www.uol.com.br/cultvox
O Cortiço, de Aluísio de Azevedo
Fonte:
AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 30ª ed., São Paulo: Ática, 1997 (Bom Livro).
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações
acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para <
[email protected]>.
Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projeto. Se você quer
ajudar de alguma forma, mande um e-mail para <
[email protected]> e saiba como isso é possível.
O Cortiço
Aluísio de Azevedo
I
João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos, empregado de um
vendeiro que enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e obscura taverna
nos refolhos do bairro do Botafogo; e tanto economizou do pouco que ganhara
nessa dúzia de anos, que, ao retirar-se o patrão para a terra, lhe deixou, em
pagamento de ordenados vencidos, nem só a venda com o que estava dentro,
como ainda um conto e quinhentos em dinheiro.
Proprietário e estabelecido por sua conta, o rapaz atirou-se à labutação ainda
com mais ardor, possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que afrontava
resignado as mais duras privações. Dormia sobre o balcão da própria venda, em
cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estopa cheio de palha. A
comida arranjava-lha, mediante quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua
vizinha, a Bertoleza, crioula trintona, escrava de um velho cego residente em
Juiz de Fora e amigada com um português que tinha uma carroça de mão e fazia
fretes na cidade.
Bertoleza também trabalhava forte; a sua quitanda era a mais bem
afreguesada do bairro. De manhã vendia angu, e à noite peixe frito e iscas de
fígado; pagava de jornal a seu dono vinte mil-réis por mês, e, apesar disso, tinha
de parte quase que o necessário para a alforria. Um dia, porém, o seu homem,
depois de correr meia légua, puxando uma carga superior às suas forças, caiu
morto na rua, ao lado da carroça, estrompado como uma besta.
João Romão mostrou grande interesse por esta desgraça, fez-se até
participante direto dos sofrimentos da vizinha, e com tamanho empenho a
lamentou, que a boa mulher o escolheu para confidente das suas desventuras.
Abriu-se com ele, contou-lhe a sua vida de amofinações e dificuldades. “Seu
senhor comia-lhe a pele do corpo! Não era brinquedo para uma pobre mulher ter
de escarrar pr’ali, todos os meses, vinte mil-réis em dinheiro!” E segredou-lhe
então o que tinha juntado para a sua liberdade e acabou pedindo ao vendeiro que
lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fora roubada por gatunos que
lhe entraram na quitanda pelos fundos.
Daí em diante, João Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro
da crioula. No fim de pouco tempo era ele quem tomava conta de tudo que ela
produzia e era também quem punha e dispunha dos seus pecúlios, e quem se
encarregava de remeter ao senhor os vinte mil-réis mensais. Abriu-lhe logo uma
conta corrente, e a quitandeira, quando precisava de dinheiro para qualquer
coisa, dava um pulo até à venda e recebia-o das mãos do vendeiro, de “Seu
João”, como ela dizia. Seu João debitava metodicamente essas pequenas
quantias num caderninho, em cuja capa de papel pardo lia-se, mal escrito e em
letras cortadas de jornal: “Ativo e passivo de Bertoleza”.
E por tal forma foi o taverneiro ganhando confiança no espírito da mulher,
que esta afinal nada mais resolvia só por si, e aceitava dele, cegamente, todo e
qualquer arbítrio. Por último, se alguém precisava tratar com ela qualquer
negócio, nem mais se dava ao trabalho de procurá-la, ia logo direito a João
Romão.
Quando deram fé estavam amigados.
Ele propôs-lhe morarem juntos e ela concordou de braços abertos, feliz em
meter-se de novo com um português, porque, como toda a cafuza, Bertoleza não
queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça
superior à sua.
João Romão comprou então, com as economias da amiga, alguns palmos de
terreno ao lado esquerdo da venda, e levantou uma casinha de duas portas,
dividida ao meio paralelamente à rua, sendo a parte da frente destinada à
quitanda e a do fundo para um dormitório que se arranjou com os cacarecos de
Bertoleza. Havia, além da cama, uma cômoda de jacarandá muito velha com
maçanetas de metal amarelo já mareadas, um oratório cheio de santos e forrado
de papel de cor, um baú grande de couro cru tacheado, dois banquinhos de pau
feitos de uma só peça e um formidável cabide de pregar na parede, com a sua
competente coberta de retalhos de chita.
O vendeiro nunca tivera tanta mobília.
— Agora, disse ele à crioula, as coisas vão correr melhor para você. Você
vai ficar forra; eu entro com o que falta.
Nesse dia ele saiu muito à rua, e uma semana depois apareceu com uma
folha de papel toda escrita, que leu em voz alta à companheira.
— Você agora não tem mais senhor! declarou em seguida à leitura, que ela
ouviu entre lágrimas agradecidas. Agora está livre. Doravante o que você fizer é
só seu e mais de seus filhos, se os tiver. Acabou-se o cativeiro de pagar os vinte
mil-réis à peste do cego!
— Coitado! A gente se queixa é da sorte! Ele, como meu senhor, exigia o
jornal, exigia o que era seu!
— Seu ou não seu, acabou-se! E vida nova!
Contra todo o costume, abriu-se nesse dia uma garrafa de vinho do Porto, e
os dois beberam-na em honra ao grande acontecimento. Entretanto, a tal carta de
liberdade era obra do próprio João Romão, e nem mesmo o selo, que ele
entendeu de pespegar-lhe em cima, para dar à burla maior formalidade,
representava despesa porque o esperto aproveitara uma estampilha já servida. O
senhor de Bertoleza não teve sequer conhecimento do fato; o que lhe constou,
sim, foi que a sua escrava lhe havia fugido para a Bahia depois da morte do
amigo.
— O cego que venha buscá-la aqui, se for capaz... desafiou o vendeiro de si
para si. Ele que caia nessa e verá se tem ou não pra pêras!
Não obstante, só ficou tranqüilo de todo daí a três meses, quando lhe
constou a morte do velho. A escrava passara naturalmente em herança a
qualquer dos filhos do morto; mas, por estes, nada havia que recear: dois
pândegos de marca maior que, empolgada a legitima, cuidariam de tudo, menos
de atirar-se na pista de uma crioula a quem não viam de muitos anos àquela
parte. “Ora! bastava já, e não era pouco, o que lhe tinham sugado durante tanto
tempo!”
Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de
caixeiro, de criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às quatro
da madrugada estava já na faina de todos os dias, aviando o café para os
fregueses e depois preparando o almoço para os trabalhadores de uma pedreira
que havia para além de um grande capinzal aos fundos da venda. Varria a casa,
cozinhava, vendia ao balcão na taverna, quando o amigo andava ocupado lá por
fora; fazia a sua quitanda durante o dia no intervalo de outros serviços, e à noite
passava-se para a porta da venda, e, defronte de um fogareiro de barro, fritava
fígado e frigia sardinhas, que Romão ia pela manhã, em mangas de camisa, de
tamancos e sem meias, comprar à praia do Peixe. E o demônio da mulher ainda
encontrava tempo para lavar e consertar, além da sua, a roupa do seu homem,
que esta, valha a verdade, não era tanta e nunca passava em todo o mês de
alguns pares de calças de zuarte e outras tantas camisas de riscado.
João Romão não saia nunca a passeio, nem ia à missa aos domingos; tudo
que rendia a sua venda e mais a quitanda seguia direitinho para a caixa
econômica e daí então para o banco. Tanto assim que, um ano depois da
aquisição da crioula, indo em hasta pública algumas braças de terra situadas ao
fundo da taverna, arrematou-as logo e tratou, sem perda de tempo, de construir
três casinhas de porta e janela.
Que milagres de esperteza e de economia não realizou ele nessa construção!
Servia de pedreiro, amassava e carregava barro, quebrava pedra; pedra, que o
velhaco, fora de horas, junto com a amiga, furtavam à pedreira do fundo, da
mesma forma que subtraiam o material das casas em obra que havia por ali
perto.
Estes furtos eram feitos com todas as cautelas e sempre coroados do melhor
sucesso, graças à circunstância de que nesse tempo a polícia não se mostrava
muito por aquelas alturas. João Romão observava durante o dia quais as obras
em que ficava material para o dia seguinte, e à noite lá estava ele rente, mais a
Bertoleza, a removerem tábuas, tijolos, telhas, sacos de cal, para o meio da rua,
com tamanha habilidade que se não ouvia vislumbre de rumor. Depois, um
tomava uma carga e partia para casa, enquanto o outro ficava de alcatéia ao lado
do resto, pronto a dar sinal, em caso de perigo; e, quando o que tinha ido
voltava, seguia então o companheiro, carregado por sua vez.
Nada lhes escapava, nem mesmo as escadas dos pedreiros, os cavalos de
pau, o banco ou a ferramenta dos marceneiros.
E o fato é que aquelas três casinhas, tão engenhosamente construídas, foram
o ponto de partida do grande cortiço de São Romão.
Hoje quatro braças de terra, amanhã seis, depois mais outras, ia o vendeiro
conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos da sua bodega; e, à
proporção que o conquistava, reproduziam-se os quartos e o número de
moradores.
Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, não perdendo
nunca a ocasião de assenhorear-se do alheio, deixando de pagar todas as vezes
que podia e nunca deixando de receber, enganando os fregueses, roubando nos
pesos e nas medidas, comprando por dez réis de mel coado o que os escravos
furtavam da casa dos seus senhores, apertando cada vez mais as próprias
despesas, empilhando privações sobre privações, trabalhando e mais a amiga
como uma junta de bois, João Romão veio afinal a comprar uma boa parte da
bela pedreira, que ele, todos os dias, ao cair da tarde, assentado um instante à
porta da venda, contemplava de longe com um resignado olhar de cobiça.
Pôs lá seis homens a quebrarem pedra e outros seis a fazerem lajedos e
paralelepípedos, e então principiou a ganhar em grosso, tão em grosso que,
dentro de ano e meio, arrematava já todo o espaço compreendido entre as suas
casinhas e a pedreira, isto é, umas oitenta braças de fundo sobre vinte de frente
em plano enxuto e magnífico para construir.
Justamente por essa ocasião vendeu-se também um sobrado que ficava à
direita da venda, separado desta apenas por aquelas vinte braças; de sorte que
todo o flanco esquerdo do prédio, coisa de uns vinte e tantos metros, despejava
para o terreno do vendeiro as suas nove janelas de peitoril. Comprou-o um tal
Miranda, negociante português, estabelecido na Rua do Hospício com uma loja
de fazendas por atacado. Corrida uma limpeza geral no casarão, mudar-se-ia ele
para lá com a família, pois que a mulher, Dona Estela, senhora pretensiosa e
com fumaças de nobreza, já não podia suportar a residência no centro da cidade,
como também sua menina, a Zulmirinha, crescia muito pálida e precisava de
largueza para enrijar e tomar corpo.
Isto foi o que disse o Miranda aos colegas, porém a verdadeira causa da
mudança estava na necessidade, que ele reconhecia urgente, de afastar Dona
Estela do alcance dos seus caixeiros. Dona Estela era uma mulherzinha levada
da breca: achava-se casada havia treze anos e durante esse tempo dera ao marido
toda sorte de desgostos. Ainda antes de terminar o segundo ano de matrimônio,
o Miranda pilhou-a em flagrante delito de adultério; ficou furioso e o seu
primeiro impulso foi de mandá-la para o diabo junto com o cúmplice; mas a sua
casa comercial garantia-se com o dote que ela trouxera, uns oitenta contos em
prédios e ações da divida publica, de que se utilizava o desgraçado tanto quanto
lhe permitia o regime dotal. Além de que, um rompimento brusco seria obra
para escândalo, e, segundo a sua opinião, qualquer escândalo doméstico ficava
muito mal a um negociante de certa ordem. Prezava, acima de tudo, a sua
posição social e tremia só com a idéia de ver-se novamente pobre, sem recursos
e sem coragem para recomeçar a vida, depois de se haver habituado a umas
tantas regalias e afeito à hombridade de português rico que já não tem pátria na
Europa.
Acovardado defronte destes raciocínios, contentou-se com uma simples
separação de leitos, e os dois passaram a dormir em quartos separados. Não
comiam juntos, e mal trocavam entre si uma ou outra palavra constrangida,
quando qualquer inesperado acaso os reunia a contragosto.
Odiavam-se. Cada qual sentia pelo outro um profundo desprezo, que pouco
a pouco se foi transformando em repugnância completa. O nascimento de
Zulmira veio agravar ainda mais a situação; a pobre criança, em vez de servir de
elo aos dois infelizes, foi antes um novo isolador que se estabeleceu entre eles.
Estela amava-a menos do que lhe pedia o instinto materno por supô-la filha do
marido, e este a detestava porque tinha convicção de não ser seu pai.
Uma bela noite, porém, o Miranda, que era homem de sangue esperto e
orçava então pelos seus trinta e cinco anos, sentiu-se em insuportável estado de
lubricidade. Era tarde já e não havia em casa alguma criada que lhe pudesse
valer. Lembrou-se da mulher, mas repeliu logo esta idéia com escrupulosa
repugnância. Continuava a odiá-la. Entretanto este mesmo fato de obrigação em
que ele se colocou de não servir-se dela, a responsabilidade de desprezá-la,
como que ainda mais lhe assanhava o desejo da carne, fazendo da esposa infiel
um fruto proibido. Afinal, coisa singular, posto que moralmente nada diminuísse
a sua repugnância pela perjura, foi ter ao quarto dela.
A mulher dormia a sono solto. Miranda entrou pé ante pé e aproximou-se da
cama. “Devia voltar!... pensou. Não lhe ficava bem aquilo!...” Mas o sangue
latejava-lhe, reclamando-a. Ainda hesitou um instante, imóvel, a contemplá-la
no seu desejo.
Estela, como se o olhar do marido lhe apalpasse o corpo, torceu-se sobre o
quadril da esquerda, repuxando com as coxas o lençol para a frente e
patenteando uma nesga de nudez estofada e branca. O Miranda não pôde resistir,
atirou-se contra ela, que, num pequeno sobressalto, mais de surpresa que de
revolta, desviou-se, tornando logo e enfrentando com o marido. E deixou-se
empolgar pelos rins, de olhos fechados, fingindo que continuava a dormir, sem a
menor consciência de tudo aquilo.
Ah! ela contava como certo que o esposo, desde que não teve coragem de
separar-se de casa, havia, mais cedo ou mais tarde, de procurá-la de novo.
Conhecia-lhe o temperamento, forte para desejar e fraco para resistir ao desejo.
Consumado o delito, o honrado negociante sentiu-se tolhido de vergonha e
arrependimento. Não teve animo de dar palavra, e retirou-se tristonho e murcho
para o seu quarto de desquitado.
Oh! como lhe doía agora o que acabava de praticar na cegueira da sua
sensualidade.
— Que cabeçada!... dizia ele agitado. Que formidável cabeçada!...
No dia seguinte, os dois viram-se e evitaram-se em silêncio, como se nada
de extraordinário houvera entre eles acontecido na véspera. Dir-se-ia até que,
depois daquela ocorrência, o Miranda sentia crescer o seu ódio contra a esposa.
E, à noite desse mesmo dia, quando se achou sozinho na sua cama estreita, jurou
mil vezes aos seus brios nunca mais, nunca mais, praticar semelhante loucura.
Mas, daí a um mês, o pobre homem, acometido de um novo acesso de
luxúria, voltou ao quarto da mulher.
Estela recebeu-o desta vez como da primeira, fingindo que não acordava; na
ocasião, porém, em que ele se apoderava dela febrilmente, a leviana, sem se
poder conter, soltou-lhe em cheio contra o rosto uma gargalhada que a custo
sopeava. O pobre-diabo desnorteou, deveras escandalizado, soerguendo-se,
brusco, num estremunhamento de sonâmbulo acordado com violência.
A mulher percebeu a situação e não lhe deu tempo para fugir; passou-lhe
rápido as pernas por cima e, grudando-se-lhe ao corpo, cegou-o com uma
metralhada de beijos.
Não se falaram.
Miranda nunca a tivera, nem nunca a vira, assim tão violenta no prazer.
Estranhou-a. Afigurou-se-lhe estar nos braços de uma amante apaixonada:
descobriu nela o capitoso encanto com que nos embebedam as cortesãs
amestradas na ciência do gozo venéreo. Descobriu-lhe no cheiro da pele e no
cheiro dos cabelos perfumes que nunca lhe sentira; notou-lhe outro hálito, outro
som nos gemidos e nos suspiros. E gozou-a, gozou-a loucamente, com delírio,
com verdadeira satisfação de animal no cio.
E ela também, ela também gozou, estimulada por aquela circunstância
picante do ressentimento que os desunia; gozou a desonestidade daquele ato que
a ambos acanalhava aos olhos um do outro; estorceu-se toda, rangendo os
dentes, grunhindo, debaixo daquele seu inimigo odiado, achando-o também
agora, como homem, melhor que nunca, sufocando-o nos seus braços nus,
metendo-lhe pela boca a língua úmida e em brasa. Depois, um arranco de corpo
inteiro, com um soluço gutural e estrangulado, arquejante e convulsa,
estatelou-se num abandono de pernas e braços abertos, a cabeça para o lado, os
olhos moribundos e chorosos, toda ela agonizante, como se a tivessem
crucificado na cama.
A partir dessa noite, da qual só pela manhã o Miranda se retirou do quarto
da mulher, estabeleceu-se entre eles o hábito de uma felicidade sexual, tão
completa como ainda não a tinham desfrutado, posto que no intimo de cada um
persistisse contra o outro a mesma repugnância moral em nada enfraquecida.
Durante dez anos viveram muito bem casados; agora, porém, tanto tempo
depois da primeira infidelidade conjugal, e agora que o negociante já não era
acometido tão freqüentemente por aquelas crises que o arrojavam fora de horas
ao dormitório de Dona Estela; agora, eis que a leviana parecia disposta a
reincidir na culpa, dando corda aos caixeiros do marido, na ocasião em que estes
subiam para almoçar ou jantar.
Foi por isso que o Miranda comprou o prédio vizinho a João Romão.
A casa era boa; seu único defeito estava na escassez do quintal; mas para
isso havia remédio: com muito pouco compravam-se umas dez braças daquele
terreno do fundo que ia até à pedreira, e mais uns dez ou quinze palmos do lado
em que ficava a venda.
Miranda foi logo entender-se com o Romão e propôs-lhe negócio. O
taverneiro recusou formalmente.
Miranda insistiu.
— O senhor perde seu tempo e seu latim! retrucou o amigo de Bertoleza.
Nem só não cedo uma polegada do meu terreno, como ainda lhe compro, se mo
quiser vender, aquele pedaço que lhe fica ao fundo da casa!
— O quintal?
— É exato.
— Pois você quer que eu fique sem chácara, sem jardim, sem nada?
— Para mim era de vantagem...
— Ora, deixe-se disso, homem, e diga lá quanto quer pelo que lhe propus.
— Já disse o que tinha a dizer.
— Ceda-me então ao menos as dez braças do fundo.
— Nem meio palmo!
— Isso é maldade de sua parte, sabe? Eu, se faço tamanho empenho, é pela
minha pequena, que precisa, coitada, de um pouco de espaço para alargar-se.
— E eu não cedo, porque preciso do meu terreno!
— Ora qual! Que diabo pode lá você fazer ali? Uma porcaria de um pedaço
de terreno quase grudado ao morro e aos fundos de minha casa! quando você,
aliás, dispõe de tanto espaço ainda!
— Hei de lhe mostrar se tenho ou não o que fazer ali!
— É que você é teimoso! Olhe, se me cedesse as dez braças do fundo, a sua
parte ficaria cortada em linha reta até à pedreira, e escusava eu de ficar com uma
aba de terreno alheio a meter-se pelo meu. Quer saber? não amuro o quintal sem
você decidir-se!
— Então ficará com o quintal para sempre sem muro, porque o que tinha a
dizer já disse!
— Mas, homem de Deus, que diabo! pense um pouco! Você ali não pode
construir nada! Ou pensará que lhe deixarei abrir janelas sobre o meu quintal!...
— Não preciso abrir janelas sobre o quintal de ninguém!
— Nem tampouco lhe deixarei levantar parede, tapando-me as janelas da
esquerda!
— Não preciso levantar parede desse lado...
— Então que diabo vai você fazer de todo este terreno?...
— Ah! isso agora é cá comigo!... O que for soará!
— Pois creia que se arrepende de não me ceder o terreno!...
— Se me arrepender, paciência! Só lhe digo é que muito mal se sairá quem
quiser meter-se cá com a minha vida!
— Passe bem!
— Adeus!
Travou-se então uma lata renhida e surda entre o português negociante de
fazendas por atacado e o português negociante de secos e molhados. Aquele não
se resolvia a fazer o muro do quintal, sem ter alcançado o pedaço de terreno que
o separava do morro; e o outro, por seu lado, não perdia a esperança de
apanhar-lhe ainda, pelo menos, duas ou três braças aos fundos da casa; parte esta
que, conforme os seus cálculos, valeria ouro, uma vez realizado o grande projeto
que ultimamente o trazia preocupado — a criação de uma estalagem em ponto
enorme, uma estalagem monstro, sem exemplo, destinada a matar toda aquela
miuçalha de cortiços que alastravam por Botafogo.
Era este o seu ideal. Havia muito que João Romão vivia exclusivamente
para essa idéia; sonhava com ela todas as noites; comparecia a todos os leilões
de materiais de construção; arrematava madeiramentos já servidos; comprava
telha em segunda mão; fazia pechinchas de cal e tijolos; o que era tudo
depositado no seu extenso chão vazio, cujo aspecto tomava em breve o caráter
estranho de uma enorme barricada, tal era a variedade dos objetos que ali se
apinhavam acumulados: tábuas e sarrafos, troncos de árvore, mastros de navio,
caibros, restos de carroças, chaminés de barro e de ferro, fogões desmantelados,
pilhas e pilhas de tijolos de todos os feitios, barricas de cimento, montes de areia
e terra vermelha, aglomerações de telhas velhas, escadas partidas, depósitos de
cal, o diabo enfim; ao que ele, que sabia perfeitamente como essas coisas se
furtavam, resguardava, soltando à noite um formidável cão de fila.
Este cão era pretexto de eternas resingas com a gente do Miranda, a cujo
quintal ninguém de casa podia descer, depois das dez horas da noite, sem correr
o risco de ser assaltado pela fera.
— É fazer o muro! dizia o João Romão, sacudindo os ombros.
— Não faço! replicava o outro. Se ele é questão de capricho eu também
tenho capricho!
Em compensação, não caia no quintal do Miranda galinha ou frango,
fugidos do cercado do vendeiro, que não levasse imediato sumiço. João Romão
protestava contra o roubo em termos violentos, jurando vinganças terríveis,
falando em dar tiros.
— Pois é fazer um muro no galinheiro! repontava o marido de Estela.
Daí a alguns meses, João Romão, depois de tentar um derradeiro esforço
para conseguir algumas braças do quintal do vizinho, resolveu principiar as
obras da estalagem.
— Deixa estar, conversava ele na cama com a Bertoleza; deixa estar que
ainda lhe hei de entrar pelos fundos da casa, se é que não lhe entre pela frente!
Mais cedo ou mais tarde como-lhe, não duas braças, mas seis, oito, todo o
quintal e até o próprio sobrado talvez!
E dizia isto com uma convicção de quem tudo pode e tudo espera da sua
perseverança, do seu esforço inquebrantável e da fecundidade prodigiosa do seu
dinheiro, dinheiro que só lhe saia das unhas para voltar multiplicado.
Desde que a febre de possuir se apoderou dele totalmente, todos os seus
atos, todos, fosse o mais simples, visavam um interesse pecuniário. Só tinha uma
preocupação: aumentar os bens. Das suas hortas recolhia para si e para a
companheira os piores legumes, aqueles que, por maus, ninguém compraria; as
suas galinhas produziam muito e ele não comia um ovo, do que no entanto
gostava imenso; vendia-os todos e contentava-se com os restos da comida dos
trabalhadores. Aquilo já não era ambição, era uma moléstia nervosa, uma
loucura, um desespero de acumular; de reduzir tudo a moeda. E seu tipo baixote,
socado, de cabelos à escovinha, a barba sempre por fazer, ia e vinha da pedreira
para a venda, da venda às hortas e ao capinzal, sempre em mangas de camisa, de
tamancos, sem meias, olhando para todos os lados, com o seu eterno ar de
cobiça, apoderando-se, com os olhos, de tudo aquilo de que ele não podia
apoderar-se logo com as unhas.
Entretanto, a rua lá fora povoava-se de um modo admirável. Construía-se
mal, porém muito; surgiam chalés e casinhas da noite para o dia; subiam os
aluguéis; as propriedades dobravam de valor. Montara-se uma fábrica de massas
italianas e outra de velas, e os trabalhadores passavam de manhã e às
Ave-Marias, e a maior parte deles ia comer à casa de pasto que João Romão
arranjara aos fundos da sua varanda. Abriram-se novas tavernas; nenhuma,
porém, conseguia ser tão afreguesada como a dele. Nunca o seu negocio fora tão
bem, nunca o finório vendera tanto; vendia mais agora, muito mais, que nos
anos anteriores. Teve até de admitir caixeiros. As mercadorias não lhe paravam
nas prateleiras; o balcão estava cada vez mais lustroso, mais gasto. E o dinheiro
a pingar, vintém por vintém, dentro da gaveta, e a escorrer da gaveta para a
barra, aos cinqüenta e aos cem mil-réis, e da burra para o banco, aos contos e
aos contos.
Afinal, já lhe não bastava sortir o seu estabelecimento nos armazéns
fornecedores; começou a receber alguns gêneros diretamente da Europa: o
vinho, por exemplo, que ele dantes comprava aos quintos nas casas de atacado,
vinha-lhe agora de Portugal às pipas, e de cada uma fazia três com água e
cachaça; e despachava faturas de barris de manteiga, de caixas de conserva,
caixões de fósforos, azeite, queijos, louça e muitas outras mercadorias.
Criou armazéns para depósito, aboliu a quitanda e transferiu o dormitório,
aproveitando o espaço para ampliar a venda, que dobrou de tamanho e ganhou
mais duas portas.
Já não era uma simples taverna, era um bazar em que se encontrava de tudo,
objetos de armarinho, ferragens, porcelanas, utensílios de escritório, roupa de
riscado para os trabalhadores, fazenda para roupa de mulher, chapéus de palha
próprios para o serviço ao sol, perfumarias baratas, pentes de chifre, lenços com
versos de amor, e anéis e brincos de metal ordinário.
E toda a gentalha daquelas redondezas ia cair lá, ou então ali ao lado, na
casa de pasto, onde os operários das fábricas e os trabalhadores da pedreira se
reuniam depois do serviço, e ficavam bebendo e conversando até as dez horas da
noite, entre o espesso fumo dos cachimbos, do peixe frito em azeite e dos
lampiões de querosene.
Era João Romão quem lhes fornecia tudo, tudo, até dinheiro adiantado,
quando algum precisava. Por ali não se encontrava jornaleiro, cujo ordenado
não fosse inteirinho parar às mãos do velhaco. E sobre este cobre, quase sempre
emprestado aos tostões, cobrava juros de oito por cento ao mês, um pouco mais
do que levava aos que garantiam a divida com penhores de ouro ou prata.
Não obstante, as casinhas do cortiço, à proporção que se atamancavam,
enchiam-se logo, sem mesmo dar tempo a que as tintas secassem. Havia grande
avidez em alugá-las; aquele era o melhor ponto do bairro para a gente do
trabalho. Os empregados da pedreira preferiam todos morar lá, porque ficavam a
dois passos da obrigação.
O Miranda rebentava de raiva.
— Um cortiço! exclamava ele, possesso. Um cortiço! Maldito seja aquele
vendeiro de todos os diabos! Fazer-me um cortiço debaixo das janelas!...
Estragou-me a casa, o malvado!
E vomitava pragas, jurando que havia de vingar-se, e protestando aos berros
contra o pó que lhe invadia em ondas as salas, e contra o infernal baralho dos
pedreiros e carpinteiros que levavam a martelar de sol a sol.
O que aliás não impediu que as casinhas continuassem a surgir, uma após
outra, e fossem logo se enchendo, a estenderem-se unidas por ali a fora, desde a
venda até quase ao morro, e depois dobrassem para o lado do Miranda e
avançassem sobre o quintal deste, que parecia ameaçado por aquela serpente de
pedra e cal.
O Miranda mandou logo levantar o muro.
Nada! aquele demônio era capaz de invadir-lhe a casa até a sala de visitas!
E os quartos do cortiço pararam enfim de encontro ao muro do negociante,
formando com a continuação da casa deste um grande quadrilongo, espécie de
pátio de quartel, onde podia formar um batalhão.
Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem.
Prontas, João Romão mandou levantar na frente, nas vinte braças que
separavam a venda do sobrado do Miranda, um grosso muro de dez palmos de
altura, coroado de cacos de vidro e fundos de garrafa, e com um grande portão
no centro, onde se dependurou uma lanterna de vidraças vermelhas, por cima de
uma tabuleta amarela, em que se lia o seguinte, escrito a tinta encarnada e sem
ortografia:
“Estalagem de São Romão. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras”.
As casinhas eram alugadas por mês e as tinas por dia; tudo pago adiantado.
O preço de cada tina, metendo a água, quinhentos réis; sabão à parte. As
moradoras do cortiço tinham preferência e não pagavam nada para lavar.
Graças à abundância da água que lá havia, como em nenhuma outra parte, e
graças ao muito espaço de que se dispunha no cortiço para estender a roupa, a
concorrência às tinas não se fez esperar; acudiram lavadeiras de todos os pontos
da cidade, entre elas algumas vindas de bem longe. E, mal vagava uma das
casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um colchão, surgia uma nuvem
de pretendentes a disputá-los.
E aquilo se foi constituindo numa grande lavanderia, agitada e barulhenta,
com as suas cercas de varas, as suas hortaliças verdejantes e os seus jardinzinhos
de três e quatro palmos, que apareciam como manchas alegres por entre a
negrura das limosas tinas transbordantes e o revérbero das claras barracas de
algodão cru, armadas sobre os lustrosos bancos de lavar. E os gotejantes jiraus,
cobertos de roupa molhada, cintilavam ao sol, que nem lagos de metal branco.
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa,
começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma
geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e
multiplicar-se como larvas no esterco.
II
Durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças,
socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela
exuberância brutal de vida, aterrado defronte daquela floresta implacável que lhe
crescia junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes, piores e mais
grossas do que serpentes, minavam por toda a parte, ameaçando rebentar o chão
em torno dela, rachando o solo e abalando tudo.
Posto que lá na Rua do Hospício os seus negócios não corressem mal,
custava-lhe a sofrer a escandalosa fortuna do vendeiro “aquele tipo! um
miserável, um sujo, que não pusera nunca um paletó, e que vivia de cama e mesa
com uma negra!”
À noite e aos domingos ainda mais recrudescia o seu azedume, quando ele,
recolhendo-se fatigado do serviço, deixava-se ficar estendido numa preguiçosa,
junto à mesa da sala de jantar, e ouvia, a contragosto, o grosseiro rumor que
vinha da estalagem numa exalação forte de animais cansados. Não podia chegar
à janela sem receber no rosto aquele bafo, quente e sensual, que o embebedava
com o seu fartum de bestas no coito.
E depois, fechado no quarto de dormir, indiferente e habituado às torpezas
carnais da mulher, isento já dos primitivos sobressaltos que lhe faziam, a ele,
ferver o sangue e perder a tramontana, era ainda a prosperidade do vizinho o que
lhe obsedava o espírito, enegrecendo-lhe a alma com um feio ressentimento de
despeito.
Tinha inveja do outro, daquele outro português que fizera fortuna, sem
precisar roer nenhum chifre; daquele outro que, para ser mais rico três vezes do
que ele, não teve de casar com a filha do patrão ou com a bastarda de algum
fazendeiro freguês da casa!
Mas então, ele Miranda, que se supunha a última expressão da ladinagem e
da esperteza; ele, que, logo depois do seu casamento, respondendo para Portugal
a um ex-colega que o felicitava, dissera que o Brasil era uma cavalgadura
carregada de dinheiro, cujas rédeas um homem fino empolgava facilmente; ele,
que se tinha na conta de invencível matreiro, não passava afinal de um pedaço
de asno comparado com o seu vizinho! Pensara fazer-se senhor do Brasil e
fizera-se escravo de uma brasileira mal-educada e sem escrúpulos de virtude!
Imaginara-se talhado para grandes conquistas, e não passava de uma vitima
ridícula e sofredora!... Sim! no fim de contas qual fora a sua África?...
Enriquecera um pouco, é verdade, mas como? a que preço? hipotecando-se a um
diabo, que lhe trouxera oitenta contos de réis, mas incalculáveis milhões de
desgostos e vergonhas! Arranjara a vida, sim, mas teve de aturar eternamente
uma mulher que ele odiava! E do que afinal lhe aproveitar tudo isso? Qual era
afinal a sua grande existência? Do inferno da casa para o purgatório do trabalho
e vice-versa! Invejável sorte, não havia dúvida!
Na dolorosa incerteza de que Zulmira fosse sua filha, o desgraçado nem
sequer gozava o prazer de ser pai. Se ela, em vez de nascer de Estela, fora uma
enjeitadinha recolhida por ele, é natural que a amasse e então a vida lhe correria
de outro modo; mas naquelas condições, a pobre criança nada mais representava
que o documento vivo do ludibrio materno, e o Miranda estendia até à
inocentezinha d'África o ódio que sustentava contra a esposa.
Uma espiga a tal da sua vida!
— Fui uma besta! resumiu ele, em voz alta, apeando-se da cama, onde se
havia recolhido inutilmente.
E pôs-se a passear no quarto sem vontade de dormir, sentindo que a febre
daquela inveja lhe estorricava os miolos.
Feliz e esperto era o João Romão! esse, sim, senhor! Para esse é que havia
de ser a vida!... Filho da mãe, que estava hoje tão livre e desembaraçado como
no dia em que chegou da terra sem um vintém de seu! esse, sim, que era moço e
podia ainda gozar muito, porque quando mesmo viesse a casar e a mulher lhe
saísse uma outra Estela era só mandá-la para o diabo com um pontapé! Podia
fazê-lo! Para esse é que era o Brasil!
— Fui uma besta! repisava ele sem conseguir conformar-se com a felicidade
do vendeiro. Uma grandíssima! No fim de contas que diabo possuo eu?... Uma
casa de negócio, da qual não posso separar-me sem comprometer o que lá está
enterrado! um capital metido numa rede de transações que não se liquidam
nunca, e cada vez mais se complicam e mais me grudam ao estupor desta terra,
onde deixarei a casca! Que tenho de meu, se a alma do meu crédito é o dote, que
me trouxe aquela sem-vergonha e que a ela me prende como a peste da casa
comercial me prende a esta Costa d’África?
Foi da supuração fétida destas idéias que se formou no coração vazio do
Miranda um novo ideal — o título. Faltando-lhe temperamento próprio para os
vícios fortes que enchem a vida de um homem; sem família, a quem amar e sem
imaginação para poder gozar com as prostitutas, o náufrago agarrou-se àquela
tábua, como um agonizante, consciente da morte, que se apega à esperança de
uma vida futura. A vaidade de Estela, que a principio lhe tirava dos lábios
incrédulos sorrisos de mofa, agora lhe comprazia à farta. Procurou capacitar-se
de que ela com efeito herdara sangue nobre, que ele, por sua vez, se não o tinha
herdado, trouxera-o por natureza própria, o que devia valer mais ainda; e desde
então principiou a sonhar com um baronato, fazendo disso o objeto querido da
sua existência, muito satisfeito no intimo por ter afinal descoberto uma coisa em
que podia empregar dinheiro, sem ter, nunca mais, de restituí-lo à mulher, nem
ter de deixá-lo a pessoa alguma.
Semelhante preocupação modificou-o em extremo. Deu logo para fingir-se
escravo das conveniências, afetando escrúpulos sociais, empertigando-se quanto
podia e disfarçando a sua inveja pelo vizinho com um desdenhoso ar de
superioridade condescendente. Ao passar-lhe todos os dias pela venda,
cumprimentava-o com proteção, sorrindo sem rir e fechando logo a cara em
seguida, muito sério.
Dados os primeiros passos para a compra do titulo abriu a casa e deu festas.
A mulher, posto que lhe apontassem já os cabelos brancos, rejubilou com isso.
Zulmira tinha então doze para treze anos e era o tipo acabado da fluminense;
pálida, magrinha, com pequeninas manchas roxas nas mucosas do nariz, das
pálpebras e dos lábios, faces levemente pintalgadas de sardas. Respirava o tom
úmido das flores noturnas, uma brancura fria de magnólia; cabelos
castanho-claros, mãos quase transparentes, unhas moles e curtas, como as da
mãe, dentes pouco mais claros do que a cútis do rosto, pés pequeninos, quadril
estreito mas os olhos grandes, negros, vivos e maliciosos.
Por essa época, justamente, chegava de Minas, recomendado ao pai dela, o
filho de um fazendeiro importantíssimo que dava belos lucros à casa comercial
de Miranda e que era talvez o melhor freguês que este possuía no interior.
O rapaz chamava-se Henrique, tinha quinze anos e vinha terminar na corte
alguns preparatórios que lhe faltavam para entrar na Academia de Medicina.
Miranda hospedou-o no seu sobrado da Rua do Hospício mas o estudante
queixou-se, no fim de alguns dias, de que ai ficava mal acomodado, e o
negociante, a quem não convinha desagradar-lhe, carregou com ele para a sua
residência particular de Botafogo.
Henrique era bonitinho, cheio de acanhamentos, com umas delicadezas de
menina. Parecia muito cuidadoso dos seus estudos e tão pouco extravagante e
gastador, que não despendia um vintém fora das necessidade de primeira
urgência. De resto, a não ser de manhã para as aulas, que ia sempre com o
Miranda, não arredava pé de casa senão em companhia da família, deste. Dona
Estela, no cabo de pouco tempo, mostrou por ele estima quase maternal e
encarregou-se de tomar conta da sua mesada, mesada posta pelo negociante,
visto que o Henriquinho tinha ordem franca do pai.
Nunca pedia dinheiro; quando precisava de qualquer coisa, reclamava-a de
Dona Estela, que por sua vez encarregava o marido de comprá-la, sendo o objeto
lançado na conta do fazendeiro com uma comissão de usurário. Sua hospedagem
custava duzentos e cinqüenta mil-réis por mês, do que ele todavia não tinha
conhecimento, nem queria ter. Nada lhe faltava, e os criados da casa o
respeitavam como a um filho do próprio senhor.
À noite, às vezes, quando o tempo estava bom, Dona Estela saia com ele, a
filha e um moleque, o Valentim, a darem uma volta ate à praia e, em tendo
convite para qualquer festa em casa das amigas, levava-o em sua companhia.
A criadagem da família, do Miranda compunha-se de Isaura, mulata ainda
moça, moleirona e tola, que gastava todo o vintenzinho que pilhava em comprar
capilé na venda de João Romão; uma negrinha virgem, chamada Leonor, muito
ligeira e viva, lisa e seca como um moleque, conhecendo de orelha, sem lhe
faltar um termo, a vasta tecnologia da obscenidade, e dizendo, sempre que os
caixeiros ou os fregueses da taverna, só para mexer com ela, lhe davam
atracações: “Óia, que eu me queixo ao juiz de orfe!”, e finalmente o tal
Valentim, filho de uma escrava que foi de Dona Estela e a quem esta havia
alforriado.
A mulher do Miranda tinha por este moleque uma afeição sem limites:
dava-lhe toda a liberdade, dinheiro, presentes, levava-o consigo a passeio,
trazia-o bem vestido e muita vez chegou a fazer ciúmes à filha, de tão solicita
que se mostrava com ele. Pois se a caprichosa senhora ralhava com Zulmira por
causa do negrinho! Pois, se quando se queixavam os dois, um contra o outro, ela
nunca dava razão à filha! Pois se o que havia de melhor na casa era para o
Valentim! Pois, se quando foi este atacado de bexigas e o Miranda, apesar das
súplicas e dos protestos da esposa, mandou-o para um hospital, Dona Estela
chorava todos os dias e durante a ausência dele não tocou piano, nem cantou,
nem mostrou os dentes a ninguém? E o pobre Miranda, se não queria sofrer
impertinências da mulher e ouvir sensaborias defronte dos criados, tinha de dar
ao moleque toda a consideração e fazer-lhe humildemente todas as vontades.
Havia ainda, sob as telhas do negociante, um outro hóspede além do
Henrique, o velho Botelho. Este, porém, na qualidade de parasita.
Era um pobre-diabo caminhando para os setenta anos, antipático, cabelo
branco, curto e duro, como escova, barba e bigode do mesmo teor; muito
macilento, com uns óculos redondos que lhe aumentavam o tamanho da pupila e
davam-lhe à cara uma expressão de abutre, perfeitamente de acordo com o seu
nariz adunco e com a sua boca sem lábios: viam-se-lhe ainda todos os dentes,
mas, tão gastos, que pareciam limados até ao meio. Andava sempre de preto,
com um guarda-chuva debaixo do braço e um chapéu de Braga enterrado nas
orelhas. Fora em seu tempo empregado do comércio, depois corretor de
escravos; contava mesmo que estivera mais de uma vez na África negociando
negros por sua conta. Atirou-se muito às especulações; durante a guerra do
Paraguai ainda ganhara forte, chegando a ser bem rico; mas a roda desandou e,
de malogro em malogro, foi-lhe escapando tudo por entre as suas garras de ave
de rapina. E agora, coitado, já velho, comido de desilusões, cheio de
hemorróidas, via-se totalmente sem recursos e vegetava à sombra do Mirada,
com quem por muitos anos trabalhou em rapaz, sob as ordens do mesmo patrão,
e de quem se conservara amigo, a principio por acaso e mais tarde por
necessidade.
Devorava-o, noite e dia, uma implacável amargura, uma surda tristeza de
vencido, um desespero impotente, contra tudo e contra todos, por não lhe ter
sido possível empolgar o mundo com as suas mãos hoje inúteis e trêmulas. E,
como o seu atual estado de miséria não lhe permitia abrir contra ninguém o bico,
desabafava vituperando as idéias da época.
Assim, eram às vezes muito quentes as sobremesas do Miranda, quando,
entre outros assuntos palpitantes, vinha à discussão o movimento abolicionista
que principiava a formar-se em torno da lei Rio Branco. Então o Botelho ficava
possesso e vomitava frases terríveis, para a direita e para a esquerda, como quem
dispara tiros sem fazer alvo, e vociferava imprecações, aproveitando aquela
válvula para desafogar o velho ódio acumulado dentro dele.
— Bandidos! berrava apoplético. Cáfila de salteadores!
E o seu rancor irradiava-lhe dos olhos em setas envenenadas, procurando
cravar-se em todas as brancuras e em todas as claridades. A virtude, a beleza, o
talento, a mocidade, a força, a saúde, e principalmente a fortuna, eis o que ele
não perdoava a ninguém, amaldiçoando todo aquele que conseguia o que ele não
obtivera; que gozava o que ele não desfrutara; que sabia o que ele não
aprendera. E, para individualizar o objeto do seu ódio, voltava-se contra o
Brasil, essa terra que, na sua opinião, só tinha uma serventia: enriquecer os
portugueses, e que, no entanto, o deixara, a ele, na penúria.
Seus dias eram consumidos do seguinte modo: acordava às oito da manhã,
lavava-se mesmo no quarto com uma toalha molhada em espírito de vinho;
depois ia ler os jornais para a sala de jantar, à espera do almoço; almoçava e
sala, tomava o bonde e ia direitinho para uma charutaria da Rua do Ouvidor,
onde costumava ficar assentado até às horas do jantar, entretido a dizer mal das
pessoas que passavam lá fora, defronte dele. Tinha a pretensão de conhecer todo
o Rio de Janeiro e os podres de cada um em particular. Às vezes, poucas, Dona
Estela encarregava-o de fazer pequenas compras de armarinho, o que o Botelho
desempenhava melhor que ninguém? Mas a sua grande paixão, o seu fraco, era a
farda, adorava tudo que dissesse respeito a militarismo, posto que tivera sempre
invencível medo às armas de qualquer espécie, mormente às de fogo. Não podia
ouvir disparar perto de si uma espingarda, entusiasmava-se porém com tudo que
cheirasse a guerra; a presença de um oficial em grande uniforme tirava-lhe
lágrimas de comoção; conhecia na ponta da língua o que se referia à vida de
quartel; distinguia ao primeiro lance de olhos o posto e o corpo a que pertencia
qualquer soldado e, apesar dos seus achaques, era ouvir tocar na rua a corneta ou
o tambor conduzindo o batalhão, ficava logo no ar, e, muita vez, quando dava
por si, fazia parte dos que acompanhavam a tropa. Então, não tornava para casa
enquanto os militares neo se recolhessem. Quase sempre voltava dessa loucura
às seis da tarde, moído a fazer dó, sem poder ter-se nas pernas, estrompado de
marchar horas e horas ao som da música de pancadaria. E o mais interessante é
que ele, ao vir-lhe a reação, revoltava-se furioso contra o maldito comandante
que o obrigava àquela estopada, levando o batalhão por uma infinidade de ruas e
fazendo de propósito o caminho mais longo.
— Só parece, lamentava-se ele, que a intenção daquele malvado era dar-me
cabo da pele! Ora vejam! Três horas de marche-marche por uma soalheira de
todos os diabos!
Uma das birras mais cômicas do Botelho era o seu ódio pelo Valentim. O
moleque causava-lhe febre com as suas petulâncias de mimalho, e, velhaco,
percebendo quanto elas o irritavam, ainda mais abusava, seguro na proteção de
Dona Estela. O parasita de muito que o teria estrangulado, se não fora a
necessidade de agradar à dona da casa.
Botelho conhecia as faltas de Estela como as palmas da própria mão. O
Miranda mesmo, que o via em conta de amigo fiel, muitas e muitas vezes lhas
confiara em ocasiões desesperadas de desabafo, declarando francamente o
quanto no intimo a desprezava e a razão por que não a punha na rua aos
pontapés. E o Botelho dava-lhe toda a razão; entendia também que os sérios
interesses comerciais estavam acima de tudo.
— Uma mulher naquelas condições, dizia ele convicto, representa nada
menos que o capital, e um capital em caso nenhum a gente despreza! Agora,
você o que devia era nunca chegar-se para ela...
— Ora! explicava o marido. Eu me sirvo dela como quem se serve de uma
escarradeira!
O parasita, feliz por ver quanto o amigo aviltava a mulher, concordava em
tudo plenamente, dando-lhe um carinhoso abraço de admiração. Mas por outro
lado, quando ouvia Estela falar do marido, com infinito desdém e até com asco,
ainda mais resplandecia de contente.
— Você quer saber? afirmava ela, eu bem percebo quanto aquele traste do
senhor meu marido me detesta, mas isso tanto se me dá como a primeira camisa
que vesti! Desgraçadamente para nós, mulheres de sociedade, não podemos
viver sem esposo, quando somos casadas; de forma que tenho de aturar o que
me caiu em sorte, quer goste dele quer não goste! Juro-lhe, porém, que, se
consinto que o Miranda se chegue às vezes para mim, é porque entendo que
paga mais à pena ceder do que puxar discussão com uma besta daquela ordem!
O Botelho, com a sua encanecida experiência do mundo, nunca transmitia a
nenhum dos dois o que cada qual lhe dizia contra o outro; tanto assim que, certa
ocasião, recolhendo-se à casa incomodado, em hora que não era do seu costume,
ouviu, ao passar pelo quintal, sussurros de vozes abafadas que pareciam vir de
um canto afogado de verdura, onde em geral não ia ninguém.
Encaminhou-se para lá em bicos de pés e, sem ser percebido, descobriu
Estela entalada entre o muro e o Henrique. Deixou-se ficar espiando, sem tugir
nem mugir, e, só quando os dois se separaram, foi que ele se mostrou.
A senhora soltou um pequeno grito, e o rapaz, de vermelho que estava,
fez-se cor de cera; mas o Botelho procurou tranqüilizá-los, dizendo em voz
amiga e misteriosa:
— Isso é uma
deste modo que se
numa casa em que
quintal?...
— Nós não
sangue-frio.
imprudência o que vocês estão fazendo!... Estas coisas não é
arranjam! Assim como fui eu, podia ser outra pessoa... Pois
há tantos quartos, é lá preciso vir meterem-se neste canto do
estávamos fazendo nada! disse Estela, recuperando o
— Ah! tornou o velho, aparentando sumo respeito: então desculpe, pensei
que estivessem... E olhe que, se assim fosse, para mim seria o mesmo, porque
acho isso a coisa mais natural do mundo e entendo que desta vida a gente só leva
o que come!... Se vi, creia, foi como se nada visse, porque nada tenho a cheirar
com a vida de cada um!... A senhora está moça, está na força dos anos; seu
marido não a satisfaz, é justo que o substitua por outro! Ah! isto é o mundo, e, se
é torto, não fomos nós que o fizemos torto!... Até certa idade todos temos dentro
um bichinho-carpinteiro, que é preciso matar, antes que ele nos mate! Não lhes
doam as mãos!... apenas acho que, para outra vez, devem ter um pouquinho mais
de cuidado e...
— Está bom! basta! ordenou Estela.
— Perdão! eu, se digo isto, é para deixá-los bem tranqüilos a meu respeito.
Não quero, nem por sombra, que se persuadam de que...
O Henrique atalhou, com a voz ainda comovida:
— Mas, acredite, seu Botelho, que...
O velho interrompeu-o também por sua vez, passando-lhe a mão no ombro e
afastando-o consigo:
— Não tenha receio, que não o comprometerei, menino!
E, como já estivessem distantes de Estela, segredou-lhe em tom protetor:
— Não torne a fazer isto assim, que você se estraga... Olhe como lhe
tremem as pernas!
Dona Estela acompanhou-os a distancia, vagarosamente, afetando
preocupação em compor um ramalhete, cujas flores ela ia colhendo com muita
graça, ora toda vergada sobre as plantas rasteiras, ora pondo-se na pontinha dos
pés para alcançar os heliotrópios e os manacás.
Henrique seguiu o Botelho até ao quarto deste, conversando sem mudar de
assunto.
— Você então não fala nisto, hein? Jura? perguntou-lhe.
O velho tinha já declarado, a rir, que os pilhara em flagrante e que ficara
bom tempo à espreita.
— Falar o quê, seu tolo?... Pois então quem pensa você que eu sou?... Só
abrirei o bico se você me der motivo para isso, mas estou convencido que não
dará... Quer saber? eu até simpatizo muito com você, Henrique! Acho que você
é um excelente menino, uma flor! E digo-lhe mais: hei de proteger os seus
negócios com Dona Estela...
Falando assim, tinha-lhe tomado as mãos e afagava-as.
— Olhe, continuou, acariciando-o sempre; não se meta com donzelas,
entende?... São o diabo! Por dá cá aquela palha fica um homem em apuros!
agora quanto às outras, papo com elas! Não mande nenhuma ao vigário, nem lhe
doa a cabeça, porque, no fim de contas, nas circunstâncias de Dona Estela, é até
um grande serviço que você lhe faz! Meu rico amiguinho, quando uma mulher já
passou dos trinta e pilha a jeito um rapazito da sua idade, é como se descobrisse
ouro em pó! sabe-lhe a gaitas! Fique então sabendo de que não é só a ela que
você faz o obséquio, mas também ao marido: quanto mais escovar-lhe você a
mulher, melhor ela ficará de gênio, e por conseguinte melhor será para o pobre
homem, coitado! que tem já bastante com que se aborrecer lá por baixo, com os
seus negócios, e precisa de um pouco de descanso quando volta do serviço e
mete-se em casa! Escove-a, escove-a! que a porá macia que nem veludo! O que
é preciso é muito juizinho, percebe? Não faça outra criançada como a de hoje e
continue para diante, não só com ela, mas com todas as que lhe caírem debaixo
da asa! Vá passando! menos as de casa aberta, que isso é perigoso por causa das
moléstias; nem tampouco donzelas! Não se meta com a Zulmira! E creia que lhe
falo assim, porque sou seu amigo, porque o acho simpático, porque o acho
bonito!
E acarinhou-o tão vivamente dessa vez, que o estudante, fugindo-lhe das
mãos, afastou-se com um gesto de repugnância e desprezo, enquanto o velho lhe
dizia em voz comprimida:
— Olha! Espera! Vem cá! Você é desconfiado!...
III
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas
a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de
chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras
notas da ultima guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra
da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia.
A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e
punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas
no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma
palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas.
Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se
amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por
toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia,
suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras
palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a
pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados
de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava,
destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar
de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saiam
mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os
louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente,
espanejando-se à luz nova do dia.
Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração
tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara,
incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco
palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre
as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do
pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os
homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a
cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas,
fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não
descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem
tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as
saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo,
no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.
O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se;
já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia
todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se
discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava,
gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sangüínea, naquela gula viçosa de
plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da
vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra.
Da porta da venda que dava para o cortiço iam e vinham como formigas;
fazendo compras.
Duas janelas do Miranda abriram-se. Apareceu numa a Isaura, que se
dispunha a começar a limpeza da casa.
— Nhá Dunga! gritou ela para baixo, a sacudir um pano de mesa; se você
tem cuscuz de milho hoje, bata na porta, ouviu?
A Leonor surgiu logo também, enfiando curiosa a carapinha por entre o
pescoço e o ombro da mulata.
O padeiro entrou na estalagem, com a sua grande cesta à cabeça e o seu
banco de pau fechado debaixo do braço, e foi estacionar em meio do pátio, à
espera dos fregueses, pousando a canastra sobre o cavalete que ele armou
prontamente. Em breve estava cercado por uma nuvem de gente. As crianças
adulavam-no, e, à proporção que cada mulher ou cada homem recebia o pão,
disparava para casa com este abraçado contra o peito. Uma vaca, seguida por um
bezerro amordaçado, ia, tilintando tristemente o seu chocalho, de porta em porta,
guiada por um homem carregado de vasilhame de folha.
O zunzum chegava ao seu apogeu. A fábrica de massas italianas, ali mesmo
da vizinhança, começou a trabalhar, engrossando o barulho com o seu arfar
monótono de máquina a vapor. As corridas até à venda reproduziam-se,
transformando-se num verminar constante de formigueiro assanhado. Agora, no
lugar das bicas apinhavam-se latas de todos os feitios, sobressaindo as de
querosene com um braço de madeira em cima; sentia-se o trapejar da água
caindo na folha. Algumas lavadeiras enchiam já as suas tinas; outras estendiam
nos coradouros a roupa que ficara de molho. Principiava o trabalho. Rompiam
das gargantas os fados portugueses e as modinhas brasileiras. Um carroção de
lixo entrou com grande barulho de rodas na pedra, seguido de uma algazarra
medonha algaraviada pelo carroceiro contra o burro.
E, durante muito tempo, fez-se um vaivém de mercadores. Apareceram os
tabuleiros de carne fresca e outros de tripas e fatos de boi; só não vinham
hortaliças, porque havia muitas hortas no cortiço. Vieram os ruidosos mascates,
com as suas latas de quinquilharia, com as suas caixas de candeeiros e objetos
de vidro e com o seu fornecimento de caçarolas e chocolateiras, de
folha-de-flandres. Cada vendedor tinha o seu modo especial de apregoar,
destacando-se o homem das sardinhas, com as cestas do peixe dependuradas, à
moda de balança, de um pau que ele trazia ao ombro. Nada mais foi preciso do
que o seu primeiro guincho estridente e gutural para surgirem logo, como por
encanto, uma enorme variedade de gatos, que vieram correndo acercar-se dele
com grande familiaridade, roçando-se-lhe nas pernas arregaçadas e miando
suplicantemente. O sardinheiro os afastava com o pé, enquanto vendia o seu
peixe à porta das casinhas, mas os bichanos não desistiam e continuavam a
implorar, arranhando os cestos que o homem cuidadosamente tapava mal servia
ao freguês. Para ver-se livre por um instante dos importunos era necessário atirar
para bem longe um punhado de sardinhas, sobre o qual se precipitava logo, aos
pulos, o grupo dos pedinchões.
A primeira que se pôs a lavar foi a Leandra, por alcunha a “Machona”,
portuguesa feroz, berradora, pulsos cabeludos e grossos, anca de animal do
campo. Tinha duas filhas, uma casada e separada do marido, Ana das Dores, a
quem só chamavam a “das Dores” e outra donzela ainda, a Nenen, e mais um
filho, o Agostinho, menino levado dos diabos, que gritava tanto ou melhor que a
mãe. A das Dores morava em sua casinha à parte, mas toda a família habitava no
cortiço.
Ninguém ali sabia ao certo se a Machona era viúva ou desquitada; os filhos
não se pareciam uns com os outros. A das Dores, sim, afirmavam que fora
casada e que largara o marido para meter-se com um homem do comércio; e que
este, retirando-se para a terra e não querendo soltá-la ao desamparo, deixara o
sócio em seu lugar. Teria vinte e cinco anos.
Nenen dezessete. Espigada, franzina e forte, com uma proazinha de orgulho
da sua virgindade, escapando como enguia por entre os dedos dos rapazes que a
queriam sem ser para casar. Engomava bem e sabia fazer roupa branca de
homem com muita perfeição.
Ao lado da Leandra foi colocar-se à sua tina a Augusta Carne-Mole,
brasileira, branca, mulher de Alexandre, um mulato de quarenta anos, soldado
de policia, pernóstico, de grande bigode preto, queixo sempre escanhoado e um
luxo de calças brancas engomadas e botões limpos na farda, quando estava de
serviço. Também tinham filhos, mas ainda pequenos, um dos quais, a Juju, vivia
na cidade com a madrinha que se encarregava dela. Esta madrinha era uma
cocote de trinta mil-réis para cima, a Léonie, com sobrado na cidade.
Procedência francesa.
Alexandre, em casa, à hora de descanso, nos seus chinelos e na sua camisa
desabotoada, era muito chão com os companheiros de estalagem, conversava, ria
e brincava, mas envergando o uniforme, encerando o bigode e empunhando a
sua chibata, com que tinha o costume de fustigar as calças de brim, ninguém
mais lhe via os dentes e então a todos falava teso e por cima do ombro. A
mulher, a quem ele só dava tu quando não estava fardado, era de uma
honestidade proverbial no cortiço, honestidade sem mérito, porque vinha da
indolência do seu temperamento e não do arbítrio do seu caráter.
Junto dela pôs-se a trabalhar a Leocádia, mulher de um ferreiro chamado
Bruno, portuguesa pequena e socada, de carnes duras, com uma fama terrível de
leviana entre as suas vizinhas.
Seguia-se a Paula, uma cabocla velha, meio idiota, a quem respeitavam
todos pelas virtudes de que só ela dispunha para benzer erisipelas e cortar febres
por meio de rezas e feitiçarias. Era extremamente feia, grossa, triste, com olhos
desvairados, dentes cortados à navalha, formando ponta, como dentes de cão,
cabelos lisos, escorridos e ainda retintos apesar da idade. Chamavam-lhe
“Bruxa”.
Depois seguiam-se a Marciana e mais a sua filha Florinda. A primeira,
mulata antiga, muito seria e asseada em exagero: a sua casa estava sempre
úmida das consecutivas lavagens. Em lhe apanhando o mau humor punha-se
logo a espanar, a varrer febrilmente, e, quando a raiva era grande, corria a buscar
um balde de água e descarregava-o com fúria pelo chão da sala. A filha tinha
quinze anos, a pele de um moreno quente, beiços sensuais, bonitos dentes, olhos
luxuriosos de macaca. Toda ela estava a pedir homem, mas sustentava ainda a
sua virgindade e não cedia, nem à mão de Deus Padre, aos rogos de João
Romão, que a desejava apanhar a troco de pequenas concessões na medida e no
peso das compras que Florinda fazia diariamente à venda.
Depois via-se a velha Isabel, isto é, Dona Isabel, porque ali na estalagem
lhes dispensavam todos certa consideração, privilegiada pelas suas maneiras
graves de pessoa que já teve tratamento: uma pobre mulher comida de
desgostos. Fora casada com o dono de uma casa de chapéus, que quebrou e
suicidou-se, deixando-lhe uma filha muito doentinha e fraca, a quem Isabel
sacrificou tudo para educar, dando-lhe mestre até de francês. Tinha uma cara
macilenta de velha portuguesa devota, que já foi gorda, bochechas moles de
pelancas rechupadas, que lhe pendiam dos cantos da boca como saquinhos
vazios; fios negros no queixo, olhos castanhos, sempre chorosos engolidos pelas
pálpebras. Puxava em bandos sobre as fontes o escasso cabelo grisalho untado
de óleo de amêndoas doces. Quando saia à rua punha um eterno vestido de seda
preta, achamalotada, cuja saia não fazia rugas, e um xale encarnado que lhe dava
a todo o corpo um feitio piramidal. Da sua passada grandeza só lhe ficara uma
caixa de rapé de ouro, na qual a inconsolável senhora pitadeava agora,
suspirando a cada pitada.
A filha era a flor do cortiço. Chamavam-lhe Pombinha. Bonita, posto que
enfermiça e nervosa ao último ponto; loura, muito pálida, com uns modos de
menina de boa família. A mãe não lhe permitia lavar, nem engomar, mesmo
porque o médico a proibira expressamente.
Tinha o seu noivo, o João da Costa, moço do comércio, estimado do patrão
e dos colegas, com muito futuro, e que a adorava e conhecia desde pequenita;
mas Dona Isabel não queria que o casamento se fizesse já. É que Pombinha,
orçando aliás pelos dezoito anos, não tinha ainda pago à natureza o cruento
tributo da puberdade, apesar do zelo da velha e dos sacrifícios que esta fazia
para cumprir à risca as prescrições do médico e não faltar à filha o menor
desvelo. No entanto, coitadas! daquele casamento dependia a felicidade de
ambas, porque o Costa, bem empregado como se achava em casa de um tio seu,
de quem mais tarde havia de ser sócio, tencionava, logo que mudasse de estado,
restituí-las ao seu primitivo circulo social. A pobre velha desesperava-se com o
fato e pedia a Deus, todas as noites, antes de dormir, que as protegesse e
conferisse à filha uma graça tão simples que ele fazia, sem distinção de
merecimento, a quantas raparigas havia pelo mundo; mas, a despeito de tamanho
empenho, por coisa nenhuma desta vida consentiria que a sua pequena casasse
antes de “ser mulher”, como dizia ela. E “que deixassem lá falar o doutor,
entendia que não era decente, nem tinha jeito, dar homem a uma moça que ainda
não fora visitada pelas regras! Não! Antes vê-la solteira toda a vida e ficarem
ambas curtindo para sempre aquele inferno da estalagem!”
Lá no cortiço estavam todos a par desta história; não era segredo para
ninguém. E não se passava um dia que não interrogassem duas e três vezes a
velha com estas frases:
— Então? Já veio?
— Por que não tenta os banhos de mar?
— Por que não chama outro médico?
— Eu, se fosse a senhora, casava-os assim mesmo!
A velha respondia dizendo que a felicidade não se fizera para ela. E
suspirava resignada.
Quando o Costa aparecia depois da sua obrigação para visitar a noiva, os
moradores da estalagem cumprimentavam-no em silêncio com um respeitoso ar
de lástima e piedade, empenhados tacitamente por aquele caiporismo, contra o
qual não valiam nem mesmo as virtudes da Bruxa.
Pombinha era muito querida por toda aquela gente. Era quem lhe escrevia as
cartas; quem em geral fazia o rol para as lavadeiras; quem tirava as contas; quem
lia o jornal para os que quisessem ouvir. Prezavam-na com muito respeito e
davam-lhe presentes, o que lhe permitia certo luxo relativo. Andava sempre de
botinhas ou sapatinhos com meias de cor, seu vestido de chita engomado; tinha
as suas joiazinhas para sair à rua, e, aos domingos, quem a encontrasse à missa
na igreja de São João Batista, não seria capaz de desconfiar que ela morava em
cortiço.
Fechava a fila das primeiras lavadeiras, o Albino, um sujeito afeminado,
fraco, cor de espargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e pobre,
que lhe caia, numa só linha, até ao pescocinho mole e fino. Era lavadeiro e vivia
sempre entre as mulheres, com quem já estava tão familiarizado que elas o
tratavam como a uma pessoa do mesmo sexo; em presença dele falavam de
coisas que não exporiam em presença de outro homem; faziam-no até confidente
dos seus amores e das suas infidelidades, com uma franqueza que o não
revoltava, nem comovia. Quando um casal brigava ou duas amigas se
disputavam, era sempre Albino quem tratava de reconciliá-los, exortando as
mulheres à concórdia. Dantes encarregava-se de cobrar o rol das colegas, por
amabilidade; mas uma vez, indo a uma república de estudantes, deram-lhe lá,
ninguém sabia por quê, uma dúzia de bolos, e o pobre-diabo jurou então, entre
lágrimas e soluços, que nunca mais se incumbiria de receber os róis.
E daí em diante, com efeito, não arredava os pezinhos do cortiço, a não ser
nos dias de carnaval, em que ia, vestido de dançarina, passear à tarde pelas ruas
e à noite dançar nos bailes dos teatros. Tinha verdadeira paixão por esse
divertimento; ajuntava dinheiro durante o ano para gastar todo com a mascarada.
E ninguém o encontrava, domingo ou dia de semana, lavando ou descansando,
que não estivesse com a sua calça branca engomada, a sua camisa limpa, um
lenço ao pescoço, e, amarrado à cinta, um avental que lhe caia sobre as pernas
como uma saia. Não fumava, não bebia espíritos e trazia sempre as mãos
geladas e úmidas.
Naquela manhã levantara-se ainda um pouco mais lânguido que do costume,
porque passara mal a noite. A velha Isabel, que lhe ficava ao lado esquerdo,
ouvindo-o suspirar com insistência, perguntou-lhe o que tinha.
Ah! muita moleza de corpo e uma pontada do vazio que o não deixava!
A velha receitou diversos remédios, e ficaram os dois, no meio de toda
aquela vida, a falar tristemente sobre moléstias.
E, enquanto, no resto da fileira, a Machona, a Augusta, a Leocádia, a Bruxa,
a Marciana e sua filha conversavam de tina a tina, berrando e quase sem se
ouvirem, a voz um tanto cansada já pelo serviço, defronte delas, separado pelos
jiraus, formava-se um novo renque de lavadeiras, que acudiam de fora,
carregadas de trouxas, e iam ruidosamente tomando lagar ao lado umas das
outras, entre uma agitação sem tréguas, onde se não distinguia o que era galhofa
e o que era briga. Uma a uma ocupavam-se todas as tinas. E de todos os casulos
do cortiço saiam homens para as suas obrigações. Por uma porta que havia ao
fundo da estalagem desapareciam os trabalhadores da pedreira, donde vinha
agora o retinir dos alviões e das picaretas. O Miranda, de calças de brim, chapéu
alto e sobrecasaca preta, passou lá fora, em caminho para o armazém,
acompanhado pelo Henrique que ia para as aulas. O Alexandre, que estivera de
serviço essa madrugada, entrou solene, atravessou o pátio, sem falar a ninguém,
nem mesmo à mulher, e recolheu-se à casa, para dormir. Um grupo de mascates,
o Delporto, o Pompeo, o Francesco e o Andréa, armado cada qual com a sua
grande caixa de bugigangas, saiu para a peregrinação de todos os dias,
altercando e praguejando em italiano.
Um rapazito de paletó entrou da rua e foi perguntar à Machona pela Nhá
Rita.
— A Rita Baiana? Sei cá! Faz amanhã oito dias que ela arribou!
A Leocádia explicou logo que a mulata estava com certeza de pândega com
o Firmo.
— Que Firmo? interrogou Augusta.
— Aquele cabravasco que se metia às vezes ai com ela. Diz que é torneiro.
— Ela mudou-se? perguntou o pequeno.
— Não, disse a Machona; o quarto está fechado, mas a mulata tem coisas lá.
Você o que queria?
— Vinha buscar uma roupa que está com ela.
— Não sei, filho, pergunta na venda ao João Romão, que talvez te possa
dizer alguma coisa.
— Ali?
— Sim, pequeno, naquela porta, onde a preta do tabuleiro está vendendo! Ó
diabo! olha que pisas a boneca de anil! Já se viu que sorte? Parece que não vê
onde pisa este raio de criança!
E, notando que o filho, o Agostinho, se aproximava para tomar o lugar do
outro que já se ia:
— Sai daí, tu também, peste! Já principias na reinação de todos os dias?
Vem para cá, que levas! Mas, é verdade, que fazes tu que não vais regar a horta
do Comendador?
— Ele disse ontem que eu agora fosse à tarde, que era melhor.
— Ah! E amanhã, não te esqueças, recebe os dois mil-réis, que é fim do
mês. Olha! Vai lá dentro e diz a Nenen que te entregue a roupa que veio ontem à
noite.
O pequeno afastou-se de carreira, e ela lhe gritou na pista:
— E que não ponha o refogado no fogo sem eu ter lá ido!
Uma conversa cerrada travara-se no resto da fila de lavadeiras a respeito da
Rita Baiana.
— É doida mesmo!... censurava Augusta. Meter-se na pândega sem dar
conta da roupa que lhe entregaram... Assim há de ficar sem um freguês...
— Aquela não endireita mais!... Cada vez fica até mais assanhada!... Parece
que tem fogo no rabo! Pode haver o serviço que houver, aparecendo pagode, vai
tudo pro lado! Olha o que saiu o ano passado com a festa da Penha!...
— Então agora, com este mulato, o Firmo, é uma pouca-vergonha! Est’ro
dia, pois você não viu? levaram ai numa bebedeira, a dançar e cantar à viola, que
nem sei o que parecia! Deus te livre!
— Para tudo há horas e há dias!...
— Para a Rita todos os dias são dias santos! A questão é aparecer quem
puxe por ela!
— Ainda assim não e má criatura... Tirante o defeito da vadiagem...
— Bom coração tem ela, até demais, que não guarda um vintém pro dia de
amanhã. Parece que o dinheiro lhe faz comichão no corpo!
— Depois é que são elas!... O João Romão já lhe não fia!
— Pois olhe que a Rita lhe tem enchido bem as mãos; quando ela tem
dinheiro é porque o gasta mesmo!
E as lavadeiras não se calavam, sempre a esfregar, e a bater, e a torcer
camisas e ceroulas, esfogueadas já pelo exercício. Ao passo que, em torno da
sua tagarelice, o cortiço se embandeirava todo de roupa molhada, de onde o sol
tirava cintilações de prata.
Estavam em dezembro e o dia era ardente. A grama dos coradouros tinha
reflexos esmeraldinos; as paredes que davam frente ao Nascente, caiadinhas de
novo, reverberavam iluminadas, ofuscando a vista. Em uma das janelas da sala
de jantar do Miranda, Dona Estela e Zulmira, ambas vestidas de claro e ambas a
limarem as unhas, conversavam em voz surda, indiferentes à agitação que ia lá
embaixo, muito esquecidas na sua tranqüilidade de entes felizes.
Entretanto, agora o maior movimento era na venda à entrada da estalagem.
Davam nove horas e os operários das fábricas chegavam-se para o almoço. Ao
balcão o Domingos e o Manuel não tinham mãos a medir com a criadagem da
vizinhança; os embrulhos de papel amarelo sucediam-se, e o dinheiro pingava
sem intermitência dentro da gaveta.
— Meio quilo de arroz!
— Um tostão de açúcar!
— Uma garrafa de vinagre!
— Dois martelos de vinho!
— Dois vinténs de fumo!
— Quatro de sabão!
E os gritos confundiam-se numa mistura de vozes de todos os tons.
Ouviam-se protestos entre os compradores:
— Me avie, seu Domingos! Eu deixei a comida no fogo!
— Ó peste! dá cá as batatas, que eu tenho mais o que fazer!
— Seu Manuel, não me demore essa manteiga!
Ao lado, na casinha de pasto, a Bertoleza, de saias arrepanhadas no quadril,
o cachaço grosso e negro, reluzindo de suor, ia e vinha de uma panela à outra,
fazendo pratos, que João Romão levava de carreira aos trabalhadores assentados
num compartimento junto. Admitira-se um novo caixeiro, só para o frege, e o
rapaz, a cada comensal que ia chegando, recitava, em tom cantado e estridente, a
sua interminável lista das comidas que havia. Um cheiro forte de azeite frito
predominava. O parati circulava por todas as mesas, e cada caneca de café, de
louça espessa, erguia um vulcão de fumo tresandando a milho queimado. Uma
algazarra medonha, em que ninguém se entendia! Cruzavam-se conversas em
todas as direções, discutia-se a berros, com valentes punhadas sobre as mesas. E
sempre a sair, e sempre a entrar gente, e os que saiam, depois daquela
comezaina grossa, iam radiantes de contentamento, com a barriga bem cheia, a
arrotar.
Num banco de pau tosco, que existia do lado de fora, junto à parede e perto
da venda, um homem, de calça e camisa de zuarte, chinelos de couro cru,
esperava, havia já uma boa hora, para falar com o vendeiro.
Era um português de seus trinta e cinco a quarenta anos, alto, espadaúdo,
barbas ásperas, cabelos pretos e maltratados caindo-lhe sobre a testa, por
debaixo de um chapéu de feltro ordinário: pescoço de touro e cara de Hércules,
na qual os olhos todavia, humildes como os olhos de um boi de canga,
exprimiam tranqüila bondade.
— Então ainda não se pode falar ao homem? perguntou ele, indo ao balcão
entender-se com o Domingos.
— O patrão está agora muito ocupado. Espere!
— Mas são quase dez horas e estou com um gole de café no estômago!
— Volte logo!
— Moro na cidade nova. É um estirão daqui!
O caixeiro gritou então para a cozinha, sem interromper o que fazia:
— O homem que ai está, seu João, diz que se vai embora!
— Ele que espere um pouco, que já lhe falo! respondeu o vendeiro no meio
de uma carreira. Diga-lhe que não vá!
— Mas é que ainda não almocei e estou aqui a tinir!... observou o Hércules
com a sua voz grossa e sonora.
— Ó filho, almoce ai mesmo! Aqui o que não falta é de comer. Já podia
estar aviado!
— Pois vá lá! resolveu o homenzarrão, saindo da venda para entrar na casa
de pasto, onde os que lá se achavam o receberam com ar curioso, medindo-o da
cabeça aos pés, como faziam sempre com todos os que ai se apresentavam pela
primeira vez.
E assentou-se a uma das mesinhas, vindo logo o caixeiro cantar-lhe a lista
dos pratos.
— Traga lá o pescado com batatas e veja um martelo de vinho.
— Quer verde ou virgem?
— Venha o verde; mas anda com isso, filho, que já não vem sem tempo!
IV
Meia hora depois, quando João Romão se viu menos ocupado, foi ter com o
sujeito que o procurava e assentou-se defronte dele, caindo de fadiga, mas sem
se queixar, nem se lhe trair a fisionomia o menor sintoma de cansaço.
— Você vem da parte do Machucas? perguntou-lhe. Ele falou-me de um
homem que sabe calçar pedra, lascar fogo e fazer lajedo.
— Sou eu.
— Estava empregado em outra pedreira?
— Estava e estou. Na de São Diogo, mas desgostei-me dela e quero passar
adiante.
— Quanto lhe dão lá?
— Setenta mil-réis.
— Oh! Isso é um disparate!
— Não trabalho por menos...
— Eu, o maior ordenado que faço é de cinqüenta.
— Cinqüenta ganha um macaqueiro...
— Ora! tenho aí muitos trabalhadores de lajedo por esse preço!
— Duvido que prestem! Aposto a mão direita em como o senhor não
encontra por cinqüenta mil-réis quem dirija a broca, pese a pólvora e lasque
fogo, sem lhe estragar a pedra e sem fazer desastres!
— Sim, mas setenta mil-réis é um ordenado impossível!
— Nesse caso vou como vim... Fica o dito por não dito!
— Setenta mil-réis é muito dinheiro!...
— Cá por mim, entendo que vale a pena pagar mais um pouco a um
trabalhador bom, do que estar a sofrer desastres, como o que sofreu sua pedreira
a semana passada! Não falando na vida do pobre de Cristo que ficou debaixo da
pedra!
— Ah! O Machucas falou-lhe no desastre?
— Contou-mo, sim senhor, e o desastre não aconteceria se o homem
soubesse fazer o serviço!
— Mas setenta mil-réis é impossível. Desça um pouco!
— Por menos não me serve... E escusamos de gastar palavras!
— Você conhece a pedreira?
— Nunca a vi de perto, mas quis me parecer que é boa. De longe
cheirou-me a granito.
— Espere um instante.
João Romão deu um pulo à venda, deixou algumas ordens, enterrou um
chapéu na cabeça e voltou a ter com o outro.
— Ande a ver! gritou-lhe da porta do frege, que a pouco e pouco se
esvaziara de todo.
O cavouqueiro pagou doze vinténs pelo seu almoço e acompanhou-o em
silêncio.
Atravessaram o cortiço.
A labutação continuava. As lavadeiras tinham já ido almoçar e tinham
voltado de novo para o trabalho. Agora estavam todas de chapéu de palha,
apesar das toldas que se armaram. Um calor de cáustico mordia-lhes os toutiços
em brasa e cintilantes de suor. Um estado febril apoderava-se delas naquele
rescaldo; aquela digestão feita ao sol fermentava-lhes o sangue. A Machona
altercava com uma preta que fora reclamar um par de meias e destrocar uma
camisa; a Augusta, muito mole sobre a sua tábua de lavar, parecia derreter-se
como sebo; a Leocádia largava de vez em quando a roupa e o sabão para coçar
as comichões do quadril e das virilhas, assanhadas pelo mormaço; a Bruxa
monologava, resmungando numa insistência de idiota, ao lado da Marciana que,
com o seu tipo de mulata velha, um cachimbo ao canto da boca, cantava toadas
monótonas do sertão:
“Maricas tá marimbando,
Maricas tá marimbando,
Na passage do riacho
Maricas tá marimbando.”
A Florinda, alegre, perfeitamente bem com o rigor do sol, a rebolar sem
fadigas, assoviava os chorados e lundus que se tocavam na estalagem, e junto
dela, a melancólica senhora Dona Isabel suspirava, esfregando a sua roupa
dentro da tina, automaticamente, como um condenado a trabalhar no presídio; ao
passo que o Albino, saracoteando os seus quadris pobres de homem linfático,
batia na tábua um par de calças, no ritmo cadenciado e miúdo de um cozinheiro
a bater bifes. O corpo tremia-lhe todo, e ele, de vez em quando, suspendia o
lenço do pescoço para enxugar a fronte, e então um gemido suspirado subia-lhe
aos lábios.
Da casinha número 8 vinha um falsete agudo, mas afinado. Era a das Dores
que principiava o seu serviço; não sabia engomar sem cantar. No número 7
Nenen cantarolava em tom muito mais baixo; e de um dos quartos do fundo da
estalagem saia de espaço a espaço uma nota áspera de trombone.
O vendeiro, ao passar por detrás de Florinda, que no momento apanhava
roupa do chão, ferrou-lhe uma palmada na parte do corpo então mais em
evidência.
— Não bula, hein?!... gritou ela, rápido, erguendo-se tesa.
E, dando com João Romão:
— Eu logo vi. Leva implicando aqui com a gente e depois, vai-se comprar
na venda, o safado rouba no peso! Diabo do galego Eu não te quero, sabe?
O vendeiro soltou-lhe nova palmada com mais força e fugiu, porque ela se
armara com um regador cheio de água.
— Vem pra cá, se és capaz! Diabo da peste!
João Romão já se havia afastado com o cavouqueiro.
— O senhor tem aqui muita gente!... observou-lhe este.
— Oh! fez o outro, sacudindo os ombros, e disse depois com empáfia: —
Houvesse mais cem quartos que estariam cheios! Mas é tudo gente séria! Não há
chinfrins nesta estalagem; se aparece uma rusga, eu chego, e tudo acaba logo!
Nunca nos entrou cá a policia, nem nunca a deixaremos entrar! E olhe que se
divertem bem com as suas violas! Tudo gente muita boa!
Tinham chegado ao fim do pátio do cortiço e, depois de transporem uma
porta que se fechava com um peso amarrado a uma corda, acharam-se no
capinzal que havia antes da pedreira.
— Vamos por aqui mesmo que é mais perto, aconselhou o vendeiro.
E os dois, em vez de procurarem a estrada, atravessaram o capim quente e
trescalante.
Meio-dia em ponto. O sol estava a pino; tudo reverberava a luz
irreconciliável de dezembro, num dia sem nuvens. A pedreira, em que ela batia
de chapa em cima, cegava olhada de frente. Era preciso martirizar a vista para
descobrir as nuanças da pedra; nada mais que uma grande mancha branca e
luminosa, terminando pela parte de baixo no chão coberto de cascalho miúdo,
que ao longe produzia o efeito de um betume cinzento, e pela parte de cima na
espessura compacta do arvoredo, onde se não distinguiam outros tons mais do
que nódoas negras, bem negras, sobre o verde-escuro.
À proporção que os dois se aproximavam da imponente pedreira, o terreno
ia-se tornando mais e mais cascalhudo; os sapatos enfarinhavam-se de uma
poeira clara. Mais adiante, por aqui e por ali, havia muitas carroças, algumas em
movimento, puxadas a burro e cheias de calhaus partidos; outras já prontas para
seguir, à espera do animal, e outras enfim com os braços para o ar, como se
acabassem de ser despejadas naquele instante. Homens labutavam.
À esquerda, por cima de um vestígio de rio, que parecia ter sido bebido de
um trago por aquele sol sedento, havia uma ponte de tábuas, onde três pequenos,
quase nus, conversavam assentados, sem fazer sombra, iluminados a prumo pelo
sol do meio-dia. Para adiante, na mesma direção, corria um vasto telheiro, velho
e sujo, firmado sobre colunas de pedra tosca; ai muitos portugueses trabalhavam
de canteiro, ao barulho metálico do picão que feria o granito. Logo em seguida,
surgia uma oficina de ferreiro, toda atravancada de destroços e objetos
quebrados, entre os quais avultavam rodas de carro; em volta da bigorna dois
homens, de corpo nu, banhados de suor e alumiados de vermelho como dois
diabos, martelavam cadenciosamente sobre um pedaço de ferro em brasa; e ali
mesmo, perto deles, a forja escancarava uma goela infernal, de onde saiam
pequenas línguas de fogo, irrequietas e gulosas.
João Romão parou à entrada da oficina e gritou para um dos ferreiros:
— O Bruno! Não se esqueça do varal da lanterna do portão!
Os dois homens suspenderam por um instante o trabalho.
— Já lá fui ver, respondeu o Bruno. Não vale a pena consertá-lo; está todo
comido de ferragem! Faz-se-lhe um novo, que é melhor!
— Pois veja lá isso, que a lanterna está a cair!
E o vendeiro seguiu adiante com o outro, enquanto atrás recomeçava o
martelar sobre a bigorna.
Em seguida via-se uma miserável estrebaria, cheia de capim seco e
excremento de bestas, com lugar para meia dúzia de animais. Estava deserta,
mas, no vivo fartum exalado de lá, sentia-se que fora habitada ainda aquela
noite. Havia depois um depósito de madeiras, servindo ao mesmo tempo de
oficina de carpinteiro, tendo à porta troncos de arvore, alguns já serrados, muitas
tábuas empilhadas, restos de cavernas e mastros de navio.
Daí à pedreira restavam apenas uns cinqüenta passos e o chão era já todo
coberto por uma farinha de pedra moída que sujava como a cal.
Aqui, ali, por toda a parte, encontravam-se trabalhadores, uns ao sol, outros
debaixo de pequenas barracas feitas de lona ou de folhas de palmeira. De um
lado cunhavam pedra cantando; de outro a quebravam a picareta; de outro
afeiçoavam lajedos a ponta de picão; mais adiante faziam paralelepípedos a
escopro e macete. E todo aquele retintim de ferramentas, e o martelar da forja, e
o coro dos que lá em cima brocavam a rocha para lançar-lhe fogo, e a surda
zoada ao longe, que vinha do cortiço, como de uma aldeia alarmada; tudo dava a
idéia de uma atividade feroz, de uma luta de vingança e de ódio. Aqueles
homens gotejantes de suor, bêbados de calor, desvairados de insolação, a
quebrarem, a espicaçarem, a torturarem a pedra, pareciam um punhado de
demônios revoltados na sua impotência contra o impassível gigante que os
contemplava com desprezo, imperturbável a todos os golpes e a todos os tiros
que lhe desfechavam no dorso, deixando sem um gemido que lhe abrissem as
entranhas de granito. O membrudo cavouqueiro havia chegado a fralda do
orgulhoso monstro de pedra; tinha-o cara a cara, mediu-o de alto a baixo,
arrogante, num desafio surdo.
A pedreira mostrava nesse ponto de vista o seu lado mais imponente.
Descomposta, com o escalavrado flanco exposto ao sol, erguia-se altaneira e
desassombrada, afrontando o céu, muito íngreme, lisa, escaldante e cheia de
cordas que mesquinhamente lhe escorriam pela ciclópica nudez com um efeito
de teias de aranha. Em certos lugares, muito alto do chão, lhe haviam espetado
alfinetes de ferro, amparando, sobre um precipício, miseráveis tábuas que, vistas
cá de baixo, pareciam palitos, mas em cima das quais uns atrevidos pigmeus de
forma humana equilibravam-se, desfechando golpes de picareta contra o
gigante.
O cavouqueiro meneou a cabeça com ar de lástima. O seu gesto
desaprovava todo aquele serviço.
— Veja lá! disse ele, apontando para certo ponto da rocha. Olhe para aquilo!
Sua gente tem ido às cegas no trabalho desta pedreira. Deviam atacá-la
justamente por aquele outro lado, para não contrariar os veios da pedra. Esta
parte aqui é toda granito, é a melhor! Pois olhe só o que eles têm tirado de lá —
umas lascas, uns calhaus que não servem para nada! É uma dor de coração ver
estragar assim uma peça tão boa! Agora o que hão de fazer dessa cascalhada que
ai está senão macacos? E brada aos céus, creia! ter pedra desta ordem para
empregá-la em macacos!
O vendeiro escutava-o em silêncio, apertando os beiços, aborrecido com a
idéia daquele prejuízo.
— Uma porcaria de serviço! continuou o outro. Ali onde está aquele homem
é que deviam ter feito a broca, porque a explosão punha abaixo toda esta aba que
é separada por um veio. Mas quem tem ai o senhor capaz de fazer isso?
Ninguém; porque é preciso um empregado que saiba o que faz; que, se a pólvora
não for muito bem medida, nem só não se abre o veio, como ainda sucede ao
trabalhador o mesmo que sucedeu ao outro! É preciso conhecer muito bem o
trabalho para se poder tirar partido vantajoso desta pedreira! Boa é ela, mas não
nas mãos em que está! É muito perigosa nas explosões; é muito em pé! Quem
lhe lascar fogo não pode fugir senão para cima pela corda, e se o sujeito não for
fino leva-o o demo! Sou eu quem o diz!
E depois de uma pausa, acrescentou, tomando na sua mão, grossa como o
próprio cascalho, um paralelepípedo que estava no chão:
— Que digo eu?! Cá está! Macacos de granito! Isto até é uma coisa que
estes burros deviam esconder por vergonha!
Acompanhando a pedreira pelo lado direito e seguindo-a na volta que ela
dava depois, formando um ângulo obtuso, é que se via quanto era grande.
Suava-se bem antes de chegar ao seu limite com a mata.
— Que mina de dinheiro!... dizia o homenzarrão, parando entusiasmado
defronte do novo pano de rocha viva que se desdobrava na presença dele.
— Toda esta parte que se segue agora, declarou João Romão, ainda não é
minha.
E continuaram a andar para diante.
Deste lado multiplicavam-se as barraquinhas; os macaqueiros trabalhavam à
sombra delas, indiferentes àqueles dois. Viam-se panelas ao fogo, sobre quatro
pedras, ao ar livre, e rapazitos tratando do jantar dos pais. De mulher nem sinal.
De vez em quando, na penumbra de um ensombro de lona, dava-se com um
grupo de homens, comendo de cócoras defronte uns dos outros, uma sardinha na
mão esquerda, um pão na direita, ao lado de uma garrafa de água.
— Sempre o mesmo serviço malfeito e mal dirigido!... resmungou o
cavouqueiro.
Entretanto, a mesma atividade parecia reinar por toda a parte. Mas, lá no
fim, debaixo dos bambus que marcavam o limite da pedreira, alguns
trabalhadores dormiam à sombra, de papo para o ar, a barba espetando para o
alto, o pescoço intumescido de cordoveias grossas como enxárcias de navio, a
boca aberta, a respiração forte e tranqüila de animal sadio, num feliz e pletórico
resfolgar de besta cansada.
— Que relaxamento! resmungou de novo o cavouqueiro. Tudo isto está a
reclamar um homem teso que olhe a sério para o serviço!
— Eu nada tenho que ver com este lado! observou Romão.
— Mas lá da sua banda hão de fazer o mesmo! Olará!
— Abusam, porque tenho de olhar pelo negócio lá fora...
— Comigo aqui é que eles não fariam cera. isso juro eu! Entendo que o
empregado deve ser bem pago, ter para a sua comida à farta, o seu gole de
vinho, mas que deve fazer serviço que se veja, ou, então, rua! Rua, que não falta
por ai quem queira ganhar dinheiro! Autorize-me a olhar por eles e verá!
— O diabo é que você quer setenta mil-réis... suspirou João Romão.
— Ah! nem menos um real!... Mas comigo aqui há de ver o que lhe faço
entrar para algibeira! Temos cá muita gente que não precisa estar. Para que tanto
macaqueiro, por exemplo? Aquilo é serviço para descanso; é serviço de criança!
Em vez de todas aquelas lesmas, pagas talvez a trinta mil-réis...
— É justamente quanto lhes dou.
— ... melhor seria tomar dois bons trabalhadores de cinqüenta, que fazem o
dobro do que fazem aqueles monos e que podem servir para outras coisas!
Parece que nunca trabalharam! Olhe, é já a terceira vez que aquele que ali está
deixa cair o escopro! Com efeito!
João Romão ficou calado, a cismar, enquanto voltavam. Vinham ambos
pensativos.
— E você, se eu o tomar, disse depois o vendeiro, muda-se cá para a
estalagem?...
— Naturalmente! não hei de ficar lá na cidade nova, tendo o serviço aqui!...
— E a comida, forneço-a eu?...
— Isso é que a mulher é quem a faz; mas as compras saem-lhe da venda...
— Pois está fechado o negócio! deliberou João Romão, convencido de que
não podia, por economia, dispensar um homem daqueles. E pensou lá de si para
si: “Os meus setenta mil-réis voltar-me-ão à gaveta. Tudo me fica em casa!”
— Então estamos entendidos?...
— Estamos entendidos!
— Posso amanhã fazer a mudança?
— Hoje mesmo, se quiser; tenho um cômodo que lhe há de calhar. É o
número 35. Vou mostrar-lho.
E aligeirando o passo, penetraram na estrada do capinzal com direção ao
fundo do cortiço.
— Ah! é verdade! como você se chama?
— Jerônimo, para o servir.
— Servir a Deus. Sua mulher lava?
— É lavadeira, sim senhor.
— Bem, precisamos ver-lhe uma tina.
E o vendeiro empurrou a porta do fundo da estalagem, de onde escapou,
como de uma panela fervendo que se destapa, uma baforada quente, vozeria
tresandante à fermentação de suores e roupa ensaboada secando ao sol.
V
No dia seguinte, com efeito, ali pelas sete da manhã, quando o cortiço fervia
já na costumada labutação, Jerônimo apresentou-se junto com a mulher, para
tomarem conta da casinha alugada na véspera.
A mulher chamava-se Piedade de Jesus; teria trinta anos, boa estatura, carne
ampla e rija, cabelos fortes de um castanho fulvo, dentes pouco alvos, mas
sólidos e perfeitos, cara cheia, fisionomia aberta; um todo de bonomia toleirona,
desabotoando-lhe pelos olhos e pela boca numa simpática expressão de
honestidade simples e natural.
Vieram ambos à boleia da andorinha que lhes carregou os trens. Ela trazia
uma saia de sarja roxa, cabeção branco de paninho de algodão e na cabeça um
lenço vermelho de alcobaça; o marido a mesma roupa do dia anterior.
E os dois apearam-se muito atrapalhados com os objetos que não confiaram
dos homens da carroça; Jerônimo abraçado a duas formidáveis mangas de vidro,
das primitivas, dessas em que se podia à vontade enfiar uma perna; e a Piedade
atracada com um velho relógio de parede e com uma grande trouxa de santos e
palmas bentas. E assim atravessaram o pátio da estalagem, entre os comentários
e os olhares curiosos dos antigos moradores, que nunca viam sem uma pontinha
de desconfiança os inquilinos novos que surgiam.
— O que será este pedaço de homem? indagou a Machona da sua vizinha de
tina, a Augusta Carne-Mole.
— A modos, respondeu esta, que vem para trabalhar na pedreira. Ele ontem
andou por lá um ror de tempo com o João Romão.
— Aquela mulher que entrou junto será casada com ele?
— É de crer.
— Ela me parece gente das ilhas.
— Eles o que têm é muito bons trastes de seu! interveio a Leocádia. Uma
cama que deve ser um regalo e um toucador com um espelho maior do que
aquela peneira!
— E a cômoda, você viu, Nhá Leocádia? perguntou Florinda, gritando para
ser ouvida, porque entre ela e a outra estavam a Bruxa e a velha Marciana.
— Vi, Rico traste!
— E o oratório, então? Muito bonito!...
— Vi também. É obra de capricho. Não! eles sejam lá quem for, são gente
arranjada... Isso não se lhes pode negar!
— Se são bons ou maus só com o tempo se saberá!... arriscou Dona Isabel.
— Quem vê cara não vê corações... sentenciou o triste Albino, suspirando.
— Mas o número 35 não estava ocupado por aquele homem muito amarelo
que fazia charutos?... inquiriu Augusta.
— Estava, confirmou a mulher do ferreiro, a Leocádia, porém creio que
arribou, devendo não sei quanto, e o João Romão então esvaziou-lhe ontem a
casa e tomou conta do que era dele.
— É! acudiu a Machona; ontem, pelo cair das duas da tarde, o Romão
andava aí às voltas com os cacarecos do charuteiro. Quem sabe, se o pobre
homem não levou a breca, como sucedeu àquele outro que trabalhava de
ourives?
— Não! Este creio que está vivo...
— O que lhe digo é que aquele número 35 tem mau agouro! Eu cá por mim
não o queria nem de graça! Foi lá que morreu a Maricas do Farjão!
Três horas depois, Jerônimo e Piedade achavam-se instalados e
dispunham-se a comer o almoço, que a mulher preparara o melhor e o mais
depressa que pôde. Ele contava aviar até a noite uma infinidade de coisas, para
poder começar a trabalhar logo no dia seguinte.
Era tão metódico e tão bom como trabalhador quanto o era como homem.
Jerônimo viera da terra, com a mulher e uma filhinha ainda pequena, tentar
a vida no Brasil, na qualidade de colono de um fazendeiro, em cuja fazenda
mourejou durante dois anos, sem nunca levantar a cabeça, e de onde afinal se
retirou de mãos vazias e uma grande birra pela lavoura brasileira. Para continuar
a servir na roça tinha que sujeitar-se a emparelhar com os negros escravos e
viver com eles no mesmo meio degradante, encurralado como uma besta, sem
aspirações, nem futuro, trabalhando eternamente para outro.
Não quis. Resolveu abandonar de vez semelhante estupor de vida e atirar-se
para a Corte, onde, diziam-lhe patrícios, todo o homem bem disposto encontrava
furo. E, com efeito, mal chegou, devorado de necessidades e privações, meteu-se
a quebrar pedra em uma pedreira, mediante um miserável salário. A sua
existência continuava dura e precária; a mulher já então lavava e engomava, mas
com pequena freguesia e mal paga. O que os dois faziam chegava-lhes apenas
para não morrer de fome e pagar o quarto da estalagem.
Jerônimo, porém, era perseverante, observador e dotado de certa habilidade.
Em poucos meses se apoderava do seu novo ofício e, de quebrador de pedra,
passou logo a fazer paralelepípedos; e depois foi-se ajeitando com o prumo e
com a esquadria e meteu-se a fazer lajedos; e finalmente, à força de dedicação
pelo serviço, tornou-se tão bom como os melhores trabalhadores de pedreira e a
ter salário igual ao deles. Dentro de dois anos, distinguia-se tanto entre os
companheiros, que o patrão o converteu numa espécie de contramestre e
elevou-lhe o ordenado a setenta mil-réis.
Mas não foram só o seu zelo e a sua habilidade o que o pôs assim para a
frente; duas outras coisas contribuíram muito para isso: a força de touro que o
tornava respeitado e temido por todo o pessoal dos trabalhadores, como ainda, e,
talvez, principalmente, a grande seriedade do seu caráter e a pureza austera dos
seus costumes. Era homem de uma honestidade a toda prova e de uma primitiva
simplicidade no seu modo de viver. Sala de casa para o serviço e do serviço para
casa, onde nunca ninguém o vira com a mulher senão em boa paz; traziam a
filhinha sempre limpa e bem alimentada, e, tanto um como o outro, eram sempre
os primeiros à hora do trabalho. Aos domingos iam às vezes à missa ou, à tarde,
ao Passeio Público; nessas ocasiões, ele punha uma camisa engomada, calçava
sapatos e enfiava um paletó; ela o seu vestido de ver a Deus, os seus ouros
trazidos da terra, que nunca tinham ido ao monte de socorro, malgrado as
dificuldades com que os dois lutaram a principio no Brasil.
Piedade merecia bem o seu homem, muito diligente, sadia, honesta, forte,
bem acomodada com tudo e com todos, trabalhando de sol a sol e dando sempre
tão boas contas da obrigação, que os seus fregueses de roupa, apesar daquela
mudança para Botafogo, não a deixaram quase todos.
Jerônimo, ainda na cidade nova, logo que principiara a ganhar melhor,
fizera-se irmão de uma ordem terceira e tratara de ir pondo alguma coisinha de
parte. Meteu a filha em um colégio, “que a queria com outro saber que não ele, a
quem os pais não mandaram ensinar nada”. Por último, no cortiço em que então
moravam, a sua casinha era a mais decente, a mais respeitada e a mais
confortável; porém, com a morte do seu patrão e com uma reforma estúpida que
os sucessores dele realizaram em todo o serviço da pedreira, o colono
desgostou-se dela e resolveu passar para outra.
Foi então que lhe indicaram a do João Romão, que, depois do desastre do
seu melhor empregado, andava justamente à procura de um homem nas
condições de Jerônimo.
Tomou conta da direção de todo o serviço, e em boa hora o fez, porque dia a
dia a sua influência se foi sentindo no progresso do trabalho. Com o seu
exemplo os companheiros tornavam-se igualmente sérios e zelosos. Ele não
admitia relaxamentos, nem podia consentir que um preguiçoso se demorasse ali
tomando o lagar de quem precisava ganhar o pão. E alterou o pessoal da
pedreira, despediu alguns trabalhadores, admitiu novos, aumentou o ordenado
dos que ficaram, estabelecendo-lhes novas obrigações e reformando tudo para
melhor. No fim de dois meses já o vendeiro esfregava as mãos de contente e via,
radiante, quanto lucrara com a aquisição de Jerônimo; tanto assim que estava
disposto a aumentar-lhe o ordenado para conservá-lo em sua companhia. “Valia
a pena! Aquele homem era um achado precioso! Abençoado fosse o Machucas
que lho enviara!” E começou a distingui-lo e respeitá-lo como não fazia a
ninguém.
O prestigio e a consideração de que Jerônimo gozava entre os moradores da
outra estalagem donde vinha, foi a pouco e pouco se reproduzindo entre os seus
novos companheiros de cortiço. Ao cabo de algum tempo era consultado e
ouvido, quando qualquer questão difícil os preocupava. Descobriam-se defronte
dele, como defronte de um superior, até o próprio Alexandre abria uma exceção
nos seus hábitos e fazia-lhe uma ligeira continência com a mão no boné, ao
atravessar o pátio, todo fardado, por ocasião de vir ou ir para o serviço. Os dois
caixeiros da venda, o Domingos e o Manuel, tinham entusiasmo por ele.
“Aquele é que devia ser o patrão, diziam. É um homem sério e destemido! Com
aquele ninguém brinca!” E, sempre que a Piedade de Jesus ia lá à taverna fazer
as suas compras, a fazenda que lhe davam era bem escolhida, bem medida ou
bem pesada. Muitas lavadeiras tomavam inveja dela, mas Piedade era de natural
tão bom e benfazejo que não deva por isso e a maledicência murchava antes de
amadurecer.
Jerônimo acordava todos os dias às quatro horas da manhã, fazia antes dos
outros a sua lavagem à bica do pátio, socava-se depois com uma boa palangana
de caldo de unto, acompanhada de um pão de quatro; e, em mangas de camisa
de riscado, a cabeça ao vento, os grossos pés sem meias metidos em um
formidável par de chinelos de couro cru, seguia para a pedreira.
A sua picareta era para os companheiros o toque de reunir. Aquela
ferramenta movida por um pulso de Hércules valia bem os clarins de um
regimento tocando alvorada. Ao seu retinir vibrante surgiam do caos opalino das
neblinas vultos cor de cinza, que lá iam, como sombras, galgando a montanha,
para cavar na pedra o pão nosso de cada dia. E, quando o sol desfechava sobre o
píncaro da rocha os seus primeiros raios, já encontrava de pé, a bater-se contra o
gigante de granito, aquele mísero grupo de obscuros batalhadores.
Jerônimo só voltava a casa ao descair da tarde, morto de fome e de fadiga. A
mulher preparava-lhe sempre para o jantar alguma das comidas da terra deles. E
ali, naquela estreita salinha, sossegada e humilde, gozavam os dois, ao lado um
do outro, a paz feliz dos simples, o voluptuoso prazer do descanso após um dia
inteiro de canseiras ao sol. E, defronte do candeeiro de querosene, conversavam
sobre a sua vida e sobre a sua Marianita, a filhinha que estava no colégio e que
só os visitava aos domingos e dias santos.
Depois, até às horas de dormir, que nunca passavam das nove, ele tomava a
sua guitarra e ia para defronte da porta, junto com a mulher, dedilhar os fados da
sua terra. Era nesses momentos que dava plena expansão às saudades da pátria,
com aquelas cantigas melancólicas em que a sua alma de desterrado voava das
zonas abrasadas da América para as aldeias tristes da sua infância.
E o canto daquela guitarra estrangeira era um lamento choroso e dolorido, eram
vozes magoadas, mais tristes do que uma oração em alto-mar, quando a
tempestade agita as negras asas homicidas, e as gaivotas doidejam assanhadas,
cortando a treva com os seus gemidos pressagos, tontas como se estivessem
fechadas dentro de uma abóbada de chumbo.
VI
Amanhecera um domingo alegre no cortiço, um bom dia de abril. Muita luz
e pouco calor.
As tinas estavam abandonadas; os coradouros despidos. Tabuleiros e
tabuleiros de roupa engomada saiam das casinhas, carregados na maior parte
pelos filhos das próprias lavadeiras que se mostravam agora quase todas de fato
limpo; os casaquinhos brancos avultavam por cima das saias de chita de cor.
Desprezavam-se os grandes chapéus de palha e os aventais de aniagem; agora as
portuguesas tinham na cabeça um lenço novo de ramagens vistosas e as
brasileiras haviam penteado o cabelo e pregado nos cachos negros um ramalhete
de dois vinténs; aquelas trancavam no ombro xales de lã vermelha, e estas de
crochê, de um amarelo desbotado. Viam-se homens de corpo nu, jogando a
placa, com grande algazarra. Um grupo de italianos, assentado debaixo de uma
árvore, conversava ruidosamente, fumando cachimbo. Mulheres ensaboavam os
filhos pequenos debaixo da bica, muito zangadas, a darem-lhes murros, a
praguejar, e as crianças berravam, de olhos fechados, esperneando. A casa da
Machona estava num rebuliço, porque a família ia sair a passeio; a velha gritava,
gritava Nenen, gritava o Agostinho. De muitas outras saiam cantos ou sons de
instrumentos; ouviam-se harmônicas e ouviam-se guitarras, cuja discreta
melodia era de vez em quando interrompida por um ronco forte de trombone.
Os papagaios pareciam também mais alegres com o domingo e lançavam
das gaiolas frases inteiras, entre gargalhadas e assobios. À porta de diversos
cômodos, trabalhadores descansavam, de calça limpa e camisa de meia lavada,
assentados em cadeira, lendo e soletrando jornais ou livros; um declamava em
voz alta versos de “Os Lusíadas:, com um empenho feroz, que o punha rouco.
Transparecia neles o prazer da roupa mudada depois de uma semana no corpo.
As casinhas fumegavam um cheiro bom de refogados de carne fresca fervendo
ao fogo. Do sobrado do Miranda só as duas últimas janelas já estavam abertas e,
pela escada que descia para o quintal, passava uma criada carregando baldes de
águas servidas. Sentia-se naquela quietação de dia inútil a falta do resfolegar
aflito das máquinas da vizinhança, com que todos estavam habituados. Para
além do solitário capinzal do fundo a pedreira parecia dormir em paz o seu sono
de pedra; mas, em compensação, o movimento era agora extraordinário à frente
da estalagem e à entrada da venda. Muitas lavadeiras tinham ido para o portão,
olhar quem passava; ao al do delas o Albino, vestido de branco, com o seu lenço
engomado ao pescoço, entretinha-se a chupar balas de açúcar, que comprara ali
mesmo ao tabuleiro de um baleiro freguês do cortiço.
Dentro da taverna, os martelos de vinho branco, os copos de cerveja
nacional e os dois vinténs de parati ou laranjinha sucediam-se por cima do
balcão, passando das mãos do Domingos e do Manuel para as mãos ávidas dos
operários e dos trabalhadores, que os recebiam com estrondosas exclamações de
pândega. A Isaura, que fora num pulo tomar o seu primeiro capilé, via-se tonta
com os apalpões que lhe davam. Leonor não tinha um instante de sossego,
saltando de um lado para outro, com uma agilidade de mono, a fugir dos punhos
calosos dos cavouqueiros que, entre risadas, tentavam agarrá-la; e insistia na sua
ameaça do costume: “que se queixava ao juiz de orfe”, mas não se ia embora,
porque defronte da venda viera estacionar um homem que tocava cinco
instrumentos ao mesmo tempo, com um acompanhamento desafinado de bombo,
pratos e guizos.
Eram apenas oito horas e já muita gente comia e palavreava na casa de pasto
ao lado da venda. João Romão, de roupa mudada como os outros, mas sempre
em mangas de camisa, aparecia de espaço em espaço, servindo os comensais; e a
Bertoleza, sempre suja e tisnada, sempre sem domingo nem dia santo, lá estava
ao fogão, mexendo as panelas e enchendo os pratos.
Um acontecimento, porém, veio revolucionar alegremente toda aquela
confederação da estalagem. Foi a chegada da Rita Baiana, que voltava depois de
uma ausência de meses, durante a qual só dera noticias suas nas ocasiões de
pagar o aluguei do cômodo.
Vinha acompanhada por um moleque, que trazia na cabeça um enorme
samburá carregado de compras feitas no mercado; um grande peixe espiava por
entre folhas de alface com o seu olhar embaciado e triste, contrastando com as
risonhas cores dos rabanetes, das cenouras e das talhadas de abóbora vermelha.
— Põe isso tudo ai nessa porta. Ai no número 9, pequeno! gritou ela ao
moleque, indicando-lhe a sua casa, e depois pagou-lhe o carreto. — Podes ir
embora, carapeta!
Desde que do portão a bisparam na rua, levantou-se logo um coro de
saudações.
— Olha! quem ai vem!
— Olé! Bravo! É a Rita Baiana!
— Já te fazíamos morta e enterrada!
— E não é que o demo da mulata está cada vez mais sacudida?...
— Então, coisa-ruim! por onde andaste atirando esses quartos?
— Desta vez a coisa foi de esticar, hein?!
Rita havia parado em meio do pátio.
Cercavam-na homens, mulheres e crianças; todos queriam novas dela. Não
vinha em traje de domingo; trazia casaquinho branco, uma saia que lhe deixava
ver o pé sem meia num chinelo de polimento com enfeites de marroquim de
diversas cores. No seu farto cabelo, crespo e reluzente, puxado sobre a nuca,
havia um molho de manjericão e um pedaço de baunilha espetado por um
gancho. E toda ela respirava o asseio das brasileiras e um odor sensual de trevos
e plantas aromáticas. Irrequieta, saracoteando o atrevido e rijo quadril baiano,
respondia para a direita e para a esquerda, pondo à mostra um fio de dentes
claros e brilhantes que enriqueciam a sua fisionomia com um realce fascinador.
Acudiu quase todo o cortiço para recebê-la. Choveram abraços e as chufas
do bom acolhimento.
Por onde andara aquele diabo, que não aparecia para mais de três meses?
— Ora, nem me fales, coração! Sabe? pagode de roga! Que hei de fazer? é a
minha cachaça velha!...
— Mas onde estiveste tu enterrada tanto tempo, criatura?
— Em Jacarepaguá.
— Com quem?
— Com o Firmo...
— Oh! Ainda dura isso?
— Cala a boca! A coisa agora é séria!
— Qual! Quem mesmo? Tu? Passa fora!
— Paixões da Rita! exclamou o Bruno com uma risada. Uma por ano! Não
contando as miúdas!
— Não! isso é que não! Quando estou com um homem não olho pra outro!
Leocádia, que era perdida pela mulata, saltara-lhe ao pescoço ao primeiro
encontro, e agora, defronte dela, com as mãos nas cadeiras, os olhos úmidos de
comoção, rindo, sem se fartar de vê-la, fazia-lhe perguntas sobre perguntas:
— Mas por que não te metes tu logo por uma vez com o Firmo? por que não
te casas com ele?
— Casar? protestou a Rita. Nessa não cai a filha de meu pai! Casar? Livra!
Para quê? para arranjar cativeiro? Um marido é pior que o diabo; pensa logo que
a gente é escrava! Nada! qual! Deus te livre! Não há como viver cada um senhor
e dono do que é seu!
E sacudiu todo o corpo num movimento de desdém que lhe era peculiar.
— Olha só que peste! considerou Augusta, rindo, muito mole, na sua
honestidade preguiçosa.
Esta também achava infinita graça na Rita Baiana e seria capaz de levar um
dia inteiro a vê-la dançar o chorado.
Florinda ajudava a mãe a preparar o almoço, quando lhe cheirou que
chegara a mulata, e veio logo correndo, a rir-se desde longe, cair-lhe nos braços.
A própria Marciana, de seu natural sempre triste e metida consigo, apareceu à
janela, para saudá-la. A das Dores, com as saias arrepanhadas no quadril e uma
toalha por cima amarrada pela parte de trás e servindo de avental, o cabelo ainda
por pentear, mas entrouxado no alto da cabeça, abandonou a limpeza que fazia
em casa e veio ter com a Rita, para dar-lhe uma palmada e gritar-lhe no nariz:
— Desta vez tomaste um fartão, hein, mulata assanhada?...
E, ambas a caírem de riso, abraçaram-se em intimidade de amigas, que não
têm segredos de amor uma para a outra.
A Bruxa veio em silêncio apertar a mão de Rita e retirou-se logo.
— Olha a feiticeira! bradou esta última, batendo no ombro da idiota. Que
diabo você tanto reza, tia Paula? Eu quero que você me dê um feitiço para
prender meu homem!
E tinha uma frase para cada um que se aproximasse. Ao ver Dona Isabel,
que apareceu toda cerimoniosa na sua saia da missa e com o seu velho xale de
Macau, abraçou-a e pediu-lhe uma pitada, que a senhora recusou, resmungando:
— Sai daí diabo!
— Cadê Pombinha? perguntou a mulata.
Mas, nessa ocasião, Pombinha acabava justamente de sair de casa, muito
bonita e asseada com um vestido novo de cetineta. As mãos ocupadas com o
livro de rezas, o lenço e a sombrinha.
— Ah! Como está chique! exclamou a Rita, meneando a cabeça. É mesmo
uma flor! — e logo que Pombinha se pôs ao seu alcance, abraçou-lhe a cintura e
deu-lhe um beijo. — O João Costa se não te fizer feliz como os anjos sou capaz
de abrir-lhe o casco com o salto do chinelo! Juro pelos cabelos do meu homem!
— E depois, tornando-se séria, perguntou muito em voz baixa a Dona Isabel: —
Já veio?... ao que a velha respondeu negativamente com um desconsolado e
mudo abanar de orelhas.
O circunspecto Alexandre, sem querer declinar da sua gravidade, pois que
estava fardado e pronto para sair, contentou-se em fazer com a mão um
cumprimento à mulata, ao qual retrucou esta com uma continência militar e uma
gargalhada que o desconcertaram.
Iam fazer comentários sobre o caso, mas a Rita, voltando-se para o outro
lado, gritou:
— Olha o velho Libório! Como está cada vez mais duro!... Não se entrega
por nada o demônio do judeu!
E correu para o lugar, onde estava, aquecendo-se ao belo sol de abril, um
octogenário, seco, que parecia mumificado pela idade, a fumar num resto de
cachimbo, cujo pipo desaparecia na sua boca já sem lábios.
— Êh! êh! fez ele, quando a mulata se aproximou.
— Então? perguntou Rita, abaixando-se para tocar-lhe no ombro. Quando é
o nosso negócio?... Mas você há de deixar-me primeiro abrir o bauzinho de
folha!...
Libório riu-se com as gengivas, tentando apalpar as coxas da Baiana, por
caçoada, afetando luxúria.
Todos acharam graça nesta pantomimice do velhinho, e então, a mulata,
para completar a brincadeira, deu uma volta entufando as saias e sacudiu-as
depois sobre a cabeça dele, que se fingiu indignado, a fungar exageradamente.
E entre a alegria levantada pela sua reaparição no cortiço, a Rita deu conta
de que pintara na sua ausência; disse o muito que festou em Jacarepaguá; o
entrudo que fizera pelo carnaval. Três meses de folia! E, afinal abaixando a voz,
segredou às companheiras que à noite teriam um pagodinho de violão. Podiam
contar como certo!
Esta última noticia causou verdadeiro júbilo no auditório. As patuscadas da
Rita Baiana eram sempre as melhores da estalagem. Ninguém como o diabo da
mulata para armar uma função que ia pelas tantas da madrugada, sem saber a
gente como foi que a noite se passou tão depressa. Além de que “era aquela
franqueza! enquanto houvesse dinheiro ou crédito, ninguém morria com a tripa
marcha ou com a goela seca!”
— Diz-me cá, ó Leocadinha! quem são aqueles jururus que estão agora no
35? indagou ela, vendo o Jerônimo à porta da casa com a mulher.
— Ah! explicou a interrogada, é o Jeromo e mais a Piedade, um casal que
inda não conheces. Entrou ao depois que arribaste. Boa gente, coitados!
Rita carregou para dentro do seu cômodo as provisões que trouxera; abriu
logo a janela e pôs-se a cantar. Sua presença enchia de alegria a estalagem toda.
O Firmo, o mulato com quem ela agora vivia metida, o demônio que a
desencabeçara para aquela maluqueira, de Jacarepaguá, ia lá jantar esse dia com
um amigo. Rita declarava isto às companheiras, amolando uma faquinha no
tijolo da sua porta, para escamar o peixe; enquanto os gatos, aqueles mesmos
que perseguiam o sardinheiro, vinham, um a um, chegando-se todos só com o
ruído da afiação do ferro.
Ao lado direito da casinha da mulata, no número 8, a das Dores
preparava-se também para receber nesse dia o seu amigo e dispunha-se a fazer
uma limpeza geral nas paredes, nos tetos, no chão e nos móveis, antes de
meter-se na cozinha. Descalça, com a saia levantada até ao joelho, uma toalha na
cabeça, os braços arregaçados, viam-na passar de carreira, de casa para a bica e
da bica outra vez para casa, carregando pesados baldes cheios de água. E daí a
pouco apareciam ajudantes gratuitos para os arranjos do jantar, tanto do lado da
das Dores, como do lado da Rita Baiana. O Albino encarregou-se de varrer e
arrumar a casa desta, entretanto que a mulata ia para o fogão preparar os seus
quitutes do Norte. E veio a Florinda, e veio a Leocádia, e veio a Augusta,
impacientes todas elas pelo pagode que havia de sair à noite, depois do jantar.
Pombinha não apareceu durante o dia, porque estava muito ocupada, aviando a
correspondência dos trabalhadores e das lavadeiras: serviço este que ela deixava
para os domingos.
Numa pequena mesa, coberta por um pedaço de chita, com o tinteiro ao lado
da caixinha de papel, a menina escrevia, enquanto o dono ou dona da carta
ditava em voz alta o que queria mandar dizer à família. ou a algum mau devedor
de roupa lavada. E ia lançando tudo no papel, apenas com algumas ligeiras
modificações, para melhor, no modo de exprimir a idéia. Pronta uma carta,
sobrescritava-a, entregava-a ao dono e chamava por outro, ficando a sós com um
de cada vez, pois que nenhum deles queria dar o seu recado em presença de mais
ninguém senão de Pombinha. De sorte que a pobre rapariga ia acumulando no
seu coração de donzela toda a súmula daquelas paixões e daqueles
ressentimentos, às vezes mais fétidos do que a evaporação de um lameiro em
dias de grande calor.
— Escreva lá, Nhã Pombinha! disse junto dela um cavouqueiro, coçando a
cabeça; mas faça letra grande, que é pra mulher entender! Diga-lhe que não
mando desta feita o dinheiro que me pediu, porque agora não o tenho e estou
muito acossado de apertos; mas que lho prometo pro mês. Ela que se vá
arranjando por lá, que eu cá sabe Deus como me coço; e que, se o Luís, o irmão,
resolver de vir, que mo mande dizer com tempo, para ver se se lhe dá furo à vida
por aqui; que isto de vir sem inda ter p’ronde, é fraco negócio, porque as coisas
por cá não correm lá para que digamos!
E depois que a Pombinha escreveu, acrescentou:
— Que eu tenho sentido muito a sua falta dela; mas também sou o mesmo e
não me meto em porcarias e relaxamento; e que tenciono mandar buscá-la, logo
que Deus me ajude, e a Virgem! Que ela não tem de que se arreliar por mor do
dinheiro não ir desta; que, como lá diz o outro: quando não há el-rei o perde!
Ah! (ia esquecendo!) quanto à Libânia, é tirar daí o juízo! que a Libânia se
atirou aos cães e faz hoje má vida na Rua de São Jorge; que se esqueça dela por
vez e perca o amor às duas coroas que lhe emprestou!
E a menina escrevia tudo, tudo, apenas interrompendo o seu trabalho para
fitar, com a mão no queixo, o cavouqueiro, à espera de nova frase.
VII
E assim ia correndo o domingo no cortiço até às três da tarde, horas em que
chegou mestre Firmo, acompanhado pelo seu amigo Porfiro, trazendo aquele o
violão e o outro o cavaquinho.
Firmo, o atual amante de Rita Baiana, era um mulato pachola, delgado de
corpo e ágil como um cabrito; capadócio de marca, pernóstico, só de maçadas, e
todo ele se quebrando nos seus movimentos de capoeira. Teria seus trinta e
tantos anos, mas não parecia ter mais de vinte e poucos. Pernas e braços finos,
pescoço estreito, porém forte; não tinha músculos, tinha nervos. A respeito de
barba, nada mais que um bigodinho crespo, petulante, onde reluzia cheirosa a
brilhantina do barbeiro; grande cabeleira encaracolada, negra, e bem negra,
dividida ao meio da cabeça, escondendo parte da testa e estufando em grande
gaforina por debaixo da aba do chapéu de palha, que ele punha de banda,
derreado sobre a orelha esquerda.
Vestia, como de costume, um paletó de lustrina preta já bastante usado,
calças apertadas nos joelhos, mas tão largas na bainha que lhe engoliam os
pezinhos secos e ligeiros. Não trazia gravata, nem colete, sim uma camisa de
chita nova e ao pescoço, resguardando o colarinho, um lenço alvo e perfumado;
à boca um enorme charuto de dois vinténs e na mão um grosso porrete de
Petrópolis, que nunca sossegava, tantas voltas lhe dava ele a um tempo por entre
os dedos magros e nervosos.
Era oficial de torneiro, oficial perito e vadio; ganhava uma semana para
gastar num dia; às vezes, porém, os dados ou a roleta multiplicavam-lhe o
dinheiro, e então ele fazia como naqueles últimos três meses: afogava-se numa
boa pândega com a Rita Baiana. A Rita ou outra. “O que não faltava por aí eram
saias para ajudar um homem a cuspir o cobre na boca do diabo!” Nascera no Rio
de Janeiro, na Corte; militara dos doze aos vinte anos em diversas maltas de
capoeiras; chegara a decidir eleições nos tempos do voto indireto. Deixou nome
em várias freguesias e mereceu abraços, presentes e palavras de gratidão de
alguns importantes chefes de partido. Chamava a isso a sua época de paixão
política; mas depois desgostou-se com o sistema de governo e renunciou às lutas
eleitorais, pois não conseguira nunca o lugar de continuo numa repartição
pública — o seu ideal! —Setenta mil-réis mensais: trabalho das nove às três.
Aquela amigação com a Rita Baiana era uma coisa muito complicada e
vinha de longe; vinha do tempo em que ela ainda estava chegadinha de fresco da
Bahia, em companhia da mãe, uma cafuza dura, capaz de arrancar as tripas ao
Manduca da Praia. A cafuza morreu e o Firmo tomou conta da mulata; mas
pouco depois se separaram por ciúmes, o que aliás não impediu que se
tornassem a unir mais tarde, e que de novo brigassem e de novo se procurassem.
Ele tinha “paixa” pela Rita, e ela, apesar de volúvel como toda a mestiça, não
podia esquecê-lo por uma vez; metia-se com outros, é certo, de quando em
quando, e o Firmo então pintava o caneco, dava por paus e por pedras, enchia-a
de bofetadas, mas, afinal, ia procurá-la, ou ela a ele, e ferravam-se de novo, cada
vez mais ardentes, como se aquelas turras constantes reforçassem o combustível
dos seus amores.
O amigo que Firmo trazia aquele domingo em sua companhia, o Porfiro, era
mais velho do que ele e mais escuro. Tinha o cabelo encarapinhado. Tipógrafo.
Afinavam-se muito os dois tipos com as suas calças de boca larga e com os seus
chapéus ao lado; mas o Porfiro tinha outra linha: não dispensava a sua gravata
de cor saltando em laço frouxo sobre o peito da camisa; fazia questão da sua
bengalinha com cabeça de prata e da sua piteira de âmbar e espuma, em que ele
equilibrava um cigarro de palha.
Desde a entrada dos dois, a casa de Rita esquentou. Ambos tiraram os
paletós e mandaram vir parati, “a abrideira para muqueca baiana”. E não tardou
que se ouvissem gemer o cavaquinho e o violão.
Ao lado chegava também o homem da das Dores, com um companheiro do
comércio; vinham vestidos de fraque e chapéu alto. A Machona, Nenen e o
Agostinho, já de volta do seu passeio à cidade, lá estavam ajudando. Ficariam
para o rega-bofe.
Um rumor quente, de dia de festa, ia-se formando naquele ponto da
estalagem.
Tanto numa casa, como na outra, o jantar seria às cinco horas. Rita “botou”
vestido branco, de cambraia, encanudado a ferro. Leocádia, Augusta, o Bruno, o
Alexandre e o Albino jantariam com ela no número 9; e no número 8, com a das
Dores, ficariam, além dos parentes desta, Dona Isabel, Pombinha, Marciana e
Florinda.
Jerônimo e sua mulher foram convidados para ambas as mesas, mas não
aceitaram o convite para nenhuma, dispostos a passar a tarde ao lado um do
outro, tranqüilamente como sempre, comendo em boa paz o seu cozido à moda
da terra e bebendo o seu quartilho de verde pela mesma infusa.
Entretanto, os dois jantares vizinhos principiaram ruidosos logo desde a
sopa e assanharam-se progressivamente.
Meia hora depois vinha das duas casas uma algazarra infernal. Falavam e
riam todos ao mesmo tempo; tilintavam os talheres e os copos. Cá de fora
sentia-se perfeitamente o prazer que aquela gente punha em comer e beber à
farta, com a boca cheia, os beiços envernizados de molho gordo. Alguns cães
rosnavam à porta, roendo os ossos que traziam lá de dentro. De vez em quando,
da janela de uma das casas aparecia uma das moradoras, chamando a vizinha,
para entregar um prato cheio, permutando as duas entre si os quitutes e as
petisqueiras em que eram mais peritas.
— Olha! gritava a das Dores para o número 9, diz à Rita que prove deste
zorô, pra ver que tal o acha, e que o vatapá estava muito gostoso! Se ela tem
pimentas, que me mande algumas!
Do meio para o fim do jantar o baralho em ambas as casas era medonho. No
número 8 berravam-se brindes e cantos desafinados. O português amigo da das
Dores, já desengravatado e com os braços à mostra, vermelho, lustroso de suor,
intumescido de vinho virgem e leitão de forno, repotreava-se na sua cadeira, a
rir forte, sem calar a boca, com a camisa a espipar-lhe pela braguilha aberta. O
sujeito que a acompanhara fazia fosquinhas a Nenen, protegido no seu namoro
por toda a roda, desde a respeitável Machona até ao endemoninhado Agostinho,
que não ficava quieto um instante, nem deixava sossegar a mãe, gritando um
contra o outro como dois possessos. Florinda, sempre muito risonha e esperta,
divertia-se a valer e, de vez em quando, levantava-se da mesa, para ir de carreira
levar lá fora ao número 12 um prato de comida à sua velha que, à última hora,
vindo-lhe o aborrecimento, resolvera não ir ao jantar. À sobremesa o esfogueado
amigo da dona da casa exigiu que a amante se lhe assentasse nas coxas e
dava-lhe beijos em presença de toda a companhia, o que fez com que Dona
Isabel, impaciente por afastar a filha daquele inferno, declarasse que sentia
muito calor e que ia lá para a porta esperar mais à fresca o café.
Em casa de Rita Baiana a animação era inda maior. Firmo e Porfiro faziam
o diabo, cantando, tocando bestialógicos, arremedando a fala dos pretos
cassanges. Aquele não largava a cintura da mulata e só bebia no mesmo copo
com ela; o outro divertia-se a perseguir o Albino, galanteando-o afetadamente,
para fazer rir à sociedade. O lavadeiro indignava-se, dava o cavaco”. Leocádia,
a quem o vinho produzira delírios hilaridade, torcia-se em gargalhadas, tão
fortes e sacudidas que desconjuntavam a cadeira em que ela estava; e, muito
lubrificada pela bebedeira, punha os pesados pés sobre os de Porfiro, roçando as
pernas contra as dele e deixando-se apalpar pelo capadócio. O Bruno, defronte
dela, rubro e suado como se estivesse a trabalhar na forja, falava e gesticulava
sem se levantar, praguejando ninguém sabia contra quem. O Alexandre, à
paisana, assentado ao lado da mulher, conservava quase toda a sua seriedade e
pedia que não fizessem tanto barulho porque podiam ouvir da rua. E notou, em
voz misteriosa, que o Miranda tinha vindo já espiar por várias vezes da janela do
sobrado.
— Que espie as vezes que quiser! bradou a Rita. Pois então a gente não é
senhora de estar um domingo em casa a seu gosto e com os amigos que
entender?!... Que vá pro diabo que o lixe! Eu não como nem bebo do que é dele!
Os dois mulatos e o Bruno também eram da mesma opinião. “Pois então!
Desde que se não ofendia, nem prejudicava a safardana nenhum com aquele
divertimento, não havia de que falar!”
— E que não entiquem muito, ameaçou o Firmo, que comigo é nove! E o
trunfo é paus!
O Porfiro exclamou:
— Se se incomodam com a gente... os incomodados são os que se mudam!
Ora pistolas!
— O domingo fez-se pra gozar!... resmungou o Bruno, deixando cair a
cabeça nos braços cruzados sobre a mesa.
Mas ergueu-se logo, cambaleando, e acrescentou, despindo o braço direito
até o ombro:
— Eles que se façam finos, que os racho!
O Alexandre procurou acalmá-lo, dando-lhe um charuto.
Em uma outra casinha do cortiço acabava de estalar uma nova sobremesa,
engrossando o barulho geral: era o jantar de um grupo de italianos mascates,
onde o Delporto, o Pompeo, o Francesco e o Andréa representavam as principais
figuras. Todos eles cantavam em coro, mais afinados que nas outras duas casas;
quase, porém, que se lhes não podia ouvir as vozes, tantas e tão estrondosas
eram as pragas que soltavam ao mesmo tempo. De quando em quando, de entre
o grosso e macho vozear dos homens, esguichava um falsete feminino, tão
estridente que provocava réplica aos papagaios e aos perus da vizinhança. E,
daqui e dali, iam rebentando novas algazarras em grupos formados cá e lá pela
estalagem. Havia nos operários e nos trabalhadores decidida disposição para
pandegar, para aproveitar bem, até ao fim, aquele dia de folga. A casa de pasto
fermentava revolucionada, como um estômago de bêbedo depois de grande
bródio, e arrotava sobre o pátio uma baforada quente e ruidosa que entontecia.
O Miranda apareceu furioso à janela, com o seu tipo de comendador, a
barriga empinada para a frente, de paletó branco, um guardanapo ao pescoço e
um trinchante empunhado na destra, como uma espada.
— Vão gritar pra o inferno, com um milhão de raios! berrou ele, ameaçando
para baixo. Isto também já é demais! Se não se calam, vou daqui direito chamar
a policia! Súcia de brutos!
Com os berros do Miranda muita gente chegou à porta de casa, e o coro de
gargalhadas, que ninguém podia conter naquele momento de alegria, ainda mais
o pôs fora de si.
— Ah, canalhas! O que eu devia fazer era atirar-lhes daqui, como a cães
danados!
Uma vaia uníssona ecoou em todo o pátio da estalagem, enquanto em volta
do negociante surgiam várias pessoas, puxando-o para dentro de casa.
— Que é isso, Miranda! Então! Estás agora a dar palha?...
— O que eles querem é que encordoes!...
— Saia daí papai!
— Olhe alguma pedrada, esta gente é capaz de tudo!
E via-se de relance Dona Estela, com a sua palidez de flor meia fanada, e
Zulmira, lívida, um ar de fastio a fazê-la feia, e o Henriquinho, cada vez mais
bonito, e o velho Botelho, indiferente, a olhar para toda esta porcaria do mundo
com o profundo desprezo dos que já não esperam nada dos outros, nem de si
próprios.
— Canalhas! repisava o Miranda.
O Alexandre, que fora de carreira enfiar a sua farda, apresentou-se então e
disse ao negociante que não era prudente atirar insultos cá pra baixo. Ninguém o
tinha provocado! Se os moradores da estalagem jantavam em companhia de
amigos, lá em cima o Miranda também estava comendo com os seus
convidados! Era mau insultar, porque palavra puxa palavra, e, em caso de ter de
depor na policia, ele, Alexandre, deporia a favor de quem tivesse razão!...
— Fomente-se! respondeu o negociante, voltando-lhe as costas.
— Já se viu chubregas mais atrevido?! exclamou Firmo, que até ai estivera
calado, à porta da Rita, com as mãos nas cadeiras, a fitar provocadoramente o
Miranda.
E gritando mais alto, para ser bem ouvido:
— Facilita muito, meu boi manso, que te escorvo os galhos na primeira
ocasião!
O Miranda foi arrancado com violência da janela, e esta fechada logo em
seguida com estrondo.
— Deixa lá esse labrego! resmungou Porfiro, tomando o amigo pelo braço e
fazendo-o recolher-se à casa da mulata. Vamos ao café, é o que é, antes que
esfrie!
Defronte da porta de Rita tinham vindo postar-se diversos moradores do
cortiço, jornaleiros de baixo salário, pobre gente miserável, que mal podia matar
a fome com o que ganhava. Ainda assim não havia entre eles um só triste. A
mulata convidou-os logo a comer um bocado e beber um trago. A proposta foi
aceita alegremente.
E a casa dela nunca se esvaziava.
Anoitecia já.
O velho Libório, que jamais ninguém sabia ao certo onde almoçava ou
jantava, surgiu do seu buraco, que nem jabuti quando vê chuva.
Um tipão, o velho Libório! Ocupava o pior canto do cortiço e andava
sempre a fariscar os sobejos alheios, filando aqui, filando ali, pedindo a um e a
outro, como um mendigo, chorando misérias eternamente, apanhando pontas de
cigarro para fumar no cachimbo, cachimbo que o sumítico roubara de um pobre
cego decrépito. Na estalagem diziam todavia que Libório tinha dinheiro
aferrolhado, contra o que ele protestava ressentido, jurando a sua extrema
penaria. E era tão feroz o demônio naquela fome de cão sem dono, que as mães
recomendavam às suas crianças todo o cuidado com ele, porque o diabo do
velho, quando via algum pequeno desacompanhado, punha-se logo a rondá-lo, a
cercá-lo de festas e a fazer-lhe ratices para o engabelar, até conseguir furtar-lhe
o doce ou o vintenzinho que o pobrezito trazia fechado na mão.
Rita fê-lo entrar e deu-lhe de comer e de beber; mas sob condição de que o
esfomeado não se socasse demais, para não rebentar ali mesmo.
Se queria estourar, fosse estourar para longe!
Ele pôs-se logo a devorar, sofregamente, olhando inquieto para os lados,
como se temesse que alguém lhe roubasse a comida da boca. Engolia sem
mastigar, empurrando os bocados com os dedos, agarrando-se ao prato e
escondendo nas algibeiras o que não podia de uma só vez meter para dentro do
corpo.
Causava terror aquela sua implacável mandíbula, assanhada e devoradora;
aquele enorme queixo, ávido, ossudo e sem um dente, que parecia ir engolir
tudo, tudo, principiando pela própria cara, desde a imensa batata vermelha que
ameaçava já entrar-lhe na boca, até as duas bochechinhas engelhadas, os olhos,
as orelhas, a cabeça inteira, inclusive a sua grande calva, lisa como um queijo e
guarnecida em redor por uns pêlos puídos e ralos como farripas de coco.
Firmo propôs embebedá-lo, só para ver a sorte que ele daria. O Alexandre e
a mulher opuseram-se, mas rindo muito; nem se podia deixar de rir, apesar do
espanto, vendo aquele resto de gente, aquele esqueleto velho, coberto por uma
pele seca, a devorar, a devorar sem tréguas, como se quisesse fazer provisão
para uma outra vida.
De repente, um pedaço de carne, grande demais para ser ingerido de uma
vez, engasgou-o seriamente. Libório começou a tossir, aflito, com os olhos
sumidos, a cara tingida de uma vermelhidão apoplética. A Leocádia, que era
quem lhe ficava mais perto, soltou-lhe um murro nas costas.
O glutão arremessou sobre a toalha da mesa o bocado de carne já meio
triturado.
Foi um nojo geral.
— Porco! gritou Rita, arredando-se.
— Pois se o bruto quer socar tudo ao mesmo tempo! disse Porfiro. Parece
que nunca viu comida, este animal!
E notando que ele continuava ainda mais sôfrego por ter perdido um
instante:
— Espere um pouco, lobo! Que diabo! A comida não foge! Há muito ai
com que te fartares por uma vez! Com efeito!
— Beba água, tio Libório! aconselhou Augusta.
E, boa, foi buscar um copo de água e levou-lho a boca.
O velho bebeu, sem despregar os olhos do prato.
Arre diabo! resmungou Porfiro, cuspindo para o lado. Este é mesmo capaz
de comer-nos a todos nós, sem achar espinhas!
Albino, esse, coitado! é que não comia quase nada e o pouco que conseguia
meter no estômago fazia-lhe mal. Rita, para bolir com ele, disse que semelhante
fastio era gravidez com certeza.
— Você já começa, hein?... balbuciou o pobre moço, esgueirando-se com a
sua xícara de café.
— Olha, cuidado! gritou-lhe a mulata. Pouco café, que faz mal ao leite, e a
criança pode sair trigueira!
O Albino voltou para dizer muito sério à Rita que não gostava dessas
brincadeiras.
Alexandre, que havia acendido um charuto, depois de oferecer outros,
galantemente, aos companheiros, arriscou, para também fazer a sua pilhéria, que
o sonso do Albino fora pilhado às voltas com a Bruxa no capinzal dos fundos da
estalagem, debaixo das mangueiras.
Só a Leocádia achou graça nisto e riu a bandeiras despregadas. Albino
declarou, quase chorando, que ele não mexia com pessoa alguma, e que
ninguém, por conseguinte, devia mexer com ele.
— Mas afinal, perguntou Porfiro, é mesmo exato que este pamonha não
conhece mulher?...
— Ele é quem pode responder! acudiu a mulata. E esta história vai ficar
hoje liquidada! Vamos lá, ó Albino! confessa-nos tudo, ou mal te terás de haver
com a gente!
— Se eu soubesse que era para isto que me chamaram não tinha vindo cá,
sabe? gaguejou o lavadeiro, amuado. Eu não sirvo de palito!
E ter-se-ia retirado chorando, se a Rita não lhe cortasse a saída, dizendo,
como se falasse a uma criatura do seu sexo, mais fraca do que ela:
— Ora não sejas tolo! Deixa-te ficar ai! Se deres o cavaco é pior!
Albino limpou as lágrimas e foi sentar-se de novo.
Entretanto, a noite fechava-se, refrescando a tarde com o sudoeste. Bruno
roncava no lugar em que tinha jantado. A Leocádia passara livremente a perna
para cima da de Porfiro, que a abraçava, bebendo parati aos cálices.
Mas o Firmo lembrou que seria melhor irem lá para fora; e todos, menos o
Bruno, dispuseram-se a deixar a sala, enquanto o velho Libório! pedia a
Alexandre um cigarro para despejar no cachimbo. Servido, o filante desapareceu
logo, correndo ao faro de outros jantares. Rita, Augusta e Albino ficaram
lavando a louça e arrumando a casa.
Lá fora o coro dos italianos se prolongava numa cadência monótona e
arrastada, em que havia muito peso de embriaguez. Junto à porta de várias casas
faziam-se grupos de pessoas assentadas em cadeiras ou no chão; mas a roda da
Rita Baiana era a maior, porque fora engrossada pelos convivas da das Dores. O
fumo dos cachimbos e dos charutos elevava-se de toda a parte. Decrescera o
ruído geral; fazia-se a digestão; já ninguém discutia e todos conversavam.
Acendeu-se o lampião do pátio. Iluminaram-se diversas janelas das
casinhas.
Agora, no sobrado do Miranda é que era o maior barulho. Saia de lá uma
terrível gritaria de hipes e hurras, virgulada pelo desarrolhar de garrafas de
champanha.
— Como eles atacam!... observou Alexandre, já de novo sem farda.
— E, no entanto, reprovam que a gente coma o que é seu com um pouco
mais de alegria! comentou a Rita. Uma súcia!
Falou-se então largamente a respeito da família do Miranda, principalmente
de Dona Estela e do Henrique. A Leocádia afiançou que, numa ocasião,
espiando por cima do muro, trepada num montão de garrafas vazias que havia
no pátio do cortiço, vira a sirigaita com a cara agarrada à do estudante, aos
beijos e aos abraços, que era obra; e assim que os dois deram fé que ela os
espreitava, deitaram a fugir que nem cães apedrejados.
A Augusta Carne-Mole benzeu-se, com uma invocação à Virgem
Santíssima, e o companheiro do amigo da das Dores, que insistia no seu namoro
com a Nenen, mostrou-se muito admirado com a noticia, “supunha Dona Estela
um modelo de seriedade”.
— Qual! negou Alexandre. Isso por ai é tudo uma pouca-vergonha, que faz
descrer um homem de si mesmo! Eu também já vi de uma feita bem boas coisas
pela sombra dela na parede; mas não era com o estudante, era com um sujeito
que lá ia às vezes, um barbado, careca e comido de bexigas. E a pequena vai
pelo mesmo conseguinte...
Esta novidade produziu grande surpresa no grupo inteiro. Quiseram os
pormenores e o Alexandre não se fez de rogado: o namoro da Zulmira era com
um rapazola magro, de lunetas, bigode louro, bem vestido, que lhe rondava a
casa à noite e às vezes de madrugada. Parecia estudante!
— O que eles têm feito? inquiriu a das Dores.
— Por enquanto a coisa não passa de namorico da janela para a rua.
Conversam sempre naquela última do lado de lá de fora. Já os tenho apreciado
quando estou de serviço. Ele fala muito em casamento e a pequena o quer; mas,
pelo jeito, o velho é que lhe corta as asas.
— Ele não tem entrada na casa?
— Não! Pois isso é que eu acho feio...! Se ele quer casar com a menina,
devia entender-se com a família e não estar agora daqui debaixo a fazer-lhe
fosquinhas!
— Sim, intrometeu-se o Firmo; mas não vê que aquele mesmo, o Miranda,
vai dar a filha a um estudante! Guarda-a para um dos seus... Quem sabe até se o
bruto não tem já de olho por ai algum cafezista pé-de-boi!... Eu sei o que é essa
gente!
— Por isso é que se vê tanta porcaria por esse mundo de Cristo! disse a
Augusta. Filha minha só se casará com quem ela bem quiser; que isto de
casamentos empurrados à força acabam sempre desgraçando tanto a mulher
como o homem! Meu marido é pobre e é de cor, mas eu sou feliz, porque casei
por meu gosto!
— Ora! Mais vale um gosto que quatro vinténs!
Nisto começou a gemer à porta do 35 uma guitarra; era de Jerônimo. Depois
da ruidosa alegria e do bom humor, em que palpitara àquela tarde toda a
república do cortiço, ela parecia ainda mais triste e mais saudosa do que nunca:
“Minha vida tem desgostos,
Que só eu sei compreender...
Quando me lembro da terra
Parece que vou morrer...”
E, com o exemplo da primeira, novas guitarras foram acordando. E, por fim,
a monótona cantiga dos portugueses enchia de uma alma desconsolada o vasto
arraial da estalagem, contrastando com a barulhenta alacridade que vinha lá de
cima, do sobrado do Miranda.
“Terra minha, que te adoro,
Quando é que eu te torno a ver?
Leva-me deste desterro;
Basta já de padecer.”
Abatidos pelo fadinho harmonioso e nostálgico dos desterrados, iam todos,
até mesmo os brasileiros, se concentrando e caindo em tristeza; mas, de repente,
o cavaquinho do Porfiro, acompanhado pelo violão do Firmo, romperam
vibrantemente com um chorado baiano. Nada mais que os primeiros acordes da
música crioula para que o sangue de toda aquela gente despertasse logo, como se
alguém lhe fustigasse o corpo com urtigas bravas. E seguiram-se outras notas, e
outras, cada vez mais ardentes e mais delirantes. Já não eram dois instrumentos
que soavam, eram lúbricos gemidos e suspiros soltos em torrente, a correrem
serpenteando, como cobras numa floresta incendiada; eram ais convulsos,
chorados em frenesi de amor; música feita de beijos e soluços gostosos; carícia
de fera, carícia de doer, fazendo estalar de gozo.
E aquela música de fogo doidejava no ar como um aroma quente de plantas
brasileiras, em torno das quais se nutrem, girando, moscardos sensuais e
besouros venenosos, freneticamente, bêbedos do delicioso perfume que os mata
de volúpia.
E à viva crepitação da música baiana calaram-se as melancólicas toadas dos
de além-mar. Assim à refulgente luz do trópicos amortece a fresca e doce
claridade dos céus da Europa, como se o próprio sol americano, vermelho e
esbraseado, viesse, na sua luxúria de sultão, beber a lágrima medrosa da decaída
rainha dos mares velhos.
Jerônimo alheou-se de sua guitarra e ficou com as mãos esquecidas sobre as
cordas, todo atento para aquela música estranha, que vinha dentro dele continuar
uma revolução começada desde a primeira vez em que lhe bateu em cheio no
rosto, como uma bofetada de desafio, a luz deste sol orgulhoso e selvagem, e lhe
cantou no ouvido o estribilho da primeira cigarra, e lhe acidulou a garganta o
suco da primeira fruta provada nestas terras de brasa, e lhe entonteceu a alma o
aroma do primeiro bogari, e lhe transtornou o sangue o cheiro animal da
primeira mulher, da primeira mestiça, que junto dele sacudiu as saias e os
cabelos.
— Que tens tu, Jeromo?... perguntou-lhe a companheira, estranhando-o.
— Espera, respondeu ele, em voz baixa: deixa ouvir!
Firmo principiava a cantar o chorado, seguido por um acompanhamento de
palmas.
Jerônimo levantou-se, quase que maquinalmente, e seguido por Piedade,
aproximou-se da grande roda que se formara em torno dos dois mulatos. Ai, de
queixo grudado às costas das mãos contra uma cerca de jardim, permaneceu,
sem tugir nem mugir, entregue de corpo e alma àquela cantiga sedutora e
voluptuosa que o enleava e tolhia, como à robusta gameleira brava o cipó
flexível, carinhoso e traiçoeiro.
E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de ombros
e braços nus, para dançar. A lua destoldara-se nesse momento, envolvendo-a na
sua coma de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça melhor se acentuavam,
cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda de pecado, toda de
paraíso, com muito de serpente e muito de mulher.
Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas
e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa
sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante; já
correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda,
como se se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se não
toma pé e nunca se encontra fundo. Depois, como se voltasse à vida, soltava um
gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo,
subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e
cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um,
ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra,
tirilando.
Em torno o entusiasmo tocava ao delírio; um grito de aplausos explodia de
vez em quando, rubro e quente como deve ser um grito saído do sangue. E as
palmas insistiam, cadentes, certas, num ritmo nervoso, numa persistência de
loucura. E, arrastado por ela, pulou à arena o Firmo, ágil, de borracha, a fazer
coisas fantásticas com as pernas, a derreter-se todo, a sumir-se no chão, a
ressurgir inteiro com um pulo, os pés no espaço, batendo os calcanhares, os
braços a querer fugirem-lhe dos ombros, a cabeça a querer saltar-lhe. E depois,
surgiu também a Florinda, e logo o Albino e até, quem diria! o grave e
circunspecto Alexandre.
O chorado arrastava-os a todos, despoticamente, desesperando aos que não
sabiam dançar. Mas, ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio, tinha o
mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles requebros
que não podiam ser sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem aquela voz
doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante.
E Jerônimo via e escutava, sentindo ir-se-lhe toda a alma pelos olhos
enamorados.
Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele
recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor
vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas,
que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se
não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o
sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu
azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca
doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele,
assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade
da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha
daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer,
uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e
espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca.
Isto era o que Jerônimo sentia, mas o que o tonto não podia conceber. De
todas as impressões daquele resto de domingo só lhe ficou no espírito o
entorpecimento de uma desconhecida embriaguez, não de vinho, mas de mel
chuchurreado no cálice de flores americanas, dessas muito alvas, cheirosas e
úmidas, que ele na fazenda via debruçadas confidencialmente sobre os limosos
pântanos sombrios, onde as oiticicas trescalam um aroma que entristece de
saudade.
E deixava-se ficar, olhando. Outras raparigas dançaram, mas o português só
via a mulata, mesmo quando, prostrada, fora cair nos braços do amigo. Piedade,
a cabecear de sono, chamara-o várias vezes para se recolherem; ele respondeu
com um resmungo e não deu pela retirada da mulher.
Passaram-se horas, e ele também não deu pelas horas que fugiram.
O circulo do pagode aumentou: vieram de lá defronte a Isaura e a Leonor, o
João Romão e a Bertoleza, desembaraçados da sua faina, quiseram dar fé da
patuscada um instante antes de caírem na cama; a família do Miranda pusera-se
à janela, divertindo-se com a gentalha da estalagem; reunira povo lá fora na rua;
mas Jerônimo nada vira de tudo isso; nada vira senão uma coisa, que lhe
persistia no espírito: a mulata ofegante a resvalar voluptuosamente nos braços
do Firmo.
Só deu por si, quando, já pela madrugada, se calaram de todo os
instrumentos e cada um dos folgadores se recolheu à casa.
E viu a Rita levada para o quarto pelo seu homem, que a arrastava pela
cintura.
Jerônimo ficou sozinho no meio da estalagem. A lua, agora inteiramente
livre das nuvens que a perseguiam, lá ia caminhando em silêncio na sua viagem
misteriosa. As janelas do Miranda fecharam-se. A pedreira, ao longe, por detrás
da última parede do cortiço, erguia-se como um monstro iluminado na sua paz.
Uma quietação densa pairava já sobre tudo; só se distinguiam o bruxulear dos
pirilampos na sombra das hortas e dos jardins, e os murmúrios das árvores que
sonhavam.
Mas Jerônimo nada mais sentia, nem ouvia, do que aquela música
embalsamada de baunilha, que lhe entontecera a alma; e compreendeu
perfeitamente que dentro dele aqueles cabelos crespos, brilhantes e cheirosos, da
mulata, principiavam a formar um ninho de cobras negras e venenosas, que lhe
iam devorar o coração.
E, erguendo a cabeça, notou no mesmo céu, que ele nunca vira senão depois
de sete horas de sono, que era já quase ocasião de entrar para o seu serviço, e
resolveu não dormir, porque valia a pena esperar de pé.
VIII
No dia seguinte, Jerônimo largou o trabalho à hora de almoçar e, em vez de
comer lá mesmo na pedreira com os companheiros, foi para casa. Mal tocou no
que a mulher lhe apresentou à mesa e meteu-se logo depois na cama,
ordenando-lhe que fosse ter com João Romão e lhe dissesse que ele estava
incomodado e ficava de descanso aquele dia.
— Que tens tu, Jeromo?...
— Morrinhento, filha... Vai, anda!
— Mas sentes-te mal?
— Ó mulher! vai fazer o que te disse e ao depois então darás à língua!
— Valha-me a Virgem! Não sei se haverá chá preto na venda!
E ela saiu, aflita. Qualquer novidade no marido, por menor que fosse,
punha-a doida. “Pois um homem rijo, que nunca caia doente? Seria a febre
amarela?... Jesus, Santo Filho de Maria, que nem pensar nisso era bom! Credo!”
A notícia espalhou-se logo ali entre as lavadeiras.
— Foi da friagem da noite, afirmou a Bruxa, e deu um pulo à casa do
trabalhador para receitar.
O doente repeliu-a, pedindo-lhe que o deixasse em paz; que ele do que
precisava era de dormir. Mas não o conseguiu: atrás da Bruxa correu a segunda
mulher, e a terceira, e a quarta; e, afinal, fez-se durante muito tempo em sua casa
um entrar e sair de saias. Jerônimo perdeu a paciência e ia protestar brutalmente
contra semelhante invasão, quando, pelo cheiro, sentiu que a Rita se aproximava
também.
— Ah!
E desfranziu-se-lhe o rosto.
— Bons dias! Então que é isso, vizinho? Você caiu doente com a minha
chegada? Se tal soubera não vinha!
Ele riu-se. E era a primeira vez que ria desde a véspera
A mulata aproximou-se da cama.
Como principiara a trabalhar esse dia, tinha as saias apanhadas na cintura e
os braços completamente nus e frios da lavagem. O seu casaquinho branco
abria-lhe no pescoço, mostrando parte do peito cor de canela.
Jerônimo apertou-lhe a mão.
— Gostei de vê-la ontem dançar, disse, muito mais animado.
— Já tomou algum remédio?...
— A mulher falou ai em chá preto...
— Chá! Que asneira! Chá é água morna! Isso que você tem é uma
resfriagem. Vou-lhe fazer uma xícara de café bem forte para você beber com um
gole de parati, e me dirá se sua ou não, e fica depois fino e pronto para outra!
Espera ai!
E saiu logo, deixando todo quarto impregnado dela.
Jerônimo, só com respirar aquele almíscar, parecia melhor. Quando Piedade
tornou, pesada, triste, resmungando consigo mesma, ele sentiu que principiava a
enfará-lo; e, quando a infeliz se aproximou do marido, este, fora do costume,
notou-lhe o cheiro azedo do corpo. Voltou-lhe então o mal-estar e desapareceu o
último vestígio do sorriso que ele tivera havia pouco.
— Mas que sentes tu, Jeromo?... Fala, homem! Não me dizes nada! Assim
m’assustas... Que tens, diz’-lo!
— Não cozas o chá. Vou tomar outra coisa...
— Não queres o chá? Mas é o remédio, filhinho de Deus!
— Já te disse que tomo outra mezinha. Oh!
Piedade não insistiu.
— Queres tu um escalda-pés?...
— Toma-lo tu!
Ela calou-se. Ia a dizer que nunca o vira assim tão áspero e seco, mas receou
importuná-lo. “Era naturalmente a moléstia que o punha rezinguento.”
Jerônimo fechara os olhos, para a não ver, e ter-se-ia, se pudesse, fechado
por dentro, para a não sentir. Ela, porém, coitada! fora assentar-se à beira da
cama, humilde e solicita, a suspirar, vivendo naquele instante, para e
exclusivamente, para o seu homem, fazendo-se muito escrava dele, sem vontade
própria, acompanhando-lhe os menores gestos com o olhar, inquieta, que nem
um cão que, ao lado do dono, procura adivinhar-lhe as intenções.
— ‘Stá bem, filha, não vais tratar do teu serviço?...
— Não te dê isso cuidado! Não parou o trabalho! Pedi à Leocádia que me
esfregasse a roupa. Ela hoje tinha pouco que fazer e...
— Andaste mal...
— Ora! Não há três dias que fiz outro tanto por ela... E demais, não foi que
tivesse o homem doente, era a calaçaria do capinzal!
— Bom, bom, filha! não digas mal da vida alheia! Melhor seria que
estivesses à tua tina em vez de ficar ai a murmurar do próximo... Anda! vai
tomar conta das tuas obrigações.
— Mas estou-te a dizer que não há transtorno!...
— Transtorno já é estar eu parado; e o pior será pararem os dois!
— Eu queria ficar a teu lado, Jeromo!
— E eu acho que isso é tolice! Vai! anda!
Ela ia retirar-se, como um animal enxotado, quando deu com a Rita, que
entrava muito ligeira e sacudida, trazendo na mão a fumegante palangana de
café com parati e no ombro um cobertor grosso para dar um suadouro ao doente.
— Ah! fez Piedade, sem encontrar uma palavra para a mulata.
E deixou-se ficar.
Rita, despreocupadamente, alegre e benfazeja como sempre, pousou a
vasilha sobre a cômoda do oratório e abriu o cobertor.
— Isso é que o vai pôr fino! disse. Vocês também, seus portugueses, por
qualquer coisinha ficam logo pra morrer, com uma cara da última hora! E ai, ai,
Jesus, meu Deus! Ora esperte-se! Não me seja maricas!
Ele riu-se assentando-se na cama.
— Pois não é assim mesmo? perguntou ela a Piedade, apontando para o
carão barbado de Jerônimo. Olhe só pr’aquela cara e diga-me se não está a pedir
que o enterrem!
A portuguesa não dizia nada, sorria contrafeita, no intimo, ressentida contra
aquela invasão de uma estranha nos cuidados pelo seu homem. Não era a
inteligência nem a razão o que lhe apontava o perigo, mas o instinto, o faro sutil
e desconfiado de toda a fêmea pelas outras, quando sente o seu ninho exposto.
— Está-me a parecer que agora te achas melhor, hein?... desembuchou
afinal, procurando o olhar do marido, sem conseguir disfarçar de todo o seu
descontentamento.
— Só com o cheiro! reforçou a mulata, apresentando o café ao doente.
Beba, ande! beba tudo e abafe-se! Quero, quando voltar logo, encontrá-lo
pronto, ouviu? — E acrescentou, falando à Piedade, em tom mais baixo e
pousando-lhe a mão no ombro carnudo: — Ele daqui a nada deve estar ensopado
de suor; mude-lhe toda a roupa e dê-lhe dois dedos de parati, logo que peça
água. Cuidado com o vento!
E saiu expedida, agitando as saias, de onde se evolavam eflúvios de
manjerona.
Piedade chegou-se então para o cavouqueiro, que já tinha sobre as pernas o
cobertor oferecido pela Rita, e, ajudando-o a levar a tigela à boca, resmungou:
— Deus queira que isto não te vá fazer mal em vez de bem!... Nunca tomas
café, nem gostas!...
— Isto não é por gosto, filha, é remédio!
Ele com efeito nunca entrara com o café e ainda menos com a cachaça; mas
engoliu de uma assentada o conteúdo da tigela, puxando em seguida o cobertor
até às ventas.
A mulher tratou de abafar-lhe bem os pés e foi buscar um xale para lhe
cobrir a cabeça.
— Trata de sossegar! Não te mexas!
E dispôs-se a ficar junto da cama, a vigiá-lo, só andando na ponta dos pés,
abafando a respiração, correndo a cada instante à porta de casa para pedir que
não fizessem tanta bulha lá fora; toda ela desassossegada, numa aflição quase
supersticiosa por aquele incômodo de seu homem. Mas Jerônimo não levou
muito que a não chamasse para lhe mudar a roupa. O suor inundava-o.
— Ainda bem! exclamou ela, radiante.
E, depois de fechar hermeticamente a porta do quarto e meter um punhado
de roupa suja numa fresta que havia numa das paredes, sacou-lhe fora a camisa
molhada, enfiando-lhe logo outra pela cabeça; em seguida tirou-lhe as ceroulas e
começou, munida de uma toalha, a enxugar-lhe todo o corpo, principiando pelas
costas, passando depois ao peito e aos sovacos, descendo logo às nádegas, ao
ventre e às pernas, e esfregando sempre com tamanho vigor de pulso, que era
antes uma massagem que lhe dava; e tanto assim que o sangue do cavouqueiro
se revolucionou.
E a mulher, a rir-se, lisonjeada, ralhava:
— Tem juízo! Acomoda-te! Não vês que estás doente?...
Ele não insistiu. Agasalhou-se de novo e pediu água. Piedade foi buscar o
parati.
— Bebe isto, não bebas a água agora.
— Isto é cachaça!
— Foi a Rita que disse para te dar...
Jerônimo não precisou de mais nada para beber de um trago os dois dedos
de restilo que havia no copo.
Sóbrio como era, e depois daquele dispêndio de suor, o álcool produziu-lhe
logo de pronto o efeito voluptuoso e agradável da embriaguez nos que não são
bêbedos: um delicioso desfalecer de todo o corpo; alguma coisa do longo
espreguiçamento que antecede à satisfação dos sexos, quando a mulher, tendo
feito esperar por ela algum tempo, aproxima-se afinal de nós, numa avidez
gulosa de beijos. Agora, no conforto da sua cama, na doce penumbra do quarto,
com a roupa fresca sobre a pele, Jerônimo sentia-se bem, feliz por ver-se longe
da pedreira ardente e do sol cáustico; ouvindo, de olhos fechados, o ronrom
monótono da máquina de massas, arfando ao longe, e o zunzum das lavadeiras a
trabalharem, e, mais distante, um interminável cantar de galos a porfia, enquanto
um dobre de sinos rolava no ar, tristemente, anunciando um defunto da
paróquia.
Quando Piedade chegou lá fora, dando parte do bom resultado do remédio, a
Rita correu de novo ao quarto do doente.
— Então, que me diz agora? Sente-se ou não melhorzinho?
Ele voltou para a rapariga o seu olhar de animal prostrado e, por única
resposta, passou-lhe o braço esquerdo na cintura e procurou com a mão direita
segurar a dela. Queria com isto traduzir o seu reconhecimento, e a mulata assim
o entendeu, tanto que consentiu: mal, porém, a sua carne lhe tocou na carne, um
desejo ardente apossou-se dele; uma vontade desensofrida de senhorear-se no
mesmo instante daquela mulher e possuí-la inteira, devorá-la num só hausto de
luxúria, trincá-la como um caju.
Rita, ao sentir-se empolgar pelo cavouqueiro, escapou-lhe das garras com
um pulo.
lá!
— Olhe que peste! Faça-se de tolo, que digo à sua mulher, hein? Ora vamos
Mas, como a Piedade entrava na salinha ao lado, disfarçou logo,
acrescentando noutro tom:
— Agora é tratar de dormir e mudar de roupa, se suar outra vez Até logo!
E saiu.
Jerônimo ouviu as suas ultimas palavras já de olhos fechados e, quando
Piedade entrou no quarto, parecia sucumbido de fraqueza. A lavadeira
aproximou-se da cama do marido em ponta de pés, puxou-lhe o lençol mais para
cima do peito e afastou-se de novo, abafando os passos. À porta da entrada a
Augusta, que fora fazer uma visita ao enfermo, perguntou-lhe por este com um
gesto interrogativo; Piedade respondeu sem falar, pondo a mão no rosto e
vergando desse lado a cabeça, para exprimir que ele agora estava dormindo.
As duas saíram para falar à vontade; mas, nessa ocasião, lá fora no pátio da
estalagem, acabava de armar-se um escândalo medonho. Era o caso que o
Henriquinho da casa do Miranda ficava às vezes à janela do sobrado, nas horas
de preguiça, entre o almoço e o jantar, entretido a ver a Leocádia lavar,
seguindo-lhe os movimentos uniformes do grosso quadril e o tremular das
redondas tetas à larga dentro do cabeção de chita. E, quando a pilhava sozinha,
fazia-lhe sinais brejeiros, piscava-lhe o olho, batendo com a mão direita aberta
sobre a mão esquerda fechada. Ela respondia, indicando com o polegar o interior
do sobrado, como se dissesse que fosse procurar a mulher do dono da casa.
Naquele dia, porém, o estudante apareceu à janela, trazendo nos braços um
coelhinho todo branco, que ele na véspera arrematara num leilão de festa.
Leocádia cobiçou o bichinho e, correndo para o depósito de garrafas vazias, que
ficava por debaixo do sobrado, pediu com muito empenho ao Henrique que lho
desse. Este, sempre com seu sistema de conversar por mímica, declarou com um
gesto qual era a condição da dádiva.
Ela meneou a cabeça afirmativamente, e ele fez-lhe sinal de que o esperasse
por detrás do cortiço, no capinzal dos fundos.
A família do Miranda havia saído. Henrique, mesmo com a roupa de andar
em casa e sem chapéu, desceu à rua, ganhou um terreno que existia à esquerda
do sobrado e, com o seu coelho debaixo do braço, atirou-se para o capinzal.
Leocádia esperava por ele debaixo das mangueiras.
— Aqui não! disse ela, logo que o viu chegar. Aqui agora podem dar com a
gente!...
— Então onde?
— Vem cá!
E tomou à sua direita, andando ligeira e meio vergada por entre as plantas.
Henrique seguiu-a no mesmo passo, sempre com o coelho sobraçado. O calor
fazia-o suar e esfogueava-lhe as faces. Ouvia-se o martelar dos ferreiros e dos
trabalhadores da pedreira.
Depois de alguns minutos, ela parou num lugar plantado de bambus e
bananeiras, onde havia o resto de um telheiro em ruínas.
— Aqui!
E Leocádia olhou para os lados, assegurando-se de que estavam a sós.
Henrique, sem largar o coelho, atirou-se sobre ela, que o conteve:
— Espera! preciso tirar a saia; está encharcada!
— Não faz mal! segredou ele, impaciente no seu desejo.
— Pode-me vir um corrimento!
E sacou fora a saia de lã grossa, deixando ver duas pernas, que a camisa a
custo só cobria até o joelho, grossas, maciças, de uma brancura levemente rósea
e toda marcada de mordeduras de pulgas e mosquitos.
— Avia-te! Anda! apressou ela, lançando-se de costas ao chão e
arregaçando a fralda até a cintura; as coxas abertas.
O estudante atirou-se, sôfrego, sentindo-lhe a frescura da sua carne de
lavadeira, mas sem largar as pernas do coelho.
Passou-se um instante de silêncio entre os dois, em que as folhas secas do
chão rangeram e farfalharam.
— Olha! pediu ela, faz-me um filho, que eu preciso alugar-me de
ama-de-leite... Agora estão pagando muito bem as amas! A Augusta
Carne-Mole, nesta última barriga, tomou conta de um pequeno ai na casa de
uma família de tratamento, que lhe dava setenta mil-réis por mês!... E muito
bom passadio!... Sua garrafa de vinho todos os dias!... Se me arranjares um filho
dou-te outra vez o coelho!
E o pobre brutinho, cujas pernas o estudante não largava, começou a
queixar-se dos repelões que recebia cada vez mais acelerados.
— Olha que matas o bichinho! reclamou a lavadeira. Não batas assim com
ele! mas não o soltes, hein!
Ia dizer ainda alguma coisa, mas acudiu-lhe o espasmo e ela fechou os olhos
e pôs-se a dar com a cabeça de um lado para o outro, rilhando os dentes.
Nisto, passos rápidos fizeram-se sentir galgando as plantas, na direção em
que os dois estavam; e Henrique, antes de ser visto, lobrigou a certa distancia a
insociável figura do Bruno.
Não lhe deu tempo a que se aproximasse; de um salto galgou por detrás das
bananeiras e desapareceu por entre o matagal de bambus, tão rápido como o
coelho que, vendo-se livre, ganhara pela outra banda o caminho do capinzal.
Quando o ferreiro, logo em seguida, chegou perto da mulher, esta ainda não
tinha acabado de vestir a saia molhada.
— Com quem te esfregavas tu, sua vaca?! bradou ele, a botar os bofes pela
boca.
E, antes que ela respondesse, já uma formidável punhada a fazia rolar por
terra.
Leocádia abriu num berreiro. E foi debaixo de uma chuva de bofetadas e
pontapés que acabou de amarrar a roupa.
— Agora eu vi! sabes! Nega se fores capaz!
— Vá à pata que o pôs! exclamou ela, com a cara que era um tomate. Já lhe
disse que não quero saber de você pra nada, seu bêbedo!
E, vendo que ele ia recomeçar a dança, abaixou-se depressa, segurou com
ambas as mãos um matacão de granito que encontrou a seus pés, e gritou,
erguendo-o sobre a cabeça:
— Chega-te pra cá e verás se te abro aqui mesmo ou não o casco!
O ferreiro compreendeu que ela era capaz de fazer o que dizia e estacou
lívido e ofegante.
— Arme a trouxa e rua! sabe?
— Olha a desgraça! Tinha de muito assentado de ir! Queria era uma
ocasião! Nem preciso de você pra nada, fique sabendo!
E, para meter-lhe mais raiva, acrescentou, empinando a barriga:
— Já cá está dentro com que hei de ganhar a vida! Alugo-me de ama! Ou
pensará que todos são como você, que nem para fazer um filho serve, diabo do
sem-préstimo?
— Mas não me hás de levar nada de casa! Isso te juro eu, biraia!
— Ah, descanse! que não levarei nada do que é seu, nem preciso!
— Põe essa pedra no chão!
— Um corno! Eu arrumo-ta na cabeça se te chegas pra cá!
— Sim, sim, sim, contanto que te musques por uma vez!
— Pois então despache o beco!
Ele virou-lhe as costas e tornou lentamente por onde viera, de cabeça
pendida, as mãos nas algibeiras das calças, aparentando agora um soberano
desprezo pelo que se passava.
Só então foi que ela se lembrou do coelho.
— Ora gaitas! disse, endireitando-se e tomando direção contrária à do
marido.
Este fora ai direito ao cortiço narrar, a quem quisesse ouvir, o que se
acabava de dar. O escândalo assanhou a estalagem inteira, como um jato de água
quente sobre um formigueiro. “Ora, aquilo tinha de acontecer mais hoje mais
amanhã! — Um belo dia a casa vinha abaixo! — A Leocádia parecia não desejar
senão isso mesmo!” Mas ninguém atinava com quem diabo pilhara o Bruno a
mulher no capinzal. Fizeram-se mil hipóteses; lembrando-se nomes e nomes,
sem se chegar a nenhum resultado satisfatório. O Albino tentou logo arranjar a
reconciliação do casal, jurando que o Bruno estava enganado com certeza e que
vira mal. “Leocádia era uma excelente rapariga, incapaz de tamanha
safadagem!” O ferreiro tapou-lhe a boca com uma bolacha, e ninguém mais se
meteu a congraçá-los.
Entretanto, o Bruno entrara em casa e lançava pela janela cá para fora tudo o
que ia encontrando pertencente à mulher. Uma cadeira fez-se pedaços contra as
pedras, depois veio um candeeiro de querosene, uma trouxa de roupas, saias e
casaquinhos de chita, caixas de chapéus cheias de trapos, uma gaiola de
pássaros, uma chaleira; e tudo era arremessado com fúria ao meio da área, entre
o silêncio comovido dos que assistiam ao despejo. Um chim, que entrara para
vender camarões e parara distraído perto da janela do ferreiro, levou na cabeça
com uma bilha da Bahia e berrava como criança que acaba de ser esbordoada. A
Machona, que não podia ouvir ninguém gritar mais alto do que ela, caiu-lhe em
cima aos murros e o pôs fora do portão com tremenda descompostura. “Era o
que faltava que viesse também aquele salamaleque do inferno para azoinar uma
criatura mais do que já estava!” Dona Isabel, com as mãos cruzadas sobre o
ventre, tinha para aquela destruição um profundo olhar de lástima. Augusta
meneava a cabeça tristemente sem conceber como havia mulheres que
procuravam homem, tendo um que lhes pertencia. A Bruxa, indiferente, não
interrompera sequer o seu trabalho; ao passo que a das Dores, de mãos nas
cadeiras, a sala pelo meio das canelas, um cigarro no canto da boca, encarava
desdenhosa a sanha daquele marido, tão brutal como o dela o fora.
— Sempre os mesmos pedaços de asno!... comentava franzindo o nariz. Se a
tola da mulher só lhes procura agradar e fazer-lhes o gosto, ficam enjoados, e, se
ela não toma a sério a borracheira do casamento, dão por paus e por pedras,
como esta besta! Uma súcia, todos eles!
Florinda ria, como de tudo, e a velha Marciana queixava-se de que lhe
respingaram querosene na roupa estendida ao sol. Nessa ocasião justamente, um
saco de café, cheio de borra, deu duas voltas no ar e espalhou o seu conteúdo,
pintalgando de pontos negros os coradouros. Fez-se logo um alarido entre as
lavadeiras. “Aquilo não tinha jeito, que diabo! Armavam lá as suas turras e os
outros é que haviam de aturar?!... Sebo! que os mais não estavam dispostos a
suportar as fúrias de cada um! Quem parira Mateus que o embalasse! Se agora,
todas as vezes que a Leocádia se fosse espojar no capinzal, o bruto do marido
tinha de sujar daquele modo o trabalho da gente, ninguém mais poderia ganhar
ali a sua vida! Que espiga!” Pombinha chegara à porta do número 15, dando fé
do barulho, com uma costura na mão, e Nenen, toda afogueada do ferro de
engomar, perguntava, com um frouxo riso, se o Bruno ia reformar a mobília da
casa. A Rita fingia não ligar importância ao fato e continuava a lavar à sua tina.
“Não faziam tanta festa ao tal casamento? Pois que agüentassem! Ela estava
bem livre de sofrer uma daquelas!” O velho Libório chegara-se para ver se, no
meio da confusão, apanhava alguma coisa do despejo, e a Machona, notando
que o Agostinho fazia o mesmo, berrou-lhe do lugar em que se achava:
— Sai daí, safado! Toca lá no quer que seja, que te arranco a pele do rabo!
Um irmão do santíssimo entrara na estalagem, com a sua capa encarnada, a
sua vara de prata em uma das mãos, na outra a salva do dinheiro, e parara em
meio do pátio, suplicando muito fanhoso: “Uma esmola para a cera do
Sacramento!” As mulheres abandonaram por um instante as tinas e foram beijar
devotamente a colombina imagem do Espírito Santo. Pingaram na salva
moedinhas de vintém.
Todavia, o Bruno acabava de despejar o que era da mulher e saia de novo de
casa, dando uma volta feroz à fechadura. Atravessou por entre o murmurante
grupo dos curiosos que permaneciam defronte de sua porta, mudo, com a cara
fechada, jogando os braços, como quem, apesar de ter feito muito, não
satisfizera ainda completamente a sua cólera.
Leocádia apareceu pouco depois e, vendo por terra tudo que era seu, partido
e inutilizado, apoderou-se de fúria e avançou sobre a porta, que o marido
acabava de fechar, arremetendo com as nádegas contra as duas folhas, que
cederam logo, indo ela cair lá dentro de barriga para cima.
Mas ergueu-se, sem fazer caso das risadas que rebentaram cá fora e,
escancarando a janela com arremesso, começou por sua vez a arrasar e a destruir
tudo que ainda encontrara em casa.
Então principiou a verdadeira devastação. E a cada objeto que ela varria
para o pátio, gritava sempre: “Upa! Toma, diabo!”
— Aí vai o relógio! Upa! Toma, diabo!
E o relógio espatifou-se na calçada.
— Aí vai o alguidar!
— Aí vai o jarro!
— Aí vão os copos!
— O cabide!
— O garrafão!
— O bacio!
Um riso geral, comunicativo, absoluto, abafava o baralho da louça
quebrando-se contra as pedras. E Leocádia já não precisava acompanhar os
objetos com a sua frase de imprecação, porque cada um deles era recebido cá
fora com um coro que berrava:
— Upa! Toma, diabo!
E a limpeza prosseguia. João Romão acudiu de carreira, mas ninguém se
incomodou com a presença dele. Já defronte da porta do Bruno havia uma
montanha de cacos acumulados; e o destroço continuava ainda, quando o
ferreiro reapareceu, vermelho como malagueta, e foi galgando a casa, com um
raio de roda de carro na mão direita.
Os circunstantes o seguiram, atropeladamente, num clamor.
— Não dá!
— Não pode!
— Prende!
— Não deixa bater!
— Larga o pau!
— Segura!
— Agüenta!
— Cerca!
— Toma o porrete!
E Leocádia escapou afinal das pauladas do marido, a quem o povaréu
desarmara num fecha-fecha.
— Ordem! Ordem! Vá de rumor! exclamava o vendeiro, a quem,
aproveitando a confusão, haviam já ferrado um pontapé por detrás.
O Alexandre, que vinha chegando do serviço nesse momento, apressou-se a
correr para o lugar do conflito e cheio de autoridade intimou o Bruno a que se
contivesse e deixasse a mulher em paz, sob pena de seguir para a estação no
mesmo instante.
— Pois você não vê esta galinha, que apanhei hoje com a boca na botija,
não me vem ainda por cima dar cabo de tudo?!... interrogou o Bruno,
espumando de raiva e quase sem fôlego para falar.
— Porque você pôs em cacos o que é meu! gritou Leocádia.
— Está bom! está bom! disse o polícia, procurando dar à voz inflexões
autoritárias e reconciliadoras. Fale cada um por sua vez! Seu marido...
acrescentou ele, voltando-se para a acusada, diz que a senhora...
— É mentira! interrompeu ela.
— Mentira?! É boa! Tinhas a saia despida e um homem por cima!
— Quem era? — Quem foi? — Quem era o homem? interrogaram todos a
um só tempo.
— Quem era ele, no fim de contas? inquiriu também Alexandre.
— Não lhe pude ver as fuças!... respondeu o ferreiro; mas, se o apanho,
arrancava-lhe o sangue pelas costas!
Houve um coro de gargalhadas.
— E mentira! repetiu Leocádia, agora sucumbida por uma reação de
lágrimas. Há muito tempo que este malvado anda caçando pretexto para romper
comigo e, como eu não lho dou...
Uma explosão de soluços a interrompeu.
Desta vez não riram, mas um bichanar de cochichos formou-se em torno do
seu pranto.
— Agora... continuou ela, enxugando os olhos na costa da mão; não sei o
que será de mim, porque este homem, além de tudo, escangalhou-me até o que
eu trouxe quando me casei com ele!...
— Não disseste que já tinhas ai dentro com que ganhar a vida?... É andar!
— É falso! soluçou Leocádia.
— Bem, interveio Alexandre, embainhando o seu refle; está tudo
terminado! Seu marido vai recebê-la em boa paz...
— Eu?! esfuziou o ferreiro. Você não me conhece!
— Nem eu queria! retorquiu a mulher. Prefiro meter-me com um cavalo de
tílburi a ter de aturar este bruto!
E, catando em casa alguma coisa sua que ainda havia, e recolhendo do
montão dos cacos o que lhe pareceu aproveitável, fez de tudo uma grande trouxa
e foi chamar um carregador.
A Rita saiu-lhe ao encontro.
— Para onde vais tu?... perguntou-lhe em voz baixa.
— Não sei, filha, por ai!... Hei de encontrar um furo!... Os cães não
vivem?...
— Espere um instante... disse a mulata. Olha, empurra a trouxa ai para
dentro do meu cômodo. — E correndo ao Albino, que lavava: — Passa-me no
sabão aquela roupa, ouviste? E, quando Firmo acordar, diz-lhe que precisei ir a
rua.
Depois, deu um pulo ao quarto, mudou a saia molhada, atirou nos ombros o
seu xale de crochê e, batendo nas costas da companheira, segredou-lhe:
— Anda cá comigo! não ficarás à toa!
E as duas saíram, ambas sacudidas, deixando atrás de si suspensa a
curiosidade do cortiço inteiro.
IX
Passaram-se semanas. Jerônimo tomava agora, todas as manhãs, uma xícara
de café bem grosso, à moda da Ritinha, e tragava dois dedos de parati “pra
cortar a friagem”.
Uma transformação, lenta e profunda, operava-se nele, dia a dia, hora a
hora, reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe os sentidos, num trabalho misterioso
e surdo de crisálida. A sua energia afrouxava lentamente: fazia-se contemplativo
e amoroso. A vida americana e a natureza do Brasil patenteavam-lhe agora
aspectos imprevistos e sedutores que o comoviam; esquecia-se dos seus
primitivos sonhos de ambição; para idealizar felicidades novas, picantes e
violentas; tornava-se liberal, imprevidente e franco, mais amigo de gastar que de
guardar; adquiria desejos, tomava gosto aos prazeres, e volvia-se preguiçoso
resignando-se, vencido, às imposições do sol e do calor, muralha de fogo com
que o espírito eternamente revoltado do último tamoio entrincheirou a pátria
contra os conquistadores aventureiros.
E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus hábitos singelos
de aldeão português: e Jerônimo abrasileirou-se. A sua casa perdeu aquele ar
sombrio e concentrado que a entristecia; já apareciam por lá alguns
companheiros de estalagem, para dar dois dedos de palestra nas horas de
descanso, e aos domingos reunia-se gente para o jantar. A revolução afinal foi
completa: a aguardente de cana substituiu o vinho; a farinha de mandioca
sucedeu à broa; a carne-seca e o feijão-preto ao bacalhau com batatas e cebolas
cozidas; a pimenta-malagueta e a pimenta-de-cheiro invadiram vitoriosamente a
sua mesa; o caldo verde, a açorda e o caldo de unto foram repelidos pelos ruivos
e gostosos quitutes baianos, pela muqueca, pelo vatapá e pelo caruru; a couve à
mineira destronou a couve à portuguesa; o pirão de fubá ao pão de rala, e, desde
que o café encheu a casa com o seu aroma quente, Jerônimo principiou a achar
graça no cheiro do fumo e não tardou a fumar também com os amigos.
E o curioso é que quanto mais ia ele caindo nos usos e costumes brasileiros,
tanto mais os seus sentidos se apuravam, posto que em detrimento das suas
forças físicas. Tinha agora o ouvido menos grosseiro para a música,
compreendia até as intenções poéticas dos sertanejos, quando cantam à viola os
seus amores infelizes; seus olhos, dantes só voltados para a esperança de tornar à
terra, agora, como os olhos de um marujo, que se habituaram aos largos
horizontes de céu e mar, já se não revoltavam com a turbulenta luz, selvagem e
alegre, do Brasil, e abriam-se amplamente defronte dos maravilhosos
despenhadeiros ilimitados e das cordilheiras sem fim, donde, de espaço a
espaço, surge um monarca gigante, que o sol veste de ouro e ricas pedrarias
refulgentes e as nuvens tocam de alvos turbantes de cambraia, num luxo oriental
de arábicos príncipes voluptuosos.
Ao passo que com a mulher, a S’ora Piedade de Jesus, o caso mudava muito
de figura. Essa, feita de um só bloco, compacta, inteiriça e tapada, recebia a
influência do meio só por fora, na maneira de viver, conservando-se inalterável
quanto ao moral, sem conseguir, à semelhança do esposo, afinar a sua alma pela
alma da nova pátria que adotaram. Cedia passivamente nos hábitos de
existência, mas no intimo continuava a ser a mesma colona saudosa e
desconsolada, tão fiel às suas tradições como a seu marido. Agora estava até
mais triste; triste porque Jerônimo fazia-se outro; triste porque não se passava
um dia que lhe não notasse uma nova transformação; triste, porque chegava a
estranhá-lo, a desconhecê-lo, afigurando-se-lhe até que cometia um adultério,
quando à noite acordava assustada ao lado daquele homem que não parecia o
dela, aquele homem que se lavava todos os dias, aquele homem que aos
domingos punha perfumes na barba e nos cabelos e tinha a boca cheirando a
fumo. Que pesado desgosto não lhe apertou o coração a primeira vez em que o
cavouqueiro, repelindo o caldo que ela lhe apresentava ao jantar, disse-lhe:
— Ó filha! por que não experimentas tu fazer uns pitéus à moda de cá?...
— Mas é que não sei... balbuciou a pobre mulher.
— Pede então à Rita que to ensine... Aquilo não terá muito que aprender!
Vê se me fazes por arranjar uns camarões, como ela preparou aqueles doutro
dia. Souberam-me tão bem!
Este resvalamento do Jerônimo para as coisas do Brasil penalizava
profundamente a infeliz criatura. Era ainda o instinto feminil que lhe fazia
prever que o marido, quando estivesse de todo brasileiro, não a queria para mais
nada e havia de reformar a cama, assim como reformou a mesa.
Jerônimo, com efeito, pertencia-lhe muito menos agora do que dantes. Mal
se chegava para ela; os seus carinhos eram frios e distraídos, dados como por
condescendência; já lhe não afagava os rins, quando os dois ficavam a sós,
malucando na sua vida comum; agora nunca era ele que a procurava para o
matrimônio, nunca; se ela sentia necessidade do marido, tinha de provocá-lo. E,
uma noite, Piedade ficou com o coração ainda mais apertado, porque ele, a
pretexto de que no quarto fazia muito calor, abandonou a cama e foi deitar-se no
sofá da salinha. Desde esse dia não dormiram mais ao lado um do outro. O
cavouqueiro arranjou uma rede e armou-a defronte da porta de entrada, tal qual
como havia em casa da Rita.
Uma outra noite a coisa ainda foi pior. Piedade, certa de que o marido não
se chegava, foi ter com ele; Jerônimo fingiu-se indisposto, negou-se, e terminou
por dizer-lhe, repelindo-a brandamente:
— Não te queria falar, mas... sabes? deves tomar banho todos os dias e...
mudar de roupa... Isto aqui não é como lá! Isto aqui sua-se muito! É preciso
trazer o corpo sempre lavado, que, ao se não, cheira-se mel!... Tem paciência!
Ela desatou a soluçar. Foi uma explosão de ressentimentos e desgostos que
se tinham acumulado no seu coração. Todas as suas mágoas rebentaram naquele
momento.
— Agora estás tu a chorar! Ora, filha, deixa-te disso!
Ela continuou a soluçar, sem fôlego, dando arfadas com todo o corpo.
O cavouqueiro acrescentou no fim de um intervalo:
— Então, que é isto, mulher? Pões-te agora a fazer tamanho escarcéu, nem
que se cuidasse de coisa séria!
Piedade desabafou:
— É que já não me queres! Já não és o mesmo homem para mim! Dantes
não me achavas que pôr, e agora até já te cheiro mal!
E os soluços recrudesciam.
— Não digas asnices, filha!
— Ah! eu bem sei o que isto é!...
— E bobagem tua, é o que é!
— Maldita hora em que viemos dar ao raio desta estalagem! Antes me tivera
caldo um calhau na cabeça!
— Estás a queixar-te da sorte sem razão! Que Deus te não castigue.
Esta rezinga chamou outras que, com o correr do tempo, se foram
amiudando. Ah! já não havia dúvida que mestre Jerônimo andava meio caldo
para o lado da Rita Baiana; não passava pelo número 9, sempre que vinha à
estalagem durante o dia, que não parasse à porta um instante, para perguntar-lhe
pela “saudinha”. O fato de haver a mulata lhe oferecido o remédio, quando ele
esteve incomodado, foi pretexto para lhe fazer presentes amáveis; pôr os seus
préstimos à disposição dela e obsequiá-la em extremo todas as vezes que a
visitava. Tinha sempre qualquer coisa para saber da sua boca, a respeito da
Leocádia, por exemplo; pois, desde que a Rita se arvorara em protetora da
mulher do ferreiro, Jerônimo afetava grande interesse pela “pobrezinha de
Cristo”.
— Fez bem, Nhá Rita, fez bem!... A se’ora mostrou com isso que tem bom
coração...
— Ah, meu amigo, neste mundo hoje por mim, amanha por ti!...
Rita havia aboletado a amiga, a principio em casa de umas engomadeiras do
Catete, muito suas camaradas, depois passou-a para uma família, a quem
Leocádia se alagou como ama-seca; e agora sabia que ela acabava de descobrir
um bom arranjo num colégio de meninas.
— Muito bem! muito bem! aplaudia Jerônimo.
— Ora, o quê! O mundo é largo! sentenciou a baiana. Há lugar pro gordo e
há lugar pro magro! Bem tolo é quem se mata!
Em uma das vezes em que o cavouqueiro perguntou-lhe, como de costume,
pela pobrezinha de Cristo, a mulata disse que Leocádia estava grávida.
— Grávida? mas então não é do marido!...
— Pode bem ser que sim. Barriga de quatro meses...
— Ah! mas ela não foi há mais tempo do que isso?...
— Não. Vai fazer agora pelo São João quatro meses justamente.
Jerônimo já nunca pegava na guitarra senão para procurar acertar com as
modinhas que a Rita cantava. Em noites de samba era o primeiro a chegar-se e o
último a ir embora; e durante o pagode ficava de queixo bambo, a ver dançar a
mulata, abstrato, pateta, esquecido de tudo; babão. E ela, consciente do feitiço,
que lhe punha, ainda mais se requebrava e remexia, dando-lhe embigadas ou
fingindo que lhe limpava a baba no queixo com a barra da saia.
E riam-se.
Não! definitivamente estava caído!
Piedade agarrou-se com a Bruxa para lhe arranjar um remédio que lhe
restituísse o seu homem. A cabocla velha fechou-se com ela no quarto, acendeu
velas de cera, queimou ervas aromáticas e tirou sorte nas cartas.
E depois de um jogo complicado de reis, valetes e damas, que ela dispunha
sobre a mesa caprichosamente, a resmungar a cada figura que saia do baralho
uma frase cabalística, declarou convicta, muito calma, sem tirar os olhos das
suas cartas:
— Ele tem a cabeça virada por uma mulher trigueira.
— É o diacho da Rita Baiana! exclamou a outra. Bem cá me palpitava por
dentro! Ai, o meu rico homem!
E a chorar, limpando, aflita, as lágrimas no avental de cânhamo, suplicou à
Bruxa, pelas alminhas do purgatório, que lhe remediasse tamanha desgraça.
— Ai, se perco aquela criatura, S’ora Paula, lamuriou a infeliz entre
soluços; nem sei que virá a ser de mim neste mundo de Cristo!... Ensine-me
alguma coisa que me puxe o Jeromo!
A cabocla disse-lhe que se banhasse todos os dias e desse a beber ao seu
homem, no café pela manhã, algumas gotas das águas da lavagem; e, se no fim
de algum tempo, este regime não produzisse o desejado efeito, então cortasse
um pouco dos cabelos do corpo, torrasse-os até os reduzir a pó e lhos
ministrasse depois na comida.
Piedade ouviu a receita com um silêncio respeitoso e atento, o ar
compungido de quem recebe do médico uma sentença dolorosa para um doente
que estimamos. Em seguida, meteu na mão da feiticeira uma moeda de prata,
prometendo dar-lhe coisa melhor se o remédio tivesse bons resultados.
Mas não era só a portuguesa quem se mordia com o descaimento do
Jerônimo para a mulata, era também o Firmo. Havia muito já que este andava
com a pulga atrás da orelha e, quando passava perto do cavouqueiro, olhava-o
atravessado.
O capadócio ia dormir todas as noites com a Rita, mas não morava na
estalagem; tinha o seu cômodo na oficina em que trabalhava. Só pelos domingos
é que ficavam juntos durante o dia e então não relaxavam o seu jantar de
pândega. Uma vez em que ele gazeara o serviço, o que não era raro, foi vê-la
fora das horas do costume e encontrou-a a conversar junto à tina com o
português. Passou sem dizer palavra e recolheu-se ao número 9, onde ela foi
logo ter de carreira. Firmo não lhe disse nada a respeito das suas apreensões,
mas também não escondeu o seu mau humor; esteve impertinente e rezingueiro
toda a tarde. Jantou de cara amarrada e durante o parati, depois do café, só falou
em rolos, em dar cabeçadas e navalhadas, pintando-se terrível, recordando
façanhas de capoeiragem, nas quais sangrara tais e tais tipos de fama; “não
contando dois galegos que mandara pras minhocas, porque isso para ele não era
gente! — Com um par de cocadas boas ficavam de pés unidos para sempre!”
Rita percebeu os ciúmes do amigo e fez que não dera por coisa alguma.
No dia seguinte, às seis horas da manhã, quando ele saia da casa dela,
encontrou-se com o português, que ia para o trabalho, e o olhar que os dois
trocaram entre si era já um cartel de desafio. Entretanto, cada qual seguiu em
silêncio para o seu lado.
Rita deliberou prevenir Jerônimo de que se acautelasse. Conhecia bem o
amante e sabia de quanto era ele capaz sob a influência dos ciúmes; mas, na
ocasião em que o cavouqueiro desceu para almoçar, um novo escândalo acabava
de explodir, agora no número 12, entre a velha Marciana e sua filha Florinda.
Marciana andava já desconfiada com a pequena, porque o fluxo mensal
desta se desregrara havia três meses, quando, nesse dia, não tendo as duas
acabado ainda o almoço, Florinda se levantou da mesa e foi de carreira para o
quarto. A velha seguiu-a. A rapariga fora vomitar ao bacio.
— Que é isto?... perguntou-lhe a mãe, apalpando-a toda com um olhar
inquiridor.
— Não sei, mamãe...
— Que sentes tu?...
— Nada...
— Nada, e estás lançando?... Hein?!
— Não sinto nada, não senhora!...
A mulata velha aproximou-se, desatou-lhe violentamente o vestido,
levantou-lhe as saias e examinou-lhe todo o corpo, tateando-lhe o ventre, já
zangada. Sem obter nenhum resultado das suas diligências, correu a chamar a
Bruxa, que era mais que entendida no assunto. A cabocla, sem se alterar, largou
o serviço, enxugou os braços no avental, e foi ao número 12; tenteou de novo a
mulatinha, fez-lhe várias perguntas e mais à mãe, e depois disse friamente:
— Está de barriga.
E afastou-se, sem um gesto de surpresa, nem de censura.
Marciana, trêmula de raiva, fechou a porta da casa, guardou a chave no seio
e, furiosa, caiu aos murros em cima da filha. Esta, embalde tentando escapar-lhe,
berrava como uma louca.
Abandonaram-se logo todas as tinas do pátio e algumas das mesas do frege,
e o populacho, curioso e alvoroçado, precipitou-se para o número 12, batendo na
porta e ameaçando entrar pela janela.
Lá dentro, a velha escarranchada sobre a rapariga que se debatia no chão,
perguntava-lhe gritando e repetindo:
— Quem foi?! Quem foi?!
E de cada vez desfechava-lhe um sopapo pelas ventas.
— Quem foi?!
A pequena berrava, mas não respondia.
— Ah! não queres dizer por bem? Ora espera!
E a velha ergueu-se para apanhar a vassoura no canto da sala.
Florinda, vendo iminente o cacete, levantou-se de um pulo, ganhou a janela
e caiu de um salto lá fora, entre o povo amotinado. Coisa de uns nove palmos de
altura.
As lavadeiras a apanharam, cuidando em defendê-la da mãe, que surgiu logo
à porta, ameaçando para o grupo, terrível e armada de pau.
Todos procuraram chamá-la à razão:
— Então que é isso, tia Marciana?! Então que é isso?!
— Que é isto?! É que esta assanhada está de barriga! Está ai o que é! Para
tanto não lhe faltou jeito, nem foi preciso que a gente andasse atrás dela se
matando, como sucede sempre que há um pouco mais de serviço e é necessário
puxar pelo corpo! Ora está ai o que é!
— Bem, disse a Augusta, mas não lhe bata agora, coitada! Assim você lhe
dá cabo da pele!
— Não! Eu quero saber quem lhe encheu o bandulho! E ela há de dizer
quem foi ou quebro-lhe os ossos!
— Então, Florinda, diz logo quem foi... É melhor! aconselhou a das Dores.
Fez-se em torno da rapariga um silêncio ávido, cheio de curiosidade.
— Estão vendo?... exclamou a mãe. Não responde, este diabo! Mas
esperem, que eu lhes mostro se ela fala, ou não!
E as lavadeiras tiveram de agarrar-lhe os braços e tirar-lhe o cacete, porque
a velha queria crescer de novo para a filha.
Ao redor desta a curiosidade assanhava-se cada vez mais. Estalavam todos
por saber quem a tinha emprenhado. “Quem foi?! Quem foi?!” esta frase
apertava-a num torniquete. Afinal, não houve outro remédio:
— Foi seu Domingos... disse ela, chorando e cobrindo o rosto com a fralda
do vestido, rasgado na luta.
— O Domingos!...
— O caixeiro da venda!...
— Ah! foi aquele cara de nabo? gritou Marciana. Vem cá!
E, agarrando a filha pela mão, arrastou-a até à venda.
Os circunstantes acompanharam-na ruidosamente e de carreira.
A taverna, como a casa de pasto, fervia de concorrência.
Ao balcão daquela, o Domingos e o Manuel aviavam os fregueses, numa
roda-viva. Havia muitos negros e negras. O baralho era enorme. A Leonor lá
estava, sempre aos pulos, mexendo com um, mexendo com outro, mostrando a
dupla fila de dentes brancos e grandes, e levando apalpões rudes de mãos de
couro nas suas magras e escorridas nádegas de negrinha virgem Três marujos
ingleses bebiam gengibirra, cantando, ébrios, na sua língua e mascando tabaco.
Marciana na frente do grande grupo e sem largar o braço da filha, que a
seguia como um animal puxado pela coleira, ao chegar à porta lateral da venda,
berrou:
— Ó seu João Romão!
— Que temos lá? perguntou de dentro o vendeiro, atrapalhado de serviço.
Bertoleza, com uma grande colher de zinco gotejante de gordura, apareceu à
porta, muito ensebada e suja de tisna; e, ao ver tanta gente reunida, gritou para
seu homem:
— Corre aqui, seu João, que não sei o que houve!
Ele veio afinal.
Que diabo era aquilo?
— Venho entregar-lhe esta perdida! Seu caixeiro a cobriu, deve tomar conta
dela!
João Romão ficou perplexo.
— Hein! Que é lá isso?!
— Foi o Domingos! disseram muitas vozes.
— O seu Domingos!
O caixeiro respondeu: “Senhor...” com uma voz de delinqüente.
— Chegue cá!
E o criminoso apresentou-se, lívido de morte.
— Que fez você com esta pequena?
— Não fiz nada, não senhor!...
— Foi ele, sim! desmentiu-o a Florinda. — O caixeiro desviou os olhos,
para a não encarar. — Um dia de manhãzinha, às quatro horas, no capinzal,
debaixo das mangueiras...
O mulherio em massa recebeu estas palavras com um coro de gargalhadas.
— Então o senhor anda-me aqui a fazer conquistas, hein?!... disse o patrão,
meneando a cabeça. Muito bem! Pois agora é tomar conta da fazenda e, como
não gosto de caixeiros amigados, pode procurar arranjo noutra parte!...
Domingos não respondeu patavina; abaixou o rosto e retirou-se lentamente.
O grupo das lavadeiras e dos curiosos derramou-se então pela venda, pelo
portão da esta agem, pelo frege, por todos os lados, repartindo-se em pequenos
magotes que discutiam o fato. Principiaram os comentários, os juízos pró e
contra o caixeiro; fizeram-se profecias.
Entretanto, Marciana, sem largar a filha, invadira a casa de João Romão e
perseguia o Domingos que preparava já a sua trouxa.
— Então? perguntou-lhe. Que tenciona fazer?
Ele não deu resposta.
— Vamos! vamos! fale! desembuche!
— Ora lixe-se! resmungou o caixeiro, agora muito vermelho de cólera. —
Lixe-se, não!... Mais devagar com o andor! Você há de casar: ela é menor!
Domingos soltou uma palavrada, que enfureceu a velha.
— Ah, sim?! bradou esta. Pois veremos!
E despejou da venda, gritando para todos:
— Sabe? O cara de nabo diz que não casa!
Esta frase produziu o efeito de um grito de guerra entre as lavadeiras, que se
reuniram de novo, agitadas por uma grande indignação.
— Como, não casa?!...
— Era só o que faltava!
— Tinha graça!
— Então mais ninguém pode contar com a honra de sua filha?
— Se não queria casar pra que fez mal?
— Quem não pode com o tempo não inventa modas!
— Ou ele casa ou sai daqui com os ossos em sopa!
— Quem não quer ser loto não lhe vista a pele!
A mais empenhada naquela reparação era a Machona, e a mais indignada
com o fato era a Dona Isabel. A primeira correra à frente da venda, disposta a
segurar o culpado, se este tentasse fugir. Com o seu exemplo não tardou que em
cada porta, onde era possível uma escapula, se postassem as outras de sentinela,
formando grupos de três e quatro. E, no meio de crescente algazarra, ouviam-se
pragas ferozes e ameaças:
— Das Dores! toma cuidado, que o patife não espirre por ai!
— Ó seu João Romão, se o homem não casa, mande-no-lo pra cá! Temos
ainda algumas pequenas que lhe convêm!
— Mas onde está esse ordinário?!
— Saia o canalha!
— Está fazendo a trouxa!
— Quer escapar!
— Não deixe sair!
— Chame a polícia!
— Onde está o Alexandre?
E ninguém mais se entendia. À vista daquela agitação, o vendeiro foi ter
com o Domingos.
— Não saia agora, ordenou-lhe. Deixe-se ficar por enquanto. Logo mais lhe
direi o que deve fazer.
E chegando a uma das portas que davam para a estalagem, gritou:
— Vá de rumor! Não quero isto aqui! É safar!
— Pois então o homem que case! responderam.
— Ou dê-nos pra cá o patife!
— Fugir é que não!
— Não foge! não deixa fugir!
— Ninguém se arrede!
E, como a Marciana lhe lançasse uma injúria mais forte, ameaçando-o com
o punho fechado, o taverneiro jurou que, se ela insistisse com desaforos, a
mandaria jogar lá fora, junto com a filha, por um urbano.
— Vamos! Vamos! Volte cada uma para a sua obrigação, que eu não posso
perder tempo!
— Ponha-nos então pra cá o homem! exigiu a mulata velha.
— Venha o homem! acompanhou o coro.
— É preciso dar-lhe uma lição!
— O rapaz casa! disse o vendeiro com ar sisudo. Já lhe falei... Está
perfeitamente disposto! E, se não casar, a pequena terá o seu dote! Vão
descansados; respondo por ele ou pelo dinheiro!
Estas palavras apaziguaram os ânimos; o grupo das lavadeiras afrouxou;
João Romão recolheu-se: chamou de parte o Domingos e disse-lhe que não
arredasse pé de casa antes de noite fechada.
— No mais... acrescentou, pode tratar de vida nova! Nada o prende aqui.
Estamos quites.
— Como? se o senhor ainda não me fez as contas?!...
— Contas? Que contas? O seu saldo não chega para pagar o dote da
rapariga!...
— Então eu tenho de pagar um dote?!...
— Ou casar... Ah, meu amigo, este negócio de três vinténs é assim! Custa
dinheiro! Agora, se você quiser, vá queixar-se à policia... Está no seu direito! Eu
me explicarei em juízo!...
— Com que, não recebo nada?...
— E não principie com muita coisa, que lhe fecho a porta e deixo-o ficar às
turras lá fora com esses danados! Você bem viu como estão todos a seu respeito!
E, se há pouco não lhe arrancaram os fígados, agradeça-o a mim! Foi preciso
prometer dinheiro e tenho de cair com ele, decerto! mas não é justo, nem eu
admito, que saia da minha algibeira porque não estou disposto a pagar os
caprichos de ninguém, e muito menos dos meus caixeiros!
— Mas...
— Basta! Se quiser, por muito favor, ficar aqui até à noite, há de ficar
calado; ao contrário — rua!
E afastou-se.
Marciana resolveu não ir ao subdelegado, sem saber que providências
tomaria o vendeiro. Esperaria até ao dia seguinte “para ver só!” O que nesse ela
fez foi dar uma boa lavagem na casa e arrumá-la muitas vezes, como costumava,
sempre que tinha lá as suas zangas.
O escândalo não deixou de ser, durante o dia, discutido um só instante. Não
se falava noutra coisa; tanto que, quando, já à noite, Augusta e Alexandre
receberam uma visita da comadre, a Léonie, era ainda esse o principal assunto
das conversas.
Léonie, com as suas roupas exageradas e barulhentas de cocote à francesa,
levantava rumor quando lá ia e punha expressões de assombro em todas as caras.
O seu vestido de seda cor de aço, enfeitado de encarnado sangue de boi, curto,
petulante, mostrando uns sapatinhos à moda com um salto de quatro dedos de
altura; as suas lavas de vinte botões que lhe chegavam até aos sovacos; a sua
sombrinha vermelha, sumida numa nuvem de rendas cor-de-rosa e com grande
cabo cheio de arabescos extravagantes; o seu pantafaçudo chapéu de imensas
abas forradas de velado escarlate, com um pássaro inteiro grudado à copa; as
suas jóias caprichosas, cintilantes de pedras finas; os seus lábios pintados de
carmim; suas pálpebras tingidas de violeta; o seu cabelo artificialmente louro;
tudo isto contrastava tanto com as vestimentas, os costumes e as maneiras
daquela pobre gente, que de todos os lados surgiam olhos curiosos a espreitá-la
pela porta da casinha de Alexandre; Augusta, ao ver a sua pequena, a Juju, como
vinha tão embonecada e catita, ficou com os dela arrasados de água.
Léonie trazia sempre muito bem calçada e vestida a afilhada, levando o
capricho ao ponto de lhe mandar talhar a roupa da mesma fazenda com que fazia
as suas e pela mesma costureira; arranjava-lhe chapéus escandalosos como os
dela e dava-lhe jóias. Mas, naquele dia, a grande novidade que Juju apresentava
era estar de cabelos louros, quando os tinha castanhos por natureza. Foi caso
para uma revolução na estalagem; a noticia correu logo de número a número, e
muitos moradores se abalaram do cômodo para ver a filhita da Augusta “com
cabelos de francesa”.
Tal sucesso pôs Léonie radiante de alegria. Aquela afilhada era o seu luxo, a
sua originalidade, a coisa boa da sua vida de cansaços depravados; era o que aos
seus próprios olhos a resgatava das abjeções do oficio. Prostituta de casa aberta,
prezava todavia com admiração e respeito a honestidade vulgar da comadre;
sentia-se honrada com a sua estima; cobria-a de obséquios de toda a espécie.
Nos instantes que estava ali, entre aqueles seus amigos simplórios, que a
matariam de ridículo em qualquer outro lagar, nem ela parecia a mesma, pois até
os olhos lhe mudavam de expressão. E não queria preferências: assentava-se no
primeiro banco, bebia água pela caneca de folha, tomava ao colo o pequenito da
comadre e, às vezes, descalçava os sapatos para enfiar os chinelos velhos que
encontrasse debaixo da cama.
Não obstante, o acatamento que lhe votavam Alexandre e a mulher não
tinha limites; pareciam capazes dos maiores sacrifícios por ela. Adoravam-na.
Achavam-na boa de coração como um anjo, e muito linda nas suas roupas de
espavento, com o seu rostinho redondo, malicioso e petulante, onde reluziam
dentes mais alvos que um marfim.
Juju, com um embrulho de balas em cada mão, era carregada de casa em
casa, passando de braço a braço e levada de boca em boca, como um ídolo
milagroso, que todos queriam beijar.
E os elogios não cessavam:
— Rica pequena!...
— É um enlevo olhar a gente pro demoninho!
— É mesmo uma lindeza de criança!
— Uma criaturinha dos anjos!
— Uma boneca francesa!
— Uma menina Jesus!
O pai acompanhava-a comovido, mas solene sempre, parando a todo
momento, como em procissão, à espera que cada qual desafogasse por sua vez o
entusiasmo pela criança. Silenciosamente risonho, com os olhos úmidos,
patenteada em todo o seu carão mulato, de bigode que parecia postiço, um ar
condolente e estúpido de um profundo reconhecimento por aquela fortuna, que
Deus lhe dera à filha, enviando-lhe dos céus o ideal das madrinhas.
E, enquanto Juju percorria a estalagem, conduzida em triunfo, Léonie na
casa da comadre, cercada por uma roda de lavadeiras e crianças, discreteava
sobre assuntos sérios, falando compassadamente, cheia de inflexões de pessoa
prática e ajuizada, condenando maus atos e desvarios, aplaudindo a moral e a
virtude. E aquelas mulheres, aliás tão alegres e vivazes, não se animavam,
defronte dela, a rir nem levantar a voz, e conversavam a medo cochichando, a
tapar a boca com a mão, tolhidas de respeito pela cocote, que as dominava na
sua sobranceria de mulher loura vestida de seda e coberta de brilhantes. A das
Dores sentiu-se orgulhosa, quando Léonie lhe pousou no ombro a mãozinha
enluvada e recendente, para lhe perguntar pelo seu homem. E não se fartavam de
olhar para ela, de admirá-la; chegavam a examinar-lhe a roupa, revistar-lhe as
salas, apalpar-lhe as meias, levantando-lhe o vestido, com exclamações de
assombro à vista de tanto luxo de rendas e bordados. A visita sorria, por sua vez
comovida. Piedade declarou que a roupa branca da madama era rica nem como a
da Nossa Senhora da Penha. E Nenen, no seu entusiasmo, disse que a invejava
do fundo do coração, ao que a mãe lhe observou que não fosse besta. O Albino
contemplava-a em êxtase, de mão no queixo, o cotovelo no ar. A Rita Baiana
levara-lhe um ramalhete de rosas. Esta não se iludia com a posição da loureira,
mas dava-lhe apreço talvez por isso mesmo e, em parte, porque a achava deveras
bonita. “Ora! era preciso ser bem esperta e valer muito para arrancar assim da
pele dos homens ricos aquela porção de jóias e todo aquele luxo de roupa por
dentro e por fora!”
— Não sei, filha! pregava depois a mulata, no pátio, a uma companheira;
seja assim ou assado, a verdade é que ela passa muito bem de boca e nada lhe
falta: sua boa casa; seu bom carro para passear à tarde; teatro toda a noite; bailes
quando quer e, aos domingos, corridas, regatas, pagodes fora da cidade e
dinheirama grossa para gastar à farta! Enfim, só o que afianço é que esta não
está sujeita, como a Leocádia e outras, a pontapés e cachações de um bruto de
marido! É dona das suas ações! livre como o lindo amor! Senhora do seu
corpinho, que ela só entrega a quem muito bem lhe der na veneta!
— E Pombinha?... perguntou a visita. Não me apareceu ainda!...
— Ah! esclareceu Augusta. Não está ai, foi à sociedade de dança com a
mãe.
E, como a outra mostrasse na cara não ter compreendido, explicou que a
filha de Dona Isabel ia todas as terças, quintas e sábados, mediante dois mil-réis
por noite, servir de dama numa sociedade em que os caixeiros do comércio
aprendiam a dançar.
— Foi lá que ela conheceu o Costa... acrescentou.
— Que Costa?
— O noivo! Então a Pombinha já não foi pedida?
— Ah! sei...
E a cocote perguntou depois, abafando a voz:
— E aquilo?... Já veio afinal?...
— Qual! Não é por falta de boa vontade da parte delas, coitadas! Agora
mesmo a velha fez uma nova promessa a Nossa Senhora da Anunciação... mas
não há meio!
Daí a pouco, Augusta apresentou-lhe uma xícara de café, que Léonie
recusou por não poder beber. “Estava em uso de remédios...” Não disse, porém,
quais eram estes, nem para que moléstia os tomava.
— Prefiro um copo de cerveja, declarou ela.
E, sem dar tempo a que se opusessem, tirou da carteira uma nota de dez
mil-réis, que deu a Agostinho para ir buscar três garrafas de Carls Berg.
A vista dos copos, liberalmente cheios, formou-se um silêncio enternecido.
A cocote distribuiu-os por sua própria mão aos circunstantes, reservando um
para si. Não chegavam. Quis mandar buscar mais; não lho permitiram, objetando
que duas e três pessoas podiam beber juntas.
— Para que gastar tanto?... Que alma grande!
O troco ficou esquecido, de propósito, sobre a cômoda, entre uma infinita
quinquilharia de coisas velhas e bem tratadas.
— Quando você, comadre, agora me aparece por lá?... quis saber Léonie
— Pra semana, sem falta; levo-lhe toda a roupa. Agora, se a comadre tem
precisão de alguma... pode-se aprontar com mais pressa...
— Então é bom mandar-me toalhas e lençóis... Camisas de dormir, é
verdade! também tenho poucas.
— Depois d’amanhã está tudo lá.
E a noite ia-se passando. Deram dez horas. Léonie, impaciente já pelo rapaz
que ficara de ir buscá-la, mandou ver se ele por acaso estaria no portão, à espera.
— É aquele mesmo que veio da outra vez com a comadre?...
— Não. É um mais alto. De cartola branca.
Correu muita gente até à rua. O rapaz não tinha chegado ainda. Léonie ficou
contrariada.
— Imprestável!... resmungou. Faz-me ir sozinha por ai ou incomodar
alguém que me acompanhe!
— Por que a comadre não dorme aqui?... lembrou Augusta. Se quiser,
arranja-se tudo! Não passará bem como em sua casa, mas uma noite corre
depressa!...
Não! não era possível Precisava estar em casa essa noite: no dia seguinte
pela manhã iriam procurá-la muito cedo.
Nisto chegou Pombinha com Dona Isabel. Disseram-lhes logo à entrada que
Léonie estava em casa do Alexandre, e a menina deixou a mãe um instante no
número 15 e seguiu sozinha para ali, radiante de alegria. Gostavam-se muito
uma da outra. A cocote recebeu-a com exclamações de agrado e beijou-a nos
dentes e nos olhos repetidas vezes.
— Então, minha flor, como está essa lindeza! perguntou-lhe, mirando-a
toda.
— Saudades suas... respondeu a moça, rindo bonito na sua boca ainda pura.
E uma conversa amiga, cheia de interesse para ambas, estabeleceu-se,
isolando-as de todas as outras. Léonie entregou à Pombinha uma medalha de
prata que lhe trouxera; uma tetéia que valia só pela esquisitice, representando
uma fatia de queijo com um camundongo em cima. Correu logo de mão em
mão, levantando espantos e gargalhadas.
— Por um pouco que não me apanhas... continuou a cocote na sua conversa
com a menina. Se a pessoa que me vem buscar tivesse chegado já, eu estaria
longe. — E mudando de tom, a acarinhar-lhe os cabelos: — Por que não me
apareces!... Não tens que recear: minha casa é muito sossegada... Já lá têm ido
famílias!...
— Nunca vou à cidade... É raro! suspirou Pombinha.
— Vai amanhã com tua mãe; jantam as duas comigo...
— Se mamãe deixar... Olha! ela ai vem. Peça.
Dona Isabel prometeu ir, não no dia seguinte, mas no outro imediato, que
era domingo. E a palestra durou animada até que chegou, daí a um quarto de
hora, o rapaz por quem esperava Léonie. Era um moço de vinte e poucos anos,
sem emprego e sem fortuna, mas vestido com esmero e muito bem apessoado. A
cocote, logo que o viu aproximar-se, disse baixinho à menina:
— Não é preciso que ele saiba que vais lá domingo, ouviste?
Juju dormia. Resolveram não acordá-la; iria no dia seguinte.
Na ocasião em que Léonie partia pelo braço do amante, acompanhada até o
portão por um séquito de lavadeiras, a Rita, no pátio, beliscou a coxa de
Jerônimo e soprou-lhe à meia voz:
— Não lhe caia o queixo!...
O cavouqueiro teve um desdenhoso sacudir d’ombros.
— Aquela pra cá nem pintada!
E, para deixar bem patente as suas preferências, virou o pé do lado e bateu
com o tamanco na canela da mulata.
— Olha o bruto!... queixou-se esta, levando a mão ao lagar da pancada.
Sempre há de mostrar que é galego!
X
No outro dia a casa do Miranda estava em preparos de festa. Lia-se no
“Jornal do Comércio” que Sua Excelência fora agraciado pelo governo
português com o titulo de Barão do Freixal; e como os seus amigos se achassem
prevenidos para ir cumprimentá-lo no domingo, o negociante dispunha-se a
recebê-los condignamente.
Do cortiço, onde esta novidade causou sensação, via-se nas janelas do
sobrado, abertas de par em par, surgir de vez em quando Leonor ou Isaura, a
sacudirem tapetes e capachos, batendo-lhes em cima com um pau, os olhos
fechados, a cabeça torcida para dentro por causa da poeira que a cada pancada se
levantava, como fumaça de um tiro de peça. Chamaram-se novos criados para
aqueles dias. No salão da frente, pretos lavavam o soalho, e na cozinha havia
rebuliço. Dona Estela, de penteador de cambraia enfeitado de laços cor-de-rosa,
era lobrigada de relance, ora de um lado, ora de outro, a dar as suas ordens,
abanando-se com um grande leque; ou aparecia no patamar da escada do fundo,
preocupada em soerguer as saias contra as águas sujas da lavagem, que
escorriam para o quintal. Zulmira também ia e vinha, com a sua palidez fria e
úmida de menina sem sangue. Henrique, de paletó branco, ajudava o Botelho
nos arranjos da casa e, de instante a instante, chegava à janela, para namoriscar
Pombinha, que fingia não dar por isso, toda embebida na sua costura, à porta do
número 15, numa cadeira de vime, uma perna dobrada sobre a outra, mostrando
a meia de seda azul e um sapatinho preto de entrada baixa; só de longo em longo
espaço, ela desviava os olhos do serviço e erguia-os para o sobrado. Entretanto,
a figura gorda e encanecida do novo Barão, sobre-casacado, com o chapéu alto
derreado para trás na cabeça e sem largar o guarda-chuva, entrava da rua e
atravessava a sala de jantar, seguia até a despensa, diligente esbaforido,
indagando se já tinha vindo isto e mais aquilo, provando dos vinhos que
chegavam em garrafões, examinando tudo, voltando-se para a direita e para a
esquerda, dando ordens, ralhando, exigindo atividade, e depois tornava a sair,
sempre apressado, e metia-se no carro que o esperava à porta da rua.
— Toca! toca! Vamos ver se o fogueteiro aprontou os fogos!
E viam-se chegar, quase sem intermitência, homens carregados de gigos de
champanha, caixas de Porto e Bordéus, barricas de cerveja, cestos e cestos de
mantimentos, latas e latas de conserva; e outros traziam perus e leitões, canastras
d’ovos, quartos de carneiro e de porco. E as janelas do sobrado iam-se enchendo
de compoteiras de doce ainda quente, saído do fogo, e travessões, de barro e de
ferro, com grandes peças de carne em vinha d’alhos, prontos para entrar no
forno. À porta da cozinha penduraram pelo pescoço um cabrito esfolado, que
tinha as pernas abertas, lembrando sinistramente uma criança a quem
enforcassem depois de tirar-lhe a pele.
Todavia, cá embaixo, um caso palpitante agitava a estalagem: Domingos, o
sedutor da Florinda, desaparecera durante a noite e um novo caixeiro o
substituía ao balcão.
O vendeiro retorquia atravessado a quem lhe perguntava pelo evadido:
— Sei cá! Creio que não podia trazê-lo pendurado ao pescoço!...
— Mas você disse que respondia por ele! repontou Marciana, que parecia
ter envelhecido dez anos naquelas últimas vinte e quatro horas.
— De acordo, mas o tratante cegou-me! Que havemos de fazer?... É ter
paciência!
— Pois então ande com o dote!
— Que dote? Você está bêbeda?
— Bêbeda, hein? Ah, corja! tão bom é um como o outro! Mas eu hei de
mostrar!
— Ora, não me amole!
E João Romão virou-lhe as costas, para falar à Bertoleza que se chegara.
— Deixa estar, malvado, que Deus é quem há de punir por mim e por minha
filha! exclamou a desgraçada.
Mas o vendeiro afastou-se, indiferente às frases que uma ou outra lavadeira
imprecava contra ele. Elas, porém, já se não mostravam tão indignadas como na
véspera; uma só noite rolada por cima do escândalo bastava para tirar-lhe o
mérito de novidade.
Marciana foi com a pequena à procura do subdelegado e voltou aborrecida,
porque lhe disseram que nada se poderia fazer enquanto não aparecesse o
delinqüente. Mãe e filha passaram todo esse sábado na rua, numa roda-viva, da
secretaria e das estações de polícia para o escritório de advogados que, um por
um, lhes perguntavam de quanto dispunham para gastar com o processo,
despachando-as, sem mais considerações, logo que se inteiravam da escassez de
recursos de ambas as partes.
Quando as duas, prostradas de cansaço, esbraseadas de calor, tornaram à
tarde para a estalagem, na hora em que os homens do mercado, que ali
moravam, recolhiam-se já com os balaios vazios ou com o resto da fruta que não
conseguiram vender na cidade, Marciana vinha tão furiosa que, sem dar palavra
à filha e com os braços moídos de esbordoá-la, abriu toda a casa e correu a
buscar água para baldear o chão. Estava possessa.
Vê a vassoura! Anda! Lava! lava, que está isto uma porcaria! Parece que
nunca se limpa o diabo desta casa! É deixá-la fechada uma hora e morre-se de
fedor! Apre! isto faz peste!
E notando que a pequena chorava:
— Agora deste para chorar, hein? mas na ocasião do relaxamento havias de
estar bem disposta!
A filha soluçou.
— Cala-te, coisa-ruim! Não ouviste?
Florinda soluçou mais forte.
— Ah! choras sem motivo?... Espera, que te faço chorar com razão.
E precipitou-se sobre ela com uma acha de lenha.
Mas a mulatinha, de um salto, pinchou pela porta e atravessou de uma só
carreira o pátio da estalagem, fugindo em desfilada pela rua.
Ninguém teve tempo de apanhá-la, e um clamor de galinheiro assustado
levantou-se entre as lavadeiras.
Marciana foi até o portão, como uma doida e, compreendendo que a filha a
abandonava, desatou por sua vez a soluçar, de braços abertos, olhando para o
espaço. As lágrimas saltavam-lhe pelas rugas da cara. E logo, sem transição,
disparou da cólera, que a convulsionava desde a manhã da véspera, para cair
numa dor humilde enternecida de mãe que perdeu o filho.
— Para onde iria ela, meu pai do céu?
— Pois você desd’ontem que bate na rapariga!... disse-lhe a Rita. Fugiu-lhe,
é bem feito! Que diabo! ela é de carne, não é de ferro!
— Minha filha!
— É bem feito! Agora chore na cama que é lugar quente!
— Minha filha! Minha filha! Minha filha!
Ninguém quis tomar o partido da infeliz, à exceção da cabocla velha, que foi
colocar-se perto dela, fitando-a imóvel, com o seu desvairado olhar de bruxa
feiticeira.
Marciana arrancou-se da abstração plangente em que caíra, para arvorar-se
terrível defronte da venda, apostrofando com a mão no ar e a carapinha
desgrenhada:
— Este galego e que teve a culpa de tudo! Maldito sejas tu, ladrão! Se não
me deres conta de minha filha, malvado, pego-te fogo na casa.
A bruxa sorriu sinistramente ao ouvir estas últimas palavras.
O vendeiro chegou à porta e ordenou em tom seco à Marciana que
despejasse o número 12.
— É andar! É andar! Não quero esta berraria aqui! Bico, ou chamo um
urbano! Dou-lhe uma noite! amanhã pela manhã — rua!
Ah! ele esse dia estava intolerante com tudo e com todos; por mais de uma
vez mandara Bertoleza à coisa mais imunda, apenas porque esta lhe fizera
algumas perguntas concernentes ao serviço. Nunca o tinha visto assim, tão fora
de si, tão cheio de repelões; nem parecia aquele mesmo homem inalterável,
sempre calmo e metódico.
E ninguém seria capaz de acreditar que a causa de tudo isso era o fato de ter
sido o Miranda agraciado com o titulo de Barão.
Sim, senhor! aquele taverneiro, na aparência tão humilde e tão miserável;
aquele sovina que nunca saíra dos seus tamancos e da sua camisa de riscadinho
de Angola; aquele animal que se alimentava pior que os cães, para pôr de parte
tudo, tudo, que ganhava ou extorquia; aquele ente atrofiado pela cobiça e que
parecia ter abdicado dos seus privilégios e sentimentos de homem; aquele
desgraçado, que nunca jamais amara senão o dinheiro, invejava agora o
Miranda, invejava-o deveras, com dobrada amargura do que sofrera o marido de
Dona Estela, quando, por sua vez, o invejara a ele. Acompanhara-o desde que o
Miranda viera habitar o sobrado com a família; vira-o nas felizes ocasiões da
vida, cheio de importância, cercado de amigos e rodeado de aduladores; vira-o
dar festas e receber em sua casa as figuras mais salientes da praça e da política;
vira-o luzir, como um grosso pião de ouro, girando por entre damas da melhor e
mais fina sociedade fluminense; vira-o meter-se em altas especulações
comerciais e sair-se bem; vira seu nome figurar em várias corporações de gente
escolhida e em subscrições, assinando belas quantias; vira-o fazer parte de festas
de caridade e festas de regozijo nacional; vira-o elogiado pela imprensa e
aclamado como homem de vistas largas e grande talento financeiro; vira-o enfim
em todas as suas prosperidades, e nunca lhe tivera inveja. Mas agora, estranho
deslumbramento! quando o vendeiro leu no “Jornal do Comércio” que o vizinho
estava barão — Barão! — sentiu tamanho calafrio em todo o corpo, que a vista
por um instante se lhe apagou dos olhos.
— Barão!
E durante todo o santo dia não pensou noutra coisa. “Barão!... Com esta é
que ele não contava!...” E, defronte da sua preocupação, tudo se convertia em
comendas e crachás; até os modestos dois vinténs de manteiga, que media sobre
um pedaço de papel de embrulho para dar ao freguês, transformava-se, de
simples mancha amarela, em opulenta insígnia de ouro cravejada de brilhantes.
À noite, quando se estirou na cama, ao lado da Bertoleza, para dormir, não
pôde conciliar o sono. Por toda a miséria daquele quarto sórdido; pelas paredes
imundas, pelo chão enlameado de poeira e sebo, nos tetos funebremente velados
pelas teias de aranha, estrelavam pontos luminosos que se iam transformando
em grã-cruzes, em hábitos e veneras de toda a ordem e espécie. E em volta do
seu espírito, pela primeira vez alucinado, um turbilhão de grandezas que ele mal
conhecia e mal podia imaginar, perpassou vertiginosamente, em ondas de seda e
rendas, velado e pérolas, colos e braços de mulheres seminuas, num fremir de
risos e espumar aljofrado de vinhos cor-de-ouro. E nuvens de caudas de vestidos
e abas de casaca lá iam, rodando deliciosamente, ao som de langorosas valsas e
à luz de candelabros de mil velas de todas as cores. E carruagens desfilavam
reluzentes, com uma coroa à portinhola, o cocheiro teso, de libré, sopeando
parelhas de cavalos grandes. E intermináveis mesas estendiam-se, serpenteando
a perder de vista, acumuladas de iguarias, numa encantadora confusão de flores,
luzes, baixelas e cristais, cercadas de um e de outro lado por luxuoso renque de
convivas, de taça em punho, brindando o anfitrião.
E, porque nada disso o vendeiro conhecia de perto, mas apenas pelo ruído
namorador e fátuo, ficava deslumbrado com o seu próprio sonho. Tudo aquilo,
que agora lhe deparava o delírio, até ai só lhe passara pelos olhos ou lhe chegara
aos ouvidos como o eco e reflexo de um mundo inatingível e longínquo; um
mundo habitado por seres superiores; um paraíso de gozos excelentes e
delicados, que os seus grosseiros sentidos repeliam; um conjunto harmonioso e
discreto de sons e cores mal definidas e vaporosas; um quadro de manchas
pálidas, sussurrantes, sem firmezas de tintas, nem contornos, em que se não
determinava o que era pétala de rosa ou asa de borboleta, murmúrio de brisa ou
ciciar de beijos.
Não obstante, ao lado dele a crioula roncava, de papo para o ar, gorda,
estrompada de serviço, tresandando a uma mistura de suor com cebola crua e
gordura podre.
Mas João Romão nem dava por ela; só o que ele via e sentia era todo aquele
voluptuoso mundo inacessível vir descendo para a terra, chegando-se para o seu
alcance, lentamente, acentuando-se. E as dúbias sombras tomavam forma, e as
vozes duvidosas e confusas transformavam-se em falas distintas, e as linhas
desenhavam-se nítidas, e tudo se ia esclarecendo e tudo se aclarava, num reviver
de natureza ao raiar do sol. Os tênues murmúrios suspirosos desdobravam-se em
orquestra de baile, onde se distinguiam instrumentos, e os surdos rumores
indefinidos eram já animadas conversas, em que damas e cavalheiros discutiam
política, artes, literatura e ciência. E uma vida inteira, completa, real,
descortinou-se amplamente defronte dos seus olhos fascinados; uma vida
fidalga, de muito luxo, de muito dinheiro; uma vida de palácio, entre mobílias
preciosas e objetos esplêndidos, onde ele se via cercado de titulares milionários,
e homens de farda bordada, a quem tratava por tu, de igual para igual,
pondo-lhes a mão no ombro. E ali ele não era, nunca fora, o dono de um cortiço,
de tamancos e em mangas de camisa; ali era o Sr. Barão! O Barão do ouro! o
Barão das grandezas! o Barão dos milhões! Vendeiro! Qual! era o famoso, o
enorme capitalista! o proprietário sem igual! o incomparável banqueiro, em
cujos capitais se equilibrava a terra, como imenso globo em cima de colunas
feitas de moedas de ouro. E viu-se logo montado a cavaleiras sobre o mundo,
pretendendo abarcá-lo com as suas pernas curtas; na cabeça uma coroa de rei e
na mão um cetro. E logo, de todos os cantos do quarto, começaram a jorrar
cascatas de libras esterlinas, e a seus pés principiou a formar-se um formigueiro
de pigmeus em grande movimento comercial; e navios descarregavam pilhas e
pilhas de fardos e caixões marcados com as iniciais do seu nome; e telegramas
faiscavam eletricamente em volta da sua cabeça; e paquetes de todas as
nacionalidades giravam vertiginosamente em torno do seu corpo de colosso,
arfando e apitando sem trégua; e rápidos comboios a vapor atravessam-no todo,
de um lado a outro, como se o cosessem com uma cadeia de vagões.
Mas, de repente, tudo desapareceu com a seguinte frase:
— Acorda, seu João, para ir à praia. São horas!
Bertoleza chamava-o aquele domingo, como todas as manhãs, para ir buscar
o peixe, que ela tinha de preparar para os seus fregueses. João Romão, com
medo de ser iludido, não confiava nunca aos empregados a menor compra a
dinheiro; nesse dia, porém, não se achou com animo de deixar a cama e disse à
amiga que mandasse o Manuel.
Seriam quatro da madrugada. Ele conseguiu então passar pelo sono.
Às seis estava de pé. Defronte, a casa do Miranda resplandecia já. Içaram-se
bandeiras nas janelas da frente; mudaram-se as cortinas, armaram-se florões de
murta à entrada e recamaram-se de folhas de mangueira o corredor e a calçada.
Dona Estela mandou soltar foguetes e queimar bombas ao romper da alvorada.
Uma banda de música, em frente à porta do sobrado, tocava desde essa hora. O
Barão madrugara com a família; todo de branco, com uma gravata de rendas,
brilhantes no peito da camisa, chegava de vez em quando a uma das janelas, ao
lado da mulher ou da filha, agradecendo para a rua; e limpava a testa com o
lenço; acendia charutos, risonho, feliz, resplandecente.
João Romão via tudo isto com o coração moído. Certas dúvidas aborrecidas
entravam-lhe agora a roer por dentro: qual seria o melhor e o mais acertado: —
ter vivido como ele vivera até ali, curtindo privações, em tamancos e mangas de
camisa; ou ter feito como o Miranda, comendo boas coisas e gozando à farta?...
Estaria ele, João Romão, habilitado a possuir e desfrutar tratamento igual ao do
vizinho?... Dinheiro não lhe faltava para isso... Sim, de acordo! mas teria animo
de gastá-lo assim, sem mais nem menos?... sacrificar uma boa porção de contos
de réis, tão penosamente acumulados, em troca de uma tetéia para o peito?...
Teria animo de dividir o que era seu, tomando esposa, fazendo família; e
cercando-se de amigos?... Teria animo de encher de finas iguarias e vinhos
preciosos a barriga dos outros, quando até ali fora tão pouco condescendente
para com a própria?... E, caso resolvesse mudar de vida radicalmente, unir-se a
uma senhora bem-educada e distinta de maneiras, montar um sobrado como o do
Miranda e volver-se titular, estaria apto para o fazer?... Poderia dar conta do
recado?... Dependeria tudo isso somente da sua vontade?... “Sem nunca ter
vestido um paletó, como vestiria uma casaca?... Com aqueles pés, deformados
pelo diabo dos tamancos, criados à solta, sem meias, como calçaria sapatos de
baile?... E suas mãos, calosas e maltratadas, duras como as de um cavouqueiro,
como se ajeitariam com a luva?... E isso ainda não era tudo! O mais difícil seria
o que tivesse de dizer aos seus convidados!... Como deveria tratar as damas e
cavalheiros, em meio de um grande salão cheio de espelhos e cadeiras
douradas?... Como se arranjaria para conversar, sem dizer barbaridades?...”
E um desgosto negro e profundo assoberbou-lhe o coração, um desejo forte
de querer saltar e um medo invencível de cair e quebrar as pernas. Afinal, a
dolorosa desconfiança de si mesmo e a terrível convicção da sua impotência
para pretender outra coisa que não fosse ajuntar dinheiro, e mais dinheiro, e
mais ainda, sem saber para que e com que fim, acabaram azedando-lhe de todo a
alma e tingindo de fel a sua ambição e despolindo o seu ouro.
“Fora uma besta!... pensou de si próprio, amargurado: Uma grande besta!...
Pois não! por que em tempo não tratara de habituar-se logo a certo modo de
viver, como faziam tantos outros seus patrícios e colegas de profissão?... Por
que, como eles, não aprendera a dançar? e não freqüentar sociedades
carnavalescas? e não fora de vez em quando à Rua do Ouvidor e aos teatros e
bailes, e corridas e a passeios?... Por que se não habituara com as roupas finas, e
com o calçado justo, e com a bengala, e com o lenço, e com o charuto, e com o
chapéu, e com a cerveja, e com tudo que os outros usavam naturalmente, sem
precisar de privilégio para isso?... Maldita economia!”
— Teria gasto mais, é verdade!... Não estaria tão bem!... mas, ora adeus!
estaria habilitado a fazer do meu dinheiro o que bem quisesse!... Seria um
homem civilizado!...
— Você deu hoje para conversar com as almas, seu João?... perguntou-lhe
Bertoleza, notando que ele falava sozinho, distraído do serviço.
— Deixe! Não me amole você também. Não estou bom hoje!
— Ó gentes! não falei por mal!... Credo!
— ’Stá bem! Basta!
E o seu mau humor agravou-se pelo correr do dia. Começou a implicar com
tudo. Arranjou logo uma pega, à entrada da venda, com o fiscal da rua: “Pois ele
era lá algum parvo, que tivesse medo de ameaças de multas?... Se o bolas do
fiscal esperava comê-lo por uma perna, como costumava fazer com os outros,
que experimentasse, para ver só quanto lhe custaria a festa!... E que lhe não
rosnasse muito, que ele não gostava de cães à porta!... Era andar!” Pegou-se
depois com a Machona, por causa de um gato desta, que, a semana passada, lhe
fora ao tabuleiro do peixe frito. Parava defronte das tinas vazias, encolerizado,
procurando pretextos para ralhar. Mandava, com um berro, saírem as crianças de
seu caminho: “Que praga de piolhos! Arre, demônio! Nunca vira gente tão
danada para parir! Pareciam ratas!” Deu um encontrão no velho Libório.
— Sai tu também do caminho, fona de uma figa! Não sei que diabo fica
fazendo cá no mundo um caco velho como este, que já não presta pra nada!
Protestou contra os galos de um alfaiate, que se divertia a fazê-los brigar, no
meio de grande roda entusiasmada e barulhenta. Vituperou os italianos, porque
estes, na alegre independência do domingo, tinham à porta da casa uma
esterqueira de cascas de melancia e laranja, que eles comiam tagarelando,
assentados sobre a janela e a calçada.
— Quero isto limpo! bramava furioso. Está pior que um chiqueiro de
porcos! Apre! Tomara que a febre amarela os lamba a todos! maldita raça de
carcamanos! Hão de trazer-me isto asseado ou vai tudo para o olho da rua! Aqui
mando eu!
Com a pobre velha Marciana, que não tratara de despejar o número 12,
conforme a intimação da véspera, a sua fúria tocou ao delírio. A infeliz, desde
que Florinda lhe fugira, levava a choramingar e maldizer-se, monologando com
persistência maníaca. Não pregou olho durante toda a noite; saíra e entrara na
estalagem mais de vinte vezes, irrequieta, ululando, como uma cadela a quem
roubaram o cachorrinho.
Estava apatetada; não respondia às perguntas que lhe dirigiam. João Romão
falou-lhe; ela nem sequer se voltou para ouvir. E o vendeiro, cada vez mais
excitado, foi buscar dois homens e ordenou que esvaziassem o numero 12.
— Os tarecos fora! e já! Aqui mando eu! Aqui sou eu o monarca!
E tinha gestos inflexíveis de déspota.
Principiou o despejo.
— Não! aqui dentro não! Tudo lá fora! na rua! gritou ele, quando os
carregadores quiseram depor no pátio os trens de Marciana. Lá fora do portão!
Lá fora do portão!
E a mísera, sem opor uma palavra, assistia ao despejo acocorada na rua, com
os joelhos juntos, as mãos cruzadas sobre as canelas, resmungando. Transeuntes
paravam a olhá-la. Formava-se já um grupo de curiosos. Mas ninguém entendia
o que ela rosnava; era um rabujar confuso, interminável, acompanhado de um
único gesto de cabeça, triste e automático. Ali perto, o colchão velho, já roto e
destripado, os móveis desconjuntados e sem verniz, as trouxas de molambos
úteis, as louças ordinárias e sujas do uso, tinham, tudo amontoado e sem ordem,
um ar indecoroso de interior de quarto de dormir, devassado em flagrante
intimidade. E veio o homem dos cinco instrumentos, que, aos domingos,
aparecia sempre; e fez-se o entra-e-sai dos mercadores; e lavadeiras ganharam a
rua em trajos de passeio, e os tabuleiros de roupa engomada, que saiam,
cruzaram-se com os sacos de roupa suja, que entravam; e Marciana não se
movia do seu lugar, monologando. João Romão percorreu o número 12,
escancarando as portas, a dar arres e empurrando para fora, com o pé, algum
trapo ou algum frasco vazio que ál ficara abandonado; e a enxotada, indiferente
a tudo, continuava a sussurrar funebremente. Já não chorava, mas os olhos
tinha-os ainda relentados na sua muda fixidez. Algumas mulheres da estalagem
iam ter com ela de vez em quando, agora de novo compungidas, e faziam-lhe
oferecimentos, Marciana não respondia. Quiseram obrigá-la a comer; não houve
meio. A desgraçada não prestava atenção a coisa alguma, parecia não dar pela
presença de ninguém. Chamaram-na pelo nome repetidas vezes; ela persistia no
seu ininteligível monólogo, sem tirar a vista de um ponto.
— Cruzes! parece que lhe deu alguma!
— A Augusta chegara-se também.
— Teria ensandecido?... perguntou à Rita, que, a seu lado, olhava para a
infeliz, com um prato de comida na mão. Coitada!
— T ia Marciana! dizia a mulata. Não fique assim!! Levante-se! Meta os
seus trens pra dentro! Vá lá pra casa até encontrar arrumação!...
Nada! O monólogo continuava.
— Olhe que vai chover! Não tarda a cair água! Já senti dois pingos na cara.
Qual!
A Bruxa, a certa distancia, fitava-a com estranheza, igualmente imóvel,
como um efeito de sugestão.
Rita afastou-se, porque acabava de chegar o Firmo, acompanhado pelo
Porfiro, trazendo ambos embrulhos para o jantar. O amigo da das Dores também
veio. Deram três horas da tarde. A casa do Miranda continuava em festa
animada cada vez mais cheia de visitas; lá dentro a música quase que não
tomava fôlego, enfiando quadrilhas e valsas; moças e meninas dançavam na sala
da frente, com muito riso; desarrolhavam-se garrafas a todo instante; os criados
iam e vinham, de carreira, da sala de jantar à despensa e à cozinha, carregados
de copos em salvas; Henrique, suado e vermelho, aparecia de quando em quando
à janela, impaciente por não ver Pombinha, que estava esse dia de passeio com a
mãe em casa de Léonie.
João Romão, depois de serrazinar na venda com os caixeiros e com a
Bertoleza, tornou ao pátio da estalagem queixando-se de que tudo ali ia muito
mal. Censurou os trabalhadores da pedreira, nomeando o próprio Jerônimo, cuja
força física aliás o intimidara sempre. “Era um relaxamento aquela porcaria de
serviço! Havia três semanas que estava com uma broca à-toa, sem atar, nem
desatar; afinal ai chegara o domingo e não se havia ainda lascado fogo! Uma
verdadeira calaçaria! O tal seu Jerônimo, dantes tão apurado, era agora o
primeiro a dar o mau exemplo! perdia noites no samba! não largava os rastros da
Rita Baiana e parecia embeiçado por ela! Não tinha jeito!” Piedade, ouvindo o
vendeiro dizer mal do seu homem, saltou em defesa deste com duas pedras na
mão, e uma contenda travou-se, assanhando todos os ânimos. Felizmente, a
chuva, caindo em cheio, veio dispersar o ajuntamento que se tornava sério. Cada
um correu para o seu buraco, num alvoroço exagerado; as crianças despiram-se
e vieram cá fora tomar banho debaixo das goteiras, por pagode, gritando, rindo,
saltando e atirando-se ao chão, a espernearem; fingindo que nadavam. E lá
defronte, no sobrado, ferviam brindes, enquanto a água jorrava copiosamente,
alagando o pátio.
Quando João Romão entrou na venda, recolhendo-se da chuva, um caixeiro
entregou-lhe um cartão de Miranda. Era um convite para lá ir à noite tomar uma
chávena de chá.
O vendeiro, a principio, ficou lisonjeado com o obséquio, primeiro desse
gênero que em sua vida recebia; mas logo depois voltou-lhe a cólera com mais
ímpeto ainda. Aquele convite irritava-o como um ultraje, uma provocação. “Por
que o pulha o convidara, devendo saber que ele decerto lá não ia?... Para que, se
não para o enfrenesiar ainda mais do que já estava?!... Seu Miranda que fosse à
tábua com a sua festa e com os seus títulos!”
— Não preciso dele para nada!... exclamou o vendeiro. Não preciso, nem
dependo de nenhum safardana! Se gostasse de festas, dava-as eu!
No entanto, começou a imaginar como seria, no caso que estivesse
prevenido de roupa e aceitasse o convite: figurou-se bem vestido, de pano fino,
com uma boa cadeia de relógio, uma gravata com alfinete de brilhantes; e viu-se
lá em cima, no meio da sala, a sorrir para os lados, prestando atenção a um,
prestando atenção a outro, discretamente silencioso e afável, sentindo que o
citavam dos lados em voz mortiça e respeitosa como um homem rico, cheio de
independência. E adivinhava os olhares aprobativos das pessoas sérias; os
óculos curiosos das velhas assestados sobre ele, procurando ver se estaria ali um
bom arranjo para uma das filhas de menor cotação.
Nesse dia serviu mal e porcamente aos fregueses; tratou aos repelões a
Bertoleza e, quando, já as cinco horas, deu com a Marciana, que, uns negros por
compaixão haviam arrastado para dentro da venda, disparatou:
— Ora bolas! pra que diabo me metem em casa este estupor?! Gosto de ver
tais caridades com o que é dos outros! Isto aqui não é acoito de vagabundos!...
E, como um polícia, todo encharcado de chuva, entrasse para beber um gole
de parati, João Romão voltou-se para ele e disse-lhe:
— Camarada, esta mulher é gira! não tem domicilio, e eu não hei de,
quando fechar a porta, ficar com ela aqui dentro da venda!
O soldado saiu e, daí a coisa de uma hora, Marciana era carregada para o
xadrez, sem o menor protesto e sem interromper o seu monólogo de demente.
Os cacaréus foram recolhidos ao depósito público por ordem do inspetor do
quarteirão. E a Bruxa era a única que parecia deveras impressionada com tudo
aquilo.
Entretanto, a chuva cessou completamente, o sol reapareceu, como para
despedir-se: andorinhas esgaivotaram no ar; e o cortiço palpitou inteiro na
trêfega alegria do domingo. Nas salas do barão a festa engrossava, cada vez
mais estrepitosa; de vez em quando vinha de lá uma taça quebrar-se no pátio da
estalagem, levantando protestos e surriadas.
A noite chegou muito bonita, com um belo luar de lua cheia, que começou
ainda com o crepúsculo; e o samba rompeu mais forte e mais cedo que de
costume, incitado pela grande animação que havia em casa do Miranda.
Foi um forrobodó valente. A Rita Baiana essa noite estava de veia para a
coisa; estava inspirada; divina! Nunca dançara com tanta graça e tamanha
lubricidade!
Também cantou. E cada verso que vinha da sua boca de mulata era um
arrulhar choroso de pomba no cio. E o Firmo, bêbedo de volúpia, enroscava-se
todo ao violão; e o violão e ele gemiam com o mesmo gosto, grunhindo,
ganindo, miando, com todas as vozes de bichos sensuais, num desespero de
luxúria que penetrava até ao tutano com línguas finíssimas de cobra.
Jerônimo não pôde conter-se: no momento em que a baiana, ofegante de
cansaço, caiu exausta, assentando-se ao lado dele, o português segredou-lhe com
a voz estrangulada de paixão:
— Meu bem! se você quiser estar comigo, dou uma perna ao demo!
O mulato não ouviu, mas notou o cochicho e ficou, de má cara, a rondar
disfarçadamente o rival.
O canto e a dança continuavam todavia, sem afrouxar. Entrou a das Dores.
Nenen, mais uma amiga sua, que fora passar o dia com ela, rodavam de mãos
nas cadeiras, rebolando em meio de uma volta de palmas cadenciadas, no
acompanhamento do ritmo requebrado da musica.
Quando o marido de Piedade disse um segundo cochicho à Rita, Firmo
precisou empregar grande esforço para não ir logo às do cabo.
Mas, lá pelo meio do pagode, a baiana caíra na imprudência de derrear-se
toda sobre o português e soprar-lhe um segredo, requebrando os olhos. Firmo,
de um salto, aprumou-se então defronte dele, medindo-o de alto a baixo com um
olhar provocador e atrevido. Jerônimo, também posto de pé, respondeu altivo
com um gesto igual. Os instrumentos calaram-se logo. Fez-se um profundo
silêncio. Ninguém se mexeu do lugar em que estava. E, no meio da grande roda,
iluminados amplamente pelo capitoso luar de abril, os dois homens, perfilados
defronte um do outro, olhavam-se em desafio.
Jerônimo era alto, espadaúdo, construção de touro, pescoço de Hércules,
punho de quebrar um coco com um murro: era a força tranqüila, o pulso de
chumbo. O outro, franzino, um palmo mais baixo que o português, pernas e
braços secos, agilidade de maracajá: era a força nervosa; era o arrebatamento
que tudo desbarata no sobressalto do primeiro instante. Um, sólido e resistente;
o outro, ligeiro e destemido, mas ambos corajosos.
— Senta! Senta!
— Nada de rolo!
— Segue a dança, gritaram em volta.
Piedade erguera-se para arredar o seu homem dali.
O cavouqueiro afastou-a com um empurrão, sem tirar a vista de cima do
mulato.
— Deixa-me ver o que quer de mim este cabra!... rosnou ele.
— Dar-te um banho de fumaça, galego ordinário! respondeu Firmo, frente a
frente; agora avançando e recuando, sempre com um dos pés no ar, e
bamboleando todo o corpo e meneando os braços, como preparado para
agarrá-lo.
Jerônimo, esbravecido pelo insulto, cresceu para o adversário com um soco
armado; o cabra, porém, deixou-se cair de costas, rapidamente, firmando-se nas
mãos o corpo suspenso, a perna direita levantada; e o soco passou por cima,
varando o espaço, enquanto o português apanhava no ventre um pontapé
inesperado.
— Canalha! berrou possesso; e ia precipitar-se em cheio sobre o mulato,
quando uma cabeçada o atirou no chão.
— Levanta-se, que não dou em defuntos! exclamou o Firmo, de pé,
repetindo a sua dança de todo o corpo.
O outro erguera-se logo e, mal se tinha equilibrado, já uma rasteira o
tombava para a direita, enquanto da esquerda ele recebia uma tapona na orelha.
Furioso, desferiu novo soco, mas o capoeira deu para trás um salto de gato e o
português sentiu um pontapé nos queixos.
Espirrou-lhe sangue da boca e das ventas. Então fez-se um clamor medonho.
As mulheres quiseram meter-se de permeio, porém o cabra as emborcava com
rasteiras rápidas, cujo movimento de pernas apenas se percebia. Um horrível
sarilho se formava. João Romão fechou às pressas as portas da venda e trancou o
portão da estalagem, correndo depois para o lugar da briga. O Bruno, os
mascates, os trabalhadores da pedreira, e todos os outros que tentaram segurar o
mulato, tinham rolado em torno dele, formando-se uma roda limpa, no meio da
qual o terrível capoeira, fora de si, doido, reinava, saltando a um tempo para
todos os lados, sem consentir que ninguém se aproximasse. O terror arrancava
gritos agudos. Estavam já todos assustados, menos a Rita que, a certa distancia,
via, de braços cruzados, aqueles dois homens a se baterem por causa dela; um
ligeiro sorriso encrespava-lhe os lábios. A lua escondera-se: mudara o tempo; o
céu, de limpo que estava, fizera-se cor de lousa; sentia-se um vento úmido de
chuva. Piedade berrava reclamando polícia; tinha levado um troca-queixos do
marido, porque insistia em tirá-lo da luta. As janelas do Miranda acumulavam-se
de gente. Ouviam-se apitos, soprados com desespero.
Nisto, ecoou na estalagem um bramido de fera enraivecida: Firmo acabava
de receber, sem esperar, uma formidável cacetada na cabeça. É que Jerônimo
havia corrido à casa e armara-se com o seu varapau minhoto. E então o mulato,
com o rosto banhado de sangue, refilando as presas e espumando de cólera,
erguera o braço direito, onde se viu cintilar a lamina de uma navalha.
Fez-se uma debandada em volta dos dois adversários, estrepitosa, cheia de
pavor. Mulheres e homens atropelavam-se, caindo uns por cima dos outros.
Albino perdera os sentidos; Piedade clamava, estarrecida e em soluços, que lhe
iam matar o homem; a das Dores soltava censuras e maldições contra aquela
estupidez de se destriparem por causa de entrepernas de mulher; a Machona,
armada com um ferro de engomar, jurava abrir as fuças a quem lhe desse um
segundo coice como acabava ela de receber um nas ancas; Augusta enfiara pela
porta do fundo da estalagem, para atravessar o capinzal e ir à rua ver se
descobria o marido, que talvez estivesse de serviço no quarteirão. Por esse lado
acudiam curiosos e o pátio enchia-se de gente de fora. Dona Isabel e Pombinha,
de volta da casa de Léonie, tiveram dificuldade em chegar ao número 15, onde,
mal entraram, fecharam-se por dentro, praguejando a velha contra a desordem e
lamentando-se da sorte que as lançou naquele inferno. Entanto, no meio de uma
nova roda, encintada pelo povo, o português e o brasileiro batiam-se.
Agora a luta era regular: havia igualdade de partidos, porque o cavouqueiro
jogava o pau admiravelmente; jogava-o tão bem quanto o outro jogava a sua
capoeiragem. Embalde Firmo tentava alcançá-lo; Jerônimo, sopesando ao meio
a grossa vara na mão direita, girava-a com tal perícia e ligeireza em torno do
corpo, que parecia embastilhado por uma teia impenetrável e sibilante. Não se
lhe via a arma; só se ouvia um zunido do ar simultaneamente cortado em todas
as direções.
E, ao mesmo tempo que se defendia, atacava. O brasileiro tinha já recebido
pauladas na testa, no pescoço, nos ombros, nos braços, no peito, nos rins e nas
pernas. O sangue inundava-o inteiro; ele rugia e arfava, iroso e cansado,
investindo ora com os pés, ora com a cabeça, e livrando-se daqui, livrando-se
dali, aos pulos e às cambalhotas.
A vitória pendia para o lado do português. Os espectadores aclamavam-no
já com entusiasmo; mas, de súbito, o capoeira mergulhou, num relance, até as
canelas do adversário e surgiu-lhe rente dos pés, grupado nele, rasgando-lhe o
ventre com uma navalhada.
Jerônimo soltou um mugido e caiu de borco, segurando os intestinos.
— Matou! Matou! Matou! exclamaram todos com assombro.
Os apitos esfuziaram mais assanhados.
Firmo varou pelos fundos do cortiço e desapareceu no capinzal.
— Pega! Pega!
— Ai, o meu rico homem! ululou Piedade, atirando-se de joelhos sobre o
corpo ensangüentado do marido. Rita viera também de carreira lançar-se ao chão
junto dele, para lhe afagar as barbas e os cabelos.
— É preciso o doutor! suplicou aquela, olhando para os lados à procura de
uma alma caridosa que lhe valesse.
Mas nisto um estardalhaço de formidáveis pranchadas estrugiu no portão da
estalagem. O portão abalou com estrondo e gemeu.
— Abre! Abre! reclamavam de fora.
João Romão atravessou o pátio, como um general em perigo, gritando a
todos:
— Não entra a polícia! Não deixa entrar! Agüenta! Agüenta!
— Não entra! Não entra! repercutiu a multidão em coro.
E todo o cortiço ferveu que nem uma panela ao fogo.
— Agüenta! Agüenta!
Jerônimo foi carregado para o quarto, a gemer, nos braços da mulher e da
mulata.
— Agüenta! Agüenta!
De cada casulo espipavam homens armados de pau, achas de lenha, varais
de ferro. Um empenho coletivo os agitava agora, a todos, numa solidariedade
briosa, como se ficassem desonrados para sempre se a polícia entrasse ali pela
primeira vez. Enquanto se tratava de uma simples luta entre dois rivais, estava
direito! “Jogassem lá as cristas, que o mais homem ficaria com a mulher!” mas
agora tratava-se de defender a estalagem, a comuna, onde cada um tinha a zelar
por alguém ou alguma coisa querida.
— Não entra! Não entra!
E berros atroadores respondiam às pranchadas, que lá fora se repetiam
ferozes.
A polícia era o grande terror daquela gente, porque, sempre que penetrava
em qualquer estalagem, havia grande estropício; à capa de evitar e punir o jogo e
a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam o que lá estava,
punham tudo em polvorosa. Era uma questão de ódio velho.
E, enquanto os homens guardavam a entrada do capinzal e sustentavam de
costas o portão da frente, as mulheres, em desordem, rolavam as tinas,
arrancavam jiraus, arrastavam carroças, restos de colchões e sacos de cal,
formando às pressas uma barricada.
As pranchadas multiplicavam-se. O portão rangia, estalava, começava a
abrir-se; ia ceder. Mas a barricada estava feita e todos entrincheirados atrás dela.
Os que entravam de fora por curiosidade não puderam sair e viam-se metidos no
surumbamba. As cercas das hortas voaram A Machona terrível fungara as saias
e empunhava na mão o seu ferro de engomar. A das Dores, que ninguém dava
nada por ela, era uma das mais duras e que parecia mais empenhada na defesa.
Afinal o portão lascou; um grande rombo abriu-se logo; caíram tábuas; e os
quatro primeiros urbanos que se precipitaram dentro foram recebidos a pedradas
e garrafas vazias. Seguiram-se outros. Havia uns vinte. Um saco de cal,
despejado sobre eles, desnorteou-os.
Principiou então o salseiro grosso. Os sabres não podiam alcançar ninguém
por entre a trincheira; ao passo que os projetis, arremessados lá de dentro,
desbaratavam o inimigo. Já o sargento tinha a cabeça partida e duas praças
abandonavam o campo, à falta de ar.
Era impossível invadir aquele baluarte com tão poucos elementos, mas a
polícia teimava, não mais por obrigação que por necessidade pessoal de
desforço. Semelhante resistência os humilhava. Se tivessem espingardas fariam
fogo. O único deles que conseguiu trepar à barricada rolou de lá abaixo sob uma
carga de pau que teve de ser carregado para a rua pelos companheiros. O Bruno,
todo sujo de sangue, estava agora armado de um refle e o Porfiro, mestre na
capoeiragem, tinha na cabeça uma barretina de urbano.
— Fora os morcegos!
— Fora! Fora!
E, a cada exclamação, tome pedra! tome lenha! tome cal! tome fundo de
garrafa!
Os apitos estridulavam mais e mais fortes.
Nessa ocasião, porém, Nenen gritou, correndo na direção da barricada.
— Acudam aqui! Acudam aqui! Há fogo no número 12. Está saindo
fumaça!
— Fogo!
A esse grito um pânico geral apoderou-se dos moradores do cortiço. Um
incêndio lamberia aquelas cem casinhas enquanto o diabo esfrega um olho!
Fez-se logo medonha confusão. Cada qual pensou em salvar o que era seu.
E os policiais, aproveitando o terror dos adversários, avançaram com ímpeto,
levando na frente o que encontravam e penetrando enfim no infernal reduto, a
dar espadeiradas para a direita e para a esquerda, como quem destroça uma
boiada. A multidão atropelava-se, desembestando num alarido. Uns fugiam à
prisão; outros cuidavam em defender a casa. Mas as praças, loucas de cólera,
metiam dentro as portas e iam invadindo e quebrando tudo, sequiosas de
vingança.
Nisto, roncou no espaço a trovoada. O vento do norte zuniu mais estridente e um
grande pé-d’água desabou cerrado.
XI
A Bruxa, por influência sugestiva da loucura de Marciana, piorou do juízo e
tentou incendiar o cortiço.
Enquanto os companheiros o defendiam a unhas e dentes, ela, com todo o
disfarce, carregava palha e sarrafos para o número 12 e preparava uma fogueira.
Felizmente acudiram a tempo; mas as conseqüências foram do mesmo modo
desastrosas, porque muitas outras casinhas, escapando como aquela ao fogo, não
escaparam à devastação da polícia. Algumas ficaram completamente assoladas.
E a coisa seria ainda mais feia, se não viera o providencial aguaceiro apagar
também o outro incêndio ainda pior, que, de parte a parte, lavrava nos ânimos. A
polícia retirou-se sem levar nenhum preso. “A ir um iriam todos à estação! Deus
te livre! Demais, para quê? o que ela queria fazer, fez! Estava satisfeita!”
Apesar do empenho do João Romão, ninguém conseguiu descobrir o autor
da sinistra tentativa, e só muito tarde cada qual cuidou de pregar olho, depois de
reacomodar, entre plangentes lamentações, o que se salvou do destroço. O
tempo levantou de novo à meia-noite. Ao romper da aurora já muita gente estava
de pé e o vendeiro passava uma revista minuciosa no pátio, avaliando e
carpindo, inconsolável e furioso, o seu prejuízo. De vez em quando soltava uma
praga. Além do que escangalharam os urbanos dentro das casas, havia muita tina
partida, muito jirau quebrado, lampiões em fanicos, hortas e cercas arrasadas; o
portão da frente e a tabuleta foram reduzidos a lenha. João Romão meditava,
para cobrir o dano, carregar um imposto sobre os moradores da estalagem,
aumentando-lhes o aluguel dos cômodos e o preço dos gêneros. Viu-se numa
dobadoura durante o dia inteiro; desde pela manhã dera logo as providências
para que tudo voltasse aos seus eixos o mais depressa possível: mandou buscar
novas tinas; fabricar novos jiraus e consertar os quebrados; pôs gente a remendar
o portão e a tabuleta. Ao meio-dia teve de comparecer à presença do
subdelegado na secretaria da polícia. Foi mesmo em mangas de camisa e sem
meias; muitos do cortiço o acompanharam, quer por espírito de camaradagem,
quer por simples curiosidade.
Uma verdadeira patuscada esse passeio à cidade! Parecia uma romaria;
algumas mulheres levaram os seus pequenitos ao colo; um magote de italianos ia
à frente, macarroneando, a fumar cachimbo; alguns cantavam. Ninguém tomou
bonde; e por toda a viagem discutiram e altercaram em grande troça,
comentando com gargalhadas e chalaças gordas o que iam encontrando, a
chamar a atenção das ruas por onde desfilava a ruidosa farândola.
A sala da polícia encheu-se.
O interrogatório, exclusivamente dirigido a João Romão, era respondido por
todos a um só tempo, a despeito dos protestos e das ameaças da autoridade, que
se viu tonta. Nenhum deles nada esclarecia e todos se queixavam da polícia,
exagerando as perdas recebidas na véspera.
A respeito de como se travara o conflito e quem o provocara, o taverneiro
declarou que nada podia saber ao certo, porque na ocasião se achava ausente da
estalagem. De que tinha certeza era de que as praças lhe invadiram a
propriedade e puseram em cacos tudo o que encontraram, como se aquilo lá
fosse roupa de francês!
— Bem feito! bradou o subdelegado. Não resistissem!
Um coro de respostas assanhadas levantou-se para justificar a resistência.
“Ah! Estavam mais que fartos de ver o que pintavam os morcegos, quando lhes
não saia alguém pela frente! Esbodegavam até à última, só pelo gostinho de
fazer mal! Pois então uma criatura, porque estava a divertir-se um bocado com
os amigos, havia de ser aperreada que nem boi ladrão?... Tinha lá jeito? Os rolos
era sempre a polícia quem os levantava com as suas fúrias! Não se metesse ela
na vida de quem vivia sossegado no seu canto, e não seria tanto barulho!...”
Como de costume, o espírito de coletividade, que unia aquela gente em circulo
de ferro, impediu que transpirasse o menor vislumbre de denúncia. O
subdelegado, depois de dirigir-se inutilmente a um por um, despachou o bando,
que fez logo a sua retirada, no meio de uma alacridade mais quente ainda que a
da ida.
Lá no cortiço, de portas adentro, podiam esfaquear-se à vontade, que
nenhum deles, e muito menos a vitima, seria capaz de apontar o criminoso; tanto
que o médico, que, logo depois da invasão da polícia, desceu da casa do
Miranda à estalagem, para socorrer Jerônimo, não conseguiu arrancar deste o
menor esclarecimento sobre o motivo da navalhada. “Não fora nada!... Não fora
de propósito!... Estavam a brincar e sucedera aquilo!... Ninguém tivera a menor
intenção de fazer-lhe mossa!...”
Rita mostrou-se de uma incansável solicitude para com o ferido. Foi ela
quem correu a buscar os remédios, quem serviu de ajudante ao medico e quem
serviu de enfermeira ao doente. Muitos lá iam, demorando-se um instante, para
dar fé; ela, porém, desde que Jerônimo se achou operado, não lhe abandonou a
cabeceira; ao passo que Piedade, aflita e atarantada, não fazia senão chorar e
arreliar-se.
A mulata, essa não chorava; mas a sua fisionomia tinha uma profunda
expressão de mágoa enternecida. Agora toda ela se sentia apegar-se àquele
homem bom e forte; àquele gigante inofensivo, àquele Hércules tranqüilo que
mataria o Firmo com uma punhada, mas que, na sua boa-fé, se deixara navalhar
pelo facínora. “E tudo por causa dela! só por ela!” Seu coração de mulher
rendia-se cativo a semelhante dedicação ensangüentada e dolorosa. E ele, o
mísero, interrompia as contrações do rosto para sorrir defronte dos olhos
enamorados da baiana, feliz naquela desgraça que lhe permitia gozar dos seus
carinhos. E tomava-lhe as mãos, e cingia-lhe a cintura, resignado e comovido,
sem uma palavra, sem um gesto, mas a dizer bem claro, na sua dor silenciosa e
quieta de animal ferido, que a amava muito, que a amava loucamente.
Rita afagava-o, já sem a menor sombra de escrúpulo, tratando-o por tu,
ameigando-lhe os cabelos sujos de sangue com a polpa macia da sua mão
feminil. E ali mesmo em presença da mulher, dele, só faltava beijá-lo com a
boca, que com os olhos o devorava de beijos ardentes e sequiosos.
Depois da meia-noite dada, ela e Piedade ficaram sozinhas velando o
enfermo. Deliberou-se que este iria pela manhã para a Ordem de Santo Antônio,
de que era irmão. E, com efeito, no dia imediato, enquanto o vendeiro e seu
bando andavam lá às voltas com a polícia, e o resto do cortiço formigava,
tagarelando em volta do conserto das tinas e jiraus, Jerônimo, ao lado da mulher
e da Rita, seguia dentro de um carro para o hospital.
As duas só voltaram de lá à noite, caindo de fadiga. De resto, toda a
estalagem estava igualmente prostrada e morrendo pela cama, se bem que nesse
dia as lavadeiras em geral gazeassem o trabalho; as que tinham roupa com mais
pressa foram lavar fora ou arrastaram bacias de banho para debaixo das bicas, à
falta de melhor vasilha para o serviço. Discutiu-se a campanha da véspera sem
variar o assunto. Aqui era um que lembrava as suas proezas com os urbanos,
descrevendo entusiasmado os pormenores da luta; ali, outro repetia, cheio de
empáfia, os desaforos que dissera depois nas bochechas da autoridade; mais
adiante trocavam-se queixas e recriminações; cada qual, mulheres e homens,
sofrera o seu prejuízo. ou a sua arranhadura, e mostravam entre si, numa febre
de indignação, os objetos partidos ou a parte do corpo escoriada.
Mas às nove da noite já não havia viva alma no pátio da estalagem. A venda
fechou-se um pouco mais cedo que de costume. Bertoleza atirou-se ao colchão,
estrompada; João Romão recolheu-se junto dela, porem não conseguiu dormir;
sentia calafrios e pontadas na cabeça. Chamou pela amiga, a gemer, e pediu-lhe
que lhe desse alguma coisa para suar. Supunha estar com febre.
A crioula só descansou quando, muitas horas adiante, depois de mudar-lhe a
roupa, o viu pegar no sono; e daí a pouco, às quatro da madrugada, erguia-se ela,
com estalos de juntas, a bocejar, fungando no seu estremunhamento pesadão, e
pigarreando forte. Acordou o caixeiro para ir ao mercado; gargarejou um pouco
d’água à torneira da cozinha e foi fazer fogo para o café dos trabalhadores,
riscando fósforos e acendendo cavacos num fogareiro, donde começaram a
borbotar grossos novelos de fumo espesso.
Lá fora clareava já, e a vida renascia no cortiço. A luta de todos os dias
continuava, como se não houvera interrupção. Principiava o burburinho. Aquela
noite bem dormida punha-os a todos de bom humor.
Pombinha, entretanto, nessa manhã acordara abatida e nervosa, sem animo
de sair dos lençóis. Pediu café à mãe, bebeu, e tornou a abraçar-se nos
travesseiros, escondendo o rosto.
— Não te sentes melhor hoje, minha filha?... perguntou-lhe Dona Isabel,
apalpando-lhe a testa. Febre não tens.
— Ainda sinto o corpo mole... mas não é nada... isto passa!...
— Foi de tanto gelo, que tomaste em casa de madama!... Não te dizia?...
Agora, o melhor é dar-te um escalda-pés!...
— Não, não, por amor de Deus! Daqui a pouco estou em pé!
Às oito horas, com efeito, levantava-se e fazia, indolentemente, o alinho da
cabeça, defronte do seu modesto lavatório de ferro. Dir-se-ia sem forças para a
menor coisa; toda ela transpirava uma contemplativa melancolia de
convalescente; havia uma doce expressão dolorosa na limpidez cristalina de seus
olhos de moça enferma; um pobre sorriso pálido a entreabrir-lhe as pétalas da
boca, sem lhe alegrar os lábios, que pareciam ressequidos à mingua de beijos de
amor; assim delicada planta murcha, languesce e morre, se carinhosa borboleta
não vai sacudir sobre ela as asas prenhes de fecundo e dourado pólen.
O passeio à casa de Léonie fizera-lhe muito mal. Trouxe de lá impressões de
íntimos vexames, que nunca mais se apagariam por toda a sua vida.
A cocote recebeu-a de braços abertos, radiante com apanhá-la junto de si,
naqueles divãs fofos e traidores, entre todo aquele luxo extravagante e
requintado próprio para os vícios grandes. Ordenou à criada que não deixasse
entrar ninguém, ninguém, nem mesmo o Bebê, e assentou-se ao lado da menina,
bem juntinho uma da outra, tomando-lhe as mãos, fazendo-lhe uma infinidade
de perguntas, e pedindo-lhe beijos, que saboreava gemendo, de olhos fechados.
Dona Isabel suspirava também, mas de outro modo; na sua parva
compreensão do conforto, aqueles impertinentes espelhos, aqueles móveis
casquilhos e aquelas cortinas escandalosas arrancavam-lhe saudosas recordações
do bom tempo e avivavam a sua impaciência por melhor futuro.
Ai! assim Deus quisesse ajudá-la!...
Às duas da tarde, Léonie, por sua própria mão serviu às visitas um pequeno
lanche de foie-gras, presunto e queijo, acompanhado de champanha, gelo e água
de Seltz, e, sem se descuidar um instante da rapariga, tinha para ela extremas
solicitudes de namorado; levava-lhe a comida à boca, bebia do seu copo,
apertava-lhe os dedos por debaixo da mesa.
Depois da refeição, Dona Isabel, que não estava habituada a tomar vinho,
sentiu vontade de descansar o corpo; Léonie franqueou-lhe um bom quarto, com
boa cama, e, mal percebeu que a velha dormia, fechou a porta pelo lado de fora,
para melhor ficar em liberdade com a pequena.
Bem! Agora estavam perfeitamente a sós!
— Vem cá, minha flor!... disse-lhe, puxando-a contra si e deixando-se cair
sobre um divã. Sabes? Eu te quero cada vez mais!... Estou louca por ti!
E devorava-a de beijos violentos, repetidos, quentes, que sufocavam a
menina, enchendo-a de espanto e de um instintivo temor, cuja origem a
pobrezinha, na sua simplicidade, não podia saber qual era.
A cocote percebeu o seu enleio e ergueu-se, sem largar-lhe a mão.
— Descansemos nós também um pouco... propôs, arrastando-a para a
alcova.
Pombinha assentou-se, constrangida, no rebordo da cama e, toda perplexa,
com vontade de afastar-se, mas sem animo de protestar, por acanhamento,
tentou reatar o fio da conversa, que elas sustentavam um pouco antes, à mesa,
em presença de Dona Isabel. Léonie fingia prestar-lhe atenção e nada mais fazia
do que afagar-lhe a cintura, as coxas e o colo. Depois, como que distraidamente,
começou a desabotoar-lhe o corpinho do vestido.
— Não! Para quê!... Não quero despir-me...
— Mas faz tanto calor... Põe-te a gosto...
— Estou bem assim. Não quero!
— Que tolice a tua...! Não vês que sou mulher, tolinha?... De que tens
medo?... Olha! Vou dar exemplo!
E, num relance, desfez-se da roupa, e prosseguiu na campanha.
A menina, vendo-se descomposta, cruzou os braços sobre o seio, vermelha
de pudor.
— Deixa! segredou-lhe a outra, com os olhos envesgados, a pupila trêmula.
E, apesar dos protestos, das súplicas e até das lágrimas da infeliz,
arrancou-lhe a última vestimenta, e precipitou-se contra ela, a beijar-lhe todo o
corpo, a empolgar-lhe com os lábios o róseo bico do peito.
— Oh! Oh! Deixa disso! Deixa disso! reclamava Pombinha estorcendo-se
em cócegas, e deixando ver preciosidades de nudez fresca e virginal, que
enlouqueciam a prostituta.
— Que mal faz?... Estamos brincando...
— Não! Não! balbuciou a vitima, repelindo-a.
— Sim! Sim! insistiu Léonie, fechando-a entre os braços, como entre duas
colunas; e pondo em contacto com o dela todo o seu corpo nu.
Pombinha arfava, relutando; mas o atrito daquelas duas grossas pomas
irrequietas sobre seu mesquinho peito de donzela impúbere e o rogar vertiginoso
daqueles cabelos ásperos e crespos nas estações mais sensitivas da sua
feminilidade, acabaram por foguear-lhe a pólvora do sangue, desertando-lhe a
razão ao rebate dos sentidos.
Agora, espolinhava-se toda, cerrando os dentes, fremindo-lhe a carne em
crispações de espasmo; ao passo que a outra, por cima, doida de luxúria,
irracional, feroz, revoluteava, em corcovos de égua, bufando e relinchando.
E metia-lhe a língua tesa pela boca e pelas orelhas, e esmagava-lhe os olhos
debaixo dos seus beijos lubrificados de espuma, e mordia-lhe o lóbulo dos
ombros, e agarrava-lhe convulsivamente o cabelo, como se quisesse arrancá-lo
aos punhados. Até que, com um assomo mais forte, devorou-a num abraço de
todo o corpo, ganindo ligeiros gritos, secos, curtos, muito agudos, e afinal
desabou para o lado, exânime, inerte, os membros atirados num abandono de
bêbedo, soltando de instante a instante um soluço estrangulado.
A menina voltara a si e torcera-se logo em sentido contrário à adversária,
cingindo-se rente aos travesseiros e abafando o seu pranto, envergonhada e
corrida.
A impudica, mal orientada ainda e sem conseguir abrir os olhos, procurou
animá-la, ameigando-lhe a nuca e as espáduas. Mas Pombinha parecia
inconsolável, e a outra teve de erguer-se a meio e puxá-la como uma criança
para o seu colo, onde ela foi ocultando o rosto, a soluçar baixinho.
— Não chores assim, meu amor!...
Pombinha continuou a soluçar.
— Vamos! Não quero ver-te deste modo!... Estás zangada comigo?...
— Não volto mais aqui! nunca mais! exclamou por fim a donzela,
desgalgando o leito para vestir-se.
— Vem cá! Não sejas ruim! Ficarei muito triste se estiveres mal com a tua
negrinha!... Anda! Não me feches a cara!...
— Deixe-me!
— Vem cá, Pombinha!
— Não vou! Já disse!
E vestia-se com movimentos de raiva. Léonie saltara para junto dela e
pôs-se a beijar-lhe, à força. os ouvidos e o pescoço, fazendo se muito humilde,
adulando-a, comprometendo-se a ser sua escrava, e obedecer-lhe como um
cachorrinho, contanto que aquela tirana não se fosse assim zangada.
— Faço tudo! tudo! mas não fiques mel comigo! Ah! se soubesse como eu
te adoro!...
— Não sei! Largue-me!...
— Espera!
— Que amolação! Oh!
— Deixa de tolice!... Escuta, por amor de Deus!
Pombinha acabava de encasar o último botão do corpinho, e repuxava o
pescoço e sacudia os braços, ajustando bem a sua roupa ao corpo. Mas Léonie
caíra-lhe aos pés, enleando-a pelas pernas e beijando-lhe as saias.
— Olha!... Ouve!... — Deixa-me sair!
— Não! não hás de ir zangada, ou faço aqui um escândalo dos diabos! — E
que mamãe já acordou com certeza!...
— Que acordasse!
Agora a meretriz defendia a porta da alcova.
— Oh! meu Deus! Deixe-me sair!
— Não deixo, sem fazermos as pazes...
— Que aborrecimento!
— Dá-me um beijo!
— Não dou!
— Pois então não sais!
— Eu grito!
— Pois grita! Que me importa!
— Arrede-se daí, por favor!...
— Faz as pazes...
— Não estou zangada, creia! Estou é indisposta... Não me sinto boa!
— Mas eu faço questão do beijo!
— Pois bem! Está ai!
E beijou-a.
— Não quero assim! Foi dado de má vontade!...
Pombinha deu-lhe outro.
— Ah! Agora bem! Espera um nada! Deixa arranjar-me! É um instante!
Em três tempos, lavou-se ligeiramente no bidê, endireitou o penteado
defronte do espelho, num movimento rápido de dedos, e empoou-se,
perfumou-se, e enfiou camisa, anágua e penteador, tudo com uma expedição de
quem está habituada a vestir-se muitas vezes por dia. E, pronta, correu uma vista
de olhos pela menina, desenrugou-lhe a saia, consertou-lhe melhor os cabelos e,
readquirindo o seu ar tranqüilo de mulher ajuizada, tomou-a pela cintura e
levou-a vagarosamente até à sala de jantar, para tomarem vermute com gasosa.
O jantar foi às seis e meia. Correu frio, não tanto por parte de Pombinha,
que aliás se mostrava bem incomodada, como porque Dona Isabel, dormindo até
o momento de a chamarem para mesa, sentia-se aziada com o foie-gras. A dona
da casa, todavia, não se forrou a desvelos e fez por alegrá-las rindo e contando
anedotas burlescas. Ao café apareceu Juju, que a criada levara a passear desde
logo depois do almoço, e uma afetação de agrados levantou-se em torno da
pequerrucha. Léonie pôs-se a conversar com ela, falando como criança,
dizendo-lhe que mostrasse a Dona Isabel “o seu papatinho novo!”
Mais tarde, no terraço, enquanto fumava um cigarro, tomou a mão de
Pombinha e meteu-lhe no dedo um anel com um diamante cercado de pérolas. A
menina recusou o mimo, formalmente. Foi preciso a intervenção da velha para
que ela consentisse em aceitá-lo.
Às oito horas retiraram-se as visitas, seguindo direitinho para a estalagem.
Durante toda a viagem Pombinha parecia preocupada e triste.
— Que tens tu?... perguntou-lhe a mãe duas vezes.
E de ambas a filha respondeu:
— Nada! Aborrecimento...
No pouco que dormiu essa noite, que foi a do baralho com a polícia, teve
sonhos agitados e passou mal todo o dia seguinte, com molezas de febre e dores
no útero. Não arredou pé de casa, nem para ver os destroços do conflito. A
noticia do defloramento e da fuga de Florinda, como a da loucura da
Marciana, produziu-lhe grande abalo nos nervos.
Na manhã imediata, a despeito de fazer-se forte, torceu o nariz ao
almoço que Dona Isabel lhe apresentou carinhosa. Persistiam-lhe as
uterinas, não vivas, mas constantes. Não teve animo de pegar na costura,
livro que ela tentou ler, foi por várias vezes repelido.
velha
pobre
dores
e um
As onze para o meio-dia era tal o seu constrangimento e era tal o seu
desassossego entre as apertadas paredes do número 15, que, malgrado os
protestos da velha, saiu a dar uma volta por detrás do cortiço, à sombra dos
bambus e das mangueiras.
Uma irresistível necessidade de estar só, completamente só, uma aflição de
conversar consigo mesma, a apartava no seu estreito quarto sufocante, tão
tristonho e tão pouco amigo. Pungia-lhe na brancura da alma virgem um
arrependimento incisivo e negro das torpezas da antevéspera; mas, lubrificada
por essa recordação, toda a sua carne ria e rejubilava-se, pressentindo delicias
que lhe pareciam reservadas para mais tarde, junto de um homem amado, dentro
dela balbuciavam desejos, até ai mudos e adormecidos; e mistérios
desvendavam-se no segredo do seu corpo, enchendo-a de surpresa e
mergulhando-a em fundas concentrações de êxtase. Um inefável quebranto
afrouxava-lhe a energia e distendia-lhe os músculos com uma embriaguez de
flores traiçoeiras.
Não pôde resistir: assentou-se debaixo das árvores, um cotovelo em terra, a
cabeça reclinada contra a palma da mão.
Na doce tranqüilidade daquela sombra morna, ouvia-se retinir distante a
picareta dos homens da pedreira e o martelo dos ferreiros na forja. E o canto dos
trabalhadores ora mais claro, ora mais duvidoso, acompanhando o marulhar dos
ventos, ondeava no espaço, melancólico e sentido, como um coro religioso de
penitentes.
O calor tirava do capim um cheiro sensual.
A moça fechou as pálpebras, vencida pelo seu delicioso entorpecimento, e
estendeu-se de todo no chão, de barriga para o ar, braços e pernas abertas.
Adormeceu.
Começou logo a sonhar que em redor ia tudo se fazendo de um cor-de-rosa,
a princípio muito leve e transparente, depois mais carregado, e mais, e mais, até
formar-se em torno dela uma floresta vermelha, cor de sangue, onde largos
tinhorões rubros se agitavam lentamente.
E viu-se nua, toda nua, exposta ao céu, sob a tépida luz de um sol
embriagador, que lhe batia de chapa sobre os seios.
Mas, pouco a pouco, seus olhos, posto que bem abertos, nada mais
enxergavam do que uma grande claridade palpitante, onde o sol, feito de uma só
mancha reluzente, oscilava como um pêndulo fantástico.
Entretanto, notava que, em volta da sua nudez alourada pela luz, iam-se
formando ondulantes camadas sangüíneas, que se agitavam, desprendendo
aromas de flor. E, rodando o olhar, percebeu, cheia de encantos, que se achava
deitada entre pétalas gigantescas, no regaço de uma rosa interminável, em que
seu corpo se atufava como em ninho de veludo carmesim, bordado de ouro, fofo,
macio, trescalante e morno.
E suspirando, espreguiçou-se toda num enleio de volúpia ascética.
Lá do alto o sol a fitava obstinadamente, enamorado das suas mimosas
formas de menina.
Ela sorriu para ele, requebrando os olhos, e então o fogoso astro tremeu e
agitou-se, e, desdobrando-se, abriu-se de par em par em duas asas e principiou a
fremir, atraído e perplexo. Mas de repente, nem que se de improviso lhe
inflamassem os desejos, precipitou-se lá de cima agitando as asas, e veio,
enorme borboleta de fogo, adejar luxuriosamente em torno da imensa rosa, em
cujo regaço a virgem permanecia com os peitos franqueados.
E a donzela, sempre que a borboleta se aproximava da rosa, sentia-se
penetrar de um calor estranho, que lhe acendia, gota a gota, todo o seu sangue de
moça.
E a borboleta, sem parar nunca, doidejava em todas as direções ora fugindo
rápida, ora se chegando lentamente, medrosa de tocar com as suas antenas de
brasa a pele delicada e pura da menina.
Esta, delirante de desejos, ardia por ser alcançada e empinava o colo. Mas a
borboleta fugia.
Uma sofreguidão lúbrica, desensofrida, apoderou-se da moça; queria a todo
custo que a borboleta pousasse nela, ao menos um instante, um só instante, e a
fechasse num rápido abraço dentro das suas asas ardentes. Mas a borboleta,
sempre doida, não conseguia deter-se; mal se adiantava, fugia logo, irrequieta,
desvairada de volúpia.
— Vem! Vem! suplicava a donzela, apresentando o corpo. Pousa um
instante em mim! Queima-me a carne no calor das tuas asas!
E a rosa, que tinha ao colo, é que parecia falar e não ela. De cada vez que a
borboleta se avizinhava com as suas negaças, a flor arregaçava-se toda,
dilatando as pétalas, abrindo o seu pistilo vermelho e ávido daquele contato com
a luz.
— Não fujas! Não fujas! Pousa um instante!
A borboleta não pousou; mas, num delírio, convulsa de amor, sacudiu as
asas com mais ímpeto e uma nuvem de poeira dourada desprendeu-se sobre a
rosa, fazendo a donzela soltar gemidos e suspiros, tonta de gosto sob aquele
eflúvio luminoso e fecundante.
Nisto, Pombinha soltou um ai formidável e despertou sobressaltada, levando
logo ambas as mãos ao meio do corpo. E feliz, e cheia de susto ao mesmo
tempo, a rir e a chorar, sentiu o grito da puberdade sair-lhe afinal das entranhas,
em uma onda vermelha e quente.
A natureza sorriu-se comovida. Um sino, ao longe, batia alegre as doze
badaladas do meio-dia. O sol, vitorioso, estava a pino e, por entre a copagem
negra da mangueira, um dos seus raios descia em fio de ouro sobre o ventre da
rapariga, abençoando a nova mulher que se formava para o mundo.
XII
Pombinha ergueu-se de um pulo e abriu de carreira para casa.
No lugar em que estivera deitada o capim verde ficou matizado de pontos
vermelhos. A mãe lavava à tina, ela chamou-a com instância, enfiando cheia de
alvoroço pelo número 15. E ai, sem uma palavra, ergueu as saias do vestido e
expôs a Dona Isabel as suas fraldas ensangüentadas.
— Veio?! perguntou a velha com um grito arrancado do fundo d’alma.
A rapariga meneou a cabeça afirmativamente, sorrindo feliz e enrubescida.
As lágrimas saltaram dos olhos da lavadeira.
— Bendito e louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! exclamou ela, caindo
de joelhos defronte da menina e erguendo para Deus o rosto e as mãos trêmulas.
Depois abraçou-se às pernas da filha e, no arrebatamento de sua comoção,
beijou-lhe repetidas vezes a barriga e parecia querer beijar também aquele
sangue abençoado, que lhes abria os horizontes da vida, que lhes garantia o
futuro; aquele sangue bom, que descia do céu, como a chuva benfazeja sobre
uma pobre terra esterilizada pela seca.
Não se pôde conter: enquanto Pombinha mudava de roupa, saiu ela ao pátio,
apregoando aos quatro ventos a linda noticia. E, se não fora a formal oposição
da menina, teria passeado em triunfo a camisa ensangüentada, para que todos a
vissem bem e para que todos a adorassem, entre hinos de amor, que nem a uma
verônica sagrada de um Cristo.
— Minha filha é mulher! Minha filha é mulher!
O fato abalou o coração do cortiço, as duas receberam parabéns e
felicitações. Dona Isabel acendeu velas de cera à frente do seu oratório, e nesse
dia não pegou mais no trabalho, ficou estonteada, sem saber o que fazia, a entrar
e a sair de casa, radiante de ventura. De cada vez que passava junto da filha
dava-lhe um beijo na cabeça e em segredo recomendava-lhe todo o cuidado.
“Que não apanhasse umidade! que não bebesse coisas frias! que se agasalhasse o
melhor possível: e, no caso de sentir o corpo mole, que se metesse logo na
cama! Qualquer imprudência poderia ser fatal!...” O seu empenho era pôr o João
da Costa, no mesmo instante, ao corrente da grande novidade e pedir-lhe que
marcasse logo o dia do casamento; a menina entendia que não, que era feio, mas
a mãe arranjou um portador e mandou chamar o rapaz com urgência. Ele
apareceu à tarde. A velha convidara gente para jantar; matou duas galinhas,
comprou garrafas de vinho, e, à noite, serviu, às nove horas, um chá com
biscoitos. Nenen e a das Dores apresentaram-se em trajos de festa; fez-se muita
cerimônia; conversou-se em voz baixa, formando todos em volta de Pombinha
uma solicita cadeia de agrados, uma respeitosa preocupação de bons desejos, a
que ela respondia sorrindo comovida, como que exalando da frescura da sua
virgindade um vitorioso aroma de flor que desabrocha.
E a partir desse dia Dona Isabel mudou completamente. As suas rugas
alegraram-se; ouviam-na cantarolar pela manhã, enquanto varria a casa e
espanava os móveis.
Não obstante, depois do tremendo conflito que acabou em navalhada, uma
tristeza ia minando uma grande parte da estalagem. Já se não faziam as quentes
noitadas de violão e dança ao relento. A Rita andava aborrecida e concentrada,
desde que Jerônimo partiu para a Ordem; Firmo fora intimado pelo vendeiro a
que lhe não pusesse, nunca mais, os pés em casa, sob pena de ser entregue à
polícia; Piedade, que vivia a dar ais, carpindo a ausência do. marido, ainda ficou
mais consumida com a primeira visita que lhe fez ao hospital; encontrou-o frio e
sem uma palavra de ternura para ela, deixando até perceber a sua impaciência
para ouvir falar da outra, daquela maldita mulata dos diabos, que, no fim de
contas, era a única culpada de tudo aquilo e havia de ser a sua perdição e mais
do seu homem! Quando voltou de lá atirou-se à cama, a soluçar sem alívio, e
nessa noite não pôde pregar olho, senão já pela madrugada. Um negro desgosto
comia-a por dentro, como tubérculos de tísica, e tirava-lhe a vontade para tudo
que não fosse chorar.
Outro que também, coitado! arrastava a vida muito triste, era o Bruno. A
mulher, que a principio não lhe fizera grande falta, agora o torturava com a sua
distancia; um mês depois da separação, o desgraçado já não podia esconder o
seu sofrimento e ralava-se de saudades. A Bruxa, a pedido dele, tirou a sorte nas
cartas e disse-lhe misteriosamente que Leocádia ainda o amava.
Só Dona Isabel e a filha andavam deveras satisfeitas. Essas sim! nunca
tinham tido uma época tão boa e tão esperançosa. Pombinha abandonara o curso
de dança; o noivo ia agora visitá-la, invariavelmente, todas as noites; chegava
sempre às sete horas e demorava-se até às dez; davam-lhe café numa xícara
especial, de porcelana; às vezes jogavam a bisca, e ele mandava buscar, de sua
algibeira, uma garrafa de cerveja alemã, e ficavam a conversar os três, cada qual
defronte do seu copo, a respeito dos projetos de felicidade comum; outras vezes
o Costa, sempre muito respeitador, muito bom rapaz, acendia o seu charuto da
Bahia e deixava-se cair numa pasmaceira, a olhar para a moça, todo embebido
nela. Pombinha punha alegrias naqueles serões com as suas garrulices de pomba
que prepara o ninho. Depois do seu idílio com o sol fazia-se muito amiga da
existência, sorvendo a vida em haustos largos, como quem acaba de sair de uma
prisão e saboreia o ar livre. Volvia-se carnuda e cheia, sazonava que nem uma
fruta que nos provoca o apetite de morder. Dona Isabel, ao lado deles,
toscanejava do meio para o fim da visita, traçando cruzes na boca e afugentando
os bocejos com voluptuosas pitadas da sua insigne tabaqueira.
Fixado o dia do casamento, o assunto inalterável da conversa era o enxoval
da noiva e a casinha que o Costa preparava para a lua-de-mel. Iriam todos três
morar juntos; teriam cozinheiro e uma criada que lavasse e engomasse. O rapaz
trouxera peças de linho e de algodão, e ali, à luz amarela do velho candeeiro de
querosene, enquanto a mãe talhava camisas e lençóis, a filha cosia valentemente
numa máquina que lhe oferecera o noivo.
Uma vez, eram duas da tarde, ela pregava rendas numa fronha de almofada,
quando o Bruno, cheio de hesitações, a coçar os cabelos da nuca, pálido e mal
asseado, disse-lhe, encostando-se à ombreira da porta:
— Ora, Nhã Pombinha... tinha-lhe um servicinho a pedir... mas
vosmecezinha anda agora tão tomada com o seu enxoval e não há de querer
dar-se a maços...
— Que queres tu, Bruno?
— N’é nada, é que precisava que vosmecezinha me fizesse uma carta
p’raquele diabo... mas já se vê que não tem cabimento... Fica pr’ao depois!
— Uma carta para tua mulher, não é?
— Coitada! É mais doida do que ruim! Pois se a gente até dos brutos tem
pena!...
— Pois estás servido. Queres para já?
— Não vale estorvar! Continue seu servicinho! Eu volto pr’outra vez!...
— Não! anda cá, entra! O que se tem de fazer, faz-se logo!
— Deus lhe pague! Vosmecezinha é mesmo um anjo! Não sei a quem se
chegue a gente ao depois que já lhe não tivermos cá!...
E continuou a louvar a bondade da rapariga, enquanto esta, toda serviçal,
preparava numa mesinha redonda os seus apetrechos de escrita.
— Vamos lá, Bruno! que queres tu mandar dizer à Leocádia?
— Diga-lhe, antes de mais nada, que aquilo que quebrei dela, que dou
outro! Que ela fez mal em quebrar também o que era meu, mas que fecho os
olhos! Águas passadas não movem moinho! Que sei que ela agora está
desempregada e aos paus; que está a dever para mais de mês na estalagem; mas
que não precisa dar cabeçadas: que me mande cá o senhorio, que me entendo
com ele. Que acho bom que ela deixe a casa da crioula onde come, porque a
mulher já se queixou e já disse, a quem quis ouvir, que aquilo lá não era ponto
de vadios e mulheres de má vida! Que ela, se tivesse um pouco de tino, nem
precisava estar às migalhas dos outros, que eu na forja fazia para a trazer de
barriga cheia e mais aos filhos que Deus mandasse... — Principiava a tomar
calor. — Que a culpada de tudo isto é só ela e mais ninguém! tivesse um bocado
de juízo e não precisava envergonhar a cara por ai...
— Isso já está dito, Bruno!
— Pois arrame-lhe outra vez a ver se ela toma brio!
— E que mais?
— Que lhe não quero mal, nem lhe rogo pragas, mas que é bem feito que ela
amargue um pouco do pão do diabo, pra ficar sabendo que uma mulher direita
não deve olhar se não pra seu marido; e que, se ela não fosse tão maluca...
— Já aí vai você repetir inda uma vez a mesma cantiga!...
— Mas diga-lhe sempre, tenha paciência, Nhã Pombinha!... Que ainda
estaria aqui, comigo, como dantes, sem agüentar repelões de estranhos!...
— Adiante, Bruno!
— Diga-lhe...
E interrompeu-se.
Ora, que mais ele tinha a dizer?...
Coçou a cabeça.
— Veja, Bruno, você é quem sabe o que precisa escrever a sua mulher...
— Diga-lhe...
Não se animava.
— Que...
— Diga-lhe... Não! não lhe diga mais nada!...
— Posso então fechar a carta?...
— Está bom... resmungou o ferreiro, decidindo-se. Vá lá! Diga-lhe que...
— Que...
Houve um silêncio, no qual o desgraçado parecia arrancar de dentro uma
frase que, no entanto, era a única idéia que o levava a dirigir-se à mulher. Afinal,
depois de coçar mais vivamente a cabeça, gaguejou com a voz estrangulada de
soluços:
— Diga-lhe que... se ela quiser tornar pra minha companhia... que pode
vir... Eu esqueço tudo!
Pombinha, impressionada pela transformação da voz dele, levantou o rosto e
viu que as lágrimas lhe desfilavam duas a duas, três a três, pela cara, indo
afogar-se-lhe na moita cerdosa das barbas. E, coisa estranha, ela, que escrevera
tantas cartas naquelas mesmas condições; que tantas vezes presenciara o choro
rude de outros muitos trabalhadores do cortiço, sobressaltava-se agora com os
desalentados soluços do ferreiro.
Porque, só depois que o sol lhe abençoou o ventre; depois que nas suas
entranhas ela sentiu o primeiro grito de sangue de mulher, teve olhos para essas
violentas misérias dolorosas, a que os poetas davam o bonito nome de amor. A
sua intelectualidade, tal como seu corpo, desabrochara inesperadamente,
atingindo de súbito, em pleno desenvolvimento, uma lucidez que a deliciava e
surpreendia. Não a comovera tanto a revolução física Como que naquele instante
o mundo inteiro se despia à sua vista, de improviso esclarecida, patenteando-lhe
todos os segredos das suas paixões. Agora, encarando as ál grimas do Bruno, ela
compreendeu e avaliou a fraqueza dos homens, a fragilidade desses animais
fortes, de músculos valentes, de patas esmagadoras, mas que se deixavam
encabrestar e conduzir humildes pela soberana e delicada mão da fêmea.
Aquela pobre flor de cortiço, escapando à estupidez do meio em que
desabotoou, tinha de ser fatalmente vitima da própria inteligência. À mingua de
educação, seu espírito trabalhou à revelia, e atraiçoou-a, obrigando-a a tirar da
substância caprichosa da sua fantasia de moça ignorante e viva a explicação de
tudo que lhe não ensinaram a ver e sentir.
Bruno retirou-se com a carta. Pombinha pousou os cotovelos na mesa e
tulipou as mãos contra o rosto, a cismar nos homens.
Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal ponto,
que os infelizes, carregados de desonra e de ludibrio, ainda vinham covardes e
suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela lhes fizera?...
E surgiu-lhe então uma idéia bem clara da sua própria força e do seu próprio
valor.
Sorriu.
E no seu sorriso já havia garras.
Uma aluvião de cenas, que ela jamais tentara explicar e que até ai jaziam
esquecidas nos meandros do seu passado, apresentavam-se agora nítidas e
transparentes. Compreendeu como era que certos velhos respeitáveis, cujas
fotografias Léonie lhe mostrara no dia que passaram juntas, deixavam-se
vilmente cavalgar pela loureira, cativos e submissos, pagando a escravidão com
a honra, os bens, e até com a própria vida, se a prostituta, depois de os ter
esgotado, fechava-lhes o corpo. E continuou a sorrir, desvanecida na sua
superioridade sobre esse outro sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e
que no entanto fora posto no mundo simplesmente para servir ao feminino;
escravo ridículo que, para gozar um pouco, precisava tirar da sua mesma ilusão
a substância do seu gozo; ao passo que a mulher, a senhora, a dona dele, ia
tranqüilamente desfrutando o seu império, endeusada e querida, prodigalizando
martírios que os miseráveis aceitavam contritos, a beijar os pés que os
deprimiam e as implacáveis mãos que os estrangulavam.
— Ah! homens! homens!... sussurrou ela de envolta com um suspiro.
E pegou de novo na costura, deixando que o pensamento vadiasse à solta,
enquanto os dedos iam maquinalmente pregando as rendas naquela almofada,
em que a sua cabeça teria de repousar para receber o primeiro beijo genital.
Num só lance de vista, como quem apanha uma esfera entre as pontas de um
compasso, mediu com as antenas da sua perspicácia mulheril toda aquela
esterqueira, onde ela, depois de se arrastar por muito tempo como larva, um belo
dia acordou borboleta à luz do sol. E sentiu diante dos olhos aquela massa
informe de machos e fêmeas, a comichar, a fremir concupiscente, sufocando-se
uns aos outros. E viu o Firmo e o Jerônimo atassalharem-se, como dois cães que
disputam uma cadela da rua; e viu o Miranda, li defronte, subalterno ao lado da
esposa infiel, que se divertia a fazê-lo dançar a seus pés seguro pelos chifres; e
viu o Domingos, que fora da venda, furtando horas ao sono, depois de um
trabalho de barro, e perdendo o seu emprego e as economias ajuntadas com
sacrifício, para ter um instante de luxúria entre as pernas de uma desgraçadinha
irresponsável e tola; e tornou a ver o Bruno a soluçar pela mulher; e outros
ferreiros e hortelões, e cavouqueiros, e trabalhadores de toda a espécie, um
exército de bestas sensuais, cujos segredos ela possuía, cujas íntimas
correspondências escrevera dia a dia, cujos corações conhecia como as palmas
das mãos, porque a sua escrivaninha era um pequeno confessionário, onde toda a
salsugem e todas as fezes daquela praia de despejo foram arremessadas
espumantes de dor e aljofradas de lágrimas.
E na sua alma enfermiça e aleijada, no seu espírito rebelde de flor mimosa e
peregrina criada num monturo, violeta infeliz, que um estrume forte demais para
ela atrofiara, a moça pressentiu bem claro que nunca daria de si ao marido que ia
ter uma companheira amiga, leal e dedicada; pressentiu que nunca o respeitaria
sinceramente como a um ser superior por quem damos a vida; que nunca lhe
votaria entusiasmo, e por conseguinte nunca lhe teria amor; desse de que ela se
sentia capaz de amar alguém, se na terra houvera homens dignos disso. Ah! não
o amaria decerto, porque o Costa era como os outros, passivo e resignado,
aceitando a existência que lhe impunham as circunstâncias, sem ideais próprios,
sem temeridades de revolta, sem atrevimentos de ambição, sem vícios trágicos,
sem capacidade para grandes crimes; era mais um animal que viera ao mundo
para propagar a espécie; um pobre-diabo enfim que já a adorava cegamente e
que mais tarde, com ou sem razão, derramaria aquelas mesmas lágrimas,
ridículas e vergonhosas, que ela vira decorrendo em quentes camarinhas pelas
ásperas e maltratadas barbas do marido de Leocádia.
E não obstante, até então, aquele matrimônio era o seu sonho dourado. Pois
agora, nas vésperas de obtê-lo, sentia repugnância em dar-se ao noivo, e, se não
fora a mãe, seria muito capaz de dissolver o ajuste.
Mas, daí a uma semana, a estalagem era toda em rebuliço desde logo pela
manhã. Só se falava em casamento; havia em cada olhar um sangüíneo reflexo
de noites nupciais. Desfolharam-se rosas à porta da Pombinha. Às onze horas
parou um carro à entrada do cortiço com uma senhora gorda, vestida de seda cor
de pérola. Era a madrinha que vinha buscar a noiva para a igreja de São João
Batista. A cerimônia estava marcada para o meio-dia. Toda esta formalidade
embatucava os circunstantes, que se alinhavam imóveis defronte do número 15,
com as mãos cruzadas atrás, o rosto paralisado por uma comoção respeitosa;
alguns sorriam enternecidos; quase todos tinham os olhos ressumbrados d’água.
Pombinha surgiu à porta de casa, já pronta para desferir o grande vôo; de
véu e grinalda, toda de branco, vaporosa, linda. Parecia comovida; despedia-se
dos companheiros atirando-lhes beijos com o seu ramalhete de flores artificiais.
Dona Isabel chorava como criança, abraçando as amigas, uma por uma.
— Deus lhe ponha virtude! exclamou a Machona. E que lhe dê um bom
parto, quando vier a primeira barriga.
A noiva sorria, de olhos baixas. Uma fímbria de desdém toldava-lhe a
rosada candura de seus lábios. Encaminhou-se para o portão, cercada pela
bênção de toda aquela gente, cujas lágrimas rebentaram afinal, feliz cada um por
vê-la feliz e em caminho da posição que lhe competia na sociedade.
— Não! aquela não nascera para isto!... sentenciou o Alexandre, retorcendo
o reluzente bigode. Seria lástima se a deixassem ficar aqui!
O velho Libório, cascalhando uma risada decrépita, queixou-se de que o
maganão do Costa lhe passara a perna roubando-lhe a namorada.
Ingrata! Ele que estava disposto a fazer uma asneira!
Nenen deu uma corrida até à noiva, na ocasião em que esta chegava à
carruagem e, estalando-lhe um beijo na boca, pediu-lhe com empenho que se
não esquecesse de mandar-lhe um botão da sua grinalda de flores de laranjeira.
— Diz que é muito bom para quem deseja casar!... e eu tenho tanto medo de
ficar solteira!... É todo o meu susto!
XIII
À proporção que alguns locatários abandonavam a estalagem, muitos
pretendentes surgiam disputando os cômodos desalugados. Delporto e Pompeo
foram varridos pela febre amarela e três outros italianos estiveram em risco de
vida. O número dos hóspedes crescia; os casulos subdividiam-se em cubículos
do tamanho de sepulturas; e as mulheres iam despejando crianças com uma
regularidade de gado procriador. Uma família; composta de mãe viúva e cinco
filhas solteiras, das quais destas a mais velha tinha trinta anos e a mais moça
quinze, veio ocupar a casa que Dona Isabel esvaziou poucos dias depois do
casamento de Pombinha.
Agora, na mesma rua, germinava outro cortiço ali perto, o
“Cabeça-de-Gato”. Figurava como seu dono um português que também tinha
venda, mas o legitimo proprietário era um abastado conselheiro, homem de
gravata lavada, a quem não convinha, por decoro social, aparecer em semelhante
gênero de especulações. E João Romão, estalando de raiva, viu que aquela nova
república da miséria prometia ir adiante e ameaçava fazer-lhe à sua, perigosa
concorrência. Pôs-se logo em campo, disposto à luta, e começou a perseguir o
rival por todos os modos, peitando fiscais e guardas municipais, para que o não
deixassem respirar um instante com multas e exigências vexatórias; enquanto
pela sorrelfa plantava no espírito dos seus inquilinos um verdadeiro ódio de
partido, que os incompatibilizava com a gente do “Cabeça-de-Gato”. Aquele que
não estivesse disposto a isso ia direitinho para a rua, “que ali se não admitiam
meias medidas a tal respeito! Ali: ou bem peixe ou bem carne! Nada de
embrulho!” É inútil dizer que a parte contrária lançou mão igualmente de todos
os meios para guerrear o inimigo, não tardando que entre os moradores da duas
estalagens rebentasse uma tremenda rivalidade, dia a dia agravada por pequenas
brigas e rezingas, em que as lavadeiras se destacavam sempre com questões de
freguesia de roupa. No fim de pouco tempo os dois partidos estavam já
perfeitamente determinados; os habitantes do “Cabeça-de-Gato” tomaram por
alcunha o titulo do seu cortiço, e os de “São Romão”, tirando o nome do peixe
que a Bertoleza mais vendia à porta da taverna, foram batizados por
“Carapicus”. Quem se desse com um carapicu não podia entreter a mais ligeira
amizade com um cabeça-de-gato; mudar-se alguém de uma estalagem para outra
era renegar idéias e princípios e ficava apontado a dedo; denunciar a um
contrário o que se passava, fosse o que fosse, dentro do circulo oposto, era
cometer traição tamanha, que os companheiros a puniam a pau. Um vendedor de
peixe, que caiu na asneira de falar a um cabeça-de-gato a respeito de uma briga
entre a Machona e sua filha, a das Dores, foi encontrado quase morto perto do
cemitério de São João Batista. Alexandre, esse então não cochilava com os
adversários: nas suas partes policiais figurava sempre o nome de um deles pelo
menos, mas entre os próprios polícias havia adeptos de um e de outro partido; o
urbano que entrava na venda do João Romão tinha escrúpulo de tomar qualquer
coisa ao balcão da outra venda. Em meio do pátio do “Cabeça-de-Gato”
arvorara-se uma bandeira amarela; os carapicus responderam logo levantando
um pavilhão vermelho. E as duas cores olhavam-se no ar como um desafio de
guerra.
A batalha era inevitável. Questão de tempo.
Firmo, assim que se instaurara a nova estalagem, abandonou o quarto na
oficina e meteu-se lá de súcia com o Porfiro, apesar da oposição de Rita, que
mais depressa o deixaria a ele do que aos seus velhos camaradas de cortiço. Daí
nasceu certa ponta de discórdia entre os dois amantes; as suas entrevistas
tornavam-se agora mais raras e mais difíceis. A baiana, por coisa alguma desta
vida, poria os pés no “Cabeça-de-Gato” e o Firmo achava-se, como nunca,
incompatibilizado com os carapicus. Para estarem juntos tinham encontros
misteriosos num caloji de uma velha miserável da Rua de São João Batista, que
lhe cedia a cama mediante esmolas. O capoeira fazia questão de ficar no
“Cabeça-de-Gato”, porque ai se sentia resguardado contra qualquer perseguição
que o seu delito motivasse; de resto, Jerônimo não estava morto e, uma vez bem
curado, podia vir sobre ele com gana. No “Cabeça-de-Gato”, o Firmo
conquistara rápidas simpatias e constituíra-se chefe de malta. Era querido e
venerado; os companheiros tinham entusiasmo pela sua destreza e pela sua
coragem; sabiam-lhe de cor a legenda rica de façanhas e vitórias. O Porfiro
secundava-o sem lhe disputar a primazia, e estes dois, só por si, impunham
respeito aos carapicus, entre os quais, não obstante, havia muito boa gente para o
que desse e viesse.
Mas ao cabo de três meses, João Romão, notando que os seus interesses
nada sofriam com a existência da nova estalagem e, até pelo contrário, lucravam
com o progressivo movimento de povo que se ia fazendo no bairro, retornou à
sua primitiva preocupação com o Miranda, única rivalidade que
verdadeiramente o estimulava.
Desde que o vizinho surgiu com o baronato, o vendeiro transformava-se por
dentro e por fora a causar pasmo. Mandou fazer boas roupas e aos domingos
refestelava-se de casaco branco e de meias, assentado defronte da venda, a ler
jornais. Depois deu para sair a passeio, vestido de casimira, calçado e de
gravata. Deixou de tosquiar o cabelo à escovinha; pôs a barba abaixo,
conservando apenas o bigode, que ele agora tratava com brilhantina todas as
vezes que ia ao barbeiro. Já não era o mesmo lambuzão! E não parou aí: fez-se
sócio de um clube de dança e, duas noites por semana, ia aprender a dançar;
começou a usar relógio e cadeia de ouro; correu uma limpeza no seu quarto de
dormir, mandou soalhá-lo, forrou-o e pintou-o; comprou alguns móveis em
segunda mão; arranjou um chuveiro ao lado da retrete; principiou a comer com
guardanapo e a ter toalha e copos sobre a mesa; entrou a tomar vinho, não do
ordinário que vendia aos trabalhadores, mas de um especial que guardava para
seu gasto. Nos dias de folga atirava-se para o Passeio Público depois do jantar
ou ia ao teatro São Pedro de Alcântara assistir aos espetáculos da tarde; do
“Jornal do Comércio”, que era o único que ele assinava havia já três anos e
tanto, passou a receber mais dois outros e a tomar fascículos de romances
franceses traduzidos, que o ambicioso lia de cabo a rabo, com uma paciência de
santo, na doce convicção de que se instruía.
Admitiu mais três caixeiros; já não se prestava muito a servir pessoalmente
à negralhada da vizinhança, agora até mal chegava ao balcão. E em breve o seu
tipo começou a ser visto com freqüência na Rua Direita, na praça do comércio e
nos bancos, o chapéu alto derreado para a nuca e o guarda-chuva debaixo do
braço. Principiava a meter-se em altas especulações, aceitava ações de
companhias de títulos ingleses e só emprestava dinheiro com garantias de boas
hipotecas.
O Miranda tratava-o já de outro modo, tirava-lhe o chapéu, parava risonho
para lhe falar quando se encontravam na rua, e às vezes trocava com ele dois
dedos de palestra à porta da venda. Acabou por oferecer-lhe a casa e convidá-lo
para o dia de anos da mulher, que era daí a pouco tempo. João Romão agradeceu
o obséquio, desfazendo-se em demonstrações de reconhecimento, mas não foi
lá.
Bertoleza é que continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja,
sempre atrapalhada de serviço, sem domingo nem dia santo; essa, em nada, em
nada absolutamente, participava das novas regalias do amigo; pelo contrário, à
medida que ele galgava posição social, a desgraçada fazia-se mais e mais
escrava e rasteira. João Romão subia e ela ficava cá embaixo, abandonada como
uma cavalgadura de que já não precisamos para continuar a viagem. Começou a
cair em tristeza.
O velho Botelho chegava-se também para o vendeiro, e ainda mais do que o
próprio Miranda. O parasita não saia agora depois do almoço para a sua prosa na
charutaria, nem voltava à tarde para o jantar, sem deter-se um instante à porta do
vizinho ou, pelo menos, sem lhe gritar lá de dentro: “Então, seu João, isso vai ou
não vai?...” E tinha sempre uma frase amigável para lhe atirar cá de fora. Em
geral o taverneiro acudia a apertar-lhe a mão, de cara alegre, e propunha-lhe que
bebesse alguma coisa.
Sim, João Romão já convidava para beber alguma coisa. Mas não era à loa
que o fazia, que aquele mesmo não metia prego sem estopa! Tanto assim que
uma vez, em que os dois saíram à tardinha para dar um giro até à praia, Botelho,
depois de falar com o costumado entusiasmo do seu belo amigo Barão e da
virtuosíssima família deste, acrescentou com o olhar fito:
— Aquela pequena é que lhe estava a calhar, seu João!...
— Como? Que pequena?
— Ora morda aqui! Pensa que já não dei pelo namoro?... Maganão! O
vendeiro quis negar, mas o outro atalhou:
— É um bom partido, é! Excelente menina... tem um gênio de pomba... uma
educação de princesa: até o francês sabe! Toca piano como você tem ouvido...
canta o seu bocado... aprendeu desenho... muito boa mão de agulha!... e...
Abaixou a voz e segredou grosso no ouvido do interlocutor:
— Ali, tudo aquilo é sólido!... Prédios e ações do banco!...
— Você tem certeza disso? Já viu?
— Já! Palavra d’honra!
Calaram-se um instante.
Botelho continuou depois:
— O Miranda é bom homem, coitado! tem lá as suas fumaças de grandeza,
mas não o podemos criminar... são coisas pegadas da mulher; no entanto acho-o
com boas disposições a seu respeito... e, se você souber levá-lo, apanha-lhe a
filha...
— Ela talvez não queira...
— Qual o quê! Pois uma menina daquelas, criada a obedecer aos pais, sabe
lá o que é não querer? Tenha você uma pessoa, de intimidade com a família; que
de dentro empurre o negócio e verá se consegue ou não! Eu, por exemplo!
— Ah! se você se metesse nisso, que dúvida! Dizem que o Miranda só faz o
que você quer...
— Dizem com razão.
— E você está resolvido a... ?
— A protegê -lo?... Sim, decerto: neste mundo estamos nós para servir uns
aos outros!... apenas, como não sou rico...
— Ah! Isso é dos livros! Arranje-me você o negócio e não se arrependerá...
— Conforme, conforme...
— Creio que não me supõe um velhaco!...
— Pelo amor de Deus! Sou incapaz de semelhante sacrilégio!
— Então!...
— Sim, sim... em todo o caso falaremos depois, com mais vagar... Não é
sangria desatada!
E desde então, com efeito, sempre que os dois se pilhavam a sós discutiam o
seu plano de ataque à filha do Miranda. Botelho queria vinte contos de réis, e
com papel passado a prazo de casamento; o outro oferecia dez.
— Bom! então não temos nada feito... resumiu o velho. Trate você do
negócio só por si; mas já lhe vou prevenindo de que não conte comigo
absolutamente... Compreende?
— Quer dizer que me fará guerra...
— Valha-me Deus, criatura! não faço guerra a ninguém! guerra está você a
fazer-me, que não me quer deixar comer uma migalha da bela fatia que lhe vou
meter no papo!... O Miranda hoje tem para mais de mil contos de réis! Agora,
fique sabendo que a coisa não é assim também tão fácil, como lhe parece
talvez...
— Paciência!
— O Barão há de sonhar com um genro de certa ordem!... Ai algum
deputado... algum homem que faça figura na política aqui da terra!
— Não! melhor seria um príncipe!...
— E mesmo a pequena tem um doutorzinho de boa família; que lhe ronda
muito a porta... E ela, ao que parece, não lhe faz má cara...
— Ah! nesse caso é deixá-los lá arranjar a vida!
— É melhor, é! Creio até que com ele será mais fácil qualquer transação...
— Então não falemos mais nisso! Está acabado!
— Pois não falemos!
Mas no dia seguinte voltaram à questão:
— Homem! disse o vendeiro; para decidir, dou-lhe quinze!
— Vinte!
— Vinte, não!
— Por menos não me serve!
— E eu vinte não dou!
— Nem ninguém o obriga... Adeuzinho!
— Até mais ver.
Quando se encontraram de novo, João Romão riu-se para o outro, sem dizer
palavra. O Botelho, em resposta, fez um gesto de quem não quer intrometer-se
com o que não é da sua conta.
— Você é o diabo!... faceteou aquele, dando-lhe no ombro uma palmada
amigável. Então não há meio de chegarmos a um acordo?...
— Vinte!
— E, caso esteja eu pelos vinte, posso contar que...?
— Caso o meu nobre amigo se decida pelos vinte, receberá do Barão um
chamado para lá ir jantar ao primeiro domingo; aceita o convite, vai, e
encontrará o terreno preparado.
— Pois seja lá como você quer! mais vale um gosto do que quatro vinténs!
O Botelho não faltou ao prometido: dias depois do contrato selado e
assinado, João Romão recebeu uma carta do vizinho, solicitando-lhe a fineza de
ir jantar com ele mais a família;
Ah! que revolução não se feriu no espírito do vendeiro! passou dias a
estudar aquela visita; ensaiou o que tinha que dizer, conversando sozinho
defronte do espelho do seu lavatório; afinal, no dia marcado, banhou-se em
varias águas, areou os dentes até fazê-los bem limpos, perfumou-se todo dos pés
à cabeça, escanhoou-se com esmero, aparou e bruniu as unhas, vestiu-se de
roupa nova em folha, e às quatro e meia da tarde apresentou-se, risonho e cheio
de timidez, no espelhado e pretensioso salão de Sua Excelência.
Aos primeiros passos que dera sobre o tapete, onde seus grandes pés, afeitos
por toda vida à independência do chinelo e do tamanco, se destacavam como um
par de tartarugas, sentiu logo o suor dos grandes apuros inundar-lhe o corpo e
correr-lhe em bagada pela fronte e pelo pescoço, nem que se o desgraçado
acabasse de vencer naquele instante uma légua de carreira ao sol. As suas mãos
vermelhas e redondas gotejavam, e ele não sabia o que fazer delas, depois que o
Barão, muito solicito, lhe tomou o chapéu e o guarda-chuva.
Arrependia-se já de ter lá ido.
— Fique a gosto, homem! bradou-lhe o dono da casa. Se tem calor venha
antes aqui para a janela. Não faça cerimônia! Ó Leonor! traz o vermute! Ou o
amigo prefere tomar um copinho de cerveja?
João Romão aceitava tudo, com sorrisos de acanhamento, sem animo de
arriscar palavra. A cerveja fê-lo suar ainda mais e, quando apareceram na sala
Dona Estela e a filha, o pobre-diabo chegava a causar dó de tão atrapalhado que
se via Por duas vezes escorregou, e numa delas foi apoiar-se a uma cadeira que
tinha rodízios; a cadeira afastou-se e ele quase vai ao chão.
Zulmira riu-se, mas disfarçou logo a sua hilaridade pondo-se a conversar
com a mãe em voz baixa. Agora, refeita nos seus dezessete anos, não parecia tão
anêmica e deslavada; vieram-lhe os seios e engrossara-lhe o quadril. Estava
melhor assim. Dona Estela, coitada! é que se precipitava, a passos de granadeiro,
para a velhice, a despeito da resistência com que se rendia; tinha já dois dentes
postiços, pintava o cabelo, e dos cantos da boca duas rugas serpenteavam-lhe
pelo queixo abaixo, desfazendo-lhe a primitiva graça maliciosa dos lábios; ainda
assim, porém, conservava o pescoço branco, liso e grosso, e os seus braços não
desmereciam dos antigos créditos.
À mesa, a visita comeu tão pouco e tão pouco bebeu, que os donos da casa a
censuraram jovialmente, fingindo aceitar o fato como prova segura de que o
jantar não prestava; o obsequiado pedia por amor de Deus que não acreditassem
em tal e jurava sob palavra de honra que se sentia satisfeito e que nunca outra
comida lhe soubera tão bem. Botelho lá estava, ao lado de um velhote
fazendeiro, que por essa ocasião hospedava-se com o Miranda. Henrique,
aprovado no seu primeiro ano de Medicina, fora visitar a família; em Minas.
Isaura e Leonor serviam aos comensais, rindo ambas à socapa por verem ali o
João da venda engravatado e com piegas de visita.
Depois do jantar apareceu uma família; conhecida, trazendo um rancho de
moças; vieram também alguns rapazes; formaram-se jogos de prendas, e João
Romão, pela primeira vez em sua vida, viu-se metido em tais funduras. Não se
saiu mal todavia.
O chá das dez e meia correu sem novidade; e, quando enfim o neófito se
pilhou na rua, respirou com independência, remexendo o pescoço dentro do
colarinho engomado e soprando com alívio. Uma alegria de vitória
transbordava-lhe do coração e fazia-o feliz nesse momento. Bebeu o ar fresco da
noite com uma volúpia nova para ele e, muito satisfeito consigo mesmo, entrou
em casa e recolheu-se, rejubilando com a idéia de que ia descalçar aquelas botas,
desfazer-se de toda aquela roupa e atirar-se à cama, para pensar mais à vontade
no seu futuro, cujos horizontes se rasgavam agora iluminados de esperança.
Mas a bolha do seu desvanecimento engelhou logo à vista de Bertoleza que,
estendida na cama, roncava, de papo para o ar, com a boca aberta, a camisa
soerguida sobre o ventre, deixando ver o negrume das pernas gordas e lustrosas.
E tinha de estirar-se ali, ao lado daquela preta fedorenta a cozinha e bodum
de peixe! Pois, tão cheiroso e radiante como se sentia, havia de pôr a cabeça
naquele mesmo travesseiro sujo em que se enterrava a hedionda carapinha da
crioula?...
— Ai! ai! gemeu o vendeiro, resignando-se.
E despiu-se.
Uma vez deitado, sem animo de afastar-se da beira da cama, para não se
encostar com a amiga, surgiu-lhe nítida ao espírito a compreensão do estorvo
que o diabo daquela negra seria para o seu casamento.
E ele que até aí não pensara nisso!... Ora o demo!
Não pôde dormir; pôs-se a malucar:
Ainda bem que não tinham filhos! Abençoadas drogas que a Bruxa dera à
Bertoleza nas duas vezes em que esta se sentiu grávida! Mas, afinal, de que
modo se veria livre daquele trambolho? E não se ter lembrado disso há mais
tempo!... parecia incrível!
João Romão, com efeito, tão ligado vivera com a crioula e tanto se habituara
a vê-la ao seu lado, que nos seus devaneios de ambição pensou em tudo, menos
nela.
E agora?
E malucou no caso até às duas da madrugada, sem achar furo. Só no dia
seguinte, a contemplá-la de cócoras à porta da venda, abrindo e destripando
peixe, foi que, por associação de idéias, lhe acudiu esta hipótese:
— E se ela morresse?...
XIV
Iam-se assim os dias, e assim mais de três meses se passaram depois da
noite da navalhada. Firmo continuava a encontrar-se com a baiana na Rua de
São João Batista, mas a mulata já não era a mesma para ele: apresentava-se fria,
distraída, às vezes impertinente, puxando questão por dá cá aquela palha.
— Hum! hum! temos mouro na costa! rosnava o capadócio com ciúmes.
Ora queira Deus que eu me engane!
Nas entrevistas apresentava-se ela agora sempre um pouco depois da hora
marcada, e sua primeira frase era para dizer que tinha pressa e não podia
demorar-se.
— Estou muito apertada de serviço! acrescentava à réplica do amante. Uma
roupa de uma família que embarca amanhã para o Norte! Tem de ficar pronta
esta noite! Já ontem fiz serão!
— Agora estás sempre apertada de serviço!... resmungava o Firmo.
— E que é preciso puxar por ele, filho! Ponha-me eu a dormir e quero ver
do que como e com que pago a casa! Não há de ser com o que levo daqui!
— Or’essa! Tens coragem de dizer que não te dou nada? E quem foi que te
deu esse vestido que tens no corpo?!
— Não disse que nunca me desse nada, mas com o que você me dá não
pago a casa e não ponho a panela no fogo! Também não lhe estou pedindo coisa
alguma! Oh!
Azedavam-se deste modo as suas entrevistas, esfriando as poucas horas que
os dois tinham para o amor. Um domingo, Firmo esperou bastante tempo e Rita
não apareceu. O quarto era acanhado e sombrio, sem janelas, com um cheiro
mau de bafio e umidade. Ele havia levado um embrulho de peixe frito, pão e
vinho, para almoçarem juntos. Deu meio-dia e Firmo esperou ainda, passeando
na estreiteza da miserável alcova, como um onça enjaulada, rosnando pragas
obscenas; o sobrolho intumescido, os dentes cerrados. “Se aquela safada lhe
aparecesse naquele momento, ele seria capaz de torcê-la nas mãos!”
À vista do embrulho da comida estourou-lhe a raiva. Deu um pontapé numa
bacia de louça que havia no chão, perto da cama, e soltou um marro na cabeça.
— Diabo!
Depois assentou-se no leito, esperou ainda algum tempo, fungando forte,
sacudindo as pernas cruzadas, e afinal saiu, atirando para dentro do quarto uma
palavra porca.
Pela rua, durante o caminho, jurava que “aquela caro pagaria a mulata!” Um
sôfrego desejo de castigá-la, no mesmo instante, o atraía ao cortiço de São
Romão, mas não se sentiu com animo de lá ir, e contentou-se em rondar a
estalagem. Não conseguiu vê-la; resolveu esperar até à noite para lhe mandar um
recado. E vagou aborrecido pelo bairro, arrastando o seu desgosto por aquele
domingo sem pagode. Às duas horas da tarde entrou no botequim do Garnisé,
uma espelunca, perto da praia, onde ele costumava beber de súcia com o Porfiro.
O amigo não estava lá. Firmo atirou-se numa cadeira, pediu um martelo de
parati e acendeu um charuto, a pensar. Um mulatinho, morador no
“Cabeça-de-Gato”, veio assentar-se na mesma mesa e, sem rodeios, deu-lhe a
noticia de que na véspera o Jerônimo, tivera alta do hospital.
Firmo acordou com um sobressalto.
— O Jerônimo?!
— Apresentou-se hoje pela manhã na estalagem.
— Como soubeste?
— Disse-me o Pataca.
— Ora ai está o que é! exclamou o capoeira, soltando um murro na mesa.
— Que é o quê? interrogou o outro.
— Nada! É cá comigo. Toma alguma coisa?
Veio novo copo, e Firmo resmungou no fim de uma pausa:
— É! não há dúvida! Por isto é que a perua ultimamente me anda de vento
mudado!...
E um ciúme doido, um desespero feroz rebentou-lhe por dentro e cresceu
logo como a sede de um ferido. “Oh! precisava vingar-se dela! dela e dele! O
amaldiçoado resistiu à primeira, mas não lhe escaparia da segunda!”
— Veja mais um martelo de parati! gritou para o portuguesinho da
espelunca. E acrescentou, batendo com toda a força o seu petrópolis no chão:
— E não passa de hoje mesmo!
Com o chapéu à ré, a gaforina mais assanhada que de costume, os olhos
vermelhos, a boca espumando pelos cantos, todo ele respirava uma febre de
vingança e de ódio.
— Olha! disse ao companheiro de mesa. Disto, nem pio lá com os
carapicus! Se abrires o bico dou-te cabo da pele! Já me conheces!
— Tenho nada que falar! Pra quê?
— Bom!
E ficaram ainda a beber.
Jerônimo, com efeito, tivera alta e tornara aquele domingo ao cortiço, pela
primeira vez depois da doença. Vinha magro, pálido, desfigurado, apoiando-se a
um pedaço de bambu. Crescera-lhe a barba e o cabelo, que ele não queria cortar
sem ter cumprido certo juramento feito aos seus brios. A mulher fora buscá-lo
ao hospital e caminhava ao seu lado, igualmente abatida com a moléstia do
marido e com as causas que a determinaram. Os companheiros receberam-no
compungidos, tomados de uma tristeza respeitosa; um silêncio fez-se em torno
do convalescente; ninguém falava senão a meia voz; a Rita Baiana tinha os
olhos arrasados d’água.
Piedade levou o seu homem para o quarto.
— Queres tomar um caldinho? perguntou-lhe. Creio que ainda não estás de
todo pronto...
— Estou! contrapôs ele. Diz o doutor que preciso é de andar, para ir
chamando força às pernas. Também estive tanto tempo preso à cama! Só de uma
semana pra cá é que encostei os pés no chão!
Deu alguns passos na sua pequena sala e disse depois, tornando junto da
mulher:
— O que me saberia bem agora era uma xicrinha de café, mas queria-o bom
como o faz a Rita... Olha! pede-lhe que o arranje.
Piedade soltou um suspiro e saiu vagarosamente, para ir pedir o obséquio à
mulata. Aquela preferência pelo café da outra doía-lhe duro que nem uma
infidelidade.
— Lá o meu homem quer do seu café e torceu nariz ao de casa... Manda
pedir-lhe que lhe faça uma xícara. Pode ser? perguntou a portuguesa à baiana.
— Não custa nada! respondeu esta. Com poucas está lá!
Mas não foi preciso que o levasse, porque daí a um instante, Jerônimo, com
o seu ar tranqüilo e passivo de quem ainda se não refez de todo depois de uma
longa moléstia, surgiu-lhe à porta.
— Não vale a pena estorvar-se em lá ir... Se me dá licença, bebo o cafezinho
aqui mesmo...
— Entra, seu Jerônimo.
— Aqui ele sabe melhor...
— Você pega já com partes! Olha, sua mulher anda de pé atrás comigo! E
eu não quero histórias!...
Jerônimo sacudiu os ombros com desdém.
— Coitada!... resmungou depois. Muito boa criatura, mas...
— Cala a boca, diabo! Toma o café e deixa de maldizência! É mesmo vicio
de Portugal: comendo e dizendo mal!
O português sorveu com delícia um gole de café.
— Não digo mal, mas confesso que não encontro nela umas tantas coisas
que desejava...
E chupou os bigodes.
— Vocês são tudo a mesma súcia! Bem tola é quem vai atrás de lábia de
homem! Eu cá não quero mais saber disso... Ao outro despachei já!
O cavouqueiro teve um tremor de todo o corpo.
— Outro quem?! O Firmo?
Rita arrependeu-se do que dissera, e gaguejou:
— É um coisa-ruim! Não quero saber mais dele!... Um traste!
— Ele ainda vem cá? perguntou o cavouqueiro.
— Aqui? Qual! Nessa não caio! E se vier não lhe abro a porta! Ah! quando
embirro com uma pessoa é que embirro mesmo!
— Isso é verdade, Rit a?
— Quê? Que não quero saber mais dele? Esta que aqui está nunca mais fará
vida com semelhante cábula! Juro por esta luz!
— Ele fez-lhe alguma?
— Não sei! não quero! acabou-se!
— É que então você tem outro agora...
— Que esperança! Não tenho, nem quero mais ter homem!
— Por que, Rita?
— Ora! não paga a pena!
— E... se você encontrasse um... que a quisesse deveras... para sempre?...
— Não é com essas!...
— Pois sei de um que a quer como Deus aos seus!...
— Pois diga-lhe que siga outro oficio!
Ela se chegou para recolher a xícara, e ele apalpou-lhe a cintura.
— Olha! Escuta!
Rita fugiu com uma rabanada, e disse rápido, muito a sério:
— Deixa disso. Pode tua mulher ver!
— Vem cá!
— Logo.
— Quando?
— Logo mais.
— Onde?
— Não sei.
— Preciso muito te falar...
— Pois sim, mas aqui fica feio.
— Onde nos encontramos então?
— Sei cá!
E, vendo que Piedade entrava, ela disfarçou, dizendo sem transição:
— Os banhos frios é que são bons para isso. Põem duro o corpo!
A outra, embesourada, atravessou em silêncio a pequena sala, foi ter com o
marido e comunicou-lhe que o Zé Carlos queria falar-lhe, junto com o Pataca.
— Ah! fez Jerônimo. Já sei o que é. Até logo, Nhá Rita. Obrigado. Quando
quiser qualquer coisa de nós, lá estamos.
Ao sair no pátio, aqueles dois vieram ao seu encontro. O cavouqueiro
levou-os para casa, onde a mulher havia posto já a mesa do almoço, e com um
sinal preveniu-os de que não falassem por enquanto sobre o assunto que os
trouxera ali. Jerônimo comeu às pressas e convidou as visitas a darem um giro lá
fora.
Na rua, perguntou-lhes em tom misterioso:
— Onde poderemos falar à vontade?
O Pataca lembrou a venda do Manuel Pepé, defronte do cemitério. — Bem
achado! confirmou Zé Carlos. Há lá bons fundos para se conversar.
E os três puseram-se a caminho, sem trocar mais palavras até à esquina.
— Então está de pé o que dissemos?... indagou afinal aquele último. — De
pedra e cal! respondeu o cavouqueiro.
— E o que é que se faz?
— Ainda não sei... Preciso antes de tudo saber onde o cabra é encontrado à
noite.
— No Garnisé, afirmou o Pataca.
— Garnisé?
— Aquele botequim ali ao entrar da Rua da Passagem, onde está um galo à
tabuleta.
— Ah! Defronte da farmácia nova...
— Justo! Ele vai lá agora todas as noites, e lá esteve ontem, que o vi, por
sinal que num gole...
— Muito bêbado, hein?
— Como um gambá! Aquilo foi alguma, que a Rita Baiana lhe pregou de
fresco!
Tinham chegado à venda. Entraram pelos fundos e assentaram-se sobre
caixas de sabão vazias, em volta de uma mesa de pinho. Pediram parati com
açúcar.
— Onde é que eles se encontravam?... informou-se Jerônimo, afetando que
fazia esta pergunta sem interesse especial. Lá mesmo no São Romão?...
— Quem? A Rita mais ele? Ora o quê! Pois se ele agora é todo
cabeça-de-gato!...
— Ela ia lá?
— Duvido! Então logo aquela! Aquela é carapicu até o sabugo das unhas!
— Nem sei como ainda não romperam! interveio Zé Carlos, que continuou
a falar a respeito da mulata, enquanto Jerônimo o escutava abstrato, sem tirar os
olhos de um ponto.
O Pataca, como se acompanhasse o pensamento do cavouqueiro, disse-lhe
emborcando o resto do copo:
— Talvez o melhor fosse liquidar a coisa hoje mesmo!...
— Ainda estou muito fraco... observou lastimoso o convalescente.
— Mas o teu pau está forte! E além disso cá estamos nós dois. Tu podes até
ficar em casa, se quiseres...
— Isso é que não! atalhou aquele. Não dou o meu quinhão pelos dentes da
boca!
— Eu cá também vou que o melhor seria pespegar-lhe hoje mesmo a sova...
declarou o outro. Pão de um dia para outro fica duro!
— E eu estou-lhe com uma gana!... acrescentou o Pataca.
— Pois seja hoje mesmo! resolveu Jerônimo. E o dinheiro lá está em casa,
quarenta pra cada um! Em seguida à mela corre logo o cobre! E ao depois vai a
gente tomar uma fartadela de vinho fino!
— A que horas nos juntamos? perguntou Zé Carlos.
— Logo ao cair da noite, aqui mesmo. Está dito?
— E será feito, se Deus quiser!
O Pataca acendeu o cachimbo, e os três puseram-se a cavaquear
animadamente sobre o efeito que aquela sova havia de produzir; a cara que o
cabra faria entre três bons cacetes. “Então é que queriam ver até onde ia a
impostura da navalha! Diabo de um calhorda que, por um — vai tu, irei eu —
arrancava logo pelo ferro!...”
Dois trabalhadores, em camisa de meia, entraram na tasca e o grupo
calou-se. Jerônimo fogueou um cigarro no cachimbo do Pataca e despediu-se,
relembrando aos companheiros a hora da entrevista e atirando sobre a mesa um
níquel de duzentos réis.
Foi direito para o cortiço.
— Fazes mal em andar por ai com este sol!... repreendeu Piedade, ao vê-lo
entrar.
— Pois se o doutor me disse que andasse quanto pudesse...
Mas recolheu-se à casa, estirou-se na cama e ferrou logo no sono. A mulher,
que o acompanhara até lá, assim que o viu dormindo, enxotou as moscas de
junto dele, cobriu-lhe a cara com uma cambraia que servia para os tabuleiros de
roupa engomada, e saiu na ponta dos pés, deixando a porta encostada.
Jantaram daí a duas horas. Jerônimo comeu com apetite, bebeu uma garrafa
de vinho, e a tarde passaram-na os dois de palestra, assentados à frente de casa,
formando grupo com a Rita e a gente da Machona. Em torno deles a liberdade
feliz do domingo punha alegrias naquela tarde. Mulheres amamentavam o
filhinho ali mesmo, ao ar livre, mostrando a uberdade das tetas cheias. Havia
muito riso, muito parolar de papagaios; pequenos travessavam, tão depressa
rindo como chorando; os italianos faziam a ruidosa digestão dos seus jantares de
festa; ouviam-se cantigas e pragas entre gargalhadas. A Augusta, que estava
grávida de sete meses, passeava solenemente o seu bandulho, levando um outro
filho ao colo. O Albino, instalado defronte de uma mesinha em frente à sua
porta, fazia, à força de paciência, um quadro, composto de figurinhas de caixa
de fósforos, recortadas a tesoura e grudadas em papelão com goma-arábica. E lá
em cima, numa das janelas do Miranda, João Romão, vestido de casimira clara,
uma gravata à moda, já familiarizado com a roupa e com a gente fina,
conversava com Zulmira que, ao lado dele, sorrindo de olhos baixos, atirava
migalhas de pão para as galinhas do cortiço; ao passo que o vendeiro lançava
para baixo olhares de desprezo sobre aquela gentalha sensual, que o enriquecera,
e que continuava a mourejar estupidamente, de sol a sol, sem outro ideal senão
comer, dormir e procriar.
Ao cair da noite, Jerônimo foi, como ficara combinado, à venda do Pepé. Os
outros dois já lá estavam. Infelizmente, havia mais alguém na tasca. Tomaram
juntos, pelo mesmo copo, um martelo de parati e conversaram em voz surda
numa conspiração sombria em que as suas barbas roçavam umas com as outras.
— Os paus onde estão?... perguntou o cavouqueiro.
— Ali, junto às pipas... segredou o Pataca, apontando com disfarce para
uma esteira velha enrolada. Preparei-os ainda há pouco... Não os quis muito
grandes... Deste tamanho.
E abriu a mão contra a terra no lugar do peito.
— Estiveram de molho até agora... acrescentou, piscando o olho.
— Bom! aprovou Jerônimo, esgotando o copo com um último gole. Agora
onde vamos nós! Parece-me ainda cedo para o Garnisé.
— Ainda! confirmou o Pataca. Deixemo-nos ficar por aqui mais um pouco e
ao depois então seguiremos. Eu entro no botequim e vocês me esperam fora no
lugar que marcamos... Se o cabra não estiver lá, volto logo a dizer-lhes, e, caso
esteja, fico... chego-me para ele, procuro entrar em conversa, puxo discussão e
afinal desafio-o pra rua; ele cai na esparrela, e então vocês dois surgem e
metem-se na dança, como quem não quer a coisa! Que acham?
— Perfeito! aplaudiu Jerônimo, e gritou para dentro: — Olha mais um
martelo de parati!
Em seguida enterrou a mão no bolso da calça e sacou um rolo grosso de
notas.
— Podem enxugar à vontade! disse. Aqui ainda há muito com quê!
E, ordenando as notas, separou oitenta mil-réis, em cédulas de vinte.
— Isto é o do ajuste! Este é sagrado! acrescentou, guardando-as na algibeira
do lado esquerdo.
Depois separou ainda vinte mil-réis, que atirou sobre a mesa.
— Esse aí é para festejarmos a nossa vitória!
E fazendo do resto do seu dinheiro um bolo, que ele, um pouco ébrio,
apertava nos dedos, agora, claros e quase descalejados, socou-o na algibeira do
lado direito explicando entre dentes que ali ficava ainda bastante para o que
desse e viesse, no caso de algum contratempo.
— Bravo! exclamou Zé Carlos. Isto é o que se chama fazer as coisas à
fidalga! Haja contar comigo pra vida e pra morte!
O Pataca entendia que podiam tomar agora um pouco de cerveja.
— Cá por mim não quero, mas bebam-na vocês, acudiu Jerônimo.
— Preferia um trago de vinho branco, contraveio o terceiro.
— Tudo o que quiserem! franqueou aquele. Eu tomo também um pouco de
vinho. Não! que o que estamos a beber não é dinheiro de navalhista, foi ganho
ao sol e à chuva com o suor do meu rosto! É entornar pra baixo sem caretas, que
este não pesa na consciência de ninguém!
— Então, à sua! brindou Zé Carlos, logo que veio o novo reforço. Pra que
não torne você a dar que fazer à má casta dos boticários!
— À sua, mestre Jerônimo! concorreu o outro.
Jerônimo agradeceu e disse, depois de mandar encher os copos:
— Aos amigos e patrícios com quem me achei para o meu desforço!
E bebeu.
— À da S’ora Piedade de Jesus! reclamou o Pataca.
— Obrigado! respondeu o cavouqueiro, erguendo-se. Bem! Não nos
deixemos agora ficar aqui toda a noite; mãos a obra! São quase oito horas.
Os outros dois esvaziaram de um trago o que ainda havia no fundo dos
copos e levantaram-se também.
— É muito cedo ainda... obtemperou Zé Carlos, cuspindo de esguelha e
limpando o bigode nas costas da mão.
— Mas talvez tenhamos alguma demora pelo caminho, advertiu o
companheiro, indo buscar junto às pipas o embrulho dos cacetes.
— Em todo o caso vamos seguindo, resolveu Jerônimo, impaciente, nem se
temesse que a noite lhe fugisse de súbito.
Pagou a despesa, e os três saíram, não cambaleando, mas como que
empurrados por um vento forte, que os fazia de vez em quando dar para a frente
alguns passos mais rápidos. Seguiram pela Rua de Sorocaba e tomaram depois a
direção da praia, conversando em voz baixa, muito excitados. Só pararam perto
do Garnisé.
— Vais tu então, não é? perguntou o cavouqueiro ao Pataca.
Este respondeu entregando-lhe o embrulho dos paus e afastando-se de mãos
nas algibeiras, a olhar para os pés, fingindo-se mais bêbedo do que realmente
estava.
XV
O Garnisé tinha bastante gente essa noite. Em volta de umas doze mesinhas
toscas, de pau, com uma coberta de folha-de-flandres pintada de branco fingindo
mármore, viam-se grupos de três e quatro homens, quase todos em mangas de
camisa, fumando e bebendo no meio de grande algazarra. Fazia-se largo
consumo de cerveja nacional, vinho virgem, parati e laranjinha. No chão coberto
de areia havia cascas de queijo-de-minas, restos de iscas de fígado, espinhas de
peixe, dando idéia de que ali não só se enxugava como também se comia. Com
efeito, mais para dentro, num engordurado bufete, junto ao balcão e entre as
prateleiras de garrafas cheias e arrolhadas, estava um travessão de assado com
batatas, um osso de presunto e vários pratos de sardinhas fritas. Dois candeeiros
de querosene lumiavam, encarvoando o teto. E de uma porta ao fundo, que
escondia o interior da casa com uma cortina de chita vermelha, vinha de vez em
quando uma baforada de vozes roucas, que parecia morrer em caminho, vencida
por aquela densa atmosfera cor de opala.
O Pataca estacou a entrada, afetando grande bebedeira e procurando, com
disfarce, em todos os grupos, ver se descobria o Firmo. Não o conseguiu; mas
alguém, em certa mesa, lhe chamara a atenção, porque ele se dirigiu para lá. Era
uma mulatinha magra, mal vestida, acompanhada por uma velha quase cega e
mais um homem, inteiramente calvo, que sofria de asma e, de quando em
quando, abalava a mesa com um frouxo de tosse, fazendo dançar os copos.
O Pataca bateu no ombro da rapariga.
— Como vais tu, Florinda?
Ela olhou para ele, rindo; disse que ia bem, e perguntou-lhe como passava.
— Rola-se, filha. Tu que fim levaste? Há um par de quinze dias que te não
vejo!
— E mesmo. Desde que estou com seu Bento não tenho saído quase.
— Ah! disse o Pataca, estás amigada? Bom!...
— Sempre estive!
E ela então, muito expansiva com a sua folga daquele domingo e com o seu
bocado de cerveja, contou que, no dia em que fugiu da estalagem, ficou na rua e
dormiu numas obras de uma casa em construção na Travessa da Passagem, e que
no seguinte oferecendo-se de porta em porta, para alugar-se de criada ou de
ama-seca, encontrou um velho solteiro e agimbado que a tomou ao seu serviço e
meteu-se com ela.
— Bom! muito bom! anuiu Pataca.
Mas o diabo do velho era um safado; dava-lhe muita coisa, dinheiro até,
trazia-a sempre limpa e de barriga cheia, sim senhor! mas queria que ela se
prestasse a tudo! Brigaram. E, como o vendeiro da esquina estava sempre a
chamá-la para casa, um belo dia arribou, levando o que apanhara ao velho.
— Estás então agora com o da venda?
Não! O tratante, a pretexto de que desconfiava dela com o Bento
marceneiro, pô-la na rua, chamando a si o que a pobre de Cristo trouxera da casa
do outro e deixando-a só com a roupa do corpo e ainda por cima doente por
causa de um aborto que tivera logo que se metera com semelhante peste. O
Bento tomara-a então à sua conta, e ela, graças a Deus, por enquanto não tinha
razões de queixa.
O Pataca olhou em torno de si com o ar de quem procura alguém, e
Florinda, supondo que se tratava do seu homem, acrescentou:
— Não está cá, está lá dentro. Ele, quando joga, não gosta que eu fique
perto; diz que encabula.
— E tua mãe?
— Coitada! foi pro hospício...
E passou logo a falar a respeito da velha Marciana; o Pataca, porém, já lhe
não prestava atenção, porque nesse momento acabava de abrir-se a cortina
vermelha, e Firmo surgia muito ébrio, a dar bordos, contando, sem conseguir,
uma massagada de dinheiro, em notas pequenas, que ele afinal entrouxou num
bolo e recolheu na algibeira das calças.
— Ó Porfiro! não vens? gritou lá para dentro, arrastando a voz.
E, depois de esperar inutilmente pela resposta, fez alguns passos na sala.
O Pataca deu à Florinda um “até logo” rápido e, fingindo-se de novo muito
bêbedo, encaminhou-se na direção em que vinha o mulato.
Esbarraram-se.
— Oh! Oh! exclamou o Pataca. Desculpe!
Firmo levantou a cabeça e encarou-o com arrogância; mas desfranziu o
rosto logo que o reconheceu.
— Ah! és tu, seu galego? Como vai isso? A ladroeira corre?
— Ladroeira tinha a avó na cuia! Anda a tomar alguma coisa. Queres?
— Que há de ser?
— Cerveja. Vai?
— Vá lá.
Chegaram-se para o balcão.
— Uma Guarda-Velha, ó pequeno! gritou o Pataca.
Firmo puxou logo dinheiro para pagar.
— Deixa! disse o outro. A lembrança foi minha!
Mas, como Firmo insistisse, consentiu-lhe que fizesse a despesa.
E os níqueis do troco rolaram no chão, fugindo por entre os dedos do
mulato, que os tinha duros na tensão muscular da sua embriaguez.
— Que horas são? perguntou Pataca, olhando quase de olhos fechados o
relógio da parede. Oito e meia. Vamos a outra garrafa, mas agora pago eu!
Beberam de novo, e o coadjutor de Jerônimo observou depois:
— Você hoje ferrou-a deveras! Estás que te não podes lamber!
— Desgostos... resmungou o capoeira, sem conseguir lançar da boca a
saliva que se lhe grudava à língua.
— Limpa o queixo que estás cuspido. Desgostos de quê? Negócios de
mulher, aposto!
— A Rita não me apareceu hoje, sabes? Não foi e eu bem calculo por quê!
— Por quê?
— Porque a peste do Jerônimo voltou hoje à estalagem!
— Ahn! não sabia!... A Rita está então com ele?...
— Não está, nem nunca há de estar, que eu daqui mesmo vou à procura
daquele galego ordinário e ferro-lhe a sardinha no pandulho!
— Vieste armado?
Firmo sacou da camisa uma navalha.
— Esconde! não deves mostrar isso aqui! Aquela gente ali da outra mesa já
não nos tira os olhos de cima!
— Estou-me ninando pra eles! E que não olhem muito, que lhes dou uma de
amostra!
— Entrou um urbano! Passa-me a navalha!
O capadócio fitou o companheiro, estranhando o pedido.
— É que, explicou aquele, se te prenderem não te encontram ferro...
— Prender a quem? a mim? Ora, vai-te catar!
— E ela é boa? Deixa ver!
— Isto não é coisa que se deixe ver!
— Bem sabes que não me entendo com armas de barbeiro!
— Não sei! Esta é que não me sai das unhas, nem para meu pai, que a
pedisse!
— E porque não tens confiança em mim!
— Confio nos meus dentes, e esses mesmo me mordem a língua!
— Sabes quem vi ainda há pouco? Não és capaz de adivinhar!...
— Quem?
— A Rita.
— Onde?
— Ali na Praia da Saudade.
— Com quem?
— Com um tipo que não conheço...
Firmo levantou-se de improviso e cambaleou para o lado da saída.
— Espera! rosnou o outro, detendo-o. Se queres vou contigo; mas é preciso
ir com jeito, porque, se ela nos bispa, foge!
O mulato não fez caso desta observação e saiu a esbarrar-se por todas as
mesas. Pataca alcançou-o já na rua e passou-lhe o braço na cintura,
amigavelmente.
— Vamos devagar... disse; se não o pássaro se arisca!
A praia estava deserta. Caia um chuvisco. Ventos frios sopravam do mar. O
céu era um fundo negro, de uma só tinta; do lado oposto da bala os lampiões
pareciam surgir d’água, como algas de fogo, mergulhando bem fundo as suas
trêmulas raízes luminosas.
— Onde está ela? perguntou o Firmo, sem se agüentar nas pernas.
— Ali mais adiante, perto da pedreira. Caminha, que hás de ver!
E continuaram a andar para as bandas do hospício. Mas dois vultos surdiram
da treva; o Pataca reconheceu-os e abraçou-se de improviso ao mulato.
— Segurem-lhe as pernas! gritou para os outros.
Os dois vultos, pondo o cacete entre os dentes, apoderaram-se de Firmo, que
bracejava seguro pelo tronco.
Deixara-se agarrar — estava perdido.
Quando o Pataca o viu preso pelos sovacos e pela dobra dos joelhos,
sacou-lhe fora a navalha.
— Pronto! Está desarmado!
E tomou também o seu pau.
Soltaram-no então. O capoeira, mal tocou com os pés em terra, desferiu um
golpe com a cabeça, ao mesmo tempo que a primeira cacetada lhe abria a nuca.
Deu um grito e voltou-se cambaleando. Uma nova paulada cantou-lhe nos
ombros, e outra em seguida nos rins, e outra nas coxas, outra mais violenta
quebrou-lhe a clavícula, enquanto outra logo lhe rachava a testa e outra lhe
apanhava a espinha, e outras, cada vez mais rápidas, batiam de novo nos pontos
já espancados, até que se converteram numa carga continua de porretadas, a que
o infeliz não resistiu, rolando no chão, a gotejar sangue de todo o corpo.
A chuva engrossava. Ele agora, assim debaixo daquele bate-bate sem
tréguas, parecia muito menor, minguava como se estivesse ao fogo. Lembrava
um rato morrendo a pau. Um ligeiro tremor convulsivo era apenas o que ainda
lhe denunciava um resto de vida. Os outros três não diziam palavra, arfavam, a
bater sempre, tomados de uma irresistível vertigem de pisar bem a cacete aquela
trouxa de carne mole e ensangüentada, que grunhia frouxamente a seus pés.
Afinal, quando de todo já não tinham forças para bater ainda, arrastaram a
trouxa até a ribanceira da praia e lançaram-na ao mar. Depois, arquejantes,
deitaram a fugir, à toa, para os lados da cidade.
Chovia agora muito forte. Só pararam no Catete, ao pé de um quiosque;
estavam encharcados; pediram parati e beberam como quem bebe água. Passava
já de onze horas. Desceram pela Praia da Lapa; ao chegarem debaixo de um
lampião, Jerônimo parou suando apesar do aguaceiro que cala.
— Aqui têm vocês, disse, tirando do bolso as quatro notas de vinte mil-réis.
Duas para cada um! E agora vamos tomar qualquer coisa quente em lugar seco.
— Ali há um botequim, indicou o Pataca, apontando a Rua da Glória.
Subiram por uma das escadinhas que ligam essa rua à praia, e daí a pouco
instalavam-se em volta de uma mesa de ferro. Pediram de comer e de beber e
puseram-se a conversar em voz soturna, muito cansados.
A uma hora da madrugada o dono do café pô-los fora. Felizmente chovia
menos. Os três tomaram de novo a direção de Botafogo; em caminho Jerônimo
perguntou ao Pataca se ainda tinha consigo a navalha do Firmo e pediu-lha, ao
que o companheiro cedeu sem objeção.
— É para conservar uma lembrança daquele bisbórria! explicou o
cavouqueiro, guardando a arma.
Separaram-se defronte da estalagem. Jerônimo entrou sem ruído; foi até à
casa, espiou pelo buraco da fechadura; havia luz no quarto de dormir;
compreendeu que a mulher estava à sua espera, acordada talvez; pensou sentir,
vindo lá de dentro, o bodum azedo que ela punha de si, fez uma careta de nojo e
encaminhou-se resolutamente para a casa da mulata, em cuja porta bateu
devagarinho.
Rita, essa noite, recolhera-se aflita e assustada. Deixara de ir ter com o
amante e mais tarde admirava-se como fizera semelhante imprudência; como
tivera coragem de pôr em prática, justamente no momento mais perigoso, uma
coisa que ela, até ai, não se sentira com animo de praticar. No intimo respeitava
o capoeira; tinha-lhe medo. Amara-o a principio por afinidade de temperamento,
pela irresistível conexão do instinto luxurioso e canalha que predominava em
ambos, depois continuou a estar com ele por hábito, por uma espécie de vicio
que amaldiçoamos sem poder largá-lo; mas desde que Jerônimo propendeu para
ela, fascinando-a com a sua tranqüila seriedade de animal bom e forte, o sangue
da mestiça reclamou os seus direitos de apuração, e Rita preferiu no europeu o
macho de raça superior. O cavouqueiro, pelo seu lado, cedendo às imposições
mesológicas, enfarava a esposa, sua congênere, e queria a mulata, porque a
mulata era o prazer, era a volúpia, era o fruto dourado e acre destes sertões
americanos, onde a alma de Jerônimo aprendeu lascívias de macaco e onde seu
corpo porejou o cheiro sensual dos bodes.
Amavam-se brutalmente, e ambos sabiam disso. Esse amor irracional e
empírico carregara-se muito mais, de parte a parte, com o trágico incidente da
luta, em que o português fora vitima Jerônimo aureolou-se aos olhos dela com
uma simpatia de mártir sacrificado à mulher que ama; cresceu com aquela
navalhada; iluminou-se com o seu próprio sangue derramado, e, depois, a
ausência no hospital veio a completar a cristalização do seu prestigio, como se o
cavouqueiro houvera baixado a uma sepultura, arrastando atrás de si a saudade
dos que o choravam.
Entretanto, o mesmo fenômeno se operava no espírito de Jerônimo com
relação à Rita: arriscar espontaneamente a vida por alguém é aceitar um
compromisso de ternura, em que empenhamos alma e coração; a mulher por
quem fazemos tamanho sacrifício, sela ela quem for assume de um só vôo em
nossa fantasia as proporções de um ideal. O desterrado, à primeira troca de
olhares com a baiana, amou-a logo, porque sentiu nela o resumo de todos os
quentes mistérios que os enlearam voluptuosamente nestas terras da luxúria;
amou-a muito mais quando teve ocasião de jogar a existência por esse amor, e
amou-a loucamente durante a triste e dolorosa solidão da enfermaria, em que os
seus gemidos e suspiros eram todos para ela.
A mulata bem que o compreendeu, mas não teve animo de confessar-lhe que
também morria de amores por ele; receou prejudicá-lo. Agora, com aquela
loucura de faltar à entrevista justamente no dia em que Jerônimo voltava à
estalagem, a situação parecia-lhe muito melindrosa. Firmo, desesperado com a
ausência dela, embebedava-se naturalmente e vinha ao cortiço provocar o
cavouqueiro; a briga rebentaria de novo, fatal para um dos dois, se é que não
seria para ambos. Do que ela sentira pelo navalhista persistia agora apenas o
medo, não como ele era dantes, indeterminado e frouxo, mas ao contrário,
sobressaltado, nervoso, cheio de apreensões que a punham aflita. Firmo já não
lhe aparecia no espírito como um amante ciumento e perigoso, mas como um
simples facínora, armado de uma velha navalha desleal e homicida. O seu medo
transformava-se em uma mistura de asco e terror. E sem achar sossego na cama,
deixava-se atordoar pelos seus pressentimentos, quando ouviu bater na porta.
— É ele! disse, com o coração a saltar.
E via já defronte de si o Firmo, bêbado, a reclamar o Jerônimo aos berros,
para esfaqueá-lo ali mesmo. Não respondeu ao primeiro chamado; ficou
escutando.
Depois de uma pausa bateram de novo.
Ela estranhou o modo pelo qual batiam. Não era natural que o facínora
procedesse com tanta prudência. Ergueu-se, foi a janela, abriu uma das folhas e
espreitou pelas rótulas.
— Quem está ai?... perguntou a meia voz.
— Sou eu... disse Jerônimo, chegando-se.
Reconheceu-o logo e correu a abrir.
— Como?! É você, Jeromo?
— Chit! fez ele, pondo o dedo na boca. Fala baixo.
Rita começou a tremer: no olhar do português, nas suas mãos encardidas de
sangue, no seu todo de homem ébrio, encharcado e sujo, havia uma terrível
expressão de crime.
— Donde vens tu?... segredou ela.
— De cuidar da nossa vida... Ai tens a navalha com que fui ferido!
E atirou-lhe sobre a mesa a navalha de Firmo, que a mulata conhecia como
as palmas da mão.
— E ele?
— Está morto.
— Quem o matou?
— Eu.
Calaram-se ambos.
— Agora... acrescentou o cavouqueiro, no fim de um silêncio arquejado por
ambos; estou disposto a tudo para ficar contigo. Sairemos os dois daqui para
onde melhor for... Que dizes tu?
— E tua mulher?...
— Deixo-lhe as minhas economias de muito tempo e continuarei a pagar o
colégio à pequena. Sei que não devia abandoná-la, mas podes ter como certo
que, ainda que não queiras vir comigo, não ficarei com ela! Não sei! já não a
posso suportar! Um homem enfara-se! Felizmente minha caixa de roupa está
ainda na Ordem e posso ir buscá-la pela manhã.
— E para onde iremos?
— O que não falta é p’r’onde ir! Em qualquer parte estaremos bem. Tenho
aqui sobre mim uns quinhentos mil-réis, para as primeiras despesas. Posso ficar
cá até às cinco horas; são duas e meia; saio sem ser visto por Piedade; mando-te
ao depois dizer o que arranjei, e tu irás ter comigo... Está dito? Queres?
Rita, em resposta, atirou-se ao pescoço dele e pendurou-se-lhe nos lábios,
devorando-o de beijos.
Aquele novo sacrifício do português; aquela dedicação extrema que o
levava a arremessar para o lado família, dignidade, futuro, tudo, tudo por ela,
entusiasmou-a loucamente. Depois dos sobressaltos desse dia e dessa noite, seus
nervos estavam afiados e toda ela elétrica.
Ah! não se tinha enganado! Aquele homenzarrão hercúleo, de músculos de
touro, era capaz de todas as meiguices do carinho.
— Então? insistiu ele.
— Sim, sim, meu cativeiro! respondeu a baiana, falando-lhe na boca; eu
quero ir contigo; quero ser a tua mulata, o bem do teu coração! Tu és os meus
feitiços! — E apalpando-lhe o corpo:— Mas como estas ensopado! Espera!
espera! o que não falta aqui e roupa de homem pra mudar!... Podias ter uma
recaída, cruzes! Tira tudo isso que está alagado! Eu vou acender o fogareiro e
estende-se em cima o que é casimira, para te poderes vestir às cinco horas. Tira
as botas! Olha o chapéu como está! Tudo isto seca! Tudo isto seca! Mira, toma
já um gole de parati p’r’atalhar a friagem! Depois passa em todo o corpo! Eu
vou fazer café!
Jerônimo bebeu um bom trago de parati, mudou de roupa e deitou-se na
cama de Rita.
— Vem pra cá... disse, um pouco rouco.
— Espera! espera! O café está quase pronto!
E ela só foi ter com ele, levando-lhe a chávena fumegante da perfumosa
bebida que tinha sido a mensageira dos seus amores; assentou-se ao rebordo da
cama e, segurando com uma das mãos o pires, e com a outra a xícara, ajudava-o
a beber, gole por gole, enquanto seus olhos o acarinhavam, cintilantes de
impaciência no antegozo daquele primeiro enlace.
Depois, atirou fora a saia e, só de camisa, lançou-se contra o seu amado,
num frenesi de desejo doido.
Jerônimo, ao senti-la inteira nos seus braços; ao sentir na sua pele a carne
quente daquela brasileira; ao sentir inundar-lhe o rosto e as espáduas, num
eflúvio de baunilha e cumaru, a onda negra e fria da cabeleira da mulata; ao
sentir esmagarem-se no seu largo e pelado colo de cavouqueiro os dois globos
túmidos e macios, e nas suas coxas as coxas dela; sua alma derreteu-se, fervendo
e borbulhando como um metal ao fogo, e saiu-lhe pela boca, pelos olhos, por
todos os poros do corpo, escandescente, em brasa, queimando-lhe as próprias
carnes e arrancando-lhe gemidos surdos, soluços irreprimíveis, que lhe sacudiam
os membros, fibra por fibra, numa agonia extrema, sobrenatural, uma agonia de
anjos violentados por diabos, entre a vermelhidão cruenta das labaredas do
inferno.
E com um arranco de besta-fera caíram ambos prostrados, arquejando. Ela
tinha a boca aberta, a língua fora, os braços duros, os dedos inteiriçados, e o
corpo todo a tremer-lhe da cabeça aos pés, continuamente, como se estivesse
morrendo; ao passo que ele, de súbito arremessado longe da vida por aquela
explosão inesperada dos seus sentidos, deixava-se mergulhar numa embriaguez
deliciosa, através da qual o mundo inteiro e todo o seu passado fugiam como
sombras fátuas. E, sem consciência de nada que o cercava, nem memória de si
próprio, sem olhos, sem tino, sem ouvidos, apenas conservava em todo o seu ser
uma impressão bem clara, viva, inextinguível: o atrito daquela carne quente e
palpitante, que ele em delírio apertou contra o corpo, e que ele ainda sentia
latejar-lhe debaixo das mãos, e que ele continuava a comprimir maquinalmente,
como a criança que, já dormindo, afaga ainda as tetas em que matou ao mesmo
tempo a fome e a sede com que veio ao mundo.
XVI
A essas horas Piedade de Jesus ainda esperava pelo marido.
Ouvira, assentada impaciente à porta de sua casa, darem oito horas, oito e
meia; nove, nove e meia. "Que teria acontecido, Mãe Santíssima?... Pois o
homem ainda não estava pronto de todo e punha-se ao fresco, mal engolira o
jantar, para demorar-se daquele modo?... Ele que nunca fora capaz de
semelhantes tonteiras!..."
— Dez horas! Valha-me Nosso Senhor Jesus Cristo!
Foi até o portão da estalagem, perguntou a conhecidos que passavam se
tinham visto Jerônimo; ninguém dava noticias dele. Saiu, correu à esquina da
rua; um silêncio de cansaço bocejava naquele resto de domingo; às dez e meia
recolheu-se sobressaltada, com o coração a sair-lhe pela garganta, o ouvido
alerta, para que ela acudisse ao primeiro toque na porta; deitou-se sem tirar a
saia, nem apagar de todo o candeeiro. A ceia frugal de leite fervido e queijo
assado com açúcar e manteiga ficou intacta sobre a mesa.
Não conseguiu dormir: trabalhava-lhe a cabeça, afastando para longe o
sono. Começou a imaginar perigos, rolos, em que o seu homem recebia novas
navalhadas; Firmo figurava em todas as cenas do delírio; em todas elas havia
sangue. Afinal, quando, depois de muito virar de um para outro lado do colchão,
a infeliz ia caindo em modorra, o mais leve rumor lá fora a fazia erguer-se de
pulo e correr à rótula da janela. Mas não era o cavouqueiro, da primeira, nem da
segunda, nem de nenhuma das vezes.
Quando principiou a chover, Piedade ficou ainda mais aflita; na sua
sobreexcitação afigurava-se-lhe agora que o marido estava sobre as águas do
mar, embarcado, entregue unicamente à proteção da Virgem, em meio de um
temporal medonho. Ajoelhou-se defronte do oratório e rezou com a voz
emaranhada por uma agonia sufocadora. A cada trovão redobrava o seu
sobressalto. E ela, de joelhos, os olhos fitos na imagem de Nossa Senhora, sem
consciência do tempo que corria, arfava soluçando. De repente, ergueu-se, muito
admirada de se ver sozinha, como se só naquele instante dera pela falta do
marido a seu lado. Olhou em torno de si, espavorida, com vontade de chorar, de
pedir socorro; as sombras espichadas em volta do candeeiro, tracejando trêmulas
pelas paredes e pelo teto, pareciam querer dizer-lhe alguma coisa misteriosa.
Um par de calças, dependurado à porta do quarto, com um paletó e um chapéu
por cima, representou-lhe de relance o vulto de um enforcado, a mexer com as
pernas. Benzeu-se. Quis saber que horas eram e não pôde; afigurava-se-lhe
terem decorrido já três dias pelo menos durante aquela aflição. Calculou que não
tardaria a amanhecer, se é que ainda amanheceria: se é que aquela noite infernal
não se fosse prolongando infinitamente, sem nunca mais aparecer o sol! Bebeu
um copo d’água, bem cheio, apesar de haver pouco antes tomado outro, e ficou
imóvel, de ouvido atento, na expectativa de escutar as horas de algum relógio da
vizinhança.
A chuva diminuíra e os ventos principiavam a soprar com desespero. Lá de
fora a noite dizia-lhe segredos pelo buraco da fechadura e pelas frinchas do
telhado e das portas; a cada assobio a mísera julgava ver surgir um espectro que
vinha contar-lhe a morte de Jerônimo. O desejo impaciente de saber que horas
eram punha-a doida: foi à janela, abriu-a; uma rajada úmida entrou na sala,
esfuziando, e apagou a luz. Piedade soltou um grito e começou a procurar a
caixa de fósforos, aos esbarrões, sem conseguir reconhecer os objetos que
tateava. Esteve a perder os sentidos; afinal achou os fósforos, acendeu de novo o
candeeiro e fechou a janela. Entrara-lhe um pouco de chuva em casa; sentiu a
roupa molhada no corpo; tomou um novo copo d’água; um calafrio de febre
percorreu-lhe a espinha, e ela atirou-se para a cama, batendo o queixo, e
meteu-se debaixo dos lençóis, a tiritar de febre. Veio de novo a modorra, fechou
os olhos; mas ergueu-se logo, assentando-se no colchão; parecia-lhe ter ouvido
alguém falar lá fora, na rua; o calafrio voltou; ela, trêmula, procurava escutar. Se
se não enganava, distinguira vozes abafadas, conversando, e as vozes eram de
homem; deixou-se ficar à escuta, concheando a mão atrás da orelha; depois
ouviu baterem, não na sua porta, mas lá muito mais para diante, na casa da das
Dores, da Rita, ou da Augusta. "Devia ser o Alexandre que voltava do serviço..."
Quis ir ter com ele e pedir-lhe notícias de Jerôrimo, o calafrio, porém, obrigou-a
a ficar debaixo das cobertas.
Às cinco horas levantou-se de novo com um salto. "Já havia gente lá fora
com certeza!..." Ouvira ranger a primeira porta; abriu a janela, mas ainda estava
tão escuro que se não distinguia patavina. Era uma preguiçosa madrugada de
agosto, nebulosa, úmida; parecia disposta a resistir ao dia. "O senhores! aquela
noite dos diachos não acabaria nunca mais?..." Entretanto, adivinhava-se que ia
amanhecer. Piedade ouviu dentro do pátio, do lado contrário à sua casa, um
zunzum de duas vozes cochichando com interesse. "Virgem do céu! dir-se-ia a
voz do seu homem! e a outra era voz de mulher, credo! Ilusão sua com certeza!
ela essa noite estava para ouvir o que não se dava..." Mas aqueles cochichos
dialogados na escuridão causavam-lhe extremo alvoroço. "Não! Como poderia
ser ele?... Que loucura! se o homem estivesse ali teria sem dúvida procurado a
casa!..." E os cochichos persistiam, enquanto Piedade, toda ouvidos, estalava de
agonia.
— Jeromo! gritou ela.
As vozes calaram-se logo, fazendo o silêncio completo: depois nada mais se
ouviu.
Piedade ficou à janela. As trevas dissolveram-se afinal; uma claridade triste
formou-se no nascente e foi, a pouco e pouco, se derramando pelo espaço. O céu
era uma argamassa cinzenta e gorda. O cortiço acordava com o remancho das
segundas-feiras; ouviam-se os pigarros das ressacas de parati. As casinhas
abriam-se; vultos espreguiçados vinham bocejando fazer a sua lavagem à bica;
as chaminés principiavam a fumegar; recendia o cheiro do café torrado.
Piedade atirou um xale em cima dos ombros e saiu ao pátio; a Machona, que
acabava de aparecer à porta do número 7 com um berro para acordar a família
de uma só vez, gritou-lhe:
— Bons dias, vizinha! Seu marido como vai? melhor?
Piedade soltou um suspiro.
— Ai, não mo pergunte, S’ora Leandra!
— Piorou, filha?
— Não veio esta noite pra casa...
— Olha o demo! Como não veio? Onde ficou ele então?
— Cá está quem não lho sabe responder.
— Ora já se viu?!
— Estou com o miolo que é água de bacalhau! Não preguei olho durante a
noite! Forte desgraça a minha!
— Teria a ele lhe sucedido alguma?...
Piedade pôs-se a soluçar, enxugando as lágrimas no xale de lã; ao passo que
a outra, com a sua voz rouca e forte, que nem o som de uma trompa enferrujada,
passava adiante a nova de que o Jerônimo não se recolhera aquela noite à
estalagem.
— Talvez voltasse pro hospital... obtemperou Augusta, que lavava junto a
uma tina a gaiola do seu papagaio.
— Mas ele ontem veio de muda... contrapôs Leandra.
— E lá não se entra depois das oito horas da noite, acrescentou outra
lavadeira.
E os comentários multiplicavam-se, palpitando de todos os lados, numa boa
disposição para fazer daquilo o escândalo do dia. Piedade respondia friamente às
perguntas curiosas que lhe dirigiam as companheiras; estava triste e sucumbida;
não se lavou, não mudou de roupa, não comeu nada, porque a comida lhe crescia
na boca e não lhe passava da garganta; o que fazia só era chorar e lamentar-se.
— Forte desgraça a minha! repetia a infeliz a cada instante.
— Se vais assim, filha, estás bem arranjada! exclamou-lhe a Machona,
chegando à porta de sua casa a dar dentadas num pão recheado de manteiga.
Que diabo, criatura! O homem não te morreu, pra estares agora ai a carpir desse
modo!
— Sei-o eu lá se me morreu?... disse Piedade entre soluços. Vi tanta coisa
esta noite!...
— Ele te apareceu nos sonhos?... perguntou Leandra com assombro.
— Nos sonhos não, que não dormi, mas vi a modos que fantasmas...
E chorava.
— Ai, credo, filha!
— Estou desgraçada!
— Se te apareceram almas, decerto; mas põe a fé em Deus, mulher! e não te
rales desse modo, que a desgraça pode ser maior! O choro puxa muita coisa!
— Ai, o meu rico homem!
E o mugido lúgubre daquela pobre criatura abandonada antepunha à rude
agitação do cortiço uma nota lamentosa e tristonha de uma vaca chamando ao
longe, perdida ao cair da noite num lagar desconhecido e agreste. Mas o trabalho
aquecia já de uma ponta à outra da estalagem; ria-se, cantava-se, soltava-se a
língua; o formigueiro assanhava-se com as compras para o almoço; os
mercadores entravam e saiam: a máquina de massas principiava a bufar. E
Piedade, assentada à soleira de sua porta, paciente e ululante como um cão que
espera pelo dono, maldizia a hora em que saíra da sua terra, e parecia disposta a
morrer ali mesmo, naquele limiar de granito, onde ela, tantas vezes, com a
cabeça encostada ao ombro do seu homem, suspirava feliz, ouvindo gemer na
guitarra dele os queridos fados de além-mar.
E Jerônimo não aparecia.
Ela ergueu-se finalmente, foi lá fora ao capinzal, pôs-se a andar agitada,
falando sozinha, a gesticular forte. E nos seus movimentos de desespero, quando
levantava para o céu os punhos fechados, dir-se-ia que não era contra o marido
que se revoltava, mas sim contra aquela amaldiçoada luz alucinadora, contra
aquele sol crapuloso, que fazia ferver o sangue aos homens e metia-lhes no
corpo luxúrias de bode. Parecia rebelar-se contra aquela natureza alcoviteira,
que lhe roubara o seu homem para dá-lo a outra, porque a outra era gente do seu
peito e ela não.
E maldizia soluçando a hora em que saíra da sua terra; essa boa terra
cansada, velha como que enferma; essa boa terra tranqüila, sem sobressaltos
nem desvarios de juventude. Sim, lá os campos eram frios e melancólicos, de
um verde alourado e quieto, e não ardentes e esmeraldinos e afogados em tanto
sol e em tanto perfume como o deste inferno, onde em cada folha que se pisa há
debaixo um réptil venenoso, como em cada flor que desabotoa e em cada
moscardo que adeja há um vírus de lascívia. Lá, nos saudosos campos da sua
terra, não se ouvia em noites de lua clara roncar a onça e o maracajá, nem pela
manhã, ao romper do dia, rilhava o bando truculento das queixadas; lá não
varava pelas florestas a anta feia e terrível, quebrando árvores; lá a sucuruju não
chocalhava a sua campainha fúnebre, anunciando a morte, nem a coral esperava
traidora o viajante descuidado para lhe dar o bote certeiro e decisivo; lá o seu
homem não seria anavalhado pelo ciúme de um capoeira; lá Jerônimo seria
ainda o mesmo esposo casto, silencioso e meigo; seria o mesmo lavrador triste e
contemplativo, como o gado que à tarde levanta para o céu de opala o seu olhar
humilde, compungido e bíblico.
Maldita a hora em que ela veio! Maldita! mil vezes maldita!
E tornando à casa, Piedade ainda mais se enraivecia, porque ali defronte, no
número 9, a mulata baiana, a dançadeira de chorado, a cobra assanhada, cantava
alegremente, chegando de vez em quando à janela para vir soprar fora a cinza da
fornalha do seu ferro de engomar, olhando de passagem para a direita e para a
esquerda, a afetar indiferença pelo que não era de sua conta, e desaparecendo
logo, sem interromper a cantiga, muito embebida no seu serviço. Ah! essa não
fez comentários sobre o estranho procedimento de mestre Jerônimo, nem mesmo
quis ouvir noticias dele; pouco arredou o pé de dentro de casa e, nesse pouco
que saiu, foi às pressas e sem dar trela a ninguém.
Nada! que as penas e desgostos não punham a panela no fogo!
Entretanto, ah! ah! ela estava bem preocupada. Apesar do alívio que lhe
trouxera ao espírito a morte do Firmo e a despeito do seu contentamento de
passar por uma vez aos braços do cavouqueiro, um sobressalto vago e opressivo
esmagava-lhe o coração e matava-a de impaciência por atirar-se à procura de
noticias sobre as ocorrências da noite; tanto assim que, às onze horas, mel
percebeu que Piedade, depois de esperar em vão pelo marido, saia aflita em
busca dele, disposta a ir ao hospital, à polícia, ao necrotério, ao diabo, contanto
que não voltasse sem algum esclarecimento, ela atirou logo o trabalho p’ro
canto, enfiou uma saia, cruzou o xale no ombro, e ganhou o mundo, também
disposta a não voltar sem saber tintim por tintim o que havia de novo.
Foi cada uma para seu lado e só voltaram à tarde, quase ao mesmo tempo,
encontrando o cortiço cheio já e assanhado com a noticia da morte do Firmo e
do terrível efeito que esta causara no "Cabeça-de-Gato", onde o crime era
atribuído aos carapicus, contra os quais juravam-se extremas vinganças de
desafronta. Soprava de lá, rosnando, um hálito morno de cólera malsofrida e
sequiosa que crescia com a aproximação da noite e parecia sacudir no ar,
ameaçadoramente, a irrequieta flâmula amarela.
O sol descambava para o ocaso, indefeso, e nu, tingindo o céu de uma
vermelhidão pressaga e sinistra.
Piedade entrou carrancuda na estalagem; não vinha triste, vinha enfurecida;
soubera na rua a respeito do marido mais do que esperava. Soubera em primeiro
lugar que ele estava vivo, perfeitamente vivo, pois fora visto aquele mesmo dia,
mais de uma vez, no Garnisé e na Praia da Saudade, a vagar macambúzio;
soubera, por intermédio de um rondante amigo de Alexandre, que Jerônimo
surgira de manhãzinha do capinzal perto da pedreira de João Romão, o que fazia
crer viesse ele naquele momento de casa, saindo pelos fundos do cortiço;
soubera ainda que o cavouqueiro fora à Ordem buscar a sua caixa de roupa e
que, na véspera, estivera a beber à farta na venda do Pepé, de súcia com o Zé
Carlos e com o Pataca, e que depois seguiram para os lados da praia, todos três
mais ou menos no gole. Sem a menor desconfiança do crime, a desgraçada ficou
convencida de que o marido não se recolhera aquela noite à casa, porque ficara
em grossa pândega com os amigos e que, voltando tarde e bêbedo, dera-lhe para
meter-se com a mulata, que o aceitou logo. "Pudera! Pois se havia muito a
deslambida não queria outra coisa!..." Com esta convicção inchou-lhe de súbito
por dentro um novelo de ciúmes, e ela correu incontinenti para a estalagem,
certa de que iria encontrar o homem e despejaria contra ele aquela tremenda
tempestade de ressentimentos e despeitos acumulados, que ameaçavam
sufocá-la se não rebentassem de vez. Atravessou o cortiço sem dar palavra a
ninguém e foi direito à casa; contava encontrá-la aberta e a sua decepção foi
cruel ao vê-la fechada como a deixara. Pediu a chave à Machona, que, ao
entregá-la, inquiriu sobre Jerônimo e pespegou-lhe ao mesmo tempo a noticia do
assassinato de Firmo.
Com esta nova é que Piedade não contava. Ficou lívida; um pavoroso
pressentimento varou-lhe o espírito como um raio. Afastou-se logo, com medo
de falar, e foi trêmula e ofegante que abriu a porta e meteu-se no número 35.
Atirou-se a uma cadeira. Estava morta de cansaço; não tinha comido nada
esse dia e não sentia fome; a cabeça andava-lhe à roda, as pernas pareciam-lhe
de chumbo.
Seria ele?!... interrogou a si própria.
E os raciocínios começaram a surdir-lhe em massa, ensarilhados,
atropelando-lhe a razão. Não conseguia coordená-los; entre todas uma idéia
insubordinava-se com mais teima, a perturbar as outras, ficando superior, como
uma carta maior que o resto do baralho: "Se ele matou o Firmo, dormiu na
estalagem e não veio ter comigo, é porque então deixou-me de feita pela Rita!"
Tentou fugir a semelhante hipótese; repeliu-a indignada. Não! não era
possível que o Jerônimo, seu marido de tanto tempo, o pai de sua filha, um
homem a quem ela nunca dera razão de queixa e a quem sempre respeitara e
quisera com o mesmo carinho e com a mesma dedicação, a abandonasse de um
momento para outro; e por quem?! por uma não-sei-que-diga! um diabo de uma
mulata assanhada, que tão depressa era de Pedro como de Paulo! uma sirigaita,
que vivia mais para a folia do que para o trabalho! uma peste, que... Não! Qual!
Era lá possível?! Mas então por que ele não viera?... por que não vinha?... por
que não dava noticias suas?... por que fora pela manhã à Ordem buscar a caixa
da roupa?...
O Roberto Papa-Defuntos dissera-lhe que o encontrara às duas da tarde ali
perto, ao dobrar da Rua Bambina, e que até pararam um instante para conversar.
Com mais alguns passos chegado à casa! Seria possível, santos do céu! que o
seu homem estivesse disposto a nunca mais tornar para junto dela?
Nisto entrou a outra, acompanhada por um pequeno descalço. Vinha
satisfeita; estivera com Jerônimo, jantaram juntos, numa casa de pasto; ficara
tudo combinado; arranjara-se o ninho. Não se mudaria logo para não dar que
falar na estalagem, mas levaria alguma roupa e os objetos mais indispensáveis e
que não dessem na vista por ocasião do transporte. Voltaria no dia seguinte ao
cortiço, onde continuaria a trabalhar; à noite iria ter com o novo amante, e, no
fim de uma semana — zás! fazia-se a mudança completa, e adeus coração! —
Por aqui é o caminho! O cavouqueiro, pelo seu lado, mandaria uma carta a João
Romão, despedindo-se do seu serviço, e outra à mulher, dizendo com boas
palavras que, por uma dessas fatalidades de que nenhuma criatura está livre,
deixava de viver em companhia dela, mas que lhe conservaria a mesma estima e
continuaria a pagar o colégio da filha; e, feito isto, pronto! entraria em vida
nova, senhor da sua mulata, livres e sozinhos, independentes, vivendo um para o
outro, numa eterna embriaguez de gozos.
Mas, na ocasião em que a baiana, seguida pelo pequeno, passava defronte
da porta de Piedade, esta deu um salto da cadeira e gritou-lhe:
— Faz favor?
— Que é? resmungou Rita, parando sem voltar senão o rosto, e já a dizer no
seu todo de impaciência que não estava disposta a muita conversa.
— Diga-me uma coisa, inquiriu aquela; você muda-se?
A mulata não contava com semelhante pergunta, assim à queima-roupa;
ficou calada sem achar o que responder.
— Muda-se, não é verdade? insistiu a outra, fazendo-se vermelha.
— E o que tem você com isso? Mude-me ou não, não lhe tenho de dar
satisfações! Meta-se com a sua vida! Ora esta!
— Com a minha vida é que te meteste tu, cigana! exclamou a portuguesa,
sem se conter e avançando para a porta com ímpeto.
— Hein?! Repete, cutruca ordinária! berrou a mulata, dando um passo em
frente.
— Pensas que já não sei de tudo? Maleficiaste-me o homem e agora
carregas-me com ele! Que a má coisa te saiba, cabra do inferno! Mas deixa estar
que hás de amargar o que o diabo não quis! quem to jura sou eu!
— Pula cá pra fora, perua choca, se és capaz!
Em torno de Rita já o povaréu se reunia alvoroçado; as lavadeiras deixaram
logo as tinas e vinham, com os braços nus, cheios de espuma de sabão,
estacionar ali ao pé, formando roda, silenciosas, sem nenhuma delas querer
meter-se no barulho. Os homens riam e atiravam chufas às duas contendoras,
como sucedia sempre quando no cortiço qualquer mulher se disputava com
outra.
— Isca! Isca! gritavam eles.
Ao desafio da mulata, Piedade saltara ao pátio, armada com um dos seus
tamancos. Uma pedrada recebeu-a em caminho, rachando-lhe a pele do queixo,
ao que ela respondeu desfechando contra a adversária uma formidável pancada
na cabeça.
E pegaram-se logo a unhas e dentes.
Por algum tempo lutaram de pé, engalfinhadas, no meio de grande algazarra
dos circunstantes. João Romão acudiu e quis separá-las; todos protestaram. A
família do Miranda assomou à janela, tomando ainda o café de depois do jantar,
indiferente, já habituada àquelas cenas. Dois partidos todavia se formavam em
torno das lutadoras; quase todos os brasileiros eram pela Rita e quase todos os
portugueses pela outra. Discutia-se com febre a superioridade de cada qual
delas; rebentavam gritos de entusiasmo a cada mossa que qualquer das duas
recebia; e estas, sem se desunharem, tinham já arranhões e mordeduras por todo
o busto.
Quando menos se esperava, ouviu-se um baque pesado e viu-se Piedade de
bruços no chão e a Rita por cima, escarranchada sobre as suas largas ancas, a
socar-lhe o cachaço de murros contínuos, desgrenhada, rota, ofegante, os
cabelos caldos sobre a cara, gritando vitoriosa, com a boca correndo sangue:
— Toma pro teu tabaco! Toma, galinha podre! Toma, pra não te meteres
comigo! Toma! Toma, baiacu da praia!
Os portugueses precipitaram-se para tirar Piedade de debaixo da mulata. Os
brasileiros opuseram-se ferozmente.
— Não pode!
— Enche!
— Não deixa!
— Não tira!
— Entra! Entra!
E as palavras "galego" e "cabra" cruzaram-se de todos os pontos, como
bofetadas. Houve um vavau rápido e surdo, e logo em seguida um formidável
rolo, um rolo a valer, não mais de duas mulheres, mas de uns quarenta e tantos
homens de pulso, rebentou como um terremoto. As cercas e os jiraus
desapareceram do chão e estilhaçaram-se no ar, estalando em descarga; ao passo
que numa berraria infernal, num fecha-fecha de formigueiro em guerra, aquela
onda viva ia arrastando o que topava no caminho; barracas e tinas, baldes,
regadores e caixões de planta, tudo rolava entre aquela centena de pernas
confundidas e doidas. Das janelas do Miranda apitava-se com fúria; da rua, em
todo o quarteirão, novos apitos respondiam; dos fundos do cortiço e pela frente
surgia povo e mais povo. O pátio estava quase cheio; ninguém mais se entendia;
todos davam e todos apanhavam; mulheres e crianças berravam. João Romão,
clamando furioso, sentia-se impotente para conter semelhantes demônios. "Fazer
rolo aquela hora, que imprudência!" Não conseguiu fechar as portas da venda,
nem o portão da estalagem; guardou às pressas na barra o que havia em dinheiro
na gaveta, e, armando-se com uma tranca de ferro, pôs-se de sentinela às
prateleiras, disposto a abrir o casco ao primeiro que se animasse a saltar-lhe o
balcão. Bertoleza, lá dentro na cozinha, aprontava uma grande chaleira de água
quente, para defender com ela a propriedade do seu homem. E o rolo a ferver lá
fora, cada vez mais inflamado com um terrível sopro de rivalidade nacional.
Ouviam-se, num clamor de pragas e gemidos, vivas a Portugal e vivas ao Brasil.
De vez em quando, o povaréu, que continuava a crescer, afastava-se em massa,
rugindo de medo, mas tornava logo, como a onda no refluxo dos mares. A
polícia apareceu e não se achou com animo de entrar, antes de vir um reforço de
praças, que um permanente fora buscar a galope.
E o rolo fervia.
Mas, no melhor da lata, ouvia-se na rua um coro de vozes que se
aproximavam das bandas do "Cabeça-de-Gato". Era o canto de guerra dos
capoeiras do outro cortiço, que vinham dar batalha aos carapicus, pra vingar
com sangue a morte de Firmo, seu chefe de malta.
XVII
Mal os carapicus sentiram a aproximação dos rivais, um grito de alarma
ecoou por toda a estalagem e o rolo dissolveu-se de improviso, sem que a
desordem cessasse. Cada qual correu à casa, rapidamente, em busca do ferro, do
pau e de tudo que servisse para resistir e para matar. Um só impulso os impelia a
todos; já não havia ali brasileiros e portugueses, havia um só partido que ia ser
atacado pelo partido contrário; os que se batiam ainda há pouco emprestavam
armas uns aos outros, limpando com as costas das mãos o sangue das feridas.
Agostinho, encostado ao lampião do meio do cortiço, cantava em altos berros
uma coisa que lhe parecia responder à música bárbara que entoavam lá fora os
inimigos; a mãe dera-lhe licença, a pedido dele, para pôr um cinto de Nenen, em
que o pequeno enfiou a faca da cozinha. Um mulatinho franzino, que até ai não
fora notado por ninguém no São Romão, postou-se defronte da entrada, de mãos
limpas, à espera dos invasores; e todos tiveram confiança nele porque o ladrão,
além de tudo, estava rindo.
Os cabeças-de-gato assomaram afinal ao portão. Uns cem homens, em que
se não via a arma que traziam. Porfiro vinha na frente, a dançar, de braços
abertos, bamboleando o corpo e dando rasteiras para que ninguém lhe estorvasse
a entrada. Trazia o chapéu à ré, com um laço de fita amarela flutuando na copa.
— Agüenta! Agüenta! Faz frente! clamavam de dentro os carapicus.
E os outros, cantando o seu hino de guerra, entraram e aproximaram-se
lentamente, a dançar como selvagens.
As navalhas traziam-nas abertas e escondidas na palma da mão.
Os carapicus enchiam a metade do cortiço. Um silêncio arquejado sucedia à
estrepitosa vozeria do rolo que findara. Sentia-se o hausto impaciente da
ferocidade que atirava aqueles dois bandos de capoeiras um contra o outro. E, no
entanto, o sol, único causador de tudo aquilo, desaparecia de todo nos limbos do
horizonte, indiferente, deixando atrás de si as melancolias do crepúsculo, que é a
saudade da terra quando ele se ausenta, levando consigo a alegria da luz e do
calor.
Lá na janela do Barão, o Botelho, entusiasmado como sempre por tudo que
lhe cheirava a guerra, soltava gritos de aplauso e dava brados de comando
militar.
E os cabeças-de-gato aproximavam-se cantando, a dançar, rastejando alguns
de costas para o chão, firmados nos pulsos e nos calcanhares.
Dez carapicus saíram em frente; dez cabeças-de-gato se alinharam defronte
deles.
E a batalha principiou, não mais desordenada e cega, porém com método,
sob o comando de Porfiro que, sempre a cantar ou assoviar, saltava em todas as
direções, sem nunca ser alcançado por ninguém.
Desferiram-se navalhas contra navalhas, jogaram-se as cabeçadas e os
voa-pés. Par a par, todos os capoeiras tinham pela frente um adversário de igual
destreza que respondia a cada investida com um salto de gato ou uma queda
repentina que anulava o golpe. De parte a parte esperavam que o cansaço
desequilibrasse as forças, abrindo furo à vitória; mas um fato veio neutralizar
inda uma vez a campanha: imenso rebentão de fogo esgargalhava-se de uma das
casas do fundo, o número 88. E agora o incêndio era a valer.
Houve nas duas maltas um súbito espasmo de terror. Abaixaram-se os ferros
e calou-se o hino de morte. Um clarão tremendo ensangüentou o ar, que se
fechou logo de fumaça fulva.
A Bruxa conseguira afinal realizar o seu sonho de louca: o cortiço ia arder;
não haveria meio de reprimir aquele cruento devorar de labaredas. Os
cabeças-de-gato, leais nas suas justas de partido, abandonaram o campo, sem
voltar o rosto, desdenhosos de aceitar o auxilio de um sinistro e dispostos até a
socorrer o inimigo, se assim fosse preciso. E nenhum dos carapicus os feriu
pelas costas. A luta ficava para outra ocasião. E a cena transformou-se num
relance; os mesmos que barateavam tão facilmente a vida, apressavam-se agora
a salvar os miseráveis bens que possuíam sobre a terra. Fechou-se um entra-e-sai
de maribondos defronte daquelas cem casinhas ameaçadas pelo fogo. Homens e
mulheres corriam de cá para lá com os tarecos ao ombro, numa balbúrdia de
doidos. O pátio e a rua enchiam-se agora de camas velhas e colchões espocados.
Ninguém se conhecia naquela zumba de gritos sem nexo, e choro de crianças
esmagadas, e pragas arrancadas pela dor e pelo desespero. Da casa do Barão
saiam clamores apopléticos; ouviam-se os guinchos de Zulmira que se
espolinhava com um ataque. E começou a aparecer água. Quem a trouxe?
Ninguém sabia dizê-lo; mas viam-se baldes e baldes que se despejavam sobre as
chamas.
Os sinos da vizinhança começaram a badalar.
E tudo era um clamor.
A Bruxa surgiu à janela da sua casa, como à boca de uma fornalha acesa.
Estava horrível; nunca fora tão bruxa. O seu moreno trigueiro, de cabocla velha,
reluzia que nem metal em brasa; a sua crina preta, desgrenhada, escorrida e
abundante como as das éguas selvagens, dava-lhe um caráter fantástico de fúria
saída do inferno. E ela ria-se, ébria de satisfação, sem sentir as queimaduras e as
feridas, vitoriosa no meio daquela orgia de fogo, com que ultimamente vivia a
sonhar em segredo a sua alma extravagante de maluca.
Ia atirar-se cá para fora, quando se ouviu estalar o madeiramento da casa
incendiada, que abateu rapidamente, sepultando a louca num montão de brasas.
Os sinos continuavam a badalar aflitos. Surgiam aguadeiros com as suas
pipas em carroça, alvoroçados, fazendo cada qual maior empenho em chegar
antes dos outros e apanhar os dez mil-réis da gratificação. A polícia defendia a
passagem ao povo que queria entrar. A rua lá fora estava já atravancada com o
despojo de quase toda a estalagem. E as labaredas iam galopando desembestadas
para a direita e para a esquerda do número 88. Um papagaio, esquecido à parede
de uma das casinhas e preso à gaiola, gritava furioso, como se pedisse socorro.
Dentro de meia hora o cortiço tinha de ficar em cinzas. Mas um fragor de
repiques de campainhas e estridente silvar de válvulas encheu de súbito todo o
quarteirão, anunciando que chegava o corpo dos bombeiros.
E logo em seguida apontaram carros à desfilada, e um bando de demônios
de blusa clara, armados uns de archotes e outros de escadilhas de ferro,
apoderaram-se do sinistro, dominando-o incontinenti, como uma expedição
mágica, sem uma palavra, sem hesitações e sem atropelos. A um só tempo
viram-se fartas mangas d’água chicoteando o fogo por todos os lados; enquanto,
sem se saber como, homens, mais ágeis que macacos, escalavam os telhados
abrasados por escadas que mal se distinguiam; e outros invadiam o coração
vermelho do incêndio, a dardejar duchas em torno de si, rodando, saltando,
piruetando, até estrangularem as chamas que se atiravam ferozes para cima
deles, como dentro de um inferno; ao passo que outros, cá de fora,
imperturbáveis, com uma limpeza de máquina moderna, fuzilavam de água toda
a estalagem, número por número, resolvidos a não deixar uma só telha enxuta.
O povo aplaudia-os entusiasmado, já esquecido do desastre e só atenção
para aquele duelo contra o incêndio. Quando um bombeiro, de cima do telhado,
conseguiu sufocar uma ninhada de labaredas, que surgia defronte dele, rebentou
cá debaixo uma roda de palmas, e o herói voltou-se para a multidão, sorrindo e
agradecendo.
Algumas mulheres atiravam-lhe beijos, entre brados de ovação.
XVIII
Por esse tempo, o amigo de Bertoleza, notando que o velho Libório, depois
de escapar de morrer na confusão do incêndio, fugia agoniado para o seu
esconderijo, seguiu-o com disfarce e observou que o miserável, mal deu luz à
candeia, começou a tirar ofegante alguma coisa do seu colchão imundo.
Eram garrafas. Tirou a primeira, a segunda, meia dúzia delas. Depois puxou
às pressas a coberta do catre e fez uma trouxa. Ia de novo ganhar a saída, mas
soltou um gemido surdo e caiu no chão sem força, arrevessando uma golfada de
sangue e cingindo contra o peito o misterioso embrulho.
João Romão apareceu, e ele, assim que o viu, redobrou de aflição e
torceu-se todo sobre as garrafas, defendendo-as com o corpo inteiro, a olhar
aterrado e de esguelha para o seu interventor, como se dera cara a cara com um
bandido. E, a cada passo que o vendeiro adiantava, o tremor e o sobressalto do
velho recresciam, tirando-lhe da garganta grunhidos roucos de animal batido e
assustado. Duas vezes tentou erguer-se; duas vezes rolou por terra moribundo.
João Romão objurgou-lhe que qualquer demora ali seria morte certa: o incêndio
avançava. Quis ajudá-lo a carregar o fardo. Libório, por única resposta,
arregaçou os beiços, mostrando as gengivas sem dentes e tentando morder a mão
que o vendeiro estendia já sobre as garrafas.
Mas, lá de cima, a ponta de uma língua; de fogo varou o teto e iluminou de
vermelho a miserável pocilga. Libório tentou ainda um esforço supremo, e nada
pôde, começando a tremer da cabeça aos pés, a tremer, a tremer, grudando-se
cada vez mais à sua trouxa, e já estrebuchava, quando o vendeiro lha arrancou
das garras com violência. Também era tempo, porque, depois de insinuar a
língua; o fogo mostrou a boca e escancarou afinal a goela devoradora.
O tratante fugiu de carreira, abraçado à sua presa, enquanto o velho, sem
conseguir pôr-se de pé, rastreava na pista dele, dificultosamente, estrangulado de
desespero senil, já sem fala, rosnando uns vagidos de morte, os olhos turvos,
todo ele roxo, os dedos enriçados como as unhas de abutre ferido.
João Romão atravessou o pátio de carreira e meteu-se na sua toca para
esconder o furto. Ao primeiro exame, de relance, reconheceu logo que era
dinheiro em papel o que havia nas garrafas. Enterrou a trouxa na prateleira de
um armário velho cheio de frascos e voltou lá fora para acompanhar o serviço
dos bombeiros.
À meia-noite estava já completamente extinto o fogo e quatro sentinelas
rondavam a ruína das trinta e tantas casinhas que arderam. O vendeiro só pôde
voltar à trouxa das garrafas às cinco horas da manhã, quando Bertoleza, que
fizera prodígios contra o incêndio, passava pelo sono, encostada na cama, com a
saia ainda encharcada de água, o corpo cheio de pequenas queimaduras.
Verificou que as garrafas eram oito e estavam cheias até à boca de notas de
todos os valores, que ai foram metidas, uma a uma, depois de cuidadosamente
enroladas e dobradas à moda de bilhetes de rifa. Receoso, porém, de que a
crioula não estivesse bem adormecida e desse pela coisa, João Romão resolveu
adiar para mais tarde a contagem do dinheiro e guardou o tesouro noutro lugar
mais seguro.
No dia seguinte a polícia averiguou os destroços do incêndio e mandou
proceder logo ao desentulho, para retirar os cadáveres que houvesse.
Rita desaparecera da estalagem durante a confusão da noite; Piedade caíra
de cama, com um febrão de quarenta graus; a Machona tinha uma orelha
rachada e um pé torcido; a das Dores a cabeça partida; o Bruno levara uma
navalhada na coxa; dois trabalhadores da pedreira estavam gravemente feridos;
um italiano perdera dois dentes da frente, e uma filhinha da Augusta
Carne-Mole morrera esmagada pelo povo. E todos, todos se queixavam de danos
recebidos e revoltaram-se contra os rigores da sorte. O dia passou-se inteiro na
computação dos prejuízos e a dar-se balanço no que se salvara do incêndio.
Sentia-se um fartum aborrecido de estorrilho e cinza molhada. Um duro silêncio
de desconsolo embrutecia aquela pobre gente. Vultos sombrios, de mãos
cruzadas atrás, permaneciam horas esquecidas, a olhar imóveis os esqueletos
carbonizados e ainda úmidos das casinhas queimadas. Os cadáveres da Bruxa e
do Libório foram carregados para o meio do pátio, disformes, horrorosos, e
jaziam entre duas velas acesas, ao relento, à espera do carro da Misericórdia.
Entrava gente da rua para os ver; descobriam-se defronte deles, e alguns
curiosos lançavam piedosamente uma moeda de cobre no prato que, aos pés dos
dois defuntos, recebia a esmola para a mortalha. Em casa de Augusta, sobre uma
mesa coberta por uma cerimoniosa toalha de rendas, estava o cadaverzinho da
filha morta, todo enfeitado de flores, com um Cristo de latão à cabeceira e dois
círios que ardiam tristemente. Alexandre, assentado a um canto da sala, com o
rosto escondido nas mãos, chorava, aguardando o pêsame das visitas; fardara-se,
só para isso, com o seu melhor uniforme, coitado!
O enterro da pequenita foi feito à custa de Léonie, que apareceu às três da
tarde, vestida de cetineta cor de creme, num carrinho dirigido por um cocheiro
de calção de flanela branca e libré agaloada de ouro.
O Miranda apresentou-se na estalagem logo pela manhã, o ar compungido,
porém superior. Deu um ligeiro abraço em João Romão, falou-lhe em voz baixa,
lamentando aquela catástrofe, mas felicitou-o porque tudo estava no seguro.
O vendeiro, com efeito, impressionado com a primeira tentativa de
incêndio, tratara de segurar todas as suas propriedades; e, com tamanha
inspiração o fez que, agora, em vez de lhe trazer o fogo prejuízo, até lhe deixaria
lucros.
— Ah, ah, meu caro! Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a
doente!... segredou o dono do cortiço, a rir. Olhe, aqueles é que com certeza não
gostaram da brincadeira! acrescentou, apontando para o lado em que maior era o
grupo dos infelizes que tomavam conta dos restos de seus tarecos atirados em
montão.
— Ah, mas esses, que diabo! nada têm que perder!... considerou o outro.
E os dois vizinhos foram até o fim do pátio, conversando em voz baixa.
— Vou reedificar tudo isto! declarou João Romão, com um gesto enérgico
que abrangia toda aquela Babilônia desmantelada.
E expôs o seu projeto: tencionava alargar a estalagem, entrando um pouco
pelo capinzal. Levantaria do lado esquerdo, encostado ao muro do Miranda, um
novo correr de casinhas, aproveitando assim parte do pátio, que não precisava
ser tão grande; sobre as outras levantaria um segundo andar, com uma longa
varanda na frente toda gradeada. Negociozinho para ter ali, a dar dinheiro, em
vez de um centena de cômodos, nada menos de quatrocentos a quinhentos, de
doze a vinte e cinco mil-réis cada um!
Ah! ele havia de mostrar como se fazem as coisas bem feitas.
O Miranda escutava-o calado, fitando-o com respeito.
— Você é um homem dos diabos! disse afinal, batendo-lhe no ombro.
E, ao sair de lá, no seu coração vulgar de homem que nunca produziu e
levou a vida, como todo o mercador, a explorar a boa-fé de uns e o trabalho
intelectual de outros, trazia uma grande admiração pelo vizinho. O que ainda lhe
restava da primitiva inveja transformou-se nesse instante num entusiasmo
ilimitado e cego.
— É um filho da mãe! resmungava ele pela rua, em caminho do seu
armazém. É de muita força! Pena é estar metido com a peste daquela crioula!
Nem sei como um homem tão esperto caiu em semelhante asneira!
Só lá pelas dez e tanto da noite foi que João Romão, depois de certificar-se
de que Bertoleza ferrara num sono de pedra, resolveu dar balanço às garrafas de
Libório. O diabo é que ele também quase que não se agüentava nas pernas e
sentia os olhos a fecharem-se-lhe de cansaço. Mas não podia sossegar sem saber
quanto ao certo apanhara do avarento.
Acendeu uma vela, foi buscar a imunda e preciosa trouxa, e carregou com
esta para a casa de pasto ao lado da cozinha.
Depôs tudo sobre uma das mesas, assentou-se, e principiou a tarefa. Tomou
a primeira garrafa, tentou despejá-la, batendo-lhe no fundo; foi-lhe, porém,
necessário extrair as notas, uma por uma, porque estavam muito socadas e
peganhentas de bolor. À proporção que as fisgava, ia logo as desenrolando e
estendendo cuidadosamente em maço, depois de secar-lhes a umidade no calor
das mãos e da vela. E o prazer que ele desfrutava neste serviço punha-lhe em
jogo todos os sentidos e afugentava-lhe o sono e as fadigas. Mas, ao passar à
segunda garrafa, sofreu uma dolorosa decepção: quase todas as cédulas estavam
já prescritas pelo Tesouro; veio-lhe então o receio de que a melhor parte do bolo
se achasse inutilizada: restava-lhe todavia a esperança de que fosse aquela
garrafa a mais antiga de todas e a pior por conseguinte.
E continuou com mais ardor o seu delicioso trabalho.
Tinha já esvaziado seis, quando notou que a vela, consumida até o fim,
bruxuleava a extinguir-se; foi buscar outra nova e viu ao mesmo tempo que
horas eram. "Oh! como a noite correra depressa!..." Três e meia da madrugada.
"Parecia impossível!" "
Ao terminar a contagem, as primeiras carroças passavam lá fora na rua.
— Quinze contos, quatrocentos e tantos mil-réis!... disse João Romão entre
dentes, sem se fartar de olhar para as pilhas de cédulas que tinha defronte dos
olhos.
Mais oito contos e seiscentos eram em notas já prescritas. E o vendeiro, à
vista de tão bela soma, assim tão estupidamente comprometida, sentiu a
indignação de um roubado. Amaldiçoou aquele maldito velho Libório por
tamanho relaxamento; amaldiçoou o governo porque limitava, com intenções
velhacas, o prazo da circulação dos seus títulos; chegou até a sentir remorsos por
não se ter apoderado do tesouro do avarento, logo que este, um dos primeiros
moradores do cortiço, lhe apareceu com o colchão às costas, a pedir chorando
que lhe dessem de esmola um cantinho onde ele se metesse com sua miséria.
João Romão tivera sempre uma vidente cobiça sobre aquele dinheiro
engarrafado; fariscara-o desde que fitou de perto os olhinhos vivos e redondos
do abutre decrépito, e convenceu-se de todo, notando que o miserável dava
pronto sumiço a qualquer moedinha que lhe caia nas garras.
— Seria um ato de justiça! concluiu João Romão; pelo menos seria impedir
que todo este pobre dinheiro apodrecesse tão barbaramente!
Ora adeus! mas sete ricos continhos quase inteiros ficavam-lhe nas unhas.
"E depois, que diabo! os outros assim mesmo haviam de ir com jeito... Hoje
impingiam-se dois mil-réis, amanhã cinco. Não nas compras, mas nos trocos...
Por que não? Alguém reclamaria, mas muitos engoliriam a bucha... Para isso
não faltavam estrangeiros e caipiras!... E demais, não era crime!... Sim! se havia
nisso ladroeira, queixassem-se do governo! o governo é que era o ladrão!"
— Em todo caso, rematou ele, guardando o dinheiro bom e mau e
dispondo-se a descansar; isto já serve para principiar as obras! Deixem estar,
que daqui a dias eu lhes mostrarei para quanto presto!
XIX
Daí a dias, com efeito, a estalagem metia-se em obras. À desordem do
desentulho do incêndio sucedia a do trabalho dos pedreiros; martelava-se ali de
pela manhã até à noite, o que aliás não impedia que as lavadeiras continuassem a
bater roupa e as engomadeiras reunissem ao barulho das ferramentas o choroso
falsete das suas eternas cantigas.
Os que ficaram sem casa foram aboletados a trouxe e mouxe por todos os
cantos, à espera dos novos cômodos. Ninguém se mudou para o
"Cabeça-de-Gato".
As obras principiaram pelo lado esquerdo do cortiço, o lado do Miranda; os
antigos moradores tinham preferência e vantagens nos preços. Um dos italianos
feridos morreu na Misericórdia e o outro, também lá, continuava ainda em risco
de vida. Bruno recolhera-se à Ordem de que era irmão, e Leocádia, que não quis
atender àquela carta escrita por Pombinha, resolveu-se a ir visitar o seu homem
no hospital. Que alegrão para o infeliz a volta da mulher, aquela mulher levada
dos diabos, mas de carne dura, a quem ele, apesar de tudo, queria muito. Com a
visita reconciliaram-se, chorando ambos, e Leocádia decidiu tornar para o São
Romão e viver de novo com o marido. Agora fazia-se muito séria e ameaçava
com pancada a quem lhe propunha brejeirices.
Piedade, essa e que se levantou das febres completamente transformada.
Não parecia a mesma depois do abandono de Jerônimo; emagrecera em extremo,
perdera as cores do rosto, ficara feia, triste e resmungona; mas não se queixava,
e ninguém lhe ouvia falar no nome do esposo.
Esses meses, durante as obras, foram uma época especial para a estalagem.
O cortiço não dava idéia do seu antigo caráter, tão acentuado e, no entanto, tão
misto: aquilo agora parecia uma grande oficina improvisada, um arsenal, em
cujo fragor a gente só se entende por sinais. As lavadeiras fugiram para o
capinzal dos fundos, porque o pó da terra e da madeira sujava-lhes a roupa
lavada. Mas, dentro de pouco tempo, estava tudo pronto; e, com imenso pasmo,
viram que a venda, a sebosa bodega, onde João Romão se fez gente, ia também
entrar em obras. O vendeiro resolvera aproveitar dela somente algumas das
paredes, que eram de um metro de largura, talhadas à portuguesa; abriria as
portas em arco, suspenderia o teto e levantaria um sobrado, mais alto que o do
Miranda e, com toda a certeza, mais vistoso. Prédio para meter o do outro no
chinelo; quatro janelas de frente, oito de lado, com um terraço ao fundo. O lugar
em que ele dormia com Bertoleza, a cozinha e a casa de pasto seriam
abobadadas, formando, com a parte de taverna, um grande armazém, em que o
seu comércio iria fortalecer-se e alargar-se.
O Barão e o Botelho apareciam por lá quase todos os dias, ambos muito
interessados pela prosperidade do vizinho; examinavam os materiais escolhidos
para a construção, batiam com a biqueira do chapéu de sol no pinho-de-riga
destinado ao assoalho, e afetando-se bons entendedores, tomavam na palma da
mão e esfarelavam entre os dedos um punhado da terra e da cal com que os
operários faziam barro. Às vezes chegavam a ralhar com os trabalhadores,
quando lhes parecia que não iam bem no serviço! João Romão, agora sempre de
paletó, engravatado, calças brancas, colete e corrente de relógio, já não parava
na venda, e só acompanhava as obras na folga das ocupações da rua. Principiava
a tomar tino no jogo da Bolsa; comia em hotéis caros e bebia cerveja em larga
camaradagem com capitalistas nos cafés do comércio.
E a crioula? Como havia de ser?
Era isto justamente o que, tanto o Barão como o Botelho, morriam por que
lhe dissessem. Sim, porque aquela boa casa que se estava fazendo, e os ricos
móveis encomendados, e mais as pratas e as porcelanas que haviam de vir, não
seriam decerto para os beiços da negra velha! Conservá-la-ia como criada?
Impossível! Todo Botafogo sabia que eles até ai fizeram vida comum!
Todavia, tanto o Miranda, como o outro, não se animavam a abrir o bico a
esse respeito com o vizinho e contentavam-se em boquejar entre si
misteriosamente, palpitando ambos por ver a saída que o vendeiro acharia para
semelhante situação.
Maldita preta dos diabos! Era ela o único defeito, o senão de um homem tão
importante e tão digno.
Agora, não se passava um domingo sem que o amigo de Bertoleza fosse
jantar à casa do Miranda. Iam juntos ao teatro. João Romão dava o braço à
Zulmira, e, procurando galanteá-la e mais ao resto da família, desfazia-se em
obséquios brutais e dispendiosos, com uma franqueza exagerada que não olhava
gastos. Se tinham de tomar alguma coisa, ele fazia vir logo três, quatro garrafas
ao mesmo tempo, pedindo sempre o triplo do necessário e acumulando compras
inúteis de doces, flores e tudo o que aparecia. Nos leilões das festas de arraial
era tão feroz a sua febre de obsequiar a gente do Miranda, que nunca voltava
para casa sem um homem atrás, carregado com os mimos que o vendeiro
arrematava.
E Bertoleza bem que compreendia tudo isso e bem que estranhava a
transformação do amigo. Ele ultimamente mal se chegava para ela e, quando o
fazia, era com tal repugnância, que antes não o fizesse. A desgraçada muita vez
sentia-lhe cheiro de outras mulheres, perfumes de cocotes estrangeiras e chorava
em segredo, sem animo de reclamar os seus direitos. Na sua obscura condição
de animal de trabalho, já não era amor o que a mísera desejava, era somente
confiança no amparo da sua velhice quando de todo lhe faltassem as forças para
ganhar a vida. E contentava-se em suspirar no meio de grandes silêncios durante
o serviço de todo o dia, covarde e resignada, como seus pais que a deixaram
nascer e crescer no cativeiro. Escondia-se de todos, mesmo da gentalha do frege
e da estalagem, envergonhada de si própria, amaldiçoando-se por ser quem era,
triste de sentir-se a mancha negra, a indecorosa nódoa daquela prosperidade
brilhante e clara.
E, no entanto, adorava o amigo, tinha por ele o fanatismo irracional das
caboclas do Amazonas pelo branco a que se escravizam, dessas que morrem de
ciúmes, mas que também são capazes de matar-se para poupar ao seu ídolo a
vergonha do seu amor. O que custava aquele homem consentir que ela, uma vez
por outra, se chegasse para junto dele? Todo o dono, nos momentos de bom
humor, afaga o seu cão... Mas qual! o destino de Bertoleza fazia-se cada vez
mais estrito e mais sombrio; pouco a pouco deixara totalmente de ser a amante
do vendeiro, para ficar sendo só uma sua escrava. Como sempre, era a primeira
a erguer-se e a ultima a deitar-se; de manhã escamando peixe, à noite
vendendo-o à porta, para descansar da trabalheira grossa das horas de sol;
sempre sem domingo nem dia santo, sem tempo para cuidar de si, feia, gasta,
imunda, repugnante, com o coração eternamente emprenhado de desgostos que
nunca vinham à luz. Afinal, convencendo-se de que ela, sem ter ainda morrido,
já não vivia para ninguém, nem tampouco para si, desabou num fundo
entorpecimento apático, estagnado como um charco podre que causa nojo.
Fizera-se áspera, desconfiada, sobrolho carrancudo, uma linha dura de um canto
ao outro da boca. E durante dias inteiros, sem interromper o serviço, que ela
fazia agora automaticamente, por um hábito de muitos anos, gesticulava e mexia
com os lábios, monologando sem pronunciar as palavras. Parecia indiferente a
tudo, a tudo que a cercava.
Não obstante, certo dia em que João Romão conversou muito com Botelho,
as lágrimas saltaram dos olhos da infeliz, e ela teve de abandonar a obrigação,
porque o pranto e os soluços não lhe deixavam fazer nada.
Botelho havia dito ao vendeiro:
— Faça o pedido! É ocasião.
— Hein?
— Pode pedir a mão da pequena. Está tudo pronto!
— O Barão dá-ma?
— Dá.
— Tem certeza disso?
— Ora! se não tivesse não lho diria deste modo!
— Ele prometeu?
— Falei-lhe; fiz-lhe o pedido em seu nome. Disse que estava autorizado por
você. Fiz mal?
— Mal? Fez muito bem. Creio até que não é preciso mais nada!
— Não, se o Miranda não vier logo ao seu encontro é bom você lhe falar,
compreende?
— Ou escrever.
— Também!
— E a menina?
— Respondo por ela. Você não tem continuado a receber as flores?
— Tenho.
— Pois então não deixe pelo seu lado de ir mandando também as suas e faça
o que lhe disse. Atire-se, seu João, atire-se enquanto o angu está quente!
Por outro lado, Jerônimo empregara-se na pedreira de São Diogo, onde
trabalhava dantes, e morava agora com a Rita numa estalagem da Cidade Nova.
Tiveram de fazer muita despesa para se instalarem; foi-lhes preciso comprar
de novo todos os arranjos de casa, porque do São Romão Jerônimo só levou
dinheiro, dinheiro que ele já não sabia poupar. Com o asseio da mulata a sua
casinha ficou, todavia, que era um regalo; tinham cortinado na cama, lençóis de
linho, fronhas de renda, muita roupa branca, para mudar todos os dias, toalhas
de mesa, guardanapos; comiam em pratos de porcelana e usavam sabonetes
finos. Plantaram à porta uma trepadeira que subia para o telhado, abrindo pela
manhã flores escarlates, de que as abelhas gostavam muito; penduraram gaiolas
de passarinho na sala de jantar; sortiram a despensa de tudo que mais gostavam;
compraram galinhas e marrecos e fizeram um banheiro só para eles, porque o da
estalagem repugnou à baiana que, nesse ponto, era muito escrupulosa.
A primeira parte da sua lua-de-mel foi uma cadeia de delicias continuas;
tanto ele como ela, pouco ou nada trabalharam; a vida dos dois resumira-se,
quase que exclusivamente, nos oitos palmos de colchão novo, que nunca
chegava a esfriar de todo. Jamais a existência pareceu tão boa e corredia para o
português; aqueles primeiros dias fugiram-lhe como estrofes seguidas de uma
deliciosa canção de amor, apenas espacejada pelo estribilho dos beijos em dueto;
foi um prazer prolongado e amplo, bebido sem respirar, sem abrir os olhos,
naquele colo carnudo e dourado da mulata, a que o cavouqueiro se abandonara
como um bêbedo que adormece abraçado a um garrafão inesgotável de vinho
gostoso.
Estava completamente mudado. Rita apagara-lhe a última réstia das
recordações da pátria; secou, ao calor dos seus lábios grossos e vermelhos, a
derradeira lágrima de saudade, que o desterrado lançou do coração com o
extremo arpejo que a sua guitarra suspirou!
A guitarra! substituiu-a ela pelo violão baiano, e deu-lhe a ele uma rede, um
cachimbo, e embebedou-lhe os sonhos de amante prostrado com as suas cantigas
do norte, tristes, deleitosas, em que há caboclinhos curupiras, que no sertão vêm
pitar à beira das estradas em noites de lua clara, e querem que todo o viajante
que vai passando lhes ceda fumo e cachaça, sem o que, ai deles! o curupira
transforma-os em bicho-do-mato. E deu-lhe do seu comer da Bahia, temperado
com fogoso azeite-de-dendê, cor de brasa; deu-lhe das suas muquecas
escandescentes, de fazer chorar, habituou-lhe a carne ao cheiro sensual daquele
seu corpo de cobra, lavado três vezes ao dia e três vezes perfumado com ervas
aromáticas.
O português abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das
extravagâncias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fora-se-lhe de vez o espírito
da economia e da ordem; perdeu a esperança de enriquecer, e deu-se todo, todo
inteiro, à felicidade de possuir a mulata e ser possuído só por ela, só ela, e mais
ninguém.
A morte do Firmo não vinha nunca a toldar-lhes o gozo da vida; quer ele,
quer a amiga, achavam a coisa muito natural. "O facínora matara tanta gente;
fizera tanta maldade; devia, pois, acabar como acabou! Nada mais justo! Se não
fosse Jerônimo, seria outro! Ele assim o quis— bem feito!"
Por esse tempo, Piedade de Jesus, sem se conformar com a ausência do
marido, chorava o seu abandono e ia também agora se transformando de dia para
dia, vencida por um desmazelo de chumbo, uma dura desesperança, a que nem
as lágrimas bastavam para adoçar as agruras. A principio, ainda a pobre de
Cristo tentou resistir com coragem àquela viuvez pior que essa outra, em que há,
para elemento de resignação, a certeza de que a pessoa amada nunca mais terá
olhos para cobiçar mulheres, nem boca para pedir amores; mas depois começou
a afundar sem resistência na lama do seu desgosto, covardemente, sem forcas
para iludir-se com uma esperança fátua, abandonando-se ao abandono,
desistindo dos seus princípios, do seu próprio caráter, sem se ter já neste mundo
na conta de alguma coisa e continuando a viver somente porque a vida era
teimosa e não queria deixá-la ir apodrecer lá embaixo, por uma vez. Deu para
desleixar-se no serviço; as suas freguesas de roupa começaram a reclamar;
foi-lhe fugindo o trabalho pouco a pouco; fez-se madraça e moleirona,
precisando já empregar grande esforço para não bulir nas economias que
Jerônimo lhe deixara, porque isso devia ser para a filha, aquela pobrezita
orfanada antes da morte dos pais.
Um dia, Piedade levantou-se queixando-se de dores de cabeça, zoada nos
ouvidos e o estômago embrulhado; aconselharam-lhe que tomasse um trago de
parati. Ela aceitou o conselho e passou melhor. No dia seguinte repetiu a dose;
deu-se bem com a perturbação em que a punha o álcool, esquecia-se um pouco
durante algum tempo das amofinações da sua vida; e, gole a gole, habituara-se a
beber todos os dias o seu meio martelo de aguardente, para enganar os pesares.
Agora, que o marido já não estava ali para impedir que a filha pusesse os
pés no cortiço, e agora que Piedade precisava de consolo, a pequena ia passar os
domingos com ela. Saíra uma criança forte e bonita; puxara do pai o vigor físico
e da mãe a expressão bondosa da fisionomia. Já tinha nove anos.
Eram esses agora os únicos bons momentos da pobre mulher, esses que ela
passava ao lado da filha. Os antigos moradores da estalagem principiavam a
distinguir a menina com a mesma predileção com que amavam Pombinha,
porque em toda aquela gente havia uma necessidade moral de eleger para
mimoso da sua ternura um entezinho delicado e superior, a que eles
privilegiavam respeitosamente, como súditos a um príncipe. Crismaram-na logo
com o cognome de "Senhorinha".
Piedade, apesar do procedimento do marido, ainda no intimo se
impressionava com a idéia de que não devia contrariá-lo nas suas disposições de
pai. "Mas que mal tinha que a pequena fosse ali? Era uma esmola que fazia à
mãe! Lá pelo risco de perder-se... Ora adeus, só se perdia quem mesmo já
nascera para a perdição! A outra não se conservara sã e pura? não achara noivo?
não casara e não vivia dignamente com o seu marido? Então?!" E Senhorinha
continuou a ir à estalagem, a principio nos domingos pela manhã, para voltar à
tarde, depois já de véspera, nos sábados, para só tornar ao colégio na
segunda-feira.
Jerônimo ao saber disto, por intermédio da professora, revoltou-se no
primeiro ímpeto, mas, pensando bem no caso, achou que era justo deixar à
mulher aquele consolo. "Coitada! devia viver bem aborrecida da sorte!" Tinha
ainda por ela um sentimento compassivo, em que a melhor parte nascera com o
remorso. "Era justo, era! que a pequena aos domingos e dias santos lhe fizesse
companhia!" E então, para ver a filha, tinha que ir ao colégio nos dias de
semana. Quase sempre levava-lhe presentes de doce, frutas, e perguntava-lhe se
precisava de roupa ou de calçado. Mas, um belo dia, apresentou-se tão ébrio,
que a diretora lhe negou a entrada. Desde essa ocasião, Jerônimo teve vergonha
de lá voltar, e as suas visitas à filha tornaram-se muito raras.
Tempos depois, Senhorinha entregou à mãe uma conta de seis meses da
pensão do colégio, com uma carta em que a diretora negava-se a conservar a
menina, no caso que não liquidassem prontamente a divida. Piedade levou as
mãos à cabeça: "Pois o homem já nem o ensino da pequena queria dar?! Que lhe
valesse Deus! onde iria ela fazer dinheiro para educar a filha?! "
Foi à procura do marido; já sabia onde ele morava. Jerônimo recusou-se, por
vexame; mandou dizer que não estava em casa. Ela insistiu; declarou que não
arredaria dali sem lhe falar; disse em voz bem alta que não ia lá por ele, mas
pela filha, que estava arriscada a ser expulsa do colégio; ia para saber que
destino lhe havia de dar, porque agora a pequena estava muito taluda para ser
enjeitada na roda!
Jerônimo apareceu afinal, com um ar triste de vicioso envergonhado que
não tem animo de deixar o vicio. A mulher, ao vê-lo, perdeu logo toda a energia
com que chegara e comoveu-se tanto, que as lágrimas lhe saltaram dos olhos às
primeiras palavras que lhe dirigiu. E ele abaixou os seus e fez-se lívido defronte
daquela figura avelhantada, de peles vazias, de cabelos sujos e encanecidos. Não
lhe parecia a mesma! Como estava mudada! E tratou-a com brandura, quase a
pedir-lhe perdão, a voz muito espremida no aperto da garganta.
— Minha pobre velha... balbuciou, pousando-lhe a mão larga na cabeça.
E os dois emudeceram um defronte do outro, arquejantes. Piedade sentiu
ânsias de atirar-se-lhe nos braços, possuída de imprevista ternura com aquele
simples afago do seu homem. Um súbito raio de esperança iluminou-a toda por
dentro, dissolvendo de relance os negrumes acumulados ultimamente no seu
coração. Contava não ouvir ali senão palavras duras e ásperas, ser talvez
repelida grosseiramente, insultada pela outra e coberta de ridículo pelos novos
companheiros do marido; mas, ao encontrá-lo também triste e desgostoso, sua
alma prostrou-se reconhecida; e, assim que Jerônimo, cujas lágrimas corriam já
silenciosamente, deixou que a sua mão fosse descendo da cabeça ao ombro e
depois à cintura da esposa, ela desabou, escondendo o rosto contra o peito dele,
numa explosão de soluços que lhe faziam vibrar o corpo inteiro.
Por algum tempo choraram ambos abraçados.
— Consola-te! que queres tu?... São desgraças!... disse o cavouqueiro afinal,
limpando os olhos. Foi como se eu tivesse te morrido... mas podes ficar certa de
que te estimo e nunca te quis mal!... Volta para casa; eu irei pagar o colégio de
nossa filhinha e hei de olhar por ti. Vai, e pede a Deus Nosso Senhor que me
perdoe os desgostos que te tenho eu dado!
E acompanhou-a até o portão da estalagem.
Ela, sem poder pronunciar palavra, saiu cabisbaixa, a enxugar os olhos no
xale de lã, sacudida ainda de vez em quando por um soluço retardado.
Entretanto, Jerônimo não mandou saldar a conta do colégio, no dia seguinte,
nem no outro, nem durante todo o resto do mês; e ele, coitado! bem que se
mortificou por isso; mas onde ia buscar dinheiro naquela ocasião? o seu trabalho
mal lhe dava agora para viver junto com a mulata; estava já alcançado nos seus
ordenados e devia ao padeiro e ao homem da venda. Rita era desperdiçada e
amiga de gastar à larga; não podia passar sem uns tantos regalos de barriga e
gostava de fazer presentes. Ele, receoso de contrariá-la e quebrar o ovo da sua
paz, até ai tão completo com respeito à baiana, subordinava-se calado e afetando
até satisfação; no intimo, porém, o infeliz sofria deveras. A lembrança constante
da filha e da mulher apoquentava-o com pontas de remorso, que dia a dia
alastravam na sua consciência, à proporção que esta ia acordando daquela
cegueira. O desgraçado sentia e compreendia perfeitamente todo o mal da sua
conduta; mas só a idéia de separar-se da amante punha-lhe logo o sangue doido
e apagava-se-lhe de novo a luz dos raciocínios. "Não! não!! tudo que quisessem,
menos isso!"
E então, para fugir àquela voz irrefutável, que estava sempre a serrazinar
dentro dele, bebia em camaradagem com os companheiros e habituara-se, dentro
em pouco, à embriaguez. Quando Piedade, quinze dias depois da sua primeira
visita, tornou lá, um domingo, acompanhada pela filha, encontrou-o bêbedo,
numa roda de amigos.
Jerônimo recebeu-as com grande escarcéu de alegria. Fê-las entrar. Beijou a
pequena repetidas vezes e suspendeu-a pela cintura, soltando exclamações de
entusiasmo.
Com um milhão de raios! que linda estava a sua morgadinha!
Obrigou-as logo a tomar alguma coisa e foi chamar a mulata; queria que as
duas mulheres fizessem as pazes no mesmo instante. Era questão decidida!
Houve uma cena de constrangimentos, quando a portuguesa se viu defronte
da baiana.
— Vamos! vamos! Abracem-se! Acabem com isso por uma vez! bradava
Jerônimo, a empurrá-las uma contra a outra. Não quero aqui caras fechadas!
As duas trocaram um aperto de mão, sem se fitarem. Piedade estava
escarlate de vergonha.
— Ora muito bem! acrescentou o cavouqueiro. Agora para a coisa ser
completa, hão de jantar conosco!
A portuguesa opôs-se, resmungando desculpas, que o cavouqueiro não
aceitou.
— Não as deixo sair! É boa! Pois hei de deixar ir minha filha sem matar as
saudades?
Piedade assentou-se a um canto, impaciente pela ocasião de entender-se
com o marido sobre o negócio do colégio. Rita, volúvel como toda a mestiça,
não guardava rancores, e, pois, desfez-se em obséquios com a família do amigo.
As outras visitas saíram antes do jantar.
Puseram-se à mesa às quatro horas e principiaram a comer com boa
disposição, carregando no virgem logo desde a sopa. Senhorinha destacava-se
do grupo; na sua timidez de menina de colégio parecia, entre aquela gente, triste
e assustada ao mesmo tempo. O pai acabrunhava-a com as suas solicitudes
brutais e com as suas perguntas sobre os estudos. À exceção dela, todos os
outros estavam, antes da sobremesa, mais ou menos chumbados pelo vinho.
Jerônimo, esse estava de todo. Piedade, instigada por ele, esvaziara freqüentes
vezes o seu copo e, ao fim do jantar, dera para queixar-se amargamente da vida;
foi então que ela, já com azedume na voz, falou na divida do colégio e nas
ameaças da diretora.
— Ora, filha! disse-lhe o cavouqueiro. Agora estás tu também pr’aí com
essa mastigação! Deixa as tristezas pr’outra vez! Não nos amargures o jantar!
— Triste sorte a minha!
— Ai, ai! que temos lamúria!
— Como não me hei de queixar, se tudo me corre mal?!
— Sim! Pois se é para isso que aqui vens, melhor será não tornares cá!...
resmungou Jerônimo, franzindo o sobrolho. Que diabo! com choradeiras nada se
endireita! Tenho eu culpa de que sejas infeliz?... Também o sou e não me queixo
de Deus!
Piedade abriu a soluçar.
— Aí temos! berrou o marido, erguendo-se e dando urna punhada forte
sobre a mesa. E aturem-na! Por mais que um homem se não queira zangar, há de
estourar por força! Ora bolas!
Senhorinha correu para junto do pai, procurando contê-lo.
— Sebo! berrou ele, desviando-a. Sempre a mesma coisa! Pois não estou
disposto a aturar isto! Arre!
— Eu não vim cá por passeio!... prosseguiu Piedade entre lágrimas!. Vim cá
para saber da conta do colégio!...
— Pague-a você, que tem lá o dinheiro que lhe deixei! Eu é que não tenho
nenhum!
— Ah! então com que não pagas?!
— Não! Com um milhão de raios!
— É que és muito pior do que eu supunha!
— Sim, hein?! Pois então deixe-me cá com toda a minha ruindade e
despache o beco! Despache-o, antes que eu faça alguma asneira!
— Minha pobre filha! Quem olhará por ela, Senhor dos Aflitos?!
— A pequena já não precisa de colégio! deixe-a cá comigo, que nada lhe
faltará!
— Separar-me de minha filha? a única pessoa que me resta?!
— Ó mulher! você não está separada dela a semana inteira?... Pois a
pequena, em vez de ficar no colégio, fica aqui, e aos domingos irá vê-la. Ora aí
tem!
— Eu quero antes ficar com minha mãe!... balbuciou a menina,
abraçando-se a Piedade.
— Ah! também tu, ingrata, já me fazes guerra?! Pois vão com todos os
diabos! e não me tornem cá para me ferver o sangue, que já tenho de sobra com
que arreliar-me!
— Vamos daqui! gritou a portuguesa, travando da filha pelo braço. Maldita
a hora em que vim cá!
E as duas, mãe e filha, desapareceram; enquanto Jerônimo, passeando de um
para outro lado, monologava, furioso sob a fermentação do vinho.
Rita não se metera na contenda, nem se mostrara a favor de nenhuma das
partes. "O homem, se quisesse voltar para junto da mulher, que voltasse! Ela não
o prenderia, porque amor não era obrigado!"
Depois de falar só por muito espaço, o cavouqueiro atirou-se a uma cadeira,
despejou sombrio dois dedos de laranjinha num copo e bebeu-os de um trago.
— Arre! Assim também não!
A mulata então aproximou-se dele, por detrás; segurou-lhe a cabeça entre as
mãos e beijou-o na boca, arredando com os lábios a espessura dos bigodes.
Jerônimo voltou-se para a amante, tomou-a pelos quadris e assentou-a em
cheio sobre as suas coxas.
— Não te rales, meu bem! disse ela, afagando-lhe os cabelos. Já passou!
— Tens razão! besta fui eu em deixá-la pôr pé cá dentro de casa!
E abraçaram-se com ímpeto, como se o breve tempo roubado pelas visitas
fosse uma interrupção nos seus amores.
Lá fora, junto ao portão da estalagem, Piedade, com o rosto escondido no
ombro da filha, esperava que as lágrimas cedessem um pouco, para as duas
seguirem o seu destino de enxotadas.
XX
Chegaram a casa às nove horas da noite. Piedade levava o coração feito em
lama; não dera palavra por todo o caminho e logo que recolheu a pequena,
encostou-se à cômoda, soluçando.
Estava tudo acabado! Tudo acabado!
Foi à garrafa de aguardente, bebeu uma boa porção; chorou ainda, tornou a
beber, e depois saiu ao pátio, disposta a parasitar a alegria dos que se divertiam
lá fora.
A das Dores tivera jantar de festa; ouviam-se as risadas dela e a voz
avinhada e grossa do seu homem, o tal sujeito do comércio, abafadas de vez em
quando pelos berros da Machona, que ralhava com Agostinho. Em diversos
pontos cantavam e tocavam a viola.
Mas o cortiço já não era o mesmo; estava muito diferente; mal dava idéia do
que fora. O pátio, como João Romão havia prometido, estreitara-se com as
edificações novas; agora parecia uma rua, todo calçado por igual e iluminado
por três lampiões grandes simetricamente dispostos. Fizeram-se seis latrinas,
seis torneiras de água e três banheiros. Desapareceram as pequenas hortas, os
jardins de quatro a oito palmos e os imensos depósitos de garrafas vazias. À
esquerda, até onde acabava o prédio do Miranda, estendia-se um novo correr de
casinhas de porta e janela, e daí por diante, acompanhando todo o lado do fundo
e dobrando depois para a direita até esbarrar no sobrado de João Romão,
erguia-se um segundo andar, fechado em cima do primeiro por uma estreita e
extensa varanda de grades de madeira, para a qual se subia por duas escadas,
uma em cada extremidade. De cento e tantos, a numeração dos cômodos
elevou-se a mais de quatrocentos; e tudo caiadinho e pintado de fresco; paredes
brancas, portas verdes e goteiras encarnadas. Poucos lugares havia desocupados.
Alguns moradores puseram plantas à porta e à janela, em meias tinas serradas ou
em vasos de barro. Albino levou o seu capricho até à cortina de labirinto e chão
forrado de esteira. A casa dele destacava-se das outras; era no andar de baixo, e
cá de fora via-se-lhe o papel vermelho da sala, a mobília muito brunida, jarras de
flores sobre a cômoda, um lavatório com espelho todo cercado de rosas
artificiais, um oratório grande, resplandecente de palmas douradas e prateadas,
toalhas de renda por toda a parte, num luxo de igreja, casquilho e defumado. E
ele, o pálido lavadeiro, sempre com o seu lenço cheiroso à volta do pescocinho,
a sua calça branca de boca larga, o seu cabelo mole caldo por detrás das orelhas
bambas, preocupava-se muito em arrumar tudo isso, eternamente, como se
esperasse a cada instante a visita de um estranho. Os companheiros de estalagem
elogiavam-lhe aquela ordem e aquele asseio; pena era que lhe dessem as
formigas na cama! Em verdade, ninguém sabia por que, mas a cama de Albino
estava sempre coberta de formigas. Ele a destruí-las, e o demônio do bichinho a
multiplicar-se cada vez mais e mais todos os dias. Uma campanha
desesperadora, que o trazia triste, aborrecido da vida. Defronte justamente ficava
a casa do Bruno e da mulher, toda mobiliada de novo, com um grande candeeiro
de querosene em frente à entrada, cujo revérbero parecia olhar desconfiado lá de
dentro para quem passava cá no pátio. Agora, entretanto, o casal vivia em santa
paz. Leocádia estava discreta; sabia-se que ela dava ainda muito que fazer ao
corpo sem o concurso do marido, mas ninguém dizia quando, nem onde. O
Alexandre jurava que, ao entrar ou sair fora de horas, nunca a pilhara no vicio; e
a esposa, a Augusta Carne-Mole, ia mais longe na defesa, porque sempre tivera
pena de Leocádia, pois entendia que aquele assanhamento por homem não era
maldade dela; era praga de algum boca do diabo que a quis e a pobrezinha não
deixou. — Estava-se vendo disso todos os dias!— tanto que ultimamente, depois
que a criatura pediu a um padre um pouco de água benta e benzeu-se com esta
em certos lugares, o fogo desaparecera logo, e ela ai vivia direita e séria que não
dava que falar a ninguém! Augusta ficara com a família numa das casinhas do
segundo andar, à direita; estava grávida outra vez; e à noite via-se o Alexandre,
sempre muito circunspecto, a passear ao comprido da varanda, acalentando uma
criancinha ao colo, enquanto a mulher dentro de casa cuidava de outras. A
filharada crescia-lhes, que metia medo. "Era um no papo outro no saco!"
Moravam agora também desse lado os dois cúmplices de Jerônimo, o Pataca e o
Zé Carlos, ocupando juntos o mesmo cômodo; defronte da porta tinham um
fogãozinho e um fogareiro, em que preparavam eles mesmos a sua comida.
Logo adiante era o quarto de um empregado do correio, pessoa muito calada,
bem vestida e pontual no pagamento; saia todas as manhãs e voltava às dez da
noite invariavelmente; aos domingos só ia à rua para comer, e depois fechava-se
em casa e, houvesse o que houvesse no cortiço, não punha mais o nariz de fora.
E, assim como este, notavam-se por último na estalagem muitos inquilinos
novos, que já não eram gente sem gravata e sem meias. A feroz engrenagem
daquela máquina terrível, que nunca parava, ia já lançando os dentes a uma nova
camada social que, pouco a pouco, se deixaria arrastar inteira lá para dentro.
Começavam a vir estudantes pobres, com os seus chapéus desabados, o paletó
fouveiro, uma pontinha de cigarro a queimar-lhes a penugem do buço, e as
algibeiras muito cheias, mas só de versos e jornais; surgiram contínuos de
repartições públicas, caixeiros de botequim, artistas de teatro, condutores de
bondes, e vendedores de bilhetes de loteria. Do lado esquerdo, toda a parte em
que havia varanda foi monopolizada pelos italianos; habitavam cinco a cinco,
seis a seis no mesmo quarto, e notava-se que nesse ponto a estalagem estava já
muito mais suja que nos outros. Por melhor que João Romão reclamasse,
formava-se ai todos os dias uma esterqueira de cascas de melancia e laranja. Era
uma comuna ruidosa e porca a dos demônios dos mascates! Quase que se não
podia passar lá, tal a acumulação de tabuleiros de louça e objetos de vidro,
caixas de quinquilharia, molhos e molhos de vasilhame de folha-de-flandres,
bonecos e castelos de gesso, realejos, macacos, o diabo! E tudo isso no meio de
um fedor nauseabundo de coisas podres, que empesteava todo o cortiço. A parte
do fundo da varanda era asseada felizmente e destacava-se pela profusão de
pássaros que lá tinham, entre os quais sobressaia uma arara enorme que, de
espaço a espaço, soltava um formidável sibilo estridente e rouco. Por debaixo
ficava a casa da Machona, cuja porta, como a janela, Nenen trazia sempre
enfeitada de tinhorões e begônias. O prédio do Miranda parecia ter recuado
alguns passos, perseguido pelo batalhão das casinhas da esquerda, e agora
olhava a medo, por cima dos telhados, para a casa do vendeiro, que lá defronte
erguia-se altiva, desassombrada, o ar sobranceiro e triunfante. João Romão
conseguira meter o sobrado do vizinho no chinelo; o seu era mais alto e mais
nobre, e então com as cortinas e com a mobília nova impunha respeito. Foi
abaixo aquele grosso e velho muro da frente com o seu largo portão de cocheira,
e a entrada da estalagem era agora dez braças mais para dentro, tendo entre ela e
a rua um pequeno jardim com bancos e um modesto repuxo ao meio, de
cimento, imitando pedra. Fora-se a pitoresca lanterna de vidros vermelhos;
foram-se as iscas de fígado e as sardinhas preparadas ali mesmo à porta da
venda sobre as brasas; e na tabuleta nova, muito maior que a primeira, em vez
de "Estalagem de São Romão" lia-se em letras caprichosas:
"AVENIDA SÃO ROMÃO"
O "Cabeça-de-Gato" estava vencido finalmente, vencido para sempre; nem
já ninguém se animava a comparar as duas estalagens. À medida que a de João
Romão prosperava daquele modo, a outra decaía de todo; raro era o dia em que a
polícia não entrava lá e baldeava tudo aquilo a espadeirada de cego. Uma
desmoralização completa! Muitos cabeças-de-gato viraram casaca, passando-se
para os carapicus, entre os quais um homem podia até arranjar a vida, se
soubesse trabalhar com jeito em tempo de eleições. Exemplos não faltavam!
Depois da partida de Rita, já se não faziam sambas ao relento com o
choradinho da Bahia, e mesmo o cana-verde 35 pouco se dançava e cantava;
agora o forte eram os forrobodós dentro de casa, com três ou quatro músicos,
ceia de café com pão; muita calça branca e muito vestido engomado. — E toca a
enfiar para ai quadrilhas e polcas ate romper a manhã!
Mas naquele domingo o cortiço estava banzeiro; havia apenas uns grupos
magros, que se divertiam com a viola à porta de casa. O melhor, ainda assim, era
o da das Dores. Piedade dirigiu-se logo para lá, sombria e cabisbaixa.
— Com o demo! você anda agora que nem o boi castrado! exclamou-lhe o
Pataca, assentando-se ao lado dela. As tristezas atiram-se para trás das costas,
criatura de Deus! A vida não dá para tanto! O homem deixou-te? Ora sebo!
mete-se com outro e põe o coração à larga!
Ela suspirou em resposta, ainda triste; porém, a garrafa de parati correu a
roda, de mão em mão, e, à segunda volta, Piedade já parecia outra. Começou a
conversar e a tomar interesse no pagode. Daí a pouco era, de todos, a mais
animada, falando pelos cotovelos, criticando e arremedando as figuras ratonas
da estalagem. O Pataca ria-se, a quebrar a espinha, caindo por cima dela e
passando-lhe o braço na cintura.
— Você ainda é mulher pr’um homem fazer uma asneira!
— Olha pra que lhe deu o ébrio! Solta-me a perna, estupor!
O grupo achava graça nos dois e aplaudia-os com gargalhadas. E o parati a
circular sempre de mão em mão. A das Dores não descansava um momento; mal
vinha de encher a garrafa lá dentro de casa, tinha de voltar outra vez para
enchê-la de novo. "Olha que estafa! Vão beber pro diabo!" Afinal apareceu com
o garrafão e pousou-o no meio da roda.
— Querem saber! Empinem por aí mesmo, que já estou com os quartos
doendo de tanto andar de lá pra cá!
Essa noite, a bebedeira de Piedade foi completa. Quando João Romão
entrou, de volta da casa do Miranda, encontrou-a a dançar ao som de palmas,
gritos e risadas, no meio de uma grande troça, a saia levantada, os olhos
requebrados, a pretender arremedar a Rita no seu choradinho da Bahia. Era a
boba da roda. Batiam-lhe palmadas no traseiro e com o pé embaraçavam-lhe as
pernas, para a ver cair e rebolar-se no chão.
O vendeiro, de fraque e chapéu alto, foi direito ao grupo, então muito mais
reforçado de gente, e intimou a todos que se recolhessem. Aquilo já não eram
horas para semelhante algazarra!
— Vamos! Vamos! Cada um para a sua casa!
Piedade foi a única que protestou, reclamando o seu direito de brincar um
pouco com os amigos.
Que diabo! não estava fazendo mal a ninguém!
— Ora vá mas é pra cama cozer a mona! vituperou-lhe João Romão,
repelindo-a. Você, com uma filha quase mulher, não tem vergonha de estar aqui
a servir de palhaço?! Forte bêbada!
Piedade assomou-se com a descompostura, quis despicar-se, chegou a
arregaçar as mangas e sungar a saia; mas o Pataca meteu-se no meio e
conteve-a, pedindo a João Romão que não levasse aquilo em conta, porque era
tudo cachaça.
— Bom, bom, bom! mas aviem-se! Aviem-se!
E não se retirou sem ver a roda dissolvida, e cada qual procurando a casa.
Recolheram-se todos em silêncio; só o Pataca e Piedade deixaram-se ficar
ainda no pátio, a discutir o ato do vendeiro. O Pataca também estava bastante
tocado. Ambos reconheciam que lhes não convinha demorar-se ali, porém
nenhum dos dois se sentia disposto a meter-se no quarto.
— Você tem lá alguma coisa que beber em casa?... perguntou ele afinal.
Ela não sabia ao certo; foi ver. Havia meia garrafa de parati e um resto de
vinho. Mas era preciso não fazer barulho, por’mor da pequena que estava
dormindo.
Entraram em ponta de pés, a falar surdamente. Piedade deu mais luz ao
candeeiro.
— Olha agora! Vamos ficar às escuras! Acabou-se o gás!
O Pataca saiu, para ir a casa buscar uma vela, e de volta trouxe também um
pedaço de queijo e dois peixes fritos, que levou ao nariz da lavadeira, sem dizer
nada. Piedade, aos bordos, desocupou a mesa do engomado e serviu dois pratos.
O outro reclamou vinagre e pimenta e perguntou se havia pão.
— Pão há. O vinho é que é pouco!
— Não faz mal! Vai mesmo com a caninha!
E assentaram-se. O cortiço dormia já e só se ouviam, no silêncio da noite,
cães que ladravam lá fora na rua, tristemente. Piedade começou a queixar-se da
vida; veio-lhe uma crise de lágrimas e soluços. Quando pôde falar contou o que
lhe sucedera essa tarde, narrou os pormenores da sua ida com a filha à procura
do marido, o jantar em comum com a peste da mulata, e afinal a sua humilhação
de vir de lá enxovalhada e corrida.
Pataca revoltou-se, não com o procedimento de Jerônimo, mas com o dela.
Rebaixar-se àquele ponto! com efeito!... Ir procurar o homem lá na casa da
outra!... Oh!
— Ele tratou-me bem, quando lá fui da primeira vez... Hoje é que não sei o
que tinha: só faltou pôr-me na rua aos pontapés!
— Foi bem feito! Ainda acho pouco! Devia ter-lhe metido o pau, para você
não ser tola!
— É mesmo!
— Pois não! O que não falta são homens, filha! O mundo é grande! Para um
pé doente há sempre um chinelo velho!— E ferrou-lhe a mão nas pernas:—
Chega-te para mim, que te esqueceras do outro!
Piedade repeliu-o. Que se deixasse de asneiras!
— Asneiras! É o que se leva desta vida!
A pequena acordara lá no quarto e viera descalça até à porta da sala de
jantar, para espiar o que faziam os dois.
Não deram por ela.
E a conversa prosseguiu, esquentando a medida que a garrafa de parati se
esvaziava. Piedade deu de mão aos seus desgostos, pôs-se a papaguear um
pouco; as lágrimas foram-se-lhe; e ela manducou então com apetite, rindo já das
pilhérias do companheiro, que continuava a apalpar-lhe de vez em quando as
coxas.
Aquelas coisas, assim, sem se esperar, é que tinham graça!... dizia ele,
excitado e vermelho, comendo com a mão, a embeber pedaços de peixe no
molho das pimentas. Bem tolo era quem se matava!
Depois lembrou que não viria fora de propósito uma xicrinha de café.
— Não sei se há, vou ver, respondeu a lavadeira, erguendo-se agarrada à
mesa.
E bordejou até à cozinha, a dar esbarrões pela direita e pela esquerda.
— Tento no leme, que o mar está forte! exclamou Pataca, levantando-se
também, para ir ajudá-la.
Lá perto do fogão agarrou-a de súbito, como um galo abafando uma galinha.
— Larga! repreendeu a mulher, sem forças para se defender.
Ele apanhou-lhe as fraldas.
— Espera! Deixa!
— Não quero!
E ria-se por ver a atitude cômica do Pataca vergado defronte dela.
— Que mal faz?.. Deixa!
— Sai daí, diabo!
E, cambaleando, amparados um no outro, foram ambos ao chão.
— Olha que peste! resmungou a desgraçada, quando o adversário conseguiu
saciar-se nela. Marraios te partam!
E deixou-se ficar por terra. Ele pôs-se de pé e, ao encaminhar-se para a sala
de jantar, sentiu uma ligeira sombra fugir em sua frente. Era a pequena, que fora
espiar à porta da cozinha.
Pataca assustara-se.
— Quem anda aqui a correr como gato?... perguntou voltando a ter com
Piedade, que permanecia no mesmo lugar, agora quase adormecida.
Sacudiu-a.
— Olá! Queres ficar ai, ó criatura! Levanta-te! Anda a ver o café!
E, tentando erguê-la, suspendeu-a por debaixo dos braços. Piedade, mal
mudou a posição da cabeça, vomitou sobre o peito e a barriga uma golfada
fétida.
— Olha o demo! resmungou Pataca. Está que se não pode lamber!
E foi preciso arrastá-la até a cama, que nem uma trouxa de roupa suja. A
infeliz não dava acordo de si.
Senhorinha acudira, perguntando aflita o que tinha a mãe.
— Não é nada, filha! explicou o Pataca. Deixe-a dormir, que isso passa!
Olha! se há limão em casa passa-lhe um pouco atrás da orelha, e veras que
amanhã acorda fina e pronta pra outra!
A menina desatou a soluçar.
E o Pataca retirou-se, a dar encontrões nos trastes, furioso, porque, afinal,
não tomara café.
Sebo!
XXI
Ao mesmo tempo, João Romão, em chinelas e camisola, passeava de um
para outro lado no seu quarto novo. Um aposento largo e forrado de azul e
branco com florinhas amarelas fingindo ouro; havia um tapete aos pés da cama,
e sobre a peniqueira um despertador de níquel, e a mobília toda era já de
casados, porque o esperto não estava para comprar móveis duas vezes.
Parecia muito preocupado; pensava em Bertoleza que, a essas horas, dormia
lá embaixo num vão de escada, aos fundos do armazém, perto da comua.
Mas que diabo havia ele de fazer afinal daquela peste?
E coçava a cabeça, impaciente por descobrir um meio de ver-se livre dela.
É que nessa noite o Miranda lhe falara abertamente sobre o que ouvira de
Botelho, e estava tudo decidido: Zulmira aceitava-o para marido e Dona Estela
ia marcar o dia do casamento.
O diabo era a Bertoleza!...
E o vendeiro ia e vinha no quarto, sem achar uma boa solução para o
problema.
Ora, que raio de dificuldade armara ele próprio para se coser!... Como
poderia agora mandá-la passear assim, de um momento para outro, se o demônio
da crioula o acompanhava já havia tanto tempo e toda a gente na estalagem sabia
disso?
E sentia-se revoltado e impotente defronte daquele tranqüilo obstáculo que
lá estava embaixo, a dormir, fazendo-lhe em silêncio um mal horrível,
perturbando-lhe estupidamente o curso da sua felicidade, retardando-lhe, talvez
sem consciência, a chegada desse belo futuro conquistado à força de tamanhas
privações e sacrifícios! Que ferro!
Mas, só com lembrar-se da sua união com aquela brasileirinha fina e
aristocrática, um largo quadro de vitórias rasgava-se defronte da desensofrida
avidez da sua vaidade. Em primeiro lagar fazia-se membro de uma família
tradicionalmente orgulhosa, como era, dito por todos, a de Dona Estela; em
segundo lagar aumentava consideravelmente os seus bens com o dote da noiva,
que era rica e, em terceiro, afinal, caber-lhe-ia mais tarde tudo o que o Miranda
possuía, realizando-se deste modo um velho sonho que o vendeiro afagava desde
o nascimento da sua rivalidade com o vizinho.
E via-se já na brilhante posição que o esperava: uma vez de dentro,
associava-se logo com o sogro e iria pouco a pouco, como quem não quer a
coisa, o empurrando para o lado, até empolgar-lhe o lagar e fazer de si um
verdadeiro chefe da colônia portuguesa no Brasil; depois, quando o barco
estivesse navegando ao largo a todo o pano — tome lá alguns pares de contos de
réis e passe-me para cá o titulo de Visconde!
Sim, sim, Visconde! Por que não? e mais tarde, com certeza, Conde! Eram
favas contadas!
Ah! ele, posto nunca o dissera a ninguém, sustentava de si para si nos
últimos anos o firme propósito de fazer-se um titular mais graduado que o
Miranda. E, só depois de ter o titulo nas unhas, é que iria à Europa, de passeio,
sustentando grandeza, metendo invejas, cercado de adulações, liberal, pródigo,
brasileiro, atordoando o mundo velho com o seu ouro novo americano!
E a Bertoleza? gritava-lhe do interior uma voz impertinente.
— É exato! E a Bertoleza?... repetia o infeliz, sem interromper o seu vaivém
ao comprido da alcova.
Diabo! E não poder arredar logo da vida aquele ponto negro; apagá-lo
rapidamente, como quem tira da pele uma nódoa de lama! Que raiva ter de
reunir aos vôos mais fulgurosos da sua ambição a idéia mesquinha e ridícula
daquela inconfessável concubinagem! E não podia deixar de pensar no demônio
da negra, porque a maldita ali estava perto, a rondá-lo ameaçadora e sombria; ali
estava como o documento vivo das suas misérias, já passadas mas ainda
palpitantes. Bertoleza devia ser esmagada, devia ser suprimida, porque era tudo
que havia de mau na vida dele! Seria um crime conservá-la a seu lado! Ela era o
torpe balcão da primitiva bodega; era o aladroado vintenzinho de manteiga em
papel pardo; era o peixe trazido da praia e vendido à noite ao lado do fogareiro à
porta da taberna; era o frege imundo e a lista cantada das comezainas à
portuguesa; era o sono roncado num colchão fétido, cheio de bichos; ela era a
sua cúmplice e era todo seu mal— devia, pois, extinguir-se! Devia ceder o lagar
à pálida mocinha de mãos delicadas e cabelos perfumados, que era o bem,
porque era o que ria e alegrava, porque era a vida nova, o romance solfejado ao
piano, as flores nas jarras, as sedas e as rendas, o chá servido em porcelanas
caras; era enfim a doce existência dos ricos, dos felizes e dos fortes, dos que
herdaram sem trabalho ou dos que, a puro esforço, conseguiram acumular
dinheiro, rompendo e subindo por entre o rebanho dos escrupulosos ou dos
fracos. E o vendeiro tinha defronte dos olhos o namorado sorriso da filha do
Miranda, sentia ainda a leve pressão do braço melindroso que se apoiara ao seu,
algumas horas antes, em passeio pela praia de Botafogo; respirava ainda os
perfumes da menina, suaves, escolhidos e penetrantes como palavras de amor;
nos seus dedos grossos, curtos, ásperos e vermelhos, conservava a impressão da
tépida carícia daquela mãozinha enluvada que, dentro em pouco, nos prazeres
garantidos do matrimônio, afagar-lhe-ia as carnes e os cabelos.
Mas, e a Bertoleza?...
Sim! era preciso acabar com ela! despachá-la! sumi-la por uma vez!
Deu meia-noite no relógio do armazém. João Romão tomou uma vela e
desceu aos fundos da casa, onde Bertoleza dormia. Aproximou-se dela, pé ante
pé, como um criminoso que leva uma idéia homicida.
A crioula estava imóvel sobre o enxergão, deitada de lado, com a cara
escondida no braço direito, que ela dobrara por debaixo da cabeça. Aparecia-lhe
uma parte do corpo nua.
João Romão contemplou-a por algum tempo, com asco.
E era aquilo, aquela miserável preta que ali dormia indiferentemente, o
grande estorvo da sua ventura!... Parecia impossível!
— E se ela morresse?...
Esta frase, que ele tivera, quando pensou pela primeira vez naquele
obstáculo à sua felicidade, tornava-lhe agora ao espírito, porém já amadurecida e
transformada nesta outra:
— E se eu a matasse?
Mas logo um calafrio de pavor correu-lhe por todos os nervos.
Além disso, como?... Sim, como poderia despachá-la, sem deixar sinais
comprometedores do crime?... Envenenando-a?... Dariam logo pela coisa!...
Matá-la a tiro?... Pior! Levá-la a um passeio fora da cidade, bem longe e, no
melhor da festa, atirá-la ao mar ou por um despenhadeiro, onde a morte fosse
infalível?... Mas como arranjar tudo isso, se eles nunca passeavam juntos?...
Diabo!
E o desgraçado ficou a pensar, abstrato, de castiçal na mão, sem despregar
os olhos de cima de Bertoleza, que continuava imóvel, com o rosto escondido no
braço.
— E se eu a esganasse aqui mesmo?...
E deu, na ponta dos pés, alguns passos para frente, parando logo, sem deixar
nunca de contemplá-la.
Mas a crioula ergueu de improviso a cabeça e fitou-o com os olhos de quem
não estava dormindo.
— Ah! fez ele.
— Que é, seu João?
— Nada. Vim só ver-te... Cheguei ainda não há muito... Como vais tu?
Passou-te a dor do lado?...
Ela meneou os ombros, sem responder ao certo. Houve um silêncio entre os
dois. João Romão não sabia o que dizer e saiu afinal, escoltado pelo
imperturbável olhar da crioula, que o intimava mesmo pelas costas.
— Teria desconfiado? pensou o miserável, subindo de novo para o quarto.
Qual! Desconfiar de quê?...
E meteu-se logo na cama, disposto a não pensar mais nisso e dormir
incontinenti. Mas o seu pensamento continuou rebelde a parafusar sobre o
mesmo assunto.
— É preciso despachá-la! É preciso despachá-la quanto antes, seja lá como
for! Ela, até agora, não deu ainda sinal de si; não abriu o bico a respeito da
questão; mas, Dona Estela está a marcar o dia do casamento; não levará muito
tempo para isso... o Miranda naturalmente comunica a noticia aos amigos... o
fato corre de boca em boca... chega aos ouvidos da crioula e esta, vendo-se
abandonada, estoura! estoura com certeza! E agora o verás! Como deve ser
bonito, hein?... Ir tão bem até aqui e esbarrar na oposição da negra!... E os
comentários depois!... O que não dirão os invejosos lá da praça?... "Ah, ah! ele
tinha em casa uma amiga, uma preta imunda com quem vivia! Que tipo! Sempre
há de mostrar que e gentinha de laia muito baixa!... E aqui a engazopar-nos com
uns ares de capitalista que se trata à vela de libra! Olha o carapicu pra que havia
de dar. Sai sujo!" E, então, a família da menina, com medo de cair também na
boca do mundo, volta atrás e dá o dito por não dito! Bem sei que ela está a par
de tudo; isso, olé, se está! mas finge-se desentendida, porque conta, e com razão,
que eu não serei tão parvo que espere o dia do casamento sem ter dado sumiço à
negra! contam que a coisa correrá sem o menor escândalo! E eu, no entanto, tão
besta que nada fiz! E a peste da crioula está ai senhora do terreiro como dantes,
e não descubro meio de ver-me livre dela!... Ora já se viu como arranjei
semelhante entalação?... Isto contado não se acredita!
E pisava e repisava o caso, sem achar meio de dar-lhe saída!
Diabo!
— Ela há muito que devia estar longe de mim... fiz mal em não cuidar logo
disso antes de mais nada!... Fui um pedaço d’asno! Se eu a tivesse despachado
logo, quando ainda se não falava no meu casamento, ninguém desconfiaria da
história: "Por que diabo iria o pobre homem dar cabo de uma mulher, com quem
vivia na melhor paz e que era até, dentro de casa, o seu braço direito?..." Mas
agora, depois de todas aquelas reformas de vida; depois da separação das camas,
e principalmente depois que corresse a noticia do casamento, não faltaria decerto
quem o acusasse, se a negra aparecesse morta de repente!
Diabo!
Deram quatro horas, e o desgraçado nada de pregar olho; continuava a
matutar sobre o assunto, virando-se de um para outro lado da sua larga e
rangedora cama de casados. Só pelo abrir da aurora, conseguiu passar pelo sono;
mas, logo às sete da manhã, teve de pôr-se a pé: o cortiço estava todo
alvoroçado com um desastre.
A Machona lavava à sua tina, ralhando e discutindo como sempre, quando
dois trabalhadores, acompanhados de um ruidoso grupo de curiosos,
trouxeram-lhe sobre uma tábua o cadáver ensangüentado do filho. Agostinho
havia ido, segundo o costume, brincar à pedreira com outros dois rapazitos da
estalagem; tinham, cabritando pelas arestas do precipício, subido a uma altura
superior a duzentos metros do chão e, de repente, faltara-lhe o equilíbrio e o
infeliz rolou de lá abaixo, partindo os ossos e atassalhando as carnes.
Todo ele, coitadinho, era uma só massa vermelha; as canelas, quebradas no
joelho, dobravam moles para debaixo das coxas; a cabeça, desarticulada, abrira
no casco e despejava o pirão dos miolos; numa das mãos faltavam-lhe todos os
dedos e no quadril esquerdo via-se-lhe sair uma ponta de osso ralado pela pedra.
Foi um alarma no pátio quando ele chegou.
Cruzes! que desgraça!
Albino, que lavava ao lado da Machona, teve uma síncope; Nenen ficou que
nem doida, porque ela queria muito àquele irmão; a das Dores imprecou contra
os trabalhadores, que deixavam um filho alheio matar-se daquele modo em
presença deles; a mãe, essa apenas soltou um bramido de monstro apunhalado
no coração e caiu mesquinha junto do cadáver, a beijá-lo, vagindo como uma
criança. Não parecia a mesma!
As mães dos outros dois rapazitos esperavam imóveis e lívidas pela volta
dos filhos, e, mal estes chegaram à estalagem, cada uma se apoderou logo do seu
e caiu-lhe em cima, a sová-los ambos que metia medo.
— Mira-te naquele espelho, tentação do diabo! exclamava uma delas, com o
pequeno seguro entre as pernas a encher-lhe a bunda de chineladas. Não era
aquele que devia ir, eras tu, peste! aquele, coitado! ao menos ajudava a mãe,
ganhava dois mil-réis por mês regando as plantas do Comendador, e tu,
coisa-ruim, só serves para me dar consumições! Toma! Toma! Toma!
E o chinelo cantava entre o berreiro feroz dos dois rapazes.
João Romão chegou ao terraço de sua casa, ainda em mangas de camisa, e
de lá mesmo tomou conhecimento do que acontecera. Contra todos os seus
hábitos impressionou-se com a morte de Agostinho; lamentou-a no intimo,
tomado de estranhas condolências.
Pobre pequeno! tão novo... tão esperto... e cuja vida não prejudicava a
ninguém, morrer assim, desastradamente!... ao passo que aquele diabo velho da
Bertoleza continuava agarrado à existência, envenenando-lhe a felicidade, sem
se decidir a despachar o beco!
E o demônio da crioula parecia mesmo não estar disposta a ir só com duas
razões; apesar de triste e acabrunhada, mostrava-se forte e rija. Suas pernas
curtas e lustrosas eram duas peças de ferro unidas pela culatra, das quais ela
trazia um par de balas penduradas em saco contra o peito; as róseas lustrosas do
seu cachaço lembravam grossos chouriços de sangue, e na sua carapinha
compacta ainda não havia um fio branco. Aquilo, arre! tinha vida para o resto do
século!
— Mas deixa estar, que eu te despacho bonito e asseado!... disse o vendeiro
de si para si, voltando ao quarto para acabar de vestir-se.
Enfiava o colete quando bateram pancadas familiares na porta do corredor.
— Então?! Ainda se está em val de lençóis?...
Era a voz do Botelho.
O vendeiro foi abrir e fê-lo entrar ali mesmo para a alcova.
— Ponha-se a gosto. Como vai você?
— Assim. Não tenho passado lá essas coisas...
João Romão deu-lhe noticia da morte do Agostinho e declarou que estava
com dor de cabeça. Não sabia que diabo tinha ele aquela noite, que não houve
meio de pegar direito no sono.
— Calor... explicou o outro. E prosseguiu depois de uma pausa, acendendo
um cigarro: pois eu vinha cá falar-lhe... Você não repare, mas...
João Romão supôs que o parasita ia pedir-lhe dinheiro e preparou-se para a
defesa, queixando-se inopinadamente de que os negócios não lhe corriam bem;
mas calou-se, porque o Botelho acrescentou com o olhar fito nas unhas:
— Não devia falar nisto... são coisas suas lá particulares, em que a gente
não se mete, mas...
O taberneiro compreendeu logo onde a visita queria chegar e aproximou-se
dele, dizendo confidencialmente:
— Não! Ao contrário! fale com franqueza... Nada de receios...
— É que... sim, você sabe que eu tenho tratado do seu casamento com a
Zulmirinha... Lá em casa não se fala agora noutra coisa... até a própria Dona
Estela já está muito bem disposta a seu favor... mas...
— Desembuche, homem de Deus!
— É que há um pontinho que é preciso pôr a limpo... Coisa insignificante,
mas...
— Mas, mas! você não desembuchará por uma vez?... Fale, que diabo!
Um caixeiro do armazém apareceu à porta, prevenindo de que o almoço
estava na mesa.
— Vamos comer, disse João Romão. Você já almoçou?
— Ainda não, mas lá em casa contam comigo...
O vendeiro mandou o seu empregado dizer lá defronte à família do Barão
que seu Botelho não ia ao almoço. E, sem tomar o casaco, passou com a visita à
sala de jantar.
O cheiro ativo dos móveis, polidos ainda de fresco, dava ao aposento um
caráter insociável de lagar desabitado e por alagar. Os trastes, tão nus como as
paredes, entristeciam com a sua fria nitidez de coisa nova.
— Mas vamos lá! Que temos então?... inquiriu o dono da casa,
assentando-se à cabeceira da mesa, enquanto o outro, junto dele, tomava lugar à
extremidade de um dos lados.
— É que, respondeu o velho em tom de mistério, você tem cá em sua
companhia uma... uma crioula, que... Eu não creio, note-se, mas...
— Adiante!
— É! Dizem que ela é coisa sua... Lá em casa rosnou!... O Miranda
defende-o, afirma que não... Ah! aquilo é uma grande alma! mas Dona Estela,
você sabe o que são as mulheres!... torce o nariz e... Em uma palavra: receio que
esta história nos traga qualquer embaraço!...
Calou-se, porque acabava de entrar um portuguesinho, trazendo uma
travessa de carne ensopada com batatas.
João Romão não respondeu, mesmo depois que o pequeno saiu; ficou
abstrato, a bater com a faca entre os dentes.
— Por que você a não manda embora?... arriscou o Botelho, despejando
vinho no seu e no copo do companheiro.
Ainda desta vez não obteve logo resposta; mas o outro tomando, afinal, uma
resolução, declarou confidencialmente:
— Vou dizer-lhe toda coisa como ela é... e talvez que você até me possa
auxiliar!...
Olhou para os lados, chegou mais a sua cadeira para junto da de Botelho e
acrescentou em voz baixa:
— Esta mulher meteu-se comigo, quando eu principiava minha vida...
Então, confesso... precisava de alguém nos casos dela, que me ajudasse... e
ajudou-me muito, não nego! Devo-lhe isso! não! ajudar-me ajudou! mas...
— E depois?
— Depois, ela foi ficando para ai; foi ficando... e agora...
— Agora é um trambolho que lhe pode escangalhar a igrejinha! É o que é!
— Sim, que dúvida! pode ser um obstáculo sério ao meu casamento! Mas,
que diabo! eu também, você compreende, não a posso pôr na rua, assim, sem
mais aquelas!... Seria ingratidão, não lhe parece?...
— Ela já sabe em que pé está o negócio?...
— Deve desconfiar de alguma coisa, que não é tola!... Eu, cá por mim, não
lhe toquei em nada...
— E você ainda faz vida com ela?
— Qual! há muito tempo que nem sombras disso...
— Pois, então, meu amigo, é arranjar-lhe uma quitanda em outro bairro;
dar-lhe algum dinheiro e... Boa viagem! O dente que já não presta arranca-se
fora!
João Romão ia responder, mas Bertoleza assomou à entrada da sala. Vinha
tão transformada e tão lívida que só com a sua presença intimidou
profundamente os dois. A indignação tirava-lhe faíscas dos olhos e os lábios
tremiam-lhe de raiva. Logo que falou veio-lhe espuma aos cantos da boca.
— Você está muito enganado, seu João, se cuida que se casa e me atira a
toa! exclamou ela. Sou negra, sim, mas tenho sentimentos! Quem me comeu a
carne tem de roer-me os ossos! Então há de uma criatura ver entrar ano e sair
ano, a puxar pelo corpo todo o santo dia que Deus manda ao mundo, desde pela
manhãzinha até pelas tantas da noite, para ao depois ser jogada no meio da rua,
como galinha podre?! Não! Não há de ser assim, seu João!
— Mas, filha de Deus, quem te disse que eu quero atirar-te à toa?...
perguntou o capitalista.
— Eu escutei o que você conversava, seu João! A mim não me cegam assim
só! Você é fino, mas eu também sou! Você está armando casamento com a
menina de seu Miranda!
— Sim, estou. Um dia havia de cuidar de meu casamento!... Não hei de
ficar solteiro toda a vida, que não nasci para podengo. Mas também não te
sacudo na rua, como disseste; ao contrário agora mesmo tratava aqui com o seu
Botelho de arranjar-te uma quitanda e...
— Não! Com quitanda principiei; não hei de ser quitandeira até morrer!
Preciso de um descanso! Para isso mourejei junto de você enquanto Deus Nosso
Senhor me deu força e saúde!
— Mas afinal que diabo queres tu?!
— Ora essa! Quero ficar a seu lado! Quero desfrutar o que nós dois
ganhamos juntos! quero a minha parte no que fizemos com o nosso trabalho!
quero o meu regalo, como você quer o seu!
— Mas não vês que isso é um disparate?... Tu não te conheces?... Eu te
estimo, filha; mas por ti farei o que for bem entendido e não loucuras! Descansa
que nada te há de faltar!... Tinha graça, com efeito, que ficássemos vivendo
juntos! Não sei como não me propões casamento!
— Ah! agora não me enxergo! agora eu não presto para nada! Porém,
quando você precisou de mim não lhe ficava mal servir-se de meu corpo e
agüentar a sua casa com o meu trabalho! Então a negra servia pra um tudo;
agora não presta pra mais nada, e atira-se com ela no monturo do cisco! Não!
assim também Deus não manda! Pois se aos cães velhos não se enxotam, por
que me hão de pôr fora desta casa, em que meti muito suor do meu rosto?...
Quer casar, espere então que eu feche primeiro os olhos; não seja ingrato!
João Romão perdeu por fim a paciência e retirou-se da sala, atirando à
amante uma palavrada porca.
— Não vale a pena encanzinar-se... segredou-lhe o Botelho,
acompanhando-o até a alcova, onde o vendeiro enterrou com toda a força o
chapéu na cabeça e enfiou o paletó com a mão fechada em murro.
— Arre! Não a posso aturar nem mais um instante! Que vá para o diabo que
a carregue! em casa é que não me fica!
— Calma, homem de Deus! Calma!
— Se não quiser ir por bem, ira por mal! Sou eu quem o diz!
E o vendeiro esfuziou pela escada, levando atrás de si o velhote, que mal
podia acompanhá-lo na carreira. Já na esquina da rua parou e, fitando no outro o
seu olhar flamejante, perguntou-lhe:
— Você viu?!
— É... resmungou o parasita, de cabeça baixa, sem interromper os passos.
E seguiram em silêncio, andando agora mais devagar; ambos preocupados.
No fim de uma boa pausa, Botelho perguntou se Bertoleza era escrava
quando João Romão tomou conta dela.
Esta pergunta trouxe uma inspiração ao vendeiro. Ia pensando em metê-la
como idiota no Hospício de Pedro 11, mas acudia-lhe agora coisa muito melhor:
entregá-la ao seu senhor, restituí-la legalmente à escravidão.
Não seria difícil... considerou ele; era só procurar o dono da escrava,
dizer-lhe onde esta se achava refugiada e aquele ir logo buscá-la com a polícia.
E respondeu ao Botelho:
— Era e é!
— Ah! Ela é escrava? De quem?
— De um tal Freitas de Melo. O primeiro nome não sei. Gente de fora. Em
casa tenho as notas.
— Ora! então a coisa é simples!... Mande-a p’ro dono!
— E se ela não quiser ir?...
— Como não?! A polícia a obrigará! É boa!
— Ela há de querer comprar a liberdade...
— Pois que a compre, se o dono consentir!... Você com isso nada mais tem
que ver! E se ela voltar à sua procura, despache-a logo; se insistir, vá então à
autoridade e queixe-se! Ah, meu caro, estas coisas, para serem bem feiras,
fazem-se assim ou não se fazem! Olhe que aquele modo com que ela lhe falou
há pouco é o bastante para você ver que semelhante estupor não lhe convém
dentro de casa nem mais um instante! Digo-lhe até: já não só pelo fato do
casamento, mas por tudo! Não seja mole!
João Romão escutava, caminhando calado, sem mais vislumbres de
agitação. Tinham chegado à praia.
— Você quer encarregar-se disto? propôs ele ao companheiro, parando
ambos à espera do bonde; se quiser pode tratar, que lhe darei uma gratificação
menos má...
— De quanto?...
— Cem mil-réis!
— Não! dobre!
— Terás os duzentos!
— Está dito! Eu cá, pra tudo que for pôr cobro a relaxamento de negro,
estou sempre pronto!
— Pois então logo mais à tarde lhe darei, ao certo, o nome do dono, o lugar
em que ele residia quando ela veio para mim e o mais que encontrar a respeito.
— E o resto fica a meu cuidado! Pode dá-la por despachada!
XXII
Desde esse dia Bertoleza fez-se ainda mais concentrada e resmungona e só
trocava com o amigo um ou outro monossílabo inevitável no serviço da casa.
Entre os dois havia agora desses olhares de desconfiança, que são abismos de
constrangimento entre pessoas que moram juntas. A infeliz vivia num
sobressalto constante; cheia de apreensões, com medo de ser assassinada; só
comia do que ela própria preparava para si e não dormia senão depois de
fechar-se a chave. À noite o mais ligeiro rumor a punha de pé, olhos
arregalados, respiração convulsa, boca aberta e pronta para pedir socorro ao
primeiro assalto.
No entanto, em redor do seu desassossego e do seu mal-estar, tudo ali
prosperava forte em grosso, aos contos de réis, com a mesma febre com que
dantes, em torno da sua atividade de escrava trabalhadeira, os vinténs choviam
dentro da gaveta da venda. Durante o dia paravam agora em frente do armazém
carroças e carroças com fardos e caixas trazidos da alfândega, em que se liam as
iniciais de João Romão; e rodavam-se pipas e mais pipas de vinho e de vinagre,
e grandes partidas de barricas de cerveja e de barris de manteiga e de sacos de
pimenta. E o armazém, com as suas portas escancaradas sobre o público, engolia
tudo de um trago, para depois ir deixando sair de novo, aos poucos, com um
lucro lindíssimo, que no fim do ano causava assombros. João Romão fizera-se o
fornecedor de todas as tabernas e armarinhos de Botafogo; o pequeno comércio
sortia-se lá para vender a retalho. A sua casa tinha agora um pessoal complicado
de primeiros, segundos e terceiros caixeiros, além do guarda-livros, do
comprador, do despachante e do caixa; do seu escritório saiam correspondências
em várias línguas e, por dentro das grades de madeira polida, onde havia um
bufete sempre servido com presunto, queijo e cerveja, faziam-se largos contratos
comerciais, transações em que se arriscavam fortunas; e propunham-se
negociações de empresas e privilégios obtidos do governo; e realizavam-se
vendas e compras de papéis; e concluíam-se empréstimos de juros fortes sobre
hipotecas de grande valor. E ali ia de tudo: o alto e o baixo negociante;
capitalistas adulados e mercadores falidos; corretores de praça, zangões,
cambistas; empregados públicos, que passavam procuração contra o seu
ordenado; empresários de teatro e fundadores de jornais, em aparos de dinheiro;
viúvas, que negociavam o seu montepio; estudantes, que iam receber a sua
mesada; e capatazes de vários grupos de trabalhadores pagos pela casa; e,
destacando-se de todos, pela quantidade, os advogados e a gente miúda do foro,
sempre inquieta, farisqueira, a meter o nariz em tudo, feia, a papelada debaixo
do braço, a barba por fazer, o cigarro babado e apagado a um canto da boca.
E, como a casa comercial de João Romão, prosperava igualmente a sua
avenida. Já lá se não admitia assim qualquer pé-rapado: para entrar era preciso
carta de fiança e uma recomendação especial. Os preços dos cômodos subiam, e
muitos dos antigos hóspedes, italianos principalmente, iam, por economia,
desertando para o "Cabeça-de-Gato" e sendo substituídos por gente mais limpa.
Decrescia também o número das lavadeiras, e a maior parte das casinhas eram
ocupadas agora por pequenas famílias de operários, artistas e praticantes de
secretaria. O cortiço aristocratizava-se. Havia um alfaiate logo à entrada, homem
sério, de suíças que cosia na sua máquina entre oficiais, ajudado pela mulher,
uma lisboeta cor de nabo, gorda, velhusca, com um principio de bigode e
cavanhaque, mas extremamente circunspecta; em seguida um relojoeiro calvo,
de óculos, que parecia mumificado atrás da vidraça em que ele, sem mudar de
posição, trabalhava, da manhã até à tarde; depois um pintor de tetos e tabuletas,
que levou a fantasia artística ao ponto de fazer, a pincel, uma trepadeira em volta
da sua porta, onde se viam pássaros de várias cores e feitios, muito
comprometedores para o crédito profissional do autor; mais adiante instalara-se
um cigarreiro, que ocupava nada menos de três números na estalagem e tinha
quatro filhas e dois filhos a fabricarem cigarros, e mais três operárias que
preparavam palha de milho e picavam e desfiavam tabaco. Florinda, metida
agora com um despachante de estrada de ferro, voltara para o São Romão e
trazia a sua casinha em muito bonito pé de limpeza e arranjo. Estava ainda de
luto pela mãe, a pobre velha Marciana, que ultimamente havia morrido no
hospício dos doidos. Aos domingos o despachante costumava receber alguns
camaradas para jantar, e como a rapariga puxava os feitios da Rita Baiana, as
suas noitadas acabavam sempre em pagode de dança e cantarola, mas tudo de
portas adentro, que ali já se não admitiam sambas e chinfrinadas ao relento. A
Machona quebrara um pouco de gênio depois da morte de Agostinho e era agora
visitada por um grupo de moços do comércio, entre os quais havia um
pretendente à mão de Nenen, que se mirrava já de tanto esperar a seco por
marido. Alexandre fora promovido a sargento e empertigava-se ainda mais
dentro da sua farda nova, de botões que cegavam; a mulher, sempre
indiferentemente fecunda e honesta, parecia criar bolor na sua moleza úmida e
tinha um ar triste de cogumelo; era vista com freqüência a dar de mamar a um
pequerrucho de poucos meses, empinando muito a barriga para a frente, pelo
hábito de andar sempre grávida. A sua comadre Léonie continuava a visitá-la de
vez em quando, aturdindo a atual pacatez daquele cenóbio com as suas roupas
gritadoras. Uma ocasião em que lá fora, um sábado à tarde, produzira grande
alvoroço entre os decanos da estalagem, porque consigo levava Pombinha, que
se atirara ao mundo e vivia agora em companhia dela.
Pobre Pombinha! no fim dos seus primeiros dois anos de casada já não
podia suportar o marido; todavia, a principio, para conservar-se mulher honesta,
tentou perdoar-lhe a falta de espírito, os gostos rasos e a sua risonha e fatigante
palermice de homem sem ideal; ouviu-lhe, resignada, as confidências banais nas
horas intimas do matrimônio; atendeu-o nas suas exigências mesquinhas de
ciumento que chora; tratou-o com toda a solicitude, quando ele esteve a decidir
com uma pneumonite aguda; procurou afinar em tudo com o pobre rapaz; não
lhe falou nunca em coisas que cheirassem a luxo, a arte, a estética, a
originalidade; escondeu a sua mal-educada e natural intuição pelo que é grande,
ou belo, ou arrojado, e fingiu ligar interesse ao que ele fazia, ao que ele dizia, ao
que ele ganhava, ao que ele pensava e ao que ele conseguia com paciência na
sua vida estreita de negociante rotineiro; mas, de repente, zás! faltou-lhe o
equilíbrio e a mísera escorregou, caindo nos braços de um boêmio de talento,
libertino e poeta, jogador e capoeira. O marido não deu logo pela coisa, mas
começou a estranhar a mulher, a desconfiar dela e a espreitá-la, até que um belo
dia, seguindo-a na rua sem ser visto, o desgraçado teve a dura certeza de que era
traído pela esposa, não mais com o poeta libertino, mas com um artista
dramático que muitas vezes lhe arrancara, a ele, sinceras lágrimas de comoção,
declamando no teatro em honra da moral triunfante e estigmatizando o adultério
com a retórica mais veemente e indignada.
Ah! não pôde iludir-se!... e, a despeito do muito que amava à ingrata,
rompeu com ela e entregou-a à mãe, fugindo em seguida para São Paulo. Dona
Isabel, que sabia já, não desta última falcatrua da filha, mas das outras primeiras,
que bem a mortificaram, coitada! desfez-se em lágrimas, aconselhou-a a que se
arrependesse e mudasse de conduta; em seguida escreveu ao genro, intercedendo
por Pombinha, jurando que agora respondia por ela e pedindo-lhe que
esquecesse o passado e voltasse para junto de sua mulher. O rapaz não
respondeu à carta, e, daí a meses, Pombinha desapareceu da casa da mãe. Dona
Isabel quase morre de desgosto. Para onde teria ido a filha?... "Onde está? onde
não está? Procura daqui! procura daí!" Só a descobriu semanas depois; estava
morando num hotel com Léonie. A serpente vencia afinal: Pombinha foi, pelo
seu próprio pé, atraída, meter-se-lhe na boca. A pobre mãe chorou a filha como
morta; mas, visto que os desgostos não lhe tiraram a vida por uma vez e, como a
desgraçada não tinha com que matar a fome, nem forças para trabalhar, aceitou
de cabeça baixa o primeiro dinheiro que Pombinha lhe mandou. E, desde então,
aceitou sempre, constituindo-se a rapariga no seu único amparo da velhice e
sustentando-a com os ganhos da prostituição. Depois, como neste mundo uma
criatura a tudo se acostuma, Dona Isabel mudou-se para a casa da filha. Mas não
aparecia nunca na sala quando havia gente de fora, escondia-se; e, se algum dos
freqüentadores de Pombinha a pilhava de improviso, a infeliz, com vergonha de
si mesma, fingia-se criada ou dama de companhia. O que mais a desgostava, e o
que ela não podia tolerar sem apertos de coração, era ver a pequena
endemoninhar-se com champanha depois do jantar e pôr-se a dizer tolices e a
estender-se ali mesmo no colo dos homens. Chorava sempre que a via entrar
ébria, fora de horas, depois de uma orgia; e, de desgosto em desgosto, foi-se
sentindo enfraquecer e enfermar, até cair de cama e mudar-se para uma casa de
saúde, onde afinal morreu.
Agora, as duas cocotes, amigas inseparáveis, terríveis naquela
inquebrantável solidariedade, que fazia delas uma só cobra de duas cabeças,
dominavam o alto e o baixo Rio de Janeiro. Eram vistas por toda a parte onde
houvesse prazer; a tarde, antes do jantar, atravessavam o Catete em carro
descoberto, com a Juju ao lado; à noite, no teatro, em um camarote de boca
chamavam sobre si os velhos conselheiros desfibrados pela política e ávidos de
sensações extremas, ou arrastavam para os gabinetes particulares dos hotéis os
sensuais e gordos fazendeiros de café, que vinham à corte esbodegar o farto
produto das safras do ano, trabalhadas pelos seus escravos. Por cima delas duas
passara uma geração inteira de devassos. Pombinha, só com três meses de cama
franca, fizera-se tão perita no ofício como a outra; a sua infeliz inteligência,
nascida e criada no modesto lodo da estalagem, medrou logo admiravelmente na
lama forte dos vícios de largo fôlego; fez maravilhas na arte; parecia adivinhar
todos os segredos daquela vida; seus lábios não tocavam em ninguém sem tirar
sangue; sabia beber, gota a gota, pela boca do homem mais avarento, todo o
dinheiro que a vitima pudesse dar de si. Entretanto, lá na Avenida São Romão,
era, como a mestra, cada vez mais adorada pelos seus velhos e fiéis
companheiros de cortiço; quando lá iam, acompanhadas por Juju, a porta da
Augusta ficava, como dantes, cheia de gente, que as abençoava com o seu
estúpido sorriso de pobreza hereditária e humilde. Pombinha abria muito a
bolsa, principalmente com a mulher de Jerônimo, a cuja filha, sua protegida
predileta, votava agora, por sua vez, uma simpatia toda especial, idêntica à que
noutro tempo inspirara ela própria à Léonie. A cadeia continuava e continuaria
interminavelmente; o cortiço estava preparando uma nova prostituta naquela
pobre menina desamparada, que se fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe
ébria.
E era, ainda assim, com essas esmolas de Pombinha, que na casa de Piedade
não faltava de todo o pão, porque já ninguém confiava roupa à desgraçada, e
nem ela podia dar conta de qualquer trabalho.
Pobre mulher! chegara ao extremo dos extremos. Coitada! já não causava
dó, causava repugnância e nojo. Apagaram-se-lhe os últimos vestígios do brio;
vivia andrajosa, sem nenhum trato e sempre ébria, dessa embriaguez sombria e
mórbida que se não dissipa nunca. O seu quarto era o mais imundo e o pior de
toda a estalagem; homens malvados abusavam dela, muitos de uma vez,
aproveitando-se da quase completa inconsciência da infeliz. Agora, o menor
trago de aguardente a punha logo pronta; acordava todas as manhãs apatetada,
muito triste, sem animo para viver esse dia, mas era só correr à garrafa e
voltavam-lhe as risadas frouxas, de boca que já se não governa. Um empregado
de João Romão, que ultimamente fazia as vezes dele na estalagem, por três
vezes a enxotou, e ela, de todas, pediu que lhe dessem alguns dias de espera,
para arranjar casa. Afinal, no dia seguinte ao último em que Pombinha apareceu
por lá com Léonie e deixou-lhe algum dinheiro, despejaram-lhe os tarecos na
rua.
E a mísera, sem chorar, foi refugiar-se, junto com a filha, no
"Cabeça-de-Gato" que, à proporção que o São Romão se engrandecia, mais e
mais ia-se rebaixando acanalhado, fazendo-se cada vez mais torpe, mais abjeto,
mais cortiço, vivendo satisfeito do lixo e da salsugem que o outro rejeitava,
como se todo o seu ideal fosse conservar inalterável, para sempre, o verdadeiro
tipo da estalagem fluminense, a legitima, a legendária; aquela em que há um
samba e um rolo por noite; aquela em que se matam homens sem a polícia
descobrir os assassinos; viveiro de larvas sensuais em que irmãos dormem
misturados com as irmãs na mesma lama; paraíso de vermes, brejo de lodo
quente e fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma podridão.
XXIII
À porta de uma confeitaria da Rua do Ouvidor, João Romão, apurado num
fato novo de casimira clara, esperava pela família do Miranda, que nesse dia
andava em compras.
Eram duas horas da tarde e um grande movimento fazia-se ali. O tempo
estava magnífico; sentia-se pouco calor. Gente entrava e saia, a passo frouxo, da
Casa Pascoal. Lá dentro janotas estacionavam de pé, soprando o fumo dos
charutos, à espera que desocupassem uma das mesinhas de mármore preto;
grupos de senhoras, vestidas de seda, faziam lanche com vinho do Porto.
Respirava-se um cheiro agradável de essências e vinagres aromáticos; havia um
rumor quente e garrido, mas bem-educado; namorava-se forte, mas com
disfarce, furtando-se olhares no complicado encontro dos espelhos; homens
bebiam ao balcão e outros conversavam, comendo empadinhas junto às estufas;
algumas pessoas liam já os primeiros jornais da tarde; serventes, muito
atarefados, despachavam compras de doces e biscoitos e faziam, sem descansar,
pacotes de papel de cor, que os compradores levavam pendurados num dedo. Ao
fundo, de um dos lados do salão, aviavam-se grandes encomendas de banquetes
para essa noite, traziam-se lá de dentro, já prontas, torres e castelos de balas e
trouxas d’ovos e imponentes peças de cozinha caprichosamente enfeitadas;
criados desciam das prateleiras as enormes baixelas de metal branco, que os
companheiros iam embalando em caixões com papel fino picado. Os
empregados das secretarias públicas vinham tomar o seu vermute com sifão;
repórteres insinuavam-se por entre os grupos dos jornalistas e dos políticos, com
o chapéu à ré, ávidos de noticias, uma curiosidade indiscreta nos olhos. João
Romão, sem deixar a porta, apoiado no seu guarda-chuva de cabo de marfim,
recebia cumprimentos de quem passava na rua; alguns paravam para lhe falar.
Ele tinha sorrisos e oferecimentos para todos os lados; e consultava o relógio de
vez em quando.
Mas a família do Barão surgiu afinal. Zulmira vinha na frente, com um
vestido cor de palha justo ao corpo, muito elegante no seu tipo de fluminense
pálida e nervosa; logo depois Dona Estela, grave, toda de negro, passo firme e ar
severo de quem se orgulha das suas virtudes e do bom cumprimento dos seus
deveres. O Miranda acompanhava-as de sobrecasaca, fitinha ao peito, o
colarinho até ao queixo, botas de verniz, chapéu alto e bigode cuidadosamente
raspado. Ao darem com João Romão, ele sorriu e Zulmira também; só Dona
Estela conservou inalterável a sua fria máscara de mulher que não dá verdadeira
importância senão a si mesma.
O ex-taverneiro e futuro visconde foi, todavia, ao encontro deles, cheio de
solicitude, descobrindo-se desde logo e convidando-os com empenho a que
tomassem alguma coisa.
Entraram todos na confeitaria e apoderaram-se da primeira mesa que se
esvaziou. Um criado acudiu logo e João Romão, depois de consultar Dona
Estela, pediu sanduíches, doces e moscatel de Setúbal. Mas Zulmira reclamou
sorvete e licor. E só esta falava; os outros estavam ainda à procura de um
assunto para a conversa; afinal o Miranda que, durante esse tempo contemplava
o teto e as paredes, fez algumas considerações sobre as reformas e novos
adornos do salão da confeitaria. Dona Estela dirigiu, de má, a João Romão
várias perguntas sobre a companhia lírica, o que confundiu por tal modo ao
pobre do homem, que o pôs vermelho e o desnorteou de todo. Felizmente, nesse
instante chegava o Botelho e trazia uma noticia: a morte de um sargento no
quartel; questão entre inferior e superior. O sargento, insultado por um oficial do
seu batalhão, levantara a mão contra ele, e o oficial então arrancara da espada e
atravessara-o de lado a lado. Estava direito! Ah! ele era rigoroso em pontos de
disciplina militar! Um sargento levantara a mão para um oficial superior!...
devia ficar estendido ali mesmo, que dúvida!
E faiscavam-lhe os olhos no seu inveterado entusiasmo por tudo que
cheirasse a farda. Vieram logo as anedotas análogas; o Miranda contou um fato
idêntico que se dera vinte anos atrás e Botelho citou uma enfiada deles
interminável.
Quando se levantaram, João Romão deu o braço a Zulmira e o Barão à
mulher, e seguiram todos para o Largo de São Francisco, lentamente, em andar
de passeio, acompanhados pelo parasita. Lá chegados, Miranda queria que o
vizinho aceitasse um lugar no seu carro, mas João Romão tinha ainda que fazer
na cidade e pediu dispensa do obséquio. Botelho também ficou; e, mal a
carruagem partiu, este disse ao ouvido do outro, sem tomar fôlego:
— O homem vai hoje, sabe? Está tudo combinado!
— Ah! vai? perguntou João Romão com interesse, estacando no meio do
largo. Ora graças! Já não é sem tempo!
— Sem tempo! Pois olhe, meu amigo, que tenho suado o topete! Foi uma
campanha!
— Há que tempo já tratamos disto!...
— Mas que quer você, se o homem não aparecia?... Estava fora! Escrevi-lhe
várias vezes, como sabe, e só agora consegui pilhá-lo. Fui também à polícia duas
vezes e já lá voltei hoje; ficou tudo pronto! mas você deve estar em casa para
entregar a crioula quando eles lá se apresentarem...
— Isso é que seria bom se se pudesse dispensar... Desejava não estar
presente...
— Ora essa! Então com quem se entendem eles?... Não! tenha paciência! é
preciso que você lá esteja!
— Você podia fazer as minhas vezes...
— Pior! Assim não arranjamos nada! Qualquer dúvida pode entornar o
caldo! É melhor fazer as coisas bem feitas. Que diabo lhe custa isto?... Os
homenzinhos chegam, reclamam a escrava em nome da lei, e você a entrega —
pronto! Fica livre dela para sempre, e daqui a dias estoura o champanha do
casório! Hein, não lhe parece?
— Mas...
— Ela há de choramingar, fazer lamúrias e coisas, mas você põe-se duro e
deixe-a seguir lá o seu destino!... Bolas! não foi você que a fez negra!...
— Pois vamos lá! creio que são horas.
— Que horas são?
— Três e vinte.
— Vamos indo.
E desceram de novo a Rua do Ouvidor até ao ponto dos bondes de
Gonçalves Dias.
— O de São Clemente não está agora, observou o velho. Vou tomar um
copo d’água enquanto esperamos.
Entraram no botequim do lugar e, para conversar assentados, pediram dois
cálices de conhaque.
— Olhe, acrescentou o Botelho; você nem precisa dizer palavra... faça como
coisa que não tem nada com isso, compreende?
— E se o homem quiser os ordenados de todo o tempo em que ela esteve em
minha companhia?...
— Como, filho, se você não a alugou das mãos de ninguém?!... Você não
sabe lá se a mulher é ou era escrava; tinha-a por livre naturalmente; agora
aparece o dono, reclama-a e você a entrega, porque não quer ficar com o que lhe
não pertence! Ela, sim, pode pedir o seu saldo de contas; mas para isso você lhe
dará qualquer coisa...
— Quanto devo dar-lhe?
— Aí uns quinhentos mil-réis, para fazer a coisa à fidalga.
— Pois dou-lhos.
— E feito isso — acabou-se! O próprio Miranda vai logo, logo, ter com
você! Verá!
Iam falar ainda, mas o bonde de São Clemente acabava de chegar, assaltado
por todos os lados pela gente que o esperava. Os dois só conseguiram lugar
muito separados um do outro, de sorte que não puderam conversar durante a
viagem.
No Largo da Carioca uma vitória passou por eles, a todo o trote. Botelho
vergou-se logo para trás, procurando os olhos do vendeiro, a rir-se com
intenção. Dentro do carro ia Pombinha, coberta de jóias, ao lado de Henrique;
ambos muito alegres, em pândega. O estudante, agora no seu quarto ano de
medicina, vivia à solta com outros da mesma idade e pagava ao Rio de Janeiro o
seu tributo de rapazola rico.
Ao chegarem à casa, João Romão pediu ao cúmplice que entrasse e levou-o
para o seu escritório.
— Descanse um pouco... disse-lhe.
— É, se eu soubesse que eles se não demoravam muito ficava para ajudá-lo.
— Talvez só venham depois do jantar, tornou aquele, assentando-se à
carteira.
Um caixeiro aproximou-se dele respeitosamente e fez-lhe várias perguntas
relativas ao serviço do armazém, ao que João Romão respondia por
monossílabos de capitalista; interrogou-o por sua vez e, como não havia
novidade, tomou Botelho pelo braço e convidou-o a sair.
— Fique para jantar. São quatro e meia, segredou-lhe na escada.
Já não era preciso prevenir lá defronte porque agora o velho parasita comia
muitas vezes em casa do vizinho.
O jantar correu frio e contrafeito; os dois sentiam-se ligeiramente
dominados por um vago sobressalto. João Romão foi pouco além da sopa e quis
logo a sobremesa.
Tomavam café, quando um empregado subiu para dizer que lá embaixo
estava um senhor, acompanhado de duas praças, e que desejava falar ao dono da
casa.
— Vou já, respondeu este. E acrescentou para o Botelho: — São eles!
— Deve ser, confirmou o velho.
E desceram logo.
— Quem me procura?... exclamou João Romão com disfarce, chegando ao
armazém.
Um homem alto, com ar de estróina, adiantou-se e entregou-lhe uma folha
de papel.
João Romão, um pouco trêmulo, abriu-a defronte dos olhos e leu-a
demoradamente. Um silêncio formou-se em torno dele; os caixeiros pararam em
meio do serviço, intimidados por aquela cena em que entrava a polícia.
— Está aqui com efeito... disse afinal o negociante. Pensei que fosse livre...
— É minha escrava, afirmou o outro. Quer entregar-ma?...
— Mas imediatamente.
— Onde está ela?
— Deve estar lá dentro. Tenha a bondade de entrar...
O sujeito fez sina! aos dois urbanos, que o acompanharam logo, e
encaminharam-se todos para o interior da casa. Botelho, à frente deles,
ensinava-lhes o caminho. João Romão ia atrás, pálido, com as mãos cruzadas
nas costas.
Atravessaram o armazém, depois um pequeno corredor que dava para um
pátio calçado, chegaram finalmente à cozinha. Bertoleza, que havia já feito subir
o jantar dos caixeiros, estava de cócoras, no chão, escamando peixe, para a ceia
do seu homem, quando viu parar defronte dela aquele grupo sinistro.
Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo senhor, e um calafrio
percorreu-lhe o corpo. Num relance de grande perigo compreendeu a situação;
adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido para sempre: adivinhou
que tinha sido enganada; que a sua carta de alforria era uma mentira, e que o seu
amante, não tendo coragem para matá-la, restituía-a ao cativeiro.
Seu primeiro impulso foi de fugir. Mal, porém, circunvagou os olhos em
torno de si, procurando escapula, o senhor adiantou-se dela e segurou-lhe o
ombro.
— É esta! disse aos soldados que, com um gesto, intimaram a desgraçada a
segui-los. — Prendam-na! É escrava minha!
A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos
espalmada no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada
para eles, sem pestanejar.
Os policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres.
Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e,
antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo
rasgara o ventre de lado a lado.
E depois embarcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa
lameira de sangue.
João Romão fugira até ao canto mais escuro do armazém, tapando o rosto
com as mãos.
Nesse momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de
abolicionistas que vinha, de casaca! trazer-lhe respeitosamente o diploma de
sócio benemérito.
Ele mandou que os conduzissem para a sala de visitas.