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A teologia política do governo Bolsonaro

2020

"The Political Theology of Bolsonaro Administration", in Klein, B.; Araújo, V.; Pereira, M. (eds.) Do fake ao fato: (des)atualizando Bolsonaro. Vitória: Milfontes, 2020, p. 53-69

Bruna Klem Mateus Pereira Valdei Araujo (Organizadores) Do Fake ao Fato des(atualizando) Bolsonaro Editora Milfontes Vitória, 2020 A teologia política do governo Bolsonaro Sérgio da Mata1 I “O verdadeiro, único e mais profundo tema da história do mundo e do ser humano, ao qual todos os outros se subordinam, é o conflito entre crença e descrença”. É possível que, em seu sentido original, as palavras de Goethe em Israel no deserto expressassem mais a tendência romântica para a hipérbole do que um vaticínio histórico-universal. Dois séculos depois, elas se ajustam, com uma perfeição que se diria trágica, à nossa situação atual. No Brasil, a tensão latente produzida por uma nova configuração teológico-política vem se acentuando desde a campanha presidencial de 2010, para atingir seu ponto alto, ou mais baixo – tudo é questão de perspectiva – na eleição de 2018. Anunciado o resultado da apuração, a primeira manifestação pública do novo presidente adquiriu contornos sem precedentes na história do Brasil republicano. Formou-se um semi-círculo em volta de Jair Bolsonaro, e ninguém que tenha acompanhado a cena ao vivo teve dúvidas que o que se seguiria em instantes não seria uma primeira palavra à nação ou ao candidato derrotado, mas uma prece. “A Tua palavra diz que quem unge a autoridade é Deus”, disse o então senador Magno Malta, “e o Senhor ungiu Jair Bolsonaro”. Num brevíssimo discurso, Bolsonaro jurou defender a democracia: “Isso é uma promessa, não de um partido, não é a palavra vã de um homem; é um juramento a Deus”. Ao fundo, alguém se lembrou de levantar a bandeira do Brasil. A ausência do futuro ministro Paulo Guedes, fiador da aproximação do vencedor com o “mercado”, não chegou a ser notada. Quatro anos antes, em inícios de 2014, eu tivera a ideia de oferecer em minha universidade uma disciplina intitulada A Bíblia: introdução a uma matriz do pensamento ocidental. Minha intenção era revisitar o texto bíblico a partir de uma literatura de qualidade, admitindo como óbvia a premissa de que quem não estiver disposto a conhecer melhor este livro, sua história e os efeitos que produz, já não está em condições de entender o povo brasileiro. Divertia-me a ideia de ver os alunos passando furtivamente pelos corredores com aquele incômodo livro debaixo do braço, e nem de longe me perturbava a possibilidade de tornar-me alvo de comentários 1 Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto e pesquisador do CNPq. 53 Do Fake ao Fato irônicos dos meus colegas de departamento. Eu pretendia apenas seguir a lição contida numa deliciosa anedota contada por Christopher Hill. Quando perguntaram ao historiador Jack Fisher o que se deveria ler sobre história econômica e social da Inglaterra nos séculos XVI e XVII, este respondeu: “Se você realmente deseja compreender este período, vá para casa e leia a Bíblia”.2 Nenhuma analogia possível, é claro, entre a Inglaterra dos Stuart e o Brasil de Dilma Roussef, salvo num ponto: a inequívoca centralidade cultural do texto bíblico para uma parcela significativa da população. Supreendentemente ou não, houve um bom número de inscritos, e aos poucos me dei conta de que os alunos é que me ensinavam sobre a Bíblia, não eu a eles. Animados pelos textos complementares de autores como Jean Bottéro, Max Weber, Rudolf Otto, Karl Löwith, Adolf von Harnack e Northrop Frye, nossas discussões eram sempre animadas, sem interesse outro que não o puramente intelectual. Guiando-nos por um saudável agnosticismo metodológico, encaramos a exuberante simbologia do Gênesis e do Apocalipse, a teodiceia de Jó, a energia revolucionária de Isaías, a delicada sensualidade do Cântico dos Cânticos e, como não poderia deixar de ser, a teologia política de Paulo. Hoje percebo melhor o forte acento veterotestamentário do curso, o que de toda forma já expressava nossa sinergia com o contexto religioso mais amplo. Iniciativas assim continuam raras porque – coisa estranha – o estudo das religiões foi quase que inteiramente abandonado pelos historiadores brasileiros. A “virada linguística” enchia-nos de esperanças de que, numa espécie de fiat às avessas, tudo aquilo sobre o que deixássemos de falar deixaria também de existir. Dessa forma, aceitou-se com notável rapidez a grande narrativa hartoguiana sobre a “perda” de futuro sem que se percebesse que o futuro cuja plausibilidade evanescera fora somente o das filosofias da história.3 O erro crucial da tese do “presentismo” é também, em última análise, o erro da esquerda em geral – o de não ter tido olhos para as constantes reconfigurações religiosas, poderosas muitas delas, do futuro. Mais realista, um experiente jornalista do Le Monde, Jean Birnbaum, constatou que “sa [da esquerda] culture s’est toutefois largement bâtie sur une volonté d’éradication du religieux”.4 O silence religieux de que fala seu 2 HILL, Christopher. A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 24. 3 Cf. HARTOG, François. Regimes de historicidade. Presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. 4 BIRNBAUM, Jean. Un silence religieux. La gauche face au djihadisme. Paris: Du Seuil, 54 Bruna Klem, Mateus Pereira, Valdei Araujo (org.) livro se esprairou pela maior parte de nossos departamentos de história, e, com ele, uma profunda incompreensão a respeito da visão de mundo que orienta uma parte significativa, senão a grande maioria, dos brasileiros. Daí a imensa perplexidade que tomou conta de nós ante o resultado da eleição: aquele não parecia um desfecho possível. A infra-estrutura ideológica que dava suporte às filosofias da história não foi erodida pelo transcurso do tempo. É esse substrato que de novo vem à tona, com uma energia que três séculos de “secularização” não foram capazes de diminuir. Para entender a vitória de Bolsonaro, a estranha multiplicação de bandeiras de Israel em seus comícios e a acentuação do ativismo político-religioso conservador é preciso voltar a levar a religião a sério. E empreender um esforço de análise sobre como ela se articula estreitamente não apenas com uma determinada teologia política, mas também com uma teologia da história. Antes de atacar a questão, convém perguntar: e quanto à religiosidade pessoal de Bolsonaro? Seus discursos parlamentares entre 2004 e 2012 nem de longe permitem caracterizá-lo como um aliado da “bancada religiosa”. Desde sempre e por força de sua própria atividade, a visão de mundo das forças armadas é predominantemente laica, e em momento algum Bolsonaro chegou a contrariar essa tendência geral. O que suas intervenções no Congresso revelam são apenas as mesmas grosserias, a mesma obsessão anticomunista, a mesma representação corporativa dos interesses dos servidores militares, os mesmos ataques ao Partido dos Trabalhadores. Nada de Senhor Jesus, de Deus, de idéias-força “terrivelmente evangélicas”, de encômios aos prodígios de Israel. Até 2013. Neste ano se deu a eleição do deputado Marcos Feliciano para a Presidência da Comissão de Direitos Humanos, comissão que desde sua criação fora controlada pela esquerda. Na condição de membro suplente e diante da exacerbada polêmica que se seguiu, Bolsonaro não teve dúvidas em se aliar a Feliciano, de quem declarou à época ter se tornado verdadeiro “soldado”. A afinidade entre a chamada “pauta dos costumes” e o ultradireitismo laico logo ficaram evidentes para ambos os lados. As duas forças viam na continuidade do lulopetismo no poder uma carta branca para a “subversão” político-ideológica e moral da sociedade brasileira. Bolsonaro, cuja atuação não se diferenciava da de um representante sindical, passa a ampliar as interfaces de seu monocórdico discurso. A partir desse instante multiplicam-se suas críticas à política 2016, p. 36. 55 Do Fake ao Fato nacional de direitos humanos, às minorias sexuais e quaisquer ações governamentais que visassem fomentar a tolerância. Somente o estilo, volta e meia namorando com o que há de mais torpe, permaneceu o mesmo. A escassa familiaridade do presidente com a Bíblia se evidencia no fato de que praticamente todas suas menções a este livro – o presidente não é exatamente um amigo dos livros – se limitam a um versículo: Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.5 Bolsonaro tem evocado estas palavras repetidas vezes desde inícios de maio de 2016. Pouco depois, se fazia “batizar” nas águas do Rio Jordão, pelas mãos do pastor e deputado Everaldo Dias. Convertido ou não, àquela altura estava claramente selada sua aliança com a Assembleia de Deus (a que pertencem lideranças evangélicas como Marcos Feliciano, Everaldo Dias e Silas Malafaia) e, ao que tudo indica, com setores da Igreja Batista (denominação de sua esposa, de seu filho Eduardo e do procurador Deltan Dallagnol). Como quer que seja, importa pouco se Bolsonaro realmente passou a ser animado por uma convicção religiosa profunda, hipoteticamente deflagrada pelo “milagre” de ter sobrevivido à tentativa de assassinato de que foi vítima; ou se sua mobilização da tópica cristã não passa de pragmatismo e instinto de sobrevivência. Ao submergir nas águas do Jordão, Bolsonaro não passou pela transfiguração do self que acompanha toda autêntica experiência de conversão, pois sobram evidências de que seu obsessivo anti-humanismo se mantém rigorosamente o mesmo. O que ele fez foi abrir para si, num gesto, o caminho que pavimentaria a conquista senão da eleição, pelo menos do voto religioso. Temos de reconhecer, de toda forma, que arquétipos poderosos podem tê-lo beneficiado. Ignorar “o potencial político das metáforas teológicas” é ingenuidade que já não nos podemos permitir.6 Da mesma forma, não pode ser considerado um detalhe, num país de maioria cristã, que o segundo nome de um político signifique “o ungido”. A frequência com que Bolsonaro cita João 8:32 terá reavivado em muita gente a memória daquelas passagens em que Cristo adverte os que, em segredo, planejam tirar-lhe a vida.7 Diga-se de passagem que esta clareza não faltou ao próprio Bolsonaro, que, ainda no leito do hospital, teria dito ao empresário Paulo Marinho: “Agora não precisamos fazer mais nada”. 5 BÍBLIA de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002, Jo 8:32. 6 TAUBES, Jacob. La teología política de Pablo. Madrid: Trotta, 2007a, p. 84. 7 BÍBLIA de Jerusalém, Jo 7:1; 7:19; 8:37. 56 Bruna Klem, Mateus Pereira, Valdei Araujo (org.) II Mas tudo o que foi dito até agora sequer arranha o cerne de nosso problema, e a razão é simples. O arco de alianças teológico-político que contribuiu para a vitória de Bolsonaro é bem mais diversificado, contraditório e instável do que parece. Tomemos o caso do procurador Deltan Dallagnol. Figura de proa da operação Lava-Jato, ele fez em princípios de 2017 uma palestra na Igreja Batista da Lagoinha de Belo Horizonte em defesa das dez medidas contra a corrupção. Dallagnol valeu-se do exemplo de Neemias, personagem bíblico que toma para si a missão de reconstruir as muralhas de Jerusalém. Com a desenvoltura e o didatismo de um pastor de almas, o procurador da República explica que “Neemias deu um passo além”, que não se limitou a jejuar e orar, que “ele agiu”. Reerguer os muros da cidade significa apartá-la de tudo o que possa contaminar sua pureza original. Caso a comunidade política pretenda recobrar seu vigor, sua virtude perdida, livrar-se da corrupção, uma barreira deve voltar a existir. Somente ela torna possível a separação entre sagrado e profano, puro e impuro. Pode-se ver nesse discurso a expressão daquilo que o ex-presidente Lula, referindo-se precisamente a Dallagnol, classificou de “messianismo ignorante”? O recurso ao exemplo bíblico não era central na exposição feita em Belo Horizonte nem apontou para um grand finale quiliástico, mas visava apenas reforçar uma reflexão de certo modo cartesiana, sociológica até, da questão. Quando Dallagnol diz à assembleia que “vivemos hoje num país sem muros, um país exposto à corrupção e à impunidade”, seu objetivo é dar peso ao argumento de que uma solução eficaz para o problema não depende de fé ou de uma reviravolta dos valores, mas sim da adoção de um dispositivo racional-legal (a alteração da lei penal). Passados dois anos, a publicização do conluio existente entre o então juiz Sérgio Moro e os procuradores da Lava-Jato gerou um inegável desgaste na imagem do jovem procurador junto aos evangélicos, como dão a perceber as listas de comentários de inúmeros sítios da internet. Nada mais instável que a autoridade moral, quando não é continuamente confirmada pela coerência entre o discurso e o agir, quando a pureza das intenções que se supunha existir é posta em dúvida. É inegável que o grande projeto de redenção da política brasileira, de pôr de pé a muralha da nova Jerusalém, assumiu em determinados momentos feições claramente religiosas e messiânicas, mas isso não significa que o discurso lavajatista tenha feito 8 8 El País, 28 abr. 2019. 57 Do Fake ao Fato uso consciente ou sistemático de metáforas bíblicas. Não o fez. De toda forma, está igualmente claro que o recurso a heróis da fé como Neemias e Gedeão nunca é o bastante. A característica mais singular da dominação carismática, como ensina Weber, é tanto sua potência “revolucionária” quanto sua extrema labilidade. Um passo em falso e “o portador pode perder o carisma”. Atingido esse ponto, “sua missão está extinta, e a esperança aguarda a procura de um novo portador”.9 À exceção de Lula, seria enganoso tentar ler o contexto atual por meio do conceito de dominação carismática. Ele não se aplica a Dallagnol. E muito menos a Bolsonaro ou a Moro, nos quais – para ficar apenas num aspecto da questão – a absoluta ausência do dom da fala é demasiado evidente para ser negada. O que deveria chamar nossa atenção, isso sim, é o advento de um “psiquismo escatológico”10 de novo tipo, bem como seu avanço em setores representativos do protestantismo brasileiro.11 Este não é o lugar para nos perguntarmos se ao abraçar a crítica ao humanismo e aos direitos humanos como um mero aparato retórico “ocidental”, parte da nossa intelectualidade não terá contribuído, a seu modo, para que tais princípios não tenham se difundido e estabelecido como seria desejável após a promulgação da Carta de 1988. Deixemos esta questão de lado e nos voltemos para uma outra, bem mais candente. Como compreender que a explícita negação da dignidade humana, a apologia da Ditadura Militar e até mesmo da tortura sejam consideradas “compatíveis” com aquilo que, numa época mais otimista que a nossa, se costumava chamar de “a ética do Evangelho”? Tal pergunta é perfeitamente válida de um ponto de vista religioso e moral, mas o historiador sabe que com base em argumentos desse tipo não se chega muito longe. Houve quem sustentasse, por exemplo, a hipótese de que a religiosidade instrumental de candidatos ávidos de atrair para si o voto das igrejas poderia levar a um “efeito fariseu”, isto é, a uma perda súbita de apoio tão logo se evidenciasse o caráter oportunista de certas expressões exteriores de fé. Pierucci entendeu ser esta a razão da derrota 9 WEBER, Max. Economia e sociedade, v. 2. Brasília: Ed. UnB, 1999, p. 326. 10 DUPRONT, Alphonse. Du sacré: Croisades et pèlerinages, images et langages. Paris: Gallimard, 1987, p. 270. 11 Nos precipitamos ao insistir, há alguns anos, numa perda de plausibilidade do profetismo e da escatologia na sociedade moderna. Uma avaliação mais serena teria mostrado como a tendência ao escatológico está fortemente difundida e enraizada no Brasil, inclusive entre acadêmicos e intelectuais. O fato de um autor como Walter Benjamin ser muito mais lido e estudado nas universidades brasileiras que nas alemãs fala por si mesmo. MATA, Sérgio da. História & religião. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 78. 58 Bruna Klem, Mateus Pereira, Valdei Araujo (org.) de José Serra na eleição presidencial de 2010.12 Por que, a ser assim, não se viu nada de semelhante em 2018? Afinal, qualquer pessoa dotada de bom senso é capaz de reconhecer o quanto há de aviltante e até mesmo de blasfemo no uso das palavras de João por alguém como Bolsonaro. Se o “efeito fariseu” não ocorre, é porque a hipótese é frágil em si mesma. Primeiramente, porque nem sempre o eleitor está em condições de perceber se há “uso eleitoral” da religião, especialmente quando uma candidatura é recomendada por lideranças religiosas reconhecidas. Em segundo lugar, porque “a mensagem messiânica se encontra no contexto da interpretação e não na história de uma pessoa”.13 Em outras palavras: argumentos ad hominem podem alguma coisa contra o carisma, mas nada contra o psiquismo escatológico. E em terceiro lugar porque, como mostram incontáveis exemplos, se autodeclarar cristão e ao mesmo tempo empregar a linguagem e os símbolos da guerra, do bellum sacrum (hoje mobilizado contra esquerdistas, minorias sexuais, feministas, contraventores, ONGs e movimentos ecológicos), não é percebido como condição suficiente para a desqualificação em termos religiosos.14 Ninguém precisa ler muito para saber que a trajetória das religiões monoteístas nunca esteve livre de episódios sangrentos. Das inúmeras causas possíveis da neutralização do Evangelho pelos cristãos, fiquemos em apenas duas. Uma acirrada concorrência interconfessional pode levar à eclosão de “guerras civis hermenêuticas” no interior da cristandade. Outra é o eventual deslocamento do eixo teológico do Novo para o Velho Testamento. Há épocas em que o pêndulo se move na direção do Sermão da Montanha e do que Troeltsch denominou “comunismo de amor”, caso da teologia protestante liberal de fins do século XIX ou da teologia da libertação católica das décadas de 1960-1980. E há épocas, como a Inglaterra do século XVII, nas quais quem detém a palavra é o “Deus ciumento”,15 o “Iahweh dos exércitos”16 veterotestamentário. Não se trata aqui de meras 12 Cf. PIERUCCI, Antônio Flávio. Eleição 2010: desmoralização eleitoral do moralismo religioso. Novos Estudos, v. 89, p. 5-15, 2011. 13 TAUBES, Jacob. Vom Kult zur Kultur. Bausteine zu einer Kritik der historischen Vernunft. München: Wilhelm Fink, 2007, p. 47. 14 Para São Tomás de Aquino, a pena de morte não era contrária à dignidade do ser humano porque um assassino já estaria privado de toda dignidade. JOAS, Hans; SPAEMANN, Robert. Beten bei Nebel. Hat die Glaube eine Zukunft? Freiburg: Herder, 2018, p. 75. O canto 212 do hinário Harpa Cristã, um dos mais populares nas Assembleias de Deus, se inicia com estes versos: “Os guerreiros se preparam para a grande luta/ É Jesus, o Capitão, que adiante os levará/ A milícia dos remidos marcha impoluta/ Certa que vitória alcançará!” 15 BÍBLIA de Jerusalém, Ex 34:14. 16 BÍBLIA de Jerusalém, Sl 46:12. 59 Do Fake ao Fato alegorias poéticas, lembra-nos Christopher Hill, mas de imagens poderosas. Momentos históricos em que uma profunda divisão corta a sociedade de alto a baixo, como um rio de fogo, e nos quais “o estudo dos profetas do Antigo Testamento teria o mesmo efeito de polarização, de exclusão dos compromissos e mediações” que estamos a assistir.17 Como na Guerra dos Camponeses, quando um Thomas Müntzer se permitiu reprovar Lutero por ter esquecido o Cristo duro, ter esquecido a ira. É num período assim que nos encontramos. Parodiando Weber,18 talvez se possa dizer que o que está em curso nos meios evangélicos é o estabelecimento de um Brazilian Hebraism. O que ajuda a explicar, como veremos adiante, a multiplicação das bandeiras de Israel nos comícios bolsonaristas (gesto que o próprio Bolsonaro repetiu em junho de 2019 ao subir no palanque da “Marcha para Jesus”). Helmuth Plessner observou certa vez que “aos impulsos mais vivos do radicalismo pertencem, sem dúvida, o cristianismo do Evangelho”.19 Nisso Plessner se engana, pois no quesito radicalidade o Filho jamais igualou o Pai. O cristão que empunha uma bandeira de Israel ostenta um signo que, como diria Jacob Taubes, pode ser considerado explosivamente político. Por detrás dele, se esconde uma controvertida corrente teológica protestante que começou a ganhar força no começo do século passado. Suas implicações estão a reclamar maior a atenção dos pesquisadores brasileiros. O leitor pensará imediatamente na última investida semiótica da Igreja Universal do Reino de Deus, com seus Templos de Salomão, suas fogueiras santas de Israel, seus pastores munidos de quipás e talits. Inovações que não chegam a surpreender, dado o contexto mais amplo do pentecostalismo brasileiro. Se elas espelham mudanças teológicas substanciais, é outra coisa. Em seu livro Plano de poder, de 2008, Edir Macedo de fato coloca acento em Israel (“célula de tudo o que está planejado para acontecer”), mas o psiquismo escatológico está ausente. A dimensão terapêutica e taumatúrgica dos cultos da Universal é cuidadosamente separada da esfera organizacional e da teologia pública formulada por suas lideranças. Para Macedo o poder político não é questão de unção divina, ele emana “do povo”. Seu livro nem de longe tangencia a perigosa tese de Carl 17 HILL, Christopher. A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII... Op. cit., p. 326. 18 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004, p. 150. 19 PLESSNER, Helmuth. Límites de la comunidad. Crítica al radicalismo social. Madrid: Siruela, 2012, p. 36. 60 Bruna Klem, Mateus Pereira, Valdei Araujo (org.) Schmitt de que a soberania expressa “o poder supremo não derivado”;20 pelo contrário, é à teoria contratualista de Locke e Rousseau que se rende homenagem. Mais ainda, Macedo rejeita os agentes públicos que se orientam por uma “ótica gestora teocrática”, e defende expressamente a laicidade do Estado. A história recente do Brazilian Hebraism, com as consequências políticas agora à vista de todos, não passa pela igreja de Macedo, mas por grupos em que sinais exteriores como a arquitetura dos templos ou o aparato litúrgico não dão a perceber tal inflexão: os batistas e as Assembleias de Deus. Estes grupos estão fortemente marcados pelo dispensacionalismo, uma teologia que desde a segunda metade do século XIX se expande ininterruptamente nos Estados Unidos.21 Suas origens remontam à Inglaterra da Era Romântica, quando o ex-pastor anglicano John Nelson Darby passa a irrigar suas tradicionais concepções calvinistas com uma interpretação renovada de Isaías 32, 1:20. Darby chegou a fazer trabalho missionário nos Estados Unidos, mas sua doutrina só ganharia um impulso decisivo com o surgimento de uma nova geração de adeptos conquistados no Novo Mundo. Um deles, Cyrus Ingerson Scofield, publicou uma versão anotada da Bíblia em 1909, conhecida como a “Bíblia de Scofield”. Como seus comentários seguiam de perto as ideias de Darby, será preciso apresentá-las rapidamente. Para Darby, a rejeição de Cristo pelos judeus interrompeu por certo tempo o cumprimento das profecias bíblicas. A história da salvação de Israel foi temporariamente suspensa e, doravante, a igreja cristã se tornaria sua portadora. As eras em que se divide a história universal (chamadas “dispensações”) estariam, porém, chegando a seu termo. Ao fim da dispensação da “graça”, em que nos encontramos hoje, a humanidade passará por uma série de catástrofes – a “grande tribulação” –, com o retorno dos justos a Deus – o “arrebatamento”. Estes dois complexos de eventos míticos povoam fortemente o imaginário evangélico. Os que restarem na terra amargarão sete anos de sofrimentos terríveis, pois será o tempo do Anticristo. Ele será enfim derrotado por Cristo, e se seguirão mil anos de felicidade.22 20 SCHMITT, Carl. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 18. 21 Sendo uma instituição polinucleada, em que o alto grau de centralização organizacional é virtualmente inexistente, a Assembleia de Deus se caracteriza também por uma grande diversidade doutrinária interna. Cf. FAJARDO, Maxwell Pinheiro. Assembleia de Deus no Brasil: uma igreja que cresce enquanto se fragmenta. Azusa: Revista de Estudos Pentecostais, v. 5, n. 2, p. 161-186, 2014. A influência do dispensacionalismo pode variar consideravelmente segundo o “ministério” em questão. 22 Alguns dos primeiros seguidores de Darby julgavam que a grande tribulação e o arrebatamento (não há consenso sobre qual antecede qual) se iniciariam em 1844. Em vista da 61 Do Fake ao Fato Muito resumidamente, as características centrais do dispensacionalismo são as seguintes: a) Rigorismo extremo na interpretação dos textos bíblicos. Não há ambivalência ou contradições possíveis, e toda fuga momentânea para as regiões da alegoria ou da metáfora, de darlhes um sentido que não o imediatamente aparente, implica em crime de hermenêutica; b) Há um nexo claro, mas não identidade, entre Israel e a Igreja. A verdadeira Igreja, como comunidade de fé, é “invisível”; ao passo que Israel, comunidade étnico-político-religiosa, é realidade histórica concreta; c) Crença no retorno iminente de Cristo, no arrebatamento e no milênio.23 Esta cultura de leitura fundamentalista e milenarista da Bíblia é indissociável de uma teologia da história (cujas fases ou dispensações, em número de sete, são: Inocência, Consciência, Governo Humano, Promessa, Lei, Graça e Reino) e do que se convencionou denominar sionismo cristão. À medida em que esta doutrina ganhou força nos meios evangélicos, a própria política externa norte-americana passou a ser alvo da pressão de grupos cada vez mais organizados e influentes. Ainda em fins do século XIX, quando a perseguição aos judeus se intensificou no leste europeu, um líder dispensacionalista, William E. Backstone, redigiu e enviou (em 1891) uma petição ao presidente dos Estados Unidos solicitando o empenho do seu governo em garantir a condução dos perseguidos para a Palestina, uma vez que “a Palestina não pertence legitimamente aos judeus?”.24 Com todo este gosto veterotestamentário pelo “Iahweh dos exércitos”, não surpreende que grupos e denominações que abraçaram o dispensacionalismo tenham abandonado aos poucos suas posições pacifistas para, depois da Segunda Guerra Mundial, passar a apoiar irrestritamente as ações militares norteamericanas25 e a ocupação dos territórios palestinos pelos israelenses.26 decepção que se seguiu, deixou-se de estabelecer uma data para os eventos que hão de anteceder o fim dos tempos. Uma das coisas fascinantes na religião, e isso vale sobretudo para a doutrina calvinista da predestinação e para o milenarismo judaico-cristão, é que a dose certa de incerteza parece capaz de liberar muito mais energia do que a certeza dogmática. Ninguém traduziu tão bem este princípio quanto o personagem do Coringa numa cena de Batman: O Cavaleiro das Trevas: “Introduce a little anarchy; upset the established order, and everything becomes chaos”. 23 SWEETNAM, Mark S. Defining Dispensationalism: A Cultural Studies Perspective. Journal of Religious History, v. 34, n. 2, p. 198, 2010. 24 KIPPENBERG, Hans G. Gewalt als Gottesdienst. Religionskriege im Zeitalter der Globalisierung. München: C. H. Beck, 2008, p. 153. 25 Cf. ALEXANDER, Paul. Peace to War: Shifting Allegiances in the Assemblies of God. Scottdale: Herald Press, 2009; SUTTON, Mark A. American Apocalypse: A History of Modern Evangelicalism. Cambridge: Harvard University Press, 2014. 26 Cf. AMSTUTZ, Mark R. Evangelicals and American Foreign Policy. Oxford: Oxford University Press, 2014. 62 Bruna Klem, Mateus Pereira, Valdei Araujo (org.) Pesquisadores independentes têm demonstrado como as igrejas que sustentam e difundem esta teologia têm contado, ao menos desde a administração Reagan, com um generoso apoio de inúmeras entidades israelenses e inclusive do próprio governo de Israel.27 Mesmo quando sua ação no plano interno contribui para o aumento da intolerância em relação às minorias religiosas, notadamente os muçulmanos,28 reforçando ainda o “nacionalismo cristão” que, mobilizado em torno de temas como aborto e o casamento homoafetivo, se mostrou decisivo para a vitória de Donald Trump nas eleições de 2016.29 A chegada do dispensacionalismo ao Brasil se deu em especial através das Assembleias de Deus e de missionários ingleses ligados aos Irmãos de Plymouth. A Bíblia McNair, a primeira “de estudo” dos evangélicos brasileiros, é claramente inspirada na de Scofield. Em 1956, o missionário norte-americano Nels Lawrence Olson publicou O plano divino através dos séculos, obra fundamental para o desenvolvimento do dispensacionalismo brasileiro. Por meio de associações que não se poder chamar de teologicamente sutis, Olson insere os eventos mundiais no esquema sequencial das dispensações e escreve que “jamais houve purificação do pecado a não ser através do sangue”. Na condição de “nação santa”, Israel é “especial e mais chegado a Deus”, ou seja, é peça-chave nesse grande tabuleiro da história onde Deus joga dados. Nessa chave, os sucessivos conflitos armados árabe-israelenses “não deixam de ser sinais dos tempos da tribulação que estão chegando”. À diferença daquelas variedades de religião altamente intelectualizadas, como as tradições místicas, o espiritismo kadercista ou o Kulturprotestantismus, “a chave para a popularidade do dispensacionalismo tem sido uma habilidade de tornar as partes proféticas da Bíblia compreensíveis para as pessoas comuns e aplicáveis às circunstâncias atuais”.30 Desse caldo de cultura religiosa quase que naturalmente inclinado ao sionismo cristão e ao fundamentalismo – e que, graças a uma eficaz 27 Cf. HAYA, Rammy M. The Armageddon Lobby: Dispensationalist Christian Zionism and the Shapping of US Policy towards Israel-Palestine. Holy Land Studies, v. 5, n. 1, p. 75-95, 2006. 28 Cf. ROBERTSON III, Grayson R. Confronting the “Axis of Evil”: Christian Dispensationalism, Politics and American Society Post-9/11. Journal of Muslim Minority Affairs, v. 34, n. 2, p. 111-122, 2014. 29 Cf. GORSKI, Philip. Why Evangelicals voted for Trump: A Critical Cultural Sociology. American Journal of Cultural Sociology, v. 5, n. 3, p. 338-354, 2017. 30 NOLL, Mark A. The Scandal of the Evangelical Mind. Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1995, p. 119. 63 Do Fake ao Fato estratégia editorial e midiática, se torna cada vez mais influente também em nosso país – se pode dizer que está marcado por um context collapse seletivo: ignora deliberadamente o contexto histórico-literário em que os textos bíblicos foram produzidos, ao mesmo tempo em que enfatiza a leitura dos mesmos à luz dos infortúnios e crises do presente, onde busca, mecânica e obstinadamente, os “sinais dos tempos”.31 III É sem meias palavras que o respeitado historiador protestante Mark A. Noll resume os efeitos do dispensacionalismo. Trata-se, diz ele, de um verdadeiro “desastre intelectual”. Consequência cultural imediata é a difusão de um persistente anti-intelectualismo, a tendência a reservar “um espaço reduzido para o debate acadêmico, para o experimento intelectual e para o matizado discernimento entre tonalidades de opinião” distintas, o que “reforçou o poder dogmático de pregadores populistas”.32 Relativamente discreto na arena política até pouco mais de uma década, a hora e a vez do Brazilian Hebraism parece coincidir com a campanha presidencial de 2010. Subitamente, tudo na disputa entre Dilma e Serra se resumia a ser contra ou a favor do aborto. O ativismo conservador das igrejas foi num crescendo, fiel à matriz em que foi gestado. Quando, anos depois, as bandeiras de Israel começaram a se multiplicar pelas ruas, o amálgama entre dispensacionalismo e bolsonarismo já estava consumado. Uma evidência de que esta teologia política radical aparentemente veio para ficar foi o encontro do presidente com líderes evangélicos em abril de 2019. Depois de sua previsível menção ao quarto Evangelho, Bolsonaro agradeceu ao anfitrião Silas Malafaia e atribuiu a um duplo “milagre” o fato de ter sobrevivido ao atentado de Juiz de Fora e vencido a eleição. Em sua cobertura do evento, a imprensa deu pouca atenção à presença de um pastor norte-americano, John Hagee. Apoiador de Donald Trump, favorável à pena de morte e criador do poderoso lobby Christians United for Israel, Hagee, que chegou a fazer uso da palavra na ocasião, é uma das mais influentes e controvertidas figuras do dispensacionalismo. Num sermão de 2006, ao se referir ao estatuto de Jerusalém, ele afirmou que a 31 Um teólogo como Craig Blaising, ligado ao Dallas Theological Seminary (fundado por um discípulo de Scofield), admite que o dispensacionalismo “não tinha qualquer consciência metodológica da historicidade da interpretação” dos textos bíblicos. Citado por NOLL, Mark A. The Scandal of the Evangelical Mind... Op. cit., p. 129. 32 NOLL, Mark A. The Scandal of the Evangelical Mind... Op. cit., p. 124 et seq. 64 Bruna Klem, Mateus Pereira, Valdei Araujo (org.) questão nada tinha a ver com dinheiro ou com terra. “It is about theology”, acrescentou. Pois “Israel tem uma aliança de sangue, incondicional, com o Deus de Abraão, Isaac e Jacó”, segundo a qual aquela terra “lhes pertencerá para todo o sempre”.33 A intenção do governo Bolsonaro em transferir a embaixada brasileira para Jerusalém só pode ser adequadamente compreendida nesse contexto. É lícito perguntar se nossa análise não terá ignorado as possíveis reformulações de que esta teologia pode ser alvo num ambiente sóciocultural distinto do de origem, ou ainda se com isso não desprezamos a força do grupo “olavista” no atual governo. Quanto à primeira questão, todos os sinais indicam que o Brazilian Hebraism de fato está a repetir, com notável fidelidade, a dinâmica do seu precedente norte-americano. Ademais, o psiquismo escatológico extrai a parte mais substancial de sua força justamente da crise, do infortúnio, da violência coletiva, nos quais lê os indícios da “grande tribulação” vindoura. Como nenhuma outra forma de religiosidade, sua lógica interna obedece à máxima do quanto pior, melhor. A virtual rotinização da crise brasileira permite supor que ele não recuará tão cedo. A respeito da segunda questão, uma discussão cuidadosa demandaria um espaço de que não dispomos. É inegável a influência do pensamento de Olavo de Carvalho sobre Bolsonaro e seu círculo, algo que o próprio presidente fez questão de explicitar num jantar realizado em 19 de março de 2019 em Nova Iorque, quando colocou Carvalho à sua direita e Steve Bannon à sua esquerda. Porém, é altamente improvável que o tradicionalismo reacionário de Carvalho possa vir a se mesclar com a teologia política dispensacionalista. A tensão entre as duas correntes ficou evidente naquele mesmo mês, quando Silas Malafaia e o “filósofo” da Virgínia trocaram farpas pelas redes sociais. Para além do sempre complexo e tenso jogo de acomodação entre os novos donos do poder, devemos ter em mente que dispensacionalismo e tradicionalismo reacionário são coisas inteiramente diferentes. Se o primeiro tem um acento claramente apocalíptico e, portanto, assenta numa concepção linear de tempo, o segundo é antes um “preterismo” anti-historicista inspirado numa matriz de pensamento oriental. Se o primeiro é um cristianismo sionista estreitamente ligado à herança protestante norte-americana, o segundo 33 GALLAHER, Carolyn. Between Armageddon and Hope: Dispensational Premillennialism and Evangelical Missions in the Middle East. In.: DIMMER, J.; STURM, T. (eds) Mapping the End Times. American Evangelical Geopolitics and Apocalyptic Visions. Surrey: Ashgate, 2010, p. 214. 65 Do Fake ao Fato rejeita este mesmo protestantismo por ter favorecido, historicamente, a laicização do Estado. Se o primeiro é uma ortodoxia teológica, o segundo é francamente heterodoxo e até mesmo sincrético. Se o primeiro postula uma salvação pela fé, o segundo vê na guerra a na violência (também no plano discursivo) uma força cosmogônica. Se o primeiro deve sua gênese a uma tradição minimamente pluralista em termos religiosos, o segundo segrega um anti-pluralismo radical. Se o primeiro é um anti-intelectualismo de massas, o segundo é um anti-intelectualismo de bacharéis e de aspirantes a bacharéis. O tradicionalismo reacionário de Carvalho se orienta não por uma teologia cristã mas por intelectuais antimodernistas (Eric Voegelin) e sobretudo por representantes do fascismo esotérico do Entreguerras como René Guénon, Julius Evola, Mircea Eliade e Georges Dumézil,34 cuja admiração ele aliás divide com seus pares Alexander Dugin e Steve Bannon (já devidamente desfenestrados pelos atuais ocupantes do Kremlin e da Casa Branca). Avessos a quaisquer valores modernos, saudosos do “eterno retorno” e de uma mítica sociedade estamental onde guerreiros e sacerdotes dividem entre si o poder sobre as massas, Carvalho, Dugin e Bannon se alimentam de doutrinas que, segundo o autorizado juízo de Jacob Taubes, nada contém de autenticamente cristãs. Do fascismo que negam professar, mas com o qual intimamente se identificam, se pode dizer o mesmo que este grande erudito observou a respeito do nazismo – que é um paganismo, Heidentum.35 Em outras palavras, dispensacionalismo e tradicionalismo reacionário são sistemas irreconciliáveis: um é a negação do outro. O surgimento da escatologia “implodiu o simbolismo circular de uma natureza baseada no eterno retorno, e que caracterizava a ordem social dos grandes impérios do antigo Oriente”.36 Nada permite supor que a tensão entre os dois grupos diminuirá, e muito menos que os livros de Carvalho possam vir a se transformar num simulacro de Bíblia, a não ser no interior dos fanáticos conventículos que se formaram ao seu redor. 34 Cf. GROTTANELLI, Cristiano. War-time Connections: Dumézil and Eliade, Eliade and Schmitt, Schmitt and Evola, Drieu La Rochelle and Dumézil. In.: JUNGINGER, H. (ed.) The Study of Religion under the Impact of Fascism. Leiden: Brill, 2008, p. 303-314. 35 O mais correto seria talvez caracterizar o olavismo como um neo-paganismo, uma vez que o autêntico paganismo, onde quer que tenha existido, sempre se caracterizou por uma “excepcional virtude de tolerância”. AUGÉ, Marc. Génie du paganisme. Paris: Gallimard, 1982, p. 78. Evitamos o prefixo apenas para ressaltar a profunda antinomia existente entre as concepções de tempo que animam o dispensacionalismo e o tradicionalismo reacionário olavista. 36 TAUBES, Jacob. Apokalypse und Politik. Aufsätze, Kritiken und kleinere Schriften. München: Wilhelm Fink, 2017, p. 129 et seq. 66 Bruna Klem, Mateus Pereira, Valdei Araujo (org.) Como acreditamos ter demonstrado, o milenarismo dispensacionalista não dá margem a menos preocupação, mas é preciso reconhecer que ele – à própria revelia – carrega uma decisiva ambivalência política dentro de si. Esta ambivalência está inscrita no núcleo mesmo do cristianismo.37 Depois de percorrer a trajetória multissecular da igreja, Troeltsch conclui que “uma doutrina puramente e incondicionalmente conservadora [...] nunca pode ser produzida por ela”.38 Casos como os de Marina Silva, Benedita da Silva, do médico e prêmio Nobel da Paz Dennis Mukwege, da ascendente teologia do “dispensacionalismo progressivo” ou de um grupo como Pentecostals and Charismatics for Peace and Justice mostram que mesmo no interior das Assembleias de Deus é impossível coibir o nascimento de flores. O obscurantismo, venha de onde vier, só pode ser eficazmente combatido por meio do esclarecimento e de um consenso abrangente em torno da dignidade e liberdade a que tem direito todo ser humano. Como incrementar a difusão destes valores civilizatórios? Eis uma possibilidade entre muitas: como o Brasil dificilmente há de seguir o exemplo de países onde a teologia, tanto católica quanto reformada, é ensinada em universidades e não no encapsulado mundo das próprias igrejas, caberia incentivar e fortalecer institucionalmente os nossos cursos de graduação e pós-graduação em Ciências da Religião. Deus é um assunto demasiado importante para ser deixado a cargo somente dos que nele creem. Não poderei concluir estas reflexões sem tocar numa última questão, uma questão teológica. Se, no curto prazo, a causa dos evangélicos ganha força aliando-se ao que há de mais reacionário em nossa sociedade, não será lícito supor que, no longo prazo, o ônus desta vexaminosa aliança possa vir a ser pago na forma de uma irreversível perda de credibilidade? Exemplos como o dos Cristãos Alemães e das lideranças católicas que se tornaram cúmplices da destruição do Estado de Direito por Adolf Hitler atestam a volatilidade do capital moral, da legitimidade enfim, de que acreditam dispor as instituições religiosas. Quando os descaminhos atingem tal magnitude, a consequência necessária é que elas próprias, não a modernidade, se tornam as grandes fiadoras do indiferentismo religioso e da “secularização”. 37 Cf. TROELTSCH, Ernst. The Social Teachings of the Christian Churches. London: George Allen & Unwin, 1931; BENZ, Ernst. Norm und Heiliger Geist in der Geschichte des Christentums. Eranos Jahrbuch, v. 43, p. 137-182, 1977. 38 TROELTSCH, Ernst. The Social Teachings of the Christian Churches... Op. cit., p. 86, grifo nosso. 67 Do Fake ao Fato Referências: ALEXANDER, Paul. Peace to War: Shifting Allegiances in the Assemblies of God. Scottdale: Herald Press, 2009. AMSTUTZ, Mark R. Evangelicals and American Foreign Policy. 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