Bruna Klem
Mateus Pereira
Valdei Araujo
(Organizadores)
Do Fake ao Fato
des(atualizando) Bolsonaro
Editora Milfontes
Vitória, 2020
A teologia política do governo Bolsonaro
Sérgio da Mata1
I
“O verdadeiro, único e mais profundo tema da história do mundo e
do ser humano, ao qual todos os outros se subordinam, é o conflito entre
crença e descrença”. É possível que, em seu sentido original, as palavras de
Goethe em Israel no deserto expressassem mais a tendência romântica para
a hipérbole do que um vaticínio histórico-universal.
Dois séculos depois, elas se ajustam, com uma perfeição que se
diria trágica, à nossa situação atual. No Brasil, a tensão latente produzida
por uma nova configuração teológico-política vem se acentuando desde
a campanha presidencial de 2010, para atingir seu ponto alto, ou mais
baixo – tudo é questão de perspectiva – na eleição de 2018. Anunciado o
resultado da apuração, a primeira manifestação pública do novo presidente
adquiriu contornos sem precedentes na história do Brasil republicano.
Formou-se um semi-círculo em volta de Jair Bolsonaro, e ninguém que
tenha acompanhado a cena ao vivo teve dúvidas que o que se seguiria em
instantes não seria uma primeira palavra à nação ou ao candidato derrotado,
mas uma prece. “A Tua palavra diz que quem unge a autoridade é Deus”,
disse o então senador Magno Malta, “e o Senhor ungiu Jair Bolsonaro”.
Num brevíssimo discurso, Bolsonaro jurou defender a democracia: “Isso é
uma promessa, não de um partido, não é a palavra vã de um homem; é um
juramento a Deus”. Ao fundo, alguém se lembrou de levantar a bandeira do
Brasil. A ausência do futuro ministro Paulo Guedes, fiador da aproximação
do vencedor com o “mercado”, não chegou a ser notada.
Quatro anos antes, em inícios de 2014, eu tivera a ideia de oferecer
em minha universidade uma disciplina intitulada A Bíblia: introdução a
uma matriz do pensamento ocidental. Minha intenção era revisitar o texto
bíblico a partir de uma literatura de qualidade, admitindo como óbvia a
premissa de que quem não estiver disposto a conhecer melhor este livro,
sua história e os efeitos que produz, já não está em condições de entender o
povo brasileiro. Divertia-me a ideia de ver os alunos passando furtivamente
pelos corredores com aquele incômodo livro debaixo do braço, e nem de
longe me perturbava a possibilidade de tornar-me alvo de comentários
1 Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto e
pesquisador do CNPq.
53
Do Fake ao Fato
irônicos dos meus colegas de departamento. Eu pretendia apenas seguir
a lição contida numa deliciosa anedota contada por Christopher Hill.
Quando perguntaram ao historiador Jack Fisher o que se deveria ler sobre
história econômica e social da Inglaterra nos séculos XVI e XVII, este
respondeu: “Se você realmente deseja compreender este período, vá para
casa e leia a Bíblia”.2 Nenhuma analogia possível, é claro, entre a Inglaterra
dos Stuart e o Brasil de Dilma Roussef, salvo num ponto: a inequívoca
centralidade cultural do texto bíblico para uma parcela significativa da
população.
Supreendentemente ou não, houve um bom número de inscritos,
e aos poucos me dei conta de que os alunos é que me ensinavam sobre a
Bíblia, não eu a eles. Animados pelos textos complementares de autores
como Jean Bottéro, Max Weber, Rudolf Otto, Karl Löwith, Adolf von
Harnack e Northrop Frye, nossas discussões eram sempre animadas, sem
interesse outro que não o puramente intelectual. Guiando-nos por um
saudável agnosticismo metodológico, encaramos a exuberante simbologia
do Gênesis e do Apocalipse, a teodiceia de Jó, a energia revolucionária de
Isaías, a delicada sensualidade do Cântico dos Cânticos e, como não poderia
deixar de ser, a teologia política de Paulo. Hoje percebo melhor o forte
acento veterotestamentário do curso, o que de toda forma já expressava
nossa sinergia com o contexto religioso mais amplo.
Iniciativas assim continuam raras porque – coisa estranha – o estudo
das religiões foi quase que inteiramente abandonado pelos historiadores
brasileiros. A “virada linguística” enchia-nos de esperanças de que, numa
espécie de fiat às avessas, tudo aquilo sobre o que deixássemos de falar
deixaria também de existir. Dessa forma, aceitou-se com notável rapidez
a grande narrativa hartoguiana sobre a “perda” de futuro sem que se
percebesse que o futuro cuja plausibilidade evanescera fora somente o das
filosofias da história.3 O erro crucial da tese do “presentismo” é também,
em última análise, o erro da esquerda em geral – o de não ter tido olhos
para as constantes reconfigurações religiosas, poderosas muitas delas, do
futuro. Mais realista, um experiente jornalista do Le Monde, Jean Birnbaum,
constatou que “sa [da esquerda] culture s’est toutefois largement bâtie sur
une volonté d’éradication du religieux”.4 O silence religieux de que fala seu
2 HILL, Christopher. A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 24.
3 Cf. HARTOG, François. Regimes de historicidade. Presentismo e experiências do
tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
4 BIRNBAUM, Jean. Un silence religieux. La gauche face au djihadisme. Paris: Du Seuil,
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Bruna Klem, Mateus Pereira, Valdei Araujo (org.)
livro se esprairou pela maior parte de nossos departamentos de história, e,
com ele, uma profunda incompreensão a respeito da visão de mundo que
orienta uma parte significativa, senão a grande maioria, dos brasileiros.
Daí a imensa perplexidade que tomou conta de nós ante o resultado da
eleição: aquele não parecia um desfecho possível.
A infra-estrutura ideológica que dava suporte às filosofias da história
não foi erodida pelo transcurso do tempo. É esse substrato que de novo
vem à tona, com uma energia que três séculos de “secularização” não foram
capazes de diminuir. Para entender a vitória de Bolsonaro, a estranha
multiplicação de bandeiras de Israel em seus comícios e a acentuação do
ativismo político-religioso conservador é preciso voltar a levar a religião
a sério. E empreender um esforço de análise sobre como ela se articula
estreitamente não apenas com uma determinada teologia política, mas
também com uma teologia da história.
Antes de atacar a questão, convém perguntar: e quanto à religiosidade
pessoal de Bolsonaro? Seus discursos parlamentares entre 2004 e 2012 nem
de longe permitem caracterizá-lo como um aliado da “bancada religiosa”.
Desde sempre e por força de sua própria atividade, a visão de mundo
das forças armadas é predominantemente laica, e em momento algum
Bolsonaro chegou a contrariar essa tendência geral. O que suas intervenções
no Congresso revelam são apenas as mesmas grosserias, a mesma obsessão
anticomunista, a mesma representação corporativa dos interesses dos
servidores militares, os mesmos ataques ao Partido dos Trabalhadores.
Nada de Senhor Jesus, de Deus, de idéias-força “terrivelmente evangélicas”,
de encômios aos prodígios de Israel.
Até 2013. Neste ano se deu a eleição do deputado Marcos Feliciano
para a Presidência da Comissão de Direitos Humanos, comissão que
desde sua criação fora controlada pela esquerda. Na condição de membro
suplente e diante da exacerbada polêmica que se seguiu, Bolsonaro não
teve dúvidas em se aliar a Feliciano, de quem declarou à época ter se
tornado verdadeiro “soldado”. A afinidade entre a chamada “pauta dos
costumes” e o ultradireitismo laico logo ficaram evidentes para ambos
os lados. As duas forças viam na continuidade do lulopetismo no poder
uma carta branca para a “subversão” político-ideológica e moral da
sociedade brasileira. Bolsonaro, cuja atuação não se diferenciava da de um
representante sindical, passa a ampliar as interfaces de seu monocórdico
discurso. A partir desse instante multiplicam-se suas críticas à política
2016, p. 36.
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Do Fake ao Fato
nacional de direitos humanos, às minorias sexuais e quaisquer ações
governamentais que visassem fomentar a tolerância. Somente o estilo,
volta e meia namorando com o que há de mais torpe, permaneceu o
mesmo.
A escassa familiaridade do presidente com a Bíblia se evidencia no
fato de que praticamente todas suas menções a este livro – o presidente
não é exatamente um amigo dos livros – se limitam a um versículo:
Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.5 Bolsonaro tem evocado
estas palavras repetidas vezes desde inícios de maio de 2016. Pouco depois,
se fazia “batizar” nas águas do Rio Jordão, pelas mãos do pastor e deputado
Everaldo Dias. Convertido ou não, àquela altura estava claramente selada
sua aliança com a Assembleia de Deus (a que pertencem lideranças
evangélicas como Marcos Feliciano, Everaldo Dias e Silas Malafaia) e, ao
que tudo indica, com setores da Igreja Batista (denominação de sua esposa,
de seu filho Eduardo e do procurador Deltan Dallagnol). Como quer que
seja, importa pouco se Bolsonaro realmente passou a ser animado por uma
convicção religiosa profunda, hipoteticamente deflagrada pelo “milagre”
de ter sobrevivido à tentativa de assassinato de que foi vítima; ou se sua
mobilização da tópica cristã não passa de pragmatismo e instinto de
sobrevivência.
Ao submergir nas águas do Jordão, Bolsonaro não passou pela
transfiguração do self que acompanha toda autêntica experiência de
conversão, pois sobram evidências de que seu obsessivo anti-humanismo
se mantém rigorosamente o mesmo. O que ele fez foi abrir para si, num
gesto, o caminho que pavimentaria a conquista senão da eleição, pelo
menos do voto religioso. Temos de reconhecer, de toda forma, que
arquétipos poderosos podem tê-lo beneficiado. Ignorar “o potencial
político das metáforas teológicas” é ingenuidade que já não nos podemos
permitir.6 Da mesma forma, não pode ser considerado um detalhe, num
país de maioria cristã, que o segundo nome de um político signifique “o
ungido”. A frequência com que Bolsonaro cita João 8:32 terá reavivado
em muita gente a memória daquelas passagens em que Cristo adverte os
que, em segredo, planejam tirar-lhe a vida.7 Diga-se de passagem que esta
clareza não faltou ao próprio Bolsonaro, que, ainda no leito do hospital,
teria dito ao empresário Paulo Marinho: “Agora não precisamos fazer
mais nada”.
5 BÍBLIA de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002, Jo 8:32.
6 TAUBES, Jacob. La teología política de Pablo. Madrid: Trotta, 2007a, p. 84.
7 BÍBLIA de Jerusalém, Jo 7:1; 7:19; 8:37.
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Bruna Klem, Mateus Pereira, Valdei Araujo (org.)
II
Mas tudo o que foi dito até agora sequer arranha o cerne de nosso
problema, e a razão é simples. O arco de alianças teológico-político
que contribuiu para a vitória de Bolsonaro é bem mais diversificado,
contraditório e instável do que parece. Tomemos o caso do procurador
Deltan Dallagnol. Figura de proa da operação Lava-Jato, ele fez em
princípios de 2017 uma palestra na Igreja Batista da Lagoinha de Belo
Horizonte em defesa das dez medidas contra a corrupção. Dallagnol
valeu-se do exemplo de Neemias, personagem bíblico que toma para si
a missão de reconstruir as muralhas de Jerusalém. Com a desenvoltura e
o didatismo de um pastor de almas, o procurador da República explica
que “Neemias deu um passo além”, que não se limitou a jejuar e orar,
que “ele agiu”. Reerguer os muros da cidade significa apartá-la de tudo
o que possa contaminar sua pureza original. Caso a comunidade política
pretenda recobrar seu vigor, sua virtude perdida, livrar-se da corrupção,
uma barreira deve voltar a existir. Somente ela torna possível a separação
entre sagrado e profano, puro e impuro.
Pode-se ver nesse discurso a expressão daquilo que o ex-presidente
Lula, referindo-se precisamente a Dallagnol, classificou de “messianismo
ignorante”? O recurso ao exemplo bíblico não era central na exposição feita
em Belo Horizonte nem apontou para um grand finale quiliástico, mas
visava apenas reforçar uma reflexão de certo modo cartesiana, sociológica
até, da questão. Quando Dallagnol diz à assembleia que “vivemos hoje
num país sem muros, um país exposto à corrupção e à impunidade”,
seu objetivo é dar peso ao argumento de que uma solução eficaz para o
problema não depende de fé ou de uma reviravolta dos valores, mas sim
da adoção de um dispositivo racional-legal (a alteração da lei penal).
Passados dois anos, a publicização do conluio existente entre o então juiz
Sérgio Moro e os procuradores da Lava-Jato gerou um inegável desgaste na
imagem do jovem procurador junto aos evangélicos, como dão a perceber
as listas de comentários de inúmeros sítios da internet. Nada mais instável
que a autoridade moral, quando não é continuamente confirmada pela
coerência entre o discurso e o agir, quando a pureza das intenções que
se supunha existir é posta em dúvida. É inegável que o grande projeto de
redenção da política brasileira, de pôr de pé a muralha da nova Jerusalém,
assumiu em determinados momentos feições claramente religiosas e
messiânicas, mas isso não significa que o discurso lavajatista tenha feito
8
8 El País, 28 abr. 2019.
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Do Fake ao Fato
uso consciente ou sistemático de metáforas bíblicas. Não o fez. De toda
forma, está igualmente claro que o recurso a heróis da fé como Neemias e
Gedeão nunca é o bastante. A característica mais singular da dominação
carismática, como ensina Weber, é tanto sua potência “revolucionária”
quanto sua extrema labilidade. Um passo em falso e “o portador pode
perder o carisma”. Atingido esse ponto, “sua missão está extinta, e a
esperança aguarda a procura de um novo portador”.9
À exceção de Lula, seria enganoso tentar ler o contexto atual por
meio do conceito de dominação carismática. Ele não se aplica a Dallagnol.
E muito menos a Bolsonaro ou a Moro, nos quais – para ficar apenas num
aspecto da questão – a absoluta ausência do dom da fala é demasiado
evidente para ser negada. O que deveria chamar nossa atenção, isso sim, é
o advento de um “psiquismo escatológico”10 de novo tipo, bem como seu
avanço em setores representativos do protestantismo brasileiro.11
Este não é o lugar para nos perguntarmos se ao abraçar a crítica
ao humanismo e aos direitos humanos como um mero aparato retórico
“ocidental”, parte da nossa intelectualidade não terá contribuído, a seu
modo, para que tais princípios não tenham se difundido e estabelecido
como seria desejável após a promulgação da Carta de 1988. Deixemos esta
questão de lado e nos voltemos para uma outra, bem mais candente. Como
compreender que a explícita negação da dignidade humana, a apologia da
Ditadura Militar e até mesmo da tortura sejam consideradas “compatíveis”
com aquilo que, numa época mais otimista que a nossa, se costumava
chamar de “a ética do Evangelho”?
Tal pergunta é perfeitamente válida de um ponto de vista religioso e
moral, mas o historiador sabe que com base em argumentos desse tipo não
se chega muito longe. Houve quem sustentasse, por exemplo, a hipótese
de que a religiosidade instrumental de candidatos ávidos de atrair para si
o voto das igrejas poderia levar a um “efeito fariseu”, isto é, a uma perda
súbita de apoio tão logo se evidenciasse o caráter oportunista de certas
expressões exteriores de fé. Pierucci entendeu ser esta a razão da derrota
9 WEBER, Max. Economia e sociedade, v. 2. Brasília: Ed. UnB, 1999, p. 326.
10 DUPRONT, Alphonse. Du sacré: Croisades et pèlerinages, images et langages. Paris:
Gallimard, 1987, p. 270.
11 Nos precipitamos ao insistir, há alguns anos, numa perda de plausibilidade do
profetismo e da escatologia na sociedade moderna. Uma avaliação mais serena teria mostrado
como a tendência ao escatológico está fortemente difundida e enraizada no Brasil, inclusive
entre acadêmicos e intelectuais. O fato de um autor como Walter Benjamin ser muito mais lido
e estudado nas universidades brasileiras que nas alemãs fala por si mesmo. MATA, Sérgio da.
História & religião. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 78.
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Bruna Klem, Mateus Pereira, Valdei Araujo (org.)
de José Serra na eleição presidencial de 2010.12 Por que, a ser assim, não
se viu nada de semelhante em 2018? Afinal, qualquer pessoa dotada de
bom senso é capaz de reconhecer o quanto há de aviltante e até mesmo
de blasfemo no uso das palavras de João por alguém como Bolsonaro. Se
o “efeito fariseu” não ocorre, é porque a hipótese é frágil em si mesma.
Primeiramente, porque nem sempre o eleitor está em condições de perceber
se há “uso eleitoral” da religião, especialmente quando uma candidatura é
recomendada por lideranças religiosas reconhecidas. Em segundo lugar,
porque “a mensagem messiânica se encontra no contexto da interpretação
e não na história de uma pessoa”.13 Em outras palavras: argumentos
ad hominem podem alguma coisa contra o carisma, mas nada contra o
psiquismo escatológico. E em terceiro lugar porque, como mostram
incontáveis exemplos, se autodeclarar cristão e ao mesmo tempo empregar
a linguagem e os símbolos da guerra, do bellum sacrum (hoje mobilizado
contra esquerdistas, minorias sexuais, feministas, contraventores, ONGs e
movimentos ecológicos), não é percebido como condição suficiente para a
desqualificação em termos religiosos.14
Ninguém precisa ler muito para saber que a trajetória das religiões
monoteístas nunca esteve livre de episódios sangrentos. Das inúmeras
causas possíveis da neutralização do Evangelho pelos cristãos, fiquemos
em apenas duas. Uma acirrada concorrência interconfessional pode levar
à eclosão de “guerras civis hermenêuticas” no interior da cristandade.
Outra é o eventual deslocamento do eixo teológico do Novo para o Velho
Testamento. Há épocas em que o pêndulo se move na direção do Sermão
da Montanha e do que Troeltsch denominou “comunismo de amor”, caso
da teologia protestante liberal de fins do século XIX ou da teologia da
libertação católica das décadas de 1960-1980. E há épocas, como a Inglaterra
do século XVII, nas quais quem detém a palavra é o “Deus ciumento”,15 o
“Iahweh dos exércitos”16 veterotestamentário. Não se trata aqui de meras
12 Cf. PIERUCCI, Antônio Flávio. Eleição 2010: desmoralização eleitoral do moralismo
religioso. Novos Estudos, v. 89, p. 5-15, 2011.
13 TAUBES, Jacob. Vom Kult zur Kultur. Bausteine zu einer Kritik der historischen
Vernunft. München: Wilhelm Fink, 2007, p. 47.
14 Para São Tomás de Aquino, a pena de morte não era contrária à dignidade do ser
humano porque um assassino já estaria privado de toda dignidade. JOAS, Hans; SPAEMANN,
Robert. Beten bei Nebel. Hat die Glaube eine Zukunft? Freiburg: Herder, 2018, p. 75. O canto
212 do hinário Harpa Cristã, um dos mais populares nas Assembleias de Deus, se inicia com
estes versos: “Os guerreiros se preparam para a grande luta/ É Jesus, o Capitão, que adiante os
levará/ A milícia dos remidos marcha impoluta/ Certa que vitória alcançará!”
15 BÍBLIA de Jerusalém, Ex 34:14.
16 BÍBLIA de Jerusalém, Sl 46:12.
59
Do Fake ao Fato
alegorias poéticas, lembra-nos Christopher Hill, mas de imagens poderosas.
Momentos históricos em que uma profunda divisão corta a sociedade de
alto a baixo, como um rio de fogo, e nos quais “o estudo dos profetas do
Antigo Testamento teria o mesmo efeito de polarização, de exclusão dos
compromissos e mediações” que estamos a assistir.17 Como na Guerra dos
Camponeses, quando um Thomas Müntzer se permitiu reprovar Lutero
por ter esquecido o Cristo duro, ter esquecido a ira.
É num período assim que nos encontramos. Parodiando Weber,18
talvez se possa dizer que o que está em curso nos meios evangélicos é o
estabelecimento de um Brazilian Hebraism. O que ajuda a explicar, como
veremos adiante, a multiplicação das bandeiras de Israel nos comícios
bolsonaristas (gesto que o próprio Bolsonaro repetiu em junho de 2019 ao
subir no palanque da “Marcha para Jesus”).
Helmuth Plessner observou certa vez que “aos impulsos mais vivos
do radicalismo pertencem, sem dúvida, o cristianismo do Evangelho”.19
Nisso Plessner se engana, pois no quesito radicalidade o Filho jamais
igualou o Pai. O cristão que empunha uma bandeira de Israel ostenta um
signo que, como diria Jacob Taubes, pode ser considerado explosivamente
político. Por detrás dele, se esconde uma controvertida corrente teológica
protestante que começou a ganhar força no começo do século passado.
Suas implicações estão a reclamar maior a atenção dos pesquisadores
brasileiros.
O leitor pensará imediatamente na última investida semiótica
da Igreja Universal do Reino de Deus, com seus Templos de Salomão,
suas fogueiras santas de Israel, seus pastores munidos de quipás e talits.
Inovações que não chegam a surpreender, dado o contexto mais amplo
do pentecostalismo brasileiro. Se elas espelham mudanças teológicas
substanciais, é outra coisa. Em seu livro Plano de poder, de 2008, Edir
Macedo de fato coloca acento em Israel (“célula de tudo o que está planejado
para acontecer”), mas o psiquismo escatológico está ausente. A dimensão
terapêutica e taumatúrgica dos cultos da Universal é cuidadosamente
separada da esfera organizacional e da teologia pública formulada por suas
lideranças. Para Macedo o poder político não é questão de unção divina, ele
emana “do povo”. Seu livro nem de longe tangencia a perigosa tese de Carl
17 HILL, Christopher. A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII... Op. cit., p. 326.
18 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Cia das
Letras, 2004, p. 150.
19 PLESSNER, Helmuth. Límites de la comunidad. Crítica al radicalismo social. Madrid:
Siruela, 2012, p. 36.
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Bruna Klem, Mateus Pereira, Valdei Araujo (org.)
Schmitt de que a soberania expressa “o poder supremo não derivado”;20
pelo contrário, é à teoria contratualista de Locke e Rousseau que se rende
homenagem. Mais ainda, Macedo rejeita os agentes públicos que se
orientam por uma “ótica gestora teocrática”, e defende expressamente a
laicidade do Estado.
A história recente do Brazilian Hebraism, com as consequências
políticas agora à vista de todos, não passa pela igreja de Macedo, mas
por grupos em que sinais exteriores como a arquitetura dos templos ou o
aparato litúrgico não dão a perceber tal inflexão: os batistas e as Assembleias
de Deus. Estes grupos estão fortemente marcados pelo dispensacionalismo,
uma teologia que desde a segunda metade do século XIX se expande
ininterruptamente nos Estados Unidos.21 Suas origens remontam à
Inglaterra da Era Romântica, quando o ex-pastor anglicano John Nelson
Darby passa a irrigar suas tradicionais concepções calvinistas com uma
interpretação renovada de Isaías 32, 1:20. Darby chegou a fazer trabalho
missionário nos Estados Unidos, mas sua doutrina só ganharia um impulso
decisivo com o surgimento de uma nova geração de adeptos conquistados
no Novo Mundo. Um deles, Cyrus Ingerson Scofield, publicou uma
versão anotada da Bíblia em 1909, conhecida como a “Bíblia de Scofield”.
Como seus comentários seguiam de perto as ideias de Darby, será preciso
apresentá-las rapidamente. Para Darby, a rejeição de Cristo pelos judeus
interrompeu por certo tempo o cumprimento das profecias bíblicas. A
história da salvação de Israel foi temporariamente suspensa e, doravante, a
igreja cristã se tornaria sua portadora. As eras em que se divide a história
universal (chamadas “dispensações”) estariam, porém, chegando a seu
termo. Ao fim da dispensação da “graça”, em que nos encontramos hoje, a
humanidade passará por uma série de catástrofes – a “grande tribulação” –,
com o retorno dos justos a Deus – o “arrebatamento”. Estes dois complexos
de eventos míticos povoam fortemente o imaginário evangélico. Os que
restarem na terra amargarão sete anos de sofrimentos terríveis, pois será o
tempo do Anticristo. Ele será enfim derrotado por Cristo, e se seguirão mil
anos de felicidade.22
20 SCHMITT, Carl. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 18.
21 Sendo uma instituição polinucleada, em que o alto grau de centralização organizacional
é virtualmente inexistente, a Assembleia de Deus se caracteriza também por uma grande
diversidade doutrinária interna. Cf. FAJARDO, Maxwell Pinheiro. Assembleia de Deus no
Brasil: uma igreja que cresce enquanto se fragmenta. Azusa: Revista de Estudos Pentecostais,
v. 5, n. 2, p. 161-186, 2014. A influência do dispensacionalismo pode variar consideravelmente
segundo o “ministério” em questão.
22 Alguns dos primeiros seguidores de Darby julgavam que a grande tribulação e o
arrebatamento (não há consenso sobre qual antecede qual) se iniciariam em 1844. Em vista da
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Do Fake ao Fato
Muito resumidamente, as características centrais do
dispensacionalismo são as seguintes: a) Rigorismo extremo na interpretação
dos textos bíblicos. Não há ambivalência ou contradições possíveis, e toda
fuga momentânea para as regiões da alegoria ou da metáfora, de darlhes um sentido que não o imediatamente aparente, implica em crime de
hermenêutica; b) Há um nexo claro, mas não identidade, entre Israel e a
Igreja. A verdadeira Igreja, como comunidade de fé, é “invisível”; ao passo
que Israel, comunidade étnico-político-religiosa, é realidade histórica
concreta; c) Crença no retorno iminente de Cristo, no arrebatamento e no
milênio.23
Esta cultura de leitura fundamentalista e milenarista da Bíblia é
indissociável de uma teologia da história (cujas fases ou dispensações, em
número de sete, são: Inocência, Consciência, Governo Humano, Promessa,
Lei, Graça e Reino) e do que se convencionou denominar sionismo cristão.
À medida em que esta doutrina ganhou força nos meios evangélicos, a
própria política externa norte-americana passou a ser alvo da pressão de
grupos cada vez mais organizados e influentes. Ainda em fins do século
XIX, quando a perseguição aos judeus se intensificou no leste europeu, um
líder dispensacionalista, William E. Backstone, redigiu e enviou (em 1891)
uma petição ao presidente dos Estados Unidos solicitando o empenho do
seu governo em garantir a condução dos perseguidos para a Palestina, uma
vez que “a Palestina não pertence legitimamente aos judeus?”.24 Com todo
este gosto veterotestamentário pelo “Iahweh dos exércitos”, não surpreende
que grupos e denominações que abraçaram o dispensacionalismo tenham
abandonado aos poucos suas posições pacifistas para, depois da Segunda
Guerra Mundial, passar a apoiar irrestritamente as ações militares norteamericanas25 e a ocupação dos territórios palestinos pelos israelenses.26
decepção que se seguiu, deixou-se de estabelecer uma data para os eventos que hão de anteceder
o fim dos tempos. Uma das coisas fascinantes na religião, e isso vale sobretudo para a doutrina
calvinista da predestinação e para o milenarismo judaico-cristão, é que a dose certa de incerteza
parece capaz de liberar muito mais energia do que a certeza dogmática. Ninguém traduziu tão
bem este princípio quanto o personagem do Coringa numa cena de Batman: O Cavaleiro das
Trevas: “Introduce a little anarchy; upset the established order, and everything becomes chaos”.
23 SWEETNAM, Mark S. Defining Dispensationalism: A Cultural Studies Perspective.
Journal of Religious History, v. 34, n. 2, p. 198, 2010.
24 KIPPENBERG, Hans G. Gewalt als Gottesdienst. Religionskriege im Zeitalter der
Globalisierung. München: C. H. Beck, 2008, p. 153.
25 Cf. ALEXANDER, Paul. Peace to War: Shifting Allegiances in the Assemblies of God.
Scottdale: Herald Press, 2009; SUTTON, Mark A. American Apocalypse: A History of Modern
Evangelicalism. Cambridge: Harvard University Press, 2014.
26 Cf. AMSTUTZ, Mark R. Evangelicals and American Foreign Policy. Oxford: Oxford
University Press, 2014.
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Pesquisadores independentes têm demonstrado como as igrejas que
sustentam e difundem esta teologia têm contado, ao menos desde a
administração Reagan, com um generoso apoio de inúmeras entidades
israelenses e inclusive do próprio governo de Israel.27 Mesmo quando sua
ação no plano interno contribui para o aumento da intolerância em relação
às minorias religiosas, notadamente os muçulmanos,28 reforçando ainda o
“nacionalismo cristão” que, mobilizado em torno de temas como aborto
e o casamento homoafetivo, se mostrou decisivo para a vitória de Donald
Trump nas eleições de 2016.29
A chegada do dispensacionalismo ao Brasil se deu em especial
através das Assembleias de Deus e de missionários ingleses ligados
aos Irmãos de Plymouth. A Bíblia McNair, a primeira “de estudo” dos
evangélicos brasileiros, é claramente inspirada na de Scofield. Em 1956,
o missionário norte-americano Nels Lawrence Olson publicou O plano
divino através dos séculos, obra fundamental para o desenvolvimento
do dispensacionalismo brasileiro. Por meio de associações que não se
poder chamar de teologicamente sutis, Olson insere os eventos mundiais
no esquema sequencial das dispensações e escreve que “jamais houve
purificação do pecado a não ser através do sangue”. Na condição de “nação
santa”, Israel é “especial e mais chegado a Deus”, ou seja, é peça-chave
nesse grande tabuleiro da história onde Deus joga dados. Nessa chave, os
sucessivos conflitos armados árabe-israelenses “não deixam de ser sinais
dos tempos da tribulação que estão chegando”.
À diferença daquelas variedades de religião altamente
intelectualizadas, como as tradições místicas, o espiritismo kadercista ou o
Kulturprotestantismus, “a chave para a popularidade do dispensacionalismo
tem sido uma habilidade de tornar as partes proféticas da Bíblia
compreensíveis para as pessoas comuns e aplicáveis às circunstâncias
atuais”.30 Desse caldo de cultura religiosa quase que naturalmente inclinado
ao sionismo cristão e ao fundamentalismo – e que, graças a uma eficaz
27 Cf. HAYA, Rammy M. The Armageddon Lobby: Dispensationalist Christian Zionism
and the Shapping of US Policy towards Israel-Palestine. Holy Land Studies, v. 5, n. 1, p. 75-95,
2006.
28 Cf. ROBERTSON III, Grayson R. Confronting the “Axis of Evil”: Christian
Dispensationalism, Politics and American Society Post-9/11. Journal of Muslim Minority
Affairs, v. 34, n. 2, p. 111-122, 2014.
29 Cf. GORSKI, Philip. Why Evangelicals voted for Trump: A Critical Cultural Sociology.
American Journal of Cultural Sociology, v. 5, n. 3, p. 338-354, 2017.
30 NOLL, Mark A. The Scandal of the Evangelical Mind. Grand Rapids: William B.
Eerdmans, 1995, p. 119.
63
Do Fake ao Fato
estratégia editorial e midiática, se torna cada vez mais influente também
em nosso país – se pode dizer que está marcado por um context collapse
seletivo: ignora deliberadamente o contexto histórico-literário em que
os textos bíblicos foram produzidos, ao mesmo tempo em que enfatiza a
leitura dos mesmos à luz dos infortúnios e crises do presente, onde busca,
mecânica e obstinadamente, os “sinais dos tempos”.31
III
É sem meias palavras que o respeitado historiador protestante Mark
A. Noll resume os efeitos do dispensacionalismo. Trata-se, diz ele, de
um verdadeiro “desastre intelectual”. Consequência cultural imediata é a
difusão de um persistente anti-intelectualismo, a tendência a reservar “um
espaço reduzido para o debate acadêmico, para o experimento intelectual
e para o matizado discernimento entre tonalidades de opinião” distintas, o
que “reforçou o poder dogmático de pregadores populistas”.32
Relativamente discreto na arena política até pouco mais de uma
década, a hora e a vez do Brazilian Hebraism parece coincidir com a
campanha presidencial de 2010. Subitamente, tudo na disputa entre Dilma
e Serra se resumia a ser contra ou a favor do aborto. O ativismo conservador
das igrejas foi num crescendo, fiel à matriz em que foi gestado. Quando,
anos depois, as bandeiras de Israel começaram a se multiplicar pelas ruas, o
amálgama entre dispensacionalismo e bolsonarismo já estava consumado.
Uma evidência de que esta teologia política radical aparentemente
veio para ficar foi o encontro do presidente com líderes evangélicos em abril
de 2019. Depois de sua previsível menção ao quarto Evangelho, Bolsonaro
agradeceu ao anfitrião Silas Malafaia e atribuiu a um duplo “milagre” o
fato de ter sobrevivido ao atentado de Juiz de Fora e vencido a eleição.
Em sua cobertura do evento, a imprensa deu pouca atenção à presença
de um pastor norte-americano, John Hagee. Apoiador de Donald Trump,
favorável à pena de morte e criador do poderoso lobby Christians United
for Israel, Hagee, que chegou a fazer uso da palavra na ocasião, é uma das
mais influentes e controvertidas figuras do dispensacionalismo. Num
sermão de 2006, ao se referir ao estatuto de Jerusalém, ele afirmou que a
31 Um teólogo como Craig Blaising, ligado ao Dallas Theological Seminary (fundado por
um discípulo de Scofield), admite que o dispensacionalismo “não tinha qualquer consciência
metodológica da historicidade da interpretação” dos textos bíblicos. Citado por NOLL, Mark A.
The Scandal of the Evangelical Mind... Op. cit., p. 129.
32 NOLL, Mark A. The Scandal of the Evangelical Mind... Op. cit., p. 124 et seq.
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Bruna Klem, Mateus Pereira, Valdei Araujo (org.)
questão nada tinha a ver com dinheiro ou com terra. “It is about theology”,
acrescentou. Pois “Israel tem uma aliança de sangue, incondicional, com o
Deus de Abraão, Isaac e Jacó”, segundo a qual aquela terra “lhes pertencerá
para todo o sempre”.33 A intenção do governo Bolsonaro em transferir
a embaixada brasileira para Jerusalém só pode ser adequadamente
compreendida nesse contexto.
É lícito perguntar se nossa análise não terá ignorado as possíveis
reformulações de que esta teologia pode ser alvo num ambiente sóciocultural distinto do de origem, ou ainda se com isso não desprezamos a
força do grupo “olavista” no atual governo. Quanto à primeira questão,
todos os sinais indicam que o Brazilian Hebraism de fato está a repetir,
com notável fidelidade, a dinâmica do seu precedente norte-americano.
Ademais, o psiquismo escatológico extrai a parte mais substancial de sua
força justamente da crise, do infortúnio, da violência coletiva, nos quais lê
os indícios da “grande tribulação” vindoura. Como nenhuma outra forma
de religiosidade, sua lógica interna obedece à máxima do quanto pior,
melhor. A virtual rotinização da crise brasileira permite supor que ele não
recuará tão cedo.
A respeito da segunda questão, uma discussão cuidadosa
demandaria um espaço de que não dispomos. É inegável a influência do
pensamento de Olavo de Carvalho sobre Bolsonaro e seu círculo, algo
que o próprio presidente fez questão de explicitar num jantar realizado
em 19 de março de 2019 em Nova Iorque, quando colocou Carvalho à
sua direita e Steve Bannon à sua esquerda. Porém, é altamente improvável
que o tradicionalismo reacionário de Carvalho possa vir a se mesclar com
a teologia política dispensacionalista. A tensão entre as duas correntes
ficou evidente naquele mesmo mês, quando Silas Malafaia e o “filósofo” da
Virgínia trocaram farpas pelas redes sociais. Para além do sempre complexo
e tenso jogo de acomodação entre os novos donos do poder, devemos
ter em mente que dispensacionalismo e tradicionalismo reacionário são
coisas inteiramente diferentes. Se o primeiro tem um acento claramente
apocalíptico e, portanto, assenta numa concepção linear de tempo,
o segundo é antes um “preterismo” anti-historicista inspirado numa
matriz de pensamento oriental. Se o primeiro é um cristianismo sionista
estreitamente ligado à herança protestante norte-americana, o segundo
33 GALLAHER, Carolyn. Between Armageddon and Hope: Dispensational
Premillennialism and Evangelical Missions in the Middle East. In.: DIMMER, J.; STURM,
T. (eds) Mapping the End Times. American Evangelical Geopolitics and Apocalyptic Visions.
Surrey: Ashgate, 2010, p. 214.
65
Do Fake ao Fato
rejeita este mesmo protestantismo por ter favorecido, historicamente, a
laicização do Estado. Se o primeiro é uma ortodoxia teológica, o segundo é
francamente heterodoxo e até mesmo sincrético. Se o primeiro postula uma
salvação pela fé, o segundo vê na guerra a na violência (também no plano
discursivo) uma força cosmogônica. Se o primeiro deve sua gênese a uma
tradição minimamente pluralista em termos religiosos, o segundo segrega
um anti-pluralismo radical. Se o primeiro é um anti-intelectualismo de
massas, o segundo é um anti-intelectualismo de bacharéis e de aspirantes
a bacharéis.
O tradicionalismo reacionário de Carvalho se orienta não por
uma teologia cristã mas por intelectuais antimodernistas (Eric Voegelin)
e sobretudo por representantes do fascismo esotérico do Entreguerras
como René Guénon, Julius Evola, Mircea Eliade e Georges Dumézil,34
cuja admiração ele aliás divide com seus pares Alexander Dugin e Steve
Bannon (já devidamente desfenestrados pelos atuais ocupantes do Kremlin
e da Casa Branca). Avessos a quaisquer valores modernos, saudosos do
“eterno retorno” e de uma mítica sociedade estamental onde guerreiros
e sacerdotes dividem entre si o poder sobre as massas, Carvalho, Dugin
e Bannon se alimentam de doutrinas que, segundo o autorizado juízo de
Jacob Taubes, nada contém de autenticamente cristãs. Do fascismo que
negam professar, mas com o qual intimamente se identificam, se pode dizer
o mesmo que este grande erudito observou a respeito do nazismo – que é
um paganismo, Heidentum.35 Em outras palavras, dispensacionalismo e
tradicionalismo reacionário são sistemas irreconciliáveis: um é a negação
do outro. O surgimento da escatologia “implodiu o simbolismo circular
de uma natureza baseada no eterno retorno, e que caracterizava a ordem
social dos grandes impérios do antigo Oriente”.36 Nada permite supor que
a tensão entre os dois grupos diminuirá, e muito menos que os livros de
Carvalho possam vir a se transformar num simulacro de Bíblia, a não ser
no interior dos fanáticos conventículos que se formaram ao seu redor.
34 Cf. GROTTANELLI, Cristiano. War-time Connections: Dumézil and Eliade, Eliade and
Schmitt, Schmitt and Evola, Drieu La Rochelle and Dumézil. In.: JUNGINGER, H. (ed.) The
Study of Religion under the Impact of Fascism. Leiden: Brill, 2008, p. 303-314.
35 O mais correto seria talvez caracterizar o olavismo como um neo-paganismo, uma vez
que o autêntico paganismo, onde quer que tenha existido, sempre se caracterizou por uma
“excepcional virtude de tolerância”. AUGÉ, Marc. Génie du paganisme. Paris: Gallimard,
1982, p. 78. Evitamos o prefixo apenas para ressaltar a profunda antinomia existente entre
as concepções de tempo que animam o dispensacionalismo e o tradicionalismo reacionário
olavista.
36 TAUBES, Jacob. Apokalypse und Politik. Aufsätze, Kritiken und kleinere Schriften.
München: Wilhelm Fink, 2017, p. 129 et seq.
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Bruna Klem, Mateus Pereira, Valdei Araujo (org.)
Como acreditamos ter demonstrado, o milenarismo
dispensacionalista não dá margem a menos preocupação, mas é preciso
reconhecer que ele – à própria revelia – carrega uma decisiva ambivalência
política dentro de si. Esta ambivalência está inscrita no núcleo mesmo do
cristianismo.37 Depois de percorrer a trajetória multissecular da igreja,
Troeltsch conclui que “uma doutrina puramente e incondicionalmente
conservadora [...] nunca pode ser produzida por ela”.38 Casos como os de
Marina Silva, Benedita da Silva, do médico e prêmio Nobel da Paz Dennis
Mukwege, da ascendente teologia do “dispensacionalismo progressivo”
ou de um grupo como Pentecostals and Charismatics for Peace and Justice
mostram que mesmo no interior das Assembleias de Deus é impossível
coibir o nascimento de flores.
O obscurantismo, venha de onde vier, só pode ser eficazmente
combatido por meio do esclarecimento e de um consenso abrangente em
torno da dignidade e liberdade a que tem direito todo ser humano. Como
incrementar a difusão destes valores civilizatórios? Eis uma possibilidade
entre muitas: como o Brasil dificilmente há de seguir o exemplo de
países onde a teologia, tanto católica quanto reformada, é ensinada em
universidades e não no encapsulado mundo das próprias igrejas, caberia
incentivar e fortalecer institucionalmente os nossos cursos de graduação
e pós-graduação em Ciências da Religião. Deus é um assunto demasiado
importante para ser deixado a cargo somente dos que nele creem.
Não poderei concluir estas reflexões sem tocar numa última questão,
uma questão teológica. Se, no curto prazo, a causa dos evangélicos ganha
força aliando-se ao que há de mais reacionário em nossa sociedade, não
será lícito supor que, no longo prazo, o ônus desta vexaminosa aliança
possa vir a ser pago na forma de uma irreversível perda de credibilidade?
Exemplos como o dos Cristãos Alemães e das lideranças católicas que
se tornaram cúmplices da destruição do Estado de Direito por Adolf
Hitler atestam a volatilidade do capital moral, da legitimidade enfim, de
que acreditam dispor as instituições religiosas. Quando os descaminhos
atingem tal magnitude, a consequência necessária é que elas próprias, não
a modernidade, se tornam as grandes fiadoras do indiferentismo religioso
e da “secularização”.
37 Cf. TROELTSCH, Ernst. The Social Teachings of the Christian Churches. London:
George Allen & Unwin, 1931; BENZ, Ernst. Norm und Heiliger Geist in der Geschichte des
Christentums. Eranos Jahrbuch, v. 43, p. 137-182, 1977.
38 TROELTSCH, Ernst. The Social Teachings of the Christian Churches... Op. cit., p. 86,
grifo nosso.
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Do Fake ao Fato
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