácica apresenta a mesma eficácia analgésica com melhor perfil respiratório e hemodinâmico, além de menos náusea, vômitos e outros efeitos colaterais do que com o uso da peridural ou da geral como técnica única10. Além disso, alguns autores relatam segurança e excelente analgesia na técnica contínua ou simples, para cirurgia cardíaca, em que o paciente apresentará distúrbios da coagulação. Para cirurgias torácicas a analgesia contínua parece mais eficiente do que o bolus intermitente, e um bloqueio preemptivo com doses e concentrações maiores de anestésico local também predizem menor dor no pós-operatório. Aparentemente o BPVT apresenta as mesmas vantagens sobre a anestesia geral para cirurgia abdominal alta como a nefrectomia, hepatectomia, colecistectomia etc. Pensando em anestesia regional contínua, a passagem de cateter no espaço paravertebral é considerada um desafio, mesmo com o uso de ultrassom. Vários novos bloqueios têm sido descritos com o uso do ultrassom. Os bloqueios interfasciais são cada vez mais populares pela segurança que oferecem, além da facilidade de execução. Nesse sentido, como alternativa ao bloqueio paravertebral surge o bloqueio do plano eretor da espinha, descrito por Mauricio Forero e colaboradores11. O bloqueio do plano do eretor da espinha é promissor por se apresentar como uma técnica mais simples e segura comparada com o BPVT para analgesia torácica, tanto em dor neuropática como em dor pós-cirúrgica ou pós-traumática, como injeção única ou infusão contínua através de cateter12. Depois da descrição de Forero vários relatos de caso foram publicados em diferentes contextos, desde cirurgias torácicas até cirurgias abdominais abertas e por vídeo, com pequenas variações de acordo com o nível desejado (injeção a nível de T7) e bons resultados como parte de estratégia de analgesia multimodal13. Ainda faltam estudos prospectivos, randomizados e controlados comparando com técnicas padrão-ouro como bloqueio paravertebral ou peridural. Figura 2 – Cateter no plano eretor da espinha para analgesia de cirurgia torácica 38 | Dor e Cuidados Paliativos Tabela 2 – Doses usuais de anestésico local e taxas de infusão para bloqueio do plano eretor da espinha (ESP block) com cateter Bloqueio do plano eretor da espinha (ESP) Cateter plexular Dose inicial do bloqueio Anestésico local Ropivacaína Concentração 0,37% a 5% Volume 25 a 30 mL Configuração da PCA com solução padrão 0,2% 5 a 7 mL/hora Bolus 5 a cada 30 min Anestesia regional contínua para cirurgias de artroplastia de ombro A cirurgia do ombro foi identificada como uma das cirurgias mais dolorosas. Aproximadamente 80% dos pacientes submetidos a essa cirurgia relatam dor de intensidade moderada, severa ou extrema durante as primeiras duas semanas após o procedimento14. O manejo inadequado da dor perioperatória foi correlacionado com inúmeros resultados desfavoráveis, incluindo aumento das readmissões hospitalares, reabilitação mais lenta, atraso no retorno das atividades da vida diária, aumento do custo geral e progressão para um estado de dor crônica15. A prática atual na cirurgia do ombro é conseguir um bloqueio do plexo braquial via interescalênica com anestésico local administrado imediatamente antes da cirurgia. O bloqueio do plexo braquial com uma infusão contínua através de um cateter é usado para fornecer analgesia efetiva e duradoura, com possibilidade de configurar uma bomba controlada pelo paciente para fornecer anestesia local conforme necessário, o que leva a maior controle de dor no pós-operatório imediato. O bloqueio contínuo também possui limitações, como dificuldades técnicas na passagem do cateter que podem levar ao controle inadequado da dor. Vários estudos revisaram essas características para o bloqueio contínuo e a evidência destaca que até 22% dos pacientes apresentam complicações por falha, mais comumente devido ao fracasso de o cateter permanecer no lugar correto16. Preconizamos para artroplastia de ombro a passagem de cateter interescalênico e controle álgico com Patient Controlled Analgesia (PCA) plexular pós-operatório com bomba de infusão inicialmente programada para infusão contínua e bolus por demanda do paciente. Tabela 3 – Doses usuais de anestésico local e taxas de infusão para bloqueio do plexo braquial via interescalênica com cateter Bloqueio de plexo braquial via interescalênica Cateter plexular Dose inicial do bloqueio Anestésico local Ropivacaína Concentração 0,5% Volume 10 mL Configuração da PCA com solução padrão 0,2% 3 a 5 mL/hora Bolus 5 mL a cada 30 min Uso de Ultrassonografia no Tratamento da Dor Pós-Operatória | 39 Anestesia regional contínua para cirurgias de artroplastia de joelho Persiste uma grande discussão atual entre os especialistas de anestesia regional sobre qual seria a melhor analgesia para esse tipo de cirurgia. Possibilidades de bloqueios periféricos contínuos seriam o bloqueio de nervo femoral, o bloqueio do canal dos adutores e o bloqueio do nervo ciático. Bloqueio do nervo femoral: até há bem pouco tempo, o local de cateter mais comumente publicado para a cirurgia do joelho, mas as preocupações com as constantes quedas associadas ao procedimento aumentaram o interesse em locais alternativos de passagem de cateter, como o canal adutor17. Tabela 4 – Doses usuais de anestésico local e taxas de infusão para bloqueio do nervo femoral com cateter Bloqueio do nervo femoral Cateter plexular Dose inicial do bloqueio Anestésico local Ropivacaína Concentração 0,2% Volume 10 a 15 mL Configuração da PCA com solução padrão 0,2% 4 a 6 mL/hora Bolus 5 a cada 30 min Bloqueio do canal do adutor (BCA): relativamente validado com ensaios randomizados e controlados, porém várias questões permanecem em discussão, como a analgesia relativa menor proporcionada em comparação com uma infusão femoral18. Em comparação com a infusão femoral, o BCA induz menor fraqueza muscular por preservar força do quadríceps, diminuindo a incapacidade e melhorando a reabilitação. Figura 3 – Posicionamento e fixação após passagem de cateter no canal do adutor para analgesia de artroplastia de joelho Com o bloqueio, temos boa analgesia das faces anterior e medial do joelho, local onde se encontra a incisão cirúrgica e a manipulação de cápsula articular. A analgesia 40 | Dor e Cuidados Paliativos das regiões posterior e lateral permanece um desafio, porém a dor é bem controlada com analgésicos orais ou outras técnicas de bloqueios. Tabela 5 – Doses usuais de anestésico local e taxas de infusão para bloqueio do canal do adutor com cateter Bloqueio de canal do adutor Cateter plexular Dose inicial do bloqueio Anestésico local Ropivacaína Concentração 0,375% Volume 30 a 35 mL Configuração da PCA com solução padrão 0,2% 5 a 7 mL/hora Bolus 5 a 7 mL a cada 30 min Bloqueio do nervo ciático: três estudos recentes investigaram os efeitos da adição de um bloqueio contínuo do nervo ciático a um femoral contínuo após artroplastia total do joelho. Todos demonstraram menores escores de dor e diminuição do consumo de analgésicos suplementares, e um detectou menor incidência de náuseas e vômitos19. Também pode ser realizado o bloqueio de nervo ciático punção única via anterior para artroplastia de joelho. Entretanto, não fazemos rotineiramente esse bloqueio para cirurgias de joelho, como também não fazem a maioria dos especialistas em anestesia regional. O raciocínio clínico para não realizar o bloqueio é baseado em melhor reabilitação como prioridade pós-operatória. Além disso, problemas relacionados com lesões de nervo fibular, comum durante o procedimento cirúrgico que foram atribuídos inadequadamente ao bloqueio periférico, desencorajam o uso da técnica. Figura 4 – Cateter via poplítea em nervo ciático conectado ao sistema de Patient Controlled Analgesia (PCA) Uso de Ultrassonografia no Tratamento da Dor Pós-Operatória | 41 Tabela 6 – Doses usuais de anestésico local e taxas de infusão para bloqueio do nervo ciático com cateter Bloqueio de nervo ciático via poplítea Cateter plexular Dose inicial do bloqueio Anestésico local Concentração Volume Configuração da PCA com solução padrão 0,2% 5 mL/hora Bolus 5 mL a cada 30 min Ropivacaína 0,375% 10 a 15 mL Bloqueio de Nervos Periféricos As técnicas de bloqueio de nervos periféricos guiados por ultrassom utilizam, de preferência, o corte transversal para identificação do nervo. Inicialmente, é feito um escaneamento da região identificando estruturas como vasos, ossos e nervos. Nesse primeiro momento é essencial obter o melhor plano de visualização possível e realizar os ajustes necessários no aparelho de ultrassom, pois o sucesso dessa técnica pode estar relacionado com a qualidade das imagens obtidas do paciente. Depois, a ponta da agulha é guiada até o alvo e, em seguida, é realizada a injeção da solução anestésica observando-se sua dispersão em torno do local desejado. Existem diversos bloqueios de nervos periféricos descritos para tratamento de dor pós-operatória. Quando discutimos sobre o uso da ultrassonografia, podemos dizer que seu maior impacto atual nessas diferentes abordagens foi no aprimoramento de bloqueios parietais, interfaciais. As possibilidades de intervenções para melhora do controle álgico cresceram consideravelmente e novos bloqueios foram descritos. Portanto, vamos destacar esses bloqueios na discussão a seguir. Notavelmente, alguns bloqueios de parede abdominal tornaram-se promissores, mostrando excelentes resultados na cirurgia com incisões abdominais. Os menores escores de dor pós-operatórios, a recuperação precoce e a diminuição do consumo de opioides são vantagens importantes no uso de bloqueios periféricos20. Consideramos importante citar os dois procedimentos que teriam papéis importantes na analgesia pós-operatória de pacientes submetidos à cirurgia abdominal: bloqueio do plano transverso abdominal (TAP) e bloqueio do quadrado lombar (BQL). A chave para entender os bloqueios do nervo da parede abdominal é uma compreensão da anatomia. A pele e a fáscia da parede abdominal anterior sobrepõem os músculos que ajudam a suportar o conteúdo abdominal e o tronco. Existem três camadas musculares na parede abdominal lateral, cada qual com uma bainha fascial associada. De superficial a profundo, estes são os oblíquos externos, oblíquos internos e transverso abdominal. Sob os músculos encontram-se gorduras extraperitoneais e, em seguida, o peritônio parietal. A inervação da parede abdominal é fornecida pelos nervos intercostais T7 a T11 (os nervos toracoabdominais) e pelos nervos subcostal, ilio-hipogástrico e ilioinguinal. Entre os músculos oblíquo interno e transverso abdominal encontra-se um plano 42 | Dor e Cuidados Paliativos intermuscular, o qual contém os ramos anteriores dos seis nervos torácicos inferiores (T7 a T12) e primeiro nervo lombar (L1). Nesse plano intermuscular injetamos anestésico local para realização do TAP, bloqueio que permite analgesia da pele, dos músculos e do peritônio parietal na região infraumbilical abdominal. Figura 5 – Posicionamento do probe e marcos anatômicos durante a realização do TAP O uso do bloqueio do quadrado lombar resultou em aumento do bloqueio sensorial em comparação com o bloqueio TAP quando realizado com um volume semelhante de anestesia local21. Por isso, o BQL tornou-se uma opção para procedimentos que necessitem de analgesia de abdome superior. O quadrado lombar tem várias abordagens descritas: tipo 1, tipo 2 e tipo 3. O próprio autor não considera mais o tipo 1 como técnica de escolha, visto que essa abordagem seria um bloqueio da fascia transversalis22. O tipo 2 descrito é de fácil realização, excelente padrão de dispersão de anestésico local e pode ser realizado com auxílio do probe linear por não ser tão profundo na maioria dos pacientes. O tipo 3, transmuscular – TQL ou “tequila block”, é realizado com probe curvo, visualizando as estruturas na região posterior do abdome e injetando anestésico local entre os músculos quadrado lombar e psoas. O objetivo seria atingir o espaço entre os dois músculos e ter uma dispersão craniocaudal, com espraiamento de anestésico inclusive para o espaço paravertebral torácico, visto que a fáscia endotorácica tem continuidade anatômica com a fascia transversalis. Seria a explicação anatômica para um melhor resultado analgésico em abdome superior do BQL23. O bloqueio até o momento não mostrou bons resultados nem é indicado para cirurgias de membro inferior. Tão importante quanto entender as indicações do TAP e do bloqueio do quadrado lombar seria entender as limitações de cada um deles. Sabemos que o TAP tem resultados muito variáveis de paciente para paciente; algumas vezes o bloqueio não consegue contemplar nervos lombares; necessita ser realizado bilateral para incisões em linha mediana e não alcança níveis mais altos para analgesia de abdome superior. Bloqueios para cirurgia de mama A dor pós-operatória de cirurgia de mama pode ser um problema com várias causas. É motivo constante de ansiedade para a paciente, a qual já está sendo submetida Uso de Ultrassonografia no Tratamento da Dor Pós-Operatória | 43 a uma cirurgia oncológica complexa com diversos fatores psicológicos envolvidos. Diante desses fatos, o adequado controle de dor é crucial para as pacientes. Os bloqueios guiados por USG, especificamente o bloqueio do plano serrátil anterior – PECs I e II foram descritos para essas cirurgias –, são excelentes opções terapêuticas, porém com a limitação de promover analgesia da parede torácica anterolateral e axila e não cobrindo totalmente a área posterior24. O papel do bloqueio paravertebral (BPVT) para cirurgia de mama é bem estabelecido. A realização do BPVT guiado por ultrassom necessita de treinamento adequado e maior proficiência na realização do procedimento, visto que potenciais complicações da técnica podem ser graves, em razão da sua localização perto de estruturas nobres e grande vascularização da região. Na cirurgia oncológica mamária o BPVT também promove excelente analgesia com menores efeitos colaterais além de possibilitar alta mais precoce. Aparentemente, benefícios no longo prazo como a diminuição da recidiva tumoral e da síndrome Dolorosa Pós-Mastectomia também podem ser associados a esta técnica25. Esses potenciais benefícios no longo prazo parecem estar relacionados com o denso bloqueio da aferência sensitiva ao bloquear as principais estruturas envolvidas nas vias de condução e modulação da dor (a raiz nervosa com o gânglio da raiz dorsal e a cadeia simpática e seus ramos comunicantes)26. Com a diminuição do estresse pós-operatório e seus hormônios (cortisol, adrenalina), é provável que uma imunomodulação favorável melhore o prognóstico oncológico27. Importante lembrar que a analgesia dos músculos peitorais não é contemplada por esse bloqueio. Os músculos peitorais maior e menor são inervados por ramos dos nervos peitoral lateral e peitoral medial, ambos originados no plexo braquial. A analgesia dessa musculatura é importante no uso de expansores e próteses transmusculares. O PECs I consegue exatamente bloquear esses ramos. Recentemente foi publicada uma nova abordagem para cirurgias de mama que tem mostrado resultados animadores no nosso serviço, pela facilidade de realização e maior segurança, além de cobertura analgésica da área posterior do tórax. Trata-se do bloqueio do plano do eretor espinhal, já discutido anteriormente, um bloqueio com excelentes resultados tanto como dose única quanto como analgesia contínua por cateter. Concluímos que houve aumento importante das possibilidades de intervenção para melhor controle de dor pós-operatória com o advento do ultrassom. A utilização de cateteres de nervo periférico aumenta consideravelmente a duração da analgesia, possibilita melhor reabilitação, muda desfechos e melhora os resultados no longo prazo. Podemos dizer que o maior impacto da ultrassonografia para anestesia regional foi no aprimoramento de bloqueios parietais, interfaciais. A visualização ideal das estruturas anatômicas depende de uma variedade de fatores, incluindo a experiência do operador e o conhecimento de anatomia. Referências 1. Hartmann FV, Novaes MR, Carvalho MR. Bloqueio do nervo femoral versus fentanil por via venosa em pacientes adultos com fraturas de quadril – revisão sistemática. Rev Bras Anestesiol, 2017; 67:67-71 44 | Dor e Cuidados Paliativos 2. Ding DY, Mahure SA, Mollon B et al. Comparison of general versus isolated regional anesthesia in total shoulder arthroplasty: a retrospective propensity-matched cohort analysis. J Orthop, 2017;14:417-21. 3. Wedel DJ. Regional anesthesia and pain management: reviewing the past decade and predicting the future. Anesth Analg, 2000;90:1244-5. 4. Aguirre J, Del Moral A, Cobo I et al. The role of continuous peripheral nerve blocks. Anesthesiol Res Pract, 2012;2012:560879. 5. Schnabel A, Meyer-Frießem CH, Zahn PK et al. 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Chronic postoperative pain after general anesthesia with or without a single-dose preincisional paravertebral nerve block in radical breast cancer surgery. Rev Esp Anestesiol Reanim, 2011;58:290-4. 26. Richardson J, Jones J, Atkinson R. The effect of thoracic paravertebral blockade on intercostal somatosensory evoked potentials. Anesth Analg, 1998; 87:373-6. 27. Yeager MP, Rosenkranz KM. Cancer recurrence after surgery: a role for regional anesthesia? Reg Anesth Pain Med, 2010;35:483-4. 46 | Dor e Cuidados Paliativos 04 Capítulo Analgesia Pós-Operatória no Paciente com Dor Crônica em Tratamento Durval Campos Kraychete Anita Perpétua Carvalho Rocha de Castro Introdução A dor aguda ou crônica é um problema de saúde mundial, e seu tratamento é um desafio para a sociedade1. A dor aguda está associada a complicações respiratórias, cardiovasculares, gastrointestinais e neuroendócrinas, a alterações da coagulação, do tempo de permanência hospitalar e da performance psíquica dos pacientes. Além disso, a dor aguda é um preditor de dor crônica2. Quanto mais intensa a dor aguda, maior a chance de o paciente desenvolver dor crônica. Isso ocorre porque o controle inadequado da dor aguda está associado a alterações no corno dorsal da medula espinhal, com consequente hipersensibilização central e perpetuação do quadro álgico3. A dor crônica é um problema de saúde comum, no entanto, os estudos epidemiológicos mostraram ampla variação de sua prevalência no mundo. A revisão sistemática sintetizada pela Sociedade Internacional para o Estudo da Dor (IASP)4, que inclui o estudo multinacional conduzido pela Organização Mundial de Saúde5, estima a média ponderada de prevalência de dor crônica em 35,5%, com variação entre 11,5% e 55,2%. Nos Estados Unidos da América, mais de cem milhões de pessoas experimentam dor em algum momento da vida. Outro estudo sugere que cerca de 2 milhões de adultos sofrem de dor neuropática nesse país6. Estudos conduzidos no Brasil, de forma geral, estão associados a condições específicas, que encontraram em São Paulo 29,7% da população idosa com dor crônica7. Em São Luís do Maranhão, 50% das mulheres e 28,36% dos homens são afetados pela dor crônica8 e, em Salvador, um estudo transversal que utilizou uma amostra probabilística da população da cidade revelou a Analgesia Pós-Operatória no Paciente com Dor Crônica em Tratamento | 47 prevalência de 41,4%9. Mesmo considerando a variabilidade das medidas apuradas, é possível entender que o problema constitui uma questão de saúde pública10. A dor crônica é uma das principais razões da busca por serviços de atendimento médico, e pacientes com dor crônica procuram cinco vezes mais os serviços de saúde quando comparados com a população geral. Ao lado disso, um número substancial de pacientes com dor crônica é submetido a procedimentos cirúrgicos e experimenta dor aguda pós-operatória. Desse modo, o manejo da dor pós-operatória apresenta características próprias que devem ser consideradas no momento da escolha da técnica anestésica e analgésica, no intuito de identificar a estratégia mais adequada11. Os objetivos principais do tratamento da dor pós-operatória são reduzir as complicações orgânicas, evitar a sensibilização da medula espinhal, diminuir a incidência de síndromes dolorosas crônicas, minimizar o tempo de permanência hospitalar e aumentar o grau de satisfação do paciente. Para isso é importante ouvir a queixa do sujeito, compreender o contexto no qual o indivíduo está inserido e suas doenças associadas, acatar que o exame físico é fundamental para esclarecer a etiologia da persistência da dor aguda, documentar o estado da dor em intervalos regulares e acompanhar a evolução do tratamento12. Uso de Opioides Existe uma barreira à prescrição de opioides relacionada com conceitos incorretos de hiperalgesia induzida por esses agentes, recomendações não baseadas em evidências científicas, potencial de efeitos adversos, incluindo sobredose, desenvolvimento de tolerância, adição, dependência e abuso (Tabela 1)13. Trabalho recente demonstrou que a prevalência de dependência pode variar de 0 a 31% (média de 4,5%)14. Por outro lado, a verdadeira prevalência de dependência por causa do emprego de opioide não é conhecida, mas parece maior que a esperada e pode variar de 0 a 50%15,16. Dependência física ocorre após a utilização crônica de determinado fármaco e manifesta-se por sintomas de abstinência quando da suspensão abrupta, rápida redução da dose, diminuição dos níveis sanguíneos ou administração de um antagonista do fármaco em questão17. O desenvolvimento de síndrome de abstinência não necessariamente indica a utilização dessa substância de forma abusiva. Opioides, anticonvulsivantes, benzodiazepínicos e antidepressivos, quando consumidos por um período prolongado, produzem dependência física. Acredita-se que o uso de morfina em dose igual ou superior a 30 mg/dia por um período de duas a quatro semanas represente um fator de risco para o desenvolvimento de síndrome de abstinência18. É essencial agir de forma preventiva diante da possibilidade de desenvolvimento de síndrome de abstinência, que é caracterizada por ansiedade, insônia, irritabilidade, agitação, náusea, vômito, diaforese, diarreia, cólica abdominal, crise convulsiva, taquicardia, hipertensão e até mesmo morte. Tolerância é definida como a situação na qual a exposição crônica a determinada substância resulta na redução de seu efeito e, portanto, na necessidade de aumentar sua dosagem com o intuito de obter o mesmo resultado19. Os mecanismos responsáveis pelo fenômeno de tolerância são múltiplos e desenvolvem-se em diferentes níveis 48 | Dor e Cuidados Paliativos do organismo. Por definição, tolerância é um fenômeno farmacológico. Após exposição aos opioides, os receptores podem se tornar dessensibilizados ou sofrer endocitose, com sua consequente downregulation, evento conhecido como internalização de receptores. Outra teoria aventada é que essa dessensibilização seja decorrente do desacoplamento do receptor opioide da proteína G inibitória, a qual exerce o papel de segundo mensageiro na cascata responsável pelo efeito final dos opioides19-21. Em uma situação normal, em nível intracelular, os opioides administrados inibem a adenilato ciclase, o AMPc e as proteínas cinases do tipo A, contribuindo para a fosforilação de proteínas intracelulares. Na presença de tolerância, os níveis de AMPc retornam aos valores basais22. Finalmente, um aumento na sensibilidade dos receptores NMDA também pode estar envolvido. De fato, o uso de antagonistas dos receptores NMDA, como a cetamina, inibe o desenvolvimento de tolerância em modelos animais. Indivíduos portadores de tolerância apresentam um desvio da curva dose-resposta do fármaco para a direita23. Tabela 1 – Conceitos utilizados na prática clínica Estado de adaptação no qual a exposição a uma droga induz a alterações que resultam na redução do efeito de um ou mais opioides ao longo do tempo. Estado de adaptação caracterizada por síndrome de abstinência Dependência que pode ser resultado de retirada abrupta, rápida redução da física dose ou da concentração sanguínea de um fármaco ou da administração de antagonista específico. Doença neurobiológica crônica e primária, cujo desenvolvimento e manifestação estão associados a componentes genéticos, psicosAdição sociais e ambientais. É caracterizada por comportamentos que incluem falta de controle sobre o uso da droga, uso compulsivo, fissura e uso contínuo, a despeito do mal que a droga produz. Comportamento Comportamento além dos limites acordados no plano de trataaberrante mento entre o médico e o paciente. Uso de medicação sem indicação médica ou por outras razões que as prescritas. Também é o emprego intencional ou não de subsMau uso tâncias de modo incompatível com as recomendações médicas. Pode haver alterações de doses ou quebra de medicamentos com consequências prejudiciais ao indivíduo. É o mau uso com consequências, para modificar ou controlar o comportamento ou o estado mental de maneira ilegal ou prejudiAbuso cial para si ou para outros. Isso inclui acidentes, insultos, problemas legais, comportamento sexual que aumente o risco de adquirir doenças sexualmente transmissíveis. A transferência intencional de substâncias de uma distribuição e dispensa legítima para canais ilegais ou a obtenção de drogas por Diversão métodos ilegais. Tolerância Analgesia Pós-Operatória no Paciente com Dor Crônica em Tratamento | 49 Vários estudos demonstraram que os pacientes usuários crônicos de opioides apresentam elevado nível de dor pós-operatória e maior necessidade de analgésicos quando comparados com outros pacientes que não vivem essa realidade. Também, pacientes com câncer em tratamento com opioide necessitaram de três vezes mais morfina peridural e quatro vezes mais morfina intravenosa quando comparados com pacientes que nunca utilizaram opioides24 . Outros autores, entretanto, constataram o aumento da necessidade de opioide em cinco vezes25 . A identificação precoce dos pacientes tolerantes aos opioides é essencial no processo de tratamento da dor aguda pós-operatória, uma vez que implica a obrigatoriedade de otimização da dose dos analgésicos. Paradoxalmente, a exposição crônica aos opioides pode causar hiperalgesia em alguns pacientes, que é caracterizada pela resposta exagerada a estímulos naturalmente dolorosos. Esse fenômeno denomina-se HIO. A fisiopatologia da HIO ainda é pobremente compreendida, entretanto, parece ser multifatorial. Observa-se que, após a ativação do receptor opioide, há alteração da sinalização intracelular26 e presença de resposta dolorosa a estímulos naturalmente não nociceptivos. Na HIO, observa-se o deslocamento da curva dose-resposta para baixo27. Clinicamente, a HIO associa-se à exacerbação de dor preexistente, não responsiva ao aumento da dose de opioide. Por outro lado, verifica-se que a redução progressiva da dose de opioide implica um melhor controle da dor. Outras estratégias propostas são a utilização concomitante de antagonistas dos receptores NMDA, de analgésicos anti-inflamatórios e de agonistas-α2. Nos casos refratários, propõem-se a rotação do opioide28 e até mesmo a utilização de antagonistas opioides em pequenas dosagens. Abordagem da Dor O alívio da dor aguda pós-operatória (DAPO) é primariamente uma atribuição da equipe de anestesiologia. Entretanto, o manejo do paciente portador de dor crônica no contexto da DAPO demanda atenção especial e multiprofissional.29 Frequentemente, esses pacientes apresentam alteração psíquica – depressão e ansiedade, doenças que tornam a condução do tratamento mais difícil. Os pacientes com dor crônica normalmente fazem uso de vários fármacos, o que facilita o desenvolvimento de interações medicamentosas. Medicações como antidepressivos, anticonvulsivantes, relaxantes musculares, anestésicos locais, antagonistas dos receptores N-metil-D-aspartato (NMDA), anti-inflamatórios (AINE) e opioides podem alterar a farmacocinética e farmacodinâmica de seus pares, aumentando ou reduzindo a concentração sérica do agente, de modo a influenciar o efeito desejado. As implicações clínicas dessas interações parecem não ter impacto significativo30. Antidepressivos são frequentemente utilizados para o tratamento de dor crônica de diferentes etiologias31 e são classificados de acordo com sua estrutura química e/ou seu mecanismo de ação. Os grupos de antidepressivos mais frequentemente utilizados são os antidepressivos tricíclicos, os inibidores seletivos da recaptação da serotonina e os inibidores da recaptação da serotonina e noradrenalina. Acredita-se que, em adição à inibição da recaptação da serotonina e da noradrenalina, os antidepressivos tricíclicos atuam nos canais de sódio localizados no sistema nervoso periférico e têm 50 | Dor e Cuidados Paliativos ação antagônica sobre os receptores NMDA. Esses mecanismos de ação contribuem para inibir a sensibilização central, a qual tem um papel importante na fisiopatologia da dor aguda pós-operatória32. Em 1970, foram relatados casos de arritmia perioperatória em pacientes que faziam uso de antidepressivos tricíclicos. Em função disso foi recomendado que eles fossem descontinuados 72 horas antes da cirurgia. Mais recentemente foi demonstrado que a incidência de arritmia e hipotensão no período perioperatório é baixa nos usuários crônicos de antidepressivos tricíclicos quando comparados com a população geral e que essa incidência independe da continuação ou não do tratamento. Em contrapartida, a interrupção do uso do antidepressivo está associada a maior incidência de delírio, confusão e sintomas depressivos33, o que contraindica sua suspensão no período perioperatório. Anticonvulsivantes gabapentinoides representam fármacos de primeira linha para o tratamento da dor neuropática e são frequentemente prescritos para os indivíduos portadores de dor crônica, uma vez que estão associados à pequena incidência de interação medicamentosa e de efeitos colaterais. Os representantes desse grupo são a gabapentina e a pregabalina. A gabapentina possui uma estrutura análoga à do ácido gama-aminobutírico e é bastante semelhante à pregabalina. Ambas apresentam como local de ação a subunidade α2δ-1 dos canais de cálcio voltagem-dependentes presentes nos neurônios do corno dorsal da medula espinhal, com consequente inibição do influxo de cálcio e redução da liberação de neurotransmissores excitatórios34. Os gabapentinoides apresentam ação analgésica e têm sido considerados por muitos como uma estratégia para a prevenção e o tratamento da dor aguda pós-operatória35,36. Topiramato, carbamazepina, oxicarbazepina e lamotrigina são utilizados em indivíduos portadores de cefaleia crônica, neuralgia do trigêmeo e, com menor frequência, no tratamento de dor neuropática de diferentes etiologias. Nenhum anticonvulsivante deve ser descontinuado abruptamente no período perioperatório, pois a interrupção do tratamento está associada à hiperexcitabilidade neuronal e dor de rebote. Dano tissular e/ou inflamação representam mecanismos de dor pós-operatória, que caracteristicamente é classificada como predominantemente nociceptiva. Fármacos anti-inflamatórios e analgésicos comuns têm sido propostos como analgésicos no tratamento dos pacientes portadores de dor leve, com bons resultados. Entretanto, não são efetivos isoladamente no tratamento da dor de moderada a forte intensidade. Estudos realizados com esses pacientes sugerem que os AINEs sejam associados aos opioides. O uso de AINEs resulta na redução do requerimento de opioides, com consequente diminuição de seus efeitos deletérios, como náusea, vômito e sedação. Diferente dos opioides, os AINEs não induzem dependência, tolerância ou hiperalgesia, entretanto, não são isentos de efeitos colaterais. É importante lembrar que os AINEs podem causar sérios danos renais e gastrointestinais e alterações da coagulação. Além disso, alguns representantes desse grupo estão associados ao risco aumentado de acidente vascular cerebral e infarto agudo do miocárdio. Os AINEs são recomendados apenas como adjuvantes para ser administrados por curto período de tempo37. Os pacientes com dor crônica frequentemente apresentam maior risco para o desenvolvimento de dor aguda pós-operatória de difícil controle. Dessa forma, são Analgesia Pós-Operatória no Paciente com Dor Crônica em Tratamento | 51 necessários: (a) o ajuste ou a continuação de medicações que, ao serem suspensas abruptamente, possam causar síndrome de abstinência; (b) o tratamento e a redução da ansiedade; (c) o uso de pré-medicações como parte de um programa de manuseio multimodal da dor e (d) a educação do paciente e da família, incluindo técnicas comportamentais de controle da dor. O conceito de analgesia multimodal foi desenvolvido em torno do tratamento da dor no pós-operatório. Essa técnica considera o emprego da associação de substâncias que ajam em diferentes locais da transmissão dolorosa no sistema nervoso periférico e central, de forma a proporcionar analgesia de boa qualidade e evitar efeitos colaterais. Isso por conta da redução da dose individual dos fármacos por efeito aditivo ou sinérgico38. Diferentes estratégias encontram-se disponíveis para o tratamento da dor pós-operatória e incluem a administração de analgésicos sistêmicos; analgesia neuroaxial com opioide e analgesia regional, representada pelo bloqueio dos nervos periféricos, como o bloqueio do plexo braquial; bloqueio dos nervos intercostais e infiltração da pele com anestésico local. Os anestésicos locais por via sistêmica tendem a acelerar o peristaltismo e melhorar a perfusão da mucosa intestinal, reduzir a adesão plaquetária, melhorar a microcirculação e diminuir a incidência de trombose venosa profunda. Dessa forma, eles reduzem a necessidade de uso de opioides por via espinhal ou sistêmica e de AINEs já são bem indicados no intraoperatório de cirurgias abdominais37. Analgesia Pós-operatória por Via Sistêmica em Pacientes Portadores de Dor Crônica O planejamento da analgesia pós-operatória em indivíduos portadores de dor crônica usuários de opioides, por meio da administração de analgésicos sistêmicos, implica a necessidade do conhecimento da conversão dos opioides para evitar o desenvolvimento da síndrome de abstinência (Tabela 2)39. Tabela 2 – Doses equianalgésicas de opioides orais e parenterais Opioide Dose parenteral Dose oral Morfina 10 mg 30 mg Codeína 100 mg 200 mg Oxicodona ND 15 mg Hidromorfona 2 mg 6 mg Metadona 1 mg 2 mg -1 = morfina 50 mg.24h Fentanil 2,5 mcg.h 24h Meperidina 75 mg 300 mg ND – não disponível. Pacientes em uso de metadona, para o tratamento de dor ou de adição, devem receber a dose usual desse agente, inclusive na manhã do dia da cirurgia, no intuito de evitar flutuações desnecessárias na concentração do fármaco e síndrome de abstinência. Além disso, a descontinuação abrupta da metadona antes da cirurgia está associada a maior dificuldade no controle da dor pós-operatória40. Ao programar a 52 | Dor e Cuidados Paliativos analgesia pós-operatória em indivíduos que serão submetidos a jejum prolongado é importante a conversão da metadona para outro opioide em dose equianalgésica. Preferencialmente, essa conversão deve ser orientada por um especialista, uma vez que a metadona apresenta comportamento de acúmulo e meia-vida prolongada. Apesar de haver uma equianalgesia padrão entre a morfina e a metadona, sabe-se que, à medida que a dose de morfina aumenta, a correlação de conversão para a metadona diminui significativamente (Tabela 3)41. Tabela 3 – Conversão de morfina para metadona Dose diária de morfina oral Correlação de conversão para (equivalente) metadona 30 a 90 mg 4:1 91 a 300 mg 8:1 301 a 600 mg 10:1 601 a 800 mg 12:1 801 a 1.000 mg 15:1 > 1.000 mg 20:1 Em relação à adição a opioides, analgésicos comuns, anti-inflamatórios, cetamina e agonistas-α2 devem ser lembrados como parte de um esquema de analgesia multimodal. A cetamina na dose de 0,15 mg.kg-1, seguida de infusão contínua intraoperatória de 5 mcg.kg-1.min-1, está associada a menor consumo de opioide no período perioperatório, menores escores de dor e prolongamento do tempo necessário para a primeira complementação de analgésicos42. Quando a analgesia controlada pelo paciente é a técnica de escolha, deve-se considerar o esquema analgésico de uso crônico e fazer a conversão conforme a dose equianalgésica. Nos pacientes em uso de metadona, recomenda-se que seja feita a conversão para morfina parenteral e iniciada uma infusão basal equivalente a 50% do valor obtido. Bolus devem ser disponibilizados em doses 50% maiores do que o utilizado em pacientes que nunca utilizaram opioide. É importante lembrar que, independentemente da história do paciente, este deve receber opioides em doses que realmente sejam efetivas. Analgesia inadequada está associada não apenas à dor, mas também à ansiedade e ao comportamento de busca43, o que muitas vezes é confundido com vício. Anestesia Regional em Pacientes Usuários Crônicos de Opioides A anestesia regional apresenta particularidades que a tornam interessante para os pacientes portadores de dor crônica e que necessitam fazer uso de opioides, uma vez que permite um bom controle da dor com menor possibilidade de interação medicamentosa. Entretanto, é importante lembrar que esses pacientes são suscetíveis ao desenvolvimento de síndrome de abstinência. Para evitá-la, deve-se manter 50% da dosagem diária do opioide administrada por via oral ou parenteral. Diferentes opioides podem ser utilizados no neuroeixo. Estudos que compararam a analgesia proporcionada pela morfina com a observada com o fentanil ou o sufentanil, em pacientes usuários crônicos de opioides submetidos a procedimentos cirúrgicos sob anestesia peridural, demonstraram que os opioides lipossolúveis são Analgesia Pós-Operatória no Paciente com Dor Crônica em Tratamento | 53 superiores aos hidrossolúveis nesse contexto44,45. Acredita-se que a maior potência analgésica do fentanil e do sufentanil, quando comparada com a da morfina, possa justificar esses resultados. Conclusão O tratamento adequado da dor aguda pós-operatória deve ser uma preocupação da equipe de saúde em qualquer contexto. O paciente com dor crônica faz uso de diferentes medicações, as quais devem ser identificadas e consideradas no momento do planejamento da analgesia. A analgesia sistêmica e regional tem sido recomendada, principalmente como parte de uma abordagem multimodal e multiprofissional. Referências 1. Gallagher RM. Chronic pain: a public health problem? Clin J Pain. 1998; 14:277-9. 2. Baratta JL, Schwenk ES, Viscusi ER. Clinical consequences of inadequate pain relief: barriers to optimal pain management. Plast. Reconstr Surg. 2014; 134:S15-S21. 3. Dubner R. Pain and hyperalgesia following tissue injury: new mechanisms and new treatments. Pain, 1991; 44:213-4. 4. Harstall C, Ospina, M. How prevalent is chronic pain. Pain Clin Updates, Seattle 2003; 11 (2):1-4. 5. Gureje O, Von Korff M, Simon GE et al. Persistent pain and well-being: a World Health Organization Study in Primary Care. JAMA, 1998; 8;280:147-51. 6. Foley KM. Opioids and chronic neuropathic pain. N Engl J Med, 2003; 348:1279-81. 7. Dellaroza MS, Pimenta CA, Duarte YA et al. 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Anesthesiology, 1994; 80:303-9. 56 | Dor e Cuidados Paliativos 05 Capítulo Dor Crônica Pós-Operatória Gustavo Rodrigues Costa Lages Érica Carla Lage de Oliveira Joana Angélica Vaz de Melo Introdução A dor crônica pós-operatória (DCPO) é considerada uma prioridade em saúde. Sua incidência é alta, variando de 10% a 50%1,2. Aproximadamente 10% a 20% dos pacientes cirúrgicos intercorrem com DCPO moderada a intensa 12 meses após o procedimento3, e seu tratamento, não raramente, é difícil e dispendioso, com custos associados ao aumento do uso do serviço de saúde, bem como à redução da qualidade de vida e da produtividade econômica. O número de procedimentos cirúrgicos realizados anualmente é crescente e potencialmente enorme e o contingente de pacientes referenciados ao médico especialista em dor devido à DCPO segue essa tendência4. Por definição, DCPO é aquela que persiste por mais de dois meses após uma cirurgia e não estava presente antes do procedimento cirúrgico, que tem características diferentes ou com aumento de intensidade comparada com a dor pré-operatória. É preciso que a dor esteja localizada no sítio cirúrgico ou em área referida. Considerado isso e excluídas outras causas para a dor sentida (por exemplo, recidiva ou progressão de doença; infecciosa), o diagnóstico de DCPO pode ser firmado5,6. Etiologia Os mecanismos da DCPO são complexos e ainda malcompreendidos, mas envolvem fatores biopsicosociais7. Diferentes mecanismos podem ser responsáveis por distintos quadros dolorosos, mesmo após o mesmo tipo de cirurgia. A DCPO pode ser expressa como uma combinação de diferentes tipos clínicos de dor, como neuropática, nociceptiva, referida, visceral ou mista. A mais comumente manifestada é a Dor Crônica Pós-Operatória | 57 dor neuropática, resultado de lesão do sistema nervoso. Fatores neuropáticos ocorrem em aproximadamente 30% dos pacientes com DCPO e a prevalência varia conforme o tipo de cirurgia; por exemplo: maior em toracotomia ou mastectomia, menor após artroplastias de joelho ou quadril. A dor neuropática precoce pode predizer DCPO neuropática. A cirurgia deve ser encarada como uma lesão, na maioria dos casos, realizada com indicação adequada e visando ao bem do paciente, mas, ainda assim, uma lesão5. Considerando a lesão inicial como a responsável por iniciar as mudanças no sistema nervoso, é provável que cirurgias subsequentes possam piorar a dor, pelo mecanismo de sensibilização central. O processo de somação temporal do estímulo doloroso (Wind-up) e a deficiência no sistema inibitório descendente, modulatório da dor, são importantes na fisiopatologia2,8. Fatores de risco e prevenção São apresentados na Tabela 1. Tabela 1 – Fatores de risco para DCPO correlacionados com o período Pré-operatórios Fatores de risco para DCPO Intraoperatórios 1. Abordagem cirúrgica com 1. Dor moderada/intensa, risco de lesão nervosa com duração > 1 mês 2. Reoperação 3. Vulnerabilidade psíquica (p. ex.: catastrofização) 4. Ansiedade pré-operatória 5. Sexo feminino 6. Idade mais jovem 7. Pior condição econômica 8. Predisposição genética 9. Controle ineficiente da inibição de estímulos nóxicos Pós-operatórios 1. Dor aguda moderada/intensa 2. Radioterapia sobreposta à área cirúrgica 3. Quimioterapia neurotóxica 4. Vulnerabilidade psicológica (p. ex.: neuroticismo) 5. Depressão 6. Ansiedade (Adapado de Schug SA, Palmer GM, Scott DA, Halliwell R, Trinca J. Acute Pain Management: Scientific Evidence. 4th ed. Melbourne: ANZCA & FPM, 20159) Fatores clínicos predizem aproximadamente 70% do risco para a DCPO: o tipo de cirurgia; a idade (pacientes mais jovens têm maior risco); a saúde física e mental; dor pré-operatória (no sítio cirúrgico ou em outros locais); o uso de analgésicos no pré-operatório; a intensidade da dor aguda pós-operatória (PO); medo da cirurgia; falta de otimismo; baixa qualidade de vida pré-operatória3; ansiedade e distúrbios do sono (incluindo os casos em que estejam controlados à custa de medicamentos)10. O uso de opioides no pré-operatório aumenta o risco relativo de DCPO de 2,0 (IC 95%, 1,2 a 3,3)11. O tipo de cirurgia influencia tanto a incidência quanto a intensidade da DCPO. Nos Estados Unidos, a incidência de DCPO é de 20% a 50% em casos de mastectomias, 6% em cesarianas, 50% a 85% em amputações, 30% a 55% em cirurgias cardíacas, 5% a 35% em hernioplastias, 5% a 50% em colecistectomias, 12% em artroplastias totais de quadril e 5% a 65% em toracotomias5. Procedimentos laparoscópicos e abordagens minimamente invasivas podem estar associados à incidência semelhante ou levemen58 | Dor e Cuidados Paliativos te menor de DCPO, apesar da expectativa de o fato de não haver retração das costelas em cirurgias torácicas videoassistidas e menor risco de lesão de nervos intercostais. A herniorrafia inguinal por vídeo parece reduzir o risco de DCPO. O tempo cirúrgico (< 3 horas) e a experiência do cirurgião parecem ter importância. Assim, mastologistas experientes conseguem preservar mais o nervo intercostobraquial durante mastectomias. Ocorrem também diferenças na intensidade relatada da DCPO, a depender do tipo de cirurgia, por exemplo. Nas artroplastias, a dor é maior que nas cirurgias ginecológicas e viscerais5,12. A suscetibilidade genética para o desenvolvimento de DCPO também é alvo de estudos, mas ainda com resultados imprecisos7. Polimorfismo em nucleotídeo do gene do receptor μ-opioide (OPRM1) foi associado a maior incidência de dor três meses após prostatectomia e histerectomia. O gene mais bem estudado relacionado com a dor é o catecol-O-metil-transferase (COMT), um candidato forte a ter impacto na dor pós-operatória. Determinados genótipos da COMT podem relacionar maior risco de DCPO, já demonstrado em estudo pós-mastectomia. Fatores genéticos relacionados com a codificação de moléculas, como as interleucinas (pós-mastectomia), e de canais de sódio específicos (SCN9A) podem ter influência12. A dor pós-operatória é um importante determinante no desenvolvimento de DCPO, particularmente a duração da dor de alta intensidade, ou seja, o tempo com dor não aliviada em vez de um único pico de dor forte5. Medicamentos que agem no sistema nervoso central (SNC) inibindo a liberação de neurotransmissores ou bloqueando os receptores NMDA (drogas anti-hiperalgésicas), como a cetamina e os gabapentinoides, têm sido avaliados no perioperatório. Essas drogas, além de terem ação para o controle da dor aguda, teriam um impacto contra a cronificação da dor6,13. A cetamina tem ação anti-hiperalgésica pela ativação do sistema inibitório descendente monoaminérgico e pelo antagonismo dos receptores NMDA. A infusão perioperatória de cetamina (em regimes variados próximos a bolus de 0,5 mg/kg seguido de infusão contínua de 0,25 mg/kg/h, estendida do intraoperatório para 6 horas a 48 horas PO)6 tem produzido achados positivos, mas inconsistentes13,14. Os gabapentinoides diminuem a sensibilização central, agindo na subunidade alfa-2-delta do canal de cálcio, induzindo a liberação de neutransmissores15. O uso perioperatório de pregabalina reduz o consumo de morfina, a intensidade da dor nas primeiras 24 horas, PO e o risco de náuseas e vômitos16. Uma primeira metanálise com o uso de pregabalina, em 2012, suportou a ideia de que sua administração perioperatória era efetiva para reduzir a incidência de DCPO17. No ano seguinte, uma revisão da Cochrane introduziu mais dois trabalhos, não endorsando o uso da pregabalina como efetivo para prevenção da DCPO13. Em 2015, uma análise combinada de seis ensaios clínicos observou que os dados eram insuficientes para se fazer qualquer conclusão sobre a eficácia da pregabalina em reduzir a DCPO16. Nenhuma das três metanálises incluiu estudos relevantes não publicados, cujos resultados podem ser encontrados em www.clinicaltrials15. Em 2016, Martinez e cols.15 publicaram uma metanálise com evidências colhidas em trabalhos publicados e não publicados. A dose média foi de 150 mg de pregabalina por dia, iniciado no pré-opeDor Crônica Pós-Operatória | 59 ratório e continuado por um período médio de cinco dias. Não houve diferença entre pregabalina e o grupo controle em DCPO nos meses 3, 6 e 12 PO. As evidências indicam que a eficácia da pregabalina se restringe a procedimentos cirúrgicos associados a mecanismos pró-nociceptivos, como cirurgia de coluna, artroplastia e amputações15. A Sociedade Americana de Dor (APS) recomenda o uso de pregabalina para procedimentos cirúrgicos associados a alto risco de dor18. Entretanto, efeitos adversos são comuns a esse grupo de droga. Revisões sistemáticas prévias relatam aumento de duas a três vezes no risco de sedação, risco 30% maior de tontura e de três a seis vezes de ocorrerem distúrbios visuais15. Estudos recentes vêm criticando os benefícios de incluírem os gabapentinoides em abordagens multimodais da dor e a relação risco-benefício de seus usos. Além disso, a associação de gabapetina com tratamentos multimodais que combinem infiltração intra-articular com analgésicos não opioides para prótese de joelho não parece ser efetivo para aliviar a dor e para reduzir o consumo de morfina, além de ser problemático quanto a efeitos adversos, sonolência e tontura, entre outros19. Com base na relação risco-benefício, os gabapentinoides não devem ser administrados sistematicamente para o controle da dor perioperatória20 e seus usos devem ser abandonados em cirurgias menores. Não foi demonstrado benefício quanto à DCPO e é questionável algum benefício quanto à redução da incidência de dor neuropática crônica pós-operatória (DNCPO). Esse uso preventivo exporia um grande número de pessoas a um risco de efeitos adversos, e o prejuízo relacionado com o tratamento pode superar os benefícios15. Os coxibes reduzem a dor e melhoram a função em pacientes com OA de joelho. Como parte do mecanismo de ação está a interação com mecanismos de sensibilização central, com potencial de redução de DCPO não comprovado21. Uma revisão recente (Kremer et al., Neuroscience, 2016) ressalta que os antidepressivos não se prezam para analgesia aguda, mas requer longo período para tratar a dor neuropática. Teoricamente, eles poderiam melhorar o perfil de modulação da dor em pacientes com dor crônica pré-operatória, como em pacientes com osteoartrite, com um potencial impacto em DCPO, mas nenhum estudo ainda suporta essa hipótese8. A anestesia regional pode reduzir o risco de DCPO em alguns pacientes. A analgesia epidural previne a DCPO após seis meses em 25% dos pacientes submetidos à toracotomia e ao bloqueio paravertebral e em 20% a 25% dos pacientes submetidos à mastectomia para o tratamento de câncer de mama22. Dor crônica pós-mastectomia A síndrome da dor pós-mastectomia (SDPM) é uma síndrome de dor neuropática crônica que pode ocorrer após procedimentos cirúrgicos relacionados com o câncer. As analgesias protetivas, que utilizam medicações sistêmicas (anti-inflamatórios, gabapentina, inibidores do receptor NMDA), e as locorregionais por meio dos bloqueios com anestésicos locais e adjuvantes (infiltração de feridas, bloqueio paravertebral ou peridural...), são recomendadas para alívio da dor perioperatória, mas ainda faltam estudos prospectivos que demonstrem mais claramente seu benefício no controle da 60 | Dor e Cuidados Paliativos SDPM. As variações entre os estudos quanto à aplicação e à duração da analgesia preventiva limitam essa avaliação. O bloqueio do plano serrátil fornece analgesia a todo o hemitórax, e tanto o bloqueio do plano superficial quanto do profundo pode ser útil para analgesia por curtos períodos de tempo no tratamento da SDPM. São necessários mais estudos para analisar seu impacto a longo prazo23. A reabilitação com fisioterapia é benéfica para restaurar a mobilidade articular e para prevenir o encurtamento tendinoso, bem como para o fortalecimento da musculatura do manguito rotador e para a liberação miofascial. Abordagem que envolve alongamentos e exercícios ativos foi útil para o alívio da dor nesses pacientes24. Dor crônica pós-toracotomia É condição relativamente comum que aflige até 57% dos pacientes aos três meses e 47% aos seis meses de pós-operatório. Da década de 1990 aos dias atuais, essa incidência não diminuiu, apesar das melhorias no tratamento perioperatório25. A dor pós-toracotomia surge de mecanismos nociceptivos e neuropáticos que podem ser originários de aferentes somáticos e viscerais. A lesão do nervo intercostal é provavelmente o fator de risco mais importante no desenvolvimento da SDPT26. A dor neuropática é um achado em 20% a 35% dos pacientes com dor crônica após uma cirurgia torácica27. Na maioria dos casos, a dor é leve e pode apenas interferir ligeiramente nas atividades diárias. No entanto, em alguns pacientes, a dor pode ser forte e incapacitante. A SDPT tem um grande impacto na função física, respiratória e na qualidade de vida geral dos pacientes28. Idealmente, o manejo de uma futura SDPT inicia-se no perioperatório, ao intervir sobre fatores de risco modificáveis. Alguns estudos mostraram redução na dor crônica após analgesia epidural perioperatória (anestésicos locais aumentam a biodisponibilidade dos opioides no líquido cefalorraquidiano, aumentam sua ligação com os receptores μ e bloqueiam a liberação da substância P no corno dorsal da medula). Exemplo de solução para infusão via epidural contínua é a da bupivacaína a 0,1-0,125% + fentanil 2-5 μg/ml, a 0,1 ml/kg/h26. A analgesia peridural é efetiva para a redução da incidência de SDPT (nível I, Cochrane)9. Dor crônica pós-hernioplastia inguinal (síndrome da dor póshernioplastia inguinal) O reparo da hérnia inguinal é uma das cirurgias mais realizadas em todo o mundo. A síndrome da dor pós-hernioplastia inguinal (SDPHI) é uma complicação relativamente comum, cuja incidência pode chegar a 62,9%29. Um quarto desses pacientes sofre de comprometimento intenso na realização de suas atividades diárias. Em uma pesquisa com 2.500 pacientes suecos, 30% relataram dor na região inguinal dois a três anos após a cirurgia primária e 11% a 14% consideraram que a dor era suficientemente grave para interferir nas atividades rotineiras. Outra pesquisa, com 351 pacientes, identificou a idade como o fator de risco mais forte para Dor Crônica Pós-Operatória | 61 o desenvolvimento de dor persistente pós-hernioplastia inguinal. A incidência de dor persistente foi de 58% para menores de 40 anos e de 14% para maiores de 60 anos. A atividade física e o tipo de emprego foram levantados como possíveis influenciadores nessa diferença31. Os nervos mais frequentemente implicados na etiologia da dor inguinal que persiste após reparo da hérnia incluem os nervos ilioinguinal, ílio-hipogástrico, genitofemorais e cutâneo femoral lateral. Esses nervos originam-se do plexo lombar e proporcionam inervação sensorial cutânea nas regiões da virilha e na região inguinal, do quadril superior e das coxas. O nervo cutâneo femoral lateral é menos comumente afetado, mas pode ser exposto durante a dissecção do ligamento inguinal e das fibras laterais da aponeurose oblíqua interna. Os demais nervos são encontrados durante o reparo da hérnia em cirurgias de vias abertas32. Pela abordagem laparoscópica (possivelmente relacionada com menor risco de DCPO) são encontrados os nervos cutâneo femoral lateral, o ramo femoral do nervo genitofemoral, o ílio-hipogástrico e, potencialmente, o nervo femoral. Durante o reparo laparoscópico, estão em risco o nervo ilioinguinal (lateral ao anel inguinal interno) e o nervo genitofemoral (medial ao anel). O nervo ílio-hipogástrico é vulnerável a lesões durante a fixação da malha pela via laparoscópica. Menos comumente, os nervos cutâneo femoral lateral e femoral são afetados32. A frequência de DCPO pode ser maior após o reparo da hérnia por via aberta (abordagem anterior), em comparação com o reparo da hérnia por via laparoscópica (ou seja, abordagem posterior)33. A resposta a um bloqueio de nervo em pacientes com neuralgia pós-herniorrafia, mesmo que passageira, indica que a dor é provavelmente de origem neuropática (bloqueio teste positivo). E havendo resposta analgésica efêmera, mesmo após bloqueios repetidos, pode-se cogitar a realização de neuroablação para o alívio permanente da dor. Caso ainda seja insuficiente, outros procedimentos, como neurectomia ou neurólise, podem ser tentados. A neurectomia tripla (ilioinguinal, ílio-hipogástrico e genitofemoral) alivia permanentemente a dor na maioria dos pacientes (até 95%), mas com perda de sensação inguinal. Dor crônica pós-artroplastia (prótese) total de quadril (PTQ) e joelho (PTJ) Embora a maioria dos pacientes tenha alívio da dor após prótese articular, 20% dos pacientes pós-PTJ e 10% pós-PTQ desenvolvem DCPO. Inflamação e estimulação prolongadas dos nociceptores podem resultar em sensibilização primária, podendo levar, eventualmente, à sensibilização de todo o SNC (sensibilização central), que se traduz em hipersensibilidade difusa. Pacientes com dor intensa pré-operatória têm maior risco de DCPO, e os pacientes com dor moderada a intensa na primeira semana do pós-operatório apresentam risco de 3 a 10 vezes de DCPO. Também apresentam risco aumentado aqueles que apresentam múltiplas articulações acometidas pela osteoartrite (OA)8. Um subgrupo específico de pacientes com OA caracterizado por dor intensa, mas baixa gravidade radiológica, parece ser altamente sensível à dor. A identificação desses pacientes e a formulação de um plano de cuidados perioperatórios especial são importante. 62 | Dor e Cuidados Paliativos Tratamento Uma intervenção multidimensional e multiprofissional é mais adequada e envolve terapias comportamentais; reabilitação; bloqueios anestésicos e fármacos (anti-inflamatórios, antidepressivos, gabapentinoides, esquemas de infusão de cetamina e de anestésicos locais e opioides, estes, se necessário, por curto período), com o objetivo de reduzir a sensibilização central. Um tratamento não farmacológico, de eficácia variável, deve ser associado: TENS, crioanalgesia... Técnicas neuromodulatórias por radiofrequência e estimulação elétrica medular podem ser necessárias. O tratamento ideal também deve contemplar a educação dos pacientes e da equipe médica sobre a DCPO. Não é incomum que pacientes acreditem que algo deu errado durante a cirurgia ou que houve um erro médico. Pacientes que atribuem culpa por sua dor crônica apresentam mais distúrbios comportamentais e angústia, uma resposta incipiente ao tratamento, e têm expectativas mais baixas a respeito do sucesso de futuras abordagens terapêuticas34. Esclarecimentos a respeito da DCPO ajudariam esses pacientes a enfrentar seu problema. A DCPO, uma vez destrinchada, pode ser multifacetada e um desafio, assim como em outras síndromes dolorosas crônicas. Além disso, as comorbidades típicas de dor crônica quase sempre se desenvolvem, como distúrbio do sono ou alterações de humor5 . Medicamentos de primeira linha para dor neuropática (gabapentinoides, antidepressivos tricíclicos e antidepressivos inibidores seletivos da recaptação da serotonina e noradrenalina) são as drogas de escolha sempre que há um componente neuropático. Nos casos em que acompanham alodinia, lidocaína patch 5% pode ser usada como medicação de segunda linha. A associação de antidepressivo com anticonvulsivante pode ser necessária. O tramadol é um opioide de segunda linha por seus efeitos sobre os neurotransmissores serotonina e noradrenalina. Outros opioides, especialmente os fortes, podem ser usados, preferencialmente por curto intervalo, em casos rebeldes, como medicação de terceira linha35. Conclusão É provável que a prevenção – se realmente possível – requeira uma intervenção prolongada no pós-operatório, com uma combinação de drogas com diferentes mecanismos de ação que deveria ser continuada até que a resposta inflamatória periférica e os estímulos aferentes tenham cessado. Ansiedade e dor pré-operatória devem ser avaliadas e tratadas, embora, muitas vezes, não haja tempo hábil para tal controle. O controle inadequado da dor PO se associa à DCPO, embora a relação causal seja incerta. De toda forma, analgesia de qualidade deve ser oferecida por razões éticas e humanitárias e para redução de morbidades relacionadas com o mal da dor controle PO36. A prevenção permanece como peça-chave para diminuir o fardo da DCPO. Acompanhamento rigoroso no pós-operatório e controle precoce com especialista podem beneficiar pacientes que apresentam os primeiros sinais de dor nova ou recorrente. Um encaminhamento a um programa multidisciplinar de dor deve ser considerado em pacientes selecionados. Dor Crônica Pós-Operatória | 63 Para o futuro, espera-se que possamos identificar geneticamente pacientes com maior risco para desenvolver DCPO e consigamos estudar, no pré-operatório, o estado funcional do sistema nociceptivo, incluindo o sistema modulatório, possibilitando planos de controle de dor perioperatória mais personalizados12. Referências 1. Fletcher D, Stamer UM, Pogatzki-Zahn E et al. Chronic postsurgical pain in Europe: an observational study. 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A presença de dor pós-operatória é um dos principais fatores de risco para o desenvolvimento de dor crônica pós-operatória. A ação da IASP foi difundida em todas as suas regionais no mundo (no Brasil é representada pela Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor – SBED) e tem como objetivos: • disseminar ao redor do mundo informações acerca da dor após cirurgia; • educar pesquisadores em dor e profissionais de saúde que veem em primeira mão pacientes com este tipo de dor quando interagem com os pacientes; • aumentar a consciência da dor pós-operatória entre os administradores públicos, membros da mídia e público em geral; e • encorajar líderes governamentais, organizações de saúde e outros a apoiar políticas que resultem em melhor manejo da dor pós-operatória. Caracteristicamente, a dor pós-operatória tende a se resolver aos poucos após o trauma cirúrgico, sendo mais intensa nas primeiras 48 horas (Figura 1). Alguns pacientes, entretanto, podem ter um curso anormal de dor, apresentando dores localizadas nos dermátomos correspondentes à cirurgia por meses ou anos, ou a dor pode aparecer após longos períodos sem sintomas. A dor pode, inclusive, ser locaDor Crônica Pós-Operatória e Influência da Técnica Anestésica | 67 lizada em dermátomos não relacionados com o local da cirurgia. A presença dessa dor caracteriza a Dor Crônica Pós-operatória (DCPO) ou Dor Persistente Pós-operatória (DPPO), inicialmente definida pela IASP como a dor que se desenvolve depois de uma intervenção cirúrgica cuja duração é de pelo menos dois meses, com outras causas de dor excluídas, em particular a dor por uma condição precedente à cirurgia3. Muitos autores acreditam que a presença de uma característica neuropática (queimação, choque, pontada) deve ser verificada na avaliação clínica, apesar de essa característica não estar presente em todos os pacientes. A DCPO pode ser severa o suficiente para interferir na qualidade de vida, no sono, na produtividade, no relacionamento social, no humor e em outros aspectos da vida de relação, levando ao isolamento do paciente. Figura 1 – Representação esquemática da dor pós-operatória após cirurgia de grande porte em pacientes com analgesia otimizada com opioide parenteral4 A dor pode se exacerbar após a cirurgia, mudar de característica ou de localização. Porém, se a característica da dor não se modificou ou se persistiu e melhorou após a cirurgia, ela não pode ser chamada de DCPO5. Atualmente estudam-se critérios mais amplos para definir a DCPO, visto que é de difícil caracterização, pois não é possível identificar o momento nem a causa da transição, que é multifatorial. A proposta mais recente de definição de DCPO (Tabela 1) seria uma revisão da anterior5 e aponta as seguintes características: Tabela 1 – Critérios propostos para definição de DCPO 1. 2. 3. 4. 5. A dor se desenvolve após um procedimento cirúrgico ou aumenta de intensidade após o procedimento cirúrgico. A dor tem duração de pelo menos três a seis meses e afeta significativamente a qualidade de vida relacionada com a saúde. A dor é tanto uma continuação da dor aguda pós-operatória como pode se desenvolver após um período assintomático. A dor pode ser localizada na área da cirurgia, projetada para o território inervado por um nervo localizado na área da cirurgia, ou referida em um dermátomo (após cirurgia em um tecido somático profundo ou visceral). Outras causas de dor devem ser excluídas, como infecção ou evolução da malignidade em cirurgia oncológica. 68 | Dor e Cuidados Paliativos O estudo da DCPO é importante, pois ela ocorre mesmo em cirurgias menos complexas e mais comuns, como herniorrafias e cesarianas; tem incidência alta, chegando a mais de 50% dos pacientes em alguns tipos de cirurgia, como toracotomias; pode estar associada a outras dores crônicas independentemente da cirurgia, e pode causar incapacidade física, psicológica e social em uma grande proporção de pacientes. Estima-se que mais de 300 milhões de procedimentos cirúrgicos sejam realizados anualmente ao redor do mundo. Destes, 11,8% (IC 9,7% a 13,9%) vão sofrer de DCPO, que pode ser severa em 2,2% dos pacientes, e em 30% (6% a 54%) existem sinais de dor neuropática6. Epidemiologia e fatores de risco A incidência de dor pós-operatória ainda é elevada, especialmente a dor em movimento. Esse quadro exige cada vez mais a atenção do profissional, pois o risco de efeitos adversos, entre eles a dor aguda e a DCPO, é muito grande. Estudos diversos apontam essa alta incidência de dor, como o de Sommer e colaboradores7, que, analisando 1.490 pacientes cirúrgicos e com acompanhamento de analgesia pós-operatória três vezes ao dia, desde a véspera da cirurgia até quarto dia de pós-operatório, encontraram uma incidência de dor moderada ou severa de 41% no D0, 30% no D1 e 19%, 16% e 14% nos D2, D3 e D4, especialmente nos pacientes submetidos a cirurgia de extremidades e de coluna. Os pacientes pediátricos também são afetados pela dor pós-operatória. Um estudo dinamarquês publicado em 20168 questionou 570 pacientes pediátricos sobre a experiência de dor e seu manejo nas últimas 24 horas e mostrou que 37% das crianças referiram dor nas últimas 24 horas, das quais 24% indicaram dor moderada a severa. Quarenta e três por cento gostariam de uma intervenção para aliviar a dor. O procedimento mais comum associado à dor foram procedimentos com agulhas. Uma metanálise recente, que envolveu quatro estudos com 628 participantes em diversos tipos de cirurgias, documentou uma prevalência de DCPO de 20% em 12 meses após a cirurgia9. Uma grande proporção de procedimentos cirúrgicos é realizada em regime ambulatorial ou em internação de curta permanência, quando o paciente fica pouco tempo em observação e o risco de dor após a alta se intensifica, pela falta de tempo em acompanhar o paciente. Isso também acontece em cirurgias com alta incidência de DCPO, como herniorrafias e mastectomias, hoje realizadas em regime de internação curta. O crescimento da incidência de dor causa aumento do número de atendimentos na emergência em decorrência da dor, e, em consequência, aumento do índice de reinternações pelo mesmo diagnóstico, onerando o sistema de saúde. Sabe-se que um dos principais fatores para o desenvolvimento de DCPO é a presença de dor intensa no pós-operatório imediato; logo, é preciso que haja um protocolo mínimo de atenção com o objetivo de: 1. identificar quais pacientes apresentam risco aumentado de dor pós-operatória e DCPO; 2. proporcionar medidas preventivas aos pacientes em risco no intra, per e pós-operatório; e Dor Crônica Pós-Operatória e Influência da Técnica Anestésica | 69 3. antecipar a identificação dos pacientes com quadros álgicos de intensidade ou evolução anormal, para abordagem precoce no sentido de evitar a evolução. O anestesiologista tem um papel especial na identificação dos pacientes em risco de desenvolvimento de DCPO, no uso de técnicas de anestesia e analgesia que promovam proteção contra o desenvolvimento da DCPO e na detecção precoce e no tratamento dos pacientes que vierem a desenvolver a patologia. A IASP avalia que a incidência de DCPO se situa entre 20% e 50%10 após cirurgias maiores e em cerca de 10% dos pacientes submetidos a cirurgias de menor complexidade, como herniorrafias e cesariana. O Colégio Australiano e Neozelandês de Anestesiologia publica regularmente um estudo sobre Evidências em Tratamento da Dor Aguda. Sua última edição11, publicada em 2015, aponta as seguintes incidências de DCPO (Tabela 2): Tabela 2 – Incidência de dor crônica pós-operatória (tradução do autor) Tipo de cirurgia Incidência de dor crônica (%) Amputação Toracotomia Mastectomia Hérnia inguinal By pass coronário Cesariana Artroplastia de quadril Artroplastia de joelho Colecistectomia Vasectomia Cirurgia dentária 30-85 5-65 11-57 5-63 30-50 6-55 27 44 3-50 0-37 5-13 Incidência estimada de dor crônica severa [> 5 em 10/10] (%) 5-10 10 5-10 2-4 5-10 4 6 15 Não estimado Não estimado Não estimado A prevalência da DCPO é maior nas cirurgias nas quais haja lesão de nervos, especialmente quando inevitável, como nas amputações, e, mais ainda, quando derivadas de trauma. Não se sabe quais são os fatores determinantes para a transformação ou evolução da dor aguda em crônica após a cirurgia. Sabe-se, porém, que diversos fatores de risco colaboram para essa transformação (ou evolução). Esses fatores de risco podem estar relacionados com fatores pré-operatórios, intraoperatórios ou pós-operatórios (Tabela 3). Alguns desses fatores estão relacionados com o paciente; outros, com a cirurgia. Em geral, esses fatores de risco não existem isoladamente, ou seja: a associação dos fatores potencializa o risco de desenvolvimento de DCPO. Uma revisão recente sobre os preditores de dor pós-operatória e consumo de analgésicos encontrou que os principais fatores de risco para dor pós-operatória são a dor pré-operatória, ansiedade, idade e o tipo de cirurgia12. Esses fatores também serão determinantes no risco de desenvolvimento de DCPO. A avaliação do DNIC pode servir para determinar os pacientes em risco para o desenvolvimento de DCPO. A presença de estados dolorosos pré-operatórios se associa à maior dor pós-operatória, o que inclui pacientes com fibromialgia, síndrome da bexiga dolorosa, síndrome 70 | Dor e Cuidados Paliativos do intestino irritável, enxaqueca, entre outros. Esses pacientes podem ter predisposição genética ao desenvolvimento de DCPO, como visto em estudos com gêmeos monozigóticos versus dizigóticos, que mostraram um componente hereditário para o risco de desenvolvimento de dor persistente superior a 60%13. Fatores epigenéticos estão sendo vistos como cada vez mais importantes na transição da dor aguda para crônica. Esses fatores podem ser influenciados por aspectos ambientais (toxinas), medicamentosos, nutricionais e estresse psicológico14. Tabela 3 – Fatores de risco para DCPO10,11 Fatores pré-operatórios Fatores intraoperatórios Fatores pós-operatórios Dor de moderada a severa que perdura por mais de um mês Cirurgia de repetição Vulnerabilidade psicológica (por exemplo, catastrofização) Ansiedade pré-operatória Gênero feminino Idade jovem (adultos) Compensação no trabalho Predisposição genética diffuse noxious inhibitory control (DNIC) ineficiente Técnica cirúrgica com risco de lesão nervosa O uso de óxido nitroso deve ser evitado Dor (aguda, moderada a severa) Radioterapia na área Quimioterapia neurotóxica Depressão Vulnerabilidade psicológica Neuroticismo Ansiedade A dor tem de ser pensada em termos de um modelo biopsicossocial, do qual deriva de interações complexas entre variáveis biológicas e psicológicas15. Não é possível ver a dor pós-operatória como um evento distinto de toda a história clínica do paciente. Devemos ser especialmente atentos aos pacientes em regimes medicamentosos complexos (polifarmácia) para tratamentos de distúrbios psicológicos e psiquiátricos, além dos pacientes em uso crônico de medicações analgésicas opioides. Os pacientes usuários crônicos de opioides desenvolvem tolerância e necessitam de doses muito maiores para tratamento da dor pós-operatória, com o risco de sucesso apenas parcial no alivio da dor16. O uso de opioides ainda se relaciona com o desenvolvimento de hiperalgesia induzida por eles, que é um fator que pode colaborar no desenvolvimento da DCPO17. Atualmente, a questão da predisposição genética à dor com possibilidade de interferência tem ganhado muita evidência15. O fator também é importante porque somente alguns pacientes sujeitos às mesmas condições desenvolvem DCPO. As técnicas cirúrgicas com preservação de nervos, as minimamente invasivas e as de menor duração estão associadas ao menor risco de DCPO. A técnica anestésica também exerce influência sobre o risco de desenvolvimento de DCPO, especialmente quando se usa a anestesia regional associada ou não à anestesia geral. Outras abordagens também podem ser feitas no intraoperatório no sentido de reduzir a inflamação sistêmica e o risco de DCPO, entre outros. Este tema será abordado em seguida. Dor Crônica Pós-Operatória e Influência da Técnica Anestésica | 71 Fisiopatologia A fisiopatologia da transformação da dor aguda pós-operatória em dor crônica ou persistente pós-operatória é muito complexa e ainda não totalmente elucidada. A transição decorre de alterações funcionais e neuroplásticas em três processos: sensibilização periférica, sensibilização central e modulação descendente18 (Figura 2). Na periferia, a lesão induz a liberação de mediadores inflamatórios diversos (inflamação neurogênica) – prostaglandinas, citocinas, serotonina, bradicinina, íons H+, entre outros) – que promovem a diminuição do limiar excitatório dos nociceptores (específicos ou polimodais) e causam alodinia (percepção de dor com um estimulo que normalmente não provoca dor) e/ou hiperalgesia (percepção aumentada da dor com um estímulo que normalmente provoca dor). Ocorrem alterações na transdução e na transmissão do impulso nervoso e disparos espontâneos dos nociceptores. Esses fenômenos somados geram a sensibilização (neuroplasticidade) periférica1,18,19. Figura 2 – Locais e mecanismos responsáveis pela dor neuropática Crônica pós-operatória15 - (1) Células de Schwann desnervadas e infiltração de macrófagos distais ao nervo lesado produzem substâncias químicas sistêmicas e locais que sinalizam a dor. (2) Neuroma no local da lesão é a fonte de excitabilidade ectópica espontânea nas fibras sensitivas. (3) Alteração na expressão de genes no gânglio da raiz dorsal alteram a excitabilidade, responsividade, transmissão e sobrevivência dos neurônios sensoriais. (4) O corno dorsal é o local da atividade e da expressão genética alterada, produção da sensibilização central, perda dos interneurônios inibitórios, ativação da micróglia, o que, juntos, amplificam o fluxo sensitivo. (5) Controle descendente do tronco cerebral modula a transmissão na medula espinhal. (6) Sistema límbico e hipotálamo contribuem para alteração do humor, comportamento e reflexos autonômicos. (7) A sensação de dor é gerada no córtex (experiências passadas, influências culturais e expectativas convergem para determinar o que o paciente sente. (8) Genoma do DNA predispõe (ou não) o paciente para dor crônica e afeta sua reação ao tratamento. 72 | Dor e Cuidados Paliativos Neuroplasticidade significa remodelamento da citoarquitetura neuronal, a qual ocorre após início da dor aguda persistente e leva à transição da dor aguda para um estado crônico20. Se o processo doloroso se resolver com a cicatrização normal, a sensibilização e a facilitação da transmissão sináptica para o sistema nervoso central revertem para um padrão de atividade normal20. A persistência da atividade nóxica periférica gera alterações em nível central, em que ocorrem alterações no corno dorsal da medula e centros superiores que causam alteração na densidade dos canais iônicos e na densidade de receptores e neurotransmissores, que levam a um estado de sensibilidade aumentada. Há um aumento especial dos receptores AMPA e NMDA, sensíveis ao glutamato, que estão associados aos fenômenos de wind-up e somação temporal nos neurônios centrais. A micróglia (macrófagos centrais) é ativada na medula espinhal e produzem moléculas que agem nos neurônios do corno dorsal produzindo hipersensibilidade à dor. A micróglia ativada faz up-regulação da COX-2 (ciclo-oxigenase) para produzir prostaglandina E2 e liberação de substâncias neuroativas (interleucina-1, interleucina-6 e TNF-α). Acredita-se que a ativação maciça dos receptores NMDA pós-sinápticos nos interneurônios na medula espinhal é excitotóxica, levando à destruição e desinibição das vias da dor21. A modulação da dor é um processo complexo que ocorre inicialmente no corno dorsal da medula, para onde convergem sinapses excitatórias (glutamato), inibitórias (GABAérgicas) e moduladoras, por meio de interneurônios, células da glia e tratos descendentes inibitórios. Nesta região se iniciam os processos de wind-up e sensibilização central. A dor também sofre modulação supraespinhal em vários centros, como conexões tálamo-corticais, córtex somatossensorial, córtex cingulado anterior, ínsula, córtex motor, córtex pré-frontal dorsolateral, córtex orbitofrontal, amígdala, entre outros (pain matrix)22. Ocorre também ativação dos astrócitos e da micróglia23. A inibição descendente é principalmente noradrenérgica, e a facilitação descendente é principalmente serotoninérgica. Inicialmente se pensou que a DCPO seria primariamente neuropática. Isto nem sempre acontece, pois em alguns pacientes o componente nociceptivo (dor evocada por estímulo) é mais pronunciado que o neuropático (alterações sensitivas), que pode estar inexistente10, sugerindo que os dois componentes podem estar presentes de forma distinta24. A característica neuropática ocorre em aproximadamente 30% dos pacientes com DCPO, dependendo do tipo de instrumento utilizado para avaliação25. Prevenção e tratamento A prevenção do desenvolvimento da DCPO se inicia na identificação dos pacientes com maior risco de desenvolvimento da patologia, observando-se os fatores de risco envolvidos em cada caso particular. Especial atenção deve ser dada aos pacientes com quadros álgicos pré-operatórios, que é o principal fator de risco para desenvolvimento de DCPO, e naqueles usuários crônicos de opioides, pelo risco de hiperalgesia induzida pelos opioides. Identificando-se os pacientes em risco, é possível a adoção precoce de medidas preventivas antes mesmo da cirurgia. Já foram Dor Crônica Pós-Operatória e Influência da Técnica Anestésica | 73 propostos testes para identificar pacientes em risco para dor pós-operatória mais intensa, maior risco de catastrofização e genes associados à dor, porém ainda sem uso clinico definido15. A avaliação pré-anestésica é fundamental para identificação desses pacientes e para traçar estratégias para condução da anestesia e da analgesia pós-operatória. Neste momento podemos identificar não só os fatores de risco, mas também podemos aplicar instrumentos de avaliação da suscetibilidade à dor, como o questionário DN4 de avaliação da dor neuropática26, o Quantitative Sensory Testing (QST)27 ou avaliação da competência do DNIC individual28. Esses testes não estão validados para tal finalidade, porém podem servir como indicadores úteis. Em pacientes de alto risco com dor pré-operatória, a otimização da analgesia é um fator importante, associada a uma abordagem dos aspectos psicossociais, frequentemente associados aos quadros de dor crônica. Em procedimentos com alta incidência de dor pós-operatória e, por conseguinte, de DCPO, a administração de gabapentina ou pregabalina no pré-operatório reduz a dor pós-operatória, o consumo de analgésicos opioides e auxilia na redução da incidência de DCPO. Caso não seja possível o uso dias antes da cirurgia, a administração no pré-operatório imediato, com sua continuação no pós-operatório, é extremamente benéfica ao paciente em risco. Medidas cirúrgicas também são fundamentais. Técnicas que preservam as estruturas nervosas, como as laparoscopias, reduzem a incidência de dor pós-operatória quando comparadas à cirurgia aberta. Nas mastectomias, por exemplo, a preocupação com a preservação do nervo intercostobraquial reduz a incidência de DCPO. Nas toracotomias realizadas por via anterior, a lesão de nervos intercostais é menor, cursando com menor incidência de DCPO. No período peroperatório a anestesia tem papel fundamental na prevenção da dor pós-operatória, especialmente no que tange à prevenção da neuroplasticidade neuronal. Além da prevenção, o tratamento agressivo da dor pós-operatória, com a abordagem preventiva e multimodal da analgesia, é essencial. A neuroplasticidade é induzida por via nervosa e por via humoral. O uso de técnicas anestésicas regionais é capaz de reduzir significativamente o influxo via nervosa ao SNC, desde a infiltração local até os bloqueios centrais29. Esta seria uma medida preventiva fundamental nos casos indicados, desde que utilizada a partir do período intraoperatório e por tempo suficiente correspondente ao período inflamatório máximo no pós-operatório (pelo menos 48 horas). Porém, ainda existem os fatores humorais, que podem ser prevenidos pela adoção de outras medidas farmacológicas18 como: • antidepressivos; • inibidores da COX-2; • opioides; • antagonistas NMDA – cetamina e/ou magnésio; • gabapentoides – gabapentina ou pregabalina; • α2 agonistas – clonidina ou dexmedetomidina; • lidocaína em infusão venosa. O objetivo do uso dessas drogas é proteger contra a hiperalgesia, a modulação da resposta inflamatória decorrente do trauma, além do efeito poupador de opioides. 74 | Dor e Cuidados Paliativos Esse efeito é benéfico tanto na redução da hiperalgesia quanto na facilitação da recuperação do paciente. Os antidepressivos atuam na redução da sensibilização central e na modulação descendente da dor. Atuam também no componente de ansiedade e depressão, presente em 65% dos pacientes com dor crônica18. Apesar do uso consagrado dessas drogas no tratamento de dores crônicas, não existem evidências para seu uso em dor aguda pós-operatória, não obstante seu potencial efeito benéfico30. Recentemente foi publicado um estudo sobre o uso da duloxetina em modelo experimental de dor pós-incisional, que demonstrou alta eficácia contra dor pós-operatória pelo bloqueio tônico e uso-dependente dos canais de sódio31. Os gabapentoides – gabapentina e pregabalina – também atuam na redução da sensibilização central reduzindo a hiperexcitabilidade central bloqueando a subunidade α2-δ do canal de cálcio neuronal no corno dorsal da medula, o que reduz a liberação de neurotransmissores excitatórios como o glutamato, a noradrenalina, o CGRP (calcitonin-gene-related-peptide) e a substância P. Seu uso durante o período operatório melhora a analgesia de opioides. A gabapentina é eficaz na melhoria da dor pós-operatória, mesmo quando administrada em dose única em pacientes já com dor estabelecida32, o que não é consistente em todos os estudos, alguns dos quais não mostram evidência no tratamento da dor pós-operatória33. A mais recente revisão sistemática sobre o uso da gabapentina em dor neuropática34, frequente na DCPO, mostrou sua eficácia para redução da dor em neuralgia pós-herpética e por neuropatia diabética. A vantagem da pregabalina sobre a gabapentina se dá pelo seu melhor perfil farmacocinético. Ela demonstra melhor efeito na redução do consumo de analgésicos e da dor pós-operatória em cirurgias associadas aos mecanismos pró-nociceptivos, porém sem efeito significativo na DCPO demonstrado em alguns estudos35. Uma revisão sistemática recente36 não encontrou nenhuma diferença na DCPO entre a pregabalina e placebo em nenhum momento do estudo (3, 6 e 12 meses). A análise de subgrupos (dose, tipo de administração, tipo de cirurgia e qualidade da publicação) também não revelou diferenças na incidência de DCPO. No entanto, não existe uma consistência na literatura, como esclarece uma revisão de Schmidt et cols. publicada em 201326. Os problemas nas diferenças entre os estudos parecem ser metodológicos e em tamanhos de amostras. A cetamina tem importante papel na prevenção da neuroplasticidade central, ao realizar um bloqueio inespecífico do canal do receptor NMDA (N-metil D-aspartato). Ela também ativa o sistema inibitório descendente e age nos receptores opioides e colinérgicos. O efeito da cetamina também é controverso. Moyse et cols. publicaram uma revisão sistemática em 201737, na qual analisaram o uso da cetamina venosa comparada com a peridural para prevenção da dor pós-toracotomia, uma das cirurgias com maior incidência de DCPO. A análise de 15 estudos mostrou que a maioria avalia a dor aguda, que é reduzida pela droga, mas a evidência para benefícios no longo prazo é limitada, independentemente da via de administração. Os autores citam a heterogeneidade dos estudos como fator principal para a insuficiência da evidência. A revisão de Chaparro et cols.38 demonstrou um pequeno efeito da cetamina na redução da DCPO, efeito que deve ser visto com cuidado, pois pode estar superestimado Dor Crônica Pós-Operatória e Influência da Técnica Anestésica | 75 pelo pequeno tamanho da amostra dos estudos. Outros antagonistas NMDA já foram estudados no tratamento da dor aguda com efeitos positivos, como o sulfato de magnésio39, porém sem estudos aplicáveis no estudo da DCPO. Os anti-inflamatórios agem não só na periferia, modulando a inflamação neurogênica, como também no SNC, especialmente os inibidores da COX-2. Os estudos, porém, não avaliam os efeitos no longo prazo na DCPO. Os corticosteroides também reduzem a dor aguda, embora persista a mesma dúvida acerca dos efeitos na DCPO. Entre os α2 agonistas, a clonidina é a droga mais estudada no tratamento da dor. A clonidina intensifica a modulação descendente da dor, entre outros efeitos. Ela é capaz de reduzir o consumo de analgésicos no pós-operatório40, porém não é relatado efeito definido na prevenção do tratamento da DCPO, apesar de ser uma das opções no tratamento da dor neuropática. Uma das opções mais recentes é a disseminação do uso da lidocaína venosa no peroperatório, com efeitos positivos na redução da dor e consumo de anestésicos e analgésicos durante a cirurgia e com efeito prolongado após o término do uso. Estudos demonstram efeito na redução da DCPO pós-mastectomia41. Tabela 4 – Sumário das medidas preventivas para DCPO Sumário das medidas preventivas · Identificação dos pacientes em risco · Otimização da analgesia pré-operatória · Apoio psicossocial e fisioterápico, quando indicado · Abordagem medicamentosa preventiva · Técnica cirúrgica com preservação de nervos · Uso de anestesia regional, quando indicado · Abordagem anestésica e analgésica preventiva e multimodal · Uso de técnicas poupadoras de opioides · Analgesia pós-operatória agressiva e por tempo adequado · Mobilização precoce do paciente · Detecção precoce dos pacientes desenvolvendo quadros álgicos prolongados ou atípicos e encaminhamento rápido para clínicas especializadas Recentemente foram propostas a criação de clínicas de dor especializadas para pacientes com crônica pós-operatória ou sob risco, objetivando tratamento mais centrado. São braços das clínicas de dor aguda ou de dor crônica42,43. A demora no tratamento adequado desses pacientes colabora para a perpetuação da dor e do afastamento do indivíduo da sua vida social e profissional. É muito importante o manejo adequado e precoce para redução da incapacidade funcional e social. Perspectivas e conclusão Não existe nenhuma medicação nem estudo de medicação para uso especifico em DCPO. As melhores perspectivas estão voltadas para o uso de medicamentos que atuem em processos específicos da reação inflamatória para prevenção da sua 76 | Dor e Cuidados Paliativos ação nos nervos (como o fator neurotrófico derivado de linhagem de células da glia – GNDF, que poderia prevenir alterações transcricionais nos neurônios sensitivos) ou para prevenir ativação da glia, como a minociclina15 e outras substâncias em estudo. O bloqueio de canais iônicos específicos também é estudado, assim como drogas que aumentam a inibição descendente, como o uso de duloxetina. O uso de inibidores do receptor de serotonina (5-HT3) tem sido estudado como medida eficaz para redução do drive facilitatório descendente no corno dorsal da medula20. A anestesia regional prolongada continua a ser fator importante, cujo uso deve ser intensificado e otimizado no pós-operatório, inclusive após a alta hospitalar. Estudos mais aprofundados e com melhores desenhos são necessários para esclarecimento da fisiopatologia, medidas preventivas e tratamento da patologia, tomando como base o fator procedimento especifico e a necessidade de individualização da terapia44. Nesse campo, a questão genética se revela importante, dada a grande variabilidade das respostas individuais. Já se colocou a necessidade de coletar amostras individuais de sangue e estocagem para futuros estudos genéticos24. Em conclusão, a DCPO existe, mas é subestimada. Seu diagnóstico é complexo e deve ser feito precocemente para possibilitar uma intervenção efetiva para prevenir a incapacidade do paciente. Estudos com melhor desenho e com amostra adequada devem ser realizados, especialmente visando a determinação dos fatores que possibilitam a evolução da dor aguda para crônica e sua persistência. Possivelmente a resposta está na elucidação dos fatores genéticos envolvidos na fisiopatologia da dor. Referências 1. International Association for the Study of Pain. IASP taxonomy: pain terms. Disponível em: https:// www.iasp-pain.org/Taxonomy#Pain. 2. International Association for the Study of Pain. 2017 global year against pain after surgery. Disponível em: https://www.iasp-pain.org/GlobalYear?navItemNumber=580. Acesso em: 27 set 2017. 3. WA M, HTO D. Chronic postsurgical pain. In: Crombie IK, Croft PR, Linton SJ et al. (Ed.). Epidemiology of pain. Seattle: IASP Press; 1999. p. 125–42. 4. Brennan TJ. Pathophysiology of postoperative pain. Pain, 2011;152:S33-40. 5. Werner MU, Kongsgaard UE. I. Defining persistent post-surgical pain: is an update required? Br J Anaesth, 2014: 113:1-4. 6. 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No Brasil, um estudo recente demonstrou que a prevalência da dor crônica foi significativamente diferente nas diversas regiões, com 25% na região Centro-Oeste, 32% na região Nordeste, 42% na região Norte, 44% na região Sudeste e 47% na região Sul1,2. A dor crônica é geralmente descrita como uma dor persistente por pelo menos três meses, porém, outros critérios apontam um mínimo de seis meses de dor para considerá-la crônica. Há também critério mais flexível, que a descreve como uma dor que se estende além do período esperado para a cura. O tratamento medicamentoso da dor crônica deve levar em consideração se ela é nociceptiva, neuropática ou mista e também se ela é uma dor oncológica ou não oncológica3. Apesar de, nas últimas décadas, terem ocorrido avanços notáveis no manejo da dor, a dor crônica continua a ser um sério problema, embora a abordagem baseada em mecanismos e evidências tenha melhorado o resultado do tratamento farmacológico de muitos tipos de dor crônica4. Em pacientes com dor crônica de leve intensidade, o tratamento inicial deve ser com monoterapia, porém, muitas vezes, nas doses indicadas, ocorrem efeitos adversos que impedem que seja atingida a dose necessária para obter analgesia adequada. A combinação de dois ou mais fármacos passa a ser a melhor estratégia terapêutica, pois Tratamento Farmacológico da Dor Crônica | 81 os avanços na compreensão da fisiopatologia da dor evidenciaram que há diferentes mecanismos, tanto periféricos quanto centrais, indicando que a farmacoterapia combinada ou multimodal, direcionada a múltiplos mecanismos simultaneamente, pode propiciar melhor eficácia analgésica5,6. A terapia antálgica multimodal, com associação de dois ou mais agentes, é indicada, pois o sinergismo existente entre os fármacos e as técnicas analgésicas permite usar menor quantidade de analgésicos e adjuvantes, minimizando os efeitos adversos e aumentando a atividade analgésica, pois o tratamento medicamentoso da dor crônica pode ser acompanhado de muitos efeitos adversos. A terapia multimodal com associação de fármacos permite o uso de doses menores, diminuindo a incidência de efeitos indesejáveis que diminuem a adesão ao tratamento7. O tratamento farmacológico da dor crônica é cada vez mais caracterizado pela abordagem multimodal, que é mais equilibrada, com uso de doses menores dos analgésicos não opioides paracetamol e dipirona, anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) e anestésicos locais, associados ou não aos opioides e aos adjuvantes, como antagonistas de N-metil-D-aspartato (NMDA), anticonvulsivantes, antidepressivos e neurolépticos, entre outros, por via sistêmica ou local, melhorando o controle da dor e minimizando os efeitos adversos induzidos pelos fármacos7. A orientação terapêutica para facilitar a compreensão e a aplicação das técnicas de avaliação e de tratamento da dor, a implementação da analgesia multimodal e a adoção da escada analgésica, algoritmo extremamente objetivo e de fácil compreensão proposto pela Organização Mundial de Saúde para o tratamento não invasivo da dor oncológica, com algumas adequações, são adequadas como algoritmo para o tratamento da dor crônica não oncológica8. Figura 1 – Escada analgésica As diretrizes disponíveis para o tratamento da dor crônica não são universalmente aceitas, pois, habitualmente, o manejo da dor é orientado pela tradição e experiência pessoal, mesmo porque a dor crônica comumente é associada a outros problemas como depressão, distúrbios do sono e humor e ansiedade4. Outro fator complicador no tratamento farmacológico da dor crônica é que alguns dos fármacos indicados para o controle da dor oncológica têm indicação muito restrita no tratamento da dor não oncológica, como é o caso dos opioides, e ele se aplica em relação ao tratamento de dores não oncológicas, pois fármacos que têm 82 | Dor e Cuidados Paliativos ação efetiva no controle da dor nociceptiva não são eficazes na dor neuropática, como é o caso dos AINEs9-12. O controle da dor crônica pode ser dificultado pela falta de adesão, pelo potencial de abuso ou dependência aos medicamentos usados e pelos efeitos colaterais adversos de fármacos, porém, outros fatores podem influenciar a disposição dos medicamentos, incluindo variação genética, o que pode complicar ainda mais o manejo desses pacientes, pois o metabolismo e as respostas aos medicamentos são afetados por variações genéticas de modo que a resposta terapêutica de alguns indivíduos pode ser alterada para mais ou menos, causando resposta exagerada ou ineficiente, embora a dose administrada esteja coerente com o peso, o sexo e a idade. Estudos genéticos identificaram vários loci em que as alterações polimórficas podem influenciar a farmacodinâmica e a cinética de analgésicos. O atual monitoramento do paciente no gerenciamento de dor é realizado pela resposta clínica, embora possa se basear nos níveis plasmáticos dos fármacos ou de seus metabólitos na urina9,13. O impacto da dor neuropática nas atividades de vida diária é muito variável, assim como a resposta ao tratamento farmacológico, de modo que, às vezes, o objetivo primário do tratamento é tornar a dor tolerável, pois o alívio total raramente é obtido. Os fármacos usados para o alívio da dor neuropática apresentam eficácia moderada, possibilitando a aquisição de 50% de alívio da dor em menos de um terço dos pacientes. Alguns tratamentos apresentam melhores evidências que outros, pois propiciam alívio significativo numa minoria de pacientes, muitas vezes não há como prever qual o fármaco mais eficaz5,14. Analgésicos Não Opioides Dipirona A dipirona possui propriedades analgésicas, antitérmicas, antiespasmódicas e discreta atividade anti-inflamatória. Seu efeito analgésico é dose-dependente e relacionado com a concentração plasmática de seus metabólitos 4-metilaminoantipirina e 4-aminoantipirina. A dose indicada para obter analgesia é de 25 a 30 mg.kg-1 por via venosa (EV) ou oral (VO) a cada seis horas, sendo aconselhada dose máxima diária de 8 g.dia-1. A dipirona potencializa a analgesia dos AINEs e opioides, reduzindo seu consumo, sendo indicada como um dos componentes da analgesia multimodal no tratamento da dor crônica nociceptiva, mista e oncológica15,16. Paracetamol O paracetamol apresenta propriedades analgésicas e antitérmicas, porém, não exibe atividade anti-inflamatória. Potencializa a analgesia dos AINEs e opioides, reduzindo seu consumo, sendo indicado como um dos componentes da analgesia multimodal no tratamento da dor crônica nociceptiva, mista e oncológica. É metabolizado pelo sistema CYP 450 e pode gerar o metabólito tóxico N-acetil-p-benzoquinonaimina, que normalmente é conjugado com a glutationa e excretado por via renal. Quando a síntese desse metabólito é elevada por doses exageradas ou por causa de polimorfismo da fração CYP 2D6, resultando em metabolização ultrarrápida e o processo de conjuTratamento Farmacológico da Dor Crônica | 83 gação é insuficiente, podem ocorrer perda da integridade da membrana mitocondrial e apoptose celular com indução de aumento dos valores das transaminases hepáticas. O paracetamol é a principal causa de insuficiência hepática aguda farmacológica; por esse motivo, a posologia recomendada foi revisada, sendo indicada dose de 500 mg a 750 mg VO a cada seis horas, sendo recomenda dose máxima de 4 g.dia-1 17-19. Anti-inflamatórios não hormonais Os AINEs têm três efeitos farmacológicos: anti-inflamatório, analgésico e antipirético. Agem pela inibição da biossíntese de prostaglandinas pela inibição da atividade da ciclo-oxigenase (COX) e a redução da concentração tecidual de citocinas e outras substâncias pró-inflamatórias, contribuindo para atenuar a sensibilização periférica e central. Todos os AINEs e os agentes inibidores da COX-2 parecem ser igualmente eficazes no tratamento de distúrbios da dor. São úteis como analgésicos isolados ou associados à dipirona, ao paracetamol, aos opioides e aos adjuvantes em dor nociceptiva ou mista. Os AINEs potencializam a analgesia, diminuindo o consumo de opioides. Os efeitos adversos gastrointestinais e renais têm sido tradicionalmente considerados as complicações mais comuns e preocupantes dos AINEs, porém, o risco cardiovascular tem sido causa de crescente preocupação. Apresentam fenômeno de efeito-teto, ou seja, doses acima das preconizadas não aumentam a analgesia, e sim elevam a incidência de efeitos adversos. Portanto, sua utilização na dor crônica deve ser limitada a curtos períodos em razão de sua toxicidade com o uso prolongado20-24. Opioides Os opioides são indicados de modo mais liberal para o tratamento da dor crônica oncológica segundo a escada analgésica da OMS, porém, devem ser usados com parcimônia em pacientes portadores de dor crônica não oncológica. Para seu uso seguro e efetivo, alguns princípios gerais devem ser respeitados: • maximizar primeiro as estratégias analgésicas não opioides; • informar os pacientes sobre os riscos, incluindo o vício, antes de iniciar a terapia com opioides; • usar termos de contrato para pacientes que iniciam a terapia com opioides ou com doses crescentes de opioides; • programar visitas de acompanhamento em intervalos curtos; • realizar testes periódicos de urina para confirmar a aderência; • monitorar a intensidade da dor e o comprometimento funcional relacionado com a dor nos retornos, pois a resposta analgésica pode diminuir ao longo do tempo; • evitar aumentos de dose sem avaliar a gravidade da dor e a interferência da dor na vida diária; • considerar o opioide como um tratamento empírico e suspendê-lo se o resultado não for benéfico; • considerar a rotação de opioides se houver suspeita de tolerância; • não usar opioide em pacientes de alto risco para essa substância, particularmente aqueles com adição atual ou passada a drogas, incluindo álcool4. 84 | Dor e Cuidados Paliativos No tratamento da dor crônica podem ser utilizados opioides de ação prolongada ou preparações de liberação controlada. A maioria dos opioides tem perfil similar de efeitos farmacodinâmicos como a morfina, no entanto, diferem na farmacocinética, como meia-vida de eliminação, metabolismo, via de eliminação e potência analgésica relativa. Entre os agonistas opioides puros, a metadona possui propriedades peculiares, por apresentar efeito antagonista do receptor N-metil-D-aspartato intrínseco (NMDA). O efeito antagonista no receptor N-metil-D-aspartato (NMDA) parece conferir à metadona melhor atividade analgésica para a dor neuropática do que outros opioides, porém, sua meia-vida longa e variável exige cautela por causa do risco de acúmulo com toxicidade por overdose retardada25-27. Embora o modo de ação do tramadol não esteja completamente elucidado, se aceita que ele tem dupla atividade, pois um terço se dá a um mecanismo opioide e dois terços, a um mecanismo semelhante à amitriptilina, podendo ser considerado um fármaco multimodal a se levar em conta para estratégias de tratamento da dor crônica, como osteoartrite e fibromialgia. Segundo ensaios controlados, o tramadol mostrou eficácia para o tratamento da dor neuropática. Embora o grau de dependência física seja relativamente brando, alguns pacientes relataram sintomas de dependência psíquica, como o desejo de continuar usando o fármaco após a interrupção do tratamento. Têm ocorrido casos de convulsão com uso de tramadol por causa da síndrome serotoninérgica, assim, seu uso em pacientes com história de convulsões e naqueles que usam antidepressivos tricíclicos, inibidores seletivos da recaptação da serotonina, inibidores de monoaminaoxidase, medicamentos antipsicóticos ou outros opioides podem estar relacionados com maior risco de convulsões. As doses diárias de tramadol não devem exceder 400 mg28-31. Os agonistas opioides fortes não têm uma dose de teto verdadeira para a analgesia e não causam danos diretos aos órgãos. Com exceção da constipação, ocorre tolerância para a maioria dos efeitos colaterais relacionados com os opioides. E para determinar a resposta adequada de cada paciente aos opioides é necessária titulação cuidadosa da dose, pois a sensibilidade aos efeitos adversos, o grau de analgesia e o desenvolvimento da tolerância analgésica são extremamente variáveis entre os pacientes com dor32. Os chamados opioides fracos, como codeína e tramadol, são frequentemente usados em combinação com um analgésico não opioide ou com adjuvantes para tratar a dor de intensidade moderada33. A meperidina deve ser evitada por causa da potencial toxicidade caracterizada por disforia, mioclonia, hiperreflexia e convulsões causadas pelo acúmulo do metabólito normeperidina, especialmente em pacientes com insuficiência renal34. A característica da terapia com opioides é a necessidade de individualizar o tratamento para cada paciente, pois a variabilidade pode ser intensa, não sendo incomum o paciente informar que um opioide é mais efetivo do que outro ou que um paciente incapaz de tolerar a morfina por causa de náuseas e vômitos possa usar a metadona sem sentir os mesmos efeitos adversos. A seleção do opioide para o controle da dor crônica deve se basear na experiência do prescritor e do paciente, de comorbidades, como insuficiência renal e dificuldade para a ingestão do medicamento4. Tratamento Farmacológico da Dor Crônica | 85 A terapia com opioides apresenta efeitos adversos como náuseas, constipação, sonolência, tontura e vômitos, levando vários pacientes a abandonarem o tratamento por conta dos efeitos adversos. Podem ocorrer alterações endocrinológicas como hipogonadismo, disfunção erétil e amenorreia fruto do uso prolongado. Também pode haver prejuízo do desempenho neuropsicológico em relação aos tempos de reação, velocidade psicomotora e memória funcional, embora uma revisão sistemática tenha evidenciado que doses estáveis de opioides não prejudicaram o desempenho na condução de veículos27,34-37. Os fármacos de liberação controlada e de longa duração geralmente são indicados para o tratamento de dor crônica ou persistente. Existem disponíveis formulações de morfina e de oxicodona para uso oral e de fentanil e buprenorfina para a via transdérmica38-40. Os pacientes idosos são mais propensos aos efeitos adversos dos opioides, mas eles podem ser usados com segurança e eficácia se o esquema terapêutico for adaptado às características clínicas e comorbidades de cada paciente, iniciando sempre com dose baixa que deve ser titulada lentamente, dependendo da resposta analgésica e dos efeitos adversos. A presença de efeitos adversos deve ser avaliada e tratada sistematicamente e deve ser instituído esquema profilático preventivo em pacientes com risco de constipação4.41. Antidepressivos Aumentam a biodisponibilidade central de noradrenalina e serotonina por inibir sua recaptação neuronal. A analgesia decorre principalmente da ativação de vias inibitórias descendentes monoaminérgicas, sendo indicados em dor crônica oncológica e não oncológica, incluindo dor neuropática, osteoarticular, pós-operatória crônica, fibromialgia e neuralgia pós-herpética, entre outras42,43. Antidepressivos tricíclicos (ADT) Bloqueiam a recaptação da serotonina e noradrenalina, a hiperalgesia induzida pelo agonista NMDA e os canais de sódio. A amitriptilina e a nortriptilina são os mais utilizados. Deve ser usada dose inicial baixa com aumento gradual a cada 3-7 dias até a dose máxima de 150 mg em tomada única noturna. Os principais efeitos adversos são sonolência; tontura; hipotensão ortostática; bloqueio de condução cardíaca; retenção urinária; constipação; xerostomia; visão turva; ganho de peso e redução do limiar convulsivo, sendo contraindicados em pacientes com anormalidade de condução ventricular; retenção urinária; glaucoma de ângulo fechado e epilepsias não controladas44-46. Inibidores da recaptação de serotonina e noradrenalina (IRSN) Os IRSN ou antidepressivos duais, quando usados em doses mais baixas, atuam predominantemente como inibidores seletivos da recaptação da serotonina e, em doses mais altas, inibem a recaptação da noradrenalina, sendo considerados de primeira linha para o tratamento da dor neuropática, mas também são indicados em dor musculoesquelética e fibromialgia. Os fármacos mais usados são a duloxetina e a venlafaxina. A dose inicial recomendada é 30 mg.dia-1 para a duloxetina e 37,5 mg.dia-1 86 | Dor e Cuidados Paliativos para a venlafaxina. As doses devem ser tituladas gradualmente e a dose máxima sugerida é, respectivamente, 120 mg.dia-1 e 375 mg.dia-1 . Os principais efeitos adversos relatados são náusea; sedação; constipação; xerostomia; diminuição do apetite; ansiedade; tontura; fadiga; insônia; disfunção sexual; hipertensão arterial e ataxia, sendo contraindicados em pacientes portadores de glaucoma45,46. Inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) Deste grupo destacam-se a paroxetina e o citalopram, que mostram alguma eficácia no controle da dor neuropática45,46. Anticonvulsivantes Os gabapentinoides, a pregabalina e a gabapentina são os anticonvulsivantes mais utilizados como adjuvantes. Eles têm melhor perfil de tolerância do que a carbamazepina e apresentam atividade anti-hiperálgica, antialodínica, ansiolítica, sedativa e moduladora do sono, além de potencializar a analgesia, atenuar a tolerância induzida por opioides e reduzir seu consumo. Atuam como ligantes à subunidade alfa-2-delta dos canais de cálcio voltagem-dependentes pré-sinápticos, regulando a entrada de cálcio no neurônio pré-sináptico e diminuindo a liberação de neurotransmissores excitatórios na fenda sináptica. São bem tolerados e têm poucas interações farmacológicas. A gabapentina não apresenta farmacocinética linear por causa da saturação na absorção, portanto, deve-se iniciá-la com doses baixas da ordem de 300 mg a 600 mg.dia-1 e aumentar gradualmente, até 3.600 mg.dia-1, dividida em três tomadas diárias. A pregabalina apresenta farmacocinética linear, sendo a titulação mais fácil e rápida, podendo iniciar o tratamento com dose eficaz da ordem de 75 mg duas a três vezes ao dia até atingir a dose máxima preconizada, de 600 mg.dia-1. Os principais efeitos adversos são sonolência; tontura; ganho de peso; vertigem; xerostomia e edema de membros inferiores47-50. A carbamazepina é um anticonvulsivante cuja principal indicação é na neuralgia do trigêmeo. Age bloqueando os canais de sódio voltagem-dependente, retardando a recuperação iônica após a ativação e suprimindo a atividade espontânea sem bloquear a condução normal. Seus principais efeitos adversos são sonolência; náuseas; vômitos; ataxia; diplopia; vertigens; alterações hepáticas; leucopenia e rush cutâneo. A oxcarbazepina é um pró-fármaco rapidamente metabolizado a 10-mono-hidróxido que exerce função farmacológica e parece ser mais segura e eficaz que a carbamazepina, sendo considerada uma substância de primeira linha para nevralgia do trigêmeo e do glossofaríngeo51. A lamotrigina é indicada no tratamento da neuralgia do trigêmeo refratária. Age bloqueando os canais de sódio voltagem-dependente e inibindo a liberação de glutamato e aspartato. Seus principais efeitos adversos são eritema cutâneo, que pode evoluir para síndrome de Stevens-Johnson52. O topiramato tem apresentado bons resultados no tratamento da enxaqueca, mas seus efeitos ainda são conflitantes53. Lidocaína venosa A lidocaína por via venosa é eficaz nas síndromes dolorosas crônicas, inclusive na dor neuropática. Atua inibindo os canais de sódio e potássio, o receptor NMDA e o Tratamento Farmacológico da Dor Crônica | 87 transporte de glicina. A administração venosa deve iniciar com a dose de 1 a 2 mg.kg-1, em 15 a 20 min, e se melhorar a dor, iniciar infusão contínua de 1 a 3 mg.kg.h, para atingir o nível plasmático terapêutico, que é de 2 a 6 µg.mL-1. A infusão deve ser cautelosa, especialmente em pacientes com disfunção renal, hepática ou cardíaca, sendo contraindicado para pacientes com hipersensibilidade a anestésico local do tipo amina e portadores de síndrome de Stokes-Adams, Wolff-Parkinson-White ou bloqueio sinoatrial, atrioventricular ou intraventricular. Os principais efeitos adversos são dormência perioral e da língua, contrações musculares e crise convulsiva, causados pelo nível plasmático elevado da lidocaína54-56. Cetamina A cetamina é um antagonista do receptor NMDA com atividade em receptores opioides e na inibição da recaptação de dopamina e serotonina, que, em doses baixas, tem ação analgésica e anti-hiperalgésica. A infusão venosa deve iniciar com 0,1 a 0,5 mg.kg.h-1, não ultrapassando de 600 a 700 mg em 24 horas. Por via oral, a dose varia de 10 a 25 mg três a quatro vezes ao dia, pois a biotransformação enteral origina o metabólito ativo, norcetamina, que aumenta a potência analgésica. É contraindicado na gravidez e amamentação; hipertensão arterial; arritmias cardíacas; doença coronariana; glaucoma; hipertensão intracraniana e trauma cerebral e em pacientes com antecedentes de transtorno bipolar, esquizofrenia e psicoses57,58. Analgésicos tópicos no tratamento da dor neuropática Os analgésicos tópicos são fármacos aplicados sobre a pele que apresentam efeito local e agem modulando os nociceptores periféricos. A grande vantagem diante dos transdérmicos são a mínima absorção sistêmica e, consequentemente, menores efeitos adversos. Os AINEs, os anestésicos locais e a capsaicina possuem efeito bem estabelecido no controle da dor por essa via, porém, outros fármacos, como os antidepressivos tricíclicos, os antagonistas dos receptores NMDA e os antagonistas alfa-adrenoreceptores, têm sido propostos, mas os resultados ainda não estão bem comprovados59-69. Conclusões Não é fácil planejar uma terapia farmacológica efetiva para dor crônica. Neste capítulo, foram enfocadas as principais classes de medicamentos para o tratamento da dor crônica e as combinações de fármacos indicadas para a analgesia multimodal, com o objetivo de propiciar aumento do conhecimento sobre as opções farmacológicas disponíveis para gerenciar os diferentes tipos de dor crônica. Referências 1. Fayaz A, Croft P, Langford RM et al. Prevalence of chronic pain in the UK: a systematic review and meta-analysis of population studies. 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Tratamento Farmacológico da Dor Crônica | 91 08 Capítulo Tratamento Intervencionista da Dor Crônica André Marques Mansano Breno José Santiago Bezerra de Lima Karen Santos Braghiroli Introdução A terapia intervencionista baseia-se no conceito de que, para determinado tipo de dor, existe uma base estrutural anatômica. O bloqueio neural altera ou interrompe o estímulo nociceptivo proveniente de tal estrutura. Nos Estados Unidos, o tratamento intervencionista da dor é definido como sendo a disciplina médica voltada ao diagnóstico e tratamento de doenças relacionadas com a dor, principalmente com a aplicação de técnicas intervencionistas, para o controle de dores subagudas, crônicas, persistentes ou intratáveis, independentemente ou em conjunto com outras modalidades de tratamento1. No Brasil, ele ainda não é considerado uma especialidade e, em geral, anestesiologistas, neurocirurgiões e ortopedistas especialistas em coluna são os profissionais que se dedicam a essa área de atuação. Muitas sociedades no mundo e no Brasil têm colaborado nas mais variadas formas para a difusão dessas técnicas entre os especialistas em dor. No mundo, destaca-se o World Institute of Pain (WIP), fundado em 1993, e a American Society of Interventional Pain Physicians (ASIPP), criada cinco anos depois, nos Estados Unidos. A Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED) criou, em 2006, o Comitê de Técnicas Minimamente Invasivas da Dor. Com o surgimento dessas organizações associativas, um interesse cada vez maior tem atraído os profissionais para o treinamento nesse campo. Nos Estados Unidos, segundo dados da ASIPP, em 1997, foram realizados 1.377.000 procedimentos intervencionistas em dor pela Medicare, o maior seguro de saúde daquele país, enquanto, em 2006, foram realizados 4.610.360, um aumento de mais de três vezes em dez anos. O número de procedimentos realizados nos Estados Unidos continuou a crescer, de modo que, em 2011, foram realizados 2.289.213 Tratamento Intervencionista da Dor Crônica | 93 bloqueios peridurais2, 1.811.573 bloqueios facetários3 e 252.654 infiltrações da articulação sacroilíaca4. Os avanços em imagem, achados neuroanatômicos, as descobertas de novos mediadores químicos, o surgimento de técnicas de bloqueio mais precisas e com menores riscos e o sucesso terapêutico relatado a essas técnicas são também fatores que contribuíram para esse aumento. O tratamento intervencionista é considerado o quarto degrau no sistema de escadas proposto pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para o controle da dor. A abordagem invasiva deve ser instituída de forma interdisciplinar, em conjunto com o fisioterapeuta, o psicólogo especialista em dor, uma equipe de enfermagem especializada e outros profissionais médicos e paramédicos, que vão depender das características individuais de cada serviço. A interação dessa equipe parece ser o principal determinante para o sucesso do tratamento do paciente com dor crônica. Essa forma de tratamento em equipe é chamada de modelo biopsicossocial e baseia-se no conceito da dor total. Nesse modelo, uma análise de todos os aspectos do paciente é realizada, não centralizando a terapia somente nas alterações de ordem física. Os aspectos emocionais, socioculturais, familiares e financeiros, entre outros, também são avaliados. O tipo de dor apresentado pelo paciente é importante para determinar onde e quando os procedimentos invasivos poderão ser instituídos. Casos de dor oncológica apresentam uma resposta muito boa ao tratamento medicamentoso, e apenas 15-20% dos pacientes necessitam da terapia intervencionista. Por outro lado, apesar do avanço da indústria farmacêutica com pesquisas e lançamentos de novos analgésicos, determinados tipos de dor, como dores neuropáticas e dores crônicas de coluna, respondem mal aos medicamentos, e uma grande parte desses pacientes evolui para procedimentos invasivos. Outros aspectos avaliados pela equipe também são importantes para selecionar quando instituir a terapia intervencionista. Pacientes com distúrbios afetivo-emocionais devem ser vistos com reserva para esses procedimentos, assim como pacientes com problemas trabalhistas. A atuação do psicólogo especialista em dor é muito importante nesses casos para auxiliar na seleção correta dos pacientes. A história da aplicação de técnicas intervencionistas no controle da dor data de 1901, quando injeções peridurais para tratamento de compressão de raízes lombares foram relatadas5,6. Desde então, avanços aconteceram nas injeções peridurais, e uma variedade de outras técnicas percutâneas foram descritas7,8. Atualmente, várias dessas técnicas têm sido decisivas no diagnóstico e tratamento da dor. Os procedimentos são realizados sob orientação radiológica. Isso visa aumentar a segurança e eficácia, diminuindo, de forma considerável, a morbidade. Preferencialmente devem ser realizados sob uma sedação leve, para que o paciente esteja apto a responder-nos prontamente aos estímulos sensitivos e relatar quaisquer problemas, como uma dor inesperada. A anestesia geral aumenta a morbidade do procedimento. No entanto, em casos selecionados, como os dos portadores de comorbidades psiquiátricas, sequelas neurológicas cognitivas ou nos que se recusam a permanecerem despertos e cooperativos, a anestesia geral poderá ser instituída. O uso de bloqueadores neuromusculares, nesses casos, deverá ser evitado para que as respostas motoras à estimulação sejam utilizadas como parâmetro de localização de alvos. Um profissional diferente daquele que está fazendo o procedimento deverá administrar a anestesia. As instalações ne94 | Dor e Cuidados Paliativos cessárias para sua realização devem incluir uma sala cirúrgica com intensificador de imagens, ultrassom e sala de recuperação anestésica. Procedimentos Intervencionistas – Princípios Gerais Bloqueios diagnósticos – são procedimentos realizados em estruturas específicas, com intenção de determinar fisiologicamente se tais estruturas são responsáveis pela dor do paciente9. Associados a história, exame físico e exames de imagem, os bloqueios diagnósticos auxiliam na determinação da causa da dor ou na identificação de nervos mediadores da dor e de outros sintomas10. Eles são realizados através da injeção de anestésico local na possível estrutura causadora da dor e/ou em nervos que inervam essa estrutura, com o objetivo de interromper os impulsos sensoriais. Se isso ocorrer, atribui-se que aquela estrutura é responsável pela manutenção do quadro doloroso. A resposta ao bloqueio pode resultar em alívio completo ou parcial da dor, permanente ou temporário, ou ausência de alívio. Em relação aos bloqueios diagnósticos, devem-se considerar os resultados falso-positivos e falso-negativos da resposta do paciente. A resposta falso-positiva pode ocorrer em razão do efeito placebo do procedimento, do realizar sedação excessiva, do uso excessivo do anestésico local em determinada estrutura (ocorrendo dispersão da solução para estruturas adjacentes). A resposta falso-negativa pode ocorrer por causa do posicionamento inadequado da agulha, da incapacidade de detecção da injeção intravascular e da baixa cognição do paciente. O bloqueio sempre deve ser guiado por imagem, com auxílio de escopia e/ou ultrassom e deve ser alvo-específico e com pouca quantidade de anestésico para melhorar a acurácia e atingir o objetivo. O bloqueio guiado por imagens possibilita guiar a agulha em direção à estrutura-alvo11-14, auxiliando na redução de resultados falso-negativos. Cimentoplastias – são procedimentos percutâneos e minimamente invasivos nos quais um cimento cirúrgico, o polimetilmetacrilato (PMMA), é injetado dentro de ossos, com o objetivo primário de melhorar a dor e também estabilizar e promover melhor reabilitação do paciente com fraturas vertebrais compressivas e metástases na coluna vertebral. Algumas indicações são fraturas por compressão secundárias a osteoporose, leucemias e mieloma múltiplo, metástases ósseas dolorosas e hemangiomas vertebrais agressivos. Entre as contraindicações absolutas estão a presença de coagulopatias, fraturas instáveis, fraturas com perda do muro posterior vertebral, infecção sistêmica ou na coluna e alergia ao PMMA ou ao contraste15-18. a) Vertebroplastia – descrita pela primeira vez em 1987 para tratamento de hemangioma cervical. Introdução de agulha dentro do corpo vertebral e injeção do PMMA no seu interior19. b) Cifoplastia – desenvolvida em 1998, nos Estados Unidos, por Mark Reiley, se baseia na introdução de um balão no interior do corpo vertebral previamente à injeção de PMMA, com o objetivo adicional de recuperar a altura do corpo vertebral e restaurar o alinhamento da coluna (pois podem ocorrer deformidades como cifose em algumas fraturas compressivas). c) Femoroplastia – a primeira foi realizada em 2012 por Plancarte, no México20. É a introdução de uma agulha de biópsia no fêmur, com o objetivo de injeção de PMMA Tratamento Intervencionista da Dor Crônica | 95 para fortalecer a cabeça, o colo e o terço proximal do fêmur21. Têm sido desenvolvidas outras técnicas de osteoplastias, como sacroplastias, umeroplastias, isquioplastias e acetabuloplastias, muitas ainda sem publicação na literatura. Dispositivos implantáveis – a via intraespinhal é utilizada para o controle de dores persistentes e fortes, com o benefício da utilização de baixas doses de medicação e, assim, com menos efeitos adversos. No espaço intratecal, os opioides e outros analgésicos adjuvantes não encontram barreiras anatômicas, e a absorção vascular das medicações é lenta, o que permite que os dispositivos implantáveis liberem uma pequena quantidade de opioides, combinados ou não com adjuvantes, e que eles alcancem alta concentração no local do seu sítio de ação22,23. O dispositivo implantável consiste em um reservatório colocado no subcutâneo do paciente e conectado a um cateter tunelizado abaixo da pele e inserido no espaço intratecal no nível desejado. Algumas indicações são dor crônica maligna ou não, refratária à dose máxima de terapia medicamentosa ou limitada por causa dos efeitos colaterais significativos, dor sem alívio com outros procedimentos ablativos e espasticidade refratária24-26. Os dispositivos implantáveis possuem depósitos com diferentes capacidades de volume de solução e a medicação é reabastecida por meio de injeção percutânea. Há possibilidade de realizar diversas programações para administrar as medicações. Para a titulação das medicações, devem-se compreender detalhadamente os sintomas dos pacientes, o momento de início do tratamento, a frequência da titulação das doses e a evolução regular da resposta do paciente ao tratamento, garantindo, assim, melhor efeito terapêutico24,25,27. Neuroestimulação – é o tratamento que passou por avanços significativos nos últimos anos, incluindo evolução nos eletrodos, diferentes dispositivos e softwares, novas formas de onda de estimulação. Grandes descobertas com a estimulação do gânglio da raiz dorsal, estimulação de alta frequência, estimulação do tipo burst, eletrodos compatíveis com ressonância magnética e novas plataformas de programação estão mudando o campo da neuromodulação e possibilitando melhorias no tratamento. O eletrodo de estimulação medular emite impulsos elétricos e, com base na teoria do portão, estimula fibras A-beta largas mielinizadas na coluna dorsal e impede a transmissão dos sinais dolorosos das fibras C para o córtex cerebral. Essa interrupção dos sinais para o córtex cerebral provoca sensação de alívio e parestesia em substituição à sensação de dor. A vantagem é ser uma terapia não farmacológica, não destrutiva, reduzindo efeitos adversos com medicações. O sistema é reversível, podendo ser retirado ou desligado sem provocar danos aos pacientes, e pode ser programado de acordo com a intensidade, gravidade e localização da dor. Algumas indicações mais comuns e estabelecidas na literatura são seu uso na síndrome pós-laminectomia, em dores radiculares, na síndrome de dor complexa regional, na fibrose peridural e na aracnoidite. Algumas indicações mais recentes são seu uso no tratamento de dor nas extremidades por causa da isquemia, em angina refratária, cefaleia crônica refratária, na dor facial típica e atípica, em neuropatias pós-cirúrgicas (pós-herniorrafias, pós-toracotomias), em neuralgia pós-herpética, na dor abdominal visceral, nas dores pélvico-perineais e na neuropatia periférica (diabética ou metabólica)28-30. 96 | Dor e Cuidados Paliativos O sucesso do tratamento consiste em “cobrir” a área de dor com o estímulo, o esperado é a não ocorrência de parestesia ou que ela seja tolerada pelo paciente e que não ocorra estimulação motora. A importância do conhecimento da eletrofisiologia afeta diretamente o sucesso do neuroestimulador – pelo conhecimento de conceitos básicos de amplitude, largura de pulso e frequência de onda para a programação dos eletrodos. Técnicas neurolíticas – é uma injeção de substâncias neurolíticas (quimioneurólise). A neurólise é utilizada no tratamento de dores crônicas, malignas ou não, com aplicação em gânglios autonômicos da cadeia simpática e também no espaço peridural31. O tempo de duração é de aproximadamente três a seis meses32. O álcool etílico é disponível em concentrações de 50-100%, é hipobárico em relação ao liquor e sua injeção é dolorosa. O álcool dispersa-se rapidamente, e o contato com o tecido nervoso leva à sua desidratação e precipitação das lipoproteínas das membranas celulares. Alguns riscos com essa injeção são o desenvolvimento de neurite química, a formação de neuromas e necrose tissular, com o desenvolvimento de cicatrizes superficiais se a injeção ocorrer próximo à pele. O fenol é um ácido aromático fraco, que provoca queimaduras ao entrar em contato com a pele e pode ser utilizado na forma aquosa ou glicerinada (aumenta a viscosidade da solução, levando ao maior controle da injeção). A injeção é não dolorosa, pouco solúvel em água e hiperbárico em relação ao liquor. Em concentrações de 1-2%, ele atua como um anestésico local de longa duração com propriedades anti-inflamatórias. Entre 3-5%, podem ocorrer sensação de queimação inicial, seguida por anestesia completa das fibras amielínicas C, desnaturação de proteínas e desmielinização segmentar de fibras A-delta. Em concentrações maiores de 5%, ocorrem neurólise verdadeira, com degeneração walleriana e axonal, coagulação e precipitação de proteínas, destruição de células de Schwann, afetando a lâmina basal, a vasculite focal e o edema neurogênico. O fenol exerce uma ação dual: efeito imediato de anestésico local e efeito a longo prazo de desnaturação de proteínas neurais, com pico em 2 semanas33. Regeneração neural pode ocorrer em 4 a 5 semanas. Radiofrequência – o princípio da radiofrequência convencional consiste no aquecimento dos tecidos, provocando destruição tecidual em formato elíptico, ao redor e paralelo à área exposta da ponta ativa da agulha de RF. São utilizadas agulhas de RF com pontas ativas que podem variar de 5-20 mm e são colocadas paralelamente ao alvo desejado para amplificar a área de lesão. O probe de RF é introduzido por dentro da agulha34. Cada vez mais vem sendo utilizada a RF resfriada, que é uma RF convencional, porém, o resfriamento interno do probe evita temperaturas excessivamente altas nos tecidos e permite lesões maiores. A RF pulsada também tem seu espaço e consiste em pulsos de corrente elétrica, mantendo a temperatura no tecido em níveis menos destrutivos, em torno de 42 graus, e não destrói a bainha de mielina igual à convencional. Foi demonstrado que há um efeito seletivo nos nervos sensitivos enquanto poupa os nervos motores35. A RF geralmente é utilizada para denervação de nervos pequenos ou amielínicos das facetas articulares da coluna, gânglio da raiz dorsal, periósteo, articulações, disTratamento Intervencionista da Dor Crônica | 97 cos intervertebrais, sistema simpático, nervo trigeminal. A RF convencional é contraindicada para nervos mielinizados e largos, pois a coagulação de proteínas pode levar a anestesia dolorosa e formação de neuroma. Toxina botulínica – além de seu uso para fins estéticos, a toxina botulínica é utilizada com propósito clínico-terapêutico para tratar diversas doenças autonômicas e neuromusculares36. O mecanismo de ação da toxina é inibir a liberação da acetilcolina dos terminais pré-sinápticos, resultando na redução da atividade da fibra muscular. A toxina inibe a exocitose da acetilcolina dos terminais colinérgicos. Ela é formada por uma dupla cadeia polipeptídica com peso molecular aproximado de 150.000 daltons (d). A cadeia pesada de 100.000 daltons liga-se ao nervo e permite a internalização da cadeia leve. A cadeia leve, de 50.000 daltons, está ligada à pesada por uma ponte dissulfídica e é ela que inibe a liberação da vesícula sináptica que contém o neurotransmissor no seu interior na junção neuromuscular37,38. Estudos mostram que a toxina age bloqueando a exocitose de vesículas sinápticas carreadoras de neurotransmissores e mediadores inflamatórios em nervos sensitivos periféricos39. A ação analgésica da toxina também é atribuída a diversos mecanismos, como inibição da liberação do peptídeo relacionado com o gene da calcitonina (CGRP) nos terminais aferentes, inibição da liberação de substância P e inibição da liberação de glutamato no corno posterior. Artigos recentes da literatura tentam estabelecer o grau de evidência para seu uso em diversas condições dolorosas. A toxina mostrou-se efetiva no tratamento da neuralgia pós-herpética e neuralgia trigeminal, provavelmente efetiva para neuralgia pós-traumática, neuropatia diabética e com efetividade indeterminada para neuralgia occipital, dor fantasma e síndrome de dor complexa regional40,41. Procedimentos Intervencionistas – Indicações • • • • • • • • Radiofrequência convencional/Compressão percutânea por balão – neuralgia trigeminal em que há falha do tratamento medicamentoso42,43. Bloqueio/Radiofrequência do gânglio esfenopalatino – cefaleia em salvas; enxaqueca; neuralgia pós-herpética; dor facial idiopática persistente e neuralgia esfenopalatina44. Neuroestimulação dos nervos occipitais – cefaleia em salvas e neuralgia occipital 45,46. Bloqueio/Radiofrequência convencional do ramo médio do ramo dorsal – dor de origem facetária cervical e lombar, assim como dor intratável por compressão vertebral por fraturas malignas47-49. Corticosteroide por peridural cervical interlaminar – dor radicular cervical de caráter subagudo50. Radiofrequência pulsada no gânglio da raiz dorsal cervical – dor radicular cervical crônica51. Corticosteroide por peridural lombar transforaminal – dor radicular lombar subagudo/crônico52. Radiofrequência pulsada no gânglio da raiz dorsal lombar – dor radicular lombar de caráter crônico52. 98 | Dor e Cuidados Paliativos • • • • • • • • • • • • • • Radiofrequência resfriada dos ramos laterais de S1 a S3 – dor lombossacral com etiologia na articulação sacroilíaca53. Radiofrequência convencional dos ramos comunicantes – dor discogênica lombar54 . Anuloplastias – dor discogênica (denervação da parte posterior do anel fibroso, por meio da aplicação de corrente de radiofrequência55.) Radiofrequência pulsada no gânglio da raiz dorsal de L2 – lombalgia de etiologia discogênica56. Bloqueio peridural caudal – hérnia discal sem compressão de raiz nervosa; hérnia discal com irritação de raiz nervosa; espondilolistese; coccidínia; estenose espinhal; contratura lombar57. Neuroplastia peridural caudal – síndrome pós-laminectomia; fibrose peridural; radiculopatia lombar; estenose espinhal; hérnia discal; dor neuropática radicular; neuropatia pós-radiação57. Cordotomia cervical – dor oncológica refratária unilateral, abaixo do dermátomo C5, com expectativa de vida máxima de um ano, que obtém alívio insuficiente com o tratamento convencional58. Vertebroplastia/Cifoplastia – tratamento de colapso vertebral doloroso em pacientes com osteoporose ou metástases ósseas58. Bloqueio/Radiofrequência convencional do gânglio estrelado – tratamento da dor no crânio, na face, no pescoço e nos membros superiores em situações clínicas como: síndrome dolorosa regional complexa dos tipos I e II; neuralgia pós-herpética; dor oncológica; neuropatia diabética; dor do membro fantasma; angina pectoris intratável; herpes zóster agudo; vasoespasmo; doença vascular embólica; doença e fenômeno de Raynaud e escleroderma 59. Bloqueio/Radiofrequência convencional do simpático torácico – doenças vasculares; neuralgia pós-herpética de tronco e membros superiores; dor oncológica e síndrome dolorosa regional complexa dos tipos I e II no tronco e nos membros superiores55. Bloqueio/Neurólise de nervos intercostais – fratura de costela; contusão da parede torácica; pleurite; esternotomias ou fraturas do esterno; dor oncológica; herpes zóster e neuralgia pós-herpética na região torácica55. Bloqueio/Radiofrequência convencional dos nervos esplâncnicos – síndromes dolorosas envolvendo vísceras abdominais altas; pancreatite aguda ou crônica e dor oncológica nas vísceras abdominais altas60. Bloqueio/Alcoolização do plexo celíaco – casos em que não há alívio da dor com o bloqueio dos nervos esplâncnicos. Deve-se esse fato ao menor risco de morbimortalidade e à possibilidade de se realizar radiofrequência nos nervos esplâncnicos. Náuseas e vômitos incontroláveis podem ser indicação para bloqueio do plexo celíaco, assim como dor oncológica proveniente do pâncreas, estômago e duodeno55,60. Bloqueio/Radiofrequência convencional do simpático lombar – síndrome dolorosa regional complexa do tipos I e II em membros inferiores; insuficiênTratamento Intervencionista da Dor Crônica | 99 • • • • cia vascular nos membros inferiores; dor urogenital intratável; lombalgia; dor fantasma e hiperidrose55. Bloqueio/Fenolização do plexo hipogástrico superior – dor pélvica de origem oncológica (cólon descendente, reto, útero e colo uterino, vagina, ovários, bexiga, próstata, testículos, tenesmo pós-anastomose colorretal) e dor pélvica de origem não oncológica (endometriose, dispareunia, prostatodínea, cistite intersticial crônica, dor pélvica em geral)55. Bloqueio/Radiofrequência convencional do gânglio ímpar – coccigodínia; proctalgia fugaz; enterite por radiação; dor de origem oncológica na região perineal; dor de manutenção simpática perineal55. Neuroestimulação medular – síndrome pós-laminectomia; síndrome dolorosa regional complexa; neuralgia pós-herpética; polineuropatia diabética; dor fantasma; lesão traumática em plexos nervosos; angina pectoris intratável; fenômeno de Raynaud; dor isquêmica nas extremidades e dor na pancreatite crônica60. Bomba de infusão intratecal de fármacos – espasticidade e dor oncológica refratárias ao tratamento convencional ou paciente com importantes efeitos colaterais à medicação dispensada por outras vias de administração58. Figura 1 – Bloqueio peridural caudal Referências 1. Manchikanti L, Boswall MV, Singh V et al. Comprehensive evidence-based guidelines for interventional techniques in the management of chronic spinal pain. Pain Physcian, 2009;12: 699-802. 2. Manchikanti L, Pampati V, Falco FJ et al. Assessment of the growth of epidural injections in the medicare population from 2000 to 2011. Pain Physician, 2011;16: E349-64. 3. Manhikanti L, Pampati V, Singh V et al. 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A prevalência de dor crônica em populações em tratamento de combate ao câncer alcança valores entre 33% e 59%, e é consideravelmente mais alta em pacientes com doença avançada (64% a 74%). Em razão da alta prevalência da dor oncológica e suas severas consequências, todos os pacientes com doença ativa devem ser avaliados quanto à presença de quadro álgico e prontamente tratados de maneira específica1,2. Avaliação da Dor Oncológica A coleta de informações a respeito da dor, assim como da doença ativa e seus estadiamento e tratamento, é bastante relevante. Sempre é importante recordar que muitas vezes o quadro álgico de origem oncológica pode persistir mesmo após a cura do câncer como em situações de dor pós-mastectomia e dor pós-toracotomia, por exemplo, o que pode levar a um grande impacto psicológico e espiritual3. A dor é uma experiência subjetiva e multidimensional, logo a otimização do seu tratamento exige uma descrição detalhada de suas características. Vários métodos são utilizados para mensurar a intensidade da dor como escala verbal (leve, moderada e severa), escala numérica (0, sem dor, e 10, pior dor) e a escala visual analógica, assim como há algumas avaliações sobre a intensidade e a interferência nas atividades diárias como o questionário de McGill4. Dor Oncológica | 105 É bastante relevante para o tratamento do paciente com dor oncológica saber o comportamento temporal do quadro álgico. Perguntas importantes a serem respondidas são: como o quadro se inicia? Há flutuações diárias? Existe causa identificável? Há presença de dor incidental? Quando a queixa se iniciou?5,6 Saber a fisiopatologia da dor oncológica é primordial para se planejar a estratégia de combate ao quadro álgico, diferenciando-se as etiologias nociceptiva, neuropática e psicogênica. A dor nociceptiva é, sobretudo, por lesão tecidual, tendo uma divisão em sua classificação entre somática e visceral dependendo do tecido envolvido. A dor somática envolve estruturas como ossos, músculos e articulações, podendo ser descrita como “em pressão”, “em facada” ou contínua. Já a dor visceral envolve lesão a vísceras, podendo ser “em cãibra” ou “em facada” quando originária de cápsulas, pleura ou miocárdio7. A dor neuropática é mantida por um processamento somatossensorial anormal no sistema nervoso central e/ou periférico e geralmente se encontra presente em cerca de 40% das síndromes dolorosas oncológicas, podendo ser causada tanto pela doença em si como pelo tratamento de combate ao câncer. Termos como “em queimação”, “em choque” e elétrica são usados para caracterização da dor neuropática.7 A dor psicogênica é quando a origem do quadro se dá basicamente por fatores psicológicos. Não é comum no paciente oncológico, a não ser que haja evidência de psicopatologia8. Síndromes Dolorosas Oncológicas É importante durante o exame do paciente observar todos os sinais e sintomas, visto que podem sugerir uma síndrome dolorosa oncológica específica. Determinar a identificação da síndrome pode auxiliar a elucidar a etiologia da dor e a clarear o prognóstico tanto da dor como da doença em si9. As síndromes dolorosas oncológicas podem ser divididas em agudas e crônicas, sendo as síndromes agudas geralmente relacionadas com intervenções diagnósticas e terapêuticas, enquanto as síndromes crônicas são relacionadas com a neoplasia em si e com o tratamento antineoplásico9. Síndromes Dolorosas Agudas A maioria das síndromes dolorosas oncológicas agudas são relacionadas com procedimentos diagnósticos ou terapêuticos. No entanto, algumas são relacionadas com a doença em si como a dor por hemorragia tumoral aguda, a dor óssea por fratura patológica e a dor visceral por obstrução aguda ou perfuração de ducto biliar, intestino ou ureter. Vale frisar que há algumas síndromes dolorosas agudas desencadeadas pelo tratamento antineoplásico, incluindo quimioterapia, terapia hormonal, imunoterapia e radioterapia. A mucosite oral é a queixa dolorosa aguda mais comumente relacionada com a terapia antineoplásica. A mucosite relacionada com a quimioterapia pode ocorrer em todo o trato gastrointestinal, entretanto, a dor é proveniente, na maioria das vezes, da mucosite oral que se torna clinicamente evidente durante a primeira semana de 106 | Dor e Cuidados Paliativos administração dos agentes quimioterápicos. Quase todos os pacientes que recebem radioterapia nas regiões de cabeça e pescoço desenvolvem mucosite, e sua intensidade depende dos agentes quimioterápicos associados no tratamento10. A neuropatia induzida por quimioterápico pode se manifestar como dor neuropática aguda na forma de polineuropatia ou, mais raramente, de mononeuropatia. Vários quimioterápicos são neurotóxicos, e os que possuem alta incidência de polineuropatia são: vincristina, cisplatina, paclitaxel, talidomida, oxaliplatina e bortezomibe. A polineuropatia causada pelos quimioterápicos comumente é insidiosa, mas pode ter apresentação aguda como no espasmo faringolaríngeo causado pela oxaliplatina11. Outras síndromes dolorosas oncológicas agudas podem ser causadas pelo tratamento radioterápico, como a plexopatia, pela radiação que acomete de maneira transitória sobretudo o plexo braquial, e a enterite e/ou proctite causadas pela radiação12. Síndromes Dolorosas Crônicas Cerca de 75% dos pacientes que têm um quadro álgico crônico de origem oncológica possuem síndromes dolorosas nociceptivas ou neuropáticas que representam efeito direto da neoplasia. Outras causas de dor crônica são os tratamentos antineoplásicos e as desordens não relacionadas com a doença e com seu tratamento13. As síndromes dolorosas somáticas relacionadas com o tumor envolvem ossos, articulações e tecido conectivo, levando a um quadro de dor persistente. Exemplos são a dor óssea multifocal, a dor por fratura vertebral patológica, a dor por metástases em pelve e quadril, além da causada por metástases na base do crânio. Importante lembrar que as vértebras são os locais mais comuns para metástases ósseas14. As síndromes dolorosas viscerais relacionadas com o tumor podem ser causadas por obstrução intestinal, do ureter ou do ducto biliar, ou por lesão em estruturas como a pleura visceral, a cápsula hepática ou o peritônio. As síndromes dolorosas viscerais são particularmente comuns em neoplasias gastrointestinais e ginecológicas15. Como exemplos de síndromes dolorosas neuropáticas têm-se as metástases nas leptomeninges, neuralgias craniais (glossofaríngeo, trigêmio), radiculopatias e plexopatias16,17. Causas comuns de síndromes dolorosas crônicas relacionadas com o tratamento antineoplásico são as síndromes dolorosas pós-radioterapia (plexopatias, mielopatias, linfedema e osteonecrose) e a dor do membro fantasma e suas variações após procedimentos cirúrgicos18-20. Princípios Gerais do Tratamento da Dor Oncológica 1 – Fazer uma avaliação precisa do quadro álgico do paciente (etiologia, fisiopatologia, extensão tumoral, síndrome dolorosa específica, cuidados paliativos). 2 – O próprio tratamento antineoplásico (quimioterapia, radioterapia e cirurgia) pode auxiliar bastante no manejo da dor, fazendo que o acompanhamento regular com o médico oncologista seja bastante importante. 3 – Grande proporção dos pacientes com dor por doença ativa necessita de tratamento sintomático, seguindo a escada analgésica da Organização Mundial de Saúde (OMS), na qual o tratamento medicamentoso com opioides é a abordagem principal nos casos moderados a severos. Dor Oncológica | 107 4 – Avaliar o risco de abuso medicamentoso por parte do paciente, checando em sua história passado de abuso com álcool ou alguma outra droga, histórico familiar e desordem psiquiátrica21-25. Tratamento Medicamentoso – Opioides Os opioides são frequentemente utilizados nos pacientes oncológicos por causa de sua segurança, várias vias de administração, facilidade de titulação e efetividade para todos os tipos de dor (somática, visceral e neuropática). Mesmo a dor neuropática sendo mais difícil de tratar, uma resposta favorável é possível em uma analgesia baseada em opioides26. Os opioides agem se ligando a receptores específicos, como o mu, kappa e o delta. Esses receptores estão presentes em tecidos pelo organismo, incluindo o sistema nervoso central e o periférico26. Existe uma classificação em que os opioides são divididos tendo como base os efeitos no receptor mu em agonistas puros, agonista-antagonistas (agonistas parciais e agonista-antagonistas mistos) e os antagonistas puros. Os antagonistas do receptor mu não possuem atividade analgésica intrínseca e são utilizados para prevenir ou reverter os efeitos dos opioides. Com poucas exceções, o manejo da dor crônica oncológica é feito com agonistas do receptor mu puros. Entretanto, em alguns países como nos Estados Unidos e no Brasil, está disponível um agonista parcial, a buprenorfina, na forma de emplastro. Outros analgésicos de ação central como o tramadol e o tapentadol têm efeitos agonista mu e de inibição de recaptação de neurotransmissores que são interessantes em pacientes oncológicos algumas vezes26-28. A morfina é o protótipo de opioide para o tratamento de dor oncológica de moderada a severa e é considerada o modelo para comparação entre os opioides. Não há trabalhos que provem a superioridade da morfina em relação a outros opioides como fentanil, metadona e oxicodona no tratamento do paciente oncológico. Há uma variação individual muito grande nas respostas aos agonistas mu puros, fazendo com que não haja como prever qual dos agonistas mu puros terá melhor balanço entre analgesia e efeitos colaterais26. A morfina existe em diversas apresentações (comprimidos, cápsulas, supositórios, soluções) e pode ser administrada por várias vias (oral, subcutânea, endovenosa, retal), sendo metabolizada no fígado e tendo seus metabólitos eliminados por via renal, logo sua administração tem que ser cuidadosa em pacientes com insuficiência renal27. A oxicodona se liga tanto aos receptores mu como aos receptores kappa, o que teoricamente pode sugerir alguma vantagem. No entanto, estudos clínicos não mostram diferenças na eficácia e na tolerabilidade quando se compara a oxicodona com a morfina e com outros agonistas mu28. A metadona é um opioide agonista mu com farmacologia única que pode fazer com que alguns pacientes tenham excelente analgesia em doses baixas e com que outros tenham severa toxicidade imprevista29. Há ao menos um estudo que mostra que a metadona tem a mesma efetividade da morfina para o tratamento da dor oncológica30. Entre os benefícios do uso da metadona tem-se: baixo custo, longa duração de ação, 108 | Dor e Cuidados Paliativos sendo o único opioide de longa duração disponível em formulação líquida31,32. A metadona não tem metabólitos ativos, fazendo com que, quando dosada apropriadamente, seja bem indicada na insuficiência renal. A metadona tem uma meia-vida de aproximadamente 24 horas, mas pode variar de 12 horas até uma semana, fazendo com que seja indicada a sua prescrição apenas para os que tenham familiaridade com a sua farmacologia33. A metadona tem alguns efeitos que são interessantes como antagonismo ao receptor NMDA, agindo em casos de tolerância a opioides; prolongamento do intervalo QT e interação medicamentosa com antirretrovirais34. A codeína tem pouca indicação para o tratamento da dor oncológica, sobretudo pela variação genética apresentada em seu metabolismo. O efeito analgésico da codeína requer conversão à morfina e cerca de 10% das pessoas não são capazes de realizar essa conversão em nível hepático por variabilidade genética.35 A meperidina é metabolizada em normeperidina que é relativamente tóxico, podendo levar a tremores, delírio e convulsões. É mais seguro escolher outro agonista mu para o tratamento do paciente com dor oncológica que não seja a meperidina. Algumas considerações práticas são importantes para o manejo analgésico do paciente em uso de opioides. A escolha do opioide tem de ser bem fundamentada nas características farmacológicas de cada fármaco, levando-se em consideração também comorbidades preexistentes (insuficiência renal, insuficiência hepática), questão financeira e cuidados com os pacientes susceptíveis a abuso medicamentoso36. A eleição da via de administração é um cuidado que se deve ter após a escolha de qual opioide será prescrito. A via oral é a preferencial no tratamento da dor crônica oncológica por ser flexível e conveniente, mas, dependendo da progressão da doença, outras vias de administração devem ser utilizadas. Pacientes com disfagia ou odinofagia podem ter sua analgesia feita por via subcutânea ou transdérmica, por exemplo. A via transdérmica é bastante usada para dor crônica com medicamentos como o fentanil e a buprenorfina. O fentanil necessita que o paciente tenha tecido adiposo para absorção adequada37,38. A via retal tem absorção variável, por isso, quando se troca a via oral pela via retal, inicialmente se reduz a dose equivalente para avaliar a resposta39. Para garantir conforto ao paciente quando há administração de medicamento por via subcutânea, a taxa de infusão não deve ser superior a 5 mL/hora. Entretanto, caso haja adição de hialuronidade à infusão, a taxa pode ser aumentada. Lembrar que a metadona não está bem indicada por via subcutânea por causar irritação40. A via de administração intratecal em pacientes selecionados tem grandes vantagens, visto que há estudo clínico randomizado comparando terapias analgésicas convencionais com bombas implantáveis de infusão de fármacos por via intratecal, no qual a via intratecal mostra ter melhor controle da dor com menos efeitos colaterais 41. Uma estratégia bastante usada na rotina com pacientes oncológicos é o rodízio de opioides, sobretudo nos pacientes com pobre resposta ao tratamento analgésico. É feita uma troca de um opioide por outro na tentativa de se obter melhor balanço Dor Oncológica | 109 entre alívio da dor e efeitos colaterais. Faz-se necessário que a conversão da dose dos opioides seja feita de maneira adequada quando o rodízio for realizado42. Tratamento Medicamentoso – Analgésicos Adjuvantes Glicocorticoides – podem ser benéficos para tratamento da dor neuropática e da dor óssea, além da dor por obstrução intestinal, dor por linfedema e dor por expansão capsular. No entanto, não há recomendações específicas para o uso de glicocorticoides na dor oncológica43. Antidepressivos – pacientes que respondem pouco aos opioides e possuem quadro depressivo associado ao quadro doloroso podem se beneficiar do uso de antidepressivos. A duloxetina é uma opção interessante com sua ação de inibir a recaptação de serotonina e norepinefrina para o tratamento de dor neuropática e de quadros depressivos. A bupropiona é indicada nos quadros de fadiga e sonolência, mas deve ser evitada nos pacientes de risco para convulsão44. Alfa-2 agonistas adrenérgicos – a clonidina é uma opção para os pacientes que são refratários ao tratamento com opioides. A clonidina administrada por via espinhal tem propriedades analgésicas em pacientes oncológicos e é mais eficaz para dor neuropática que para dor nociceptiva45. Canabinoides – o uso continua sendo controverso para pacientes com dor oncológica refratária ao uso de opioides. Algumas revisões sistemáticas mostram eficácia para dor crônica, especialmente de caráter neuropático46. Lidocaína tópica – é a terapia tópica mais utilizada, sendo usada no tratamento de dor regional e/ou focal de todos os tipos47,48. Capsaicina tópica – utilizada no tratamento de neuralgia pós-herpética49. Toxina botulínica – tratamento de dor refratária em neuralgias do trigêmio e pós-herpética, além de enxaqueca50. Gabapentinoides – utilizados para o tratamento de dor neuropática relacionada com câncer, seja por ação direta ou pelos tratamentos quimioterápico e radioterápico. Tem uma associação interessante com a amitriptilina51. Cetamina – é uma droga antagonista do receptor N-metil-D-aspartato (NMDA). O receptor NMDA é envolvido com a sensibilização central e com o funcionamento dos receptores opioides, além de haver evidências de ações analgésicas dos antagonistas do receptor NMDA. Vários autores acreditam que a cetamina em doses subanestésicas pode ser útil para o tratamento da dor refratária severa52,53. Bifosfonados – indicados em pacientes com dor óssea metastática, ajudam a melhorar a qualidade de vida por facilitar o manejo adequado do quadro álgico. O mecanismo de ação é pela inibição da atividade dos osteoclastos54. Tratamento Intervencionista O tratamento intervencionista da dor é realizado nos pacientes com pobre resposta à terapia medicamentosa e naqueles em que os efeitos colaterais são severos demais para conseguirem adesão ao tratamento medicamentoso proposto. 110 | Dor e Cuidados Paliativos Algumas indicações clássicas de procedimentos intervencionistas são: • Vertebroplastia e cifoplastia – em pacientes com fratura sintomática de corpo vertebral sem retropulsão de fragmentos ósseos para medula espinhal ou acometimento peridural55. • Neurólise de plexo celíaco – em pacientes com dor por neoplasia abdominal alta, particularmente câncer pancreático. A neurólise do plexo celíaco pode ser utilizada até em fases mais iniciais da doença, caso o paciente prefira uma abordagem menos farmacológica. A principal abordagem para a realização do procedimento é a percutânea56,57. • Neurólise de plexo hipogástrico superior – indicada em pacientes com dor visceral pélvica refratária ao tratamento medicamentoso. Geralmente utiliza-se a fluoroscopia para localização das estruturas anatômicas. É feito o bloqueio prognóstico com anestésico local antes da realização do bloqueio neurolítico para se avaliar a resposta58. • Neuroestimulação medular – opção para pacientes com dor neuropática relacionada com câncer, mas não para os pacientes com lesão em medula espinhal59. • Bomba implantável de infusão intratecal de fármacos – indicada em pacientes com dor oncológica de difícil manejo. Costuma haver alívio do quadro álgico com doses mais baixas de medicamentos e consequentemente menos efeitos colaterais60. Referências 1. Goudas LC, Bloch R, Gialeli-Goudas M et al. The epidemiology of cancer pain. Cancer Invest, 2005; 23:182-90. 2. van den Beuken-van Everdingen MH, de Rijke JM, Kesseis AG et al. 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A SDCR ocorre ligeiramente mais nas extremidades superiores que nas inferiores, sendo uma fratura o evento inicial mais comum nos membros superiores. Mulheres são afetadas de 3 a 4 vezes mais que os homens e a idade média no momento do diagnóstico é entre 47 a 52 anos1. A classificação da SDCR é entre tipo I sem lesão de nervo, tipo II com lesão de nervo e tipo III em que os critérios diagnósticos são atendidos apenas parcialmente, mas nenhum outro diagnóstico pode ser feito.1 A SDCR em crianças acomete mais as extremidades inferiores, sendo os sintomas neurológicos pouco importantes. A temperatura da pele costuma ser mais fria em Síndromes Dolorosas Crônicas Não-Oncológicas | 115 crianças que em adultos. Questões psicológicas têm uma maior importância na fisiopatologia em crianças que em adultos3. A fisiopatologia da SDCR envolve mecanismos periféricos, aferentes, eferentes e centrais. Os mecanismos periféricos incluem: hipóxia causada por vasoconstrição induzida por disfunção endotelial; inflamação estéril com aumento dos níveis das citocinas pró-inflamatórias como a interleucina 6 e o fator de necrose tumoral alfa; inflamação neurogênica causada por excreção de neuropeptídeos das fibras C nociceptivas (substância P, bradicinina, peptídeo relacionado com o gene calcitonina); hipersensibilidade denervatória com estímulos inapropriados na pele das extremidades afetadas. Os mecanismos aferentes são: aumento do número de receptores alfa-1 na extremidade afetada; aumento da sensibilidade do receptor alfa-adrenérgico periférico e acoplamento químico entre os neurônios simpáticos e nociceptivos na pele da região afetada pela SDCR. Mecanismos eferentes como disfunção simpática (vasoconstrição, hipóxia e sudorese anormal) e disfunção motora eferente (movimentos involuntários, distonia e rigidez) podem ocorrer na fisiopatologia da SDCR. Por fim, os mecanismos centrais seriam por meio da sensibilização dos receptores NMDA e NK-1, assim como fatores psicológicos relacionados com o medo da dor e à ansiedade ao se movimentar1. As manifestações clínicas mais comuns da SDCR são dor, edema, alodinia, alteração da cor e da temperatura da região afetada, hiperestesia, diminuição da movimentação e da força, tremor, distonia, pele fina, fibrose palmar, unhas quebradiças, atrofia muscular, hiperqueratose, alteração do crescimento de pelos, contratura de tendão, rigidez articular2. A SDCR também pode ser classificada segundo o estágio clínico em que se encontra nos estágios agudo, distrófico e atrófico2,4. No estágio agudo, o paciente desenvolve uma dor em queimação, difusa e desconfortável, com aumento da sensibilidade ao toque e ao frio, assim como edema localizado. A distribuição da dor não é compatível com trajeto de nervo, tronco ou raiz nervosa. Distúrbios vasomotores ocorrem com intensidade variável, produzindo alteração de cor e temperatura; nos casos em que aconteça aumento do fluxo sanguíneo, a pele estará quente, vermelha e seca com crescimento de pelos e unhas; nos casos com fluxo sanguíneo reduzido, a pele ficará fria, úmida e cianótica. A radiografia do osso da área acometida é geralmente normal, mas pode mostrar desmineralização4 . No estágio distrófico, a dor é extensa e há progressão do edema de partes moles, assim como espessamento da pele e dos tecidos articulares. Atrofia muscular pode estar presente e a coloração da pele fica pálida ou cianótica com temperatura fria. A duração desse estágio é de três a seis meses4. No estágio atrófico, há evolução irreversível das alterações tróficas, sendo o estágio mais severo caracterizado pela limitação da movimentação, síndrome ombro-mão, contraturas digitais, pele com aspecto de esclerodermia. A radiografia óssea revela desmineralização severa4. O diagnóstico é feito por meio de história clínica e exame físico. Os critérios de Budapeste são um importante guia para o diagnóstico clínico e estão demonstrados na Tabela 14. 116 | Dor e Cuidados Paliativos Tabela 1 – Critérios diagnósticos modificados de Budapeste Diagnóstico Clínico de Budapeste 1º Dor continua e desproporcional quanto à intensidade e duração do evento desencadeante. 2º Relato de pelo menos um sintoma que contemple três das quatro categorias (a-d). 3º Presença de um sinal em pelo menos duas das quatro categorias (a-d). 4º Ausência de outros diagnóstico que justifique mais adequadamente os sinais e sintomas. Categorias a-) Sensitivas: hiperalgesia, alodínea, hipoestesia. b-) Vasomotoras: assimetria da temperatura e/ou alteração da cor de pele. c-) Sudomotoras/edema: edema ou sudorese anormais. d-) Motoras/tróficas: fraqueza muscular, tremores, anormalidades em pele, cabelo e unhas. Exames de imagem podem ser utilizados para acompanhamento e avaliação da evolução da SDCR, sendo os principais: cintilografia óssea, radiografia óssea, tomografia computadorizada e ressonância nuclear magnética4. Importantes diagnósticos diferenciais com a SDCR são: infecções, doença vascular periférica, trombose venosa profunda, neuropatia periférica, artrite reumatoide e fenômeno de Raynaud4. O tratamento deve focar no alívio da dor e na recuperação funcional, tendo a fisioterapia um importante papel3. Medicamentos como pregabalina, gabapentina, cetamina, prednisona, anti-inflamatórios, metadona, baclofeno, nifedipina, lidocaína podem ser utilizados no tratamento da SDCR 4. Procedimentos intervencionistas como: bloqueio do gânglio estrelado, bloqueio simpático lombar, bloqueio do plexo braquial, neuroestimulação medular e neuroestimulação periférica podem ser necessários nos casos pouco responsivos ao uso de medicamentos por via oral1. Neuralgia trigeminal É a forma de dor facial mais comum em pessoas com mais de 50 anos de idade. A maior incidência da trigeminalgia ocorre entre os 50 e 70 anos de idade, sendo mais prevalente em mulheres. Qualquer um dos ramos do trigêmeo pode ser atingido, sendo a distribuição mais comum a área englobando o segundo e terceiro ramos (32%)5. A fisiopatologia é incerta, mas observações clínicas sugerem que a compressão do nervo trigêmeo perto da sua saída no tronco cerebral por vasos sanguíneos ou tumor podem causar a neuralgia trigeminal. A pressão local causa desmielinização que leva à despolarização anormal, resultando em impulsos ectópicos5. A dor é de curta duração (segundos), em geral unilateral, lancinante e semelhante a um choque elétrico. Estímulos simples como comer, lavar o rosto, fazer a barba, calor, frio, escovar os dentes e falar podem desencadear uma crise álgica2,5. Os exames de imagem como ressonância nuclear magnética são importantes para excluir etiologia secundária na trigeminalgia5. Carbamazepina é o tratamento mais estudado para neuralgia do trigêmeo. Outros medicamentos como oxcarbazepina, fenitoína, baclofeno, lamotrigina, lidocaína tópica podem ser usados. Toxina botulínica, pregabalina, gabapentina e clonazepam precisam de mais evidências para serem utilizados6. Síndromes Dolorosas Crônicas Não-Oncológicas | 117 Procedimentos intervencionistas para o tratamento da dor devem ser utilizados no caso de falha do tratamento medicamentoso. Opções de intervenção são: descompressão microvascular cirúrgica, Gamma knife, microcompressão percutânea com balão, rizólise percutânea com glicerol, radiofrequência convencional percutânea do gânglio de gasser5. Cefaleia em salvas A cefaleia em salvas é uma cefaleia neurovascular primária, sendo estritamente unilateral e associada a sintomas autonômicos ipsilaterais no crânio. A cefaleia em salvas apresenta comportamento circadiano e circanual. O ataque pode ser provocado por vasodilatadores como álcool e nitroglicerina. Os primeiros ataques aparecem entre os 20 e 40 anos de idade. Diferentemente da enxaqueca, a cefaleia em salvas afeta mais os homens e a história familiar de cefaleia em salvas é um fator de risco importante7. Os ataques consistem em dor lancinante, forte, unilateral, ao redor e atrás do olho. A dor ocorre com sinais de desregulação autonômica ipsilateral como lacrimejamento, congestão nasal, rinorreia e até mesmo miose e/ou ptose podem ocorrer. A miose e a ptose podem permanecer entre os ataques7. O tratamento abortivo pode ser feito com inalação de oxigênio, 100% de oxigênio 7 L · min-1 por máscara facial é um dos métodos mais efetivo e o mais seguro. Outras opções de tratamento abortivo são o sumatriptano subcutâneo e a ergotamina sublingual. O tratamento profilático mais seguro é com o verapamil, mas outras opções como o lítio e a prednisona podem ser utilizados7. Na falha do tratamento conservador, o tratamento intervencionista com a radiofrequência convencional do gânglio esfenopalatino é uma boa opção. Em casos refratários à radiofrequência, a estimulação dos nervos occipitais pode ser considerada7. Dor fantasma Amputação parcial ou completa de um membro não leva necessariamente à dor fantasma. A dor é chamada de fantasma quando o paciente sente dor e disestesia nos membros em que não estão mais presentes. Importantes diagnósticos diferenciais são a dor no coto de amputação e o telescoping (sentir a extremidade distal mais proximal). A incidência da dor fantasma varia de 2% a 80%, no entanto nos estudos mais recentes a incidência tem sido bastante alta. Em estudo retrospectivo com amputações traumáticas em combate, 78% dos participantes tiveram dor do membro fantasma desde o momento em que ocorreu a amputação. A intensidade da dor do membro fantasma na escala analógica visual costuma ser entre sete e dez. Medo, depressão e ansiedade costumam estar presentes nos pacientes com dor do membro fantasma, assim como personalidade controladora e rígida8. A dor é em geral intermitente com intervalos que variam de um dia até semanas, casos de intervalos de até um ano são relatados. O ataque pode durar de segundos até horas e a dor é descrita como lancinante, em queimação, em cólica, em choque, penetrante. A dor fantasma geralmente se inicia 14 dias após a amputação, mas pode haver um aparecimento muito precoce com até menos de 24 horas, assim como o quadro pode somente se instalar vários anos depois. Mulheres possuem mais chances 118 | Dor e Cuidados Paliativos de desenvolver dor fantasma que homens e os membros superiores costumam causar mais o quadro que membros inferiores. Em crianças a incidência de dor fantasma é menor. Há indicações que dor severa em pré-amputação e pós-operatória seriam fatores de risco para o desenvolvimento de dor fantasma8. O tratamento conservador tem algumas evidências de bons resultados com cetamina e etanercept, outros medicamentos que podem ser utilizados são a duloxetina, lidocaína endovenosa, pregabalina, metadona, morfina, gabapentina, mirtazapina, capsaicina, fluoxetina, nortriptilina. A terapia do espelho tem tido boa resposta nos pacientes com dor fantasma, inclusive podendo ser utilizada como estratégia preventiva2,8. O tratamento intervencionista pode englobar bloqueio peridural pré- e pós-amputação, passagem de cateter para analgesia contínua no pós-operatório, administração endovenosa de cetamina e lidocaína durante o perioperatório, radiofrequência pulsada em gânglio da raiz dorsal e neuroestimulação medular. Todos os procedimentos intervencionistas têm evidências controversas e não há um padrão de melhor conduta intervencionista a seguir8. Síndrome dolorosa miofascial A síndrome dolorosa miofascial (SDM) é caracterizada por um espasmo muscular persistente que gera dor regional contínua localizada. O padrão da dor pode ser em queimação, fadiga ou cansaço e tem como causas o macrotrauma muscular (estiramento muscular ou trauma direto) e o mais frequente microtrauma muscular (uso repetitivo do músculo ou hábitos posturais inadequados). No exame físico encontramos uma banda muscular tensa e a presença de ponto gatilho (trigger point). O trigger point é uma região nodular de contração muscular bem definida dentro de uma banda muscular tensa cuja palpação firme produz dor local e referida, reproduzindo os sintomas do paciente. A dor referida não segue uma distribuição de raiz nervosa, no entanto sua localização não ocorre casualmente, mas sim em padrão característico de cada músculo. A formação dos trigger points se dá por meio da fadiga de fibras musculares de músculos que foram muito exigidos, com consequente encurtamento e deficiência de suprimento de oxigênio e nutrientes. A contração frequente provoca um aumento na demanda energética, contração dos vasos sanguíneos da região e aumento da liberação e acúmulo de metabólitos entre os quais muitas substâncias neurotransmissoras que podem sensibilizar o sistema nervoso central, perpetuando o ciclo vicioso. Os pontos gatilhos miofasciais muitas vezes desempenham um papel em síndromes de dor focais mal caracterizadas como: dor lombar, dor orofacial, dor pélvica e cefaleia. Estímulos nocivos ao músculo afetado como: infecções, distúrbios hormonais, distúrbios viscerais, fadiga, fibromialgia, fatores ambientais, distúrbios esqueléticos intrínsecos, baixo condicionamento físico e distúrbios do sono podem causar o aparecimento de trigger points. A SDM pode acometer qualquer músculo e/ou fáscia do nosso corpo, sendo mais frequente na coluna cervical, cintura escapular, tórax e cintura pélvica. O diagnóstico da SDM é clínico. Síndromes Dolorosas Crônicas Não-Oncológicas | 119 O tratamento da SDM tem como pilar a correção dos fatores desencadeadores que interferem na capacidade de recuperação completa do músculo. Prática de exercícios aeróbicos, melhora do condicionamento físico, correções posturais, fisioterapia e terapia psicológica são importantes para garantir plena reabilitação do paciente. O tratamento intervencionista é com base na injeção de soluções e/ou no agulhamento a seco quando o trigger point estiver ativo reproduzindo a queixa do paciente. Pode-se injetar 1 a 2 ml de soro fisiológico ou lidocaína sem vasoconstritor a 1% em cada trigger point. A aplicação de toxina botulínica nos trigger points afetados pela SDM é razoável em casos com boa resposta a injeção de solução anestésica ou agulhamento a seco, mas com resposta fugaz. Os resultados da aplicação da toxina botulínica podem durar de três a seis meses. Medicamentos como dipirona, AINEs, carisoprodol e ciclobenzaprina são utilizados no tratamento farmacológico da SDM. Se há suspeita de sensibilização central, tanto a duloxetina como a amitriptilina e a nortriptilina são boas opções para o manejo do paciente. A pregabalina pode ser utilizada mais como medida para controle de quadros ansiosos e melhora do padrão do sono. A lidocaína tópica na forma de adesivo a 5% pode ser utilizada para a melhora da sensibilidade local e de forma a facilitar o manejo fisioterápico do paciente, mas ainda necessita de mais estudos para a sua recomendação.9,10 Fibromialgia A fibromialgia (FM) é uma síndrome em que a dor crônica difusa de intensidade variável é o sintoma principal. A dor costuma ter início em uma determinada região e depois se generaliza com difícil localização, sendo constante, em queimação, agulhadas, pontadas ou prurido. Os pacientes também relatam uma grande variedade de outros sintomas como: depressão e ansiedade, síndrome do intestino irritável, síndrome da bexiga dolorosa, transtorno temporomandibular, dor pélvica crônica, cefaleia crônica diária, síndrome de hipersensibilidade química, rigidez matinal, lombalgia, dor miofascial, artrites, pernas inquietas, zumbidos, rash cutâneos, hipersensibilidade ao frio ou ao calor, parestesias de extremidades, déficit de memória, sensação de edema de extremidades, articular ou periarticular e intolerâncias alimentares. Os pacientes com FM caracteristicamente têm sono não restaurador, agravando os sintomas no dia seguinte. Outra característica da síndrome é a fatigabilidade fácil ao esforço físico, mental e estressores psicológicos. A prevalência na população geral é estimada em 10-11% e no Brasil é, provavelmente, a segunda doença reumatológica mais frequente. Pode acometer desde crianças a idosos, mas geralmente seus sintomas se iniciam entre os 25 e 65 anos, com idade média de 49 anos. Acomete mais mulheres que homens, em uma proporção de 8:1. Há evidências de que a FM resulta de um processamento sensorial anormal do sistema nervoso central, referido como sensibilização central com uma amplificação dos estímulos sensoriais periféricos e redução do controle inibitório descendente da dor no mesencéfalo. Hiperalgesia e alodinia são comuns em pacientes com fibromialgia pela atividade reduzida de neurotransmissores envolvidos na inibição da dor como: serotonina, noradrenalina e dopamina e aumento das concentrações de neurotrans120 | Dor e Cuidados Paliativos missores facilitadores da transmissão dolorosa como: glutamato e substância P que contribuem para a amplificação dolorosa. Parentes de primeiro grau de pacientes com FM apresentam um risco oito vezes maior de desenvolvê-la, mostrando que fatores genéticos são também importantes na etiologia da fibromialgia11. O diagnóstico é eminentemente clínico, sendo o exame físico em geral normal. A força muscular se encontra preservada e o exame neurológico não demonstra nenhuma anormalidade significante. Os exames de análise laboratorial e radiológica são normais, de forma que quando solicitados servem para excluir ou confirmar outras condições. Em 1990, a American College of Rheumatology definiu como critérios diagnósticos para FM sintomas persistentes com pelo menos três meses de duração e dor generalizada acompanhada da presença de pontos dolorosos a palpação (tender points) em 11 ou mais pontos dos 18 padronizados no exame físico. Tabela 2 – Tender points padronizados para diagnóstico clínico de fibromialgia Tender points padronizados para diagnóstico clínico de fibromialgia 1. Região Occipital 2. Borda médio-superior do trapézio 3. Músculo supraespinhoso 4. Quadrante superior-externo do glúteo 5. Grande trocanter 6. Região equivalente entre espaços vertebrais de C5-C7 7. Junção da segunda costela 8. 2 centímetros abaixo do epicôndilo lateral 9. Borda medial do joelho 9 pontos à direita + 9 pontos à esquerda = 18 pontos Em 2010 a American College of Rheumatology criou critérios com base na combinação de sintomas comuns e locais de dor, permitindo definir a fibromialgia como uma entidade contínua com vários graus de acometimento e gravidade. Informar e educar o paciente é o primeiro passo no tratamento da FM. O paciente deve ser informado da natureza benigna da sua doença, dos fatores de melhora e piora. A atividade física não extenuante é sem dúvida uma das modalidades terapêuticas mais eficazes para o tratamento da fibromialgia12. A utilização de medicamentos como paracetamol, dipirona, ciclobenzaprina e carisoprodol melhoram a qualidade de vida do paciente por diminuir a dor. O gerenciamento da sensibilização central é tipicamente iniciado com medicamentos antidepressivos como duloxetina, venlafaxina e amitriptilina que além da analgesia, demonstram melhora na fadiga e sobretudo no sono de pacientes com fibromialgia. Medicamentos anticonvulsivantes como gabapentina e pregabalina atuam diminuindo a liberação de neurotransmissores nociceptivos (substância P e glutamato) na sinapse nervosa do corno posterior, diminuindo a aferência e modulando a ativação dos receptores NMDA13. Os opioides não devem ser a primeira escolha para a analgesia, pois não melhoram a qualidade de vida dos pacientes a longo prazo e adicionam riscos como os relacionados com sonolência, depressão respiratória, dependência química e psicoSíndromes Dolorosas Crônicas Não-Oncológicas | 121 lógica, além da adição; no entanto podem ser prescritos se os analgésicos menos potentes falharem. Para o tratamento da fadiga crônica no paciente com FM devemos excluir causas tratáveis comuns como: dose inadequada das medicações, depressão, descondicionamento aeróbio, distúrbio do sono primário (por exemplo, apneia do sono), sono não restaurador, doenças inflamatórias, doenças infecciosas, distúrbios endócrinos e metabólicos, deficiências nutricionais, doenças gastrointestinais, doenças malignas e doenças neurológicas. O metilfenidato e o modafinil proporcionam uma melhoria da fadiga em alguns pacientes com FM. Para os pacientes com FM e transtornos do sono a trazodona e a ciclobenzaprina, em baixas doses, são as principais estratégias para a farmacoterapia do sono. O distúrbio do sono mais comum nos pacientes com FM é a síndrome das pernas inquietas ou o distúrbio periódico do movimento dos membros, sendo o tratamento com agonistas de dopamina como levodopa, carbidopa, pramipexol ou ropinirole. Estressores relacionados com problemas psicossociais e econômicos geralmente se desenvolvem em pacientes com FM, tendo a terapia cognitivo-comportamental um importante papel para aumentar a adesão do paciente ao tratamento. O suporte psiquiátrico pode ser necessário pois até 50% dos pacientes apresentam distúrbios psiquiátricos concomitantes que dificultam a abordagem e melhora clínica14. Os sintomas de FM geralmente persistem por muitos anos. Em geral, os medicamentos recomendados podem apresentar uma melhora de 30% em cerca de 30% dos pacientes. A dificuldade em aceitar um diagnóstico de FM, hipervigilância, altos níveis de sofrimento psicológico e apoio social fraco são fatores prognósticos ruins. As consequências da dor, fadiga e disfunção cognitiva influenciam negativamente o desempenho sustentado de tarefas físicas e mentais diárias. Neuralgia pós-herpética Condição clínica que surge como uma complicação do Herpes-Zóster (HZ) provocando dor neuropática na região afetada. Os pacientes costumam se queixar de dor contínua tipo queimação, com episódios de paroxismos de pontada, choque e latejamento de moderada a forte intensidade. Os pacientes podem observar uma resposta amplificada aos estímulos no local da neuralgia pós-herpética (NPH) com hiperalgesia e alodinia ou alterações focais na função autonômica (por exemplo, aumento da transpiração). Dor musculoesquelética com trigger points pode ocorrer em pacientes com NPH como resultado de proteção excessiva da área afetada, gerando atrofia muscular e amplitude reduzida de movimento articular. Ao exame físico se evidenciam áreas de hiperpigmentação, hipopigmentação ou cicatrizes nos dermátomos afetados previamente pelo HZ. Alguns pacientes chegam a apresentar prurido crônico na região afetada. O diagnóstico da NPH é eminentemente clínico. O HZ é causado pela reativação do vírus da varicela (Varicela-Zóster) que fica latente nos gânglios da raiz dorsal dos nervos espinhais e gânglios de nervos sensoriais cranianos. Tipicamente, apresenta-se como uma erupção vesicular dolorosa com uma distribuição dermatomérica única, unilateral e que não atravessa a linha média. Ra122 | Dor e Cuidados Paliativos ramente pode ocorrer quadro subclínico com dor na ausência de erupção cutânea, fazendo com que o diagnóstico definitivo de NPH exija avaliação sorológica. A NPH está associada a dano e cicatrização do gânglio da raiz dorsal secundário à inflamação pela reativação viral. Os locais mais comuns para o herpes-zóster e NPH são os dermátomos medianos torácicos e a divisão oftálmica do nervo trigeminal, mas podem ocorrer em qualquer dermátomo15. A NPH ocorre em aproximadamente 9% a 34% dos pacientes pós-HZ, sendo sua complicação crônica e doença neuropática mais comum. Em um estudo, aproximadamente 60% dos pacientes com HZ desenvolveram NPH aos 60 anos e 75% desenvolveram NPH aos 70 anos. Ocorre igualmente em homens e mulheres e a probabilidade de desenvolver NPH aumenta significativamente com o avanço da idade, devido à queda da imunidade celular. Além da idade avançada, outros fatores de risco são história familiar e estados de imunossupressão grave. Fatores de pior prognóstico são maior gravidade da dor prodrômica e na fase de erupção, maior área atingida, localização oftálmica (V1) e em plexo braquial. Tratar adequadamente o quadro de HZ é necessário para reduzir a probabilidade de evolução para NPH. A administração de aciclovir ou valaciclovir dentro de até 72 horas após a HZ parece ajudar a reduzir a probabilidade de desenvolver NPH. Um único estudo publicado apoia o uso de amitriptilina (25 mg por dia) como complemento de um agente antiviral em HZ agudo para diminuir a incidência de NPH e a dor associada à NPH subsequente. Um estudo não controlado com coadministração de valaciclovir e gabapentina durante HZ agudo reduziu também a incidência de NPH. Os corticosteroides não impedem a NPH. A aplicação de laser de baixa frequência nas lesões do HZ parece reduzir a ocorrência de NPH. A história natural da NPH é de resolução lenta com a maioria dos indivíduos respondendo à terapia medicamentosa, principalmente durante o primeiro ano após o herpes-zóster; no entanto, um subgrupo de pacientes pode desenvolver uma dor severa e duradoura. Em um estudo por questionário com 385 adultos com idade > 65 anos e com dor aguda persistente, a duração média da NPH foi de 3,3 anos. A NPH é um uma entidade complexa que necessita ser abordada de forma multimodal. Como tratamento oral de primeira linha temos os gabapentinoides (gabapentina, pregabalina) que são a única terapia oral aprovada nos Estados Unidos para NPH. A gabapentina pode ser administrada na dosagem de 300 mg 3 vezes ao dia (com valor máximo de 3.600 mg/dia) e a pregabalina iniciando com 50 mg à noite e subindo até 300 mg duas vezes ao dia. Os antidepressivos tricíclicos (ADT) e aqueles de ação dual têm por mecanismo de ação principal a inibição da recaptação da noradrenalina e da serotonina no sistema nervoso central, fortalecendo a ação das vias inibitórias descendentes da dor. A amitriptilina (25 mg/noite até um máximo de 75 mg/noite) e a nortriptilina (10-25 mg/noite conforme necessário até um máximo de 75 mg/noite) são outro tratamento de primeira linha. Esses medicamentos têm um atraso no início da ação e podem não funcionar bem em pacientes com certos tipos de dor como dor de queimação ou alodinia, além de terem efeitos colaterais importantes sobretudo em idosos. Um estudo recente mostrou que a combinação de gabapentina e nortriptilina foi mais eficaz do que qualquer droga como monoterapia para dor neuropática. O Síndromes Dolorosas Crônicas Não-Oncológicas | 123 tratamento de segunda linha é composto pelos opioides (por exemplo, oxicodona de libertação controlada, tramadol e metadona) com efeitos colaterais e possibilidade de abuso relevantes. O tratamento tópico pode ser empregado para alívio da alodinia com emplastro de lidocaína a 5% (bloqueio canal de sódio) ou capsaicina creme (depleta substância P) nas concentrações de 0,075% a 0,125%. A capsaicina também é disponível na forma de emplastro com concentração de 8% e sua aplicação se faz em ambiente hospitalar controlado16. Os procedimentos intervencionistas podem ter espaço no tratamento do paciente com NPH. Opções como radiofrequência dos nervos intercostais envolvidos na área da dor, realização de lesões da zona de entrada da raiz dorsal (DREZ) com uma taxa de melhoria de 20% em estudos de longo prazo, neuroestimulação medular e estimulação cerebral profunda vêm se mostrando uma alternativa eficaz para NPH, mas ainda aguardam estudos com um número maior de pacientes. Para casos refratários podemos ainda utilizar corticosteroides epidurais, bloqueios nervosos periféricos, aplicação de toxina botulínica intradérmica (em média 100 U dispersas na área afetada) e crioterapia17. A prevenção da NPH pode ser realizada com a vacinação para se impedir a ocorrência do HZ. A vacina VZV atenuada é efetiva na redução do risco de HZ e NPH, sendo o principal benefício a redução da morbidade causada por NPH. A vacinação reduz o risco de NPH em 67% em pacientes com 60 anos de idade, tendo aprovação para uso em pacientes com mais de 50 anos nos Estados Unidos, embora a recomendação seja a partir dos 60 anos15-17. Referências 1. van Eijs F, Stanton-Hicks M, van Zundert et al. Complex regional pain syndrome. In: van Zundert J, Patijn J, Hartrick CT et al. Evidence-based interventional pain medicine according clinical diagnoses. Oxford: Wiley-Blackwell. 2012. p.123-36. 2. Sakata RK. Síndromes dolorosas crônicas. In: Cangiani LM, Carmona MJC, Torres MLA et al. (Ed.). Tratado de anestesiologia SAESP. 8.ª ed. Rio de Janeiro: Atheneu. 2017; p.2073-83. 3. Sherry DD. Complex regional pain syndrome in children. UpToDate [online]. 2017; p 1-13. Disponível em: http://www.uptodate.com/online. Acesso em: 22 mar. 2017. 4. Abdi S. Complex regional pain syndrome inadults: pathogenesis, clinical manifestations, and diagnosis. UpToDate [online]. 2017; p 1-11. Disponível em: http://www.uptodate.com/online. Acesso em: 23 mar. 2017. 5. van Kleef M, van Genderen WE, Narouze S et al. Trigeminal neuragia. In: van Zundert J, Patijn J, Hartrick CT et al. Evidence-based interventional pain medicine according clinical diagnoses. Oxford: Wiley-Blackwell. 2012. p. 1-7. 6. Bajwa ZH, Ho CC, Khan SA. Trigeminal neuralgia. UpToDate [online]. 2017; p. 1-17. Disponível em: http://www.uptodate.com/online. Acesso em: 30 jan 2017. 7. van Kleef M, Lataster A, Narouze S et al. Cluster headache. In: van Zundert J, Patijn J, Hartrick CT et al. Evidence-based interventional pain medicine according clinical diagnoses. Oxford: Wiley-Blackwell, 2012. p. 8-13. 8. Wolff A, Vanduynhoven E, van Kleef M et al. Phantom pain. In: van Zundert J, Patijn J, Hartrick CT et al. Evidence-based interventional pain medicine according clinical diagnoses. Oxford: Wiley-Blackwell. 2012. p. 160-7. 9. Roldan C, Hu N. Saline for myofascial pain syndrome. J pain. 2015; 16:S90. 124 | Dor e Cuidados Paliativos 10. Roldan CJ, Hu N. Myofascial pain syndromes in the emergency department: what are we missing? J Emerg Med, 2015; 49:1004-10. 11. Arnold LM, Sarzi-Puttini P, Arsenault P et al. Efficacy and safety of pregabalin in patients with fibromyalgia and comorbid depression taking concurrent antidepressant medication: a randomized, placebo-controlled study. J Rheumatol, 2015; 42:1237-44. 12. Halpern R, Shah SN, Cappelleri JC et al. Evaluating guideline-recommended pain medication use among patients with newly diagnosed fibromyalgia. Pain Pract, 2016; 16:1027-39. 13. Reyes del Paso GA, Pulgar A, Duschek S et al. Cognitive impairment in fibromyalgia syndrome: the impact of cardiovascular regulation, pain, emotional disorders and medication. Eur J Pain, 2012; 16:421-9. 14. Heymann R. Novos conceitos em fibromialgia. AtualizaDOR: Prog Educ Med. Ortop, p.41-51 Disponível em: http://www.atualizador.com.br/fasciculos/Fasciculo_AtualizaDOR_MIOLO%204.pdf. [Acesso em 20 ago 2017]. 15. ChenYT, Wang HH, Wang TJ et al. Early application of low-level laser may reduce the incidence of postherpetic neuralgia (PHN). J Am Acad Dermatol. 2016; 75:572-7. 16. Wang BC, Liu D, Furnback WE et al. The cost-effectiveness of pregabalin versus gabapentin for peripheral neuropathic pain (pNeP) and postherpetic neuralgia (PHN) in China. Pain Ther, 2016; 5:81-91. 17. Oliveira CA, Castro APCR, Miyahira SA. Neuralgia pós-herpética. Rev Dor, 2016; 17:s52-5. Síndromes Dolorosas Crônicas Não-Oncológicas | 125 Parte II CUIDADOS PALIATIVOS 11 Capítulo Cuidados Paliativos: Aspectos Conceituais e Princípios Essenciais Mirlane Guimarães de Melo Cardoso Inês Tavares Vale e Melo Guilherme Antônio Moreira de Barros Introdução A doença terminal é um processo contínuo e flutuante, com grande variabilidade individual associada a múltiplos sintomas caracteristicamente intensos e oscilantes. Por isso, os tratamentos devem adequar-se em função da intensidade desses sintomas, dentro de uma visão flexível de tratamentos combinados. Cuidar de indivíduos no fim da vida e de suas famílias dia após dia é uma proposta desafiadora. Entender os desafios para fornecer cuidados de qualidade é o primeiro passo importante, a fim de desenvolver abordagens adequadas para apoiar, educar e facilitar a capacidade de “cuidar no fim da vida”, e é isso que nos propormos a fazer neste capítulo introdutório sobre essa modalidade de assistência, que destaca a dor como um cuidado paliativo especializado. Nesse universo, os cuidados paliativos surgem como uma modalidade de assistência direcionada às condições de incurabilidade e de fim da vida. À medida que a doença avança e o tratamento curativo não proporciona seu controle razoável, os cuidados paliativos, como um modelo de cuidados totais, ativos, integrais e preventivos, são oferecidos ao paciente com doença ameaçadora de vida e à sua família, que vivencia a dor e o sofrimento de seu ente querido. Desse modo, crescem em significado, pois legitimam o direito do paciente de morrer com dignidade, em detrimento do esforço ilimitado e desnecessário de curar a doença. Exige-se, portanto, dos médicos uma base de conhecimento que permita identificar fatores emergentes que possam influenciar o curso da doença limitante de vida, com um excelente controle de sintomas e consequentemente melhor qualidade de vida. Cuidados Paliativos: Aspectos Conceituais e Princípios Essenciais | 129 Esse modelo que tem natureza colaborativa insere-se em um conflituoso campo de intervenções, que inclui também a obstinação terapêutica ou distanásia, a eutanásia e o suicídio assistido, diretivas antecipadas de vontade, sendo que todas estas têm repercussão na qualidade de vida do paciente e de seu entorno, com inegáveis implicações éticas. A prática colaborativa entre diferentes profissionais, por meio do entrelaçamento e da mistura de habilidades específicas, tem demostrado melhores resultados para doentes e suas famílias, que se beneficiam dos serviços de cuidados paliativos. Panorama Atual dos Cuidados Paliativos Globalmente, a expectativa de vida vem aumentando continuamente. Nos países mais desenvolvidos, a expectativa de vida ao nascer para ambos os sexos é estimada em 76,9 anos e, nas regiões menos desenvolvidas, 58,4 anos1. Com o aumento da expectativa de vida da população mundial e o progresso científico que permite o controle de uma série de doenças que anteriormente conduziam à morte iminente e que, atualmente, se controla prolongando a sobrevida do indivíduo, a maioria das pessoas morre de doenças crônicas progressivas, tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento. Quase todos morrem por doenças cardiovasculares (38,5%) e câncer (34%), seguidos de doenças respiratórias crônicas (10,3%), HIV (5,7%) e diabetes (4,6%)2. Aqueles que necessitam de cuidados paliativos e morrem de HIV/AIDS, tuberculose e hepatite B e C tendem a ter entre 15 e 59 anos, enquanto os que morrem de doença de Alzheimer, doença de Parkinson, doenças respiratórias crônicas, doenças cardiovasculares, diabetes, artrite reumatoide e câncer têm predominantemente mais de 60 anos. Porém, independentemente do diagnóstico, os pacientes sofrem problemas similares como dor, dispneia, sofrimento psicossocial e espiritual2. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, em todo o mundo, dos quase 20 milhões de pessoas, por ano, que necessitem de cuidados paliativos no fim da vida, cerca de 80% vivem em países de baixa e média renda; 67% são idosos (mais de 60 anos) e em torno de 6% são crianças. A maioria da população acredita que essa necessidade inclui o ano anterior à morte, totalizando, assim, 40 milhões de pessoas por ano com indicação dessa medicina solidária3. De forma geral, os princípios dos cuidados paliativos que serão discutidos neste capítulo são aplicados aos portadores de enfermidades neurológicas evolutivas ou degenerativas, renais, cardíacas e hepáticas crônicas, doenças metabólicas, genéticas, câncer etc., males potencialmente letais a médio e curto prazo, que não respondem a tratamentos disponíveis com finalidade curativa, mas necessitam do controle da dor e o manejo dos sintomas associados à progressão da doença e seus respectivos tratamentos4,5. Aspectos Históricos e Conceituais em Cuidados Paliativos Os importantes avanços da antibioticoterapia e o desenvolvimento científico e tecnológico que sucedeu à Segunda Guerra Mundial atingiram a medicina na década de 1950, propiciando progressos memoráveis que culminaram na cura de várias doenças, aumentando significativamente a expectativa média de vida. A introdução da estatís130 | Dor e Cuidados Paliativos tica como método de aferição da qualidade dos serviços médicos prestados motivou os profissionais de saúde a avaliarem a qualidade de seu desempenho, sobretudo pela incidência de cura e pelo aumento de sobrevida em detrimento do alívio dos sintomas. Essa realidade trouxe como consequência uma postura diferente desses profissionais, que passaram a utilizar métodos de diagnóstico e tratamentos altamente sofisticados, porém extremamente agressivos para os pacientes, prolongando-lhes a existência, porém aumentando-lhes o sofrimento. Esse comportamento da medicina tornou-se crucial diante de doenças como o câncer e o HIV/SIDA, em que a cura só pode ser obtida por meio de métodos extremamente lesivos e citotóxicos ao organismo (ressecções cirúrgicas amplas, quimioterapia e radioterapia), requerendo, portanto, uma análise judiciosa entre o risco e o benefício do tratamento. Os médicos então influenciados pelas estatísticas frequentemente forçam a indicação de procedimentos curativos ou abandonam, frustrados, os pacientes não curados à própria sorte. A rápida ampliação e disseminação desse movimento fez com que os profissionais de saúde percebessem que, no afã de prolongar a vida, algumas vezes, apenas estavam retardando a morte, mediante métodos artificiais e cruentos, a distanásia6. Surgiu, então, um modelo de assistência médica que mantém a orientação de um tratamento curativo, mas recomenda o tratamento precoce de todos os sintomas desconfortáveis e a análise criteriosa da indicação de condutas heroicas visando à cura, e se os pacientes evoluem com doença ativa, progressiva e ameaçadora à continuidade da vida, eles são mantidos com os necessários cuidados a fim de preservar a qualidade de vida. Essa nova conduta estabeleceu um equilíbrio entre esses extremos, preenchendo uma lacuna tão grande no exercício da atividade médica que imediatamente foi reconhecida em muitos países como uma nova especialidade – a Medicina Paliativa4. No Brasil, desde 2012, a medicina paliativa é considerada uma área de atuação médica creditada a algumas especialidades médicas, como a anestesiologia, geriatria e gerontologia; terapia intensiva; medicina de família e comunidade; oncologia clínica; pediatria; neurologia e cirurgia de cabeça e pescoço. Esse enfoque terapêutico, bem como o conceito de hospice, ambos com características multidisciplinares, foi introduzido no Brasil na década de 19807,8. O termo “paliativo” deriva da palavra latina pallium, que significa capa, manto. Essa etimologia aponta para a essência dos cuidados paliativos: aliviar os efeitos das doenças incuráveis, buscando integrar as diferentes dimensões do cuidado físico, psicológico, social e espiritual, de tal modo a facilitar ao paciente não somente um morrer em paz, mas também um viver ativo, na medida do possível, até o momento final. O cuidado paliativo foi definido inicialmente como um cuidado ativo e total de pacientes com doença ativa, progressiva e avançada, em que o prognóstico de vida é limitado e o foco de importância é a qualidade de vida – incluindo seu grupo familiar –, com base em uma equipe multiprofissional, quando a enfermidade não responde a terapêuticas curativas, considerando sua morte como um processo normal, que não pode ser retardado nem acelerado. Contudo, o uso do termo “curativo” não é adequado, uma vez que muitas condições crônicas não podem ser curadas, mas podem ser compatíveis com uma expectativa de vida por vários anos8. Cuidados Paliativos: Aspectos Conceituais e Princípios Essenciais | 131 À medida que essa filosofia de cuidado foi se desenvolvendo, esse conceito foi modificado em todo o mundo. Em 2002, a OMS redefiniu o conceito de Cuidados Paliativos, dando ênfase à prevenção do sofrimento. “É uma abordagem que aprimora a qualidade de vida dos pacientes e das famílias que enfrentam problemas associados a doenças ameaçadoras da vida, através da prevenção e do alívio do sofrimento, por meio de identificação precoce, avaliação correta e tratamento da dor e outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual.” Princípios em Cuidados Paliativos O trabalho de uma equipe de cuidados paliativos é regido por princípios claros que podem ser evocados em todas as atividades desenvolvidas. Esses princípios também foram publicados pela OMS em 1986 e reafirmados em 2002 (Tabela 1). Tabela 1 – Princípios dos cuidados paliativos8 1 2 3 4 5 6 7 8 9 Princípios dos cuidados paliativos (OMS, 1996, 2002) Promover o alívio da dor e de outros sintomas desagradáveis. Afirmar a vida e considerar a morte como um processo natural. Não acelerar nem adiar a morte. Integrar aspectos psicológicos e espirituais no cuidado com o paciente. Oferecer um sistema de suporte que auxilie o paciente a viver tão ativamente quanto possível, até o momento de sua morte. Oferecer um sistema de suporte para auxiliar os familiares durante a doença do paciente e a enfrentar o luto. Oferecer uma abordagem multiprofissional para focar as necessidades dos pacientes e seus familiares, incluindo acompanhamento do luto. Melhorar a qualidade de vida e influenciar positivamente o curso da doença. Iniciar, o mais precocemente possível, os cuidados paliativos, juntamente com outras medidas de prolongamento da vida, como quimioterapia e a radioterapia, e incluir todas as investigações necessárias para melhor compreender e controlar situações clínicas estressantes. Como definido por Saunders, o cuidado paliativo está dirigido para o alívio do sofrimento e da “dor total”, termo por ela introduzido na década de 1970, que descreve todos os aspectos que rodeiam o doente com dor, em especial o paciente oncológico. Saunders estabeleceu três princípios essenciais para atingir os objetivos dos cuidados paliativos. Estes são: tratamento dos sintomas, destacando-se o controle da dor; apoio psicossocial e espiritual, além da comunicação contínua e da adaptação das necessidades do doente e de sua família, considerando o paciente, e não a doença, como o verdadeiro centro da atenção, trabalhando com uma equipe multiprofissional e interdisciplinar, para oferecer uma resposta rápida e efetiva aos pacientes, suas famílias e aos cuidadores profissionais9. Em alguns casos, a perspectiva existencial, mesmo sem dor e outros sintomas, pode não ter significado. Para as famílias, há, igualmente, grande sofrimento nesse processo: perda antecipada, testemunho permanente da angústia emocional do paciente e o convívio com os fardos do cuidado. Finalmente, os cuidadores profissionais testemunham potencialmente o sofrimento 132 | Dor e Cuidados Paliativos do paciente e de sua família, que desafia seus recursos emocionais. De acordo com esse modelo, o sofrimento de cada um desses três grupos está inextricavelmente inter-relacionado, de tal forma que a angústia percebida por qualquer um dos três grupos pode amplificar o sofrimento dos outros (Figura 1)10. Esse modelo tem sido chamado de sofrimento recíproco11. Figura 1 – A inter-relação entre a angústia do paciente, da família e dos prestadores de cuidados de saúde10-12. Prevalência da Dor e Outros Sintomas Segundo a OMS, o doente com câncer apresenta uma média de dez sintomas de uma vez. A dor, mesmo não sendo o sintoma mais frequente, é o que significativamente afeta a qualidade de vida dos doentes com câncer na terminalidade, constituindo-se num fator importante do sofrimento relacionado com a doença, mesmo quando comparado à expectativa de morte. Anteriormente, dados da literatura registravam estudos de prevalência de sintomas predominantemente em pacientes com câncer. Grandes conjuntos de dados com base em outras populações de pacientes com doença avançada com risco de vida foram publicados nessa última década. Embora a generalização seja problemática, a evidência sugere que, para pacientes com doença avançada e progressiva oncológica e não oncológica existe um grupo central de sintomas comuns, principalmente no último ano e provavelmente nos últimos dias de vida, conforme meta-análise que incluiu 64 estudos e identificou 11 sintomas preditivos (Tabela 2)13. A dor aparece como o sintoma mais prevalente nos portadores de câncer e de HIV/ AIDS e a dispneia e fadiga, nos portadores de doença cardíaca e DPOC. Doença cerebrovascular (AVC) e doença de Alzheimer, classificadas como a segunda e a quarta causa mais comuns de morte em todo o mundo, respectivamente, não foram incluídas na meta-análise13. Esses dados estatísticos qualificam a dor crônica como um problema de saúde pública importante, que requer atenção, independentemente da origem da doença que a ocasionou. A dor crônica frequentemente está associada a uma sequência continuada de tratamentos falhos, o que promove ainda mais o processo de condicionamento patológico, mesmo quando são escolhidos os tratamentos corretos. Esse cenário sugere que fatores inter-relacionados menos evidentes e alheios à medicina mantenham essa Cuidados Paliativos: Aspectos Conceituais e Princípios Essenciais | 133 condição desfavorável, como problemas conceituais, administrativo-legais e de transferência de tecnologia por meio da educação continuada na área de dor. Tabela 2 – Prevalência de sintomas em doenças ameaçadoras da vida13 Sintomas Dor Depressão Anorexia Confusão Fadiga Dispneia Insônia Náusea Constipação Diarreia Anorexia Câncer (%) HIV/AIDS (%) 35-96 3-77 13-79 6-93 32-90 10-70 9-69 6-68 23-65 3-29 30-92 63-80 10-82 8-34 30-65 54-85 11-62 74 43-49 34-35 30-90 51 Doença cardíaca (%) 41-77 9-36 49 18-32 69-82 60-88 36-48 17-48 38-42 12 21-41 DPOC (%) 34-77 37-71 51-75 18-33 68-80 90-95 55-65 27-48 35-67 Doença renal (%) 47-50 5-60 39-70 73-87 11-62 31-71 30-43 29-70 21 25-64 Portanto, o controle dos sintomas, com ênfase no alívio da dor, é um dos componentes essenciais e instrumento fundamental dos cuidados paliativos, independentemente da etiologia da doença. Modelo de Intervenção Terapêutica Diagnosticar, prevenir, tratar e curar (muitas vezes) faz parte da arte milenar do médico, porém, estamos nos esquecendo da arte e da ciência de prognosticar. Muitos autores têm estudado a conduta dos profissionais ante o ato de prognosticar. De modo geral, a maioria dos clínicos evita fazer previsões ou, se as fazem, as guardam para si e não as comunicam ao paciente; quando informam, não o fazem claramente, superestimando o prognóstico em situação de doença avançada, incurável e progressiva. As intervenções terapêuticas estão intimamente relacionadas com o prognóstico para delinear os objetivos do plano individual de intervenção, como também com a gestão de expectativas, prioridades, tomadas de decisão e escolhas terapêuticas de pacientes e familiares. O tratamento efetivo da dor crônica, como fenômeno multidimensional, requer fluidez conceitual que incorpore uma compreensão de como os fatores físicos, psicológicos, espirituais e sociais afetam a neurofisiologia da nocicepção, da percepção da dor, da modulação da dor, do sofrimento e do comportamento doloroso. Uma conduta analítica para avaliar os pacientes com dor nos cuidados paliativos como um sistema biopsicossocial ajuda o médico a organizar efetivamente as informações de forma categórica para poder formular racionalmente uma interação dos fatores ao longo da via causal até a cronicidade12,14. Essas formulações, com uma lista de problemas priorizados e um plano de controle objetivo, direcionam para um tratamento mais efetivo que o tratamento convencional. Entretanto, muitos aspectos cruciais dos cuidados paliativos se aplicam perfeitamente à medicina curativa, bem como, de outro 134 | Dor e Cuidados Paliativos lado, o desenvolvimento dos cuidados paliativos pode influenciar positivamente outras formas de cuidados de saúde, ao valorizar aspectos que ficam em segundo plano por causa do domínio da medicina chamada científico-tecnológica, como a dimensão humana, ética e espiritual9,14. Desde o início do movimento hospice moderno, os cuidados paliativos liderados por Cicely Saunders, no Reino Unido, Vittorio Ventafridda, na Europa, e Monte Balfour, no Canadá, evoluíram e agora estão integrados à medicina tradicional. Assim, os cuidados paliativos têm recebido atenção crescente de pacientes, profissionais de saúde e gestores nos últimos anos, tanto nos países desenvolvidos como nos em desenvolvimento9,15. Adaptados para diversos sistemas de saúde, os serviços de cuidados paliativos se intensificaram em mais de cem países. Embora originalmente concebido como algo direcionado apenas aos cuidados de fim da vida, os cuidados paliativos tornaram-se mais integrados, com serviços oferecidos ao longo da trajetória da doença ameaçadora da vida12,15 (Figura 2). Figura 2 – Intervenções terapêuticas nos cuidados paliativos12,15 Portanto, a OMS estabelece que os tratamentos curativos e paliativos não sejam excludentes, podendo oferecer ao paciente melhor qualidade de atenção desde o início, de uma forma mais ampliada a qualquer patologia em fase avançada, independentemente da etiologia, ou seja, os cuidados paliativos não são indicados pelo diagnóstico, mas pela evolução da doença e pelas necessidades do doente, tendo como base para a tomada de decisões a avaliação de desempenho funcional, por meio da Palliative Performance Scale – PPS (Tabela 3). Estudos demonstraram que 90% dos pacientes com PPS igual a 50% não têm sobrevida superior a seis meses, estando, nesses casos, indicado o acompanhamento ativo desses pacientes por equipe de cuidados paliativos. A fase final da vida coincide com PPS em torno de 20%16. Cuidados Paliativos: Aspectos Conceituais e Princípios Essenciais | 135 Tabela 3 – Palliative Performance Scale (PPS) Atividade e Nível de Autocuidado Ingesta evidência da doença consciência Atividade normal; 100 Completa Completo Normal Completa sem evidência Atividade normal; Normal ou 90 Completa Completo Completa alguma evidência reduzida Atividade normal com Normal ou 80 Completa esforço; Completo Completa reduzida alguma evidência Incapaz para Normal ou 70 Reduzida trabalho. Doença Completo Completa reduzida significativa Incapaz para hobbies Completa ou Assistência Normal ou 60 Reduzida e trabalho doméstico. períodos de ocasional reduzida Doença significativa confusão Maior tempo Incapacitado para Completa ou Assistência Normal ou 50 sentado ou qualquer trabalho. períodos de considerável reduzida deitado Doença extensa confusão Incapaz para Assistência Completa/ Maior parte do a maioria das Normal ou 40 quase sonolência +/tempo acamado atividades. reduzida completa confusão Doença extensa Incapaz para qualquer Completa/ Totalmente Dependência Normal ou 30 atividade. sonolência +/acamado completa reduzida Doença extensa confusão Incapaz para qualquer Mínima a Completa/ Totalmente Dependência 20 atividade. pequenos sonolência +/acamado completa Doença extensa goles confusão Incapaz para qualquer Confuso ou Totalmente Dependência Cuidados 10 atividade. coma +/acamado completa com a boca Doença extensa confusão 0 Morte % Deambulação Estratégia para Manejo da Dor e Outros Sintomas As equipes de saúde dedicadas aos cuidados paliativos devem entender que um mau controle dos sintomas se traduz em sobrecarga física e psicológica para o paciente, por isso, devem existir vias de comunicação claras e determinadas para a assistência e o estabelecimento de consenso profissional para quando se apresentarem algumas dificuldades, sendo o familiar um pilar fundamental para incentivar o paciente na adesão ao tratamento da dor e no manejo dos efeitos adversos Com base nessa avaliação, pode-se formular um plano de cuidados interdisciplinares para atender às necessidades da trilogia dos cuidados: paciente, família e cuidadores em cada uma das dimensões física, psicológica, social e existencial (espiritual)12. A formulação pode ser resumida num documento que descreve o seguinte: 1. A condição clínica do paciente e os objetivos dos cuidados. 2. Descrição da família envolvida e dos cuidadores profissionais. 136 | Dor e Cuidados Paliativos 3. Problemas do paciente: físico, psicológico, existencial, social, de comunicação e compreensão. 4. Questões familiares: físicas, psicológicas, existenciais, sociais, de comunicação e compreensão. 5. Questões do cuidador profissional: pessoais, emocionais, de treinamento, necessidade de recursos. 6. Avaliação do enfrentamento: paciente, família e pessoal profissional. 7. Planejamento de contingência: contingências previstas, planejadas e intervenções. Historicamente, Twycross já tinha proposto uma estratégia de base científica para o manejo adequado da dor e de outros sintomas que se resume na sigla EMA17: • Evolução e Explicação • Manejo terapêutico e Monitorização • Atenção aos detalhes Rotineiramente, essa estratégia se faz necessária para implementar os ajustes terapêuticos, a considerar: progressão da doença; desenvolvimento de tolerância; aparecimento de efeitos adversos intratáveis; fatores farmacocinéticos e farmacodinâmicos; identificação do padrão temporal da dor e do tipo de dor; abordagem adequada do componente neuropático da dor mista, frequentemente negligenciado, contribuindo diretamente para a baixa adesão ao tratamento analgésico18. Os fatores não físicos envolvidos na expressão dos sintomas de difícil controle, como a ansiedade pela proximidade da morte, depressão reativa e a dimensão espiritual presente na evolução do doente com doença avançada, contribuem negativamente, se não forem identificados e abordados adequadamente pela equipe multiprofissional, para a qualidade de morte dos pacientes19. Cuidados Paliativos na Atenção Domiciliar Observamos que na presença de um paciente com diagnóstico de doença terminal associada à dor total e à diminuição da capacidade funcional, a equipe de saúde inicial tende a abandonar e cessar a atenção ao paciente, transferindo essa responsabilidade para as famílias em suas residências, o que gera verdadeiras crises familiares. Desse modo, os pacientes passam a utilizar com maior frequência os serviços de emergência por causa do quadro de dor não controlada, que, no melhor dos casos, é estabilizada em centros assistenciais, ou são transferidos para outros serviços, ocasionando maior gasto institucional e insegurança para o paciente e sua família, que se sentem rejeitados e mal atendidos, e é nesse momento que a atenção domiciliar ganha espaço. A analgesia domiciliar, bem como o controle dos outros sintomas desconfortáveis, que serão discutidos em outros capítulos, segue os mesmos princípios, sendo efetiva sem riscos notáveis de efeitos adversos, entretanto, os bons resultados vão requerer maior compromisso das famílias. É, portanto, vital avaliar a disponibilidade e a competência dos sistemas de suporte dos profissionais e da família em conduzir as recomendações médicas. Deve-se avaliar o grau de conflitos interpessoais, a dinâmica familiar, o tipo de família, a religião e os valores em relação à morte e finalmente o Cuidados Paliativos: Aspectos Conceituais e Princípios Essenciais | 137 tipo de atenção domiciliar e a farmacoterapia proposta para o alívio da dor e de outros sintomas frequentes na terminalidade. O provedor dos cuidados pode ser um familiar motivado por um componente emocional (cuidador informal) ou pessoa contratada para realização do cuidado (cuidador formal). Geralmente, na maior parte das famílias, o cuidado do paciente crônico é assumido por um único membro da família, chamado de “cuidador principal”, que pode ocorrer voluntariamente ou por acordo familiar. O cuidador deve exercer diferentes tipos de habilidade: de enfermeiro, conselheiro, psicólogo e advogado, além de cumprir com o resto de suas responsabilidades particulares já anteriormente adquiridas, sendo nítida a dificuldade para compatibilizar os diferentes tipos de responsabilidade, o que repercute na qualidade de atenção que é delegada ao paciente, podendo levar ao estresse em consequência da intensidade e continuidade dos cuidados e da carga emocional da situação vivida. Sua resposta a essa situação vai depender muito da forma como a equipe multiprofissional, responsável pela assistência domiciliar, valoriza essa situação. O cuidador principal merece uma esmerada atenção por parte da equipe e deve receber uma justa atenção e reconhecimento dos outros membros da família e da sociedade. Por tudo isso, é recomendável que o médico, desde o princípio, aborde o grupo familiar e, dessa maneira, conduza a identificação, entre os membros, daquele que têm propensão para cumprir as tarefas de cuidador principal, buscando um acordo e a colaboração de todo o grupo. Na atenção domiciliar é disponibilizada uma equipe multiprofissional integrada por médico, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, fisioterapeutas, orientador espiritual e voluntários, que deve informar ao grupo familiar sobre a doença de seu parente, sua evolução, o prognóstico e sobre como os cuidados devam ser realizados e, além de oferecer apoio moral e ajuda psicológica, também levará apoio espiritual dado por sacerdote ou orientador espiritual. Há importantes evidências sobre os benefícios dos cuidados paliativos no domicílio. Uma revisão de Cochrane recente identificou 23 estudos, dos quais 16 foram ensaios clínicos randomizados, incluindo 37.561 pacientes, em sua maioria com câncer avançado, e 4.042 cuidadores familiares, por meio do qual foi demonstrado que uma equipe especializada em cuidados paliativos no domicílio mais do que duplicou as chances de os pacientes morrerem em casa em comparação com os que recebiam cuidados convencionais, e ainda com redução dos sintomas desconfortáveis20. Os cuidados paliativos domiciliares englobam valores científicos e éticos que não devem ser considerados um luxo restrito a uma elite que pode adquirir esse tipo de cuidado de forma privada; eles devem ser vistos como uma forma solidária de assistência integrada no sistema de saúde pública. Considerações Finais Tratar além de curar é missão básica dos profissionais médicos. Com a atual taxa de mortalidade, a parte essencial do controle da dor nos cuidados paliativos é melhorar a qualidade de vida e/ou a qualidade da morte. Cuidados no fim da vida são particularmente intensos por causa das diferentes dimensões envolvidas no adoecimento. Essas dimensões, que incluem as condições físicas, emocionais, sociais, espirituais e 138 | Dor e Cuidados Paliativos práticas, podem variar em importância nos diferentes estágios do processo da morte, independentemente do diagnóstico da doença. Finalmente, os cuidados paliativos, pela qualidade de vida que proporcionam, devem ser aceitos e propagados por todos, porque nada pode mudar tanto a qualidade de vida dos doentes em situação terminal e de suas famílias como a colocada em prática por meio de procedimentos e técnicas de alívio da dor e de abordagem integral do sofrimento, que se adquirem somente com essa modalidade de assistência. Nesse processo de mudança por uma melhor terminalidade, todos nós podemos ser necessários, conforme nos recomenda o nosso Código de Ética Médica, no cap. I, Princípios Fundamentais, art. XXII21, que defende que, nas situações clínicas, irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados, necessários para maximizar a qualidade de vida e de fim de vida. Referências 1. World Health Organization. The top 10 causes of death. Geneve: WHO, 2013. 2. World Health Organization. World Health Statistics 2012. Geneve: WHO, 2012 3. World Health Organization. Projections of mortality and causes of death, 2015 and 2030. Geneva: WHO, 2015. 4. Bruera E, De Lima L, Wenk R et al. Palliative care: basic principles. In: Bruera E. Palliative care in developing world: principles and practice. Houston: International Association for Hospice and Palliative Care, 2004. p. 1-9. 5. De Simona G, Tripopdoro V. Fundamentos de cuidados paliativos y control de sintomas. Buenos Aires: Pallium Latinoamérica, 2004. 6. Pessini L, Bertachini L (Org.). Humanização e cuidados paliativos. São Paulo: EDUNISC-Ed. Loyola, 2004. 7. National Council for Hospice and Specialist Palliative Care Services. Specialist palliative care: a statement of definitions. London: National Council for Hospice and Specialist Care Services; 1995. (Ocasional papear, 8) 8. Davies E, Higginson I. The solid facts: palliative care. Geneva: WHO; 2004. 9. Saunders DC (Ed.). Hospice and palliative care: an interdisciplinary approach. London: Edward Arnold, 1990. 10. Cherny NI, Coyle N, Foley KM. The treatment of suffering when patients request elective death. J Palliat Care, 1994;10,:71-9. 11. Wittenberg-Lyles E, Goldsmith J, RaganS. The shift to early palliative care: a typology of illness journeys ad the roleof nursing. Clin J Oncol Nurs, 2011; 15: 304-10. 12. Stjernsward J, Clark D. Palliative medicine: a global perspective. In: Doyle D, Hanks GWC, Cherny N et al. (Ed.). Oxford textbook of palliative medicine. Oxford: Oxford Univerty Press, 2003. p.1199-224. 13. Solano JP, Gomes B, Higginson IJ. A comparison of symptom prevalence in far advanced cancer, AIDS, heart disease, chronic obstructive pulmonary disease and renal disease. J Pain Symptom Manage, 2006;31:58-69. 14. Astudillo W, Rocha AC, Mendinueta C. Alivio de las situaciones difíciles y del sufrimiento en la terminalidad. San Sebastián: Sociedad Vasca de Cuidados Paliativos, 2005. 15. World Health Organization. Primary health care: now more than ever. Geneva: WHO; 2008 16. Palliative Performance Scale (PPSv2) version 2. In: Victoria Hospice Society. Medical care of the dying. 4th ed. Victoria Hospice Society, 2006. p.120. Cuidados Paliativos: Aspectos Conceituais e Princípios Essenciais | 139 17. Twycross R. Introducing palliative care. 4th ed. Radcliff Med, 2003. p. 4-8. 18. Cardoso MGM, Weinstock JG, Sardá Jr JJ. Adesão ao tratamento da dor neuropática. Rev Dor, 2016;17(Suppl 1):107-9. 19. Silva JO, Araújo VMC, Cardoso BGM et al. Dimensão espiritual no controle da dor e sofrimento do paciente com câncer avançado: relato de caso. Rev Dor, 2015; 16:71-4. 20. Gomes B, Calanzani N, Curiale V et al. Effectiveness and cost-effectiveness of home palliative care services for adults with advanced illness and their caregivers. Cochrane Database Systc Rev, 2013; (6):CD007760. 21. Conselho Federal de Medicina Brasil. Resolução nº 1.931, de setembro de 2009. Código de Ética Médica. Cap. I, Princípios Fundamentais, Art. XXII. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2010. 140 | Dor e Cuidados Paliativos 12 Capítulo Informação e Comunicação em Cuidados Paliativos Guilherme Antonio Moreira de Barros Danielle Soller Lopes Mirlane Guimarães de Melo Cardoso Introdução Os cuidados paliativos, segundo a Organização Mundial de Saúde, são cuidados direcionados a portadores de doenças ameaçadoras da vida que têm como objetivo a melhora da qualidade de vida de pacientes e familiares, aliviando a dor e outros sintomas, proporcionando apoio espiritual e psicológico desde o momento do diagnóstico até o final da vida, incluindo a fase de luto1. A comunicação é a base do relacionamento humano e não poderia ser diferente quando se refere à relação médico-paciente. A boa comunicação pode ter efeito benéfico sobre o paciente, mas a comunicação praticada de forma desrespeitosa pode ter efeito iatrogênico, especialmente quando envolve a revelação de uma má notícia. Elementos como empatia, compreensão, interesse, desejo de ajuda e bom humor são indispensáveis para conseguir um ambiente de conforto emocional, no qual o paciente receberá informações sobre doença e diagnóstico, e o médico agirá segundo seus conhecimentos, experiência clínica e suas capacidades humanas2-4. Os profissionais envolvidos nesses cuidados necessitam de habilidades específicas nas quais o tema “comunicação” possui importante papel. Na maioria das vezes os pacientes possuem doenças de alta complexidade, e as demandas de cuidados do paciente e da própria família, são muito altas4. Todos gostamos de comunicar quando o conteúdo a ser transmitido é bom: o sucesso de uma proposta terapêutica, o nascimento de uma criança saudável, a alta hospitalar etc. Mas quando o conteúdo envolve uma má notícia, o sentimento é totalmente distinto e evitamos ao máximo sermos expostos à situação5. Pode-se definir uma má notícia como qualquer informação que possa afetar de forma séria e adversa a visão de um indivíduo sobre seu futuro. A maioria dos profissionais de saúde já se deparou, Informação e Comunicação em Cuidados Paliativos | 141 ou irá se deparar, com a necessidade de revelar uma má notícia. Esta pode ser um diagnóstico de uma doença que ameace a vida, como o câncer; uma doença crônica, como diabetes ou AIDS; a amputação de um membro; o fim das possibilidades curativas; um prognóstico ruim; a perda da visão ou audição; uma intercorrência em uma cirurgia; o custo de um tratamento; a proximidade da morte e muitos outros fatores que gerem grande estresse para o profissional5. Durante o aprendizado em saúde, especialmente em medicina, o grande objetivo a ser alcançado é a cura. A impossibilidade da cura é encarada como falha, insucesso. Enxerga-se a morte como o maior inimigo a se combater. No entanto, a medicina atual oferece, na maioria das vezes, o controle da doença e não a cura6. Atualmente, vive-se uma época de maior longevidade, portanto, há maiores possibilidades de que doenças crônicas se desenvolvam. A perspectiva de ensino na cura gera profissionais que assimilam enorme estresse em comunicar uma má notícia, especialmente em caso de doença crônica ou ameaçadora da vida, pois eles também carregam a culpa e a sensação de falha ao não oferecerem a cura7. Segundo Silva, em publicação do Grupo de Trabalho sobre Cuidados Paliativos do Cremesp, “[...] a tristeza de um diagnóstico ruim é insuportável para ambos, médico e paciente, sendo que o médico reage a essa tristeza usando os mecanismos de defesa que aprendeu ao longo de sua formação, em especial o distanciamento. E o paciente muitas vezes reage através da depressão e da melancolia, pela falta de acolhimento no momento de tão grande dor”7. Decisão de se informar Muitos familiares e profissionais da saúde optam por não revelar a verdade nos casos em que a morte está próxima, o que visa “proteger” o paciente do impacto da má notícia. Quando essa atitude é adotada o paciente é privado da chance de se despedir, de tomar providências práticas como testamento, herança, de providenciar e participar de rituais religiosos, de se desculpar, de revelar segredos, de fazer coisas que sempre quis fazer, de dizer “eu te amo”, de fazer as pazes consigo mesmo. Ademais, a chance de um paciente que ignora seu real estado de saúde optar por tratamentos fúteis ou recusar opções de cuidados paliativos aumenta consideravelmente. Além disso, cada vez mais de forma compulsória, os profissionais da saúde têm a obrigação de fornecer e solicitar o termo de livre consentimento e esclarecimento previamente a qualquer procedimento. Não é possível o paciente consentir com um tratamento ou com uma opção terapêutica se ele não tem informação suficiente, nem em quantidade nem em qualidade, para decidir6. Muitos fatores influenciam a forma e a qualidade do ato de se comunicar eficientemente com os pacientes, entre eles, as condutas e abordagens adotadas pelo serviço em que o profissional de saúde está engajado, a idade, o cansaço, o contexto cultural, a crença religiosa e o treinamento sobre comunicação recebido. Esse treinamento pode ser adquirido como ensino formal ou pelo exemplo de outros profissionais em práticas semelhantes. Sabe-se, entretanto, que o treinamento do profissional pode ter efeito positivo sobre a qualidade da comunicação2. 142 | Dor e Cuidados Paliativos Muitos autores afirmam que o processo da transmissão da informação é o que provavelmente o paciente e sua família se lembrarão para o resto da vida. Tem mais impacto, assim, o “como” se informa, e não “o que” se informa. De acordo com o que Howard Brody, em seu livro sobre decisões éticas em medicina, cita: “A decisão de se revelar um prognóstico grave, que pode ser ética por si só, pode se tornar antiética se ela é feita abruptamente e, após isso, o médico se isenta de oferecer suporte emocional para ajudar o paciente a lidar com seus sentimentos. Na verdade, assegurar que o médico pretende estar ao lado do paciente ao longo do processo de adoecer e que ele sempre estará disponível para oferecer todo o conforto possível pode ser mais importante do que a má notícia por si só. Em muitos dos casos difíceis, em que se é oferecida uma justificativa para ocultar a verdade do paciente, a ausência de demonstração da compaixão pode produzir mais dano que o fato de se revelar a verdade”8. Comunicar uma má notícia pode ser um grande desafio. Ao mesmo tempo em que se espera que um profissional da saúde seja honesto e aberto, ele não pode tirar a esperança; deseja-se que ele seja humano e solidário, mas, simultaneamente, forte e profissional. É como estar em pé em um rio caudaloso tentando manter o equilíbrio5. Técnicas ou treinamentos específicos de comunicação com os pacientes são muito importantes, pois o ato de revelar uma má notícia pode resultar em um elo de empatia e confiança entre o paciente e o médico; ou, por sua vez, se a comunicação for inadequada, pode resultar em uma consequência iatrogênica e devastadora. Além disso, aprender sobre comunicação em medicina, implementando técnicas e protocolos, hoje em dia, são fundamentais2. A população aumentou seu grau de exigência no atendimento à saúde e passou a buscar mais transparência e qualidade no relacionamento provedor de saúde-paciente. Por que informar uma má notícia? A literatura proveniente de diversos países, por todo o mundo, demonstrou que a maioria das pessoas inseridas nas culturas estudadas gostaria de saber seu diagnóstico, mesmo que implicasse uma doença sem possibilidade de cura5. Um estudo realizado na Unesp envolvendo cem profissionais da saúde revelou que, se estivessem doentes, 96% deles gostariam de receber informações sobre seu diagnóstico, e 81%, sobre seu prognóstico; 90% não admitiriam mentira nem omissão daqueles responsáveis por seus cuidados9. Um trabalho realizado na USP com 363 pessoas atendidas constatou que 96,1% das mulheres e 92,6% dos homens gostariam de ser informados do diagnóstico de câncer, e mais de 90%, de AIDS10. Diversos estudos corroboram a necessidade de que os pacientes sejam conscientizados de seu estado de saúde, relatando que os indivíduos informados apresentam um maior grau de ajustamento à realidade, com menores níveis de depressão e ansiedade11. Nesse contexto, as pesquisas têm relatado que a mentira e a omissão do verdadeiro estado clínico do enfermo demonstram ser práticas insatisfatórias para a maioria dos pacientes, apresentando ainda um potencial capaz de causar dano maior do que a decepção causada pela revelação de uma má notícia11. Fornecer informações ao paciente sobre seu estado, seus diagnósticos, prognósticos, tratamentos e resultados de exame é um direito fundamental dos pacientes e um dever ético dos profissionais de Informação e Comunicação em Cuidados Paliativos | 143 saúde contemplado no Código de Ética, como já dito. No entanto, muitas vezes os médicos violam o direito à confidencialidade daqueles sob seus cuidados, revelando seu diagnóstico a outras pessoas, mesmo familiares, embora o paciente é quem tem o direito de decidir para quem deseja revelar sua condição, e não o contrário. Sabe-se que os pacientes informados colaboram melhor com o tratamento curativo e têm maior acesso às opções terapêuticas paliativas, atingindo assim melhor qualidade de vida e melhor controle dos sintomas. Do mesmo modo, não recorrem com tanta frequência a tratamentos fúteis e, em consequência, estreitam e facilitam consideravelmente a relação médico-paciente. De modo geral, as opções de tratamentos curativos oferecidas, como cirurgias e quimioterapias, podem impactar negativamente a qualidade da vida, levando a efeitos adversos de difícil controle, o ajuste medicamentoso pode levar semanas, pode apresentar restrições na vida prática do enfermo, hospitalizações etc. O paciente que não é informado tem uma probabilidade muito maior de não aderir a esses tratamentos, de não aceitar intervenções, não seguir adequadamente as posologias e recomendações12. Por sua vez, quando não se sabe a gravidade ou o estadiamento da doença, por exemplo, em caso de câncer sem possibilidade de cura, a chance de o paciente receber tratamentos fúteis, intervenções heroicas, criar esperanças e expectativas falsas em tratamentos paliativos é exponencialmente maior12. Quando se decide pela “conspiração do silêncio”, em que todos os envolvidos com os cuidados omitem ou mentem a respeito do real estado de saúde do paciente, estabelece-se uma barreira entre a família e o enfermo. Este fica no isolamento, muitas vezes sabendo que tem uma doença grave e que as informações estão sendo omitidas, ou, pior, que uma falsa condição está sendo oferecida a ele. Exames são escondidos, bulas trocadas, sorrisos falsos, pouca conversa, afastamento, mentiras. Rompe-se um laço de confiança com a família e com o profissional de saúde em lugar de se criar uma condição de apoio, carinho e enfrentamento. Em um dos livros do padre Leocir Pecini, uma paciente que foi informada de diagnóstico de câncer relata: “[...] o mais importante, no entanto, foi que a mim e a meus familiares foi poupado um triste jogo de esconder. Desta maneira, não se criou nenhuma barreira entre nós. Continuamos unidos, exatamente quando era tão necessário, e aproximamo-nos mais ainda”13. Informar um paciente, especialmente aqueles portadores de doença que ameace a vida, é um ato de humanidade, pois permite que as pessoas se preparem para a morte. Depois do impacto de se defrontar com a própria mortalidade, as pessoas têm a chance de reavaliar valores, definir o que é mais importante para elas e o que dá sentido à vida. Há oportunidade para que emoções sejam reveladas. Cicely Sauders afirmou que, antes de morrer, todas as pessoas deveriam, por direito, ter tempo para dizer “Desculpe”, “Obrigado”, “Eu te amo” e “Adeus”. Assim, abre-se espaço para que planos sejam feitos, locais sejam visitados, viagens, testamentos, festas sejam realizados e decisões sejam tomadas. O paciente ainda se depara com questões de ordem prática, como pagamento de contas, plano de saúde, custódia de filhos e animais de estimação, senhas de cofres e diversas outras ações. No momento em que se estabelece uma relação entre a equipe de cuidados e o paciente, baseada em transparência e confiança, o enfermo toma parte ativa no processo decisório sobre suas preferências em relação ao 144 | Dor e Cuidados Paliativos fim da vida, como, por exemplo, quem ele gostaria que respondesse por ele em caso de estar incapacitado de tomar decisões, se ele gostaria de ser hospitalizado ou permanecer em casa, quais os tipos de intervenção que ele recusaria ou aceitaria. A Resolução do CFM 1.995/2012 trata especificamente sobre o direito de o paciente estabelecer seu testamento vital, também chamado de diretivas antecipadas de vontade. Segundo esta Resolução, os pacientes passam a ter o direito de decidir sobre tratamentos, local de ocorrência de sua morte e até mesmo indicar um representante legal para a eventualidade de não poder mais decidir. O médico passa a ter obrigação de respeitar essas vontades, desde que estejam em consonância com o Código de Ética Médico14. Essas atitudes, em muitos casos, norteiam o rumo do cuidado oferecido e tiram um pesado fardo da família quando a morte está próxima e decisões precisam ser tomadas. De quem é a obrigação de informar? No Brasil, muitas vezes a tarefa de comunicar uma má notícia a um paciente é delegada aos enfermeiros. Algumas vezes, por omissão da equipe médica ou porque o enfermeiro faz parte da equipe de cuidados. Os enfermeiros são facilitadores da comunicação entre a equipe de saúde e o paciente e seus familiares, sendo assim, de grande importância para uma equipe interdisciplinar de cuidados. Graças ao contato mais estreito dos pacientes com a equipe de enfermagem, é ela que, na medida do possível, encarrega-se de esclarecer termos médicos e explicar a real dimensão do problema7. Entretanto, é responsabilidade do médico participar do processo de informação, pois é ele quem está apto a responder à maioria das questões, prestar mais esclarecimentos sobre a saúde do indivíduo após uma má notícia em saúde,e a traçar estratégias terapêuticas futuras. Estudos que abordam as preferências dos pacientes revelam que estes elegem o médico para informar uma notícia importante quanto à sua saúde, especialmente quando a informação tenha um impacto negativo em sua vida15. O Código de Ética Médica brasileiro, resolução CFM 1.931/09, em seu artigo 34 determina que é vedado ao médico “Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal”. Da mesma forma, o princípio XXI contempla que “No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por ele expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas”. Para que este princípio seja contemplado integralmente a comunicação deve se estabelecer de forma efetiva16. É inadmissível que um profissional da saúde transfira a responsabilidade de informar uma notícia ruim, ou talvez qualquer informação relacionada com exames, diagnósticos ou prognósticos, para membros da família do paciente. Primeiramente, porque o paciente detém o direito exclusivo de informações sobre sua saúde e o médico fere o princípio da confidencialidade ao revelar dados médicos a outrem que não o próprio enfermo, salvo em casos excepcionais. Segundo, porque esta é uma responsabilidade do médico e da equipe de saúde que deve estar apta a informar corInformação e Comunicação em Cuidados Paliativos | 145 retamente, com clareza e, de preferência, com profissionalismo e humanidade. Não cabe aos familiares esclarecerem dúvidas e outros questionamentos, oferecer opções terapêuticas que gerem ansiedade para o paciente e que devem ser explicadas, preferencialmente, por um profissional de saúde envolvido no cuidado deste enfermo, no momento da má notícia. O que fazer se a família diz “não conte”? Infelizmente, isso é relativamente frequente no contexto brasileiro. A família do paciente o precede, em seu primeiro atendimento, solicitando que o doente não seja informado. Os familiares trazem para o médico uma rede de mentiras, contradições, invenções e omissões, solicitando que os profissionais de saúde compactuem com este cenário, como condição sine qua non para o acompanhamento médico17. Nos países latino-americanos, o laço familiar é forte e em geral não é possível tratar de um indivíduo isoladamente de sua família. Esta tem papel ativo no processo decisório e nos cuidados oferecidos aos pacientes. Em dois estudos brasileiros, observou-se que o envolvimento da família do paciente no processo de adoecer é fundamental para grande parcela dos enfermos. O estudo, realizado na Unesp, demonstra que aproximadamente metade dos profissionais de saúde envolve os familiares no processo de informação e o mesmo número gostaria que a família fosse envolvida em caso de doença9. O estudo realizado na USP com pacientes revela que mais de 80% dos entrevistados desejariam que suas famílias também fossem informadas10. Uma atitude de confronto entre a equipe de saúde e os familiares pode levar ao afastamento do tratamento e a uma ruptura da relação estabelecida. Todavia, é possível estabelecer cumplicidade entre médico, família e paciente. Portanto, provavelmente, a melhor estratégia ética, nesses casos, seria explicar todos os benefícios da informação aos familiares e as consequências da omissão. A garantia de que a informação será dada de forma humana, em linguagem apropriada e em quantidade e qualidade que o paciente desejar, assim como a garantia de continuidade do acompanhamento, fazem com que muitas famílias compreendam e consintam na informação. Avaliar o quanto de informação o paciente já possui e o quanto ele quer receber, em presença dos familiares, pode ser também uma estratégia para que estes saibam o que o paciente realmente deseja ou o que ele já sabe. Muitas famílias supõem que o enfermo desconhece na realidade seu estado de saúde, mas grande parte deles tem uma noção bem próxima do que está ocorrendo e é capaz de compreender a situação; inclusive as crianças5. É possível sugerir reuniões entre a equipe de saúde e os familiares para que os motivos de compartilhar a má notícia com o paciente sejam expostos, explicando todas as vantagens da comunicação e as consequências da desinformação, principalmente para o relacionamento familiar. Assegurar à família que o ônus da informação não será deles e sim dos membros da equipe de saúde responsáveis pelos cuidados, pode aliviar a tensão do impasse. Em último caso, se o profissional de saúde julgar que a informação é necessária para o melhor entendimento das circunstâncias, ele não é obrigado a acompanhar um paciente em desacordo com as suas práticas e condutas ético-morais. 146 | Dor e Cuidados Paliativos Protocolos de Comunicação Vários treinamentos descrevem técnicas adequadas para transmitir a má notícia. Estes treinamentos provaram ser eficazes em diminuir o estresse do profissional de saúde e melhorar suas habilidades de comunicação, propiciando que a informação seja transmitida de forma humana e realista18. Necessitamos conhecer essas ferramentas para que nos ajudem a lidar com temas como controle de sintomas; discussão de prognósticos; riscos de tratamentos instituídos; revelação de uma má notícia, recorrência de enfermidades, transição do tratamento curativo para o tratamento paliativo, fase final da vida e para compartilhar decisões relacionadas com o tratamento. Além dessa extensa lista, devemos saber responder às difíceis emoções de pacientes e familiares. Com frequência precisamos nos comunicar com familiares ou cuidadores por meio de reuniões em que habitualmente a família ocupa a função de cuidador primário, promovendo suporte em toda fase da enfermidade e no processo de decisão, além de conectar o paciente aos provedores de cuidados19. As reuniões com familiares são de grande importância no cenário de cuidados paliativos, em que o suporte familiar oferece apoio no planejamento e na continuidade do cuidado, além de ser vital para otimizar todo o tratamento. Embora essas reuniões possam ser desafiadoras, o treinamento e as habilidades de comunicação aumentam a confiança dos participantes que as conduzem20. A maioria desses protocolos apresentam somente a abordagem da primeira consulta, não dando continuidade ao processo de cuidado. Descreveremos um modelo que é endereçado aos desafios dos cenários de pacientes que necessitam de cuidados contínuos, chamado Modelo de Comskil, que oferece estratégias e ferramentas capazes de se adaptar a várias situações desafiadoras (por exemplo: compartilhar más notícias, discutir prognóstico e as opções de tratamento)4. Protocolo de COMSKIL Esse protocolo, desenvolvido em 2005 no Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, nos Estados Unidos, não só possui estrutura abrangente para as habilidades de comunicação organizacional, mas também provê descrições específicas em habilidades necessárias em vários contextos, suprindo assim deficiências encontradas em outras ferramentas. Trata-se de um modelo de treinamento bem aceito internacionalmente em que o foco da atenção é centrado no paciente5. Segundo a OMS, o modelo de atenção centrado no paciente assegura que serviços de saúde deverão ser adaptados de acordo com as necessidades individuais dos pacientes e que os cuidados serão fornecidos em parceria com eles, em vez de somente serem entregues. Assim, o cuidado ofertado estará onde pessoas, famílias e comunidades serão informadas, engajadas, apoiadas e tratadas com dignidade e respeito5. Esse modelo de atenção alcança adequada comunicação usando estratégias, habilidades, perguntas e avaliações cognitivas4.As estratégias de comunicação são os planos que, a priori, direcionam o comportamento de comunicação para uma realização bem-sucedida. O emprego de várias estratégias associadas facilita o processo. O processo de comunicar, ou seja, a tarefa propriamente dita, é a série de diálogos e comportamentos Informação e Comunicação em Cuidados Paliativos | 147 não verbais que proporcionam um ambiente efetivo para a comunicação. São partes deste processo identificar-se ao paciente, promover um espaço privativo para dar más notícias e assegurar-se de que possui estratégia de comunicação nãoverbal efetiva, tal como estar em um mesmo nível de posicionamento que o paciente. Durante o acompanhamento, o médico observa o comportamento verbal e não verbal dos pacientes, o que permite que ele formule uma hipótese sobre as possíveis necessidades não declaradas dos enfermos. Essa avaliação cognitiva costuma ter grande importância em todo processo de cuidado, visto que muitas vezes algumas carências dos pacientes não são atendidas e isso poderá impedir que o tratamento atenda às necessidades. O modelo de Comskil apresenta dois tipos de avaliação cognitiva, a primeira por meio das “pistas”, a outra, pelas “barreiras”21. As “pistas” sugerem comportamentos avaliados de forma indireta e que podem induzir o médico a ofertar informação ou apoio adicional. Um exemplo dessa avaliação cognitiva é o paciente que, apesar de desejar obter mais informações, não consegue perguntar de forma clara, fazendo algumas afirmações que induzem o médico entender o que ele realmente deseja21. As “barreiras” são perceções não reveladas que impedem o estabelecimento de adequado processo de comunicação. Um exemplo muito comum é o medo quanto ao emprego de certos opioides ou da quimioterapia, o que induz o enfermo a criar falsas interpretações que impedem a tomada de decisão de forma adequada21. Conhecendo e desenvolvendo habilidades Os Quadros 1 a 6 descrevem as habilidades de comunicação que são apresentadas em seis categorias e que são acompanhadas de exemplos20. Eles auxiliam e influenciam diretamente os resultados da abordagem do doente e de sua família em cuidados paliativos. Quadro 1 – Avaliação Habilidade de avaliação Avaliando o entendimento do paciente Descrição Exemplo Pergunte ao paciente sobre seu – Fale-me o que você sabe sobre entendimento do que lhe foi infor- seu diagnóstico. Por que você mado ou sobre sua situação atual não me diz o que entendeu sobre o que eu disse antes? Avaliando o conhecimento do Pergunte ao paciente sobre sua – Nós estávamos falando sobre paciente compreensão de termos médicos sua doença e eu disse que houve o aparecimento de uma nova metástase. O que isso significa para você? Avaliando as preferências do Pergunte ao paciente a quantida- – Algumas pessoas desejam paciente quanto às informações de e o tipo de informação que ele obter muitas informações sobre sua doença, enquanto outros deseja saber não desejam saber quase nada. Quanta informação você deseja saber hoje? 148 | Dor e Cuidados Paliativos Quadro 2 – Tomada de decisão compartilhada Habilidade de tomada de decisão compartilhada Descrição Exemplo Introdução da tomada de decisão conjunta Oferecer a tomada de decisão conjunta e dizer o quanto essa conduta é importante – Existem várias opções de tratamento e nós podemos decidir juntos qual é a melhor opção para você. Eu acredito que é muito importante que você esteja confortável com as decisões acerca de seu tratamento Avaliação das preferências do paciente nas tomadas de decisões Pergunte ao paciente qual é o papel que ele quer desempenhar na tomada de decisões. Esse processo é interativo e algumas vezes poderá mudar durante o processo de doença. – É importante que eu saiba como você gosta de decidir sobre seu tratamento. Você prefere que eu tome as decisões, que tomemos em conjunto, que o faça sozinho ou prefere que sua família decida por você? Reforçar o fato de que o processo do adoecimento é dinâmico e mutável Se ocorrerem mudanças na doença, permita alterações no processo de tomada de decisão e revise o que foi anteriormente acordado – Lembre-se, eu estou disponível para conversar com você sobre todas as opções e nós podemos tomar as decisões em conjunto Fazer declarações de parceria Transmita a aliança que possui com o paciente – Vamos trabalhar juntos para descobrir como resolver esse problema Oferecer tempo para que a tomada de decisão ocorra Reforce que há tempo disponível para a tomada de decisão, quando isso for aplicável, e reafirme que tal atraso não vai afetar o tratamento – Nós temos algum tempo para decidir. Sabemos também que em estudos feitos anteriormente esse atraso não faz diferença para a evolução da doença Quadro 3 – Estrutura da comunicação Habilidade em estabelecer a estrutura Descrição Exemplos Declarar os itens a serem discutidos no dia Indique o que você gostaria de abordar durante a consulta – Hoje eu gostaria de discutir com você as opções de tratamento disponíveis Convidar o paciente a apontar temas a serem conversados Pergunte ao paciente se existe algum tema que ele gostaria de discutir – Antes de começarmos, eu gostaria de lhe perguntar o que gostaria de discutir hoje Negociar a prioridade do dia Solicite ao paciente que ele ajude a priorizar os temas a serem discutidos no dia – Deve haver muito a conversar, o que você gostar ia de pr ior izar como mais impor tante? Informação e Comunicação em Cuidados Paliativos | 149 Quadro 4 – Perguntas Estimular perguntas Convidar o paciente a fazer perguntas Descrição Deixe claro que você está disponível para responder perguntas Confirmar a importância das questões sempre perguntando Expresse ao paciente a importância de se fazer perguntas Esclarecer Pergunte para tentar entender melhor o que o paciente disse Reafirmar Repita com suas palavras o que o paciente está dizendo Declarar e fazer um resumo do que foi conversado Dê uma pausa no diálogo para revisar a principal questão a ser discutida. Peça permissão ao paciente para seguir adiante. Exemplos – Você tem alguma coisa que gostaria de discutir ou que queira perguntar? É importante que possamos conversar sobre o que é relevante para você. Caso pense algo em casa, não se esqueça de anotar e, assim, poderemos conversar sobre o assunto na próxima consulta – Perguntar é uma ótima maneira de obter informações e esclarecer assuntos obscuros. Eu tentarei responder a qualquer pergunta sua. Sinta-se livre para perguntar o que desejar, ok? – Quando você pergunta sobre os efeitos colaterais dessa medicação, a qual efeito colateral especificamente você está se referindo? – Isso que me disse me faz pensar que talvez você tenha alguma pergunta sobre seu tratamento. Então, se eu entendi corretamente, você está frustrado com o que lhe foi dito? – Agora que já conversamos bastante sobre os tratamentos disponíveis, existe outra questão a abordar. Você gostaria de discutir isso agora ou deixar para outro dia? Quadro 5 – Comunicação empática Habilidade em comunicação empática Reconhecer Afirmar normalidade Legitimar Encorajar a expressão de sentimentos Elogiar os esforços do paciente Expressar a disposição em ajudar 150 | Dor e Cuidados Paliativos Descrição Exemplo Afirme ao paciente que você reconhece sua emoção ou experiência – Isso parece que foi muito difícil para você! – Você parece estar menos ansioso – Não é incomum sentir-se dessa maneira Faça uma afirmação comparativa, indicando que essa emoção, particularmente, não é incomum Expresse que a resposta emocional ao evento ou à experiência é apropriada e esperada Demonstre ao paciente que você se interessa em saber como ele se sente Faça uma afirmação que valide a maneira com que o paciente lida com a situação atual Ofereça ajuda agora ou no futuro – É compreensível que você se sinta ansioso – Sim, é difícil manter o foco no trabalho enquanto você passa por esse tratamento – É importante para mim saber como você está lidando com suas emoções – Você está indo muito bem com o tratamento – Por favor, me informe o que eu posso fazer para ajudar Quadro 6 – Organização Habilidade em organizar Descrição Exemplo Rever as informações Dê uma visão geral dos principais pontos que você gostaria de cobrir – Primeiramente, eu gostaria de falar com você sobre os tratamentos já estabelecidos e depois sobre uma nova opção de tratamento Resumir o que foi dito Recapitule os principais itens transmitidos – Eu gostaria de fazer um resumo. Primeiramente você fará três ciclos de quimioterapia e, logo a seguir, faremos um exame de imagem Revisar os próximos passos Acompanhe o paciente nas próximas etapas – Eu gostaria de repassar com você os próximos passos, relembrando o que discutimos, para que eu esteja seguro que temos os mesmo grau de entendimento Esse modelo de comunicação pode ser empregado em todas as fases de adoecimento e do tratamento dos pacientes. Um protocolo de comunicação adaptado à realidade brasileira: protocolo PACIENTE Na literatura médica recente, mais marcadamente nos últimos 10 anos, encontram-se estudos sobre as preferências de revelação de más notícias, várias orientações e protocolos para a comunicação com pacientes, porém, grande parte dessas publicações é direcionada para as culturas norte-americana, europeia ou australiana. Comprovadamente, as diferenças culturais e étnicas demandam um tipo de comunicação ou abordagem diferente. Enquanto alguns países anglo-saxões têm uma política mais aberta de comunicação, outros países, como os de cultura oriental e latina, adotam uma postura mais paternalista em saúde cujos profissionais de saúde decidem, pelo paciente, o quanto de informação fornecer. As diferenças também ocorrem em relação às preferências dos pacientes, pois a porcentagem de envolvimento familiar no processo de comunicação pode apresentar ampla variação conforme a cultura. Portanto, os protocolos de comunicação devem ser flexíveis para permitir a inclusão dessa ampla gama de particularidades. No Brasil, estas estratégias de comunicação estão começando a ganhar força, sendo o protocolo PACIENTE o primeiro que se adapta ao contexto brasileiro5. Em consonância com a literatura médica existente sobre o assunto, e levando-se em consideração a experiência prática do Serviço de Terapia Antálgica e Cuidados Paliativos (TACP), Unesp, sobre as particularidades da cultura latino-americana, na qual o Brasil está inserido, este protocolo foi proposto. O Serviço utiliza este protocolo para treinar os profissionais e estudantes envolvidos no atendimento dos pacientes. O método é baseado em uma técnica mnemônica e consiste em sete passos fundamentados na palavra PACIENTE5. P – Preparar-se Em primeiro lugar, é importante que a informação a ser revelada seja confirmada. Ler novamente o prontuário e ter em mãos os resultados de exames laboInformação e Comunicação em Cuidados Paliativos | 151 ratoriais, clínicos ou de imagem são, inicialmente, boa estratégia. Eventualmente, há necessidade de se consultar a literatura médica. Essas informações devem estar disponíveis para serem mostradas e discutidas com o paciente se ele assim o desejar. Os pacientes se sentem mais seguros com profissionais que já estabeleceram vínculo e confiança, portanto, a escolha do profissional da equipe responsável pela comunicação deve ser adequada e, de preferência, que seja o próprio médico que atende o paciente. A postura do médico que vai informar uma notícia ruim deve indicar conexão, segurança e apoio. Uma estratégia para o estabelecimento de uma conexão interpessoal eficiente é tentar imitar pequenos gestos, assentir com a cabeça enquanto o paciente se expressa, tentar utilizar a mesma velocidade de discurso do paciente, não cruzar as pernas, apontar os joelhos para o paciente inclinando o tórax ligeiramente em sua direção, não cruzar os braços e estar sempre na altura dos olhos do interlocutor. Estas são técnicas que podem aumentar a empatia e ajudar a estabelecer proximidade e confiança com o paciente. O ambiente também deve ser preparado, garantindo toda privacidade e conforto possível. Em caso de consultório médico ou sala de reuniões, é importante que haja lugar confortável para se sentar, de preferência sem nenhuma barreira física entre a pessoa ou equipe responsável pela informação. Retirar uma escrivaninha ou mesa interposta entre o médico e o paciente pode prevenir um distanciamento indesejável. Se o paciente está em enfermaria ou em leito em casa, é possível aproximar-se e tentar sentar-se à altura dos olhos do enfermo. Muitas vezes, ter lenços de papel à mão pode ser muito útil. Telefones e celulares devem ser desligados para evitar interrupções em momentos críticos da comunicação. Se for possível, fechar a porta para garantir privacidade e mais conforto ao paciente e eventualmente a seus familiares. Uma das dificuldades encontradas nos dias de hoje perante os convênios médicos é separar tempo suficiente para cada consulta, porém este é um procedimento médico importante que deve ser valorizado. Na cultura latina, observa-se que a comunicação de más notícias demanda tempoe que deve ser feita de modo gradual, permitindo que o paciente e seus familiares assimilem as informações e façam questionamentos. Eventualmente, não é possível que todos os elementos sejam revelados em uma única vez. Os profissionais de saúde podem necessitar de mais de uma consulta para revelar todos os dados e responder a todas as questões. Por conseguinte, tempo e disponibilidade são fundamentais. O paciente tem direito de receber a informação com exclusividade e a responsabilidade da equipe de saúde é com ele. Portanto, antes de iniciar o processo de comunicação, o enfermo deve decidir se deseja compartilhar a informação com algum familiar ou outra pessoa. Por isso, pode-se perguntar se ele gostaria que alguém mais estivesse presente no momento da consulta. Se ele assim o desejar, deve-se providenciar assento para todos. A cultura latina tem a característica de ser calorosa e protecionista. O toque físico afetivo nos membros superiores do paciente pode estabelecer um vínculo de empatia e denotar apoio e compaixão. Algumas outras culturas, no entanto, preferem que o contato físico não ocorra. O profissional deve estar atento para reconhecer a aceitação ou rejeição ao contato. Uma notícia ruim em saúde pode ter um grande impacto, assim, 152 | Dor e Cuidados Paliativos a pessoa que irá receber más notícias não deve comparecer sozinha a uma consulta ambulatorial, é importante que haja algum acompanhante para garantir amparo e segurança para retornar ao domicílio. A – Avaliar quanto o paciente sabe Pela experiência do Serviço de TACP, quatro situações podem ocorrer. A primeira é a que o paciente já tem indícios da notícia, pois todo o processo investigativo foi compartilhado com ele. Há, ainda, aqueles casos em que os familiares creem que o paciente desconhece sua real condição, entretanto, considerando os tratamentos, as informações disponíveis na mídia e as conversas com outros pacientes, ele já tem indícios suficientes para saber, com certo grau de certeza, seu estado de saúde. Essas duas condições são mais fáceis de serem conduzidas, pois o paciente já teve tempo de se preparar para uma presumida notícia ruim. O terceiro caso, mais difícil, é quando o paciente realmente não tem nenhuma informação, seja porque nunca foi compartilhada com ele, ou é um fato novo, ou a informação foi passada em uma linguagem que o paciente não pôde compreender. Infelizmente, muitos profissionais de saúde, em especial médicos, escondem a informação atrás de jargões da medicina (por exemplo: adenocarcinoma em vez de câncer) ou então minimizam a importância do diagnóstico com eufemismos (por exemplo: “tumorzinho” em vez de câncer). A última situação possível talvez seja a que requeira mais preparo do profissional. É quando o paciente já possui informação suficiente para deduzir a notícia difícil e desenvolve a negação como mecanismo de defesa. O profissional da saúde deve estar especialmente preparado para fazer essa avaliação e abordagem. Deve-se respeitar o desejo do paciente em relação ao quanto e quando ele quer ser informado. Um paciente em vigência de um processo de negação requer usualmente mais tempo para que o protocolo seja seguido. Por sua vez, assim como os pacientes têm o direito de serem informados quanto à própria saúde, eles também têm o direito de se recusar a receber a informação. O direito de não saber tem sido amplamente discutido em literatura. Porém, a informação deve ser obrigatoriamente compartilhada com o responsável pela tomada de decisões em nome do paciente. Ele tem autonomia para dizer qual a pessoa que deve receber a informação por ele; geralmente é o cônjuge ou um familiar. Este direito deve ser respeitado22. C – Convite à verdade O melhor cenário ocorre quando, durante o processo de investigação da doença, a questão sobre o quanto o paciente deseja saber já tenha sido abordada. Por exemplo, no momento da indicação de um exame de imagem, perguntar ao paciente se ele gostaria de ser informado dos resultados mesmo que as notícias não sejam boas. O paciente também tem o direito de não ser informado; nesse caso, ele deve nomear a pessoa com quem se deve discutir a questão. Avaliar o quanto o paciente sabe e o quanto quer saber, também, tem a finalidade de ser um preâmbulo para a informação. Então, a maioria dos pacientes pode já estar preparada para o próximo passo: receber uma informação desagradável. Informação e Comunicação em Cuidados Paliativos | 153 Várias perguntas podem ser utilizadas para guiar esta etapa, como: “O senhor é daquelas pessoas que gostam de saber todos os detalhes sobre sua doença?”. Geralmente, após este questionamento algumas reações diferentes podem acontecer. Uma boa estratégia é aguardar e deixar espaço para que o paciente convide o médico a compartilhar a informação e pergunte diretamente sobre o seu diagnóstico, prognóstico ou resultado de exames. Muitas vezes o paciente pergunta imediatamente: “Doutor, o que eu tenho?” Por isso, este passo do protocolo é chamado de “Convite à verdade”. Em alguns casos, o paciente pode se calar e não prosseguir para o convite. Esta pode ser uma indicação de que ele precisa de um pouco mais de tempo para entender o que já foi dito e se preparar para uma notícia ruim. O Protocolo PACIENTE não precisa ser completado em uma única ocasião, uma única consulta. I – Informar Alguma introdução à má notícia pode funcionar como aviso, preparando o paciente para a notícia que virá a seguir, como, por exemplo, a frase: “Infelizmente, as notícias não são boas. ” A literatura mostra que o profissional de saúde não deve se desculpar por uma notícia ruim, pois o paciente e seus familiares podem interpretar como se, de alguma forma, o médico fosse responsável pelos acontecimentos. A informação deve ser compartilhada em quantidade, velocidade e qualidade suficientes para que o paciente possa tomar alguma decisão ou optar pelo consentimento informado sobre seu tratamento e sua vida particular. O vocabulário utilizado deve ser inteligível para o nível cultural e idade do enfermo, desde as crianças até os mais idosos. É aconselhável evitar jargões muito técnicos. Os nomes complicados de determinadas condições médicas que o paciente não entenda podem causar mais temor e apreensão do que uma condição que ele compreende o significado e as respectivas dimensões. Assim, corre-se o risco de se superestimar a gravidade da doença. Alguns pacientes podem entender que “novos protocolos de tratamento” significam real possibilidade de cura, o que frequentemente é falso. Ao mesmo tempo, deve-se evitar ao máximo o uso de eufemismos, visto que o paciente tende a interpretar como uma desvalorização da sua condição, ou, então, não compreender a verdadeira gravidade da situação. Portanto, a linguagem utilizada deve ser direta e acessível, os termos mais difíceis devem ser explicados a cada passo. O profissional da saúde deve checar o entendimento após cada informação importante. Nessas circunstâncias, as pausas podem ser bastante úteis. Talvez um dos maiores desafios seja oferecer a informação de forma clara e honesta, mantendo a esperança do paciente. Em um estudo australiano feito com pacientes oncológicos, as atitudes dos médicos consideradas mais positivas, no momento da revelação da má notícia, foram: ser realista sobre o futuro, conversar pessoalmente, oferecer alguma forma de tratamento, assegurar que, no decorrer do processo de adoecer, o paciente não sentirá dor, ter segurança sobre as informações oferecidas, dar espaço e tempo para perguntas, perguntar ao paciente se ele entendeu as informações oferecidas, não utilizar eufemismos (tumorzinho, probleminha), utilizar as palavras corretas, 154 | Dor e Cuidados Paliativos como câncer e metástase, e explicá-las. Já, dentre as atitudes mais negativas, ainda segundo esse estudo, encontram-se: discutir a situação financeira, revelar prognóstico por telefone, dividir experiências pessoais, insegurança do profissional de saúde, revelar, antes, o prognóstico para os familiares. Infelizmente, existe certa escassez de estudos sobre as preferências de comunicação dos pacientes no Brasil. Há de se ter cuidado especial em relação aos pacientes portadores de doença que ameace a vida, como câncer, no momento de discutir o prognóstico. É aconselhável evitar a informação com exatidão quanto a meses ou anos de vida, pois estudos indicam que os médicos tendem a superestimar a expectativa de vida na maioria dos casos. Se o paciente fizer absoluta questão, gráficos e tabelas sobre o tempo médio estimado de vida atinente à doença em questão podem ser úteis nessa discussão e facilitar seu entendimento. Por sua vez, uma estimativa pode ser necessária e muito útil para que o paciente possa fazer planos e, ainda, sentir-se com algum controle sobre sua vida. Infelizmente, na medicina, existem diversas situações em que, em vez da responsabilidade de revelar uma única má notícia, o profissional da saúde se depara com uma sequência de más notícias. Por exemplo, assim que se revela um diagnóstico de câncer, alguns pacientes podem inquirir sobre o prognóstico, custo do tratamento, possibilidade de cura, impacto na vida diária e várias outras perguntas que têm o potencial de gerarem respostas que representam mais más notícias, talvez até mais impactantes que o diagnóstico em si. Claro que não necessariamente toda esta avalanche de notícias deva ser dada em uma única consulta, somente se o paciente assim demandar. É possível e aconselhável ser gradual e reavaliar a comunicação e a reação do paciente a cada momento. E – Emoções Lidar com as emoções do paciente é uma das maiores dificuldades além de ser fator gerador de estresse para o profissional de saúde. De fato, é um dos momentos mais importantes na comunicação de más notícias e é quando o treinamento e a experiência prática são determinantes para a qualidade do relacionamento com o paciente. Cada indivíduo reage de uma forma distinta. A equipe de saúde deve estar preparada para qualquer tipo de reação. Provavelmente, as respostas mais comuns sejam choque seguido de choro. Porém, outras reações comuns são a raiva, o silêncio, a negação e até o descrédito do profissional que revelou a má notícia. Considerando-se os diversos cenários possíveis, é recomendado que o profissional de saúde simplesmente permita ao paciente sentir toda a emoção e ter tempo para chorar e se expressar livremente. Sugere-se que a equipe ouça, muito mais do que fale, com paciência e solidariedade, deixando o paciente se acalmar. Neste momento, é possível se utilizar do toque, principalmente porque a cultura brasileira permite que se seja bastante caloroso e afetivo. É possível utilizar-se de lenços de papel, copos de água ou chá. Desaconselha-se o emprego de expressões como “não se preocupe” ou “não é nada”, por causa do risco de se desvalorizar uma notícia muito importante para o paciente e seus familiares, fazendo com que se sintam incompreendidos e desamparados. Informação e Comunicação em Cuidados Paliativos | 155 Não abandonar o paciente Embora esta recomendação pareça de certa forma óbvia, infelizmente no Brasil ela precisa ser realizada e enfatizada. As instituições de ensino em saúde, principalmente as faculdades de medicina, não preparam os profissionais para o insucesso de tratamento curativo. Portanto, muitos médicos param de acompanhar o enfermo e desastrosamente proferem a seguinte frase para seus pacientes: “não há mais nada a ser feito por você.”. O abandono é frequente. Mas, considerando o diagnóstico de uma doença sem possibilidade de cura, a responsabilidade da equipe de saúde não cessa. Pelo contrário, aumenta muito. Há que se compreender o paciente como um todo, um ser complexo com várias dimensões. Deve-se oferecer conforto físico, psíquico, espiritual, social e familiar, assegurando ao paciente o alívio da dor e o controle dos sintomas. Provavelmente, o que de mais importante a ser dito e enfatizado é que, independentemente do curso da doença, a despeito do que venha a acontecer, o médico ou a equipe sempre estará com ele. Oferecer continuidade de cuidados é um dos fatores que mais gera segurança e conforto para o paciente e seus familiares. Traçar uma estratégia Uma característica do profissional latino-americano é o de, em geral, decidirem pelo paciente o melhor plano de ação, o que reflete paternalismo culturalmente arraigado. Porém, é aconselhável envolver o paciente, valorizando sua autonomia e individualidade nas decisões sobre o melhor caminho a seguir. É possível planejar com o enfermo os próximos cuidados a serem oferecidos e as opções de tratamento. Convém incluir no planejamento, conforme a circunstância, cuidados interdisciplinares como a fisioterapia, a nutrição, o acompanhamento psicológico, a terapia sexual, a terapia ocupacional, o acompanhamento espiritual e outras especialidades médicas que poderiam auxiliar no melhor controle dos sintomas. Em caso de solicitação de novos exames, é importante que o paciente entenda o motivo de sua realização e o que se espera esclarecer; se forem oferecidas opções terapêuticas, sejam curativas ou paliativas, explicar os efeitos desejados e possíveis efeitos adversos. Os enfermos podem e devem participar de todos os processos decisórios se assim o desejarem. Tal processo cria um senso de cumplicidade. Igualmente, as opções devem ser apresentadas com segurança e os riscos e benefícios expostos de maneira clara e objetiva. O paciente deve saber que existe um plano traçado para seu cuidado. O médico brasileiro ainda não está habituado a dividir seus pacientes com outros profissionais. Muitas vezes, cria-se a ilusão de que ele é o único indivíduo necessário e apto para oferecer cuidados adequados. Principalmente em cuidados paliativos, a excelência do cuidado é feita por equipe multiprofissional e interdisciplinar. Cada membro da equipe oferece uma contribuição profissional e adequada para que, somadas, haja a garantia de que o doente está sendo abordado como um todo, da melhor e mais abrangente forma possível. 156 | Dor e Cuidados Paliativos Ao final do atendimento, é aconselhável que a próxima consulta seja prontamente agendada e que se assegure a disponibilidade da equipe para os esclarecimentos do paciente e de sua família, oferecendo uma forma de contato permanente: um telefone fixo, um celular, a referência de uma clínica ou de um hospital. Referências 1. Organización Mundial de la Salud. Cuidados paliativos. Disponível em: http://www.who.int/cancer/palliative/es/. Acessado em: 6 fev 2018. 2. Zolnierek KB, Dimatteo MR. Physician communication and patient adherence to treatment: a meta-analysis. Med Care 2009; 47:826-34. 3. Weiner JS, Roth J. Avoiding iatrogenic harm to patient and family while discussing goals of care near the end of life. J Palliat Med, 2006; 9:451-63. 4. Weiner JS, Cole SA. Three principles to improve clinician communication for advance care planning: overcoming emotional, cognitive, and skill barriers. J Palliat Med., 2004; 7:817-29. 5. Pereira CR, Calonego MAM, Lemonica L et al. The P-A-C-I-E-N-T-E Protocol: An instrument for breaking bad news adapted to the Brazilian medical reality. Rev Assoc Med Bras, 2017; 63:43-9. 6. Ribeiro MM, Krupat E, Amaral CF. Brazilian medical students’ attitudes towards patient-centered care. Med Teach, 2007; 29: e204-8. 7. Silva MJP. Falando da comunicação. In: Oliveira RA (Coord.). Cuidado paliativo. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, 2008. p. 33-45. 8. Brody H. Ethical decisions in medicine. Boston: Little Brown, 1981. 9. Pereira CR. Atitudes dos profissionais de saúde frente a revelação de más notícias. Botucatu. Dissertação [Mestrado em Anestesiologia] – Faculdade de Medicina de Botucatu, 2007. 10. Gulinelli A, Aisawa RK, Konno SN et al. Desejo de informação e participação nas decisões terapêuticas em caso de doenças graves em pacientes atendidos em um hospital universitário. Rev Assoc Med Bras, 2004; 50: 41-7. 11. Back AL, Arnold RM, Baile WF et al. Efficacy of communication skills training for giving bad news and discussing transitions to palliative care. Arch Intern Med, 2007; 167: 453-60. 12. Audrey S, Abel J, Blazeby JM et al. What oncologists tell patients about survival benefits of palliative chemotherapy and implications for informed consent: qualitative study. BMJ, 2008; 337: a752. 13. Pessini L. Como lidar com o paciente em fase terminal. 5.ed. Aparecida: Santuário, 1990. 14. Conselho Federal de Medicina (Brasil). Resolução nº 1.995, de 9 de agosto de 2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União 31 ago 2012; Seção I. 15. Hagerty RG, Butow PN, Ellis PM et al. Communicating prognosis in cancer care: a systematic review of the literature. Ann Oncol, 2005; 16: 1005-53. 16. Conselho Federal de Medicina (Brasil). Código de Ética Médica: resolução CFM nº 1.931, de 17 de setembro de 2009 – Código de processo ético-profissional: resolução CFM nº 1.897, de 17 de abril de 2009. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2009. 17. Trindade ES, Azambuja LEO, Andrade JP et al. O médico frente ao diagnóstico e prognóstico do câncer avançado. Rev Assoc Med. Bras, 2007; 53: 68-74. 18. Schmidt Rio-Valle J, Garcia Caro MP, Montoya Juarez R et al. Bad news for the patient and the family? The worst part of being a health care professional. J Palliat Care, 2009; 25: 191-6. 19. de Haes H, Teunissen S. Communication in palliative care: a review of recent literature. Curr Opin Oncol, 2005; 17: 345-50. 20. Gueguen JA, Bylund CL, Brown RF et al. Conducting family meetings in palliative care: themes, techniques, and preliminary evaluation of a communication skills module. Palliat Support Care, 2009; 7: 171-9. Informação e Comunicação em Cuidados Paliativos | 157 21. Kissane DW, Phyllis B, Bultz B et al. (Ed.). Handbook of communication in oncology and palliative care. Oxford: Oxford University Press, 2010. 22. Minichiello TA, Ling D, Ucci DK. Breaking bad news: a practical approach for the hospitalist. J Hosp Med, 2007; 2: 415-21. 158 | Dor e Cuidados Paliativos 13 Capítulo Cuidados Paliativos: Quando Indicar e Como Reconhecer Critérios de Terminalidade João Batista Santos Garcia Introdução Há uma tendência mundial de incorporar os cuidados paliativos (CP) ao modelo de assistência tradicional de manejo de doenças, chamando atenção para a maior abrangência desses cuidados ao maior número possível de pacientes. Descritos de forma breve, os cuidados paliativos são cuidados dirigidos a indivíduos com doenças ameaçadoras à vida, com foco na qualidade de vida. A definição completa da Organização Mundial de Saúde (OMS) engloba muito mais, porém, de maneira resumida, os CP devem abordar as necessidades físicas, psicológicas e sociais, por meio de três componentes principais: prevenção e manejo meticuloso de sintomas, incluindo a dor; excelência na comunicação ao discutir os cuidados e o planejamento futuro destes; um suporte extra em relação às necessidades práticas, como atendimento domiciliar1,2. Há um corpo de evidência que mostra que os CP podem melhorar os desfechos em pacientes com doença avançada, e quanto mais cedo são instituídos os cuidados, melhores os resultados. Em pacientes com câncer, o início precoce dos CP esteve associado a melhor qualidade de vida, menos sintomas depressivos, menos cuidados agressivos no final da vida, maior consciência do prognóstico e sobrevida mais longa3,4. De maneira contrária ao que muitos pensam, a indicação de CP pode ocorrer enquanto uma doença ainda está em tratamento, ou seja, logo após o diagnóstico, principalmente quando poucos tratamentos curativos estão disponíveis. Contudo, essa maneira moderna de cuidado simultâneo ainda tem muito a galgar e se firmar, especialmente em áreas que envolvem doenças diferentes do câncer. Cuidados Paliativos: Quando Indicar e Como Reconhecer Critérios de Terminalidade | 159 Barreiras de Acesso aos Cuidados Paliativos Várias são as dificuldades em se estabelecer CP nos diversos países. Algumas das mais importantes são5: 1. Disponibilidade de recursos: enquanto nos países desenvolvidos há um razoável número de serviços, nos países em desenvolvimento, como o Brasil, a realidade é bem diferente – há lacunas muito grandes na oferta de profissionais treinados, serviços estruturados e analgésicos como os opioides. 2. Falta de conhecimento: há uma carência de ensino específico em CP nas universidades e poucos residentes fazem rodízio na área, o que faz com que haja certa ignorância em relação ao tema. 3. Relutância em referir: algumas das razões para isso são o medo de entristecer os pacientes, não querer abandoná-los, ver a indicação como admitir que falhou e, ainda, a não compreensão da indicação. 4. Resistência do paciente e da família: há a visão de que o CP significa que a morte está próxima e que o termo é um eufemismo para o processo de morrer ou, ainda, que não “há mais nada a fazer”. Panorama da Necessidade de CP no Mundo Segundo a OMS, a estimativa de vida da população cresceu em cinco anos nos últimos 15 anos, e cada vez mais haverá pessoas com idade avançada e com possibilidade de doenças como o câncer e/ou outras que possam ameaçar a vida. A expectativa de vida média do brasileiro é de 75 anos6. De acordo com a classificação internacional de doenças (CID-10), as doenças que mais frequentemente levam ao óbito no Brasil são as neoplasias e as doenças do aparelho circulatório7. Segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA), há uma previsão de mais de 600 mil novos casos de câncer para o biênio 2016-2017. Diante desses números, fica claro que um número expressivo de pacientes necessitará de CP8. De acordo com um estudo realizado na Inglaterra, com o CID-10, 63% de todas as mortes ocorreram em pacientes que teriam necessidade de CP9. Em outro estudo, há uma projeção de que na Inglaterra e no País de Gales, até 2040, haja um aumento de 25% no número de pessoas que necessitam de CP, especialmente naqueles com câncer e demência10. Critérios Os CP devem ser indicados para indivíduos com moléstias crônico-degenerativas que ameaçam a continuidade da vida, em diferentes fases de sua evolução clínica. Podem ter doenças crônicas como o câncer e a síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA), como também outras doenças, como as síndromes neurodegenerativas, cardiopatias graves, doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e doença hepática avançada, entre outras. Em muitos desses casos, a evolução natural é uma série de pioras da funcionalidade, com recuperação e baixa taxa de retorno a seus níveis basais. Assim, os pacientes avançam paulatinamente para a terminalidade, quando necessitam, então, de cuidados específicos para o fim da vida. As decisões pertinentes a cada fase e a definição do prognóstico em CP devem seguir princípios éticos, como da beneficência e não maleficência, e basear-se em parâmetros de avaliação confiáveis que permitam uma abordagem integral9. 160 | Dor e Cuidados Paliativos De maneira geral, para ser considerado elegível aos cuidados paliativos, o paciente deverá apresentar todos os critérios a seguir: 1. Condição clínica que ameace a vida e imponha limitação no prognóstico, assim como ausência de tratamentos que modifiquem o curso da doença ou que não gerem efeito em um período de tempo compatível com esse prognóstico. 2. Esclarecimento prévio ao paciente e/ou sua família a respeito dessas condições clínicas, das limitações terapêuticas e do prognóstico do paciente. 3. O paciente e sua família devem concordar com o objetivo do tratamento, priorizando o alívio dos sintomas e a qualidade de vida, e não o emprego de medidas consideradas desnecessárias, fúteis ou invasivas para aquele prognóstico. 4. O paciente deverá contar com uma rede de suporte de saúde e social para contrarreferência. 5. Numerosos sintomas intensos, múltiplos, multifatoriais e mutantes. 6. Grande impacto emocional no paciente, na família e na equipe de cuidadores, relacionado com a presença explícita ou não da morte11,12. Ainda, deve-se ter em conta situações específicas de indicação para doenças não relacionadas com o câncer, como doenças cardíacas, pulmonares, renais e hepáticas; demências; síndrome da imunodeficiência adquirida; acidente vascular encefálico e outras doenças neurodegenerativas. Nesses casos, há um rol de critérios que incluem gravidade da doença, estágio evolutivo, situação nutricional, histórico de internações e complicações, entre outros11. De acordo com documento publicado pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos do Brasil, para a implantação e integração de serviços de qualidade em CP, em diferentes níveis de atenção e respeitando as diferenças regionais, devem-se considerar os diferentes níveis de cuidados segundo o risco do paciente, como apresentado no quadro a seguir13 (Quadro 1): Quadro 1 Cuidados paliativos de nível I – pacientes com diagnóstico de doença avançada, progressiva e potencialmente mortal a curto prazo, com um ou mais sintomas físicos, psicológicos, sociais ou espirituais, diferentes graus de sofrimento, em alguns casos graves, mas controláveis, com os recursos disponíveis nesse nível. São prestados por equipe multiprofissional com formação diferenciada em cuidados paliativos e que estão permanentemente em processo de educação continuada, tanto em regime domiciliar quanto em regime ambulatorial ou de internação; para esse último modelo de cuidados é necessária articulação com uma unidade hospitalar de referência. Cuidados paliativos de nível II – pacientes na etapa paliativa com problemas médicos, psicológicos, sociais, ocupacionais ou espirituais de maior risco que não podem ser controlados no nível I. São prestados por equipes com formação diferenciada em cuidados paliativos, que garantem disponibilidade e apoio durante 24 horas, compreendendo o âmbito de atuação da média complexidade, em unidades assistenciais de internação própria ou em domicílio, através do oferecimento de cuidados em todas as dimensões que os encerram – físico, psicossocial, ocupacional e espiritual. Cuidados paliativos de nível III – pacientes na etapa paliativa com problemas médicos, psicológicos, sociais, ocupacionais ou espirituais de maior risco que não podem ser controlados nos níveis I e II. São prestados por equipes com formação diferenciada em cuidados paliativos, nas situações que necessitem do âmbito de atuação em maior complexidade, em unidades de referência na área, com disponibilidade de recursos para os cuidados de final de vida, para favorecer a adaptação a situações de conflito de maior complexidade e prevenção do luto complicado. Cuidados Paliativos: Quando Indicar e Como Reconhecer Critérios de Terminalidade | 161 Com base na classificação dos níveis de complexidade anteriormente descritos, é possível selecionar, de forma simples e objetiva, os diferentes graus de assistência paliativa das quais necessitarão os pacientes e seus familiares e suas condições clínicas (físicas, psicossociais, ocupacionais e espirituais), de tal forma que seja selecionado o melhor planejamento de CP. No próximo quadro (Quadro 2), são mostrados cenários assistenciais a pacientes com cuidados paliativos11. Quadro 2 Grau I Atenção básica Domiciliar Ambulatorial 1 – Paciente clinicamente estável, com doença com baixo potencial de cura e com dor, sintomas e sofrimento controlados. O paciente e sua família necessitam de atenção por equipe multiprofissional de atenção básica, para seguimento e orientação em domicílio e inserção em programas para prevenção e tratamento de sintomas. O paciente e sua família necessitam de visita domiciliar no pós-alta imediato para avaliação e orientação e/ou por equipe de atenção básica, pois não conseguem ir ao ambulatório hospitalar. O paciente e sua família necessitam de seguimento ambulatorial periódico por equipe multiprofissional e conseguem deslocar-se até o hospital. Grau II Hospital-dia Domiciliar 2 – Paciente clinicamente estável, com doença com baixo potencial de cura e com prognóstico de morte a médio prazo e/ou com necessidade de submeter-se a procedimentos pertinentes a serviços de média complexidade de atenção à saúde. O paciente e sua família necessitam de materiais ou procedimentos mais complexos do que seria viável em domicílio (bloqueio anestésico, hidratação intermitente, medicação parenteral de uso periódico), mas sem necessidade de internação hospitalar. O paciente e sua família necessitam de cuidados profissionais por equipe de atenção básica ou oferecidos por equipe do hospital, para procedimentos viáveis em domicílio (como curativos, fisioterapia respiratória, medicações parenterais) e orientação para melhoria de conforto psicossocial e espiritual. Grau III 3 - Paciente clinicamente instável e/ou com prognóstico de morte a curto/ médio prazos, necessitando de procedimentos para controle de dor e sintomas que necessitam de internação em estrutura hospitalar de mais alta complexidade. Unidade de urgência O paciente apresenta condições clínicas instáveis, que exigem assistência imediata para conforto geral, com controle de dor e sintomas (não para prolongamento da vida a todo custo). Média complexidade O paciente necessita de internação hospitalar para cuidados contínuos e procedimentos frequentes de média complexidade que não são viáveis em domicílio; tanto ele como sua família necessitam ser atendidos por equipe multiprofissional. Hospital terciário Pacientes que necessitam de cuidados de elevada complexidade, com procedimentos em estrutura hospitalar terciária para estabilização e conforto geral (não para prolongamento da vida a todo custo); tanto ele como sua família necessitam ser atendidos por equipe multiprofissional. Longa permanência O paciente e sua família necessitam de cuidados contínuos não hospitalares a longo prazo; o paciente não tem condições de permanecer com sua família e não tem rede social de suporte. Longa permanência O paciente necessita de cuidados contínuos a longo prazo e procedimentos frequentes de média complexidade (como aspiração e analgesia), sem condições de permanecer com estrutura familiar e sem rede social de suporte. Hospício Necessitam de cuidados contínuos de final de vida, em estrutura assistencial específica para CP, não necessariamente hospitalar, incluindo procedimentos de média complexidade para conforto geral; é fundamental permanência da família junto ao paciente. Um aspecto que merece destaque são as indicações de CP e a permanência de pacientes elegíveis para esses cuidados em Unidades de Terapia Intensiva (UTI). De forma marcante, em setembro de 2016, o Conselho Federal de Medicina em nosso 162 | Dor e Cuidados Paliativos país estabeleceu os critérios de admissão e alta nas UTIs. Em seu artigo sexto, quando elege as prioridades, no quinto parágrafo, diz claramente que pacientes em fase de terminalidade, ou moribundos ou sem possibilidade de recuperação, não devem ser admitidos em UTI, exceto se forem potenciais doadores de órgãos ou em casos excepcionais a critério do médico intensivista. Afirma, ainda, no artigo oitavo, que tais pacientes devem ser encaminhados para unidades de CP. Com certeza, esse documento regulatório tem uma grande importância para os CP no Brasil, com potencial impacto na redução da distanásia14. Critérios de Terminalidade A terminalidade costuma ser considerada quando se esgotam as possibilidades de resgate das condições de saúde do paciente e a possibilidade de morte se aproxima de forma inevitável e previsível. O paciente se torna “irrecuperável” e caminha para a morte, sem que se consiga reverter tal processo, independentemente das medidas terapêuticas adotadas15. A irreversibilidade da doença é definida de forma consensual pela equipe médica, baseada em dados objetivos e subjetivos. Estabelecido esse diagnóstico, os cuidados paliativos constituem o objetivo principal da assistência ao paciente. Tentam-se estabelecer índices de prognóstico e de qualidade de vida, procurando definir de forma mais clara esse momento da evolução de uma doença, tendo como objetivo o estabelecimento de condutas para o acompanhamento desses pacientes. Contudo, abordam-se mais aspectos epidemiológicos, faltando a especificidade em nível individual. É mister reconhecer a definição do paciente terminal, além da biologia, inserida em um contexto particular, cultural, subjetivo e humano. As possíveis dificuldades na compreensão de um conceito preciso não devem, de forma alguma, comprometer os benefícios que o paciente e seus familiares e a equipe profissional podem ter no reconhecimento dessa condição. Nesse contexto, há uma grande perspectiva de ações que envolvem humanização, amor, solidariedade e respeito, que pode gerar um cuidado de alta qualidade, favorecendo despedidas, preparação de separações e projetos para os que sobreviverão. É um momento para a expressão da dor e do sofrimento, de sentimentos intensos que envolvem a perda e a morte12. Muitas medidas consideradas curativas ou restaurativas podem configurar tratamento fútil, como a nutrição parenteral ou enteral, a administração de drogas vasoativas, a terapia renal substitutiva, a instituição ou manutenção de ventilação mecânica invasiva e, inclusive, a internação ou permanência do paciente em UTI. A priorização dos cuidados paliativos e a identificação de medidas fúteis devem ser estabelecidas de forma consensual pela equipe multiprofissional em consonância com o paciente (se possível), seus familiares ou seu representante legal. As ações paliativas devem ser registradas de forma clara no prontuário do paciente16. A aproximação do fim da vida ou do processo de morte pode ser definida quando pacientes provavelmente vão morrer nas próximas 12 horas e inclui aqueles para os quais o óbito é esperado há horas ou dias e que possuem condições avançadas, progressivas e incuráveis, condições de fragilidade que gerem um óbito esperado ou que Cuidados Paliativos: Quando Indicar e Como Reconhecer Critérios de Terminalidade | 163 possam causar a morte aguda repentina na condição da doença ou, ainda, condições agudas que ameaçam a vida por eventos catastróficos. Esses pacientes podem apresentar um rápido declínio das funções, com deterioração de suas atividades e status funcional, diminuição e ausência da ingesta oral, disfagia, presença de delirium, exaustão, dispneia e um crescente aumento de necessidades17. Algumas instituições usam um esquema de cores para guiar o cuidado: azul (estável, prognóstico de anos), verde (doença avançada, meses de vida), amarelo (deterioração, semanas de vida), vermelho (últimos dias). As escalas de funcionalidade e de índices prognósticos em paliativos são empregadas com bastante utilidade, apontando e indicando o fim da vida17,18. Conclusão Os CP podem melhorar o controle de sintomas e a qualidade de vida dos pacientes. Devem ser indicados precocemente, de forma orientada e segundo critérios específicos. Reconhecer pacientes terminais e promover um fim de vida com humanidade deve ser uma prioridade das equipes de cuidado. Referências 1. World Health Organization. WHO definition of palliative care. Disponível em: http://www.who.int/ cancer/palliative/definition/en/. Acesso em: 5 out. 2017. Canadian Hospice Palliative Care Association. The Way National Framework: a roadmap for an integrated palliative approach to care. 2015. Disponível em: http://www.hpcintegration.ca/media/60044/TWF-frameworkdoc-Eng-2015-finalApril1.pdf. 2. Temel JS, Greer JA, Admane S et al. Longitudinal perceptions of prognosis and goals of therapy in patients with metastatic non-small-cell lung cancer: results of a randomized study of early palliative care. J Clin Oncol. 2011; 29:2319-26. 3. Temel JS, Greer JA, Muzikansky A et al. Early palliative care for patients with metastatic non-smallcell lung cancer. N Engl J Med, 2010; 363:733-42. 4. Hawley P. Barriers to access to palliative care. Palliat Care, 2017;10: 1-6 5. World Health Organization . Global Health Observatory (GHO) data. Life expectancy. Disponível em: http://www.who.int/gho/mortality_burden_disease/life_tables/en/. Acesso em 7 out. 2017. 6. Ministério da Saúde (Brasil). Sistema de Informação sobre Mortalidade. Disponível em: http:// portalsaude.saude.gov.br/index.php/oministerio/principal/secretarias/svs/mortalidade. Acesso em: 14 out. 2017. 7. Instituto Nacional de Câncer. Estimativa 2016: incidência de câncer no Brasil. Disponível em: http:// www.inca.gov.br/estimativa/2016. 8. Murtagh FEM, Bausewein C, Verne J et al. How many people need palliative care? A study developing and comparing methods for population-based estimates. Palliat Med, 2014; 28:49-58. 9. Etkind SN, Bone AE, Gomes B et al. How many people will need palliative care in 2040? Past trends, future projections and implications for services. BMC Med, 2017;15:102. 10. Ali AMASA, Soares IJA, Redigolo LRP et al. Protocolo clínico e de regulação para atenção a pacientes em cuidados paliativos. In: Santos JML. Protocolos clínicos e de regulação: acesso à rede de saúde. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 141-60. 11. Marengo MO, Flávio DA, Silva RHA. Terminalidade da vida: bioética e humanização em saúde. Medicina (Ribeirão Preto), 2009;42:350-7. 12. Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Critérios de qualidade para os cuidados paliativos no Brasil. Rio de Janeiro: Diagraphic, 2006. Anexo 2, p. 41-62. 164 | Dor e Cuidados Paliativos 13. Conselho Federal de Medicina (Brasil). Resolução nº 2.156 de 17 novembro 2016. Estabelece os critérios de admissão e alta em unidade de terapia intensiva. Diário Oficial da União. 17 nov 2016; Seção I, p.138-9. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/ BR/2016/2156. Acesso em: 9 out. 2017 14. Gutierrez PL. O que é paciente terminal? Rev Assoc Med Bras, 2001;47:92 . 15. Moritz RD, Lago PM, Souza RP et al. Terminalidade e cuidados paliativos na unidade de terapia intensiva. Rev Bras Ter Intensiva, 2008; 20:422-8. 16. National Gold Standards Framework. Centre for End of Life Care. Primary care, care homes and other areas. Disponível em: http://www.goldstandardsframework.org.uk. 17. Glare P, Sinclair CT. Palliative medicine review: prognostication. J Palliat Med, 2008;11:84-103. Cuidados Paliativos: Quando Indicar e Como Reconhecer Critérios de Terminalidade | 165 14 Capítulo Organização e Modelos de Assistência em Cuidados Paliativos Ana Paula dos Santos Introdução A literatura apresenta uma farta gama de estudos que mostram que não apenas o oferecimento de cuidados paliativos, mas também a precocidade da indicação são fatores de promoção de qualidade de vida diante das doenças ameaçadoras da vida. Porém, Hawley, em 2017, deixa muito claro que os cuidados paliativos, infelizmente, ainda não conseguem ser ofertados a todos os pacientes e famílias que deles necessitam. Cita como exemplo que um terço dos hospitais americanos com mais de 50 leitos não possuem nenhum tipo de modelo de assistência em cuidados paliativos. No Brasil a situação é um pouco mais complexa. Certamente não somos, ainda, possuidores do número expressivo de 5 mil hospices, como, segundo a National Hospice and Palliative Care Organization (NHPCO), tem a população norte-americana e muito menos mais de 200 hospices da Inglaterra, o país berço de todo o novo movimento Hospice, a filosofia que rege o cuidar paliativo. Seja pela implantação de um hospice, seja pelo estabelecimento de uma enfermaria de cuidados paliativos, um grupo consultor de um hospital geral, uma unidade-dia, um ambulatório, uma equipe de atendimento domiciliar ou uma hospedaria, o que vemos é o crescimento exponencial das práticas em cuidados paliativos, que vem, nos últimos anos, sendo marcado pelo franco desenvolvimento de serviços de diversas modalidades de atendimento, por motivos que vão além da preocupação do simples cuidar, mas que perpassam as mesas de administradores que veem nos cuidados paliativos a excelência do cuidado associado ao uso adequado e ponderado das novas e caras tecnologias, muitas vezes desnecessárias e dolorosas ao paciente, ou pelas exiOrganização e Modelos de Assistência em Cuidados Paliativos | 167 gências internacionais e nacionais dos processos de acreditação hospitalar, às quais muitos hospitais brasileiros têm se submetido. Sejam quais forem os motivos, o projeto Atlas, da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), vem trazendo dados de uma malha surpreendente de serviços especializados em cuidados paliativos por todo o Brasil. Várias são as modalidades de atendimento, e cada uma com sua peculiaridade oferece fatores positivos e negativos, mas fundamentais à oferta do bom cuidado. O Brasil ainda conta com algumas dificuldades para a implantação absoluta dos cuidados paliativos em seus diversos modelos de assistência. A falta de políticas assistenciais, de regulamentação específica faz com que tais práticas permeiem pela seara da falta de recursos, o que nos mostra que muitos serviços existentes são fruto da luta de pessoas e equipes. Este capítulo busca mostrar modelos de assistência presentes no Brasil e mostrar que, apesar de nossas dificuldades, estamos indo à luta para a construção de uma prática de cuidados paliativos de qualidade. A Organização de um Serviço Segundo Maciel, 2012, para que se proponha a construção de um serviço de cuidados paliativos, há de se responder essencialmente a duas questões: • que objetivos tal serviço pretende alcançar? • qual a demanda de necessidades desse futuro serviço de cuidados paliativos? Na primeira questão, há que se colocarem pontos acerca do tipo de cuidados que se espera oferecer: cuidados de pacientes no fim da vida? Cuidados prolongados de pacientes crônicos? Ser um serviço cujo objetivo é a reabilitação de pacientes graves e vulneráveis? Porém, para se definirem os objetivos do serviço a ser montado, é de suma importância entender a demanda da região ou do hospital no qual se pretende montar o serviço de cuidados paliativos. Para tal, é importante conhecer os diagnósticos mais frequentes dos pacientes; as necessidades de pacientes e familiares; saber sobre os recursos existentes, tanto em investimentos quanto em recursos humanos e de material; conhecer a necessidade e a formação dos componentes envolvidos e a necessidade de treinamento em cuidados paliativos de novas pessoas. Portando, com as respostas a essas perguntas e entendendo a necessidade de integrar o novo serviço em meio à rede de saúde local, pois a atenção global ao paciente exige que o serviço de cuidados paliativos não seja isolado, pode-se, enfim, definir o modelo de assistência a ser criado. Modelos de Assistência Intra-hospitalares Enfermaria de cuidados paliativos Trata-se de um espaço interno ao hospital, denominado ala, com leitos específicos para cuidados paliativos, que fica sob responsabilidade de profissionais com expertise na área, com habilidades para lidar com o sofrimento de ordem física, mas também com as esferas psicológicas, sociais e espirituais dos pacientes com doenças ameaça168 | Dor e Cuidados Paliativos doras da vida, respeitando e cuidando não apenas do paciente, mas da família deste também. Idealmente, deve possuir quartos individuais, ter horários de visitas e regras relacionadas com a alimentação e as atividades mais flexíveis. O gerenciamento adequado da ala desmistifica muito a ideia de um espaço para pacientes que “vão para morrer” ou para os pacientes “crônicos” do hospital. Assim, a manutenção de internações curtas é importante, mantendo o paciente e sua família apenas o tempo necessário, seja para um desfecho de fim de vida, seja para o controle de sintomas. A proposta é promover a alta sempre que possível, para acompanhamento domiciliar ou ambulatorial. Como exemplo, temos a enfermaria de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. Equipe consultora em cuidados paliativos Em um hospital sem leitos específicos para cuidados paliativos, a equipe consultora é formada por médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. É uma equipe acionada por outras equipes que acompanham o paciente para promover orientação de condutas, mas não assumem o paciente de forma integral. É considerado o tipo de atendimento mais disseminador da cultura dos cuidados paliativos. No entanto, tem como barreira de sua ampla atuação o medo e a dificuldade da aceitação dos modelos de cuidado apregoados pelos cuidados paliativos. Muitos hospitais possuem esse tipo de atendimento, sendo um exemplo o Hospital Sírio-Libanês. Equipe itinerante Difere da equipe consultora por assumir os cuidados do paciente, ditando as condutas e acompanhando o paciente que não se encontra em uma ala específica de cuidados paliativos. Tem como ponto negativo muitas vezes não poder oferecer a flexibilização de normas hospitalares, como o controle de visitas, dependendo do local em que passa a cuidar do paciente. Além disso, é possível que a equipe ou o médico até então responsáveis pelo atendimento do paciente se afastem do caso, dando a sensação de abandono. No entanto, assim como o grupo consultor, é disseminadora dos conceitos de cuidados paliativos. Modelos de Assistência Extra-hospitalares Ambulatório de cuidados paliativos A proposta do atendimento ambulatorial a pacientes em cuidados paliativos é de extrema importância para o acompanhamento de pacientes que, apesar de serem portadores de doenças avançadas e ameaçadoras da vida, ainda se encontram com bom perfil funcional. O ambulatório promove melhor controle dos sintomas, pela resposta rápida que se dá às queixas do paciente, por meio do acompanhamento frequente, promovendo, ainda, a possibilidade de comunicação do processo evolutivo da doença e dos acertos de decisão advindos de cada fase desse evoluir. Organização e Modelos de Assistência em Cuidados Paliativos | 169 Pode ser um ambiente simples, de consultórios, com a presença de médico, enfermeiro e psicólogo, ou ser completo, com a associação de atendimento de outras especialidades, como fisioterapia, nutrição, assistência social, terapia ocupacional e farmácia. As consultas ambulatoriais devem respeitar, em sua duração, as necessidades do paciente, para que ele possa expressar suas dúvidas e anseios e, para tanto, deve prover também um ambiente calmo, confortável e acolhedor. O mesmo olhar deve ser direcionado às atividades com os familiares, que são cuidadores informais e carregam em si dores e angústias relacionados com as perdas e as dificuldades do cuidado. Unidade-dia de cuidados paliativos Com o perfil similar ao da unidade ambulatorial de equipe completa, a unidade-dia oferece cuidados multiprofissionais ao paciente e, para tanto, o ambiente precisa ser espaçoso e ter atividades não apenas terapêuticas, mas de descanso, alimentação e convivência social. Habitualmente, o paciente permanece de 6h a 10h dentro da unidade, o que permite ao cuidador a possibilidade de folga das atividades de cuidado, criando um tempo para si mesmo, seja para cuidar de suas coisas, seja para participar de atividades na própria unidade. Atendimento domiciliar Talvez seja um dos mais complexos modelos de assistência, principalmente quando pensamos em grandes cidades. No entanto, para o paciente, a oportunidade de poder ser cuidado em sua casa, com seus familiares por perto, é algo indescritível. Ainda que o processo do falecer em casa seja difícil para alguns cuidadores e a fase final de vida seja cumprida em ambiente hospitalar. Para esse modelo é importante que haja um cuidador orientado e responsável, que seja capaz de colocar em prática os cuidados aprendidos a cada visita da equipe de cuidados paliativos e que tenha discernimento para reconhecer as situações em que deva solicitar a equipe. O grupo de atendimento domiciliar deve ter em seu quadro médicos, enfermeiros, assistente social, psicólogo e motorista, podendo, se possível, agregar outros profissionais, como fisioterapeutas, nutricionistas e fonoaudiólogos. As visitas devem ser preferencialmente semanais, sendo esse número aumentado de acordo com a necessidade do paciente. Por isso, o envolvimento da rede primária de saúde no atendimento domiciliar de cuidados paliativos é fundamental, para facilitar não apenas o atendimento em grandes metrópoles, mas também para levar a pequenas cidades esse modelo de cuidado aos pacientes sem possibilidade de cura. Hospice/Unidade Hospitalar Especializada em Cuidados Paliativos É uma unidade hospitalar de médio porte, porém com características diferentes do hospital. Nesse local, o perfil de flexibilidade é bastante importante, seja relacionado aos horários, seja ligado às escolhas nutricionais do paciente. 170 | Dor e Cuidados Paliativos O que se busca nesse modelo de assistência é o bem-estar do paciente e a promoção de sua qualidade de vida, por meio de atividades de convivência, atividades holísticas, ou seja, de uma abordagem completa, que vai além das necessidades físicas relacionadas com a doença, que aqui ganha o segundo plano, deixando o doente como protagonista de sua história. Nessas unidades, há uma abordagem completa do paciente, com respeitando às suas necessidades físicas, psicológicas, sociais e espirituais. Trata-se de um modelo de assistência caro e precisa contar, como podemos aprender com outros países, com a técnica de captação de recursos, visto que as políticas de saúde não implementaram regras para o pagamento desse tipo de atendimento, seja pelo Sistema Único de Saúde (SUS), seja pela saúde suplementar. É necessário,, para seu bom funcionamento, que equipes de cuidados completas e com formação em cuidados paliativos estejam disponíveis. E nessas equipes estão incluídos os assistentes espirituais e os voluntários. Os pacientes atendidos em um hospice advêm de um sistema de referência e contrarreferência. Assim, os critérios de admissão ou recusa de pacientes devem estar bem definidos. Os hospices podem agregar em sua estrutura outras modalidades de assistência, como a unidade-dia, o ambulatório e as equipes de atendimento domiciliar. No Brasil, são dois os modelos desse tipo de cuidado: a clínica Florence, localizada em Salvador/BA, e o Valencis Hospice, em Curitiba/PR. Muitos são os modelos de assistência que podem ser construídos em cada serviço e todos são necessários para o bom desenvolvimento dos cuidados paliativos. Iniciar a jornada de criar um novo serviço não é fácil, mas é preciso. Isso denota qualidade de atendimento e respeito ao ser humano. E citando Cicely Saunders: “... Faremos tudo que estiver ao nosso alcance, não somente para ajudá-lo a morrer em paz, mas também para você viver até o dia de sua morte”. Referências 1. Lima L, Pastrana T. Opportunities for palliative care in public health. Annu Rev Public Health, 2016;37:357-74. 2. Doyle D. Getting started: guidelines and suggestions for those starting a hospice/palliative care services. 2nd ed. Houston; IAHPC, 2009. 3. Hawley P. Barriers to access to palliative care. Palliat Care, 2017; 10: 10.1177/1178224216688887. Disponivel em: http://doi.org/10.1177/1178224216688887. 4. Maciel MGS. Organização de serviços de cuidados paliativos. In: Carvalho RT, Parsons HA. Manual de cuidados paliativos ANCP. 2ª ed. Porto Alegre, Sulina, 2012. p.94-110. 5. Sakurada CK, Taquemori LY. Assistência domiciliar. In: Oliveira RA. Cuidados paliativos CREMESP. São Paulo: CREMESP, 2008. p. 120-6. 6. The Joint Commission Advanced Certification for Palliative Care Programs. Chicago: The Joint Commission, 2011. Disponível em: http://jointcomission.org/certification/palliative_care.aspx Organização e Modelos de Assistência em Cuidados Paliativos | 171 15 Capítulo Estratégias no Manejo da Dor Total Mirlane Guimarães de Melo Cardoso Introdução Pacientes com doença avançada enfrentam muitos desafios. A dor é o sintoma de uma doença que pode ter sido associada a muitas perdas, como de sua normalidade, independência, saúde e futuro. A significação da dor varia entre os indivíduos. Um paciente diabético com dor neuropática periférica pode estar muito angustiado pela cronicidade1, mas um paciente com doença cardíaca isquêmica pode acreditar que a dor torácica aguda significa que está morrendo. Ainda é comum as pessoas acreditarem que a dor severa é inevitável no avanço da doença, especialmente no câncer, e isso pode ser um fator de amplificação da dor nesses pacientes. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o doente com câncer apresenta uma média de dez sintomas simultaneamente. A dor, mesmo não sendo o sintoma mais frequente, é o que significativamente afeta a qualidade de vida dos doentes oncológicos na terminalidade, constituindo-se num fator importante do sofrimento relacionado com a doença, mesmo quando comparado com a expectativa de morte2. Uma descrição inicial para dor em um câncer terminal, conhecida como “dor total”, foi proposta por Cicely Saunders, fundadora do movimento Hospice, na década de 1960, que reconheceu a dimensão física, psicológica, social e espiritual na percepção da sensação dolorosa e os efeitos multidimensionais que tem sobre a vida do doente e sua família 3,4 . Dito isso, devemos nos lembrar de que Cicely Saunders, em seu conceito visionário, já incluiu o atendimento de pacientes com esclerose lateral amiotrófica (ELA) ou doença do neurônio motor. Nos últimos anos, ficou Estratégias no Manejo da Dor Total | 173 claro que seu conceito de “dor total”, da abordagem multiprofissional, da integração precoce dos cuidados paliativos é essencial para inúmeros pacientes que sofrem de distúrbios neurológicos5. À medida que a doença avança e o tratamento curativo não proporciona um controle razoável dela, os cuidados paliativos – como um modelo de cuidados totais, ativos, integrais e preventivos – são oferecidos ao paciente com doença ameaçadora de vida e a sua família e crescem em significado. Exige-se, portanto, dos médicos paliativistas uma base de conhecimento que permita identificar fatores emergentes que possam influenciar o curso da doença limitante de vida, com um excelente controle da “dor total” e, consequentemente, melhor qualidade de vida, em detrimento do esforço ilimitado e desnecessário de curar a doença. Anteriormente, dados da literatura registravam estudos de prevalência de sintomas predominantemente em pacientes com câncer. Grandes conjuntos de dados baseados em outras populações de pacientes com doença avançada e risco de vida foram publicados nessa última década. Quase todos morrem por doença cardiovascular (38%) e câncer (34%), seguidos de doenças respiratórias crônicas (10%), HIV (5,7%) e diabetes (4,6%)6. Embora a generalização seja problemática, a evidência sugere que, para pacientes com doença avançada e progressiva oncológica e não oncológica, existe um grupo central de sintomas comuns, principalmente no último ano e provavelmente nos últimos dias de vida, conforme metanálise que incluiu 64 estudos e identificou 11 sintomas preditivos. A dor aparece como o sintoma mais prevalente nos portadores de câncer e de HIV/AIDS7. Esses dados estatísticos qualificam a “dor total” como um problema de saúde pública, que requer atenção, independentemente da origem da doença que a ocasionou. Conceito Multidimensional de Dor Total O tratamento efetivo da dor crônica como fenômeno multidimensional requer fluidez conceitual que incorpore uma compreensão dos fatores físicos, psicológicos, espirituais e sociais que afetam a neurofisiologia da nocicepção, percepção e modulação da dor e finalmente do comportamento doloroso. O conceito de “dor total” descreve exatamente essa natureza abrangente da dor, que ajuda a explicar os insucessos da farmacoterapia analgésica em alguns casos em nossa prática diária. Esse conceito, da mesma forma, ressalta a importância de uma interação complexa entre as causas físicas e outros aspectos do ser humano, incluindo personalidade, cognição, comportamento e relações sociais. Sem atenção a todos esses aspectos, o alívio da dor total provavelmente não será atingido3,8,9. O aperfeiçoamento desse conceito na abordagem das questões físicas, psicológicas, sociais e espirituais envolvidas na “dor total” é essencial para o desenvolvimento de estratégias para o alívio da dor, mesmo em situações não relacionadas com a doença terminal10,11. As terapias psicossociais dirigidas principalmente a variáveis psicológicas podem ter um impacto na intensidade ou na angústia da dor, enquanto as terapias somáticas dirigidas à nocicepção podem reduzir os aspectos psicológicos adversos da dor. Portanto, para gerenciar todos esses aspectos 174 | Dor e Cuidados Paliativos da “dor total”, as terapias somáticas e psicossociais devem ser utilizadas em uma abordagem de multimodalidade8,12. Os sobreviventes de câncer podem se apresentar psicologicamente e fisicamente debilitados depois dos tratamentos antitumorais, que se expressam com alteração na imagem corporal, perda do papel anterior nas esferas da família e do trabalho, bem como enfrentar a morbidade e a mortalidade. Todos esses fatores contribuem para o conceito de “dor total” nos pacientes com dor crônica não oncológica, que, da mesma forma, são propensos a desenvolver “comportamentos mal-adaptados” que se manifestam pelo seguinte ciclo: a dor causa diminuição da atividade e conduz à incapacidade progressiva, o que dá origem a uma socialização reduzida, ciclo de sono e despertar alterado e uso abusivo de drogas13,14. Dados da literatura demonstram que sobreviventes de câncer com “dor total” quando instruídos e treinados para construir resistência às perdas físicas, para reconhecer situações estressantes e utilizar estratégias de enfrentamento, melhoraram a dor e a qualidade de vida. A equipe de cuidados paliativos, ao construir experiências bem-sucedidas no paciente com “dor total”, pode encontrar e utilizar o significado existencial para superar situações futuras14. Avaliação da Dor Total no Contexto dos Cuidados Paliativos A interação de fatores cognitivos, emocionais e socioambientais com os aspectos nociceptivos da dor ilustra a natureza multidimensional da dor e sugere uma avaliação global e ambiental do paciente e de sua família, por meio de uma equipe multiprofissional. Em alguns casos, o sofrimento físico pode desencadear problemas psicológicos, espirituais e sociais. Da mesma forma, a dor espiritual pode ser estimulada ou expressa como dor física9. Por exemplo, um doente que não pode se alimentar por causa de um câncer esofágico se beneficia grandemente com uma gastrostomia para retomar a alimentação. No entanto, o impacto da cirurgia paliativa nas dimensões psicológicas, sociais e espirituais pode demorar para o paciente se adaptar à nova condição, e isso envolve ansiedade antecipada ou preocupação de que a situação possa piorar no futuro. Se o indivíduo é submetido a uma cirurgia paliativa com êxito, mas esses outros domínios não são atendidos, ele permanece assistido de maneira incompleta. Para as famílias, há, igualmente, grande sofrimento nesse processo: perda antecipada, testemunho permanente da angústia emocional dos pacientes e o fardo do cuidado. Finalmente, os cuidadores profissionais testemunham potencialmente o sofrimento dos pacientes e de suas famílias que desafia seus recursos emocionais. De acordo com esse modelo, o sofrimento de cada um desses três grupos – paciente, família e cuidador profissional – está inextricavelmente inter-relacionado, de tal forma que a angústia percebida de qualquer um dos três grupos pode amplificar o sofrimento dos outros. Esse modelo tem sido chamado de sofrimento recíproco12,13. Com base nessa abordagem multidimensional, a equipe de cuidados paliativos pode formular um plano de cuidados interdisciplinares para atender às necessidades da trilogia dos cuidados: paciente, família e cuidadores, em cada uma das dimensões físicas, psicológicas, sociais e existenciais ou espirituais8,9 (Quadro 1). Estratégias no Manejo da Dor Total | 175 Quadro 1 – Plano de cuidados interdisciplinares para trilogia dos cuidados paliativos em cada uma das dimensões físicas, psicológicas, sociais e existenciais Planejamento multiprofissional e interdisciplinar 1 Avaliação da condição clínica do paciente e os objetivos do cuidado 2 Descrição da família envolvida e dos cuidadores profissionais 3 Avaliação dos transtornos do paciente: físicos, psicológicos, existenciais, sociais, de comunicação e compreensão 4 Avaliação dos transtornos dos familiares: físicos, psicológicos, existenciais, sociais, de comunicação e compreensão 5 Avaliação dos transtornos do cuidador profissional: pessoais, emocionais, de treinamento, necessidade de recursos 6 Avaliação do enfrentamento: paciente, família e pessoal profissional 7 Planejamento de contingência: contingências previstas, planejadas e intervenções Estratégia para o Manejo da Dor Total Cuidar de indivíduos no final da vida e de suas famílias é uma proposta desafiadora. Entender os desafios para fornecer cuidados de qualidade é o primeiro passo importante. Como definido por Saunders, o cuidado paliativo está dirigido ao alívio do sofrimento e da “dor total”. Para isso, estabeleceu três princípios essenciais para atingir os objetivos dos cuidados paliativos: tratamento dos sintomas, destacando-se o controle da dor; apoio psicossocial e espiritual, além da comunicação contínua e adaptação das necessidades do doente e de sua família, considerando o paciente, e não a doença, como o verdadeiro centro da atenção do tratamento, trabalhando com uma equipe multiprofisional, para oferecer uma resposta rápida e efetiva a pacientes, suas famílias e cuidadores profissionais3. Historicamente, Twycross já tinha proposto uma estratégia de base científica para o manejo adequado da “dor total” e de outros sintomas, que é referendada até os dias atuais e que se resume na sigla EMMA15: Evolução e Explicação Manejo terapêutico e Monitorização Atenção aos detalhes Evolução Prevenir, diagnosticar, tratar e curar (muitas vezes) faz parte da arte milenar do médico, porém, estamos nos esquecendo da arte e da ciência de prognosticar. Estrategicamente, em cuidados paliativos, devemos prognosticar antes de diagnosticar e tratar, pois o manejo da dor está intimamente relacionado com o prognóstico, para delinear os objetivos do plano individual de intervenção, como também na condução das expectativas, prioridades, tomadas de decisão e escolhas terapêuticas consensuais da equipe, dos pacientes e de seus familiares. De modo geral, a maioria dos clínicos 176 | Dor e Cuidados Paliativos evita fazer previsões ou, se as fazem, guardam para si e não as comunicam ao paciente e, quando comunicam, não o fazem claramente, superestimando o prognóstico em situação de doença avançada, incurável e progressiva. Cada indivíduo tem as próprias vivências, que induzem à subjetividade de resposta diante da expressão de dor, envolvendo respostas afetivas e cognitivas. Sobre essa ótica devemos identificar e informar basicamente os quatro aspectos da dor na sequência evoluídos: a discriminação da dor (localização, duração intensidade e características); as causas da dor (relacionadas com própria doença, tratamentos ou patologias recorrentes); os mecanismos da dor (nociceptivo, neuropático ou misto, orgânico ou funcional); e os fatores não físicos envolvidos com a expressão da dor. Essa última é frequentemente negligenciada pelos profissionais de saúde na evolução do doente com doença avançada. Explicação A explicação da causa, do mecanismo da dor e de fatores relacionados por meio de uma linguagem simples para o paciente e sua família habitualmente contribui para a confiança e adesão ao tratamento. A expectativa do paciente com dor crônica é que, ao aderir a um tratamento farmacológico, haverá redução da dor e sua vida retornará ao normal. Em geral, essa expectativa é um pouco irreal e não considera a necessidade de múltiplos tratamentos (fisioterapia, exercício físico, psicoterapia e nutrição, entre outros), sendo pouco realista no tocante ao tempo necessário para uma reabilitação satisfatória. Nesse sentido, reduzir a intensidade da “dor total” é o primeiro de muitos aspectos a serem abordados. A qualidade de vida dos pacientes com “dor total” pode ser consideravelmente melhorada com a farmacoterapia multimodal. Entretanto, existem vários obstáculos práticos à adesão do paciente à farmacoterapia com opioide, como a ocorrência importante de efeitos adversos16,17. Na prática clínica, encontram-se, com muita frequência, pacientes que mudam de médico para não mudar de tratamento analgésico. Portanto, discutir e esclarecer esses aspectos com os pacientes e familiares é importante para a adesão ao tratamento proposto. Manejo terapêutico Implica a consideração de três aspectos: tratar a causa da dor quando possível; usar medidas não farmacológicas (físicas e comportamentais) e adotar analgesia de amplo espectro. A terapia medicamentosa refere-se à arte e à ciência no uso combinado de três grupos farmacológicos: analgésicos não opioides, analgésicos opioides, com a morfina como a droga de eleição, e drogas adjuvantes18. Nesse sentido, a OMS publicou, em 1986, um algoritmo que serve até os dias atuais como modelo clínico para o tratamento da dor oncológica validado e aceito mundialmente, que é a Escada Analgésica, na qual a dor deve ser tratada segundo uma escala ascendente de potência medicamentosa ou de complexidade de procedimentos anestésicos e/ou neurocirúrgicos15. As principais vantagens desse método são a simplicidade e a eficácia. As drogas aumentam sua potência, desde analgésicos anti-inflamatórios não hormonais até dipirona na dor leve, passando pelos opioides fracos, como codeína e tramadol, na Estratégias no Manejo da Dor Total | 177 dor moderada, até opioides potentes, como morfina, metadona, oxicodona, fentanil e buprenorfina, nas dores severas. Dadas as limitações da abordagem convencional, muitos clínicos utilizam oxicodona e morfina, tradicionalmente designadas para dor severa, para dor moderada em baixas doses. Essa prática é apoiada por evidências científicas de eficácia19,20. Os medicamentos adjuvantes são usados com o objetivo de aumentar a eficácia analgésica dos opioides, previnem e tratam sintomas concomitantes que exacerbam a “dor total” e colaboram com o manejo da dor neuropática. Podem ser usados em todos os degraus da escada analgésica da OMS. Entre eles estão: corticoides; anticonvulsivantes; psicoestimulantes; antidepressivos tricíclicos; agonista α-2; anti-histamínicos; ketamina; e anestésicos locais e bifosfonatos, entre outros. Ao contrário dos opioides, esses medicamentos não causam dependência fisiológica. Como são agentes sinérgicos aos opioides, podem ser associados com doses mais baixas do que as prescritas isoladamente, o que pode reduzir os efeitos adversos, pois alguns são fármacos de faixa terapêutica estreita com potencial de toxicidade, como os anticonvulsivantes e antidepressivos. São amplamente prescritos e, amiúde, fornecem benefícios reais quando adequadamente associados. Monitorização É necessário o seguimento não só para a avaliação contínua da eficácia terapêutica e detecção dos efeitos adversos, mas também para pesquisar o aparecimento de novos focos de dor e revisar as respostas aos fármacos que o paciente recebeu previamente, para ajustar a posologia (doses, intervalos), agregar fármacos adjuvantes quando necessário, modificar os fármacos prescritos ou adaptar a via de administração dos medicamentos. Embora a morfina por via oral seja a terapêutica farmacológica de eleição, alguns pacientes possuem limitações para essa via de administração. Com base no que o próprio paciente refere para avaliação da intensidade da dor, é sugerida a utilização de escalas unidimensionais (numérica, verbal, percentual e visual analógica) e multidimensionais, que nos fornecem informação quantitativa e qualitativa da dor. Rotineiramente, a monitorização de fatores que podem intervir na resposta analgésica apropriada dos opioides no curso da doença se faz necessária para a implementação dos ajustes terapêuticos, a considerar: progressão da doença; desenvolvimento de tolerância; aparecimento de efeitos adversos intratáveis; fatores farmacocinéticos e farmacodinâmicos; identificação do padrão temporal da dor; tipo de dor; a abordagem adequada do componente neuropático da dor mista, frequentemente negligenciado, contribuindo diretamente para a baixa adesão ao tratamento analgésico21. Atenção aos detalhes O controle da dor tem uma base científica, mas existem também aspectos de ordem prática que garantem sua eficácia: a prescrição de fármacos profiláticos para sintomas persistentes; recomendações médicas assistenciais escritas e orientadas quantas vezes forem necessárias; atitude proativa para evoluir, e não presumir. Quanto mais fácil for o plano terapêutico, maior a possibilidade de seu cumprimento. 178 | Dor e Cuidados Paliativos Alguns fármacos têm cores distintas, segundo sua potência, o que ajuda a comunicação e orientação diária de alguns pacientes. Diversificar a forma de apresentação dos diferentes analgésicos (comprimidos, cápsulas, soluções, gotas, adesivos) pode dar a impressão, para o paciente, que ele não está usando tantos medicamentos, assim, talvez, sua adesão seja facilitada. Por isso, dentro do possível, deve-se restringir o número de medicamentos. A relação positiva entre o número de fármacos administrados e a incidência de reações adversas a eles já está bem documentada. Estudos demonstram que o número médio de prescrições, na maioria da população adulta, varia de quatro a oito fármacos, e que as reações adversas para o paciente que está tomando apenas um fármaco é em torno de 10%, chegando a quase 100% quando são utilizados 10 tipos de fármaco. Prescrição comum na população idosa, em que a dor crônica tem elevada prevalência – o risco de ocorrência de um efeito adverso na população geriátrica, em que a dor crônica é de alta prevalência, foi estimado em 13% para dois fármacos, 58% para cinco e 82% para sete ou mais22. A prescrição de analgésicos de ação prolongada, quando a dose titulada já foi definida, muitas vezes garante maior adesão. Estudos anteriores comprovam que quanto maior o número de tomadas menor será o grau de cumprimento pelo doente. Infelizmente, isso nem sempre é possível por causa da evolução flutuante da dor e da limitação financeira da maioria dos pacientes para aquisição desses fármacos. Farmacoterapia Opioide – Otimizando a Analgesia Selecionar e titular individualmente as doses de opioides A terapia crônica com os opioides orientada pela escada analgésica da OMS é a base para o tratamento da dor moderada e severa do câncer, com a qual se busca alcançar um balanço favorável entre o alívio da dor e os efeitos adversos para uma maior adesão ao tratamento proposto, com melhor qualidade de vida para o paciente. Os efeitos adversos mais comuns incluem constipação, sedação, náuseas e vômitos e boca seca. O efeito imunossupressor dos opioides23,24, bem como a disfunção cognitiva associada a seu uso, apesar da relevância clínica incontestável, continua incerto, com resultados divergentes, servindo apenas como pré-requisito para que novas investigações nessa área sejam conduzidas25. Independentemente desses dados da literatura, os opioides são efetivos, com uma favorável relação de risco-benefício. Somente 10% a 30% dos pacientes apresentam uma resposta pobre aos opioides na administração de rotina. Este é um fenômeno complexo que pode estar relacionado com um ou mais fatores, incluindo comorbidades que predispõem à toxicidade e à fisiopatologia da dor associada ou amplificada por outras dimensões que compõem a “dor total”, bem como à resposta analgésica relativamente limitada a efeitos farmacológicos causados por desidratação ou insuficiência renal. Os pacientes que desenvolvem efeitos adversos não controlados mesmo antes de alcançar a analgesia adequada durante a titulação da dose devem receber tratamento agressivo para prevenir ou tratar os efeitos adversos, e somente quando essa intervenção falhar deve-se considerar o rodízio de opioides. Alucinações, falha cognitiva, mioclonias e náuseas são outras das indicações para o rodízio de opioides, além da dor não controlada26,27,28. Estratégias no Manejo da Dor Total | 179 Minimizar os efeitos adversos para otimizar a adesão Múltiplos efeitos adversos têm sido comumente relatados em pacientes em uso de opioides no tratamento da dor crônica, como náuseas (28%); constipação (26-63%); sonolência (24%); tonturas (18%); prurido e vômitos (15%). Xerostomia, cefaleia, disfunção sexual, ondas de calor, anorexia, fadiga, insônia, sudorese, visão turva, confusão, contrações musculares, diarreia, ataxia, edema e retenção urinária correspondem a 10% de todos os efeitos identificados. A maioria é tratada com medicação sintomática e ajustes de dose do opioide, sem comprometimento da analgesia. Contudo, a constipação, que aparece como o efeito secundário que não induz tolerância farmacológica, é o efeito adverso mais comum e pode não ser resolvida com medidas laxativas e ainda ser intensificada com a terapia de longo prazo e doses elevadas do fármaco. A constipação pode se tornar um problema importante com a exposição a opioides numa proporção significativa dos pacientes. Consequentemente, o médico deve considerar medidas laxativas e dietéticas mesmo antes do desenvolvimento da constipação. Se esses efeitos e complicações na prática clínica diária não forem informados aos pacientes e adequadamente monitorizados e controlados, importante abandono parcial ou total da terapia analgésica21,29 pode ocorrer. No contexto clínico, muitas vezes, percebe-se que a subutilização do opioide prescrito é mais frequente do que seu uso excessivo, estando associada ao medo da família relacionada com o vício, estratégias de enfrentamento ativas e automedicação na maioria dos estudos. Por outro lado, mais uma vez, os resultados dos estudos enfatizam que fatores como idade, intensidade da dor, posologia, polifarmácia, qualidade da relação médico-paciente e percepção da necessidade de terapia opioide continua, são fatores importantes associados a não adesão, que devem ser foco da atenção da equipe de cuidados paliativos30. Identificação de comportamento anômalo relacionado com a droga O uso abusivo de medicamentos como os opioides tem se tornado um problema de saúde pública que deve ser conhecido e estudado, principalmente no contexto dos cuidados paliativos de países desenvolvidos. No Brasil, temos uma realidade ainda de subdiagnóstico e subtratamento da dor crônica. No entanto, a conscientização desse uso é importante para buscarmos, estrategicamente, medidas para um tratamento adequado que consigam balancear uma analgesia apropriada e o potencial risco de abuso desses fármacos. Dependência e abuso de substância são termos que dificultam as condutas nos cuidados paliativos, em razão de suas limitações quando se tenta introduzi-los na prática médica. A escassez de informações sobre o perfil comportamental de tais indivíduos, a perspicácia aliada à experiência do médico devem ser as principais ferramentas utilizadas para discernir uma atitude comum de outra anormal. Um conceito que é muito mais útil para a prática médica é o de comportamento anômalo relacionado com a droga. Este, em razão de sua maior amplitude, abre mão da tentativa de definir que atitudes são próprias do abuso da droga e quais são aceitáveis socialmente31. A verdadeira intenção dessa nomenclatura é levantar suspeita em relação a um comportamento que pode destoar da normalidade, na tentativa de diagnosticá-lo como sendo decorrente do uso da droga ou da enfermidade de base do paciente. 180 | Dor e Cuidados Paliativos Sabe-se que, frequentemente, a “dor total” não oncológica envolve fatores biológicos e psicossociais, portanto, médicos que prescrevem terapias crônicas com opioides devem integrar terapias cognitivo-comportamentais que se mostraram efetiva, além de terapias adjuvantes não opioides de forma rotineira31,32. Atualmente, não há definição de desfecho, manejo e complicações, entretanto, a segurança e o alívio da “dor total”, independentemente da origem, devem ser o foco do tratamento, prevenindo problemas e a perpetuação do uso de fármacos com potencial de dependência e vício, como os opioides. Considerações Finais O paciente com uma doença ameaçadora da vida pode enfrentar vários desafios e perdas, começando com a perda de sua saúde e expectativa de futuro. Como a cada desafio a perda ocorre, o paciente demora a absorver a nova situação, e esse sofrimento fica demonstrado nas diferentes dimensões da “dor total”. Sua reavaliação contínua é essencial, assim como a reconsideração de como apoiar a compreensão, a adaptação e a resolução de cada um dos domínios físico, psicológico, espiritual e social inseridos na “dor total”. Referências 1. Callaghan BC, Cheng HT, Stables CL et al. Diabetic neuropathy: clinical manifestations and current treatments. Lancet Neurol, 2012; 11: 521–34. 2. World Health Organization. The Top 10 Causes of Death. Fact Sheet. Geneve: WHO, 2013. 3. Saunders C. Hospice and Palliative Care: an Interdisciplinary Approach. London: Edward Arnold, 1990. 4. Syrajala KL, Cummings C, Donaldson GW. 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Dispneia Aspectos gerais A dispneia pode ser definida como “experiência subjetiva de desconforto respiratório que consiste em diferentes sensações qualitativas e varia em intensidade”1. Dessa forma, a falta de ar, tal como a dor, é um sintoma, e não um sinal. Sua prevalência é bastante variável (12%-74%)2-4, dependendo do diagnóstico de base e do estágio da doença em cada paciente. Diversas pesquisas têm demonstrado que medidas da frequência respiratória, saturação de oxigênio, gasometria e mesmo a percepção de profissionais de saúde e familiares não se correlacionam com a percepção do paciente sobre sua falta de ar5. Como a dor, esse sintoma pode ser entendido como uma combinação de fatores físicos, mas também de aspectos psicossociais e espirituais, sendo o Sintomas Respiratórios em Cuidados Paliativos | 183 autorrelato do paciente sua medida mais adequada6. Alguns pacientes podem sequer queixar-se espontaneamente de dispneia, todavia, quando questionados sobre sua capacidade para deambular, podem indicar a ocorrência de falta de ar que os impede de caminhar com a mesma velocidade ou de percorrer a mesma distância que costumavam conseguir. A sensação de se “afogar no seco” é angustiante e aterrorizante não somente para o paciente como também para os familiares e cuidadores. Sua frequência pode ser relativamente comum em algumas patologias, como na doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), na insuficiência cardíaca e nas neoplasias pulmonares. A percepção de falta de ar pode ser influenciada pelo grau de ansiedade do paciente, pela evolução do sintoma e por experiências prévias7. Familiares e cuidadores precisam ser educados de sua percepção quanto à presença e intensidade de falta de ar em relação ao paciente, que pode ser muito diferente da percepção individual do doente em relação a si mesmo. O tempo investido pela equipe de cuidados paliativos na compreensão dos desejos e objetivos de cuidado do paciente quanto ao controle dos sintomas e medidas diagnósticas e terapêuticas permitirá otimizar o tratamento oferecido, bem como minimizar o risco de incompreensão, iatrogenia e sofrimento5. A causa da falta de ar pode ser bem definida (ex.: tromboembolismo pulmonar, pneumonia, metástases pulmonares e DPOC), entretanto, em alguns pacientes podemos não encontrar uma etiologia única e inequívoca. Diversas doenças podem comprometer a respiração e causar a sensação de falta de ar. Alguns dos mecanismos mais comuns na gênese da dispneia incluem ansiedade, obstrução de vias aéreas, broncoespasmo, hipoxemia, derrame pleural, pneumonia, edema pulmonar, embolia pulmonar, secreções respiratórias volumosas e espessas, distúrbios metabólicos e mesmo questões espirituais ou de natureza familiar, financeira ou legal. Por sua vez, cada mecanismo pode estar associado a diferentes etiologias. Avaliação A avaliação clínica da dispneia inclui, portanto, o relato do paciente, a história da evolução do sintoma e o exame físico direcionado. Os resultados da avaliação guiarão o tratamento, bem como servirão para o estabelecimento de um parâmetro basal a ser utilizado para a avaliação da resposta terapêutica do paciente. A presença e intensidade da dispneia devem ser avaliadas por meio de instrumentos validados, como as escalas numéricas verbais ou a escala analógica visual. A avaliação da intensidade da dispneia faz parte de vários instrumentos específicos de avaliação em cuidados paliativos, como a escala de avaliação dos sintomas de Edmonton (ESAS). Avaliações mais específicas, como exames laboratoriais (ex.: dosagem de D-dímero, peptídeos natriuréticos tipo B, proteína C reativa, hemograma, gasometria arterial) ou radiológicos (ex.: radiografias e tomografia computadorizada), devem ser solicitadas se os benefícios da informação a ser obtida excederem o desconforto e o risco relacionados com o procedimento e na medida em que se encontrem alinhados com os objetivos de cuidado do paciente, seus valores e preferências individuais. Todavia, a oximetria de pulso ou gasometria não deve ser vista como medida objetiva 184 | Dor e Cuidados Paliativos do desconforto do paciente, e sim o autorrelato. Pesquisas têm demonstrado que a maioria dos pacientes que relatam falta de ar não está hipoxêmico e, por sua vez, as medidas de hipoxemia (ex.: oximetria de pulso e gasometria) frequentemente não se correlacionam bem com a percepção dos pacientes5,8. Tratamento O tratamento da dispneia deve ser sempre individualizado, entretanto, alguns princípios gerais podem ser aplicados a todas as causas. A abordagem multidisciplinar é fundamental. Merece destaque especial o papel dos fisioterapeutas, os quais podem auxiliar no posicionamento do paciente no leito, na realização de fisioterapia respiratória, no controle da hiperventilação, na orientação sobre técnicas de relaxamento, bem como no oferecimento de orientações práticas sobre a realização de atividades cotidianas5. Em alguns pacientes oncológicos a quimioterapia pode melhorar o controle de sintomas e a qualidade de vida. A pleurodese com insuflação de talco pode ser considerada precocemente em detrimento de múltiplas punções pleurais. Toda abordagem terapêutica deve ser ponderada diante do contexto de cada paciente especificamente, considerando-se riscos, custos e benefícios à luz de seus valores individuais e objetivos de cuidado. Para alguns pacientes, por exemplo, o simples deslocamento ou internação para a realização de um procedimento (seja quimioterapia, radioterapia, laserterapia ou implantação de stent endobrônquico) pode representar sofrimento desnecessário. Tratamento farmacológico Oxigênio Em pacientes portadores de DPOC avançado a utilização de oxigênio domiciliar demonstrou melhora em sua sobrevida nas seguintes condições: a) PaO2 < 55 mmHg ou SatO2 < 88% ou b) PaO2 < 60 mmHg ou SatO2 < 89% e hipertensão pulmonar, insuficiência cardíaca ou policitemia secundária (hematócrito > 55%)9,10. Por outro lado, a utilização de oxigenoterapia para o alívio da dispneia em pacientes sem hipoxemia carece de evidências e pode ser associada a uma variedade de problemas e efeitos indesejáveis, como o desconforto relacionado com o uso do cateter nasal, o ressecamento das vias aéreas, a redução da mobilidade, os custos financeiros e até mesmo o desenvolvimento de dependência psicológica11. Mesmo em pacientes com hipoxemia associada a doenças ameaçadoras da vida em fase avançada, não há clareza quanto ao real benefício da oxigenoterapia para o alívio do sintoma de dispneia no longo prazo. Em função da complexidade do fenômeno da falta de ar, pode-se propor ao paciente a realização de um teste terapêutico com O2 suplementar por 24 horas para verificar o benefício da intervenção no alívio do sintoma. Nesses casos, recomenda-se avaliação intermitente do paciente, se possível com oximetria de pulso. Em caso de resposta terapêutica favorável, com perspectiva de uso por longo prazo, deve-se considerar o uso de concentradores de oxigênio. Opioides Morfina, fentanil, hidromorfona, oxicodona e metadona são alguns dos opioides utilizados no tratamento da dispneia. O mecanismo exato da ação dos opioides sobre o alívio da dispneia ainda não é conhecido em sua totalidade, entretanto, pode incluir Sintomas Respiratórios em Cuidados Paliativos | 185 ação inibitória direta sobre receptores opioides presentes nos alvéolos, na medula e no centro respiratório. Os opioides podem diminuir da sensibilidade do centro respiratório à hipóxia e hipercarbia, mas também podem exercer efeito ansiolítico. Outro mecanismo possível é a dilatação venosa pulmonar com redução na pré-carga cardíaca, especialmente relevante em pacientes com insuficiência cardíaca. Os opioides são considerados a principal classe farmacológica para o tratamento paliativo da dispneia refratária. Ainda que uma revisão sistemática recente tenha considerado a qualidade da evidência disponível a esse respeito como baixa3, trata-se da opção terapêutica mais bem estudada e aceita como eficaz e segura11-13. O uso de opioides para tratamento da dispneia contribui para a melhora da qualidade de vida de pacientes portadores de dispneia refratária e pode indiretamente contribuir para o prolongamento da vida dos pacientes por reduzir o estresse físico e psicológico, bem como diminuir a exaustão relacionada com esse sintoma14. Os opioides devem ser utilizados de forma semelhante ao tratamento da dor. Inicia-se com doses baixas de formulações de liberação imediata em posologia regular associada a uma dose de resgate. A dose diária deve ser titulada até o alívio do sintoma. Uma vez que o sintoma esteja controlado, é possível transicionar para o uso de um opioide de liberação lenta14. Os efeitos adversos devem ser antecipados e prevenidos, em especial a constipação. Quando os opioides são utilizados para tratar a dispneia, a questão da tolerância farmacológica não costuma representar um problema relevante. Em alguns pacientes, o alívio do sintoma pode ser acompanhado de um aumento mensurável na tolerância ao exercício e maior mobilidade. Em geral, as doses utilizadas para tratamento da dispneia são inferiores às usadas para tratamento da dor, e quando o sintoma é controlado por meio de titulação cuidadosa da dose, a depressão respiratória e o comportamento de vício não representam risco significativo. O Quadro 1, a seguir, exemplifica prescrições iniciais de opioides para tratamento de dispneia em pacientes sem uso prévio desses medicamentos. Quadro 1 – Exemplos de prescrição inicial de opioides para tratamento da dispneia em pacientes adultos virgens de opioides Dispneia leve • Codeína 30 mg VO 4/4h com uma dose de resgate de 30 mg a cada 2h. Considere reduzir a dose em 1 ⁄4 ou pela metade para pacientes idosos ou frágeis. Dispneia grave • Morfina (como solução oral ou comprimidos), 5 mg 4/4h, com uma dose de resgate de 5 mg a cada hora. Os opioides podem ser administrados por via EV ou SC em situações de urgência ou quando a via oral não estiver disponível ou for desaconselhável. Ansiolíticos e fenotiazinas A falta de ar, em especial quando aguda ou grave, pode causar grande ansiedade e pânico. Opioides e terapias não farmacológicas podem aliviar tanto a dispneia como a ansiedade resultante. As evidências atuais apontam o uso de prometazina por via 186 | Dor e Cuidados Paliativos oral isoladamente ou em associação com opioides como um agente de segunda linha para o tratamento da dispneia14. Apesar de benzodiazepínicos, como diazepam ou midazolam, atuarem como ansiolíticos e potencialmente reduzirem a resposta ventilatória à hipóxia e hipercapnia, até o presente momento, estudos não corroboram seu uso14. No tratamento da falta de ar, o uso de benzodiazepínicos deve ser reservado àqueles pacientes com ansiedade excessiva associada ao quadro de dispneia. Recomenda-se, antes do uso de benzodiazepínicos, um teste com buspirona, agonista serotoninérgico e ansiolítico não benzodiazepínico, ou sertralina pelo efeito modulatório da serotonina na respiração7. Outras medicações O uso de corticoides sistêmicos pode ser benéfico na DPOC, em casos de linfangite carcinomatosa, pneumonite actínica, síndrome da veia cava superior e em obstrução de vias aéreas associadas a neoplasias por conta de seus efeitos anti-inflamatórios com redução de edema. O uso prolongado dessa medicação, entretanto, pode estar relacionado com a miopatia, o que pode prejudicar o controle da dispneia no médio e longo prazo. Dessa forma, os corticoides devem ser utilizados com cautela14. Tratamento não farmacológico Medidas não farmacológicas podem proporcionar alívio adicional para a dispneia. Nesse sentido, uma equipe interdisciplinar integrada pode contribuir de forma significativa no controle desse sintoma. Medidas simples, como cuidados com o ambiente, o posicionamento do paciente e orientações à família e cuidadores, podem exercer grande impacto sobre o alívio da dispneia. Sabe-se que a estimulação facial com fluxo de ar pode contribuir para o alívio da sensação de falta de ar. O possível mecanismo subjacente à melhora sintomática provavelmente está relacionado com o estímulo inibitório decorrente do segundo ramo (maxilar) do nervo trigêmeo sobre o centro respiratório, o qual pode ser obtido mediante a utilização de um recurso simples como um ventilador com fluxo de ar direcionado para o rosto do paciente5. O Quadro 2, a seguir, reúne as principais medidas não farmacológicas descritas como benéficas na abordagem da dispneia. Quadro 2 – Medidas não farmacológicas para o tratamento da dispneia • • • • • • • • • • • Educação do paciente, familiar e cuidadores quanto à natureza dos sintomas. Orientação quanto às intervenções propostas e adotadas. Abordagem de questões relativas a valores individuais e à percepção de sentido/significado daquilo que se tem vivenciado/observado. Apoio e aconselhamento da família acerca de assuntos de ordem espiritual, financeira e legal que possam estar contribuindo com a ansiedade. Limitar o número de pessoas no quarto do paciente. Manter o ambiente fresco e bem arejado. Proporcionar fluxo de ar voltado para o rosto do paciente (ex.: ventilador). Se possível, oferecer ao paciente visão do ambiente externo através de janelas. Eliminar agentes irritantes respiratórios como fumaça de cigarro e poeira. Elevar a cabeceira da cama e mobilizar frequentemente o paciente. Usar terapias de relaxamento, distração, acupuntura ou hipnose. Sintomas Respiratórios em Cuidados Paliativos | 187 Em algumas circunstâncias, as terapias não farmacológicas podem ser eficazes isoladamente e dispensar o uso de medicamentos. No entanto, principalmente para os pacientes mais ansiosos, a combinação de tratamento farmacológico e não farmacológico em geral será necessária. Tosse A tosse é um mecanismo fisiológico de proteção pulmonar e das vias aéreas. Apresenta mecanismos voluntários e involuntários. É um dos sintomas mais comuns e está frequentemente relacionado com infecções das vias aéreas. Apesar de sua função protetora, quando prolongada, pode causar grande desconforto ao paciente. A história clínica é fundamental para o adequado diagnóstico etiológico, para distinguir entre tosse secundária a infecções de vias aéreas superiores, pneumonia, refluxo gastroesofágico, broncoaspiração ou obstrução das vias aéreas por um tumor. Caso o fator irritativo responsável pela tosse não tenha perspectiva de melhora mediante tratamento etiológico específico, o uso de supressores da tosse torna-se uma importante opção para o manejo paliativo desse sintoma. Tratamento O tratamento deve levar em consideração tanto a etiologia da tosse como as condições clínicas, o prognóstico do paciente, seus valores e objetivos de cuidados. Sempre que possível, o tratamento deve incidir sobre a causa do sintoma. É importante alcançar clareza quanto aos fatores de piora com o objetivo de prevenir sua ocorrência. A falta de ar pode desencadear a tosse e vice-versa. Tosse persistente pode precipitar vômito, fadiga, dor torácica e abdominal, fratura de costela, síncope e insônia. Esses problemas devem ser tratados concomitantemente. Uma radiografia simples de tórax, bem como um hemograma, pode ser útil na investigação etiológica. Na suspeita de tosse secundária a refluxo gastroesofágico, deve-se implementar teste terapêutico com medicamentos pró-cinéticos e bloqueadores de bomba de prótons15. Supressores da tosse são geralmente utilizados no tratamento da tosse seca irritativa. A tosse produtiva pode ser tratada com supressores se ocorrer no período noturno e também no paciente nas últimas horas de vida. Os opioides são considerados os agentes antitussígenos mais potentes. Pode-se iniciar com codeína ou baixas doses de morfina (2,5 mg de morfina a cada 4 horas) associada ao não a anti-histamínicos de primeira geração. Agentes mucolíticos como xaropes ou nebulização com solução fisiológica podem beneficiar o paciente com dificuldade de eliminar secreções. O uso de nebulização com solução fisiológica pode fluidificar as secreções, facilitando a expectoração. A nebulização com anestésicos locais pode aliviar a tosse seca irritativa refratária aos tratamentos supracitados. É importante notar que na primeira aplicação pode ocorrer broncoespasmo, sendo desejável, portanto, a disponibilidade de um broncodilatador inalatório. Tanto a lidocaína (até 5 mL de lidocaína 2% a cada 6 horas) como a bupivacaína (até 5 mL de bupivacaína 0,25% a cada 8 horas) podem ser utilizadas. A eficácia e a toxicidade, entretanto, ainda não estão bem estabelecidas. O uso de anes188 | Dor e Cuidados Paliativos tésicos locais por via inalatória também pode causar rouquidão. Os pacientes devem ser orientados a não se alimentarem por uma hora após a nebulização em razão do risco de broncoaspiração. Fisioterapia respiratória deve ser considerada em todos os pacientes como estratégia não farmacológica para o manejo de secreções mesmo naqueles em processo de morte. Medicamentos com efeito antimuscarínico podem ser considerados para reduzir secreções respiratórias, especialmente salivar. N-butil-escopolamina (10 a 20 mg EV ou SC até 6/6h) e atropina 1% (1 a 3 gotas SL a cada 4 a 6h) são os medicamentos mais utilizados para essa finalidade em cuidados paliativos. Referências 1. Dyspnea. 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Dyspnea review for the palliative care professional: treatment goals and therapeutic options. J Palliat Med, 2012; 15:106-14. 13. Rocker GM, Simpson AC, Horton R. Palliative care in advanced lung disease: the challenge of integrating palliation into everyday care. Chest, 2015; 148:801-9. 14. Viola R, Kiteley C, Lloyd NS et al. The management of dyspnea in cancer patients: a systematic review. Support Care Cancer, 2008; 16:329-37. 15. Morice AH, Shanks G. Pharmacology of cough in palliative care. Curr Opin Support Palliat Care, 2017; 11:147-51. Sintomas Respiratórios em Cuidados Paliativos | 189 17 Capítulo Avaliação e Controle de Sintomas Neuropsiquiátricos Lúcia Miranda Monteiro dos Santos Alexandre Annes Henriques Introdução As intervenções em cuidados paliativos têm como objetivo principal propiciar qualidade de vida ao paciente portador de doença avançada que não apresente possibilidade de cura. Manejar adequadamente os sintomas neuropsiquiátricos nesse contexto é uma das condições para promover a qualidade de vida. O apoio às famílias desses pacientes é igualmente essencial. O termo neuropsiquiatria indica uma combinação entre a perspectiva da neurologia e a perspectiva psiquiátrica do mesmo fenômeno, sendo uma área de interface entre o “cérebro” e a “mente”, entre a função cerebral e o comportamento humano. Esse termo costuma ser empregado perante doenças cerebrais complexas que apresentam significantes aspectos neurológicos e psiquiátricos (p. ex., transtorno de Tourette, síndromes demenciais, doenças autoimunes com envolvimento do SNC etc.). Os sintomas neuropsiquiátricos são uma expressão de alterações estruturais e/ ou funcionais da atividade cerebral, por acometimento primário do órgão e/ou por reação secundária do cérebro a mudanças sistêmicas. Por essa razão, as doenças neuropsiquiátricas costumam ser bastantes heterogêneas em relação a sua apresentação clínica e, geralmente, demandam abordagens terapêuticas paralelas da neurologia e da psiquiatria, com diferentes combinações dessas terapêuticas no plano geral de tratamento, conforme a demanda em cada caso. Outra definição da ocorrência de sintomas neuropsiquiátricos é quando ocorrem comorbidades neurológicas juntamente com doenças psiquiátricas ou vice-versa (p. ex., um paciente com depressão que sofreu um acidente vascular cerebral ou um paciente com doença de Huntington que desenvolve alterações cognitivas, emocionais e/ou comportamentais). Avaliação e Controle de Sintomas Neuropsiquiátricos | 191 Classicamente, algumas das “doenças neuropsiquiátricas” mais comuns no contexto dos cuidados paliativos são: síndromes demenciais; delirium; trauma cranioencefálico; acidente vascular cerebral; transtornos de uso de substâncias (incluindo intoxicações); neoplasias cerebrais (primárias ou metastáticas); infecções cerebrais; transtornos neurodesenvolvimentais; esclerose múltipla; doença de Parkinson e doença de Huntington. Além dessas, há um subgrupo de síndromes neurocomportamentais focais que também compõem as situações neuropsiquiátricas nesse contexto: afasias; apraxias; agnosias; apatia; disfunções executivas e síndromes orbitofrontais. Para executar uma adequada avaliação dos sintomas neuropsiquiátricos, é necessária uma boa compreensão do modelo biopsicossocial, em que sejam direcionadas as estratégias terapêuticas multimodais de modo específico a cada fator envolvido na etiologia e/ou manutenção dos quadros sintomatológicos. Os fatores sociais, culturais e espirituais também demandam atenção e manejo. O contexto dos cuidados paliativos costuma apresentar sofrimentos físicos (sintomas como dor, dispneia, vômitos, astenia) e emocionais (perda da autonomia, da autoestima, medo, solidão) significativos, o que pode levar a sentimento de tristeza, bem como outros sintomas depressivos e/ou de ansiedade, via de regra, subdiagnosticados e subtratados. Neste capítulo, explanamos sobre a identificação e o manejo terapêutico dos sintomas e das síndromes neuropsiquiátricas mais frequentes em situações de cuidados paliativos. Delirium Delirium constitui a condição com sintomas neuropsiquiátricos mais comuns em pacientes portadores de doença avançada (CP), ocorrendo entre 26-44% dos pacientes admitidos em ambiente hospitalar ou unidades específicas de CPs. Principalmente nos casos de câncer e nos doentes que se encontram em fase terminal, sua ocorrência pode indicar a proximidade da morte. Pacientes com câncer admitidos em hospitais apresentam prevalência de até 45% de delirium, e 50% desses ainda são reversíveis. Quando próximos do final de vida, 88% dos pacientes apresentam delirium, o que pode ser muito estressante para pacientes, familiares e cuidadores. De acordo com os critérios da quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5.0), delirium consiste em uma alteração do nível de consciência de instalação aguda (horas ou dias) e curso flutuante, acompanhada de déficit de atenção e alteração da cognição, como déficit de memória ou desorientação. Deve existir evidência na história, no exame físico ou nos exames laboratoriais de que a alteração seja causada por uma condição orgânica subjacente ou consequência direta de uma condição médica geral ou de seu tratamento. O delirium é de início agudo e pode se apresentar como: • hiperativo – estado hipervigilante, com alucinações, agitação psicomotora, agressividade; constitui o quadro de delirium mais facilmente diagnosticado; • hipoativo – confusão, sedação, apatia; o diagnóstico pode ser mais difícil e confundido com estado depressivo; • misto – alterna as duas modalidades. 192 | Dor e Cuidados Paliativos O Confusion Assessment Method (CAM) constitui uma ferramenta importante para estabelecer o diagnóstico. Além de ser de fácil aplicação, é validado para a língua portuguesa3. O CAM é composto pelo seguinte modo: A) Estado confusional agudo com flutuação marcante. B) Déficit de atenção marcante. C) Pensamento e discurso desorganizados. D) Alteração do nível de consciência (hipoativo ou hiperativo). Considera-se delirium na ocorrência dos itens (A) + (B) + (C e/ou D). Diversos fatores de risco podem contribuir para que os pacientes com doença avançada apresentem delirium. A seguir, foram listados as principais causas e os fatores de risco para o delirium: • evolução da doença: metástase cerebral, síndromes paraneoplásicas; • infecções: ITU, infecção respiratória, sépsis; • distúrbios eletrolíticos: cálcio, potássio, sódio, magnésio, fosfato; • desidratação/desnutrição; • hiperglicemia/hipoglicemia; • hipercarbia/hipoxemia; • falência de órgãos: insuficiências renal, hepática e cardíaca; • obstipação intestinal; • tratamentos: quimioterapia, radioterapia. Os medicamentos podem estar associados ao desenvolvimento de delirium em 12-39% dos casos: • anticolinérgicos: anti-histamínicos, atropina, hioscina, difenidramina, tricíclicos; • antimicrobianos: quinolonas, aciclovir, macrolídeos, sulfonamidas, cefalosporinas, aminoglicosídeos, anfotericina; • analgésicos: opioides, AINEs; • corticosteroides; • agonistas dopaminérgicos: levodopa, pramipexol, bromocriptina, amantadina; • anticonvulsivantes: ácido valproico, fenitoína, carbamazepina; • antidepressivos: mirtazapina, inibidores de recaptação de serotonina, tricíclicos; • sedativos: benzodiazepínicos, barbitúricos; • relaxantes musculares; • cardiovasculares: antiarrítmicos, betabloqueadores, metildopa, clonidina, diuréticos, digitálicos; • gastrointestinais: bloqueadores H2, metoclopramida, loperamida, antiespasmódicos; • outros: fitoterápicos, lítio, donepezil, fenotiazinas. O quadro clínico ocorre com múltiplas apresentações dos seguintes sintomas: • início agudo; • curso flutuante durante o dia/intervalos lúcidos presentes; • déficit de atenção; • alteração no nível de consciência; • pensamento desorganizado; • distúrbios da percepção (delírios e alucinações); • alterações psicomotoras (hiper ou hipoatividade); Avaliação e Controle de Sintomas Neuropsiquiátricos | 193 • • alterações no ciclo sono-vigília; distúrbios emocionais (labilidade, ansiedade etc.). Tratamento O tratamento é composto por medidas farmacológicas e não farmacológicas. O haloperidol3 é o fármaco de escolha para controlar os sintomas de agitação psicomotora e alucinações, nas doses de 0,5 a 1,0 mg (VO, IV ou SC), podendo a dose ser repetida a cada 45-60 minutos até o alívio dos sintomas, em uma dose máxima de 5 mg nas 24 horas. Idosos vão requerer doses menores, para evitar os efeitos colaterais (em especial, os efeitos extrapiramidais). Ele necessita de pouco ajuste de dose em insuficiência hepática e nenhum ajuste em insuficiência renal. Por meio da via subcutânea, o haloperidol pode ser facilmente prescrito no manejo de náuseas e vômitos (25% de resposta) e em agitação terminal em pacientes sob CP. O haloperidol foi listado como uma das 25 medicações importantes no tratamento de CPs. Outros fármacos antipsicóticos, como olanzapina 2,5 a 10 mg 1X/dia, risperidona 1-6 mg/dia e quetiapina 25-400 mg/dia, podem ser utilizados, apresentando um efeito mais sedativo, com menor incidência de efeitos extrapiramidais. A olanzapina também apresenta efeito antiemético, incluindo náusea e vômito por quimioterapia, por opioides e por tumor cerebral (2,5 a 5 mg/dia). Os benzodiazepínicos não devem ser utilizados isoladamente em pacientes com delirium. Contudo, em delirium terminal, o midazolam intermitente ou contínuo é empregado. Delirium hipoativo em CPs pode melhorar com o uso de metilfenidato. Paralelamente à medicação, outras intervenções devem ser implementadas, como avaliação da medicação em uso, correção da hidratação e das alterações eletrolíticas e/ou metabólicas, tratamento de infecção, da obstipação, hipoxemia etc. Também é necessário corrigir fatores que podem agravar o quadro, como imobilização do paciente, distúrbio de sono e controle da dor. As medidas não farmacológicas fornecem um suporte importante na melhora do quadro e buscam otimizar a orientação do paciente. A presença dos familiares junto com o paciente diminui estranhamentos ao ambiente, bem como a presença de um acesso a uma janela pode auxiliar no ciclo sono-vigília. A utilização de relógios e calendários também auxilia a orientação no tempo. Evitar o emprego de sondas vesicais e nasogástricas e, sempre que possível, evitar a contenção mecânica do paciente no leito igualmente colaboram no manejo do quadro. A abordagem da privação do sono, além do uso de medicação, inclui proporcionar um ambiente com o mínimo de ruídos e iluminação adequada e a organização de horários de intervenções físicas (curativos, banho etc.) e da administração das medicações, para não interromper o período de descanso do paciente. Encefalopatia Hepática (EH) É constituída por um espectro de alterações neuropsiquiátricas potencialmente reversíveis que ocorrem em pacientes com disfunção hepática significativa. Os fatores precipitantes mais comuns incluem hemorragia gastrointestinal, uremia, mudanças dietéticas, infecções, medicações e constipação. 194 | Dor e Cuidados Paliativos A EH persistente expressa-se com alterações cognitivas e não cognitivas (p. ex., alterações extrapiramidais e do sono etc.), com impacto social e de interação pessoal negativo e desgastante. A administração de lactulose não absorvível é uma indicação terapêutica benéfica, mesmo sem evidências consistentes de eficácia. Quando a medicação não pode ser administrada por via oral, por alteração mental, a administração deverá ser por via retal. Antibióticos e medicações para delirium também são empregadas. Por aumentar o risco de delirium, os benzodiazepínicos devem ser evitados nessas circunstâncias. Ansiedade e Depressão Sintomas ansiosos e depressivos são comuns em pacientes com doenças neurodegenerativas. Há múltiplos fatores envolvidos no desenvolvimento de tais sintomas, como estressores por doenças crônicas e debilitantes, efeitos diretos de doença em tecido cerebral, efeitos colaterais de medicamentos (p. ex., oscilações por levodopa em doença de Parkinson (DP), sintomas depressivos como efeito colateral de terapia imunomodulatória em esclerose múltipla etc.). Os estudos com foco nos sintomas e distúrbios de ansiedade em pacientes gravemente enfermos, muitos em cuidados paliativos, são em número menor do que os direcionados para a depressão, mas sintomas de ansiedade são frequentes nesses pacientes10,11. Ansiedade é um estado psíquico de apreensão ou medo provocado pela antecipação de uma situação desagradável ou perigosa. Interfere na saúde mental e física dos pacientes, bem como na relação destes com a família e os cuidadores, além de diminuir a qualidade de vida11,12. Há pacientes que também apresentam transtornos ansiosos e transtornos de humor (incluindo o transtorno depressivo maior). A prevalência é de 25% para depressão maior, de até 40% para transtornos de humor em geral e de até 80% de sintomas depressivos em pacientes terminais. Já os sintomas ansiosos ocorrem em até 70% dos casos, mas transtornos de ansiedade perfazem 15%. Depressão não tratada potencializa a percepção de dor e diminui a capacidade de tomada de decisão, piora a interação com familiares, diminui a capacidade de atingir objetivos finais de vida e aumenta o risco de suicídio, bem como a morbimortalidade clínica dos pacientes. O impacto negativo sobre o paciente ocasionado por um quadro de ansiedade persistente não tratada foi demonstrado em um estudo com 600 pacientes portadores de câncer avançado, em que os autores reportaram menor entendimento por parte dos pacientes das informações fornecidas pelo médico sobre o estado de saúde, desconforto em perguntar a equipe sobre suas reais condições, dúvidas sobre as terapias oferecidas e receio de que não terão o controle adequado de sintomas como dor no final da vida13. O diagnóstico e a instituição precoce do tratamento são fundamentais, pois os distúrbios de ansiedade não apresentam uma situação adaptativa, e a tendência é interferir negativamente nas terapias para o controle de sintomas, com prejuízo da qualidade de vida do paciente. Observa-se que a depressão na presença da proximidade da morte pode não ter necessariamente um conteúdo patológico, e sim expressar o medo do desconhecido, a frustração pelos sonhos e planos que não terão mais espaço para serem alcançados. A Avaliação e Controle de Sintomas Neuropsiquiátricos | 195 observação atenta da equipe assistente em relação ao comportamento do paciente e do seu contexto possibilita o diagnóstico precoce, fundamental para que seja implementado o plano terapêutico mais adequado a cada caso. Os antidepressivos com maior evidência de eficácia em CPs são os tricíclicos (nortriptilina, imipramina) e os inibidores seletivos da recaptação da serotonina (fluoxetina, sertralina, paroxetina, fluvoxamina, citalopram, escitalopram), mas os tricíclicos parecem ter uma resposta mais rápida. Mianserina, duloxetina, atomoxetina e, principalmente, mirtazapina também apresentaram evidência em CPs. Pacientes com limitada expectativa de vida necessitam de intervenções terapêuticas com efeitos mais rápidos, mesmo que sejam indicações off-label, como metilfenidato ou modafinil para a depressão. O metilfenidato pode ser empregado em depressão e/ ou fadiga (por câncer, por Parkinson e por HIV), bem como no manejo da sedação/ confusão por opioides e na apatia demencial. Em relação aos efeitos antidepressivos, a resposta clínica parece ser mais rápida do que com os antidepressivos. O benefício na fadiga parece ser maior do que na depressão. Em pacientes com doença renal, essa medicação não necessita de ajustes; já na insuficiência hepática isso será necessário. Em uma pequena série de casos com cardiopatia grave, com contraindicação para o uso de antidepressivos, o metilfenidato apresentou melhora da síndrome depressiva, sem efeitos colaterais significativos. Pacientes com disfunção cognitiva (por tumor cerebral, por HIV e por esclerose múltipla) também apresentaram melhora desses déficits com o uso desse fármaco (10-15 mg 2X/dia), sem risco de convulsão nessa dosagem. A quetamina, um anestésico, em baixas doses, mostrou-se útil na depressão e em sintomas ansiosos em pacientes internados em CPs. Os betabloqueadores podem ser empregados no manejo de sintomas ansiosos em CPs. Os benzodiazepínicos devem ser evitados como primeira linha no manejo de ansiedade nessa população. Em situação de insônia, o diazepam e o clonazepam apresentam maior efeito residual na manhã seguinte, podendo ser melhor indicação, nesses casos, o lorazepam (0,5 a 2 mg/noite). Além dos tratamentos psicoterápicos específicos para esses diagnósticos (ansiedade, depressão etc.), há evidências consistentes de tratamentos psicoterápicos específicos para os cuidados paliativos, como a terapia interpessoal, a TCC (incluindo técnicas de resolução de problemas e relaxamento muscular progressivo) e a terapia da dignidade, hipnoterapia, musicoterapia, acupuntura, mindfulness. Em uma metanálise realizada, incluindo 10 artigos em que foi utilizada ioga no tratamento de pacientes com câncer (672 pacientes), essa técnica apresentou resultados positivos nos casos de ansiedade14. Psicose A ocorrência de sintomas psicóticos (delírios e/ou alucinações) é frequente em pacientes com doença de Parkinson. Quase 20% desses pacientes experimentam alucinações, usualmente visuais. Isso ocorre, via de regra, quando o paciente é idoso e com demência. Mas também podem ocorrer em quaisquer estágios da DP como efeito colateral de medicações antiparkinsonianas. Os sintomas psicóticos são as situações com indicação absoluta de uso de medicações antipsicóticas. Essas medicações são empregadas no manejo de outros sintomas 196 | Dor e Cuidados Paliativos neuropsiquiátricos, mas o custo-benefício pode ser discutível em quadros não eminentemente psicóticos. Sintomas Cognitivos Os sintomas cognitivos são compostos pelas faculdades da orientação, memória, atenção, juízo (insight), discurso (comunicação e fala) e pensamentos (incluindo raciocínio). Na maioria das doenças neurológicas e psiquiátricas, as alterações cognitivas estão presentes, em menor ou maior grau. Nas síndromes demenciais, essas alterações são praticamente presentes em todas as funções listadas anteriormente. Alterações Comportamentais A agitação é um dos sintomas comportamentais mais frequentes e desgastantes para a equipe de saúde e para a família, em CP, sendo comum causa de institucionalização e aumento de utilização de recursos de saúde. Mas a apatia também pode ser um comportamento de difícil manejo. A agitação ocorre em até 60% dos pacientes com doença de Alzheimer (a forma mais comum de demência). O parkinsonismo medicamentoso (ou pseudo-parkinsonismo) é a segunda causa mais frequente de síndrome de rigidez acinética. Há bradicinesia, rigidez muscular e alterações posturais. A polifarmacoterapia é o principal fator de risco. A maioria ocorre nos primeiros 2-3 meses de uso da medicação. Não ocorre somente com antipsicóticos, mas também com antieméticos, antidepressivos, antagonistas do canal do cálcio, anticonvulsivantes e antiarrítmicos. A acatisia, outra condição de alteração comportamental, com inquietação e agitação psicomotora, é bastante observada com o uso de antipsicóticos. Também ocorre com antidepressivos e antieméticos. Quando não há resposta às intervenções não farmacológicas para a agitação, além dos antipsicóticos, o uso de anticonvulsivantes é empregado. Os antipsicóticos aumentam o risco de quedas, de sedação e de eventos cerebrovasculares. Na agitação por demência, os inibidores seletivos da recaptação da serotonina, representados pelo citalopram e pela sertralina, exibiram algumas evidências na efetividade em uma revisão da Cochrane. Insônia O sono é um fenômeno biológico essencial, um estado de intensa atividade cerebral, e uma de suas funções é manter a homeostase do organismo. A falta de sono (privação) provoca diversas alterações fisiológicas e comportamentais em humanos. Estudos mostram que o sono insuficiente, seja em quantidade e/ou em qualidade, pode levar a disfunção metabólica, hipertensão, acidente vascular encefálico, diabetes e doenças cardíacas, aumentando a mortalidade. A avaliação do sono é crucial nesse contexto, assim como instituir as medidas terapêuticas necessárias. As intervenções de “higiene do sono” são hábitos rotineiros que representam uma intervenção comportamental destinada a promover o sono e, consequentemente, melhorar sua qualidade e quantidade. As recomendações são: (i) estabelecer uma rotina regular para deitar-se e levantar-se; (ii) tornar o ambiente de dormir agradável, com Avaliação e Controle de Sintomas Neuropsiquiátricos | 197 uma cama confortável, um ambiente sem ruídos e barulhos, com temperatura agradável; (iii) usar o quarto apenas para dormir (evitar conversas desagradáveis antes de dormir, sem levar problemas para a cama), associando a cama com o sono, não a usando para ler, assistir a televisão, ouvir rádio, por exemplo; (iv) evitar cochilos diurnos (um cochilo rápido após o almoço é possível em alguns casos); (v) praticar exercícios físicos; (vi) evitar o uso de medicamentos para dormir (exceto por recomendação médica); (vii) limitar a ingesta de líquidos antes de deitar-se; (viii) fazer atividades relaxantes antes de deitar-se; tomar banhos quentes e relaxantes. Zolpidem e zopiclona são melhores alternativas medicamentosas do que os benzodiazepínicos no manejo da insônia em CPs, pois afetam menos a arquitetura do sono e há menos amnésia. Agentes alternativos, como a melatonina ou alguns antipsicóticos, podem ser uma possibilidade nesse tipo de situação. Conclusão Pacientes com síndromes neuropsiquiátricas que estão em CPs apresentam maior complexidade, uma vez que discussões sobre o final de vida costumam ser suprimidas, presumindo uma incapacidade ou desestabilização emocional e cognitiva nesses casos. Além disso, o sofrimento para os pacientes e suas famílias é impactante nessa etapa do ciclo vital. À equipe multidisciplinar de saúde sugere-se que estar atenta à multiplicidade de fatores envolvidos é fundamental, bem como buscar o equilíbrio das intervenções farmacológicas e não farmacológicas no contexto dos cuidados paliativos. Referências 1. Breitbart W, Bruera E, Chochinov H et al. Neuropsychiatric syndromes and psychological symptoms in patients with advanced cancer. J Pain Symptom Manage, 1995; 10:131-41. 2. Fabbri RMA, Moreira MA, Garrido R et al. Validação e confiabilidade da versão em língua portuguesa do Confusion Assessment Method (CAM) para detecção de delirium no idoso. Arq Neuro-Psiquiatr, 2001;59:175-9. 3. Glichrist NA, Asoh I, Greenberg B. Atypical antipsychotics for the treatment of ICU delirium. J Intensive Care Med, 2012; 27:354-61. 4. Hakim SM, Othman AI, Naoum DO. Early treatment with risperidone for subsydromal delirium after on-pump cardiac surgery in the elderly: a randomized trial. Anesthesiology, 2012; 116:987-97. 5. Hawkins SB, Bucklin M, Muzyk AJ. Quetiapine for the treatment of delirium. J Hosp Med, 2013; 8:215-20. 6. Jackson N, Doherty J, Coulter S. Neuropsychiatric complications of commonly used palliative care drugs. Postgrad Med J, 2008; 84:121-6. 7. Lôbo RR, Silva Filho SRB, Lima NKC et al. Delirium, Medicina (Ribeirão Preto), 2010; 43:249-57. 8. Parellada E, BaezaI I, de Pablo J et al. Risperidone in the treatment of patients with delirium. J Clin Psychiatry, 2004; 65:348-53. 9. Wilkins JM, Forester BP. Update on SSRI treatment for neuropsychiatric symptoms of dementia. Curr Psychiatry Rep, 2016; 18:14. 10. Stark DPH, House A. Anxiety in cancer patients. Br J Cancer, 2000; 83:1261-7. 11. Wilson KG, Chochinov HM, Sirko MG et al. Depression and anxiety disorders in palliative care. J Pain Symptom Manage, 2007; 33:118-29. 12. Thekkumpurath P, Venkateswaran C, Kumar M et al. Screening for psychological distress in palliative care: a systematic review. J Pain Symptom Manage, 2008; 36:520-8. 13. Levin TT, Alici Y. Anxiety disorders. In: Holland JC, Breitbart WS, Jacobsen PB et al. (Ed.). Psycho-oncology., 2nd ed. New York: Oxford University Press, 2010. p. 324-31. 14. Kraft K. CAM for depression, anxiety care., grief and other symptoms in palliative Prog Palliative Care, 2012; 20:271-7. 198 | Dor e Cuidados Paliativos 18 Capítulo Terapia de Sedação Paliativa Inês Tavares Vale e Melo Luís Fernando Rodrigues Definição Terapia de Sedação Paliativa (TSP) é o termo que define o uso de medicações sedativas com o objetivo de aliviar sintomas intoleráveis e refratários a outros tratamentos, pela redução intencional ou abolição do nível de consciência1. Esses sintomas seriam definidos como refratários quando todas as outras formas de tratamento tivessem falhado em controlá-los, sem comprometer o nível de consciência do paciente2-4. Terapia de Sedação Paliativa (TSP) versus Eutanásia Alguns autores descrevem a sedação do paciente terminal como uma forma de eutanásia lenta ou misericordiosa, mas a TSP para o paciente terminal deve ser distinguida da eutanásia. Na TSP, o objetivo é aliviar o sofrimento, usando fármacos sedativos titulados apenas para o controle dos sintomas. Na eutanásia, a intenção é tirar a vida do paciente, administrando-se um fármaco letal, embora se utilizando do argumento de que o objetivo é o alívio do sofrimento. Além disso, estudos têm mostrado que a indicação bem-feita da terapia de sedação paliativa não antecipa a morte, afastando-a, portanto, do conceito de eutanásia5. Classificação A TSP corretamente indicada, na dose certa, por via adequada, não é um “atalho” para se atingir o mesmo objetivo da eutanásia. Não existe evidência de que a TSP administrada apropriadamente encurte a vida5,6. Para essa sedação, portanto, é muito importante que a consciência seja reduzida até o nível suficiente para o alívio dos sintomas, o que é individual e pode variar amplamente. A TSP pode ser classificada conforme o grau: leve ou consciente – quando a consciência é mantida de modo que permita a comunicação do paciente – e profunda, Terapia de Sedação Paliativa | 199 quando o paciente permanece semiconsciente ou inconsciente. De acordo com a duração, a TSP é classificada em intermitente – quando o paciente tem alguns períodos de alerta – e contínua – quando fica inconsciente até o óbito. Para ser indicada a sedação contínua e profunda, a doença deve ser irreversível e avançada, com morte esperada para horas ou dias (Tabela 1)1,7. Tabela 1 – Classificação da terapia de sedação paliativa Classificação da Terapia de Sedação Paliativa Critério 1. Intenção Classificação Primária: a intenção inicial é reduzir o Secundária: a intenção inicial é nível de consciência do indivíduo. produzir outro efeito, mas a droga utilizada também promove a redução do nível de consciência. 2. Tempo e duração Intermitente: institui-se a sedação em períodos determinados, em que são previstas pausas na sedação para que o paciente recobre a consciência. Contínua: institui-se a sedação por tempo prolongado e com previsão de interrupção somente na iminência da morte ou depois dela. 3. Grau Superficial: caracteriza-se pela diminuição da ansiedade e leve redução do nível de consciência (RASS = 0/-2). Profunda: caracteriza-se por uma diminuição importante do nível de consciência (RASS = -4/-5). Indicações As principais indicações para a TSP são: dor, delírio agitado, dispneia e convulsões. Essa indicação deve ser avaliada pela equipe multiprofissional após serem esgotados os esforços de cada profissional em sua atuação, para amenizar o sofrimento8. A decisão de iniciar o tratamento com fármacos sedativos deve estar de acordo com a vontade do paciente, da família ou do responsável legal e em consenso com a equipe médica. Todas as pessoas envolvidas nos cuidados com o paciente devem ser informadas, agregadas e encorajadas a permanecer nesses cuidados durante a sedação, recebendo sempre o suporte da equipe multiprofissional. A prevalência de sintomas refratários que necessitam de TSP varia de 10% a 50%, com uma mediana de 20% a 30%. Situações emergenciais podem requerer terapia de sedação paliativa urgente. Comumente podem ser: hemorragia maciça; sensação de asfixia; dispneia terminal intensa ou crises de dor insuportável. A Tabela 2 resume essas indicações. Tabela 2 – Indicações para a terapia de sedação paliativa (TSP) Indicações Usuais 1. 2. 3. 4. Dor Dispneia Delirium agitado Convulsões 1. 2. 3. 4. Sangramento Asfixia Dispneia terminal intensa Crise de dor insuportável 1. Sofrimento existencial Indicações Urgentes Indicação Especial 200 | Dor e Cuidados Paliativos Drogas Mais Comumente Usadas para Terapia de Sedação Paliativa O uso de drogas para sedação se baseia principalmente em guidelines construídos por meio de consensos. Pela dificuldade técnica inerente em se produzirem pesquisas em cuidados paliativos que mantenham o mesmo rigor técnico das pesquisas clínicas, não existem ainda evidências fortes que recomendem um procedimento sobre o outro ou uma droga sendo superior a outra, e os consensos permanecem sendo a fonte de melhor evidência para essa prática em cuidados paliativos e cuidados de fim de vida2,3,8. Assim, os benzodiazepínicos permanecem sendo as drogas de eleição para a sedação de pacientes em etapa avançada de doença crônico-degenerativa e que estejam próximo do fim da vida. Entre eles, o midazolan tem sido a droga mais frequentemente utilizada para esse fim, seguido do fenobarbital e do propofol2. A Tabela 3 mostra as drogas mais comuns e suas propriedades. Tabela 3 – Propriedades farmacológicas das drogas Ação Midazolan Reduz ansiedade, causa amnésia, tem efeito sinérgico com opioides e antipsicóticos. Anticonvulsivante ajuda a prevenir convulsões. Agitação paradoxal e depressão respiratória. Hidrossolúvel, início de ação rápido e tempo de ação curto. Infusão contínua é recomendada. Fenobarbital Causa inconsciência rapidamente e de maneira confiável. Lipossolúvel. Início de 1 a 3 mg/kg SC ou EV em bolus ação: 1 h (EV 5 min); tempo de ação: entre 10 e 12 h (EV 6 h). Propofol Farmacologia Dose inicial/ via de administração Droga Anestésico geral; depressão do SNC. Início de ação muito rápido; meia-vida curta. Mais fácil titulação. Dose manutenção 0,5 a 1 mg/h EV ou SC 20 mg/h Dose máxima: 200 mg/24 h 20 mg ou 0,5 mg/kg/h 0,5 mg/kg/h Média: 50-100 mg/h Dose máxima: 2.400 mg/24 h Infusão de 5070 mg/hora 1 a 4 mg /kg/h Levomepromazina Obs.: para serem usados em casos de delirium agitado neuroléptico. Clor Pro Ma Zina Antipsicótico - Fenotiazínico Efeito antipsicótico para pacientes em delirium. 12,5 a 25 mg Rápido início de ação – bom para delirium; não é confiável para suprimir a consciência. 50-75 mg infusão contínua 37,5 a 15mg/dia 3-5 mg/h EV EV 25-100 mg cada 4 75-300 mg PR/ a 12 h PR dia Terapia de Sedação Paliativa | 201 Administração Conceitos como titulação inicial, seguida pela terapia contínua para assegurar a manutenção do efeito, devem ser observados. O nível de sedação deve ser o mínimo necessário para se obter o alívio do sofrimento. A administração regular pode ser feita “pelo relógio”, com infusão contínua, ou em bolus intermitente. A via de administração pode ser endovenosa, subcutânea ou retal. O consenso da Sociedade Europeia de Oncologia Médica (ESMO) cita a via intramuscular. No entanto, essa via em cuidados paliativos, especialmente em pacientes oncológicos no fim da vida, raramente é utilizada e deve ser evitada. Gastrostomia e outras “ostomias” podem ser consideradas para uso. Em qualquer caso, doses de resgate devem ser providenciadas para sintomas irruptivos2,3. A TSP bem indicada e executada com a observância das recomendações técnicas não antecipa a morte da pessoa. Existem vários dados da literatura que comprovam que a sobrevida dos pacientes sob efeito da TSP não diminui5,6. Avaliação da Eficácia da TSP Existem várias escalas que ajudam a avaliar a eficácia da TSP. As mais conhecidas e que têm sido usadas com maior frequência para avaliação da Terapia de Sedação Paliativa em cuidados paliativos são a Richmond Assessment Sedation Scale9 e a Escala de Ramsay10, embora ambas tenham sido desenvolvidas para a avaliação de pacientes em unidade de terapia intensiva (Figuras 1 e 2). Figura 1 – Richmond Assessment Sedation Scale Figura 2 – Escala de avaliação do grau de sedação de Ramsay 202 | Dor e Cuidados Paliativos Responsabilidades Os consensos apontam as responsabilidades dos profissionais2,3, conforme segue. A) Médicos 1. Confirmar que: • a meta primordial do paciente é o conforto; • o paciente tem uma doença terminal avançada; • o paciente está sofrendo de sintomas físicos ou neuropsiquiátricos refratários intensos ou problemas psicossociais; • existe um pedido para não iniciar medidas sustentadoras da vida; • foi obtido consentimento informado para a sedação paliativa até a inconsciência. 2. Documentar os itens citados anteriormente no prontuário. 3. Informar à equipe assistente do paciente o plano. 4. Especificar na prescrição: • a dose de ataque; • a taxa de infusão inicial; • a dose da droga em mg/hora e o intervalo de tempo para aumento na taxa de infusão; • a dose e o intervalo de tempo para doses de resgate. 5. Assegurar que o medicamento tenha sido titulado de maneira ótima, por meio de avaliações frequentes ou de leitura dos registros da enfermagem sobre todos os ajustes de dose e o nível de conforto antes e depois dos ajustes. 6. Documentar no prontuário a eficácia dessa terapia pelo menos diariamente. B) Enfermeiros 1. Administrar a medicação por meio de infusão contínua em uma bomba de infusão devidamente rotulada com o nome da droga. 2. Caso o paciente apresente qualquer sinal de dor ou de distresse, aumentar a taxa de infusão como solicitado. 3. Uma vez que o nível de sedação foi encontrado, manter a dose e documentar a razão para qualquer ajuste nela e no nível de conforto antes e depois da dose. 4. Não reduzir a taxa de infusão por causa de redução da pressão, da frequência respiratória, de batimentos cardíacos ou qualquer outro sinal vital se o paciente mostrar sinais de dor ou qualquer outro distresse por qualquer outro sintoma. 5. Quando a medicação estiver acabando, pedir mais medicação de forma antecipada, a fim de evitar interrupção na infusão. Assistência de Enfermagem na Sedação Paliativa 1. Sempre orientar a família que a finalidade da sedação paliativa não é eutanásia e que não tem a intenção de apressar a morte. 2. Instalar a sedação mediante prescrição médica, conferindo fármacos, doses e tempo de administração. 3. Avaliar e monitorar se a sedação está adequada à finalidade pretendida e realizar anotações de acordo com a escala de Rass. Terapia de Sedação Paliativa | 203 4. Realizar as medicações prescritas para o controle de sintomas. 5. Atentar para retenção urinária e constipação intestinal, que podem gerar grande desconforto nos pacientes sedados. 6. Orientar os familiares sobre possíveis sinais do processo de morte: ronco da morte (“sororoca”), cianose das extremidades, mudança da cor da pele, hipotensão e diminuição da diurese. 7. Oferecer suporte psicológico e espiritual à família. 8. Ter disponibilidade e compreensão. 9. Proporcionar privacidade ao paciente e seus familiares. 10. Realizar medidas de higiene e conforto. Questões Éticas Quando estamos diante de uma situação em que existem indicações para empregar a Terapia de Sedação Paliativa, três aspectos éticos emergem e devem ser considerados ao se decidir pelo emprego dessa técnica8. São eles: 1. Imperativo moral – diante do sofrimento decorrente de um sintoma refratário, não é aceitável permitir que o paciente morra sofrendo. Por isso se justifica a sedação paliativa. 2. Consentimento informado – sempre que for indicada, a sedação deve ser realizada precedida do consentimento informado. As metas e os objetivos do tratamento devem ser discutidos com a família e o paciente, inclusive as implicações religiosas que tal procedimento pode trazer. A decisão do paciente ou do familiar mais próximo deve ser respeitada, mesmo que outros parentes opinem de forma contrária. 3. Suspensão e contenção de medidas de sustentação da vida devem ser retiradas (isso não é um elemento indispensável na sedação paliativa) – hidratação e nutrição artificial. Ambas mantêm alto aporte hídrico ao organismo, piorando secreções, edema, anasarca e ascite, ferindo, portanto, o princípio da não maleficência. Mesmo para aqueles pacientes que estavam ingerindo antes da sedação, vale assegurar à família que ele está morrendo da doença avançada, e não por falta de nutrientes. Pré-requisitos 1. O paciente deve ser portador de doenças graves como: • câncer avançado incurável; • insuficiência orgânica em fase final quando o transplante ou a terapia repositora do órgão não está disponível ou foi recusado pelo paciente; • AIDS em fase avançada, sem resposta à TARV; recusa do paciente ou efeitos colaterais intensos; • doença neuromuscular avançada; • demência avançada, incapaz de ingerir nutrição oral normal. 2. O paciente que está sofrendo com um ou mais dos seguintes sintomas: • dor; • dispneia; 204 | Dor e Cuidados Paliativos 3. 4. 5. 6. 7. • vômitos; • convulsões; • delirium agitado; • ansiedade ou depressão. O sintoma que causa distresse deve ser refratário às intervenções paliativas padrão: • medicamentos como opioides, neurolépticos, anticonvulsivantes, ansiolíticos e antidepressivos; • procedimentos neuromoduladores para dor, como bloqueios nervosos e analgesia intratecal; • radioterapia paliativa; • procedimentos paliativos cirúrgicos ou endoscópicos; • consultas com os melhores especialistas disponíveis na área da doença ou condição do paciente, como cuidados paliativos, medicina da dor e neuropsiquiatria, e por aqueles que podem providenciar suporte psicossocial adequado, como assistentes sociais, psicólogos e capelães. O conforto é a meta primordial para o cuidado do paciente, conforme conversado com ele. Se ele não tem capacidade para tomar decisões médicas, recorrer a um representante legal para tomar tais decisões. Se possível, deve existir uma ordem de não ressuscitar e conter medidas sustentadoras da vida. O consentimento informado para terapia de sedação paliativa deve ser obtido antecipadamente do paciente ou de um representante legal. Membros da equipe informados de forma sistemática. Circunstâncias Especiais 1. Sofrimento social ou existencial intenso Isolamento social Perda da dignidade Perda do sentido da vida \ > podem causar extremo sofrimento / que é refratário às medidas paliativas intensivas Para esses casos, utilizar a sedação de intervalo (respite sedation). A sedação paliativa permanente deverá ser considerada apenas depois que a sedação de intervalo tenha sido tentada pelo menos uma vez, junto com todas as outras medidas paliativas intensivas, sem que tenha ocorrido uma redução aceitável no sofrimento do paciente. 2. Sedação de intervalo (respite sedation): • sedação até a inconsciência, limitada pelo tempo – pode ser usada para pacientes terminais com sofrimento refratário intenso em várias situações; • dor incidental – relacionada com procedimentos diagnósticos ou terapêuticos; • sofrimento social/existencial intenso refratário – para quebrar o ciclo de ansiedade e distress Terapia de Sedação Paliativa | 205 Referências 1. de Graeff A, Dean M. Palliative sedation therapy in the last weeks of life: a literature review and recommendations for standards. J Palliat Med, 2007; 10: 67-85. 2. Cherny NI, Group EGW. ESMO Clinical Practice Guidelines for the management of refractory symptoms at the end of life and the use of palliative sedation. Ann Oncol, 2014; 25 Suppl 3: iii143-52. 3. Cherny NI, Radbruch L, Board of the European Association for Palliative C. European Association for Palliative Care (EAPC) recommended framework for the use of sedation in palliative care. 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Ramsay MA, Savege TM, Simpson BR et al. Controlled sedation with alphaxalone-alphadolone. Br Med J, 1974; 2: 656-9. 206 | Dor e Cuidados Paliativos 19 Capítulo Hipodermóclise: Via Alternativa em Cuidados Paliativos Ana Cláudia Mesquita Guilherme Antônio Moreira de Barros Introdução De maneira geral, a infusão de medicamentos utilizados no tratamento de diversas enfermidades se dá pela via intravenosa (IV), em especial quando há indisponibilidade da via oral (VO)1. No entanto, os cateteres venosos, periféricos ou centrais, são propensos a complicações e infecções, podendo permanecer in situ por poucos dias, o que não permite sua utilização em cuidados de longa duração2. No caso de pacientes em cuidados paliativos, a terapia IV muitas vezes se torna inviável por causa das condições da rede venosa dos pacientes, a qual pode apresentar veias colapsadas, frágeis, delgadas e de fácil rotura1,3. Além disso, tais pacientes podem ser incapazes de tolerar a medicação oral por causa da doença subjacente e/ou de sintomas, como náuseas e disfagia4. Assim, são necessárias vias alternativas para a administração de medicamentos5 e o uso da via subcutânea (SC) pode ser vantajoso6. A hipodermóclise (HDC), ou terapia SC, pode ser definida como a infusão de fluidos isotônicos e/ou medicamentos por via SC com para reposição hidroeletrolítica e/ou terapia medicamentosa7. A HDC se apresenta como um meio alternativo para a realização de tratamento medicamentoso e reposição hidroeletrolítica de forma segura e eficaz, especialmente em pacientes senis, com doenças crônicas e em cuidados paliativos7-8. Vale ressaltar que quando um medicamento é administrado em bolus ou diluído em volume diminuto, tal aplicação não deve ser definida como HDC, mas como “uso da via SC”9. A HDC é realizada no tecido subcutâneo, por meio de agulha inserida em uma prega cutânea, em diferentes regiões topográficas do corpo10. Hipodermóclise: Via Alternativa em Cuidados Paliativos | 207 Os bons resultados obtidos pelo uso da HDC reforçam o conceito de que esta é uma técnica segura, eficaz e com boa relação custo-benefício, em situações clínicas não emergenciais, quando comparada com a via IV3. Com o envelhecimento da população e o aumento do número de indivíduos vivendo com condições crônicas de saúde, a medicina paliativa terá um papel cada vez maior nos cuidados de saúde11. Assim, a HDC pode desempenhar função importante no aprimoramento da qualidade desses cuidados12. Implicações Relacionadas com o Uso da Hipodermóclise Indicações Prevenção da desidratação: principalmente no caso de pacientes idosos, quando a sensação de sede diminui e a anorexia é mais comum13-14 ou em situações como confusão mental e perda excessiva de fluidos (diarreia, vômitos), entre outras15-16. Tratamento de desidratação leve a moderada: a HDC pode ser útil quando o tratamento por meio de acesso venoso é difícil15 e/ou quando a desidratação se dá em decorrência de situações como disfagia grave, demência, obstrução intestinal por conta de neoplasias e sonolência3,17-19. Impossibilidade de acesso venoso: para pacientes que apresentam complicações relacionadas com o sistema venoso7,17. Impossibilidade de ingestão oral: para pacientes intolerantes à administração de medicamentos por via oral ou, ainda, que apresentem comprometimento cognitivo4,7. Possibilidade de permanência do paciente em domicílio: a HDC pode ser administrada e manipulada por cuidadores e até mesmo pelo paciente, visto que se trata de um método simples7,20. Necessidade de analgesia continuada: a HDC pode ser utilizada para analgesia controlada pelo paciente combinada com infusão contínua de analgésico21-22. Contraindicações Recusa do paciente ou cuidador: a negação do paciente adulto ou cuidador quanto à realização da HDC trata-se da única contraindicação formal para o uso dessa técnica9. Casos de emergência com necessidade de reposição rápida e em grande quantidade de fluidos: o uso da HDC é contraindicado em situações de emergência como choque hipovolêmico, desidratação grave ou distúrbios hidroeletrolíticos severos6,10,15,23. Edema, anasarca e ascite: o edema torna o acesso subcutâneo inviável, visto que causa redução da velocidade de absorção dos medicamentos. Caso o paciente não esteja em franca anasarca, é possível realizar a punção em regiões do corpo menos edemaciadas. Na presença de ascite, deve-se evitar a punção no abdome7,9. Risco de congestão pulmonar: a HDC é contraindicada em casos de insuficiência cardíaca congestiva e síndrome de veia cava superior7, visto o risco de congestão pulmonar por sobrecarga de volume9. Distúrbio grave da hemostasia: nessa condição, a HDC pode ocasionar sangramento local e hematoma6,9. Caquexia: nessa condição, o tecido subcutâneo está diminuído, portanto, recomenda-se que a HDC seja feita no abdome ou na coxa, com redução do ângulo de inclinação do cateter9. 208 | Dor e Cuidados Paliativos Lesões de pele: soluções de continuidade prejudicam a absorção SC, pois provocam alterações locais da circulação linfática ou sanguínea9. No Quadro 1 são apresentadas as contraindicações absolutas e relativas relacionadas com a HDC6,23. Quadro 1 – Contraindicações na utilização da hipodermóclise Absolutas • • • • Relativas Recusa do paciente ou cuidador Anasarca Trombocitopenia grave Casos de necessidade de reposição rápida e em grande quantidade de fluidos (ex.: choque hipovolêmico, desidratação grave, distúrbios hidroeletrolíticos severos) • • • • • Caquexia Síndrome da veia cava superior Ascite Áreas com circulação linfática comprometida Áreas de infecção, inflamação ou ulceração cutânea • Proximidades de articulação • Proeminências ósseas Fonte: Adaptado de Azevedo9. Vantagens e Desvantagens As vantagens e desvantagens da HDC estão elencadas no Quadro 23-4,7,23-26. Quadro 2 – Vantagens e desvantagens do uso da hipodermóclise Vantagens • • • • • • • • • • • • • Desvantagens Várias opções de sítios de punção Fácil punção e manutenção simples Maior conforto/aceitação pelo paciente Facilmente realizada no ambiente de cuidado, inclusive no domicílio Pode ser realizada pelo cuidador ou pelo próprio paciente Diminuição do potencial de sobrecarga de fluido (taxa de infusão mais lenta) Redução de complicações Baixo risco de efeitos adversos sistêmicos Diminuição da flutuação das concentrações plasmáticas de opioides Baixo custo Possibilidade de alta hospitalar precoce Prevenção da desidratação de idosos Menor necessidade de supervisão da enfermagem, de modo que os profissionais obtêm mais tempo para outras atividades de atenção e conforto perante o paciente • Taxa de infusão limitada a 3.000 ml em 24 horas (1.500 ml por sítio); pacientes com tecido SC reduzido podem ter o volume limitado a 2.000 ml em 24 horas • Uso limitado nas situações em que há necessidade de rápida velocidade de infusão e reposição com alto volume de fluidos • Possibilidade de leve edema no local de inserção • Limitações para a administração de eletrólitos, aditivos nutricionais e medicamentos (ex.: inadequada para substâncias vesicantes, infusões ácidas e fortemente alcalinas) • Possibilidade de reações locais • Não recomendada quando há necessidade de ajuste rápido de doses, já que a absorção pelo tecido subcutâneo é mais lenta • Absorção variável (influenciada por perfusão e vascularização) Sítios de Punção Escolha do sítio de punção A escolha do sítio de punção deve visar ao conforto, à mobilidade e à independência do paciente, assim, devem ser evitadas punções nas regiões próximas às articulações9. Ainda, a seleção do local da punção dependerá do nível de atividade do paciente, do tipo de medicação necessária e da espessura do tecido subcutâneo27. Hipodermóclise: Via Alternativa em Cuidados Paliativos | 209 Para medicamentos a serem administrados em pacientes ambulatoriais, recomenda-se que a HDC seja realizada no tórax (área subclavicular) para possibilitar máxima mobilidade ao indivíduo28. Em pacientes com confusão mental, o uso da área escapular para a infusão SC pode inibir o paciente de retirar o dispositivo do local29. A insulina é absorvida de forma mais consistente no abdome; assim, um local nessa região e que esteja longe da linha do cinto é preferível para infusão contínua de insulina28. Geralmente, os sítios de punção devem estar localizados longe da cintura, em áreas de maior atrito da roupa e de grandes músculos ou nervos subjacentes27. Não se deve realizar a punção para infusão SC próxima a proeminências ósseas, locais irritados ou infectados, em torno de tumores, vincos profundos, áreas recentemente irradiadas e em outras lesões cutâneas27. A HDC não está contraindicada para pacientes caquéticos; no entanto, os sítios de punção disponíveis podem ser limitados27. O abdome é um local recomendado para pacientes com tecido subcutâneo periférico limitado28. A espessura do tecido subcutâneo difere nas diversas partes do corpo e de pessoa para pessoa, diminuindo à medida que a ingestão nutricional é reduzida ou a doença avança26,30. Para a HDC, é recomendável uma espessura mínima de 1 a 2,5 cm de tecido subcutâneo31. Os possíveis locais de punção são apresentados na Figura 13,7,9,16. Figura 1 – Locais para a realização de infusão subcutânea (Adaptação da imagem Insertion sites for subcutaneous administration de Duems-Noriega e Ariño-Blasco26.) Rodízio do sítio de punção Recomenda-se a troca do cateter agulhado a cada cinco dias e do cateter não agulhado a cada 11 dias, respeitando-se a distância de 5 cm do local da punção anterior7,9. Ainda, deve-se levar em conta a cobertura utilizada: filme transparente, fita micropore ou esparadrapo; a cobertura estéril transparente pode permanecer por até sete dias, já as demais deverão ser trocadas diariamente9. 210 | Dor e Cuidados Paliativos De forma geral, o sítio de inserção do cateter pode ser o mesmo por até sete dias32. Pacientes que recebem assistência no domicílio devem ser observados em dias alternados e a troca do acesso deve ser feita entre cinco e sete dias; no entanto, a higiene do local, o modelo cultural familiar e o nível de independência do paciente para o autocuidado devem ser levados em consideração na troca do acesso3. Potenciais complicações relacionadas com o sítio de punção O Quadro 3 apresenta as potenciais complicações relacionadas com a infusão SC3,6,9,23. Quadro 3 – Potenciais complicações associadas com a hipodermóclise e respectivas ações de enfermagem Potenciais complicações Edema localizado, calor, rubor Celulite Ações • Há casos em que o edema em torno do sítio de inserção normalmente se resolve espontaneamente ou com massagem. Se necessário, deve-se retirar o acesso e fazer nova punção a pelo menos 5 cm de distância. • O sítio puncionado não deverá ser utilizado para novas punções pelo prazo mínimo de 10 dias. • Associada à falta de assepsia correta durante a execução da técnica de inserção/gerenciamento do sítio de punção. • Realizar compressa gelada por 15 minutos e monitorização da temperatura corpórea. • O uso de antibiótico deve ser considerado. • Acompanhamento diário por enfermeiro. • Raros: podem estar associados à taxa de infusão rápida. • Se a redução na taxa de infusão não resolver, deve-se considerar alteração do sítio de punção. Dor/desconforto no local de inserção Punção de vaso sanguíneo durante • Raro: se ocorrer, o dispositivo deve ser removido do tecido subcutâneo e realocado. a inserção • Raro: associado a baixo número de plaquetas e/ou ao paciente que recebe terapia anticoagulante. Hematoma ao • O acesso deve ser retirado e o local deve ser massageado com polissulfato de redor do local de mucopolissacarídeo (Hirudoid®) de 4/4h. • Realizar nova punção com cateter não agulhado. inserção • Em pacientes com risco de sangramento, é indicada a punção em flanco, entre a cicatriz umbilical e a crista ilíaca, região menos vascularizada do abdome. Oclusão do • Trata-se de uma causa muito rara, sendo provável que aconteça diante de uma dispositivo de “torção” na tubulação externa. infusão • Deve-se retirar o acesso e realizar drenagem manual. • A limpeza deve ser feita com soro fisiológico 0,9% e aplicação de clorexidina alcoólica 5%. Secreção purulenta • A troca do curativo oclusivo deve ser realizada a cada 24 h. • O uso de antibiótico deve ser considerado. • Acompanhamento diário por enfermeiro. • Deve-se retirar o acesso e realizar nova punção a pelo menos 5 cm de distância. • Pacientes com câncer avançado e comprometimento da rede ganglionar podem Endurecimento apresentar edema de parede abdominal, que pode ser confundido com infiltração local e endurecimento. • Deve-se retirar o acesso e realizar curativo diário (indicação de debridamento Necrose com papaína ou hidrogel). • Acompanhamento diário por enfermeiro. Hipodermóclise: Via Alternativa em Cuidados Paliativos | 211 A adoção de algumas práticas pode contribuir para a redução do risco de infecção do sítio de punção27,33-34: • lavar as mãos com água e sabão; • explicar o procedimento ao paciente e assegurar-se de que esteja confortável; • utilizar luvas; • usar equipamentos estéreis e de uso único; • no caso de pele suja, o local selecionado para a punção deverá ser lavado com água e sabão antes da aplicação de soluções antimicrobianas; • remover o excesso de pelos do local de inserção; • limpar o local de inserção do dispositivo com solução antimicrobiana apropriada (preferencialmente à base de clorexidina); • inserir o dispositivo de infusão de acordo com as instruções do fabricante; • remover o sangue na pele do paciente antes que o dispositivo de infusão seja estabilizado e o curativo, aplicado; • limpar adequadamente o equipamento utilizado. Diluição, Soluções e Medicamentos Diluição Não existe um consenso sobre a diluição de medicamentos para a infusão SC9. Contudo, todos os medicamentos administrados por essa via devem estar na forma líquida e diluídos7. Os diluentes que podem ser utilizados são: água para injeção, soro fisiológico (SF) 0,9% ou soro glicosado (SG) 5%35. Apesar de ser o diluente mais utilizado7,36, a água para injeção é contraindicada em algumas situações por causa da maior chance de precipitação35, como no caso dos medicamentos cetamina, octreotide e ondansetrona, os quais devem ser diluídos em SF a 0,9%7. A diluição deve ser pelo menos igual ao volume da apresentação do medicamento. Ex.: morfina 10 mg/ml, ampola de 1 ml, diluir em 1 ml de água para injeção7. Para diminuir o risco de possível reação local em razão da incompatibilidade entre o SF 0,9% e fármacos como a ciclizina e maiores concentrações do haloperidol, pode-se optar pela água para injeção35. Soluções Soluções isotônicas como SF 0,9%, solução glicofisiológica (SGF) e SG 5% são consideradas seguras para infusão via SC7,9-10,37 (Quadro 4). Quanto ao ringer lactato, ainda é necessário maior evidência, mas seu uso pode ser considerado seguro, pois se trata de solução isotônica com pH próximo à neutralidade9. Eletrólitos como o cloreto de potássio e o cloreto de sódio devem ser administrados somente após a diluição no SF 0,9% ou SG 5%15,38. A infusão em bolus sempre deve ser realizada lentamente. No caso de gotejamento de infusões contínuas por ação gravitacional, equipos de microgotas devem ser utilizados9. O gotejamento da infusão deve ser regulado por meio de equipo com dosador ml/h, microgotas ou bomba de infusão, com fluxo mantido em torno de 60 a 125 ml/ h7,39. Para mais detalhes da infusão de diferentes soluções, consultar o Quadro 4. 212 | Dor e Cuidados Paliativos Quadro 4 – Soluções para infusão SC Solução Dose Diluição SF 0,9% Máximo 1.500 ---ml/24 h por sítio SGF: 2/3 SG 5% + 1/3 SF 0,9% Máximo 1.500 ---ml/24 h por sítio SG 5% Máximo 1.000 ---ml/24 h por sítio NaCl 20%* 10-20 ml/24 h KCl 19,1%** 10-15 ml/24 h SF 0,9% ou SG 5% 1.000 ml SF 0,9% ou SG 5% 1.000 ml Comentário Idem para SF0,45%; volume de infusão máximo de 62,5 ml/h; a coxa é indicada para volumes maiores Volume de infusão máximo de 62,5 ml/h; a coxa é indicada para volumes maiores Volume de infusão máximo de 62,5 ml/h; a coxa é indicada para volumes maiores Sempre requer diluição Sempre requer diluição Fonte: Adaptado de Azevedo9. *Divergências na literatura e uso em alguns serviços de cuidados paliativos no Brasil. **Divergências na literatura e uso muito limitado no Brasil. Medicamentos recomendados para uso em via subcutânea Os medicamentos compatíveis com a via SC são aqueles com características hidrossolúveis e com pH próximo à neutralidade (7,38 – 7,45) (Quadro 5). Há medicamentos com pH ácido que podem ser administrados por essa via, contanto que a infusão seja lenta: haloperidol (pH: 3,0 – 3,8), metoclopramida (pH: 3,0 – 5,0), ondansetrona (pH: 3,5), brometo de N-butilescopolamina (pH: 3,7 – 5,5) e levomepromazina (pH: 3,2 – 4,7)9. A dose administrada pela via SC deve ser menor que a dose oral, visto que o uso do tecido subcutâneo implica maior biodisponibilidade dos medicamentos9. Quadro 5 – Medicamentos comumente infundidos por hipodermóclise Classe Medicamentos Buprenorfina, cetamina, cetorolaco, codeína, diamorfina, dipirona, Analgésicos fentanil, hidromorfona, metadona, morfina, nalbufina, oxicodona, petidina, tramadol Amicacina, ampicilina, cefepime, cefotaxima, ceftazidima, ceftriaxona, erAntibióticos tapenem, gentamicina, meropeném, netilmicina, teicoplanina, tobramicina Anticolinérgicos Atropina, escopolamina, glicopirrônio, papaverina Anticonvulsivante Fenobarbital Antieméticos e Ciclizina, clorpromazina, dimenidrato, granisetrona, haloperidol, levoneurolépticos mepromazina, metoclopramida, olanzapina, ondansentrona Anti-inflamatórios Dexametasona, diclofenaco*, metilprednisolona, naproxeno Benzodiazepínicos Clonazepam, clorazepato, diazepam*, flunitrazepam, lorazepam, midazolam Diurético Furosemida Ácido zoledrônico, calcitonina, clodronato, clonidina, famotidina, fitomeOutros nadiona, heparina, hidroxizina, insulina, levotiroxina, octreotide, omeprazol, pamidronato, prometazina, ranitidina, salbutamol, sumatriptano Fonte: Adaptado de Azevedo9, Godinho e Silveira32 e Carone40. *Contraindicação controversa. Hipodermóclise: Via Alternativa em Cuidados Paliativos | 213 Medicamentos não recomendados para uso em via subcutânea Medicamentos com baixa solubilidade em água e que são veiculados em soluções oleosas (ex.: propilenoglicol) podem ser prejudiciais ao tecido subcutâneo10. Soluções com pH < 2 ou > 11 oferecem risco de irritação local ou precipitação e não devem ser infundidas por HDC32. São incompatíveis com a via SC: diazepam, diclofenaco (contraindicação controversa), fenitoína, eletrólitos não diluídos, soluções com teor de glicose > 5%, soluções com teor de potássio > 20 mmol/L, soluções coloidais, sangue e derivados, nutrição parenteral total7,10,15. Compatibilidade entre medicamentos Quadro 6 – Compatibilidade entre medicamentos C C C C C C C C C I C I C I C C C C C C I C C C C C I C C C C C C C C I C C C C I C C I C C C C C C C I C C I C C C I C C I C I I C I C C C C C C C C C C C C C C I C C C C I I C C C C C I C C C I C I C C I C I C C I I I C C C C C C C C C C C C C C C I C C C C I C C C C C C C C C C C C C I C C C I C C C C C I I I C I C C I C C C C I C C C C I C C C I C C I Ampicilina Atropina Cefepime Cefotaxima Ceftriaxona Ceftazidima Cetorolaco Clonazepam Clorpromazina Dexametasona Dipirona Escopolamina Famotisina Fentanil Fenobarbital Furosemida Granisetrona Haloperidol Hioscina Insulina Levomepromazina Cetamina Metadona Metoclopramida Midazolan Morfina Octreotide Ondansetrona Ranitidina Tramadol Medicamentos Ampicilina Atropina Cefepime Cefotaxima Ceftriaxona Ceftazidima Cetorolaco Clonazepam Clorpromazina Dexametasona Dipirona Escopolamina Famotidina Fentanil Fenobarbital Furosemida Granisetrona Haloperidol Hioscina Insulina Levomepromazina Cetamina Metadona Metoclopramida Midazolam Morfina Octreotide Ondansetrona Ranitidina Tramadol Fonte: Adaptado de Azevedo9, Azevedo e Barbosa10 e Bruno41. C: Compatível; I: Incompatível; : Não testado. 214 | Dor e Cuidados Paliativos Punção Escolha do dispositivo de infusão Há medicamentos, como a heparina e a insulina, que podem ser aplicados em bolus no tecido subcutâneo, por meio de uma seringa com agulha 13 x 0,45 mm (canhão castanho, 26 G, ½ polegada), em um ângulo de 90°9. Em situações nas quais há a previsão de infusão de soluções ou uso regular e frequente de algum medicamento pela via SC, é comum a instalação de um cateter no paciente, o que evita o inconveniente de múltiplas punções9. A seleção do dispositivo de infusão adequado contribui para o conforto do paciente. Isso, por sua vez, minimiza possíveis perdas prematuras do dispositivo, o que pode levar a procedimentos de inserção repetidos, aumentando o potencial de infecção e a utilização excessiva de recursos materiais4. A punção pode ser realizada com cateter agulhado (scalp) ou não agulhado (ex.: JelcoTM, AbocathTM, saf-T-IntimaTM) (Quadro 7). A escolha do calibre dependerá da quantidade de tecido subcutâneo do paciente e do volume a ser infundido32. O tempo de permanência dos cateteres varia de 5 a 11 dias, no entanto, caso haja suspeita de complicações, eles devem ser removidos imediatamente9. Quadro 7 – Características de cateteres agulhados e não agulhados Cateteres agulhados (SCALP) Cateteres não agulhados (JELCO) • Custo menor do que os não agulhados. • Ideais para punções com previsão de uso • Punções menos dolorosas do que os não prolongado. agulhados. • Podem permanecer instalados, em média, • Calibres de escolha entre os números 21G por 11 dias. e 25G. • Calibres de escolha entre os números 20G a • Pode permanecer instalado por até cinco 24G (canhão rosa, azul ou amarelo). dias. • Não deve conter dispositivo de segurança (mecanismo de acionamento automático de retração da agulha), pois a movimentação do paciente pode acioná-lo e ocasionar a retirada do acesso. Fonte: Pereira3, Azevedo9 e Dalacorte42. Execução da técnica de punção A seguir estão especificados os materiais utilizados e os procedimentos a serem realizados na execução da técnica32. Material: • bandeja; • recipiente com algodão; • um dispositivo de punção (agulhado ou não agulhado); • uma almotolia de álcool 70 INPM; • uma seringa preparada com 3 ml de SF0,9%; • curativo filme transparente; • um saco plástico transparente; • um par de luvas de procedimento. Hipodermóclise: Via Alternativa em Cuidados Paliativos | 215 Procedimentos: • lavar as mãos; • dirigir-se ao leito do paciente com o material na bandeja; • explicar o procedimento e sua finalidade ao paciente; • inspecionar o local a ser puncionado; • abrir o invólucro do dispositivo pela área indicada pelo fabricante; • calçar as luvas de procedimento; • preencher o dispositivo com SF 0,9%; • realizar a antissepsia da pele com algodão embebido em álcool 70 INPM ou clorexidina; • retirar o protetor do dispositivo; • escolher o local de punção com tecido adiposo mais abundante e que proporcione melhor mobilidade ao paciente; • fazer a prega subcutânea com a mão não dominante; • introduzir o dispositivo na pele com a mão dominante, em um ângulo de 30º a 45º, com o bisel voltado para cima; • aspirar para verificar a ausência de retorno sanguíneo; • administrar 1 ml de SF 0,9% e verificar se há presença de extravasamento; • fixar o dispositivo com curativo filme transparente; • conectar o equipo da solução ao dispositivo; • retirar a luva de procedimento e realizar a lavagem das mãos; • identificar o acesso subcutâneo com data, nome, horário e calibre do cateter; • desprezar o material em local apropriado; • limpar a bandeja com álcool 70 INPM, guardando-a em local adequado; • proceder à anotação de enfermagem no prontuário do paciente. Cuidados de Enfermagem Pós-Punção Cuidados para manter a via SC segura e confortável para o paciente e reduzir os efeitos indesejáveis na pele7,9: • lavar as mãos antes de cada manuseio do cateter; • fazer assepsia da via de acesso sempre que for necessária a abertura do sistema, friccionando gaze embebida em álcool a 70% no óstio do lúmen de acesso; • no caso de pacientes hospitalizados, trocar a tampa Luer Lock a cada manipulação; • orientar paciente, familiares e equipe sobre a possibilidade de discreta hiperemia e edema no local da punção logo após a execução da técnica; • proteger a punção com plástico durante o banho para manter a área seca; • monitorar o sítio da punção quanto a sinais de irritação local nas primeiras quatro horas; • monitorar o paciente quanto a sinais de infecção (presença de febre, calafrio, dor), cefaleia, ansiedade e sinais de sobrecarga cardíaca (taquicardia, turgência jugular, hipertensão arterial, tosse, dispneia); • fazer rodízio do sítio de punção a cada 96 horas, respeitando a distância de 5 cm do local da punção anterior; 216 | Dor e Cuidados Paliativos • • após a administração da medicação, injetar 1 ml de SF 0,9% para garantir que todo o conteúdo do dispositivo tenha sido introduzido no sítio de punção; no caso de edema local, diminuir o gotejamento ou suspender a infusão. Considerações Finais O uso da via SC apresenta-se como alternativa confiável no caso de impossibilidade de uso da VO e evita algumas complicações da via IV, incluindo oclusão do dispositivo, migração e flebite4,34. Existe também uma gama mais ampla de locais de infusão, como as coxas, os braços e o abdome4. A administração SC, portanto, pode desempenhar papel importante na melhora da qualidade dos cuidados paliativos12. Referências 1. Morley JE. Dehydration, hypernatremia, and hyponatremia.Clin Geriatr Med, 2015; 31: 389-99. 2. Fonzo-Christe C, Vukasovic C, Wasilewski-Rasca AF et al. Subcutaneous administration of drugs in the elderly: survey of practice and systematic literature review. Palliat Med, 2005; 19: 208-19. 3. Pereira I. Hipodermóclise. In: Cadernos CREMESP. Cuidado Paliativo. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, 2008. p. 259-272. 4. Gabriel J. Subcutaneous infusion in palliative care: the neria soft infusion set. 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O presente capítulo abordará os seguintes sintomas gastrointestinais em cuidados paliativos: náusea, vômito, constipação e diarreia. Náusea e Vômito Náusea e vômito representam sintomas comuns a muitas doenças em estágios avançados e configuram um fator importante de declínio na qualidade de vida dos pacientes acometidos por eles. A náusea corresponde a uma sensação subjetiva desagradável associada à necessidade de vomitar. Já o vômito consiste no ato de expulsar, por via oral ou nasal, o conteúdo gástrico através da contração forçada da musculatura abdominal e torácica1. Para aumentar as chances de manejo bem-sucedido desses sintomas, recomenda-se que o delineamento das estratégias terapêuticas leve em consideração os mecanismos fisiopatológicos envolvidos em sua gênese2. A compreensão atual da fisiopatologia da náusea e do vômito é a de que uma variedade de estímulos fisiológicos ou psicológicos transmitidos por diferentes vias diretas e indiretas culmina com a ativação do centro do vômito na formação reticular ascendente do bulbo no tronco encefálico. Tais estímulos chegam ao centro do vômito por uma das seguintes vias3,4: Sintomas Gastrointestinais em Cuidados Paliativos | 219 1. Zona de gatilho quimiorreceptora, localizada na área postrema do bulbo e ativada mediante estímulos químicos presentes no sangue ou no liquor, como drogas e toxinas. A zona de gatilho quimiorreceptora também é ativada por estímulos do sistema vestibular e do nervo vago. Essa área envolve receptores de diversos neurotransmissores: dopamina (D2), serotonina (5-HT), histamina (H1), substância P/neurocinina-1 (NK-1), receptores muscarínicos (M1) de acetilcolina e canabinoides. 2. Sistema vestibular, que medeia estímulos decorrentes de movimentos e da percepção do corpo no espaço. Os principais neurorreceptores envolvidos na ativação do sistema vestibular são M1 e H1. 3. Córtex cerebral e sistema límbico, que transmitem estímulos decorrentes dos diferentes sentidos (ex.: odores), de associações aprendidas (ex.: náusea antecipatória), emoções (ex.: ansiedade) e alterações diretas do sistema nervoso central (ex.: hipertensão intracraniana e irritação meníngea). Acredita-se que os estímulos originados no córtex cerebral e no sistema límbico são mediados pelos receptores 5-HT, D2, NK-1 e de ácido gama-aminobutírico (GABA), bem como por outros mecanismos complexos que não envolvem neurorreceptores específicos. 4. Nervos esplâncnicos e aferências vagais, os quais são ativados por estímulos químicos ou mecânicos que envolvem diferentes vísceras, incluindo o peritônio. A irritação de tecidos esplâncnicos decorrente de toxinas, drogas, inflamação, radiação, infecções ou mesmo pela presença de massas tumorais que causam distensão ou compressão de estruturas é transmitida pelo sistema nervoso autonômico e envolve sobretudo os neurorreceptores D2 e 5-HT. O centro do vômito em si também possui uma variedade de neurorreceptores, como 5-HT, H1, NK-1, M1 e receptores canabinoides, os quais contribuem para o reflexo do vômito3,4. Etiologia As causas de náusea e vômito são múltiplas, sendo comum que em um mesmo paciente diversas etiologias e mecanismos de ação contribuam para a ocorrência desses sintomas. Encontram-se listadas a seguir as principais etiologias de náusea e vômito1-4. Medicamentos e drogas: opioides, quimioterápicos, anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs), álcool, agentes anticolinérgicos, antibióticos, suplementos de ferro, digoxina, antiarrítmicos, contraceptivos hormonais, antiparkinsonianos e anticonvulsivantes. Distúrbios metabólicos: insuficiência renal e hepática, hipercalcemia, hiponatremia, sepse, toxinas tumorais, hipertireoidismo e insuficiência adrenal. Distúrbios gastrointestinais: constipação, obstrução intestinal, refluxo gastroesofágico, dispepsia, úlceras, doença inflamatória intestinal, infecções, pancreatite, hepatites, colecistite, metástases hepáticas, gastroparesia e outros problemas da motilidade gastrointestinal. Transtornos psiquiátricos: transtornos de ansiedade, depressivos e alimentares. Doenças do sistema nervoso central: hipertensão intracraniana, acidente vascular encefálico, meningite, encefalite, convulsões, doenças desmielinizantes. 220 | Dor e Cuidados Paliativos Distúrbios vestibulares: cinetose de movimento, doença de Menière, neurite vestibular, labirintite. Miscelâneas: radioterapia, infarto agudo do miocárdio, insuficiência cardíaca. Avaliação A avaliação de pacientes portadores de náusea e vômito deve levar em conta as principais etiologias descritas na seção anterior, bem como o prognóstico do paciente, seus objetivos de cuidados e o custo ou desconforto associado a cada estratégia diagnóstica. A história clínica deve avaliar qualitativa e quantitativamente a percepção do paciente quanto à náusea, bem como os episódios de vômitos1,2. É importante tentar esclarecer a presença de fatores desencadeantes dos sintomas, como movimentos, odores, sabores, sentimentos e lembranças. Também deve ser questionada a presença de sintomas associados, como tontura, síncope, dor abdominal, constipação, alteração de consciência e estado emocional. Ainda, os episódios de vômito devem ser caracterizados em termos de conteúdo e cor (ex.: fecaloide, biliar, alimentar e hemorrágico). Adicionalmente, é fundamental rever todos os medicamentos em uso e tratamentos realizados, incluindo cirurgias, radioterapia e quimioterapia e a história pregressa do paciente que envolva náusea e vômito (ex.: distúrbios vestibulares, doenças gastrointestinais e transtornos psiquiátricos). O exame físico e os exames complementares podem contribuir para a identificação de questões como obstrução intestinal, impactação fecal, disautonomia, insuficiência hepática, hipercalcemia, uremia e hiponatremia. Abordagem farmacológica Sempre que possível os medicamentos prescritos devem levar em consideração as principais hipóteses relacionadas às causas e aos mecanismos contribuintes para a ocorrência de náusea e vômito1-5. Por exemplo, medicamentos anti-histamínicos (ex.: dimenidrinato e meclizina) são mais bem indicados para quadros de origem vestibular. Náusea e vômito relacionados, sobretudo, com questões associadas ao córtex cerebral ou sistema límbico são comumente tratados por bloqueadores de serotonina (ex.: ondansentron) ou de receptores GABA (ex.: lorazepam), sendo esses últimos bastante efetivos nos casos de náusea e vômito associados à ansiedade. Estímulos decorrentes da região esplâncnica e da inervação vagal são usualmente tratados por bloqueadores dopaminérgicos (ex.: metoclopramida e domperidona) e por bloqueadores de serotonina. Naturalmente, condições específicas, como hipercalcemia, hiponatremia, impactação fecal e úlceras pépticas, devem receber tratamento específico em associação ao tratamento sintomático. No entanto, muitas vezes não é possível identificar ou corrigir de modo específico a(s) etiologia(s) subjacente(s) para os quadros de náusea e vômitos. Nesses casos, testes terapêuticos podem promover ao mesmo tempo alívio e pistas quanto às causas originais. Como a dopamina e a serotonina são os principais neurotransmissores usualmente envolvidos na gênese de náusea e vômito, é razoável que testes terapêuticos se iniciem por esses medicamentos. Ao combinar diferentes tratamentos farmacológicos para esses sintomas, deve-se buscar a associação de medicamentos com mecanismos de ação distintos e sem a sobreposição de efeitos adversos. Sintomas Gastrointestinais em Cuidados Paliativos | 221 A Tabela 1 relaciona algumas causas de náusea e vômito com os principais tratamentos farmacológicos indicados. A Tabela 2 descreve os principais medicamentos antieméticos disponíveis no Brasil. Tabela 1 – Algumas causas comuns de náusea e vômito em cuidados paliativos e tratamentos farmacológicos correspondentes Causas de náusea e vômito Quimioterapia Tratamento farmacológico Bloqueadores 5-HT, corticoides, bloqueadores NK-1, bloqueadores D2 Opioides Bloqueadores D2, laxantes, anti-histamínicos de 1ª geração Radioterapia Bloqueadores 5-HT, corticoides, bloqueadores NK-1, bloqueadores D2 Ansiedade Ansiolíticos Gastroparesia Bloqueadores D2 Distúrbios vestibulares Anti-histamínicos de 1ª geração Uremia e insuficiência hepática Bloqueadores D2, bloqueadores 5-HT Hipercalcemia Bisfosfonatos, hidratação, bloqueadores D2 Hipertensão intracraniana Corticoides, manitol, bloqueadores D2 Obstrução intestinal Cirurgia, corticoides, anticolinérgicos, octreotide 5-HT: 5-hidroxitriptamina; D2: receptor dopaminérgico nº 2; NK-1: neurocinina. Tabela 2 – Os principais medicamentos antieméticos, sua posologia usual e efeitos adversos mais comuns Medicamentos antieméticos Posologia usual Bloqueadores D2 Metoclopramida 5-20 mg VO/IV/SC a cada 6-8h Domperidona 10-20 mg VO, 3 a 4x/d Haloperidol 0,5-2 mg VO/IV/SC até 6-24h Clorpromazina Bloqueadores 5-HT Ondansentrona Granisetrona Anti-histamínicos Dimenidrinato Difenidramina Meclizina Corticoides Dexametasona Ansiolíticos Lorazepam Bloqueador NK-1 Aprepitanto 10-50 mg VO/IV/SC até 4-24h 8-24 mg VO/IV/SC ao dia 2 mg VO ao dia ou 1 mg IV/SC 2x/d 50-100 mg VO/IV/SC a cada 6h 25-50 mg VO/IV/SC a cada 6h 25-50 mg VO ao dia 4-20 mg VO/IV/SC ao dia 0,5-2 mg VO a cada 6-12h Efeitos adversos Sintomas extrapiramidais, discinesia tardia, acatisia Sintomas extrapiramidais, discinesia tardia, acatisia, apatia Sedação Cefaleia, constipação, tontura, fadiga, alterações gustativas Sonolência, boca seca, confusão mental, retenção urinária Ansiedade, insônia Sonolência, confusão mental 125 mg VO no D1 de quimioterapia, 80 mg Diarreia, fadiga, soluços, constipação, neutropenia no D2 e D3 150 mg EV no D1 de quimioterapia, sem (raro) novas doses Canabinoides Sonolência, disforia, Dronabinol 2,5-5 mg VO 2-4x/d dificuldade de concentração, ataxia 5-HT: 5-hidroxitriptamina; D2: receptor dopaminérgico nº 2; NK-1: neurocinina. 222 | Dor e Cuidados Paliativos Abordagem não farmacológica Diversas abordagens não farmacológicas demonstraram efetividade no manejo de náusea e vômito, principalmente no contexto do uso de quimioterapia. Dentre elas merecem destaque a acupuntura, acupressura, a ingestão de gengibre, terapias de relaxamento, psicoterapia de grupo, abordagens cognitivo-comportamentais e hipnose1,2. Prevenção Sempre que possível deve-se tentar antecipar a possibilidade de ocorrência de náusea e vômito e adotar medidas com o intuito de tentar prevenir sua ocorrência ou para orientar pacientes e familiares sobre seu manejo precoce. A adoção de medidas preventivas deve levar em conta o risco individual de o paciente desenvolver náusea e vômito com base em seu histórico relativo a esses sintomas, na patologia de base, em comorbidades e em tratamentos. Em situações de alto risco, como ante o uso de quimioterapia altamente emetogênica, sempre devem ser instituídas medidas preventivas para uso regular na prescrição médica. Em situações de menor risco, como uma prescrição inicial de opioides, costuma ser suficiente prescrever o uso de um medicamento antiemético em caso de surgimento de sintomas. Constipação A constipação representa um sintoma comum entre pacientes portadores de doenças avançadas e pode ser definida como desconforto associado à frequência reduzida de evacuações, cursando com fezes endurecidas e esforço evacuatório1,6. Se não tratada adequadamente, a constipação pode ocasionar grande sofrimento ao paciente, envolvendo dor e distensão abdominal, náusea e vômito, incontinência fecal e urinária, tenesmo, impactação fecal com diarreia paradoxal, obstrução intestinal e delirium. Infelizmente, de modo frequente, as possíveis causas de constipação não são avaliadas cuidadosamente, como se estivéssemos diante de um sintoma menos importante. Etiologia Em grande parte das vezes, a constipação possui uma etiologia multifatorial em pacientes portadores de doenças ameaçadoras da vida em fase avançada, incluindo fatores contribuintes reversíveis e irreversíveis. Serão elencados, a seguir, os principais elementos de uma variedade desses fatores que frequentemente corroboram para a gênese desse sintoma. 1. Medicamentos: opioides, antiácidos (ex.: sais de alumínio), bloqueadores de canais de cálcio, betabloqueadores, antitussígenos, fármacos com efeito anticolinérgico (ex.: antidepressivos tricíclicos, escopolamina, fenotiazinas e anti-histamínicos), suplementos de ferro por via oral, anti-inflamatórios não esteroidais, antagonistas de serotonina (ex.: ondansentron), diuréticos (por causa da possibilidade de desidratação) e agentes quimioterápicos (especialmente os derivados de alcaloides de vinca, como vincristina e vimblastina). 2. Distúrbios metabólicos: desidratação, hipocalemia, hipercalcemia, hiperparatireiodismo, uremia, hipotireoidismo e diabetes mellitus. Sintomas Gastrointestinais em Cuidados Paliativos | 223 3. Problemas neurológicos: compressão medular, disautonomia, síndromes paraneoplásicas, demências, polineuropatias, parkinsonismos e alteração da consciência. 4. Obstrução estrutural: tumor, aderências cirúrgicas, fibrose actínica e carcinomatose peritoneal. 5. Mobilidade reduzida, que pode decorrer diretamente da doença de base, de sequelas de outros problemas de saúde ou mesmo do controle inadequado de outros sintomas, como dor, depressão e náusea. 6. Fatores ambientais e comportamentais, como falta de privacidade, dificuldade de acesso ao banheiro e uso de “comadres” para evacuação no leito. 7. Outros distúrbios gastrointestinais preexistentes: síndrome do intestino irritável, hérnias, fissuras anais, hemorroidas e prolapso retal. 8. Ingesta pobre em fibras e líquidos. Avaliação A avaliação cuidadosa da constipação requer a consideração simultânea dos elementos listados anteriormente. Em relação à história clínica, deve-se questionar o paciente em relação a seu hábito prévio de evacuação, padrão alimentar, medicamentos em uso, comorbidades e sintomas associados, como dor, distensão abdominal, diminuição de força nos membros inferiores, incontinência urinária e vômito. Não se deve desprezar a presença de constipação em pacientes com anorexia e baixa ingestão alimentar, pois, mesmo na ausência de alimento no trato gastrointestinal, há a produção de fezes pela descamação de células do tubo digestivo, secreções não absorvidas e bactérias. O exame físico deve avaliar a presença de distensão abdominal, peristaltismo e massas abdominais. O toque retal pode ser bastante útil na avaliação da constipação e inclui a avaliação da sensibilidade perineal, o tônus anal, a presença de hemorroidas, fissuras, massas e fezes e sua consistência. A ausência de fezes na presença de uma ampola retal distendida pode indicar obstrução ou acúmulo de fezes em nível mais alto. Radiografias de abdome são especialmente úteis para estimar o volume de fezes no intestino, avaliar a possibilidade de obstrução intestinal e pneumoperitôneo. A presença de piora súbita do hábito intestinal e fraqueza nos membros inferiores devem ser prontamente reconhecidas como possível compressão medular aguda, a qual deve ser tratada como uma emergência oncológica. Finalmente, é importante destacar que a dor abdominal decorrente de distensão das alças intestinais por conta de constipação importante não será adequadamente aliviada com opioides, sendo usualmente seguida por episódios de dor abdominal mais intensa em razão da piora no quadro de distensão das alças. Tratamento Abordagem geral Exames, investigações e tratamentos devem ser adequados à forma de apresentação do quadro, ao estágio e ao contexto do paciente e de sua doença. A correção de todos os múltiplos fatores contribuintes frequentemente não é possível para a maior parte dos pacientes no fim da vida. Uma abordagem geral pode ser bastante útil e 224 | Dor e Cuidados Paliativos envolve a prescrição rotineira de laxantes sempre que opioides são utilizados e o estabelecimento de um plano terapêutico que antecipe uma possível piora na constipação7. Esse plano terapêutico deve ser esclarecido ao paciente e a sua família e deve envolver medidas progressivas a serem adotadas na ausência persistente de episódios de eliminação fecal. Ele deve envolver os seguintes elementos: (1) a prescrição para uso regular de um laxante ou de uma associação de laxantes (ex.: Bisacodil e Lactulose); (2) orientação sobre a intensificação da dose desses laxantes ou acréscimo de outro laxativo (ex.: supositório de glicerina) caso o paciente não tenha defecado no dia anterior; (3) orientação clara sobre como proceder se o paciente permanecer três ou mais dias sem evacuar (ex.: aplicação retal de enema de fosfato de sódio) e reavaliação médica na ausência de melhora. A presença de um protocolo terapêutico claro para o paciente, sua família e a equipe de saúde pode evitar que pacientes permaneçam até semanas sem evacuar e sejam poupados de procedimentos extremamente desconfortáveis, como a desimpactação fecal manual. Para alguns pacientes, como os portadores de lesão medular, pode ser necessária a realização de enemas periódicos para evitar constipação e episódios de incontinência fecal. Abordagem não farmacológica A educação do paciente e da família sobre a constipação, seus fatores contribuintes e o plano terapêutico progressivo descrito anteriormente. O manejo não farmacológico envolve a recomendação para tentar seguir um horário regular diariamente para o funcionamento intestinal e aconselhamento a tirar vantagem do reflexo gastrocólico, que ocorre após a alimentação1,6. Sugere-se também evitar o consumo excessivo de cafeína, por causa de suas propriedades diuréticas. De forma geral, na ausência de contraindicações por doença cardíaca ou renal avançada, recomenda-se a ingesta de cerca de 2 litros de líquidos por dia. Uma dieta rica em fibras e a prática de exercício físico, mesmo em pequena quantidade, também são recomendados. No entanto, muitos pacientes não toleram uma dieta rica em fibras. Além disso, é importante ressaltar que em pacientes com trânsito intestinal muito lento e predisposto à desidratação, a suplementação com fibras alimentares pode piorar a constipação. Abordagem farmacológica A Tabela 3 lista os principais agentes laxantes para o tratamento medicamentoso da constipação1,6-8. Um erro comum consiste no não aumento progressivo das doses dos diferentes laxantes, o que, muitas vezes, conduz à percepção errônea de que “nada funciona” quando, de fato, nada foi utilizado em doses terapêuticas máximas. Quando pacientes encontram-se constipados por longos períodos (ex.: > 5 dias) e há risco da presença de fecaloma, o uso de laxantes por via oral pode ser pouco efetivo e associar-se à ocorrência de cólica intensa. Nessas situações, é prudente a realização do toque retal e de enemas para resolução do fecaloma antes de iniciar os laxantes por via oral. A metilnaltrexona, um antagonista periférico de receptores mu de opioides, sem penetração no sistema nervoso central, é altamente efetivo para o manejo de constipação induzida por opioides7. Sua aplicação se dá por via subcutânea e seu efeito usualmente ocorre entre uma e três horas da aplicação. Normalmente seu uso é reservado a pacientes que não responderam a estratégias com outros Sintomas Gastrointestinais em Cuidados Paliativos | 225 laxantes em vigência do uso de opioides. Esse medicamento foi comercializado por curto período no Brasil após sua aprovação pela Anvisa, mas atualmente encontra-se indisponível. Tabela 3 – Principais agentes laxantes utilizados na prática clínica Laxantes Laxantes catárticos Senna Bisacodil Início de ação Posologia usual 6 a 12h 15 a 100 mg, VO 5 a 30 mg, VO Laxantes osmóticos Laculose Hidróxido de magnésio Macrogol 3350 24 a 48h 1 a 3h 30 min a 1h 10 a 40 g, 1 a 4x ao dia VO 2,4 a 4,8 g, 1x ao dia VO 1 a 5 sachês de 14 g diluído em 125 a 250 ml de água 1x ao dia VO Lubrificantes e estimulantes Óleo mineral Supositório de glicerina 6 a 8h 15 min a 1h 15 a 75 ml, 1x ao dia VO ou VR 1 aplicação VR conforme necessário 5 a 15 min 130 ml VR 100 a 500 ml VR Enemas Fosfato de sódio Glicerina Diarreia A diarreia é frequentemente definida como a eliminação de fezes mais amolecidas que o normal e que também podem apresentar-se em número aumentado e com sensação de urgência9. No entanto, pacientes diferentes podem ter concepções próprias a esse respeito e definir diarreia como episódios frequentes de evacuação, inclusive de consistência aumentada e em menor volume. Portanto, o profissional de saúde, diante da queixa de diarreia, deve, inicialmente, buscar esclarecer as características do sintoma relatado. Diarreia persistente pode acarretar desidratação, desnutrição, fadiga, hemorroidas e lesões da pele perianal. Etiologia A causa mais comum de diarreia na medicina paliativa provavelmente corresponde ao excesso de laxantes, principalmente após as doses de laxativos terem sido aumentadas progressivamente ante um episódio importante de constipação. Infecções gastrointestinais agudas representam outra causa comum e usualmente têm duração limitada a um ou dois dias. Além dos laxantes, uma variedade de medicamentos também pode contribuir para a ocorrência de diarreia, como quimioterápicos (ex.: fluoropirimidinas e inibidores da topoisomerase I), antiácidos, antibióticos e medicamentos que contenham substâncias como lactose, sorbitol, propileno glicol e polietileno glicol9,10. Antibióticos podem gerar intolerância à lactose de forma temporária e a resolução da diarreia pode demandar a retirada de derivados do leite da alimentação seguida de reintrodução gradual após a resolução da diarreia11. Alguns medicamentos podem causar tanto diarreia como constipação. Esse é o caso dos suplementos de ferro por via oral, AINEs (especialmente diclofenaco, indometacina e ácido mefenâmico). 226 | Dor e Cuidados Paliativos Radioterapia da região pélvica ou abdominal também pode causar diarreia, especialmente entre a segunda e a terceira semana após a irradiação, mas podendo estender-se por mais tempo. A infecção pelo HIV representa uma causa importante de diarreia no fim da vida e pode decorrer por disfunção intestinal induzida diretamente por esse vírus, como por germes oportunistas associados ao estado de imunossupressão (ex.: Cryptosporidium sp)12. Uma variedade de intervenções cirúrgicas e procedimentos invasivos também pode levar à ocorrência de diarreia, como acontece em gastrectomias, pancreatectomias, ressecções ileais, vagotomias, colectomias extensas e bloqueios ou ablações do plexo celíaco. Tumores colônicos ou retais podem desencadear diarreia por causa da secreção de muco ou por obstrução intestinal parcial com consequente crescimento excessivo de populações bacterianas. Adicionalmente, a presença de sangramento gastrointestinal pode levar à diarreia na forma de melena. Mais raramente, alguns tumores específicos também são associados à ocorrência de diarreia, como no caso de tumores carcinoides, vipomas e tumores de ilhotas pancreáticas ou gastrinomas com síndrome de Zollinger-Ellison. Hipertireoidismo, ansiedade, excesso de fibras, intolerância à lactose, uso de temperos muito apimentados, verminoses, doença inflamatória intestinal, síndrome do intestino irritável e colite pseudomembranosa por clostridium difficile também consistem em causas de diarreia que podem estar presentes em pacientes portadores de outras doenças avançadas e ameaçadoras da vida. Finalmente, em pacientes acamados é relativamente comum a ocorrência de diarreia paradoxal e incontinência diante de um episódio de impactação fecal. Avaliação A história clínica deve analisar o aspecto e a frequência dos episódios evacuatórios, bem como a duração dos sintomas, sendo consideradas diarreias crônicas aquelas com duração superior a três semanas. Naturalmente, deve-se realizar revisão de medicamentos em uso atual e prévio, bem como de tratamentos cirúrgicos, seções de radioterapia e comorbidades. O exame físico deve excluir a possibilidade de obstrução intestinal e de impactação fecal. Em casos de dúvida, a radiografia simples de abdome pode ser bastante útil. A observação do aspecto das fezes pode indicar a presença de melena e outros diagnósticos. Diarreia aquosa e profusa sugere diarreia de origem colônica, enquanto fezes pálidas, gordurosas e flutuantes sugerem esteatorreia associada a quadros disabsortivos. Exames complementares podem incluir a pesquisa de leucócitos nas fezes, de toxina de Clostridium difficile, coprocultura, exame parasitológico, medição de osmolalidade fecal e concentração de sódio e potássio fecais, bem como a realização de colonoscopia, de acordo com a situação clínica de cada paciente e seus objetivos de cuidados. Tratamento da diarreia A abordagem geral para o tratamento das diarreias envolve a hidratação dos pacientes, usualmente pela via oral, embora a via venosa ou subcutânea também possa Sintomas Gastrointestinais em Cuidados Paliativos | 227 ser utilizada se necessário. Adicionalmente, recomenda-se aumentar a ingesta de alimentos ricos em fibra (ex.: psyllium, farelo de trigo e pectina) e evitar alimentos fermentativos, como derivados de leite. Para o tratamento sintomático de diarreia leve ou transitória costuma-se prescrever o uso de subcitrato de bismuto na dose de 120 mg a ser ingerido meia hora antes das refeições. Para o tratamento de diarreia persistente, em que etiologias infecciosas tenham sido afastadas, pode-se utilizar13: • loperamida, 2 a 4 mg, VO após cada evacuação ou até 6/6h; • difenoxilato/atropina (2,5 mg/0,025 mg), 1 a 2 comprimidos após cada evacuação ou até 6/6h. Para diarreia secretiva persistente e grave, como no caso de infecções pelo HIV que não tenham respondido aos medicamentos citados anteriormente, deve-se considerar o uso de octreotide, 50 mcg SC a cada 8-12h, que pode ser titulado até 500 mcg 8/8h ou 10 a 80 mcg/h em infusão venosa ou subcutânea contínua. O tratamento de esteatorreia usualmente é feito mediante a suplementação de enzimas pancreáticas com as refeições. Diarreias decorrentes da má absorção de bile (ex.: ressecções do íleo terminal e por radioterapia) são idealmente tratadas com colestiramina e medicamentos sequestradores de ácidos biliares. Referências 1. McHugh ME, Miller-Saultz D. Assessment and management of gastrointestinal symptoms in advanced illness. Prim Care, 2011; 38:225-46. 2. Wood GJ, Shega JW, Lynch B et al. Management of intractable nausea and vomiting in patients at the end of life: “I was feeling nauseous all of the time . . . nothing was working”. JAMA, 2007; 298:1196-207. 3. Singh P, Yoon SS, Kuo B. Nausea: a review of pathophysiology and therapeutics. Therap Adv Gastroenterol, 2016; 9:98-112. 4. Smith HS, Smith EJ, Smith AR. Pathophysiology of nausea and vomiting in palliative medicine. Ann Palliat Med, 2012; 1:87-93. 5. Smith HS, Smith JM, Seidner P. Opioid-induced nausea and vomiting. Ann Palliat Med, 2012; 1:121-9. 6. Larkin PJ, Sykes NP, Centeno C et al. The management of constipation in palliative care: clinical practice recommendations. Palliat Med, 2008; 22:796-807. 7. Prichard D, Bharucha A. Management of opioid-induced constipation for people in palliative care. Int J Palliat Nurs, 2015; 21:272, 4-80. 8. Candy B, Jones L, Larkin PJ et al P. Laxatives for the management of constipation in people receiving palliative care. Cochrane Database Syst Rev, 2015: CD003448. 9. Cherny NI. Evaluation and management of treatment-related diarrhea in patients with advanced cancer: a review. J Pain Symptom Manage, 2008; 36:413-23. 10. Alderman J. Diarrhea in palliative care. J Palliat Med, 2005; 8:449-50. 11. Noble S, Rawlinson F, Byrne A. Acquired lactose intolerance. J Pain Symptom Manage, 2002; 23:449-50. 12. Elfstrand L, Florén CH. Management of chronic diarrhea in HIV-infected patients: current treatment options, challenges and future directions. HIVAIDS (Auckl), 2010; 2:219-24. 13. Lee KJ. Pharmacologic agents for chronic diarrhea. Intest Res, 2015; 13:306-12. 228 | Dor e Cuidados Paliativos 21 Capítulo Assistência ao Fim da Vida: Identificação e Manejo André Filipe Junqueira dos Santos Mirlane Guimarães de Melo Cardoso Introdução Praticamente todos os pacientes no processo de fim de vida passam por um padrão de sintomas e sinais nos dias anteriores à morte. Essa trajetória é frequentemente referida como “morte ativa” ou “morte iminente”. O reconhecimento imediato dessa trajetória é fundamental para que os médicos forneçam as intervenções mais adequadas para o paciente e sua família. A trajetória das doenças de fim de vida traz diferentes demandas e desafios para pacientes, familiares e equipe de saúde. O processo de morte ativa é caracterizado pelo aumento da prevalência e da intensidade dos sintomas físicos, psicossociais e espirituais. A abordagem das questões de fim de vida de forma coerente com os valores culturais, religiosos e espirituais do paciente e de sua família é primordial para o controle dos sintomas desconfortáveis nessa fase. Preocupações familiares nessa fase são comuns, e os familiares presentes durante o processo de fim de vida geralmente expressam as seguintes preocupações/perguntas: • Meu ente querido está com dor? Como saber? • Ele não vai se alimentar e isso não pode acelerar sua morte? • O que devemos esperar? Como saber que o tempo é curto? • Será que eu/nós devemos ficar à beira do leito? • Nosso ente querido pode ouvir o que estamos dizendo? • O que fazemos depois da morte de nosso ente querido? Assistência ao Fim da Vida: Identificação e Manejo | 229 As equipes podem ajudar melhor as famílias estimulando essas perguntas e respondendo-as de forma educada, segura e com respeito às emoções envolvidas1,2. Definição Não há um consenso na literatura quanto à definição precisa do que sejam as últimas horas de vida, porém, a identificação da exacerbação de sintomas e o manejo deles nesse momento, que exige alteração do planejamento de cuidados, são primordiais. Para o manejo de cuidados ao paciente em fase final de vida é importante a definição correta desse momento. A fase de terminalidade deve ser considerada quando se esgotam as possibilidades de resgate das condições de saúde e a possibilidade de morte próxima parece inevitável e previsível - sendo considerada nos próximos seis meses de vida. Por sua vez, o conceito de fase final de vida ou processo ativo de morte é considerado quando os sintomas se exacerbam e começa a emergir um quadro de morte próxima e irreversível, com sobrevida de horas a dias. Esse quadro também pode ser conhecido como “últimas quarenta e oito horas” ou “agonia terminal”. Para a eficácia desse processo, a atuação de uma equipe multidisciplinar é fundamental, visto que, além do controle de sintomas físicos, é necessário haver apoio psicossocial e boa comunicação com o paciente e seus familiares, visando auxiliar a adaptação do paciente e da família a essa nova realidade. Os sintomas mais comuns que podem surgir nas últimas semanas de vida e que se intensificam nos últimos dias são: anorexia, dor, dispneia e delirium e é possível que tais sintomas não ocorram sequencialmente e que a morte se dê rapidamente. Por outro lado, caso esses sintomas sejam desenvolvidos em dias, e não em semanas, torna-se importante excluir causas reversíveis para a deterioração, sendo obrigatório afastar, entre outras fontes, efeitos adversos a medicamentos. Cabe ressaltar que muitos desses sintomas podem ser exacerbados por aspectos que vão além do biológico, e o sofrimento pode ser intensificado por componentes psicológicos, sociais, espirituais e/ou existenciais perante a iminência da morte3. Identificação da Terminalidade Para cuidar dos pacientes moribundos é essencial “diagnosticar o morrer”. No entanto, diagnosticar o quadro de terminalidade é, muitas vezes, um processo complexo. As trajetórias de inteligência podem fornecer uma estrutura para abordar as expectativas dos pacientes e familiares sobre o que acontecerá em relação à saúde antecipada. Distintas trajetórias de doenças foram reconhecidas na literatura médica. Um grande estudo observacional descreveu trajetórias de doença distintas de fim de vida por fragilidade/demência, câncer e falência de órgãos (Figura 1): Pesquisas subsequentes lançaram alguma controvérsia sobre a validade desses achados, particularmente se as internações podem ter um papel mais significativo no padrão de declínio do que a própria doença específica. Fragilidade/demência: um padrão de diminuição da deficiência cognitiva e/ou física que pode progredir ao longo de vários anos4. Setenta por cento dos pacientes com demência necessitam de assistência quando apresentam aumento da dependência 230 | Dor e Cuidados Paliativos para as atividades básicas de vida diária no último ano de vida, o que coloca esses pacientes em um grupo de maior risco para a necessidade de institucionalização e síndrome do estresse do cuidador5. Muitos médicos e famílias podem não reconhecer que a demência por si só é uma doença terminal. Figura 1 - Trajetória teórica da terminalidade conforme o padrão de doença (adaptado de Lunney3) Câncer: geralmente apresenta um período relativamente estável de função física seguido por um declínio agudo nos últimos meses de vida. Múltiplos estudos apoiaram essa trajetória, no entanto, o tempo de queda acentuada varia entre 1 e 5 meses antes da morte, dependendo do estudo6-8. Pacientes com câncer também podem experimentar padrões mais previsíveis de angústia espiritual, com picos no diagnóstico, recorrência da doença e fase terminal da doença. Como o declínio físico e o sofrimento psicopedagógico podem ser mais bem antecipados, especialmente em tumores sólidos, existe maior precisão para o prognóstico e a implementação de serviços de cuidados paliativos especializados9. Um estudo de pacientes com Medicar mostrou que os pacientes com câncer eram mais propensos a utilizar serviços de cuidados de fim de vida em comparação com outras doenças crônicas em razão da trajetória mais previsível10. Doenças crônico-degenerativas: são caracterizadas por uma trajetória mais errática, com períodos de declínio pontuados, provavelmente correlacionando-se com exacerbações agudas. Cada exacerbação pode resultar em morte, mas, muitas vezes, os indivíduos sobrevivem com deterioração gradual da saúde e do estado funAssistência ao Fim da Vida: Identificação e Manejo | 231 cional. O tempo da morte é menos certo do que no câncer. Talvez, como resultado, os pacientes com insuficiência cardíaca congestiva e doença pulmonar obstrutivo-crônica são mais propensos a morrer no hospital e menos propensos a receber serviços de cuidados paliativos e a nem entender a provável progressão de sua doença10-12. Muitas vezes, o prognóstico é mais centrado em metas específicas do paciente em relação à aceitação ou não de hospitalizações repetidas e ao tratamento de complicações potencialmente reversíveis. Morte súbita ou declínio repentino: uma mudança abrupta da função física normal para morte ou incapacidade médica significativa, muitas vezes como resultado de trauma ou um evento cardiopulmonar/neurológico agudo. Muitas vezes há pouca ou nenhuma interação prévia com o sistema de saúde nem um padrão reconhecível de declínio funcional anterior ao evento3,10. Assim, exibições intensas de choque ou raiva são comuns dos membros da família quando os médicos fornecem más notícias sobre a gravidade da doença. Os familiares têm maior risco de depressão e luto complicado à medida que se ajustam à nova realidade médica após o evento13,14. Na ocorrência de um quadro de morte ativa, manter procedimentos invasivos pode, com frequência, acabar prejudicando o conforto do paciente. Reconhecer os principais sinais e sintomas é uma habilidade clínica importante no diagnóstico de morrer15. A qualidade de vida é melhor quando pacientes com câncer em fase avançada recebem cuidados paliativos de forma precoce, em comparação com consultas paliativas sob demanda16. Prognostificação A decisão de continuar ou suspender o tratamento no momento de morte ativa é fortemente influenciada pelo conhecimento do prognóstico pelo paciente17. O momento apropriado para o início do cuidado paliativo é considerado um ponto crucial para melhorar a qualidade de vida dos indivíduos18, sobretudo quando o tratamento específico lhes é agressivo ou mesmo prejudicial. No caso de uma elevada possibilidade de óbito ser considerada por parte da equipe médica, o uso da questão surpresa (“Você se surpreenderia se o paciente morresse nos próximos 12 meses?”) é um indicador de que ele poderia ser elegível para cuidados paliativos19. A questão surpresa não é um parâmetro definitivo para cuidados paliativos, devendo ser considerada uma ferramenta nos casos em que a equipe de assistência tenha dificuldade em identificar o processo de terminalidade. Um estudo demonstrou que, através do uso da questão surpresa, os médicos estimaram corretamente a morte, em um ano, em 69% dos pacientes, porém, apenas 25% receberam cuidados de fim de vida e 2,7% tiveram consulta de cuidados paliativos; 60,5% tiveram uma ordem de não ressuscitação e 43% morreram no hospital20. Os médicos tendem a ser excessivamente otimistas quando lidam com o prognóstico. Em um estudo, solicitou-se que 343 médicos fornecessem estimativas de sobrevivência para 468 doentes terminais no momento da indicação para cuidados de fim de vida. Apenas 20% das previsões foram precisas (conforme definido em 33% da sobrevivência real). Em geral, os médicos superestimaram a sobrevida por um fator de 5,3 vezes21. Todo tipo de médico tende a superestimar, embora os médicos mais experientes têm 232 | Dor e Cuidados Paliativos menor chance de erro. Previsões imprecisas são dadas para todos os tipos de paciente, incluindo pacientes com câncer e aqueles com doenças crônicas não malignas. Curiosamente, à medida que a duração da relação do paciente com o médico aumentou, a precisão prognóstica diminuiu. Em outras palavras, quanto mais um médico conhecesse o paciente, era menos provável que ele/ela previssem corretamente o prognóstico. O otimismo indevido pode prejudicar os pacientes de várias maneiras. O estudo SUPPORT22 demostrou que um grande número de ordens de não ressuscitação (ONR) são escritas nos últimos dois dias de vida e que o conhecimento do médico sobre a preferência de ONR do seu paciente é fraco. Além disso, otimismo indevido pode retardar o encaminhamento para cuidados paliativos, e essa abordagem é mais benéfica quando utilizada por meses, não dias, como geralmente ocorre atualmente. Por fim, uma superestimação do prognóstico pode levar os pacientes a solicitar cuidados inúteis. Aprender o verdadeiro prognóstico de uma doença muito atrasada no curso é uma tarefa difícil, porém, evita-se uma transição abrupta dos cuidados curativos para os cuidados paliativos. Informações prognósticas adequadas são essenciais para a tomada de decisões compartilhadas sobre o manejo do fim de vida. Um estudo demonstrou que as pessoas mudam as decisões de cuidados sobre o fim de vida com base na percepção de prognóstico23, com redução da aceitação de manobras de ressuscitação cardiopulmonar de 41% para 22% em idosos informados sobre as chances de sobrevida em um ano após o procedimento. Planejamento do Cuidado de Fim de Vida O planejamento do cuidado de fim de vida é um processo de comunicação entre o paciente, a família/amigos e a equipe de assistência, com a finalidade de identificar prospectivamente um cuidador principal, clarificar as preferências de tratamento e desenvolver metas individualizadas de cuidados perto do fim da vida24. As Diretivas Antecipadas de Vontade (por exemplo, testamentos de vida, poderes duradouros para cuidados de saúde por um cuidador específico) são documentos legais com capacidades que podem ajudar nesse processo. Se a equipe de saúde diagnostica que o paciente está na fase de morte ativa, então, isso deve ser comunicado ao paciente, se for o caso, e aos parentes da maneira mais empática possível, respeitando-se o quanto pacientes e familiares desejam saber. Os objetivos desse planejamento são: • melhorar a educação do paciente e da família sobre sua doença, incluindo prognóstico e prováveis resultados de planos de cuidados alternativos; • definir as principais prioridades no cuidado de fim de vida e desenvolver um plano de atendimento que aborde essas questões; • capacitar a equipe de assistência para atender às preferências e aos valores do paciente; • ajudar os pacientes a encontrarem esperança e significado na vida e auxiliar na busca de uma sensação de paz espiritual; • fortalecer relacionamentos com seus entes queridos. Assistência ao Fim da Vida: Identificação e Manejo | 233 O processo de planejamento do cuidado de fim de vida deve ser sensível a contextos de doenças, gênero, idade, condição social e cultural. Fornecer oportunidades para discutir problemas de fim de vida não significa que todos desejarão ou poderão fazê-lo nesse momento. O planejamento do cuidado de fim de vida é um processo em evolução que exige uma quantidade variável de tempo para ser eficaz. Os pacientes muitas vezes precisam de tempo para refletir sobre a informação e como isso afeta suas vidas25. Quadro Clínico Observado Inicialmente, as pessoas tendem a ficar mais tempo restritas ao leito, o interesse ou a capacidade de beber e comer diminuem e mudanças cognitivas, caracterizadas pelo aumento do tempo de sono e delirium, estão presentes. Posteriormente, ocorre um declínio mais acelerado do quadro cognitivo, em que o indivíduo se torna mais lento para despertar com estímulos, com breves períodos de vigília. Na fase mais avançada, pode surgir hipersecreção nas vias áreas (“sororoca”), sonolência profunda e um padrão respiratório alterado (períodos de apneia ou respiração irregular). A capacidade de fazer o diagnóstico de morte ativa com confiança é de grande importância porque muitas decisões nessa fase são críticas, porém, é difícil para os médicos diagnosticarem a morte ativa com antecedência. Embora a presença de sinais tardios sugira fortemente que a morte é iminente, esses sinais são observados com relativa pouca frequência e apenas nos últimos dias de vida. É importante ressaltar que sua ausência não pode excluir a possibilidade de que o paciente morra em breve, porque sua sensibilidade é baixa. Um estudo avaliou sistematicamente a frequência e o aparecimento de sinais clínicos, dividindo-os em duas categorias: sinais precoces e tardios. Observados com relativa frequência, os sinais iniciais incluem diminuição do estado de desempenho, diminuição da ingestão oral e diminuição do nível de consciência. Por causa de sua baixa especificidade, esses sinais não podem prever, de forma confiável, a morte iminente em três dias. Em contraste, sinais tardios surgiram apenas nos últimos dias de vida em uma proporção menor de pacientes e apresentaram maior frequência para morte iminente em três dias: ausência de pulso da artéria radial, respiração com movimento mandibular, respiração de Cheyne-Stokes, diminuição do débito urinário e respiração ruidosa (sororoca)26. Outro estudo observou que a presença de pontuação na escala PPS ≤ 20% e a queda da dobra nasolabial (que se tornam menos proeminentes em razão da perda do tônus muscular facial) têm uma correlação de óbito em três dias de 94%27. Embora a maior parte dos estudos tendam a identificar preditores relacionados com o quadro de terminalidade de pacientes, alguns pacientes também podem morrer subitamente28. Em um estudo em que se avaliou a frequência de “morte súbita”, definida como a pontuação de KPS abaixo de 50 ou mais nos últimos sete dias de vida e sem que uma fase fosse registrada como terminal, o óbito inesperado ocorreu na avaliação dos médicos e enfermeiros em 10% de todos os óbitos registrados. Preditores independentes de “morte súbita” foram câncer de pulmão (odds ratio [OR] 2,64), doença cardiovascular (OR 1,94), outros cânceres (OR 1,63), sexo masculino (OR 1,23), jovem, 234 | Dor e Cuidados Paliativos fadiga (OR 1,12) e dispneia (1,07). A morte súbita foi associada a maiores taxas de óbito em casa (OR 3,2; IC de 95%: 2,9-3,6)29. Além dessas mudanças fisiológicas, sinais vitais como frequência cardíaca, pressão sanguínea, frequência respiratória, saturação de oxigênio e temperatura também podem fornecer informação sobre o estado de saúde do paciente30. Um estudo prospectivo, longitudinal e observacional acompanhou 357 indivíduos admitidos em unidades de cuidados paliativos com câncer em fase avançada, e 203 (57%) faleceram na internação hospitalar. Apesar de a pressão arterial e a saturação de oxigênio terem diminuído nos últimos dias de vida, uma grande proporção deles tinha sinais vitais normais nessa fase. Os achados não dão suporte ao monitoramento rotineiro dos sinais vitais de pacientes que estão morrendo31. O elemento mais importante no diagnóstico de morte ativa é que os membros da equipe multiprofissional que estejam cuidando do paciente concordem que ele provavelmente morrerá. Caso estejam em desacordo, mensagens misturadas e objetivos difusos de cuidados poderão afetar o plano de cuidado e determinar uma comunicação confusa15. As principais recomendações para o contexto de fim de vida são da equipe médica: • avaliar tratamentos já realizados e funcionalidade prévia do paciente; • considerar o diagnóstico do paciente visando identificar, prevenir e melhorar sintomas característicos da evolução de cada doença; • orientar familiares e equipe quanto aos objetivos dos cuidados prestados nesse momento, que devem visar ao conforto; • rever quais são as medicações essenciais para o controle dos sintomas apresentados; • suspender medicações e procedimentos desproporcionais ao quadro e priorizar medicações essenciais; • limitar a verificação de sinais vitais (SSVV) para uma vez por dia, por plantão ou de acordo com a necessidade de cada paciente; • evitar a prescrição de hidratação em grandes volumes, prevenindo a hipersecreção de vias aéreas superiores, edema, anasarca e/ou desconforto respiratório; • prescrever medicações para serem administradas “se necessário”, visando prevenir sintomas desagradáveis; • avaliar a possibilidade de prescrever dieta de conforto ao paciente e, sempre que necessário, orientar quanto ao jejum; • analgésicos deverão ser mantidos, bem como antieméticos, ansiolíticos, antipsicóticos e anticonvulsivantes. A via de administração desses medicamentos deve ser discutida em equipe. Outros profissionais da equipe de saúde, além de médicos e enfermeiros, têm importância relevante no manejo do quadro de terminalidade, garantindo um processo de fim de vida adequado, com sintomas mais controlados, menores intercorrências e alívio do sofrimento. É importante considerar que nem sempre é possível atingir o controle efetivo dos sintomas desagradáveis apresentados pelo paciente, Assistência ao Fim da Vida: Identificação e Manejo | 235 pois, às vezes, é impossível abordar questões relacionadas com o sofrimento psíquico, espiritual e/ou existencial. Além disso, nem todos os pacientes evoluem com sintomas controlados nas últimas horas, apesar do tratamento otimizado, podendo apresentar sintomas de difícil manejo e que são desagradáveis principalmente para os familiares que os presenciam. Manejo de Sintomas O manejo de sintomas exacerbados é contexto fundamental para um quadro de terminalidade com menor sofrimento, suavizando a agonia final, além de evitar tratamentos que possam ser considerados fúteis nessa fase. Os sintomas mais indicativos dessa fase e sua conduta são descritos a seguir. Anorexia: no processo de morte ativa as atividades metabólicas diminuem, ocasionando uma perda de apetite natural. O indivíduo nesse processo pode não ter nenhuma ingesta de alimentos, e a aceitação de líquidos se torna progressivamente mais difícil. Forçar a alimentação por meio do uso de sondas enterais pode ser considerado uma medida fútil ou até danosa. A administração de nutrição artificial, tanto enteral quanto parenteral, está associada a comorbidades e não contribui para o alívio de nenhum sintoma ou reversão do quadro. Hidratar os lábios com gaze molhada ou cubos de gelo pode trazer mais conforto32. Dor: uma morte livre de dor é um tema central para pacientes, familiares e a equipe de assistência ao definir uma “boa morte”33 , e a dor é um sofrimento comum no morrer34 . Uma revisão identificou apenas dois estudos sobre o tratamento da dor na morte ativa, que abordaram o uso de morfina e fentanila, mas a interpretação dos resultados é variável, limitando sua contribuição para evidências. Estudos de opioides em populações que estão morrendo são desafiadores. É claramente esperado um efeito analgésico de opioides, tornando os grupos controlados com placebo eticamente injustificados. No entanto, problemas de absorção alterada, metabolismo e eliminação de opioides em pacientes que estão morrendo podem afetar a eficácia do tratamento e os perfis de efeito adverso35,36. Embora a sedação paliativa possa ser indicada para dor refratária, a dor descontrolada não foi uma indicação em muitos trabalhos37. Delirium: o delirium é uma alteração aguda e flutuante no estado mental, acompanhada de interrupção do ciclo sono/vigília, desatenção e percepções alteradas (alucinações/delírios). O delirium pode ser hipoativo ou hiperativo e muitas vezes multifatorial1. A causa identificável mais comum de delirium no ambiente hospitalar são os fármacos: anticolinérgicos (p. ex., fármacos antissecretórios, antieméticos, anti-histamínicos, antidepressivos tricíclicos etc.), os sedativo-hipnóticos (p. ex., benzodiazepínicos) e os opioides. Outras causas comuns incluem distúrbios metabólicos (elevação de sódio ou cálcio, baixa glicose ou oxigênio), infecções, doenças do SNC ou retirada de droga/álcool. O medicamento de escolha para controle do quadro na maioria dos pacientes é um eurocéptico. Um estudo de revisão encontrou evidências limitadas que apoiam o uso de midazolam e clorpromazina para agitação terminal38 em dois estudos de sedação paliativa 37. Nenhum estudo relatou especificamente sobre efeitos adversos nem sobrevida re236 | Dor e Cuidados Paliativos duzida associada ao uso de midazolam para sedação paliativa. Outro trabalho de revisão concluiu que a sedação paliativa não acelerou a morte, uma preocupação ética central39. Dispneia: as causas da dispneia incluem um amplo espectro de graves doenças pulmonares ou cardíacas, anemia, ansiedade, patologia da parede torácica, distúrbios eletrolíticos ou até mesmo retenção urinária ou constipação. O oxigênio é frequente, mas não universalmente útil. Existem evidências sobre o uso de morfina e midazolam, especialmente em combinação, para o tratamento da dispneia em pacientes em morte ativa, e não há evidências que apoiem o uso de fentanil38. Os efeitos adversos associados ao uso da terapia medicamentosa paliativa para a dispneia incluem sonolência, náuseas e vômitos com opioides e sonolência com benzodiazepínicos40,41. No entanto, a segurança dos opioides para o alívio da dispneia foi comprovada em uma revisão sistemática 42, não encontrando comprometimento da função respiratória. Tratamentos com outros fármacos podem ser utilizados: os antitussígenos podem ajudar com a tosse; os anticolinérgicos (p. ex., escopolamina) auxiliarão a reduzir as secreções; os ansiolíticos (p. ex., lorazepam) podem reduzir o componente de ansiedade da dispneia 43. Hipersecreção (sororoca): à medida que o nível de consciência diminui no processo de morte ativa os indivíduos perdem sua capacidade de engolir e mobilizar secreções orais; com isso, o ar se move sobre as secreções acumuladas e a turbulência resultante produz uma ventilação barulhenta com cada respiração, descrita como “sororoca” ou “ronco da morte”. Medidas para controlar o quadro incluem posicionar o paciente de lado ou em posição semiprona para facilitar a drenagem postural, reduzir a ingestão de líquidos e aumentar os cuidadores e a comunicação com a família, para abordar medos e interpretações errôneas associadas. Os bloqueadores dos receptores muscarínicos (fármacos anticolinérgicos) são a classe de medicação mais utilizada para esse sintoma, porem, não foram encontradas evidências que apoiem o uso de anticolinérgicos, visto não serem mais eficazes que placebo nos estudos. A sororoca é um sintoma com impacto incerto sobre o paciente, não associado a dificuldade respiratória no paciente, mas difícil de suportar para familiares e funcionários44-46,47. Na ausência de evidências e com incerteza quanto à necessidade de seu tratamento, a comunicação reconfortante com os parentes mais próximos pode ser preferível44,47. O manejo do quadro de terminalidade requer trabalho integrado da equipe, de forma minuciosa, considerando a racionalidade terapêutica e as singularidades de cada paciente e sua família. O medo, a tristeza, a saudade, a angústia de familiares e de membros da equipe não devem ser desconsiderados ou tratados apenas com medicamentos. A decisão sobre o local da morte, seja em hospital ou em domicílio, deve ser feita em conjunto com a família, previamente discutida com a equipe e consideradas as condições e os recursos de apoio, como estrutura domiciliar, familiar e do cuidador. O auxílio de um assistente espiritual pode ser importante para o conforto da família, respeitando os preceitos religiosos, as crenças e a história de vida do paciente48. Garantir uma boa morte a todos é, portanto, um grande desafio não só para os profissionais de saúde, mas também para a sociedade. Assistência ao Fim da Vida: Identificação e Manejo | 237 Referências 1. Breitbart W. Alici Y. 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