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O PROGRESSISTA DE ONTEM E DO AMANHÃ, MARK LILLA

2019, SEPARAR PARA SER CONQUISTADO

Desde que os gregos deram luz à democracia, expandida pelo ideal iluminista, e tida como base de qualquer sistema político respeitável, os defensores da tríade revolucionária vivem conflitos internos tão (ou até mais) agudos quanto com seus opositores de espectro ideológico. Em seu livro, O Progressista de Ontem e do Amanhã, o professor Mark Lilla, analisando a sociedade norte-americana contemporânea, critica o desagrupamento da esquerda nas chamadas políticas identitárias, traçando um paralelo com a super individualização do ser, e como isso pode gerar uma ruptura no, hoje já tão roto, tecido social. Essa fragmentação de pautas seria, segundo o autor, um dos motivos precípuos da ascensão do fenômeno da antipolítica, o que teria aberto caminho para que nomes avessos, ou de pouquíssimo prestígio político, como Donald Trump e, no Brasil, Jair Bolsonaro, assumissem o protagonismo. O pouco apreço que Lilla dispensa ao que chama de políticas identitárias pode ser melhor compreendido ao observarmos a história política e social dos últimos séculos. A esquerda tem, repetidas vezes e em escala global, perdido espaço no imaginário popular. Diversas vezes o trem da história passou, tal qual cavalo selado, e a esquerda não soube domá-la para si, perdida em insalubres microdivisões. Para um progressista, pode ser bastante frustrante e, por que não, desesperador, ver isso ocorrer novamente. Os ideais que nortearam, durante sucessivas gerações, a juventude em busca da miragem de um mundo mais igualitário, foram trocados por um individualismo tacanho, disfarçado de plena liberdade. E Lilla vê no identitarismo, possivelmente de forma acertada, mais um fator de cisão e não só internamente à esquerda, mas na sociedade, como um todo. Parece mais atraente se autorreferenciar em estéreis diferenças do que na singeleza da humanidade que nos une como corpo social. Contudo, a essa crítica, temos que ficar atentos. As lutas diárias e os muitos avanços obtidos por minorias organizadas, tornam bastante complexo o mero desfazimento de organizações que travam o enfrentamento de forma autônoma, muitas vezes por não encontrar escopo para suas demandas dentro de estruturas já estabelecidas. Se examinado com atenção, o ataque do autor parece menos voltado para os movimentos, em si mesmos, e sim à conjuntura organizacional dos partidos, que geram a

O PROGRESSISTA DE ONTEM E DO AMANHÃ, MARK LILLA SEPARAR PARA SER CONQUISTADO? Silvane Ortiz Desde que os gregos deram a luz à democracia, expandida pelo ideal iluminista, e tida como base de qualquer sistema político respeitável, os defensores da tríade revolucionária vivem conflitos internos tão - ou mais - agudos quanto com seus opositores de espectro ideológico. Em seu livro, O Progressista de Ontem e do Amanhã, o professor Mark Lilla, analisando a sociedade norte-americana contemporânea, critica o desagrupamento da esquerda nas chamadas políticas identitárias, traçando um paralelo com a super individualização do ser, e como isso pode gerar uma ruptura no, hoje já tão roto, tecido social. Essa fragmentação de pautas seria, segundo o autor, um dos motivos precípuos da ascensão do fenômeno da antipolítica, o que teria aberto caminho para que nomes avessos, ou de pouquíssimo prestígio político, como Donald Trump e, no Brasil, Jair Bolsonaro, assumissem o protagonismo. O pouco apreço que Lilla dispensa ao que chama de políticas identitárias pode ser melhor compreendido ao observarmos a história política e social dos últimos séculos. A esquerda tem, repetidas vezes e em escala global, perdido espaço no imaginário popular. Diversas vezes o trem da história passou, tal qual cavalo selado, e a esquerda não soube domá-la para si, perdida em insalubres microdivisões. Para um progressista, pode ser bastante frustrante e, por que não, desesperador, ver isso ocorrer novamente. Os ideais que nortearam, durante sucessivas gerações, a juventude em busca da miragem de um mundo mais igualitário, foram trocados por um individualismo tacanho, disfarçado de plena liberdade. E Lilla vê no identitarismo, possivelmente de forma acertada, mais um fator de cisão e não só internamente à esquerda, mas na sociedade, como um todo. Parece mais atraente se autorreferenciar em estéreis diferenças do que na singeleza da humanidade que nos une como corpo social. Contudo, a essa crítica, temos que ficar atentos. As lutas diárias e os muitos avanços obtidos por minorias organizadas, tornam bastante complexo o mero desfazimento de organizações que travam o enfrentamento de forma autônoma, muitas vezes por não encontrar escopo para suas demandas dentro de estruturas já estabelecidas. Se examinado com atenção, o ataque do autor parece menos voltado para os movimentos, em si mesmos, e sim à conjuntura organizacional dos partidos, que geram a necessidade de criação desses. O modo como a esquerda tem concebido seu pensamento, em seu cerne, nas suas bases, parece não mais conseguir unificar, com propostas coesas, voltadas para o todo, mas sim, gerar uma ânsia por representatividade, quase que individualizada. Nesse contexto, ainda estamos sujeitos à usurpação e subversão que a extrema direita tem realizado de discursos pró direitos humanos, uma bandeira tradicionalmente defendida pela esquerda, inclusive por total desinteresse da direita na matéria. Ocorre que sempre foi mais fácil arregimentar a união popular para um contra-ataque, mesmo quando a ação afrontosa, para o establishment, não seja mais do que darwinismo aplicado às ciências sociais: evolução natural das espécies. Quando camadas da sociedade se sentem aviltadas, nos seus direitos, na sua moral e quando forças políticas (ou pior, pseudopolíticas) conseguem cooptar esse sentimento em prol de sua agenda, o resultado pode ser a total polarização. Quanto mais se caracteriza o outro como abjeto, por suas práticas, preferências, por sua (i)moralidade, mais coeso se torna o repúdio. Elege-se um bode expiatório a ser malhado e visto como “mal do mundo”. Nessa visão dicotômica, pelo ódio às diferenças, o inimigo passa a ser a própria sociedade e contra suas estruturas, fomenta-se um descrédito generalizado. E quando se perde o respeito pelas instituições, colocando em dúvida toda a arquitetura que nos liga como sociedade, fere-se as bases sociais da própria democracia, que pode degenerar-se na mais pura e pérfida demagogia. Para o autor, a receita para se conter esse avanço é a retomada do poder político. Para isso, a aposta deve se dar no que temos em comum, enquanto sociedade, nossa cidadania, e não no que nos separa. É necessário voltar para as bases, entender onde o discurso da extrema direita, das igrejas neopentecostais, foi mais sedutor. Conversar, explicar pontos de vista, tirar dúvidas, não deixar se estigmatizar por omissão. A política de movimentos teria o poder de fazer barulho, mas se quem estiver no topo da cadeia de tomada de decisões, preferir não o ouvir, ou pior, subvertê-lo em cacofonia, estaremos apenas gastando energia, fazendo nossos melhores discursos para uma plateia cativa, sem jamais alcançar as mudanças que são tão prementes.