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Asma - Dentre Outros Prazeres, A Dor

2021, JALNA GORDIANO (2a - Edição)

A segunda edição do livro de poesias "Asma - Dentre Outros Prazeres, A Dor", da poetisa, escritora e profissional de Serviço Social Jalna Gordiano, é fruto de premiação de edital público. Jalna é membro do Grupo de Criação e Crítica Literária do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazônicos (Nepam), sediado no portal do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Asma -1- J Gordiano Asma -2- J Gordiano aSMA DENTRE OUTROS PRAZERES, A DOR Asma -3- J Gordiano Asma -4- J Gordiano JALNA GORDIANO aSMA DENTRE OUTROS PRAZERES, A DOR Embu das Artes 2021 Asma -5- J Gordiano © by Alexa Cultural - Jalna Gordiano, 2021. Direção Gladys Corcione Amaro Langermans Nathasha Amaro Langermans Editor Karel Langermans Capa Arte de Virgílio Simões com design de Renan Albuquerque Editoração Eletrônica Alexa Cultural Revisão Jalna Gordiano e Renan Albuquerque Ilustrações Jalna Gordiano Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) G661j - GORDIANO, Jalna Asma - dentre outros prazeres, a dor, Jalna Gordiano. São Paulo: Alexa Cultural, 2021. 14x21cm - 56 páginas ISBN - 978-65-89677-10-9 . 1. Literatura brasileira, 2. Poesia, 3. Crônica, 4. Ensaios, 5. Poemas 6. Amazonas, 7. Brasil ‘ CDD - 869.1 / 869.2 / 869.4 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura brasileira 2. Poesias 3. Crônicas 4. Amazonas Todos os direitos reservados e amparados pela Lei 5.988/73 e Lei 9.610 Alexa Cultural Ltda Rua Henrique Franchini, 256 Embú das Artes/SP - CEP: 06844-140 [email protected] [email protected] www.alexacultural.com.br www.alexaloja.com Asma -6- J Gordiano Asma -7- J Gordiano Asma -8- J Gordiano Asma -9- J Gordiano Asma - 10 - J Gordiano Apresentação A literatura de Jalna Gordiano é sua alma escarrada. Embriagantemente doce. Terna. Beatificada. Sutil como um bisturi abrindo feixes de lirismo amargo no peito do leitor. Sou suspeita em falar, sim, pois que venho acompanhando de perto todo o seu processo de maturação desde que a conheci no antigo Bar Macintosh e a achei extremamente arrogante e talentosa. Mas a arrogância aliada ao talento ― já dizia o poeta Mallarmé ― só aos espirituosos da arte pertence. Asma – Dentre outros prazeres, a dor é seu livro de estreia. Nele, Jalna reúne seus melhores poemas e crônicas, alguns já publicados na revista underground “Sirrose”, outros tantos ainda inéditos. O fato é que, dentro de uma técnica narrativa obviamente sua, podemos encontrar, tanto nos poemas quanto na prosa, o afã lírico e revelador de uma escritora que já emblematiza trazendo à tona, através de seus personagens, suas inquietações, mágoas, anseios, paixões, frustrações, sonhos, prazeres e a dor. Descritos aqui de forma bem humorada e com um senso crítico agudo e direto, que é a marca de sua escrita. Asma – Dentre outros prazeres, a dor é um livro sem muito blush e frescuras. Um doce vinho baudelairiano descendo devagar goela abaixo do leitor. Garantia de uma boa leitura e de uma boa ressaca. Márcia Antonelli, escritora amazonense. Asma - 11 - J Gordiano Asma - 12 - J Gordiano Asma - 13 - J Gordiano Dezembro Você foi me amargando. Aos pouquinhos, de nosso vinho, Serviu-se vinagre... E as taças ainda aguardam sujas, Opacas, Na pia da cozinha. E meus olhos foram se dobrando abaixo... E meu sorriso vinculou-se ao cansaço Das noites que aguardei ouvir teus passos além da porta (eram só os gatos). E da espera criou-se o eterno. Da aliança fez-se carne e da carne a cantiga Que em muito difere das cantorias daquelas noites. As luzes apagaram-se cedo demais pra uma festa, Que se dizia eterna. O carnaval que nos abençoou pagãos se suportou O brilho das estrelas juninas De mas em mas foi esfriando. Quando percebemos, Todos os elementais me expulsaram de tua terra E com minha bagagem na barriga, me fiz em trouxa, Parti. Se eu prestar atenção, eu consigo ver uma catita Que se esconde embaixo da mesa da cozinha. Ela ri de mim e me diz como agora será: Eu em meu calabouço. Você em seus ralos rápidos, fugindo cada vez mais depressa dos meus dias. Enquanto as úmidas noites chovem as velhas palavras azuis, Eu não posso mais discutir, no entanto, Não fugirei eu desta vez. Asma - 14 - J Gordiano Anosmia Por entre dez sóis e infindáveis noites eis que me perco one more time!!! A lenta e indizível procura em escuridões alheias me trouxe aqui teu quintal Penso então que talvez tenha visto isso em algum pesadelo ou delírio ruim de pinga. Deixei meu cheiro em locais cheios de gente suada azeda que sentem menos que eu. Não e por não tocar que não sinto desde já. Por entre tanto tempo eu continuarei a ser cuspida abandonando um certo E errado amargor na boca da vida de gente Asma - 15 - J Gordiano Que tudo o que vier venha macio para eu deslizar! E o que for leve pedaços do não eu amado A divindade da vida acaba de se esconder! pshiiiiii!!! (Atrás da minha segunda sombra!…) Nunca tentei capturá-la por isso alguém sempre a vê refletida perto do mim. Filhos e pólen e sonhos e saliva minha pele de veludo e meu órgão de linho O cheiro nem importa mais o importante mesmo é que a música vibre pelo eterno e que consigamos fugir da tirania do óbvio. Asma - 16 - J Gordiano O fim está próximo Quantas vezes pensei em me afundar na terra E nunca mais voltar por tanta vergonha, Mas tenho a alma de um pugilista em fim de carreira. Ele me obriga a cerrar os punhos, fazer cara feia E gritar o primitivo; Voltar à luta. Minha vida decresce em tons ascendentes Descrentes... Sou feito à lua e mudo rapidamente em fases; Sou o deus sol Aprendi a lentamente mostrar minha divisão em estações. Quando meu rosto está no chão, Eles vêm e pisam minha cara; Escondo o riso. Quem me julga, Tem os discursos mais incisivos... Asma - 17 - J Gordiano São mais drogados,Traíras, Sujos da pior bosta Que só a infelicidade, vazio E falta de comoção produzem. Quem me julga, Usa as máscaras mais ridículas E inverossímeis nas almas, Tristes palhaços de si mesmos. Sou eterna e tenho medo do fim. Sinto muitas dores e medos evidentes, Bares e igrejas sempre existirão. O que me permite tanta liberdade É minha inconstância. Preciso somente ser Um pouco mais de paciência: O fim está próximo. Asma - 18 - J Gordiano Tundra O mal estar do não estar Daquele ar gelado que sopra A todo instante, A cada milésimo de segundo. Em minutos Despede-se o que lutou, riu, Chorou, chegou, partiu, Viveu. Mergulho no poço de petróleo, Salto na noite, em abismos marinhos. A luz que chega acompanhada tão repletamente, Se vai sozinha, Trágica ou docemente. E dançam, e bebem, divertem-se. O assunto proibido, o medo vizinho, próximo. Conformismo imposto a famosos ou anônimos. Loucura escondida e condensada aos neurônios. O cheiro na água, no fogo, Na cama, no nada. No fim, Nadamos, nadamos, Chegamos à praia Mortos. Asma - 19 - J Gordiano Guerra Salto alto, batom, Perfume, seda e cigarro. Poder bélico altamente destrutivo Caminhando no sereno Rumo ao alistamento obrigatório. Guerra na qual desertoresSão punidos com suicídio. Ouço o barulho das botas, Por entre becos e ruas ecoam marchas De nupciais a fúnebres, Drásticas. Fedor de carniça sentido por poucos, A mãe chora o filho morto. Delírio generalizado De um general ficando louco. Viver é o alistamento obrigatório De uma guerra perdida. Asma - 20 - J Gordiano Incógnita Lambeste meu coração Arrastando o restante de néctar Que havia escondido onde nem sabia. As horas morrem no peito do dia Que agora vai chegando ao fim. O que será que os deuses vão fazer de mim? A noite chega feito um gato se enroscando em minhas pernas Conduzindo meus instintos por alguns lugares, Bares, bordéis, Motéis... Sinto teu cheiro A milhas de distância, Você só finge que sente muito... Estrelas douradas suicidam-se sobre cabeças desatentas, Coroadas por tormentas E mentiras. Canções levam o passar dos ventos Lá se foi o tempo em que tive Tuas mãos em meu pescoço, Braços como segurança, Sexo como amor, Brigas por discordâncias. Iria por onde fosses, Hoje analiso poses e reflexos de carros. Acordei sem teu hálito, Vivi sem teu incentivo, Agora sinto muito Querendo ou não Também estás enterrado nesta tumba comigo. Asma - 21 - J Gordiano Se eu pudesse poetizar a pornografia A minha, Teria de fundo sinfonia e morfina. Agora, sinto o calor da parafina queimada, Aqui neste quarto nada, Somente a indecência a me olhar fixamente, De lábios vermelhos e perfumada. Asma - 22 - J Gordiano Poema da Despedida Agora Finja que estou a anos-luz da sua órbita E flutuo no esquecimento escuro Ouvindo suas canções De olhos fechados. Sinta minha ausência Tilintar nos seus pelos E escorregar rente aos seus poros. Agora Ouça a lembrança de minha respiração E o eco do meu olhar no seu Faça todas as coisas prazerosas Que fizemos no passado Pegue o sono rondando nosso quarto Segure-o entre os dedos E solte-o no amanhecer. Agora Dentre dez anos que se seguem Posso voltar a qualquer hora No meio da madrugada, Às dez da manhã ou ao jantar. Prepare festas diárias Enfeitando nossa casa. Nossos filhos estão se preparando para habitar sua vida. Nossas horas estão unidas tão divididas. Nossas nuances continuam aqui não esquecidas. Asma - 23 - J Gordiano O tempo vai te lembrar de não nos deixar Para trás. O eterno vai te ensinar a ter a paciência necessária De me esperar. Estou envolta numa crisálida de ternura áspera Aprendendo a conviver com dores Para poder voltar pro teu peito E não voltar a chorar... Asma - 24 - J Gordiano Canto para minha morte Canto para minha morte Eu que não descanso enquanto não encontro Algozes para minha prisão Que não durmo até possuir A dor da certeza Eu Que afogo todas as minhas luzes E cores Com chuvas de amores egoístas e possessivos Que acabam com o fôlego de todos os meus vícios Até sucumbirem de dor Canto um canto triste e abafado No ouvido de meus detentores Canto como se Cada olhar alegre estivesse encerrado Nas mãos frias desses falsos calores De que me vale tanta vida entre os seios Se não posso ser ouvida? De que vale desistir de meus receios Se não há mais razão de ser sentida? Eu canto para minha morte Que ao meu lado aguarda Pacientemente como ninguém Puramente como ninguém Livremente Feito ninguém A hora exata de me libertar. Asma - 25 - J Gordiano Desligo tua presença Com um simples ato de autocarrasco, De covardia insana e fuga irremediável. Se o latejar do peito for incessantemente constante Cubro a ferida Com o corpo de outro sobre mim Sou expert em me destruir. Quando o cheiro permanece ao redor, E meus olhos só conseguem ler tua letra, Silencio minhas expressões e observo As casas de vida escondidas sob o sol. A insistência é qualidade dos fortes E a fortaleza é o sepulcro de heróis. Atravesso tua ausência transparente E digo para quem me é mais próximo, O quanto sinto em negar, Que o desespero é o meu acordar, Que meu desejo é eternamente adormecer. Feito o bater dos pêndulos do tempo Indo... Indo... Indo... Continuando minha existência Como o eco dos morcegos cegos Na manhã úmida de uma gruta escura. Asma - 26 - J Gordiano Beletriz Nunca viu finalidade Nas visitas tão demoradas Sabia que os gritos a incomodavam Mas deitava e trabalhava. Nunca entendeu as pancadas De chuva n’alma. Levantava sob sol quente E andava, andava. Fingiu o quanto pode Astúcia Queimou seu antigo quarto Bebeu e dançou com serpentes mitológicas Rodopiou e formou seu ralo lácteo. Enterrou no ventre os filhos perdidos Viveu a vida esperando A tal fada: Murchou na constatação. Há estrelas em seus olhos E perfume em seu peito Mas quem perdeu o olfato foram eles E já não podem enxergá-la. Ela senta e balança infantilmente os pés Esperando o infinito findar. Asma - 27 - J Gordiano Ficção científica A noite caiu E o sono mortal instalou-se nas casas. Pela escuridão Luz tão forte desceu dos céus, Visitantes querendo nos conhecer. Mas a tal horas, Quem os recepcionaria? O poeta insone Só no breu noturno Foi a única criatura que lhes dera atenção. Falou-lhes de amor, alimento, Sofrimento, dor, tortura, Falou-lhes da doçura de cada momento. Em vão sua voz saíra, Estes outros nada entenderam, O que era de se esperar? O que se esperaria, Se aos próprios alienados irmãos terráqueos, Presos em seus túmulos de carne, Poeta algum consegue se comunicar? Não existo mais Fui apagada da vida Como a palavra borrada no rascunho da bíblia. A dor doeu tanto que desmaiei — ou será que acordei? Acordei sangrando, no meio do trânsito, assustada, Em grunhido histérico, gata atropelada. Asma - 28 - J Gordiano Os transeuntes continuaram andando, Sem se importarem em sujar seus sapatos no sangue jorrando. O samaritano? Passou longe... Cansado da viagem frustrante. Acordei com água gelada na cara, no susto. Aquele acordar decepcionante, bruto. Acordei e fiquei olhando o bicho, o vaso de flor, Acordei e olhei bem feio pra cara do amor. Olhar de noiva traída, de mulher parida, partida sem partir... Olhando o caminho com jeito de quem não quer ir. Acordada, com rosto inchado, chato. Cabeça vendo o céu, ah, Babel!! Babilônia de não se saber quem é. De não se saber o que quer. Confusão de acordar e não se sentir. O mau humor, o não-sorrir. Acordada, parada, estática, atônita. Acordada dentro de um pesadelo eterno. Acordada no inferno. Durante muito tempo eu te aguardei; Quando chegaste Não vinhas com as vestimentas esperadas. Era fraco, franzino, estava a pé. Tsc-tsc-tsc. Eu te amei por eternos poucos segundos, meu anjo. Sujo, falaste em estranha voz Frases lunáticas e silêncios psicóticos Me viste nua em erros Eu não conseguia situar tuas cores Eras embaçado... Volúvel. Asma - 29 - J Gordiano Não me importei em te agradar Você me deu seu mundo pálido Te entreguei meu mundo etílico Juntos dançamos o blues da falta de calor. Hoje és bruto, imoral. Tornei-me pálida, quase muda. Nos amamos, erramos ao não conseguir conviver... Mas nos amamos. Hoje sou surda És cego, parado. Nós seremos eternamente sós em nós dois Na imensa e fria escuridão universal. Asma - 30 - J Gordiano Eu vou me fuder Eu vou me fuder Por fuder tanto assim. Por dançar com vários homens Neste cabaré sombrio. (Eu já sei do meu triste fim...) Por isso Não ria de mim Ou se apegue à peça. Se sou mesmo A tal da Nau à deriva Afogarei muitos pulmões Quando sucumbir. Esses laços Formados de comoção Prenderão-me pelo pé A uma rede de vodus. Com a rosa na boca E o peito ofegante e suado Recebo os aplausos e o calor da luz Vindos de um invisível público E ainda por cima Consigo me alimentar dos tomates podres Quando se fecham as cortinas. Tropeço em ruas planas, bêbada Brinco de levitar Converso com muitas pessoas estranhas Mais até que eu mesma Desinteressantes ao mundo Recheadas a mim Discuto com o cobrador do ônibus Asma - 31 - J Gordiano Por causas alheias Insulto deus o dia todo Chamo traíra Cuspo pra cima E de noite rezo pedindo perdão Corro pelo corredor com meu filho Dou banho e faço mamadeiras Ponho a dormir cantando nós dois Ainda consigo me comover mais e mais Ainda consigo chorar ao assistir comerciais Soluçante Ainda amo todos meus ex-amores Fielmente Não vá embora por minha loucura Pelo meu excesso de vidas Não vá embora por ser perturbado por mim Por palavras malditas Ainda posso rir de nós todos Ainda sei cozinhar pra você Ainda posso te apresentar puteiros imundos e te escolher garotas Posso deitar no teu colo e ganhar afagos? Posso Irritar-te insanamente para fazermos amor Toda a madrugada? Posso te ligar às três da manhã pra te contar dos bêbados que não dormiam na cidade? Asma - 32 - J Gordiano Derrota! Não estou pedindo uma trégua Quero que você me mate. Pegue esta pedra, ponha-a na minha cabeça E termine isso de vez! Não me dê seu desprezo Quero o olhar de pena. Sair ferida e mancando não me basta Quero morrer na luta! Quero ver onde vai dar, o outro lado, Os louros do esquecimento, quero o mármore, O mais belo dos mármores, As gargalhadas de deboche, O nome enxovalhado, arrastado pelo asfalto. Conceda-me pois A honra da última bala, saia desta de pé E avante, homem! Conquiste novas terras e deixe-me aqui Apodrecendo lenta e malcheirosamente Alvejando os ossos no sol quente... Canto de olhos, escárnio, Tudo o que me é de direito. Esta luta já durou demais E você não tem mais o que atingir. Chute esta cadela morta e de alguma forma, Nem que seja metafisicamente, Merda!, Me deixa ir! Asma - 33 - J Gordiano Asma - 34 - J Gordiano Asma - 35 - J Gordiano A recusa do caos Subi ao topo da juventude para me jogar na imunda velhice. Sou um poço de constatação. E os vácuos de tais fatos sumiram-me com as emoções mais intensas. Somente as sombras desbotadas de ventura me consolam. Agora, se observo prostrada no escuro o vazio ao meu redor, antes tão povoado de perfumes e vida, é por pura e unicamente mea culpa. Se rôo os calcanhares do arrependimento, fui somente EU que o pus de pé na minha frente. Antes esta solidão nublada e chuviscante, que o que antes me enlouqueceu. Eu construí com anos de amizade o amargor que as bolsas embaixo da minha língua carregam. Posto que a amizade é somente o material de que se ergue a ponte em que a traição atravessa para nos atravessar. Amarrei na linha da minha vida os guizos que me tiram a atenção necessária para perceber a paz. O céu não existe, o inferno alguém inventou e sou mais um personagem no imaginário comunitário, já que às vezes não me enxergo as unhas. A condenação é por imposição de terceiros. Não xingo os deuses, a fé. Xingo a loucura dos fanáticos. Fodam-se os padres, os crentes, os católicos. Demos VIVA! aos caóticos, aos nus. Aos devaneios soltos no espaço de tempo ainda não descoberto. Meu tutor me entregou às mãos do tribunal do santo ofício. Eu que já tive a Lótus queimando em brasa nas costas, agora tenho minhas vísceras enrolando num carretel para bordar as capas de porcos. Não peço desculpas pelo desvario dos rituais de Baco. Nem de despedidas sem comoção. Olhei pros olhos distraídos dele e disse ME PERDOA? Ele, no auge da inocência, instantaneamente me disse NÃO. Eis minha constatação. Eis minha condenação. Asma - 36 - J Gordiano Bilhete à futura geração doente Foi assim que eu percebi e as coisas já estavam mudadas. (Eu sabia que chegaria a este ponto). O sentido ficou perdido em algum lugar que eu não lembro, mas nada de tão angustiante. Somente a agonia de um inseto ainda não morto sendo devorado por formigas. A agonia de um velho em coma esperando desligarem os aparelhos. Estamos vendo nosso antigo veleiro ser dominado por águas revoltosas e ficamos aqui, sentados na proa esperando o fim. Minhas pernas enfraquecidas pela pouca cerveja me impedem de te seguir. Minha alma entorpecida por tantas despedidas, dorme descansando da viagem. Que pena... foi assim ver o arco-íris desbotar no entardecer... Mas as crianças continuam correndo na praça e eu sugo sua doce energia para suportar a dor. Eu sugo a energia da fertilidade para não lembrar do fatídico. Foi assim quando eu me toquei no lugar errado que consegui ver a pilha de erros ao meu lado chorando de fome de amargura e reproduzindo-se no caos. Sentindo a frieza da escuridão e a aspereza do caminho de volta. Desmoronam o amor e sensatez. Cai por terra o mito do eterno. Definham em gritos os beijos e prazeres prometidos. Se alguém de nós sobreviver, conte aos mais novos. E estraguem seus suaves suspiros, envenenem as tantas esperanças. Esta é minha última: a espera; esperar o fim sentado na beira deste monte de lixo e fedor. Sequem as vontades mais sublimes, dissequem os corpos dos amados. Se algo ainda assim sobrar, são seguintes as instruções: abandonem-se ao vazio, entreguem-se à poeira. Que o mundo inunde-se de gelo derretido e o sofrimento afogue-se junto a ele. Asma - 37 - J Gordiano A crise de Mafalda Quando ele me disse aquilo, achei então a peça que faltava pro meu brinquedo estar completo. E pensar que tinha passado tanto tempo gastando horas e horas da minha vida tentando decifrar, fazer leitura labial em uma pessoa muda e em imagem distorcida. Passei tanta eternidade me preocupando, me comovendo e me martirizando pelo mesmo erro em várias pessoas diferentes. Eu me preocupava demais com o problema dos outros e fazia deles os meus... Você entende, Mafalda? ― Hã hã… E a coitada da Mafalda tendo que ouvir horas a fio as questões existenciais da Andréa, como se não tivesse as contas pra pagar dentro daqueles dias. Não bastava o aborto feito contra a vontade do namorado, a vizinha roubando as poucas frutas do quintal da sua tia, ela ainda tinha a maldita da Andréa atazanando sua vida, feito uma carapanã em noite de muito sono. Atazanando os poucos minutos de folga que a lotação lhe proporcionava. Era naquele banco podre da Kombi 1987 que ela podia sentar o traseiro e fingir que o resto do mundo não existia, que a Andréa não existia, que a própria e podre Kombi 87 não existia. Porque não existir não era um sofrimento pra Mafalda. A Mafalda não era uma garota vazia. Ela tinha se formado, levado chifre, tomado porre, arrumado um bico de garçonete. A Mafalda fazia parte do Senso 2007 do IBGE. Ela gostava, mas não tanto assim dos Beatles, achava a banda Calisto engraçada e admirava os roqueiros doidões do bar da esquina da sua rua balançarem a cabeça daquele jeito e não quebrarem os pescoços. Só tinha perdido a capacidade de se comover. Ela entendia que ninguém jamais entenderia alguém. E que a humanidade iria se extinguir, mais cedo ou mais tarde. Sabia que a Terra seria Asma - 38 - J Gordiano engolida pelo Sol um dia, junto de um monte de coisas, algumas frustrações, inclusive as da Andréa. Por que se preocupar tanto? Já estava tudo resolvido. A existência, a dor, o gozo, o fim. E tudo estava e tudo era. O resto seria somente conjugações que sua língua pátria lhe impusera, desde criança, e que as outras crianças também aprenderiam um dia talvez. A Mafalda não era emocore, nem depressiva, não se enquadrava em nenhum rótulo. Ai, gente, ela nunca existia. Não pode existir. A coitada da Mafalda jamais existiria. Asma - 39 - J Gordiano Asma - 40 - J Gordiano Psicoantipatia Hoje é sexta feira. São oito e pouco da night. A cidade brilha suas luzes na minha retina. A maquiagem está feita, por dentro e por fora. Rezo um pouco antes de ir, espero que hoje não seja a última noite. Nem a primeira depois de algum trauma inesquecível. Mais um. É incrível o calor de dentro deste ônibus. Sensações claustrofóbicas e, sem perceber, teu nome na minha mente. O bar é pra esquerda ou direita? Eu não sei o que está acontecendo ao meu redor. Mas isso não me incomoda muito, eu nunca soube mesmo... Só sei que gosto de rir sozinha pensando em você. Na frente de quem for. O que me aflige são esses pensamentos… Eu imagino seu sangue espalhado pelo chão, sujando meus pés nus. Eu imagino você sendo atropelado por um bonde, espatifando-se. Às vezes, se me concentrar um pouco, consigo sentir o cheiro de teu cadáver se decompondo. Seus lindos cabelos soltando da cabeça em minhas mãos. Vou achar sua casa e, amanhã, as flores de seu jardim estarão todas tingidas de negro. Porque sua felicidade é risível. Porque você também é. Porque eu me encontrava em paz segundos antes de você acordar do coma e cair dos céus na minha frente (Mentira, eu nunca estive em paz). Mas isso não vem ao caso. O caso entre mim e você está acontecendo agora. Não sabes, mas está. Estou isolada propositalmente nesta multidão pra te observar de longe. Mexo na borda do copo de cerveja para molhar um pouco as mãos. Asma - 41 - J Gordiano Sequei de esperar. Quero que todas estas pessoas ao meu redor derretam. Quero que esta noite esfrie e vinho chova dos hidrantes. Profanado meus bruxedos telepaticamente, a música estridente nos ouvidos. Sorrio. Seus olhos, até que enfim. Pensas que estou te cortejando, cavaleiro manco? Não. Estou torcendo para aquele carro azul subir na calçada e apanhar você entre a parede. Mas isso estragaria a festa. Esquece. Desvio o olhar com jeito de mulher estúpida, passo a mão no rosto, finjo nervosismo. Afundo em uma poça de tédio. Engasgo-me com meu próprio remédio. Aquele cara insiste em me seguir com os olhos. Eu sei que não vais fazer nada. Essas mulheres agarradas em teu pescoço não te permitem movimento algum. Então, beijo esta idiota criança, louca para cair na insanidade que me atazanou a noite toda. Vou levá-lo para casa e me arrepender amanhã. Mas não esqueça do meu olhar vitrificado desta noite. Digo-te. Ainda vou achar tua casa. Asma - 42 - J Gordiano Ressaca Moral Eu nasci pra viver só. Não que eu esteja acostumada com isso, mas acabei me especializando em fazer besteira. Ainda é meio desconfortável, admito, mas no dia seguinte a primeira vez já foi. Lembra domingo, te liguei chorando, pedindo desculpas? Esqueça, era ressaca. Malditos créditos, bendita cerveja. Benditas as sextas em que tudo é festa. Um dia vou morrer, me libertar deste corpo, visitar outros planetas, conversar com os deuses e o Surfista Prateado. Por enquanto, você me chuta, eu me liberto de você, visito bares, converso com amigos e com o Surfista Prateado. Bendita cerveja. Bendita sexta. Nunca prestei o suficiente pra ti, jamais estive confortável em qualquer espécie de relacionamento, me contento com as ruínas, as falsas amizades, a responsabilidade me assusta. Não as correntes, o barulho. Fim de semana é sempre fim de ano. Um longo ano de sete dias. Vamos comemorar! Cansei de ser legal, tentar agradar a todos, ouvir todos, resolver tudo... Por que as pessoas só gostam de quem sofre?? DANE-SE!!! Cansei de sofrer, quer saber? São cinco e meia da tarde de um bendito dia. Errei, eu sei, mas quem não erra? Não vou pedir desculpas só. Vou sentar aqui nesta cadeira amarela, pedir uma gelada, rir com um bando de alcoólatras insensíveis e sem escrúpulos. Você fique aí, olhando de longe, odiando minha falta de consideração. Torça pra eu ter um bom fim de semana. Aí, quem sabe, te ligo no domingo... Asma - 43 - J Gordiano Saideira Outra. Mais uma. E outra. Mais uma. A saideira... Deus quis que estivéssemos no mesmo bar num dia ruim pra todos, maldita lua boêmia que me obrigou a sair quando fez aquela careta amarela. Esta cidade que mais me lembra duas ruas de um filme europeu antigo e manchado. Esta cidade que insiste em parir um adulto filho da puta bem na minha frente, bastando eu estar bêbada e solteira. Outra, garçom!! Putz, quando o corno é o último a saber, o garçom é o primeiro a sumir. As noites se repetem mudando os atores. O roteiro é o mesmo escrito por alguém em crise criativa. São amores e amigos perdidos, substituídos por outros que logo terão o mesmo fim. Eu, sou a tal da atriz decadente, gorda e bêbada que insistem em convidar pra aumentar a bilheteria. Eu sou o tal do filme repetido por algum nerd que se denomina fanático. Dá no mesmo, no final. O táxi mangueado por dez reais e umas cantadas idiotas do motora, o x-salada com coca-cola pra melhorar a ressaca instantânea, e vômitos e mais cantadas (agora dos rapazes realmente agressivos) no caminho a pé pra casa. Eu poderia tocar violoncelo pouco antes de conhecer esse underground bicha. Eu poderia ser a tal da garotinha boazinha que lava, passa, cozinha e leva chifre. Como é mesmo que as otárias dizem? Ah! Uma santa na rua e uma puta na cama. Acho que é mais ou menos isso. Elas juram que funciona antes de saberem do primeiro chifre que sempre levam... Eu sou uma puta no bar e uma bêbada na cama. Sozinha, fumando meu cigarro, escrevendo com a janela aberta, olhando pra lá e pensando: maldita lua!!! Asma - 44 - J Gordiano A crise de Sofia Eu o havia esperado por toda a madrugada, e nem um telefonema sequer. Tínhamos brigado a noite anterior. Eu saíra sozinha, tinha tomado um porre e ele não gostou, saiu e até agora nada! Ele disse SOFIA, ISSO NÃO SE FAZ, TE AMAVA TANTO! e partiu, agora sabe Deus, ele tem mil ex-namoradas, umas gordas com dinheiro, umas crentes, 2 e meia e nada, já fumei meia carteira em meia hora, nem consigo mais falar, ele disse também NÃO POSSO ACEITAR ESSE SEU JEITO BEBUM DE SER e eu disse, poxa Alex, para com isso, te amo e ele NÃO!, ACHO MELHOR PARAR POR AQUI, AMANHÃ PEGO MINHAS COISAS, VOU TE ESQUECER, mas Alex, eu não quero te esquecer, eu disse, mas ele foi e chovia, cara, chovia bastante, eu espero que ele esteja bem, eu já tive dor de cabeça, tô meio dopada duns comprimidos aí, ouvi todo o cd que ele me deu no meu aniversário, fala dumas filosofias que ele adorava, nossa como eu odiava quando ele começava com aquela conversa e a gente se deitava discutindo e se beijava, ele tinha um peito- travesseiro quente que eu amava, um jeito de me beijar à força que eu amava, agora são quatro e meia, meu rosto tá meio dormente de sono e de choro eu estou com frio e passo a mão na cara: Peraí! Minhas mãos estão molhadas e é sangue, meu Deus! É sangue! FOI, FOI, ELE REAGIU QUANDO VOLTOU PRA PEGAR AS COISAS, é mesmo, eu esfaqueei suas costas, e ele ainda olhou e perguntou por quê, SOFIA? com uma cara de agonia e eu disse Ah! você ia me esquecer mesmo... e Ah, que sono, tenho de dormir um pouco com meu Alex, só que o peito dele tá tão frio. Asma - 45 - J Gordiano País das baixarias Vagando por um corredor estreito eterno, etéreo Ecos soam de passos em falso Dados por alguém muito parecido com você O barco partiu e a despedida, não. Cada segundo torna-se agora Um século inteiro de autocomiseração. Foi fácil descer até aqui, Mas não vejo degrau algum para subir. Um caminho sem volta Uma escolha alheia Não espere boas surpresas Surpresas não são coisas boas O que surpreende de verdade é sempre o ruim Ainda não temos noção do que vem por aí. Madrugadas pós-madrugadas Bem embaixo dos trovões me perdi de você. Sem companhia a tristeza fica mais atraente. Os fantoches caíram sangrando no palco, A lona pegou fogo. Assista a você mesmo, Meu adorável e particular nada respeitável público. Em público é natural demais. Te banharam em escuridão, Nas paredes observas fotos de momentos esquecidos. Todos os seus canais lacrimais entupidos. Não se acelera, nem se volta Asma - 46 - J Gordiano Jamais voltaria àquela rota. Esperamos você para o chá, perdestes o caminho, Assim fomos obrigados a colocar outra Alice em teu lugar; Bem vindo ao país das baixarias. Asma - 47 - J Gordiano Asma - 48 - J Gordiano Loucura Acordo todos os dias em terras alheias ao meu conhecimento. Construo pedra por pedra meu abrigo sem fundações. Nestes dias embaçados pela neblina meu pensamento cai em meu mundo, desenfreadamente. Nestes dias turvos de dúvidas o céu da noite surge sem constelações ou sequer uma luz a me guiar. Quando ameaço desistir o vento me empurra um pouco mais ao abismo. Quando me ajoelho de cansaço meus inimigos levantam-me pelos cabelos e dão-me as costas. Ao alvorecer enxugo meus olhos e caminho por trilhas abertas pelos meus medos mais íntimos, a sós. Ao entardecer seguro nas mãos da solidão prosseguindo o caminho seco, desértico. À noite deito no colo da desesperança derramando lágrimas para refrescarem-me o rosto. Não consigo lembrar quando me perdi de casa, e a única certeza que tenho é que meus amores e entes mais queridos estão longe dos meus abraços. Asma - 49 - J Gordiano Quando a temperatura cai meu peito aquece de saudades e vontades que nunca conheci. Quando a poeira bate no rosto asfixiando minha já enfraquecida segurança, tapo meus olhos com mãos trêmulas para não cegar minha jornada. Acordo todos os dias pensando no que o dia seguinte fará comigo. Construo grão por grão sofrimento sem precisão. Nestes dias frios de desespero rezo para encontrar o rumo de casa. Nestes dias ásperos de ignorância quando meus ombros pendem sobre meu corpo, tento levantar meu rosto, arrastar meus pés. Peço perdão por erros cometidos. Peço perdão por erros nem conhecidos. Peço perdão pela audácia de ter existido. Asma - 50 - J Gordiano Asma - 51 - J Gordiano Eu não preciso de ti (ou Nunca precisei de ninguém) Morrer nunca foi fácil Tão fácil assim A covardia tomou conta. Sei que o dia virá Se não vier, Existem certas coisas que também não posso mudar Quando Cristo voltar Vou olhar com meus chapados olhos de tédio e tristeza e dizer: Demorô... A porta ficou aberta, Te acompanhei até o ônibus. Chega de frescura. Nunca precisei de ninguém De ti também. Certos dias sempre demoraram a passar. A noite volta O sol reaparece e as rugas nascem O mundo morre ao redor. Matei todos que me cercavam Afastei toda espécie de sentimento alheio Fico aqui Ruminando meus restos Neste sepulcro de areia, cimento e madeira. Nunca precisei do sol nem de mim De ti ou da tv Quero o controle remoto somente para Desligar e dormir. Asma - 52 - J Gordiano Para Sempre (Miniconto) Era, na vista, uma menininha de seus cinco anos. Mas existira antes das eras começarem. Sentava-se no chão daquele quarto úmido, rosto contra a parede, toda alma. Esquecida há uns séculos, lamentava-se mentalmente o abandono. Um dia ele chegou. Grande, forte, iluminou o ambiente ao abrir a porta. Ela perguntou: “Por que demoraste?”. Ele calado. As perninhas dela levantaram o corpo, suas mãozinhas sacudiram os trapos, tomou impulso e pulou em seu colo. Formou em seu largo pescoço um colar de braços. Enfiou sua pequenina língua naquela áspera boca e beijou-o maliciosamente tal qual da vida. Ele soltou-a ao chão. Abriu. Saiu. Fechou a porta. Ela, voltou ao seu canto de lamúrias. E existiu sendo a princesinha pálida, dona da própria infelicidade. Para, realmente, sempre... Asma - 53 - J Gordiano Asma - 54 - J Gordiano Asma - 55 - J Gordiano A subjetividade, a consternação, o subversivo, a introspecção poética e a sensibilidade. São essas as perspectivas oriundas de toda a angústia que encontramos em Asma: Dentre Outros Prazeres, a Dor. Com estilo poético livre, carregado de simbologias e metáforas, Jalna Gordiano convida as pessoas a se embebedarem na profundidade do seu fazer poético, a compreenderem, sob as palavras inteligíveis e as pétalas do seu chapéu, um tipo de poesia que se constrói em si mesma e elucida o ser humano nos mais diversos momentos. A coletânea poética é um mergulho na estética literária da criação em brasa. É uma poesia compreensível, ousada e lírica. É uma poesia forte e endurecida, como pedra que sorri. ISBN 978-65-89677-10-9 Asma - 56 - J Gordiano