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Mangue Beat, A Cidade, e o Direito Urbanístico - Empório do Direito
Mangue Beat, A Cidade, e o Direito Urbanístico
Guilherme Alcântara
João Chiesa Farias
13/08/2017
Por Guilherme Alcântara e João Chiesa Farias – 13/08/2017
O sol nasce e ilumina As pedras evoluídas Que cresceram com a força De pedreiros suicidas Cavaleiros
circulam Vigiando as pessoas Não importa se são ruins Nem importa se são boas
E a cidade se apresenta Centro das ambições Para mendigos ou ricos E outras armações Coletivos, automóveis,
Motos e metrôs Trabalhadores, patrões, Policiais, camelôs
A cidade se encontra Prostituída Por aqueles que a usaram Em busca de uma saída Ilusora de pessoas De
outros lugares, A cidade e sua fama Vai além dos mares
E no meio da esperteza Internacional A cidade até que não está tão mal E a situação sempre mais ou menos
Sempre uns com mais e outros com menos
A cidade não pára A cidade só cresce O de cima sobe E o de baixo desce A cidade não pára A cidade só cresce
O de cima sobe E o de baixo desce
Em A Cidade, música de Chico Science & Nação Zumbi, os homens do mangue fazem uma denúncia do inchaço
urbano e de suas chagas. Estão diante das pedras evoluídas – o concreto e o cinza da urbanização -, de um
policiamento ostensivo, e do fluxo convergente das ambições; estão diante do conjunto de forças que tomaram
posse da cidade e lhe conferem um sentido. Um sentido ininterrupto: a cidade não para; a cidade só cresce…
E crescimento, aqui, é dilatação mais do que transformação social; não se suprime as desigualdades, pelo
contrário, enquanto a cidade cresce, vai se alongando a distância entre os de cima e os de baixo – entre os
caranguejos e os urubus.
Crescer por crescer, eis a lógica de uma célula cancerígena; cá o contexto urbano é patológico: um entupimento
dos vasos sanguíneos.
Nos subúrbios do Recife, onde os rios são como as veias da cidade, foi esta, portanto, a postura do manguebeat e
do seu expoente Chico Science & Nação Zumbi: desenvolver, com urgência, um pensamento fértil, capaz de
desentupir as artérias urbanas. Era preciso injetar energia na Lama, afinal, é ali onde resta a fertilidade.
Do contrário, a cidade sofreria um infarto[1].
Da lama e do caos, o Mangue Beat trouxe um estímulo à criatividade; como o coração de um movimento político
e estético – e daí, por que não, filosófico?
A Cidade, neste sentido, expressa um problema fundamental que assola não só Recife, mas o mundo todo,
conforme denuncia David Harvey: o boom de urbanização que nada tem a ver com o interesse da população, mas
antes do capital especulativo – principalmente o imobiliário. Trata-se de um déficit democrático que na realidade
sempre acompanhou o fenômeno da urbanização, desde a reforma em Paris realizada pelo sobrinho de Napoleão
a partir de 1849, e que na verdade só colabora a longo prazo com o capital, nunca na resolução dos problemas
que efetivamente se põe a solucionar[2].
No mesmo sentido, o direito impregnado pela ideologia do legalismo liberal[3], que olha a cidade como conjunto
de lotes de terra privados que merecem tão somente atenção na questão de seus conflitos horizontais e no que
toca ao poder de polícia administrativa é, ao lado do mercado especulativo e dos sistemas políticos clientelistas,
o terceiro fator determinante da produção de espaços urbanos ilegais[4].
A Constituição Federal de 1988 rompeu com este paradigma, pois constitui um Estado Democŕatico de Direito
em que este último assume a tarefa de tranformação social e de resgate das promessas perdidas da modernidade,
mormente em países de modernidade tardia, como o Brasil[5]. A função social da propriedade, consagrada no
inciso XXIII do artigo 5º, bem como a política urbana insculpida nos artigos 182 e 183 da CF/88, devem ser
compreendidas, portanto, sob o paradigma do constitucionalismo democrático, comprometido com os direitos
individuais, sociais, difusos, de todos, não só da maioria, tampouco de uma minoria elitista.
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O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) e o Estatuto da Metrópole (Lei nº 13.089/2015) possuem forte
inspiração neste novo modelo de direito, focado nas preocupações de Chico e do Mangue Beat. Neles se
encontram relevantes instrumentos de enforcement dos compromissos sociais que a cidade precisa cumprir, como
o IPTU progressivo no tempo, a concessão onerosa do direito de construir, a instituição de planos diretores
participativos, parcelamento, edificação ou utilização compulsórias do solo, o usucapião especial (e
possivelmente coletivo) de imóvel urbano, estudos prévios de impacto ambiental e estudos prévios de impacto de
vizinhança.
A gestão da cidade é outra preocupação destes estatutos. O Estatuto da Cidade, neste sentido, garante como
instrumentos de garantia da gestão democrática da cidade órgãos colegiados de política urbana, nos níveis
nacional, estadual e municipal; debates, audiências e consultas públicas; conferências sobre assuntos de interesse
urbano, nos níveis nacional, estadual e municipal; iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e
projetos de desenvolvimento urbano (art. 43).
Nada obstante à revolução copernicana no Direito causada pelo constitucionalismo democrático da Carta Política
de 1988, bem como a promulgação dos Estatutos da Cidade e da Metrópole – e embora se reconheça certo
avanço no sentido da participação popular na gestão das cidades – a experiência com a Copa do Mundo e
Olimpíadas revelam como a gestão urbana no Brasil ainda prefere o capital especulativo ao interesse das
minorias que vivem na lama, diria Chico. Mas isso ocorre porque não basta editar uma Constituição ou
legislação para nossos problemas desaparecerem. O direito – pelo seu caráter interpretativo - é o que dizemos da
Constituição e da legislação e dos regulamentos e dos precedentes judiciais, repetindo as lições do professor
Lenio Streck.
É tarefa nossa, portanto, ‘operadores do Direito’, continuar a luta para mudar este cenário. Como anota Henri
Levefbre, uma urbanização digna requer que escutemos a necessidade de uma revolução econômica – orientada
para as necessidades sociais -, política – no sentido da gestão democrática da cidade – mas também cultural[6] –
orientada para a noção de que as qualidades de um administrador do município/estado/nação não são as mesmas
de um empresário, e que o crescimento financeiro de uma cidade amiúde é apenas outra face da miséria dos
marginalizados que são desalojados em nome do capital especulativo. Do contrário, toda surdez será castigada.
Notas e Referências:
[1] Manifesto Caranguejos com Cérebro: “Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto”,
afirmou o signatário e vocalista do Mundo Livre S/A, Fred Zero Quatro.
[2] Harvey, David, 1935-Rebel cities : from the right to the city to the urban revolution. London/New York:
Verso. 2012.
[3] WOLKMER, Antonio Carlos (Org). Fundamentos de história do direito. 3. ed. 2.tir. rev. e ampl. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006.
[4] FERNANDES, Edésio. Direito e gestão na construção da cidade democrática no Brasil.
[5] STRECK; Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4 ed. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 2014, p. 162 em diante. O mesmo é reafirma na maioria das grandes obras do autor.
[6] LEVEFBRE, Henri. O direito a cidade. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Ed. Centauro. 2001,
p. 140.
. . Guilherme Alcântara é Mestrando em Fundamentos e Efetividade do Direito pelo
programa de pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Guanambi. Advogado. . .
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Universitário. . .
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. . João Chiesa Farias é Estudante do 4º termo de Direito da Toledo Prudente Centro
Imagem Ilustrativa do Post: Ana Lira // Foto de: Direitos Urbanos // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/direitosurbanos/8089763783
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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou
posicionamento do Empório do Direito.
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