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A prostituta na obra de Cesare Lombroso

2018, Criminologias: feminismos, mídia e protestos sociais

Resumo: os manuais de criminologia costumam mencionar como marco fundacional desta ciência o livro "O homem Delinquente", de Cesare Lombroso. No entanto, poucos criminólogos analisam o discurso lombrosiano sobre a criminalidade feminina, presente no livro "A mulher criminosa, a prostituta e a mulher normal". Segundo a narrativa de Lombroso, existem caracteres bioantropológicos que determinam a criminalidade feminina, bem como a existência de uma "prostituta nata". Sendo assim, o objetivo central do artigo consiste em examinar a obra mencionada, avaliando o discurso defendido pelo criminólogo positivista, que reforça as concepções patológicas sobre a prostituição e a estigmatização social deste grupo de mulheres. Palavras-chave: prostituição; criminologia etiológica; criminalidade feminina. 1. Introdução É possível afirmar, inicialmente, que não existe consenso entre os teóricos das ciências criminais sobre o surgimento da criminologia, delimitando o período (ou momento) histórico em que isto ocorreu. Uma das principais referências utilizadas para estabelecer o marco fundante da criminologia é Cesare Lombroso, representante da Escola Antropológica Italiana, embora não se considerasse efetivamente um criminólogo. 2 De acordo com esta perspectiva 3 , a criminologia nasce enquanto ciência com o positivismo 4 , desenvolvendo a ideia de que a 1 Este artigo foi publicado como capítulo de livro da obra "Criminologia: feminismos, mídia e protestos sociais" (Editora Virtual Gratuita), publicada em 2018. 2 "[...] muitos são os autores que, de alguma forma, tangenciaram a questão sem se dar conta de que faziam de seu objeto de estudo aquilo que, hoje, convencionamos chamar criminologia. Lombroso, por exemplo, uma das mais lembradas referências para se indicar o termo inicial do estudo criminológico, intitulava-se da Escola Antropológica italiana e não se dizia criminólogo". SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 5. ed. rev.

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Uma radiografia do homem delinquente

O primeiro capítulo d'O Homem Delinquente demonstra, com precisão, as bases teóricas lombrosianas, calcadas no determinismo biológico, no darwinismo e em suas relações com o fenômeno criminal, inaugurando um dos principais marcos teóricos do positivismo criminológico. 18 Partindo do pressuposto de que o estudo da zoologia foi aplicado às ciências sociológicas, econômicas e psicológicas, Lombroso afirma que seria natural cogitar a sua aplicação na antropologia criminal, de tal maneira que atos reputados pelos seres humanos como os "mais criminosos", podem ser verificados com frequência nas espécies animais, e até mesmo nas plantas. 19 No Reino Vegetal, o médico italiano cita determinadas plantas que assassinam insetos (insetívoras), ao passo que no Reino Animal, tal analogia se tornaria ainda mais clara através dos chamados "crimes de morte". Estes são divididos em categorias de delitos no mundo zoológico: i) morte para o uso das fêmeas (leões, tigres, jaguares e leopardos seriam supostamente "terríveis nas lutas amorosas", travando lutas entre machos para satisfazer o instinto de procriação); ii) morte por defesa (abelhas de uma certa colmeia costumam aniquilar aquelas "estrangeiras" que não pertencem ao meio); iii) morte por cobiça (invasão de formigas em outros ninhos para assaltar o maior número possível de crisálidasisto é, estágio de pupa de alguns insetospara que convertidas em formigas escravas); iv) mortes belicosas (guerras travadas entre animais pela sua sobrevivência); v) canibalismo (por motivo simples ou em virtude de infanticídio e parricídio). 20 Em seguida, a atenção é voltada para as tatuagens nos delinquentes, característica mais psicológica do que anatômica, segundo um estudo realizado pelo autor e uma equipe de pesquisadores com pouco mais de nove mil pessoas. 21 Um indício examinado consiste na região do corpo em que a tatuagem é feita 22 , sendo que alguns homens tinham tatuagem no seu pênis, o que revelaria " [...] não só a impudicícia, mas a estranha insensibilidade deles, 18 Segundo Vera Malaguti Batista, "O positivismo é uma grande permanência no pensamento social brasileiro, seja na criminologia, na sociologia, na psicologia ou no direito. Muito mais do que uma escola de pensamento, constitui-se numa cultura". BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 45. 19 LOMBROSO, Cesare. O Homem Delinquente. Tradução de Sebastião José Roque. São Paulo: Ícone, 2013, p. 21-22. 20 LOMBROSO,Cesare. O Homem Delinquente, "Consegui alcançar isto com o estudo de 9,234 indivíduos, dos quais 3.886 soldados honestos e 5.348 criminais, ou meretrizes ou soldados delinquentes, entre eles 200 mulheres, 378 franceses e isso graças a ajuda e paciência de mais de uma dezena de médicos". LOMBROSO,Cesare. O Homem Delinquente,p. 30. 22 Conforme a linha de raciocínio adotada no livro, a multiplicidadeou seja, ter tatuagens em todas as partes do corposeria a prova de pouca sensibilidade à dor dos delinquentes que apresentassem esta característica, aproximando-os dos selvagens. LOMBROSO,Cesare. O Homem Delinquente, por ser esta uma das regiões mais sensíveis à dor". 23 Embaixo dos umbigos, foram observadas frases como "torneira do amor" e "prazer das mulheres", cujo teor conduz à seguinte conclusão de Lombroso: "Tão variado é o sentimentalismo que faz as mulheres histéricas babarem-se todas". 24 LOMBROSO,Cesare. O Homem Delinquente, As prostitutas não estariam somente propensas ao uso de tatuagens, mas também fichadas enquanto portadoras de um maior número de cicatrizes: "Outro sinal que pode tornar-se precioso ao médico legista por distinguir um malandro e um ladrão de um homem honesto e pacífico cidadão é a frequência das cicatrizes na cabeça e nos braços. [...]. E isso também se aplica às prostitutas". LOMBROSO, Cesare. O Homem Delinquente, p. 45. 28 "Pode-se talvez, entre os nossos, e certamente nos selvagens, a nudez como forma de manto e ornamento. Realmente, os marinheiros, que vão nus no peito e braços, e as meretrizes que frequentemente se despojam de suas vestes, são aqueles que mais preferem esse uso; e também os mineiros e os caipiras. Por outro lado, em um homem vestido, a vantagem da tatuagem não teria razão de existir, não seria observada" (grifo nosso LOMBROSO,Cesare. O Homem Delinquente, Mais uma vez, os holofotes se direcionam à prostituta: "A cólera é frequente nas meretrizes e por causas mais leves, por uma censura, por exemplo, de alguma coisa que ficou feia; são, quanto a essa questão, mais infantis do que as próprias crianças; sentir-se-iam desonradas se não reagissem" (grifo nosso). LOMBROSO, Cesare. O Homem Delinquente, p. 116. 39 "A paixão pelo álcool é porém muito complexa, por ser causa e efeito do crime. [...] Alguns delinquem para embriagar-se, ou porque, com a bebedeira, os velhacos procuram a coragem necessária aos atos nefandos, depois As prostitutas têm um amor que as distingue das mulheres normais. São apaixonadas pela dança, pelas flores e pelo jogo. São dadas ao tribadismo. Entretanto, esses prazeres do jogo, da gula, do sexo, etc., e até o da vingança, são intermediários de um máximo, que mais do que todos predomina o da orgia. Esses seres tão avessos à sociedade têm uma estranha necessidade de vida social, uma vida de alegria, barulhenta, agitada, sensual, no meio de seus cúmplices, a verdadeira vida de orgia. Creio que os prazeres da gula e do vinho sejam um pretexto para dar-lhes desafogo, por isso, malgrado o evidente perigo, apenas cometido um homicídio, ou efetuada uma evasão após uma longa prisão, retornam àquele lugar. 41 45 "Os pederastas frequentemente de elevada cultura e talento (funcionários, mestres), ao contrário dos primeiros, têm uma estranha necessidade de associar-se no delito e formar verdadeira congregação, que se reconhece, num olhar, ainda que viajando em país estrangeiro. Os atentados deles quase nunca se concentram sobre um indivíduo só; às vezes, ao contrário, entre muitos e quase contemporaneamente. Menos estranho é ver como esses delinquentes, se forem de classes elevadas, amam os trabalhos e as roupas femininas. Os uniformes e a postura ornada de bijuterias, com os ombros descobertos e com cabelos encaracolados, se ligam aos maus hábitos. Também gestos esquisitos pela arte fazem recolher quadros, flores, estátuas, perfumes, quase extraindo por atavismo, junto com vícios e gostos da antiga Grécia. São muitas vezes honestos ao menos, e cônscios de serem culpados até ante si mesmos, lutam longamente com infames inclinações, lamentam-nas, deploram-nas e as escondem. Os de classe inferior amam a vida de baixo nível, preferem odores fortes, adotam nomes femininos e são o instrumento dos furtos mais vulgares, mais atrozes assassinatos e chantagens". LOMBROSO,Cesare. O Homem Delinquente, e vagabundos. Contudo, não obstante a constância deste atributo (inteligência inferior), Lombroso reconhece a existência de "delinquentes geniais", isto é, aqueles altamente refinados, conhecedores de idiomas, ciências biológicas, e até mesmo do saber jurídico. 47 Ao lado de todos os atributos até então mencionadostatuagens, menor sensibilidade à dor, ausência de sensibilidade afetiva, paixões exacerbadas e inteligência deficitária -, o médico italiano ressalta as particularidades da linguagem utilizada pelos delinquentes, principalmente através das gírias. Faz parte da construção deste arcabouço léxico o uso de palavras estrangeiras, arcaísmos e sinonímias, amplamente difundidas em cada país, cuja função e origem se explicariam pela necessidade de fugir das investigações policiais. 48

Lombroso entende que as causas do surgimento do jargão dos criminosos seriam não apenas o atavismo 49 , como também a influência das prostitutas 50 , que desde os tempos antigos tinham um linguajar próprio.

Note-se que as características até então exploradas dizem respeito ao delinquente considerado na sua individualidade, sem interagir com outros criminosos. Desse modo, o positivista italiano dedica um capítulo inteiro de seu livro para falar sobre a "associação para o mal", um dos fenômenos mais importantes do "mundo do crime", resultante da união de almas perversas com tendências selvagens. 51 O escopo dessa comunhão de esforços seria, em regra, apropriar-se de bens alheios (criminalidade patrimonial), embora fosse possível constatar associações para abortos, para envenenamentos e para homicídios sem fins lucrativos, todas elas chefiadas majoritariamente por homens. 52 Para ilustrar os delitos associativos, Lombroso cita dois exemplos: a Camorraorganização criminosa que dominava Nápoles, formada por um grupo hierárquico de presidiários e ex-presidiáriose a Máfiaatuando fora das prisões, com incidência nas classes superiores -, ambas variantes de uma "malandragem vulgar", mostrando-se implacáveis com os seus inimigos. 53 46 "Muitos estupradores têm os lábios grossos, cabelos abundantes e negros, olhos brilhantes, voz rouca, alento vivaz, frequentemente semi-impotentes e semi alienados, de genitália atrofiada ou hipertrofiada, crânio anômalo, dotados muitas vezes de cretinice e de raquitismo" (grifo nosso "Although I argue that the female equivalent of the born criminal is the prostitute and that she shares the same atavistic origin, I certainly need to state, very clearly, that she is less perverse and less harmful to society. While every crime involves calamity, prostitution can be a moral safety valve. In any case, it would not exist without male vice, for which it is a useful, if shameful, outlet". 61 Nesta passagem, a forma com que Lombroso fala de sua filha levanta uma suspeita de que, possivelmente, a "principal colaboradora" do livro talvez tenha sido aquela que mais trabalhou para finalizá-lo, sendo digna de elogios e agradecimentos, mas não de figurar expressamente como colaboradora (ou mesmo coautora) da obra. 62 Os pesquisadores têm como indiscutível que o desenvolvimento inferior da inteligência feminina é causado parcialmente pela inércia imposta pelos homens, mas seria ao mesmo tempo um erro rotular esta causa como exclusivamente masculina, por se tratar de uma inferioridade natural, verificada como uma tendência generalizada entre todos os animais, na qual o macho é aquele que mais luta para defender a existência de sua espécie. 76 Isto significa que a causa principal, relativa à inteligência inferior, tem um caráter biológico:

A inteligência do macho, como sua estrutura orgânica, tem uma potencialidade primitiva maior do que qualquer fêmea, graças a seu papel menos expressivo na reprodução da espécie. Como eu já demonstrei, a inteligência varia inversamente em relação à fecundidade em todo reino animal; há um antagonismo entre as funções reprodutiva e intelectual. Hoje, o trabalho de reprodução tem sido desenvolvido principalmente pelas mulheres, e por esta razão biológica ela tem sido deixada para trás no desenvolvimento intelectual. 77 Assim, Lombroso e Ferrero completam a moldura das características do que entendem ser uma "mulher normal".