MANIFESTAÇÕES POPULARES E LUTAS DE CLASSES
Nildo Viana
As recentes manifestações populares ganharam um grande espaço nos meios
oligopolistas de comunicação, nas conversas cotidianas e em diversos outros locais.
Suscitaram diferentes interpretações e análises, como todos os movimentos e
mobilizações geralmente fazem. A tarefa de analisar tais manifestações é importante
para a sua própria continuidade e reformulação e é feita pelos seus integrantes mais
ativos, mas também pelos menos ativos e até por seus adversários e que estão alheios e
longe dos acontecimentos. O nosso objetivo é analisar o significado de tais
manifestações para a sociedade atual e suas possíveis consequências no processo de luta
de classes a partir de agora.
Um primeiro ponto é recordar a historicidade de tais manifestações. Elas
emergem como resultado do desenvolvimento capitalista, no qual o regime de
acumulação integral (caracterizado pelo neoliberalismo, toyotismo e neoimperialismo)
vem se desgastando e encontrando dificuldades crescentes de reprodução. Em outro
lugar já desenvolvemos uma análise desse processo e não o repetiremos aqui (VIANA,
2013). O novo regime de acumulação traz em si o processo de intensificação geral da
exploração, tal como alguns pesquisadores colocaram (VIANA, 2009; BOURDIEU,
1998; VIANA, 2003). Apesar disso, as ideologias dominantes (neoliberal, pósestruturalista, etc.) conseguiram produzir um recuo do pensamento críticorevolucionário que somente a partir dos anos 2000 começou a reemergir com mais
força, mas muitas vezes mesclado e domesticado por essas mesmas ideologias. De
qualquer forma, o ressurgimento do anarquismo, o avanço de um marxismo antes
desconhecido e externo aos partidos políticos (Debord e o situacionismo, comunismo de
conselhos, etc.) fez emergir uma cultura contestadora, embora marginal. As lutas sociais
também avançaram após a era de conservadorismo e estabilidade fundada na repressão e
hegemonia burguesa fortemente estruturada.
No caso brasileiro, as políticas neoliberais foram se consolidando e ganhou a
face neopopulista do Partido dos Trabalhadores no governo (primeiro Lula e depois
Dilma). A insatisfação se manifestava através de alguns poucos intelectuais críticos,
alguns indivíduos militantes, grupos anarquistas, autonomistas e autogestionários, e de
forma subterrânea por vários setores da sociedade. Na maioria dos casos, a insatisfação
existia, mas não se manifestava. A política institucional (democracia burguesa) foi
perdendo cada vez mais legitimidade. O aumento do voto nulo (VIANA, 2010), bem
como os votos em branco e abstenções, foi crescendo paulatinamente. O silenciamento
da oposição com a vitória do PT – Partido dos Trabalhadores, a grande oposição
institucional (ou seja, dentro das regras do jogo) e que movia ilusões, reforçou esse
processo. Os seus aparatos (CUT – Central Única dos Trabalhadores; MST –
Movimento dos Sem-Terra; sem falar nos sindicatos, movimentos sociais, etc. e sem
falar noutros aparatos dominados por seus partidos aliados, como o PCdoB – Partido
Comunista do Brasil, especialmente a UNE – União Nacional dos Estudantes) foram
domesticados e a oposição de direita nada apontava de novo e alternativo e a suposta
“esquerda” além de ultrapassada e fora da realidade, não tinha nenhuma grande força
mobilizadora e não servia para inspiração popular, além de não se diferenciar tanto do
partido governista. O governo Dilma nasceu ilegítimo, pois foi uma minoria da
população que lhe apoiou eleitoralmente (VIANA, 2010). As pesquisas de opinião
pública lhe davam uma popularidade falsa e que as manifestações serviram para
demonstrar e agora as mesmas pesquisas começam a mostrar a realidade ao invés da
farsa.
É nesse contexto de perda de legitimidade da democracia representativaburguesa e num contexto de diminuição do crescimento econômico, um dos elementos
mais propagandeados do governo federal, bem como corrosão do poder aquisitivo dos
salários com o aumento da inflação, entre outros aspectos, formam uma situação de
descontentamento de amplas parcelas da população. Um dos elementos de insatisfação
era o transporte coletivo que, em todo o país, é de má qualidade e tarifas relativamente
elevadas. Segundo alguns cálculos, o gasto com tarifas de transporte significava em
torno de 27% do salário mínimo.
É neste contexto que emerge as manifestações e protestos por todo o país. Num
primeiro
momento, pela composição social e reivindicações, tratava-se de
manifestações estudantis (universitários e secundaristas), que expressam um dos setores
mais avançados politicamente da sociedade brasileira. Através de algumas formas de
auto-organização, diversos grupos estudantis, especialmente o MPL – Movimento Passe
Livre, faziam reivindicações para os estudantes (o passe livre) e para o restante da
população (não aumento do preço da passagem). A ação estatal foi recusar atender a
reivindicação e usar a violência estatal contra os manifestantes. O caso do dia 28 de
maio em Goiânia, na sequência de outras realizadas, tal como em Porto Alegre, foi
aquele no qual a truculência e política de terror de Estado apareceu de forma mais
cristalina e geraram protestos e apoio popular, o que foi reforçado por outras
manifestações e pelas notícias na grande imprensa e até no exterior. O governo
mantinha sua posição de “política de endurecimento”, recusando negociar e afirmando
que não voltaria atrás, tal como no caso exemplar de São Paulo, quando o prefeito
Fernando Haddad disse que não recuaria. A grande imprensa condenava os protestos e
manteve essa posição por algum tempo.
Foi nesse contexto que as manifestações estudantis geraram manifestações
populares espontâneas. Ao lado das reivindicações estudantis, diversos outros setores da
população passaram a se manifestar e apresentar diversas outras reivindicações. A
população nas ruas atingiu grandes proporções e num primeiro momento a grande
imprensa condenou e o governo silenciou e, num segundo momento, passaram a aceitar
os protestos, mas querendo lhe dar um caráter “pacífico” e de “união nacional”, o que
influenciou diversos setores da população, mas não a totalidade. As manifestações
estudantis continuaram ocorrendo, às vezes junto com as manifestações populares, às
vezes de forma isolada. As manifestações populares explodiram por todo o país,
inclusive em pequenas cidades do interior.
Mais recentemente, outros setores da sociedade passaram a se inserir trazendo
novas reivindicações, como estrutura urbana, preço de passagens e alguns passaram a
defender aumentos salariais, redução da jornada de trabalho, greve geral, entre outras
reivindicações tipicamente de trabalhadores. Por outro, os velhos e desgastados partidos
de “esquerda” tentaram se aproximar da população, apesar de sua evidente recusa. A
imprensa manteve o jogo de apoiar, mas agora contestando os setores mais radicais,
acusados de “vandalismo”. O governo federal (bem como parte dos demais) muda sua
estratégia e passa a reconhecer a legitimidade dos protestos, mas, tal como a grande
imprensa, fazendo questão de distinguir “manifestantes pacíficos” e “vândalos” e
posteriormente passa a querer acalmar os ânimos através de promessas e atendimento
parcial e moderado de parte das reivindicações. O não aumento dos preços das
passagens, a não aprovação da PEC 37, as propostas evasivas de plebiscito e referendo,
a transformação da corrupção em crime hediondo e a prisão decretada de um deputado
escolhido como “bode expiatório” são alguns dos exemplos dessa nova política.
A luta de classes no Brasil atual
Esse processo todo revela um processo de luta de classes que vem se
radicalizando na sociedade brasileira. As manifestações estudantis, o primeiro momento
dessa luta, era um processo de reivindicação principalmente de estudantes (de diversas
classes sociais) que entrava em confronto com o Estado capitalista, pois a reivindicação
básica era a questão do passe livre e questão do preço das passagens, e elementos
derivados. O alvo foi a burocracia estatal, pois esta é a responsável pela regulamentação
do transporte coletivo e, portanto, a classe capitalista foi atingida apenas indiretamente.
Porém, seus interesses estavam em jogo, pois o seu objetivo era aumentar seu lucro com
o aumento do preço das passagens, e a luta estudantil era contra tal aumento e ainda
outros elementos que também atingiam suas margens de lucro. A burocracia estatal,
como sempre, saiu em defesa do capital, e reprimiu violentamente através dos seus
aparatos repressivos, os estudantes. Isso abriu uma brecha que deu visibilidade maior
para essa luta e a inclusão de outros setores nas manifestações.
As manifestações populares possibilitaram uma ampliação da base social, que
era predominantemente estudantil, englobando setores das classes auxiliares da
burguesia (burocracia, intelectualidade), trabalhadores (proletários, subalternos, etc.). A
composição social dos manifestantes não é homogênea como muitos discursos colocam.
Embora se possa dizer que as classes privilegiadas, com exceção da burguesia e da
grande burocracia, tenha um grande contingente, muitos trabalhadores e outros setores
também estavam presentes. O discurso de que se trata de movimento de “classe média”,
termo não marxista e abstrato-metafísico, é equivocado por criar uma homogeneidade
onde ela não existe. A suposta “classe média”, definida de forma abstrato-metafísica por
nível de renda, é composta, na verdade, por diversas classes sociais, com modos de
vida, posição na divisão social do trabalho, interesses, distintos1. Da mesma forma, o
uso de expressões abstratas e problemáticas como “povo” e “massa” exerce a mesma
função de homogeneizar o que é heterogêneo.
O termo “população”, também é abstrato, e o próprio Marx usa tal expressão
para discutir o método dialético, colocando que para entender esse termo é preciso
reconhecer a sociedade como um todo, a divisão de classes, etc. (MARX, 1983). Como
não há apenas uma classe e não há homogeneidade, o termo população, desde que
entendido seu caráter heterogêneo e policlassista, é uma alternativa para não cair em
termos pejorativos e uniformizantes como “povo” e “massa”, ou, ainda, “classe média”.
1
Esse é o caso da intelectualidade, classe auxiliar da burguesia, que presta admiravelmente bem os seus
serviços ao capital e governo brasileiro. Basta ver as entrevistas na grande imprensa para se notar. Não
se trata apenas dos “lacaios da pena”, os “sicofantas”, para parafrasear Marx em sua crítica aos
economistas vulgares, tal como é o caso de Marilena Chauí, mas inclusive outros que estão em partidos
que se dizem mais à esquerda e até “revolucionário” e mostram sua preocupação com a “ordem” e
“progresso” e a democracia burguesa, condenando, junto com seus aliados, os setores mais radicais da
sociedade.
A compreensão de quem são os manifestantes, no entanto, deve ir além e
entender que o que se tem é um conjunto de indivíduos atomizados, diversas classes
enquanto classes determinadas (e não autodeterminadas, ou seja, não expressam
claramente os seus interesses e não agem como classe na maioria dos casos), correntes
de opinião, e há alguns casos de menor força quantitativa de unificação por questões de
raça, sexo, posição político-partidária, etc. Esse grande contingente fez proliferar um
conjunto de reivindicações, sendo que algumas se destacaram. A questão da corrupção,
da saúde, educação, foram as que mais apareceram, embora sem propostas concretas de
resolução, a não ser em pequenos casos pontuais (como a recusa da PEC 37).
O capital comunicacional, principalmente a partir da grande imprensa, se
aproveitou disso e, junto com o governo, buscou dividir entre “pacíficos” e “vândalos” e
reforçar uma tendência de ressaltar a unidade nacional, destacando nos noticiários a
posição contra a violência, as bandeiras do Brasil, hino nacional, etc. No bojo das
manifestações, setores mais reacionários e pequenos grupos fascistas emergiram. Os
partidos ditos de “esquerda” tentaram se integrar na onda de protestos, mas foram
rechaçados pela maior parte dos manifestantes.
Nesse contexto, a compreensão do caráter das manifestações deve ser realizada
não apenas com base na composição social, mesmo porque é heterogênea, e sim através
da percepção de quais são as principais tendências, ou seja, de quem detém a
hegemonia. Se lembrarmos de manifestações mais antigas, como a do “fora Collor”, é
perceptível uma forte hegemonia da classe dominante e suas classes auxiliares, tanto por
quem impulsionou as mesmas, quanto pelas propostas apresentadas. No caso atual, há
uma hegemonia da classe dominante e de suas classes auxiliares, mas que não é tão
sólida e nem é em todos os aspectos.
Um dos aspectos em que se nota a inexistência de uma hegemonia burguesa é
na questão da política institucional, na qual a recusa dos partidos políticos, a
contestação da corrupção, que expressam uma perda de legitimidade do Estado
capitalista. É por isso que o medo ronda a burguesia e suas classes auxiliares. Por outro
lado, há uma hegemonia não só percebida com as cores que as pessoas usam para se
manifestar, que é predominantemente “verde e amarelo”, mas também que a
contestação da corrupção é variada, sendo utilizada por determinados partidos e
indivíduos para suas disputas partidárias, enquanto que um setor menor aponta a
questão do caráter inerente da corrupção no Brasil e ainda outros que não sustentam
ilusões com a democracia partidária, mas não possuem propostas concretas e acabam
aceitando a solução legalista e ilusória no interior da própria institucionalidade
burguesa.
No fundo, o Governo Dilma e o capital comunicacional tenta por todos os
modos criar uma opinião pública desfavorável aos elementos mais radicais presentes
nas manifestações. Esses núcleos mais radicais são justamente um dos principais
responsáveis pelo começo dos protestos, quando eram predominantemente estudantis, e
que
são
reforçados
por
punks,
anarquistas,
autogestionários,
autonomistas,
determinados indivíduos e movimentos sociais mais politizados e contestadores, e que
acabam aglutinando alguns outros setores menos organizados, como é o caso de jovens
e alguns trabalhadores. A divisão entre “pacíficos” e “vândalos” é a divisão entre os
controlados e controláveis, por um lado, e os “incontroláveis” e não controlados, por
outro.
O grande medo da burguesia é que esses últimos acabem influenciando os
demais e passem a ter hegemonia sobre essa grande contingente. Os setores mais
contestadores são aparentemente pequenos. Contudo, tal como um jornal pouco
confiável colocou, podem chegar a 5% dos manifestantes. Oras, 5% de 60 mil, como no
caso de 20 de junho em Goiânia, ou de 300 mil no Rio de Janeiro, significa 3 e 15 mil
pessoas, respectivamente, o que é um contingente considerável e que mostra uma força
política enorme. Isso é ainda mais importante se recordarmos que estes setores
contestadores tem maior formação política e cultural do que a maioria dos integrantes
do grande contingente das manifestações e, portanto, podem disputar a hegemonia e
caso consigam se orientar e traçar planos de ação, propaganda e outras formas de luta,
poderão duplicar ou triplicar com relativa facilidade e assim aumentar seu peso e, se um
contingente grande de pessoas das classes exploradas aderirem às manifestações, o
“controle brando” das manifestações pode cair por terra e o risco para o capitalismo se
torna enorme. Por isso surge a campanha de governo e grande imprensa contra os
“vândalos” e o recuo do primeiro com tentativas de conter as manifestações com
promessas, paliativos e pequenas concessões. Esse setor da população também é mais
ativo e combativo e por isso tem mais presença nas manifestações. Tendo em vista a
grande insatisfação popular, há um risco real destes setores conseguirem aglutinar
grande parte da população e por isso o medo da classe dominante é justificado.
Contudo, é a luta de classes que determinará o encerramento desse processo. A
burocracia sindical e partidária está atrelada, no caso brasileiro, com o governo federal e
por isso não oferece resistência e nem alternativa. Os setores mais radicais da burocracia
partidária e sindical, dos pequenos partidos de esquerda e pequenos sindicatos,
compostos por uma burocracia que se encontra abaixo na hierarquia social da classe
burocrática, acabam querendo canalizar as lutas para a democracia burguesa para ganhar
espaços eleitorais e políticos, reforçando a tendência conservadora e burguesa, e os
intelectuais atrelados a essas frações da burocracia reproduzem o seu discurso. No
entanto, a recusa dos partidos pela população e sua impopularidade e falta de
capacidade mobilizadora e proximidade com trabalhadores e juventude os fazem ser
apenas apêndices da burguesia brasileira.
Luta de Classes, Possibilidades e Tendências
No contexto atual das lutas de classes, há um processo ainda nebuloso e que o
resultado ainda está por ser decidido. Existem várias possibilidades de desdobramentos,
tanto imediatos quanto em longo prazo. Uma das possibilidades é o refluxo das
manifestações e volta à estabilidade, por algum tempo, pois a força demonstrada nas
ruas e o conjunto das insatisfações, inclusive com a nova ofensiva da classe dominante e
governo após a estabilização devido suas necessidades, é algo que não deixará de existir
e por isso novas ondas de protestos tendem a ressurgir, bem como novas formas de luta
e organização tendem a se desenvolver, o que significa que a luta de classes no Brasil,
pois mais que o resultado seja o pior possível, estará num grau mais avançado a partir
de agora. A ação dos meios oligopolistas de comunicação, um setor do capital, e mais
influente junto à população, e do Governo Dilma (juntamente com os demais governos)
é unir repressão localizada aos grupos mais radicais e politizados com promessas e
concessões provisórias, o que tende a desmotivar a continuidade das manifestações por
alguns setores da população.
Em curto prazo isso pode surtir efeito. E a retomada da estabilidade e a
tentativa de canalizar a insatisfação para os meios institucionais (partidos, democracia
burguesa, etc.), no entanto, não apagará da memória da população o movimento recente
e nem destruirá os setores mais radicais da população. Além disso, o problema dos
obstáculos da acumulação capitalista e do desaceleramento do crescimento econômico e
retorno da inflação e outros problemas, tendem a fazer com que o Governo Federal e os
demais acabem revendo suas concessões, pois necessita conter os gastos estatais e
apoiar o capital na busca de aumento da exploração dos trabalhadores. Por conseguinte,
essas concessões não durarão muito tempo e muitas promessas não serão cumpridas,
além do fato de que a participação popular, canalizada para os meios institucionais ou
sob outras formas, também será rechaçada tão logo o governo sinta que a mobilização
da população recuou.
Outra possibilidade é a continuidade das manifestações e seus possíveis
resultados. Caso as manifestações continuem, mas não consigam avançar no sentido de
colocar reivindicações que manifestem diretamente os interesses das classes exploradas,
ela possibilitará uma crise institucional que geraria o foco em reforma política e o
surgimento de um novo “salvador da pátria”, numa guinada à direita, mesmo que isso
seja apoiado pelos partidos da suposta “esquerda”, tal como já se vê em discursos de
alguns intelectuais de tais organizações. A possibilidade da burocracia partidária e
sindical ter um papel proeminente está descartada, pois os partidos da suposta
“esquerda” são apenas restolhos insignificantes que se comprometem e afastam da
população cada vez mais, principalmente dos setores mais politizados e da juventude,
devido, nesse caso, às suas práticas, concepções e reprodução da sociabilidade
capitalista (corrupção, competição por cargos, burocratismo, etc.). Essa é uma
possibilidade de uma alternativa institucional, seja de direita ou de “esquerda” é remota,
tendo em vista que a recusa dos partidos é generalizada e que a desilusão com a
democracia representativa também, além da força dos setores mais radicais e dos
problemas que geraram as manifestações e a não solução dos mesmos, seja qual for a
força política que tente canalizar esse processo de luta.
Uma terceira possibilidade, ainda dentro do contexto de que haverá
continuidade das manifestações, é a revolução social. A revolução proletária é sempre
uma possibilidade dentro da sociedade capitalista. Contudo, é preciso distinguir entre
possibilidade existente e possibilidade tendencial. Podemos dizer que “Uma
possibilidade existente é aquela que existe, isto é, é algo possível, mas sua
probabilidade depende da concretização de outras possibilidades” (VIANA, 2005).
Antes das manifestações já existia a possibilidade de uma revolução proletária no
Brasil. Assim como grande parte das tentativas de revolução proletária na história da
sociedade moderna não foi previstas e surpreenderam, pois é um processo subterrâneo e
latente, ela sempre pode emergir sem ninguém prever. No atual caso brasileiro, ela
deixa de ser uma possibilidade existente para ser uma possibilidade tendencial.
Podemos dizer que “uma possibilidade tendencial é aquela que não só existe, mas
existem forças e elementos que apontam para sua efetivação, tendo uma probabilidade
maior de se efetivar, pois o curso dos acontecimentos aponta para sua realização”
(VIANA, 2005). Antes das manifestações não havia forças e elementos que apontavam
para sua concretização, agora existem e se manifestam, reforçando sua possibilidade,
tornando-a uma tendência.
Se essa tendência irá se concretizar, isso irá depender das lutas de classes e
nesse processo as forças políticas anticapitalistas, especialmente anarquistas,
autogestionários e grupos e indivíduos com posições semelhantes, tem um papel
importante, no sentido de reforçar e buscar atrair o proletariado e outros setores da
população para a ação direta e enfrentamento com o capital e o Estado. Obviamente que
outras ações de outros setores poderão, involuntariamente, contribuir com esse
processo. Da mesma forma, por sua própria dinâmica e percepção dos protestos, o
proletariado e outros setores das classes desprivilegiadas podem entrar na luta. Isso não
só mudaria a composição social aumentando o número de trabalhadores participantes
como aumentaria a possibilidade de reivindicações voltadas para as necessidades deles e
o desencadeamento de outras formas de luta e organização, tal como greves e conselhos.
Isso, sem dúvida, não significa que ocorrerá imediatamente, mesmo porque, mesmo se
as reivindicações forem salariais e outras de interesse dos trabalhadores, ainda haveria
um período de confronto e correlação de forças que poderia se prolongar por algum
tempo e ao esgotar sua estratégia repressiva os governos poderiam recuar e tentar
diminuir o ímpeto questionador com promessas e pequenas melhorias. O processo, no
entanto, ganharia um caráter de classe, pois seria um confronto não apenas com o
governo, mas também com a classe capitalista, já que mexe com o lucro, expressando
interesses antagônicos.
Em síntese, existem três possibilidades de desdobramento das atuais lutas de
classes no Brasil. A primeira e a terceira são as mais prováveis e fortes, sendo que a
segunda é mais remota, bem como mais distante ainda é uma variante dela anunciada
por conservadores visando evitar uma maior radicalização, que seria o retorno de um
regime ditatorial, abstraindo todas as mudanças históricas e atual correlação de forças.
No fundo, a possibilidade do retorno à estabilidade ou de radicalização são as mais
fortes e a luta está girando em torno disso.
Para reforçar a tendência de radicalização, o que fortalece a possibilidade de
uma revolução proletária, é preciso um conjunto de ações, propaganda, lutas, no sentido
de incentivar a auto-organização dos trabalhadores e da população em geral e também
para que as reivindicações deixem de ser generalistas e moralistas, passando a tratar de
questões reais da vida dos trabalhadores no Brasil. A correlação de forças entre
população e governo alterou e por isso as demandas dos trabalhadores, podem e devem
ser colocadas neste momento. Contudo, isso dependerá de vários aspectos e cabe às
forças anticapitalistas passarem do imediatismo e ativismo para lutas mais refletidas e
partindo de uma estratégia revolucionária que saiba articular questões imediatas e em
longo prazo, reivindicações concretas e que podem ser atendidas com outras mais
difíceis de serem aceitas e articuladas com um projeto de uma nova sociedade, fundada
na autogestão social. Nesse caso, a juventude tem também um papel importante nesse
processo e deve articular suas próprias demandas e necessidades com a dos
trabalhadores. As reivindicações imediatas e concretas podem girar em torno da questão
salarial, da redução do tempo para aposentadoria (que foi aumentada no bojo das
reformas neoliberais), contra a precarização do trabalho, contra o desemprego e a favor
da redução da jornada de trabalho.
Ao lado disso, uma ofensiva contra as políticas neoliberais é algo necessário. É
o caso da educação, onde é possível articular melhor os interesses da juventude e dos
trabalhadores, tal como retomando as exigências realizadas nas últimas greves de
professores (nos municípios, estados da federação e nível federal, tal como nas
universidades), com apoio de estudantes e técnicos, e que não foram atendidas.
Inclusive esse é um ponto fundamental, pois algumas universidades estaduais estão em
greve. Da mesma forma, a questão da saúde e sua precarização devem ser incluídas. Por
fim, a questão da corrupção deve ser abordada, tanto no sentido de demonstrar que se
trata de algo inerente ao capitalismo e que não é o caso de trocar de corruptos e sim
questionar o sistema partidário e democracia burguesa representativa e apontar para
necessidade de auto-organização da população, fiscalização e poder de pressão e ação
sobre o Estado e governos.
Ao lado disso, é necessário buscar novas formas de luta e organização, e o
apelo para o desencadeamento de um amplo movimento grevista, que naturalmente
geram os comitês de greve, forma de auto-organização dos trabalhadores nestes
momentos, bem como articulação e criação de organizações nos locais de moradia,
estudo e trabalho. Essas formas de luta e auto-organização podem reforçar e ser
reforçada pelas manifestações populares e estudantis.
Essas reivindicações e ações, bem como com formas de luta e organização,
reforçam a tendência revolucionária. É o caminho a ser seguido. Mas antes de encerrar,
é necessário alertar que as manifestações não podem ser o elemento fundamental e
principal das lutas de classes. Elas devem ser entendidas como meios, um entre outros,
para avançar na auto-organização do proletariado e outros setores da população, mas
que em si não promovem nenhuma transformação social se não atingir o processo de
produção, ou seja, as unidades de produção, as relações de produção capitalistas e ficam
sem rumo se não colocar a questão da transformação social total que pressupõe abolição
do capital e do Estado. As manifestações, assim como tais reinvindicações, são apenas
meio para se fortalecer as lutas, auto-organização, consciência revolucionária, e tornar a
tendência para a concretização de uma revolução social mais próxima. A sua derrota,
caso ocorra, será parcial, pois mesmo que fique no atual estágio, já colocou as lutas de
classes no Brasil num patamar superior e se qualquer avanço agora apenas contribui
para ir mais longe nesse processo e caso surja a possibilidade ou tentativa de revolução
proletária na atualidade, é um passo gigantesco para sua concretização, mesmo sendo
derrotada. Como já dizia Marx:
“As revoluções proletárias, como as do século XIX, criticam-se
constantemente a si próprias, interrompem-se constantemente na sua própria
marcha, voltam ao que parecia terminado, para começar de novo, troçam
profunda e cruelmente das suas hesitações dos lados fracos e da mesquinhez
das suas primeiras tentativas, parece que apenas derrubam o seu adversário
para que este tire terra de novas forças e volte a levantar-se mais gigantesco
frente a elas, retrocedem constantemente perante a indeterminada enormidade
dos seus próprios fins” (MARX, 1986).
Por conseguinte, essas lutas podem gerar um mundo novo, a emancipação
humana. Se não se concretizarem, abrem novas possibilidades e anunciam que o futuro
virá e cada vez mais a humanidade fica mais próxima de romper com seus grilhões e
conquistar a liberdade e emancipação total, construindo uma sociedade radicalmente
diferente.
Referências
BOURDIEU, Pierre. Contrafogos. Táticas para Enfrentar a Invasão Neoliberal. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1998.
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2a edição, São Paulo,
Martins Fontes, 1983.
MARX, Karl. O Dezoito Brumário e Cartas a Kugelmann. 5a edição, Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1986.
VIANA, Nildo. Adorno: Educação e Emancipação. Revista Sul-Americana de Filosofia
e Educação, Brasília-DF, v. 02, n.04, 2005.
VIANA, Nildo. A Minoria Elege Dilma Roussef e a Ilegitimidade Continua. Disponível
em: http://informecritica.blogspot.com.br/2010/11/minoria-elege-dilma-roussef-e.html
Acessado em 01 de novembro de 2010.
VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional
no Capitalismo. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.
VIANA, Nildo. Da ocupação das ruas à ocupação da vida: uma análise das
manifestações populares no Brasil atual. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos,
Vol.3,
n
1,
20
de
junho
de
2013.
Disponível
em:
http://www.cadernoterritorial.com/news/da-ocupa%C3%A7%C3%A3o-das-ruas%C3%A0-ocupa%C3%A7%C3%A3o-da-vida%3A-uma-analise-dasmanifesta%C3%A7%C3%B5es-populares-no-brasil-atual-nildo-viana/
VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo, Idéias e
Letras, 2009.
Artigo publicado originalmente em:
Disponível em: http://enfrentamento.net/