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OS MECANISMOS ENUNCIATIVOS NO ESTUDO DO GÊNERO CRÔNICA

2017, Revista de Letras Juçara

RESUMO: Este artigo realiza a análise de uma crônica de crítica social, tendo como aporte teórico metodológico o Interacionismo Sociodiscursivo. Destacamos os mecanismos enunciativos que explicitam o jogo de vozes e que configuram o conteúdo temático abordado, considerando o contexto de produção e a arquitetura textual. Por esse viés, evidenciamos as estratégias argumentativas, descrevendo a construção dos mundos discursivos e o papel das vozes e modalizações na crônica, "A informação veste hoje o homem de amanhã" de Carlos Eduardo Novaes. Os resultados da análise fornecem indicações para a construção de uma leitura crítica a partir das operações linguísticodiscursivas inscritas no texto. PALAVRAS-CHAVE: Mecanismos Enunciativos. Vozes.

OS MECANISMOS ENUNCIATIVOS NO ESTUDO DO GÊNERO CRÔNICA Ana Cecília Nascimento e Santos1 José Ricardo Carvalho2 RESUMO: Este artigo realiza a análise de uma crônica de crítica social, tendo como aporte teórico metodológico o Interacionismo Sociodiscursivo. Destacamos os mecanismos enunciativos que explicitam o jogo de vozes e que configuram o conteúdo temático abordado, considerando o contexto de produção e a arquitetura textual. Por esse viés, evidenciamos as estratégias argumentativas, descrevendo a construção dos mundos discursivos e o papel das vozes e modalizações na crônica, “A informação veste hoje o homem de amanhã” de Carlos Eduardo Novaes. Os resultados da análise fornecem indicações para a construção de uma leitura crítica a partir das operações linguísticodiscursivas inscritas no texto. PALAVRAS-CHAVE: Mecanismos Enunciativos. Vozes. Modalizações. Gênero Crônica. Introdução O gênero ‘Crônica’ é encontrado em diferentes esferas sociais: escolar, jornalística e literária, assumindo diferentes funções e formas enunciativas. Ferreira (2008) encontrou 23 formas enunciativas de realização da crônica. Observa-se, contudo, que todas elas propõem uma reflexão sobre aspectos ligados à vida cotidiana, podendo estar ligado aos aspectos: político, cultural, filosófico, religioso, histórico, existencial. Para realizar uma leitura crítica desse gênero é preciso se remeter as dimensões da vida cotidiana as quais o autor, no papel de expositor coloca em evidência. Examina-se, nesse processo, como são colocadas vozes e enunciados que assumem posicionamentos ideológicos e elaboram representações diante da realidade construída no universo textual-discursivo. Para estudarmos o funcionamento discursivo desse gênero textual, escolhemos uma crônica de crítica social e adotamos como parâmetros de análise os princípios assumidos pela corrente teóricometodológica do Interacionismo Sociodiscursivo (doravante ISD), desenvolvida por Bronckart (1999). Essa proposta defende que o processo histórico de socialização ajuda a promover propriedades específicas das atividades da consciência mediadas pela linguagem. Sendo assim, o ISD compreende que o pensamento humano está Universidade Federal de Sergipe – UFS. E-mail: [email protected] Doutorado em Letras pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2007). Professor da Universidade Federal de Sergipe – UFS. E-mail: [email protected] 1 2 Revista de Letras JUÇARA, Caxias – Maranhão, v. 01, n. 02, p. 60 – 74, Dez. 2017 | 60 ligado ao conhecimento de mundo nos eixos sociais e culturais, influenciando na forma de interiorização da linguagem. Machado (2009a, p. 48) ainda explicita que a atividade discursiva assume um papel fundamental no desenvolvimento do homem, já que é essencial em três níveis de análise do humano: “é ela que organiza, regula e comenta as atividades humanas e é por meio dela que se constrói uma “memória” dos pré-construídos sociais”. Bronckart (1999, p. 72), afirma, então, que “os textos são produtos da atividade humana e, como tais, estão articulados às necessidades, aos interesses e às condições de funcionamento das formações sociais no seio das quais são produzidos.” A investigação interacionista valoriza a compreensão das condições de produção que reconhece formas de organização social e de formas de interação de caráter semiótico. Sendo assim, as condições de produção do texto são consideradas como a base que configura a situação de comunicação no horizonte da interação verbal. Por esse motivo, Bronckart (1999) afirma que a linguagem materializa os aspectos psíquicos e os sociais, configurando-se em forma de ação de linguagem; construindo uma consciência individual e uma memória social. Seguindo uma abordagem interpretativa, observa estrutura interna dos textos, considerando os aspectos dialógicos e interacionais. Com base nesses pressupostos e, mais especificamente, no modelo de análise textual do ISD, consideramos os tipos de discurso, os mecanismos de textualização e enunciativos para a realização da leitura da crônica. 1. O Interacionismo Sociodiscursivo: A ação de linguagem e a representação dos mundos Bronckart (2008) apresenta a obra Théorie de l’agir communicationnel, de Habermas (1987a, 1987b) como um trabalho em que há o desenvolvimento de uma teoria diferente sobre o agir humano. Habermas (1987) compreende que existem várias dimensões da organização do agir humano que coexistem, apontando que é preciso entender o agir do homem considerando os fatores socioculturais e semióticos. Ele apresenta o princípio de sua teoria apontando que as atividades humanas são Revista de Letras JUÇARA, Caxias – Maranhão, v. 01, n. 02, p. 60 – 74, Dez. 2017 | 61 realizadas levando-se em consideração algumas representações coletivas que estão organizadas em três sistemas de mundos, como veremos abaixo: mundo objetivo – é o mundo físico que abrange as relações existentes na socioistória humana. mundo social – conhecimentos coletivos referentes a regras, convenções e sistemas de valores construídos em grupo. mundo subjetivo – diz respeito aos conhecimentos e características individuais, mas que são objeto de “processos públicos de conhecimento” (BRONCKART, 2008, p. 22). Com base nisso, as ações de linguagem só podem ser observadas empiricamente a partir das manifestações do texto ou do discurso, e essas produções de linguagem se realizam em uma relação de dependência com o contexto social. Habermas (1987) apud Bronckart (2008) [grifo do autor] classifica a dimensão dessas atividades como o ‘agir comunicativo’, que seria o instrumento por meio do qual se manifestam concretamente as avaliações sociais das pretensões à validade das três formas de agir praxiológico e, na medida em que os mundos que organizam os critérios dessas avaliações são (mais ou menos) conhecidos pelos atores, o agir comunicativo também é o organizador das representações que esses atores constroem sobre sua situação de agir e, portanto, também é o regulador de suas intervenções afetivas (BRONCKART, 2008, p. 25). Habermas (1987), conforme Bronckart (2008), explica que o agir comunicativo é uma dimensão própria do ser humano, e que favoreceu a criação de um mecanismo que ajudasse na interação dos indivíduos nos diversos contextos de atividades: a linguagem, que é vista como um “mecanismo de criação de unidades semiológicas arbitrárias e socioconvencionais” (BRONCKART, 2008, p. 24). Assim, o mecanismo da linguagem proporciona a partilha de representações a partir das práticas verbais, o que contribui para a classificação de duas categorias do agir: O agir teleológico (que produz um efeito num dos mundos) e o agir comunicativo (práticas linguageiras que estabelecem acordos para a realização social do agir praxiológico), que estão, ambos, fundamentalmente articulados, pois, sem um, não haveria a existência do outro. Com base nisso, Bronckart (2008) aponta que qualquer agir é produzido no contexto do mundo objetivo. Tal agir é produzido no contexto do mundo social e, também, é produzido no contexto do mundo subjetivo, por conseguinte, essas dimensões irão identificar “os ângulos sob os quais um agir humano pode ser avaliado” (BRONCKART, 2008, p. 23). Ao apresentar as quatro funções de modalizações que Revista de Letras JUÇARA, Caxias – Maranhão, v. 01, n. 02, p. 60 – 74, Dez. 2017 | 62 foram conservadas em seus estudos, Bronckart (1999) afirma que a escolha foi feita inspirada nessa teoria dos mundos de Habermas (1987). Portanto, fazendo uma conexão entre a função modalizadora e os mundos formais. As modalizações podem ser de quatro tipos: lógicas, deôntica, apreciativas e pragmáticas. Os três primeiros tipos de modalização podem se vincular às categorias do mundo formal da seguinte forma: MUNDO FORMAL MODALIZAÇÕES Mundo Objetivo Modalizações Lógicas Mundo Social Modalizações Deônticas Mundo Subjetivo Modalizações Apreciativas Quadro 1: Relação entre os mundos e as modalizações (Bronckart, 1999) Já as modalizações pragmáticas, cumprem o papel de elucidar intenções e motivações de um personagem, um grupo ou uma instituição expressa em um enunciado ou uma atitude a qual se vincula uma responsabilidade enunciativa. Vão atribuir, a esses agentes, intenções, motivos ou capacidades de ação. Machado e Bronckart(2009) observam que essas modalizações indicam uma interpretação de aspectos subjetivos e vão indicar aquilo que é desejado, tentado, impedido, e não o que, de fato, conseguiu-se fazer. Os autores [grifo do autor] explicitam que Para Bronckart (1997), são principalmente os verbos auxiliares, que se intercalam entre o sujeito e o verbo, atribuindo ao(s) actante(s) determinadas intenções, finalidades, razões (motivos, causas, restrições etc.), capacidades (e incapacidades), julgamentos, etc. Em outros termos, explicitam uma interpretação de aspectos subjetivos do agir, ou ainda, assinalam determinadas categorias da semiologia do agir ao actante. Ex.: querer, tentar, buscar, procurar, pensar, acreditar, gostar de etc+ verbo no infinitivo (MACHADO; BRONCKART 2009, p. 62). Com base nos aspectos apresentados, percebemos que é possível reconhecer pontos de vistas assumidos pelo locutor, tendo por base as representações expressas nos enunciados proferidos. As marcas modalizadoras existentes no texto são responsáveis pela coerência pragmática, revelando opiniões, avaliações, julgamento Revista de Letras JUÇARA, Caxias – Maranhão, v. 01, n. 02, p. 60 – 74, Dez. 2017 | 63 ou posicionamento sobre a veracidade de um fato, juízos de valor sobre um conteúdo temático ou atitudes de pessoas e instituições representadas no texto. ANÁLISE DOS MECANISMOS ENUNCIATIVOS NA CRÔNICA Diante da revisão dos mecanismos enunciativos, realizamos uma análise do funcionamento linguístico-discursivo da crônica ‘A informação veste hoje o homem de amanhã’, de Carlos Eduardo Novaes que apresentamos a seguir. Primeiramente, apresentamos o contexto de produção que permite situar o leitor a variáveis que contribuem como parâmetros para a construção do texto. A crônica foi escrita por Carlos Eduardo Novaes e publicada no livro ‘A cadeira do dentista e outras crônicas’, no ano de 1994. Na posição de emissor, temos um cronista que já trabalhou em jornais, mas que também escreve livros, produzindo textos com variadas temáticas. O possível público leitor pode ser formado por jovens e adolescentes que se interessam pelos livros ou que precisam lê-los para a realização de alguma atividade escolar. Esta é uma crônica argumentativa na qual há a defesa da tese de que as crianças de hoje não são iguais às do passado. Para isso, o cronista lança mão de argumentos que sustentam essa ideia e já começa apresentando a voz de Pelé, ao marcar o seu milésimo gol, pedindo que cuidemos mais das crianças. A partir dessa frase, é que se apresenta a ideia defendida e, a partir de exemplos vividos, evidenciados através de relatos, o cronista vai mostrando que a criança de hoje se assemelha aos adultos nos seus gostos, comportamentos e interesses. A INFORMAÇÃO VESTE HOJE O HOMEM DE AMANHÃ Carlos Eduardo Novaes Revista de Letras JUÇARA, Caxias – Maranhão, v. 01, n. 02, p. 60 – 74, Dez. 2017 | 64 Pelé tinha razão ao pedir pelos microfones – no dia em que marcou seu milésimo gol – que se cuidasse mais das criancinhas. Realmente é necessário mais cuidado com elas. Eu conheço muita criancinha que já anda lendo a Playboy. Não, meus caros, as criancinhas não são mais aquelas. Estão perdendo rapidamente a infância. E a prosseguir nesse ritmo, daqui a pouco com cinco anos já serão adolescentes. Há pouco tempo, remexendo o passado, dei de cara com um pião, velho companheiro de brincadeiras de rua. Sem saber o que fazer com ele, resolvi dar de presente para o filho do porteiro. O garoto pegou-o, examinando-o sem muita animação e me perguntou insensível: - O que é que é isso? Seu pai que se aproximava respondeu: um pião. E esquecendo-se por um Revista de Letras JUÇARA, Caxias – Maranhão, v. 01, n. 02, p. 60 – 74, Dez. 2017 | 65 momento de suas funções na portaria apanhou o brinquedo, agachou-se e numa animação quase infantil ficou tentando soltá-lo. O filho, em pé, olhou-o fixo, virou-se para mim e assumindo um ar critico comentou: - Olha ai – disse apontando para o pai abaixado- parece um débil mental. Segundo educadores, as mudanças decorrem do fato de as crianças da década crescerem muito bem informadinhas. Um jornal publicou uma matéria baseada em pesquisa realizada entre crianças de 3 a 15 anos (se é que hoje ainda se pode chamar um cidadão de 15 anos de criança) cujo titulo era: “ Como se está fazendo o homem de amanhã”. Eu particularmente creio que o homem do amanhã continua sendo feito com os mesmos ingredientes com que se fazia o homem de ontem, ou seja: um homem e uma mulher, que devem ser temperados com uma pitadinha de amor antes de levados ao forno. Mas não é isso que interessa. Num determinado trecho, a reportagem dizia: “O menino André Luiz, de quatro anos, viu pela TV a chegada do homem a lua. Achou o fato natural, pois estava informado sobre os preparativos e podia descrever perfeitamente módulo lunar. Sabia de cor o nome dos astronautas e discutia sobre as possibilidades de o homem chegar a marte”. Os senhores estão sentindo o drama? André Luiz sabia mais sobre o espaço do que qualquer datilógrafo da NASA. A pesquisa revela também que as novas crianças preferem novelas e outros tipos de programa aos feitos especialmente para classe. Outro dia fui à casa do vizinho pedir gelo, e ao chegar assisti à maior discussão entre ele e o filho de cinco anos diante da televisão. Meu vizinho querendo ver desenhos animados e seu filho interessado no National Geographic. Antigamente os campos estavam bem definidos: as crianças de um lado e os adultos do outro. Agora não há mais fronteiras. As crianças invadiram e tomam de assalto o mundo dos adultos. Eu me lembro do dia em que, com quatro ou cinco anos, meu pai me levou ao Jóquei Clube. Paramos ali junto ao padoque e pela primeira vez vi um cavalo de perto. Excitado com a novidade, depois de um esforço – se vocês me permitem: cavalar - o máximo que consegui perguntar ao meu pai era o que o cavalo comia. Pois bem, ontem voltei com meu sobrinho de seis anos ao hipódromo. Recostamos no padoque perto de um cavalo castanho e eu me recordei da cena com o meu pai. Imaginando que o garoto poderia me fazer a mesma pergunta, antecipei-me com um certo orgulho e fui logo lhe informando que “ o cavalo come aveia, alfafa e cenoura”. Quando acabei de falar, o menino me lançou um olhar enfastiado e disse: - O que o cavalo come eu já sei, tio. Agora estou interessado em saber é quanto ela vai pagar na ponta. Revista de Letras JUÇARA, Caxias – Maranhão, v. 01, n. 02, p. 60 – 74, Dez. 2017 | 66 (A cadeira do dentista e outras crônicas. São Paulo: Ática, 1994. P. 45) Temos, nessa crônica, como estratégia discursiva, predominante, o uso do segmento de discurso interativo que já começa no primeiro parágrafo. Nele, percebemos encaixados alguns segmentos de relato interativo, através do discurso direto e de pequenos relatos em 1ª pessoa. Tais relatos são anunciados pelas fórmulas: 1. Há pouco tempo; 2-Eu me lembro do dia em que com quatro ou cinco anos... observamos a subordinação de um discurso englobante, fornecendo marcas de uma argumentação que evidenciam uma relação temporal. O tempo passado é visto como um ponto de referência para as posições enunciativas que serão expostas no texto. Por conta desse aspecto, decidimos denominar a instância enunciativa desses segmentos de expositor/relator, já os personagens foram denominados como vozes do mundo empírico ordinário. Dito isso, apresentaremos o plano geral da crônica e as sequências observadas: Plano Geral da Crônica - O cronista expõe que devemos cuidar das crianças, pois elas não são mais as mesmas, não se comportam como crianças. (1º parágrafo) - Há uma exemplificação da ideia a partir da apresentação de um relato: o expositor/relator deu um pião ao filho do porteiro, que acabou não reconhecendo o objeto como lúdico. (2º e 3º parágrafos) - Há a apresentação da ideia de que o que torna as crianças menos infantis é o excesso de informação. (4º parágrafo) A partir da apresentação de alguns relatos, o expositor/relator mostra que, cada vez mais, as crianças têm interesses semelhantes aos dos adultos, e não pelo que é próprio para elas. (4º e 5º parágrafos) Sequência Argumentativa • Premissas – Constatamos que é preciso cuidar das crianças, elas não são mais as mesmas. No 2º parágrafo, temos a tese: As crianças não são mais as mesmas, como no passado. • Argumentos - Argumenta que as crianças de hoje são mais informadas, o que faz com que elas prefiram coisas do universo adulto. Revista de Letras JUÇARA, Caxias – Maranhão, v. 01, n. 02, p. 60 – 74, Dez. 2017 | 67 Outros argumentos são apresentados a partir de relatos em 1ª pessoa e serão descritos nas sequências narrativas seguintes: • Sequência 1 • Situação Inicial – Encontra um pião • Complicação: dá ao filho do porteiro • Ações: O garoto não sabe o que é aquele objeto • Resolução – o pai do menino mostra como se brinca • Situação final – O garoto critica a atitude do pai • Sequência 2 • Situação Inicial – Lembra-se de quando foi ao hipódromo com seu pai • Complicação: vai com o sobrinho ao hipódromo • Ações: Na tentativa de impressionar o sobrinho, explica o que o cavalo come. • Resolução – o sobrinho demonstra que já sabe bem mais do que o que parece. • Conclusão - O expositor conclui que “as crianças invadiram e tomam de assalto o mundo dos adultos”. Quadro 8: Análise da Infraestrutura geral da crônica ‘A informação veste hoje o homem de amanhã’. Com base nesse quadro, a análise das vozes será feita considerando-se como instância enunciativa, nos segmentos de discurso interativo, um expositor que defende a ideia de que as crianças de hoje não agem como as crianças de antigamente: “Realmente é necessário mais cuidado com elas. Eu conheço muita criancinha que já anda lendo a Playboy”. Já nos segmentos de relato interativo, consideraremos um expositor/relator em 1ª pessoa, que conta situações em que crianças agiram de maneira inesperada, deixando-o assustado com tal comportamento: 1. “Há pouco tempo, remexendo o passado, dei de cara com um pião, velho companheiro de brincadeiras de rua”. – 2. “Eu me lembro do dia em que, com quatro ou cinco anos, meu pai me levou ao Jóquei Clube. Paramos ali junto ao padoque e pela primeira vez vi um cavalo de perto.”. Revista de Letras JUÇARA, Caxias – Maranhão, v. 01, n. 02, p. 60 – 74, Dez. 2017 | 68 As outras vozes percebidas no texto serão explicitadas no quadro a seguir: Vozes do mundo empírico ordinário Pelé – aparece a partir do discurso indireto, numa citação feita pelo expositor, fundamentando a ideia do texto: “Pelé tinha razão ao pedir pelos microfones – no dia em que marcou seu milésimo gol – que se cuidasse mais das criancinhas”. Voz do filho do porteiro – É feita a partir do discurso direto, mostrando a ideia do menino sobre o pião e sobre a atitude do pai: “- O que é que é isso?” “- Olha ai – (...)- parece um débil mental.” Voz do Porteiro – Aparece no discurso direto, precedido pelo verbo ‘respondeu’: “um pião” Expositor/Relator – apresentada a partir de discurso indireto, mostra a visão do narrador-personagem quando era criança: “Eu me lembro do dia em que, com quatro ou cinco anos, meu pai me levou ao Jóquei Clube. Paramos ali junto ao padoque e pela primeira vez vi um cavalo de perto. Excitado com a novidade, depois de um esforço – se vocês me permitem: cavalar o máximo que consegui perguntar ao meu pai era o que o cavalo comia.” Sobrinho do Expositor/Relator – É apresentada a partir do discurso direto, sendo precedida pelo verbo ‘disse’: “- o que o cavalo come eu já sei, tio. Agora estou interessado em saber é quanto ela vai pagar na ponta.” Instâncias Sociais Educadores – o expositor respalda as suas ideias com base na afirmação dos educadores sobre a infância: “Segundo educadores, as mudanças decorrem do fato de as crianças da década crescerem muito bem informadinhas”. Pesquisas publicadas em jornais – também são usadas para respaldar a ideia apresentada: “- Um jornal publicou uma matéria baseada em pesquisa realizada entre crianças de 3 a 15 anos (se é que hoje ainda se pode chamar um cidadão de 15 anos de criança) cujo titulo era: “Como se está fazendo o homem de amanhã”.” Revista de Letras JUÇARA, Caxias – Maranhão, v. 01, n. 02, p. 60 – 74, Dez. 2017 | 69 “- A pesquisa revela também que as novas crianças preferem novelas e outros tipos de programa aos feitos especialmente para a classe.” Reportagem – apresenta a história de um garoto que conhecia muito sobre o espaço, reforçando a ideia de que as crianças de hoje estão mais informadas. “- Num determinado trecho, a reportagem dizia: “O menino André Luiz, de quatro anos, viu pela TV a chegada do homem a lua. Achou o fato natural, pois estava informado sobre os preparativos e podia descrever perfeitamente módulo lunar. Sabia de cor o nome dos astronautas e discutia sobre as possibilidades de o homem chegar a marte”. Os senhores estão sentindo o drama? André Luiz sabia mais sobre o espaço do que qualquer datilógrafo da NASA.” Voz do expositor (textualizador) “- Não, meus caros, as criancinhas não são mais aquelas” “- Os senhores estão sentido o drama?” “- Excitado com a novidade, depois de um esforço – se vocês me permitem: cavalar” Quadro 9: Análise das vozes na crônica ‘A informação veste hoje o homem de amanhã’ Quanto às realizações modais no texto, temos o seguinte quadro: No primeiro parágrafo da crônica, quando se percebe o segmento de discurso interativo, o expositor faz uso de modalizações lógicas que evidenciam a sua certeza em relação à necessidade de se cuidar das crianças. Essa modalização é marcada, inicialmente, por um segmento de frase: “Pelé tinha razão ao pedir pelos microfones – no dia em que marcou seu milésimo gol – que se cuidasse mais das criancinhas”. O expositor traz a voz do Pelé para ajudar a defender a sua tese. Em seguida, reforça-a com outro modalizador lógico marcado por um advérbio: “Realmente é necessário mais cuidado com elas”. Nesse mesmo fragmento, encontramos um modalizador deôntico (é necessário), que propõe uma avaliação da situação à luz dos valores sociais. Ainda no mundo do expor, são utilizadas modalizações apreciativas que apresentam a evidência subjetiva do expositor de que a infância está passando rápido. Essas evidências são marcadas por advérbios: “Não, meus caros, as criancinhas não são mais aquelas. Estão perdendo rapidamente a infância. E a prosseguir nesse ritmo, daqui a pouco, com cinco anos já serão adolescentes”. Revista de Letras JUÇARA, Caxias – Maranhão, v. 01, n. 02, p. 60 – 74, Dez. 2017 | 70 Na primeira sequência narrativa, em que temos um segmento de relato interativo, vamos perceber modalizações apreciativas e pragmáticas. As apreciativas evidenciam o modo como o narrador/expositor avalia a atitude do menino ao ver o pião e a atitude do pai, que sai de sua função no trabalho para brincar um pouco com o brinquedo. Isso põe em cena a ideia de que os adultos têm mais interesse nas coisas infantis que as próprias crianças: “... resolvi dar de presente para o filho do porteiro. O garoto pegou-o, examinando-o sem muita animação e me perguntou insensível: - O que é que é isso? - Seu pai que se aproximava respondeu: um pião. E esquecendose por um momento de suas funções na portaria apanhou o brinquedo, agachou-se e numa animação quase infantil ficou tentando soltá-lo”. A modalização pragmática aparece quando o narrador-personagem avalia a capacidade de sentimento do menino ao observar a atitude do pai. Ela vai ser percebida a partir de um segmento de frase: “O filho, em pé, olhou-o fixo, virou-se para mim e assumindo um ar crítico comentou”. Nesse comentário do filho, perceberemos uma avaliação que evidencia o pensamento subjetivo do menino sobre seu pai: “- Olha ai – disse apontando para o pai abaixado- parece um débil mental”. No parágrafo seguinte, com segmentos do mundo do expor, para defender a ideia de que as crianças estão se comportando como adultos, o expositor fundamenta seus argumentos com vozes de outras instâncias, como educadores e pesquisas científicas. Ao trazer essas vozes, suas avaliações aparecerão através de modalizações lógicas: 1. “Segundo educadores, as mudanças decorrem do fato de as crianças da década crescerem muito bem informadinhas”. 2. “Um jornal publicou uma matéria baseada em pesquisa realizada entre crianças de 3 a 15 anos (se é que hoje ainda se pode chamar um cidadão de 15 anos de criança) cujo titulo era: ‘Como se está fazendo o homem de amanhã’”. Ao tecer um comentário sobre as evidências fundamentadas, o expositor apresenta sua visão subjetiva e particular de como se faz o homem do amanhã. Para isso, brinca com a ideia do “fazer o homem do amanhã”, mostrando possíveis significados para esse conceito. É uma modalização apreciativa marcada por um advérbio: “Eu particularmente creio que o homem do amanhã continua sendo feito com os mesmos ingredientes com que se fazia o homem de ontem”. Em seguida, a partir de um auxiliar de modalização, é apresentada a noção da necessidade de que algo aconteça para que o homem do amanhã seja feito, sendo, então, uma Revista de Letras JUÇARA, Caxias – Maranhão, v. 01, n. 02, p. 60 – 74, Dez. 2017 | 71 modalização pragmática: - “ou seja: um homem e uma mulher, que devem ser temperados com uma pitadinha de amor antes de levados ao forno”. Nos últimos segmentos de narração e discurso interativo, teremos a presença de modalizações apreciativas e pragmáticas. Ao narrar o fato de que uma criança sabia descrever o módulo lunar, o narrador utiliza-se de uma modalização pragmática que demonstra a capacidade da criança, evidenciada por um auxiliar de modalização: “Achou o fato natural, pois estava informado sobre os preparativos e podia descrever perfeitamente o módulo lunar”. A palavra perfeitamente indica a avaliação subjetiva do narrador sobre a capacidade da criança, configurando uma modalização apreciativa. No segmento de relato narrativo, teremos, também, modalizações apreciativas e pragmáticas. O narrador-personagem conta que foi à casa do vizinho e faz uma avaliação subjetiva sobre uma discussão presenciada por ele entre o vizinho e seu filho: “Outro dia fui à casa do vizinho pedir gelo, e ao chegar assisti à maior discussão entre ele e o filho de cinco anos diante da televisão”. Em seguida, o narrador apresenta a vontade de ação do vizinho, a partir de um auxiliar de modalização, o que resulta numa modalização pragmática: “Meu vizinho querendo ver desenhos animados e seu filho interessado no National Geographic”. Por fim, no relato interativo em que se lembra de sua ida ao Jóquei Clube na infância, o narrador apresenta uma modalização apreciativa, ao avaliar a experiência de ir a este lugar ver de perto os cavalos. Utiliza, para isso, um adjetivo: “Excitado com a novidade, depois de um esforço – se vocês me permitem: cavalar”. Posteriormente, na tentativa de impressionar seu sobrinho, o narrador-personagem evidencia, hipoteticamente, o desejo do garoto, realizando uma modalização pragmática marcada por um auxiliar de modalização: “Imaginando que o garoto poderia me fazer a mesma pergunta, antecipei-me com um certo orgulho e fui logo lhe informando que ‘o cavalo come aveia, alfafa e cenoura’”. Para finalizar, há uma modalização apreciativa que evidencia a impressão do narrador-personagem sobre a atitude de seu sobrinho após a sua fala: “Quando acabei de falar, o menino me lançou um olhar enfastiado e disse: - o que o cavalo come eu já sei, tio. Agora estou interessado em saber é quanto ela vai pagar na ponta”. Com base nas modalizações apresentadas (tinha razão, realmente, segundo, com base em), podemos perceber que há um bom número de modalizações lógicas Revista de Letras JUÇARA, Caxias – Maranhão, v. 01, n. 02, p. 60 – 74, Dez. 2017 | 72 nos segmentos vinculados ao mundo do expor. Isso demonstra ao interlocutor que o expositor é detentor desse saber, tem confiança naquilo que diz, podendo comprovar os fatos que afirma. Já nos segmentos de sequências narrativas, observamos, com maior frequência, as modalizações apreciativas, que apontam a visão de mundo subjetiva do expositor/relator e, nas modalizações pragmáticas, as capacidades de ação das vozes empíricas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Observamos que o cronista ao tomar a palavra, se posiciona em relação ao dito, criando mundos discursivos para organizar o conteúdo referencial que deseja exprimir. O autor é aquele que transfere a responsabilidade do que é dito a instâncias enunciativas utilizadas no texto (narrador, expositor, textualizador, personagens) e, com base no gênero de texto utilizado faz a gestão de outras vozes. (voz do autor, de personagens e de instâncias sociais). Cada voz assume um posicionamento a partir de avaliações feitas, o que configura as modalizações. Um leitor crítico pode aderir ou se distanciar das ideias levantadas, e, assim, estará, também, posicionando-se diante dos atos apresentados. Ele consegue fazer essa identificação das vozes presentes num texto, suas avaliações e as congruências e divergências existentes ali. Dessa maneira, consegue apreender os assuntos que são expostos, conseguindo manter uma posição sua diante do tema. Bronckart (1999) entende que compreender as vozes num texto constitui Uma oportunidade de se tomar conhecimento das diversas formas de posicionamento e de engajamento enunciativos construídos em grupo, de se situar em relação a essas formas, reformulando-as, o que faz com que esse processo contribua, sem dúvida alguma, para o desenvolvimento da identidade das pessoas (BRONCKART, 1999, p.156). Constatamos que a crônica analisada se apresenta na ordem do expor, com sequências de relatos. Por se tratar de uma crônica argumentativa, temos o ponto de vista do cronista muito presente em toda a construção textual, o que favoreceu o relato de histórias a partir de uma experiência própria. Então, entendemos que a instância da enunciação seria um expositor/relator. Revista de Letras JUÇARA, Caxias – Maranhão, v. 01, n. 02, p. 60 – 74, Dez. 2017 | 73 Nessa mesma perspectiva, ao tratar das vozes presentes no texto, denominamos como vozes do mundo empírico, já que as vozes eram provenientes de discursos da vida do expositor, com a finalidade de fundamentar sua argumentação. As vozes presentes no texto indagam umas às outras, ocorrendo uma postura irônica com relação crítica em relação ao homem do futuro. Compreendemos, portanto, que a gestão das vozes é constituída pelas escolhas feitas pelo cronista, que contrapõe visões de mundo, promovendo diálogos e reflexões sobre os posicionamentos ideológicos compreendidos no fio do discurso. OS MECANISMOS ENUNCIATIVOS NO ESTUDO DO GÊNERO CRÔNICA ABSTRACT: This article proposes the analysis of a social criticism chronicle, and it has as a methodological theoretical contribution the Sociodiscursive Interactionism. We highlight the enunciative mechanisms that explain the voices game and configures the thematic content addressed, considering the context of production and textual architecture. By this bias, we show the argumentative strategies, describing the construction of the discursive worlds and the role of voices and modalizations in the chronicle "Information dresses today the man of tomorrow" by Carlos Eduardo Novaes. The results of the analysis provide indications for the construction of a critical reading from the linguistic-discursive operations inscribed in the text. KEYWORDS: Enunciative Mechanisms; Voices; Modalizations; Gender Chronicle. REFERÊNCIAS BRONCKART, Jean Paul. Atividades de linguagem, textos e discursos: Por um interacionismo sociodiscursivo. (Trad. Anna Rachel Machado). São Paulo: EDUC, 1999. BRONCKART, Jean Paul. O agir nos discursos: das concepções teóricas às concepções dos trabalhadores. Trad. 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Revista de Letras JUÇARA, Caxias – Maranhão, v. 01, n. 02, p. 60 – 74, Dez. 2017 | 75 Data de Submissão: 09/11/2017 Data de Aprovação: 27/12/2017 Revista de Letras JUÇARA, Caxias – Maranhão, v. 01, n. 02, p. 60 – 74, Dez. 2017 | 76