O livro A Constituição Golpeada: 1988-2018 foi impresso na gráfica Graphium para a
Fundação Perseu Abramo. A tiragem foi de 500 exemplares.
O texto foi composto na fonte Adobe Garamond Pro, em corpo 12,5/15,8.
A capa foi impressa em papel Supremo 250g e
o miolo em Avena soft 80g.
A Constituição Golpeada:
1988-2018
José Celso Cardoso Jr.
(Organizador)
Fundação Perseu Abramo
Instituída pelo Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996.
Diretoria
Presidente: Marcio Pochmann
Diretoras: Isabel dos Anjos e Rosana Ramos
Diretores: Artur Henrique e Joaquim Soriano
Fundação Perseu Abramo
Coordenação editorial: Rogério Chaves
Assistente editorial: Raquel Maria da Costa
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
C758
A constituição golpeada : 1988-2018 / José Celso Cardoso Jr. (organizador). –
São Paulo : Fundação Perseu Abramo, 2018.
400 p. ; 23 cm.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-5708-106-2
1. Política - Brasil. 2. Brasil. Constituição Federal (1988). 3. Democracia.
4. Economia. I. Cardoso Jr., José Celso
CDU 32(81)
CDD 320.981
(Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo – CRB 10/1507)
SUMÁRIO
9
INTRODUÇÃO: PARA UMA REFUNDAÇÃO DEMOCRÁTICA
DO ESTADO NO BRASIL
WILLIAM NOZAKI E JOSÉ CELSO CARDOSO JR.
21
CAPÍTULO 1 SIGNIFICADO HISTÓRICO E SEU DESMONTE ATUAL
WALQUIRIA LEÃO REGO E MARIA RITA LOUREIRO
39
CAPÍTULO 2 RAZÃO NEOLIBERAL E O DESAFIO DA AFIRMAÇÃO
DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL
BRUNO MORETTI, ELTON B. BANDEIRA DE MELO, EUGÊNIO A. VILELA DOS SANTOS
69
CAPÍTULO 3 TRINTA ANOS DE DISPUTAS POR UM PROJETO NACIONAL
DE DESENVOLVIMENTO NOS TRÓPICOS
JOSÉ CELSO CARDOSO JR.
99
CAPÍTULO 4 DO PLANEJAMENTO DEMOCRÁTICO AO
PLANEJAMENTO BUROCRÁTICO
JOSÉ CELSO CARDOSO JR.
125
CAPÍTULO 5 FINANÇAS PÚBLICAS SOB O ENFOQUE DISTRIBUTIVO
GUILHERME COSTA DELGADO
143
CAPÍTULO 6 A EPOPEIA DA SEGURIDADE NA ORDEM SOCIAL
MILKO MATIJASCIC
177
CAPÍTULO 7 CUIDADO INFANTIL E TRABALHO
NA PERSPECTIVA FEMINISTA
MARIANA MAZZINI MARCONDES E RENATA MORENO
207
CAPÍTULO 8 A PARTICIPAÇÃO DE NEGROS E NEGRAS
NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE
NATÁLIA NÉRIS
235
CAPÍTULO 9 REGULAÇÃO E DINÂMICA DO MERCADO DE TRABALHO
BRASILEIRO
TIAGO OLIVEIRA E SANDRO PEREIRA SILVA
259
CAPÍTULO 10 TENDÊNCIAS DE PROFISSIONALIZAÇÃO,
BUROCRATIZAÇÃO, CAPTURA E CORPORATIVISMO NA
BUROCRACIA FEDERAL
JOSÉ CELSO CARDOSO JR.
277
CAPÍTULO 11 DITOS E NÃO DITOS SOBRE O TERRITÓRIO NA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL
MARCO AURÉLIO COSTA
319
CAPÍTULO 12 A TEMÁTICA REGIONAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
SIMONE AFFONSO DA SILVA
357
CAPÍTULO 13 A NÃO REGULAMENTAÇÃO DA COMUNICAÇÃO SOCIAL
E OS VETOS À SOCIEDADE DE DIREITOS NA CONSTITUIÇÃO –
O PAPEL DA MÍDIA NO BRASIL
FRANCISCO FONSECA E LAURINDO LEAL FILHO
ESSE LIVRO É DEDICADO AO
PRESIDENTE LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA,
SÍMBOLO DE LUTA POR UM BRASIL MAIS
JUSTO E SOLIDÁRIO.
TODOS OS TEXTOS SÃO DE RESPONSABILIDADE PESSOAL
DOS RESPECTIVOS AUTORES E AUTORAS, QUE ACEITARAM
O CONVITE E SE PRONTIFICARAM A ELABORAR E ENVIAR
VOLUNTARIAMENTE SUAS COLABORAÇÕES PARA ESTA
PUBLICAÇÃO. COM ISSO, TODOS ELES E ELAS ISENTAM
SUAS RESPECTIVAS ORGANIZAÇÕES PELOS ERROS E
OMISSÕES REMANESCENTES NESTE DOCUMENTO.
|9|
INTRODUÇÃO
PARA UMA REFUNDAÇÃO
DEMOCRÁTICA DO ESTADO
NO BRASIL
WILLIAM NOZAKI1 E JOSÉ CELSO CARDOSO JR2.
O tempo presente impõe ao Brasil um grande desafio: enfrentar amarras do passado e criar esperanças para o futuro. O pacto constitucional de 1988 foi quebrado. Ainda que instável e inacabada, a
democracia brasileira se fiava no respeito das instituições políticas às
decisões das urnas. Entretanto, desde o questionamento dos resultados eleitorais em 2014 até a deposição presidencial em 2016, romperam-se os laços que sustentavam o ciclo político da Nova República.
Neste ano de 2018, no momento em que o Brasil atravessa
uma combinação de crises econômica, política e social de grandes proporções, abrem-se com as eleições de outubro novas oportunidades
de renovação para o país. Ao mesmo tempo, trata-se de reavaliar o
desempenho econômico, político e social das últimas três décadas,
justamente por ocasião dos trinta anos de vigência da atual Constituição Federal (1988-2018).
1. William Nozaki é professor de Ciência Política e Economia da Fundação Escola de Sociologia e Política
de São Paulo (FESP-SP).
2. José Celso Cardoso Jr. é doutor em Desenvolvimento pelo Instituto de Economia-Unicamp; desde 1997 é
Técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
O golpe de 2016 no Brasil, deflagrado por forças atávicas da
sociedade nacional com evidente apoio estrangeiro, solapou as bases
políticas sobre as quais o pacto constitucional de 1988 se assentava.
Desde o golpe (de natureza e vinculação parlamentar, judicial, empresarial e midiática), tanto o Estado democrático de direito, como
o embrionário Estado de proteção e promoção social até então em
construção vêm sofrendo um desmonte abrangente, profundo e veloz.
Neste sentido, a recuperação da soberania popular deve ter
como ponto de partida o enfrentamento contra o Estado de exceção levado a cabo pelo governo Temer, com a cumplicidade dos três
poderes; e a linha de chegada deve mirar a construção das condições
objetivas para um novo poder constituinte para o país.
Para tanto, é fundamental compreender que a disputa pelo
poder estatal e seus fundamentos constitucionais é incontornável. O
programa do golpe, com a destruição do setor público da economia
e a violação dos direitos fundamentais previstos na Constituição de
1988, pretende relançar as bases para um Estado neoliberal no Brasil,
inteiramente consagrado à quebra da soberania nacional e à concentração das rendas e riquezas em um país já escandalosamente desigual
do ponto de vista social, além de anacronicamente patriarcal e racialista. Portanto, a necessária refundação do Estado brasileiro, com base
na soberania popular, visa exatamente retomar e aprofundar – em um
sentido estrutural e histórico – as conquistas inseparáveis da liberdade
e da igualdade. A democracia brasileira só pode se afirmar historicamente com a superação das desigualdades estruturais ainda presentes
nos planos econômico, social, territorial, de gênero e inter-racial.
Esse desiderato passa pela desmercantilização da política como
negócio. O conflito entre aqueles que querem dominar e concentrar
riquezas e aqueles que buscam a liberdade e a igualdade está no centro da disputa pelo poder. Uma república democrática é exatamente
aquela que se apoia ativamente na vontade – livre e plural – das maio-
INTRODUÇÃO | PARA UMA REFUNDAÇÃO DEMOCRÁTICA DO ESTADO NO BRASIL
| 11 |
rias e subordina os órgãos do Estado, inclusive os aparelhos de justiça
e coerção, para a garantia dos direitos e deveres formados democraticamente. Exatamente por ter esta dupla face, a luta por um Estado
democrático não aceita ingenuidades e voluntarismos. A defesa da
República e da Democracia deve estar sempre acompanhada da vigília
contra os poderes corporativos e arbitrários, o privatismo e os privilégios, pois estes se voltam historicamente contra as classes trabalhadoras, os setores populares, os setores progressistas e a esquerda política.
No caso do Brasil, a Constituição de 1988 trouxe inequívocos
avanços. O pacto social firmado naquele momento permitiu, em certa
medida, a construção das bases para um Estado de bem-estar social
no país. Entretanto, a Carta Cidadã não deixou de ser impactada pela
forma como se deu a transição democrática, desde o fim da ditadura
militar, revelando alguns limites, como a permanência de elementos
autoritários e conservadores impressos na própria ossatura do Estado
e nas práticas de governo.
A questão de fundo é que a Constituição Federal não foi capaz de institucionalizar, em uma dinâmica democrática, as disputas entre dois projetos políticos antagônicos. De um lado, coloca-se
novamente em pauta – por setores conservadores da sociedade, dos
agentes políticos, da própria burocracia, do empresariado e da mídia oligopolizada – o caminho neoliberal, de orientação antinacional, privatista e concentradora, e que desde 2016 vem promovendo
retrocessos institucionais em áreas críticas da regulação econômica,
social e política do país.
De outro lado, permanece como possibilidade – defendida
por setores do campo progressista, dentro e fora das estruturas de
governo – a via da expansão ou universalização integral dos direitos
humanos, econômicos, sociais, civis, políticos, culturais e ambientais,
tais quais os promulgados – e apenas parcialmente efetivados – pela
CF-1988. Todavia, é preciso ter claro que as bases materiais e as con-
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
dições políticas para a efetivação de tais direitos precisam ser reconstruídas no país para a sua real consecução.
Os neoliberais entendem que a Constituição de 1988 não cabe
no orçamento brasileiro. Por isso, defendem reformas estruturais para
desregulamentar a atividade econômica e relativizar os direitos sociais.
Os interesses do rentismo passam a ser mais importantes que a agenda
do povo. O planejamento estratégico de longo-prazo converte-se em
planejamento orçamentário de curto-prazo. Seus defensores nos partidos e nos três poderes têm o apoio da mídia oligopolizada.
A despeito desse cenário, ao longo dos governos Lula e Dilma
foi inegável o avanço do projeto democrático-popular na conformação
de uma dinâmica de governo exitosa no fortalecimento do mercado
formal de trabalho, na expansão do crédito pessoal e produtivo, recuperação do investimento, redução da desigualdade de rendimentos do
trabalho, diminuição da pobreza, dinamização da mobilidade social e
maior acesso da população a serviços e equipamentos públicos.
Entretanto, é importante considerar que o chamado presidencialismo de coalizão, sem o qual, desde a CF-1988, nenhum dos governos eleitos conseguiria maioria parlamentar para a governabilidade
plena, foi responsável pelo caráter limitado das reformas aprovadas
durante os governos do PT, dados os interesses em jogo de partidos
aliados e seus representantes.
Sendo assim, tais conquistas sofreram um abrangente, profundo e acelerado revés com o golpe de 2016, explicitando a necessidade
de um olhar mais acurado, exatamente, para os processos e atores que
conformam centros decisórios incrustrados na estrutura e aparelhos
do Estado, muitas vezes atendendo apenas a interesses corporativos e
barganhas clientelistas.
Vale destacar: na dinâmica neoliberal, atores econômicos
buscam a captura das instituições de representação política do Estado, de modo a viabilizar a transformação de seus interesses em
INTRODUÇÃO | PARA UMA REFUNDAÇÃO DEMOCRÁTICA DO ESTADO NO BRASIL
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decisões públicas, com vistas a favorecer os interesses empresariais.
Um jogo desequilibrado, que induz a um cenário em que, por suas
influências, grandes grupos empresariais controlam mecanismos da
dinâmica democrática, exercendo uma dominação onde o interesse
geral da população perde expressão, tanto em termos econômicos
quanto de cidadania. O capitalismo neoliberal torna disfuncional a
democracia representativa.
Não por outra razão, o Estado de exceção que se instaurou
no Brasil a partir do governo Temer tem levado ao limite certas
distorções entre os três poderes constitucionais. Mais do que nunca
o Executivo legisla por meio de medidas provisórias (já são mais de
90 MPs em apenas dois anos, ultrapassando todos os presidentes
que o antecederam); mais do que nunca o Legislativo executa por
meio de emendas parlamentares (foram mais de 10,7 bilhões de
reais de liberações apenas em 2017, novamente deixando para trás
os presidentes anteriores). Desse modo, sorrateiramente, o presidencialismo de coalização vai se transformando em um semiparlamentarismo de balcão.
De outro ângulo, a ascensão do ativismo judicial nos coloca
diante de um tempo em que o retorno a lógicas autoritárias, pelas
quais as regras são aplicadas de acordo com o perfil político do destinatário da decisão do magistrado ou de tribunais, e em que se admite
o uso de expedientes em desconformidade com normas e princípios
constitucionais estabelecidos. Com isso, avizinhamo-nos de práticas
típicas de um Estado de exceção.
A pretensa meritocracia de toga quer-se mais legítima do que
a soberania popular do voto. Essa ideia tem como ponto de partida
uma visão moralista e punitivista de combate à corrupção e tem como
linha de chegada a supressão dos princípios e garantias individuais até
então assegurados pela Constituição. O resultado em última instância
é a cisão entre o direito formal e a justiça real.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Sendo assim, a retomada de um projeto democrático de desenvolvimento para o país passa necessariamente pela construção de
novos marcos democráticos, envolvendo não apenas as esferas do Poder Executivo e as Políticas Públicas, mas integrando a totalidade das
instituições do Estado nesse percurso.
Esta refundação democrática exige um conjunto de reformas
fundamentais, a saber:
| Reforma Política: refundação democrática de organizações e
novos mecanismos de representação e deliberação coletivas.
| Reforma do Estado: republicanização e democratização das
estruturas e formas de funcionamento dos aparatos governamentais,
com planejamento governamental participativo, gestão pública democrática, controles burocráticos do Estado voltados para a transparência dos processos decisórios, efetividade das ações públicas e institucionalização da participação social em todas as etapas do circuito de
políticas públicas.
| Reforma Administrativa: combate aos privilégios, à injustiça
e à corrupção.
| Reforma Tributária: progressiva na arrecadação e redistributiva no gasto.
A retomada da trajetória democrática apenas se dará com: i) a
restauração (em condições institucionais mais adequadas) da máxima
soberania popular através do voto direto e regular ao longo do tempo; e ii) a instauração de novos instrumentos capazes de aperfeiçoar
a representação política e estimular a participação social. Para tanto,
propõem-se reformas estruturais de democratização dos sistemas representativo, participativo e deliberativo direto, tais como:
| Sistema representativo: medidas para uma reforma político-partidária que impliquem maior convergência entre representação
parlamentar e representados, bem como maior alinhamento ideológico e programático entre partidos e eleitores. Neste campo, o financia-
INTRODUÇÃO | PARA UMA REFUNDAÇÃO DEMOCRÁTICA DO ESTADO NO BRASIL
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mento público exclusivo das campanhas eleitorais é primordial.
| Sistema participativo: medidas que impliquem maior institucionalização, ativação e responsividade dos conselhos, conferências,
audiências e ouvidorias públicas, fóruns de discussão e grupos de trabalho na interface entre Estado, políticas públicas e sociedade civil.
Tais instâncias podem e precisam avançar qualitativamente como espaços de deliberação sobre questões estratégicas e diretrizes de políticas públicas.
| Sistema deliberativo: medidas que impliquem maior disseminação, uso e responsabilização dos instrumentos e mecanismos diretos de democratização das decisões coletivas, tais como o referendo,
o plebiscito e as proposições legislativas de iniciativa popular. Esta
ampliação da prerrogativa de convocação de plebiscitos, referendos
e consultas populares deve incorporar também a introdução do veto
popular, de modo a ratificar a soberania popular como espaço decisório cotidiano e de última instância em torno de questões cruciais para
a sociedade brasileira.
Desde a CF-1988 vinha emergindo um discurso em favor da
aproximação entre democracia e desenvolvimento que, não obstante,
naufragou com o golpe de Estado de 2016. A democracia deixou de ser
considerada um processo contínuo de inclusão social, econômica e política e passou a ser entendida como a mera manutenção de um regime político tutelado. O desenvolvimento deixou de ser compreendido em perspectiva soberana, inclusiva e sustentável, e passou a ser entendido como
(re)inserção subordinada no processo de globalização financeira em curso, reforçando a situação de dependência perante as economias centrais.
Frente a tal cenário, urge promover a refundação do Estado
brasileiro, apontando diretrizes a embasar um projeto de reforma dos
poderes estatais que os façam avançar na substantivação das virtudes
republicanas e dos valores democráticos como âncoras essenciais ao
processo de desenvolvimento nacional, tais como:
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
| Medidas para conferir mais e melhor transparência dos processos decisórios intragovernamentais e nas relações entre entes estatais e privados, bem como sobre resultados intermediários e finais dos
atos de governo e das políticas públicas de modo geral. Este é um dos
principais campos de atuação republicana contra a visão moralista e
punitivista de combate à corrupção no país (ver seção 4 adiante).
| Medidas para estimular mais participação social e melhor
controle público sobre os poderes da União (Executivo, Legislativo,
Judiciário) e Ministério Público. O empoderamento social no âmbito
de conselhos e outras instâncias de compartilhamento de poder no
âmbito dos três poderes constitucionais (e Ministério Público) é condição fundamental para o reequilíbrio de poder e valorização da esfera
pública no país.
| Medidas para promover desconcentração econômica, mais
democratização e melhor controle social sobre os meios de comunicação (públicos e privados) em operação no país. Sem uma mídia
plural e ativa, responsável por mais e melhores informações ao conjunto da população e tomadores de decisões, a democracia não pode
se realizar plenamente.
| Medidas de recuperação e ativação das capacidades estatais de
planejamento governamental e de coordenação estratégica dos investimentos e demais decisões das empresas estatais. Neste particular, é
preciso compatibilizar a sustentabilidade empresarial de longo prazo
com a função social pública das estatais, já que a eficiência microeconômica de curto prazo não pode estar acima da eficácia macroeconômica e da efetividade social no médio e longo prazos.
| Medidas de minimização do impacto da porta giratória e das
porosidades entre Estado e mercado por meio da regulamentação das
atividades de lobby e advocacy.
| Medidas de profissionalização e valorização da ocupação no
(e do) serviço público, tais que uma verdadeira política de recursos
INTRODUÇÃO | PARA UMA REFUNDAÇÃO DEMOCRÁTICA DO ESTADO NO BRASIL
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humanos para o setor público brasileiro – que leve em consideração
de modo articulado e orgânico as etapas de seleção, capacitação, alocação, remuneração, progressão e aposentação – esteja ancorada e inspirada pelos valores e princípios da república, da democracia e do
desenvolvimento nacional.
No tocante à corrupção, a concepção neoliberal que tem sido
predominante no Brasil criminaliza a política, legitima a adoção de leis,
procedimentos e jurisprudências de exceção, prega a entrega do patrimônio público e dos serviços essenciais para o controle das grandes
empresas privadas. Os brasileiros estão tomando cada vez mais consciência de que este caminho antidemocrático e antirrepublicano leva,
ao contrário da visão simplista e punitivista, ao máximo de corrupção.
Isto porque a corrupção não diz respeito especificamente ao
Estado e à dimensão política do poder, mas sim às relações espúrias
que se estabelecem entre interesses privados / privatistas e o Estado /
esfera pública. Dito assim, a corrupção não é importante apenas na
explicação da formação do Estado nacional, mas está também vinculada ao problema da desigualdade na medida em que esta é historicamente (re)produzida e mantida, essencialmente, pela corrupção do
poder. Desta maneira, a luta contra a corrupção deve ser concebida
de modo subordinado ao aprofundamento do caráter democrático e
republicano do Estado brasileiro.
Neste sentido, é preciso proteger os processos de formação da
soberania popular, da representação democrática e da opinião pública,
frente ao domínio e corrupção dos grandes interesses empresariais.
Em segundo lugar, garantir o controle democrático, social e pluralista
das instituições e empresas públicas. Por fim, estabelecer leis e procedimentos que garantam cada vez mais a transparência, fiscalização no
sentido da prevenção à corrupção, observando-se sempre os direitos
fundamentais e o devido processo legal.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Com tal conjunto de reformas sugeridas acima, o Estado nacional pode recuperar poder e centralidade em virtude de sua capacidade
sui generis de mediar os diferentes interesses presentes na comunidade
política para a construção de um referencial universalizante que se
projeta no futuro. A história das nações desenvolvidas – e também
das subdesenvolvidas – mostra que as capacidades e os instrumentos
de que dispõe o Estado para regular o mercado, mediar a participação
da sociedade na condução dos assuntos públicos e moldar o desenvolvimento têm importância decisiva em suas trajetórias de afirmação e
construção nacional.
Para tanto, uma Reforma Tributária deve ser ampla, contemplando a totalidade das atuais anomalias, a partir das seguintes diretrizes gerais:
| A Reforma Tributária deve ser pensada na perspectiva do desenvolvimento econômico e social do país.
| Ela deve estar adequada ao propósito de fortalecer o Estado
de Bem-estar Social, preservando e diversificando as fontes para o financiamento da proteção social, em função do seu potencial como
instrumento de redução das desigualdades e promotora do crescimento econômico e do desenvolvimento nacional.
| Deve avançar no sentido de promover a sua progressividade
pela ampliação da tributação direta, que incide sobre a renda e o patrimônio das camadas mais ricas da população, ao mesmo tempo em
que reduz a tributação indireta que incide sobre o consumo.
| A Reforma Tributária deve restabelecer as bases do equilíbrio
federativo, deve aperfeiçoar e resgatar o papel da tributação sobre o
comércio internacional como instrumento de política de desenvolvimento, e deve considerar a tributação ambiental.
| Ela deve fomentar ações que resultem em aumento da arrecadação, pela revisão das renúncias fiscais e aperfeiçoamento dos
instrumentos de combate à sonegação e à evasão.
INTRODUÇÃO | PARA UMA REFUNDAÇÃO DEMOCRÁTICA DO ESTADO NO BRASIL
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As lições históricas são inúmeras e inequívocas: quando as forças progressistas passam pelo poder sem mudar a estrutura do Estado,
elas ficam permanentemente expostas aos riscos de serem capturadas
por ondas autoritárias, conservadoras e neoliberais. O enfrentamento
contra tais destituições sistemáticas deve se dar pela reconstrução de
ideias e forças que formem o corpo de um novo poder constituinte.
Para isso, é preciso alterar a correlação de forças na sociedade e, então,
convocar uma Assembleia Nacional Constituinte.
O desaguadouro dessas ações deve convergir para a transformação da estrutura do Estado, um objetivo que não só deve ser parte
central do programa democrático-popular, mas também deve ser entendido como premissa determinante para a implementação do próprio programa democrático-popular.
Tal refundação deve ancorar o Estado em novas bases, assentadas no aprofundamento permanente da soberania popular, na defesa diuturna da vontade geral da população, no combate sem tréguas
às desigualdades de toda ordem e na busca incessante pela formação
de uma opinião pública livre e plural. Sem descuidar de manter e
aprofundar os direitos de cidadania conquistados em 1988, só assim
poderemos enfrentar os sobressaltos e rupturas institucionais que, de
tempos em tempos, colocam o país nas mãos de governos ilegítimos,
ilegais e impopulares. Um tempo novo exige um Estado de tipo novo.
A todos e todas, desejamos uma ótima leitura, arguta reflexão
e muita inspiração para a ação política!
5 de outubro de 2018.
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CAPÍTULO 1
SIGNIFICADO HISTÓRICO
E SEU DESMONTE ATUAL
WALQUIRIA LEAO REGO1
MARIA RITA LOUREIRO2
Se, em 2008, quando se comemorava os 20 anos da Constituição de 1988, o clima existente no Brasil era de muita esperança no
avanço das conquistas sociais e institucionais que o país parecia realizar,
o momento atual é, ao contrário, de grande desalento. Nossa ordem
constitucional está sob ameaça ou até mesmo já não está mais em vigor, como afirmam analistas (Bercovici, 2018). Diante desse quadro e
antes de apontar as violações do texto de 1988, é importante retomar o
significado histórico e o sentido político de um processo constitucional,
retomando ainda que brevemente sua história a partir da modernidade.
UM POUCO DE HISTÓRIA: DAS REVOLUÇÕES
LIBERAIS AO MOINHO SATÂNICO DO MERCADO
Como sabemos, as constituições nasceram para defender os
cidadãos contra os arbítrios dos Estados absolutistas, ou como instru1. Socióloga e professora da Unicamp.
2. Socióloga e professora da FGV/SP.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
mento de prevenção contra tiranias de qualquer espécie. Nestes momentos fundacionais de criação de uma nova ordem jurídica, política
e social, a luta para defender os indivíduos contra a opressão estatal
visava regular a relação da sociedade com o Estado, instituição mais
emblemática da opressão. Este espírito mobilizou tanto a constituição
americana como a francesa. Os constituintes de 1776 nos Estados
Unidos visavam fundamentalmente evitar a tirania e proteger as minorias, evitando o conflito social. Desejando, de certo modo, conter o
povo e seus impulsos mais radicais, construíram uma minuciosa rede
de instituições de contra poderes. Já a constituição jacobina de 1792,
elaborada no calor de uma revolução popular radical, consubstanciou-se não só na ruptura com o feudalismo e o Estado absolutista, mas se
desdobrou em algo muito mais radical: o reconhecimento dos direitos
do povo como poder constituinte insubstituível.
O que mudou nestes mais de duzentos anos de história? Mudou
a configuração econômica e social e política das sociedades, desenvolveu-se a sociedade capitalista contemporânea, com todas as contradições e antíteses que lhe são constitutivas. E com isto mudaram também os fundamentos das constituições. O poder econômico atua por
variados meios, muitos invisíveis, porque totalmente opacos, mas com
capacidade de ordenar o mundo. As práticas sociais, políticas e simbólicas que legitimam os interesses dos dominantes do chamado mercado,
são pensadas, veiculadas e impostas como dispositivos que obedecem a
desígnios da natureza. Ou seja, embora criadas pelos homens, são apresentadas como fruto natural. Os interesses dos grandes e poucos, para
falar com Maquiavel, têm de aparecer como fenômenos da natureza.
Diante desta razão arbitrária, precisamos mais do que nunca de Constituições, exatamente, para nos defender, ao menos no plano normativo,
da implacabilidade do mercado, da gaiola de aço, como exprimia Max
Weber, ou do moinho satânico de Karl Polanyi. É preciso fundar e
regulamentar direitos e deveres da cidadania, disciplinando as relações
entre Estado e cidadãos, protegendo os mais fracos.
| SIGNIFICADO HISTÓRICO E SEU DESMONTE ATUAL
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O QUE É UMA CONSTITUIÇÃO?
Ela é lei fundamental de um país, já dizia, há mais de um século, Ferdinand Lassalle. Se isso já sabemos, vale retomar a ideia desse
dirigente social democrata alemão para enfatizar os fundamentos que
sustentam a essência de uma constituição. Eles se referem a processos
profundos, duradouros e constitutivos da vida em sociedade. Deste
modo, a durabilidade possível de uma constituição dependerá de sua
capacidade de espelhar o que Lassalle chamou dos “fatores reais de
poder”, que lhe fornecerão as bases políticas e morais modeladoras de
sua estrutura normativa. Na verdade, a sociologia política nos ensina
que as forças sociais somente se transformam em fatores reais de poder
se transformadas em “forças organizadas” com clareza e unidade de
propósitos políticos. O que, por sua vez, se projetará de várias formas
na sociedade, e em especial na produção do direito como corpo de
normas dispostas a promover os objetivos almejados.
Assim, as constituições têm várias dimensões. Elas não são apenas um texto legal. Elas representam, de um lado, a memória histórica
de vozes, sonhos, demandas do passado e do presente, são a síntese jurídica dos grandes embates e conflitos políticos, procurando muitas vezes
cicatrizar feridas ainda abertas. E de outro, as constituições são também um projeto político, que ao definir os fins do Estado, procuram
apontar rumos para a identidade de um povo, que em nosso tempo
não pode prescindir de lealdades aos valores democráticos permanentemente válidos. Por fim, mas não menos importante, é imprescindível
lembrar que a efetivação programática de uma constituição, tanto sua
convocação pelo poder constituinte do povo soberano, quanto a efetividade dos direitos nela consagrados, depende da luta social continuada, exigindo e demandando a realização e ampliação dos direitos. O
que nos remete à concepção de que a democracia e o Estado de Direito
Democrático são construções políticas permanentes.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
A CONSTITUIÇÃO DE 1988: AVANÇOS E LIMITES
Muito já se escreveu sobre o processo constituinte inaugurado no Brasil em 1987, voltado ao estabelecimento de regras para
um Brasil democrático e a Constituição dele derivada, promulgada
em outubro de 1988 (Oliven, Ridenti, Brandão, 2008; Praça e Diniz, 2008; Carvalho, Araújo, Simões, 2009). No âmbito desse texto, relembramos em termos de avanços trazidos pela Constituição,
não só a intensa participação popular, com milhares de pessoas e
movimentos sociais envolvidos nos trabalhos de suas diversas comissões, mas igualmente o que resultou em termos de direitos sociais garantidos no texto final ao qual se denominou “Constituição
Cidadã”, na conhecida expressão do presidente da Constituinte,
Ulysses Guimarães.
Dentre esses avanços, podem ser destacados aqueles referentes aos direitos sociais e ao trabalho. Conforme publicação efetuada
por ocasião de seus 20 anos de existência, analistas comentam que
nessa área, a Constituição de 1988 refletiu as principais demandas
de trabalhadores organizados em sindicatos e movimentos sociais,
articulados na resistência ao autoritarismo do regime militar de
1964. A luta pela democratização do país por parte desses atores
políticos foi assim decisiva para a incorporação de novos direitos
ao texto constitucional (Ramalho, 2008). Além de conter dispositivos importantes em relação à questão agrária e ao solo urbano, e
mesmo inovadores na área ambiental e na proteção dos direitos de
minorias – indígenas, quilombolas, crianças e adolescentes, aí incluindo questões de gênero, direitos sexuais e reprodutivos – o texto
contempla também um capítulo especial sobre direitos humanos,
inspirado na Declaração de Direitos Humanos de 1948. Todavia,
permaneceram desafios em relação ao racismo, à tortura e punição
para os responsáveis pela violação dos direitos humanos durante a
| SIGNIFICADO HISTÓRICO E SEU DESMONTE ATUAL
| 25 |
ditadura, pois esse tema “permanece questão-tabu a respeito da qual
conviria guardar o silêncio e esquecer o passado, como se as feridas
estivessem cicatrizadas e não merecessem nenhuma consideração da
sociedade” (Adorno, 2008: 218).
Na verdade, as limitações do texto constitucional de 1988 foram significativas, sendo que a principal se refere ao fato de que em
1987 não se convocou, de fato, uma assembleia constituinte originária com o fim exclusivo e excepcional de elaboração da carta magna. Ao contrário, o congresso constitucional que elaborou o texto foi
composto de numerosos membros dos grupos políticos tradicionais
que haviam participado dos governos militares e que, assim, puderam bloquear maiores avanços democráticos para o país. Portanto,
se em 1987-1988, os fatores reais de poder, na expressão de Lassalle,
precisaram, ainda que modestamente, considerar o lado democrático
e popular, hoje as elites políticas e os agentes do mercado dele prescindem, levando a cabo políticas e ações de desmonte dos direitos tão
dificilmente conquistados naquele período.
Dentre essas limitações e à luz dos processos que presenciamos hoje no país, referentes à desmesurada politização do sistema de
justiça, chegando até mesmo a decisões partidarizadas, cabe assinalar
o papel constitucional atribuído ao Poder Judiciário e ao Ministério
Público. Segundo análises, o texto de 1988 abriu espaço para que
os direitos coletivos ganhassem legitimidade junto ao Poder Judiciário, na esteira do que já ocorria nos demais países capitalistas na
era de desmonte do Estado do bem-estar social. Como já se afirmou, “os indivíduos desprotegidos na ordem neoliberal, sem conhecer canais visíveis no sistema político a que possam ter acesso para
suas demandas, acorrem ao juiz.” (WERNECK VIANNA, 2008:
96). Implicando uma velada descrença nas instituições de democracia representativa, a Constituição de 1988 acabou transformando o Judiciário “em uma arena de fato da democracia participativa,
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
capilarmente aberta à sociedade, garantidora e via de concretização
dos amplos direitos nela previstos” (op.cit.: 102). Assim, de modo
inédito, afirma o autor, o acesso à Justiça torna-se tema obrigatório
na agenda pública.
Se na perspectiva daquele momento, a atuação do Judiciário
no Brasil era vista positivamente, como espaço de acolhida de demandas sociais que o sistema representativo não contemplava, hoje é
preciso enfatizar outra faceta, nada benfazeja que acabou decorrendo
daquela configuração político-institucional: o despotismo jurídico ou
indireto, como bem caracterizou Condorcet já no século XVIII. Em
sua importante reflexão, ele dá destaque, para além do despotismo
direto, mais conhecido, ao que denomina despotismo indireto, exercido pelos juízes. Ambos os tipos portam graves e profundos perigos
à liberdade, sendo o indireto o mais perigoso porque menos perceptível aos cidadãos. Assim, ele faz uma decisiva advertência com relação
ao despotismo dos tribunais ou do judiciário. “Ele é mais inevitável
ainda se esses tribunais têm alguma participação na potência legislativa, se eles formam um corpo entre eles, se seus membros são julgados
por eles próprios” (Condorcet, 2014: 36). Frente ao que vivemos hoje
no Brasil, a advertência de Condorcet tem enorme atualidade e relevância, envolvendo também a atuação dos promotores e procurados
da Justiça.
Como estudos já têm mostrado, o texto constitucional de
1988 criou uma instituição nova, com autonomia em relação ao Legislativo, Executivo e Judiciário, contemplando o Ministério Público
com amplas atribuições e a incumbência de defesa de extenso rol de
direitos individuais e supra-individuais. Configurando uma situação
provavelmente inédita não só no sistema de justiça, mas também no
sistema político e na arena pública das democracias ocidentais, a carta
tornou o Ministério Público um protagonista destacado em praticamente todos os conflitos, denúncias e investigações públicas no país.
| SIGNIFICADO HISTÓRICO E SEU DESMONTE ATUAL
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Com esse extenso poder, os promotores e procuradores passaram a
gozar de grande visibilidade e prestígio, ao mesmo tempo em que sua
atuação tem sido objeto de inúmeras críticas (Sadek, 2008: 123). A
principal delas refere-se ao fato de que, colocando-se como tutores de
uma sociedade que vêm como incapaz, na arguta análise de Arantes
(2002), seus membros, gozando de prerrogativas de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, como os juízes, não
respondem aos outros poderes ou instituições, como os membros do
Poder Judiciário. Diante de tal construção constitucional, as possibilidades de abuso do poder por parte exatamente daqueles que deveriam
limitá-lo, são imensas, como sabiam os clássicos do pensamento político. Isso, infelizmente, vem se realizando no Brasil hoje. Portanto,
uma análise dos 30 anos da Constituição de 1988 não pode deixar de
enfatizar essa nefasta situação para a ordem democrática.
A VIOLAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO E O DESMONTE DA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ
O movimento político que destituiu a presidenta eleita Dilma
Roussef, iniciado logo depois de sua reeleição em 2014 e concretizado com seu impeachment em 2016, sem crime de responsabilidade, desencadeou um processo sistemático de violação do Estado Democrático de Direito no Brasil e de desmonte das conquistas sociais
alcançadas com a Constituição de 1988, juntamente com as regras
garantidoras de nossa soberania nacional.
Esse movimento configurou-se como um golpe de Estado porque o impeachment foi aprovado no Congresso mesmo sem comprovada base legal, utilizando-se, ao contrário, de artifícios e manobras políticas que criminalizaram práticas contábeis anteriormente não interpretadas como crime, pois repetidas de forma rotineira pelos governos,
dada a rigidez e o irrealismo da concepção orçamentária vigente no país
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
(Cardoso Jr e Santos, 2018; Barbosa, 2018)3. Foi golpe igualmente porque o governo que tomou o poder impôs uma completa alteração no
projeto político do governo deposto, implantando mudanças consideráveis em nossa ordem constitucional sem o respaldo do voto popular.
Vejamos detalhadamente essa terrível realidade.
A violação do Estado Democrático de Direito, amplamente
denunciada por advogados e juristas no Brasil e no exterior, tem sido
praticada sistematicamente pela chamada operação Lava Jato encarregada de investigar denúncias de corrupção na Petrobras. Os responsáveis por essa ação penal não têm obedecido as cláusulas pétreas da
Constituição Brasileira contidas no artigo 5º, na medida em que têm
feito uso de tortura (por meio de pressões psicológicas e longas prisões
sem prazo determinado, acompanhadas de tratamento degradante)
para obtenção de delações como prova (letra III e letra LVI). Essas
ações penais também envolvem a suspensão do princípio de presunção de inocência (letra LVII), violação do direito ao sigilo telefônico,
sem ordem judicial válida (Letra XII), utilização de artifícios processuais para rompimento da regra de juiz natural (letra LIII), violação
do direito à ampla defesa e de suas testemunhas, além de conduções
coercitivas sem o devido respaldo legal etc.
Um momento marcante nesse processo de violação do Estado
Democrático de Direito, ocorreu em 2016, quando um juiz de pri3. (...) À pretensão totalizante do Plano Plurianual (PPA), com base no orçamento, se sobrepôs o movimento
de contabilização integral e detalhada da despesa pública, a qual, por sua vez, deveria ser governada a partir
da lógica liberal do orçamento equilibrado, isto é, da ideia forte de poupança prévia como pré-condição para
toda e qualquer rubrica de gasto corrente ou investimento do governo. O resultado final, para fechar o cerco,
foi que a função controle cresceu e se desenvolveu, normativa e operacionalmente, para controlar (vale dizer:
vigiar e punir) os desvios de conduta do poder público (nesse caso, dos próprios burocratas ordenadores de
despesas públicas) em desacordo com os preceitos definidos pela lógica liberal do orçamento equilibrado.
Assim, antes nascida sob o signo da busca republicana por transparência e responsabilização coletiva dos
recursos públicos (isto é, da própria sociedade), a função-controle rapidamente se transformou em agente
de inibição e criminalização do gasto público e dos seus operadores (Cardoso Jr e Santos, 2018: 341, grifos
nossos). “A aplicação de novos entendimentos do Tribunal de Contas da União (TCU) com efeito retroativo
– usado como base para o afastamento da presidenta Dilma Roussef – simplesmente paralisou a máquina
pública. Nenhum gestor honesto e racional assina nada se o que vale hoje puder ser considerado irregular
amanhã” (Barbosa, 2018: A20, grifo nosso).
| SIGNIFICADO HISTÓRICO E SEU DESMONTE ATUAL
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meira instância, Sérgio Moro, divulgou uma conversa telefônica entre
a então presidenta Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula, interceptada fora do prazo autorizado judicialmente e sem o aval do Supremo
Tribunal Federal, a quem compete a análise dos casos relacionados a
autoridades com foro privilegiado, influenciando o processo político
do impeachment. E, o que é pior, o juiz não foi devidamente punido
por esse ato que, em outro país e em outra circunstância, certamente
seria considerado crime de alta traição. Também “a patética batalha
jurídica” ocorrida em julho de 2018 em torno da soltura do ex-presidente Lula, condenado sem provas e preso sem sentença em julgado,
também claramente indica que a ordem constitucional no Brasil está
sendo solapada pelo próprio Poder Judiciário encarregado de garanti-la ou, na feliz expressão de um comentarista, “expõe um Judiciário
entregue à política e completamente divorciado do Direito”. (Martins, Carta Capital, 4/7/2018: 30).
Com relação à ruptura do pacto constitucional de 1988 no
que concerne à soberania do Brasil como nação independente, basta
lembrar os processos de venda de ativos da Petrobras a partir de 2016
com a instalação do governo Temer e o Projeto de Lei (PL) que tramita atualmente no Congresso visando privatizar a Eletrobrás. Na
medida em que a privatização também significa a desnacionalização
de tais empresas, rompendo o controle pelo Estado brasileiro sobre os
bens públicos e estratégicos por elas produzidos, como petróleo, gás,
água, energia elétrica, isso fere os princípios fundamentais de soberania nacional garantidos no artigo primeiro de nossa constituição4.
4. Segundo o especialista, “Petróleo não é fácil de achar, exige tecnologia, equipes, processos, organização do
setor. A maior parte das empresas tem como principal objetivo acessar áreas em que se pode achar petróleo
hoje para produzi-lo daqui a seis, sete anos. Essa máquina gigantesca move bilhões e trilhões de reais e dólares
no mundo” (Esse movimento) “não é apenas econômico, mas essencialmente político, porque os países,
principalmente as potências centrais da geopolítica mundial, sabem que o acesso ao petróleo é vital (... ) “os
Estados Unidos sempre o pensaram estrategicamente (...) O petróleo é responsável por 95% do movimento
de transporte mundial (Tatiana Carlotti, Carta Maior, “Gabrielli: Futuro declínio da produção levou EUA a
bancar golpe para conquistar pré-sal”, 5/7/2018).
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Diferentemente das orientações do governo Lula e Dilma, em
que a Petrobras teve um papel estratégico na política de desenvolvimento nacional, especialmente a partir de 2007, com a descoberta
do pré-sal e quando aquela companhia se tornou a quarta maior empresa petrolífera do mundo, o governo Temer imprimiu uma nova
direção para a Petrobras: iniciou-se um processo de desinvestimento
e desmembramento da empresa, corte de custos e de venda de seus
ativos por meio de ações administrativas que têm criado artificialmente situações financeiras negativas, facilitando uma possível privatização em futuro próximo. Isso com o pretexto de redução de sua
dívida e de recuperação financeira da empresa definida pela direção de Pedro Parente como quebrada, diagnóstico questionado por
especialistas. Junto com a antecipação de pagamentos milionários
de passivos jurídicos norte-americanos não julgados, tais ações beneficiaram o mercado financeiro e os acionista minoritários, assim
como as petroleiras estrangeiras que foram igualmente favorecidas
na aquisição de reservas de petróleo e gás natural do pré-sal (Nozaki
e Leão, 2018: 20).
Tudo isso, em profundo contraste com o que ocorre na maioria dos países produtores de petróleo, nos quais suas empresas são
mantidas estatais, monopólicas e orientadas não só por objetivos empresariais, mas igualmente pelos objetivos estratégicos mais amplos de
seus respectivos Estados nacionais (Fiori, 2018:19). Ao contrário, a
Petrobras, no governo Temer, “se desresponsabilizou de atuar em favor da segurança energética nacional, da autossuficiência em petróleo
e derivados e da garantia do abastecimento do mercado interno de
combustíveis. Em vez disso, a companhia passou a priorizar de forma
exclusiva a abertura do mercado de óleo e gás para a entrada de players e traders do mercado estrangeiro, a retomada da remuneração dos
acionistas e o encolhimento de sua escala e de seu escopo de atuação”
(Nozaki e Leão, 2018: 20-21).
| SIGNIFICADO HISTÓRICO E SEU DESMONTE ATUAL
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Explicando o processo de desmonte da Petrobras como uma
grande empresa integrada, o economista e seu ex-presidente, José Sergio Gabrielli, afirma que os principais conflitos geopolíticos do mundo giram em torno da garantia do acesso ao petróleo. O declínio da
produção nos Estados Unidos é acelerado e eles precisarão de outras
fontes em meados da próxima década. Assim, a abertura de novas
áreas no pré-sal brasileiro ajusta-se perfeitamente a este calendário estadunidense (Gabrielli, in Drumond, A Petrobras Destruída, Carta
Capital, 4/7/ 2018: 18-25).
Além das mudanças no marco regulatório, trazidas com a Lei
José Serra que desobriga a Petrobras de participar de todas as rodadas
de licitação no pré-sal e de reduzir o percentual mínimo de conteúdo
local nas mesmas rodadas de licitação, foi aberto espaço para a entrada de novas operadoras estrangeiras no pré-sal, garantindo também a
compra de bens e serviços aos fornecedores de seus países de origem,
em prejuízo à indústria nacional e ainda a redução do refino no Brasil
e aumento da importação de derivados.
Piorando mais esse quadro de ataque à soberania nacional no
controle de bens estratégicos, a Câmara dos Deputados aprovou, em
junho de 2018, em regime de urgência e por maioria simples de 217
votos, uma lei que permite a estrangeiros explorar 70% dos imensos
campos do pré-sal que a Petrobras recebeu diretamente do governo
em 2010. Se tal decisão não for barrada no Senado, o governo entregará esse potencial de cerca de 20 bilhões de barris de petróleo. Resumindo esse quadro, na entrevista citada, Gabrielli afirma: “no ritmo
que vai, a Petrobras será uma empresa média, voltada especialmente
para a produção de petróleo do pré-sal, desintegrada. Poderia ser uma
das maiores do mundo, integrada da produção ao refino e distribuição”, Carta Capital (op. cit, p.22).
Na verdade, a privatização e desnacionalização de grande parte da produção, do refino e da distribuição petrolífera e o desmonte
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
da Petrobras como uma empresa integrada nessas três áreas são mais
perversas ainda porque significam a destruição do papel dinamizador
do desenvolvimento econômico brasileiro que ela veio desempenhado
nas duas últimas décadas5. Isso, sem falar na perda dos investimentos
de parte dos recursos gerados nesse setor que seriam destinados à educação e saúde6.
Quanto à proposta de lei (PL) que tramita no Congresso brasileiro relativa à privatização da Eletrobrás, um especialista em Direito
Constitucional e Econômico afirma que “a exploração dos potenciais
de energia hidráulica está vinculada aos objetivos fundamentais dos
artigos 3º, 170 e 219 da Constituição de 1988, ou seja, o desenvolvimento, a redução das desigualdades e a garantia da soberania econômica nacional” (Bercovici, 2018). O artigo 175 da Constituição também é ferido, pois o projeto de lei de privatização da Eletrobrás propõe uma concessão por 30 anos sem previsão de investimentos e sem
atendimento de uma política tarifária e, ainda, sem os devidos deveres
e garantias legais (inclusive a reversão dos bens para o Poder Público
no final do prazo de concessão). Ademais, veta explicitamente a atuação do Estado no setor, uma vez que proíbe a União de deter controle
da Eletrobrás e suas subsidiárias. Portanto, alerta Bercovici, as consequências da privatização da Eletrobrás levariam à transferência de
subsídios para os setores mais favorecidos, com o potencial aumento
proporcional e quantitativo das tarifas, redução de investimentos em
segurança e manutenção e congestionamento das redes, além de riscos
de descontinuidade dos programas de extensão da eletrificação rural e
5. Segundo análise do economista Gaspar Ruas que estuda o assunto, “o grande papel da Petrobras é ajudar
a organizar o investimento, a indústria, a tecnologia. A empresa tornou-se um elemento central na dinâmica
macroeconômica no período contemporâneo e jogar isso fora talvez seja descartar um dos principais instrumentos que ainda restam para se pensar em desenvolvimento econômico do país”, publicada em Carta
Capital, 20/6/2018, p.36.
6. Vale lembrar que, em setembro de 2013, em meio a reivindicações da sociedade civil, a então presidenta
Dilma Rousseff sancionou lei que destina 75% dos royalties do petróleo para a educação e 25% para a saúde.
O texto também estabeleceu que 50% de todos os recursos do Fundo Social do pré-sal fossem destinados a
esses dois setores.
| SIGNIFICADO HISTÓRICO E SEU DESMONTE ATUAL
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de universalização do acesso à energia para os setores mais carentes da
população, como o Programa Nacional de Universalização do Acesso
e Uso de Energia Elétrica – Luz para Todos”.
O processo de violação da Constituição alcança também os direitos sociais e do trabalho, aí incluindo regras estabelecidas na Consolidação das Leis Trabalhistas de 1943 que foram constitucionalizadas
em 1988 como um de seus princípios fundamentais estabelecidos no
artigo primeiro e no capítulo II dos Direitos sociais. Isso se deu com
a aprovação pelo Congresso da reforma trabalhista e com a emenda
constitucional que estabelece limites aos gastos públicos em educação
e saúde por 20 anos, impedindo, assim, que se cumpram aqueles dispositivos. Vejamos com mais detalhes essas duas mudanças.
Embora a emenda constitucional aprovada no final de 2016
que congela os gastos em educação e saúde à variação da inflação do
ano anterior não modifique o percentual mínimo previsto pela Constituição de 1988 – de 18% dos impostos para a educação e 15% para
a saúde – as previsões dos analistas é de que haverá redução do ritmo
de crescimento dessas despesas que já são escassas e se tornaram ainda
mais, frente às demandas sociais e as necessidades do país. Segundo
estudos de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a saúde pode perder até 743 bilhões de reais nos 20 anos de
vigência da nova regra. Já a educação pode ter perdas no Orçamento
de até 25,5 bilhões de reais por ano, segundo apontou estudo técnico da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados. Diante
dessas previsões, o relator da Organizações das Nações Unidas (ONU)
para direitos humanos, Philip Alson, afirmou que a mudanças podem
aprofundar os níveis de desigualdade social no Brasil.7
Se a Constituição de 1988 elevou os direitos dos trabalhadores à condição de direitos sociais fundamentais, a reforma trabalhista
7. PEC do Teto prejudicará os mais pobres e aumentará a desigualdade, diz ONU. UOL, 09/12/2016. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias
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do governo Temer (Lei 13.467/2017) reduz substancialmente as conquistas que em grande parte das sociedades industrias do século XX
foram alcançadas na área de proteção social. Representa um retrocesso
histórico na medida em que volta à visão liberal prevalecente no século XIX que supõe ser as relações de trabalho fundadas na autonomia
das vontades individuais e, portanto, pautadas pelo Direito Civil. Assim, “o Direito e a Justiça do trabalho, obstáculos ao livre trânsito do
desejo insaciável de acumulação que move o capitalismo” (Belluzzo,
2013), são o núcleo a ser atacado por essa reforma. Sob o pretexto de
que a legislação atual gera insegurança jurídica, excesso de demandas
e ativismo judicial e que deve ser, portanto, modernizada e flexibilizada, a reforma se pauta pela primazia do negociado sobre o legislado,
o desmonte da CLT e o ataque à Justiça do trabalho. Segundo amplo
estudo realizado pela Universidade Estadual de Campinas, os pontos
fundamentais dessa reforma são:
1. a substituição da lei pelo contrato;
2. a adoção de uma legislação mínima, residual, a ser complementada pela negociação/contratação;
3. a criação de diferentes tipos de contrato, distintos do padrão de assalariamento clássico representado pelo contrato
por tempo indeterminado;
4. a substituição de direitos universais por direitos diferenciados;
5. a descentralização da negociação coletiva, se possível ao âmbito da empresa;
6. a substituição da intervenção estatal na resolução dos conflitos trabalhistas pela autocomposição das partes (CESIT,
2017: 18-19).
Segundo esse mesmo estudo, o argumento dos reformistas de
que o excesso de demanda tem como causa as dúvidas suscitadas pelo
detalhamento acentuado das obrigações trabalhistas contidas na CLT
| SIGNIFICADO HISTÓRICO E SEU DESMONTE ATUAL
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pode ser facilmente refutado pelos próprios dados do Conselho Nacional de Justiça. O excesso de demandas trabalhistas, mostram os dados desse conselho, é na realidade fruto do descumprimento sistemático dos direitos essenciais dos trabalhadores. Assim, o que a reforma
pretende é, na verdade, desfazer a tela de proteção social duramente
conquistada e esvaziar a Justiça do Trabalho e sua função garantidora
do Direito do Trabalho.
Além dos aspectos já mencionados, a nova lei rompe ainda
com o princípio da gratuidade ao adotar normas processuais que
criam obstáculos ao Direito Constitucional de livre acesso à Judiciário
Especial; estabelece regras à interpretação dos juízes e tribunais do
trabalho, limitando a ação dos que procuram garantir os princípios da
Constituição de 1988 e ainda burocratiza o processo, abrindo a possibilidade de o juiz ser um mero homologador de acordos extrajudiciais.
(Cesit, 2017: 16 -17)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto, o quadro político institucional de 2018 é bastante
desalentador. Nada há para se comemorar nos 30 anos de nossa carta
constitucional. No Brasil de hoje se assiste a destruição de uma das
fundamentais aquisições identitárias das democracias contemporâneas, aquela que a vincula ao ordenamento normativo que sustenta
o Estado de Direito, ou seja, a sua carta constitucional. Hans Kelsen,
seu principal teórico, ainda nos anos de 1920 chamou tal vínculo de
“momento essencial do Estado de direito” que se consubstancia na
“submissão do Estado na totalidade de suas expressões ao ordenamento jurídico”. Esta submissão significa respeito ao ‘princípio político do
exclusivo poder das leis’. Sem esta “soberania do ordenamento jurídico” como o autor citado lhe conceituava, nenhuma democracia será
possível. Restará apenas a força dos poderes autocráticos, exatamente
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
o contrário do sentido e do significado maior do Estado Democrático
de Direito (Bongiovanni, 2002). Resta-nos apenas a esperança de que
em 2028, quando ela eventualmente completar quatro décadas, esse
quadro possa estar revertido por meio de luta política permanente e
que as forças populares possam vencer o embate atual, permitindo-nos
comemorar não só a reafirmação das conquistas sociais institucionalizadas em 1988, mas também outros avanços necessários para a verdadeira democratização da sociedade e do sistema político no país.
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CAPÍTULO 2
RAZÃO NEOLIBERAL E O
DESAFIO DA AFIRMAÇÃO DOS
DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL
BRUNO MORETTI1
ELTON B. BANDEIRA DE MELO2
EUGÊNIO A. VILELA DOS SANTOS3
O campo progressista costuma definir-se pela crítica ao neoliberalismo, pela defesa da centralidade de um Estado soberano e capaz
de alavancar o crescimento econômico ao tempo em que distribui
seus resultados, reduzindo as desigualdades e reafirmando direitos sociais consagrados na Constituição de 1988. Esta posição é bastante
presente no cenário político brasileiro pós-ruptura institucional de
2016, marcado, por exemplo, pela desregulamentação das relações
trabalhistas e retirada dos pobres do orçamento público.
Diante do exposto, como apreender os principais traços da
gestão iniciada após a deposição da presidenta Dilma Rousseff?
Usualmente, os críticos a caracterizam como um projeto de retirada
do Estado da economia e redução de políticas sociais, agravando um
1. Analista de planejamento e orçamento do governo federal. Pós-doutorando em Sociologia/UnB.
2. Analista de planejamento e orçamento do governo federal. Doutorando em Sociologia/UnB.
3. Analista de planejamento e orçamento do governo federal.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
quadro de desigualdade estrutural, resultante de uma lógica econômica tornada autônoma. Nesse contexto, o discurso de oposição assume predominantemente a forma de uma crítica ao laissez-faire – identificado como princípio da teoria econômica liberal – e busca expor a
incapacidade das políticas de austeridade e de redução do Estado de
retirar o país da crise e gerar crescimento econômico com redução
das desigualdades.
Aqui se partirá de outro ponto de vista, segundo o qual seria
insuficiente a crítica ao liberalismo por sua incapacidade de explicar
a realidade dos fatos econômicos. Alternativamente, será adotada a
posição de Foucault (2008), segundo a qual o liberalismo clássico é
uma racionalidade de autolimitação da prática de governo para que
o mercado “possa fazer”, cabendo ao Estado zelar pelo bom funcionamento do mercado. Já no neoliberalismo, a questão se inverteria:
o mercado se torna um padrão de teste do Estado, regulando-o de
modo que as práticas de governo passam a estar indexadas a uma
racionalidade concorrencial. Nesses termos, não se trata mais do
Estado zelar para que o mercado funcione bem, mas do mercado
regular o Estado, inclusive para que este induza a extensão da lógica concorrencial a todos os domínios sociais. Portanto, o neoliberalismo deve ser tomado como um tipo de intervencionismo em
favor do mercado, construindo as bases (inclusive subjetivas) para
a extensão da lógica econômica pura da concorrência a todos os
domínios sociais4.
Conforme se argumentará na primeira seção, com base em
Rancière e Laclau, a política pode ser definida como as formas de
subjetivação pelas quais se questiona a ordem de distribuição dos corpos em comunidade, confrontando-a com a lógica da igualdade. A
4. Um exemplo de intervencionismo estatal de cunho neoliberal pode ser visto no Brasil contemporâneo
nas medidas adotadas pelo governo que assumiu a Presidência da República após a deposição da presidenta
Dilma Rousseff, na regulação dos recursos petrolíferos. Sobre esse assunto, ver Moretti (2018).
| RAZÃO NEOLIBERAL E O DESAFIO DA AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL
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política é dissenso, conflito. Ela é feita da ampliação da esfera em
que as classes (o povo, os pobres e assim por diante) podem aparecer,
produzindo deslocamentos da ordem na medida em que se explicita
a distância entre a comunidade política declarada e o que se define
como exclusão em relação a essa comunidade.
A segunda seção mostra como o neoliberalismo, nos termos
de Foucault, pode ser apreendido como uma administração estatal
que põe em movimento uma racionalidade concorrencial, dissipando-a, inclusive, para domínios não econômicos. Portanto, defende-se que a crítica ao neoliberalismo deve se dirigir aos encadeamentos
entre práticas de governo e regimes de verdade, que indexam a ideia
de público na indução do jogo econômico puro e fazem ver o Estado
como um excesso. Portanto, de algum modo, a ratio neoliberal se
choca com os espaços de visibilidade que a política potencialmente
produz, especialmente porque submete as demandas sociais a um padrão de regulação de mercado, redefinindo, particularmente, o que
pode fazer a administração estatal.
A terceira seção procura mostrar como o pensamento crítico
ainda é, em boa medida, tributário da ideia de liberalismo como laissez-faire, deixando de apreender o neoliberalismo como uma tecnologia de
governo intervencionista, que produz efeitos sobre as práticas de governo e as subjetividades ancoradas em uma racionalidade concorrencial.
A conclusão aponta para a relevância de uma crítica ao neoliberalismo
que busque também uma nova ratio de governo, na qual o mercado já
não seja o critério de teste daquilo que o Estado está habilitado a fazer.
Conclui-se com a ideia de que a desconstrução da racionalidade neoliberal e a emergência de uma nova razão de governo, na
qual se criem novos pontos de apoio entre práticas estatais e subjetividades, são condições necessárias para a afirmação de direitos sociais
no Brasil, avançando-se em relação ao Estado do bem-estar fixado na
Constituição de 1988.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
AS TAREFAS DA CONSTRUÇÃO DO POVO:
AS CONEXÕES ENTRE ANTAGONISMO,
DEMOCRACIA E POLÍTICA EM RANCIÈRE E LACLAU
Há no Brasil atual um mal-estar geral. Entre todas as correntes
políticas, procura-se dar tratos à seguinte questão: como lidar com a crise
de representatividade do sistema institucional, com a perda de legitimidade dos agentes oficiais e das instituições, radicada na crença de que os
representantes não representam? As respostas variam consideravelmente
no espectro político, compreendendo, entre outras, a redução de um Estado tomado como corrupto e ineficiente, a necessidade de uma reforma
política que induza maior relação entre representados e representantes, a
organização política de base que pode incidir sobre o sistema político e a
recuperação da capacidade estatal em prover serviços públicos.
Parece razoável supor que, do ponto de vista do chamado campo progressista, a resposta política ao atual estado de coisas não pode
prescindir do compromisso com a igualdade. O que vale, sobretudo,
em um país estruturalmente desigual, como é o caso do Brasil, cujos
índices sociais, já deficitários, apontam pioras no período pós-ruptura institucional. Entre eles, o aumento da desigualdade de renda, da
extrema pobreza, da mortalidade infantil e do desemprego, além do
menor nível de ocupações formais da série histórica5.
Pode-se argumentar que um termo como igualdade é um conceito demasiadamente “frouxo”, indefinido, incapaz, portanto, de fixar
os desafios de um projeto político progressista. No entanto, apoiando-se, inicialmente, em Rancière (2018), aqui será argumentado que a
política é constituída justamente pela capacidade de construir o povo
5. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE, comparando o trimestre
concluído em junho de 2018 com o mesmo período de 2016, mostram que há 1,4 milhão de desocupados
há mais no Brasil, resultando num total de 13 milhões de desempregados, e menos 1,6 milhão de empregos
com carteira de trabalho assinada. Ademais, quase 66 milhões de pessoas estão fora da força de trabalho, entre
outras razões, em virtude do desalento crescente, que alcança quase cinco milhões de pessoas.
| RAZÃO NEOLIBERAL E O DESAFIO DA AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL
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como categoria política, a partir de uma relação entre universais (a comunidade declarada e sua distribuição de corpos) e singulares (a parte
que faz ver os “sem parte”, reivindicando um lugar na comunidade).
Em outros termos, para haver política, é preciso criar novos mundos,
fabricar objetos do litígio, fazendo com que comunidade e não comunidade paradoxalmente se cruzem.
Não se trata de definir conceitos que vinculem nomes a objetos, desvelando uma realidade oculta. Ao contrário, trata-se de fazer
a universalidade vazia da igualdade (não conceituada) tomar a forma
específica de um dano, instituindo um universal polêmico, que encadeia a igualdade (parte que cabe aos que não têm parte) e os conflitos
entre as partes sociais.
Nesse sentido, o povo não é um lugar objetivo nas relações
sociais de produção, é aquilo que, por atos de enunciação, funda o
litígio, uma “parte sem parte” da comunidade, colocando em relação
duas lógicas incomensuráveis: a distribuição desigual dos corpos sociais e a afirmação de um mundo comum. É essa tensão que afeta a
partilha legítima dos mundos e linguagens e redistribui os corpos de
modo a fundar uma nova ordem do dizer, do fazer e do ser.
Contra a tradição que identifica a política ao consenso (Miguel,
2016), aqui irrompe a noção de política como a subjetivação pela qual
a distribuição dos corpos e dos lugares é abalada, confrontando-se tal
partilha (desigual) com a igual capacidade dos corpos falantes. Portanto, as formas democráticas seriam as expressões desse litígio; isto
é, seriam as maneiras como o povo refigura as relações entre as partes,
produzindo uma esfera de visibilidades em que podem aparecer objetos do litígio e sujeitos capazes de articulá-los, de modo que duas
ordens incomensuráveis passam a entrar em relação. Por exemplo, o
trabalhador como alguém que ganha a vida em seu local privado de
trabalho e o trabalhador como classe política que reivindica a igualdade e abala a partilha do sensível.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Pode-se resumir a tarefa política como a pura contagem dos
que não contam (Ranciére, 2018, p. 52), abrindo-se uma fenda entre
a comunidade política declarada e o (povo) que se define como excedente a essa comunidade e tornando o todo diferente de si próprio.
Em outros termos, a política é um erro de conta, obra de classes que
não são classes, que não têm propriedades objetivas, mas convertem
igualdade em um dano, instituindo um universal singular.
Não se trata de um litígio regulado por procedimentos jurídicos ajustáveis entre as partes, pois o povo só existe enquanto “parte
real” na sociedade mediante a declaração do dano. O dano precisa
primeiro ser assumido por um sujeito político, não como uma tomada de consciência que lhe permite restituir sua função histórica, mas
como uma operação que relaciona aquilo que não tem relação, produzindo o litígio e alterando a configuração da experiência.
O problema não é descortinar aparências, mas confirmá-las.
Por mais que sejam frágeis as inscrições de igualdade (a previsão constitucional de direitos, a igualdade perante a lei, entre outros), é aí que
aparece a parte dos sem parte, onde se cria o lugar em que aparece
o demos. A política é feita do aumento dessa potência, da ampliação
dessa esfera do aparecer, dando lugar ao não lugar.
Até aqui, baseamo-nos em Rancière para definir a política
como a atividade que cria os objetos do litígio e, com isso, uma esfera
de visibilidade que comporta novas demonstrações que afetam a distribuição dos corpos. No entanto, é preciso perguntar como se pode
fazê-lo. Evidente que a pergunta não leva a uma fórmula a aplicar,
mas é necessário avançar em alguns elementos capazes de explicar a
lógica política da constituição do povo. Especialmente, as cadeias de
equivalência construídas entre demandas não atendidas pelo sistema
institucional, constituindo uma vontade popular a partir de signos
que lhes atribuem sentido comum, conforme abordagem de Laclau
(2013), que passamos a sintetizar.
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É a tensão entre demandas heterogêneas (lógica dos representados) e totalidade (lógica do representante, constituída discursivamente
por um nome que passa a funcionar como a plenitude do todo vazio6)
que funda a possibilidade de uma política democrática. Nesse sentido,
é preciso salientar a centralidade da nomeação, pela qual um objeto
parcial se converte em mais do que si mesmo, passando a dar corpo
a uma totalidade impossível. Não é que um nome passe a expressar
passivamente a unidade do grupo; ele se torna o próprio fundamento
do grupo (do povo), na medida em que constitui aquilo que ele
expressa, formando sua identidade.
As totalidades que resultam das lógicas equivalenciais jamais
suprimem as diferenças, de modo que a tensão entre os dois polos
é constitutiva das identidades sociais. Estas apenas se firmam, ainda
que de maneira sempre instável, a partir do antagonismo, isto é, elas
requerem a construção de um campo antagônico, de uma fronteira
que permita identificar as divisões sociais (o sistema institucional
corrupto, a classe dominante, os políticos, entre outros). No entanto, tais fronteiras se deslocam constantemente, inclusive porque envolvem a incorporação de novas demandas ou a exclusão de demandas que estavam presentes. Aqui emerge o conceito de significantes
flutuantes, que permitem apreender o deslocamento das fronteiras,
reconstruindo as relações de equivalência, de modo que seus sentidos instáveis são objeto da luta envolvendo a afirmação de diferentes
cadeias equivalenciais (por exemplo, a crítica à globalização pode
funcionar como um discurso de esquerda ou como um projeto com
traços xenófobos).
6. Particularmente, o impeachment de 2016 não pode ser explicado sem referência ao papel da corrupção
como nome que constituiu uma cadeia de equivalência com as demandas não satisfeitas, como educação, emprego, saúde, entre outras. O nome funciona como um significante vazio (sem um conceito fixo, que designa
um objeto), de modo que, no caso citado, as aspirações populares por mais serviços públicos se convertem,
sob o discurso dos críticos ao governo, em defesa da redução do Estado e da austeridade, mediada pela ideia
de corrupção como mazela nacional e razão da baixa qualidade dos serviços públicos. Para maiores detalhes,
ver Moretti (2017).
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Laclau lembra que o populismo pode assumir diferentes facetas. Por exemplo, no leste europeu, o papel do nacionalismo como
significante vazio remente a um etnopopulismo baseado na afirmação
de particularidades culturais. Por outro lado, na América Latina, surgiram historicamente diversos populismos de Estado, que advogavam
pelo fortalecimento do Estado central, em oposição às oligarquias latifundiárias. O pano de fundo deste fenômeno foram as demandas
das classes médias e populares urbanas, que ascenderam na primeira
metade do século XX. Sobretudo após a crise de 1929, os Estados liberais-oligárquicos se tornaram crescentemente inaptos para absorver
as demandas a eles dirigidas (os excedentes ao sistema institucional),
criando-se um hiato entre Estado liberal e democracia. Neste contexto, emergiram líderes cujos projetos tinham forte conteúdo estatista,
como Vargas e Perón.
Independente do contexto histórico, é preciso situar melhor o
papel do Estado na construção de um projeto em que o povo apareça
como sujeito resultante da construção discursiva de uma cadeia de equivalências entre demandas não contempladas pelas institucionalidades.
Sob a chave aqui apresentada, o discursivo não está em oposição ao não
discursivo. Na verdade, ele se constrói na articulação entre palavras e
ações, de modo que a transfiguração do vazio da totalidade social em
objeto parcial jamais é uma operação meramente verbal, inscrevendo-se
em práticas materiais que devem assumir formas institucionais.
Equivale a dizer que qualquer deslocamento hegemônico deveria ser
concebido como uma mudança na configuração do Estado, contanto
que este seja concebido não em um sentido jurídico restritivo, mas
como esfera pública, num sentido gramsciano puro, como o momento ético-político da comunidade (Laclau, 2013, p. 168).
Conforme exposto, a “origem” do projeto populista e das fronteiras simbólicas que constituem o social a partir do antagonismo são
| A RAZÃO NEOLIBERAL E O DESAFIO DA AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL
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as demandas não absorvidas pelo sistema institucional. No entanto,
não é razoável supor que a capacidade estatal de lidar com os anseios populares é mero reflexo dos valores hegemônicos (isto é, das
cadeias equivalenciais predominantes) no tecido social. Da mesma
forma, o Estado também não pode ser tomado como mero aparato
administrativo, como uma realidade própria e indiferente à luta pela
nomeação das demandas, isto é, pela constituição das cadeias equivalenciais.
É preciso investigar como as lutas pela capacidade de impor
cadeias de equivalência se cruzam com as práticas governamentais,
abrindo-as às demandas populares. Por um lado, tais cadeias podem
incidir sobre o aparato burocrático, inclinando-o ao atendimento de
demandas populares. Por outro, a própria constituição dessas demandas
requer práticas institucionais que induzam uma nova subjetividade,
na qual se ancorem maneiras de governar mais democráticas.
Para avançar na ideia exposta, é preciso introduzir as contribuições de Foucault às práticas de governo. Especialmente, será explorada
a abordagem foucaultiana do neoliberalismo como razão de governo,
como maneira de conduzir condutas, indexada à concorrência como
padrão de regulação social. Sob essa chave, as práticas de governo devem ser pensadas em articulação com regimes de verdade em que o
mercado se constitui em padrão de teste para as ações estatais.
Mais do que uma ideologia que mascara o acesso ao real, o
neoliberalismo constituiria sujeitos e as próprias possibilidades das
práticas governamentais, reguladas pela concorrência. Portanto, para
a construção política da vontade popular, no sentido de Laclau, é preciso incidir sobre as práticas governamentais, abrindo-as a novas racionalidades, bem como a novos sentidos atribuídos ao público. Em
outros termos, práticas de governo não são uma realidade meramente
instrumental, um dado à espera de valores que elas possam fretar. Elas
também são constitutivas dos projetos democráticos e se conformam
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
nas complexas transações que se estabelecem entre cadeias equivalenciais e aparato administrativo.
Se, com Laclau e Rancière, identificamos democracia, política
e antagonismo, é preciso interrogar como o neoliberalismo constitui
sujeitos como empresas de si mesmos, isto é, como ele configura a
concorrência como padrão de regulação social. No neoliberalismo, o
próprio Estado será regido pela ideia de “nunca governar demais”, não
se sobrepondo ao jogo econômico puro, ao mesmo tempo em que
procura incidir sobre todos os domínios sociais, estendendo a racionalidade concorrencial a eles. É este entrechoque entre o homo oeconomicus e a democracia, limitando o domínio do público ao padrão de
crítica do mercado, que deve ser interrogado em seus efeitos.
Em particular, é necessário compreender como o neoliberalismo produz as demandas não contempladas pelo sistema institucional
(excedentes não representáveis) como excesso de Estado e afeta o potencial do ato político que cria novas esferas de visibilidade em que possam aparecer sujeitos do dano e objetos do litígio. Ora, a democracia
envolve questionar instituições políticas naturalizadas, construindo
discursivamente vontades coletivas a partir da lógica do antagonismo.
Portanto, o ato político deve também incidir sobre a maneira como
a administração estatal põe em movimento definições do público7,
constituindo um instrumento de legitimação da partilha do sensível e
da distribuição desigual dos corpos e lugares sociais.
FOUCAULT E A ANALÍTICA DA
GOVERNAMENTALIDADE
A partir de 1976, Michel Foucault avançou em suas investigações sobre as relações entre saber, poder e sujeito, voltando-se às
7. Tema tratado por Bourdieu em seus escritos sobre o campo burocrático, nos quais o autor salienta a distribuição desigual de autoridade para definição do que é o público, num processo que converte posições de
valor em ponto de vista oficial, mediante rituais e recursos que atribuem forma impessoal ao discurso, fazendo
ver e crer que se fala em nome do coletivo (BOURDIEU, 2014).
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tecnologias de poder aplicadas à gestão dos “processos biossociológicos das massas humanas”, o que o leva a uma genealogia do Estado
moderno (Foucault, 2008b, p. 520). Para tanto, ele rejeita assumir
como objeto primitivo de análise noções universais “como, por exemplo, o soberano, a soberania, o povo, os súditos, o Estado, a sociedade
civil” (Foucault,2008a, p. 4), e funda sua pesquisa em um conceito
ampliado de governo:
[...] sendo essa noção entendida no sentido amplo de técnicas e procedimentos destinados a dirigir a conduta dos homens. Governo dos
filhos, governo das almas ou das consciências, governo de urna casa,
de um Estado ou de si mesmo (Foucault, 2008b, p. 532).
É nesse sentido que Foucault irá se afastar das teorias do Estado,
sejam liberais ou marxistas, investigando as condições de possibilidade
para os diferentes tipos de racionalidade governamental, entendida
como “uma medida razoável e calculável da extensão das modalidades
e dos objetivos da ação governamental” (Foucault, 2008a, p. 123). Os
estudos de Foucault sobre “governamentalidade” buscam identificar
a racionalidade imanente a uma arte de governar a população. Isto se
dá a partir da análise das práticas governamentais, ou melhor, a partir
dessas práticas idealizadas, da “maneira pensada de governar o melhor
possível” ao longo da história (Foucault, 2008a, p. 4).
Em sua genealogia da governamentalidade ocidental, Foucault
destaca um deslocamento fundamental que ocorre na verdade das
práticas de governo a partir do final do século XVIII e que faz irromper o mercado como um espaço de veridição – ou seja, ele deixa de
ser apenas um espaço de jurisdição, no qual se julga a legitimidade ou
ilegitimidade da razão governamental – e passa a ser um lugar capaz
de julgar o sucesso ou fracasso desta mesma razão na medida em que
as práticas de governo que suscita respeitam ou colidem com as “leis
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
naturais” da economia política que regem os objetos da ação governamental. Um governo passa a ser considerado inapto na medida em
que excede, ignora ou atropela os princípios da economia política,
desviando-se dos objetivos do Estado. Nesse sentido, “a economia política pôde se apresentar como nova ratio governamental autolimitativa” e, assim, como condição de bom governo.
Primeiramente, a economia política se manifesta na forma
como os fisiocratas enfatizam certos mecanismos de autorregulação
econômica, e colocam em prática uma forma de governo voltada a
permitir que o soberano monitore todo o processo econômico e intervenha (despoticamente) para evitar que a sociedade desrespeite as
“regulações naturais” do mercado. Essa concepção fisiocrática, contudo, pressupõe que o soberano detenha todas as informações referentes
aos processos econômicos em curso no seu território, de forma que os
regule para garantir a segurança da população.
É assim que a população aparece como nível pertinente da
ação governamental. Já os indivíduos, devem ser administrados
devidamente, incentivados a partir de uma lógica econômica para que
se produzam os efeitos em termos de segurança da população. Esta é
pensada como objetivo da ação de governo. Assim, o governo passa
a atuar sobre curvas de distribuição de probabilidade, procurando
normalizá-las. O indivíduo é um instrumento para que se obtenha
distribuições consideradas normais (de epidemias, de escassez de
alimentos, de mortalidade, entre outras). Esse dispositivo de poder-saber
difere daquilo que Foucault toma como disciplina, que adestra corpos
para produzir o normal e o anormal (Foucault, 2008b, p. 82). Outro
grande deslocamento político-epistemológico se dá com o advento da
“mão invisível” de Adam Smith e sua afirmação da impossibilidade
de qualquer soberano deter todas as informações econômicas de uma
sociedade. Justamente por possuir um conhecimento parcial que
o Estado deve ter também seu poder limitado. A economia política
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perde sua pretensão de abarcar a contabilidade geral da sociedade e
de dar ao soberano todas as informações necessárias à racionalização
global da economia. Enfraquece-se, assim, o amálgama que unia o
poder do soberano ao conhecimento.
Para Foucault, o início do liberalismo relaciona-se à formulação da incompatibilidade entre uma multiplicidade não totalizável
que caracteriza os sujeitos de interesse e a unidade totalizante da soberania jurídica (Gordon, 1991, p. 22). Essa relação entre mercado e
soberania jurídica, entre o indivíduo do mercado e o indivíduo da lei,
constitui o desafio da governamentalidade liberal. Essa é a complexidade da fórmula liberal do laissez-faire, formulação que possui enorme
ambiguidade, pois ao mesmo tempo que remete a uma posição de
permissividade para que não se impeça o curso natural das coisas,
implica uma atividade de regulação, facilitação para que esse mesmo
curso natural possa irromper.
É nesse contexto que se inventa e se constitui uma teoria da sociedade civil, que pode ser compreendida como instrumento ou correlato de uma tecnologia que permitiria governar. O homo oeconomicus
e a sociedade civil são indissociáveis, sendo o primeiro o ponto ideal
que povoa a realidade densa da sociedade civil (Foucault, 2008a, p.
403). Ela é o espaço concreto em que se deve inscrever esses pontos
ideais para que eles sejam administráveis.
Foucault irá sublinhar o neoliberalismo como uma novidade
histórica que se opõe tanto ao liberalismo clássico quanto às formas de
atenuação de algumas de suas consequências socioeconômicas levadas
a cabo pelo keynesianismo e pelo Estado de bem-estar. Nesse movimento, de um lado, identifica-se as ideias do neoliberalismo alemão,
ou ordoliberalismo, consagradas no Colóquio Walter Lippmann, de
1939, com a presença de pensadores como Hayek, Lippmann, Röpke, Rustow, Von Mises e Raymond Aron. De outro, o neoliberalismo
estadunidense, ou anarcoliberalismo, tem origem em um conjunto de
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textos de Simons, fundador da Escola de Chicago, e exacerba alguns
princípios do neoliberalismo alemão, avançando até as preconizações
de Milton Friedman (Foucault, p. 298-9).
Foucault ressalta que a lógica do neoliberalismo inverte, em uma
questão essencial, aquela colocada pelo liberalismo. Se no liberalismo
a razão governamental orienta-se pelo laissez-faire, sendo o Estado responsável pela regulação dos mercados, no sentido de evitar suas falhas
e excessos, no neoliberalismo parte-se da lógica inversa: o mercado se
torna o princípio de regulação do Estado; ele colocará o Estado à prova,
submeterá suas intervenções a uma crítica permanente. A liberdade de
mercado se tornará o princípio de regulação e vigilância do Estado.
O Estado neoliberal é permanentemente vigilante e altamente
intervencionista, visto que a concorrência como lógica econômica só
aparecerá e produzirá seus efeitos sob condições artificialmente preparadas. Ou seja, em oposição ao naturalismo ingênuo do laissez faire,
a concorrência pura funciona como horizonte utópico, exigindo esforços ininterruptos do Estado. A concorrência se torna um objetivo
da arte de governo neoliberal. Para o neoliberalismo, a sociedade não
se baseia na troca de mercadorias, seu princípio regulador é a concorrência. Para tanto, será necessário transformar cada unidade social em
uma empresa de si (o indivíduo, a casa e assim por diante) e estender
os princípios da concorrência a todos os domínios sociais, mesmo os
não econômicos (Foucault, 2008a, p. 164).
A análise genealógica de Foucault não se confunde com a busca pela gênese das instituições, tampouco procura mostrar como os
objetos examinados são produtos ideológicos. Sua análise visa a reconstituir a rede de alianças, de encadeamentos, de pontos de apoio
pelos quais uma série de práticas pôde fazer o que não existe (a delinquência, a loucura, entre outras) se inscrever no real, uma vez articulado a regimes de demarcação do verdadeiro e do falso. Não se trata da
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emergência de uma ilusão, mas do conjunto de regras e condições que
permitem estabelecer os enunciados verdadeiros e falsos.
A análise foucaultiana procura entender o nascimento de regimes de veridição. É nesse nível que se buscará mostrar como se encadeia um regime de verdade às práticas de governo. Em particular,
no neoliberalismo, o homo oeconomicus deixará de ser uma realidade
insondável, sobre o qual tudo o que o governo tem a fazer é deixar
agir, conforme a máxima do liberalismo clássico. Pelo contrário, no
neoliberalismo ele se converte em um ente passível de intervenção;
ele é o correlativo de uma tecnologia de governo liberal, pois tende a
reagir de forma sistemática e “racional” às induções produzidas pelas
práticas governamentais.
A conduta racional é entendida como aquela sensível às modificações do meio, respondendo a elas de modo não aleatório. Complementarmente, o comportamento que afronta a racionalidade concorrencial, que se mostra incerto frente às intervenções – lidas a partir
de lógica econômica pura – no meio circundante, é considerado uma
“contraconduta”, cujo componente moral apresenta-se como recusa
dos interesses da sociedade (Foucault, 2008b, p. 261).
O homo oeconomicus deixa, portanto, de ser o sujeito insondável
(aquele com o qual não se deve mexer) para constituir-se como objeto
do governo neoliberal. Este já não se resume à autolimitação do Estado
para que ele seja o menos intervencionista possível no mercado; agora
é o próprio mercado que constitui um padrão de teste para o Estado,
exercendo permanente vigilância sobre as práticas de governo8.
O ponto a salientar é justamente como o neoliberalismo inscreve as práticas de governo em um regime de verdade em que a concorrência figura como padrão de regulação social. Em outros termos,
8. Embora não seja um ponto abordado por Foucault, é preciso entender como o intervencionismo de corte
neoliberal também se apresenta sob a forma de violência física operada pelos agentes de Estado, dirigida
especialmente àqueles que se manifestam no espaço público como sujeitos do dano.
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sob o neoliberalismo, tanto as práticas estatais como os sujeitos aparecem como partes do jogo econômico puro. Nesse contexto, o ponto
não é a extensão da intervenção do Estado, mas o tipo de intervenção,
que deve ser capaz de construir as molduras para o desenvolvimento
do mercado (inclusive, os sujeitos da concorrência) e estender sua lógica a quaisquer domínios sociais, regulando, inclusive, o Estado, de
forma a submetê-lo aos princípios da concorrência.
Portanto, a lógica econômica pura do neoliberalismo (que,
vale repetir, não pressupõe o laissez-faire, mas um intervencionismo
em favor do mercado) submete, particularmente, a promessa liberal-democrática da soberania individual e popular. Sintomaticamente,
Hayek afirmou preferir uma ditadura liberal a um governo democrático sem liberalismo (Dardot; Laval, 2016, p. 184). Posição, a propósito, coerente para um neoliberal que, longe da defesa do laissez faire,
concebia um Estado ativo, capaz de resguardar o direito privado. Sob
essa chave, a democracia não poderia constranger o domínio individual. Afinal, para Hayek, os mecanismos democráticos deveriam se
submeter às regras da sociedade de direito privado, e não o contrário.
É nesse sentido que a potência da política, isto é, a esfera do
aparecer do povo, voltando a Rancière, é recortada pela racionalidade
econômica neoliberal, restringindo seu espaço de visibilidade. Nos
termos de Brown (2015), o homo politicus, sujeito que persegue a soberania e o governo de si, personagem ausente da narrativa foucaultiana, é subjugado pelo homo oeconomicus, que o converte em capital
humano. A partir daí, reorienta-se a relação do sujeito consigo mesmo
(pensada sob a forma de um investimento) e do Estado com o sujeito.
Enquanto capitais, eles se tornam insumos de que se vale o Estado
para induzir o jogo econômico. Portanto, não é apenas que os sujeitos
econômicos se comportam como empresas de si mesmos, mas que sua
existência está indexada à lógica da concorrência, de modo que eles
devem se sacrificar em função dos objetivos econômicos.
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Na adesão crítica que Brown faz às categorias foucaultianas, a
autora lembra que Foucault define o sujeito econômico como o sujeito de interesse individual. No entanto, mais do que o interesse,
o sacrifício seria a categoria constitutiva do sujeito da racionalidade
concorrencial. Portanto, se ele é o correlativo da governamentalidade
neoliberal, como quer Foucault, é porque se torna o objeto do ajuste
das práticas de governo ao padrão de teste do mercado. Daí resultam
as modalidades que passam a compor os objetos de saber governamentais: a terceirização, o corte de benefícios, a austeridade, a desregulamentação trabalhista, entre outras.
A próxima seção aborda como o quadro aqui delineado incide sobre o pensamento crítico brasileiro, demandando um deslocamento dos termos em que são tratadas questões como os direitos
sociais e a intervenção estatal como eixos para um novo modelo de
desenvolvimento. Será visto que os enunciados mais usuais do campo progressista brasileiro estão amarrados à problemática da extensão da intervenção estatal para o bom funcionamento do capitalismo, figurando como crítica ao liberalismo manchesteriano. Nesses
termos, a crítica se inscreve em um domínio em que seu objeto é a
demonstração do liberalismo como teoria que mascara o acesso ao
real da dinâmica econômica, sendo, por essa razão, nociva à ordem,
uma vez que agrava problemas econômicos, diante da redução do
papel do Estado.
Escapa-lhe, portanto, o neoliberalismo como racionalidade de
governo, inscrita em um regime de verdade no qual as práticas estatais
intervêm sobre a realidade para construir o mercado e são reguladas
pela lógica da concorrência. Operação repleta de consequências políticas, entre elas, a própria lacuna na construção de uma razão de
governo cujas intervenções simultaneamente induzam e se ancorem
em um sujeito que já não figure como uma empresa de si e objeto do
sacrifício para ajuste às circunstâncias econômicas.
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Apenas mediante a construção de outra racionalidade de governo é que se pode ampliar os espaços de inscrições de igualdade,
na medida em que as práticas estatais já não estarão demarcadas por
um regime de veridição em que o mercado regula a ideia do público.
Diante do exposto, resta perguntar: o pensamento crítico dispõe de
uma racionalidade alternativa para governar?
PENSAMENTO CRÍTICO E A ARTE DE GOVERNO
NEOLIBERAL
A questão de Foucault é mostrar como a economia política se
manifestou como a primeira forma de uma ratio governamental autolimitativa. Não mais um direito, como no século XVII, que impunha
limites ao governo desde seu exterior, mas uma regulação interna da
racionalidade governamental. O problema será definir o limite que o
governo deve impor a si, como um meio fundamental de atingir seus
objetivos. A demarcação não vai ser exercida sobre os súditos, mas
na própria prática governamental, estabelecendo-se o que, conforme
Bentham, é agenda e o que é non agenda (Foucault, 2008a, p. 17).
A prática governamental fixa a definição e a posição dos governantes e governados uns em relação aos outros. Essa definição não é
imposta por um polo ao outro, mas é produto de sua interação. É uma
“transação” que demarca o que deve ser feito e o que não deve. A questão não passa pela legitimidade do governante, mas pelo princípio de
não governar demais. A delimitação do que é o excesso de governo é
pensada em termos de seus efeitos ou sucesso, e não indagando sobre
o direito legítimo do soberano.
Conforme já exposto, Foucault assinalará a diferença entre o liberalismo clássico (cujo problema, nos séculos XVIII e XIX, é saber as
áreas em que se poderia intervir e aquelas entregues ao livre jogo das
forças de mercado) e o neoliberalismo, cujo momento fundante é o
| A RAZÃO NEOLIBERAL E O DESAFIO DA AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL
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Colóquio Walter Lippmann, em 1938 (Dardot; Laval, 2016, p. 71),
no qual seu organizador, o filósofo Louis Rougier, reforçava a oposição
entre liberalismo e laissez-faire. O neoliberalismo advogará por um intervencionismo jurídico de Estado, de modo a constituir uma sociedade
em função da economia de mercado e da concorrência. É assim que o
mercado se tornará um mecanismo de regulação da ação estatal, um
princípio para testar e fazer aparecer o excesso de governo.
Para os nossos propósitos, importa assinalar como o pensamento crítico ao liberalismo ainda se prende, em boa medida, à sua
versão clássica, aparecendo discursivamente como oposição ao princípio do laissez-faire. A afirmativa é particularmente válida para as posições econômicas inspiradas em Keynes. O economista inglês, em
artigo publicado em 1926 (anterior à Grande Depressão, vale assinalar), já se referia ao fim do laissez-faire, restabelecendo a distinção de
Bentham entre agenda e non-agenda.
Temos de distinguir entre o que Bentham, em sua nomenclatura esquecida, mas útil, costumava denominar Agenda e Non-Agenda, e fazer
isso sem o pressuposto de Bentham, de que a interferência é, ao mesmo
tempo, “geralmente desnecessária” e “geralmente perniciosa”. Talvez a
tarefa principal dos economistas neste momento seja distinguir novamente a Agenda do governo da Non-Agenda; e, de forma complementar, a tarefa da política é conceber formas de governo dentro de uma
democracia que seja capaz de cumprir a Agenda (KEYNES, 1926).
Keynes procura reconstituir a distinção de Bentham entre
agenda e non-agenda, assumindo que há tarefas que só o Estado pode
realizar, pois transcendem a lógica privada9. O caso mais célebre será a
9. Para os nossos propósitos, importa assinalar como a passagem permite entrever uma disjuntiva entre o
conhecimento especializado dos economistas (críticos ao liberalismo) e a política, que deve inventar formas
de executar aquilo que os especialistas definem como Agenda.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
socialização dos investimentos, cabendo ao Estado a coordenação das
relações entre investimentos públicos e privados. O governo deve administrar seu orçamento de investimentos de modo a reduzir incertezas que afetam o investimento privado, favorecendo o pleno emprego.
Pode-se dizer que Keynes coloca a questão em termos da governamentalidade mais adequada ao capitalismo, isto é, das maneiras
pelas quais se poderia racionalizar a intervenção governamental, tendo
em vista a necessidade de manter a economia na trajetória do pleno
emprego. Keynes se situa no campo discursivo da governamentalidade
liberal, uma vez que procura restabelecer a linha demarcatória entre a
ação individual e a prática de governo. Dardot e Laval (2016, p. 59)
associam as posições de Keynes a um novo liberalismo, que visava a
controlar as forças econômicas e evitar a anarquia social.
A questão central, para este novo liberalismo, seria a extensão
da linha que separa aquilo que o Estado pode fazer do que deve ser
objeto das práticas de governo. Se o liberalismo clássico submete a
prática de governo a uma crítica interna permanente, fundando uma
ratio governamental autolimitativa, seria necessário demonstrar que o
princípio deveria ser reformulado, posto que seus efeitos são nocivos à
própria ordem de mercado.
Para tanto, Keynes procurará mostrar que a economia clássica
é análoga a uma religião, esconjurando as evidências (Keynes, 1996, p.
323). Postula, portanto, a capacidade epistemológica para fundar uma
teoria científica que possa captar o funcionamento das economias de
mercado e prescrever os instrumentos de governo para lhes conferir
maior estabilidade. Daí resulta o enunciado do liberalismo como teoria econômica inepta, cuja crítica se fundamenta no conhecimento de
especialistas capazes de indicar a necessidade de redirecionamento da
gestão estatal na economia.
Aqui reside o ponto que nos importa salientar. A crítica keynesiana se mantém presa ao laissez-faire como fundamento do liberalis-
| A RAZÃO NEOLIBERAL E O DESAFIO DA AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL
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mo. Este, por sua vez, é tomado como teoria econômica, como objeto
de uma crítica teórica, ainda que com consequências em termos de
gestão estatal. Nesse sentido, a crítica tenderá a ganhar a forma predominante de uma argumentação científica baseada em evidências,
ainda que informe práticas governamentais alternativas. Mas o faz
fundamentalmente a partir de uma redefinição dos setores em que o
governo deve atuar e aqueles em que é preciso deixar o mercado agir.
O campo do pensamento crítico não se exaure nas formulações keynesianas, embora elas sejam um traço central na construção
do discurso crítico ao liberalismo e a seus efeitos. Nos países da América Latina, há de se ressaltar a contribuição dos autores associados à
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) como
momento marcante para as formulações antiliberais, com destaque
para Celso Furtado. De um lado, Keynes desponta como uma das
influências de Furtado e de outros tantos economistas críticos ao laissez-faire. De outro, é preciso ter clareza que o assim-chamado pensamento estruturalista remete a questões mais amplas do que as presentes em Keynes. Entre elas, as relações centro (detentor de tecnologia)
x periferia (exportadora de matérias-primas e bens primários), cujos
termos de troca tendem a se deteriorar em desfavor da última, concentrando renda no centro.
Nesse sentido, a divisão internacional do trabalho e o livre-cambismo agravam as hierarquias estruturais entre as nações. É este
achado que está na base de uma teoria do subdesenvolvimento, da
qual resulta a defesa do Estado como instrumento de mudanças estruturais em economias como a brasileira. No seu livro mais conhecido – Formação Econômica do Brasil (1977), a abordagem de Furtado em relação à resposta brasileira à crise de 1929 se aproxima da
teoria keynesiana, na medida em que a queima do café pelo governo
impedia uma baixa excessiva dos preços e gerava renda para os produtores. Pode-se caracterizar este momento como um ponto de ruptura
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
com o modelo primário-exportador, a partir do qual o Estado teria
papel central na indução da substituição de importações.
Furtado ofereceu uma explicação keynesiana para a resposta
à crise de 1929, assim como se projetou como principal ideólogo do
período nacional-desenvolvimentista, no qual a expansão burguesa
figuraria como projeto nacional (Oliveira, 1997, p. 4). Cumpre assinalar que Furtado não dialoga com clássicos do pensamento social
brasileiro como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de
Holanda. No caso deste último, por exemplo, seu argumento central
é que o obstáculo a uma ordem democrática no Brasil se devia ao predomínio de uma cultura personalista. Por conseguinte, os desafios da
nação são interpretados, em chave weberiana, à luz do confronto entre
o personalismo e o “ponto de vista jurídico e neutro do liberalismo”
(Holanda, 2003, p. 185). Dessa maneira, o Estado não constituirá um
aspecto central de suas teses.
Alternativamente, Furtado atribuiu ênfase ao papel do Estado
como obstáculo à emergência de uma ordem democrática, na medida
em que suas ações levavam à socialização das perdas e à privatização
dos lucros. Nesse sentido, sua obra é decisiva para que o pensamento
progressista tome o Estado como objeto de reflexão10. Até então, o
Estado era abordado fundamentalmente pelo pensamento autoritário,
em autores como Alberto Torres e Oliveira Vianna (Ricupero, 2005).
Para os nossos propósitos, importa destacar como o pensamento crítico brasileiro, que tem em Furtado uma de suas maiores
expressões, introduzirá a intervenção estatal como fator decisivo para
as transformações estruturais, com ênfase no planejamento econômico. Mesmo porque, conforme já exposto, a construção do povo como
categoria política no Brasil assumirá uma faceta estatal, desde Vargas.
10. Aqui aparece a influência sobre Furtado e outros economistas desenvolvimentistas de Mannheim e seu
conceito de intelligentsia, remetendo a uma possível autoimagem de técnicos situados acima dos grupos que
compõem a sociedade (RICUPERO, 2005).
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Com o tempo, a defesa da intervenção estatal transcende as áreas econômicas e passa às políticas sociais. Num caso ou em outro, o argumento baseia-se fortemente na ideia de que a estabilidade da ordem
econômica e social requer a intervenção estatal11.
Por essa razão, o laissez-faire tende a ser o objeto preferencial da
crítica, que se converte na defesa do Estado como canal para a modernização do país, seja para promover as condições de desenvolvimento do mercado, seja para assegurar direitos. No entanto, conforme já
abordado, o neoliberalismo não pode ser tomado como mera retirada
do Estado da economia e redução de políticas sociais. O pressuposto
desta posição é que as práticas governamentais, uma vez informadas
pelo liberalismo, são o resultado de uma linha demarcatória a partir
da qual é preciso deixar o mercado fazer.
Diante do exposto, a tarefa seria reconstruir a divisão entre a
agenda de governo e a ação privada. A redução do Estado (o recuo da
linha) seria o inimigo a combater, em função de seus efeitos econômicos e sociais. E se o liberalismo já não for tão bem captado como
redução do Estado, tratando-se (conforme argumentado, com base
em Foucault, no caso do neoliberalismo) de uma espécie de intervencionismo jurídico-político que produz o mercado, dissipando no
tecido social uma lógica concorrencial, que o torna critério de teste
das ações estatais?
Se a hipótese é razoável, a crítica teórica que associa o neoliberalismo à redução do Estado não capta o ponto principal: as práticas
de governo têm papel central em produzir ativamente a concorrência
como lógica que preside todos os domínios sociais, constituindo sujeitos na forma de empresas de si mesmos. Ademais, quando se procura
apreender como práticas de governo se articulam a um regime de de11. Vale assinalar a emergência de novas formas de discursos críticos que não necessariamente derivam da
matriz intervencionista “clássica” à qual nos referimos, a exemplo das pautas identitárias e ambientais.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
marcação do verdadeiro e do falso, percebe-se que uma das chaves do
neoliberalismo é a transformação do mercado em critério de veridição
das ações estatais.
A prática de governo neoliberal não subtrai algo do governo,
um pedaço da realidade no qual passa a vigorar o jogo livre de mercado; ao contrário, ele é o indexador geral das ações de governo. Em
outros termos, ele é o tribunal que afere a adequação das ações de
governo quanto à demarcação do que elas podem ser. Nesse sentido, o
princípio já não é a autolimitação do Estado, que deve zelar para que
o mercado funcione segundo as regras da concorrência, mas o oposto:
é o mercado que se torna o padrão de regulação do Estado; o mercado
se volta contra o Estado e fecha as práticas de governo na indução da
concorrência como norma social.
Vale assinalar que aqui se trata de uma maneira de racionalizar
a atividade governamental, no entanto, as práticas efetivas de governo
sempre são mais heterogêneas; são resultantes da luta que envolve diferentes racionalizações e posições, por vezes opostas. Sempre há resistências, princípios que negam as racionalidades que informam ações governamentais. De toda forma, é importante notar como governos agem
articulados a regimes de verdade que tomam a população como nível
pertinente de ação (ou seja, suas curvas de distribuição precisam estar
normalizadas), ao mesmo tempo em que o indivíduo é o instrumento
da ação, o que, no caso do neoliberalismo, implica tomá-lo como sujeito que absorve os efeitos negativos de ajustes às variáveis econômicas.
Por essa razão, é preciso levar em conta que o sujeito da racionalidade concorrencial não é constituído tanto pelo interesse individual,
como presume Foucault, mas pelo sacrifício (Brown, 2015). Afinal, a
subjetividade induzida pelo Estado neoliberal se encadeia de modo tal
ao jogo econômico que, em circunstâncias de incerteza e risco, ela se
torna um insumo ou uma variável de ajuste à ordem concorrencial.
O sujeito, convertido em capital humano, tende a ser reconfigurado,
| A RAZÃO NEOLIBERAL E O DESAFIO DA AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL
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diante de enunciados e visibilidades que passam a definir a prática
governamental como imposição de restrições que assumem formas
diversas, como políticas de austeridade, redução de benefícios sociais,
desregulação do mercado de trabalho, downsizing, entre outras.
Conforme lembra Deleuze (2013, p. 73), há um processo do
verdadeiro que se dirige aos objetos e às palavras, questionando como
deles se pode extrair, respectivamente, visibilidades e enunciados. Embora haja disjunção entre os polos, são eles que entram em relação, da
qual podem irromper novas práticas de ver e práticas de dizer. Para
os nossos propósitos, importa assinalar como podem aparecer práticas que conferem novas formas de conteúdo e expressão ao público,
abrindo-o a novos sujeitos e à afirmação de seus direitos sociais.
É sob essa chave que se pode dizer que uma operação política
central ao campo progressista é inscrever as práticas de governo em
outro regime de demarcação do verdadeiro e do falso, no qual o
público não seja achatado na racionalidade do sacrifício. O ponto
mais relevante não é se deve haver intervenção, diante dos seus efeitos
esperados sobre a economia, mas o tipo de intervenção capaz de
induzir outra racionalidade, na qual o Estado possa se apoiar em um
sujeito outro que não o da concorrência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O período pós-ruptura institucional no Brasil é marcado por
um conjunto de medidas que desmontam estruturas institucionais de
intervenção do Estado na economia e a rede de proteção social. Entre
os exemplos mais ilustrativos, estão a reforma trabalhista e a Emenda
Constitucional 95/2016. Esta última, na prática, reduzirá, ao longo de
20 anos, a despesa social e os investimentos como proporção do PIB.
Os efeitos já se fazem sentir, com redução das despesas federais de saúde
(Moretti E Rego, 2018) e dos investimentos, para citar dois exemplos.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
O Brasil apenas com a Constituição de 1988 logrou estabelecer um conjunto de direitos sociais, associados, por exemplo, a renda,
saúde e educação. A razão de governo neoliberal se dirige a essa arquitetura institucional, procurando submetê-la aos imperativos econômicos. Dessa maneira, a incipente proteção social universal vem se
desmantelando e produzindo outra distribuição dos corpos, retomando a oposição entre o que se pode fazer e falar a partir das práticas de
governo e as demandas sociais, especialmente daqueles historicamente excluídos do sistema de proteção social. Conforme visto, a democracia pode ser abordada como algo distinto de um regime político
definido por instituições impessoais. Especialmente em Laclau, seu
aspecto crucial é a constituição das vontades populares, que só se dá
na medida em que demandas isoladas se articulam de modo que elementos heterogêneos se reconfiguram em uma unidade. O nome não
expressa uma unidade dada (por exemplo, a classe trabalhadora), não
é um conceito, mas um puro significante que constitui performativamente a unidade. Portanto, o ato político é também cognitivo; é uma
operação discursiva que requer a construção do povo em oposição ao
sistema institucional que não acolhe suas demandas.
Nesses termos, é razoável a hipótese de que os desafios do
campo progressista para o período pós-ruptura institucional passam
pela construção de uma unidade entre demandas sociais heterogêneas (emprego, saúde, segurança, entre outras), não atendidas pelo
sistema institucional. Diante do quadro político-econômico atual, a
construção das vontades populares envolve necessariamente a capacidade de assegurar direitos. Para tanto, é fundamental que se criem
espaços de visibilidade para o sujeito do dano e para os objetos de
litígio (os afetados pela austeridade, os desempregados e assim por
diante), mas também que se incida sobre o sistema institucional,
abrindo-o às aspirações populares.
| A RAZÃO NEOLIBERAL E O DESAFIO DA AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL
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É neste ponto que se impõe uma renovação à tradição crítica
brasileira, que se apresenta, predominantemente, sob a forma de
aspiração a um modelo de desenvolvimento centrado em elementos
econômicos, no qual a intervenção estatal tem papel chave, sobretudo
para assegurar o crescimento e garantir direitos, superando a redução
do Estado, típica do neoliberalismo. Alternativamente, conforme aqui
exposto, é preciso tomar o neoliberalismo como uma razão de governo
que propaga uma racionalidade econômica específica, indexando os
sujeitos aos imperativos concorrenciais. Essa racionalidade implica
práticas de governo articuladas a um regime de verdade no qual os
sujeitos aparecem como apêndices das necessidades econômicas, no
limite, convertendo-se em unidades empresariais sujeitas ao sacrifício.
A tecnologia de governo neoliberal produz enunciados e visibilidades que ancoram o intervencionismo estatal numa lógica de
ajustes em favor do mercado, cujo objeto é o sujeito do sacrifício.
Nesses termos, o Estado não deve ser tomado como uma realidade
neutra à espera de valores hegemônicos progressistas, ou de um modelo de desenvolvimento legitimado pela linguagem especializada
do planejamento econômico (ainda que participativo), reservando-se à política democrática a mera implementação da agenda, definida em termos técnicos12.
Se o neoliberalismo é uma tecnologia de governo, alternativas
a ele devem ser constituídas no cruzamento das vontades coletivas politicamente constituídas – necessariamente incidindo sobre os regimes
12. A dicotomia entre técnica e política funciona como um pressuposto implícito de que teorias e práticas
econômicas antecedem juízos de valor. Por exemplo, é usual que posições econômicas contrárias ao impeachment de 2016 salientem que os fatos formais não tinham justificativa técnica, antes configurando pretextos
para uma ação política que não corresponde à realidade da política econômica. Para um exemplo, ver Dweck
e Teixeira (2017). Sob o nosso ponto de vista, não há qualquer discordância em relação à crítica às razões formais da denúncia. No entanto, o mais relevante é entender como, nos termos da denúncia, as práticas fiscais
estão inscritas, de partida, em pressupostos cognitivos que as colocam em oposição ao interesse público. Dessa
forma, a operação mais relevante não seria denunciar a desconformidade da denúncia em relação à natureza
da política econômica do governo Dilma, mas mostrar como práticas estatais só são inteligíveis no interior de
regimes de verdade que definem o que se pode ou não fazer/falar em nome do público.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
de verdade para criar enunciados e visibilidades – com novas práticas
estatais, nas quais o público já não apareça como mera administração
dos ajustes à lógica concorrencial, mas como resposta ao sujeito do
dano. Afinal, é o dano que fabrica os espaços onde se pode postular
direitos e problematizar as configurações do visível e do dizível, em
razão das quais os corpos se distribuem desigualmente e são designados por nomes que definem seu lugar e suas tarefas. Enfrentar a
razão neoliberal implica reconfigurar a partilha do sensível e produzir
deslocamentos dos corpos, fazendo ouvir como discurso aquilo que
só é ouvido como ruído (RANCIÈRE, 2018, p. 43). Desafio ainda
mais relevante no caso brasileiro, frente à desigualdade cristalizada em
práticas institucionais que tendem a converter a exclusão em norma.
Diante do exposto, resta indagar: que arte de governar pode se
lastrear em um sujeito de direitos; aquele que, na ratio neoliberal, é
apenas um ruído, abafado pela concorrência e pelo sacrifício?
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Avançados, v. 19, n. 53, p.371-377, 2005.
| 69 |
CAPÍTULO 3
TRINTA ANOS DE DISPUTAS
POR UM PROJETO NACIONAL
DE DESENVOLVIMENTO
NOS TRÓPICOS
JOSÉ CELSO CARDOSO JR. 1
Este capítulo atende a chamamento de forças progressistas
ainda presentes na sociedade brasileira, dentro e fora dos aparelhos
de Estado em seus diversos níveis de organização e atuação, com
vistas a mais um repensar sobre o Brasil. Em particular, trataremos
do papel institucional desempenhado pelas políticas públicas estruturadas a partir da CF-1988, com vistas a um projeto nacional de
desenvolvimento.
Assim, para além desta breve apresentação, o artigo oferece,
na seção 1, uma visão panorâmica acerca dos três grandes momentos situacionais pelos quais acreditamos ter passado a CF-1988 neste
interregno de 30 anos, a saber: i) entre 1988 e 2002: contestação e
acomodação; ii) entre 2003 e 2014: acomodação e conciliação; e iii)
entre 2016 e 2018: golpe e desconstrução.
1. Doutor em Desenvolvimento pelo Instituto de Economia-Unicamp, desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Posteriormente, na seção 2, realizamos uma incursão mais amiúde sobre algumas importantes transformações recentes na Administração Pública Federal Brasileira, as quais explicam a montagem histórica
de um híbrido institucional de difícil apreensão e transformação.
Na seção 3, por sua vez, destacamos algumas das mais importantes tensões estruturais nas políticas públicas federais, organizadas
de acordo com as grandes áreas de atuação governamental no país.
Por fim, nas considerações finais, apontam-se elementos para a
construção de um Estado ativo e capaz.
CF 30 ANOS: CICLOS DE CONTESTAÇÃO,
ACOMODAÇÃO E DESCONSTRUÇÃO INSTITUCIONAL
Como se sabe, em outubro de 2018 a CF-1988 terá completado 30 anos desde sua promulgação em 1988. Até o momento, esta
é (ou terá sido) a Constituição Federal mais longeva da história republicana brasileira, a viger sob regras democráticas por ela mesma
estabelecidas – e obedecidas! –, ao menos até 2016.
Em termos bibliográficos, vários trabalhos relevantes sobre a
CF-1988 foram produzidos por ocasião dos seus 20 anos de vigência
(Bercovici, 2005; Cardoso Jr., 2009; Cardoso Jr, Castro e Mota, 2009;
Comparato, 1986; Fiocca e Grau, 2001; Fonseca, Brelàz e Gomes,
2010; Ipea, 2009; Gomes, 2013; Grau, 2008; Lopes, 2008; Oliven,
Ridenti e Brandão, 2008; Praça e Diniz, 2008; Ribeiro, Guerra, Bernardes e Andrade, 2013). Muitos mais, aliás, que os que haviam sido
produzidos por ocasião dos 10 anos e, provavelmente, muitos mais
do que parece serão produzidos agora por ocasião dos seus 30 anos.
Apenas esse fato já dá mostras de quão diferentes (pessimista, otimista e novamente pessimista) vem sendo as efemérides decenais de sua
existência no país. E isso demonstra a importância desse esforço no
sentido de capturar e caracterizar o momento constitucional atual.
TRINTA ANOS DE DISPUTAS POR UM PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO NOS TRÓPICOS
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Para além de seu tempo formal de vigência, a CF-1988 é importante porque sob suas regras gerais o país instituiu e tentou implementar (não sem resistências de toda ordem, várias delas infelizmente exitosas), um amplo conjunto de direitos civis, políticos, sociais e
econômicos. Grande parte da (ainda que pífia) melhoria distributiva
havida, por exemplo, entre 1995 e 2015, deveu-se aos esforços de
implementação de dispositivos constitucionais atrelados às políticas
sociais em suas diversas áreas de atuação, tais como: previdência e
assistência social, trabalho e renda, educação e saúde, dentre outras.
Tal resultado distributivo, é bom que se diga, ocorreu pelo lado do
gasto público, e foi contrabalançado por tendências concentradoras
advindas tanto da estrutura tributária regressiva como da primazia do
gasto financeiro sobre o gasto real, ambos os aspectos, ou presentes na
CF-1988 desde o início, ou posteriormente nela sacramentados por
meio de Emendas Constitucionais que pioraram aspectos cruciais já
problemáticos do texto constitucional nesses temas ligados à ordem
tributária, econômica e financeira.
Por outro lado, a CF-1988 também buscou reorganizar aparatos estatais em diversos campos de atuação, promovendo uma verdadeira reforma administrativa em termos de reestruturação e modos de funcionamento da máquina pública. São exemplos disso os
regramentos postos em operação (também aqui de forma diferenciada
no tempo e muitas vezes contraditória entre si) nas áreas do direito
econômico e financeiro, da arrecadação tributária, da orçamentação e
gastos públicos, do planejamento e gestão governamental, da participação social e controles estatais, além dos aspectos formais relativos ao
funcionamento e (des)equilíbrio entre poderes (Executivo, Legislativo
e Judiciário, com o Ministério Público tendo nascido e se fortalecido
desde então...) e entre entes federados.
Dada sua abrangência e profundidade temáticas, a CF-1988
nunca foi consensual no país, razão pela qual desde sua promulgação a
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
sociedade brasileira vem se dividindo entre aqueles que simplesmente
querem derrogá-la, visando instaurar uma ordem constitucional majoritariamente liberal-conservadora, e aqueles que desejam ou mantê-la em seus traços fundamentais, ou fazê-la avançar em termos sociais,
econômicos, políticos etc., num sentido de maior controle estatal sobre a economia e maior congraçamento tanto populacional quanto
territorial.
A questão de fundo, portanto, é que desde a promulgação da
CF-1988, há no Brasil, grosso modo, dois projetos políticos antagônicos em disputa no debate corrente. De um lado, coloca-se novamente
em pauta – por setores conservadores da sociedade, comunidades da
política (partidos, sindicatos e outras agremiações) e da própria burocracia, além da mídia e empresariado – o caminho liberal, de orientação privatista e individualista, que havia vivenciado melhores dias na
década de 1990, mas que desde 2016 vem conseguindo impor uma
agenda abrangente, profunda e veloz de retrocessos institucionais em
áreas críticas da regulação econômica, social e política do país.
De outro lado, embora raramente tenha tido força política suficiente no cenário nacional, permanece como possibilidade – defendida por setores do campo progressista, dentro e fora das estruturas de
governo – a via da expansão ou universalização integral dos direitos
civis, políticos e sociais, tais quais os promulgados pela CF-1988. Todavia, é preciso ter claro que as bases materiais e as condições políticas
hoje vigentes para a efetivação de tais direitos estão ainda mui distantes das mínimas necessárias à sua consecução.
Não por outra razão, talvez seja possível estabelecer ao menos
três momentos por meio dos quais o embate acima vem se desenrolando no país desde o início. Grosso modo, entre 1988 e 2002,
teria vigorado um momento de contestação e acomodação do pacto
constitucional original. Depois de o governo Sarney ter-se colocado
publicamente contra a CF-1988 recém-promulgada, o conturbado
TRINTA ANOS DE DISPUTAS POR UM PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO NOS TRÓPICOS
| 73 |
governo Collor de Mello buscou contestá-la abertamente, sem, contudo, ter tido êxito em suas tentativas de reformas. Após seu impeachment em 1992, o país vivenciou sob o governo provisório de Itamar
Franco um período de acomodação geral, pois a despeito da revisão
constitucional havida em 1993, o que estava em jogo era a transição
política para as próximas eleições, que haveria de ser em 1994. Durante os dois mandatos de FHC houve novamente um período forte de
contestação e reformas constitucionais de grande monta, sobretudo
entre 1995 e 1998. O ímpeto das mesmas se arrefeceu ao longo do segundo mandato (1999 a 2002), tanto em função das crises econômica
e social em curso, como também por causa da aglutinação de forças
políticas de oposição ao governo, que conseguiram barrar ou adiar
votações importantes ao projeto liberal de reformas constitucionais.
Desta forma, apesar das 45 Emendas Constitucionais aprovadas em
seus primeiros 14 anos de vigência democrática, a maioria das quais
com caráter claramente contrário ao espírito original das leis, pode-se
dizer que houve também certa acomodação de princípios e diretrizes
constitucionais relevantes aos pactos sociais e políticos de então (ver
tabela a seguir).
Por sua vez, entre 2003 e 2014, teria havido um momento
que poderíamos chamar de acomodação e conciliação relativamente
à CF-1988 e propostas de reformas. Durante os dois mandatos presidenciais de Lula da Silva (2003 a 2010, mas sobretudo no segundo) e
ainda durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011 a 2014),
a despeito de 45 Emendas Constitucionais aprovadas, quase todas elas
fruto de embates políticos e ideológicos de monta, de modo que nem
todas possuíram sentido contrário ao espírito original das leis, houve
também esforços institucionais no sentido de acomodar e implementar dispositivos constitucionais importantes, bem como conciliar a
discussão de temas controversos e mesmo postergar a aprovação de
medidas contrárias ao ideário menos liberal dos governos de então.
| 74
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Tabela 1- Total de Emendas por mandato
Momentos
Momento 1:
Contestação e
Acomodação
Mandatos presidenciais
Nº das emendas
Total 1988-2018
1988 – 1989: José Sarney
-
0
1990 – 1992: F.Collor de Mello
EC 1 - EC 2
2
1993 – 1994: Itamar Franco
EC 3 - EC 4 ECR 1 ECR 6
8
1995 – 1998: FHC-1
EC 5 - EC 20
16
1999 – 2002: FHC-2
EC 21 - EC 39
19
TOTAL DE EMENDAS MOMENTO 1
Momento 2:
Acomodação e
Conciliação
45
2003 – 2006: Lula-1
EC 40 - EC 53
14
2007 – 2010: Lula-2
EC 54 - EC 67
14
2011 – 2014: Dilma-1
EC 68 - EC 84
17
TOTAL DE EMENDAS MOMENTO 2
Momento 3: Golpe e
Desconstrução
45
2015 – 2016: Dilma-2
EC 85 - EC 95
11
2016 – 2018: Temer
EC 96 - EC 99
4
TOTAL DE EMENDAS MOMENTO 3
15
Total 1988 – 2018
105
Fontes: https://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/viwTodos/509f2321d97cd2d203256b280052245a?OpenDocument&Highlight=1,constitui%C3%A7%C3%A3o&AutoFramed
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1988/constituicao-1988-5-outubro-1988-322142-publicacaooriginal-1-pl.html
http://www.trtsp.jus.br/legislacao/constituicao-federal-emendas
Por fim, entre 2015 e 2018, já num contexto de crises econômica e política abertas, cujo desfecho institucional foi – por ora – a
destituição de Dilma Rousseff e a tomada de poder pelo consórcio
liberal-conservador formado por toda a oposição parlamentar de então, e também por parte expressiva da coalizão de apoio (de centro
e de direita) reeleita em 2014, conforma-se um momento que se
vai caracterizando como sendo de golpe e desconstrução abrangente,
profunda e veloz dos fundamentos basilares da CF-1988. Mas isso
apenas se faz possível em função das situações (formais e informais)
de excepcionalidade de medidas e criminalização de direitos e atores
sociais que se vêm anunciando e produzindo principalmente desde
2015 (com o aguçamento da ingovernabilidade já durante o pri-
TRINTA ANOS DE DISPUTAS POR UM PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO NOS TRÓPICOS
| 75 |
meiro ano do segundo mandato de Dilma) e, com maior ênfase,
desde o golpe em 2016, a partir de quando os blocos conservadores
no comando dos três poderes da República, mais Ministério Público, Tribunais de Contas, Polícia Federal, grande mídia corporativa e
grande empresariado nacional e internacional, financeiro e financeirizado, valendo-se da anomia, alienação, desinformação, cooptação,
desalento e/ou resignação social em curso, vem conseguindo pautar
e sancionar (até o momento, julho de 2018) 15 Emendas Constitucionais e outras tantas reformas infraconstitucionais abertamente
contrárias ao pacto social e político forjado – e em lenta, gradual e
insegura acomodação – desde a CF-1988.
Em suma, dada a quantidade total de EC já aprovadas e seu perfil majoritariamente contrário ao espírito original da CF-1988, é possível afirmar que, 30 anos depois, o Brasil possui hoje, na prática, uma
Constituição Federal Desfigurada, sem, no entanto, ter vivenciado, para
tanto, uma outra Assembleia Constituinte assentada na soberania popular.
Pelo exposto, e sem desconsiderar a distância que há – a todo o
momento e lugar – entre os fatos e as leis, ou seja, sem jamais acreditar
que a mera existência formal da CF-1988 possa ser posta em movimento tal e qual a letra das leis, portanto, cientes de que qualquer aparato legal nada mais é do que o resultado (mais ou menos transitório
ou permanente) dos embates políticos, econômicos, sociais, culturais
etc. de uma dada sociedade em determinado tempo e contexto histórico, vê-se que tais aparatos, por sua vez, trazem em si determinados
princípios, diretrizes e projetos políticos cuja implementação (isto é,
sua conversão em fatos da realidade) depende evidentemente da disputa social e política – idealmente arbitrada por regras supostamente
republicanas presentes no sistema democrático vigente – que se coloca
em movimento desde a sua promulgação.
Isso significa que a discussão sobre a CF-1988 não está descolada da vida cotidiana das pessoas e instituições (sejam essas públicas-
| 76
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
-estatais, não estatais, e privadas), as quais são criadas, transformadas e
mobilizadas para a aplicação ou contestação de cada um dos tais normativos legais. Significa, por isso mesmo, que não é assunto menor ou sem
consequências uma discussão que pretenda não apenas proceder a um
balanço crítico (ainda que não exaustivo) da experiência constitucional
brasileira ao longo desses 30 anos de existência (1988-2018), perscrutando o teor ou sentido das mudanças havidas nas diversas fases de contestação, acomodação, conciliação e desconstrução efetiva ora em curso,
como ainda oferecer uma visão prospectiva e propositiva, perfilada ao
projeto de construção e desenvolvimento da nação, que lhe é evidente.
Neste sentido, cabe na sequência a tarefa de acompanhar mais
amiúde o tema das políticas públicas tais quais emanaram da ordem
social da CF-1988 e vieram sendo concretamente implementadas em
meio às disputas políticas e projetos de país mais evidentes desde então.
TRANSFORMAÇÕES NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
FEDERAL BRASILEIRA: A MONTAGEM HISTÓRICA DE
UM HÍBRIDO INSTITUCIONAL DE DIFÍCIL APREENSÃO
E TRANSFORMAÇÃO
Do anterior, é claro que várias frentes de pesquisa, análise, interpretação e proposição de mudanças concretas podem ser derivadas
para o Estado brasileiro no século XXI, sempre em perspectiva republicana, democrática e desenvolvimentista.
Dentre essas, quero destacar aqui resultados parciais – e em
processo permanente de elaboração – que venho obtendo de uma
agenda de pesquisa já de larga duração, notadamente sobre os temas
do Estado, do Planejamento Governamental e da Gestão de Políticas
Públicas no Brasil desde a CF-1988.
Em larga medida, pode-se dizer que ao longo do extenso e
inconcluso século republicano brasileiro (1889 – hoje), a história de
TRINTA ANOS DE DISPUTAS POR UM PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO NOS TRÓPICOS
| 77 |
construção do Estado nacional poderia ser contada com base em seis
ciclos temporalmente determinados.
Entre 1889 e a década de 1930, houve a passagem formal do
Estado imperial, transportado da metrópole portuguesa em 1808 para
a colônia de além-mar, logo convertida em reino-unido e, depois da
independência em 1822, transformada em monarquia constitucional
(1824), para um Estado que aspirava ser uma República Federativa
nos moldes dos Estados Unidos. Por meio da Constituição Federal
de 1891, implementava-se o fim do poder moderador (de uso anterior exclusivo do imperador), a separação formal entre Estado e
Igreja, e propunha-se a separação formal entre os Poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário. O DNA desse Estado, no entanto, ainda era
predominantemente patrimonial-oligárquico, no sentido de que tanto
a ocupação dos cargos públicos, a composição dos quadros estatais,
quanto a forma dominante de funcionamento das organizações governamentais seguiam critérios mais privados do que públicos, mais
aristocráticos do que meritocráticos, no que diz respeito à forma de
estruturação e operação da máquina pública.
Depois, entre 1938 – criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp) – e o golpe civil-militar de 1964, houve
a introdução dos primeiros critérios e princípios de natureza tipicamente burocrático-weberiana na Administração Pública Federal, sobretudo para as tarefas de seleção e formação de recursos humanos.
Há um esforço de maior e melhor organização das estruturas e formas de funcionamento da máquina estatal, além de iniciativas mais
concretas de planejamento discricionário e “soluções de administração paralela” para efetivação de projetos governamentais prioritários
em cada momento, como são exemplos vários empreendimentos ao
longo dos governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Não
obstante, as novas características introduzidas e lentamente difundidas pelo interior da Administração Pública Federal não eliminam as
| 78
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
características anteriormente arraigadas e conformam doravante um
Estado patrimonial-oligárquico-burocrático no Brasil.
Posteriormente, entre as reformas do Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG) em 1964-1967 e a Constituição Federal de
1988, tem-se um período de mudanças profundas na configuração do
Estado brasileiro. Por meio de reformas de natureza tributária, financeira e administrativa (sobretudo o Decreto-Lei 200/1967 e o Decreto-Lei 201/1967), abre-se uma fase de rápida e abrangente estatização
do setor produtivo nacional, marcada também por uma crença tecnocrática na capacidade do planejamento governamental impositivo
em diagnosticar problemas, formular soluções, implementar projetos,
transformando a realidade econômica na direção desejada. Com isso,
deriva dessa fase uma grande complexificação e heterogeneização da
organização e atuação estatal no país, e o Estado passa a ser mais bem
caracterizado pelos traços patrimonial-oligárquico-burocrático-autoritário, tendo o autoritarismo (e a hipercentralização do período de
comando e controle militar) sido transportado para a própria estrutura e cultura burocrática estatal brasileira.
Já entre a Constituição Federal de 1988 e a reforma gerencialista
liberal da década de 1990, apesar de transcorrer em um curto e conturbado espaço de tempo, há um projeto de transformações profundas
propugnadas pela Constituição Cidadã. Trata-se, como se diz no meio
jurídico, de uma Constituição Dirigente, que carregava um projeto de
desenvolvimento abrangente para o Brasil, com ênfase no social e na
afirmação do controle nacional sobre os meios econômicos para o desenvolvimento. Ademais, uma proposta de reforma do Estado de natureza democratizante nas relações entre Estado, sociedade e mercado,
além de descentralizadora de poder para as relações federativas e entre
poderes da União. Por meio de outra rodada de reformas de natureza
tributária, social, econômica e administrativa, a Constituição Federal de
1988 visava reforçar o teor “meritocrático-weberiano” de acesso, ocupa-
TRINTA ANOS DE DISPUTAS POR UM PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO NOS TRÓPICOS
| 79 |
ção e condução da máquina pública, combinando-o com a criação ou
o aperfeiçoamento de mecanismos de participação social (tais como os
conselhos e o compartilhamento público-privado de políticas públicas),
além de mecanismos de deliberação direta da população (referendo, plebiscito, iniciativa popular) acerca de assuntos de interesses e implicações
gerais. Aqui também, sem que as novas características dessa rodada de
reformas conseguissem substituir inteiramente as características anteriores, agregava-se um novo qualificativo ao híbrido institucional brasileiro, por meio do qual agora se passava a ter um Estado patrimonial-oligárquico-burocrático-democrático-social no país.
Sobre esse, agrega-se a reforma gerencialista-liberal do período 1995-2002. Seguindo orientações estrangeiras na contramão dos
postulados pela Constituição Federal de 1988, promove-se mais uma
série de alterações principiológicas, normativas, regulatórias e operacionais no interior da Administração Pública que reforçam a complexidade e a heterogeneidade interna da organização e atuação estatais.
Por meio de medidas como a privatização do setor produtivo estatal
e reformas de cunho fiscal e administrativo, reforçaram-se valores de
mercado e introduziram-se critérios produtivistas nas relações público-privadas e também internas ao setor público. Daí que, doravante,
o híbrido institucional brasileiro passaria a ter mais um componente,
a caracterizar o Estado nacional como patrimonial-oligárquico-burocrático-democrático-social-gerencial.
Até aqui, portanto, pode-se falar em cinco grandes momentos
de transformações cumulativas da estrutura e forma de funcionamento da Administração Pública Federal brasileira. Duas características
marcantes seriam:
i) Em todos os momentos anteriores, é possível identificar ao
menos um grande evento ou documento de referência a justificar as
necessidades e razões das mudanças pretendidas, cujo peso e importância ajudam a demarcá-lo como ponto de inflexão ou descontinui-
| 80
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
dade a justificar as mudanças observadas posteriormente no que se refere à estruturação e ao modo de operação do aparato estatal. Sucintamente, então, teríamos tido, no decorrer do longo século republicano
brasileiro, os seguintes eventos-chave, portadores das características
dominantes em cada momento subsequente no tortuoso e inacabado processo de construção do Estado nacional: Constituição Federal
de 1891; Dasp 1938; PAEG (Decreto-Lei 200/1967); Constituição
Federal de 1988; Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado
(PDRE/MRE) 1995;
ii) Tais momentos não devem ser vistos como etapas evolutivas
em um processo linear ou coerente de constituição institucional do
Estado nacional. Ao contrário, devem ser vistos como momentos de
um percurso não linear – e inclusive dialético e contraditório – de
sobreposição de camadas não necessariamente complementares ou
convergentes de padrões, estilos, paradigmas e tendências de transformações no âmbito do Estado, fruto das concepções ideológicas
e embates políticos de cada momento específico, razão pela qual as
características dominantes em cada período, presentes (nascidas ou
inoculadas) no interior das estruturas estatais, raramente conseguem
ser totalmente eliminadas, ainda que sejam constantemente reponderadas, quando da passagem de um momento a outro. Com isso, ao
longo do percurso histórico, vai-se formando um híbrido institucional que nos dias de hoje não possui traço mais dominante que outro,
por isso a dificuldade de bem caracterizar de forma rápida ou fácil o
Estado brasileiro.
Isso posto, quais as características marcantes do momento
atual, aqui datado aproximadamente entre o início dos governos de
coalizão comandados pelo Partido dos Trabalhadores (PT) em 2003
e o final do primeiro governo Dilma em 2014? Teria o Brasil vivenciado um sexto momento de “reformas” do Estado, a ponto de poder
ser realmente caracterizado como tal? A hipótese levantada na pes-
TRINTA ANOS DE DISPUTAS POR UM PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO NOS TRÓPICOS
| 81 |
quisa Política e Planejamento no Brasil Contemporâneo2 mostra haver
indícios de que sim, de que teria havido nesse período um conjunto
abrangente e profundo de transformações no âmbito da Administração Pública Federal a ponto de poder ser caracterizado como um sexto
momento no percurso histórico brasileiro de transformações do seu
Estado nacional. Mas, diferentemente dos momentos anteriores, na
ausência agora de um fato, evento ou documento que pudesse servir
de referência clara a caracterizar a novidade do período atual em termos da reestruturação e do modo de funcionamento do aparato estatal, que elementos podem servir de anteparo histórico-teórico e guia
de análise e interpretação para sustentar a positividade da hipótese
acima aventada?
Pois justamente para tentar dar fundamentação e concretude
a tal hipótese é que se desenhou a pesquisa Política e Planejamento no
Brasil Contemporâneo, a partir da qual se vem tentando descortinar e
interpretar as transformações relevantes ocorridas na Administração
Pública Federal desde 2003, em áreas estratégicas do governo brasileiro, identificando avanços e obstáculos. Trata-se, portanto, de uma
2. Um bom resumo pode ser visto em: file:///C:/Users/Lg/Desktop/ZC%202017/BAPI%202017/Versão%20final%20revisada/bapi12_web.pdf. A pesquisa Política e Planejamento no Brasil Contemporâneo, sob
coordenação de José Celso Cardoso Jr., publicou até o momento quatro livros pelo Ipea e duas coletâneas
avulsas por editoras externas.
– Pelo Ipea foram já publicados os seguintes livros:
1. CARDOSO JR, J. C. e CUNHA, A. dos S. (orgs.). Planejamento e Avaliação de Políticas Públicas. Brasília:
Política e Planejamento no Brasil Contemporâneo, v. 1, Ipea, 2015.
2. CARDOSO JR., J. C. e SANTOS, E. V. (orgs.). PPA 2012-2015: experimentalismo institucional e resistência burocrática. Brasília: Política e Planejamento no Brasil Contemporâneo, v. 2, Ipea, 2015.
3. CARDOSO JR., J. C., SANTO, J. C. e PIRES, R. R. (orgs.). PPA 2012-2015: a experiência subnacional de
planejamento no Brasil. Brasília: Política e Planejamento no Brasil Contemporâneo, v. 3, Ipea, 2015.
4. CARDOSO JR., J. C. (org.). Planejamento Brasil Século XXI: inovação institucional e refundação administrativa - elementos para o pensar e o agir. Brasília: Política e Planejamento no Brasil Contemporâneo, v. 4,
Ipea, 2015.
– Já pela Editoria Hucitec foi publicado o livro:
5. CARDOSO JR., J. C. (org.). Administração Política, Planejamento Governamental e Gestão Pública no
Brasil Contemporâneo: trajetória institucional e dilemas estruturais do Estado no século XXI. São Paulo: Ed.
Hucitec, 2017.
– E pela Editora da Fundação Perseu Abramo, o livro:
6. CARDOSO Jr., J. C. (org.). Planejamento Governamental e Finanças Públicas no Brasil contemporâneo:
perspectivas críticas ao financiamento do desenvolvimento no século XXI. São Paulo: Ed. FPA, 2018.
| 82
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
radiografia institucional do setor público brasileiro, organizada, metodologicamente, a partir de dois eixos principais:
i) Uma matriz que cruza informações de âmbito setorial (políticas sociais, infraestrutura, desenvolvimento produtivo e ambiental,
desenvolvimento territorial, soberania e defesa) com dados quantitativos e qualitativos acerca de dimensões relevantes da Administração
Pública Federal (notadamente: estrutura, marcos legais e regulatórios;
pessoal; financiamento e gastos; interfaces socioestatais; interfaces federativas; interfaces entre poderes; planejamento, gestão, regulação e
controle), visando identificar as tensões fundamentais em cada área de
políticas públicas – conforme quadro 1.
Quadro 1: Matriz de Transformações Recentes na Administração Pública Federal
Brasil 2003 – 2014: dimensões relevantes e áreas programáticas de atuação estatal
DIMENSÕES
RELEVANTES
1. Estrutura,
Organização e
Marcos Legais
Proteção Social,
Direitos e
Oportunidades
.Novos ministérios,
secretarias e órgãos.
.Profusão legislativa e
novas institucionalides
2. Seleção e
Formação de
Pessoal
.Recuperação de
pessoal RJU; Criação
de novas carreiras.
.Empoderamento e
profissionalização.
3. Interfaces
Socioestatais
.Conselhos e
Conferências.
.Sist. Participação
ativo.
Infraestrutura
Econômica,
Social e Urbana
.Novas empresas e
secretarias.
.Conflito “agências
x nova regulação
estatal”
.Recuperação de
pessoal RJU; Criação
de novas carreiras.
.Empoderamento
e blindagem
institucional.
Inovação, Produção
e Proteção
Ambiental
.Novos ministérios,
secretarias e órgãos.
.Profusão
legislativa e novas
institucionalidades.
.Recuperação de pessoal
RJU; Criação de novas
carreiras.
.Gde rotatividade e
heterogeneidade.
.Audiências e
Lobbies.
.Blindagem
Institucional em
setores de gdes
invest.
.Conselhos e Câmaras
Técnicas.
.Sist. Participação
truncado
Soberania, Defesa
e Território
.Crise federativa:
esvaziamento Estados.
.Arranjos de
planejamento e gestão
débeis.
.Gde heterogeneidade
entre níveis da
federação.
.Seleção, formação
e mobilidade débeis
para carreiras do ciclo
P&G.
.Interfaces
federativas pouco
institucionalizadas.
.P&G pouco
participativos.
TRINTA ANOS DE DISPUTAS POR UM PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO NOS TRÓPICOS
4. Interfaces
Federativas
.Alta primazia
do poder
executivo federal:
financiamento,
arranjos de
implementação etc.
5. Interfaces
.Gde poder de agenda .Gde poder
Entre Poderes do Executivo.
de agenda do
Executivo.
.Episódios de
judicialização e
.Embates
excesso de controle. legislativos,
judicialização e
controles.
.CF-1988 = OSS,
.Invest. OGU X
6.
Custeio obscurece
Financiamento porém com riscos
estruturais.
alternativas.
e Gastos
.Gastos redistributivos; .Financ. L.Pz. ainda
dependente do
Financ. regressivo.
Estado.
7.
Planejamento,
Regulação,
Gestão e
Controle
8. Tensões
Estruturais
das Políticas
Públicas
.Principais Políticas
Constitucionalizadas
.Heterogdd grande e
Qualidade baixa.
| 83 |
.Alta primazia do poder
executivo federal.
.Baixa institucionalidade
e trajet. recentes e
erráticas
.Alta primazia do
poder executivo
federal.
.P&G pouco
articulados em termos
federativos.
.Gde poder de agenda .Gde poder de agenda
do Executivo.
do Executivo.
.Embates legislativos, .P&G pouco interativos
judicialização e
entre poderes.
controles
.Descentralização
e guerra fiscal X
Recentralização
tributária federal
(DRU).
.Bxo Invest. Fed. em
P&G.
.Alinhamento crescente .Alinhamento
.Alinhamento
.Alinhamento
crescente (porém
crescente (porém (porém insuficiente)
crescente (porém
insuficiente) entre entre PPA’s e Políticas insuficiente) entre
insuficiente) entre
PPA’s e Políticas
Prioritárias.
PPA’s e Políticas
PPA’s e Políticas
Prioritárias.
Públicas Prioritárias. Públicas Prioritárias. .Incipiência e
.Muito formalismo e
.Gestão da área social .Modelo regulatório pequena densidade
das “agências” em regulatória, orçament. e burocratismo; pouca
em consolidação
instituc. e articulação
institucional.
crise.
institucional.
P&G.
Universalização
Universalização
Institucionalização
Institucionalização
X Privatização
X Acumulação
X Compensação
X Descontinuidades
.Financ. não-vinculado,
ainda dependente do
OGU residual.
.Gastos conflitivos >
coop.
Fonte: Pesquisa Política & Planejamento no Brasil Contemporâneo. Ipea, 2015.
Obs. Metodológica:
Para o estudo das transformações ocorridas na Administração Pública Federal - no período de 2003 a 2013 – organizamos os
programas temáticos do PPA 2012-2015 em quatro grandes áreas de políticas públicas, que podem ser desdobradas em dez áreas
programáticas da atuação estatal recente; ou em até 65 programas temáticos do PPA 2012-2015. Ou seja:
a) Quatro grandes áreas de políticas públicas: Políticas Sociais; Políticas de Soberania, Território e Defesa; Políticas de Infraestrutura
e Políticas de Desenvolvimento Produtivo e Ambiental;
b) Dez áreas programáticas: Seguridade Social Ampliada; Direitos Humanos e Segurança Pública; Educação, Esportes e Cultura;
Soberania e Território; Política Econômica e Gestão Pública; Planejamento Urbano, Habitação, Saneamento e Usos do Solo;
Energia e Comunicações e Mobilidade Urbana e Transporte;
c) 65 programas temáticos do PPA 2012-2015.
| 84
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
ii) Uma contextualização geral dos dados e informações da
matriz à luz dos ambientes político, econômico, social e simbólico/
comunicacional que marcaram o desenvolvimento institucional de
cada uma das áreas de políticas públicas analisada, visando uma interpretação de conjunto – cf. quadro 2.
Quadro 2: Contextos Explicativos para Análise Interpretativa da Pesquisa
Fonte: Pesquisa Política & Planejamento no Brasil Contemporâneo. Ipea, 2015.
Desta feita, busca-se alcançar, ao longo do percurso analítico-interpretativo da pesquisa, dois grandes objetivos gerais, a saber:
i) Entendimento mais acurado acerca das transformações recentes em cada área de políticas públicas, suas razões, determinantes
principais, contexto situacional etc;
ii) Diretrizes de política em cada área e/ou propostas concretas
para a reforma do Estado e da Administração Pública Federal no Brasil,
pois nesta pesquisa parte-se também da ideia-força segundo a qual o Estado, para exercer funções desenvolvimentistas, preferencialmente em
contextos republicano e democrático, necessita de um aparato adminis-
TRINTA ANOS DE DISPUTAS POR UM PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO NOS TRÓPICOS
| 85 |
trativo capaz de implantar tal projeto ou estratégia, bem como canais
institucionalizados de negociação de objetivos, metas e políticas com
atores relevantes e segmentos representativos da sociedade nacional.
POLÍTICA E PLANEJAMENTO GOVERNAMENTAL NO
BRASIL CONTEMPORÂNEO: TENSÕES ESTRUTURAIS
NAS POLÍTICAS PÚBLICAS FEDERAIS
Para apresentar um primeiro conjunto de resultados parciais da
pesquisa, tentamos responder as seguintes questões de orientação geral:
i) Que peso e papel parece ter desempenhado cada uma das dimensões relevantes do Quadro 1 acima no processo de transformações
recentes da administração pública federal brasileira?
ii) Olhando tal comportamento retrospectivamente, é possível
identificar um sentido geral ou coerente das dimensões em questão
no que toca ao aperfeiçoamento da capacidade de governar do Estado
brasileiro? Sim, não e por que.
iii) Em relação a cada uma das dimensões, qual é ou parece ser
a tensão estrutural ou fundamental em pauta? E qual parece ser a sua
situação atual e implicações visíveis ou perspectivas a curto, médio e
longo prazos?
Desta feita, como síntese do anterior, os resultados parciais
da pesquisa ora em curso dão guarida às duas hipóteses inicialmente
aventadas, a saber:
Primeiro: em uma perspectiva histórica de longa maturação, o
momento aqui estudado reforça a ideia do Estado brasileiro como um
caso extremo de um híbrido institucional em formação. Isso quer dizer
que ele não possui – ao menos não ainda, nesse início de século XXI
– um traço institucional que seja mais dominante que outro. Daí a dificuldade de caracterizá-lo de forma uníssona, rápida ou fácil, como o
debate rasteiro pela grande mídia, por exemplo, quer nos fazer crer que
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
seja possível. Essa situação, na verdade já apontada por estudos anteriores das ciências sociais brasileiras, resulta de um percurso não linear – e
na verdade dialético e contraditório – de sobreposição de camadas não
necessariamente complementares ou convergentes de padrões, estilos,
paradigmas e tendências de transformações no âmbito do Estado. Dito
de outra forma: sobreposição e competição de tendências e características dentro de um mesmo período, emitindo sinalizações dúbias sobre a
estratégia ou o formato de Estado em construção. Fruto de concepções
ideológicas e embates políticos particulares a cada momento histórico,
eis a razão pela qual as características dominantes em cada período, presentes (nascidas ou inoculadas) no interior das estruturas estatais, raramente conseguem ser totalmente eliminadas, ainda que sejam constantemente reponderadas, quando da passagem de um momento a outro.
Não à toa, portanto, já naquela que será a terceira década do século XXI,
o Estado brasileiro carregará em sua ossatura e modus operandi, traços
patrimonial-oligárquicos, burocrático-weberianos, burocrático-autoritários, democrático-sociais, gerenciais e societais;
A segunda hipótese delineia-se, sobretudo, pela constatação geral extraída dos resultados parciais da pesquisa de que, como dito acima, na ausência agora de um fato, evento ou documento que pudesse
servir de referência clara a caracterizar a novidade do período recente,
neste se teria exacerbado ainda mais o hibridismo institucional estatal por meio do que aqui chamaremos de pragmatismo como método
de governo. Em linhas gerais, e sem que esta característica tenha sido
invenção ou exclusividade dos governos petistas recentes, tratar-se-ia
da gestão da máquina pública movida à base do binômio pendência x
providência. Vale dizer: a qualquer pendência ou problema imediato
e aparentemente urgente (não confundir com sumo importante!) no
cotidiano da gestão, o comando do governo buscava organizar uma
força-tarefa específica (via salas de situação ou não!) para a produção
de uma providência ou solução também imediata, ao menos na apa-
TRINTA ANOS DE DISPUTAS POR UM PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO NOS TRÓPICOS
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rência. Deste modo, olhando agora à distância, embora tal estratagema possa parecer a única via de curto prazo para a torrente de problemas sempre emergenciais de governo, acabava por explicitar as contradições históricas do hibridismo institucional brasileiro na condução
do Estado e da Administração Pública em nível federal. Disto resulta
que, embora haja elementos positivos e inovadores implementados no
período recente, a caracterizar mais um momento ou ciclo histórico
de reformas do Estado no Brasil, o fato é que não havia clareza suficiente por parte do alto comando desses governos acerca da natureza
e da direção das ações em curso, tampouco a sua conformação a um
projeto específico de desenvolvimento a ser perseguido.
Embora embrionariamente, é pelas razões apontadas acima, ambas ainda em elaboração pela pesquisa Política e Planejamento no Brasil
Contemporâneo, que segue sendo necessária a busca por um entendimento mais acurado acerca das transformações recentes em cada área
de políticas públicas, suas razões, determinantes principais, contexto
situacional etc. Acreditamos nós que apenas desta maneira será possível
oferecer novas e mais promissoras diretrizes de reformas institucionais
em cada área de atuação governamental, bem como propostas concretas
para a reforma do Estado e da Administração Pública Federal no Brasil.
Sempre lembrando, evidentemente, que o Estado, para exercer funções
desenvolvimentistas, preferencialmente em contextos republicano e democrático, necessita de um aparato administrativo capaz de implantar
tal projeto ou estratégia, bem como canais institucionalizados de negociação de objetivos, metas e políticas com atores relevantes e segmentos
representativos da sociedade nacional. Algo, em suma, bem diferente do
que vem sendo feito desde o fatídico episódio de 2016 no país.
Isto posto, para avançar rumo aos objetivos acima, procuramos
resumir, a seguir, dois conjuntos de informações extraídas dos resultados parciais da pesquisa. Por um lado, as que sintetizam os achados
perante o leque de questões sugeridas pelo Quadro 1, e aqui reorganizadas e reinterpretadas, conforme Quadro 3 a seguir.
Questão 1 *
Tendências Recentes
Questão 2 **
Sentidos e Significados
.Crescimento expressivo da estrutura organizacional, sobretudo
desde 1995, reflexo da ampliação das demandas sociais desde
a redemocratização, e da complexificação e alargamento
temático da agenda do desenvolvimento nacional desde a
CF-1988.
.Há um sentido inequívoco de crescimento
horizontal da estrutura organizacional entre 1995
e 2014, mas com sobreposições e lacunas em
atribuições institucionais específicas, além de
grande heterogeneidade em termos de eficiência,
eficácia e efetividade da ação governamental.
Questão 3 ***
Tensões Estruturais
.Como compatibilizar amplitude
e complexidade atuais da
agenda de desenvolvimento
(inclusivo, sustentável, soberano
e democrático) com ideários e
proposições de Estado mínimo (em
termos de estrutura organizacional
e funções precípuas) no Brasil
contemporâneo?
.Tendências gerais entre 2003 e 2014 implicaram: fortalecimento .Tendências gerais entre 2003 e 2014
. Como adequar os formatos de
Ocupação e
das atividades de finanças, fiscalização e controle; autonomia
apontavam para: (i) recomposição quantitativa e
seleção e formação de quadros
tendências
gerencial em órgãos da administração indireta; mesas de
profissionalização de quadros em áreas estratégicas permanentes com perfis alinhados
gerais.
negociação para a gestão de pessoal; reabertura de concursos do desenvolvimento nacional, e (ii) equilíbrio
à natureza da ocupação pública
para servidores temporários e permanentes; substituição de
macroeconômico em termos dos gastos com pessoal, e ao cumprimento das exigências
pessoal ocupado em atividades-fim via RJU; recomposição de frente a agregados como o PIB, a arrecadação
institucionais do Estado?
remuneração para carreiras de Estado.
tributária e a massa salarial do setor privado.
Ocupação
.Crescimento expressivo da estrutura de cargos de confiança, .Tendências gerais entre 2003 e 2014 apontavam, . Como instaurar e cultivar uma
de cargos
sobretudo desde 1995, reflexo da ampliação das necessidades algo contraditoriamente, para: (i) profissionalização cultura republicana e democrática
comissionados. de governabilidade e governança no presidencialismo de
dos ocupantes e das atribuições institucionais dos de aprimoramento contínuo de
coalização brasileiro.
cargos comissionados de alto escalão (DAS 4, 5
desempenho institucional nos três
e 6), e (ii) grande rotatividade e permeabilidade níveis federativos e também nos
político-sindical-partidária nas indicações e
três grandes poderes da República?
ocupações superiores.
Continua
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Dimensões
Relevantes
de Análise na
Administração
Pública Federal
Estrutura
organizacional.
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Quadro 3: Principais Tendências, Significados e Tensões Estruturais das Dimensões Relevantes de Análise para o Estudo das
Transformações da Administração Pública Federal Brasileira
.Houve iniciativas governamentais para
aperfeiçoamentos normativos, metodológicos e
institucionais da função planejamento, mas não
suficientes para fazer esta função se equipar
(em termos políticos e institucionais) a outras
funções indelegáveis de Estado, tais como as de
arrecadação, orçamentação, fiscalização e controle
interno.
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.Como recuperar os muitos anos
de desmonte das instituições,
instrumentos e da própria cultura
de planejamento público no
Brasil, dada a crença atual e
aparentemente dominante: (i) na
suposta superioridade do mercado
em promover o desenvolvimento,
mesmo considerando aspectos
críticos da globalização econômica e
da geopolítica internacional; (ii) na
impossibilidade prática de organizar
um sistema de planejamento
aderente às necessidades
contemporâneas do Estado e do
desenvolvimento nacional?
.Crescimento expressivo do gasto financeiro na composição
.Como contrapartida do gasto financeiro elevado .Dado que a manutenção do tripé
Finanças
públicas e gasto do gasto público total, sobretudo desde 1995, como reflexo, na composição do gasto público total, observa-se macroeconômico da estabilização
principalmente, da estratégia de estabilização monetária
esterilização não desprezível de recursos em todo monetária gera como efeito
financeiro.
adotada desde o Plano Real, com juros altos, câmbio
o período analisado e baixa capacidade do gasto colateral indesejado uma dinâmica
valorizado e geração de superávits fiscais primários generosos público real em dinamizar o lado real da economia. de crescimento de baixa potência
em todos os anos entre 2002 e 2014.
e intensidade, como migrar desse
.A consequência mais perversa decorrente
arranjo institucional-financeiro para
da manutenção do tripé da estabilização
outro mais favorável ao crescimento
monetária por longo período é a transformação
econômico com distribuição de
estrutural da matriz produtiva nacional, no
renda, sem colocar em risco a
sentido da desindustrialização, reprimarização e
estabilidade relativa da moeda
desnacionalização de ativos.
nacional, bem como a capacidade e
a sustentabilidade intertemporal de
endividamento e de financiamento
público?
Continua
TRINTA ANOS DE DISPUTAS POR UM PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO NOS TRÓPICOS
Planejamento .Tendências gerais entre 2003 e 2015 implicaram em tentativas,
governamental. geralmente frustradas, de: fortalecimento institucional do PPA;
elaboração ocasional de planos nacionais e regionais de longo
prazo; importante mas insuficiente retomada setorial de planos
de médio prazo; em todos os casos com aprimoramentos
metodológicos de pouca envergadura.
.Dada a primazia política do
tripé macroeconômico para a
estabilização monetária (sobre
outras alternativas certamente
existentes) e a dinâmica estrutural
de baixo crescimento que ele
engendra, como promover uma
reforma tributária que seja, ao
mesmo tempo, progressiva na
arrecadação e redistributiva nos
gastos?
.Dada a tradição burocrática do
país, como engendrar arranjos
institucionais de regulação estatal e
planejamento governamental que
busquem e alcancem adequação
e complementaridade entre
recursos disponíveis, estruturas
de governança e distintas formas
de relacionamento, articulação e
coordenação de setores e políticas
públicas?
Continua
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Marcos
regulatórios.
.Dada a estrutura regressiva da tributação no Brasil,
o crescimento econômico que engendra expansão
da arrecadação e concomitante expansão dos
gastos reais do governo (consumo e investimentos)
é na verdade fator de concentração funcional
e pessoal da renda, pois a tributação incide,
proporcionalmente, mais sobre: (i) os setores
reais da acumulação que os financeiros; e (ii) os
segmentos relativamente mais pobres da população
e da ocupação que os mais ricos.
.Tudo somado, restringe-se, estruturalmente, o
impacto potencial redistributivo do gasto público
real do governo, tanto sobre regiões do país como
sobre suas respectivas populações.
.Coexistência de distintos modelos de política e gestão na
.No estágio posterior às reformas gerencialistas, a
agenda de governo. Iniciativas de aprimoramento do ambiente partir de 2003 e particularmente de 2007 a 2015,
institucional procuraram atingir objetivos em diversas frentes,
viu-se a adoção pelo Governo Federal de um
conjugando metas sociais, promoção da concorrência, defesa
perfil mais intervencionista, no plano da agenda
da soberania, estímulos aos investimentos públicos e privados. programática central, dissociando-se, assim, da
Podem ser citados, entre outros, os novos arcabouços legais
heurística do Estado regulador convencional e das
dos setores elétrico (2004) e de saneamento básico (2007); as reformas de Estado dos anos 1990. Esse novo
simplificações nos processos de regularização fundiária urbana impulso priorizou também o fortalecimento da
(2009); a Política Nacional de Resíduos Sólidos (2010); a Política discussão sobre governança e capacidades estatais
Nacional de Mobilidade Urbana (2012); o regime de produção num momento em que a própria discussão sobre
e exploração do Pré-Sal (2012); a nova Lei de Portos (2013).
o desenvolvimento nacional retornava à pauta de
A esses marcos somam-se outras iniciativas, como a criação
discussões e de ação do Estado.
de um regime diferenciado de licitação e contratações (RDC), a
consolidação das carreiras das agências reguladoras, a criação
de empresas de planejamento e pesquisa nas áreas energética
(Empresa de Pesquisa Energética – EPE) e de logística (Empresa
de Planejamento e Logística – EPL), além da implantação de
uma carreira transversal de analistas de infraestrutura.
.Crescimento dos gastos reais (consumo do governo e
investimento público) altamente dependente da elasticidade
da arrecadação tributária frente ao ritmo e intensidade do
crescimento econômico. Com isso, o crescimento do gasto
público real entre 2003 e 2013 deu-se com aumento mais
que proporcional da arrecadação e sem criação de novos
tributos ou aumento de alíquotas daqueles já existentes. Por
isso, o aumento dos gastos reais do governo (consumo e
investimentos) aconteceu sem desequilíbrio macroeconômico
severo até 2014.
| 90
Finanças
públicas e
gastos reais.
.A articulação de municípios brasileiros por meio da formação
de consórcios é um dos traços característicos do federalismo
brasileiro no século XXI. Trata-se de fenômeno novo, que
apenas ganhou expressão após a CF-1988, tornando-se mais
relevante a partir dos anos 2000, a partir da Lei 1.107 de2005;
conhecida como Lei dos Consórcios Públicos.
.Esse arranjo não é neutro em relação às
consequências transformadoras que ele é capaz
de induzir no âmbito das relações sociais e da
atuação da administração pública. Uma federação
cooperativa descentralizada fomenta a inovação
na administração pública, o protagonismo da
sociedade civil, bem como a promoção de maior
equidade no acesso aos serviços públicos entre
cidadãos localizados em diferentes jurisdições.
| 91 |
.Consórcios Públicos
Intermunicipais não são um
ente da federação; são um
arranjo institucional específico
para lidar com: (i) a elevada
fragmentação territorial por
efeito do acelerado processo
de divisão municipal ; e (ii)
a falta de escala na execução
e provimento de políticas
e serviços públicos. Assim,
como compatibilizar os efeitos
potencialmente benéficos dos
Consórcios com os dilemas
estruturais do federalismo
brasileiro?
.Como aprimorar e avançar
.Sobretudo entre 2003 e 2013, ímpeto participativo implicou .Dificuldades de integração com as estruturas
Interfaces
participativas no na criação ou ampliação de muitos canais de relacionamento burocráticas existentes levaram a dificuldades de na gestão das interfaces
socioestatais, levando em
institucionalização.
âmbito federal. direto entre Estado e Sociedade. Conselhos e Conferências
consideração as tendências
de políticas públicas, audiências, fóruns, ouvidorias e
.Adicionalmente, a produção das lógicas de
outros instrumentos alargaram as interfaces sócioestatais e
representação geraram desigualdades entre o perfil dos últimos quinze anos,
suscitaram a ideia de um sistema (e de uma política nacional) de representados e representantes, muito embora que se manifestam
democrático-participativo de políticas públicas.
em menor grau do que nos espaços legislativos. em expansão setorial e
burocratização da participação
.Por fim, a grande incógnita sobre a efetividade
social, com explicitação de
desses espaços vem mobilizando uma larga agenda imensa heterogeneidade e
de pesquisa na área desde então.
complexidade das tentativas de
promoção de articulação e de
busca por transversalidades?
Continua
TRINTA ANOS DE DISPUTAS POR UM PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO NOS TRÓPICOS
Interfaces
federativas
nos consórcios
públicos
municipais.
.Dada a velocidade e intensidade
com que a função controle
interno foi-se institucionalizando e
empoderando-se no Brasil em anos
recentes, vis-a-vis outras funções
tecnopolíticas importantes de
governo (tais como a arrecadação
tributária, o planejamento e a
gestão pública, a orçamentação
e a participação social), como
doravante reequilibrar o seu peso
relativo, dentro dos processos de
prevenção, detecção e punição
da corrupção, ao mesmo tempo
em que preserva e aprimora
os objetivos republicanos e
democráticos de mais e melhor
transparência, responsabilização e
controle social público dos atos e
intenções de governo?
Fonte: Pesquisa Política & Planejamento no Brasil Contemporâneo. Ipea, 2015. Elaboração do autor.
Obs. Metodológica:
* Questão 1 (Tendências Recentes): Que peso e papel parece ter desempenhado cada uma das dimensões relevantes do Quadro 1 (Introdução) no processo de transformações da administração
pública federal brasileira entre 2003 e o final do governo Dilma em 2014?
** Questão 2 (Sentidos e Significados): Olhando tal comportamento retrospectivamente, é possível identificar um sentido geral ou coerente das dimensões em questão no que toca ao aperfeiçoamento da capacidade de governar do Estado brasileiro? Sim, não e por que.
*** Questão 3 (Tensões Estruturais): Em relação a cada uma das dimensões, qual é a tensão estrutural ou fundamental em pauta? E qual parece ser a sua situação atual e perspectivas a curto, médio
e longo prazos?
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
.Mudança da lógica de funcionamento do controle,
passando de um modelo descentralizado e
pulverizado, para outro, centralizado em uma
unidade externa aos órgãos setoriais, de forma a
compor um sistema de controle.
.Expressiva ampliação das responsabilidades e do
alcance de atuação do controle interno federal,
com expressiva reorganização de sua lógica de
funcionamento e dos modos de desenvolvimento
de suas atividades precípuas: prevenção, detecção e
punição da corrupção.
| 92
Controle interno .Nos últimos quinze anos, o controle interno passou por
da União.
expressivas transformações, em especial no âmbito do
Poder Executivo Federal. Cabe destacar: (i) a extinção das
Cisets (Secretarias de Controle Interno situadas dentro de
cada Ministério) e (ii) a Lei 10.683/2003 que consolidou
a criação da Controladoria-Geral da União (CGU), tal qual
uma unidade ministerial – na verdade, situada acima dos
demais Ministérios, por vincular-se diretamente à Presidência
da República –, integrando em um corpo único a Secretaria
Federal de Controle Interno (SFC), a Corregedoria-Geral da
União (CRG) e a Ouvidoria-Geral da União (OGU).
TRINTA ANOS DE DISPUTAS POR UM PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO NOS TRÓPICOS
| 93 |
De outro lado, no Quadro 4 abaixo, uma primeira tentativa de
síntese e interpretação geral acerca das tensões estruturais das políticas
públicas federais brasileiras, em sintonia com os conteúdos anteriores.
Quadro 4: Grandes Áreas Programáticas de Atuação Estatal e as suas Macrotensões
Estruturais
Grandes Áreas de
Atuação Estatal
Proteção Social,
Direitos e
Oportunidades
Infraestrutura
Econômica, Social e
Urbana
Tensão
Estrutural
Dominante
Universalização X
Privatização
Universalização X
Acumulação
Significado Geral
.Desde a CF-1988, setores rentáveis das políticas
sociais (notadamente: previdência, saúde, educação,
cultura, esportes, trabalho e segurança pública)
convivem com constrangimentos tecnopolíticos
à universalização de fato de seus principais
programas, e paulatinamente se observa o
crescimento normativo, regulatório e ideológico na
provisão dessas políticas sob a égide privada.
.Por sua vez, as chamadas políticas sociais de nova
geração (direitos humanos e de cidadania para
públicos e situações específicas), depois de uma
fase de institucionalização promissora até 2014,
encontram-se material e ideologicamente inibidas.
.Desde 2003, sobretudo, esforços governamentais
no sentido da ampliação da cobertura e do
acesso da população relativamente aos bens
e serviços típicos da modernidade (tais como
energia, modais de transporte, mobilidade urbana,
telecomunicações, acesso digital, saneamento
básico e moradia digna), tem convivido com:
(i) dilemas do perfil de atuação estatal (se
meramente regulador ou também produtor direto;
se meramente incentivador ou também promotor
direto de inovações), e (ii) com exigências cada vez
mais elevadas dos entes empresariais privados em
termos de rentabilidade mínima e sustentabilidade
financeira e temporal dos empreendimentos dessa
natureza.
Continua
| 94
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Inovação, Produção e Institucionalização X
Proteção Ambiental Compensação
Soberania, Defesa e
Território
Institucionalização X
Descontinuidades
.Desde a CF-1988, primeiro pelo choque externo
provocado pela abertura comercial e financeira desde
o gov. Collor, depois, pelo choque interno causado pela
engenharia financeira de estabilização monetária desde o
gov. FHC, e finalmente, pelo acirramento da concorrência
externa decorrente da globalização comercial (efeito
China) e financeira (bolhas especulativas indexadas em
dólar) ao longo dos govs. Lula e Dilma, o fato é que os
setores nacionais de produção (sobretudo industrial), de
inovação (de processos e produtos ao longo das cadeias
produtivas) e de proteção e mitigação ambiental, temse ressentido de políticas públicas mais robustas para
o enfrentamento dos imensos problemas e desafios
a elas colocados. A um vetor tímido, lento e pouco
estruturado de institucionalização de políticas públicas
nos campos da produção de bens e serviços, da inovação
de processos produtivos e de produtos finais, e da
proteção e mitigação ambiental, sobressaem medidas
apenas de natureza compensatória, de efeitos limitados,
tanto setorial como temporalmente, incapazes de alterar
para melhor a estrutura e a dinâmica produtiva em
espaço nacional, ou mesmo de neutralizar os efeitos
nefastos que emanam da estrutura e dinâmica capitalista
dominante em curso.
.Depois de muitos anos relegadas a níveis secundários
de importância, houve – mormente entre 2003 e 2013
– tentativas de melhor institucionalização das áreas e
políticas públicas de soberania, defesa e território. Foram
tentativas governamentais no sentido de: (i) reorientar
a diplomacia brasileira rumo a uma postura ativa e
altiva no cenário internacional; (ii) reequipar as forças
armadas e atualizar a estratégia e a política nacional de
defesa; e (iii) reinstaurar instituições, fluxo de recursos,
capacidades estatais e governativas, sob o manto de
uma nova política nacional de desenvolvimento regional
no Brasil. Não obstante o processo de institucionalização
iniciado, a complexidade em si desses temas e áreas
de políticas, aliada à baixa primazia que historicamente
tiveram e continuaram a ter na conformação das
agendas prioritárias dos governos recentes, fazem com
que descontinuidades de várias ordens (de diretrizes
estratégicas a alocação orçamentária) sejam a regra mais
que a exceção nos três casos.
Fonte: Pesquisa Política & Planejamento no Brasil Contemporâneo. Ipea, 2015. Elaboração do autor.
Obs. Metodológica:
TRINTA ANOS DE DISPUTAS POR UM PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO NOS TRÓPICOS
| 95 |
Para o estudo das transformações ocorridas na Administração
Pública Federal, organizamos os programas temáticos do PPA 20122015 em quatro grandes áreas de políticas públicas, que podem ser
desdobradas em dez áreas programáticas da atuação estatal recente; ou
em até 65 programas temáticos do PPA 2012-2015. Ou seja:
i) Quatro grandes áreas de políticas públicas: Políticas Sociais;
Políticas de Soberania, Território e Defesa; Políticas de Infraestrutura
e Políticas de Desenvolvimento Produtivo e Ambiental);
ii) Dez áreas programáticas: Seguridade Social Ampliada; Direitos Humanos e Segurança Pública; Educação, Esportes e Cultura;
Soberania e Território; Política Econômica e Gestão Pública; Planejamento Urbano, Habitação, Saneamento e Usos do Solo; Energia e
Comunicações e Mobilidade Urbana e Transporte;
iii) 65 programas temáticos do PPA 2012-2015.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: BASES PARA
UM ESTADO ATIVO E CAPAZ
Sem a pretensão de esgotar ou detalhar em demasia o assunto,
é possível resumir – pelo Quadro 5 a seguir – alguns dos princípios
gerais a orientar uma reforma do Estado brasileiro no século XXI, de
natureza republicana, democrática e desenvolvimentista, no qual o planejamento estratégico governamental de índole e orientação pública
aparece como parte integrante, indissociável e intransferível do próprio processo de governar.
Para além dos princípios gerais acima sugeridos, há evidentemente uma agenda de reformas concretas inadiáveis, que aqui apenas
se enunciam de modo não exaustivo, já que a concertação política
necessária à sua viabilidade institucional e implementação no âmbito
do Estado brasileiro, depende obviamente da restauração democrática
de fato e de direito. São elas:
+
REPÚBLICA
ESFERA PÚBLICA,
INTERESSE GERAL,
BEM-COMUM
+
DEMOCRACIA
REPRESENTAÇÃO,
PARTICIPAÇÃO,
DELIBERAÇÃO
E CONTROLE SOCIAL
+
DESENVOLVIMENTO
ESTADO CAPAZ
E PRÓ-ATIVO
+ transparência:
dos processos decisórios
dos resultados intermediários e finais dos altos de governo e das políticas públicas
+ controle social:
sobre os 3 poderes (executivo, legislativo, judiciário)
sobre os meios de comunicação (públicos e privados)
+ representatividade: reforma políticas
+ participação: conselhos, conferências, audiências, ouvidorias, fóruns, grupos
de trabalho
+ deliberação: referendos, plebiscitos, iniciativas populares
+ esfera pública: controle social
inserção internacional soberana
macroeconomia do desenvolvimento: crescimento, estabilidade, emprego e
distribuição de renda
estrutura tecnoprodutiva avançada e regionalmente integrada
infraestrutura econômica (energia, transportes, comunicações), social e urbana
(moradia, saneamento, mobilidade)
sustentabilidade produtiva, ambiental e humana
fortalecimento do Estado, das instituições republicanas e da democracia
Fonte: Pesquisa Política & Planejamento no Brasil Contemporâneo. Ipea, 2015. Elaboração do autor
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
PRNCÍPIOS GERAIS A ORIENTAR A REFORMA DO ESTADO BRASILERO (DE NATUREZA REPUBLICANA, DEMOCRÁTICA E
DESENVOLVIMENTISTA) PARA O SÉCULO XXI
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Quadro 5: Princípios Gerais para uma Reforma do Estado no Brasil no Séc. XXI
TRINTA ANOS DE DISPUTAS POR UM PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO NOS TRÓPICOS
| 97 |
| A reforma tributária e fiscal: progressiva na arrecadação e
redistributiva nos gastos.
| A revolução técnico-científica-produtiva: ancorada nos fundamentos da economia verde, com ênfase em educação ambiental
desde a primeira infância, produção e difusão de tecnologias limpas,
promotora de encadeamentos inovativos de amplo alcance, ou seja:
inovação produtiva e institucional de processos e produtos.
| A refundação dos poderes Legislativo e Judiciário: a reforma do sistema representativo e de partidos políticos, o fortalecimento
dos instrumentos de democracia direta e dos mecanismos coletivos de
participação e deliberação, a democratização dos meios de comunicação e do sistema de justiça.
| A revolução na cultura dos direitos: institucionalização e
substantivação dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais
e ambientais.
É esta a aposta (e a utopia!) analítico-interpretativa sugerida
por esta pesquisa, e é essa a aposta político-institucional de construção
coletiva que os governantes brasileiros deveriam se impor neste século
XXI. Desta maneira, acredito que este esforço de reflexão pode ser
mais que um mero convite a pesquisadores, gestores públicos e
dirigentes políticos. Ele pode efetivamente redundar em proposições
concretas que tanto recoloquem o tema do Estado na agenda como
o faça avançar em direção a um arranjo institucional virtuoso entre
República, Democracia e Desenvolvimento para o Brasil ainda neste
século XXI.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANFIP e FENAFISCO. A Reforma Tributária Necessária: diagnóstico e premissas. Brasília: Anfip e Fenafisco, 2018.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
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J. C. 25 Anos da Constituição Brasileira de 1988: democracia e direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Ed. D’Plácido, 2013.
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CAPÍTULO 4
DO PLANEJAMENTO
DEMOCRÁTICO AO
PLANEJAMENTO
BUROCRÁTICO1
JOSÉ CELSO CARDOSO JR.2
Desde há muito, mas sobretudo desde a CF-1988, o planejamento
governamental convive no país com ao menos dois grandes paradoxos. De
um lado, diz-se que: “todos concordam que planejamento é importante,
mas ninguém acredita nele!”; de outro, que: “ninguém acredita em planejamento, mas quando confrontamos historicamente planos e resultados, há
grande correlação positiva entre ambos!”.
A situação é tal que mesmo dentro do governo, em ministérios,
secretarias e órgãos que, supostamente, existem para pensar e aplicar
o planejamento (como função precípua e indelegável do Estado), parece
predominar certa descrença nesta função. Supondo que as afirmações
anteriores sejam verdadeiras, haveria várias explicações possíveis para
elas. Em particular, gostaríamos de aqui destacar três dessas explicações especialmente relevantes:
1. Este texto é versão resumida de Cardoso Jr. e Santos (2018).
2. Doutor em Desenvolvimento pelo IE-Unicamp, desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do
IPEA.
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1. Desde a redemocratização na década de 1980, apesar de
alguns momentos de exceção observados, sobretudo, entre 2003 e
2013, já se vão muitos anos seguidos de desmonte das instâncias, dos
instrumentos e, sobretudo, da cultura pública de planejamento no
país (Cardoso Junior, 2015).
2. Uma crença (para nós, equivocada) na superioridade do livre
mercado como mecanismo distribuidor da renda e da riqueza produzida pela sociedade, especialmente em contexto de domínio transnacional das grandes corporações privadas, todas elas – mesmo as não estritamente financeiras – regidas pela lógica dominante da financeirização
global da riqueza (Braga, 1993; 1997; Massoneto, 2006).
3. Uma crença (para nós, igualmente equivocada) na imensa dificuldade prática (ou mesmo em uma suposta impossibilidade
lógica) de organizar de uma forma melhor e mais efetiva a institucionalidade atual de planejamento governamental, já que, embora
considerada uma função meritória e necessária, seria algo por demais
complexo do ponto de vista institucional e político (Cardoso Junior
e Matos, 2011).
Não é função deste texto explicar cada uma das razões descritas
anteriormente, mas a partir delas, dizer que uma consequência eloquente é a constatação de que o nível de institucionalização da função
planejamento governamental no Brasil está longe de ser satisfatório, seja
em termos comparativos internacionais, seja em termos domésticos.
Por nível de institucionalização, queremos nos referir aos condicionantes técnicos e políticos adequados para um desempenho satisfatório de qualquer função governamental. Em especial: i) conceitos,
normativos e arranjos administrativos e operacionais claros e condizentes com a complexidade e objetivos da função; ii) recursos humanos,
financeiros e tecnológicos compatíveis com o desempenho institucional requerido; e iii) centralidade e legitimidade política da função, de
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modo que seja possível efetivá-la adequadamente como parte integrante e necessária das capacidades governativas de modo geral.
Apesar da definição acima, alerte-se desde logo que não se trata
aqui de uma questão meramente quantitativa, ou seja, mais ou menos
institucionalização, medida seja pelo tamanho do arcabouço legal e
administrativo, seja pelo tamanho dos recursos empíricos envolvidos.
Trata-se, isso sim, de conferir à dimensão institucional da função planejamento um caráter político e estratégico, por meio do qual a referida função tanto se enraíza na estrutura estatal como se viabiliza como
parte precípua dos processos e capacidades de governo.3
Dessa feita, acreditamos que uma das formas pelas quais tal
situação de institucionalização – pouco adequada e de descrédito, manifestada no cotidiano de (tentativa de) exercício da função planejamento governamental no plano federal brasileiro – pode ser observada
pelo que neste texto chamaremos de disjuntivas críticas dessa função.
Por disjuntivas críticas no exercício da função planejamento,
queremos nos referir a um conjunto de pares (e, às vezes, trios) de
dimensões e situações que desnudam a distância entre os mundos
real e formal do planejamento governamental no dia a dia da gestão
pública.4
As disjuntivas se materializam, especialmente, quando há uma
diferença entre a expectativa dos agentes sobre como as coisas deveriam ser ou acontecer e aquilo que realmente se produz ao final de um
processo construído no ambiente no qual o Estado trabalha, e operacionalizado por uma burocracia com as características da brasileira.
3. Daí a relevância, por exemplo, de confrontar, sob este prisma político, o nível de institucionalização da
função planejamento com outras funções de igual importância estratégica para um desempenho institucional
satisfatório do setor público federal, como o são, por exemplo, as funções de arrecadação tributária, orçamentação e fiscalização do gasto público, além dos controles burocráticos do Estado. Visto desta maneira,
percebe-se mais claramente as diferenças (de
4. Há uma boa dose de inspiração, para a construção das disjuntivas críticas, na abordagem desenvolvida
por Bourdieu (1996; 2014, por exemplo). E já há alguns trabalhos que abordam esses temas por esta ótica,
embora de maneira não tão explícita, por exemplo, no caso específico do planejamento no Brasil, em Santos
(2011), Moretti (2012) e Ventura (2015).
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Guarda uma relação com o imaginário dos agentes sobre o que é certo
ou errado, correto ou incorreto, desejável ou indesejável, possível ou
impossível, à luz das suas expectativas sobre como as coisas deveriam
ser. Expectativas essas que, obviamente, têm a ver, especialmente, com
as visões de mundo dos agentes e as respectivas explicações sobre as
causas do atual estágio de desenvolvimento e desigualdades no país,
sem prejuízo de outros fundamentos.
Também é possível identificar essas disjuntivas a partir de situações às vezes marcadas por inadequação (ou baixa aderência) da
legislação ou dos sistemas informatizados relativamente à dinâmica
concreta dos procedimentos necessários para bem operar determinada
ação ou dimensão de uma política pública, ou mesmo de uma sequência de comandos dentro de uma atividade administrativa. Por outras,
são situações caracterizadas por diferentes interpretações (e, portanto,
apropriações e usos diferenciados) relativamente a um conceito, um
normativo ou um desenho de ação dentro de uma cadeia mais longa
de necessidades para determinado objetivo, ainda que intermediário
ou parcial no escopo mais amplo de uma política pública.
Há, em suma, uma variedade de dimensões e situações cotidianas que, por vezes, mascaram e, por outras, desnudam as contradições
intrínsecas dos processos de governo, especialmente em casos como o
do planejamento governamental na atualidade, que convive, como citado anteriormente, com uma institucionalização ainda não plenamente
adequada para o desempenho estatal satisfatório dessa função. Em especial, repisando: i) conceitos, normativos e arranjos administrativos e
operacionais ainda pouco claros e compatíveis com a complexidade e
objetivos da função; ii) recursos humanos, financeiros e tecnológicos
não totalmente condizentes com o desempenho institucional requerido; e iii) baixa centralidade e legitimidade política da função, por meio
das quais ela pudesse ser efetivada como parte integrante e necessária dos
processos tecnopolíticos e das capacidades governativas de modo geral.
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Dito isso, o propósito deste texto, portanto, é aglutinar e observar aspectos institucionais e comportamentais da burocracia de
planejamento do poder executivo federal, com vistas a: i) ampliar a
compreensão das relações que envolvem política e burocracia nesta área específica de atuação do Estado brasileiro na contemporaneidade; ii) identificar possíveis limites ou disfunções no funcionamento da burocracia e das
instituições direta ou indiretamente envolvidas com a atividade planejadora; e iii) iniciar a montagem e o desenvolvimento de uma agenda
de pesquisa aplicada e – sobretudo – de intervenção direta com vistas
à ampliação da capacidade de atuação do Estado.5
Por fim, a conclusão apontará para lacunas e caminhos de pesquisa em torno dos mecanismos que organizam a burocracia de planejamento, com vistas a ampliar a capacidade do Estado nos campos
da formulação, regulação, implementação e coordenação de políticas
públicas para o desenvolvimento nacional.
MAPA DAS DISJUNTIVAS CRÍTICAS:
SENTIDOS E SIGNIFICADOS
Nesta seção, buscamos identificar algumas das principais disjuntivas críticas, segundo entendimento baseado, sobretudo, em experiências e vivências profissionais dos autores em ambientes de trabalho
e funções administrativas diretamente relacionadas com a atividade
governamental de planejamento público.
Como advertência metodológica e conceitual, é preciso dizer
que, em um cenário ideal jamais existente, a função planejamento
não deveria apresentar-se de maneira tão distorcida por meio de tais
5. Como se trata de um texto exploratório e centrado em uma dimensão ausente ou pouquíssima estudada
até o momento, ele também se valerá de exemplos concretos e vivências profissionais dos autores com as tais
disjuntivas críticas, na esperança de que possamos organizar um conhecimento mais acurado acerca da problemática geral, ou ao menos instigar novos olhares e horizontes de pesquisa e investigação para uma agenda
progressivamente mais resolutiva no futuro imediato.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
disjuntivas. Ao menos não se apresentaria com graus tão elevados de
conflito e contradições, mesmo sendo ambos intrínsecos à dinâmica sociopolítica, como na experiência brasileira recente, notadamente
desde a Constituição Federal de 1988 (CF-1988). Mas isso certamente ocorre pelo fato de – é a nossa hipótese – a luta política nacional
sobre o tema ser, ao menos desde a redemocratização, sempre muito
acirrada e pouco resolutiva. Por trás desse tema (e muitos outros) apenas aparentemente técnico, esconde-se, na verdade, uma disputa severa por ao menos duas grandes formas de entender, conceber e aceitar
a presença e atuação do Estado junto à sociedade, mormente sobre a
sua dimensão econômica.
De um lado, coloca-se novamente em pauta – por setores
conservadores da sociedade, comunidades da política (partidos, sindicatos e outras agremiações) e da própria burocracia, além da mídia
e do empresariado – o caminho liberal, de orientação privatista, que
havia vivenciado melhores dias na década de 1990, ainda que apresentando resultados gerais pífios6 para o país. De outro lado, embora
raramente tenha tido força política suficiente no cenário nacional,
permanece como possibilidade – defendida por setores do campo
progressista, dentro e fora das estruturas de governo – a via do fortalecimento do Estado, das instituições republicanas e democráticas, e
de um desenvolvimentismo renovado e revigorado como método de
governo e objetivo maior da nação brasileira.
Dessa maneira, o marco constitucional é importante porque,
além de ser a expressão de um pacto social determinado, ele inaugura
uma institucionalidade que combina uma série de direitos, garantias e
instrumentos associados ao planejamento. Do ponto de vista mais geral, a CF-1988 fundou uma série de comandos de planejamento, como
6. Tal afirmação se refere à deterioração de resultados econômicos e sociais no período, bem como a escolhas
institucionais que diminuíram a capacidade do Estado de formular e implementar políticas públicas. Belluzzo
e Almeida (2002) e Cardoso Júnior (2013) discutem esse período e suas consequências.
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os Objetivos da República, combinados com instrumentos como o
Plano Plurianual (PPA), planos setoriais e regionais, entre outros.
Para organizar o presente texto, portanto, outra decisão metodológica foi avaliar as disjuntivas críticas à luz de um instrumento – o
PPA – que permite observar como as categorias de análise se comportam
no cotidiano da administração pública federal. Para tanto, recorremos
ao PPA porque ele representa uma inovação constitucional importante,
na medida em que cria a possibilidade de fomentar o planejamento do
desenvolvimento no país. A opção também se justifica pelo estoque de
conhecimento tácito acumulado na administração pública e já publicado em torno do tema,7 além do espaço que existe para que ele seja aprimorado. Por outro lado, usamos o PPA conscientes de que sua relação
com o planejamento está mais para interseção do que para identidade.
Ressalvas feitas, o PPA vem sendo normatizado e institucionalizado por arranjos e carreiras burocráticas criadas para serem
especializadas em temas de planejamento e orçamento (Analista de
Planejamento e Orçamento – APO), finanças e controle (Analista de
Finanças e Controle – AFC), gestão governamental (Especialistas em
Políticas Públicas e Gestão Governamental – EPPGG) e pesquisa e
avaliação (Técnico de Planejamento Pesquisa – TPP), entre outras.8
Nesse sentido, os problemas e os debates em torno do planejamento governamental derivam também dessa diversidade. Além
7. Em particular, relembra-se o conjunto de trabalhos sobre planejamento já disponíveis em publicações
feitas, fundamentalmente, pelo Ipea, pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap) e pela Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento (Assecor), nesta última por meio da
Revista Brasileira de Planejamento e Orçamento.
8. Além dessas, Pagnussat (2015) também considera as carreiras de analista técnico de políticas sociais (ATPS),
analista de infraestrutura (AIE) e analista de tecnologia da informação (ATI) como parte integrante do rol de
carreiras ligadas aos esforços de revalorização do planejamento e reconstrução das capacidades de governo na
área, neste início de milênio. De modo mais amplo ainda, seria possível considerar outras carreiras envolvidas
com o planejamento, tais como as carreiras e os cargos do Banco Central do Brasil (BCB), do Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), outras carreiras setoriais ou ministeriais específicas, além
das novas corporações das agências reguladoras e aquelas responsáveis pelo assessoramento e pela consultoria
parlamentar, estas no âmbito do Poder Legislativo. Não obstante, as citadas anteriormente são, sem dúvida,
as mais diretamente responsáveis por estruturas, processos, instrumentos e produtos associados ou derivados
das exigências formais do PPA.
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de aspectos políticos mais gerais, esse contexto contribui para que as
disjuntivas críticas tenham contornos tão estereotipados no dia a dia
da gestão pública, demarcando na prática os lados e os campos de
atuação e de disputa dos burocratas, sobretudo os de médio escalão.
Dessa feita, a figura 1 procura listar um conjunto mais evidente de disjuntivas críticas aplicadas ao caso do planejamento governamental brasileiro, e as subseções, adiante, buscam descrevê-las de forma resumida, como uma primeira e necessária aproximação ao tema.9
Figura 1: Disjuntivas críticas do planejamento governamental brasileiro
Elaboração dos autores.
Evidentemente, não é possível, no escopo deste texto, tratar,
de maneira profunda, de todas as disjuntivas tais quais elencadas anteriormente.10 Mas é possível ilustrar, de modo agregado, algumas ques9. Para uma discussão sobre essa categoria analítica, ver Lotta, Pires e Oliveira (2015) e Freire, Viana e Palotti
(2015).
10. Por isso, para uma visão mais ampla acerca das disjuntivas sugeridas pela figura 1, veja-se a versão ampliada deste texto no formato Texto para Discussão, Ipea 2018, no prelo.
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tões críticas em cada um dos níveis de organização propostos. Apesar
da ilustração indicar uma hierarquia entre os níveis, é relevante destacar que existem fluxos bidirecionais importantes, especialmente entre
os níveis meso e microinstitucionais, relações que também resultam
dessas disjuntivas. Porém, a figura 1 ajuda a sistematizar o assunto e
tem o mérito adicional de posicionar a função planejamento em um
plano superior ao do seu principal instrumento, o PPA, condição necessária para que ele próprio seja viabilizado.
Para fins didáticos, desse modo, buscamos identificar e classificar as disjuntivas críticas do planejamento governamental brasileiro em
três grandes conjuntos, conforme a figura 1, a saber: i) nível macroinstitucional; ii) nível mesoinstitucional; e iii) nível microinstitucional.
Nível macroinstitucional
Este nível refere-se às grandes e elevadas questões estruturais
que circunscrevem e subordinam a função planejamento governamental na sua relação com os domínios (materiais e simbólicos) da
técnica e da política; com o peso e o papel que ela pode desempenhar
na articulação entre mercado capitalista e desenvolvimento nacional,
assim como na articulação entre democracia e desenvolvimento.
Além disso, é no nível macroinstitucional que posicionamos
a relação entre a macrofunção governamental do planejamento e o
seu instrumento principal de aplicação no Brasil desde a CF-1988.
O PPA, que por ser o mandamento legal superior criado na CF-1988
(e até o momento vigente em termos formais), dialoga com boa parte
de normas, sistemas, arranjos administrativos, carreiras e subfunções
especializadas (tais como as de planejamento e orçamento, finanças e
controle, gestão governamental, pesquisa e avaliação) responsáveis, ao
fim e ao cabo, pela mobilização de recursos físicos, financeiros, humanos e tecnológicos destinados a todas as etapas formais do circuito de
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políticas públicas existente em nível federal no Brasil, tais como a formulação, a implementação, a gestão, o monitoramento, os controles
burocráticos e a avaliação.11
Dado o escopo deste texto, explicitaremos, adiante, apenas as
problemáticas contidas na primeira das disjuntivas críticas de nível
macroinstitucional.
Técnica versus política
A disjuntiva (alguns dirão dicotomia) mais célebre dentro dos
estudos de governo é a que contrapõe as dimensões técnica e política
do ato e do processo de governar.12 Aos que argumentam em prol da
primazia da técnica e acreditam ser exequível uma gestão ou administração pública de tipo gerencial, baseada sobremaneira na racionalidade
instrumental do poder público, contrapõem-se os que julgam ser eminentemente política a natureza dos problemas, das soluções e – portanto – da condução cotidiana da gestão ou administração pública.
Contra ambas as posições, e pensando explicitamente na função planejamento governamental, ainda mais em contextos que se
pretendem republicanos (no que diz respeito à forma de organização
e funcionamento do Estado) e democráticos (no que se refere aos processos essencialmente políticos de explicitação e representação de interesses e políticas públicas no interior do Estado), argumentamos no
sentido óbvio de dizer que ambas as dimensões são necessariamente
inseparáveis dos atos e dos processos de planejar e governar.
Em uma leitura mais direta, a técnica sem a política significa algo como a gestão cotidiana da máquina pública sem um plano
que a oriente estrategicamente. A política sem a técnica significa algo
como um plano estratégico sem a capacidade tática e operacional de
11. Para uma descrição e qualificação de cada uma dessas fases, ver Howlett, Ramesh e Perl (2013).
12. Para esta, no que toca ao tema do planejamento de modo geral, ver Moretti (2012) e Lima (2013), neste
segundo caso para uma interessante discussão sobre a disjuntiva técnica versus política aplicada ao caso da
assessoria econômica e de planejamento do segundo governo Vargas, entre 1951 e 1954.
DO PLANEJAMENTO DEMOCRÁTICO AO PLANEJAMENTO BUROCRÁTICO
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ser implementado. No entanto, uma análise mais profunda revela que
técnicos podem veicular a sua visão política dependendo da forma
como constroem e operam os instrumentos. Nesses casos, quando a
técnica toma o lugar da política, opera a instrumentalização da função
como um fim em si mesmo.13 Além disso, eventuais excessos políticos
da burocracia diminuem o grau de confiança necessário para que haja
acordo político para institucionalizar os instrumentos, dotando-os do
poder necessário para que funcionem melhor.
Isso posto, tal disjuntiva pode ser visualizada, entre outros tantos exemplos possíveis, a partir do processo quadrienal de elaboração
do PPA. Como se sabe, desde a CF-1988, cada governo eleito tem por
missão constitucional elaborar e submeter ao Congresso Nacional, ao
fim de seu primeiro ano, o plano de governo para os próximos quatro
anos de mandato.
Em termos formais, o PPA precisa estar organizado segundo as
categorias e os atributos que a cada momento vão-se constituindo burocraticamente como parte da estrutura das políticas públicas e dos processos administrativos de organização e funcionamento de tais políticas.
Neste momento, evidencia-se a disjuntiva entre técnica e política, pois
ao governo eleito importa formatar o PPA (e as políticas públicas a ele
referenciadas) segundo as prioridades estratégicas com as quais, em parte, disputou e venceu as eleições. Sob essa perspectiva, o PPA deveria ser
apenas o instrumento legal por meio do qual a face política do governo
eleito seria apresentada ao Congresso Nacional e à sociedade, vale dizer,
o plano de governo democraticamente consagrado pela maioria.
Mas do ponto de vista dos aparatos burocráticos de Estado
envolvidos com o PPA, este deveria ser preservado, resguardado, e
no limite, blindado da influência política (externa e coercitiva) que,
13. Sobre o espaço da política na gestão pública, ver Garnier (2004); e sobre o espaço da racionalidade burocrática, ver Weber ([s.d.]). Para uma discussão aprofundada sobre a política da burocracia, ver Peters (1999);
e para uma crítica envolvendo a crise de legitimidade da burocracia, ver Castelo Branco (2016).
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eventualmente, governos lhe queiram impingir a cada quatro anos.
Do ponto de vista burocrático, a governo nenhum caberia zerar o
PPA para fazer ou refazer as suas apostas; haveria um leque de políticas
públicas e processos de governo já estabelecidos que precisariam ser
mantidos, a ponto de a burocracia valer-se corriqueiramente do argumento de que tais políticas e processos já possuem sua racionalidade
estabelecida (em termos de eficácia e efetividade), bastando a sempre
renovada ênfase na eficiência (fazer mais do mesmo com menos recursos disponíveis) para que as coisas aconteçam.
É claro que entre os dois extremos há infinitas combinações
e arranjos possíveis, e entre ambos efetivamente se realiza e se resolve
a disputa entre técnica e política. O desafio, portanto, é encontrar a
faixa de equilíbrio – ainda que intrinsecamente instável – que melhor
compatibiliza no tempo as necessidades e as capacidades políticas
de governo com os requerimentos técnicos indispensáveis à boa
governança da função planejadora.
Nível mesoinstitucional
Este nível de análise reúne as principais relações que, por meio
do PPA, o planejamento governamental em nível federal no Brasil
deve estabelecer com as demais funções governamentais estruturantes,
notadamente: finanças públicas e orçamentos; organização institucional e gestão das políticas públicas; controles interno e externo; direito
constitucional, administrativo e financeiro.
Em outras palavras, posicionamos o PPA nessa dimensão
porque ele é o instrumento que melhor dialoga com todas as demais
disjuntivas, quer seja por seu objetivo constitucional, quer seja pelo
seu teor potencialmente estratégico. Isso porque é no âmbito de tais
relações que as disjuntivas críticas entre planejamento e cada uma das
demais dimensões do processo concreto de governar se revelam de
modo mais claro e intrincado.
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Assim, para efeitos deste texto, exemplificaremos as disjuntivas
críticas ao nível mesoinstitucional por meio da relação entre PPA, orçamento e finanças públicas no âmbito federal brasileiro.
PPA versus orçamento versus finanças públicas
Talvez a mais crítica das disjuntivas seja essa que relaciona (melhor seria dizer: congestiona!) PPA e finanças públicas de modo geral,
orçamento aí incluído. Desde a Lei de Finanças de 1964 (Lei 4.320, de
17 de março de 1964), mas sobretudo após a CF-1988 e o advento da
Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF-2000), Lei Complementar 101,
de 4 de maio de 2000, vem-se desenvolvendo no Brasil um lento – porém contínuo – processo de institucionalização de cunho fiscalista e um
enrijecimento jurídico-normativo das funções de orçamentação e controle interno dos gastos públicos (ambas a partir de uma justificativa
teórica associada à transparência e à responsabilização).14
Tal processo foi acelerado durante a década de 1990 em função
de alguns condicionantes prévios, conforme descrito a seguir.
1) Exigências de organismos internacionais (notadamente,
Fundo Monetário Internacional – FMI – e Banco Mundial) como
condição para liberação ou renovação de empréstimos em moeda estrangeira.
2) Fim da conta-movimento do Banco do Brasil (BB) em 1986 e
criação na CF-1988 do Orçamento Geral da União (OGU), Orçamento da Seguridade Social (OSS), jamais implementado nos moldes preconizados pela CF-1988, e Orçamento das Empresas Estatais (OEE).
3) Empoderamento e crescente blindagem institucional das
organizações federais destinadas ao gerenciamento da moeda (BCB),
da dívida pública (Secretaria do Tesouro Nacional – STN) e à unificação e especificação do processo de contabilização orçamentário-fi14. Para tanto, ver os determinantes principais desse processo nos trabalhos já citados de Braga (1993; 1997)
e Massoneto (2006), além de Bercovici e Massoneto (2016).
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nanceira do gasto público (Secretaria de Orçamento Federal – SOF,
via sistemas Siafi-Sidor).
Além desses, apresentam-se outros fatores dignos de nota:
4) A hiperinflação e o descontrole orçamentário decorrentes
do fracasso do Plano Collor no biênio 1991-1992, com o consequente impeachment do presidente.
5) O escândalo de corrupção dos anões do orçamento ao longo
do biênio 1992-1993, com envolvimento de parlamentares em torno
da malversação dos recursos públicos.
6) A estabilização monetária trazida pelo Plano Real, cuja engenharia financeira necessária ao seu êxito exigia, em concordância
com Belluzzo e Almeida (2002):
a) a manutenção da taxa oficial de juros permanentemente
acima das taxas internacionais, de modo a estimular a entrada de capitais externos, tornando a nova moeda sobrevalorizada em relação às principais moedas estrangeiras (sobretudo o dólar e o euro), de sorte a baratear artificialmente
os preços dos bens e serviços importados e, com isso, por
meio da abertura comercial e financeira e da concorrência
externa, forçar a quebra da inércia inflacionária doméstica
e a convergência dos preços internos para algo próximo dos
padrões internacionais vigentes; e
b) a geração de superavits fiscais primários permanentes, obtidos por meio da seguinte combinação:
| privatização de ativos estatais;
| reformas sociais e gerenciais visando reduzir e racionalizar os gastos públicos reais;
| criação, aumento e centralização de tributos junto ao
Poder Executivo federal, incluindo aí a desvinculação
de recursos por meio de sucessivas medidas provisórias
(Fundo Social de Emergência – FSE, Fundo de Estabi-
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lização Fiscal – FEF – e Desvinculação de Receitas da
União – DRU);
| aprovação da LRF em 2000, visando, sobretudo, o estabelecimento de limites superiores (ou tetos) para os
gastos públicos com pessoal e outras despesas reais, o enquadramento fiscal e financeiro dos entes subnacionais
da federação, além da garantia jurídica do governo federal quanto ao pagamento dos compromissos financeiros
com a dívida pública; e
| instituição do regime de metas de inflação após a crise
cambial de 1999, sustentada por meio de um tripé de
políticas macroeconômicas composto por política monetária de manutenção de juros domésticos elevados,
administração da taxa de câmbio apreciada e geração
permanente de superavits fiscais primários.15
Tudo isso de modo a transmitir ao mercado financeiro e aos demais agentes privados (nacionais e estrangeiros) a sensação de confiança
na capacidade do governo de honrar seus compromissos com a sustentabilidade e a solvabilidade da dívida pública federal, desde então gerida
pela lógica dominante da financeirização (Braga, 1993; 1997).
A par dos processos narrados anteriormente, sendo a manutenção da estabilização monetária a função-objetivo primordial da gestão
macroeconômica desde o Plano Real, e considerando ainda o ambiente
político-ideológico da década de 1990, de liberalização dos mercados e
de redução do papel e do tamanho do Estado brasileiro em suas relações
com a sociedade e o mercado, não é de estranhar que, do ponto de vista
estratégico, a função-planejamento tenha sido interpretada e aplicada
para reforçar o caráter fiscal do orçamento, relegando-se a um segundo
15. Quase como corolário dos aspectos anteriores, mencione-se a Emenda Constitucional (EC) 95/2016 que
institui um teto de gastos para as despesas primárias da União.
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ou terceiro plano a estruturação dos condicionantes técnicos e políticos
necessários à institucionalização do PPA como instrumento central do
processo de planejamento governamental no país. Já do ponto de vista tático-operacional, três princípios gerais positivos de concepção do
desenho institucional do PPA no bojo da CF-1988 não encontraram
condições propícias para se realizar.
De acordo com o primeiro, o desejo das forças sociais e políticas
da redemocratização, de ver reduzido o alto grau de autoritarismo e
discricionariedade no exercício do planejamento nacional, sobretudo
durante o regime militar, induziu os constituintes a encurtar o horizonte de planejamento formal do governo, restringindo-o ao mandato
quadrienal de cada presidente doravante eleito e atrelando um mandato
a outro, visto que, no seu primeiro ano de exercício, cada governo eleito
teria que formular o seu PPA para o quadriênio seguinte, ao mesmo
tempo em que executasse o último ano do PPA elaborado pelo governo
anterior. Supostamente, tal artifício visava reduzir a probabilidade de
descontinuidades abruptas das políticas públicas entre um governo e
outro, sem, no entanto, impedir que o novo governo pudesse dispor
de suas prerrogativas para elaboração e implementação do seu próprio
plano de governo por meio de um novo PPA quadrienal.
Em segundo lugar, o mesmo desejo anterior, de ver doravante
alargada a participação popular direta (via conselhos de políticas públicas e demais formas de participação social no circuito de políticas
públicas) e indireta (via representação eleitoral parlamentar) na construção dos desígnios do país, levou os constituintes a formatarem ritos
processuais de elaboração e aprovação legislativa do PPA – quadrienalmente, da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e da Lei Orçamentária Anual (LOA) – estas duas, anualmente –, cujas dinâmicas e cujos
determinantes específicos em cada caso, sempre premidos pelo curto
intervalo de tempo entre um instituto e outro, jamais tiveram – ainda
mais nas condições cotidianas de funcionamento da máquina pública
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antes narradas – condições plenas de se estabelecerem, levando, na
verdade, a um excesso de burocratismo procedimental nos processos
anuais de elaboração e relacionamento entre LDO e LOA, e a um
esvaziamento progressivo do PPA como instrumento principal de definição de diretrizes, prioridades, metas e orçamento do plano (Santos;
Ventura e Neto, 2017). Ao contrário, foram as dinâmicas e circunstâncias anuais de definição dos limites orçamentários de cada emenda
parlamentar, política, programa ou ministério setorial que, agindo sob
a batuta maior das condições já narradas para a manutenção da estabilidade monetária do país, passaram a pautar o escopo e o potencial do
planejamento em termos da formulação de diretrizes, objetivos, metas
e prazos do PPA.
Enfim, o terceiro dos princípios gerais aludidos se refere ao
que, crescentemente ao longo dos anos 1990 e 2000, passou a ser
chamado de integração plano-orçamento. Na verdade, uma interpretação benevolente da CF-1988 sugere que haja uma correspondência
orgânica entre as pretensões políticas legítimas do PPA e os respectivos
arranjos econômico-institucionais de financiamento da despesa pública necessária à concretização do plano.
Nessa perspectiva positiva, embora a preocupação correta do
constituinte fosse evitar grandes descasamentos entre a capacidade de
financiamento de cada política pública vis-à-vis a composição do gasto público total, de modo que os governos não tivessem freios endógenos à amplitude de seus projetos ou então que buscassem recorrer a
formas inflacionárias ou arriscadas de financiamento, o fato é que a tal
vinculação do PPA deveria ter-se dado, desde o início, com o conceito
e possibilidades mais amplas das finanças públicas de modo geral,16
e não apenas com o conceito e possibilidades restritas do orçamento
geral propriamente dito.
16. Isto é, com os conceitos de finanças funcionais (CONCEIÇÃO e CONCEIÇÃO, 2015) ou finanças
desenvolvimentistas (Fórum 21 et al., 2016).
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Ou seja, no bojo dos processos anteriormente descritos de
institucionalização e empoderamento das funções orçamentação e
controle dos gastos públicos federais, e constrangido ainda pela visão
canônica do orçamento equilibrado no âmbito da teoria dominante
(porém equivocada!) de finanças públicas, segundo a qual a capacidade de gasto e investimento de um ente estatal qualquer deve estar
em função da capacidade prévia de poupança própria e qualquer
deficit anual contábil nessa relação (arrecadação total em T – gastos
totais em T) é necessariamente inflacionário, foi-se cristalizando no
Brasil – conceitual e juridicamente – a crença (para nós, equivocada)
de que o PPA deveria abarcar o conjunto completo de políticas, programas e ações de governo com manifestação orçamentária.
Como consequência, à pretensão totalizante do PPA, com
base no orçamento, se sobrepôs o movimento de contabilização integral e detalhada da despesa pública, a qual, por sua vez, deveria ser
governada a partir da lógica liberal do orçamento equilibrado, isto
é, da ideia forte de poupança prévia como pré-condição para toda e
qualquer rubrica de gasto corrente ou investimento do governo. O
resultado final, para fechar o cerco, foi que a função controle cresceu
e se desenvolveu, normativa e operacionalmente, para controlar (vale
dizer: vigiar e punir) os desvios de conduta do poder público (nesse
caso, dos próprios burocratas ordenadores de despesas públicas) em
desacordo com os preceitos definidos pela lógica liberal do orçamento equilibrado.
Assim, antes nascida sob o signo da busca republicana por
transparência e responsabilização coletiva dos recursos públicos (isto
é, da própria sociedade), a função-controle rapidamente se transformou em agente de inibição e criminalização do gasto público e dos
seus operadores.17
17. Para uma visão completa acerca da estruturação e dos dilemas dos sistemas de controles democráticos
sobre a administração pública brasileira (isto é: Poder Legislativo, tribunais de contas, Judiciário e Ministério
Público), ver Arantes et al. (2010); e, especificamente, sobre avanços e desafios na atuação da Controladoria-Geral da União (CGU), ver Loureiro et al. (2016).
DO PLANEJAMENTO DEMOCRÁTICO AO PLANEJAMENTO BUROCRÁTICO
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Entre os anos 2003 e 2013, basicamente, houve tentativas de
fortalecimento do PPA como ferramenta do planejamento governamental, com mudanças conceituais e metodológicas promissoras, mas
incapazes de romper os dogmas já cristalizados e anteriormente apontados. De todo modo, movido pelos imperativos de um crescimento
econômico, algo maior naquela década, pôde-se demonstrar na prática que a expansão das políticas públicas poderia capitanear movimentos de alargamento conceitual e operativo das finanças públicas para
além da lógica liberal do orçamento equilibrado (CONCEIÇÃO e
CONCEIÇÃO, 2015).
Isso se deu por meio de uma utilização mais intensiva das
fontes não-orçamentárias de financiamento dos gastos públicos, sobretudo a ativação do crédito público (que na prática é uma antecipação de poder de compra ainda não existente como poupança
prévia disponível), via maior protagonismo dos bancos públicos
(BNDES, BB, Caixa Econômica Federal – Caixa –, Banco do Nordeste – BNB – e Banco da Amazônia – BASA), das empresas estatais (Petrobras, Eletrobras etc.), dos fundos públicos (Fundo de
Amparo ao Trabalhador – FAT –, Fundo de Garantia do Tempo
de Serviço – FGTS –, fundos constitucionais do Norte, Nordeste e Centro-Oeste; fundos setoriais operados pela Financiadora de
Inovação e Pesquisa – FINEP –, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq –, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – etc.) e mesmo
dos fundos de pensão atrelados aos bancos públicos e empresas estatais, que, embora entidades de direito privado, possuem seu funding
principal originário de uma massa de renda de origem pública e por
isso podem e costumam operar sob influência ou orientação geral
do governo federal ou sob objetivos gerais de determinadas políticas
públicas; não apenas, portanto, segundo sinais típicos e exclusivos de
mercado (CARDOSO JUNIOR, PINTO e LINHARES, 2013).
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Assim sendo, se e quando todas as fontes possíveis de financiamento de uma economia aberta e complexa como a brasileira forem
levadas em consideração, tanto o escopo como o potencial realizador
do PPA estarão postos muito além do orçamento prévio disponível, e
muito além do horizonte restrito de quatro anos para sua concretização.
Para tanto, é preciso que o PPA se organize e opere segundo
níveis diferentes de temporalidade e de direcionalidade estratégica.
As políticas públicas possuem tempos distintos de maturação, bem
como priorização estratégica igualmente distinta. Ambas as dimensões – temporalidade e direcionalidade estratégica – precisam estar,
a cada nova rodada de PPA, devidamente expressas nos documentos
e nos respectivos arranjos de planejamento e execução das políticas
e programas governamentais. Essa sugestão é não só factível como
indispensável para conferir maior dose de realismo, flexibilidade e exequibilidade às distintas fases de maturação e de priorização das políticas públicas federais.
Concretamente, trata-se aqui de estimular que os horizontes
temporais das diversas políticas e dos diversos programas governamentais se expressem livremente dentro do mesmo PPA.18 Com isso, todos
os planos setoriais, considerados robustos e corretos do ponto de vista
da política e da estratégia nacional de desenvolvimento, seriam automaticamente incorporados ao PPA, independentemente do respectivo horizonte temporal ou do grau de maturação institucional em cada caso.
As atividades de orçamentação, monitoramento, avaliação e controle
levariam em conta, para suas respectivas atividades, a especificidade e
a temporalidade própria em cada caso (CARDOSO JUNIOR, 2015).
No que toca especificamente ao orçamento, há duas condições
de realização: i) é preciso elevar o nível de agregação das unidades mínimas de execução do gasto público, idealmente para o plano estratégico
18. Algo na linha do que havia sido implementado no PPA 2012-2015, por exemplo, com o Plano Nacional
de Educação (PNE), entre outras políticas relevantes.
DO PLANEJAMENTO DEMOCRÁTICO AO PLANEJAMENTO BUROCRÁTICO
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dos objetivos ou das metas do PPA; e ii) é necessário aplicar tratamento diferenciado ao gasto público (em termos de planejamento, orçamentação, monitoramento, controle, gestão e participação), segundo
a natureza efetiva e diferenciada das despesas em questão, ou seja: se
há gastos correntes intermediários para o custeio da máquina pública,
o foco deveria recair sobre a contabilização anual e a eficiência; caso
sejam gastos correntes finalísticos para custeio das próprias políticas
públicas, a sua contabilização deveria ser anual e o foco na eficácia e
na efetividade; e se há gastos propriamente em investimentos novos, a
contabilização deveria ser plurianual e o foco recair sobre a eficácia e a
efetividade (CARDOSO JUNIOR, 2015).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A princípio, é preciso situar a discussão particular sobre a burocracia de planejamento no percurso mais geral de discussão a respeito da montagem da burocracia pública no Brasil. Em consonância
com trabalhos anteriores, tais como em Abrucio e Pedroti (2010),
Loureiro, Olivieri e Martes (2010), Pessoa (2013) e Pagnussat (2015),
é preciso aprofundar o entendimento de qual é, ou deveria ser, em termos do tipo e da quantidade de carreiras que abarca, o escopo correto
da burocracia de planejamento no país, bem como entender melhor
como se deu a sua montagem histórica e porque ela tem, ou não tem,
o perfil e os atributos necessários ao desempenho dessa função.
Em segundo lugar, é preciso fazer a conexão entre o tópico anterior e o processo tecnopolítico de constituição de capacidades estatais para o desenvolvimento. Tal como em trabalhos capitaneados por
Gomide e Pires (2014), busca-se situar a contribuição específica do
planejamento governamental nos arranjos institucionais, processos,
percursos e produtos de governo que explicam as razões de sucesso
(ou fracasso) de cada uma das políticas públicas – tanto quando consi-
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
deradas em si mesmas, quer dizer, dentro do seu campo próprio como
área de atuação programática do Estado, como quando consideradas
em termos de sua contribuição específica ao escopo mais amplo do
desenvolvimento nacional.
Por fim, mas não menos importante, e evidentemente sem esgotar o leque de questões em aberto, é preciso avançar no debate que
busca compatibilizar planejamento com democracia na contemporaneidade. Tanto em Grau (2004; 2016) como em Tarragó, Brugué e
Cardoso Junior (2015), entre tantas outras referências possíveis, nota-se um esforço teórico e histórico em demonstrar que democracia e
planejamento, como métodos de governo, são não apenas uma combinação possível como necessária aos desafios de legitimidade e de
efetividade do desenvolvimento na maior parte dos lugares. Mas permanece em aberto, todavia, a lacuna de como construir um consenso político que envolva governantes, dirigentes e a própria sociedade
acerca dessa viabilidade histórica.
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CAPÍTULO 5
FINANÇAS PÚBLICAS SOB O
ENFOQUE DISTRIBUTIVO
GUILHERME COSTA DELGADO1
O enfoque da distribuição de renda e riqueza por dentro do
multifacetado sistema de finanças públicas é pouco frequente na literatura especializada, que privilegia os aspectos da estabilização de
preços, do financiamento ao investimento em bens públicos, do equilíbrio fiscal etc, ao lado de uma ampla diversidade de temas conexos.
A pretensão de escolher o enfoque distributivo por dentro do
sistema de finanças públicas brasileiro provoca também, de forma preliminar, a necessidade de definir tal sistema dentro do marco constitucional, que como veremos nos conduz à questão distributiva.
Fica claro no texto constitucional original (1988) a pretensão
de estabelecer um subsistema de finanças sociais, ancorado principalmente no Orçamento da Seguridade Social e nas vinculações tributárias às políticas sociais específicas da Seguridade Social e da Educação.
Essas vinculações são uma espécie de suporte de meios financeiros
específicos no Título que trata “Da Tributação e dos Orçamentos”
1. Doutor em Economia pela UNICAMP, desde 1984, com a Tese “Capital Financeiro e Agricultura no Brasil”. Exerceu por 31 anos atividades de pesquisa e planejamento no IPEA-Brasília (1976-2007) e atualmente
assessora entidades eclesiais e movimentos populares.
| 126
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
(Título VI), para suprir adequadamente as políticas sociais, tratadas
em termos de Diretrizes Gerais no Título VIII – Ordem Social e nos
Princípios Fundamentais e Direitos e Garantias, declarados nos Títulos iniciais da Constituição (I e II).
Por outro lado, se se pode identificar no segmento “Finanças
Sociais” um componente coerente e sistemático de suporte aos princípios e diretrizes em prol da igualdade social, que a Constituição de
1988 contém; o conjunto do ordenamento das finanças públicas persegue outros objetivos, que sinteticamente poder-se-ia declarar como
de privilégio distributivo aos proprietários da riqueza financeira.
A evolução no tempo das Emendas Constitucionais sobre matéria de finanças públicas, principalmente a partir do Plano Real, revela um sentido muito claro, simultaneamente coerente e perverso do
ponto de vista distributivo: i) mitigar e finamente expelir as finanças
sociais do ordenamento constitucional; ii) erigir a despesa financeira
ilimitada e a Dívida Pública idem como espaço privilegiado de abrigo
aos proprietários da riqueza financeira.
A ‘práxis’ concreta da política pública opera com muita articulação nos vários subsistemas que compõem um sistema de finanças
públicas – moeda, tributação, orçamentos, dívidas públicas e haveres
públicos, em linha da irresponsabilidade social e fiscal, não limitação
fiscal do gasto financeiro e inimputabilidade criminal do ilícito fiscal-financeiro, critérios que convertem o sistema em campo aberto à
desigualdade distributiva, como também ao desequilíbrio financeiro
estrutural, materializado por uma dívida pública de origem financeira
incontrolada.
O enfoque, portanto, é claramente na linha distributiva. O
material utilizado à corroboração recorre às mais de três dezenas de
Emendas Constitucionais, que de forma explícita ou implícita tratam
de matéria distributiva em finanças públicas, e bem assim da legislação infraconstitucional, que desde a EC 40/2003 liberou o Sistema
FINANÇAS PÚBLICAS SOB O ENFOQUE DISTRIBUTIVO
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Financeiro Nacional à regulamentação mediante leis complementares. Mas antes da EC 40/2003, o amplo e normativamente algo impreciso campo das finanças públicas era e continua sendo objeto de
regulação infraconstitucional.
A abordagem deste capítulo é uma espécie de síntese do processo de regulação das finanças públicas brasileiras a partir da CF de
1988, que elaborei em quatro capítulos de livro intitulado “Terra, Trabalho e Dinheiro: Regulação e Desregulação em três Décadas da CF
de 1988” (op. cit.)
A ESTRUTURA JURÍDICO-CONCEITUAL DAS FINANÇAS
PÚBLICAS NA CF-1988: ORGANIZAÇÃO E ALCANCE
No texto constitucional o capítulo específico – “Das Finanças
Públicas” está situado no interior de um Título VI, que trata “Da Tributação e dos Orçamentos”. Essa organização contém certa dose de
arbitrariedade formal. Isto porque finanças públicas conceitualmente
não é subsistema de ‘Tributação e Orçamento’, mas o contrário o é. E
sendo como o são os “Títulos” constitucionais, estruturas normativas
com pretensão de sintetizar sistemas jurídicos, a inversão citada choca-se em certo sentido com a estruturação orgânica do texto constitucional, tratado mais adiante (ver tópico 2.1).
Isto posto, posso considerar todo o título VI como pertinente
ao sistema geral de finanças públicas, pelo fato de tratar das relações
gerais relativas aos subsistemas públicos constituintes das finanças públicas da União: moeda, tributação, orçamentos, dívidas e haveres públicos, suas conexões, regras de gestão etc; objetos de avaliações anuais
de resultados nos conceitos de déficits ou superávits totais (nominal)
ou parciais (primário).
Vistas sob esse enfoque sistêmico, as finanças públicas desempenham no ordenamento constitucional papel central na organização
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
de todo texto, por que são as fontes de meios de financiamento de que
dispõe o Estado Constitucional, para sua própria reprodução, como
e principalmente para cumprir as funções econômico-sociais a que o
Estado está explicitamente designado nos demais Títulos; e bem assim
de outras funções derivadas, que se exercitam pelas operações de políticas públicas ao longo da história.
Conquanto a pesquisa em finanças públicas esteja muito concentrada ao longo de nossa história econômica em temas relativos à
estabilização macroeconômica, ao financiamento de bens públicos, ao
equilíbrio fiscal etc, meu enfoque neste artigo é sobre a distribuição
de renda (e riqueza), que se opera no interior do Sistema, seja para
melhoria dos padrões de igualdade social, mas também no seu inverso
– à concentração de renda e da riqueza social.
Por sua vez, dado o enfoque sistêmico desse sistema (de finanças públicas), o perfil distributivo precisa ser perseguido no conjunto dos subsistemas que o integram. Neste, partes e peças podem
cumprir funções distintas e até antinômicas. Por seu turno, as mutações do sistema geral no tempo, seja por Emendas Constitucionais
sucessivas; seja por legislação infraconstitucional ou até por meios não
constitucionais, também podem construir uma estrutura paralela de
finanças públicas, com determinados perfis distributivos apoiados na
economia política dominante. Esta, detém poder para fazê-lo, mesmo
à margem dos critérios de legitimação da Constituição Federal (CF).
Do exposto, duas deduções parciais: i) o sistema precisa ser
avaliado no seu funcionamento de conjunto, de maneira a se aferir o
sentido distributivo global de sua operação; ii) o critério de legalidade
regendo normas e práticas de finanças públicas é insuficiente para aferir a função legítima de distribuição no ordenamento constitucional,
ainda mais em conjunturas críticas, quando em nome da excepcionalidade ou de restritivas justificações econômicas adotadas, deslocam-se
funções do foco distributivo das “finanças sociais”, para negando-as,
FINANÇAS PÚBLICAS SOB O ENFOQUE DISTRIBUTIVO
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instituir uma espécie de Estado paralelo da segurança financeira aos
proprietários da riqueza. Essa operação se realiza no interior das finanças públicas, principalmente, mas não exclusivamente no subsistema
da Dívida Pública.
O SISTEMA DE FINANÇAS PÚBLICAS NA CF-1988:
PRETENSÕES DISTRIBUTIVAS DAS FINANÇAS SOCIAIS
Dentro da lógica jurídico-formal que organiza a CF de 1988,
parte-se dos Princípios e Direitos Fundamentais declarados nos Títulos I e II, para em sequência tratar de uma regulamentação ampla da
Organização do Estado (título III), dos Poderes da República (título
IV), da “Defesa do Estado...” (Título V) e das Finanças Públicas (título VI), concebidos como mediações para oferecer concretude aos
Princípios e Direitos Fundamentais. Mas para fazer a ligação supracitada o constituinte criou o chamado campo das diretrizes específicas de políticas públicas da Ordem Econômica (Título VII); e principalmente da Ordem Social (título VIII), considerando o objetivo
do estudo que ora se investiga. E nessa organização irá surgir com
certa força normativa integradora o campo das Finanças Sociais, que
aqui assim designo, devido às seguintes características principais: i)
de vinculações tributárias compulsoriamente destinadas às políticas
sociais de Estado, principalmente Educação e Seguridade Social; ii)
de organização de Orçamento específico – Orçamento da Seguridade
Social – vinculado ao Sistema de Seguridade Social, composto pelos
subsistemas de Saúde, Previdência Social, Assistência Social e Seguro
Desemprego.
Esse subsistema de finanças sociais, atendente a direitos sociais
às áreas especificadas, realiza função distributiva de provisão de benefícios monetários e benefícios não monetários (serviços) com vistas
a “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
sociais e regionais” - artigo 3º, item III. Estes princípios gerais estão
reconfigurados em diretrizes específicas do sistema de seguridade social, que ficará explicitado com certa centralidade na “Ordem Social”
(artigo 194), cuja principal característica é a pretensão à universalidade de cobertura e atendimento.
Essa novidade que se introduz em 1988, conquanto contivesse
uma reforma tributária implícita no texto original (artigo 195), ficou
paralisada naquilo que instituiu. O sistema financeiro público desde
então resistiu às mudanças tributárias e orçamentárias corroborantes
à estruturação e coerente construção de regras consistentes com vistas
à igualdade social. Ademais, até o Plano Real, a hiperinflação, brevemente remediada pelo Plano Cruzado (1987) não lograra sucesso. A
verdadeira opção de reestruturação do sistema financeiro público viria
a se concretizar somente com o Plano Real (1º semestre de 1994),
praticamente cinco anos e meio após a promulgação da Constituição.
Da imediata transição pós-1988 ao processo de
regressão distributiva depois do Plano Real
A implementação das “finanças sociais” no sistema financeiro
público durou praticamente um quinquênio, até que se regulamentassem as Leis Orgânicas da Saúde, (dezembro-1990), da Previdência
Social (junho-1991), da Assistência Social (1993); aplicáveis aos direitos instituídos em 1988.
Mas a Previdência Social, que é o sistema de maior peso fiscal, já apresentava, desde 1992, impacto fiscal significativo em razão
do acesso de novos beneficiários com direitos adquiridos acumulados
desde 1988 e que se expressaram no período 1992-1995, principalmente na área rural. O impacto cumulativo da elevação do piso previdenciário de meio para um salário mínimo e do acesso de várias
gerações com direitos adquiridos (houve redução de idade da apo-
FINANÇAS PÚBLICAS SOB O ENFOQUE DISTRIBUTIVO
| 131 |
sentadoria dos rurais em relação aos urbanos e também de gênero, no
conceito rural), terá impacto fiscal significativo.
Em termos de proporção do Produto Interno Bruto (PIB), a
despesa do RGPS pula do entorno de 2,5% do PIB antes da vigência das normas constitucionais (1991), para atingir 5,1% do PIB
em 19962.
Observe-se que nesse período de transição, da regulamentação
das Leis Orgânicas dos subsistemas de Seguridade Social à edição do
Plano Real, quando surge efetivamente o impacto fiscal significativo
do sistema de Seguridade Social, não se procedeu a uma verdadeira
reforma tributária estruturante das “finanças sociais”. Criaram-se novos tributos, é bem verdade – a Contribuição Social sobre o Lucro
Líquido (CSLL), Lei 7.689/1988, e a Contribuição Social do Financiamento da Seguridade Social (COFINS), Lei complementar 70 de
30/12/1991, que somadas às fontes tradicionais da Previdência Social,
Regime Geral de Previdência Social (RGPS), cujas alíquotas foram
elevadas, imaginava-se suprir o novo sistema.
Isto, contudo, não ocorreu e já em 1993, observa-se agudo
desfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS), provocativo do
provisório Imposto sobre Movimentação Financeira, logo convertido
em Contribuição – CPMF a partir de 1996, com durabilidade até
final de 2007.
A despesa com Seguridade Social continuou a crescer no período imediato à implementação do sistema – de 9,3% do PIB em
1995 para 12,7% em 2005, quando tende a se estabilizar no entorno
de 13% a 14% do PIB3.
2. Os dados proporcionais da despesa do RGPS com relação ao PIB de 1991 são calculados pelo autor,
enquanto os mesmos dados para o período 1995/2005 têm como fonte o artigo “Seguridade Social – Origens e Evolução Institucional” (Tabela 3), publicado in – Política Social – Acompanhamento e Análise, n. 12
– Brasília – IPEA 2006
3. Cf. Política Social – Acompanhamento e Análise – op. cit. Tabela 3.
| 132
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
A reação conservadora pós-real nos vários segmentos
das finanças públicas
A rigor, a minirreforma tributária do sistema financeiro público a partir de 1988, apenas pontualmente atende os objetivos das
Finanças Sociais com a provisão de meios tributários regulamentados
entre 1988 e 1993; e ainda assim de forma improvisada e casuística,
para atender as situações legais já institucionalizadas, mencionados no
tópico precedente.
Por sua vez, o processo de reação organizada às finanças sociais
se inicia logo após a promulgação do Plano Real em cinco frentes
principais:
1. Uma sucessão contínua de oito Emendas Constitucionais
(EC) de desvinculação de recursos das políticas sociais: da
EC 01/1994 (Fundo Social de Emergência) a EC 95-2016.
2. Uma tendência forte à regressividade na tributação a partir
de 1995 (Lei 9.249/95).
3. Tratamento fiscal-financeiro privilegiado ao “serviço da dívida” e à despesa fiscal e financeira em geral.
4. Tratamento desigual às dívidas e haveres públicos nas práticas contínuas dos REFIS, repatriação de dinheiro externo e
do reconhecimento de “esqueletos financeiros”.
5. Gestão frouxa e praticamente inimputável ao ilícito financeiro, tácita ou explicitamente admitida em texto legal (MP
784/20170, convertida na Lei 13.506/2017).
As desvinculações sociais
Entre 1994 e 2016 há movimento contínuo de Emendas à
Constituição Federal na mesma direção: desvincular partes de impostos e contribuições que pelo texto constitucional original estariam
destinadas a financiar compulsória e integralmente aquilo que chama-
FINANÇAS PÚBLICAS SOB O ENFOQUE DISTRIBUTIVO
| 133 |
mos de Finanças Sociais. São oito Emendas: 1/94 (revisão), 10/1996,
17/1997, 27/2000, 56/2007, 68/2011, 93/2016 e 95/2016.
As duas ECs. de 2016, de números 93 e 95 prosseguem e ampliam as desvinculações dos percentuais anteriores – de 20% para
30% dos impostos e contribuições respectivos até 2023, pela EC 93;
enquanto a EC 95/2016 vai ainda mais longe no tempo e na restrição
às Finanças Sociais: congela por 20 anos o gasto social, independentemente de evolução da receita de impostos e contribuições.
A operação conjugada das ECs 93 e 95 completar-se-ia do ponto de vista restritivo e liquidante das finanças sociais, se combinada
com a PEC 287/2016 (Câmara Federal) sobre Reforma da Previdência. Esta, se aprovada no formato em que circulou na Câmara Federal
até final de 2017 implicaria virtual extinção das expectativas de direito previdenciário de amplos segmentos atuais do RGPS; e conversão
compulsória dos segurados da Previdência dos Servidores Públicos ao
regime de Previdência Privada, subvencionado pelos entes estatais. A
não aprovação desta Proposta de Emenda Constitucional (PEC), suspende, mas não resolve o problema do subfinanciamento das políticas
sociais, agravado no período crítico de 2015-2018; e que tampouco
ficaria equacionado nos termos aventados na proposta oficial.
Tendência à regressividade tributária
O caráter regressivo da carga tributária brasileira, que é anterior
à instituição do Sistema Tributário Nacional de 1988 da CF, não se alterou para melhor ao longo das três décadas de vigência constitucional,
até mesmo porque nas mudanças tributárias consolidadas, mesmo daqueles havidas no período transitório de 1988/1993, antes, portanto,
do Plano Real, não se pode falar em equidade tributária como premissa ao financiamento da política social. As próprias bases tributárias
principais, que serviram e ainda servem ao financiamento das políticas
sociais – folha de salário, faturamento da produção e lucro líquido das
| 134
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
empresas, previamente excluídos os dividendos distribuídos aos acionistas, a partir de 1995, configuram estrutura fortemente regressiva.
Não se pretende aqui medir e comprovar os índices de regressividade da tributação brasileira, tarefa que o estudo da Associação
Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP)
e da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (FENSFISCO)
“Reforma Tributária Solidária – A Reforma Necessária”4 o faz com
muita competência; mas chamo a atenção para ações normativas Pós-Real – a exemplo das “desvinculações” do tópico específico, que agravaram esse perfil desigual do nosso Sistema Tributário.
Neste sentido, cumpre destacar o papel continuadamente regressivo da Lei 9.249/95, nunca modificada desde então, de conferir
três benesses tributárias aos proprietários da riqueza financeira: a) a
instituição de isenção integral do Imposto de Renda (IR) (alíquota
zero) aos dividendos pagos aos acionistas, na contramão do que se faz
no resto do mundo; b) a dedução dos juros implícitos sobre capital
próprio, como se fossem despesas, com vistas a reduzir a renda tributável; c) a redução do rol de alíquotas do IR, estabelecendo o limite
superior em 27,5%, contra a própria legislação pretérita que crescia
progressivamente até a faixa dos 40%.
Ademais, a irrelevância comparativa dos nossos tributos sobre
riqueza – heranças, propriedade imobiliária, riqueza financeira etc.,
na comparação internacional, conforme revela o já citado estudo da
ANFIP-FENAFISCO, tende a conferir ainda mais desigualdade à
carga tributária.
Serviço da dívida irresponsável
O serviço de dívida pública não é suscetível à verdadeira apreciação pelo Congresso Nacional, fruto de emenda de redação na
4. O texto referido, organizado pela ANFIP/FUNAFISCO (Reforma Tributária Solidária – A Reforma Necessária)
é uma espécie de síntese para divulgação didática da coletânea – ANFIP/FENAFISCO (Orgs.) – Reforma Tributária Necessária – Diagnóstico e Premissas – Brasília, ANFIP, junho de 2018 (804 páginas – disponível na internet.)
FINANÇAS PÚBLICAS SOB O ENFOQUE DISTRIBUTIVO
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Constituinte – (Artigo 166, parágrafo 3º, item b, da CF), que explicitamente autoriza essa isenção; e ainda da confecção de uma conta
fechada – Secretaria do Tesouro/Banco Central, compulsoriamente
incluída no Orçamento da União por autorização da Lei específica
(11.803/2008). São exemplos típicos de uma institucionalidade fiscal-financeira pouco republicana, se comparada aos países do chamado capitalismo organizado, majoritariamente integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Essa característica não apenas se mantém no período pós-1988, como
também vira uma prática regulamentada pela Lei de Responsabilidade
Fiscal (Lei Complementar 101/2000 – Artigo 8, parágrafo 2), culminando com a EC 95/2016, que não apenas mantém o “serviço de
dívida”, como estava já desregulado, mas amplia para toda a despesa
financeira os atributos de irresponsabilidade fiscal e ilimitada criação
de despesa por iniciativa do alto “staff” das finanças públicas – Banco
Central – Tesouro Nacional.
Na verdade, a EC 95/2016 vai mais longe, visto que estabelece
por 20 anos o congelamento do gasto primário e o direcionamento das receitas orçamentárias de todos os tributos e outras fontes de
renda orçamentária, que crescendo em termos reais são destinados à
função de “superávit primário”, a serviço da Dívida Pública.
Por outro lado, se considerarmos o fato de que os fatores de
crescimento da Dívida Pública ao longo do período do quarto de século pós-Plano Real, contêm arraigado componente endógeno: a) dos
juros reais administrados pelo BACEN/STN; b) da prática dos “segmentos financeiros” provocativos da absorção dos chamados “esqueletos financeiros”; 5 c) de uma enorme permissividade para com uma
despesa tributária implícita dos contínuos REFIS (refinanciamentos
5. Para uma análise do tema dos passivos contingentes ou “esqueletos financeiros”, ver: Pego Filho, Bolívar
e Saboya Pinheiro, Maurício “Os Passivos Contingentes e a Dívida Pública no Brasil – Evolução Recente
(1996/2003) e Perspectivas (2004/2006) - Texto para Discussão n. 1007, Brasília –IPEA, janeiro de 2004.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
de débitos inscritos na Dívida Ativa), veremos que há grande autonomia de crescimento de despesa financeira como causa principal do
crescimento da dívida pública, como o revelam os dados da Tabela Única, sem déficit primário para o período 1999/2013, mas com
“alto” deficit nominal em todo o período pós-Real.
Tabela Única – Dados Financeiros Sintéticos: Período 1996/2017
Anos
Taxa juros
SELIC
Nom./ Real
1996
1996/1999
2000/2002
2003/2006
2007/2010
2011/2014
2015/2017
Final de 2017
24,02/ 5,92
27,00/16,40
18,17/ 8,83
18,13/ 8,83
11,00/ 3,78
9,80/ 2,20
9,10/ 5,52
9,74/ 7,52
Deficit Nominal
em% PIB
5,32
5,68
6,62
3,83
2,68
3,45
9,04
7,80
Deficit (+)
ou Superavit
Primário (-)
(-)
(-)
(-) 3,45
(-) 2,88
(-) 1,35
(+) 2,09
(+) 1,90
Dívida Líquida do
Setor Público em
% PIB
30,7
44,1
52,9
49,7
40,2
32,6
44,7
51,8
Notas: Coluna 1 – Taxas nominais calculadas com base nas taxas médias mensais, deflacionadas pelos respectivos “deflatores
implícitos do PIB” anuais para gerar a ‘taxa real’, A fonte de dados primários é – “Histórico das Taxas de Juros” (internet – bcb.gov.br).
Colunas 2 e 3 – Os dados de déficit primário dos períodos 1996/99 e 2000/2002 não estão reproduzidos por motivo de forte
divergência de magnitude nas fontes primárias consultadas (Revista Conjuntura Econômica). Para os demais períodos utilizou-se
a informação extraída do estudo Austeridade e Retrocesso- Finanças Públicas e Política Fiscal no Brasil, editado pela Plataforma de
Política Social – São Paulo. Set de 2016 p. I..33.
Coluna 4. Utilizou-se a fonte citada na Col.2, acrescida de estimativas mais recentes – 2016 e 2017, publicadas na imprensa especializada.
Finalmente, há que agregar uma análise específica sobre os dois
outros fatores mencionados – Os “saneamentos financeiros” e a sonegação fiscal, igualmente provocativos de desigualdade nas finanças públicas, como também do seu desequilíbrio estrutural, manifesto pelo
crescimento contínuo do déficit nominal – (Tabela Única).
Tratamento desigual de dívidas e haveres públicos
O tratamento que a União confere aos seus credores (credores
da Dívida Pública Federal) e aos seus devedores (devedores de Dívida
Ativa para com a União) é absolutamente desigual contra si, vale di-
FINANÇAS PÚBLICAS SOB O ENFOQUE DISTRIBUTIVO
| 137 |
zer contra o público; mesmo quando coincidem titularidades fiscais
(CPF, ou CNPJ) de devedores e credores, quando mediante legislação
específica, poder-se-ia promover compensações cruzadas. Mas tal não
ocorre, nem no tratamento geral, qual seja na aplicação de juros iguais
sobre a Dívida Pública (taxa Selic) e sobre débitos da Dívida Ativa.
Ressalte-se que sobre esta – uma conta de haveres em cobrança, adota-se taxas geralmente menores, de forma explícita, Taxa de Juros de
Longo Prazo (TJLP), ou implicitamente ainda mais baixas, a partir de
sucessivos REFIS.
Por outro lado, há práticas ‘naturalizadas’ nas finanças públicas
que certamente exacerbam essa desigualdade, prolongadas por longos
períodos nos quais incidem precisamente essa administração desigual –
de dívidas e haveres públicos. Vejamos em sequência:
1. As chamadas, oficialmente, operações de reconhecimento
de passivos contingentes, ou “esqueletos financeiros” na linguagem
popular6, realizaram de 1996 a 2003 uma ampla e irrestrita absorção
de débitos privados “podres” na Dívida Pública, sendo os primeiros
enviados à cobrança judicial no conceito da Dívida Ativa para com a
União, enquanto as instituições gestoras desses débitos entraram imediatamente no rol de credores da Dívida Pública, fazendo-a crescer rapidamente no período (ver Tabela Única), beneficiando esse conjunto
amplo de devedores privados e instituições gestoras desses débitos –
Bancos e Autarquias Públicas.
2. Outra instituição que se naturalizou, principalmente, mas
não somente nos períodos de crise fiscal é a dos Refinanciamento de
Débitos para com a União (REFIS) tornando-se previsível em períodos de normalidade econômica – em média de três em três anos no
período 2000/20137; – anual no período 2014/2015, e acelerado
6. Pego Filho, Bolívar e Saboya Pinheiro, Maurício – op. cit.
7. Para a análise da legislação recente de uma década – dados disponíveis na internet in ‘REFIS – Programa
de Parcelamento de Débitos Tributários’
| 138
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
no período 2016/2017, quando por várias razões, tanto da convenção pretérita, quanto da barganha, para salvar o mandato, o governo
Temer acelera tanto a prática do REFIS, quanto a da repatriação de
dinheiros do exterior. No período Temer, a soma de Leis do REFIS e
Repatriação corresponde a média de três ao ano no biênio 2016-2017.
Observe-se que tanto a operação REFIS, quanto a repatriação
de dinheiros depositados em paraísos fiscais ou outras procedências,
são explícitas ou tacitamente ações de anistia fiscal e/ou criminal, ostensiva e repetidamente praticadas no âmbito das finanças públicas,
de legalidade duvidosa e legitimidade altamente questionada. O perfil
desses devedores não nos deixa dúvidas sobre o argumento da desigualdade, enquanto o volume de recursos fiscais envolvidos e principalmente a “práxis” naturalizada convidam a repetição do ilícito fiscal,
que contém implicitamente ilícito financeiro.
Gestão frouxa e inimputável do ilícito fiscal-financeiro.
Havendo evidências planetárias de lavagem de dinheiro e dos
ilícitos fiscais nos ditos paraísos, a ponto de o Vaticano vir a público
em 2018 para identificar, denunciar e sugerir pistas à correção desses
ilícitos8, que, diga-se de passagem, chegaram até o Banco do Vaticano, o
governo brasileiro caminha em sentido diametralmente oposto. Opera
em 2017 a MP 784/2017 (junho), convertida em lei no final do ano
(Lei 13.506/2017), que blinda tacitamente o sistema financeiro brasileiro da punição criminal sobre os ilícitos financeiros cometidos.
A linguagem da Medida Provisória (MP), convertida em lei,
é indireta, mas precisa, para atingir esse objetivo: que os bancos e
demais instituições financeiras sob jurisdição do Banco Central e as
corretoras e demais operadores do mercado de capitais, sob jurisdição
8. O texto referido, de responsabilidade das - ‘Congregação para Doutrina da Fé’ e ‘Desenvolvimento Humano Integral’, do Vaticano, tem o seguinte título em português: Considerações para um Discernimento Ético
sobre Alguns Aspectos do Atual Sistema Econômico-Financeiro. (Disponível na internet desde 16 de maio de
2018).
FINANÇAS PÚBLICAS SOB O ENFOQUE DISTRIBUTIVO
| 139 |
de Comissão de Valores Mobiliários (CVM), adiram aos ‘Termos de
Compromisso’ e ‘Acordos de Leniência’, “sem necessidade de confissão de crime”, para obter “Acordos de Leniência Secretos” mediante aplicação de multas escalonadas até o máximo de 300 milhões de
reais. Na linguagem dos ‘mercados’ a regra pode ser lida como de
‘precificação’ do ilícito.
Tais acordos, pelo seu caráter secreto, impedem, na prática, a
operação subsequente do MPF na identificação dos ilícitos criminais
envolvidos, regra que contrasta flagrantemente com tudo mais que se
vê na mídia corporativa sobre o “combate à corrupção”.
Ainda que esse tipo de campanha carregue em si evidentes aspectos seletivos, de uma moralidade algo farisaica, não se pode blindar
o centro do sistema financeiro dessa forma, sob pena do completo
acumpliciamento sobre as evidências de criminalidade ali incidentes,
que afetam gravemente o interesse público e a própria funcionalidade
regular desse sistema.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O enfoque distributivo das finanças públicas brasileiras no formato originalmente inserido na CF de 1988, no sentido da promoção da igualdade, contem fortes corroborações em toda a estrutura
jurídico conceitual dos vários títulos e respectivos capítulos da Carta
Constitucional.
Por sua vez, a estruturação e funcionamento dos vários segmentos componentes de um sistema nacional de finanças públicas
– sistema monetário, sistema tributário, sistema de orçamentos públicos, dívida pública e haveres (financeiros) públicos, se organizam,
principalmente depois do Plano Real em 1994, de forma mais sistêmica por um lado; e ao mesmo tempo reativa às pretensões distributivas do texto constitucional original.
| 140
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Para se falar no sentido positivo (legal) e distributivo (em prol
de igualdade), o texto constitucional original inova com a construção explícita de um sistema de direitos sociais básicos, ancorados no
subsistema de Finanças Sociais – (Orçamento da Seguridade Social +
vinculações tributárias deste Orçamento, juntamente com as despesas
da Educação, principalmente, em todos os níveis da Federação).
Por seu turno, o movimento histórico concreto de construção
dessa institucionalidade teve breve e conflitiva “lua de mel” no período imediato Pós-1988, (1988-93), quando se produzem as regras
tributárias (COFINS, CSLL e majoração das contribuições patronais
previdenciárias), necessárias, mas insuficientes para suportar os novos
direitos instituídos e regulamentados pelas Leis Orgânicas, também
do período (Saúde, Previdência e Assistência Social).
A partir de 1994, depois da edição do Plano Real, estrutura-se
uma reação conservadora às tendências igualitárias da CF (original)
em cinco pontos simultâneos: a) das desvinculações tributários às
políticas sociais; b) do exercício de uma política monetária irresponsável do ponto de vista fiscal e ilimitada, sob o aspecto da despesa
financeira; c) do aprofundamento da regressividade tributária; d) do
tratamento desigual contra o interesse público, na gestão de dívidas
e haveres; e) no tratamento permissivo dos ilícitos fiscais-financeiros.
A resultante dessa reação conservadora sobre as finanças públicas provoca uma crescente e dominante tendência de concentração
da renda e da riqueza no interior do sistema financeiro público, cuja
expressão síntese é o tamanho da despesa financeira no orçamento
público ou sua contundente participação no déficit público total ao
longo de todo o período. Isto ocorre, não obstante todo o discurso,
ao estilo pensamento único, contra as “Finanças Sociais” e de controle
exclusivo do “déficit primário”.
A pretensão concreta dessa estratégia conservadora, executada
paralelamente e contraditoriamente ao texto constitucional (original),
FINANÇAS PÚBLICAS SOB O ENFOQUE DISTRIBUTIVO
| 141 |
é provavelmente de estabelecer uma dinâmica ilimitada à Dívida Pública, submetendo toda a nação às determinações dos credores – proprietários da riqueza financeira. Várias gerações de devedores ficam
inscritas nessa estratégia, a quem são cobrados sacrifícios crescentes e
insuportáveis, à luz das necessidades básicas e dos riscos e das exigências sem limites dessa estratégia financeira.
Finalmente, há que se reconhecer uma acentuada dose de absurdo na ‘naturalização’ dos vários problemas estruturais do nosso sistema financeiro público, elencados sinteticamente na seção 3. Não
há como conviver democraticamente, por longa data, com práticas
e instituições financeiras viciadas na promoção da desigualdade de
renda e riqueza; nas irresponsabilidades, não limitações e iniquidades
conjugadas dos sistemas monetário, tributário, orçamentário e de dívidas e haveres públicos, sem cair na ruptura do Estado democrático.
Daí que, colocar o tema da mudança política estrutural desse sistema,
é condição de possibilidade para superar aquilo que o Papa Francisco
vem denunciando enfaticamente no nível internacional: a nova idolatria ao dinheiro.
De forma didática, pode-se dizer que a própria elite beneficiária tenta naturalizar práticas absurdas, a exemplo de juros reais mais
elevados do mundo e por longos períodos ininterruptos, alta regressividade tributária, sonegação fiscal em largas proporções regularmente
anistiada, ilícitos fiscais-financeiros inimputáveis, tratamento desigual
de dívida e haveres contra a esfera pública etc. Tudo isto é tratado
como paisagem, sem relação com a crise fiscal estrutural, que é atribuída no discurso conservador às finanças sociais.
E concluindo, a partir de verdadeira reforma das finanças públicas impõe-se igualmente recompor e provisionar nossas finanças
sociais para que estas efetivamente possam cumprir o papel essencial
de suporte aos sistemas de direitos sociais básicos inscritos na CF de
1988. Inverter essa ordem de prioridades estratégicas conduz a im-
| 142
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
passes permanentes da desigualdade social, estagnação econômica e
dependência externa, trinômio perverso do subdesenvolvimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANFIP/FENAFISCO. Reforma Tributária Solidária – A Reforma Necessária
– Brasília, ANFIP, 2018.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil – Promulgada em 5
de outubro de 1988 – São Paulo; Ed. Saraiva, 53ª Edição, 2016.
Delgado, Guilherme C. – Terra, Trabalho e Dinheiro: Regulação e Desregulação em Três Décadas da CF de 1988 – São Paulo; Edições Loyola-Fundação
Perseu Abramo; (no prelo).
Fundação Friedrich E. Stiftung et alli – Austeridade e Retrocesso – Finanças Públicas e Política Fiscal no Brasil – São Paulo; Fundação Friedrich E.
Stiftung; set. de 2016.
IPEA – “Seguridade Social – Origens e Evolução Institucional” in Política
Social – Acompanhamento e Análise n.12 – IPEA; 2005.
Pego Filho, Bolívar e Saboya P., Maurício – “Os Passivos Contingentes e a
Dívida Pública no Brasil” – Texto para Discussão n. 1007 – Brasília-IPEA;
jan. de 2004.
Vaticano – Congregação para Doutrina da Fé –‘Oeconomicae et Pecuniariae
Questiones’ – Considerações para um Discernimento Ético sobre Alguns Aspectos
do Atual Sistema Econômico-Financeiro – disponível na internet desde 17 de
maio de 2018.
| 143 |
CAPÍTULO 6
A EPOPEIA DA SEGURIDADE
NA ORDEM SOCIAL
MILKO MATIJASCIC1
A trajetória para criar a seguridade social foi lenta e seus efeitos
ainda não podem ser considerados um sucesso, pois o ideário epistêmico que trata o econômico e o social em situação de antagonismo
continua dominando a condução de políticas públicas no Brasil. A centralização da gestão das ações de saúde, assistência e previdência social
não se originou nos trabalhos que resultaram na promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988. A CF foi o momento em que essa antiga
aspiração se transformou no sustentáculo de uma nova Ordem Social.
As origens desse ideário remontam aos anos 1930, quando
o atendimento aos bancários incluía saúde, assistência farmacêutica
e crédito habitacional, provendo um atendimento abrangente. Em
1945, antes de ser deposto, o presidente Getúlio Vargas propôs a criação do Instituto de Seguros Sociais do Brasil, unificando o atendimento para todas as categorias socioprofissionais, passando a incluir
os trabalhadores rurais e por conta-própria. Em termos históricos esses trabalhadores foram contemplados somente nos anos 1970 e o
1. Milko Matijascic é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA. É Doutor em Economia pela UNICAMP. Foi Assessor Especial do Ministério da Previdência Social (2004/05) e Chefe da Assessoria Técnica da
Presidência do IPEA (2008/11).
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
atendimento da saúde como um direito de todos e um dever do Estado se consolida na CF em vigor. Foi a CF também que eliminou
as diferenças em termos de planos de benefícios entre trabalhadores
urbanos e rurais e homens e mulheres (HOCHMAN, 1991 e MATIJASCIC, 2002; 2015).
A agenda institucional colocada em ação após a promulgação
da CF em 1988 refletiu muitos dos desígnios ali inseridos. A cobertura
cresceu de forma notável, o atendimento também, inclusive em demandas consideradas mais complexas, sendo possível destacar um aumento
do bem-estar das populações, sobretudo as mais idosas ou dos que perderam a capacidade de trabalho. No entanto, o conceito de seguridade
social se revelou frágil, não ocupando o debate público e a formulação
de políticas de seguridade por parte da saúde, assistência e previdência
social. Além disso, embora exista o Orçamento da Seguridade Social
(OSS), esse notável instrumento possui pouquíssima inserção no debate
público e a atual utilização de seus recursos fere as propostas originalmente promulgadas pela CF em 1988. Para poder lidar com essa temática vasta, importante e um tanto desconhecida pela grande maioria das
pessoas, o capítulo contará com as seguintes seções:
| Trajetória pré-constitucional;
| Principais diretrizes da CF em 1988;
| Trajetória pós-constitucional; e,
| Propostas de reformas e o debate em torno do OSS
| Ao final será apresentada uma síntese conclusiva.
TRAJETÓRIA ATÉ 1988 DA SEGURIDADE SOCIAL NO
BRASIL2
A seguridade social, segundo a Constituição Federal do Brasil
de 1988, em vigor, é o conjunto de políticas que engloba saúde, as2. A presente seção foi elaborada com base os estudos de Matijascic (2002, 2015), com foco nos estudos de
Cohn (1981), Malloy (1986) e Fagnani (2005).
A EPOPEIA DA SEGURIDADE NA ORDEM SOCIAL
| 145 |
sistência e previdência social, e o termo passou a ser empregado formalmente nessa data. No entanto, muitos dos segmentos que hoje
integram a seguridade já existiam em formatos diferentes desde a era
colonial. Mas a política social organizada e planejada pelo Estado é
um fenômeno posterior à Revolução de 1930, com a ascensão de
Getúlio Vargas. Somente a partir dos anos 1930 a saúde, assistência
social, previdência, e regulação do trabalho passaram a integrar sistematicamente a agenda de governo.
O atendimento propiciado pelas políticas sociais foi instaurado de forma diferenciada, pois a extensão da cobertura e a disponibilidade de serviços dependiam da categoria socioprofissional a qual
se integrava o trabalhador, segundo a forma reconhecida pela lei. O
reconhecimento de direitos sociais era um ato de iniciativa do Poder
Executivo federal. Essas categorias socioprofissionais dispunham de
Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP), que, além de pagar aposentadorias e pensões, se responsabilizavam por assistência médica e
farmacêutica para as categorias mais afluentes, além de prover crédito
para fins habitacionais.
O cardápio de benefícios, sua qualidade e seu valor variavam
de acordo com o poder de barganha de cada categoria socioprofissional. Conforme apontou Wanderley Guilherme dos Santos (1981), o
Estado se antecipou às demandas populares e as categorias socioprofissionais, em vez de buscarem conquistas sociais e trabalhistas de forma solidária, competiam entre si pelo acesso a serviços e pelo que foi
considerada uma prerrogativa concedida a cada uma delas, não assumindo o formato de uma luta coletiva por direitos sociais, de forma
similar à observada, por exemplo, na Europa Ocidental.
Ao final dos anos 1930, as principais categorias socioprofissionais urbanas foram contempladas com IAP. Os profissionais liberais
(advogados, contadores e afins) foram reconhecidos em 1954, passando a integrar o IAP dos bancários. Os trabalhadores rurais, domésticos
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
e por conta própria não foram beneficiados, num movimento que
integrou o Estado de compromisso, segundo a expressão cunhada por
Weffort (1989). Em 1945, o governo chegou a propor a criação de
uma instituição centralizada, como o Instituto Nacional do Seguro
Social (INSS) atual, buscando cobrir, inclusive, os trabalhadores domésticos, rurais e autônomos, mas a iniciativa foi arquivada com a
deposição de Vargas no mesmo ano.
Em 1966, houve reformas, com a unificação dos IAP, e substituição dos regimes de capitalização, com fortes problemas atuariais, pelos de repartição. Essa reforma também unificou a gestão
para todas as categorias socioprofissionais, excetuada a administração pública federal, estadual e dos maiores municípios do Brasil.
Com as reformas de 1966-1967, a provisão privada passou a merecer destaque e a dualidade do atendimento passou a ser determinada pela capacidade administrativa do empregador e pela renda do
cidadão. O acesso a serviços de melhor qualidade passou a depender
do fato de o empregador, por exemplo, patrocinar um fundo de
pensão ou oferecer planos de saúde geridos pela iniciativa privada.
A contratação de provisão privada em saúde, que não nasceu nos
anos 1960, passou a ser amplamente difundida entre os assalariados
e profissionais liberais com maiores rendimentos.
Além de promover uma nova forma de diferenciação entre trabalhadores para concentrar renda, com vistas a criar mercados mais
sólidos para produtos sofisticados, segundo Furtado (1975), a orientação das políticas públicas foi isolar o econômico do social, conforme
apontou Zini (1988). Isso afetou decisivamente o financiamento das
políticas sociais, cuja meta governamental explícita foi o autofinanciamento, ou seja, a não utilização de impostos para financiar políticas
de seguridade do Estado e a opção por fundos públicos ou contribuições sociais, segundo Zini Júnior (1985). Assim, previdência, saúde e
assistência social deveriam ser geridas sem a utilização de impostos, e
A EPOPEIA DA SEGURIDADE NA ORDEM SOCIAL
| 147 |
a demissão imotivada do emprego deveria dar acesso ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), eliminando a estabilidade após
dez anos de serviço junto a um empregador que existiu até meados
dos anos 1960. O pressuposto dessas estratégias era que essa forma
de agir tornaria a economia mais dinâmica, elevaria o crescimento
do produto interno bruto (PIB) e permitiria incorporar ao mercado
formal de trabalho, gradativamente, os trabalhadores de menor rendimento via elevação contínua da renda per capita.
Com a crise do petróleo e o fim das regras preconizadas em
Bretton Woods, a situação se complicou. Os governos militares tentaram manter o crescimento do PIB em patamares elevados, com a
adoção de um ambicioso programa de investimentos públicos, com
foco em infraestrutura. Porém, a opção pelo financiamento externo,
com taxas de juros flutuantes, associado a severas restrições no balanço
de pagamentos, logo se revelou perversa para o Brasil. A elevação dos
juros, a partir de 1979, aumentou o serviço da dívida externa brasileira, e a capacidade de honrar os compromissos ficou comprometida,
iniciando uma crise severa e de longa duração (CARNEIRO, 2002).
Os reflexos da crise da dívida externa e dos ajustes necessários tiveram um duplo impacto sobre a seguridade social: redução
da disponibilidade de recursos e elevação da não cobertura devido à
redução dos que contribuem para a Previdência em relação à População Economicamente Ativa (PEA). Os ajustes macroeconômicos,
em geral, pressupunham uma redução acentuada no gasto público,
o que se traduziu em prestações de aposentadoria de menor poder
aquisitivo, redução das ações sociais e, muito importante, restrições
no atendimento à saúde. Em outras palavras, muitos dos problemas
do presidente eleito João Goulart em 1964 reapareceram com maior
vigor no final dos anos 1970. A concentração de renda para acelerar o crescimento, com a paulatina incorporação dos trabalhadores
em atividades de menor status, se revelou inviável como estratégia de
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
desenvolvimento para o Brasil, e o país ficou marcado como um dos
campeões da desigualdade em termos internacionais.
Foi sob a égide de um regime autoritário, como nos anos
1930, que as políticas que viriam a integrar a seguridade social foram
reformadas. O sentido geral das mudanças colocou em relevo duas
características: a centralização administrativa e a marginalização dos
sindicatos e do Parlamento na gestão e na tomada de decisões.
Em 1964, o antigo Ministério do Trabalho passou a se chamar
de Ministério do Trabalho e Previdência Social, dando início à reforma que ocorreria entre 1966 e 1967. Além das mudanças referentes às
aposentadorias e pensões, a previdência passou a contratar serviços de
atendimento médico e hospitalar de forma predominantemente conveniada ao sistema público, junto a entidades de caráter filantrópico
e, principalmente, privado.
A reforma de 1966 criou o Instituto Nacional de Previdência
Social (INPS), centralizando todos os antigos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP) na nova instituição, excetuado a Instituição
Paulista de Administração Corretagem de Seguros (IPASE), dos servidores do Estado, impondo mudanças que vinham sendo obstruídas
desde meados dos anos 1940.
A partir da reforma de 1966, todos os segurados do INPS contribuiriam de acordo com as novas regras e receberiam proventos de
acordo com o total de contribuições efetuadas, eliminando as diferenças existentes entre os diversos IAP. Outra modificação importante
do final dos 1960 foi a incorporação da cobertura dos acidentes de
trabalho ao INPS, rompendo a sistemática existente desde 1919.
A partir de 1971, os trabalhadores rurais passaram a contar
com o acesso a benefícios previdenciários. Mas a sua organização não
foi integrada ao INPS, sendo gerida pelo Fundo de Assistência ao
Trabalhador Rural (FUNRURAL), que possuía uma ampla estrutura
com representantes nomeados pelo governo federal em quase todos
A EPOPEIA DA SEGURIDADE NA ORDEM SOCIAL
| 149 |
os municípios brasileiros. O elenco de benefícios era mais reduzido,
contando somente com aposentadorias por idade, invalidez, pensões
por morte e assistência médica. Os auxílios-doença e os benefícios referentes aos acidentes de trabalho não faziam parte do FUNRURAL.
O valor dos benefícios representava cerca de meio salário mínimo.
Em 1972, foram incorporados ao INPS (ou regime geral, daqui em diante) os empregados domésticos, que sempre representaram
um contingente importante no país. Em 1974, os inválidos e idosos carentes das regiões urbanas e rurais que não puderam satisfazer
as condições de acesso aos benefícios foram contemplados, com um
programa de cunho assistencial de grandes proporções, a Renda Mensal Vitalícia, cujos benefícios de prestação continuada ainda existem
formulados em bases semelhantes às de então. Finalmente, em 1975,
foram incorporados os estudantes, garimpeiros e empregadores rurais.
A partir de 1966, também foram alterados aspectos relativos
ao financiamento. O regime financeiro passou a ser, formalmente, de
repartição, mantendo a sistemática de benefícios definidos. O novo
sistema continuava a ser financiado por recursos de empregados que
contribuíam, a partir de 1967, com uma alíquota de 8% do salário
até um teto de cerca de dez salários mínimos e de empregadores, cuja
parcela representava 15,5%. A responsabilidade da União passou a ser
o financiamento das despesas administrativas e das insuficiências de
caixa, além da dívida dos antigos IAP.
Um prenúncio de novas mudanças ocorreu a partir de 1974. A
previdência passou a ser comandada pelo Ministério da Previdência e
Assistência Social, sendo desvinculada da pasta do Trabalho, comprovando a importância do segmento nas ações de governo, mas as mudanças institucionais mais significativas passaram a se dar em 1977.
Em 1977, com a criação do Sistema Integrado de Previdência e Assistência Social (SINPAS), foi dado um novo impulso reformador. Com
a criação do SINPAS, em 1977, várias das instituições preexistentes,
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
como o INPS (responsável pela gestão dos benefícios, administração
do sistema e pelo atendimento médico), a Legião Brasileira de Assistência (LBA), a Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (FUNABEM) e a Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência
Social (DATAPREV), ou novas, como o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) e o Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social (IAPAS),
foram associadas para exercer as seguintes funções:
| INPS – gestor dos benefícios concedidos pelo sistema;
| INAMPS – encarregado pelo atendimento médico a
segurados e conveniados;
| FUNABEM – para atender os menores carentes;
| LBA – para prestar assistência às famílias carentes;
| IAPAS – responsável pela gestão administrativa e de pessoal
do SINPAS; e
| DATAPREV – empresa encarregada do processamento
de dados do SINPAS.
O sistema passou a ser mais centralizado do que em qualquer
período anterior ou posterior. As ações assistenciais (FUNABEM e
LBA) foram incorporadas àquelas referentes ao pagamento de aposentadorias, pensões e auxílios, além do atendimento médico-hospitalar,
consolidando o movimento iniciado em 1966.
Cabe destacar que, até o início dos anos 1980, as aposentadorias e pensões, atendimento médico e as ações assistenciais da
LBA e FUNABEM contavam com recursos arrecadados sobre a folha salarial, associados a reduzidos e irregulares aportes do Tesouro
Nacional, segundo Oliveira, Beltrão e David (1997). Como a muitas das ações sociais foram incorporadas ao universo previdenciário,
houve uma mescla de políticas de seguro social, como as aposentadorias e pensões, com outras de caráter redistributivo típico de
serviços sociais, como o atendimento médico e assistencial, sendo
A EPOPEIA DA SEGURIDADE NA ORDEM SOCIAL
| 151 |
financiadas com recursos da folha salarial que gravava uma parcela
muito restrita da população e tinha um nível de progressividade
muito reduzido.
Passava a ser fundamental, portanto, reorganizar o sistema e
garantir fontes de recursos estáveis, que não dependessem somente da
folha salarial e pudessem incidir sobre outras formas de rendimento,
eliminando os riscos que a oscilação da atividade econômica poderia
acarretar para a estabilidade financeira do sistema, além de redistribuir
recursos. Assim, as reformas na previdência exigiam a adoção de outra
base de financiamento, considerando os problemas sociais do país.
A solução para a crise financeira passava pela reestruturação
das fontes de financiamento. O primeiro problema era o caráter
pró-cíclico da folha salarial. Quando aumentava o PIB, havia uma
elevação da arrecadação e vice-versa. Considerando que o comportamento da economia brasileira sempre esteve sujeito a oscilações
bruscas, era necessário contornar o problema e diversificar as fontes
de arrecadação era a alternativa que se impunha. Isso não eliminaria
o caráter cíclico inerente à tributação, mas os efeitos das oscilações
não se dariam num mesmo instante, ou seja, enquanto uma fonte se
ressentia da queda na atividade econômica, outras ainda poderiam
beneficiar-se dos reflexos positivos anteriores à recessão e durante
recuperação dar-se-ia o inverso.
Além disso, era necessário tornar independentes as fontes de
recursos fiscais daquelas destinadas à proteção social, ou seja, não
permitir a utilização desses recursos para outros fins, eliminando a
subordinação da política social à econômica. Uma prova disso foi
a constante redução dos repasses de recursos fiscais para as políticas
sociais, promovendo transferências de renda limitada às populações
com rendimentos menores.
A reforma a ser adotada, portanto, dependia da reversão dos
condicionantes que balizaram a condução das políticas sociais no
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
período posterior a 1964. Ao se assegurarem fontes de recursos estáveis, seria possível garantir direitos sociais e reverter os péssimos
indicadores sociais. Mas, antes de promover um debate sobre a crise dos anos 1990, cabe mostrar as importantes mudanças sofridas
pelo sistema previdenciário brasileiro após a Constituição de 1988.
Em outras palavras, o desafio que se colocava para os que
desejavam romper a chamada “dívida social” era encontrar mecanismos estáveis de financiamento, que permitissem elevar os valores dos benefícios, sem sujeitar a proteção social aos desígnios da
política econômica, instituindo mecanismos efetivos e duradouros
para promover a distribuição de renda. A trajetória brasileira desde
os anos 1930 até 1988, buscou erigir um sistema de proteção social
que permitisse promover um aumento da cobertura e uma gestão
mais racional. No modelo preconizado, caberia ao mercado prover
serviços mais personalizados. O problema foi que a estratégia se revelou insustentável, pois as desigualdades aumentaram no Brasil, e
a superação da pobreza não se revelou viável num contexto em que
os decis populacionais mais pobres eram desprovidos de recursos de
poder. Foi essa a herança legada à redemocratização e que ainda hoje
não foi superada.
SEGURIDADE SOCIAL E ORDEM SOCIAL NA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 19883
A CF em 1988 representou um documento de reação às diretrizes impostas pelos governos entre 1964 e 1984. O mote foi criar
uma Constituição onde os direitos individuais fossem respeitados e
criadas as condições necessárias para a consolidação de uma sociedade democrática. De acordo com o artigo 193 da CF, a ordem social
3. A presente seção foi elaborada com base os estudos de Matijascic (2002, 2015) e Matijascic e Kay (2013,
2014).
A EPOPEIA DA SEGURIDADE NA ORDEM SOCIAL
| 153 |
tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar
e a justiça sociais.
Essa norma representou o final de um movimento que consolidou pela via legal a universalização do atendimento, com destaque
para direitos de cidadania. Foi nesse momento que os direitos foram
equiparados, pois a Constituição buscou reduzir a desigualdade na
cobertura e no acesso a direitos, estendendo-os a todos.
Um aspecto essencial a destacar foi a introdução do conceito de seguridade social. Através dele, foi prevista a organização em
conjunto das políticas de previdência, saúde e assistência no que diz
respeito ao financiamento. A equidade na participação estaria contemplada por essas regras, ao fazerem incidir a carga de contribuições
sociais de forma mais direcionada sobre os empregadores, que se apropriam de uma parcela maior dos resultados do processo produtivo. O
novo conceito determinava a criação de um orçamento exclusivo para
a seguridade, distinto do fiscal, que devia ser composto por fontes
cativas, ou seja, contribuições sobre a folha salarial de empregados e
empregadores, faturamento e lucro líquido, e por recursos fiscais da
União, estados e municípios. Em caso de necessidade, foi prevista a
introdução de novas fontes de financiamento.
O custeio das políticas sociais brasileiras sempre foi um desafio para a lógica contributiva, pois alguns contribuem regularmente; outros, de forma intermitente; e muitos poucos, ou ninguém,
contribuem. Menos de 20% dos trabalhadores que se aposentam o
fazem após contribuir regularmente por 30 ou 35 anos. As formas
de financiamento existentes na atual Constituição Federal permitem
equilibrar as diferentes situações em relação à capacidade para contribuir. As fontes de recursos mesclam contribuições com fontes de
recursos que se assemelham a impostos, o que permite compatibilizar benefícios sem caráter contributivo com aqueles que seguem essa
lógica. A Constituição Federal criou o Orçamento da Seguridade
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Social (OSS), que deve estar desvinculado do orçamento fiscal.4 As
principais fontes de recursos são:
| contribuições dos empregados;
| contribuições dos empregadores sobre a folha salarial total;
| contribuições dos trabalhadores autônomos;
| contribuições especiais sobre a comercialização da produção
para regime de economia familiar (rural, pesca e mineração);
| Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social
(Cofins), com base no faturamento e a partir de 2004 sobre a receita
bruta das empresas;
| Programa de Integração Social (PIS) e Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), com incidência no
faturamento, na folha salarial ou nas receitas correntes, com vistas ao
pagamento do abono salarial ou custeio do seguro-desemprego5;
| Contribuições sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL); e
| loterias.
A acentuada desigualdade da cobertura da proteção social que
marca a trajetória desde os anos 1930 foi um dos aspectos mais criticados por parte das forças políticas que lutaram pela redemocratização
do Brasil após 1964, entre as opções de política empreendidas pela
modernização conservadora. A CF foi um marco para reverter muitos
dos dispositivos anteriormente previstos. Cabe destacar as seguintes
mudanças:
| mudança nos planos de benefícios a favor das mulheres e trabalhadores rurais, que poderiam se aposentar mais cedo e com planos
de benefício iguais aos dos assalariados urbanos do sexo masculino;
4. A revisão da Constituição Federal de 1994 criou o Fundo Social de Emergência, que permitiu a realocação
de 20% dos recursos da seguridade, de acordo com as prioridades do Poder Executivo federal. Esse mecanismo continua existindo nos dias de hoje, com o nome de Desvinculação de Receitas da União (DRU).
5. Além de servir de base de recursos para financiar as atividades do Banco Nacional do Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES).
A EPOPEIA DA SEGURIDADE NA ORDEM SOCIAL
| 155 |
| universalização do atendimento à saúde, reafirmando as mudanças em marcha desde o final dos anos 1970, com foco no atendimento integral, desvinculando os direitos da condição de contribuinte
da Previdência e reconhecendo que se tratava de um direito de todos
e de um dever do Estado;
| estabelecimento de benefícios de caráter assistencial, desvinculados da condição de contribuinte à Previdência, com valor
equivalente a um salário mínimo (os Benefícios de Prestação Continuada – BPC regulamentados após a Lei Orgânica da Assistência
Social – Loas, em 1995); e,
| fixação do piso de benefícios em um salário mínimo para
as modalidades de prestação continuada, que pode ser menor se as
pensões por morte forem partilhadas por mais de um dependente.
Os avanços mais significativos se deram na equiparação dos
direitos dos trabalhadores rurais aos urbanos, suprimindo as diferenças existentes nos planos de benefícios da previdência. Além disso, o trabalhador rural passava a ter direito a uma aposentadoria
por idade aos 60 anos e, no caso das mulheres, aos 55 anos. Os
trabalhadores urbanos precisariam trabalhar cinco anos a mais para
ter acesso ao benefício. A introdução do piso de um salário mínimo
também foi significativa, pois quase dobrava a renda dos segurados
rurais e dos que recebiam a Renda Mensal Vitalícia e aumentava os
ganhos dos aposentados e pensionistas urbanos que recebiam valores inferiores ao novo patamar mínimo fixado.
A seletividade e distributividade também foram aspectos de
destaque na Constituição de 1988 no sentido de dar maior proteção aos grupos de mais baixa renda. O melhor exemplo disso são os
valores mais elevados atribuídos ao abono família para dependentes
de trabalhadores com salários inferiores a três salários-de-contribuição (468,47 reais em dezembro de 2002). As novas regras determi-
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
naram que os homens passavam a ter direito à pensão por morte de
cônjuge. Em suma, a Constituição de 1988 foi detalhada no que diz
respeito a questões de gênero, igualando os direitos.
TRAJETÓRIA DA SEGURIDADE SOCIAL APÓS 19886
Após a promulgação da CF em 1988, ocorreram muitas mudanças importantes no âmbito das políticas públicas envolvidas na
seguridade social brasileira. Em 1990, o Ministério da Previdência e
Assistência Social foi extinto e a pasta da Previdência foi fundida à do
Trabalho. A assistência social passou a ser comandada pelo Ministério
da Ação Social. O Ministério da Saúde passou a gerir o INAMPS.
Nesse movimento, o SINPAS foi extinto. A LBA e a FUNABEM foram repassadas à órbita do Ministério da Ação Social. O INPS e o IAPAS foram fundidos no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Essa mudança foi muito significativa, pois a própria denominação de seguro e não de seguridade revela a estratégia do governo Collor para reverter os preceitos da CF. Em outras palavras, o processo
de centralização da previdência, atendimento médico-hospitalar e de
assistência social, que vinham ocorrendo desde 1966, foi revertido
com a separação dessas políticas na órbita ministerial, o que dificulta
muito a consolidação dos preceitos da seguridade social.
Em 1993, após o impeachment do presidente Collor e ainda no
governo Itamar Franco foram realizadas duas mudanças importantes.
A primeira delas foi a criação do Ministério da Previdência Social, que
foi dissociado da pasta do Trabalho. A segunda mudança foi a extinção do INAMPS.
Em 1995, já no governo Fernando Henrique Cardoso, foi
realizada uma nova mudança, com a criação do novo Ministério da
6. A presente seção foi elaborada com base nos estudos de Matijascic (2002, 2015).
A EPOPEIA DA SEGURIDADE NA ORDEM SOCIAL
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Previdência e Assistência Social, extinguindo a FUNABEM e a LBA,
além do Ministério da Ação Social.
No que diz respeito aos benefícios, as mudanças também foram
frequentes. Em 1990, foi aprovado o regimento do Regime Jurídico
Único (RJU), Lei 8.112, que passava a regular as relações de trabalho dos servidores federais, incluindo, assim, um elevado contingente
de antigos servidores regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT), que passaram a aposentar-se com vencimentos integrais, conforme ocorria com os demais servidores atendidos por um estatuto
próprio. Nesse sentido, as reformas de 1977 foram desfeitas pela CF7.
Em 1991, foi aprovado o novo Regulamento de Benefícios do
Regime Geral de Previdência Social (RGPS), Lei 8.213, incorporando as mudanças previstas pela CF e introduzindo algumas inovações
importantes, como:
| exigência de comprovação de um tempo mínimo de contribuição para ser elegível para aposentadorias por tempo de serviço ou
por idade; e,
| inserção do piso de um salário mínimo, sendo que os trabalhadores rurais e urbanos, mulheres e homens; não mais possuíam
planos de benefícios distintos.
Merecem destaque as regras referentes aos chamados segurados
especiais (rurais, garimpeiros ou em atividade de artesanato em regime
de economia familiar). Os segurados especiais, cujo maior contingente
se encontrava no universo rural, não precisariam se submeter às regras
referentes ao tempo de contribuição existentes para os trabalhadores
urbanos, bastando comprovar o exercício regular da ocupação, cuja
averbação ainda hoje se dá via sindicatos das respectivas categorias.
7. Em 1977, o Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado (IPASE) foi extinto e passou
a existir uma distinção entre as carreiras típicas de Estado, seguindo regras iguais ao RJU atual e as demais,
regidas pela CLT e integradas ao regime geral de previdência social.
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Em dezembro de 1995, com a entrada em vigor da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Lei 8.742/93, foram realizadas
outras mudanças relevantes, a saber:
| A Renda Mensal Vitalícia para trabalhadores idosos ou com
deficiência foi extinta, sendo substituída pelo Benefício de Prestação
Continuada (BPC), destinados a idosos ou deficientes físicos com
renda familiar per capita inferior a um quarto do salário mínimo;
| Foram extintos os auxílio-natalidade e funeral; e,
| A idade mínima para acesso ao BPC por idade foi reduzida de
70 para 67 anos em 1997 e para 65 anos em 2003.
No quesito financiamento, as mudanças foram muitas e relevantes. Em 1989, foi introduzida a Contribuição sobre o Lucro
Líquido (CSLL ), obedecendo aos novos preceitos da Constituição
de 1988, com uma alíquota fixada em 10%. Desde 1989, quando
não havia a obrigação legal de respeito aos preceitos da CF recém
promulgada, a utilização do OSS já revelava estar com falta de sintonia com aqueles preceitos, pois seus recursos não eram destinados
exclusivamente ao custeio da saúde, assistência e previdência social,
conforme apontou Azeredo (1991).
Em 1991, foi regulamentada a Lei de Custeio da Seguridade
Social (Lei 8.212). Essa nova lei também é conhecida como Lei Orgânica da Seguridade Social. Mas ela deve ser encarada como uma
lei de custeio, pois os benefícios e o atendimento foram regidos por
leis diferentes, conforme foi apontado acima.
Em agosto de 1991, o valor dos benefícios foi recomposto
pelo múltiplo de salários mínimos da época de sua concessão. A Lei
8.212 colocou em vigência as normas estabelecidas pela CF, mas
introduziu disposições controversas na arena de debates, pois não
cumpria a determinação constitucional de manter cativas essas fon-
A EPOPEIA DA SEGURIDADE NA ORDEM SOCIAL
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tes de recursos para a previdência, saúde e assistência, destinando
parte dos recursos ao RJU8.
A trajetória pós-Constituinte se desviou seriamente dos preceitos previstos pela CF, quando a saúde deixou de receber arrecadados sobre a folha de pagamentos, em 1993. Isso gerou sérios problemas financeiros, pois aqueles recursos eram transferidos com regularidade e pontualidade, sendo essenciais para efetuar os pagamentos
aos serviços contratados pelo SUS. Os recursos administrados pelo
Tesouro Nacional não chegavam de forma sistemática, pontual e regular, afetando seriamente a qualidade dos serviços, sobretudo num
contexto hiperinflacionário. Em 1993 para superar esse problema
foi criada a Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF), que integrou o OSS até ser extinta em 20079.
Em 1994, ao longo do processo de Revisão Constitucional
previsto pela CF para começar em 1993, foi criado o Fundo Social
de Emergência (FSE) que permitiu ao governo desvincular até 20%
de toda a arrecadação do OSS para promover o remanejamento de
recursos de acordo com as prioridades determinadas pelas autoridades responsáveis pela gestão financeira e orçamentária do governo.
Esse dispositivo ainda existe com o nome de Desvinculação de Receitas da União (DRU) e atualmente é permitida uma desvinculação
de 30%.
Em 1996, foi criado o SIMPLES, que passou a incidir sobre
o faturamento de pequenas e médias empresas com uma alíquota
de 5 a 10% do faturamento, dependendo do porte da empresa e da
adesão ou não de estados e municípios à nova sistemática, podendo
8. Segundo a lei 8.212/91, em 1992, os Encargos Previdenciários da União (EPU ) podiam ser financiados
em até 55% com recursos da seguridade; no ano seguinte, esse total seria de 40%, em 1993, 30% e em 1995
de 10%, percentual este que podia ser mantido daí em diante.
9. Essa medida permitiu elevar a arrecadação tributária de forma importante e a melhorar a fiscalização na
arrecadação de tributos. Mas a CPMF era impopular, sobretudo ao empresariado e foi extinta pelo Congresso
Nacional, à despeito da oposição do presidente Lula.
| 160
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substituir as contribuições do empregador sobre a folha salarial, a
COFINS e a CSLL10.
O período compreendido entre 1988 e 1998 foi marcado, em
suma, por ações contraditórias: por um lado, foram aprovados novos
regulamentos constitucionais que ampliaram os direitos e o valor dos
benefícios. Por outro lado, esses regulamentos não garantiram a efetivação da seguridade social e de suas regras de financiamento, que
impediram o equilíbrio financeiro do sistema ou a constituição de
fundos para serem utilizados no momento da transição demográfica.
Em dezembro de 1998 entrou em vigor a Emenda Constitucional (EC) 20, que promoveu uma importante reforma da previdência.
Os resultados representam um ponto de inflexão na trajetória do sistema, pois as mudanças que tornaram o acesso às aposentadorias mais
restrito, reduzindo, ainda, o valor a ser pago para alguns dos benefícios.
Foi no âmbito do plano dos benefícios, portanto, que ocorreram as mudanças mais importantes. Cabe enumerar as principais mudanças11:
| Substituição do tempo de serviço pelo tempo de contribuição;
| Os regimes de aposentadorias dos servidores públicos passaram a exigir uma idade mínima de aposentadoria, de 60 anos para os
homens e de 55 para as mulheres;
| Extinção das aposentadorias proporcionais; e,
| Concessão de aposentadorias especiais somente àqueles que
exercessem atividades insalubres e professores de ensino básico.
10. Essa iniciativa foi introduzida em 1996. O Super Simples ou Simples Nacional é uma Lei Complementar
que institui a partir de 01/07/2007 o Estatuto Nacional das Microempresas. No caso das microempresas, a
receita bruta anual não poderá ser superior a cerca de 360 mil reais. No caso das empresas de pequeno porte,
a receita bruta anual terá de ser superior a 360 mil reais e inferior a 3,6 milhões de reais. Na faixa dos empreendedores individuais, que faturam até 60 mil reais por ano, e que possuam até um empregado. O custo
máximo de formalização para quem realiza atividade mista é de 39,90 reais por mês. O empreendedor individual terá direito a todos os benefícios da previdência, excetuada a aposentadoria por tempo de contribuição, e
o valor dos benefícios será de um salário mínimo. Mesmo em atividades de trâmite burocrático, escrituração
contábil, licitações e para pendências jurídicas existe vantagens para quem integra o Simples Nacional.
11. No âmbito jurídico-institucional, as alterações foram poucas, embora tenham sido relevantes. Entre elas,
vale citar as seguintes: o fim do Conselho Nacional de Seguridade Social; fim da possibilidade de criar uma
previdência complementar pública e a possibilidade de constituir fundos para dar sustentação financeira à
previdência com a alienação de dívida ativa ou de empresas estatais.
A EPOPEIA DA SEGURIDADE NA ORDEM SOCIAL
| 161 |
Novas mudanças nos benefícios foram introduzidas pela legislação ordinária. Aqueles que solicitassem aposentadorias por tempo
de contribuição a partir da Lei 9.876 de 1999 passariam a sujeitar-se
ao fator previdenciário, cuja fórmula combina idade e tempo de contribuição para fixar o valor do benefício, rebaixando todos os valores para aqueles que possuíssem menos de 60 anos de idade e 35 de
contribuição e aumentando para os que apresentassem indicadores
superiores a esses.
A Constituição de 1988 deu início a um processo de reformas
intenso na legislação. Existem duas características a destacar: busca de
elevação da arrecadação para enfrentar os problemas fiscais e elevação
da proteção às famílias muito pobres. O reforço das fontes de financiamento da seguridade social se deu via elevação de alíquotas e com
a criação de novas fontes. Parte das mudanças foi apresentada até aqui
e o quadro 1 apresenta as principais mudanças para a previdência e a
assistencial social após 2000.
Quadro 1 – Evolução das principais mudanças da legislação da previdência e
assistência desde 2000
Ano
2003
2003
2005
2007
2007
2011
2013
2013
2015
2015
2015
2016
Caracterização sumária da Legislação
Aprovação da EC - 41 com ampla reforma focalizada nos RPP
O Estatuto do Idoso reduz de 67 para 65 anos a concessão de benefícios da LOAS
Transfere a receita previdenciária para a Receita Federal (Ministério da Fazenda)
SUPER SIMPLES: regras previdenciárias para microempreendedor individual- MEI
Extinção da CPMF
Estabelece contribuinte facultativa para donas de casa com regras similares aos MEI
Cria FUNPRESP, fundo de pensão de servidores da União, conforme o previsto na EC 41
Estabelece condições mais brandas de elegibilidade para pessoas com deficiência
Novas regras de acesso a pensões por morte
Estabelece fórmulas 95/85 para Aposentadorias por Tempo de Contribuição (ATC)
Garante o direito ao FGTS para os empregados domésticos
Transfere o INSS ao MDS e atribuições de previdência para o Ministério da Fazenda
Fonte: Anuário Estatístico da Previdência Social - AEPS.
| 162
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
A EC 41 de 2003, mencionada no quadro, merece atenção
em função de seus efeitos, que foram menores que a EC 20 de 1998
apresentada acima, mas merece destaque para na esfera dos servidores
públicos:
| Servidores públicos precisam completar 20 anos no serviço
público e dez na função e um total de 35 anos de contribuição para se
tornarem elegíveis à aposentadoria ordinária;
| O cálculo passou a considerar a média de todas as contribuições desde julho de 1994 (Plano Real);
| As pensões por morte teriam uma taxa de reposição de 70%
dos valores das aposentadorias ou salários acima do teto do INSS; e,
| Novos contratos com ganhos acima do teto do INSS passariam a ser direcionados a um fundo de pensão com planos de contribuição definida e gestão pública12.
Na área da saúde, outras características essenciais foram alteradas após a Constituição de 1988. A principal delas foi o fim da
separação no atendimento para contribuintes para a previdência e o
restante da população. Nesse sentido, foi criado o Sistema Único de
Saúde (SUS) que congrega todo o sistema público e privado com a
unificação da regulamentação e dos princípios de procedimentos e
o estabelecimento de convênios e remuneração por procedimentos,
seguindo a lógica dos pactos tripartite e bipartite entre esferas de governo. A Lei Orgânica da Saúde, Lei 8.080 de 1990 é que estabelece as
diretrizes do SUS, obedecendo as determinações da CF no sentido de:
| Promover a descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
| Garantir o atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; e,
12. A Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal (FUNPRESP). Os servidores
que ingressaram na carreira após o início de seu funcionamento em 2013 passaram a transferir recursos para
essa entidade e os antigos servidores podem optar ou não por aderir a essa nova modalidade.
A EPOPEIA DA SEGURIDADE NA ORDEM SOCIAL
| 163 |
| Estabelecer a participação da comunidade na escolha das
prioridades e diretrizes do SUS.
Cabe destacar que a consolidação do SUS, já em 1991, teve
como efeito uma mudança de postura via medidas preventivas, começando a substituir, em parte, o enfoque curativo. As posturas preventivas melhoram as condições de saúde e costuma reduzir os significativamente gastos potenciais. Daí a criação, em 1996, do Programa
de Saúde da Família (PSF) que busca atender, com base em equipes
multiprofissionais, um conjunto de famílias, promovendo ações sanitárias, reforço à alimentação e outros cuidados. As demais iniciativas
relevantes do sistema de saúde após a promulgação da Constituição
Federal em 1988 foram as seguintes:
| Programa de agentes comunitários de saúde em 1991, a fase
preliminar ao PSF;
| Programa de medicamentos genéricos em 1999;
| Emenda Constitucional 29 de 2001, estabelecendo as parcelas dos entes federados para o financiamento da saúde;
| Programa Farmácia Popular, para distribuição gratuita de determinados medicamentos em 2004; e,
| Programa Mais-Médicos de 2013, visando a contratação de
médicos estrangeiros ou graduados no exterior para atender áreas com
carências de profissionais.
Na esfera da assistência social, a criação de programas do tipo
renda mínima, que se transformaram no Programa Bolsa Família
(PBF) foi outra mudança importante. Esses programas foram introduzidos nas esferas municipais em 1995 e depois de 2001 passaram
a ter uma presença federal destacada. A mudança institucional mais
relevante se deu pelo fato de haver uma relação direta entre o governo federal e as municipalidades, sem a intermediação da esfera esta-
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
dual. A sistemática federal inicial foi implantada no final do governo
Fernando Henrique Cardoso e foi modernizada e muito ampliada
posteriormente pelo presidente Lula após 2004. No governo Dilma
Rousseff, o PBF atingiu 13,6 milhões de famílias, ou seja, 26,5% do
total delas no Brasil.
Ao assumir a liderança dos programas do tipo conditional cash
transfer via PBF na órbita do governo federal, houve um progresso no
atendimento às famílias mais pobres em relação à etapa que o programa apresentava um perfil centrado nos municípios, pois toda a população pôde se beneficiar. Antes disso, somente as municipalidades com
mais recursos e state capacities poderiam oferecer programas similares
ao PBF. Um marco do PBF é a exigência de frequência escolar assídua
dos filhos e o acompanhamento regular das condições de saúde. Essa
é, aliás, uma das marcas da experiência brasileira no contexto internacional e que serve de guia para os países vizinhos ou da África.
A primeira reforma a destacar nos últimos anos foi a do teto
do gasto público, aprovada pouco após a posse de Michel Temer na
chefia do Poder Executivo federal. A Emenda Constitucional 95 de
dezembro de 2016 representou um movimento de grande envergadura, cabendo sublinhar as seguintes questões:
| O teto de gastos corresponderá ao limite do ano anterior corrigido pela inflação;
| Se a legislação for desrespeitada, haverá sanções no ano seguinte, como a proibição de realizar concursos ou de concessão reajustes;
| Os efeitos para saúde e educação somente valerem a partir de
2018;
| Ficam de fora das novas regras as transferências constitucionais a estados e municípios, as complementações do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), gastos com
eleições, e as despesas de capitalização de estatais não dependentes;
A EPOPEIA DA SEGURIDADE NA ORDEM SOCIAL
| 165 |
| A partir do décimo ano de vigência do limite de gastos, o
presidente da República poderá apresentar um projeto de lei ao Congresso para mudar a base de cálculo.
Além disso, é preciso destacar o esforço para promover uma
nova reforma da previdência. Como medidas preliminares o Ministério da Previdência Social foi extinto e suas atribuições passaram a ser
controladas pelo Ministério da Fazenda. O INSS foi transferido para a
órbita do MDS. Essa opção para gerir as políticas públicas representa
um novo marco de enfraquecimento da seguridade social.
A reforma da previdência foi apresentada no formato da PEC
287 de 2016 e previa:
| Fixação de idade mínima de 65 anos;
| Tempo mínimo de contribuição de 25 anos e de 49 para obter uma taxa de reposição de 100% dos salários;
| Eliminação das diferenças de idade entre homens e mulheres
e trabalhadores rurais para a elegibilidade às aposentadorias;
| Elevação para 68 anos de idade das aposentadorias dos BPC
pagos a idosos; e,
| Vedação da acumulação de aposentadorias e pensões.
Diante das dificuldades políticas para a tramitação da reforma,
mesmo com as negociações para reduzir os limites impostos pela reforma inicial, os problemas envolvidos no processo político parecem
ter paralisado as reformas. Finalmente, a intervenção no Rio de Janeiro no início de 2018 suspendeu todas as atividades envolvendo a
tramitação de reformas constitucionais. De toda a maneira, é possível
que os resultados obtidos até o momento possam descrever os preceitos básicos de futuras reformas após as eleições de outubro de 2018.
A redemocratização deu impulso a uma vigorosa reestruturação do sistema brasileiro de proteção social preconizado pela Consti-
| 166
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
tuição Federal de 1988. A política social passou a ser influenciada pela
universalização do atendimento com foco nos mais necessitados. As
esferas subnacionais passaram a ter uma participação maior, o que foi
decisivo para atingir a população de forma mais efetiva. No entanto,
a seguridade não passou a fazer parte do nosso dia a dia em termos
de debates, presença e coordenação de políticas públicas. Além disso,
a severa crise econômica e fiscal num ambiente marcado pela falta de
simbiose entre o econômico e o social podem criar problemas num
horizonte de tempo bem próximo, ou seja, nos próximos meses.
QUESTÃO FISCAL E SEGURIDADE SOCIAL13
O debate brasileiro envolvendo as políticas sociais, com destaque para a arena da previdência social vem opondo de forma radical
dois grupos distintos e com visões antagônicas, desde os anos 1990.
O primeiro grupo, com presença dominante na mídia é muito crítico
em relação ao legado da CF e propõe duras reformas, conforme é possível apreender a seguir:
| Adoção de planos de benefício mais rigorosos, com a instauração da idade mínima e a sua equiparação entre homens e mulheres,
trabalhadores urbanos e rurais, e entre o setor privado e o serviço público;
| Apoio à adoção de vouchers ou transferência de recursos | públicos para que organizações sociais cuidem da gestão e da prestação
de serviços sociais ao público, com destaque para a educação e, em
menor escala, para a saúde ou serviços assistenciais para públicos específicos; e,
| Aumento da participação do setor privado com o reforço dos
fundos de pensão, planos de saúde e outras iniciativas associadas à
assistência, em menor medida.
13. A presente seção sintetiza e atualiza o que foi originalmente publicado em Matijascic e Kay (2014, 2017).
A EPOPEIA DA SEGURIDADE NA ORDEM SOCIAL
| 167 |
Desde os anos 1990 existe uma forte resistência por parte dos que
criticam a CF, pois ela aliviou os critérios de elegibilidade às aposentadorias para trabalhadores rurais e mulheres, além de criar benefícios assistenciais sem vínculos contributivos para idosos e pessoas com deficiência
para integrantes de famílias com baixa renda per capita. Existe também
uma crítica aguda ao atendimento universal preconizado para o SUS.
No momento atual a crítica mais acentuada destaca que o nível de gastos é muito elevado, implicando déficits crescentes das finanças públicas. A argumentação dessa comunidade epistêmica revela que
essa situação é insustentável, gerando uma explosão da dívida pública,
podendo inviabilizar a sua solvência. Para piorar, esse cenário induz à
redução dos gastos com investimentos públicos, reduzindo a possibilidade de retomada do crescimento em bases mais sólidas. Daí a necessidade de promover reformas nas políticas sociais, que representam
mais de 71% do gasto público.
Entre os defensores das políticas públicas para a seguridade
engendradas pela CF existe uma visão antagônica em relação à comunidade epistêmica anterior. Para esse grupo o problema do déficit não
existe, pois, o OSS foi superavitário até 2014 e as dificuldades atuais
se devem ao baixo dinamismo da economia que se vê solapada por
uma forte perda de dinamismo e pela falta de iniciativas robustas para
promover a retomada da atividade econômica. Se a atividade fosse retomada, o OSS reencontraria o seu equilíbrio em meio à recuperação
da arrecadação tributária.
Além disso, existe uma defesa enfática do atual status quo, ao
postular a manutenção dos atuais planos de benefícios e de seus critérios de elegibilidade, pois existem excelente motivos, segundo o grupo
que defende a Ordem Social da CF, para defender a elegibilidade antecipada de mulheres e de trabalhadores rurais.
Por fim, existe muita resistência dos que defendem o atual status quo constitucional em relação a proposições que visam a participa-
| 168
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
ção do setor privado na esfera social. Esse grupo acredita que a inserção da lógica mercantil nas políticas sociais pode prejudicar os serviços
com o pagamento de benefícios menores ou com a prestação de serviços sociais de menor qualidade. A experiência chilena é evocada com
grande frequência em relação à previdência e a dos EUA é apresentada
de forma bastante crítica ao evocar a experiência em termos de saúde.
Esse debate nunca foi superado. É preciso entender um pouco melhor
esse problema para dar encaminhamentos mais adequados a um debate
essencial para o Brasil. A tabela 1 apresenta de forma explícita essas
diferentes concepções.
Tabela 1 - Superávit da seguridade social e déficit da previdência no Brasil em % sobre o PIB
Resultados
Resultado do OSS
Déficit do INSS
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
2,6 2,1 1,0 1,4 1,7 1,8 1,5
1,7 1,2 1,3 1,1 0,8 0,9 1,0
2014
1,0
1,0
2015
0,2
1,5
2016 2017
-0,9 n.d.
2,4 2,8
Fontes: SPS (2018) e ANFIP e DIEESE (2017).
Entre os defensores das reformas da previdência e da assistência previstas pela PEC 287/16 existe uma análise que considera exclusivamente o fluxo de caixa do INSS, considerando que a previdência
deve ser custeada apenas por contribuições sobre a folha salarial. A
metodologia que resultou nos indicadores da tabela 1 deduziu da arrecadação os recursos destinados ao Sistema S, que congrega as ações
educacionais e culturais das federações e confederações de empregadores no país (como o SENAC, do comércio e o SENAI, da indústria
para citar os mais conhecidos), além do salário-educação. Entre as
despesas foram deduzidas o BPC/LOAS, que representam despesas
assistenciais e os gastos administrativos e de investimento. Esses resultados apontaram importantes déficits, que se elevaram nos últimos
anos em decorrência da forte crise que atinge o Brasil. Entre os críticos da proposta de reforma e defensores do modelo atual previsto
A EPOPEIA DA SEGURIDADE NA ORDEM SOCIAL
| 169 |
pela CF deve prevalecer a lógica que considera a soma da arrecadação
de pelo menos quatro contribuições sociais destinadas à seguridade
social deduzida das despesas com saúde, assistência e previdência social. Isso se traduz em resultados superavitários até 2014, cujos valores
decresceram em função de benefícios fiscais concedidos após 2009 e,
muito especialmente, com o advento da forte crise econômica e fiscal
iniciada em 2014.
O debate está impregnado de falsos problemas, conduzindo a
uma trilha que pouco ajuda na retomada do desenvolvimento. Os críticos da PEC 287/16 têm razão ao defender o OSS. Isso está expresso
nos artigos 194 e 195 da CF-88, sendo necessário adotar essa postura
porque os trabalhadores brasileiros possuem ciclos de vida laborais
variados, que podem ser subdivididos em três grupos distintos: os que
contribuem regularmente, os que o fazem de forma intermitente ao
longo de sua carreira e os que pouco ou nada contribuem. Essa situação sempre existiu e não há meio de exigir que os trabalhadores contribuintes, representando cerca de um terço da População em Idade
Ativa (PIA), possam arcar com as despesas de todos os inativos no
Brasil. Se a postura de quem defende a existência de um déficit do
INSS prevalecer, isso implicaria eliminar a cobertura de populações
fragilizadas como as rurais em regime de economia familiar e outras
que contribuíram intermitentemente nas áreas urbanas, onde as mulheres possuem uma forte presença. Vale destacar que esse fenômeno se repete com diferente intensidade em todos os demais países da
América Latina.
Numa primeira aproximação, soa contraditório que uma
Constituinte dominada por grupos conservadores mantivesse o OSS,
inspirado no ideário ideológico de esquerda. Mas isso se explica pelo
fato da CF em 1988 ter destinado aos entes federados uma parte relevante dos impostos existentes no Orçamento Fiscal. Diante da crise econômica e das dificuldades persistentes no equilíbrio das contas
| 170
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
públicas, a utilização do OSS foi uma alternativa para elevar a carga
tributária, pois esses recursos não precisam ser partilhados com estados e municípios, além do aumento de alíquotas ou a criação de
novas contribuições poder ser implementada em 90 dias, não estando
sujeitas ao princípio da anualidade, como no caso dos impostos. Foi
exatamente esse o caso da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF), existente entre 1993 e 2007. A sociedade
pouco reage diante do fato do OSS ser ignorado, excetuadas algumas
lideranças de centrais sindicais.
É difícil deixar de salientar que existem problemas não resolvidos, provocando muita instabilidade. Sob o prisma da arrecadação, a
isenção do pagamento de contribuições sociais por parte de empresas
requer questionamento. Contribuição social é algo a ser pago, tendo
por contrapartida um benefício da mesma proporção que o esforço
contributivo. Nesse sentido, a isenção de contribuições patronais é
um erro sério, pois os subsídios fiscais devem ser realizados no terreno
de impostos e não nos de contribuições, pois isso eleva injustificadamente o custo dos demais contribuintes. As isenções do pagamento
de COFINS adotadas desde o final da década passada não podem
ser consideradas sob o mesmo prisma, pois não se trata de contribuições strictu sensu. Cabe sublinhar que essa análise considera apenas o
prisma da teoria das finanças públicas, não exercendo juízos de valor
sobre as circunstâncias políticas. O manejo jurídico que denomina
como contribuição algo que não é, gera confusão e desvia o olhar para
a necessidade de utilização de impostos para financiar a montagem de
um sistema de proteção social moderno.
Por outro lado, a existência de superávit no OSS não implica na
inexistência de problemas a serem enfrentados. Os gastos são elevados
devido a critérios pouco defensáveis na configuração de um plano de
benefícios que permite receber aposentadorias e continuar trabalhando,
somando tudo isso com prestações de pensões por morte. Países de-
A EPOPEIA DA SEGURIDADE NA ORDEM SOCIAL
| 171 |
senvolvidos ou socialistas, conforme demonstrou Gordon (1988), não
adotam esse tipo de procedimento. Os sistemas de previdência respondem às necessidades específicas dos mercados de trabalho, conforme
apontou Esping-Andersen (1990). Muitos países concedem aposentadorias mais cedo ou liberam sua antecipação temporariamente, em
tempos de crise, como forma de reduzir os impactos de elevados níveis
de desemprego e das nocivas consequências que isso gera para a coesão
social. A PEC 287/16 tentou eliminar o injustificável acúmulo de aposentadorias e pensões por morte, embora não preveja a existência de
aposentadorias proporcionais, que podem facilitar a passagem para a
condição de beneficiário mais cedo, sobretudo em caso de incapacidade
de obtenção de emprego em idades mais avançadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de consolidação da CF apresentou resultados importantes no âmago das políticas que compõem a seguridade social.
A cobertura e o atendimento da Seguridade foram ampliados, representando a virtual universalização das prestações de benefícios para
idosos e o número de atendimentos na saúde se elevou muito. A assistência social passou a atender contingentes muito expressivos de famílias através do BPC e já nos anos 2000, com o PBF. O aumento da
cobertura e do atendimento foi determinante para reduzir a pobreza
entre idosos e ajudou a diminuir as desigualdades até recentemente. O
estabelecimento do piso de um salário mínimo na CF, cujo poder de
compra se recuperou bastante nas últimas décadas, foi determinante
para atingir esses resultados.
As disposições da CF em 1988 tiveram uma relação algo dialética com a trajetória anterior das políticas sociais. A CF consolidou
a importância das políticas sociais nas ações de Estado, contrariando
as orientações preexistentes. A criação da seguridade social e os seus
| 172
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
poderosos efeitos sobre a cobertura e o atendimento são as maiores
provas disso. Mas alguns dispositivos mantiveram o econômico e o
social em situação de antagonismo. O OSS, paradoxalmente, é um
bom exemplo, pois a necessidade de criar um orçamento em separado
e determinar que impostos seja chamados de contribuições é deixar de
assumir que sistemas de proteção social precisam de impostos, pois são
esses os instrumentos adequados para redistribuir renda, especialmente no Brasil, onde o respeito aos direitos trabalhistas ainda é precário.
No entanto, a não adoção do OSS poderia significar a perpetuação da
ausência de recursos para financiar as políticas que integram a seguridade, reduzindo os níveis de qualidade de vida e a possibilidade de
atingir o bem-estar. Eis aí o antagonismo entre o econômico e o social.
Numa primeira aproximação, soa contraditório que uma Constituinte dominada por grupos conservadores estimulasse a criação do
OSS, inspirado no ideário ideológico de esquerda. Mas isso se explica
pelo fato da CF em 1988 ter destinado aos entes federados uma parcela relevante dos impostos existentes no Orçamento Fiscal. Diante da
crise econômica e das dificuldades persistentes no equilíbrio das contas
públicas, a utilização do OSS foi uma alternativa para elevar a carga
tributária, pois esses recursos não precisam ser partilhados com os entes
federados, além do aumento de alíquotas ou a criação de novas contribuições poder ser implementada em noventa dias, não estando sujeitas
ao princípio da anualidade, como no caso dos impostos.
A seguridade social nunca foi consolidada no âmbito da administração direta da União. Não existe uma conjugação de esforços
perenes de ministérios da área social para empreender ações conjuntas
e utilizar os recursos do OSS com vistas a melhorar o atendimento,
gestão ou cobertura das políticas abarcadas pela seguridade. Não é
possível afirmar que não existe nenhuma iniciativa, mas essa congregação de esforços e seus efeitos potencialmente simbióticos não são
percebidos pelos brasileiros.
A EPOPEIA DA SEGURIDADE NA ORDEM SOCIAL
| 173 |
Mesmo o debate sobre a situação financeira da previdência
social veiculado pela grande mídia praticamente ignora a existência
da seguridade e do OSS, apresentando o resultado de caixa do INSS
como deficitário e utiliza esse indicador como justificativa para empreender reformas. O fato de o mercado de trabalho brasileiro apresentar um quadro de precarização das relações de trabalho, pois uma
parcela imensa dos trabalhadores não consegue contribuir de forma
regular para a previdência é ignorado por muitos dos que defendem
reformas e se opõem as designis previstos pela CF em 1988. A sociedade pouco reage diante do fato do OSS ser ignorado no debate público,
excetuadas algumas lideranças sindicais e dos meios acadêmicos.
Por fim, a utilização do OSS para promover uma nova centralização tributária no âmbito da União foge ao espírito de descentralização da CF em 1988. Os atuais debates sobre reformas e a atribuição
quase exclusiva de culpa relativas às dificuldades das finanças públicas
aos gastos sociais como a principal razão da crise fiscal e do baixo
crescimento provam que a precariedade do social subsiste com vigor.
Isso repõe os debates nos mesmos moldes dos anos que precederam a
CF, o que preocupa muito, porque os resultados econômicos e sociais
daquela época foram desastrosos para o Brasil. A seguridade social
deveria ser valorizada como a instituição que pode consolidar a coesão
entre os brasileiros, coesão essa que é essencial para promover o desenvolvimento em bases sustentáveis.
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| 177 |
CAPÍTULO 7
CUIDADO INFANTIL
E TRABALHO NA
PERSPECTIVA FEMINISTA
MARIANA MAZZINI MARCONDES1
RENATA MORENO2
Quando a imagem da elaboração da Constituição Federal de
1988 (CF-1988) é invocada, projeta-se nela um país sorridente que,
apesar das feridas abertas, esforça-se para escrever um capítulo novo
de sua história, contrastando com os horrores de seu então passado recente. É essa a mensagem da foto oficial de outubro de 1988, em que
594 parlamentares da Assembleia Nacional Constituinte (26 deputadas mulheres e nenhuma senadora) comemoram o novo pacto social.
Mas, se se lançarmos nosso olhar para além da foto oficial,
podemos ver muito mais; aparece uma multiplicidade de atrizes sociais3 em ação. Isso porque a elaboração da CF-1988 ocorreu durante
1, Mariana Mazzini Marcondes é feminista, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental
(EPPGG) do Ministério do Planejamento (licenciada) e doutoranda em Administração Pública e Governo
na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Graduou-se em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e é
mestra em Política Social pela Universidade de Brasília (UnB).
2. Renata Moreno é Socióloga, militante da Marcha Mundial das Mulheres e integrante da equipe da SOF
Sempreviva Organização Feminista. Mestra em Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC
(UFABC), e doutoranda em Sociologia na Universidade de São Paulo (USP).
3. Ao longo deste trabalho, adotamos a concordância de gênero no feminino plural para se referir a ambos os
gêneros. Dessa forma, pretendemos provocar as leitoras sobre o uso do masculino plural como regra geral, e
lembrá-las que a linguagem também é uma forma de poder e de dominação
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
a redemocratização, quando surgiram e ressurgiram partidos, sindicatos e movimentos sociais e, entre eles, o feminismo (SOUZA-LOBO,
1991). A atuação dessas atrizes foi central. Elas incidiram sobre os processos da constituinte de inúmeras formas; auto-organizadas e desde
partidos, sindicatos e movimentos sociais. E apresentaram uma agenda
ampla de luta contra a desigualdade, que abrangeu a seguridade social
para trabalhadoras domésticas e rurais, livre orientação sexual, legalização do aborto e direito a creches, entre outros (Godinho, 1998).
Essas mulheres organizadas contribuíram decisivamente para
impulsionar um projeto de país comprometido com o desenvolvimento social e econômico, em que direitos sociais e universais fossem
garantidos, com participação e descentralização político-administrativa. E, em alguma medida, esse projeto de país integrou o texto constitucional (Dagnino, 2004).
As forças conservadoras não permitiram que a CF-1988 fosse
plenamente emancipatória, mas os avanços alcançados são inegáveis.
Emblemático que, na época de sua aprovação, setores do movimento
social, como a CUT, reconheceram as conquistas, mas denunciaram
retrocessos, a exemplo da abordagem da reforma agrária e das marcas
persistentes do autoritarismo (vide resoluções do 3º Congresso Nacional da CUT, de setembro de 1988).
Trinta anos passados, esse episódio não ficou guardado nos
anais da história, intocável. Ao contrário, inúmeras disputas seguiram sendo travadas em torno da CF-1988. Por um lado, ela se tornou repertório para a luta de campos políticos pela reivindicação do
cumprimento da promessa de uma sociedade livre, justa e solidária.
Por outro, ela sofreu sucessivos ataques, à medida em que a ideologia
neoliberal se instalou nos governos e na sociedade, resultando em uma
nova forma de organizar o Estado.
No projeto político neoliberal, nos anos 1990, a ação estatal
foi reduzida. Não só o mercado assumiu o protagonismo no desenvol-
CUIDADO INFANTIL E TRABALHO NA PERSPECTIVA FEMINISTA
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vimento econômico e social, mas sua lógica impôs-se às mais diversas
dimensões da vida (Dagnino, 2004; Faria, 2005). A CF-1988 tornou-se, assim, uma incômoda lembrança, sendo necessário não só mudar
os rumos de sua efetivação, mas também seu texto. As contradições
entre os projetos políticos de 1988 e o neoliberal resultou em uma
confluência perversa (Dagnino, 2004).
A partir de 2003, um novo episódio da história brasileira foi
iniciado, com a eleição da coalizão liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Nele, os ideais de 1988 foram retomados, trazendo o Estado novamente para a frente da cena, enquanto garantidor de direitos
e promotor do desenvolvimento, por meio de políticas públicas. Em
2016, contudo, um golpe destituiu a presidenta democraticamente
eleita, impondo retrocessos acelerados aos direitos e às políticas duramente conquistados.
Muitas são as formas de olhar para essa trajetória e, ainda, do
que olhar nela. Neste artigo, propomos fazê-lo a partir das lentes de
uma perspectiva feminista específica; a da divisão sexual do trabalho
(Hirata; Zarafian, 2003; Hirata e Kergoat, 2007; Kergoat, 2009) e da
imbricação das relações sociais de gênero, raça e classe (Hill Collins,
2015; Kergoat, 2016)4. E, a partir dela, refletimos criticamente sobre
os obstáculos e avanços que as políticas organizadas a partir de direitos
inscritos da Constituição implicam para a organização social e política
do cuidado (Faur, 2014). Nosso foco volta-se para a inscrição do direito ao cuidado infantil nessa trajetória de 30 anos, abordando-o como
um direito de quem cuida e de quem é cuidado (Pautassi, 2010). Para
isso, enfocamos especificamente as crianças de zero a três anos5. Esse
recorte se justifica tanto pela importância que ele teve nos debates da
4. Assumimos imbricação, interseccionalidade e consubstancialidade como sinônimos, dando preferência ao
primeiro ao longo do texto.
5. Originalmente, a pré-escola iria até os seis anos de idade. Com a EC 53/2006, ela passou a ir até os cinco
anos. Já a EC 59/2009 previu a educação básica como obrigatória a partir de quatro anos, a ser progressivamente implementada até 2016. A creche, que integra a educação básica, abrange crianças de zero a três anos.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
constituinte (Rosemberg, 1984; Souza-Lobo, 1991; Tatagiba, 2011;
Cruz, 2017), quanto pela relevância que ele segue tendo para as reivindicações feministas em relação ao trabalho. Nossa forma de olhar é
uma análise qualitativa e documental, principalmente de marcos normativos. Nela, priorizamos três políticas que, direta ou indiretamente,
materializam o direito ao cuidado infantil; creches; licenças maternidade e paternidade; e proteção social às trabalhadoras domésticas. A
primeira responsabiliza o Estado pela provisão de cuidados; a segunda, garante remuneração e tempo para o cuidado familiar; e a terceira
reconhece e valoriza o trabalho de quem cuida de forma remunerada.
Argumentamos que a intervenção do Estado brasileiro em relação à organização social e política do cuidado foi marcada por contradições, especialmente no âmbito da divisão sexual do trabalho e na
imbricação das relações sociais de gênero, classe e raça que estruturam
essa organização (Hirata; Kergoat, 2007; Faur, 2014). Disso resulta
que os avanços ocorridos foram restritos, e, portanto, a efetivação desses direitos foi limitada. E ainda é.
Esse artigo está organizado em cinco seções, incluindo essa
introdução. Na segunda delas, apresentamos o referencial teórico. A
análise do percurso do direito de cuidado infantil nos 30 anos da CF1988 consta na terceira seção. Na quarta, analisamos essa trajetória na
perspectiva feminista adotada e, nas considerações finais, apresentamos uma síntese da discussão, assinalando algumas de suas limitações.
A CENTRALIDADE DO TRABALHO E DO CUIDADO
PARA UMA PERSPECTIVA FEMINISTA
O feminismo pode ser compreendido como a forma que as
mulheres articulam um conjunto coerente de reivindicações por transformações em suas vidas, assim como de estratégias para alcançá-las,
incluindo tanto a elaboração teórica como a prática política (Miguel,
CUIDADO INFANTIL E TRABALHO NA PERSPECTIVA FEMINISTA
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2002). Conjuga, assim, auto-organização das mulheres, em coletivos,
além de organizações e movimentos sociais que, em maior ou menor
medida questionam, pressionam e interferem nas orientações de políticas públicas para a igualdade. Ele também abarca as práticas cotidianas de transformação e subversão das relações patriarcais e, ainda,
a produção teórica que subsidia a reflexão sobre essas práticas, e é
subsidiada por elas.
Alguns episódios históricos são especialmente frutíferos para a
construção teórica e política do feminismo. Foi o caso da luta por creches, que antecedeu o processo da CF-1988. O Manifesto do Movimento de Luta por Creches brasileiro (MLC), de 1979 é emblemático:
Somos trabalhadoras um pouco diferentes das outras (…) somos diferentes, em primeiro lugar, porque não nos reconhecem como trabalhadoras quando trabalhamos em casa 24 horas por dia para criar
condições para todos descansarem e trabalharem (…) Somos diferentes porque, quando trabalhamos também fora, acumulamos os dois
serviços – em casa e na fábrica. E sempre nos pagam menos. (MLC,
1979 apud Alvarez, 1990, p. 207)
Nele, é possível observar que a luta por creches se associa a uma
forma de compreender o trabalho das mulheres e das relações sociais
que estruturam a opressão de gênero. A ampliação do que se considera
trabalho tem um sentido profundamente político, à medida em que
se amplia, também, o reconhecimento dos sujeitos que o realizam.
Essa construção política de perspectivas feministas para o trabalho tornou-se fundamental para o feminismo no Brasil e em outros países do mundo. Nas palavras de Elizabeth Souza-Lobo (2011,
p.163) era preciso “instituir novas categorias que deem conta das relações [até então] invisíveis entre sexo e trabalho”. A análise das desigualdades de gênero em termos de relações sociais e a conceituação
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da divisão sexual do trabalho como o que está em jogo nessas relações
(Hirata e Kergoat, 2007) foram fundamentais para a construção da
perspectiva que adotamos nesse trabalho.
A divisão sexual do trabalho se define pelos princípios da separação – entre os ditos trabalhos femininos e masculinos – e da hierarquização – que atribui maior valor ao último (Kergoat, 2009). Por
meio dela, constroem-se e reconstroem-se as práticas sociais e mecanismos de subordinação das mulheres (Souza-Lobo, 2011). E, ainda,
confere-se materialidade a relações sociais de gênero, que são relações
de poder e de dominação, antagônicas e hierárquicas, e que atravessam todo o tecido social (Kergoat, 2009). Suas modalidades variam
no tempo e no espaço, mas sua dinâmica de poder permanece insuperável (Hirata e Kergoat, 2007).
Duas contribuições fundamentais, relacionadas entre si, são
aportadas por essa perspectiva; a ampliação do conceito de trabalho
e a articulação entre trabalho assalariado e trabalho doméstico não
remunerado.
O conceito de trabalho, marcado por um viés androcêntrico,
referenciava-se na experiência do trabalho assalariado, e, por isso, foi
alvo da crítica feminista à redução do trabalho ao emprego remunerado e produtor de mercadorias (Picchio, 2001). A perspectiva da
divisão sexual do trabalho, muito além de acrescentar o trabalho não
remunerado nessas análises já existentes, redefine e amplia o próprio
conceito de trabalho, considerando o conjunto do trabalho necessário
para a produção do viver (Hirata e Zarifian, 2003).
O trabalho doméstico e de cuidado envolve tarefas como o
cuidado com as pessoas, alimentação e limpeza. A construção social
da responsabilidade e da disponibilidade das mulheres para esse trabalho fundamentam a identidade e socialização femininas (Fougeyrollas-Schwebel, 2009). Da mesma forma, a articulação entre trabalho
doméstico e de cuidado não remunerado e trabalho assalariado marca
CUIDADO INFANTIL E TRABALHO NA PERSPECTIVA FEMINISTA
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a vida laboral das mulheres. Elas transitam, constantemente, de um
ao outro, o “que lhes exige interiorizar tensões, tomar decisões e fazer escolhas às quais os homens não estão obrigados”, como observa
Carrasco (2003, p. 27). Enquanto o mercado de trabalho se organiza
a partir de uma concepção de trabalhador referenciada na experiência
dos homens, a perspectiva feminista pontua a exigência de articular as
dimensões do trabalho profissional e doméstico, indissociáveis para as
análises dessa realidade (Hirata; Kergoat, 2009).
No Brasil, as mulheres negras e da classe trabalhadora têm
uma trajetória antiga de trabalho extrafamiliar. Mas a massificação
do trabalho remunerado de mulheres dos setores médios ocorreu nos
anos 1980, tendo sido marcada por um processo de bipolarização do
emprego feminino, em que se constituíram dois polos simultaneamente complementares e opostos (Bruschini; Lombardi, 2000). De
um lado, uma grande parte das mulheres inserida no mercado de
trabalho em ocupações precárias, com baixa remuneração, sem proteção social. De outro, um grupo – minoritário – constituído por
mulheres profissionais de nível superior, em ocupações com maior
prestígio social.
O trabalho doméstico remunerado – realizado majoritariamente por mulheres negras e empobrecidas - “é o elo que une os dois
polos”, como afirmam Bruschini e Lombardi (2000, p.101). A perspectiva da imbricação das relações sociais de gênero, raça e classe é
extremamente relevante para a discussão sobre as dinâmicas da divisão sexual do trabalho e as configurações do trabalho doméstico e de
cuidado, marcadas pelo paradigma da delegação, no qual se contrata
uma pessoa de fora da família (Hirata e Kergoat, 2007). No Brasil, a
principal forma de delegação envolve o trabalho doméstico remunerado, atividade laboral que tem gênero, classe e raça, visto que a sua
composição é majoritariamente feminina, negra e empobrecida.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Por meio da delegação, viabiliza-se que necessidades básicas
atendidas no âmbito doméstico sigam sendo organizadas nesse âmbito, mantendo a sustentabilidade da vida humana como um assunto
privado, e não como uma questão social e política (Tronto, 2009).
Além disso, ao seguir mobilizando uma rede de mulheres, essa estratégia permite que os homens continuem não se responsabilizando por
esse trabalho, ainda que suas necessidades sejam atendidas por ele. O
custo desse arranjo recai desproporcionalmente sobre as trabalhadoras
domésticas, a quem resta a estratégia do “se virar”, já que, em regra,
elas não possuem as condições para delegar (Hirata, 2008).
Com antecedentes nos debates feministas sobre o trabalho doméstico, os estudos sobre o cuidado se expandiram significativamente,
desde os anos 2000. Neles, o cuidado é considerado em suas dimensões: materiais, relacionadas com o trabalho para atender necessidades
cotidianas; econômicas, vinculadas aos custos do cuidado para as pessoas responsabilizadas por ele; e subjetivas, relativas à construção do
afeto e das emoções (Batthyány, 2015). O cuidado também envolve as
tarefas domésticas, indispensáveis para sua efetivação.
A abordagem em termos de trabalho doméstico e de cuidado
contribui para visibilizar o conjunto dos sujeitos envolvidos em sua
realização. A sustentabilidade da sociedade como um todo fundamenta-se nesses trabalhos, e, por conseguinte, todas as pessoas dependem
deles ao longo da vida. Motivos relacionados à idade ou saúde, contudo, podem incrementar essa dependência, o que justifica porque são
sobretudo esses sujeitos que são atendidos por políticas públicas. O
exemplo mais emblemático é o cuidado infantil.
A organização social e política estruturada para atender essas
necessidades por cuidado não é democrática, por deixar de considerar
a interdependência entre quem cuida e quem é cuidado, e, ainda, as
relações de poder e dominação que são basilares às práticas sociais
de cuidado (Tronto, 2009). Essa organização é uma configuração di-
CUIDADO INFANTIL E TRABALHO NA PERSPECTIVA FEMINISTA
| 185 |
nâmica, decorrente do entrecruzamento da provisão por instituições
provedoras e daquelas que regulam a oferta de cuidado (Faur, 2014).
Essas instituições são, basicamente, família, Estado, mercado e comunidade, entre as quais o cuidado é distribuído desigualmente, conforme as relações de gênero, classe e raça (Sorj, 2018).
A garantia de direitos e políticas públicas que contribuam para
transformar a organização social e política dos cuidados é um aspecto
central para um projeto político que enfatize a superação da divisão
sexual do trabalho e das desigualdades engendradas pela imbricação
das relações sociais de gênero, classe e raça. Nesse sentido, é fundamental compreender o cuidado como um direito de quem cuida e de
quem é cuidado (Tronto, 2009; Pautassi, 2010).
A organização social e política dos cuidados deve ser suportada,
portanto, não por uma rede de mulheres que se articulam nas famílias
por meio do trabalho doméstico remunerado e não remunerado, mas
deve também engajar os homens e o Estado, além de valorizar quem
cuida. Isso implica políticas, que: responsabilizem o Estado por sua
provisão (como as creches); garantam condições adequadas ao cuidado familiar, estimulando e ampliando a responsabilização masculina
(licenças); e valorizem e ampliem direitos de quem cuida de forma
remunerada (a exemplo das trabalhadoras domésticas). Passamos, por
isso, a olhar para cada uma dessas políticas nesses últimos 30 anos.
TRINTA ANOS DO DIREITO AO CUIDADO INFANTIL:
CRECHES, LICENÇAS E TRABALHO DOMÉSTICO
REMUNERADO
Durante a elaboração da CF-1988, as mulheres entraram em
cena com uma grande capacidade de mobilização, tanto em organizações autônomas, quanto por meio da inserção em partidos, sindicatos, associações e comunidades de base (Souza-Lobo, 1991). Algu-
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
mas pautas conseguiram promover amplas articulações no campo do
feminismo, e, ainda, desse com outros campos, como o da educação
e do direito das crianças e adolescentes. É o caso das creches que,
como observa Rosemberg (1984, p. 76), tornou-se uma “palavra de
ordem consensual”. O Movimento de Luta por Creches foi emblemático dessa mobilização (Tatagiba, 2011), cunhando o slogan “Filho
não é só da mãe”.
Também o Conselho Nacional de Direitos da Mulher
(CNDM) assumiu essa reivindicação, assim como a defesa das licenças maternidade e paternidade e a garantia de direitos para as trabalhadoras domésticas (CNDM, 1985)6. A defesa dos direitos dessas
trabalhadoras também mobilizou outras forças sociais, a exemplo do
movimento negro, que vocalizou o reconhecimento da profissão das
trabalhadoras domésticas e diaristas. O que também foi feito pelas
próprias trabalhadoras domésticas organizadas (Santos, 2015). Igualmente, as trabalhadoras rurais realizaram ampla mobilização, que culminou na sua inclusão como beneficiárias da previdência social. Essas
reivindicações ecoaram na Assembleia Constituinte. Entretanto, foi
diversa a sintonia do tratamento conferido a elas com a anunciada “sociedade livre, justa e solidária”. As creches representaram um avanço
inédito. Elas foram previstas como um direito ao trabalho (Artigo 7º,
XXV) e à educação (Artigo 208, IV). Dessa forma, tratava-se de uma
garantia a quem cuida e a quem é cuidado.
As licenças também foram previstas como um direito (Pinheiro; Galiza, Fontoura, 2009). A licença maternidade foi garantida para
trabalhadoras urbanas e rurais, totalizando 120 dias de afastamento
remunerado (Artigo 7º, XVIII). A licença paternidade foi igualmente
prevista, mas seus efeitos dependeriam de posterior regulamentação
(Artigo 7º, XIX). Até que essa lei fosse editada, entretanto, garantiu-se
6. Trata-se da Carta da Mulher à Constituinte, de 1987.
CUIDADO INFANTIL E TRABALHO NA PERSPECTIVA FEMINISTA
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cinco dias de afastamento remunerado (Atos das Disposições Constitucionais Transitórias).
Sua regulamentação produziu controvérsias no plenário, como
ilustra a fala sexista do então presidente da Assembleia, Ulysses Guimarães sobre o tema: “Trata-se de uma homenagem ao homem gestante (Palmas). Como justificativa da proposição, podíamos lembrar
o que disse o talentoso Chico Anísio: há o dia da mãe; e o dia do
homem que é precisamente nove meses antes do dia da mãe (...)”
(Assembleia Nacional Constituinte, 1988, p. 7663).
Em que pese a resistência de alguns de seus membros em relação
à proposta, que a receberam com piadas e risos, a CF-1988 representou
um avanço no tema, em comparação com a licença paternidade de um
dia prevista na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943.
Entretanto, o texto constitucional negou às trabalhadoras domésticas o estatuto de trabalhadoras plenas (Santos, 2015). Foram excluídos expressamente direitos, como os de proteção contra despedida
arbitrária ou sem justa causa, seguro-desemprego, FGTS, piso salarial.
Embora tenham sido garantidos outros, a exemplo do salário mínimo,
13º salário, férias anuais remuneradas e licenças maternidade e paternidade (Maeda, 2018). A dimensão quantitativa revela a restrição: de
34 incisos do artigo 7º (direitos das trabalhadoras em geral), apenas
nove foram reconhecidos a elas, além da sua integração à previdência
social (Dultra; Mori, 2008).
Apesar dos avanços limitados, é possível identificar na CF1988 a arquitetura do direito ao cuidado infantil. O período imediatamente posterior, entretanto, foi caracterizado por confluências
perversas entre esse projeto e o neoliberal (Dagnino, 2004), o que
representou novas contradições a essa dinâmica.
No caso das creches, foram editadas leis, decretos e diretrizes,
formatando o que a CF-1988 previu em relação ao direito à educação infantil, a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
(ECA), da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e do Plano Nacional de
Educação 2001-2010 (PNE) (Campos, 1999; Rosemberg, 2001; Tatagiba, 2011; Marcondes, 2013; Cruz, 2017). As condições para sua
efetivação, contudo, não foram garantidas, sendo ilustrativa a falta de
financiamento para sua transição da política de assistência social para
a política educacional. Nesse sentido, a EC 14/1996, que instituiu o
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental
e de Valorização do Magistério (FUNDEF), privilegiou a educação
fundamental e excluiu a educação infantil (Rosemberg, 2001; Marcondes, 2013; Cruz, 2017).
Ao longo da década de 1990, o direito à licença maternida7
de paga pela seguridade social foi progressivamente ampliado para
outras mulheres, para além de servidoras públicas e empregadas com
carteira assinada, desde que cumpridos alguns requisitos8 (Ansiliero;
Rodrigues, 2007). Isso beneficiou categorias de trabalhadoras como
as rurais (seguradas especiais), diaristas (individuais) e as chamadas
“donas de casa” (facultativas). Por fim, em 2002, também as mulheres
adotantes foram incluídas (Ansiliero; Rodrigues, 2007).
Em relação à proteção social para as trabalhadoras domésticas,
para além dessa previsão do salário maternidade, outra mudança do
período foi a possibilidade de contribuição do FGTS, mas ela foi facultada a empregadoras, ou seja, não obrigatória (Pereira; Medonça;
Dutra, 2014; Maeda, 2018).
Em 2003, com o início dos governos do PT, mudanças relevantes para a efetivação do direito ao cuidado infantil foram colocadas em marcha. Em relação a licenças, uma inovação foi o programa
7. Aqui denominamos de licença maternidade o período remunerado para que as mães possam cuidar de
crianças, em decorrência do nascimento. É importante, contudo, esclarecer que, juridicamente, a licença maternidade tem sentido mais restrito, e corresponde a um direito trabalhista (com vínculo formal), enquanto
o salário maternidade é uma espécie de benefício da seguridade social, pago pelo INSS. Foi esse último que
foi ampliado nesse período.
8. No caso de seguradas especiais, esse requisito corresponde à comprovação de que exerceram essa modalidade de trabalho (ex. rural) por dez meses. Para individuais e facultativas, é necessário cumprir a carência (dez
meses de contribuições)..
CUIDADO INFANTIL E TRABALHO NA PERSPECTIVA FEMINISTA
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Empresa Cidadã, criado para a extensão da licença maternidade (Lei
11.770/2008) e paternidade (Lei 13.257/2016). A primeira foi de 60
dias, para além dos 120 já garantidos, totalizando 180 dias (seis meses). A segunda, de 15 dias, para além dos cinco previstos, totalizando
20 dias. Em ambos se incluem mães e pais adotantes, garantindo-se
remuneração integral durante o exercício do benefício.
A possibilidade de extensão da licença só contemplou, entretanto, duas situações: o setor público e as empresas privadas de grande
porte, que aderem voluntariamente ao programa (aquelas que fazem
parte do regime de tributação denominado lucro líquido), sendo que,
nesse último caso, elas podem receber restituição dos valores pagos à
trabalhadora, por meio da dedução nos impostos.
As demais empresas podem se cadastrar no Programa, mas não
podem receber restituição. Isso se deu em decorrência de um veto presidencial à concessão do benefício a elas. Com isso, setores como os de
pequenas e médias empresas, que absorvem expressiva quantidade de
mão de obra no país, não foram abarcadas pela medida.
É importante mencionar, ainda, que a partir de 2013 o salário
maternidade também passou a poder ser pago para adotante do sexo
masculino, o que pode incluir tanto homens heterossexuais, quanto bi e
homossexuais9.Em comparação com as licenças, a efetivação do direito
à creche teve maior prioridade na agenda política dos governos petistas.
Em 2004, durante o primeiro Governo Lula, a reorganização da política de assistência social, com a criação do Sistema Único de Assistência
Social (SUAS) (SANDIM, 2018), principiou o processo de transição
do financiamento da educação infantil dessa política para a educacional.
A criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), por meio da EC 53/2006, selou definitivamente esse destino,
uma vez que seus recursos do Fundo passaram também a custear a
9. Lei 2.873/2013.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
rede de educação infantil existente (estabelecimentos públicos e rede
conveniada) (Marcondes; 2013; Cruz, 2017). Essa conquista só foi
efetivada devido à mobilização dos movimentos sociais. O projeto
original enviado pelo Governo Federal não contemplava as creches, o
que refletia o posicionamento de alguns setores de dentro do governo,
a exemplo do Ministério da Fazenda.
O maior gargalo da efetivação desse direito, entretanto, estava
na necessidade de expansão da rede pública. Para financiá-la, foi criado, em 2007, o Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de
Equipamentos da Rede Escolar Pública de Educação Infantil (Proinfância) (Resolução FNDE/MEC 6/2007). Em 2010, ele foi incluído na
Segunda Edição do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC-2),
carro chefe da campanha presidencial de Dilma Rousseff. Isso significou
uma priorização inédita pelo Governo Federal para o financiamento de
creches e pré-escolas, sendo previstos 7,6 bilhões de reais para investimentos em seis mil creches e pré-escolas (Marcondes, 2013).
A educação infantil também integrou outra agenda política estratégica do governo Dilma: a erradicação da miséria. Isso se deu por
meio do Brasil Carinhoso (BC), criado em 2012, e que previu ações
integradas de transferência de renda e acesso a serviços de saúde e educação infantil (Costa; Mafra; Bachtold, 2014; Cruz, 2017). Em relação
à educação infantil, a mais relevante medida foi a suplementação, em
50% do Fundeb, para cada vaga ocupada por crianças de até quatro
anos e inscritas no Bolsa Família. O recurso, destinado à rede pública
e conveniada, poderia ser usado com gastos de cuidado, como fraldas
descartáveis e pomadas para assadura (BRASIL, 2012).
A proteção social ao trabalho doméstico remunerado foi ampliada durante o primeiro governo Lula, por meio da legislação que
previu a extensão de direitos em relação a férias, estabilidade no emprego quando gestante e a dedução no imposto de renda de gastos
com cobertura previdenciária (Pereira; Medonça; Dutra, 2014; Maeda, 2018).
CUIDADO INFANTIL E TRABALHO NA PERSPECTIVA FEMINISTA
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Foi, contudo, durante o governo Dilma, que a mais importante
reivindicação da categoria entrou em pauta: a equiparação dos direitos
com os das demais trabalhadoras. A denominada PEC das Domésticas
foi fruto de uma intensa mobilização de organizações da sociedade civil
(como a Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas – Fenatrad,
movimentos feministas e sindicais) e do governo, com destacada atuação da SPM. Também impulsionou esse processo a ratificação, pelo
Brasil, da Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), que dispõe sobre direitos das trabalhadoras domésticas (Pereira;
Medonça; Dutra, 2014; Maeda, 2018).
A EC 72/2013, todavia, não garantiu a almejada equiparação,
ainda que tenha avançado. Por meio dela, foram garantidos os seguintes direitos, entre outros: salário mínimo, jornada de trabalho de oito
horas e semanal de 44 horas e repouso semanal remunerado. Outros
direitos, como proteção contra demissão sem justa causa, seguro desemprego e FGTS, foram previstos, mas precisaram ser regulamentos
por lei, que foi promulgada em 2015 (Lei Complementar 150, de 1º
de junho de 2015). Seguindo o raciocínio de Dultra e Mori (2008)
que apresentamos anteriormente, se nove dos 34 direitos do artigo 7º
eram garantidos às trabalhadoras antes da PEC (além da previdência
social), a partir dela passaram a ser 25, sendo que sete deles foram
efetivados a partir de 2015.
Durante os governos petistas houve, ainda, um inédito compromisso com políticas para a igualdade de gênero. Em 2003, em
resposta à reivindicação dos movimentos feministas e de mulheres, foi
criada a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM)10. Sua função
era coordenar, articular e acompanhar a implementação dessas políti10. Inicialmente a SPM tinha status de ministério. Em 2010, ela foi reconhecida como órgão essencial da
Presidência da República, assim como Secretarias de Políticas de Promoção de Igualdade Racial e Direitos
Humanos. Em 2015, primeiro ano do segundo governo Dilma, houve a fusão desses órgãos com a criação do
Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos. Desde o início do governo Temer, o status da
SPM foi modificado repetidamente. A partir de 21 de junho de 2018, ela voltou a ser integrada ao Ministério
de Direitos Humanos.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
cas no Governo Federal. Um instrumento fundamental para a sua atuação foi o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), elaborado a partir dos resultados das Conferências Nacionais de Políticas
para as Mulheres (Menicucci, 2013). Durante os governos Lula e Dilma foram editados três PNPMs (BRASIL, SPM, 2004; 2008; 2013)11.
Neles, as três dimensões do direito ao cuidado infantil que analisamos
foram incorporadas, em alguma medida. Desde a primeira edição, as
creches estiveram previstas, afirmadas, principalmente na 2ª e 3ª edições, como equipamentos que interferem na divisão sexual do trabalho
e que podem promover maior tempo livre às mulheres, para o exercício
de outras atividades (ex. trabalho, educação, lazer etc.).
Enquanto o I PNPM enfatizava a valorização da profissão das
trabalhadoras domésticas, a partir do II PNPM, a ampliação de direitos por meio de revisão da legislação ganhou destaque, o que foi
reforçado pelo PNPM (2013-2015). Por fim, enquanto a ampliação
da licença maternidade foi incorporada a partir do II PNPM, a extensão da licença paternidade só foi expressamente prevista a partir do
PNPM (2013-2015), que, ainda, traz uma menção pontual à promoção de debates sobre licença parental.
É considerando esse panorama que passamos, na seção seguinte,
à análise crítica dessa trajetória, com base na perspectiva adotada.
UM BALANÇO DOS 30 ANOS DA ORGANIZAÇÃO
SOCIAL E POLÍTICA DO CUIDADO INFANTIL NA
PERSPECTIVA DA DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO
A história do direito ao cuidado infantil durante os 30 anos
da CF-1988 foi permeada por contradições, com avanços limitados e
não lineares. Na perspectiva da divisão sexual do trabalho e da imbri11. São eles: PNPM (2004-2008); II PNPM (2008-2011); e PNPM (2013-2015).
CUIDADO INFANTIL E TRABALHO NA PERSPECTIVA FEMINISTA
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cação das relações sociais de gênero, raça e classe, evidenciam-se mais
continuidades do que rupturas. O cuidado infantil seguiu associado
majoritariamente à esfera privada e doméstica, como uma responsabilidade feminina, principalmente por meio do trabalho doméstico, não
remunerado e remunerado.
A política de creches foi a que apresentou os avanços mais significativos nesses 30 anos. À medida em que ela foi prevista na CF1988 como um direito ao trabalho e à educação, foi afirmado tanto o
direito de quem cuida, quanto de quem é cuidado, o que representou
uma abordagem mais integrada da relação de cuidado. Além disso, à
medida em que o cuidado integrou a educação, também se tornou um
direito universal, e não apenas limitado às famílias cujas mães e pais
exercem trabalho remunerado.
As contradições se aprofundaram com hegemonia do projeto
neoliberal. Enquanto um conjunto de legislações estruturou a política
(ECA, LDB, PNE etc.), a falta de financiamento no âmbito educacional impossibilitou a sua completa transição para essa esfera. Em
contrapartida, nos governos petistas, as creches ganharam maior relevância; elas foram integradas ao sistema educacional, houve ampliação de financiamento e elas constaram, durante o governo Dilma, em
duas de suas agendas estratégicas: o PAC-2 e a erradicação da pobreza.
O resultado foi uma significativa expansão da cobertura. Se,
em 2003, 15,5% das crianças frequentavam creches, em 2016 esse
total passou a ser de 30,4% (OPNE, 2017; IBGE, 2018)12, o que
corresponde a um aumento de quase 15%. Essa evolução é, contudo, insuficiente para cumprir com a meta do PNE, especialmente se
considerarmos que os gastos sociais foram limitados pelas reformas
constitucionais realizadas pelo Governo Temer (“PEC do Teto de
12. Os dados utilizados nessa seção baseiam-se em: Retratos das Desigualdades de Gênero e Raça (IPEA,
2017); Sinopse Estatística da Educação Básica (INEP, 2018); Observatório do PNE (OPNE, 2017) e PNAD
Contínua (IBGE, 2018).
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Gastos”). Segundo o plano, a cobertura do serviço para crianças de
zero a três anos deveria ser de 50% até 2020.
Além da cobertura ser insuficiente, ela é marcada por desigualdades regionais, urbano/ rural, de classe e raça. Em 2016, as regiões Sul e Sudeste apresentavam melhores cobertura; 38% e 35,9%,
respectivamente. As outras regiões do país, entretanto, tinham uma
proporção menor de suas crianças atendidas; Norte (14,4%), Nordeste (27,2%) e Centro-Oeste (25%). Com relação à renda, 23,7% das
crianças de famílias que faziam parte das 20% mais pobres do país
estavam matriculadas em creche, ao passo que 52,8% das que compunham o grupo das 20% mais ricas o faziam (IBGE, 2018). Ou seja,
a meta para 2020 já é cumprida para as crianças mais ricas, enquanto
para as crianças mais pobres é provável que não se efetive.
Esse diagnóstico de desigualdades, inclusive, resultou na inscrição das creches no BC, para incentivar a inclusão de crianças do
Bolsa Família nesses serviços. Apesar da importância dessa ação, especialmente ao permitir que o recurso seja usado para cuidado (ex.
fraldas e pomadas), ela foi insuficiente para superar essas assimetrias
(Costa; Mafra; Machtold, 2014).
A expansão das creches tem impacto efetivo na vida e no trabalho das mulheres (Sorj; Fontes, 2012), mas a forma como esse serviço
se estrutura pode contribuir mais ou menos para a superação da divisão
sexual do trabalho. É por isso que essa reivindicação não integra apenas
a agenda de direitos das crianças, mas também a feminista, inclusive fazendo parte dos PNPMs. Isso não significou, contudo, a opção por uma
abordagem integrada da relação de cuidado. A centralidade no direito
das crianças, que já vinha sendo afirmada no período neoliberal, teve
continuidade nesse momento, como ilustra a discussão sobre jornada
escolar no Conselho Nacional de Educação (CNE).
Nesse debate, pautou-se a possibilidade de assegurar o serviço
durante férias e recessos escolares e finais de semana, uma vez que a
CUIDADO INFANTIL E TRABALHO NA PERSPECTIVA FEMINISTA
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jornada de trabalho de mães e pais não coincide com o horário de funcionamento dos serviços (Marcondes, 2013). Segundo o CNE, esses
intervalos em que o serviço não funciona são importantes tanto para
propiciar à criança a convivência familiar, quanto para o planejamento de atividades pedagógicas13.
Essa abordagem deixa de considerar que, nas práticas cotidianas, é impossível separar necessidades de quem cuida e é cuidado,
o que pede soluções integradas. Inclusive porque a oferta do serviço
envolve tensões entre interesses de diferentes mulheres que cuidam,
considerando que 97,5% da função docente é realizada por mulheres
(INEP, 2018). A solução não pode ser colocada como uma escolha
entre as condições de trabalho das professoras ou as necessidades da
família. Um terceiro caminho é necessário, atendendo a demandas de
todos os sujeitos.
Dessa forma, ainda que tenha se ampliado a responsabilização
estatal pelo cuidado infantil nesses últimos 30 anos, a consolidação
da política de creche priorizou as crianças cuidadas e educadas, não
incorporando o objetivo de alteração da responsabilidade sexuada do
cuidado. Além disso, as limitações identificadas evidenciam que a organização social e política do cuidado recai principalmente sobre as
famílias.
Em relação à organização social e política do cuidado, o Estado não se limita a prover essas necessidades, mas também a regular como se dá seu provimento, podendo, inclusive, fomentar novas
práticas. É a partir dessa compreensão que analisamos o regime de
licenças por nascimento.
O avanço desse regime, desde a CF-1988, é permeado por ambiguidades e fundado sobre a divisão sexual do trabalho, reproduzindo a concepção da família heterossexual “homem-provedor/mulher13. Parecer da Câmara de Educação Básica do CNE 8, de 2011, posteriormente reexaminado pelo Parecer
23, de 2012.
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-cuidadora”. O regime de licenças reafirma a heteronormatividade,
por não conferir uma solução satisfatória a outros arranjos familiares.
Há, contudo, avanços, como a possibilidade que homens adotantes
usufruam do salário maternidade.
Ao ampliar desproporcionalmente o tempo da licença maternidade em relação à paternidade, reforça-se uma perspectiva maternalista. Além disso, enquanto a remuneração da licença maternidade
é, em regra, assumida pelo INSS, a licença paternidade recai sobre
a empregadora, o que gera mais um desestímulo para sua garantia e
ampliação. Os risos e piadas que ecoavam na constituinte reverberam,
portanto, até os dias de hoje.
É interessante notar que mesmo os PNPMs não assumiram
uma abordagem de maior engajamento dos homens no cuidado,
uma vez que eles enfatizaram a ampliação da licença maternidade e,
timidamente, sinalizaram para a importância de licenças paternidade
e parental. As licenças tornaram-se, portanto, menos um instrumento
da política para a igualdade de gênero, e mais um mecanismo de
garantia da amamentação.
O efeito desse regime existente é o reforço da discriminação
das mulheres no mercado de trabalho, que são percebidas como uma
contratação mais custosa. No Brasil, menos de quatro anos após o
nascimento do filho, quase metade das mulheres estava fora do mercado formal de trabalho (Machado; Neto, 2017). Essa estrutura do
mercado laboral contribui para que elas ocupem trabalhos informais,
parciais ou “flexíveis”, que permitem articular a vida produtiva e reprodutiva (Hirata; Kergoat, 2007).
Uma das continuidades que a divisão sexual do trabalho apresentou no período refere-se, portanto, à distância insuperável da responsabilização desigual de mulheres e homens com relação ao trabalho doméstico e de cuidado não remunerado, como destacam Hirata
e Kergoat (2007). Mas é quando consideramos a imbricação das re-
CUIDADO INFANTIL E TRABALHO NA PERSPECTIVA FEMINISTA
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lações de raça, gênero e classe é que as desigualdades desse regime se
tornam mais evidentes.
As licenças beneficiam desproporcionalmente quem se insere
no mercado forma de trabalho. A extensão do período promovida
nos últimos anos só beneficiou o setor público e as empresas de grande porte que aderem ao programa Empresa Cidadã. Na década de
1990, as possibilidades de mulheres receberem da seguridade social
esse benefício aumentou. Mas, em regra, elas precisam pagar a Previdência Social para terem esse direito, como no caso das contribuintes
facultativas e individuais. Uma importante exceção é o caso das seguradas especiais, como as trabalhadoras rurais, que devem comprovar o
exercício desse trabalho, e não o pagamento. A regra geral, entretanto,
deixa as mulheres que mais precisam desprotegidas. E isso nos remete
a um terceiro aspecto da análise.
Ao compararmos a quantidade de horas dedicadas por mulheres e homens à realização de afazeres domésticos, desde que esta
começou a ser medida no início dos anos 1990 para os dias de hoje,
verifica-se uma diminuição na média das horas gastas pelas mulheres, sem que isso tenha significado um aumento proporcional no
tempo dedicado pelos homens (Freitas; Sucupira, 2014). Quando
consideramos essa realidade por classe, percebemos que existem diferenças. Em 2015, as mulheres que recebiam mais de oito salários
mínimos dedicavam, em média, 12,9 horas semanais ao trabalho
doméstico, enquanto aquelas que recebiam até um salário mínimo
gastavam 20,6 horas (IPEA et al., 2017). Isso representa quase oito
horas semanais de diferença, ou seja, o equivalente a um dia de jornada de trabalho.
A presença de uma trabalhadora doméstica no domicílio faz
toda a diferença. Enquanto a média semanal dedicada ao trabalho doméstico pelas mulheres era de 24,4 de horas quando ela estava ausente, sua presença fazia cair o tempo dispendido para 14,7 (IPEA et al.,
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
2017). Ou seja, diminuía em quase dez horas, o que pode equivaler a
mais de um dia de trabalho da jornada de uma diarista.
Isso sinaliza que há outras personagens em cena, que não apenas as mulheres da família, como é o caso das trabalhadoras domésticas remuneradas, que são incluídas na organização do cuidado pelos
efeitos da delegação (Hirata; Kergoat, 2007) e da bipolarização do
emprego feminino (Bruschini; Lombardi, 2000).
O trabalho doméstico absorve expressivamente a mão de obra
feminina, totalizando, em 2015, 5,7 milhões de brasileiras (IPEA,
2017). Elas são majoritariamente negras, sendo que, no mesmo ano,
essa era a profissão de 18% das mulheres negras, e 10% das brancas
(IPEA, 2017). Foram, portanto, as mulheres empobrecidas e negras
que mais sofreram com a negação de seu estatuto como trabalhadoras,
praticada pela CF-1988 (Santos, 2015).
Seria possível, em tese, afirmar que foram elas também as principais beneficiadas pela aprovação da PEC em 2013, e sua regulamentação em 2015, já que, como vimos, foi ampliado um conjunto de
direitos, a exemplo do FGTS e da jornada de trabalho. Entretanto,
como alerta Biavachi (2017, p.258), essa legislação “possibilita burlas
e simulacros”, o que aponta para uma tendência de mudança na organização do trabalho doméstico remunerado.
Essa tendência consiste, basicamente, na diminuição progressiva da contratação das trabalhadoras domésticas como mensalistas,
com o crescimento da contratação de diaristas. Elas correspondiam a
18,3% da categoria em 1995, e a 31,7% em 2015 (IPEA, 2017)14. É
esperado que tanto as reformas trabalhistas, quanto a crise econômica,
tenham efeitos negativos sobre essa realidade.
A contratação das trabalhadoras domésticas como diaristas intensifica o trabalho destas, uma vez que em um ou dois dias, elas devem
14. O dado refere-se, na verdade, às trabalhadoras que prestam serviço a mais de um domicílio, o que consideramos uma aproximação à realidade das diaristas, uma vez que não há dados específicos sobre o tema.
CUIDADO INFANTIL E TRABALHO NA PERSPECTIVA FEMINISTA
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realizar o trabalho de uma semana. Esse é um dos principais limites
da ampliação de direitos, que legitimou a exclusão de grande parte do
contingente de trabalhadoras domésticas desse processo, uma vez que
são aplicados apenas para aquelas que têm o vínculo empregatício reconhecido, ou seja, que trabalham mais de dois dias por semana para um
empregador (VIEIRA, 2017). Isso ajuda a compreender porque, apesar
de ter havido o reconhecimento de direitos das trabalhadoras domésticas, o percentual com carteira assinada ainda é pequeno, (30,4%), assim como o de contribuintes com a Previdência Social (39,7%) (IPEA,
2017). Isso também dificulta a efetivação do direito à licença-maternidade para a categoria.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apresentamos, nesse texto, um balanço crítico do direito ao
cuidado infantil desde a promulgação da CF-1988, tomando como
referência a perspectiva da divisão sexual do trabalho e a imbricação
das relações sociais de classe, gênero e raça. Nosso ponto de partida
foi o reconhecimento de que o feminismo, entendido como um movimento social amplo e diverso, é um sujeito central nas disputas de
sentidos para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, no
qual a igualdade como princípio organizador das relações sociais deve
ser incontornável. Nesse sentido, argumentamos que esse percurso de
30 anos dos direitos à creche, licenças e proteção social ao trabalho
doméstico foi marcado por avanços não lineares, aquém dos reivindicados. Embora essas três iniciativas tenham se aproximado da gramática de direitos, há assimetrias no percurso percorrido por cada uma.
As creches apresentaram um avanço relevante; foram incorporadas ao sistema educacional e mobilizaram ações governamentais
comprometidas com a expansão e custeio da rede (ex. PAC-2 e BC).
Entretanto, a sua cobertura permanece insuficiente e seu acesso profun-
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
damente desigual, tanto no território brasileiro, quanto considerando a
renda das famílias. Por fim, sua provisão é incompatível com as necessidades de mães, pais e responsáveis, o que vai na contramão da garantia
dos direitos de quem cuida e quem é cuidado, prevista na CF-1988.
O regime de licenças, ao invés de promover o compartilhamento de responsabilidades de cuidado entre mulheres e homens, foi
estruturado pela divisão sexual do trabalho e permeado pelo maternalismo, além de reafirmar a heteronormatividade como concepção
de família. Ademais, foram especialmente as trabalhadoras com empregos formais que puderam usufruir de algumas das mudanças mais
positivas, a exemplo das extensões previstas no Programa Empresa Cidadã. Uma importante exceção à essa regra foi a ampliação do salário
maternidade na década de 1990, que beneficiou, entre outras mulheres, as trabalhadoras rurais.
A baixa responsabilização do Estado pelo cuidado, por um
lado, e a sobrecarga das mulheres no âmbito familiar, por outro, encontra sua base de sustentação na desvalorização e desproteção do
trabalho doméstico remunerado que, por seu relativo baixo custo
econômico, permite a manutenção dessa estrutura. Esses custos são,
entretanto, desproporcionalmente assumidos por essas mulheres, majoritariamente empobrecidas e negras.
Com isso, evidenciamos mais uma tensão entre mulheres que
cuidam. Nesse caso, as trabalhadoras domésticas, cujo emprego é majoritariamente precário e informal, despontam como excessivamente
responsabilizadas por garantir o cuidado, sem que sejam elas mesmas
reconhecidas em seus direitos, nem em suas necessidades de cuidado.
Durante esses 30 anos, houve ampliação da proteção social das trabalhadoras domésticas, mas a igualdade de direitos com as demais trabalhadoras ainda não é realidade, sendo o exemplo das diaristas emblemático.
Raça, classe e gênero são, portanto, as relações sociais que estruturam a organização social e política do cuidado no Brasil, cujas
CUIDADO INFANTIL E TRABALHO NA PERSPECTIVA FEMINISTA
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desigualdades se escancaram nas desigualdades salariais, nos direitos
que são garantidos (ou não), nas condições de vida e na sobrecarga de
trabalho das mulheres que cuidam. Tensões e desigualdades entre mulheres caracterizam essa organização do cuidado, assim como a recusa
dos homens a assumirem responsabilidades efetivas com o cotidiano
do trabalho doméstico e de cuidado. Também é notável a limitação
da ação estatal para contribuir com a superação da divisão sexual do
trabalho, por meio de políticas geradoras de igualdade.
Por fim, com esse trabalho esperamos contribuir tanto para as
reflexões teóricas e práticas feministas, quanto para as discussões formuladas no contexto dos 30 anos da CF-1988. Há, contudo, algumas
limitações, como no caso das creches, em que é necessário aprofundar
a reflexão sobre as condições de trabalho das mulheres nesse serviço e,
especialmente, sobre o significado das modalidades conveniadas para
entender as confluências perversas com o projeto neoliberal, inclusive no período petista. Essas limitações se justificam, contudo, não
termos a pretensão de esgotar o tema, mas sim de seguirmos fazendo
parte desse diálogo.
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CAPÍTULO 8
A PARTICIPAÇÃO DE NEGROS
E NEGRAS NA ASSEMBLEIA
NACIONAL CONSTITUINTE1
NATÁLIA NERIS2
Até aqui as Constituições brasileiras não foram mais que conversa
entre brancos. As elites e os militares levaram à risca o velho ditado
popular: “Eles os brancos que se entendam”. E se entenderam.
As coisas, porém, já não podem ser assim. A próxima
constituinte terá de incluir, no novo pacto social,
o entendimento do que negros e índios pensam sobre
como deve ser a organização da sociedade. A conversa
terá de ser democrática plurirracial e popular.
(CARDOSO, Hamilton; 1985)
INTRODUÇÃO
Promulgada ao final de um regime ditatorial, num contexto de
deterioração da situação econômica e de intensa mobilização da sociedade civil – portanto em meio a crises política, econômica e social – a
1, Este artigo apresenta alguns dos resultados do trabalho “A voz e a palavra do Movimento Negro na Assembleia Nacional Constituinte (1987/1988): um estudo das demandas por direitos”, dissertação defendida na
Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas publicada pela Editora Letramento no presente ano (2018).
No referido trabalho, diferentes aspectos sobre a relação movimentos sociais/Movimento Negro e ANC são
explorados, dentre os quais: as lutas da sociedade civil por um processo de elaboração do texto constitucional
participativo, as articulações do Movimento Negro no contexto pré-constituinte (como a criação de um
movimento de caráter nacional, o apoio à candidaturas de parlamentares negros, realização de encontros e
convenções) bem como a dinâmica da alteração da redação dos dispositivos presentes na Constituição Federal
em cada uma das etapas do processo.
2. Doutoranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. E-mail:
[email protected].
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Constituição Federal de 1988 é referenciada como o marco da redemocratização brasileira. O desenho da dinâmica de funcionamento da
Assembleia Nacional Constituinte (ANC) e os 583 dias de sua duração foram marcados por processos de disputas, negociações e por uma
relação, sem precedentes no que se refere à intensidade, entre atores
parlamentares e extraparlamentares: estima-se que dez mil postulantes
franqueavam diariamente a entrada no Parlamento no período de realização da ANC (Pillati, 2008) e que nove milhões de pessoas tenham
passado pelo Congresso no período de sua realização (Rocha, 2013).
Considerando também as mobilizações pré-Constituinte (caravanas,
envio de cartas, telegramas e sugestões pelos cidadãos) a participação
popular atinge proporções ainda maiores em termos numéricos (brandão, 2011).
Partindo do pressuposto de que o direito é constantemente
transformado pelas lutas sociais (Rodriguez, 2013) e de que o uso
desta linguagem por grupos subalternizados é capaz de visibilizar
questões e contribuir para a minimização de desigualdades (Williams,
1987), busquei compreender de que modo se deu a tematização do
racismo e das questões raciais neste importante momento da história
brasileira. Intentei recuperar a agenda do Movimento Negro – ator
social que buscou de fato incidir no processo de elaboração da Constituição como nos revela a fala do ativista Hamilton Cardoso, que
abre o presente texto. Para tanto, estudei documentos que registram
sua participação ao longo da ANC por meio do envio de sugestões,
emenda e participação em duas audiências públicas.
Este artigo conta com três seções além desta introdução. Na primeira, trato das possibilidades institucionalizadas de participação popular no processo Constituinte e da dinâmica do mesmo; na segunda,
apresento as principais discussões no contexto de estruturação das instâncias que trataram da questão racial de forma específica, os/as atores/
atrizes do Movimento Negro que buscaram incidir no processo, bem
como as demandas apresentadas; por fim, na terceira seção apresento os
A PARTICIPAÇÃO DE NEGROS E NEGRAS NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE
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dispositivos efetivamente incorporados à Constituição Federal e reflito
sobre seu impacto passadas três décadas do evento em questão.
ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE:
POSSIBILIDADES DE PARTICIPAÇÃO
EXTRAPARLAMENTAR E DINÂMICA DE
FUNCIONAMENTO
O déficit de legitimidade do regime autoritário somado a reiterada constitucionalização de normas antidemocráticas e de medidas
de exceção por parte de militares e aliados civis, tornaram o recurso a
uma Assembleia Nacional Constituinte incontornável para a instauração de um regime democrático no Brasil. (Barbosa, 2012, Rocha,
2013).
A gestação da ideia da necessidade de convocação da ANC se
deu no interior da oposição institucional ao regime autoritário, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e ganhou força a partir de
meados da década de 1970 graças a mobilização de diferentes atores
da sociedade civil brasileira, dentre os quais a Ordem dos Advogados
do Brasil, juristas, grupos ligados à Igreja Católica e uma miríade de
movimentos sociais. (Ferreira e Reis, 2007; Michiles, et. al, 1989).
Tais grupos demandavam que a ANC fosse de fato livre, soberana,
exclusiva e mais do que isso que seu Regimento Interno contivesse
mecanismos que garantissem a participação popular.
Após amplo processo de disputa pelo desenho de seu formato
definiu-se que a ANC funcionaria paralelamente às demais atividades
do Congresso, com decisões de natureza derivada, de modo descentralizado, sem projetos, texto ou anteprojeto prévio3 e, graças a intensa
3. Embora o presidente José Sarney tenha instituído no ano de 1985 por meio do Decreto 91.450 a “Comissão Provisória de Estudos Constitucionais” também conhecida como “Comissão Afonso Arinos” ou “Comissão dos Notáveis” responsável pela elaboração de um projeto prévio de Constituição, a literatura aponta que
tal documento não fora utilizado (ao menos não integralmente ou como base) durante os trabalhos da ANC.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
mobilização social contou com quatro mecanismos de participação
extraparlamentar, a saber: 1) a possibilidade de encaminhamento de
sugestões4; 2) a previsão de cinco a oito reuniões de cada subcomissão
serem destinadas à audiências públicas com representantes da sociedade civil5; 3) o mecanismo de emendas populares6 e 4) a possibilidade
de assistir sessões, da galeria7:
No que se refere à dinâmica de funcionamento foram estabelecidas oito Comissões Temáticas compostas, cada um delas por 63
membros titulares e igual número de suplentes, a saber:
I Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher;
II Comissão da Organização do Estado;
III Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de Governo;
IV Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia
das Instituições;
V Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças;
VI Comissão da Ordem Econômica;
VII Comissão da Ordem Social;
VIII Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da
Ciência e Tecnologia e da Comunicação.
A cada uma delas estavam ligadas três Subcomissões Temáticas
compostas por 21 membros:
| À Comissão I: Ia) Subcomissão da Nacionalidade, Soberania
e Relações Internacionais, Ib) Subcomissão dos Direitos Políticos,
Direitos Coletivos e Garantias, Ic) Subcomissão dos Direitos e Garantias
Individuais;
4. Artigo 13 § 11 do Regimento Interno da Assembleia Nacional Constituinte (RIANC).
5. Artigo 14 do RIANC.
6. Artigo 24 do RIANC.
7. Artigo 40 do RIANC. De acordo com BRANDÃO (2011, p. 90) este dispositivo funcionou também
como importante instrumento de participação/pressão da sociedade civil. Esta se manifestou nas votações
das matérias constitucionais, por meio dos “placares de votação” e os “cartazes dos constituintes traidores do
povo” já que as matérias eram votadas por processo nominal (e não por votação simbólica ou secreta).
A PARTICIPAÇÃO DE NEGROS E NEGRAS NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE
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| À Comissão II: IIa) Subcomissão da União, Distrito Federal
e Territórios, IIb) Subcomissão dos Estados, IIc) Subcomissão dos
Municípios e Regiões;
| À Comissão III: IIIa) Subcomissão do Poder Legislativo,
IIIb) Subcomissão do Poder Executivo, IIIc) Subcomissão do Poder
Judiciário e Ministério Público;
| À Comissão IV: IVa) Subcomissão do Sistema Eleitoral e
Partidos Políticos, IVb) Subcomissão da Defesa do Estado, Sociedade e
Segurança, IVc) Subcomissão da Garantia da Constituição, Reformas
e Emendas;
| À Comissão V: Va) Subcomissão dos Tributos, Participação
e Distribuição de Receitas, Vb) Subcomissão do Orçamento e
Fiscalização Financeira, Vc) Subcomissão do Sistema Financeiro;
| À Comissão VI: VIa) Subcomissão dos Princípios Gerais,
Intervenção do Estado, Regime da Propriedade do Subsolo e Atividade
Econômica, VIb) Subcomissão da Questão Urbana e Transporte,
VIc) Subcomissão da Política Agrícola e Fundiária e Reforma Agrária;
| À Comissão VII: VIIa) Subcomissão do Direito dos
Trabalhadores e Servidores Públicos, Vllb) Subcomissão da Saúde,
Seguridade e Meio Ambiente, VIIc) Subcomissão dos Negros, Pessoas
Deficientes e Minorias;
| E à Comissão VIII: VIIIa) Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes, VIIIb) Subcomissão da Ciência e Tecnologia e Comunicação, VIIIc) Subcomissão da Família, Menor e Idoso.
Quanto à dinâmica de funcionamento o processo contou,
além da etapa de definição do Regimento com seis momentos. Subcomissões e Comissões (Etapas 2 e 3) deveriam elaborar o projeto
de Constituição com as Normas Gerais e Disposições Transitórias e
Finais relativas à temática de sua competência8, que seriam poste8. Artigo 15 parágrafo único do RIANC.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
riormente encaminhadas à Comissão de Sistematização (Etapa 4),
Plenário (Etapa 5) e Comissão de Redação (Etapa 6) até a Promulgação (Etapa 7).
Tendo em vista tal estrutura e dinâmica, a seguir a seguir focalizo atenção nos trabalhos desenvolvidos no interior da Comissão
da Ordem Social (Comissão VII), mais especificamente na Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias (Subcomissão VIIc) instâncias nas quais a questão racial fora
prioritariamente tematizada.
MOVIMENTO NEGRO NA ASSEMBLEIA NACIONAL
CONSTITUINTE
Breves considerações sobre “o lugar” da
questão racial no Processo Constituinte
Como apontei, o processo constituinte se deu de modo descentralizado e contou, em suas primeiras etapas (também definida na literatura
como “fase popular”)9 com a participação de atores extraparlamentares.
Antes mesmo de partir para a apresentação da participação
social na Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas
Deficientes e Minorias da Comissão da Ordem Social, interessou-me compreender como tais instâncias definiram suas dinâmicas de
trabalho e em certa medida, a percepção dos parlamentares sobre as
mesmas. Para tanto realizei a leitura das atas das reuniões de instalação e estruturação da Comissão e Subcomissão.
Tais leituras apontam para aspectos bastantes relevantes: tanto na instalação da Comissão da Ordem Social quanto da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias há uma visão compartilhada da importância das instâncias e dos
9. A partir da fase da Comissão de Sistematização o processo inicia sua “fase parlamentar ou centralizada”.
A PARTICIPAÇÃO DE NEGROS E NEGRAS NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE
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temas tratados: “a espinha dorsal das demais comissões”, a Comissão
“onde o grito e a angústia dos trabalhadores terão que ser acolhidos”,
a Subcomissão onde será tratado de assuntos “que foram menosprezados por gerações e gerações de brasileiros” são algumas das frases
ditas pelos parlamentares. Ao mesmo tempo, há o diagnóstico de
seu preterimento frente às outras instâncias: “os espaços que não
despertaram o interesse da mídia”, os espaços não respeitados internamente e que precisam planejar ações para que “sejam levados a
sério na Constituinte e fora dela”.
Chamam atenção também as diferentes interpretações acerca
do esvaziamento da Subcomissão e as alternativas para o encaminhamento dos trabalhos tendo em vista tal realidade.10 O posicionamento de que os temas merecem ser discutidos entre os constituintes venceu a alternativa do procedimento formal de votações sem
presença nos debates.11
Outro ponto relevante das reuniões envolveu a própria concepção/conceito de minorias que detinham os parlamentares. A pluralidade de temas ensejou questões como: trataremos de preconceito
étnico-cultural ou também daqueles que se referem à problemas de
saúde? Trataremos de estigmas provisórios ou somente os permanentes?
De fato, como podemos concluir ao olhar para a programação
das atividades da Subcomissão, foram ouvidos nesta instância, como
disse o próprio presidente, “todos os que manifestaram o desejo de ali
se fazer ouvir”: entre as minorias figuraram alcoólicos anônimos, ido10. Desde as primeiras reuniões a Subcomissão em questão contou com baixa frequência de parlamentares
tendo dificuldades de encaminhar questões dado o não atingimento do quorum mínimo para deliberações
foi rejeitada, os parlamentares presentes acreditavam na importância da obrigatoriedade de quorum mínimo
em todas as reuniões.
11. Entre as discussões, aventou-se a hipótese de encaminhar as questões mesmo quando não houvesse
quorum mínimo convocando parlamentares apenas para dias de deliberações/votações. Essa possibilidade
foi rejeitada, os parlamentares presentes acreditavam na importância da obrigatoriedade de quorum mínimo
em todas as reuniões.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
sos, talessêmicos, ostomizados, hansenianos, comunidades israelitas,
representantes de empregados domésticos e representantes de entidades ligadas à questão carcerária e um interno do sistema prisional.
Nesse momento do processo parece haver um comprometimento dos parlamentares no que se refere ao encaminhamento dos
temas, tanto porque alguns deles se colocam de fato como representantes de grupos no Processo Constituinte (o presidente portador de
deficiência, a mulher negra constituinte)12, tanto porque se mostram
sensíveis a determinadas temáticas.
Na última reunião de organização dos trabalhos fora promovido um painel informativo no qual foram convidados três acadêmicos especialistas nas temáticas: Manuela Carneiro Cunha (presidente
da Associação Brasileira de Antropologia que trataria da questão indígena), Paulo Roberto Moreira (economista, mestre em filosofia e
assessor do Ministério da Cultura que trataria sobre “aspirações dos
portadores de deficiência física”) e Florestan Fernandes (sociólogo e
constituinte que “descreveria aspectos sociais dos problemas dos negros e indígenas”).
Tal reunião fora compreendida como uma necessidade para
que os trabalhos fossem melhor desenvolvidos e no limite, a Subcomissão se fizesse ouvir pelas demais instâncias.
Concluída a etapa de estruturação, iniciaram-se no âmbito das
Subcomissões as audiências públicas e apreciação de sugestões encaminhadas por entidades. A seguir tratarei deste momento do processo.
Principais temas abordados nas audiências públicas
O Movimento Negro fez uso de todos os instrumentos de participação popular no processo constituinte. No que se refere às audiên12. Respectivamente Ivo Lech (PMDB-RS) e Benedita da Silva (PT-RJ).
A PARTICIPAÇÃO DE NEGROS E NEGRAS NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE
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cias públicas, dois encontros foram destinados à temática racial. Com
duração total de cerca de doze horas, as sessões contaram com 21 ativistas.13 Através da leitura dos debates dos encontros, observa-se que os/
as militantes fizeram uso de grande parte do tempo de fala e, em geral,
as intervenções dos constituintes se deram ao final do encontro, o que
indica uma priorização das vozes extraparlamentares nas audiências.
Permearam as falas: (i) diagnósticos sobre as condições de vida
da população negra (que ora fez menção a questões históricas de um
modo geral ora se valeu de experiências pessoais ou histórias de vida),
(ii) uma visão sobre o momento histórico vivido e sobre o papel da
Constituinte, da Subcomissão e também sobre o papel do Direito e
das leis no que se refere ao enfrentamento do racismo e das desigualdades raciais, (iii) propostas de redação do texto e temas a serem inseridos na Constituição.
Tendo em vistas as duas audiências de um modo global, identifico como demandas centrais o reconhecimento da contribuição da
população negra à sociedade brasileira (e o combate à ideia de divisão
da sociedade em raças)14 e a reforma curricular.
As falas das ativistas e intelectuais negras Lélia Gonzalez, Lino
de Almeida Helena Theodoro são emblemáticas nesse sentido:
13. Leila de Almeida Gonzalez (Representante do Movimento Negro e Professores do Departamento de Sociologia da PUC), Helena Teodoro (Coordenadora da Comissão Especial de Cultura Afro-Brasileira do Município do Rio de Janeiro)18, Maria das Graças dos Santos (Representante do Movimento Negro Unificado),
Murilo Ferreira (Representante da Fundação Afro-Brasileira do Recife), Ligia Garcia Mello (Representante
do Centro de Estudos Afro-Brasileiros Brasília), Orlando Costa (Instituto Afro-Brasileiro - Inabra), Mauro
Paré (Fundação Sangô RS), Januário Garcia (Representante do Instituto de Pesquisa da Cultura Negra),
Lauro Lima dos Santos Filho (Psicólogo, professor da AEUDF e conselheiro do Memorial Zumbi), Paulo
Roberto Moura (Assessor parlamentar), Natalino Cavalcante de Melo (Conselheiro do Inabra), Raimundo
Gonçalves Santos (Presidente do Núcleo Cultural de Girocan da Bahia), Lino de Almeida (Coordenador do
Conselho das Entidades Negras da Bahia), Marcélia Campos Domingos (Representante do Centro de Estudos Afro-Brasileiros), Waldemiro de Souza (Presidente do Centro de Estudos Afro-Brasileiros), B. de Paiva
(Teatro Experimental do Negro), Hugo Ferreira (ECO Experiência Comunitária), Ricardo Dias (Conselho
da Comunidade Negra de São Paulo), João Carlos de Oliveira “João do Pulo” (Esportista e Ex-deputado federal), Joel Rufino (Sociólogo, membro da Diretoria do Memorial Zumbi e militante do Movimento Negro)
e João Jorge (Movimento Negro da Bahia).
14. Na reconstituição detalhada das discussões nas audiências públicas nota-se uma tendência de alguns
parlamentares em olhar para a questão racial com alguma reserva, ora ponderando sobre a gravidade das
desigualdades, ora ressaltando seu viés econômico, o que foi rebatido pelos/as ativistas durante toda a reunião.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Colocar a questão do negro numa sociedade como a nossa é falar de
um período histórico de construção de uma sociedade, construção
essa que resultou em um grande País como o nosso e que, em última
instância, resultou, também, para os construtores deste País, num
processo de marginalização e discriminação. Invocamos aqui as palavras de Joaquim Nabuco, ao afirmar que o africano e o afro-brasileiro
trabalham para os outros, ou seja, construíram uma sociedade para
a classe e a raça dominante. E falar de sociedade brasileira; falar de
um processo histórico e de um processo social é falar justamente da
contribuição que o negro traz para esta sociedade, por outro lado é
falar de um silêncio e de uma marginalização de mecanismos que são
desenvolvidos no interior desta sociedade, para que ela se veja si própria como uma sociedade branca, continental e masculina, diga-se de
passagem. (Lélia Gonzalez in Neris, 2018: 105)
(...) A importância do dia de hoje foi justamente a possibilidade que
se criou, nesta sala, nesta Subcomissão, de deixarmos claro, a alguns
Representantes da Assembleia Nacional Constituinte, o caráter do
Movimento Negro brasileiro. O Movimento Negro brasileiro foi
confundido – se é que podemos chamar isso de confusão – com um
movimento anti-branco. Na verdade, o branco, neste país, sempre
simbolizou o racismo, sempre foi o símbolo da opressão, da injustiça e da discriminação. Consequentemente, o movimento social se
organiza no sentido de transformar essa realidade e passou a ser caracterizado como um movimento anti-branco. (Lino de Almeida in
Neris, 2018: 134)
Que atrativo pode ter a escola para uma criança negra, se a família
que lhe apresentam como modelo é aquela da classe média branca,
‘certinha’, vivendo numa espécie de paraíso? Que atrativo pode ter a
A PARTICIPAÇÃO DE NEGROS E NEGRAS NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE
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escola para uma criança negra se a opressão e a exploração em que
vive sua comunidade são consideradas naturais? Que atrativo pode a
escola oferecer para uma criança negra se seu passado histórico, sua
ancestralidade são caracterizados como exemplos de sujeição, submissão e subserviência e não de resistência e de luta contra a violência
do sistema imposto pelo dominador branco? Que atrativo pode ter a
escola para uma criança negra, se a produção cultural de sua comunidade só é considerada a partir da ótica distorcida do exotismo, nas
camadas do folclore? Que atrativo a escola pode oferecer a uma criança
negra e pobre se sua presença mesma, de criança negra e pobre, é
cotidianamente negada nas atividades didáticas? Que atrativo pode
ter a escola para uma criança negra se quando ela reage às práticas
infantilizantes e repressivas dessa mesma escola é remetida para os
setores de ‘assistência’ psicológica ou psiquiátrica como ‘desajustada’
ou coisas tais? Nem mesmo o único atrativo que lhe é oferecido, ou
seja, a merenda escolar consegue reter por muito tempo o contingente de crianças negras e pobres que frequentam a rede escolar oficial.
Preferem ‘ir à luta’, viver de expedientes, de pequenos trabalhos ‘pra
ajudar em casa’ do que ‘perder tempo’ na escola. O mínimo de salário
que venham a ganhar lhes parece muito mais compensador do que
ficar ‘quebrando a cabeça’. E têm toda razão infelizmente. (Helena
Theodoro in Neris, 2018: 168 )
(...) Modificar a escola, incluirmos currículos a história do negro do
Brasil e a história do negro em África. Estabelecer uma relação de
igualdade, entre os cultos afro-brasileiros com os cultos católicos e
protestantes. É uma necessidade efetiva para que nós possamos ver
um Brasil real. Essa Subcomissão tem uma responsabilidade muito
grande, a meu ver. Porque é a responsabilidade de construir um novo
Brasil; de construir a possibilidade de se entender que este País é um
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
país plural e que nós temos que fazer alianças, temos que dar um pulo
muito grande, de sair de uma ótica, que é uma ótica unificada, posta
no liquidificador, homogênea, para uma ótica heterogênea. Porque
a riqueza está no diferente, não está no igual. A grande riqueza do
nosso país está exatamente aí, nessa possibilidade que nós temos dessas diferenças; em modificar o nosso discurso. (Helena Theodoro in
Neris, 2018:110 )
Ademais, chama atenção neste momento do processo a preocupação por parte do movimento social em garantir “algo mais que a
igualdade formal no texto da constituição”.
Nesse sentido observamos reiteradas tentativas de definição
do termo isonomia ou dos mecanismos de caráter compensatório e
de propostas nesse sentido, tanto por parte da militância quanto dos
constituintes:
Desde as Constituições de 1934 e 1946, estão dizendo que todos somos iguais perante a lei. Nós queremos, sim, mecanismos de resgate
que possam colocar o negro efetivamente numa situação de igualdade porque, até o presente momento, somos iguais perante a lei,
mas quem somos nós? Somos as grandes populações dos presídios,
da prostituição, da marginalização no mercado de trabalho. Nós queremos, sim, que a Constituição crie mecanismos que propiciem um
efetivo “começar” em condições de igualdade da comunidade negra
neste País. (...) Nós não estamos aqui brincando de fazer Constituição. Não queremos essa lei abstrata e geral que, de repente, reproduz
aquela história de que no Brasil não existe racismo, porque o negro
reconhece o seu lugar. Nós queremos, efetivamente, que a lei crie estímulos fiscais para que a sociedade civil e o Estado tomem medidas
concretas de significação compensatória, a fim de implementar aos
brasileiros de ascendência africana o direito à isonomia nos setores de
A PARTICIPAÇÃO DE NEGROS E NEGRAS NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE
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trabalho, remuneração, educação, justiça, moradia, saúde, e vai por
aí afora. (...)
Gente, nós não somos iguais perante essa lei, absolutamente, tanto
que o sacrifício que fizemos para chegar aqui, nós que somos a maioria da população brasileira, por que não está cheio de negros aqui?
Por que esta Constituinte é tão plena de brancos e tem apenas uns
gatinhos pingados de negro? Vamos refletir a respeito disso, e termos
a seriedade de levar a fundo a questão de construir uma sociedade
nova, uma Constituição que garanta o princípio da isonomia, senão,
malandro é a velha heteronomia que nós já conhecemos desde 1500.
(Lélia Gonzalez in Neris, 2018: 116)
O que nós queremos é que a cultura negra seja reconhecida com tal,
não é para separar, não é para fazer o jogo inverso do racismo. Eu
não acredito que cultura nenhuma seja superior à outra, mas acredito
que cada cidadão possa ter o direito de ter a sua história, de ter a sua
identidade, de ter o seu ethos. Então, se eu sou resultado de negros
africanos, de japoneses, de portugueses, eu quero conhecer o lado
dos portugueses, o lado dos japoneses, o lado dos africanos. Por que
privilegiar um grupo e não privilegiar outro? O que nós queremos é
igualdade. Quando nós pensamos em pluralidade, nós pensamos em
compor, fazer alianças, mas não colocar no liquidificador fazendo
coisa nenhuma, porque colocar tudo no liquidificador é fazer uma salada que não é nada. O que é realmente a identidade cultural brasileira? É um pouquinho de cada coisa mexida em função dos interesses
de quem está sempre no poder. E por que este poder não muda? Por
que estão sempre os mesmos no poder? Por que os despossuídos são
sempre os mesmos? E que diabo de Constituição é essa que garante
a igualdade, e essa igualdade não existe? (Helena Theodoro in Neris,
2018:117)
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
(...) não seria a hora de chegarmos e, no que diz respeito àquela preocupação da Lélia e da Helena, colocado de uma outra forma pelo
Constituinte Alceni Guerra, dizermos concretamente, metendo os
dedos na ferida: no Brasil, as vagas nas escolas públicas, as vagas nas
escolas privadas, as vagas nas igrejas, se quiserem radicalizar, serão
divididas proporcionalmente. Será um choque! As vagas no mercado
de trabalho serão divididas proporcionalmente (...)
Não sei se teremos força política para cumprir um preceito constitucional desse nível. Aí, vem a questão que coloquei no início; de
toda essa consciência da cidadania negra, do cidadão negro, teremos
a força política para com que isso se tome uma realidade, na prática, a nível do respeito aos direitos do cidadão. Mas, por outro lado,
estou ficando cansado de ver a luta dos homens e mulheres negras
neste País não se viabilizar politicamente, porque o preconceito, a
negação dos direitos, a negação de uma identidade histórica, que é
a própria negação da nossa história, é muito forte na consciência
racista deste País. (José Carlos Sabóia in Neris, 2018:120)
Nota-se também, por meio das audiências, que a militância
possuía clareza de que a Constituição representava uma etapa da luta
contra o racismo - um momento importante ao qual o Movimento
não estava subestimando (o que seria um “erro político”, como afirmou
um dos ativistas) mas que deveria ser acompanhada de uma atuação
constante nos anos vindouros no sentido de garantir a efetivação das
possíveis conquistas.
Demandas encaminhadas via sugestões
e emenda popular
O Movimento Negro encaminhou sete documentos assinados
A PARTICIPAÇÃO DE NEGROS E NEGRAS NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE
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por pelo menos 70 organizações contendo sugestões à ANC. Nos quadros abaixo, as sistematizo. Vejamos:
Quadro I - Demandas do Movimento Negro Resoluções da Convenção Nacional o
Negro e a Constituinte
Assunto/Tema
Direitos e Garantias
Individuais
Violência Policial
Condições de Vida e
Saúde
Mulher
Demanda
1- Criminalização do preconceito de raça (inafiançável e imprescritível)
2- Proibição de pena de morte (ressalvada a legislação penal aplicável em
caso de guerra externa), prisão perpétua e banimento.
3- Respeito à integridade física e moral dos detentos e presidiários,
estabelecimento de atividade produtiva rentável ao/à presa sendo esta renda
revertida em prol de sua família na proporção de 80% sendo os 20% demais
em prol do sistema penitenciário,
4- Criação de um Tribunal Especial para julgamento dos crimes de
discriminação racial.
5- Consideração da tortura física e/ou psicológica como crime contra a
humanidade.
1- Unificação das Polícias Civil e Militar (e instituição de cursos permanentes
de reciclagem e melhores critérios de seleção e admissão de policiais no
sentido de garantir o respeito à integridade física e moral do cidadão
independente de sua raça ou cor)
2- Crimes relacionados ao abuso do poder cometidos pela polícia serão
julgados pela justiça comum
1- Licença-maternidade de seis meses
2- Legislação específica para fortalecimento de programas de prevenção de
doenças
3- Estatização, socialização e unificação do Sistema de Saúde
4- Assistência ao idoso independente de contribuição à previdência
5- Estatização do transporte público
6- Construção de moradias dignas para as populações carentes e de baixa
renda. O gasto com a moradia não será superior a 10% do salário do
trabalhador.
7- Destinação de 20% do Orçamento da União à saúde.
8- Nacionalização todas as Indústrias e Laboratórios Farmacêuticos no País
1- Que seja assegurada a plena igualdade de direitos entre o casal, e que,
à mulher mãe, seja assegurado o direito de fazer constar no Registro de
Nascimento do filho, o nome do pai, independentemente do estado civil da
declarante.
2- Proibição de implantação de todos e quaisquer programas de controle da
natalidade pelo Estado.
3-Descriminalização do aborto na forma que dispuser a lei ordinária continua
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Menor1
1- Estabelecimento de que é dever do Estado a educação e a manutenção da
criança carente dos zero aos dezesseis anos
2- Proibição da manutenção de Casa de Detenção de Menores. O Menor
Infrator terá assistência social extensiva à sua família.
Educação
1- O processo educacional respeitará todos os aspectos da cultura brasileira. É
obrigatório a inclusão nos currículos escolares de I, II e III graus, do ensino da
História da África e da História do Negro no Brasil.
2- A Educação será gratuita, em todos os níveis, independentemente da idade
do educando. Será obrigatória a nível de I e II graus.
3- A elaboração dos currículos escolares será, necessariamente, submetida à
aprovação de representantes das comunidades locais.
4- A verba do Estado destinada à Educação corresponderá a 20% do
Orçamento da União.
5- Que seja alterada a redação do § 8.0 do Artigo 153 da Constituição Federal,
ficando com a seguinte redação: A publicação de livros, jornais e periódicos
não dependem de licença da autoridade. Fica proibida a propaganda de
guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de religião, de raça, de cor
ou de classe, e as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons
costumes.
6- A ocupação dos cargos de direção e coordenação nas escolas públicas e de
delegado de ensino serão efetivadas mediante eleição, com a participação dos
professores, alunos e pais de alunos.
Cultura
1- Proibição da veiculação de mensagens, em todos e quaisquer veículos de
comunicação de massa, que ofendam a integridade moral, espiritual e cultural
da pessoa do cidadão negro.
2- Em substituição ao § 5º do Artigo 153 da Constituição Federal, que passe
a constar que: Fica assegurada a liberdade de culto religioso e garantida a
prática de todas e quaisquer manifestações culturais, independentemente
de sua origem racial, desde que não sejam ofensivas à moral e aos bons
costumes.
3- Que seja declarado Feriado Nacional, o dia 20 de novembro, data da morte
de Zumbi, o último Iíder do Quilombo dos Palmares, como o Dia Nacional da
Consciência Negra.
4- Que seja efetivado o reconhecimento expresso do caráter multirracial da
Cultura Brasileira.
Terra
1- Será assegurada às populações pobres o direito à propriedade do solo
urbano e rural, devendo o Estado implementar as condições básicas de
infraestrutura em atendimento às necessidades do Homem.
2- Será garantido o título de propriedade da terra às comunidades negras
remanescentes de quilombos, quer no meio urbano ou rural.
3- Que o bem imóvel improdutivo não seja transmissível por herança. Que o
Estado promova a devida desapropriação.
1. Termo ainda utilizado pelo Movimento Negro no período, embora saibamos de sua inadequação
continua
e substituição por “criança e adolescente” inclusive por demanda de atores/atrizes atuantes na área
de Direitos Humanos na Constituinte.
A PARTICIPAÇÃO DE NEGROS E NEGRAS NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE
Trabalho
| 223 |
1- Que a duração da jornada diária do trabalho não exceda a 6 (seis) horas,
ficando ainda, assegurado o repouso semanal remunerado e, igualmente, os
feriados civis e religiosos, de acordo com a tradição local.
2- Estabilidade do trabalhador no emprego, desde o início do Contrato de
Trabalho.
3- Reconhecimento da profissão de Empregada Doméstica e Diaristas, -de
acordo com o estabelecido na CLT.
4- Aposentadoria por tempo de serviço com salário integral, acrescido de 30%,
a título de bonificação.
5- Trabalhadores, de qualquer categoria profissional ou ramo de atividade,
inclusive rural:
- salário mínimo real;
- direito irrestrito de greve;
- liberdade e autonomia sindical;
- proibição de diferença de salários e de critérios de admissão no trabalho, por
motivo de sexo, cor ou estado civil.
6- Escala móvel de salário, de acordo com a elevação do custo de vida.
7- Licença aos pais, nos períodos de natal e pós-natal do filho, para usufruir
com plenitude da paternidade.
8- Que seja assegurado também ao marido ou companheiro, o direito de
usufruir dos benefícios previdenciários decorrentes da contribuição da esposa
ou companheira.
9- Direito de sindicalização para os funcionários públicos
10- Que seja criado o “Juizado de Pequenas Causas” na área trabalhista
11- Responsabilidade do Estado pela indenização imediata de acidentes ou
prejuízos que o trabalhador for vitimado no exercício profissional, assegurando
ao Estado o direito de ação regressiva contra o empregador ou contra o
próprio empregado quando apurada a responsabilidade.
Relações Internacionais 1- Rompimento imediato de relações diplomáticas e/ou comerciais com
todos e quaisquer países que tenham institucionalizado qualquer tipo
de discriminação entre sua população.
Fonte: Elaboração própria.
| 224
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Quadro II - Demandas do Movimento Negro Centro de Estudos Afro-brasileiros
“Caminhos” para a
questão racial2
Demanda
Coercitivo
1- Todos são iguais perante a lei, que punirá como crime inafiançável qualquer
discriminação atentatória aos direitos humanos.
2- Aos juízes federais compete processar e julgar os crimes de discriminação
Promocional
1- Ninguém será prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento, raça,
cor, sexo, trabalho rural ou urbano, religião, convicções políticas ou filosóficas,
deficiência física ou mental, orientação sexual e qualquer outra particularidade
ou condição social.
- Não constitui privilégio ou fortalecimento dos segmentos tradicionais e
historicamente prejudicados por diversas razões.
- O poder público, mediante programas específicos, promoverá a igualdade
social, econômica e educacional.
- Lei Complementar atenderá de modo especial os deficientes de forma a
integrá-los na comunidade.
2- Considera-se atividade econômica atividade econômica aquela realizada no
recesso do lar.
3- O cooperativismo e o associativismo serão estimulados pelo Estado.
Didático-Pedagógico
Plano Nacional de Recuperação social
4 - Será criado, pelo Governo federal, um Fundo Contábil Especial, de
natureza permanente, com dotações orçamentárias da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos municípios, para atender a programa de assistência
às populações carentes e marginalizadas, em todo território nacional, com
o objetivo de reduzir as desigualdades sociais e econômicas em que se
encontrem e integrá-las na sociedade brasileira, no uso e gozo da cidadania
plena.
- Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre o Fundo Nacional de
Recuperação Social, sobre a elaboração de aplicação dos recursos que o
integrem, sobre os encargos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
municípios com o seu custeio e os critérios da respectiva fixação, e sobre a sua
administração, da qual participarão representantes dos próprios beneficiados.
Inconstitucionalidade por omissão
Os direitos e garantias constantes desta Constituição têm aplicação imediata.
- Na falta ou omissão da lei, o juiz decidirá o caso de modo a atingir os fins
da norma constitucional;
2. Utilizo essa categoria porque no documento as demandas são assim classificadas.
A PARTICIPAÇÃO DE NEGROS E NEGRAS NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE
Didático-Pedagógico
| 225 |
- Verificando-se a inexistência ou omissão da lei que inviabiliza a plenitude
da eficácia de direitos e garantias asseguradas nesta Constituição, o Supremo
Tribunal Federal recomendará ao Poder competente a edição da norma que
venha suprir a falta.
Educação (além das já contempladas no documento da Convenção Nacional):
1- A educação é inseparável dos princípios da igualdade entre o homem e a
mulher, do repúdio a todas as formas de racismo e de discriminação,
- permitirá de forma larga ao legislador ordinário criar uma nova orientação
à educação, no sentido de potencializar mulheres e negros (50,5% e 44% da
população, respectivamente).
2 - O acesso ao processo educacional é assegurado:
- pela gratuidade do ensino público em todos os níveis;
- pela adoção de um sistema de admissão nos estabelecimentos de ensino
público que, na forma da lei, confira a candidatos economicamente carentes,
desde que habilitados, prioridade de acesso, até o limite de 50% das vagas;
- pela expansão desta gratuidade, mediante sistema de bolsas de estudo,
sempre dentro da prova de carência econômica de seus beneficiários;
- pelo auxílio suplementar ao estudante para alimentação, transporte
e vestuário, caso a simples gratuidade de ensino não permita,
comprovadamente, que venha a continuar seu aprendizado;
- pela coação complementar à rede municipal de escolas de promoção
popular capazes de assegurar efetivas condições de acesso à educação de toda
a coletividade.
Cultura (além das já contempladas no documento da Convenção Nacional):
1- Compete ao Poder Público garantir a liberdade da expressão criadora
dos valores da pessoa e a participação nos bens de cultura, indispensáveis à
identidade nacional na diversidade da manifestação particular e universal de
todos os cidadãos.
- Esta expressão inclui a preservação e o desenvolvimento da língua e dos
estilos de vida formadores da realidade nacional.
É reconhecido o concurso de todos os grupos historicamente construtivos
da formação do País, na sua participação igualitária e pluralística, para a
expressão da cultura brasileira. É reconhecido o concurso de todos os grupos
2- Para o cumprimento do disposto no artigo anterior. O Poder Público
assegurará:
- o acesso aos bens da cultura na integridade de suas manifestações;
- a sua livre produção, circulação e exposição a toda a coletividade;
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Didático-Pedagógico
- preservação de todas as modalidades de expressão dos bens de cultura
socialmente relevantes, bem como a memória nacional.
3- O Poder Público proporcionará condições de preservação da ambiência dos
bens da cultura, visando a garantir:
- o acautelamento de sua forma significativa, incluindo, entre outras medidas,
o tombamento e obrigação de restaurar;
- o inventário sistemático desses bens referenciais da identidade nacional.
4- São bens de cultura os de natureza material ou imaterial, individuais
ou coletivos, portadores de referência à memória nacional, incluindo-se os
documentos, obras, locais, modos, de fazer de valor histórico e artístico, as
paisagens naturais significativas e os acervos arqueológicos.
Fonte: Elaboração própria.
O olhar para tais demandas revela que a agenda do Movimento Negro extrapolava, naquele contexto, os limites da raça, em
um sentido estrito. Com isso, quero dizer que outras variáveis estavam
presentes no diagnóstico das condições de vida da população negra e,
principalmente na formulação de sugestões.
Identifico nos documentos dois tipos de pleitos: (i) aqueles relacionados à problemas gerais que incidem majoritariamente sobre a
população negra como violência policial, questão carcerária, direito
à saúde (das mulheres, principalmente), acesso à educação, acesso ao
trabalho (direitos trabalhistas de profissionais do campo e empregadas
domésticas e diaristas), acesso à terra e (ii) àqueles relacionados mais
estritamente com o pertencimento racial e que possuíam objetivos de
caráter coercitivo, promocional e didático-pedagógico de acordo com
os/as próprios/as ativistas.
Representam tais medidas: a criminalização da discriminação/
preconceito/racismo, a adoção de medidas com objetivo de cumprir
o princípio da isonomia (de modo a promover negros e mulheres), a
proposta de reforma curricular, o reconhecimento do caráter multicultural e pluriétnico do país, o reconhecimento de Zumbi dos Palmares
como herói nacional, o rompimento de relações diplomáticas com
A PARTICIPAÇÃO DE NEGROS E NEGRAS NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE
| 227 |
países que tivessem institucionalizado qualquer tipo de discriminação
e a garantia de título de propriedade à comunidades remanescentes de
quilombos.
Todos os pleitos que compreendi ser do segundo tipo estão
presentes na emenda popular proposta pelas entidades Centro de Estudos Afro-Brasileiros – DF, Associação Cultural Zumbi – AL e Associação José do Patrocínio – MG e o constituinte subscritor foi Carlos
Alberto Caó – PDT/RJ que possui os seguintes dispositivos:
Artigo 5º Todos, homens e mulheres são iguais perante a lei que punirá como crime inafiançável qualquer discriminação atentatória
aos direitos humanos estabelecida nesta Constituição.
Parágrafo único: É considerado forma de discriminação subestimar,
estereotipar ou degradar grupos étnicos raciais ou de cor, ou pessoas a eles pertencentes, por palavras, imagens e representações
através de qualquer meio de comunicação.
O Poder Público tem o dever de promover constantemente a igualdade social, econômica e educacional, através de programas específicos.
§1º Não constitui privilégio a aplicação pelo Poder Público de medidas
compensáveis visando à implementação do principio de isonomia
a pessoas ou grupos vítimas de comprovada discriminação.
§2º Entendem-se como medidas compensatórias, previstas no parágrafo anterior, aquelas voltadas a dar preferência a cidadãos ou
grupos de cidadãos a fim de garantir sua participação igualitária
no acesso ao mercado de trabalho, à educação, à saúde e aos demais direitos sociais.
§3º A educação dará ênfase à igualdade dos setores, afirmará as
características multirraciais e pluriétnicas do povo brasileiro e
condenará o racismo e todas as formas de discriminação.
§4º O Brasil não manterá relações diplomáticas, nem firmará tratados,
acordos ou pactos com países que adotem políticas oficiais de
| 228
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
discriminação racial e de cor, bem como não permitirá atividades
de empresas desses países em seu território.
Artigo 68º Fica declarada a propriedade definitiva das terras ocupadas
pelas comunidades negras remanescentes de quilombos, devendo
o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. Ficarão tombadas essas
terras bem como documentos referentes à história dos quilombos
no Brasil.
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS DEMANDAS
E SEU LEGADO
Ao estudarmos o texto final da Constituição notamos que a
mesma incorporou os pleitos relativos aos seguintes temas criminalização, relações diplomáticas cultura, educação e questão quilombola,
quais sejam:
1) Dos Princípios Fundamentais
Artigo 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação;
2) Dos Princípios Fundamentais
Artigo 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações
internacionais pelos seguintes princípios:
VIII repúdio ao terrorismo e ao racismo;
3) Dos Direitos e Garantias Fundamentais - DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS
Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residen-
A PARTICIPAÇÃO DE NEGROS E NEGRAS NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE
| 229 |
tes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XLII a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
4) Dos Direitos e Garantias Fundamentais - DOS DIREITOS SOCIAIS
Artigo 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de
outros que visem à melhoria de sua condição social:
XXX proibição de diferença de salários, de exercício de funções e
de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado
civil;
5) Da Ordem Social - DA EDUCAÇÃO, DA CULTURA E DO
DESPORTO DA CULTURA
Artigo 215 O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e
incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,
indígenas e afro- brasileiras, e das de outros grupos participantes
do processo civilizatório nacional.
§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta
significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.
6) Da Ordem Social - DA EDUCAÇÃO, DA CULTURA E DO
DESPORTO DA CULTURA
Art. 216 Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial,
tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
§ 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores
de reminiscências históricas dos antigos quilombos.
7) Das Disposições Constitucionais Gerais Artigo 242
§ 1º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições
das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro.
8) Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
Artigo 68 Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que
estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A incorporação de tais dispositivos na CF é uma importante
conquista do Movimento Negro. A Constituinte foi de fato o momento em que a temática inseriu-se na agenda governamental brasileira.
Apesar de alocada em instância desvalorizada por diferentes setores
ao longo do processo – e que encarou marcadores sociais da diferença
muito diversos entre si na chave do preconceito e não da desigualdade
estrutural –, devido ao caráter descentralizado do desenho da ANC,
vimos a temática racial incluir-se nos relatórios e anteprojetos iniciais
da Constituição, logrando resistência somente nas etapas finais, quando demandas redistributivas e com foco na população negra foram
obstados.15
A partir deste momento histórico, o direito tornou-se para tais
atores/atrizes campo de disputa: tais demandas inseridas ensejaram
lutas posteriores por regulamentação e efetiva implementação de leis
15. Importante ressaltar que para além da atuação da sociedade civil, os parlamentares Benedita da Silva,
Paulo Paim, Edimilson Valentim e Carlos Alberto Caó, também conhecidos como a “bancada negra” tiveram
papel fundamental no sentido de pautar a temática racial até o final do processo.
A PARTICIPAÇÃO DE NEGROS E NEGRAS NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE
| 231 |
o que a quantidade de projetos de lei (PLs) apresentadas nas últimas
décadas torna evidente: vimos que entre 1988 e 2001 um pouco mais
de uma centena de propostas foram apresentadas no Congresso Nacional (Santos, 2014).
Gráfico 1 PLs por ano16
Fonte: Elaboração própria.
Entre avanços, permanências o olhar retrospectivo nos revela
que apesar dos desafios inclusive em termos de representatividade, a
ANC não foi uma conversa entre brancos. As vozes de ativistas organizados em diferentes partes do país ainda na década de 1970 e constituintes aliados se fizeram presentes.
Resgatar essa agenda e atores/atrizes é fundamental uma vez
que o Movimento Negro contemporâneo possuía desde o período pré16. É interessante notar que nos anos em que houve algum tipo de mobilização por parte do movimento
social o número de proposta é relativamente maior: 1988/1989 marcam os anos de intensa mobilização de
entidades do Movimento Negro por ser o período de atos alusivos ao Centenário da abolição da escravatura -;
em 1995, ano do tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares, novamente o número de propostas eleva-se
e, por fim, nos anos que antecedem imediatamente a Conferência Internacional de Durban o número de
propostas mantêm-se elevado (1999, 2000 e 2001).
| 232
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
-Constituinte propostas consistentes para a redução das desigualdades
(não apenas raciais) no Brasil e foi um dos atores-chave no processo de
redemocratização. Para além disso, tal tarefa é urgente, em tempos de
evidente retrocesso. Mirar diagnósticos, avaliar criticamente processos
de institucionalização da temática e revisitar estratégias de luta por
direitos em muito nos poderá auxiliar, trinta anos depois e mais uma
vez diante de uma crise política, econômica e social.
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| 235 |
CAPÍTULO 9
REGULAÇÃO E DINÂMICA DO
MERCADO DE TRABALHO
BRASILEIRO
TIAGO OLIVEIRA1
SANDRO PEREIRA SILVA2
A Constituição Federal promulgada em 1988 (CF-1988) trouxe uma série de novidades para a regulação do mercado de trabalho
brasileiro: constitucionalizou e estendeu direitos dos trabalhadores;
promoveu uma ruptura, ainda que parcial, com a tutela estatal sobre a
representação sindical; e, por fim, lançou os alicerces para a formação
de um sistema público de emprego, a partir do estabelecimento de
um fundo de financiamento para as políticas de mercado de trabalho
(GONZALES et al, 2009). De fato, houve uma tentativa de ampliação da regulação pública do mercado de trabalho brasileiro, sobretudo
no tocante ao padrão de contratação e dispensa, do uso e da remuneração da força de trabalho, entre outros aspectos. Este conjunto de
alterações representou o anseio de ampla parcela da sociedade brasilei1. Economista graduado pela UFBA. Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp.
Pesquisador-bolsista da Disoc/Ipea.
2. Economista e Mestre em Economia pela UFV. Doutor em Políticas Públicas e Estratégia de Desenvolvimento pela UFRJ. Técnico em Planejamento e Pesquisa do Ipea.
| 236
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
ra, submetida a uma situação de baixo poder aquisitivo dos salários e
elevado grau de desproteção social.
No entanto, no momento da promulgação da CF-1988 já era
bastante evidente a perda de dinamismo da economia brasileira, decorrente da exasperação dos limites enfrentados pelo processo de industrialização em marcha desde a década de 1930, da hiperinflação, e
da eclosão da crise da dívida externa, o que precipitou o abandono do
projeto nacional-desenvolvimentista e a opção por políticas econômicas compromissadas com a transferência de recursos ao exterior.
Alimentado pelo cenário econômico bastante adverso, a reação da classe empresarial ao avanço da regulação pública do trabalho,
já presente desde as discussões na Assembleia Nacional Constituinte
(ANC), foi se avolumando ao longo dos anos seguintes. O discurso era de que a CF-1988, apesar das boas intenções que moviam os
constituintes, implicava aumento da rigidez e de custos na gestão microeconômica do trabalho e, consequentemente, na ampliação do desemprego e da informalidade. Porém, a realidade tem se revelado bem
mais complexa, indicando que outros fatores também influenciam na
relação entre regulação do mercado de trabalho, geração de novas ocupações e formalização das relações de emprego.
Neste texto, defende-se que o arcabouço normativo introduzido pela Carta Magna não foi e não é um empecilho para que o
mercado de trabalho brasileiro apresente uma trajetória dinâmica e
inclusiva. Uma análise comparativa do comportamento do mercado
de trabalho brasileiro nas últimas três décadas permite defender tal
ponto de vista, com destaque para as distintas orientações de políticas econômica e de desenvolvimento implementadas no período. Para
isso, o texto está dividido em cinco seções, além desta introdução, que
transcrevem o processo de inter-relação entre dinâmica econômica,
mercado de trabalho e regulação trabalhista no Brasil desde a promulgação da CF-1988.
REGULAÇÃO E DINÂMICA DO MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO
| 237 |
O PROCESSO CONSTITUINTE E OS PRIMEIROS ANOS
DA CF-1988
O modelo de regulação do trabalho vigente no Brasil apresenta
elevada estabilidade em perspectiva histórica, o que se relaciona diretamente com o fato da Legislação Trabalhista ter seus pontos fundamentais assegurados constitucionalmente, característica iniciada com
a Constituição de 1934 (Cardoso, 2016). Em bases gerais, pode-se
dizer que tal modelo foi constituído ao longo do século XX a partir de
três aspectos centrais:
i) normatização dos direitos do trabalho pelo Estado (modelo
legislado de relações de trabalho);
ii) controle do conflito social, por meio da tutela dos sindicatos de trabalhadores, cuja contrapartida foi a pouca difusão da organização coletiva no local de trabalho e elevada
discricionariedade da empresa na fixação das condições de
trabalho; e
iii) amplo contingente de trabalhadores pressionando o mercado de trabalho, permitindo às empresas utilizar a rotatividade e definir salários (Gonzalez et al., 2009).
Em 1943, a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) complementou o arcabouço regulatório, assegurando direitos e promovendo
novas proteções aos trabalhadores, inclusive em seus períodos de inatividade, embora sua normatização se restringisse aos ocupados urbanos, que constituía a minoria da força de trabalho no país à época.
Com isso, buscou-se estabelecer as bases para a sociabilidade capitalista no país, tida como essencial para o movimento de industrialização
e urbanização da economia brasileira (Cardoso; Lage, 2007).
Nos anos seguintes, as críticas e os embates em torno de pontos de divergência sobre diversos artigos da CLT resultaram em uma
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
série de mudanças, ocorridas em momentos políticos distintos da história brasileira, denominada por Campos (2013) de “ondas de flexibilização”. Assim, desde sua origem, a CLT serviu como uma espécie
de referência global sobre a qual se dirigiam os interesses de mudanças
regulatórias no campo das instituições trabalhistas (Cardoso, 2010).
Com a emergência da Assembleia Nacional Constituinte
(ANC) em 1986, já em um momento de redemocratização, uma nova
“janela de oportunidade” política (Kingdon, 1995) se abriu para as
disputas de interesses em torno desse campo da regulação pública.
Surgiram então novidades importantes para a estruturação do mundo
do trabalho no Brasil, tais como: a ruptura, ainda que parcial, com a
tutela da representação sindical, na medida em que terminou com as
prerrogativas do Estado de intervir nos sindicatos e autorizar o funcionamento de novas entidades de representação; e a extensão dos direitos sociais dos trabalhadores assalariados, consubstanciada no artigo
7º da CF-1988 (Krein; Santana; Biavaschi, 2010).
Não obstante, os resultados finais da ANC não atenderam algumas demandas importantes dos trabalhadores à época. Entre os exemplos, pode-se citar: a redução da jornada semanal de trabalho, de 48
para 44 horas, enquanto a proposta inicial do anteprojeto constava uma
redução para 40 horas; e a não aprovação da proposta de garantia contra
demissões imotivadas, mantendo-se a liberdade de demissão por parte
dos empregadores. Como compensação, houve um acréscimo na multa
indenizatória a ser aplicada sobre o saldo do Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS), que passou de 10% para 40%. Porém, tal
elevação da multa pouco alterou o cenário de ampla liberdade para a demissão injustificada no mercado de trabalho brasileiro, o que contribuiu
para a manutenção no país de altas taxas de rotatividade da mão de obra
nos anos posteriores (Gonzalez et al., 2009).
Adicionalmente, os críticos liberais difundiram a tese de que a
CF-1988 solapou as possibilidades de crescimento econômico elevado
REGULAÇÃO E DINÂMICA DO MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO
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e sustentável da economia brasileira e, portanto, de garantia de baixas
taxas de desemprego. Ao introduzir e estender direitos sociais “em demasia”, diziam os adeptos dessa tese, a nova Constituição promoveria,
de um lado, o deslocamento do setor privado na economia em prol do
setor público (menos eficiente, por suposto) e, de outro, comprimiria
o espaço fiscal para a expansão dos investimentos públicos.
Ancorando-se nessas premissas, as principais iniciativas posteriores de mudança institucional foram no sentido de flexibilizar as
normas de contratação e demissão, de regulamentação da jornada de
trabalho e de remuneração dos assalariados. Contudo, essas mudanças encontraram maiores ou menores dificuldades para serem efetivadas de acordo com os diferentes contextos políticos e econômicos
pelos quais o país atravessou nessas três décadas pós CF-1988. As
seções posteriores discutem essa relação entre mudanças da institucionalidade trabalhista e desempenho econômico no Brasil ao longo
dessas três décadas.
DESREGULAMENTAÇÃO, PRECARIZAÇÃO E
ESTREITAMENTO DO MERCADO DE TRABALHO
A disputa em torno da regulação trabalhista no Brasil, desencadeada no âmbito da ANC, ganhou novos contornos nos anos 1990,
sobretudo em função das alterações no modelo de desenvolvimento
assumido no país. Essas alterações tiveram repercussões diretas na trajetória da economia e no nível geral de emprego. Segundo Pochmann
(2008, p. 11), o novo modelo adotado a partir do início daquela década buscou revisar o papel do Estado na economia, mediante uma racionalização e descentralização do gasto e privatização do setor produtivo estatal, e avançar nos processo de desregulamentação financeira
(liberalização da conta de capital e maior vinculação com ingressos financeiros internacionais), econômica (desnacionalização de empresas
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
e fusão de grandes firmas) e comercial (redução de tarifas e ampliação
das trocas externas).
O diagnóstico era de que o baixo crescimento econômico da
década anterior foi resultado da relutância do país em abandonar o
seu projeto e as suas instituições desenvolvimentistas. Nesse contexto,
havia uma pressão por uma integração mais intensa a uma globalização comercial e financeira de matiz neoliberal, na qual o câmbio sobrevalorizado e as privatizações tinham como objetivo reduzir o papel
do Estado na economia, oxigenar a concorrência e debelar o processo
inflacionário (Oliveira, 2017). Com base nesse “receituário”, fortemente influenciado pelo “Consenso de Washington”, o crescimento
econômico seria retomado mediante a ampliação da taxa de investimento privado e de aumentos salariais que adviriam de um esperado
incremento da produtividade, dadas as novas condições propiciadas
pelo controle dos “fundamentos macroeconômicos”.
Porém, o comportamento da economia durante a década de
1990 foi bastante distinto do que se esperava. Ainda que a inflação
tenha sido conduzida a patamares muito baixos para os padrões históricos brasileiros, o crescimento econômico mostrou-se bastante
insatisfatório – apenas um pouco superior ao observado nos anos
1980 –, o setor industrial enfrentou um processo de especialização
regressiva, concentrando sua atuação em ramos intensivos em mão-de-obra e recursos naturais, a dívida pública apresentou uma trajetória de alta acelerada, e as contas externas se deterioraram expressivamente (Carneiro, 2002). Os reflexos desse comportamento adverso
das variáveis macroeconômicas sobre o mercado de trabalho foram
amplamente discutidos na literatura: elevação das taxas de desemprego, crescimento da informalidade, , queda do rendimento médio real
do trabalho, e relativa estabilidade da concentração de renda, matendo o país na posição de um dos mais desiguais do mundo (Proni;
Henrique, 2003).
REGULAÇÃO E DINÂMICA DO MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO
| 241 |
Não se pode deixar de notar, contudo, que o cenário econômico internacional no período foi pontuado por crises sucessivas, que
abalaram o crescimento da economia mundial e causaram constrangimentos ao desempenho econômico interno. Por sua vez, a estratégia de inserção da economia brasileira na dinâmica econômica global
nesse período fortaleceu o discurso de desregulamentação do mercado
de trabalho, entoado por setores patronais organizados e pela classe
política que defendia uma dita “modernização” das instituições econômicas no país.
Nesse quesito, a modernização pretendida baseava-se na redução da regulação estatal sobre as relações de trabalho (retirando tanto
quanto possível da lei o seu papel na definição de pisos de direitos) e
na garantia de que as empresas pudessem negociar com maior liberdade as condições dos contratos junto aos trabalhadores ou às suas entidades de representação, com interferência reduzida da Justiça do Trabalho. Alegava-se que o Brasil deveria se adequar a um novo contexto
de competitividade internacional mais acirrada, pré requisito para a
atração do capital estrangeiro. Ou seja, soava razoável para muitos
a tese de que a situação precária a qual se encontrava o mercado de
trabalho brasileiro era devido à excessiva regulação que a gestão (contratação e dispensa), o uso e a remuneração da força de trabalho era
submetida no país, conforme já se destacou.
Ainda assim, os ataques sistemáticos às instituições de proteção
ao emprego no Brasil não obtiveram o grau de sucesso pretendido,
haja vista os documentos oficiais de organizações empresariais e os
projetos de lei apresentados no Congresso Nacional visando alterações
profundas na legislação (Krein; Santana; Biavaschi, 2010). Pode se
dizer, com isso, que as organizações sindicais e os movimentos sociais
em geral conseguiram mobilizar os interesses da população em torno
dessa temática para consolidarem um significativo poder de veto contra uma mudança mais radical na regulação pública do trabalho.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Porém, algumas mudanças substanciais ocorreram e valem ser
citadas, pois diversificaram as modalidades de contratos de trabalho
e abriram a possibilidade de que o contrato padrão por tempo indeterminado previsto na CLT pudesse perder importância relativa no
mercado de trabalho brasileiro.
Em 1996 foi introduzido o contrato de trabalho assalariado
especial para micro e pequenas empresas, no âmbito do Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições (SIMPLES). Ele
possibilitou a unificação de uma série de tributos e a transferência
de sua incidência para o faturamento, o que, na prática, implicou
redução no custo de contratação. No mesmo ano, foi lançada uma
reformulação do contrato temporário de trabalho (Portaria 2), que
permitiu às empresas um grau maior de discricionariedade para alocar
sua força de trabalho, a partir de uma ampliação das possibilidades de
utilização da Lei 6.019/1974, enquanto os trabalhadores sob esse tipo
de contrato tiveram parte de seus direitos trabalhistas flexibilizados.
Outros dois regimes de contratação possíveis foram aprovados em 1998. São eles: o contrato por tempo determinado (Lei
9.601/1998) e o contrato por jornada parcial de trabalho (MP
1.709/1998).3 Ambos permitiram às empresas dispor de novas modalidades de assalariamento e mais flexibilidade na gestão da força de
trabalho, além de diminuir os custos com folha de salário e encargos.
Seguindo nessa mesma perspectiva, foi instituído o mecanismo do
banco de horas (também pela Lei 9.601/1998), como estratégia para
as empresas organizarem a jornada de seus trabalhadores de acordo
com as necessidades e as flutuações dos seus negócios, com a possibilidade de dispensar o acréscimo de salário se o excesso de horas de um
dia for compensado por outro, de acordo com os limites estabelecidos
3. A MP 1.709/1998 ampliou as possibilidades de utilização do trabalho do estagiário em funções não
especializadas e, portanto, facilmente descaracterizadas como de aprendizagem concreta (GONZALEZ et
al., 2009).
REGULAÇÃO E DINÂMICA DO MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO
| 243 |
em convenção coletiva. Vale destacar ainda a denúncia da Convenção
158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ocorrida em
novembro de 1996 pelo governo federal.4
O setor público também foi impactado pelo avanço da flexibilização na regulação trabalhista. A partir de 1994, entrou em vigor
a possibilidade de participação nos lucros e resultados (PLR) para trabalhadores das empresas públicas (MP 794/1994),5 modalidade esta
que teve uma participação crescente na remuneração como forma de
salário variável, sem a incidência de encargos.6 Já em 1998, foi sancionada uma Emenda Constitucional (EC 19/1998) que possibilitou a
contratação de servidores públicos pelo regime da CLT. Por essa nova
modalidade, o contratado não teria direito à estabilidade e à aposentadoria integral, além de impor limites à despesa pública com pessoal
ativo e inativo da União, dos estados e dos municípios. Houve ainda
a regulamentação do Plano de Desligamento ou Demissão Voluntária
dos servidores públicos federais (Lei 9.468/1997),7 que também surgiu
como estratégia para possibilitar o ajuste de contas públicas via gasto
com o funcionalismo.
Apesar desse conjunto de mudanças, que possibilitou a redução dos custos sociais e trabalhistas com a força de trabalho no país,
ter ocorrido sob a defesa retórica de que o impulso à flexibilização nas
4. “Tal convenção, que estabelece normas restritivas à dispensa imotivada, havia sido ratificada pelo país em
janeiro de 1995 e promulgada por meio do Decreto 1.855, de abril de 1996. Após alguns meses de vigência,
o governo FHC resolveu denunciá-la, justificando que sua ratificação seria incompatível com o novo contexto de globalização econômica. Na prática, a intenção foi inibir o recurso a este expediente legal na ocasião
de eventuais demissões em massa, motivadas pela gestão da política econômica – em empresas privadas ou
estatais em processo de privatização –, e, também, na eventualidade de quebra da estabilidade dos servidores
públicos” (GONZALEZ et al., 2009, p. 123).
5. Convertida posteriormente na Lei 10.101/2000.
6. Segundo Gonzalez et al. (2009, p. 123), “a PLR contribuiu significativamente para a flexibilização salarial,
além de explicitar a intenção do governo FHC em fortalecer as negociações no nível da empresa, esvaziando
as negociações coletivas gerais por categoria. Nesse sentido, pode-se firmar que a regulamentação da PLR
também fez parte da estratégia de inibir reajustes salariais que pudessem comprometer, na visão do governo, o
plano de estabilização, permitindo, ao mesmo tempo, uma margem de manobra para as empresas atenderem
às reivindicações dos trabalhadores”.
7. Essa medida foi copiada posteriormente por estados e municípios.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
leis trabalhistas implicaria diretamente o crescimento e a formalização do emprego, essa associação causal não foi nem um pouco evidenciada pelos indicadores do mercado de trabalho durante os anos
1990. O que se observou de fato foi uma contínua desestruturação
do mercado de trabalho, com a elevação consistente do desemprego
aberto e o avanço da precarização dos vínculos de emprego. Mesmo
a recuperação da atividade econômica, observada a partir de 1993, e
o aumento da renda proporcionado pela estabilização da moeda pós1994, não foram suficientes para conter a deterioração do mercado de
trabalho. Conforme afirmou Pochmann (2008), o desemprego, que
até a década de 1980 podia ser considerado residual e concentrado
nos segmentos populacionais tradicionalmente identificados como
mais vulneráveis (jovens, mulheres, negros – todos geralmente com
escolaridade reduzida), generalizou-se de tal modo nos anos 1990 que
nenhum segmento social esteve imune a esse risco.
Um reflexo bastante ilustrativo nesse sentido é a variação do
estoque de empregos formais no Brasil (públicos e privados) ao longo
dos anos 1990. Tomando uma série que parte de 1986, ano que se
iniciaram os trabalhos da ANC, os dados apontam para uma elevação no total de vínculos de emprego com registro até 1989, quando
o país superou pela primeira vez a barreira dos 24 milhões de postos
de trabalho formalizados. Desde então, o país passou por um momento de desestruturação evidente no mercado de trabalho. Entre
1990 e 1992 foram destruídos cerca de 2,2 milhões desses empregos.
Embora os anos seguintes tenham voltado a apresentar saldo positivo
na criação de postos de trabalho, o país só foi alcançar novamente
o nível vigente em 1989 dez anos mais tarde, em 1999 (ver Anexo).
Essa situação é ainda mais dramática se considerar que houve um
crescimento da população economicamente ativa no mesmo período
de aproximadamente 32%.
REGULAÇÃO E DINÂMICA DO MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO
| 245 |
Portanto, o comportamento bastante adverso do mercado de
trabalho brasileiro refletiu o ambiente econômico hostil prevalecente
durante toda a década de 1990 e o início dos anos 2000. A combinação de baixa capacidade de geração líquida de empregos (que redundou em um crescimento expressivo do desemprego) e diminuição
da taxa de assalariamento (e alta da informalidade) provocaram um
“estreitamento” do mercado de trabalho brasileiro (Baltar, 2003).8 Do
ponto de vista da renda do trabalho, observou-se uma trajetória de
queda em termos reais a partir da segunda metade dos anos 1990 (a
renda média do trabalho principal era de 1.136 reais em 1995, de
1.081 reais em 1999, e de 989 reais em 2003) e uma relativa estabilidade de sua desigualdade distributiva (o índice de Gini foi estimado
em 0,614 em 1990, em 0,594 em 1999, e em 0,583 em 2003)9, mantendo-se entre as mais concentradas do mundo.10
Em 1999, logo no início do segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, o governo alterou o regime cambial
com a adoção do câmbio flutuante, que levou a uma subsequente
desvalorização do real. Tal mudança revelou um novo horizonte para
o crescimento econômico, impulsionado, sobretudo, pelo setor externo. A partir desse ano o nível do emprego formal começou a registrar
um movimento menos desfavorável, com elevação do saldo positivo
na criação de postos de trabalho (ver Anexo). Entretanto, o persistente
cenário de vulnerabilidade externa, aliado a problemas internos de
infraestrutura (como a insuficiente oferta energética que gerou o apagão em 2001) e a manutenção de políticas monetária e fiscal bastante
restritivas impediram que uma nova trajetória de desenvolvimento
pudesse ser esboçada já a partir do ano 2000 (Carneiro, 2002).
8. Os dados podem ser visualizados no Anexo.
9. Informações obtidas no Ipeadata (http://www.ipeadata.gov.br).
10. A respeito do comportamento da desigualdade da renda do trabalho nos anos 1990 ver, por exemplo,
Deddecca (2003).
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
O PROCESSO DE ESTRUTURAÇÃO INCLUSIVA DO
MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO
A dinâmica anotada pelo mercado de trabalho brasileiro a partir dos primeiros anos de 2000 reforça o argumento que aqui se procura desenvolver. Naquele momento, a combinação de um cenário
externo favorável, manifesto na valorização dos preços das commodities, e de políticas de estímulo ao mercado interno de consumo (como
a ampliação do crédito, a valorização do salário mínimo, e a expansão
das políticas sociais) e aos investimentos, propiciou uma aceleração
do crescimento econômico com impactos bastante positivos sobre os
principais indicadores de mercado de trabalho: as taxas de desemprego atingiram patamares muito baixos comparativamente ao observado na década de 1990 (em 2003, situava-se em 10,5%, recuando para
6,7% em 2012, apesar da ligeira alta observada nos dois anos seguintes); e o emprego formal ampliou-se muito rapidamente, diminuindo
a taxa de informalidade (em 2003 era de 57,4%, diminuindo para
46,4% em 2013, com pequena alta em 2014 para 47,3%).11 Paralelamente, observou-se o crescimento do rendimento médio real (de 989
reais em 2003 para 1.684 reais em 2014) e uma queda considerável
da desigualdade de renda do trabalho (de 0,583 em 2003 para 0,518
em 2014).12
Cardoso Jr. (2013) elencou alguns fatores institucionais que
ele identificou como fontes de recuperação do emprego formal no
Brasil na primeira década dos anos 2000, influenciados diretamente
pelas políticas governamentais. São eles:
i) aumento e descentralização do gasto social federal, com o
impulso do novo marco regulador expresso pela CF-1988;
11. Dados disponíveis no Anexo.
12. Informações obtidas no Ipeadata (www.ipeadata.gov.br). Para uma discussão mais aprofundada sobre o
período, ver Cardoso Jr (2013) e Oliveira (2017).
REGULAÇÃO E DINÂMICA DO MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO
| 247 |
ii) expansão e diversificação do crédito interno, com maior
atuação do conjunto de bancos públicos;
iii) aumento e diversificação do saldo exportador na determinação do PIB, sobretudo depois da desvalorização cambial
de 1999;
iv) regime tributário simplificado para micro e pequenas empresas, que teria funcionado como um fator explícito de incentivo à formalização e ao fortalecimento desses pequenos
negócios; e
v) melhora das ações de intermediação de emprego e de fiscalização do Ministério do Trabalho.
Apesar da dificuldade em estabelecer causalidades diretas, os
fatores evidenciados pelo autor buscam explicar a dinâmica de assalariamento formal do mercado de trabalho brasileiro observada nesse
período, todos operando simultaneamente em uma mesma direção,
ainda que por combinações diversas entre si.
Analisando os resultados em termos da geração de postos de
trabalho formais na economia brasileira, os dados apontam que a recuperação começou no ano 2000, quando após 12 anos o saldo voltou a registrar a criação de mais de um milhão de postos de trabalho
formais em um único ano. Mas o ritmo de recuperação se intensificou
substancialmente a partir de 2004, e nos dez anos seguintes manteve
uma média de 1,94 milhão de empregos gerados por ano. Em 2014
o país atingiu seu pico histórico no estoque de emprego, com 49,5
milhões de vínculos de emprego formais (ver Anexo).
Na prática, os resultados positivos alcançados nesse período,
especialmente entre 2004 e 2014, serviram para reforçar as controvérsias sobre as consequências e o alcance da regulação pública no
mercado de trabalho. Durante esse período não houve nenhuma mudança substancial em termos da regulação do processo de contratação
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
e demissão, uso e remuneração da força de trabalho. No início do
primeiro governo Lula houve, inclusive, um bloqueio no andamento da agenda parlamentar da trajetória de flexibilização da legislação
trabalhista. Chegou-se também a instituir uma Frente Nacional do
Trabalho (FNT), de composição tripartite (representação dos trabalhadores, dos empregadores e do Estado) para a elaboração de uma
proposta minimamente pactuada de reforma trabalhista no Brasil.
Porém tal resultado não alcançou o objetivo almejado originalmente
(Krein, 2017; Silva, 2018c).
Embora não existam alterações substanciais com relação ao
padrão de gestão do trabalho no país, algumas medidas impactaram
positivamente o mercado de trabalho. A principal delas refere-se à MP
474/2009, que garantiu a continuidade de uma política de valorização do salário mínimo acordada com os movimentos de trabalhadores
e seguida a partir de 2007 pelo governo federal. Tal política se originou da pressão das centrais sindicais, que realizaram em dezembro de
2004 a 1ª Marcha do Salário Mínimo em Brasília, com o objetivo de
estabelecer uma ação permanente de valorização do salário de base
da economia. Como resultado desse movimento, foi instituída uma
comissão incumbida de elaborar um projeto de lei, que foi enviado
ao Congresso. Em 15 de junho de 2010, a MP foi convertida na Lei
12.255. Pela regra, o valor do salário mínimo passaria a ser calculado
com base na variação do PIB, com dois anos de defasagem, acrescida
da inflação acumulada do ano anterior (IPEA, 2015). Outra inovação que vale destaque refere-se à Emenda Constitucional 72/2013,
que regulamentou o emprego doméstico no Brasil, ampliando direitos
dessas trabalhadoras.
Nesses termos, o período que se iniciou em meados dos anos
2000 e seguiu até meados da década seguinte foi marcado por uma participação mais ativa do Estado na orientação do padrão de desenvolvimento. No que diz respeito ao mercado de trabalho, o movimento geral
REGULAÇÃO E DINÂMICA DO MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO
| 249 |
foi de perda de prestígio da agenda da flexibilização das relações de
trabalho, predominante no período descrito na seção anterior, abrindo espaços para avanços, ainda que pontuais, na regulação trabalhista.
O fato é que a recuperação do crescimento econômico, combinada
com políticas sociais definidas pela CF-1988, e fortalecidas nos anos
2000 (além da valorização do salário mínimo, destaque também para
as políticas de seguro-desemprego e de transferência de renda), permitiu o movimento inédito que envolveu diminuição expressiva das
taxas de desemprego, crescimento do emprego formal, aumento do
rendimento médio real do trabalho e queda de desigualdade da renda
do trabalho (Oliveira, 2017).Porém, os anos imediatamente posteriores evidenciaram uma brusca reversão de todo esse processo em curso
até então, como demonstra a seção seguinte.
A RÁPIDA DESESTRUTURAÇÃO DO MERCADO
DE TRABALHO
A economia brasileira nos anos de 2015 e de 2016, após a estagnação observada em 2014, registrou uma queda acumulada do PIB
de cerca de 8%. Entre os fatores que podem ser elencados como possíveis determinantes desse comportamento destacam-se a ineficiência
das políticas anticíclicas, apoiadas em desonerações tributárias; o cenário externo altamente adverso, marcado por crises sucessivas e queda do preços das commoditties, as políticas de austeridade implementadas a partir de 2015, e o ambiente político altamente conturbado,
produzido a partir de 2013, que levou, inclusive, ao impeachment da
presidenta eleita Dilma Rousseff no início de 2016. Em 2017, o tímido crescimento registrado, de aproximadamente 1%, indica que ainda
não se encontra em curso uma recuperação consistente da economia
brasileira, inclusive porque o crescimento ficou bem abaixo da média
dos demais países em desenvolvimento.
| 250
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Como resultado de um cenário econômico e político altamente desfavorável, o mercado de trabalho brasileiro foi atingido por uma
rápida deterioração, expressa na alta acelerada das taxas de desemprego (6,8% em 2014 para 12,7% em 2017), na informalidade crescente
(queda do percentual de trabalhadores contribuintes de 64,7% em
dezembro de 2014 para 63,8% em março de 2018), na interrupção
do crescimento real dos salários médios da economia (estimado em
2.107 reais em dezembro de 2014 e em 2.104 reais em março de
2018) e na reconcentração da renda do trabalho.
Mais uma vez, e alheio às lições da experiência brasileira e da
experiência internacional recente (Adascalitei; Morano, 2015; Silva,
2018b), a regulação do mercado de trabalho foi eleita como a fonte
dos males recém-surgidos na economia brasileira (Carvalho, 2017;
Teixeira, et al., 2017). Com efeito, a partir desse diagnóstico, o governo federal conseguiu mobilizar sua base de apoio político para uma
aprovação em tempo bastante curto no Congresso Nacional a denominada “reforma trabalhista” (Lei 13.467/2016), a mais ampla modificação da CLT desde a sua criação, em 1943.
Em linhas gerais, a iniciativa surgiu com o objetivo de reduzir o
papel da legislação, da Justiça do Trabalho e dos sindicatos laborais na
definição dos termos que regulam o padrão de contratação e demissão,
de uso e de remuneração da força de trabalho no Brasil. Ou seja, a
Lei 13.467/2016 favorece a chamada “prevalência do negociado sobre
o legislado”, ao impor, em diversas circunstâncias, a prevalência de
acordos individuais (ou de acordos coletivos no nível da firma) sobre
as convenções coletivas das categorias profissionais. Nesse sentido, a
reforma promovida teve como eixo principiológico o paradigma liberalizante da flexibilização, com a alteração da hierarquia da legalidade trabalhista em favor de negociações menos abrangentes, onde
os trabalhadores normalmente se encontram em condições mais frágeis para a negociação das condições de trabalho. Ao mesmo tempo,
REGULAÇÃO E DINÂMICA DO MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO
| 251 |
tornou-se facultativa a contribuição financeira aos sindicatos (fim do
“imposto sindical”), ainda que o alcance das conquistas estabelecidas
pelas negociações coletivas tenha sido mantido para o conjunto dos
trabalhadores abrangidos pelo acordo ou convenção coletiva, seja o
trabalhador contribuinte ou não.
Apesar do grande número de alterações na regulação trabalhista, vale destacar ao menos três pontos cujos impactos na estrutura e
dinâmica do mercado de trabalho, avalia-se, serão certamente bastante sensíveis e de ampla repercussão.
A primeira delas refere-se à introdução da figura do “trabalho
intermitente”, em que as empresas poderão firmar contratos com os
trabalhadores sem estabelecer patamares mínimos de horas de trabalho ou de remuneração mensal.13 O empregado, por sua vez, pode
firmar contratos com diversas empresas ao mesmo tempo nessa modalidade, sem ter nenhuma garantia de que será de fato demandado
durante aquele período, o que causa uma instabilidade muito grande
em termos de remuneração, e o impede de acionar, caso julgue necessário, o seguro desemprego.
O segundo destaque trata sobre a possibilidade de “demissão
por acordo”. Por ela, o empregado pode ser demitido, desde que supostamente esteja de acordo com a demissão, com diminuição dos
encargos patronais – a multa referente ao saldo do FGTS a ser depositada ao empregado cai de 40% para 20%, e o aviso prévio também
cai pela metade. Já o empregado tem o direito de sacar 80% do seu
saldo do FGTS, mas perde o direito de acesso ao seguro desemprego.
O terceiro destaque fica por conta da tentativa de inibição ao
“litígio de má fé”. Por essa norma, o trabalhador que acionar a Justiça
13. Esse tipo de contrato, também conhecido como “contrato zero hora”, tornou-se comum nas reformas
trabalhistas mais recentes nos países do capitalismo central. Porém, a forma como foi aprovada essa medida
no Brasil é mais flexibilizadora que as experiências em curso, por não exigir nenhum patamar de remuneração
mínimo. Na Inglaterra, por exemplo, as empresas que fazem uso desse contrato, mesmo que não demandem
tempo algum de seus contratados, devem pagar ao menos o salário mínimo local. Na Austrália, exige-se no
mínimo um quarto do salário mínimo.
| 252
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Trabalhista contra seu ex-empregador e ter sua reclamação declarada
improcedente, terá que ressarcir todos os custos do processo, inclusive
os gastos da parte litigante com advogados. Apesar da iniciativa mirar
o fluxo considerado exagerado de processos trabalhistas, na prática,
ela tende a inibir os trabalhadores de acessarem a Justiça do Trabalho
para fazerem valer seus direitos, pois perderiam o direito à gratuidade
processual.
Apenas por essas três alterações destacadas é possível ter uma
ideia geral da direção liberalizante que as mudanças provocadas por
essa recente reforma trabalhista tendem a acarretar na dinâmica e na
estrutura do mercado de trabalho brasileiro. De fato, foi garantida
uma ampla autonomia e uma maior segurança jurídica para as empresas flexibilizarem as relações contratuais de trabalho de acordo com
seus interesses e objetivos, em prejuízo de uma série de direitos sociais
conquistados e consolidados historicamente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este texto abordou a relação entre regulação trabalhista e desempenho do mercado de trabalho no Brasil ao longo das três décadas
de vigência da Constituição Federal de 1988. Essa relação, ao longo
desse período, foi fortemente afetada pelos ciclos econômicos.
As diversas mudanças na legislação empreendidas nos anos
1990 e no início dos 2000 surgiram no sentido de flexibilizar a gestão do trabalho no país. Em que pese tal iniciativa, o desemprego e a
informalidade registraram um movimento de alta, em um contexto
econômico bastante adverso. Já nos anos 2000, sobretudo a partir de
2004, há uma ruptura com o padrão observado na década anterior,
a partir do ponto de vista da evolução dos principais indicadores de
mercado de trabalho. O desemprego atingiu o seu patamar mais baixo
nas séries históricas das principais estatísticas de mercado de trabalho,
REGULAÇÃO E DINÂMICA DO MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO
| 253 |
o emprego formal cresceu de forma acelerada, com queda da informalidade, e a renda do trabalho aumentou continuamente em termos
reais, diminuindo sua desigualdade distributiva. Tal movimento se deu
em um contexto de contestação da experiência neoliberal pregressa, a
partir da implantação, não sem contradições e avanços diferenciados
a depender do campo de análise, de um novo padrão de desenvolvimento, baseado na recuperação da capacidade de planejamento do
Estado, no fomento ao mercado interno de consumo e na expansão
das políticas sociais. Porém, a forte crise econômica e o turbulento
cenário político desencadearam uma rápida deterioração das principais variáveis de mercado de trabalho. Como consequência, houve
uma mobilização de forças políticas favoráveis a uma agenda agressiva
de reforma na legislação trabalhista brasileira, que culminou na aprovação da Lei 13.467/2016, com profundos desdobramentos sobre o
arcabouço de regulação trabalhista e proteção social no país.
De fato, o modelo de regulação definido constitucionalmente
em 1988 foi profundamente alvejado no decorrer desses 30 anos após
sua promulgação, sobretudo em momentos de crise econômica – como
no início e no final dos anos 1990 e nos anos recentes após 2015 –,
quando a retórica liberalizante tende a ganhar maior apelo por parte de
seus defensores. As mudanças que ocorreram ao longo desse período
foram quase sempre no sentido de fortalecer essa retórica, desvirtuando
o caráter protetivo que é próprio do Direito do Trabalho.
No entanto, o argumento aqui apresentado sustenta que, dadas essas distintas trajetórias observadas, a experiência brasileira pós-CF-1988 não permite a associação imediata entre flexibilização da
legislação trabalhista e maior dinamismo do mercado de trabalho
nacional. Ou seja, o comportamento do mercado de trabalho está
diretamente relacionado aos ciclos econômicos no país, medidos pela
amplitude de variação do PIB, que por sua vez, depende do comportamento de um conjunto complexo de variáveis econômicas, nacio-
| 254
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
nais e internacionais. Assim, mudanças institucionais – como no caso
da reforma trabalhista – tendem a alterar somente os mecanismos de
distribuição interna do excedente produzido pela estrutura produtiva
nacional, pois por si só possuem pouca capacidade de induzir aumento na demanda por força de trabalho.
Portanto, a flexibilização do mercado de trabalho enquanto
instrumento para a geração de novas ocupações, mediante rebaixamento de custos e ampliação da capacidade competitiva das empresas, tem se mostrado inadequada para o alcance desse objetivo. A
apreciação dos seus resultados práticos aponta, ao contrário, para um
aumento da precarização da estrutura ocupacional, diminuição dos
rendimentos e maior concentração da renda.
Isso não implica dizer que ajustes institucionais não sejam necessários para uma melhor adequação da economia às mudanças nos
padrões tecnológicos do capitalismo global. O que se afirma aqui, e
os dados recentes permitem mostrar, é que por essa via não há uma
garantia de expansão das oportunidades de trabalho e renda para um
amplo contingente de indivíduos em situação de desemprego e subemprego atualmente no Brasil, conforme utilizado na narrativa de
defesa da desregulamentação.
Nesse sentido, a discussão fundamental que se propõe para o
desdobramento de novas pesquisas que envolvem essa temática repousa
sobre qual seria a regulação pública do trabalho adequada a um padrão
de desenvolvimento economicamente dinâmico e socialmente inclusivo.
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REGULAÇÃO E DINÂMICA DO MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO
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IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Políticas sociais: acompanhamento e análise. Brasília: Ipea, 2012.
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IPEA, 2018a.
______. O panorama laboral brasileiro no contexto latino-americano. Mercado de trabalho: conjuntura e análise, n. 64, IPEA, 2018b.
______. A dimensão político-relacional das políticas de mercado de trabalho no
Brasil: uma análise da agenda deliberativa do Codefat. Brasília: Ipea, 2018c.
(Texto para Discussão, no prelo).
TEIXEIRA, Marilane O.; GALVÃO, Andreia; KREIN, José D.; BIAVASCHI, Magda B.; ALMEIDA, Paula F.; ANDRADE, Helio R. (Orgs.). Contribuição crítica à reforma trabalhista. São Paulo: Cesit, 2017.
| 257 |
REGULAÇÃO E DINÂMICA DO MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO
ANEXO
Principais variáveis econômicas e de mercado de trabalho no período 1988-2016
Anos
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
Estoque de
vínculos de
emprego
formais1
22.164.306
22.617.787
23.661.579
24.486.568
23.198.656
23.010.793
22.272.843
23.165.027
23.667.241
23.755.736
23.830.312
24.104.428
24.491.635
24.993.265
26.228.629
27.189.614
28.683.913
29.544.927
31.407.576
33.238.617
35.155.249
37.607.430
39.441.566
41.207.546
44.068.355
46.310.631
Saldo da
movimentação
dos vínculos de
emprego formais1
1.672.175
453.481
1.043.792
824.989
-1.287.912
-187.863
-737.950
892.184
502.214
88.495
74.576
274.116
387.207
501.630
1.235.364
960.985
1.494.299
861.014
1.862.649
1.831.041
1.916.632
2.452.181
1.834.136
1.765.980
2.860.809
2.242.276
Taxa de
Taxa de
Variação
desemprego2 informalidade2 anual do PIB3
7,2
6,8
6,7
7,6
8,5
9,7
10,4
10,1
9,9
10,5
9,7
10,2
9,2
8,9
7,8
9,1
7,3
57,2
57,8
57,8
58,0
58,8
59,6
58,1
58,2
57,4
56,6
55,5
54,7
53,3
51,6
50,9
47,5
7,9
3,6
-0,1
3,3
-3,1
1,5
-0,5
4,7
5,3
4,4
2,2
3,4
0,3
0,4
4,1
1,4
3,0
1,1
5,7
3,2
3,9
6,1
5,1
-0,1
7,5
3,9
continua
| 258
2012
2013
2014
2015
2016
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
47.588.712
48.948.433
49.571.510
48.060.807
46.060.198
1.278.081
1.359.721
623.077
-1.510.703
-2.000.609
6,7
7,1
7,5
9,6
-
47,1
46,4
47,3
47,8
-
1,9
3,0
0,5
-3,8
-3,6
Fontes: 1 RAIS/MTb
2 Pnad/IBGE. Esta taxa corresponde ao resultado da seguinte divisão: (empregados sem carteira + trabalhadores por conta própria) / (trabalhadores protegidos + empregados sem carteira + trabalhadores por conta própria).
3 IPEADATA
| 259 |
CAPÍTULO 10
TENDÊNCIAS DE
PROFISSIONALIZAÇÃO,
BUROCRATIZAÇÃO, CAPTURA
E CORPORATIVISMO NA
BUROCRACIA FEDERAL
JOSÉ CELSO CARDOSO JR.1
Tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos
(1948) quanto na Constituição Federal Brasileira (1988), o direito
ao trabalho digno (ou trabalho decente, conforme a Organização
Internacional do Trabalho - OIT), aparece como elemento central e
estruturante da sociedade. Neste sentido, ao falarmos do tema emprego público, estamos na realidade falando de parcela não desprezível de postos de trabalho criados por decisão e demanda política do
Estado, com vistas tanto a uma ocupação institucional condizente
do poder público, como visando ao incremento de uma das capacidades estatais fundamentais na contemporaneidade para a colocação
em operação, pelo território nacional, de políticas públicas de vários
tipos e abrangências.
1. Doutor em Desenvolvimento pelo IE-Unicamp, desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do
IPEA.
| 260
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Desta feita, o emprego público tende a ser não apenas um emprego de qualidade e dignidade elevadas no espectro total de ocupações em uma sociedade emergente como a brasileira, como ainda
se reveste de atribuições e competências algo distintas daquelas que
prevalecem no mundo das contratações privadas. De um lado, tende
a ser uma ocupação de qualidade relativa elevada, porque sendo o
Estado o empregador em primeira instância, há obviamente a necessidade de que se cumpram todos os requisitos legais e morais mínimos à
contratação e manutenção desses empregos sob sua custódia e gestão.
Requisitos esses que dizem respeito, basicamente, às condições gerais
de uso (jornada padrão), remuneração (vencimentos equânimes), proteção (saúde, segurança e seguridade nas fases ativa e pós-laboral), representação (sindicalização e demais direitos consagrados pela OIT)
e acesso à justiça contra arbitrariedades porventura cometidas pelo
Estado-empregador.
De outro lado, há distinções claras relativamente aos empregos
do setor privado, dada a natureza pública dessas ocupações que se dão
a mando do Estado e a serviço da coletividade, cujo objetivo último
não é a produção de lucro, mas sim a produção de bem-estar social.
Ou seja, o emprego público não está fundado – conceitual e juridicamente – em relações contratuais tais quais aquelas que tipificam as relações de assalariamento entre trabalhadores e empregadores no mundo privado. Ao contrário, o servidor público estatutário possui uma
relação de deveres e direitos com o Estado-empregador (vale dizer:
com a própria sociedade), ancorada desde a CF-1988 no chamado
Regime Jurídico Único (RJU), ao invés do contrato celetista (CLT),
que prima por estabelecer condições em torno das quais se dá a relação
contratual entre empregado e empregador no mundo privado.
Todos esses aspectos, e outros mais que se poderiam aqui explorar, justificam a criação de um regime diferenciado de contratação
dos servidores públicos, um regime jurídico único nos termos da Cons-
TENDÊNCIAS DE PROFISSIONALIZAÇÃO, BUROCRATIZAÇÃO, CAPTURA E CORPORATIVISMO NA
BUROCRACIA FEDERAL
| 261 |
tituição Federal brasileira em vigor (cf. art. 39, caput, CF-1988). Segundo entendimento geral, o regime jurídico dos servidores públicos
civis consiste em um conjunto de regras de direito público que trata
dos meios de acessibilidade aos cargos públicos, da investidura em
cargo efetivo e em comissão, das nomeações para funções de confiança, dos deveres e direitos dos servidores, da promoção e respectivos
critérios, do sistema remuneratório, das penalidades e sua aplicação,
do processo administrativo e da aposentadoria. É importante destacar
que em 02 de agosto de 2007, ao julgar a ADIn 2.135/DF, o Supremo
Tribunal Federal decidiu pela suspenção das alterações promovidas no
artigo 39, caput, da Constituição Federal, em sua redação dada pela
Emenda Constitucional 19/98, que buscava tornar facultativa a adoção do RJU para os servidores públicos civis. Em decorrência dessa
decisão, volta a aplicar-se a redação original do artigo 39, que exige
regime jurídico único e planos de carreira para servidores da Administração Pública Direta, autarquias e fundações públicas.
Desta feita, vislumbram-se pelo menos quatro abordagens passíveis de serem adotadas no estudo das questões de pessoal na administração pública.
A primeira diz respeito à dimensão histórico-institucional, centrando-se na evolução das políticas governamentais para o setor e nas
mudanças da estrutura administrativa do Estado, na qual se insere a
gestão de pessoal. A segunda, por sua vez, enfoca a organização dos
processos internos de gestão de pessoal, com ênfase nas questões de cargos, funções, remuneração e desempenho, bem como nas características
estruturais das carreiras. A terceira abordagem busca avaliar os aspectos
demográficos e socioeconômicos da ocupação no setor público da economia e constitui tipicamente um estudo das características dessa força
de trabalho, onde são importantes as diferenciações metodológicas em
termos das bases de dados disponíveis, sobretudo para fins de comparações com a ocupação no setor privado. Finalmente, há uma abordagem
| 262
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
que avalia o grau de adequação das competências dos recursos humanos
em relação aos objetivos estratégicos das organizações públicas.
Dito isto, tem-se, portanto, que este texto está dedicado a realizar uma apresentação sintética da evolução da ocupação no setor público no período 1988-2018, salientando tendências e problemas de
forma bastante sumária, a partir, sobretudo, dos achados de pesquisas
recentes conduzidas pelo Ipea sobre o tema.2
Em síntese, o trabalho permite afirmar que o movimento de
recomposição de pessoal no setor público brasileiro, observado durante toda a primeira década de 2000, não foi explosivo, tendo sido
suficiente apenas para repor, em linhas gerais, praticamente o mesmo
estoque e percentual de servidores ativos existentes em meados da década de 1990. Em segundo lugar, o texto também demonstra que os
gastos com pessoal não saíram de controle do governo federal, já que
se mantiveram relativamente estáveis, ao longo de toda a primeira
década de 2000, como proporção tanto do PIB, como da arrecadação
tributária e mesmo com relação à massa salarial do setor privado.
Portanto, não obstante algumas tendências recentes que apontam para um movimento lento de profissionalização geral da burocra2. Ver, a respeito do tema, Cardoso Jr. & Nogueira (2011). Metodologicamente, a ocupação no setor público
está constituída pela somatória dos que mantêm vínculo institucional direto e indireto com a administração
pública. O vínculo direto corresponde ao pessoal militar, aos estatutários e aos não estatutários, que por sua
vez, incluem os celetistas e os informais. Por sua vez, o vínculo indireto resulta de relações contratuais criadas
pelas instituições do Estado com entidades privadas, com ou sem fins lucrativos, que colaboram para o
alcance de suas funções. Pode originar-se por meio de empresas que fornecem mão-de-obra para serviços
gerais (copeiros, serventes, porteiros etc.), bem como pela interveniência de fundações de apoio, organizações
sociais e entidades similares que compõem o “setor público não estatal”, conforme a nomenclatura adotada
pelo projeto de Reforma Administrativa de 1995.
Assim, no contexto jurídico-administrativo nacional, emprego público corresponde ao vínculo celetista, segundo consta da Constituição, por contraposição ao vínculo estatutário. O servidor estatutário, que hoje é
grande maioria, não é empregado, no sentido estrito da palavra, porque ele se caracteriza por submeter-se
a um estatuto jurídico (RJU) que descreve seus deveres e direitos, ao invés do contrato celetista (CLT), que
prima por estabelecer condições em torno das quais se dá a relação contratual entre empregado e empregador.
As fontes de dados mais comuns para o estudo dos vínculos diretos são o Censo Demográfico, a PNAD, a
RAIS e o SIAPE. A PNAD e o Censo são mais adequados para este fim na medida em que seus dados provêm
de entrevistas domiciliares realizadas com fundamento em métodos estatísticos, enquanto a RAIS depende
de informações administrativas fornecidas anualmente pelos estabelecimentos públicos e privados. A base
do SIAPE também é um registro administrativo, mas sua cobertura se restringe apenas a parte do poder
executivo federal.
TENDÊNCIAS DE PROFISSIONALIZAÇÃO, BUROCRATIZAÇÃO, CAPTURA E CORPORATIVISMO NA
BUROCRACIA FEDERAL
| 263 |
cia pública federal no Brasil, há tendências fortes também de burocratização, captura e corporativismo no seio da administração pública
federal brasileira.
DE QUE É COMPOSTO O ESTADO?
De que é composto o Estado? O que explica sua formação
e composição em termos de recursos humanos, físicos, tecnológicos,
normativos etc.? O que explica mudanças nas formas de atuação e
nas próprias áreas de atuação dos Estados modernos? Por que o “tamanho” do Estado passou a ser obsessão da mídia e de determinados
setores da sociedade, no Brasil e alhures?
Essas e outras questões não possuem respostas rápidas nem fáceis. De todo modo, em termos bastante gerais, seria possível dizer
que respostas a essas intrincadas questões passam por entendimento
de acordo com o qual o “tamanho” do Estado, a cada momento histórico e contexto geográfico específico, estaria a refletir uma somatória ampla e provavelmente contraditória de processos sociopolíticos
simultâneos, destinados quase todos a tentar transformar o Estado
– melhor seria dizer: seus diferentes e heterogêneos segmentos, aparelhos e instituições – em agente de indução ou mesmo de transformação das estruturas econômicas e sociais de determinado país ou região. Transformações estas que, historicamente, assumiram formatos
e conteúdos os mais variados, espelhando desde interesses particulares
de determinada classe ou fração de classe em dominância no poder,
como, talvez, interesses nacionais a serviço do bem comum. Devemos
lembrar, ainda, da possibilidade de que possam espelhar interesses autocentrados no próprio Estado ou exclusivos de parte (também geralmente hegemônica) da burocracia estatal em cada caso.
Buscando exemplificar o que foi dito no parágrafo anterior, e
atendo-se apenas à dimensão relativa à composição da força de traba-
| 264
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
lho ocupada no setor público, suponhamos abaixo configurações de
Estado derivadas dos três casos hipotéticos acima citados.
No primeiro caso, em que o quantitativo de pessoal reflete decisões de um Estado voltado a satisfazer interesses particulares de determinada classe ou fração de classe hegemônica no poder, exatamente
como em certos casos de Estados monárquicos e Estados mercantilistas despóticos dos séculos XVI ao XIX; é de se supor que, neste caso,
haja muitas pessoas ocupadas em torno do cumprimento de funções
ligadas à soberania externa (forças armadas e diplomacia) e de segurança interna (polícias e demais aparatos de fiscalização e repressão),
em detrimento tanto de ocupações ligadas à provisão de bens e serviços públicos ao conjunto amplo da população, quanto ao fortalecimento dos mercados econômicos domésticos.
No segundo caso, em que o pessoal ocupado no setor público reflete interesses nacionais ou universais a serviço do bem comum, é plausível assumir a existência de contingentes consideráveis de trabalhadores
inseridos em atividades relacionadas à provisão de bens e serviços públicos à população, em áreas que são, por sua própria natureza, bastante intensivas em pessoas, tais como: saúde, educação, assistência social,
segurança pública, transporte público, dentre outras. Também seria de
se esperar, neste caso, que houvesse preocupação equivalente – e pessoal
empregado – em áreas indelegáveis de atuação dos Estados capitalistas
contemporâneos, sempre que interessados na sustentação de estratégias
de desenvolvimento ancoradas e voltadas aos mercados e populações
nacionais. Tais áreas ou atividades de atuação estatal estariam ligadas, de
acordo com o Quadro 1, ao desempenho das seguintes funções:
i) o monopólio estatal da representação e da defesa nacional
externa;
ii) o monopólio do uso da violência para a segurança pública
interna;
iii) o monopólio da formulação e imposição das leis;
TENDÊNCIAS DE PROFISSIONALIZAÇÃO, BUROCRATIZAÇÃO, CAPTURA E CORPORATIVISMO NA
BUROCRACIA FEDERAL
| 265 |
iv)
v)
vi)
vii)
o monopólio da implementação e gestão da moeda;
o monopólio da tributação;
a garantia e a proteção da propriedade privada;
a geração de confiança na validade e cumprimento dos
contratos;
viii) a estabilidade do valor real da moeda;
ix) a regulação do conflito distributivo e
x) a garantia de previsibilidade para a rentabilidade empresarial privada.
Quadro 1: Funções Inerentes à Constituição dos Estados Modernos e Contemporâneos
Fundamentos Históricos dos Estados Nacionais Fundamentos Históricos das Economias
Capitalistas
Monopólio da representação externa
Soberania do território nacional
Monopólio do uso da violência
Garantia da propriedade privada
Monopólio da formulação e implementação das leis Confiança na validade e cumprimento dos
contratos
Monopólio da implementação e gestão da moeda
Estabilidade do valor real e do poder de compra
da moeda
Monopólio da tributação
Regulação do conflito distributivo e Garantia de
previsibilidade e rentabilidade para o cálculo
empresarial
Fonte: Elaboração própria.
Por fim, no caso em que a força de trabalho no setor público
venha a espelhar interesses autocentrados no próprio Estado ou em
parte – normalmente hegemônica – da burocracia estatal, não seria
exagero concluir por concentração desbalanceada de servidores em
atividades-meio, proporcionalmente mais que às atividades-fim. Adicionalmente, por um lado, haveria muitos funcionários, em geral menos qualificados e capacitados, como também menos motivados e mal
remunerados, em arco grande de atividades costumeiramente voltadas
ao relacionamento direto com a população; enquanto, por outro lado,
| 266
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
poucos funcionários, em geral mais qualificados, capacitados, motivados e bem remunerados, em algumas atividades consideradas centrais
pela burocracia hegemônica no poder. Historicamente, não é difícil
identificar esta configuração como caso clássico de criação e perpetuação – às vezes longa – de determinadas “ilhas de excelência” na administração pública, convivendo com significativa parcela de servidores
atuando em situação precária e em atividades que demandam baixa
qualificação, como no caso de vários países subdesenvolvidos da América Latina (Brasil incluído), África, Leste Europeu e Sudeste Asiático,
ao longo pelo menos de todo o século XX.
Ainda que no mundo concreto as situações reais sejam fruto de
certa miscelânea dos três tipos ideais citados, os quais se modificam –
para dificultar as análises – ao longo do tempo e das circunstâncias históricas particulares, conclui-se que não se pode, sob hipótese alguma,
falar de “tamanho” do Estado, ou mesmo do “quantitativo de pessoal
no setor público”, em abstrato, pois justamente as variáveis que melhor
explicam determinado “tamanho” são o tempo e o espaço de cada caso
ou experiência concreta. Em outras palavras: as diversas trajetórias históricas em curso e os diversos contextos – territoriais, sociais, políticos,
econômicos etc. – de que se está falando. Chega-se, então, à premissa segundo a qual a história e as instituições importam, de modo que
a configuração atual do Estado brasileiro é resultante de determinado
contexto e momento de sua trajetória, sendo sua situação, a rigor, incomparável – a não ser como recurso didático simplificador – a quaisquer outros casos concretos.
VISÃO PANORÂMICA DAS POLÍTICAS DE PESSOAL
NO GOVERNO FEDERAL (1988-2018).
Como síntese, o quadro 1 distingue as principais diretrizes de
administração pública e da política de pessoal nos governos FHC,
Lula e Dilma.
TENDÊNCIAS DE PROFISSIONALIZAÇÃO, BUROCRATIZAÇÃO, CAPTURA E CORPORATIVISMO NA
BUROCRACIA FEDERAL
| 267 |
Quadro 1. Governos FHC, Lula e Dilma: principais orientações da administração
pública e das políticas de pessoal
Governo FHC
Autonomia gerencial nas entidades públicas não estatais em contrato de gestão
(organizações sociais são criadas pioneiramente pelo Estado de São Paulo em 1998)
Incentivo a demissão voluntária e licença temporária
Limites legais fixados para despesas com pessoal (de acordo com a Lei de
Responsabilidade Fiscal de 2000)
Empregados celetistas admitidos por processo seletivo público
Avaliação do desempenho individual do servidor ou empregado
Possibilidade de demissão por insuficiência de desempenho e por excesso de quadros,
avaliado segundo limites fiscais
Carreiras e concursos públicos organizados para as funções essenciais de Estado
Criação das agências reguladoras e seu quadro de pessoal próprio
Governo Lula Autonomia gerencial em entidades públicas da administração indireta (projeto de
Fundações Estatais e proposta de Lei Orgânica da Administração Pública Federal)
Mesas de negociação para questões de gestão de pessoal
Reabertura de concursos para servidores temporários e permanentes de órgãos
públicos e agências reguladoras
Realocação de pessoal na estrutura de carreiras e ordenamento das carreiras de
Estado
Substituição de pessoal ocupado em atividades-fim com contrato informal ou
contratado via agências internacionais
Limites legais fixados para despesas com pessoal (de acordo com a Lei de
Responsabilidade Fiscal de 2000)
Reajustes graduais da remuneração, com destaque para carreiras de Estado
Governo Dilma Manutenção ou adequação de grande parte das diretrizes políticas do governo
anterior
Orientação de contenção das despesas com pessoal em função da diminuição da
arrecadação fiscal
Continuidade do impulso à realização de concursos públicos
Governo Temer Suspensão de novos concursos públicos e revisão (visando contenção fiscal) dos
acordos coletivos em torno às remunerações e reajsutes salariais
Retomada de contratações atípicas (por exemplo, via organismos internacionais) e
contratações à margem do RJU (por exemplo, via terceirizações)
Tramitação de propostas legislativas visando: i) terceirização irrestrita no serviço
público, inclusive das atividades finalísticas; ii) flexibilização (visando facilitar e
acelerar demissões) da estabilidade dos vínculos empregatícios no serviço público, tal
qual previsto pelo RJU/CF-1988
Fonte: Elaboração do autor.
| 268
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
No primeiro mandato do governo FHC, houve um esforço
concentrado de produção de documentos e diretrizes explícitas que tinham sua fundamentação no Plano Diretor da Reforma do Aparelho
do Estado, de 1995. A administração gerencial preconizava diretivas
bem conhecidas: autonomia financeira e administrativa de certas entidades públicas não estatais, retorno do regime contratual-celetista
para funções não essenciais de Estado, generalização da avaliação de
desempenho dos servidores, possibilidade de demissão do servidor
por insuficiência de desempenho e excesso de quadros, reorganização
das carreiras especialmente nas funções essenciais do Estado etc.
Algumas delas foram operacionalizadas mediante a Emenda
Constitucional 19 (EC 19), de 1998. De forma paralela, a política de
desestatização levou à criação das agências reguladoras, inicialmente
nas áreas de telecomunicações e de energia elétrica, mas logo se estendendo à saúde e aos transportes. A medida mais significativa para a
redução do pessoal ativo ocorreu por meio da contenção do número
de ingressados por concurso público. Simultaneamente, por parte dos
servidores, houve uma corrida em busca da aposentadoria motivada
pela expectativa de perdas salariais e de direitos.
No segundo mandato do governo FHC, em contexto de séria
crise cambial, prevaleceu uma orientação fiscalista, caracterizada por
fortes restrições ao gasto com pessoal. Tal orientação culminaria, em
2000, com a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que
consolidou vários dispositivos legais anteriores, como a Lei Camata,
em vigor desde 1995. De modo geral, entre 1999 e 2002, as prioridades fiscais se impuseram no campo da gestão de pessoal do setor
público e tiveram poder predominante em relação às propostas de
modernização do aparato administrativo de Estado. Por exemplo, na
esfera federal, praticamente não houve admissão de novos servidores –
nem mesmo para carreiras essenciais de Estado, antes tão incentivadas
pelo plano da reforma administrativa.
TENDÊNCIAS DE PROFISSIONALIZAÇÃO, BUROCRATIZAÇÃO, CAPTURA E CORPORATIVISMO NA
BUROCRACIA FEDERAL
| 269 |
Em contraposição ao primeiro mandato do governo FHC, as
políticas de gestão de pessoal do setor público no governo Lula (2003
a 2010) foram tratadas de modo muito sumário e em escassos documentos, talvez como reflexo mesmo de conflitos e ausência de consenso mais geral acerca da estratégia política a ser adotada.
Contudo, o novo cenário de crescimento da economia que surgiu em 2004 favoreceu o início de uma fase de recomposição de pessoal na administração federal, bem como a política de ajustes graduais
de remuneração dos servidores. Simultaneamente, decidiu-se pela
reabertura de concursos públicos dirigidos para pessoal permanente
e temporário em áreas prioritárias, incluindo carreiras estratégicas e
as agências reguladoras. Esses concursos tiveram como objetivo adicional substituir os chamados “terceirizados”, ou seja, os contratados
informais de cooperativas e entidades privadas diversas, bem como os
contratados através de agências internacionais. Em vários momentos,
desde o final do governo FHC, o compromisso de substituir os terceirizados por concursados foi firmado pelo Executivo com o Ministério
Público (MP) e o Tribunal de Contas da União (TCU) mediante assinatura de Termos de Ajuste de Conduta (TACs).
Além disso, o governo Lula introduziu diversos aspectos inovadores na política de pessoal, tais como a adoção de mesas de negociação com servidores federais, no âmbito do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), que funcionaram com regularidade. Esse Ministério também se dedicou a formular novas bases para
a autonomia gerencial da administração pública indireta. Para tanto,
foi elaborado projeto específico em torno da figura jurídica da Fundação Pública de direito privado (conhecida como Fundação Estatal),
já regulamentada por várias unidades federadas (UFs). Seguindo em
direção similar, de apoio ao crescimento do espaço de autonomia administrativa e financeira da administração pública, foram divulgadas
diretrizes produzidas por comissão de juristas que se prontificaram a
| 270
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
trabalhar na montagem de proposta para o estabelecimento de uma
nova Lei Orgânica da Administração Pública Federal, que não obstante, não chegou a avançar institucionalmente.
O governo Dilma deu prosseguimento a muitas das diretrizes
de política de pessoal formuladas durante o governo Lula. No contexto dos desdobramentos internacionais da crise econômica de 2008,
os sucessivos déficits fiscais levaram a adotar uma posição explícita de
cautela em relação à continuidade do crescimento do estoque de servidores civis federais ativos. No entanto, o resultado que se observa no
período que vai de 2011 a 2015 em relação ao número de servidores
concursados não tem correspondência com essa cautela de política fiscal. Em outras palavras, apesar de uma orientação geral mais restritiva
no que concerne a novos concursos e reposição remuneratória, houve
efetivação e nomeação de novos concursados decorrentes de certames
e negociações aprovadas antes de 2011. Com efeito, desta maneira, a
média anual de admitidos por concurso no período de cinco anos do
governo Dilma (24.237) superou a média dos oito anos do Governo
Lula (19.442).
Para ilustrar os resultados desses fatores políticos, de acordo
com diferentes contextos governamentais, a tabela 1 apresenta a evolução anual do estoque de ativos, das aposentadorias e dos admitidos
por concurso público.
A principal constatação é que, em 2015, o número total de
servidores estava bem próximo do registado em 1992, 716.521 e
705.516, respectivamente. Entre o ano inicial e o ano final do período em exame, houve um crescimento de apenas 1,6 % no total
de servidores civis ativos. Contudo, essa aparente igualdade numérica
pode esconder um fenômeno importante: é que se trata de uma recomposição legalizadora e modernizadora, que não somente promoveu a substituição de pessoal irregular por servidores efetivos, como
também propiciou a criação de novas carreiras, com destaque para o
TENDÊNCIAS DE PROFISSIONALIZAÇÃO, BUROCRATIZAÇÃO, CAPTURA E CORPORATIVISMO NA
BUROCRACIA FEDERAL
| 271 |
Tabela 1 - Evolução anual do estoque de servidores ativos (militares e servidores
civis), das aposentadorias e dos admitidos por concurso na administração federal.
Brasil, 1991 a 2014
Contexto econômico e
político
Crise e Estagnação
(Collor e Itamar)
Reforma do Estado (FHC)
Restrição Fiscal (FHC)
Fortalecimento da
Capacidade de Estado
(Lula)
Continuidade das
Tendências Anteriores a
despeito da crise (Dilma)
Ano
Total de
Ativos (civis
e militares)
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
991.996
998.021
969.096
964.032
951.585
929.375
900.128
841.851
866.799
Total de
Ativos
(apenas
civis)
661.996
683.618
654.723
641.564
630.763
606.952
578.680
564.320
545.333
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
864.408
857.283
809.975
856.236
884.091
873.447
887.579
896.333
913.417
926.799
970.605
984.330
999.661
1.017.221
1.064.734
1.080.435
536.321
531.296
530.662
534.392
538.077
548.210
573.341
573.727
583.367
601.117
630.542
635.743
648.920
662.460
705.516
716.521
Admitidos
por
Aposentados
concurso
público
46.196
21.190
14.199
17.601
34.253
19.675
27.546
9.927
24.659
9.055
19.755
7.815
8.783
2.927
5.951
6.222
7.465
17.453
6.486
5.789
6.658
8.156
10.654
10.384
13.722
13.584
14.649
15.209
15.635
16.491
1.524
660
30
7.220
16.121
12.453
22.112
11.939
19.360
29.728
36.600
20.059
20.171
25.815
33.477
21.663
Var %
Ativos
(apenas
civis)
-2,8
-10,5
-2,7
7,3
4,8
12,7
Fonte: Boletim Estatístico de Pessoal e Informações Organizacionais/Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Secretaria de Gestão Pública. V. 21, n. 248 (Brasília, Dez 2016). Elaboração própria.
| 272
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
estabelecimento de carreiras transversais a vários órgãos do poder executivo. Para alcançar tais objetivos, concursos foram realizados sistematicamente para órgãos do poder executivo, incluindo as autarquias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De modo geral, os sucessivos governos eleitos desde a CF-1988
não souberam alavancar discussões mais profícuas e necessárias em torno da construção de uma verdadeira política nacional de recursos humanos no serviço público federal. Desta maneira, urge a montagem
negociada de uma política – sobretudo no nível federal – de valorização
e gestão de recursos humanos no conjunto do setor público no Brasil.
Tal sugestão não é descabida, uma vez que se busque contextualizar e conectar algumas importantes e virtuosas tendências do período recente a um movimento político-institucional de valorização
e profissionalização da força de trabalho que ingressa e age em nome
do Estado. Este aspecto talvez seja ainda pouco perceptível em função
do insuficiente tempo de maturação deste novo contingente de força
de trabalho a serviço do Estado, mas deve-se destacar que estes novos
servidores: (i) vêm sendo selecionados a partir de critérios meritocráticos, por meio de concursos públicos, especialmente em relação ao
cumprimento de atividades-fim do Estado, que exigem nível superior
de escolarização, indicando a possibilidade de maiores impactos sobre
a produtividade agregada do setor público no médio prazo; e (ii) têm
assumido a forma de vinculação estatutária, em detrimento do padrão
celetista, portanto, sob a forma de direitos e deveres comuns e estáveis,
podendo com isso gerar maior coesão e homogeneidade no interior de
cada categoria de servidores, aspecto este considerado essencial para
um desempenho satisfatório do Estado no longo prazo.
Diante deste quadro, é factível e necessária a montagem de
uma política nacional negociada de gestão de recursos humanos no
TENDÊNCIAS DE PROFISSIONALIZAÇÃO, BUROCRATIZAÇÃO, CAPTURA E CORPORATIVISMO NA
BUROCRACIA FEDERAL
| 273 |
setor público brasileiro, em linha com as inovações trazidas pela CF1988. Para tanto, importa registrar abaixo algumas lacunas da situação atual que deveriam ser convertidas em pautas de pesquisa e, sobretudo, de atuação política concreta do Estado brasileiro nesse campo
de atuação, quais sejam:
| Em que condições vêm se dando os processos seletivos nas
três esferas de governo, em especial no nível federal? Os atuais
formatos de seleção por concursos públicos padronizados vêm
conseguindo atrair e filtrar candidatos com perfis adequados à
natureza pública da ocupação e ao cumprimento das exigências institucionais do Estado, em todos os seus níveis?
| Nas diversas instâncias do Estado, há planos de cargos ou carreiras, progressão funcional e vencimentos, capacitação permanente, flexibilização funcional e preparação para a aposentadoria, considerados adequados e satisfatórios aos diversos
objetivos estratégicos do Estado, no médio e longo prazo?
| Como instaurar e cultivar uma cultura de aprimoramento
permanente de desempenho institucional do setor público,
inclusive passível de monitoramento ao longo do tempo por
meio de indicadores (quantitativos e qualitativos) de desempenho (efetividade, eficácia e eficiência), aplicáveis aos três
níveis federativos e também aos três grandes poderes da República?
Enfim, tais questões – e certamente outras mais – são cruciais
para aprimorar o debate contemporâneo sobre esse problema e seu enfrentamento, por parte dos próximos governos. As eventuais respostas
dependem de uma compreensão adequada acerca do papel do Estado
como promotor e provedor do desenvolvimento e tem na questão da
adequação da ocupação pública federal às políticas públicas vigentes
um de seus pilares fundamentais.
| 274
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
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2011.
| 277 |
CAPÍTULO 11
DITOS E NÃO DITOS
SOBRE O TERRITÓRIO NA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL
MARCO AURÉLIO COSTA1
O tempo permite análises mais profundas e menos usuais dos
objetos de estudo. Agregam-se novas percepções, novos olhares e pode-se vislumbrar criticamente os resultados concretos (e que foram
possíveis) decorrentes da realização/implementação desses objetos, sobretudo quando se trata de uma Constituição.
Buscando trazer uma contribuição às reflexões acerca da Carta
Magna, nesses 30 anos da Constituição Federal de 1988 (CF-1988)2,
esse texto analisa diferentes aspectos da CF-1988, cotejados pelo que
chamamos aqui de perspectiva espacial3. Numa primeira seção, parte-se do registro de que a CF-1988 é uma obra escrita a várias mãos, sob
a influência de diversos atores sociais e políticos e agentes econômicos
e institucionais. Tendo essa contextualização em mente, a segunda seção assume que em um texto dessa natureza, há diferentes concepções
1. Técnico de Planejamento e Pesquisa da DIRUR/IPEA, mestre e doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ.
[email protected]
2. BRASIL (2018a).
3. Dimensão espacial faz referência aos conceitos associados a espaço e território. Um entendimento aplicado
desses conceitos ao campo das políticas públicas espaciais se encontra em Steinberger (2017).
| 278
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
acerca do espaço, do território, o que revela, de um lado, a presença
de diferentes atores, grupos de interesses e perspectivas expressos na
Carta Magna, e, de outro, deixa claro que seu texto dificilmente contém uma visão coesa ou homogênea sobre essas categorias. Na terceira
seção, o texto explora os ditos, os mal ditos e os não ditos da CF1988, explorando o uso de vocábulos associados à categoria espaço,
bem como as ausências e insuficiências da norma. Na quarta seção,
abre-se espaço para discutir a questão das regiões metropolitanas. E
na seção final, faz-se um balanço sobre as questões analisadas no texto
sob a perspectiva da atual fase do desenvolvimento capitalista, da qual
emerge um mundo cambiante, pleno de possibilidades trazidas pela
revolução tecnológica em curso, com incertos resultados em termos
socioeconômicos e ainda mais incertos em termos dos rebatimentos
dessas mudanças no território e nos usos que dele são feitos.
A CF-1988 COMO UMA OBRA COLETIVA E
PERMEÁVEL A INTERESSES EM CONFLITO
O ponto de partida dessa reflexão é a constatação, com base em
vários registros produzidos em torno do processo de elaboração da CF1988, de que seu texto é tudo menos um monólito, uma grande e única
peça homogênea. Como destaca Souza (2003, p.38), “as Assembleias
Nacionais Constituintes, quase por definição, espelham momentos de
tensão e de conflitos, uma vez que são instaladas para instituir um novo
ordenamento do poder, ao mesmo tempo em que, simbólica e efetivamente, devem alterar ou eliminar a moldura política antecedente”.
Conforme os registros constantes em Lima et al. (2013), no
contexto da crise econômica e política que precedeu a formação da
Assembleia Nacional Constituinte (ANC), a elaboração da CF-1988
se deu em um processo de disputas, onde a própria forma de convocação da Constituinte, na forma de um Congresso Constituinte, já sus-
DITOS E NÃO DITOS SOBRE O TERRITÓRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
| 279 |
citava avaliações críticas. Os autores relatam como se deu a gênese do
texto constitucional, sublinhando os conflitos, embates e reviravoltas
que se deram desde os trabalhos da Comissão Provisória dos Estudos
Constitucionais, também conhecida como Comissão Afonso Arinos
(ou Comissão dos Notáveis); passando pela elaboração e aprovação
do Regimento Interno; pelos trabalhos realizados nas oito comissões e
nas 24 subcomissões temáticas que tiveram a participação de todos os
constituintes, analisando e votando sobre todo e cada texto advindo
das outras subcomissões; pelas discussões e embates na Comissão de
Sistematização, abrangendo alterações no rito decisório em desobediência ao próprio Regimento Interno, o qual acabou sendo reformado; até a votação e aprovação do projeto em plenário, o qual foi revisado pela Comissão de Redação Final, com sua publicação, em versão
promulgada, no Diário Oficial da União, aos 5 de outubro de 1988.
A elaboração da CF-1988 contou com a participação de 487
deputados federais eleitos em 1986 e de 72 senadores, 23 deles eleitos
ainda em 1982. Sem uma proposta ou projeto preliminar, a elaboração
do texto envolveu o coletivo da ANC, em especial no âmbito das subcomissões. Portanto, de forma diversa de constituições anteriores, nas
quais os constituintes receberam um anteprojeto do Executivo, a CF
1988 teve sua redação realizada pelo coletivo dos 559 constituintes.4
Mas o processo foi ainda mais rico, os autores aqui citados e
outros que se dedicam ao Direito Constitucional apontam o caráter
participativo da CF-1988. Diversos atores sociais e políticos e agentes
econômicos e institucionais participaram do processo, seja por meio
das emendas populares, como foi o caso do capítulo sobre política
urbana, seja por meio das audiências públicas. Segundo Souza (2013,
p.41), no caso brasileiro, os recursos comunicativos de negociação e
argumentação, presentes em processos constituintes, “foram potencializados pela intensa presença de inúmeros grupos e segmentos orga4. Ver Lima ET AL. (2013) e Souza (2003).
| 280
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
nizados da sociedade que estabeleceram contato com os constituintes
durante os trabalhos constitucionais”. Ao final do processo, após a
análise de dois substitutivos e de quatro projetos que contaram com
milhares de proposições de emenda, o resultado final foi celebrado
por muitos e seu fruto recebeu a alcunha de Constituição Cidadã.
Expressão de um embate que se estabeleceu, dizendo de forma simplificada, entre “progressistas” e “conservadores”5, o texto final,
considerado uma conquista da sociedade brasileira, de fato, estabeleceu limites para a ação e para a propriedade privada, assumiu o objetivo de enfrentar as desigualdades sociais e regionais que marcam
a sociedade brasileira e reconheceu direitos sociais, de uma forma
inédita, abrindo espaço para um intenso trabalho de regulamentação
dos preceitos e dispositivos constitucionais, o qual ainda se mostra
inconcluso e que pode revelar uma inteligente estratégia dos setores
mais conservadores, apontada em Bercovici (2009a, p.195), segundo
o qual as assim chamadas “contradições” e “compromissos dilatórios”
se fazem presentes nas passagens que suscitam mais conflitos, desembocando na conformação de “‘normas programáticas’, que são o sinônimo de normas que não têm qualquer valor concreto. Ou seja,
toda norma incômoda passa a ser classificada como ‘programática’,
bloqueando, na prática, a efetividade da Constituição e, especialmente, da constituição econômica e dos direitos sociais”.
SERIA A CF-1988 UMA ÂNCORA FRÁGIL PARA AS
POLÍTICAS PÚBLICAS?
Das evidências aqui trazidas, depreende-se que o texto resultante
dos trabalhos da ANC expressa conteúdos e perspectivas concorrentes
5. Lima et al., op. cit., propõem essa classificação dos constituintes e descrevem as operações políticas que
permitiram que os “progressistas”, mesmo em desvantagem numérica, conseguiram produzir um texto de
feições progressistas.
DITOS E NÃO DITOS SOBRE O TERRITÓRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
| 281 |
e conflituosas. Dizer isso não significa negar que o texto trouxe avanços
importantes, nos sentidos anteriormente sublinhados, mas implica reconhecer os próprios limites e armadilhas deixadas na esteira do processo constituinte, no âmbito das “normas programáticas” e nas matérias
que demandaram (e algumas ainda demandam) regulamentação.
Esses limites e armadilhas são expressões de conflitos e de projetos concorrentes que encontram uma solução intermediária ou parcial no texto constitucional, deixando imprecisões ou áreas cinzentas
que implicam, precisamente, permanência desses conflitos em todas
as dimensões da vida político-institucional do país, com reflexos sobre
sua economia, sua sociedade e seu espaço.
Se há pluralidade de atores, agentes, grupos de interesse e perspectivas em torno do texto constitucional, é de se esperar que essa
diversidade de concepções e projetos, de conteúdos concorrentes se
reflita no texto resultante. Dessa assertiva deriva uma hipótese dessa
reflexão: a CF-1988, pela própria natureza de seu processo de elaboração (e aprovação), traz diferentes concepções da categoria espaço, o
que se reflete na organização e na ação do Estado brasileiro, mormente
por meio das políticas públicas.
Segundo Souza (2003, p.39), “o que se aguarda de uma Constituição é que ela seja uma espécie de âncora institucional ao estabelecer parâmetros duradouros para a ação dos governos e para as funções
do Estado”. Nesse sentido, do ponto de vista da categoria espaço, a
CF-1988 é uma âncora frágil, pois falha ao estabelecer tais parâmetros
e cria diversos limites, constrangimentos, amarras e obstáculos para
a ação dos governos e para as funções do Estado, como se pretende
demonstrar nas seções seguintes.
Afirmar isso não significa negar as qualidades da Constituição,
sequer significa imaginar ou supor possível, naquele contexto específico de elaboração da CF-1988, considerando a pluralidade de forças
e interesses participantes do processo constituinte, um resultado mais
| 282
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
coeso, mais claro no que diz respeito ao projeto de nação que dali
deveria emanar.
Afirmar isso significa reconhecer a natureza daquele processo
constituinte, buscando apontar para os elementos que geram inconsistências e fragilidades no que diz respeito àquilo que se aguarda de
uma Constituição. Conforme aponta Bercovici,
não há mais constituições monolíticas, homogêneas, mas sínteses de
conteúdos concorrentes no quadro de um compromisso deliberadamente pluralista. (...) O conflito é incorporado aos textos constitucionais, que não parecem representar apenas as concepções da classe
dominante, pelo contrário, tornam-se um espaço onde ocorre a disputa político-jurídica (2009b, p.255).
Nesse sentido, o que nos interessa destacar aqui, no que tange
às disputas político-jurídicas que fizeram parte do processo de elaboração da CF-1988 e que nela deixaram seus rastros, é que o texto
constitucional apresenta diferentes perspectivas espaciais, ou seja, lida
com os conceitos e termos associados à dimensão espacial de forma
variada, o que reflete os interesses representados pelos constituintes
nas diversas subcomissões e a influência de atores e instituições que
participaram do processo, não apenas de maneira formal, ou seja, por
meio das emendas populares e das intervenções nas audiências públicas, mas também de maneira informal.
Sobre o processo constituinte, o presidente da ANC, Ulysses
Guimarães, em seu discurso, quando da promulgação da CF-1988,
destacava que
diariamente cerca de dez mil postulantes franquearam, livremente,
as onze entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento,
na procura dos gabinetes, Comissões, galerias e salões. Há, portanto,
DITOS E NÃO DITOS SOBRE O TERRITÓRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
| 283 |
representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela,
de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de
índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados,
de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar (BRASIL, 1988).
No que diz respeito à influência desses diversos atores e instituições, cabe destacar que há registros variados dessa participação no
processo constituinte. Contudo, eles se mostram bastante heterogêneos, variando de acordo com o tema e com os fatos que ocorreram
no período, mormente aqueles associados ao referido tema. Há bastante material de referência, por exemplo, em relação à participação
da sociedade civil no que tange ao capítulo da política urbana, com
destaque para as instituições e para os cidadãos que apresentaram a
emenda popular na qual se baseou o referido capítulo.
No que diz respeito à politica de desenvolvimento regional, há
o registro de uma emenda popular apresentada, entre outras entidades, pela Associação dos Funcionários do Banco do Nordeste do Brasil
(AFBNB), com dispositivos relativos aos organismos regionais de planejamento econômico e social que seriam responsáveis pela elaboração
dos planos regionais, além de outros voltados, conforme justificativa
apresentada, para a redução das disparidades regionais. Interessante
observar que essa emenda propunha que o planejamento econômico
e social do país funcionasse de forma articulada ao planejamento regional. A emenda teve sua tramitação deferida, mas suas proposições
não prosperaram no texto constitucional.
Segundo informações extraídas do próprio discurso do presidente da ANC, o processo constituinte foi bastante intenso, com
mais de 61 mil emendas, 122 emendas populares e diversas audiências públicas, além da presença permanente de cidadãos no prédio do
Congresso, como sublinha em seu discurso.
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Considerando essas evidências, a hipótese de partida dessa reflexão mostra-se consistente e se fortalece pela leitura das 122 emendas populares, da qual emerge um conjunto de treze proposições que
dialogam mais diretamente com a dimensão espacial. Dessas, destacam-se três emendas relacionadas à reforma agrária, a emenda sobre
a reforma urbana, uma sobre o direito à moradia e a emenda anteriormente referida sobre o desenvolvimento regional. Além dessas, há
sete emendas que tratam da organização político-administrativa do
território brasileiro, das quais cinco delas tratam da criação de estados
e uma defende a integridade territorial do Estado da Bahia.
A leitura das emendas populares revela perspectivas e olhares
sobre a dimensão espacial, antevendo uma diversidade de entendimentos que se refletirá na CF-1988. Na seção seguinte deste texto,
essa pluralidade de visões será explorada, entre os ditos e os não ditos
do texto constitucional.
A CF-1988 E SEUS DITOS, MAL(DITOS) E NÃO DITOS:
AS ORDENS ESTATAL, ECONÔMICA E SOCIAL E A
PERSPECTIVA ESPACIAL
Nesta seção, são apresentados os ditos e os não ditos do texto
constitucional, analisados sob a perspectiva espacial. A ocorrência, a
presença de certos termos e vocábulos no texto constitucional será o
ponto de partida dessa análise, a qual se contraporá à identificação
das ausências, insuficiências e imprecisões da norma. Esse exercício
permite se aproximar de um entendimento sobre o universo cognitivo
que se esconde nas diversas mãos e mentes que interferiram direta ou
indiretamente na CF-1988, cujo resultado é um mosaico não coeso
desses termos e vocábulos, expressão dos conflitos associados a projetos concorrentes, dos quais, aqui e acolá, se pode perceber o predomínio de diferentes perspectivas políticas.
DITOS E NÃO DITOS SOBRE O TERRITÓRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
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Fazendo uma varredura do uso de vocábulos associados à dimensão espacial na CF-1988, encontra-se os termos território, territorial, região, regional e, de forma menos frequentes, os termos urbano, rural, agrário, espaço, regiões metropolitanas, microrregiões e
aglomerações urbanas, além das referências ao desenvolvimento e às
desigualdades associadas à questão regional.
Os usos desses termos, contudo, nem sempre remetem à perspectiva espacial. Na maior parte das vezes, são usos genéricos, mais
amplos, ou fazem referência a contextos específicos, como as referências aos tribunais regionais e aos territórios federais, de modo que se
faz necessária uma leitura mais cuidadosa do texto constitucional para
identificar o uso desses vocábulos associados à perspectiva espacial.
Dos 250 artigos da CF-1988 e dos 114 artigos dos Atos das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), 27 artigos da CF1988 e 6 artigos dos ADCT contêm referências mais claramente associadas a uma perspectiva espacial. Tais referências encontram-se, sobretudo, no Título III, que trata da Organização do Estado, no Título
VII, que trata da Ordem Econômica e Financeira e no Título VIII,
que reúne os capítulos referentes à Ordem Social.
Em cada um desses títulos e capítulos, em que há normas que
dialogam com a dimensão espacial, emergem diferentes perspectivas
que convivem no texto constitucional, ainda que nem sempre de forma harmônica.
Nos quatro artigos dos princípios fundamentais, notadamente
nos artigos primeiro e terceiro, os elementos estruturantes da repactuação nacional encontram-se expressos na reafirmação da forma republicana e federativa (Artigo 1º) e no objetivo fundamental da República
de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais” (inciso III, Artigo 3º). O texto constitucional, portanto, parte do enunciado de que a República é uma federação “formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal” (BRASIL, 2018a) e reconhece que há desigualdades sociais
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e regionais que devem ser enfrentadas por meio de uma organização
do Estado estruturada sob esse arranjo tripartite. A princípio, tem-se,
portanto, um bom ponto de partida. Vejamos se esse bom princípio
se reflete nos títulos acima mencionados.
A Organização do Estado e a Perspectiva Espacial
O Título III da CF-1988 trata da Organização do Estado,
com os capítulos que falam das competências da União, dos estados
e dos municípios, mas também com o capítulo dedicado à questão
regional (artigo 43). Considerando o federalismo tripartite instituído
pela CF-1988, como os entes da federação brasileira repartirão suas
competências e responsabilidades em face da gestão do território assim politicamente estruturado e das políticas públicas necessárias para
promover um desenvolvimento menos desigual? Como o desenvolvimento regional dialoga com a organização do Estado brasileiro?
Sem querer aprofundar a discussão sobre o federalismo brasi6
leiro , há um entendimento predominante, na análise da CF-1988 e
de seus efeitos, de que a Carta Magna valorizou os princípios de descentralização e participação social, mas que deixou diversos conflitos
de competência para serem resolvidos ao longo de sua vigência, alguns
dos quais ainda sem solução, como o caso das regiões metropolitanas,
que trataremos na próxima seção. Há distorções entre as competências
distribuídas e os recursos orçamentários disponibilizados para os entes
federados e diferentes capacidades estatais para lidar com os desafios
com os quais se deparam os governantes e gestores no campo das políticas públicas.
No que diz respeito à análise da perspectiva espacial/territorial, além dos problemas brevemente apontados acima, pode-se dizer
6. Há vasta bibliografia sobre o tema, como Castro (2005), Merlin (2004) e Zimmermann (2005), entre
tantos outros.
DITOS E NÃO DITOS SOBRE O TERRITÓRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
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que a abordagem trazida pela organização do Estado brasileiro é simplista e, ao mesmo tempo, rígida, em contraste com as características
dinâmicas e cambiantes dos processos de formação socioespacial que
se dão no território, expressos em suas relações econômicas, socioculturais e de poder.
A organização do Estado, de um lado, privilegia a estruturação
do território nacional em três níveis superpostos de entes da federação: a União (que corresponde à esfera nacional de governo, cobrindo
a totalidade do espaço geográfico nacional), as unidades da federação,
os estados (que correspondem a uma esfera intermediária de governo,
uma fração do espaço geográfico da União) e os municípios (que correspondem à esfera local de governo). De outro lado, a perspectiva territorial leva em conta os processos de formação socioespacial, abrangendo diferentes possibilidades de representação, recortes e análise das
interações que se dão no espaço, numa perspectiva transescalar.
Há, como parte da tarefa de qualquer Constituição de país
federativo, ou não, o desafio de buscar algum tipo de balanço entre
essas duas perspectivas, permitindo que a organização do Estado seja
tal que consiga lidar com a dinâmica e as peculiaridades do processo
de formação socioespacial. Em um país com um espaço geográfico
considerável e com desigualdades socioespaciais tão marcantes, como
o Brasil, esse desafio se amplifica e tenciona a organização político-administrativa do Estado.
Ter em conta que o território não é algo dado ou um vazio,
mas o resultado cambiante de um processo (com diferentes e mutantes possibilidades de formações socioespaciais), com historicidade
e traços culturais próprios, desafia a rigidez dos limites das divisões
político-administrativas e coloca em xeque a forma como o Estado
estrutura sua atuação através das políticas públicas.
Mais que isso, no caso brasileiro, há uma ausência quase total
de tipologias para lidar com os diferentes entes federados, especial-
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mente no caso dos municípios. Municípios de diferentes portes, com
diferentes perfis demográficos e diferentes inserções no território nacional possuem, do ponto de vista do que estabelecem as normas do
Título III da CF-1988, as mesmas competências, não importando
suas características e atributos.
É bem verdade que as políticas setoriais, sobretudo as políticas
sociais e urbanas, têm contemplado de alguma forma a proposição de
tipologias para os municípios, propondo atendimentos diferenciados
segundo os diferentes perfis, isso contudo não tem sido feito em diálogo
com politicas associadas à perspectiva espacial, varia para cada política.
A existência de tensões entre as duas perspectivas referidas anteriormente é, em boa medida, inevitável. O Estado precisa se estruturar para lidar com suas competências, para buscar cumprir os objetivos
fundamentais expressos em sua Constituição. Isso sempre implicará
numa estrutura baseada num fracionamento do espaço geográfico em
unidades político-administrativas. Mas, num território extenso e marcado por diferenças econômicas, culturais, ambientais e socioespaciais
expressivas, a conjugação do federalismo tripartite da CF-1988 com a
forma isonômica com que entes tão diferentes são tratados tem produzido limitações, dificuldades e desafios para a atuação do Estado e
tem produzido tensões e conflitos nas relações interfederativas.
Uma organização de Estado rígida, pouco maleável, traz dificuldades para a atuação estatal à medida que torna mais difícil a
cooperação e a articulação entre seus entes no que tange à produção e implementação de políticas públicas adequadas à realidade de
processos socioespaciais cada vez mais dinâmicos. Essas dificuldades
e obstáculos à cooperação foram alimentados pelo reconhecimento
constitucional dos entes locais como entes federativos, constituindo
como um avanço, no sentido de valorização da esfera local, mas um
entrave à cooperação num quadro de baixa solidariedade territorial
no contexto das relações interfederativas. Ou seja, a questão não diz
DITOS E NÃO DITOS SOBRE O TERRITÓRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
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respeito apenas à rigidez da organização do Estado brasileiro, ela encontra-se fundada nas características socioculturais e políticas da sociedade (política) brasileira.
No quadro das culturas políticas brasileiras, o associativismo e
o cooperativismo têm sido práticas de baixa densidade, como atestam
alguns autores.7 Sobressaem, por parte dos atores e agentes envolvidos, avaliações de custo e benefício focadas em perspectivas particulares e de curto prazo em detrimento de perspectivas centradas em
visões territoriais mais amplas e em processos históricos mais largos.
No quadro do arranjo federativo brasileiro, a cooperação interfederativa tem esbarrado nessas visões mais estreitas e tem sobressaídos os
conflitos políticos horizontais e verticais, envolvendo governos locais
e governos estaduais.
Em um trabalho que trata das diferenças socioculturais entre
o sul e o norte da Itália e seus reflexos em termos sociais, econômicos
e políticos, Putnam recupera ideias clássicas para afirmar que “a virtude cívica, a comunidade cívica se caracteriza por cidadãos atuantes
e imbuídos de espírito público, por relações políticas igualitárias, por
uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração” (2002, p.
30-31). Tecendo um paralelo entre comunidades de diferentes perfis
cívicos, Putnam afirma que
na comunidade cívica os cidadãos procedem corretamente uns com
os outros e esperam receber em troca o mesmo tratamento. Esperam
que seu governo siga padrões elevados e obedecem de bom grado
às regras que impuseram a si mesmos. [...] Numa comunidade menos cívica, ao contrário, há maior insegurança, os cidadãos são mais
desconfiados, e as leis, concebidas pelos maiorais, são feitas para ser
desobedecidas (2002, p.124).
7. Sobre participação social, democracia e políticas públicas, ver, entre outros Fung (2004) e Gaventa (2006),
e sobre o caso brasileiro Avritzer (2004); Costa (2002); e Dagnino (2002).
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Seria ousado, talvez, tomar emprestado de Putnam as suas considerações sobre as comunidades cívicas para entender, no contexto federativo brasileiro, a falta de laços de confiança entre os atores e agentes e sua baixa propensão a cooperar. Mas talvez isso contribua para se
pensar em como são frágeis as condições socioculturais e econômicas
para se construir uma solidariedade territorial no Brasil, partindo de
nossas características cívicas. Por fim, essa fragilidade alimenta-se e
se reforça pela existência de desigualdades socioespaciais expressivas e
pelas diferentes condições (presentes no território brasileiro) para lidar
com tais desigualdades.
E, nesse sentido, a organização do Estado brasileiro pouco contribui para oferecer instrumentos que possam mudar esse quadro. A
relativa rigidez da estrutura político-administrativa conjugada às peculiaridades do federalismo tripartite e à ausência de uma tipologia municipal reforça os debates em torno do federalismo fiscal e das divisões político-administrativas, enquanto os temas e dispositivos relativos à cooperação interfederativa, à solidariedade territorial e aos desafios trazidos
pelos processos socioespaciais são subestimados e compõem, quando
muito, matérias para serem regulamentadas posteriormente.
Essa crítica faz sentido ao se observar que o tema das divisões
político-administrativas domina a produção legislativa, no ADCT e
nas Emendas Constitucionais (EC). Neles, predominam matérias que
tratam das novas unidades territoriais e da regulamentação da criação
de municípios, sem que haja qualquer diálogo com outros temas relevantes para uma abordagem mais ampla do território brasileiro e de
seu sistema urbano.
Nesse contexto, a discussão em torno do que seria o excesso
de municípios no país e sobre os problemas associados ao federalismo fiscal acabam sendo predominantes. Tais discussões, contudo, não
questionam o que seria fundamental: aspectos de nossas culturas políticas, de um lado, e, de outro, a forma homogênea com que a CF
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trata o desigual universo dos municípios brasileiros e a dissociação de
toda essa discussão com a questão do sistema urbano-regional do país.
Para se fazer um contraponto, vale trazer aqui o caso de países
de dimensões menores que contam com um sistema urbano-regional
mais desenvolvido, como ilustram os casos francês, espanhol e alemão: são 36.680 comunas, na França; 8.111 municípios, na Espanha;
e 12.320 municípios, na Alemanha, países que possuem espaços geográficos com áreas bem menores que o Brasil e seus 5.570 municípios.
Como já foi dito, a comparação não pode ser feita sem mediações
porque se tratam de países com sistemas urbano-regionais mais densos. Ainda assim, o que esses casos demonstram é que é possível ter
estruturas político-administrativas, ao mesmo tempo, mais capilarizadas, nas quais os cidadãos estão mais próximos dos governos locais,
que focam sua atuação em temas de interesse local; e com competências melhor distribuídas e hierarquizadas, evitando que as unidades de
governo local tenham que lidar com competências e responsabilidades
de maior complexidade.
Ainda no título que trata da organização do Estado, merece
destacar o capítulo dedicado à questão regional, composto pelo artigo
43 e que encerra o Título III da CF-1988. Nele, estabelece-se que
“para efeitos administrativos, a União poderá articular sua ação em
um mesmo complexo geoeconômico e social, visando a seu desenvolvimento e à redução das desigualdades regionais”. O artigo possui três
parágrafos. No primeiro deles, determina-se que lei complementar
disporá sobre as condições para integração de regiões em desenvolvimento e sobre a composição dos organismos que deverão executar os
planos regionais integrantes de planos nacionais. No segundo parágrafo, o foco recai sobre o tema dos incentivos regionais, na forma de
igualdade de tarifas, fretes, seguros e outros itens; nos juros favorecidos para financiamento de atividades prioritárias; nas isenções, reduções ou tratamento diferido temporalmente para tributos federais; e
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na prioridade para o aproveitamento econômico e social de recursos
hídricos em regiões de baixa renda e de ocorrência de secas periódicas.
No terceiro, prevê-se o incentivo da União na recuperação de áreas
áridas referidas no parágrafo segundo, e na cooperação com pequenos
e médios produtores rurais atingidos pela seca.
A existência de um capítulo dedicado ao tema regional deve
ser reconhecida como um destaque relevante do texto constitucional.
No mínimo, reforça-se o reconhecimento da existência de desigualdades regionais que merecem atenção da federação. Contudo, não ficam
claros os mecanismos que facilitarão o desenho e a implementação
de políticas públicas para além das amarras trazidas pela divisão político-administrativa da federação. Há, de certa forma, uma resposta
aos anseios apresentados pela Emenda Popular da AFBNB, conforme
menção feita anteriormente, mas parte dos temas ficam sujeitos à regulamentação posterior.
Os planos regionais previstos no artigo 21, e relembrados pelo
artigo 43, são competência da União, bem como os planos nacionais.
A inexistência dos planos nacionais comprometeu, decerto, a elaboração e implementação dos planos regionais, que não se concretizaram.
A predominância do planejamento orçamentário por meio dos ciclos
dos Planos Plurianuais (PPAs) sobre o planejamento de longo prazo
com foco no desenvolvimento territorial comprometeu a construção e
a implementação do planejamento regional, limitando o tema à questão dos subsídios.
Com efeito, tanto no texto constitucional, quanto nas alterações posteriores e nos ADCT, prevaleceram, no que diz respeito à
questão regional, normas associadas aos incentivos fiscais em apoio ao
desenvolvimento das regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Decerto que tais normas são relevantes e têm atendido a interesses regionais
contudo, na perspectiva analítica proposta por esse texto, o que se vê
é que no que diz respeito a equacionar as tensões entre a organização
DITOS E NÃO DITOS SOBRE O TERRITÓRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
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do Estado e a dinâmica socioeconômica com seus rebatimentos territoriais, o capítulo sobre a questão regional não traz nenhuma contribuição no sentido de introduzir elementos que poderiam promover
algum equilíbrio para aquelas tensões.8
De certa forma, seria mais coerente que o capítulo sobre a
questão regional estivesse no Título VI da CF-1988, o qual trata da
tributação e do orçamento. Os dispositivos previstos no artigo 43
complementariam o que estabelecem os artigos 151, 158, 159, 163
e 165, seja no sentido de garantir o tratamento equânime de matéria tributária no território nacional, admitindo-se os incentivos fiscais
para promoção do equilíbrio regional; seja no sentido de estabelecer as regras para repartição das receitas tributárias; seja no que tange
ao planejamento orçamentário. Talvez, a presença do capítulo sobre
a questão regional neste título da CF-1988 tivesse contribuído para
aproximar o tema orçamentário da questão regional numa perspectiva que fosse além da questão fiscal. Contudo, isso não se verificou e
permaneceu uma fragmentação entre o planejamento e o orçamento,
com a balança pendendo para os temas associados à questão fiscal e
orçamentária.
A Ordem Econômica e Financeira e
a Perspectiva Espacial
O Título VII, da Ordem Econômica e Financeira, corresponde
àquele em que há mais artigos associados a uma perspectiva espacial
na CF-1988. Entre os dez artigos, destacam-se aqueles nos quais são
tratados temas fundamentais para a perspectiva espacial: a política urbana e a política agrícola e fundiária e da reforma agrária, inseridos no
8. A respeito desse tema, vale a leitura de Monteiro Neto; Castro; Brandão (2017), publicação que trata da
política de desenvolvimento regional no Brasil, analisando-a sob perspectivas que tentam ir além da questão
dos incentivos fiscais.
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texto constitucional com a contribuição de segmentos organizados da
sociedade brasileira, por meio das Emendas Populares.
O que se observa, contudo, é que a inserção desses temas na
CF-1988, dá-se de forma relativamente dissociada de uma perspectiva
espacial mais ampla. Trata-se de uma abordagem parcial e que se aproxima mais de abordagens comuns às políticas setoriais.
O vínculo com uma perspectiva espacial mais ampla é trazido
pelos artigos 170 e 174. No artigo 170, afirma-se que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa,
deve observar, entre outros, o princípio de redução das desigualdades regionais e sociais. Reforça-se, portanto, o que já estava estabelecido como
um dos objetivos fundamentais da República, afirmando a submissão
da ordem econômica a um princípio de busca de uma menor desigualdade regional. A CF-1988 não fala em justiça territorial ou em desenvolvimento territorial, o que traria uma perspectiva mais ampla para o
próprio desenho das políticas públicas, mas, ainda assim, o vínculo entre
a ordem econômico e financeira com esse princípio merece destaque.
Já no artigo 174, afirma-se o papel do Estado, na qualidade de
agente normativo e regulador da atividade econômica, com suas funções
de fiscalização, incentivo e planejamento da economia, de modo determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. Nos parágrafos que fazem parte deste artigo, faz-se referência aos planos nacionais
e regionais de desenvolvimento (previstos no artigo 21) e à legislação
que deverá apoiar e estimular o cooperativismo e outras formas de
associativismo.
Esses dois artigos, portanto, fazem o gancho da ordem econômica e financeira com os objetivos fundamentais da nação e com a
competência da União relativa ao planejamento nacional e regional.
Contudo, a exemplo do que foi visto no artigo 43, no que diz respeito
ao planejamento e ao desenvolvimento regional, parecem predominar
os compromissos dilatórios.
DITOS E NÃO DITOS SOBRE O TERRITÓRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
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Se nos temas que tratam dos incentivos fiscais, do orçamento
e da repartição das receitas tributárias há uma maior clareza quanto aos mecanismos operacionais, no que diz respeito à questão do
planejamento do desenvolvimento nacional e regional, as normas são
claras ao enunciar objetivos fundamentais e princípios, mas são abertas e fluidas no que diz respeito a definir mecanismos de construção
de uma política de desenvolvimento territorial, ou mesmo regional –
abordagem predominante na CF-1988.
Do ponto de vista de uma perspectiva espacial mais ampla, portanto, os vínculos trazidos pelos artigos 170 e 174 da CF-1988 são frágeis, ainda que relevantes. A reflexão proposta por Bercovici nos ajuda
a compreender melhor o alcance e os limites do texto constitucional:
A Constituição Federal de 1988 (CF-1988) tem expressamente uma
constituição econômica voltada para a transformação das estruturas
sociais. Não se pode ignorar, no entanto, que as relações econômicas
são muito mais uma questão de fato (ou seja, vinculadas à constituição econômica material), do que uma questão de direito (ligadas à
constituição econômica formal). Seria ilusório pretender alterar as
regras e a estrutura do poder econômico no sistema capitalista por
uma norma constitucional. As mudanças radicais são sempre políticas. A constituição econômica referenda juridicamente as mudanças,
mas não é responsável por impulsioná-las. É necessário reconhecer os
limites do voluntarismo e do instrumentalismo jurídicos, o que não
significa desvalorizar o processo constituinte (2009b, p.256).
E, no sentido de valorizar o processo constituinte, é justamente nos artigos deste Título VII que se encontram importantes avanços
no texto constitucional. No Título VII, os principais artigos associados a uma perspectiva espacial referem-se às questões urbana e rural.
Os artigos 182 e 183 da CF-1988 compõem o capítulo dedicado à
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
política urbana. Os artigos 184 a 191 tratam da política agrícola e
fundiária e da reforma agrária. Ainda que tratando de temas específicos, tais artigos trazem dispositivos que buscavam promover reformas
profundas nos meios urbano e rural, com impactos potenciais claros
sobre a ordem econômica.
No que diz respeito à política urbana, a mobilização promovida pelo Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU), criado
em janeiro/1985, é responsável pela introdução do capítulo da política urbana na CF-1988.
O Movimento Nacional pela Reforma Urbana articulou o cenário de
participação popular em todo o Brasil no processo da Constituinte de
1988, formado por um grupo heterogêneo, cujos participantes atuavam em diferentes e complementares temáticas do campo urbano.
Reuniu-se uma série de organizações da sociedade civil, movimentos,
entidades de profissionais, organizações não governamentais, sindicatos. (...) Essas entidades assumiram a tarefa de elaborar uma proposta
de lei a ser incorporada na Constituição Federal, com o objetivo de
modificar o perfil excludente das cidades brasileiras, marcadas pela
precariedade das políticas públicas de saneamento, habitação, transporte e ocupação do solo urbano, assim configuradas pela omissão e
descaso dos poderes públicos (Saule Jr.; UzzoO, 2009).
Desenvolve-se, no âmbito do MNRU, o conceito da reforma
urbana, ancorando-se no diagnóstico do quadro de desigualdades sociais e de exclusão social no espaço urbano, expressa na dualidade da
cidade legal versus a cidade ilegal (real).
A bandeira da reforma urbana se consolida não somente na perspectiva da articulação e unificação dos movimentos sociais por meio de
uma plataforma urbana que ultrapassa as questões locais e abrange as
DITOS E NÃO DITOS SOBRE O TERRITÓRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
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questões nacionais, mas também na crítica da desigualdade espacial,
da cidade dual. Com isso, inaugura no país um projeto que reivindicava uma nova cidade e propunha a quebra dos privilégios de acesso
aos espaços das cidades. Configura-se uma politização que vai além
da questão urbana porque se estende para o âmbito da justiça social
e da igualdade (Saule Jr; Uzzo, 2009).
Nasce, dessa articulação, a Emenda Popular da Reforma Urbana, apresentada por um conjunto de seis entidades nacionais, com o
apoio de 48 entidades estaduais e locais e 131 mil assinaturas.
Entre outros dispositivos que valorizavam a esfera local de governo, destaca-se a introdução do conceito da função social da propriedade aplicada ao contexto urbano, assegurando o interesse coletivo em face dos usos individuais da propriedade, especialmente do
solo e do imóvel urbanos, fazendo com que o direito público também
passe a abrigar as discussões sobre a propriedade privada.
Instrumentos de política urbana que já vinham sendo praticados, com menor segurança jurídica em alguns municípios brasileiros,
foram previstos no texto constitucional, destacando-se, de um lado, a
valorização do planejamento e da gestão democrática e participativa das
cidades, e, de outro, a previsão de instrumentos de política urbana voltados para o combate à especulação imobiliária, como é o caso da edificação compulsória, da cobrança do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo no tempo e a possibilidade de desapropriação
no caso de descumprimento dos dispositivos previstos na Carta Magna.
Para alguns autores, essa foi a maior inovação trazida pelo capítulo da
política urbana na CF-1988 (Mota; Jatobá; Ribeiro, 2009).
O planejamento local se viu valorizado por meio do instrumento do Plano Diretor. Embora sua eficácia venha sendo historicamente questionada9, a verdade é que os municípios brasileiros passa9. Ver, entre outras, as contribuições de Arantes; Vainer; Maricato (2000); Leitão (2006); Pinto (2005); e
Villaça (1999).
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ram a elaborar seus planos e, em alguns casos, processos de especulação imobiliária foram contidos ou postergados. Além disso, uma
cultura política de participação na gestão urbana foi introduzida nos
municípios brasileiros, sendo, desde então, objeto de diversas disputas
políticas e econômicas.
Um aspecto interessante a ser sublinhado é que neste capítulo
da política urbana encontra-se a única passagem da CF-1988, para
além das normas que tratam, por exemplo, do número de vereadores,
da existência de estruturas do judiciário ou do percentual de gastos
do poder legislativo, em que há um recorte de municípios associado
a instrumentos de política pública. É o caso dos planos diretores que
são exigidos para cidades cujo contingente populacional seja superior
a 20 mil habitantes.
Sem entrar no mérito da eficácia dos desdobramentos desses
dois artigos da CF-1988, vale dizer que boa parte de seus efeitos só
viriam a ocorrer após a regulamentação desses artigos, 13 anos depois,
em 2001, por meio do Estatuto da Cidade (EC) (Brasil, 2001). Passados 17 anos de vigência do EC, há um debate em torno do cumprimento de suas promessas: ele traria um olhar urbano excessivamente
centrado em municípios de maior capacidade técnica e financeira para
empregar os instrumentos previstos no EC, os quais seriam muito
sofisticados para a maioria dos municípios do país; ele reforça a fragmentação/setorialização da política urbana, o que faz sentido do ponto de vista da operação das políticas de habitação, mobilidade e saneamento, mas deixa transparecer a falta de instrumentos que promovam
uma efetiva Política Nacional de Desenvolvimento Urbano em torno
da qual haveria uma maior integração das políticas urbanas. Ao final
o EC não aprofunda o diálogo da política urbana com o sistema urbano-regional brasileiro.10
10. Um balanço sobre a política urbana se encontra nas contribuições presentes em Costa (2016a).
DITOS E NÃO DITOS SOBRE O TERRITÓRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
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Embora não trate de aspectos urbano-regionais diretamente, o
EC reafirma a competência da União em “elaborar e executar planos
nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social” (inciso V, Artigo 3º). O EC também passa a
exigir a elaboração de planos diretores, o instrumento básico da política urbana, nos municípios inseridos em regiões metropolitanas e
aglomerações urbanas, nos municípios de áreas turísticas e naqueles
inseridos em áreas de influência de empreendimentos de significativo
impacto ambiental de âmbito regional ou nacional.
O EC revela o entendimento, por parte daqueles que contribuíram com a redação da lei, de que há ações e processos que se dão
em escalas mais amplas e que demandam reflexão e cuidados (traduzidos em normas) por parte dos municípios.
Isso dá pistas das dificuldades e conflitos que estiveram presentes no processo de redação do EC e, 13 anos antes, na própria redação
do texto constitucional. Apesar das críticas a essas duas normas, há
que se reconhecer que foram uma conquista, a conquista possível em
torno das disputas em torno do direito à cidade.
Do ponto de vista de uma abordagem espacial mais ampla,
a baixa densidade de diálogo entre o capítulo da política urbana da
CF-1988 e, em menor escala, do EC com o sistema urbano-regional
brasileiro parece constituir na crítica mais relevante a esses dispositivos legais. Não se trata de uma questão meramente escalar. Dada a
organização do Estado brasileiro, o capítulo da política urbana e o
EC seriam dispositivos desenhados para o município, e menos para o
urbano, entendido de forma ampliada, a la Lefebvre (2005). Contudo, em decorrência da própria organização do Estado brasileiro trazida pela CF-1988, especialmente com o papel que foi atribuído ao
município, as normas associadas à política urbana não deveriam ter
reforçado a fragmentação da gestão do território sem atentar para os
riscos de alimentar conflitos interfederativos e sem propor e valorizar
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instrumentos e mecanismos de planejamento e gestão compartilhados
ancorados numa visão mais ampla do território brasileiro. Nesse sentido, emerge a importância do tema das regiões metropolitanas, que
será objeto de seção posterior deste artigo.
Ainda no Título VII, da ordem econômica e financeira, merece destaque o capítulo sobre a política agrícola e fundiária e da reforma agrária. No mesmo sentido do capítulo da política urbana, esse
capítulo traz a submissão do direito à propriedade privada ao cumprimento de sua função social, cujos requisitos são estabelecidos pelo
texto constitucional. Busca-se favorecer a reforma agrária por meio da
desapropriação de grandes propriedades rurais improdutivas.
O texto trata ainda da política agrícola e das condições em que
se dará a reforma agrária, inclusive a titulação, e prevê o instituto do
usucapião para propriedades de até 50 hectares. A exemplo de outros
temas que são objeto de disputa, também ficaram para posterior regulamentação vários aspectos trazidos pela CF-1988, sobretudo aqueles que
tratam dos critérios e graus de exigência para se cumprir a função social.
Da mesma forma que o capítulo da política urbana, este capítulo também não dialoga com a questão do desenvolvimento territorial
brasileiro e não estabelece critérios que considerem as diferenças geoambientais e socioculturais existentes no país para fins de se construir uma
política de desenvolvimento agrário que amplie o acesso à terra.
Ainda que a associação entre a questão agrária e a questão
regional não tenha sido trazida pelo texto constitucional, estabeleceu-se um vínculo importante entre a política agrária e a política
ambiental, quando o inciso II do artigo 186, que traz os requisitos
a serem observados para se cumprir a função social da propriedade,
estabelece a “utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e
preservação do meio ambiente” como um desses requisitos. Passados
30 anos de promulgação da CF-1988, seria oportuno avaliar a potência desse requisito...
DITOS E NÃO DITOS SOBRE O TERRITÓRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
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Num balanço geral, são evidentes os avanços trazidos pelo texto constitucional no que diz respeito à ordem econômica e financeira,
em especial nos capítulos da política urbana e da política agrícola e
fundiária e da reforma agrária. As críticas aqui formuladas, no sentido de evidenciar a baixa densidade das normas no que diz respeito a
favorecer o desenvolvimento e a solidariedade territorial, a partir da
cooperação interfederativa, devem considerar as condições e o contexto de elaboração da CF-1988, de modo que há méritos evidentes
que se alimentaram/decorreram da participação social. Ainda assim,
não se pode negligenciar os aspectos críticos aqui destacados, inclusive porque muitas das conquistas do texto legal não se traduziram em
políticas públicas que produzissem os resultados esperados, seja no
que diz respeito ao direito à cidade, seja no que diz respeito ao acesso
à terra. Nesse sentido, conforme salientou Bercovici:
A Constituição de 1988 incorpora em seu texto o conflito, muitas vezes
ignorado pela doutrina jurídica. Esta incorporação do conflito ao texto
constitucional, chamando formalmente atenção para essas questões e
determinando a necessidade de se encontrarem soluções, é particularmente sensível e perceptível no capítulo da Ordem Econômica. Não é
por acaso que neste capítulo se travaram os grandes embates políticos e
ideológicos nas discussões da Assembleia Nacional Constituinte. Também não por outro motivo este capítulo foi o mais desfigurado pelo
intenso processo de reformas constitucionais neoliberais levado a cabo
desde o governo de Fernando Henrique Cardoso. Será justamente na
ordem econômica da Constituição que os seus críticos encontrarão as
“contradições” e os chamados “compromissos dilatórios”, além das célebres “normas programáticas”, que são o sinônimo de normas que não
têm qualquer valor concreto. Ou seja, toda norma incômoda passa a
ser classificada como “programática”, bloqueando, na prática, a efetividade da Constituição e, especialmente, da constituição econômica e
dos direitos sociais (2009, p.195).
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Com esses apontamentos críticos e dúvidas em mente, a próxima e derradeira subseção irá avaliar como a perspectiva espacial aparece nos capítulos que tratam da ordem social na CF-1988.
A Ordem Social e a Perspectiva Espacial
Em cinco capítulos do Título VIII, da Ordem Social, encontram-se artigos que trazem uma perspectiva espacial/territorial para
o texto constitucional. Estabelece-se, no plano discursivo-normativo,
um vínculo entre as políticas setoriais, sobretudo as políticas sociais, e
a dimensão espacial.
No capítulo da saúde, estabelece-se que o Sistema Único de
Saúde (SUS) compreende ações e serviços públicos que fazem parte
de uma rede regionalizada e hierarquizada. O caso da saúde é aquele
em que a operacionalização da política por meio de um sistema único, em rede, encontra-se mais claramente desenhado na CF-1988.
Mas há normas que chamam a atenção para especificidades regionais
que devem ser observadas nos capítulos da educação, da cultura e do
desporto, em especial nos artigos 210 (seção da educação), 215 e 216
(seção da cultura); no capítulo sobre ciência, tecnologia e inovação, no
qual se afirma que a pesquisa tecnológica deve estar orientada para a
“solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional”; no capítulo sobre a comunicação
social (artigo 21); e no capítulo sobre meio ambiente.
Neste capítulo, que não contou com Emendas Populares na
sua redação, estabelece-se, entre outros dispositivos, que cabe ao Poder Público “definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos”. O
capítulo trata também dos estudos de impacto ambiental para atividades causadores de significativa degradação ambiental.
DITOS E NÃO DITOS SOBRE O TERRITÓRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
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Com uma inserção relativamente tímida no texto constitucional, limitada ao artigo 225, o tema do meio ambiente apresentou diversos desenvolvimentos no período posterior à promulgação da CF1988, com destaque, entre outros, para a Lei da Política Nacional de
Recursos Hídricos, de janeiro de 1997 (Brasil, 1997) e para a Lei do
Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, de julho
de 2000 (Brasil, 2000).
Prevalece, no caso do meio ambiente, uma abordagem que se
encontra estruturada a partir da caracterização e reconhecimento do
patrimônio dos diferentes biomas presentes no território brasileiro.
Nesse sentido, a CF-1988 reconhece que a Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira constituem patrimônio nacional, devendo sua
utilização dar-se de forma a preservação do meio ambiente e de seus
recursos naturais.
No que diz respeito aos recursos hídricos, a instituição de um
sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos estava prevista no artigo 21 como uma competência da União, que tratou de sua
regulamentação por meio da lei anteriormente citada.
Ainda que não seja objetivo deste texto discutir em profundidade todas as tensões ou conflitos gerados por diferentes normas no
que diz respeito à forma como o território é compreendido e inserido
nos dispositivos legais brasileiros, vale discutir aqui o caso da gestão dos
recursos hídricos vis-à-vis a questão do uso do solo urbano na CF-1988.
No que diz respeito ao ordenamento territorial e ao planejamento e ao controle do parcelamento, do uso e da ocupação do solo
urbano, a CF-1988 estabeleceu, no inciso VIII do artigo 30, que esta
competência cabe ao município. Como vimos na subseção anterior,
o capítulo da política urbana reforça o papel do município no planejamento de seu território, a partir da elaboração e implementação do
instrumento base dessa política, o plano diretor.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
A lei conhecida como Lei das Águas, que trata de regulamentar
o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, por seu
turno, traz um entendimento diverso do espaço geográfico, centrado
em suas bacias hidrográficas. De acordo com um dos fundamentos
trazidos pelo seu Artigo 1º, “a bacia hidrográfica é a unidade territorial
para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos”.
Nesse sentido, a norma reconhece, nas bacias hidrográficas, a
existência de um espaço que difere da divisão político-administrativa
do espaço geográfico, de modo que o planejamento e a gestão dos recursos hídricos deve ser feita em observância às bacias e microbacias,
envolvendo suas comunidades, usuários e o Poder Público.
De forma atenta às diversas escalas do planejamento, a lei
estabelece ainda que, entre as diretrizes gerais de ação da política nacional de recursos hídricos, encontra-se, conforme consta no inciso
IV, do Artigo 3º, “a articulação do planejamento de recursos hídricos
com o dos setores usuários e com os planejamentos regional, estadual
e nacional”.
Ainda que a operacionalização disso e sua compatibilização
com os preceitos da CF-1988 relativos à gestão do solo urbano não
sejam exatamente simples, merece destaque o esforço da lei em incorporar uma perspectiva transescalar e em lidar com o espaço de forma
mais ampla, numa abordagem menos restrita à organização do Estado.
A compatibilização das normas constitucionais e daquelas estabelecidas no EC sobre o uso do solo municipal com o as determinações trazidas pela Lei das Águas daria uma contribuição efetiva
ao ordenamento e à gestão territorial no Brasil. Isso seria ainda mais
positivo se considerados os efeitos e consequências dos rebatimentos
territoriais dos processos socioespaciais em curso. Contudo, não é isso
que se verifica, como poderá ser visto na seção seguinte que trata do
caso das regiões metropolitanas.
DITOS E NÃO DITOS SOBRE O TERRITÓRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
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A QUESTÃO METROPOLITANA: UMA CHAVE PARA
COMPREENDER AS LIMITAÇÕES
DA CF-1988 SOB A PERSPECTIVA ESPACIAL
A ausência quase completa da questão metropolitana no texto
da CF-1988 e no próprio EC, onde há, no texto original, três menções
às Regiões Metropolitanas (RMs), já foi aqui apontada e parcialmente justificada. Há relatos de que no processo constituinte e também
no caso do EC, propostas que incorporavam a questão metropolitana
foram excluídas dos textos legais, inclusive como forma de viabilizar
a sua aprovação.11
E o que dizem as normas sobre as regiões metropolitanas? Na
CF-1988, o artigo 25 limita-se a estadualizar a matéria relativa à instituição das regiões metropolitanas. Segundo o parágrafo 3º deste artigo,
“os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por
agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o
planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum”.
O texto fala da competência de instituir esses recortes regionais e reconhece, indiretamente, que pode ser necessário instituí-los
para favorecer a organização, planejamento e execução das funções
públicas de interesse comum (FPICs). Ou seja, o texto trata de tais
espaços numa perspectiva endógena (ao se remeter às FPICs) e não os
associa aos processos de formação socioespaciais que os conformaram
e que são/serão por eles impactados. A menção às RMs na CF-1988
mostra-se precária e dissociada de um entendimento mais amplo dos
processos socioespaciais.
Vale notar que a experiência de planejamento metropolitano
no Brasil, a partir da criação das RMs federais, nos anos 1970, aten11. As considerações aqui tecidas sobre as regiões metropolitanas podem aplicar-se, na maior parte dos casos,
às aglomerações urbanas, também tratadas, junto às microrregiões, no mesmo artigo 25 da CF-1988. A ênfase nas regiões metropolitanas decorre do fato de se tratarem de formações socioespaciais mais complexas e
que têm um papel mais importante no contexto do desenvolvimento capitalista.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
tava para a dupla vinculação desses espaços: a endógena, que trata de
propor soluções para os problemas que ocorrem na escala metropolitana e que demandam o compartilhamento da gestão, envolvendo
diferentes municípios e o governo estadual; mas também a exógena,
que trata da inserção da RM no espaço regional e nacional, com seu
potencial papel de ancorar o desenvolvimento econômico regional e
nacional, conforme preconizado pelo II Plano Nacional de Desenvolvimento.
Há, do ponto de vista legal, um relativo retrocesso no tratamento dessa matéria no texto constitucional. Prevalece uma visão
parcial e limitada do tema, com fraco entendimento sobre os processos socioespaciais, seus rebatimentos territoriais e os desafios e possibilidades dele decorrentes. Ademais, a CF-1988 ensejou diversos
conflitos, sobretudo relativos à titularidade das FPICs e aos arranjos
institucionais necessários para se planejar e gerir as RMs. De quem é
a titularidade das FPICs? Os municípios, reconhecidos como autônomos, são obrigados a participar das RMs? Como fica sua autonomia
em face dessa inserção numa RM? Como caracterizar e compatibilizar
interesses locais e interesses metropolitanos? A quem cabe o planejamento e a gestão das RMs? Quem financia o funcionamento desses
arranjos e quem assume a responsabilidade sobre os investimentos
metropolitanos?
Insuficientemente e mal abordado no texto constitucional, o
temas das RMs voltaria a ser referido no EC, na regulamentação do
capítulo de política urbana da CF-1988. No âmbito do EC, o tratamento do tema metropolitano registrou alguns avanços pontuais que
merecem ser apontados.
No seu Artigo 4º, o EC estabelece que o planejamento metropolitano é um instrumento da política urbana. Essa primeira associação entre o planejamento metropolitano e a política urbana, ainda
que seja numa norma que que deixa a questão em aberto, denota um
DITOS E NÃO DITOS SOBRE O TERRITÓRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
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entendimento ampliado da questão urbana. Trata-se de um avanço
cognitivo e de base jurídica, que, contudo, demandaria regulamentação posterior.
Da mesma forma pode ser interpretada a exigência de elaboração de planos diretores por parte dos municípios metropolitanos, independentemente de seu contingente populacional. Esse aspecto, já discutido anteriormente, traz um avanço no entendimento da política urbana, ainda que o texto nada diga sobre a compatibilização dos planos
diretores de municípios metropolitanos e desses com os instrumentos
de planejamento na escala metropolitana. De toda forma, a introdução
dessa exigência expressa o reconhecimento de tipologias municipais,
ou seja, há municípios diferentes que devem ter seu instrumento básico
de política urbana em função de sua inserção regional.
E, por fim, a terceira referência às RMs no texto original do
EC diz respeito à participação popular e dos vários segmentos da sociedade no planejamento metropolitano, espelhando o princípio de
gestão democrática da cidade que é um dos pilares do Estatuto.
Passados mais de 26 anos da promulgação da CF-1988 e pouco mais que 13 anos após a vigência do EC, a Lei 13.089, de 12 de
janeiro de 2015 (Brasil, 2015), viria instituir o Estatuto da Metrópole
(EM), regulamentando dispositivos presentes no artigo 25.
O EM busca solucionar alguns dos conflitos deixados em aberto pela CF-1988 e pelo EC e avança em vários aspectos, ao mesmo
passo em que tenta evitar choques com as interpretações legais que
favorecem as teses municipalistas. As principais contribuições do EM
dizem respeito à ideia da governança interfederativa, ao detalhamento dos instrumentos do planejamento metropolitano e ao apoio da
União no desenvolvimento urbano integrado em RMs que possuam
a gestão plena.
Apesar de seus avanços, o que se observa é que o EM, a exemplo do que havia sido observado nas análises precedentes sobre a CF-
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
1988, traz uma visão também endógena para o tema das RMs, concentrando-se, conforme deixa claro o texto legal, nos aspectos associados ao planejamento, à gestão e à execução das FPICs. Ainda assim,
mesmo no que diz respeito a essa perspectiva, o EM não equaciona os
conflitos existentes, demandando interpretações de dispositivos legais
e contribuindo para a judicialização, como se observa, por exemplo,
no caso da RM de Salvador, em que o município-polo da RM questiona sua inserção na RM e sua participação na estrutura metropolitana instituída por lei estadual.12
Considerando uma perspectiva espacial transescalar, o EM
apresenta poucos avanços. Não são estabelecidas pontes entre o planejamento metropolitano e regional, entre as RMs e a rede urbana
brasileira, a lei não faz referência ao sistema urbano brasileiro.
As RMs, nódulos do sistema urbano, podem contribuir para a
execução de projetos de desenvolvimento regional e nacional, ancorados em suas economias de aglomeração e nas vantagens que oferecem,
sobretudo no contexto das sociedades da informação. Ou seja, esses
espaços podem ser o ponto de interseção, podem constituir uma referência para as políticas públicas espaciais (Steinberger, 2017).
Ademais, no que constituiu uma prevalência de uma visão técnica legislativa sobre um dado de realidade, a constituição de uma
RM que envolvesse Brasília ficou prejudicada pelo EM. Prevaleceu,
nesse caso, um entendimento equivocado sobre a natureza distinta
da Região Integrada de Desenvolvimento (RIDE), como é o caso da
RIDE do DF. A equiparação das RIDEs às RMs mostra um entendimento equivocado sobre as RIDEs.
Antes que se completassem três anos de vigência do EM e
que seus preceitos, sobretudo as sanções a governadores e prefeitos de
municípios metropolitanos, pudessem ser aplicadas, a Lei Ordinária
12. Análises mais detalhadas da questão metropolitana podem ser encontradas em Costa; Tsukumo (2013)
e em Costa (2016b).
DITOS E NÃO DITOS SOBRE O TERRITÓRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
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13.683, de 19/06/2018 (BRASIL, 2018b), trouxe alterações ao Estatuto da Metrópole, revendo alguns de seus conceitos, alargando os
prazos para elaboração e implementação dos instrumentos previstos
no texto original, notadamente do Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI).
Não será possível aqui fazer uma análise criteriosa das alterações feitas ao EM. Foram revisados e introduzidos conceitos do/ao
texto original, em alguns casos, dando-lhe maior precisão, em outros,
introduzindo conceitos que sugerem visões mais operacionais do planejamento metropolitano, como é o caso da ideia de um desenvolvimento territorial estratégico e de projetos estruturantes. Também
foram introduzidos dispositivos, seja para dar maior consistência técnica ao processo de criação de uma RM, seja para reforçar a ideia
da governança interfederativa, cujo conceito foi introduzido em seu
Artigo 2º, conferindo-lhe maior precisão.
O novo texto legal retirou do Artigo 7º a referência à participação social “no acompanhamento da prestação de serviços e na realização de obras afetas as funções públicas de interesse comum” e trouxe
normas para a realização de audiências públicas.
No que diz respeito ao apoio da União ao planejamento metropolitano, a lei reitera o possível apoio da União à elaboração dos
PDUIs, bem como às “iniciativas dos Estados e dos Municípios voltadas à governança interfederativa”, afirmando que a União “promoverá
a instituição de um sistema nacional de informações urbanas e metropolitanas” (Brasil, 2018b, artigo 16-A). A instituição desse sistema
vem em substituição à revogação do artigo 20 que tratava do SNDU
e que previa a criação de um subsistema de planejamento e informações metropolitanas, matéria que estava melhor especificada na versão
original.
A versão revisada do EM revoga, portanto, o artigo 20 que
tratava do Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano (SNDU).
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Proposto e debatido nas últimas Conferências Nacionais das Cidades, o SNDU poderia ser o elo entre as políticas urbana, regional e
metropolitana, podendo contribuir para se avançar na construção de
uma estratégia de desenvolvimento territorial para o país, à sombra da
inexistente Política Nacional de Ordenamento Territorial (PNOT).
A nova versão do EM também revoga o artigo 21, que afirmava incorrer em improbidade administrativa os governadores, prefeitos
ou agentes públicos que não cumprissem, no prazo legal dispositivos
legais associados à elaboração e aprovação dos PDUIs.
Apesar das revisões conceituais e de se reforçar a ideia da governança interfederativa, a nova lei pouco avança no sentido de permitir
um maior diálogo com o desenvolvimento territorial, numa perspectiva transescalar ampliada. A lei mantém indefinições e imprecisões
que já constavam da versão original, não dialoga com o sistema urbano-regional brasileiro, mantém o entendimento equivocado a respeito
das RIDEs e sinaliza para o enfraquecimento do planejamento metropolitano ao revogar preceitos que pressionavam gestores públicos no
sentido da construção de arranjos interfederativos.
APONTAMENTOS FINAIS E REFLEXÕES SOBRE O
FUTURO (EM UM MUNDO CAMBIANTE)
O objetivo desse texto era fazer uma reflexão crítica sobre a
dimensão espacial no texto constitucional, por ocasião dos 30 anos
de promulgação da Carta Magna. Para isso, lançamos mão de alguns
procedimentos simples, como a identificação de termos associados à
dimensão espacial e avançando no sentido de analisar o sentido do uso
de certos vocábulos, observando em que medida as leis traziam uma
perspectiva territorial mais ampla, contemplando uma visão transescalar e entendimentos mais robustos acerca do desenvolvimento territorial brasileiro.
DITOS E NÃO DITOS SOBRE O TERRITÓRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
| 311 |
Pode-se argumentar que o fato da CF-1988 fazer poucas referências ou mesmo não fazer o uso de certos vocábulos não é em si um
aspecto negativo, e que temas pouco aprofundados no texto constitucional não são necessariamente subestimados pelas políticas públicas.
Em tese, esses contra-argumentos são válidos. Uma simples
referência na CF-1988 sobre a política urbana e seus princípios, com
um prazo para a regulamentação do tema, teria sido suficiente, talvez,
para que o EC tivesse sido sancionado mais cedo. Do mesmo modo,
a menção feita na questão metropolitana no artigo 25, poderia ter ensejado uma rápida e mais consistente regulamentação dessa questão,
evitando todos os conflitos e disputas em torno do desafio da governança interfederativa.
No entanto, o que procuramos mostrar aqui é que a CF1988, o ADTC, as Emendas Constitucionais e os principais regulamentos da Carta Magna deixam transparecer a existência de um
entendimento parcial e pouco robusto da dimensão espacial/territorial. Nesse sentido, como desenvolver políticas públicas atentas para
a dimensão territorial quando há poucas referências conceituais ou
preceitos que permitam uma articulação entre as políticas públicas?
Sobretudo quando predomina uma perspectiva setorialista que, em
geral, não se integra no território? Quando a setorialização ocorre
nas próprias políticas públicas espaciais (políticas regional, urbana,
agrária e de meio ambiente)?
Na ausência de um entendimento mais amplo do que é o
território nacional, de seu processo de formação socioespacial e de
sua dinâmica, e na esteira de uma visão compartimentada espacial
e tematicamente, os principais elementos da ordem constitucional
apresentam-se ambivalentes. De um lado, registram avanços conceituais e no campo dos direitos econômicos e sociais; de outro, as
políticas públicas acabam sofrendo com os efeitos negativos da organização do Estado, em que a lógica simplista, homogeneizadora
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
e relativa rígida da organização político-administrativa do país não
encontra elementos que estimulem municípios, estados e União a se
articularem de forma mais ágil e eficaz em resposta aos desafios com
os quais são confrontados.
A desarticulação entre as políticas públicas espaciais e as dificuldades de cooperação e governança interfederativa ficam evidentes
quando se analisa o caso das RMs, como visto na seção anterior.
Vale deixar claro que aqui não se postula uma visão baseada
na crença de que a existência de uma norma é garantia da solução de
problemas. O Brasil, por exemplo, dispõe, no seu quadro jurídico-normativo, de instrumentos que poderiam favorecer a ação articulada de governos locais ou a cooperação interfederativa. Contudo, a
ocorrência de consórcios intermunicipais, de arranjos metropolitanos
robustos e do compartilhamento de compromissos e responsabilidades no campo das políticas públicas são a exceção, não a regra. Predominam as visões parciais e de curto prazo, as quais se associam ao
predomínio, no país, de culturas políticas que pouco contribuem para
a constituição de comunidades cívicas.
Decerto, a legislação não resolveria essa questão. Na realidade,
ela constitui um reflexo da cultura política brasileira, e seus conceitos
e preceitos acabam por reforçar abordagens e políticas parciais e não
integradas territorialmente.
Tem-se, assim, a associação da dificuldade/baixa propensão a
cooperar com a organização de um Estado e de políticas públicas que
acabam por reforçar a setorialização, a fragmentação e ausência de um
entendimento integrado, a partir do território, do país e de seu processo de formação socioespacial.
Mesmo as políticas públicas espaciais apresentam-se e operam
de forma compartimentada, sem o diálogo com o que poderia ser seu
ponto de encontro: uma política nacional de ordenamento territorial,
DITOS E NÃO DITOS SOBRE O TERRITÓRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
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tema que não foi tratado na CF-1988 e que não mereceu ainda a elaboração, aprovação e implantação de uma política nacional. 13
A ausência da PNOT é, ao mesmo tempo, reflexo e consequência desse quadro político-cultural e institucional. Sua ausência
tem a ver com a ausência de um projeto de nação, o que remete aos
conflitos de interesse em torno do que seria tal projeto. Afinal, discutir
um projeto de nação demanda levar em conta o território nacional
como em todo, em suas diversas escalas e possibilidades de articulação. Significaria superar a política regional baseada nas “regiões-problema” oriunda dos anos 1950 (conforme propõe Bercovici, 2009a);
pensar no direito à cidade para além das fronteiras municipais, superando a definição legal de cidade dos anos 1930, e encarar a cidade
real de frente; promover o desenvolvimento agrário em diálogo com
uma compreensão e uma projeção do espaço brasileiro no futuro, observando seu patrimônio cultural e natural.
Três décadas após a promulgação da CF-1988, o Brasil não
elaborou seus planos nacionais e regionais e não instituiu uma política de ordenamento territorial. Foram produzidos marcos jurídicos
de reconhecida qualidade para a proteção do meio ambiente, para
as cidades, para a gestão dos recursos hídricos, mas a setorialização e
a fragmentação predomina, mesmo entre as políticas públicas espaciais, e dificultam um entendimento ampliado da questão territorial.
Houve avanços, conforme apontados nas seções anteriores, mas eles
se mostram demasiadamente tímidos em face dos desafios que se vislumbram no horizonte.
Analisando a questão regional, Bercovici afirma que hoje,
“diante dos desafios e ameaças trazidos pela globalização, o esforço
de coordenação, articulação e cooperação de todos os níveis de governo do Brasil para o desenvolvimento e a superação das desigualdades
13. Referências sobre esse tema podem ser encontradas em Steinberger; Costa (2017) e em Miragaya; Signori
(2011).
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regionais é tão ou mais importante do que o ocorrido na década de
1950 (2009a, p.188).
Com efeito, no mundo cambiante em que vivemos, no qual
os modos de produzir, consumir e circular encontram-se em processo de transformação, com resultados socioeconômicos incertos (mas
nada auspiciosos do ponto de vista da ampliação das desigualdades
socioespaciais), com rebatimentos territoriais de difícil apreensão, em
que as escalas se movem ao sabor dos interesses corporativos e em
que os Estados Nacionais estão em xeque, parece fundamental buscar
compreender que país construímos até o espaço-tempo contemporâneo, para, mirando o futuro com apreensão, mas sem medo, encarar
o desafio de propor e desenvolver projetos alternativos e adaptativos
que objetivem a construção de uma nação soberana mais justa, includente, eficiente e ambientalmente sustentável.
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| 319 |
CAPÍTULO 12
A TEMÁTICA REGIONAL NA
CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
SIMONE AFFONSO DA SILVA1
Diversos temas foram contemplados no arcabouço da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, inclusive a questão
regional, ou seja, o reconhecimento político da existência de desigualdades que se expressam espacialmente no âmbito regional e o imperativo de se promover políticas públicas voltadas à sua mitigação.
Passados 30 anos da promulgação da Carta Magna, cabe-nos apreciar
criticamente a abordagem que o documento apresenta sobre a temática regional, tanto aqueles aspectos que constam na versão original
como as principais alterações inseridas até o presente momento, com
especial atenção ao ordenamento jurídico, aos instrumentos financeiros e ao aparato político-administrativo.
Mas, antes de nos debruçarmos sobre a análise da Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988, é importante destacarmos
dois aspectos que lograram especial atenção ao longo de nossa apreciação
crítica: a conceituação de região e o significado de dimensão regional.
1. Simone Affonso da Silva é Doutora pelo IFCH-USP. Doutoranda no programa de pós-graduação em Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).
| 320
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
No geral, há duas maneiras distintas de se conceber região. A
primeira relaciona-se com a existência de fenômenos humanos e naturais responsáveis pela diferenciação de áreas. Neste caso, as regiões
seriam um fenômeno em si, independente da capacidade humana de
apreendê-las em sua plenitude e de criar regionalizações do espaço
geográfico que reflitam a complexidade do mundo, embora o desafio
posto seja o de criar divisões regionais o mais fidedignas possíveis. A
outra maneira de se conceber região diz respeito às divisões administrativas do território utilizadas para fins de planejamento, sobretudo
no âmbito governamental. Neste caso, os critérios de regionalização
adotados não necessariamente visam dar conta do processo de diferenciação de áreas resultante da combinação de complexos fenômenos de caráter humano e natural, podendo haver a adoção de critério
único ou de um conjunto de critérios condizente com determinado
viés que se queira destacar, segundo os objetivos e finalidades da divisão regional.
Convém ressaltar que a conceituação de região pode variar,
não havendo apenas uma que seja correta e definitiva, mas concepções com maior ou menor nível de parcialidade e de pertinência em
cada contexto. Destarte, é imprescindível que uma dada concepção
de região e a respectiva regionalização sejam utilizadas de maneira
adequada, coadunadas com os propósitos de sua criação ou adoção
(fins didáticos, fins estatísticos, fins de planejamento público ou privado etc.) e fundamentadas numa perspicaz apreciação da dimensão
regional. Esta é aqui entendida como um elemento, um atributo,
uma parte constituinte do espaço geográfico, e não como uma mera
extensão do espaço material/absoluto. Nesse sentido, a dimensão regional das políticas públicas refere-se tanto à presença de uma leitura
das diferenciações e disparidades regionais desde o desenho até a avaliação das políticas públicas, como à sua implementação e execução
de forma regionalizada.
A TEMÁTICA REGIONAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
| 321 |
Tomando como exemplo a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, podemos verificar que há quatro facetas da
dimensão regional contempladas:
i) a instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, a partir do agrupamento de municípios limítrofes, a fim de integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse
comum, segundo lei complementar dos estados Federados
(Artigo 25, § 3);
ii) a delimitação de complexos geoeconômicos e sociais por
parte da União, sobre os quais atuariam instituições especialmente criadas para promover o desenvolvimento regional (Artigo 43, § 1);
iii) o uso de incentivos e fundos regionais para a promoção
do desenvolvimento socioeconômico entre as diferentes
regiões do país (Artigo 43; Artigo 159; Artigo 161);
iv) a regionalização das políticas setoriais no âmbito da formulação e implementação dos planos plurianuais (Artigo
48; Artigo 165).
Veremos a seguir que estas quatro facetas, já presentes no ordenamento jurírico anterior e reafirmadas na Constituição Federal de
1988, apresentam limitações teóricas, metodológicas e práticas com
grande potencial de influenciar a busca pela superação das desigualdades regionais no Brasil.
REGIÃO COMO UM COMPLEXO GEOECONÔMICO E
SOCIAL
Segundo o Título 1 – Dos Princípios Fundamentais, Artigo 3º,
a redução das desigualdades regionais corresponderia a um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, ao lado da
| 322
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
redução das desigualdades sociais e da erradicação da pobreza e da
marginalização, além da construção de uma sociedade livre, justa e
solidária, da busca pelo bem estar de todos, sem quaisquer discriminação, e da promoção do desenvolvimento nacional. Assim, na organização político-administrativa do Estado brasileiro, competiria à União
“elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social” (Artigo 21). Nesse
sentido, a União poderia “articular sua ação em um mesmo complexo
geoeconômico e social, visando a seu desenvolvimento e à redução das
desigualdades regionais”, especialmente por meio da atuação de instituições criadas especificamente para atingir este propósito (Artigo 43).
Seria possível inferir que esta acepção de região está pautada no
reconhecimento do processo de diferenciação de áreas decorrente de
distintas combinações de fenômenos humanos e naturais sobre o espaço
geográfico. Mas, por se tratar de uma menção bastante pontual, cabe levarmos em consideração alguns precedentes dessa perspectiva em nossa
análise, especialmente os debates em torno da criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) em 1959, liderados
por Celso Furtado, e a oficialização da Divisão Regional do Brasil em
1969 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Algumas políticas públicas e instituições foram criadas na primeira metade do século XX para atuar sobre determinados recortes
regionais, a exemplo da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS)
criada em 1909; da Superintendência de Defesa da Borracha (SDB),
em 1912; da Fundação Brasil Central (FBC), em 1943 e da Comissão
do Vale do São Francisco (CVSF), em 1948. Contudo, a emergência
de uma interpretação multidimensional sobre as desigualdades regionais – pautada na consideração de aspectos econômicos, políticos, sociais e naturais e suas interrelações – ganhou destaque a partir da criação da Sudene em 1959, fundamentada no pensamento e na atuação
de Celso Furtado (1998, 2007, 2009, 2014) e precedida por agentes
A TEMÁTICA REGIONAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
| 323 |
como Rômulo de Almeida, mentor da criação do Banco do Nordeste
do Brasil em 1952. A Sudene corresponde, portanto, a um marco na
consolidação da questão regional na agenda governamental brasileira
justamente pelos avanços teóricos e metodológicos que possibilitaram
uma abordagem mais profunda e completa sobre o tema no âmbito
do Estado à época.
Não obstante, lembremos que a centralização político-administrativa ocorrida ao longo da Ditadura Militar teve fortes influências
sobre a padronização das instituições voltadas ao desenvolvimento regional, conforme assinalamos em pesquisa anterior (Silva, 2014). Assim, instituições correlatas sofreram alterações e passaram a adotar o
modelo institucional da Sudene, especialmente:
i) a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia
(Sudam), instituída em 1966 para substituir a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia
(Spvea), que havido sido criada em 1953;
ii) a Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste
(Sudeco), criada em 1967 em substituição à Fundação Brasil Central (FBC), que havia sido estabelecida em 1943;
iii) a Superintendência do Desenvolvimento da Região Sudoeste (Sudesul), instituída em 1967 para ocupar do lugar
da Superintendência do Desenvolvimento da Fronteira Sudoeste (Sudesul), fundada em 1956. Não apenas as instituições passaram a dispor da mesma estrutura administrativa,
mas também dos mesmos instrumentos de financiamento
das políticas regionais e de planos de desenvolvimento regional bastante semelhantes ao modelo da Sudene.
A nosso ver, um aspecto positivo é que sob as influências do
modelo da Sudene tais instituições tiveram a oportunidade de reforçar
em seu cerne a noção de região como um produto socioespacial, ou
| 324
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
seja, como o resultado de um processo histórico de ocupação e produção do espaço geográfico. Note-se que até então as instituições regionais
adotavam uma abordagem setorial, atuando de maneira bastante circunstancial e pontual no tempo e no espaço. A concepção mais abrangente de região suscitada no contexto de criação da Sudene demandaria
a atuação multissetorial e coordenada do Estado, numa apreensão da dimensão regional em suas diversas facetas. Dentre os aspectos negativos,
a expansão do modelo institucional da Sudene após o golpe militar de
1964 ocorreu sob significativo esvaziamento político e tolhimento das
atribuições e instrumentos originalmente concebidos pela instituição,
que pressupunha relativa autonomia política, administrativa e financeira para desenhar políticas e gerir instrumentos de financiamento para o
desenvolvimento regional em sua área de atuação.
Portanto, podemos verificar entre o final dos anos 1950 e 1960
um contraste entre o relativo aprofundamento do debate sobre as desigualdades regionais e o enrijecimento normativo das instituições, e,
consequentemente, limitações ao potencial das mesmas em atuar a
favor do desenvolvimento regional segundo as particularidades e peculiaridades regionais. Note-se que a Constituição Federal de 1988
não resolveu esse constrangimento. Embora o texto apregoe a necessidade do Estado atuar a partir de instituições criadas especialmente
para promover o desenvolvimento regional com vistas a superação
das históricas desigualdades que caracterizam a organização do espaço
brasileiro, pouca atenção tem sido dada ao imperativo de adaptar o
ordenamento jurídico, os instrumentos de financiamento e o próprio
aparato político-administrativo ao contexto de cada região.
Além do esvaziamento político das instituições de desenvolvimento regional no período de 1964 a 1988, houve a subordinação das
políticas regionais pelas políticas de ordenamento territorial e de crescimento econômico formuladas para a escala nacional, em grande medida relacionadas ao projeto geopolítico brasileiro denominado “Brasil
Potência” (Silva, 2014, p.74). Assim, os planos regionais de desenvol-
A TEMÁTICA REGIONAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
| 325 |
vimento, que originalmente seriam formulados pelas respectivas superintendências de desenvolvimento regional e avaliados pelo Congresso
Nacional, passaram a compor os planos nacionais de desenvolvimento
criados no arcabouço do Governo Federal , em tese, com a colaboração das superitendências (Ibid., p.78). Nesse contexto, avaliamos que
a inserção da questão regional nas políticas econômicas nacionais não
correspondeu a um movimento de coordenação e cooperação governamental horizontal e vertical, mas sim à centralização do processo de
planejamento, de caráter autoritário e tecnocrático.
Nesse sentido, é possível identificar certa conivência da Constituição Federal de 1988 com o status quo da questão regional brasileira no momento de sua promulgação, uma vez que ela não trouxe
alterações significativas no ordenamento jurídico e no aparato político-administrativo existente nem conferiu maior importância relativa
às políticas regionais, embora tenha propiciado algumas alterações no
âmbito dos instrumentos financeiros, como veremos adiante.
Ademais, o forte caráter municipalista da Carta Magna propiciou relações mais diretas entre a União (escala nacional) e os municípios (escala local), deixando pouco protagonismo aos estados (escala
intermediária), que desde o golpe militar de 1964 já vinham sendo enfraquecidos. Essa característica foi agravada nas décadas seguintes pela
ascensão do paradigma do desenvolvimento local e o respectivo enfraquecimento da abordagem regional. Em certa medida, tais aspectos têm
prejudicado a busca pela redução das desigualdades regionais, sobretudo
nas escalas macro, meso e microrregional, uma vez que seria imprescindível a atuação incisiva dos estados em parceria com instituições regionais detentoras de relativo poder político e capacidade técnico-financeira para promover o desenvolvimento em suas áreas de atuação – de
forma semelhante à breve tentativa da Sudene entre 1969 e 1964.
No período de 1988 a 2018 se manteve, em grande medida,
a abordagem tradicional das políticas regionais, embora a instituição
da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) em 2007
| 326
| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
tenha buscado ressignificar as políticas regionais e conferir-lhes uma
posição de destaque na agenda governamental. Nesses últimos 30
anos é possível verificarmos que em contexto de crise o foco tem sido
as políticas macroeconômicas, que tenderam a preterir as dimensões
espacial e regional, a exemplo da estagflação dos anos 1990 e a instabilidade política e econômica atual, em parte causada pelo processo
de impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016 e agravada
pelo contexto de recessão econômica no cenário internacional. Em
contexto de relativo crescimento econômico e estabilidade política e
social nos planos interno e externo, como aquele vivenciado entre os
anos de 2003 e 2010, o foco tem sido as políticas sociais, desenhadas e
implementadas sem grande acuidade com as dimensões espacial e regional, embora tenham ocorrido impactos positivos nas desigualdades
regionais, conforme assinala Araújo (2013).
Outro importante precedente relacionado à maneira como a
temática regional tem sido abordada na Constituição Federal de 1988
diz respeito à Divisão Regional do Brasil. Conforme assinalamos em
pesquisa anterior (Silva 2010), as primeiras propostas de regionalização do Brasil foram elaboradas no início do século XX, em sua maioria baseadas numa leitura setorial e na escala macrorregional. Priorizando a durabilidade dos recortes regionais, o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) buscou sistematizar as várias propostas
existentes, de forma que fosse organizada uma única Divisão Regional
do Brasil para a divulgação das estatísticas brasileiras. Dessa forma,
as “regiões naturais” basearam a divisão em macrorregiões para fins
didáticos e estatísticos em 1942 e as “regiões humanas” foram a base
para a divisão em zonas fisiográficas para fins administrativos realizada
em 1945 (Ibid., p.4-5).
Conforme assinala Perides (1994, p.87), em 1969 o IBGE
publicou uma nova Divisão Regional do Brasil, a fim de substituir
aquela de 1942, utilizando como justificativas:
A TEMÁTICA REGIONAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
| 327 |
i) a evolução do conceito de região em Geografia, que por sua
vez permitiria uma apreensão mais correta das realidades regionais brasileiras;
ii) o argumento de que a divisão regional anterior, com base nas
regiões naturais, não forneceriam quadros territoriais apropriados que pudessem ser utilizados pelas políticas de planejamento e de desenvolvimento; iii) as transformações vinculadas aos processos de urbanização e industrialização e um
maior conhecimento sobre o território brasileiro, ambos inexistentes na divisão regional anterior. Assim, Perides (Ibid.,
p.90) argumenta que “as características de homogeneidade da
região foram definidas pela combinação de aspectos naturais,
sociais e econômicos, que nesse sentido não diferia muito das
antigas ‘regiões geográficas’ vidalianas, concretizadas numa
‘paisagem’ criada pelo homem”.
Note-se que os critérios utilizados na regionalização de 1969
foram: domínios ecológicos, população, regiões agrícolas, indústria,
transportes, atividades terciárias e centralidade (IBGE, 1968). Contudo, segundo a escala – macrorregional, mesorregional ou microrregional
– privilegiou-se um ou mais critérios, havendo o predomínio na escala
macrorregional do critério de domínios ecológicos (Silva, 2010, p.84).
Portanto, podemos notar que houve um aprofundamento das
discussões sobre a temática regional entre as Divisões Regionais do Brasil de 1945 e 1969 no sentido de reconhecer a diferenciação de áreas
como o resultado de um processo histórico de ocupação e produção do
espaço geográfico, caracterizado por fenômenos regionais, os relativos
avanços na abordagem teórica e metodológica e no plano do discurso
não necessariamente resultaram em ações concretas , sobretudo no que
diz respeito à macrorregionalização do espaço brasileiro, face a predominância dos critérios naturais. O IBGE apregoava que, por meio da
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
ação do Estado, o desenvolvimento econômico suprimiria as desigualdades regionais, justificando a necessidade de dividir o país em regiões
para melhor gerir o planejamento governamental (Silva, 2010, p.82).
Por conseguinte, a Divisão Regional do Brasil oficializada pelo IBGE
em 1969 teve um caráter eminentemente utilitarista, pautado em propósitos político-administrativa que se sobrepunham a qualquer outro
aspecto (Ibid., p.85).
Consequentemente, as alterações que ocorreram nesta regionalização ao longo das décadas de 1970 e 1980 foram relativas à extinção,
criação ou alteração de categoria de algumas unidades federadas. Assim,
por meio de Lei Complementar Federal, houve a transformação do estado da Guanabara em município do Rio de Janeiro em 1974, a criação
do estado do Mato Grosso do Sul, em 1977 (desmembrado de Mato
Grosso), e a transformação do Território Federal de Rondônia em estado
em 1982. Através da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 houve a criação do estado de Tocantins (desmembrado de Goiás),
a extinção do território federal de Fernando de Noronha (transformado
em distrito estadual pertencente à Pernambuco), e a transformação dos
territórios federais de Roraima e Amapá em estado (IBGE, 2002). Portanto, a Carta Magna não trouxe inovações no tocante à regionalização
do país, sendo expressiva apenas a transferência do recém-criado estado
do Tocantins da região Centro-Oeste para a região Norte.
Ademais, podemos observar que as divisões regionais do Brasil
elaboradas pelo IBGE e as delimitações das áreas de atuação das superintendências de desenvolvimento regional foram convergindo ao longo
do tempo, embora nunca tenham coincidido plenamente, conforme
exibem o diagrama e os mapas a seguir.
1956
Mapa
1
Divisão Regional do Brasil de 1945
SPVEA - 1956
Spvesud - 1956
1969
Mapa
2
1977
Mapa
3
Divisão Regional do Brasil de 1969
Sudam - 1966
Sudam - 1977
Sudesul - 1959
Sudene - 1959
Sudeco - 1968
Sudeco - 1977
1988
Mapa
4
2001
2009
Mapa
Mapa
5
6
Divisão Regional do Brasil a partir da Constituição Federal de 1988
Sudam - 1988
Ada - 2001
Sudam - 2007
Adene - 2001
Sudene - 2007
Sudeco - 2009
A TEMÁTICA REGIONAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
Mapa 1 - Divisão Regional do Brasil e Superintendências de Desenvolvimento
Regional em 1956
Fonte: Adaptado de Silva (2014, p. 59, 53. Organizado pela autora e elaborado por Rafael Oliveira Fonseca
Mapa 2 - Divisão Regional do Brasil e Superintendências de Desenvolvimento
Regional em 1969
* A Lei 5.365, de 01 de
dezembro de 1967, extinguiu
a Fundação Brasil Central e
criou a Superintendência do
Desenvolvimento do CentroOeste (Sudeco), composta
pelos estados de Mato Grosso
e Goiás e o Distrito Federal. No
entanto, a Lei 5.457, de 20 de
junho de 1968.
Fonte: Adaptado de Silva (2014, p. 65, 77, 81, 83. Organizado pela autora e elaborado por Rafael Oliveira Fonseca
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Mapa 3 - Divisão Regional do Brasil e Superintendências de Desenvolvimento
Regional em 1977
Fonte: Adaptado de Silva (2014, p. 65, 81, 102. Organizado pela autora e elaborado por Rafael Oliveira Fonseca
Mapa 4 - Divisão Regional do Brasil e Superintendências de Desenvolvimento
Regional em 1988
Fonte: Adaptado de Silva (2014, p. 65, 81, 102, 113. Organizado pela autora e elaborado por Rafael Oliveira Fonseca
A TEMÁTICA REGIONAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
Mapa 5 - Divisão Regional do Brasil e Superintendências de Desenvolvimento
Regional em 2001
Fonte: Adaptado de Silva (2014, p. 113, 161. Organizado pela autora e elaborado por Rafael Oliveira Fonseca
Mapa 6 - Divisão Regional do Brasil e Superintendências de Desenvolvimento
Regional em 2009
Fonte: Adaptado de Silva (2014, p. 65, 81, 199, 203. Organizado pela autora e elaborado por Rafael Oliveira Fonseca
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Lembremos que a criação da Sudene pautou-se no discurso
sobre a existência de particularidades e peculiaridades socioespaciais
envolvendo três diferentes regiões do ordenamento administrativo
brasileiro da época: o Nordeste Ocidental, o Nordeste Oriental e o
Leste Setentrional. Embora houvesse o reconhecimento de diferenciações internas nesse recorte regional mais amplo2, alguns aspectos em
comum3 e as relações de complementaridade4 justificariam considerá-las em conjunto. Destarte, não nos parece mera coincidência que a
partir da regionalização de 1969 a região Nordeste tenha ganhado os
contornos mais próximos ao da Sudene. Note-se que a área de atuação da Superintendência foi delimitada a partir do agrupamento de
municípios, enquanto a Divisão Regional do Brasil tomou como base
o agrupamento de estados federados, o que lhe conferiu maior rigidez
na definição dos limites regionais.
No caso da região Sul, a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Fronteira Sudoeste do País (SPVESUD) criada em
1956 não apresentava similaridade com o recorte regional estabelecido
pelo IBGE em 1945, mas na ocasião de sua transformação em Superintendência do Desenvolvimento da Região Sudoeste (Sudesul) em 1967
podemos verificar a total convergência entre a área geográfica de atuação da instituição e o novo recorte regional oficializado pelo IBGE logo
2. Furtado (2009d, p. 80, 2009e, p .88) menciona quatro subregiões: a faixa úmida ou Zona da Mata, o
Agreste, o Semiárido e a área de transição para a Amazônia (Piauí e Maranhão).
3. Na visão de Furtado (2009a, p.175, 2009d, p. 76, 2014, p. 232), o atraso relativo do Nordeste não repousa
apenas na região semiárida. A Zona da Mata e o Agreste também apresentam atividades econômicas de baixa
produtividade, subutilização de terras, insuficiente produção de alimentos, baixa cobertura de serviços públicos essenciais e elevados níveis de pobreza, de desemprego e subemprego.
4. O plano de ação proposto na Operação Nordeste, elaborada por Celso Furtado, estava estruturado em torno
de quatro diretrizes. Duas eram primárias: i) aumento dos investimentos industriais visando criar na região
um centro autônomo de expansão manufatureira, segundo suas peculiaridades e demandas locais/regionais;
ii) reorganização da economia na zona semiárida a fim de elevar sua produtividade e torná-la mais resistente
ao impacto das secas, com especial atenção à alterações na estrutura agrária, diversificação produtiva e redução
do excedente demográfico. As outras eram derivadas: iii) aumento da produção de alimentos na faixa úmida
para abastecer os centros urbanos e permitir a intensificação de sua industrialização; iv) deslocamento da
fronteira agrícola da zona semiárida em direção ao hinterland maranhense e goiano, uma vez que o excedente
de mão de obra deslocado do semiárido não seria absorvido pelas áreas urbanas, já que nessas localidades já
existem grande contingente de mão de obra subocupada (FURTADO, 2009d, p. 80, 2009e, p. 88).
A TEMÁTICA REGIONAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
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em seguida, em 1969. Note que simultaneamente à divulgação da nova
regionalização político-administrativa do Brasil, o Decreto-Lei 576, de
8 de maio de 1969, alterou a denominação da Superintendência do
Desenvolvimento da Fronteira Sudoeste para Superintendência do Desenvolvimento da Região Sul, mantendo a sigla Sudesul.
Por sua vez, ao longo da segunda metade do século XX a Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco) e a do
Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) mantiveram maior autonomia em relação a regionalização oficial do país. Contudo, a partir da
recriação da Sudeco em 2009, verificamos uma total convergência de
sua área de atuação e a Divisão Regional do Brasil.
INCENTIVOS FISCAIS E FUNDOS REGIONAIS
Os incentivos fiscais voltados ao desenvolvimento regional foram criados ao longo das décadas de 1960 e 1970 no âmbito do imposto de renda, compondo o “Sistema 34/18”, pautado na concessão
de isenções a empresas que se dispusessem a investir e a desenvolver
atividades produtivas nos estados abrangidos pela Sudene ou pela Sudam (Maciel, 2010, p. 9). Em 1974, houve a criação do Fundo de
Investimentos do Nordeste (Finor) – administrado pela Sudene –,
do Fundo de Investimentos da Amazônia (Finam) – administrado
pela Sudam – e do Fundo de Recuperação Econômica do Estado do
Espírito Santo (Funres), no intuito de substituir o “Sistema 34/18” e
aperfeiçoar o mercado de capitais no país (Maciel, 2010, p. 9; Bezerra, 1990, p. 10). Conforme assinala Bezerra (1990, p. 13-14), o Finam
e o Finor são destinados, quase totalmente, a aplicações em megaprojetos agropecuários e industriais.
Conforme estabelece a Carta Magna, caberia à União fazer uso
de incentivos regionais, como conceder “juros favorecidos para financiamento de atividades prioritárias” e “isenções, reduções ou diferimento
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
temporário de tributos federais devidos por pessoas físicas e jurídicas”
(Artigo 43). A não uniformidade de tributos no território nacional ou
medidas tributárias que impliquem distinção entre os entes federados seriam admitidas apenas quando voltadas para o “equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico entre as diferentes regiões do País” (Artigo 151).
A Sudene e a Sudam administrariam a concessão de incentivos
fiscais em suas áreas de atuação, em consonância com o Artigo 43 da
Constituição e a legislação vigente. Note-se que os incentivos dizem
respeito a investimentos privados considerados prioritários pelo Governo Federal, relacionados com projetos de implantação, diversificação, ampliação e modernização de setores da economia, sendo que a
principal modalidade é a redução fixa de 75% do Imposto de Renda
de Pessoa Jurídica (Portugal et al, 2016, p. 32).
Embora seja um importante instrumento da política econômica brasileira, Maciel (2010, p. 3-4) adverte sobre a complexidade e as
dificuldades de se avaliar os incentivos fiscais no país, devido:
i) a existência de dezenas ou mesmo centenas de políticas
públicas direcionadas a setores econômicos, regiões geográficas e outras inúmeras finalidades sociais, delineadas
por disposições legislativas de entes políticos dos três níveis da federação;
ii) a vigência dos diversos incentivos fiscais, que podem perdurar por décadas ou por poucos anos;
iii) a criação de regimes especiais de tributação, que podem
estar desvinculados de uma política mais abrangente;
iv) o caráter multidimensional dos incentivos fiscais, que servem a múltiplos fins e repercutem de maneira diferenciada
entre pessoas, atividades econômicas e sociais e regiões;
v) a incipiente e assistemática divulgação dos dados relativos
às renúncias tributárias, que em grande medida não são
objeto de controle permanente por parte do Estado.
A TEMÁTICA REGIONAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
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Segundo Maciel (2010, p. 9) o Finor e o Finam permanecem
ativos apesar das restrições promovidas entre meados dos anos 1980 e
início dos anos 2000 em decorrência dos escândalos de corrupção na
gestão dos fundos, conforme descreve Bezerra (1990). Por sua vez, o
Artigo 159 da Constituição Federal estabelece que a União entregaria
47% do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos
de qualquer natureza e sobre produtos industrializados para os estados e municípios5, dos quais 3% seriam destinados à “aplicação em
programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte,
Nordeste e Centro-Oeste, através de suas instituições financeiras de
caráter regional, de acordo com os planos regionais de desenvolvimento”. O semiárido do Nordeste receberia a metade dos recursos
destinados à respectiva macrorregião. Conforme o Artigo 161, esta
repartição de recursos objetiva promover o equilíbrio socioeconômico
entre os entes federados.
Assim, a Lei 7.827, de 27 de setembro de 1989, regulamentou
o Artigo 159 da Carta Magna ao criar os Fundos Constitucionais de
Financiamento do Centro-Oeste (FCO), do Nordeste (FNE) e do
Norte (FNO), concernentes à delimitação macrorregional do IBGE.
Tratam-se de instrumentos de natureza tributária voltados preferencialmente ao financiamento de micro e pequenas atividades produtivas ligadas a um plano de desenvolvimento regional (Portugal et al,
2016, p. 39).
Com base no § 2º do Artigo 43 da Constituição Federal, que
diz respeito à articulação do Estado em torno de complexos geoeconômicos e sociais, as Leis Complementares 124 e 125, ambas de 3
de janeiro de 2007, e a Lei Complementar 129, de 8 de janeiro de
2009, instituiram, respectivamente, os Fundos de Desenvolvimen5. A Emenda Constitucional 55, de 2007, alterou o montante total para 48% e, posteriormente, a Emenda
Constitucional 84, de 2014, modificou o referido montante para 49% da arrecadação dos impostos a serem
repassados aos entes federados.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
to da Amazônia (FDA), do Nordeste (FDNE) e do Centro-Oeste
(FDCO). São fundos de natureza contábil, geridos pelas superintendências de desenvolvimento regional e direcionados ao financiamento de projetos privados de infraestrutura, serviços públicos e grandes
empreendimentos produtivos. A partir de 2012 tais fundos passaram
a ser financeirizados a fim de que seu patrimônio fosse robustecido
(Portugal, Silva, Mourão, 2015).
Os fundos de desenvolvimento regional se conformam, portanto, à área geográfica de atuação das superintendências (Sudene, Sudam
e Sudeco), que, por sua vez, foram gradativamente convergindo com
as divisões regionais do Brasil definidas pelo IBGE, conforme apontamos anteriormente. Por um lado essa articulação é benéfica no que
diz respeito à coordenação no âmbito do planejamento governamental;
por outro lado, representa certo engessamento das políticas regionais,
uma vez que a macrorregionalização do espaço brasileiro carece ser revisada. Em outras palavras, embora certa convergência entre ambas regionalizações ao longo do tempo facilite a coordenação no âmbito do
planejamento governamental, o anacronismo dos recortes torna-se um
obstáculo ao próprio desenvolvimento regional, uma vez que a atuação
do Estado é um significativo vetor do processo de (re)produção do espaço, ou seja, das dinâmicas socioespaciais. Assim, a eficácia das políticas
públicas diminuem à medida em que a leitura da dimensão regional e
o conjunto de ações decorrentes desta leitura se distanciam da realidade
ou se apresentam de maneira demasiadamente parcial.
Em nossa apreciação, houve certa acomodação na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 dos instrumentos da
política regional até então vigentes, especialmente no tocante aos incentivos fiscais e fundos regionais, com certa manutenção da dinâmica política a eles subjacente.
Por fim, embora haja diversos aspectos relacionados com as desigualdades regionais, o § 3º do Artigo 43, atinente aos complexos
A TEMÁTICA REGIONAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
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geoeconômicos e sociais, ressaltou apenas um deles: priorizar o
“aproveitamento econômico e social dos rios e das massas de água
represadas ou represáveis nas regiões de baixa renda, sujeitas a secas
periódicas”. Caberia à União incentivar a recuperação de terras áridas
e cooperar com os pequenos e médios proprietários rurais para o estabelecimento, em suas glebas, de fontes de água e de pequena irrigação.
Isso demonstra a preponderância das políticas regionais que
vinham sendo realizadas desde o início do século XX, a quais estavam
relacionadas, em grande medida, com o Polígono das Secas no Nordeste, delimitado pela primeira vez em 1936, e com as obras hidráulicas que marcaram a atuação de instituições como o Departamento
Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), derivado da Inspetoria
Federal criada em 1909, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf ), criada em 1948, e a
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), criada
originalmente em 1959. A Constituição Federal de 1988 expressa,
portanto, o reforço desse viés específico de políticas regionais, que teve
sua preponderância reafirmada em difentes momentos desde então.
Podemos citar como exemplo o Artigo 42 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, que estabeleceu que durante 15 anos
a União aplicaria 20% dos recursos destinados à irrigação na região
Centro-Oeste e 50% na região Nordeste, preferencialmente no semiárido. A Emenda Constitucional 43, de 2004, ampliou este prazo para
25 anos e a Emenda Constitucional 89, de 2015, ampliou novamente
o prazo para 40 anos.
REGIONALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS SETORIAIS
Segundo a Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 os planos e programas regionais deveriam ser elaborados em
consonância com o plano plurianual e apreciados pelo Congresso Na-
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cional (Artigos 48; Artigos 165, § 4). Note-se que seria iniciativa do
Poder Executivo Federal estabelecer o plano plurianual, as diretrizes
orçamentárias e os orçamentos anuais. Assim, “a lei que instituir o
plano plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes,
objetivos e metas da administração pública federal para as despesas
de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas
de duração continuada” (Artigo 165, § 1). Ademais, seria uma das
funções dos orçamentos fiscal e de investimentos das empresas com
maioria acionária da União reduzir as desigualdades interregionais,
segundo o critério populacional (Artigo 165, § 7).
O exame dos Planos Plurianuais (MPOG, 2018) formulados
e implementados desde então nos permite verificar que a regionalização, neste caso, corresponde a identificação das macrorregiões delimitadas pelo IBGE que receberiam as ações previstas no plano, bem
como o montante de recursos aplicados em cada uma delas. Podemos
notar também a existência de ações em que a regionalização indicada é
“nacional”, seja porque os recortes regionais não se aplicam ou porque
a informação não foi especificada.
Em nossa avaliação, esta abordagem é falha, uma vez que as
ações e políticas públicas concernentes não necessariamente teriam sido
formuladas segundo as particularidades e singularidades espaciais que se
apresentam na escala regional, ainda que haja a indicação de uma macrorregião a qual a ação se destina. A dimensão regional neste caso tende
a ser apreendida como um mero recorte administrativo, aproximando-se novamente da noção de uma extensão do espaço absoluto, sobre o
qual incidem as ações do Estado, e não como causa e consequência de
um processo de diferenciação de áreas, que influencia e é influenciado,
dentre outros vetores, pelo planejamento governamental.
Naturalmente, o atributo regional apresenta diferentes gradações de intensidade e de importância entre as políticas públicas,
correspondendo tanto à presença de uma leitura das diferenciações e
A TEMÁTICA REGIONAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
| 339 |
disparidades regionais desde o desenho até a avaliação das políticas,
como à sua implementação e execução de forma regionalizada. Assim,
devemos levar em consideração que algumas políticas setoriais apresentam uma leitura regional desde o seu desenho, outras observam a
dimensão regional especialmente no momento de sua implementação
e/ou execução, e outras sequer consideram esse atributo.
Um exemplo pode ser observado no arcabouço da Constituição Federal: no Título VIII – Da Ordem Social, Capítulo II – Da Seguridade Social, Seção II – Da Saúde, o Artigo 198 define que “as ações e
serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único”. A Emenda Constitucional
29, de 2000, acrescentou ao referido Artigo que os critérios de rateio
dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados destinados a seus
respectivos Municípios, teriam como objetivo a progressiva redução
das disparidades regionais (Artigo 198, § 3, Inciso II). Por sua vez, a
Lei Complementar 141, de 2012, regulamenta este parágrafo, especificando que o referido rateio de recursos entre os entes federados “observará as necessidades de saúde da população, as dimensões epidemiológica, demográfica, socioeconômica, espacial e de capacidade de
oferta de ações e de serviços de saúde” (Artigo 17). O Artigo 30 desta
mesma Lei Complementar estabelece que o processo de planejamento e orçamento da Federação Brasileira seria ascendente e deveria “partir das necessidades de saúde da população em cada região, com base
no perfil epidemiológico, demográfico e socioeconômico, para definir
as metas anuais de atenção integral à saúde e estimar os respectivos
custos”. Assim, os planos e metas regionais resultantes das pactuações
intermunicipais constituiriam a base para os planos e metas estaduais,
que promoveriam a equidade interregional; por sua vez, os planos e
metas estaduais constituiriam a base para o plano e metas nacionais,
que promoveriam a equidade interestadual, estabelece a Lei.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
No caso de outros setores governamentais, há menções bastante genéricas sobre a dimensão regional. No Capítulo III – Da Educação,
da Cultura e do Desporto, na Seção II – Da Cultura, o Parágrafo 3º do
Artigo 215, dedicado ao Plano Nacional de Cultura, indica no Inciso
V a valorização da diversidade étnica e regional como um dos fundamentos deste plano. Note-se que o referido parágrafo foi inserido na
Carta Magna pela Emenda Constitucional 48, de 2005. No Capítulo
IV – Da Ciência, Tecnologia e Inovação, o Artigo 218, no Parágrafo 2º,
aponta que “a pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente
para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do
sistema produtivo nacional e regional”. No Capítulo V – Da Comunicação Social, o Artigo 221 assinala que a produção e a programação
das emissoras de rádio e televisão atenderão, dentre outos, ao princípio da promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção
independente que objetive sua divulgação (Inciso II) e ao princípio da
regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme
percentuais estabelecidos em lei (Inciso III).
A superficialidade com que a dimensão regional é tratada na
Constituição Federal de 1988, somada ao peso que o ordenamento administrativo possui no documento, nos permite inferir que os
recortes regionais mencionados provavelmente dizem respeito à macrorregionalização do espaço brasileiro, oficializada pelo IBGE em
1969, em que pese as modificações realizadas ao longo das décadas
de 1970 e 1980. Lembremos que, embora esta Divisão Regional do
Brasil tenha sido pautada na discussão sobre o imperativo de se contemplar aspectos de diversas naturezas no processo de regionalização
do espaço, houve a prevalência do caráter normativo, reforçado ao
longo do tempo e pouco afeito à dinâmica socioespacial.
O predomínio desse caráter normativo também pode ser observado na relação entre as políticas setoriais e as políticas regionais nos
dias atuais. Face às resistências no âmbito da administração pública
A TEMÁTICA REGIONAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
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acerca da implementação e execução da Política Nacional de Desenvolvimento Regional no período de 2007 a 2014, o Ministério
da Integração Nacional (MI) adotou uma estratégia para promover
maior participação dos ministérios setoriais na busca pela redução das
desigualdades regionais: a realização de Pactos de Metas. Estes consistiam, num primeiro momento, na busca de uma articulação entre os
diversos setores governamentais e entes federados, no sentido de contemplar as ações que já estavam em curso – muitas delas desenhadas
desconsiderando-se a dimensão espacial, territorial ou regional –, para
em seguida delimitar os locais que seriam abarcados nesse pacto entre
os órgãos governamentais (Silva, 2014, p. 252).
Desde 2009 o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) já havia adotado essa estratégia no âmbito da
Política de Atuação no Entorno de Projetos, que objetiva promover
as oportunidades de desenvolvimento econômico e social nas áreas de
influência de grandes projetos de investimento com elevado potencial
de gerar impacto regional. A política atuaria através do apoio coordenado à ações e investimentos de diversas naturezas, priorizados com
base no planejamento e pactuação territorial e na atuação integrada
do empreendedor, do poder público e dos demais agentes interessados. Para cumprir tal objetivo poderiam ser utilizados todos os produtos do BNDES, havendo a obrigatoriedade de se pactuar uma Agenda
de Desenvolvimento Territorial (ADT) entre a empresa responsável
pelo empreendimento, o poder público e representantes locais – como
entidades de classe, instituições de ensino e organizações da sociedade
civil (BNDES, 2018).
Note-se que a elaboração de ADTs é uma diretriz apontada
pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) no
que diz respeito à convergência das ações dos entes federados nos diversos territórios. Contudo, a constituição de uma ADT não pressupõe a seleção à priori de recortes territoriais ou de regionalizações. Ela
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estaria subordinada à identificação de convergências entre as estratégias em curso dos entes federados, a partir da qual se definiriam os
espaços de atuação e as políticas públicas que seriam objeto de cooperação federativa e de monitoramento compartilhado (Albuquerque;
Couto, 2014, p. 254-256).
Tanto o Pacto de Metas do MI como as ADTs do MPOG e do
BNDES se baseiam na seleção de ações já disponíveis com potencial
de alcançar certo nível de cooperação, sem atentar-se, a princípio, para
as demandas das regiões. Portanto, o objetivo não é produzir políticas para promover o desenvolvimento e a redução das desigualdades
regionais, mas entregar políticas existentes que por acaso possam se
encaixar no que é demandado por cada região.
Os riscos decorrentes dessa inversão no processo de planejamento (primeiro produzir a política pública e depois verificar onde
ela se encaixa) incluem a permanência de políticas com pouca aderência às particularidades e especificidades regionais, o reforço da lógica
setorial, a atuação fragmentada e compartimentada da administração
pública e o desperdício de recursos, características marcantes do Estado brasileiro. Portanto, defendemos que a mera implementação e
execução regionalizada de uma política pública sem a devida consideração da dimensão regional nas fases de elaboração e formulação é
insuficiente no tratamento da questão regional.
REGIÕES METROPOLITANAS
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
estabeleceu que os estados federados poderiam, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e
microrregiões, a partir do agrupamento de municípios limítrofes, a
fim de integrar a organização, o planejamento e a execução de funções
públicas de interesse comum (Artigo 25, § 3).
A TEMÁTICA REGIONAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
| 343 |
Conforme Moura et al (2003, p. 38), Balbim et al (2011, p.
152-153), Firkowski (2013, p. 23, 34-35) e Moura (2013, p. 36), as
primeiras regiões metropolitanas (RMs) foram criadas nos anos 1970
pelo Governo Federal, havendo estreita correlação entre o reconhecimento do fenômeno de metropolização do espaço e a institucionalização destes recortes regionais pelo Estado. Todavia, a transferência da
atribuição concernente à instituição de RMs da União para os Estados
federados pela Constituição Federal de 1988, sem o estabelecimento
de parâmetros normativos, teria levado à criação desenfreada desses
recortes regionais, conforme demonstra o Gráfico 1, a seguir.
Gráfico 1 – Brasil: RMs e Regiões Integradas de Desenvolvimento (Rides)
institucionalizadas
Fonte: COSTA et al (2018, p. 22).
* Note-se que há 80 RMs, formadas pelo agrupamento de municípios pertencentes a um mesmo Estado, e apenas 3 Rides, formadas pelo agrupamento de municípios de dois ou mais estados vizinhos.
Tal fato teria resultado numa grande diversidade de conceituações de região metropolitana adotadas pelos estados, de critérios
utilizados para sua delimitação e de arranjos institucionais voltados
à sua gestão. Por conseguinte, na avaliação de Balbim et al (2011, p.
166-167), esse cenário tem sido marcado pela institucionalização de
RMs que:
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
i)
não guardam, necessarimente, relação com o processo de
formação de metrópoles;
ii) não refletem, obrigatoriamente, políticas ou estratégias de
desenvolvimento territorial, seja no plano nacional, seja
no plano estadual ou regional, e
iii) não se atrelam, forçosamente, à gestão das funções públicas de interesse comum.
Para Moura et al (2003), Balbim et al (2011), Firkowski (2013)
e Moura (2013), na maioria das vezes, confere-se o status “metropolitana” às aglomerações urbanas que não apresentam essa natureza,
sobretudo em decorrência da ascendência de interesses políticos sobre
interesses de ordem político-administrativa e em virtude da desconsideração por parte dos formuladores de políticas públicas das dinâmicas e morfologias resultantes do processo de metropolização. Assim,
cerca 80% das atuais RMs não corresponderiam à configurações espaciais atinentes à metropolização.
Costa el al (2018, p.34) mencionam que o número elevado de
RMs criadas a partir do final dos anos 2000 estaria relacionado com
o fato de que pertencer a uma RM passou a ser critério de seleção de
municípios para receber recursos financeiros de alguns programas federais, sobretudo aqueles voltados à infraestrutura e habitação.
Porém, ao analisar as legislações estaduais, Costa et al (2018,
p. 28) apontam:
[...] apesar dos contextos históricos e políticos serem distintos, se vê
um banco de leis com textos legais repetitivos (talvez reproduzidos)
que alteram a composição municipal da região (quando muito, a sobreposição de municípios) e indicam um nome para a RM.
O arcabouço institucional das RMs seria bastante frágil no
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A TEMÁTICA REGIONAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
Brasil, adverte os autores, que apresentam a seguinte Tabela sobre a
cobertura de conteúdos essenciais da legislação que trata da criação e
dos arranjos de gestão metropolitana.
Tabela 1 – Conteúdos essenciais da legislação
Elementos-chave da legislação relativa à instituição de RMs
Quantidade de RMs
%
(justificativa tecnicamente embasada)
21
25,3
Definição das FPICs
48
57,8
Instituição de sistema de gestão
67
80,7
Criação de conselho(s) específico(s)
32
38,6
Criação de fundo específico
23
27,7
Criação, instituição ou composição das RMs
Fonte: COSTA et al (2018, p. 31).
* FPICs = funções públicas de interesse comum. Geralmente dizem respeito ao saneamento básico, uso do solo, transporte público e sistema viário (Ibid., p. 32)
Essa falta de rigor conceitual explicitada pelos autores supracitados no tocante às políticas atinentes às RMs no Brasil culminaria, a
nosso ver, num grande distanciamento entre a atuação governamental, pautada na perspectiva de que as RMs seriam uma escala de ação
para o poder público, e as discussões teórico-metodológicas realizadas
no âmbito acadêmico6 e em institutos de pesquisa governamentais7,
fundamentados na perspectiva de que as RMs seriam um processo so6. Há extensa bibliografia sobre o tema, mas sugerimos a consulta dos seguintes textos: Lencioni, Sandra.
Reconhecendo metrópoles: território e sociedade. In: Silva, Catia Antônia da; Freire, Désirée Guichard; Oliveira, Floriano José Godinho de. Metrópole: governo, sociedade e território. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. /
Lencioni, Sandra. Impasses da gestão metropolitana nas regiões de Buenos Aires, São Paulo e Santiago. In:
Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1
de agosto de 2008, v. XII, n. 270 (59).. Cf. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Regiões de influência das cidades: 2007. Rio de Janeiro: IBGE, 2008. / Costa, Marco Aurélio; Tsukumo,
Isadora Tami Lemos (Orgs.). 40 anos de regiões metropolitanas no Brasil. Brasília: Ipea, 2013. / Marguti,
Bárbara Oliveira; Costa, Marco Aurélio; Favarão, César Buno Favarão (Orgs.). Brasil metropolitano em foco:
desafios à implementação do Estatuto da Metrópole. Brasília: Ipea, 2018.
6. Cf. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Regiões de influência das cidades:
2007. Rio de Janeiro: IBGE, 2008. / Costa, Marco Aurélio; Tsukumo, Isadora Tami Lemos (Orgs.). 40 anos
de regiões metropolitanas no Brasil. Brasília: Ipea, 2013. / Marguti, Bárbara Oliveira; Costa, Marco Aurélio;
Favarão, César Buno Favarão (Orgs.). Brasil metropolitano em foco: desafios à implementação do Estatuto da
Metrópole. Brasília: Ipea, 2018.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
cioespacial – em que pese as diferentes abordagens, sejam elas complementares ou divergentes, advertem Balbim et al (2011, p. 151-152).
Em nossa apreciação, as políticas relativas às RMs têm sido
abordadas numa perspectiva mais territorial do que regional, ainda
que a dimensão territorial também apresente graves equívocos e incipiências no âmbito do planejamento governamental – especialmente
o equívoco de se considerar a dimensão territorial como algo meramente atinente àquelas políticas elaboradas, implementadas e executadas na escala local, a saber, pelos municípios (Silva, 2014, p.297), ao
invés da noção de território como uma projeção espacial das relações
de poder, ou seja, uma porção do espaço definido e delimitado a partir
das relações de poder em suas diversas escalas espaciais e temporais e
em diferentes formas, prescindindo qualquer institucionalização de
viés político-jurídico-administrativo (Souza, 2000, p.81). Em parte
isso se relacionaria com o fortalecimento do municipalismo a partir
da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, que legou um maior peso político e econômico aos municípios,
por sua vez mais propícios a adotar um discurso territorial, em detrimento de um discurso regional, geralmente relacionado aos estados e
à União.
A esse respeito, Balbim et al (2011, p.160) apontam que a gestão metropolitana teria perdido importância em termos do papel que
lhe fora atribuído nos anos 1970, qual seja, de promover o desenvolvimento nas regiões caracterizadas pelo processo de metropolização do
espaço, face ao esvaziamento do planejamento no contexto nacional,
associado ao autoritarismo do poder central precedente, e em decorrência das deficiências das relações intergovernamentais no âmbito do
federalismo brasileiro.
O Estatuto da Metrópole, criado pela Lei 13.089, de 12 de janeiro de 2015, teria buscado interferir no processo de “metropolização
institucional” – criação formal de RMs dissassociada do fenômeno de
A TEMÁTICA REGIONAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
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metropolização do espaço – ao adotar um tratamento mais técnico e
uniforme do assunto (Costa et al, 2018, p. 22; Santos, 2018, p. 462).
Para Santos (2018, p. 460), o Estatuto avançou ao apresentar
a definição dos seguintes conceitos fundamentais relativos ao processo
de metropolização do espaço e estabelecer normas gerais para sua gestão político-administrativa: aglomerações urbanas, metrópole, região
metropolitana, funções públicas de interesse comum, plano de desenvolvimento urbano integrado, gestão plena das RMs e governança
interfederativa. Porém, diversos aspectos ainda apresentariam fragilidades, sobretudo: o financiamento das políticas voltadas às RMs,
aglomerações urbanas e microrregiões; a estruturação da governança
federativa; processo de aprovação dos planos metropolitanos; a transposição do modelo do Estatuto das Cidades e dos Planos Diretores
para o Estatuto das Metrópoles e os planos metropolitanos, com o
predomínio do viés urbanístico; a definição de metrópole e o status
das RMs já existentes que não correspondem ao fenômeno de metropolização do espaço (Santos, 2018, passim).
Assim, embora a institucionalização das RMs estivesse inicialmente relacionada com o reconhecimento por parte do Estado do
processo histórico de metropolização do espaço, há um descolamento
entre a identificação deste processo socioespacial e a criação de RMs
pelos governos estaduais após a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em que pese a recente tentativa
por parte do Estatuto das Metrópoles de aproximar o processo de
criação de RMs com a leitura do processo socioespacial de metropolização do espaço.
Por fim, concordamos com Santos (2018, p. 463) quando esta
argumenta que a metrópole enquanto fenômeno socioespacial existe
antes e depois dos instrumentos legais que buscam institucionalizá-la. Além disso, por mais que o recorte jurídico das unidades regionais seja balizado por critérios técnicos, a busca pela correspondência
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perfeira entre o fenômeno socoespacial e a institucionalização das regiões metropolitanas seria, necessariamente uma tarefa incompleta e
parcial. Para a autora, isso não se deve a uma falha dos mecanismos
institucionais, mas ao fato de que os fenômeno metropolitano é, em
si, irredutível às figuras institucionalizadas que procurám capturá-lo.
Ademais, a institucionalização de uma determinada RM, aglomeração
urbana ou microrregião consistiria, em última instância, a uma decidão política.
A nosso ver, tais observações são pertinentes não apenas às
regiões metropolitanas mas à qualquer recorte regional realizado no
âmbito do planejamento governamental.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mencionamos anteriormente que há duas maneiras de compreender a natureza da região e de produzir regionalizações: i) como
um processo histórico de diferenciação de áreas; e ii) como uma divisão administrativa do território. A nosso ver, essas concepções não são
excludentes, embora haja uma tendência de progressivo apartamento
entre ambas no tocante ao planejamento governamental brasileiro, especialmente no tocante à noção de região como complexo geoeconômico e social – vide a noção de região que norteou a criação da Sudene
e a posterior transposição deste modelo institucional, já destituído de
sua originalidade, para outras regiões do país – e no que concerne às
regiões metropolitanas – haja vista a proximidade das RMs criadas nos
anos 1970 com o processo de metropolização do espaço e a desconexão da maioria das RMs criadas após a Constituição Federal de 1988
com este fenômeno socioespacial.
Ademais, embora o contexto nos permita deduzir que grande
parte das menções às regiões na Constituição Federal de 1988 dizem
respeito à macrorregionalização do IBGE instituída em 1969 ou às
A TEMÁTICA REGIONAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
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áreas geográficas de atuação das superintendências de desenvolvimento regional – especialmente os artigos relativos aos complexos geoeconômicos e sociais e aos incentivos fiscais e fundos regionais –, na
prática o texto permite a acomodação de outros recortes regionais de
caráter político-administrativo.
Esse aspecto poderia ser algo positivo, pois confere à Constituição certa flexibilidade para se adaptar às mudanças na configuração
regional. Contudo, não nos parece que essa motivação tenha predominado. O caráter utilitarista da regionalização do espaço brasileiro
vem se perpetuando ao longo do tempo, distanciando a ação governamental de uma leitura mais fidedigna das dinâmicas socioespaciais.
Como evidências citamos o empobrecimento teórico-metodológico e
operacional que o conceito de complexo geoeconômico e social e de
regiões metropolitanas tem apresentado no âmbito da administração
pública, bem como a maneira superficial como a regionalização das
políticas setoriais e a aplicação dos incentivos fiscais e fundos regionais
tem sido realizada, à revelia do imperativo de se revisar a macrorregionalização do espaço brasileiro.
Portanto, embora a Carta Magna tenha conferido grande destaque à questão regional ao inseri-la em seus princípios fundamentais,
pudemos verificar que a maneira como o assunto foi tratado ao longo
do documento é genérica, conferindo ao termo “região” uma conotação de escala espacial, por sua vez bastante fluida. Por conseguinte,
a dimensão regional tende a ser tratada como uma mera extensão do
espaço material/absoluto e não como a um atributo do espaço geográfico, fato que esmaece a leitura das diferenciações e disparidades
regionais desde o desenho até a avaliação das políticas públicas, como
sua implementação e execução de forma regionalizada.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
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do total dos recursos destinados à irrigação nas Regiões Centro-Oeste e
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sobre o Fundo de Desenvolvimento da Amazônia – FDA; altera a Medida
Provisória 2.157-5, de 24 de agosto de 2001; revoga a Lei Complementar
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do artigo 43 da Constituição Federal, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE; estabelece sua composição, natureza jurídica, objetivos, áreas de atuação, instrumentos de ação; altera a Lei 7.827,
de 27 de setembro de 1989, e a Medida Provisória 2.156, de 24 de agosto
de 2001; revoga a Lei Complementar 66, de 12 de junho de 1991; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
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do artigo 43 da Constituição Federal, a Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste - SUDECO, estabelece sua missão institucional,
natureza jurídica, objetivos, área de atuação, instrumentos de ação, altera
a Lei 7.827, de 27 de setembro de 1989, e dá outras providências. Dis-
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
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critérios de rateio dos recursos de transferências para a saúde e as normas
de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas três esferas
de governo; revoga dispositivos das Leis 8.080, de 19 de setembro de 1990,
e 8.689, de 27 de julho de 1993; e dá outras providências. Disponível
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* A pesquisa foi realizada com apoio da FAPESP, Processos 2015/25132-2
e 2017/22930-0. “As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações
expressas neste material são de responsabilidade da autora e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.”
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CAPÍTULO 13
A NÃO REGULAMENTAÇÃO
DA COMUNICAÇÃO SOCIAL E
OS VETOS À SOCIEDADE DE
DIREITOS NA CONSTITUIÇÃO –
O PAPEL DA MÍDIA NO BRASIL
FRANCISCO FONSECA1
LAURINDO LEAL FILHO2
Nas “democracias liberais” os conflitos, das mais variadas ordens, são possibilitados, garantidos e ordenados pelas instituições e
pelo sistema político/legal, assim como pelos pactos políticos entre
as classes sociais ancorados nos regimes políticos. É um truísmo, portanto, a constatação de que, independentemente da forma e do sistema de governo, assim como dos inúmeros “arranjos institucionais”, a
democracia só poderá assim ser considerada se na “esfera pública” os
diversos interesses puderem se manifestar.
1. Francisco Fonseca é mestre em ciência política e doutor em história, professor de ciência política na FGV/
Eaesp e PUC/SP, e autor, entre outros, do livro “O Consenso Forjado – a grande imprensa e a constituição
da agenda ultraliberal no Brasil” (São Paulo, Hucitec, 2005), e organizador, em parceria, do livro “A Constituição Federal de 1988: avanços e desafios” (São Paulo, Unesp, 2010).
2. Laurindo Leal Filho é mestre em sociologia pela PUC/SP, doutor e livre docente em ciências da comunicação pela ECA/USP. Professor aposentado da ECA/USP, é autor, entre outros, do livro “A melhor TV do
mundo, o modelo britânico de televisão”. Foi diretor e apresentador do programa “VerTV”, da TV Brasil.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Por “esfera pública” se entende a arena em que se mesclam
simultânea e paradoxalmente interesses “comuns” e “particularistas”
(das classes sociais): “comuns” quanto à lógica da Nação, da identidade nacional, do Estado nacional, em contraposição aos “das classes
sociais” no que tange a interesses sociais estruturalmente distintos e
conflituosos, mesmo que possam, em determinadas conjunturas e dependendo dos arranjos políticos, se conciliarem.
Tendo o conflito como premissa, portanto imanente à sociedade
capitalista, é fato que a mídia representa uma forma de poder que, nas
sociedades “de massa”, possui papeis extremamente significativos, tais
como: influir na formação das agendas pública e governamental; intermediar relações sociais entre grupos distintos; influenciar a opinião de
inúmeras pessoas e grupos sociais sobre temas específicos; participar das
contendas políticas, em sentido lato (defesa ou veto de uma causa, por
exemplo) e estrito (apoio a governos, partidos ou candidatos); e atuar
como “aparelhos ideológicos”3 capazes de organizar interesses.
A mídia, portanto, é entendida como o complexo de meios de
comunicação que envolve mensagem e recepção, por formas diversas,
cuja manipulação dos elementos simbólicos é sua característica central. Quanto aos interesses defendidos pelos meios de comunicação,
em determinadas circunstâncias seus órgãos atuam à guisa de “partidos políticos” ou “intelectuais coletivos e orgânicos” de grupos específicos, de acordo com Gramsci. Esses papeis são ocultados sob o
lema do “dever da informação”, cujas mensagens supostamente seriam
emitidas de forma “neutra”, “independente”, “apartidária” e “a-ideológica”: características invariavelmente alegadas pelos órgãos da mídia
ao retratar, de forma fortemente enviesada, sua atuação.
3. Adota-se aqui o conceito gramsciano de “aparelhos privados de hegemonia” para definir a atuação político/
ideológica da mídia, seja no sentido de possuir autonomia perante o Estado, seja por participar da construção
do “consenso” na relação entre Estado e sociedade, em que o Estado se “amplia” tendo em vista o papel da
“sociedade civil”: âmbito de atuação dos agentes “privados” que embatem pela direção cultural e ideológica,
isto é, pela hegemonia de certas ideias.
A NÃO REGULAMENTAÇÃO DA COMUNICAÇÃO SOCIAL E OS VETOS À SOCIEDADE DE DIREITOS
NA CONSTITUIÇÃO – O PAPEL DA MÍDIA NO BRASIL
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Dessa forma, a mídia comercial, ao participar da esfera pública como – supostamente – “prestadora de serviços”, autoalega ter
função imprescindível nas democracias: “informar” sobre os acontecimentos levando às pessoas amplo leque de notícias que, sem esse
serviço, não teriam como conhecê-las se não por situações vivenciadas
presencialmente ou relatadas por pessoas próximas. Mais importante,
os órgãos da mídia fariam a fiscalização ao Estado, exercendo assim a
forma mais bem acabada de “controle social”: em relação ao dinheiro
público e às ações públicas, ou, numa palavra, às coisas públicas (a res
pública). Essas são as cantilenas do proselitismo midiático.
Contemporaneamente, a internet, que representa novo espaço
quanto à informação e aos embates ideológicos, vem sendo disputada
assimetricamente por grandes grupos empresariais – caso dos portais de
informação no contexto da chamada “convergência digital” – e por inúmeras organizações ideologicamente distintas, assim como movimentos
sociais. Ainda é cedo para se concluir sobre o real papel da internet
como meio alternativo de informação, considerando-se, além do mais,
a exclusão digital, dada tanto em razão do “analfabetismo digital” como
dos altos preços para seu acesso no Brasil. Assim, há visões bastante
polarizadas quanto ao seu papel: os muito otimistas com o suposto poder “horizontal” do universo digital como nova “Ágora”, contrapostos
aos desconfiados e céticos quanto ao poder do capital, mancomunado
aos Estados Nacionais centrais quanto à disponibilização, organização e
controle do que se faz e se vê no mundo digital: as provas documentais
de manipulação e de bisbilhotagem denunciadas por Assange e Snowden representam importante argumento a essa perspectiva.
Portanto, os órgãos da mídia – emissoras de tv, rádios, jornais,
revistas, portais e outros meios digitais –, atuantes na “esfera pública”,
são em larga medida empresas privadas que, como tal, objetivam o
lucro e agem segundo a lógica e os interesses privados. Embora a ação
da mídia seja complexa, essas características são cruciais para a defini-
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
ção inicial dessa relação entre agentes privados e esfera pública. Afinal,
se por um lado todos os possuidores de poder precisam ser responsabilizados e controlados – à luz da teoria liberal dos “freios e contrapesos”,
expressa entre outros por Montesquieu e Os Federalistas –, tais como os
agentes públicos e mesmo os agentes privados para os quais há meios de
serem fiscalizados, e se, por outro lado, a atuação dos órgãos da mídia
tem como pressuposto a lógica privada, coloca-se a seguinte questão:
como analisar sua atuação na esfera pública, em que a democracia é
elemento chave?
Daí decorre que informação e comunicação são direitos políticos incorporados ao conceito maior de “direitos humanos”. Provenientes da burguesa revolução francesa, já em 1789 afirma em seu
Artigo 11.º que: “A livre comunicação das ideias e das opiniões é um
dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos
abusos desta liberdade nos termos previstos na lei” (Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão). Dois séculos depois, em 1948,
esses princípios foram corroborados, no pós-guerra, pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos (declaração social/liberal), que em
seu Artigo 19.º afirma que: “Todo ser humano tem direito à liberdade
de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e
ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
Ressalte-se que ambas as Declarações são inspiradas por perspectivas liberais, portanto moderadas, que por seu turno informaram
a Constituição brasileira de 1988. Ainda assim, contudo, tais preceitos efetivamente não foram implementados, uma vez que as elites nacionais permanecem obstruindo as mais elementares possibilidades de
pluralidade político/ideológica, econômico/social e estético/cultural:
sintetizam o atraso histórico de um país que jamais “radicalizou” a
democracia, mesmo a democracia de veio liberal.
A NÃO REGULAMENTAÇÃO DA COMUNICAÇÃO SOCIAL E OS VETOS À SOCIEDADE DE DIREITOS
NA CONSTITUIÇÃO – O PAPEL DA MÍDIA NO BRASIL
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Com isso, políticas públicas de comunicação, que são fundamentais à expressão de uma sociedade plural – em termos raciais, políticos, culturais, regionais, entre tantas outras dimensões –, caso da sociedade brasileira, e como pressuposto à democracia, não se efetivaram.
As consequências dessa obstrução sistemática à democratização dos meios de comunicação – especialmente rádios e tvs, que são
concessões do Estado, mas extensível a todas as modalidades de informação – reverberam nas mais distintas arenas, casos, entre inúmeros
outros, da reiteração ideológica da não democratização da “esfera pública”, da manutenção das discriminações históricas aos grupos vulneráveis, da permanência das desigualdades estruturais (em diversos
sentidos), da fragilidade do conceito de cidadania, e da não audição
dos inúmeros grupos sociais.
Por fim, ocorre no Brasil uma drástica combinação, isto é,
meios de comunicação concentrados numa sociedade ainda fortemente (des)informada por esses meios tradicionais (rádio e televisão,
secundados por jornais e revistas e mais recentemente pelos grandes
portais da internet dessas mesmas mídias), formatada pelo caráter
massivo da indústria cultural e estruturalmente desigual. Essa combinação tem sido deletéria às pretensões civilizatória e democrática da
sociedade brasileira.
Os constituintes progressistas de 1988 tentaram alterar esse
quadro, com apoio de movimentos sociais, mas têm sido derrotados
sistematicamente pelo grande capital (Sistema Globo à frente) em
conluio com grande parte do sistema político/partidário, das igrejas
evangélicas neopenteconstais, entre diversos outros segmentos conservadores e empresariais. Com isso, a sociedade brasileira não se reconhece nos grandes meios comunicacionais.
Os ativistas digitais e das mídias alternativas, que lutam vigorosamente para expressar a pluralidade dos brasileiros e as narrativas
populares, ainda são frágeis perante o poder oligopolizado dos meios
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
de comunicação, que contam com apoio estatal (crédito, leis favoráveis, não regulamentação da Constituição, punição à comunicação
alternativa, caso das rádios comunitárias populares etc). São, contudo,
o húmus que poderá, um dia, fertilizar a democratização das informações e das comunicações como um direito fundamental, como o é
inclusive para as vertentes mais democráticas do liberalismo.
Tomando-se esses elementos como fundantes para a compreensão do papel da mídia na democracia, e da democracia brasileira em
particular, são analisadas as seguintes questões: os vetos e bloqueios da
grande mídia comercial à democratização da comunicação, da informação e consequentemente da sociedade brasileira: tanto na Constituinte de 1988 como contemporaneamente, sendo um dos pilares do
golpe parlamentar de 2016. Também são analisados, na Constituinte
de 1987/88, a reação conservadora da grande imprensa à introdução
de direitos sociais e trabalhistas, reação essa verificada nos dias de hoje.
Em meio a essas análises, o papel da mídia é refletido em perspectiva
conceitual, entremeado portanto à análise empírica nesses 30 anos da
Constituição de 1988.
VETOS E BLOQUEIOS DA GRANDE MÍDIA COMERCIAL
À DEMOCRATIZAÇÃO DA INFORMAÇÃO E DA
SOCIEDADE4
O papel e o poder da mídia têm sido objeto de discussão no
mundo contemporâneo, notadamente da segunda metade do século
XX aos dias de hoje. Diversas disciplinas, como as Ciências Sociais,
a História, a Economia, a Semiótica e obviamente a Comunicação,
4. Este texto, aqui modificado e atualizado, é a junção de partes de duas reflexões de Francisco Fonseca: a
primeira, originalmente publicada em forma de artigo para o debate público no Portal CartaMaior (www.
cartamaior.com.br), em 03/04/2013, com o título “Vetos e bloqueios da mídia às políticas públicas transformadoras”, e a segunda, publicada em forma de texto acadêmico pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), intitulada “Mídia e Poder: elementos conceituais e empíricos para o desenvolvimento da
democracia brasileira”. Brasília, IPEA, 2010, Texto para Discussão n. 1509.
A NÃO REGULAMENTAÇÃO DA COMUNICAÇÃO SOCIAL E OS VETOS À SOCIEDADE DE DIREITOS
NA CONSTITUIÇÃO – O PAPEL DA MÍDIA NO BRASIL
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entre outras, têm se debruçado sobre os impactos da “sociedade midiática” nas mais distintas áreas, sobretudo no “inconsciente coletivo”,
tendo em vista a manipulação dos fatos e a indução de comportamentos políticos, sociais, econômicos, estéticos etc. “Fake news” é, nesse
sentido, quase um truísmo, uma vez que o conglomerado midiático
tem como premissa a “manipulação” da “informação”, dado o oligopólio midiático vigente, assim como a inexistência de “controle social”
sobre a notícia, cada vez mais mercadorizada.
Após o definhamento do socialismo soviético e da consequente
ascensão do neoliberalismo em escala mundial e sobretudo em termos
estruturais (Dardot e Laval, 2016), algumas das características resultantes desse mundo individualizado e privatizado, vigente em maior
ou menor medida em quase todos os países, podem ser assim caracterizados: individualismo, consumismo, hedonismo, descrédito na ação
política coletiva e nas doutrinas políticas, reforço da ideologia do self
made man meritocrático, ênfase no mundo privado (notadamente
na carreira profissional e na circunscrição familiar e das amizades da
“vida social”), entre outras.
Nos anos 1990, por meio da “revolução” digital, novas questões vêm sendo levantadas, uma vez que as comunicações estariam
passando por profundas transformações, apercebidas intelectualmente, embora de modo distinto: para alguns setores são vistas como potencialmente democráticas e, para outros, como controladoras e alienantes, como aludido.
As chamadas “redes sociais” (caso do Facebook, por exemplo,
que chegou ao significativo patamar de 1 bilhão de perfis em 2012,
isto é, um sétimo da população humana), a aludida “convergência
digital” e a ampla disponibilidade de comunicação não têm alterado
de maneira significativa a ação política coletiva das sociedades no que
tange a reformas estruturais e também à dimensão global, uma vez
que o uso privado para fins de entretenimento e relações estritamente
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
privatistas, familiares e de “grupos de afinidade” pessoais são sua característica, como aludido. Apenas mobilizações pontuais, tendo em
vista a dimensão planetária das comunicações, têm sido observadas,
o que se deve, aparentemente, embora não apenas, ao referido legado
individualista e alienante da dominação midiática instaurada desde a
metade do século passado, mais especificamente seu veio neoliberal
hegemônico a partir das décadas de 1980/90.
Especificamente quanto ao Brasil, onde a própria urbanização
se confunde com a indústria midiática – o rádio e depois a televisão –,
os meios de comunicação foram se desenvolvendo sem regulação, isto
é, como negócio privado sem responsabilização quanto a seus efeitos públicos, o que inclui o não enfrentamento aos regimes políticos
dominantes: embora com exceções importantes, o que se viu foi o
servilismo ao regime. Em vários casos, sendo o mais significativo o da
Rede Globo – emissora gestada do ventre do militarismo –, o servo foi
mais realista do que o rei, isto é, autocensura e adesão “ideológica” ao
regime, com toda sorte de benefícios empresariais, deram contornos
a uma corporação que se tornou a quinta maior empresa de comunicação, em faturamento, no mundo. Talvez mais importante, e ainda
sem estudos suficientes a respeito, é o papel das Organizações Globo
na vida brasileira: de dimensão desconhecida, vai além da própria rede
de televisão, na medida em que seus impactos são sentidos nos planos
cultural e comportamental – tomados aqui em sentido gramsciano.
O conglomerado das Organizações Globo, como se sabe, inclui um
sem número de emissoras de rádio (AM e FM), transmissoras de televisão, jornais e revistas, indústria fonográfica, uma fundação (que
leva o nome de seu patrono, Roberto Marinho) com capacidade para
financiar e induzir a produção cultural – com as devidas deduções
tributárias –, parcerias internacionais e um satélite próprio para seus
negócios, entre outras atividades corporativas. De certa forma, a “vida
cultural” (criação de padrões estéticos em diversas áreas, notadamente
A NÃO REGULAMENTAÇÃO DA COMUNICAÇÃO SOCIAL E OS VETOS À SOCIEDADE DE DIREITOS
NA CONSTITUIÇÃO – O PAPEL DA MÍDIA NO BRASIL
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com viés estadunidense, “integração” nacional baseada em parâmetros
pré-determinados) e “política” (clara interferência em eleições e nos
centros decisórios estatais) brasileiras se tornam incompreensíveis se
não se dimensionar o papel das Organizações Globo, que habilmente
souberam se adequar tanto à ditadura quanto à democracia pós-1989.
Por mais que partidos de oposição à ditadura e mesmo às Organizações Globo tivessem chegado ao poder após a redemocratização,
jamais houve combate efetivo ao seu poder.
Em termos comunicacionais, a característica da sociedade
brasileira tem sido de indigência, com efeitos político/culturais – hegemônicos, portanto – profundos e impactantes em várias direções,
entre os quais político-eleitorais e (des)mobilizantes, contribuindo
para sedimentar o padrão comportamental do brasileiro “médio” cuja
marca, com exceções importantes, é a ideologia do “individualismo
meritocrático” e a descrença nas transformações políticas coletivas. A
experiência dos governos petistas alterou parcialmente essas assertivas.
No entanto, o oligopólio midiático não foi enfrentado, assim como
não foi colocado na agenda governamental o marco regulatório da
mídia. Por fim, não se promoveu a revisão das regras de concessões
e renovações das emissoras de rádio e tvs, o que representa, em outras palavras, a permanência da não democratização da informação e
da comunicação – diferentemente de nossos vizinhos argentinos – e,
consequentemente, a manutenção de uma “democracia parcial”. Veremos abaixo a inação quanto ao âmbito comunicacional.
Mesmo com essa timidez política, notadamente nas comunicações, diversas políticas públicas sociais foram desenvolvidas e alteraram a vida de milhões de brasileiros. Observa-se, portanto, importante desconexão entre mudanças incrementais, mas ainda assim inéditas
e socialmente impactantes (caso de programas como o Bolsa Família
no contexto do Sistema Único de Assistência Social, e de uma série de
programas específicos nas áreas de habitação, energia, saúde, educa-
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
ção, crédito e outras), e a paralisia governamental quanto à comunicação. Deve-se igualmente ressaltar a permanente ação e reação elitista e
conservadora da grande mídia comercial, por sua vez vocalizadora das
elites e da manutenção de todo tipo de desigualdade histórica.
Reafirme-se que as grandes corporações midiáticas, ao expressarem os interesses materiais e ideológicos das classes médias e do capital, foram implacavelmente críticas das transformações inclusivas promovidas pelas políticas públicas dos governos petistas, na medida em
que, essas, embora moderadas, foram em direção contrária ao mote
“dos melhores e dos mais capazes, venham de onde vierem” (lema
liberal histórico do jornal O Estado de S. Paulo). Mesmo quando não
radicalizaram suas críticas, assim se comportaram por terem clareza
que as políticas petistas não confrontariam a estrutura de poder e a dinâmica da propriedade: “empresarial” (o que inclui a própria mídia),
“agrária e urbana” e do “mercado financeiro”, entre outras.
A convivência próxima entre reformas sociais moderadas e incrementais, de um lado, e o status quo, de outro, se manteve, apesar
do elitismo oposicionista dos meios de comunicação, uma vez que
seus órgãos atuaram e atuam como verdadeiros “aparelhos privados
de hegemonia” e “intelectuais coletivos”: categorias gramscianas cada
vez mais observáveis na cena político-midiática brasileira, cujo ponto
de culminância foi o golpe parlamentar do impeachment em 2016
que depôs a presidente eleita legitimamente, Dilma Rousseff. Tal modus operandi confere à mídia o papel de “organizadora” – no sentido gramsciano de “dirigir” as classes médias e o Capital Global –,
obstruindo e vetando “políticas públicas” tidas ou apercebidas como
“inaceitáveis” às elites.
Alguns exemplos da oposição cerrada e dos vetos desfechados
pela grande mídia às políticas públicas inclusivas são ilustrados nos
seguintes casos: a questão da “mobilidade urbana”, uma vez que a indústria automobilística financia campanhas de parlamentares e chefes
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NA CONSTITUIÇÃO – O PAPEL DA MÍDIA NO BRASIL
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de Executivos, assim como os próprios grandes meios de comunicação, e adota estratégias de marketing extremamente agressivas, tendo
na mídia seu “intelectual coletivo” capaz de vetar qualquer mudança
significativa nas “políticas públicas” urbanas ao manter o privilégio
do automóvel individual à minoria altamente consumidora que pode
tê-lo. O mesmo ocorre quanto ao Estado, interessado nos tributos
advindos da cadeia produtiva do automóvel, mesmo sabendo-se das
consequências nefastas produzidas por ela. Outro exemplo diz respeito ao “mercado imobiliário”, intrinsecamente especulativo, pois capaz
de transformar as cidades em verdadeiras “selvas de pedra”, mas forte
investidor nas mídias, além de exercer importante lobby junto aos
parlamentos e executivos. Por fim, outro exemplo refere-se ao “mercado financeiro”, cuja especulação se assenta nos altos – e seguros – juros
da dívida interna, sustentando assim ideologicamente os altíssimos
ganhos das elites rentistas em detrimento do sistema produtivo e, nesse, os mais pobres.
Portanto, a grande mídia comercial brasileira – composta por
organizações complexas de emissoras de rádio e televisão, de jornais
e revistas, de portais na internet com conteúdos diversos e lucrativos,
entre outras atividades empresariais – veta e obstrui, por meios diversos, qualquer transformação “significativa” referente às políticas públicas inclusivas e igualitárias que, de algum modo, alterem as históricas
e abissais assimetrias sociais. O caso do imposto sobre as grandes fortunas exemplifica um dos temas tabus, pois, ao incidir sobre o grande
capital, sequer conseguiu chegar à agenda de discussão. A mídia, dessa
forma, apenas aceita, mesmo que a contragosto, mudanças incrementais e consideradas “laterais”, caso dos programas sociais de transferência de renda e outros. Mas, quando uma dada política contaria os
interesses vocalizados por ela é inserida na agenda governamental, há
enorme mobilização no sentido de vetá-la ou, em não sendo possível,
conformar, enquadrar, modelar o “desenho” desta política, isto é, sua
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
“formulação” e seus “objetivos” quanto ao que se pretende alcançar, a
ponto de torná-los residuais, minorados e, no limite, inócuos.
Para tanto, há todo o aparato e estratégias colocadas em ação,
tais como entrevistas com “especialistas” que “autorizam” uma dada
posição, consequentemente refutando outra, sustentada, por sua vez,
por manchetes, fotos, charges e matérias fortemente opinativas e/ou
enviesadas, e que se espraiam sutilmente pelas coberturas. É nesse sentido que, embora o discurso midiático advogue, em forma de cantilena, a separação entre coberturas jornalísticas e opinião, o que se
observa fundamentalmente é a mesma linhagem ideológico-editorial
corroborar o modus operandi desses “aparelhos privados de hegemonia”, uma vez que atuam com o objetivo de, por um lado bloquear/
vetar, e por outro propor políticas públicas e ações governamentais e
legais, combinando táticas e estratégias que se dão de forma ostensiva
e/ou subliminar.
Daí decorre que a própria aceitação histórica, pelo Estado brasileiro, do poder oligopólico da mídia demonstra sua incapacidade
política de enfrentar esse e outros poderes, o que o obriga a atuar nas
margens e frestas da estrutura político/institucional e econômica brasileira, como o foram os governos petistas. Em razão dessa assimetria
na correlação de forças e do não enfrentamento dos poderes das elites
é que se deu o incrementalismo das políticas públicas nesses governos.
Portanto, reitere-se que, por mais importantes e significativas que tenham sido as políticas sociais e desenvolvimentistas nesse período, foram tímidas perante os recursos econômicos disponíveis e, sobretudo,
perante as necessidades sociais existentes.
Tal assertiva pode ser confirmada ao se comparar os gastos sociais brasileiros com o conjunto das necessidades populares e mesmo
com iniciativas de países similares para que se compreenda o espaço
que se tem para transformações profundas. É claro que somente “vontade política” dos governantes nunca foi, isoladamente, fator suficien-
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NA CONSTITUIÇÃO – O PAPEL DA MÍDIA NO BRASIL
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te para alterar realidades historicamente constituídas. É necessária a
conjunção de fatores, tais como, além da vontade política, capacidade
técnico-política de governar, reordenamento orçamentário, reforma
política, mobilização e pressão social, entre inúmeros outros. Sem
isso, o enfrentamento aos grandes poderes, notadamente os da mídia, do latifúndio (organizado em torno do agronegócio), dos capitais
produtivo e financeiro especulativos (cada vez mais articulados), entre
outros, será sempre protelado. Os vetos e obstruções da grande mídia
oligopólica às “políticas públicas” profundas e transformadoras reafirmam seu caráter político (da mídia) e a constatação de que é parte
constitutiva do Sistema Político, embora de maneira informal.
Embora tenha se aberto uma “janela de oportunidade” com a
ascensão de Lula à presidência, dada a introdução de várias políticas
públicas incrementais, e apesar da oposição de grande parte dos veículos midiáticos, foram implementadas em perspectiva federal, caso dos
programas: Luz para Todos, Minha Casa, Minha Vida, Cisternas (no
nordeste), entre inúmeras outras; de diversas iniciativas que afetam
a renda popular, caso da vasta concessão de crédito, da valorização
do salário mínimo, do aumento do poder de compra da cesta básica;
entre outras.
Grande parte dessas políticas, contudo, não se constituíram
como “políticas de Estado”, embora tenham tido grande legitimação
popular. Foram instituídas como “políticas de governo”, o que as tornaram vulneráveis à oposição midiática e das elites, como se tem visto
de forma ostensiva quanto ao desmonte do Estado Social e do desenvolvimento soberano a partir do golpe do impeachment ocorrido em
2016, que teve largo apoio e sobretudo a conspiração dos grandes
meios de comunicação. Somente ao se instituírem como “políticas de
Estado” poderiam diminuir o poder histórico dos veículos de comunicação de criar imagens, percepções e “ambientes ideológicos” capazes
de derrogá-las.
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Deve-se ressaltar que os insofismáveis avanços sociais que ocorreram no Brasil contemporâneo foram, em boa medida, introduzidos
pela Constituição de 1988 e aprofundados sobretudo nos governos
petistas. Por um lado, deram sequência à efetivação da “lógica dos
sistemas” de seguridade (casos do Sistema Único de Saúde, do Sistema
Único de Assistência Social e da universalização da educação) mas, por
outro lado, vários deles não foram regulamentados, caso particular
do sistema midiático. Quanto a esse, reitere-se que historicamente os
governos pós-1988 foram tímidos e benevolentes, tornando-se reféns
de suas chantagens e campanhas, particularmente do Sistema Globo.
Apesar dessa timidez, notadamente os governos petistas tiveram algumas poucas iniciativas que procuraram minorar o poder da
mídia, tais como: a pulverização relativa da propaganda federal; a criação da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC); a promoção da
Primeira Conferência Nacional de Comunicação; e a tentativa, frustrada, de criação de uma agência reguladora. Embora importantes,
foram claramente ou insuficientes ou inócuas ou mesmo fracassadas.
Mas para além do não enfrentamento do poder oligárquico
(conceito político) e oligopólico (conceito econômico) da grande
mídia, os governos petistas protagonizaram ações negativas quanto
à democratização dos meios de comunicação: a aludida não implementação do chamado “marco regulatório” dos meios de comunicação; a manutenção dos aportes (empréstimos e verbas publicitárias)
à grande mídia em detrimento da mídia alternativa; a não adesão à
TeleSur, proposta pela Venezuela e vigente em vários países latino-americanos; o aprofundamento da perseguição às rádios comunitárias;
e a aprovação do “padrão digital” não voltado às ampliação e pulverização de mídias independentes e alternativas quando havia outros
padrões (sistemas) disponíveis para tanto. Todos os aspectos somados
implicam contradições e sobretudo o não enfrentamento dos poderes privados constituídos, denotando a não disputa hegemônica num
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NA CONSTITUIÇÃO – O PAPEL DA MÍDIA NO BRASIL
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terreno crucial a qualquer projeto de empoderamento popular de longo prazo: a comunicação.
Nesse sentido, a facilidade com que o impeachment sem crime
de responsabilidade foi aprovado – tendo por trás amplo consórcio
conspirador –, assim como a prisão do ex-presidente Lula, igualmente
sem comprovação de qualquer crime, demonstram que o poder da
grande mídia, por sua vez associado ao Poder Judiciário, foi crucial à
derrogação do que se chamou de “democracia pós 1988” ou “pacto de
1988”: ambos os poderes (mídia e Judiciário) atuaram e atuam como
“partidos políticos” em suas funções – informais – de representação
política das classes médias superiores e do Capital, associados a uma
maioria partidário/parlamentar golpista.
AVANÇOS DA COMUNICAÇÃO SOCIAL NA
CONSTITUIÇÃO VERSUS BLOQUEIOS DAS
OLIGARQUIAS E DA MÍDIA OLIGOPÓLICA
A Constituição inovou ao dedicar um capítulo específico à
Comunicação Social. São apenas cinco artigos que, se levados à prática, dariam ao país um significativo avanço democrático. Sua aplicação poria fim à hegemonia dos meios de comunicação comerciais
já altamente concentrados naquela época e abriria caminho para a
pluralidade de vozes até hoje inexistente. Passados 30 anos sem que
a letra da Lei maior fosse colocada em prática, coincidindo com o
aumento exponencial da concentração midiática, tem-se como resultado a sociedade alienada de sua realidade, conduzida verticalmente a
partir de valores e ideias vinculados aos setores dominantes: nacionais
e internacionais.
É preciso ressaltar que a comunicação se constitui num aspecto
nevrálgico das relações entre as classes e grupos sociais em permanente
disputa na sociedade. Exemplo disso está no fato de ter sido a comissão
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
encarregada na Constituinte de tratar desse tema a única a não apresentar
para a Comissão de Sistematização uma proposta de consenso,
revelando a disputa existente entre os movimentos pela democratização
da comunicação e os empresários do setor já em 1988.
Uma nova proposta, acordada entre diversos segmentos, para
o capítulo da Comunicação Social foi elaborada antes de ser levada ao
plenário do Congresso constituinte. Uma das principais divergências
estava na criação do Conselho de Comunicação Social com poderes
deliberativos, que incluíam a outorga e a renovação de concessões de
rádio e TV e a análise do monopólio estatal das telecomunicações. O
acordo obtido para a votação resultou na aprovação do Conselho, tal
como consta do Artigo 224 da Constituição, mas não mais com poderes deliberativos, tornando-o simplesmente órgão auxiliar do Congresso nacional. Também foi subtraída da proposta original o poder
de outorgar ou renovar concessões, que passou a ser dos Poderes Executivo e Legislativo,
Destaque-se os pontos da chamada “Constituição cidadã” que
necessitam de regulação por meio de leis infra-constitucionais até
hoje não regulamentados. Aprovado o Capítulo V da Constituição
que versa sobre a Comunicação Social, passaram a ser apresentadas
propostas para a regulação dos seus artigos. Uma das primeiras foi
referente ao aludido Conselho de Comunicação Social (Artigo 224),
aprovado pelo Congresso em dezembro de 1991 com prazo de 60 dias
para que seus membros fossem eleitos e de mais 30 para ser instalado.
Isso não aconteceu. A eleição da primeira composição do Conselho
só viria a ocorrer quase dez anos depois, em junho de 2002. Isso só
foi possível graças ao acordo firmado no Senado, no qual os radiodifusores aceitavam a criação do Conselho tendo como contrapartida
alterações significativas no Artigo 222 que trata da “propriedade de
empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens”.
Essa propriedade deixava de ser privativa de brasileiros natos e natu-
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NA CONSTITUIÇÃO – O PAPEL DA MÍDIA NO BRASIL
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ralizados permitindo-se a participação de estrangeiros em até 30% do
capital das empresas e participação como proprietários de pessoas jurídicas. No texto original a posse só era permitida a pessoas físicas. Com
isso contemplava-se o interesse empresarial, sequioso pela entrada de
capital estrangeiro, e de instituições religiosas que poderiam entrar no
mercado como pessoas jurídicas.
Como órgão auxiliar do Congresso nacional e com composições que privilegiaram invariavelmente o setor empresarial, o Conselho ficou muito longe de se constituir num ente com capacidades reguladoras. O seu próprio funcionamento foi seguidamente obstruído
pelas lideranças conservadoras do Congresso que por alguns anos não
convocaram eleições para a sua constituição e, quando constituído, estabeleceu debates que passaram longe dos problemas reais com que se
defronta a área de Comunicação social do país. Um exemplo concreto
é a absoluta ausência naquele órgão de um debate sobre o controle
ilegal de empresas de rádio e televisão pelos parlamentares. Há pesquisas mostrando esse fato, com a identificação desses proprietários
ou de seus prepostos, além de manifestações do Ministério Público
apontando essas ilegalidades.
Um dos mais escandalosos exemplos de procrastinação pelo
Congresso Nacional em relação à regulamentação dos artigos constitucionais diz respeito ao Artigo 221, que trata, em seu inciso III, da
regionalização da produção “cultural, artística e jornalística” de rádios
e TVs. O projeto de regulamentação foi apresentado em março de
1991 e só foi aprovado na Câmara dos Deputados em agosto de 2003.
Seguiu para o Senado, que praticamente o engavetou, não o colocando
em votação. Em 2013 um senador representante dos interesses dos radiodifusores apresentou parecer sobre o projeto com modificações que
o desfiguraram totalmente. Incluiu, por exemplo, como programação
regional programas religiosos, redes nacionais obrigatórias, programas
de publicidade de partidos políticos, entre outros. Não especificou os
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horários em que a programação regional seria exibida e não incluiu o
estímulo à produção independente, como estabelece o inciso II do Artigo 221. Mas não se esqueceu de determinar a utilização de recursos
do Fundo Nacional de Cultura pelas emissoras regionais. Ainda assim
sequer chegou ao Plenário, sendo arquivado ao final da legislatura de
2014. Esses fatos exemplificam o poder dos grandes meios de comunicação comerciais no Congresso Nacional.
Outros artigos têm incisos que sequer receberam propostas de
regulamentação. Como o inciso II, do Parágrafo 3º, do Artigo 220,
em que está claramente definido que a Lei Federal estabelecerá “os
meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se
defenderem de programas ou programações de rádio e de televisão
que contrariem o disposto no Artigo 221 (...)”. Diz esse Artigo que
a produção e a programação das emissoras de rádio e de televisão
atenderão aos seguintes princípios: I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II – promoção da cultura
nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive
a sua divulgação; III – regionalização da produção cultural, artística
e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; IV- respeito
aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Quando a Constituição diz que a Lei estabelecerá meios legais
para garantir sua aplicação, aponta, na prática, para a necessidade de
criação de órgão regulador, como ocorre em países com democracias
mais consolidadas. Os órgãos reguladores funcionam como intermediários entre os veículos de comunicação e o público. Cabe a eles recolher as demandas originadas na audiência, analisá-las à luz da legislação e considerá-las cabíveis ou não de serem levadas aos emissores. A
esses é garantido o direito de contestação, cabendo ao órgão regulador
a decisão final, que pode ir de simples advertência, passando por pe-
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nalidades pecuniárias e chegando até à suspensão da programação ou
mesmo a cassação das concessões. No Brasil, a existência de órgão regulador foi aventada em anteprojetos de lei elaborados pelo Executivo,
que, no entanto, nunca foram levados à apreciação do Congresso Nacional por serem bloqueados em seu processo de formulação. Assim,
as empresas de radiodifusão oferecem serviço público que não pode
ter sua qualidade avaliada – pelos meios institucionais – pelos que o
recebem, isto é, os cidadãos. Trata-se de uma significativa exceção em
relação aos demais serviços concedidos, como os de transportes ou de
energia, entre inúmeros outros.
Ao nos defrontarmos com a programação diária de emissoras
de rádio e TV é possível perceber as violações constantes dos preceitos constitucionais acima mencionados. Programas que se apresentam
como jornalísticos, mas que na verdade são espetáculos de sensacionalismo, como os “policialescos” exibidos nos finais das tardes em
redes nacionais e em outros horários diurnos pelas emissoras locais
e regionais, afrontam portanto a Constituição. É evidente que esses
programas não cumprem “finalidades educativas, culturais, artísticas
e informativas” ou respeitam “os valores éticos e sociais da pessoa e da
família”, como normatiza o texto constitucional. Isso sem se discutir
a qualidade da informação transmitida por esses veículos, uma vez
que alinhada a apenas uma perspectiva de pensamento político e de
visão de mundo, isto é, o conservadorismo. Sem um órgão regulador
dotado de poder real não há como discutir e resolver essas e outras
questões relacionadas aos conteúdos oferecidos pelos meios eletrônicos de comunicação.
No mesmo Artigo 220, o seu parágrafo 5º apresenta a determinação que, se tornada em lei, transformaria radicalmente a comunicação no país. Determina que “os meios de comunicação social não
podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. A concentração histórica de capital no setor e a falta de me-
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canismos reguladores levou à formação tanto de oligopólios como de
monopólios. Do ponto de vista empresarial, pode-se dizer que em
determinadas partes do país a comunicação é oligopolizada, com a
presença poucas de empresas atuando no mercado. Já em áreas de
menor densidade populacional vigora o monopólio, com a presença
efetiva de apenas uma empresa de comunicação. Contudo, do ponto
de vista político e cultural essa diferenciação não se aplica, uma vez
que todas as empresas atuam com o mesmo (macro) ideário, impedindo a circulação de valores, ideias e informações que não se alinhem
com interesses dos grandes grupos empresariais, dos patrocinadores e
do status quo, que impede a construção de uma sociedade mais igualitária e democrática. Dessa forma, pode-se afirmar que a comunicação
é historicamente monopolizada no país, infringido ostensivamente os
intuitos democratizantes da Constituição Federal.
A disputa histórica entre os proprietários dos meios de comunicação e os grupos da sociedade identificados com projetos de democratização do setor tem privilegiado constantemente os primeiros. O
avanço que representou o Capítulo da Comunicação Social na Constituição de 1988 não teve maiores consequências práticas devido ao
poder de veto e obstrução exercido pelos empresários detentores de
concessões em aliança com diversos outros setores conservadores, caso
das bancadas “do boi, da bala e da bíblia”, amplamente conhecidas
por seu poder de lobby no Congresso Nacional, nos ministérios e nas
diversas instituições estatais. Basta constatar que a Lei que regula os
serviços de rádio e televisão foi pouco alterada desde sua promulgação
em 1962 no governo João Goulart. O projeto, que já na época atendia
aos interesses dos radiodifusores, recebeu 52 vetos do presidente da
República, todos eles derrubados pelo Congresso. Foi a partir dessa vitória do setor empresarial que surgiu a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). Essa entidade é até hoje o principal
lobby de defesa dos interesses empresariais. Isso faz com que o Brasil
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tenha, em plena era digital, legislação do tempo da televisão preto e
branco, época em que o vídeo-tape era grande novidade.
À Abert juntam-se outras organizações patronais, como
a Associação Nacional de Jornais (ANJ), filiada à Sociedade
Interamericana de Prensa (SIP), que reúne os jornais conservadores
de todo o continente americano, e a Associação Nacional dos Editores
de Revistas (ANER). Mais recentemente foi criado o Instituto
Millenium, um think tank destinado a reelaborar e difundir o pensamento conservador/neoliberal e, muitas vezes, reacionário, contribuindo para unificar os conteúdos produzidos pelos veículos da mídia
tradicional, por sua vez intérpretes dos interesses das elites nacionais
e mesmo internacionais presentes no Brasil. São entidades que não
escondem suas posições. Em determinado momento, ainda durante
o primeiro governo Lula, a presidenta da ANJ, Judith Brito, fez uma
declaração pública de que, diante da fraqueza das oposições naquele
momento, cabia aos meios de comunicação exercer esse papel oposicionista, sobretudo aos governos petistas.
De outro lado, setores da sociedade passaram a se organizar
no sentido de se contrapor a esse poder. Num primeiro momento
as ações ficaram mais restritas às organizações sindicais de categorias
como as dos jornalistas, radialistas e atores, assim como a alguns setores das universidades, especialmente os vinculados às comunicações.
Na década de 1980 esses e outros atores criaram a Frente Nacional
por Políticas Democráticas de Comunicação, com expressiva atuação
junto a Congresso Nacional Constituinte. Como o resultado dessa
articulação não foi o esperado pela Frente, seus integrantes resolveram
transformá-la em órgão permanente de luta pela democratização da
comunicação, surgindo daí, em 1991, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) em atividade até hoje. O Fórum
reúne mais de 500 entidades filiadas em todo o país e tem importante
papel de advocacy das causas democratizantes na comunicação.
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Um ponto nodal desse embate entre empresários conservadores
e militantes progressistas deu-se com o advento e expansão da internet.
Pela primeira vez pontos de vista democratizadores puderam ser socializados, aumentando o poder do setor que historicamente teve sua voz
calada pela mídia empresarial. Blogs, portais, sites e páginas nas redes
sociais passaram a fomentar o debate de forma a se contrapor ao grupo
até então absolutamente hegemônico. O papel da mídia e seu impacto
sobre a democracia passou a ser tema de discussão e de propostas de
atores da sociedade que, até então, se colocavam de forma alheia a eles,
o que inclui a própria universidade. Um dos fatores importantes nesse
processo foi a realização da primeira Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) em 2009, que mobilizou em suas jornadas locais,
regionais e nacional um contingente calculado em cerca de 30 mil pessoas, fato inédito nas discussões sobre o tema. Da Conferência saíram
600 propostas que, no entanto, não foram colocadas em prática.
A disputa assimétrica, sempre favorável aos empresários, prossegue e, dessa forma, impede o aprofundamento da democracia no
país. Enquanto apenas um tipo de pensamento continuar sendo hegemônico nos meios de comunicação a sociedade seguirá impedida
de se conhecer e o jogo político continuará contaminado pelo ideário
conservador, por sua vez entremeado por valores neoliberais.
A CONSTITUINTE DE 1987/88 E O VETO DOS
GRANDES JORNAIS QUANTO AOS DIREITOS SOCIAIS
E TRABALHISTAS5
Esta seção pretende demonstrar as concepções históricas e o
modus operandi da grande imprensa diária, escrita, dos principais pe5. Esta seção replica, com alterações e atualizações, o capítulo 9 (intitulado “Os direitos sociais na Constituinte:
o projeto dos periódicos e sua forma de operar”) do livro de Francisco Fonseca: O Consenso Forjado – a grande
imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil, publicado pela editora Hucitec em 2005. A replicação
desse capítulo demonstra todo o liberalismo reacionário da grande imprensa e seu renitente conservadorismo
patronal no processo constituinte. Caso o projeto da grande imprensa tivesse sido aprovado majoritariamente,
teríamos uma Constituição inteiramente distinta da que foi aprovada. O golpe de 2016 fez, portanto, sem o
escrutínio do voto, o que os constituintes vocalizados pela grande mídia não conseguiram à época (1987/88).
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NA CONSTITUIÇÃO – O PAPEL DA MÍDIA NO BRASIL
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riódicos existentes à época quanto aos direitos sociais e trabalhistas.
Com exceção do Jornal do Brasil (JB), que deixou de existir e somente
a partir deste ano (2018) voltou a circular, os outros são os mesmos
dos dias atuais: Folha de S.Paulo (FSP), O Estado de S. Paulo (OESP)
e O Globo (OG)6.
Observa-se especificamente temas atinentes aos direitos sociais
debatidos durante o Congresso Constituinte entre 1987 e 1988, sobretudo sua ampliação e o direito de greve. Como se sabe, o capítulo
sobre a Ordem Social implicou enorme controvérsia, e a grande imprensa se posicionou vigorosa e militantemente contrária ao Estado
social, como se verá abaixo.
Note-se que a aversão aos direitos sociais e trabalhistas é a mesma em relação aos direitos à comunicação, isto é, a sociedade idealizada pelas elites vocalizadas pelos meios de comunicação é fundamentalmente assimétrica: daí o mesmo diapasão observado, como se verá,
nas duas dimensões: sociais/trabalhistas e comunicacionais.
Para analisar essa posição conservadora e mesmo reacionária
quanto à sociedade de direitos, utiliza-se aqui a obra de Albert Hirschman, “A retórica da intransigência” (1992), por meio das três “teses”
(no sentido de pressupostos doutrinários) criadas para identificar padrões argumentativos/imagéticos acerca da reação liberal/conservadora à, reitere-se, introdução dos mais distintos direitos (políticos, em
várias dimensões, econômicos e sociais, entre outros) ao longo dos séculos XIX e XX. Tais teses foram intituladas como teses da futilidade,
da ameaça e da perversidade. Essas teses representam, respectivamente,
a ideia/imagem de que as reformas progressistas quanto à introdução
de direitos não levarão a nada, tornando-se inócuas; ameaçarão direitos
anteriormente adquiridos, notadamente dos grupos privilegiados, embora
esse aspecto seja ocultado; e terão o efeito contrário ao pretendido.
6. Para fins de fluidez do texto, nos referiremos aos jornais pela referidas abreviações. A citação de excertos dos jornais tem como fonte os editoriais devido à representação político/editorial que representam. Ver
FONSECA, 2005.
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Tais teses foram exaustivamente utilizadas pela grande imprensa no período constituinte, demonstrando todo o conservadorismo,
entendido como baixa propensão e mesmo reação à introdução de novos direitos igualitários, com vistas à manutenção do status quo. Afinal,
alguns dos direitos sociais/trabalhistas propostos – tais, como, dentre
outros, a diminuição da jornada de trabalho, a ampliação da licença
maternidade, a licença paternidade, o aumento da valor da hora-extra,
dentre outros – foram vistos como: a) “catastróficos à produção”, pois
desestimulariam o capital a investir, aumentando consequentemente
o desemprego: logo, o oposto do que se desejava; b) “inócuos”, pois
não seriam respeitados pelo “mundo real” da economia; e c) ameaçadores dos direitos anteriormente conquistados, caso do aumento
da informalidade, diminuindo o mercado formal de trabalho, entre
outros. Esses argumentos/imagens foram utilizados à exaustão tanto
naquele momento como em outros posteriores, casos da derrogação
da Consolidação das Leis do Trabalho promovida pelo ilegítimo e ilegal governo Temer em 2017 (nesse caso, trata-se de destruição, mas
com os mesmos argumentos contrários aos que queriam manter os
direitos conquistados), e da aprovação da Emenda Constitucional 95
que congela os gastos sociais por 20 anos. Em outras palavras, as teses
de Hirscham podem ser utilizadas para verificar a reação à introdução
aos direitos, mas também ao apoio à destruição dos já conquistados.
Vejamos, agora, a posição dos jornais, por meio de suas narrativas sinuosas. Para o JB, haveria uma “obsessão social” por parte dos
constituintes, pois: “A proposta de 40 horas [de jornada de trabalho]
é uma daquelas que criam uma espécie de garantia artificial que, na
prática, quase ninguém vai respeitar (...)” (JB, 13/07/1987) – trata-se aqui da tese da futilidade, dada a suposta ineficácia da medida.
Mas será a tese da perversidade a mais utilizada pela grande imprensa, pois: “A Constituinte embarcou em um caminho de distribuição
de benefícios sociais cujo produto só pode ser um e único: redução da
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taxa de investimentos, com o consequente atraso econômico. (...) (JB,
28/02/1988, ênfases nossas). A negação dos novos direitos sociais será
total, com argumentos que se iniciam pela inadequação de sua inserção numa Constituição até os efeitos deletérios dos mesmos, numa
posição frontalmente contrastante ao intuito da maioria dos constituintes. Afinal, esses não se preocupariam com o aspecto principal, a
produção, pois: “Por esse rumo, nunca se sai do paternalismo; e o povo
continua eternamente dependente. É mais do que tempo de mudar
essa mentalidade, que é a própria definição do atraso. (...) O ‘social’
também está ligado ao desenvolvimento (..) Mas a visão primária do
‘social’ não pensa no desenvolvimento – intimamente ligado à livre
iniciativa: pensa em criar restrições e ônus para a empresa privada.”
(JB, 29/02/1988, ênfases nossas). Portanto, a distribuição da renda
far-se-ia única e exclusivamente em decorrência do desenvolvimento
econômico, pois dependente dos lucros auferidos pelo Capital, pode-se inferir. Em termos silogísticos, seria correto portanto inferir o
contrário, caso a produção decrescesse. A visão de mundo patronal se
expressa claramente nesse tema. Mais ainda, demonstra uma vez mais
como a grande imprensa se oporá a tais direitos com vistas à obtenção
da hegemonia, pois a “mentalidade atrasada” precisaria ser substituída
pela visão “moderna” do mundo, que valorizaria a “iniciativa privada”
pela via do “mercado livre” e da “meritocracia individual”.
Já para OG, que se mostra um vigoroso adepto da “ética do trabalho” –, de forma semelhante a OESP, como veremos –, os direitos
sociais estariam:
(...) na contramão da motivação fundamental e dos interesses do trabalhador; ou a Constituição ideal, na contramão do Brasil real. (...) Sorte pior [dados os efeitos negativos previstos] a experiência faz prever
para o aumento (...) da licença remunerada à gestante: a esse aumento
corresponderá uma restrição, a restrição do mercado feminino de traba-
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lho. (...) Concessões feitas em total descompasso com os efeitos não
prejudicarão apenas os trabalhadores. (...) [mas também a] estabilidade institucional” (OG, 15/10/1987, ênfases nossas).
A tese da perversidade é, portanto, igualmente advogada pelo
jornal O Globo, que se arroga, além do mais, a conhecedor os interesses dos trabalhadores – trata-se de uma antiga estratégia da grande
imprensa de se autonomear intérprete da sociedade, inclusive, nesse
caso, dos “dominados”. A imagem catastrófica é reiterada, constituindo-se verdadeiro bombardeio retórico, utilizando-se para tanto de expedientes ao estilo cassandra, pois o futuro certamente seria sombrio.
Para OG, pois: “(...) A produtividade cairá, inevitavelmente. (...) Será
lamentável que, por falta de informação e análise aprofundada das
questões, venhamos a ter uma Constituição que, na ilusão do avanço,
produza o retrocesso no campo das relações de trabalho.” (OG, 07/88,
ênfases nossas). Para além da perversidade ocasionada pelos direitos
sociais, para o jornal haveria inversão de sentido ao considerá-los “retrocesso”. Em outras palavras, tanto os adeptos da criação de direitos
não seriam “progressistas”, como os direitos em si não seriam avanço.
Trata-se de sofisticada estratégia de reformular o próprio vocabulário
presente na Constituinte e na sociedade, de tal forma que ideologia ser
apenas e tão-somente as propostas da “esquerda” e dos “populistas”,
que, por motivos diversos, agiriam em razão das “aparências” e não da
“essência” do capitalismo “moderno”.
O liberal/conservador OESP, tal como seu similar doutrinário
JB (no período em foco), mas também semelhante ao pragmático OG
– as diferenças de perfis dos periódicos não impedem a similitude de
posicionamentos e projetos – usará dos mesmos expedientes. Afinal,
para O Estado de S. Paulo “Retrocesso não é avanço”, título de editorial que sintetiza sua histórica visão de mundo, pois, para este jornal,
dever-se-ia indagar a utilização da palavra “avanço”:
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(...) Porque se se cuida de reduzir aquela jornada [de trabalho]
e premiar indistintamente todos os assalariados com uma estabilidade capaz de atingi-los como autêntico bumerangue, vitimando-os,
ocorrerá, sim, autêntico retrocesso; (...) esta (...) palavra (...) [implica] conferir aos que qualifica o demérito de se oporem a tudo o que
signifique progresso natural da sociedade. Todos sabem que distribuir
a estabilidade com tamanha generosidade nivelaria por baixo bons e
maus funcionários (...)
Está claro que nisso existe condenável contrassenso. Quando se pensa em abrir a sociedade para facilitar a ascensão dos melhores e mais
capazes, sejam quais forem, venham de onde vierem, procede-se em
sentido inverso àquele trilhado (...) A justiça consiste em dar desigualmente aos desiguais – e não, evidentemente, em comprimi-los
sob uma forma constrangedora a fim de igualá-los artificial e imerecidamente. (...) [Tal conjunto de direitos] acarretaria pernicioso
desestímulo aos melhores. (OESP, 18/06/1987, ênfases do jornal,
grifos nossos)
Ora, a introdução de direitos não apenas implicaria retrocesso
como conspurcaria valores essenciais da sociedade capitalista, vinculados fundamentalmente ao mérito individual. O mote “os melhores e
mais capazes” sintetiza a visão tradicional e hierárquica, mais próxima
de um “darwinismo social”, pois pretende essencialmente estimular
a competição entre a força de trabalho. O caráter conservador dessa
proposição – defendida há muito por OESP e compartilhada pelos
outros jornais, com a relativa exceção da FSP – reforça a dominação
sobre os trabalhadores ao tentar incutir-lhes valores vinculados à ascensão social. O objetivo pró Capital é notório, pois, além de implicar adestramento dos trabalhadores, requer principalmente impingir
a imagem de que basta ao trabalhador se esforçar para melhorar de
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vida, versão nacional do “self made man” estadunidense. Embora o
conservadorismo de OESP esteja – enquanto visão de mundo – de
certa forma na “vanguarda” de seus pares, as diferenças entre os jornais, quaisquer que sejam, tornam-se indistintas quando as questões
em jogo referem-se à representação do Capital Global, no contexto da
reprodução do sistema capitalista pela qual se empenham. Afinal, OESP
também se utilizará da tese da perversidade ao afirmar que “(...) as novas disposições constitucionais irão chocar-se com seus interesses [dos
operários]. (...) as medidas ‘sociais’ aprovadas (...) surtirão efeito bastante
maléfico, pernicioso, antes de tudo, para a classe operária. (...) as medidas adotadas não concorrerão para aumentar a produtividade (...)
mas para incrementar a automação. (...) o populismo é enganador...”
(OESP, 01/03/1988, ênfases nossas). Portanto, o “argumento” oscila
entre a tese da perversidade e a “falsa” consciência da esquerda/populistas. Tais justificativas do jornal representam variantes de uma mesma
raiz: a manutenção do status quo marcado pela diferenciação social.
Mas, mesmo a FSP, que manteve, dentre todos os jornais, uma
alegada preocupação com os trabalhadores – pois seu mote “Menos
Governo, Menos Miséria” em 1988 enfatizava a necessidade de o Estado priorizar as áreas sociais ao retirar-se das atividades produtivas –,
aderiu a esta cantilena, embora com menor vigor. Segundo o jornal:
Propostas como a remuneração adicional (...) para o trabalhador em
férias, o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço e o limite de
seis horas para a jornada em turnos ininterruptos, que as lideranças
empresariais condenam, inscrevem-se no vasto conjunto de direitos
sociais aprovados (...) sem nenhuma consideração mais séria sobre os
custos que acarretam. (...) [Representam] novos custos para o conjunto
da população (...) [que] nada mais serão do que o preço que a sociedade
terá de pagar pela demagogia de seus representantes. (FSP, 08/07/1988,
ênfases nossas).
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Reitere-se que, mesmo tendo mantido o discurso “social”, paralelamente à agenda liberal referente às reformas do Estado orientadas
para o mercado, a FSP também segue a estratégia de seus pares tanto
ao utilizar a tese da perversidade como por considerar “demagogia”,
populismo, a adoção de novos direitos sociais. Mas, mais relevante
ainda é o fato de a grande imprensa como um todo adotar posições
confluentes aos empresários, como o demonstra a passagem acima.
Em outras palavras, além de atuar de forma uníssona, os periódicos
como partido do Capital e aparelho privado de hegemonia se “reconciliam” – dependendo das circunstâncias – com o empresariado, uma
vez que também demonstram posições distintas dos empresários em
aspectos específicos. E isso não apenas em razão de a própria imprensa ser proprietária, mas sobretudo em virtude de que, no período da
Constituinte, os interesses do representantes (imprensa) e dos representados (empresários) se assemelham. Trata-se de importante jogo
de acomodações e reposicionamentos da grande imprensa em relação
aos polos de poder, sobretudo o Capital, processo que se dá de forma
complexa e por vezes tensa. De toda forma, seus adversários são os
mesmos, isto é, os trabalhadores e os movimentos populares.
No que tange ao papel constitucional acerca do direito de greve,
uma vez mais se observa enorme similaridade dos periódicos, coetânea
às suas características: o patronato burguês e a representação do Capital. Tal direito refere-se à ordem legal, tão crucial à democracia numa
sociedade capitalista que se pretende democrática, tal como afirmam
requerer os jornais em foco, razão pela qual a seguir será examinada
como essa assertiva se manifesta concretamente. Segundo o JB, a “(...)
liberdade de greve é um abuso conceitual (...)” (JB, 07/07/1988, ênfases do jornal). Logo, dever-se-ia refreá-la, infere-se. O fato de os constituintes terem permitido a paralisação das atividades nos serviços públicos, mesmo resguardadas certas condições ao funcionamento dos
mesmos, será considerado um absurdo, inclusive conceitual, como se
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observa, pois denotaria perda de autoridade e mesmo fragilidade do
Estado7. Ora, a FSP dirá o mesmo, pois considera que os constituintes estariam permitindo o “direito irrestrito de greve” – o que é um
evidente exagero –, inclusive nos serviços essenciais, pois: “(...) Um
instrumento legítimo de luta se transforma em chantagem contra toda
a população, concentra numa categoria específica de trabalhadores
[os funcionários públicos] um poder absoluto sobre o conjunto das
atividades produtivas do país, com a chancela (...) [da] constituinte
(...) [são] artigos condenáveis (...) (FSP, 15/07/1988, ênfases nossas).
Como veremos, o que a FSP afirma ser um direito legítimo o será
apenas abstratamente, pois o veto contumaz à mesma será a marca da
grande imprensa com um todo. Ao associar greves à chantagem o jornal expressa claramente a crítica às leis que supostamente a facilitam.
Mas serão O Estado de S. Paulo e O Globo os mais pronunciados radicais opositores das greves, e da organização do trabalho de
modo geral, na Constituição. Seu posicionamento patronal se evidencia inteiramente. Segundo OESP, que parece demonstrar ojeriza particular quanto às greves no setor público, dada a ameaça à autoridade,
que, tal como para OG, deve ser “sagrada”, para os trabalhadores:
As greves que irromperam em empresas estatais (...) mostram com clareza
o quanto a sociedade é impotente diante dos resultados da intervenção do
Estado na economia.
(...) São exércitos de empregados que agem com todas as regalias,
direitos e mordomias de funcionários públicos, promovendo greves
que se iniciaram com reivindicações salariais e ganham, hoje, aspectos nitidamente políticos e ideológicos, que levam à violência.
7. Com ênfase um pouco menor da FSP, os outros três jornais, dentre os quais OG e OESP com ainda mais
vigor, valorizam a autoridade do Estado de forma exponencial, sobretudo o respeito à ordem quando a questão
diz respeito à relação Capital/Trabalho e aos movimentos sociais.
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(...) Tudo isso mostra a incompetência do Estado empresário que, ao centralizar tudo em suas mãos, mostra fragilidade ao negociar com os trabalhadores que sabem ter um opositor incompetente, politicamente minado e, acima de tudo, contaminado pela praga do empreguismo. (OESP,
19/11/1988, ênfases nossas)
A percepção acerca do mundo do trabalho estrutura-se na suspeição intrínseca de que os trabalhadores são revolucionários, tendo
por trás “grupos radicais”. Trata-se igualmente de construção imagética forjada e exagerada, dentre tantas outras produzidas estrategicamente pelo jornal, que, dessa forma, quer impedir toda e qualquer
possibilidade das greves ocorrerem, a começar de onde emana o poder
oficial, o Estado.
Já OG expressa assim sua radicalidade quanto à aprovação do
direito de greve: seria “A porta da anarquia” (título de um importante
editorial), pois “irrestrito” “(...) para todas as categorias de trabalhadores, em todas as circunstâncias, sob quaisquer pretextos (...) significa
a porta aberta à desordem e ao caos. (...) É uma abdicação em favor da anarquia. (OG, 17/08/1988, ênfases nossas). A estratégia de
superestimar o poder dos sindicatos é clara, pois forja-se a imagem
de que esses são dominados por “grupos radicais” desestabilizadores8.
Além do mais, são omitidos os diversos constrangimentos à decisão
dos trabalhadores quando declaram greve, tais como o poder e a pressão dos patrões, o medo do desemprego e a própria legislação, entre
outros. Com isso, se quer criar a imagem de que ao suposto “poder
sem limites dos sindicatos” corresponderia “a pusilanimidade da lei e
a fragilidade da sociedade”. A fronteira entre estratégia retórica e visão
de mundo (conservadora, patronal e autoritária) é indecifrável. Por
8. A imagem criada de que, invariavelmente, pequenos “grupos radicais” comandam e manipulam as greves
pretende desqualificar, previamente, qualquer movimento grevista, pois lhe retira a legitimidade de forma
intrínseca.
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fim, o mesmo OG revela e sintetiza cabalmente o conservadorismo
autoritário de toda a grande imprensa com a seguinte afirmação:
No Capítulo ‘Dos Direitos Sociais’ existe duplicidade de tendências, ambas suficientemente perigosas e capazes de produzir efeitos
desastrosos (...)
(...) A pretexto de garantir emprego, retroagimos ao paternalismo
intervencionista (...) [caso da] estabilidade no emprego (...) no Art.
6 (...) bem como o regime de 44 horas [que] são a negação da liberdade de trabalho e a consagração do intervencionismo no mercado
de mão de obra. Já no Art. 10 (...) dispõe-se o contrário, isto é, a não
intervenção do Estado, quando se trata de liberdade de greve. (...)
Tudo é disposto de forma a permitir greves sem restrições (...) Os
dirigentes da greve decidem e fixam a seu livre-arbítrio os limites da
ação de greve. Temos consagrada a contradição do excesso de intervenção
do Estado no Art. 6 e da ausência do poder dos governos, no caso de greve.
Vedada pelo projeto só a greve de iniciativa empresarial. Dois pesos e duas
medidas. (OG, 11/10/1987, ênfases nossas).
Sem meias palavras, o jornal propugna o “livre mercado” para
a força de trabalho (competição entre os trabalhadores em busca de
emprego de acordo com os interesses do Capital) e o Estado repressor para impedir e reprimir as greves. Em nome do “bem comum” a
defesa dos interesses patronais se manifesta, seja pela forma como os
direitos dos trabalhadores (em sentido amplo) são concebidos, seja
pela demanda de que também o empresariado poderia, no limite, ter
o direito de paralisar a produção (lockout): essa solicitação é meramente retórica e fictícia, pois os interesses capitalistas se opõem à paralisação das atividades produtivas por razões óbvias. Portanto, não apenas
OG mas toda a grande imprensa, embora com ênfases distintas, quer
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antepor limites à organização do trabalho – sendo a greve o alvo mais
importante – em contraposição ao reiterado “laissez faire” no mercado
de trabalho, o que explica a oposição radical e antidemocrática a toda
e qualquer greve concreta.
Vejamos, agora, como a grande imprensa atuou em razão de
seu papel político/ideológico, como forma de orientar, dirigir – no
sentido gramisciano – os constituintes com vistas a vetar as propostas
de seus adversários quanto aos direitos sociais, de tal maneira que os
interesses de um capitalismo liberal e conservador fossem assegurados. Essa posição implicou a utilização de estratégias diversas, entre
as quais opor uma suposta maioria liberal – majoritária portanto seja
na sociedade seja na Constituinte, via “Centrão”9, embora tida como
silenciosa e pouco organizada – a uma minoria considerada radical e
extremamente organizada, vinculada à esquerda. Essa, contudo, teria
hegemonia na Constituinte, sobretudo na Comissão de Sistematização, que fora responsável por priorizar as propostas dos constituintes.
Embora jamais tivesse demonstrado qualquer dado que mensurasse essa relação entre maioria e minoria, a grande imprensa como
um todo – embora com menor incidência na FSP – formulou essa
imagem com vistas tanto a concitar os parlamentares liberais e conservadores como para formar a opinião de seus leitores. Assim se pode
compreender essa dicotomia. Para OG: “(...) A maioria quer uma sociedade aberta, com liberdade de criar e produzir, com menor regulamentação estatal. A maioria não tem medo de manter e cultivar o relacionamento internacional (...) a maioria quer um sindicalismo livre,
9. “Centrão” foi a denominação dada pelos partidos políticos e pela mídia a um grupo de parlamentares de
vários partidos conservadores, todos vinculados ao espectro do centro à direita. Mais correto seria denominá-lo de “direita” devido às suas concepções assentadas no liberalismo econômico, no conservadorismo dos
costumes, na oposição aos direitos sociais e na crítica ao conflito. Curiosamente, essa denominação sempre
habitou o ambiente político parlamentar desde a Constituinte até os dias de hoje. O golpe parlamentar
do impeachment em 2016 contou decisivamente com a participação desse grupo, ainda hoje chamado de
“Centrão”, mas que nada mais significa do que a direita no país, cada vez mais associada aos evangélicos,
latifundiários e empresários de toda cepa.
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sem paternalismo restritivo do mercado de trabalho e sem a anarquia
do grevismo.” (OG, 14/08/1987, ênfases nossas). Como se vê, o jornal
sabe tanto o que a “maioria” deseja como o que rejeita, o que denota
arrogância. A contenda político/ideológica supera qualquer “método
científico”, pois o que importa é a obtenção da hegemonia liberal/
capitalista, que estava fortemente ameaçada, segundo a percepção dos
jornais, por causa das cláusulas sociais aprovadas, assim como a proteção excessiva ao Capital exclusivamente nacional. Para o JB, o Brasil
seria: “(...) Uma nação de pensamento centrista e conservador (...)”
(JB, 03/04/1987). Esse viés teria sido, portanto, desrespeitado pela
esquerda, sobretudo o PMDB, que nomeara “esquerdistas” para as
principais Comissões Temáticas encarregadas de comandar o processo
constituinte. Mais ainda:
Entre as duas formas em que se explicita a representação do PMDB
(esquerda e moderada), disfarça-se a grande maioria que (...) é também
a expressão da grande maioria dos brasileiros. É aí que se encontra o
centro de gravidade política brasileira, a grande classe média. A representação política de centro (...) sente-se incomodamente sem condições de externar suas convicções (...) [devido ao] patrulhamento
ideológico [da esquerda] (JB, 05/02/1987, ênfases nossas).
Esse editorial fecha o círculo, pois a “maioria” é então a classe
média, setor também fortemente representado pela grande imprensa, como se observa. É claro que a maior parte dessa classe, embora
proletarizada – perfil em progressão no Brasil pós-1964 – possui valores mais próximos às classes dominantes, sendo também por isso
alvo da grande imprensa. Dessa forma, é importante ressaltar a recorrência com que a classe média aparece nos editoriais, sobretudo
em momentos cruciais, como esse, dada a reconfiguração de direitos
e deveres que expressa.
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Por outro lado, o fato de que os constituintes à esquerda e ligados a causas populares e nacionalistas terem conseguido vitórias importantes para seus pontos de vista fez com que a grande imprensa reagisse
de dois modos concomitantes: desqualificando suas ideias, interesses e
mesmo os componentes desses agrupamentos, e concitando os “liberais” – eufemismo para toda o tipo de interesses patronais e conservadores – a agirem e se organizarem com vistas a derrotar os adversários/inimigos. Não raro os empresários – nacionais e estrangeiros – e o próprio
governo federal (Sarney) foram chamados ao combate, isto é, deveriam
exercer todo o seu poder de influência, em sentido amplo, com vistas a
barrar a “esquerdização” do país (terminologia utilizada à exaustão pela
imprensa), o que significa portanto clara e aberta contenda. Tal clareza e
ação ostensiva são observáveis amiúde, tendo nos editoriais a síntese desse verdadeiro combate. Observe-se como a própria linguagem assume
caráter belicoso, inclusive quanto ao chamamento aos aliados. Segundo o JB: “(...) Ou o pensamento da empresa privada e das tendências
políticas liberais se articulam para produzir um modelo melhor que o
modelo autárquico, ou estaremos abrindo o caminho para o fogo que os
sopradores das brasas isolacionistas querem acender.” (JB, 08/06/1987).
Embora esteja se referindo às restrições ao Capital estrangeiro,
esse chamamento é extensível a todos os temas-chave identificados
pelo jornal. A articulação entre Capital e liberalismo é reveladora,
mesmo que majoritariamente esse último esteja associado, de forma
genérica, à ideia de “maioria”. O “Centrão”, cuja criação no Congresso fora requerida pela grande imprensa, quando surge é saudado como
um verdadeiro acontecimento, pois selaria o encontro do “Brasil real”
com sua representação política. Toda vez, contudo, que esse agrupamento votou teses próximas aos nacionalistas, fora também criticado
pelos jornais, que, desta forma, chama-lhe a atenção, procurando com
isso “corrigir seus erros”, isto é, dirigi-lo política e ideologicamente. A
FSP, mesmo que tivesse por vezes criticado o caráter conservador do
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“Centrão”, o apoiou em razão da contenda ideológica maior com a
esquerda. Por isso, acredita que boa parte das medidas aprovadas pela
influência da esquerda, entre as quais as restrições ao capital estrangeiro, seriam nocivas ao país, pois: “A defesa de um desenvolvimento
equilibrado se deturpa (...), o ímpeto nacionalista se distorce numa
defesa da estagnação. São estes os riscos que (...) apresentam-se com
especial nitidez. Resta saber se o Congresso constituinte saberá afastá-los,
num clima de consenso e ampla sustentação da opinião pública, ou se
a opção pela xenofobia e pelo atraso estará (...) consagrada no novo
texto constitucional.” (FSP, 24/04/1988, ênfases nossas). Portanto, a
mesma dicotomia aparece na autointitulada “moderna” FSP. A própria ideia de que o “consenso” deveria ser alcançado a partir de sua
estruturação na “opinião pública” – que nada mais significa do que
a própria grande imprensa – implica um círculo vicioso, pois tanto o
“consenso” é sinônimo de hegemonia como a opinião “pública” é, em
verdade, privada, isto é, de seus formadores, os “aparelhos privados de
hegemonia”, isto é, a mídia, nunca é demais relembrar. Essa equação é
particularmente cara à FSP, mas válida para todos os periódicos.
Mas a linguagem beligerante encontra em OG e OESP seus
representantes máximos, como se pode observar pelas concitações peremptórias. No caso de OG, seu governismo inveterado imiscui-se à
defesa do caráter patronal/conservador da Constituição, pois tanto o
presidencialismo como o mandato de Sarney (tal como este o requereu, isto é, cinco anos) foram militantemente apoiados pelas Organizações Globo. Quando da redução do mandato para quatro anos – apenas
posteriormente alterada –, OG assim se posicionou: “Vamos ao plenário; se necessário contra um golpe de Estado, vamos às urnas.” (OG,
17/11/1987, ênfases nossas)10. Ir às urnas seria extinguir a Constituinte
10. É curioso observar como um grupo político/jornalístico, como o Sistema Globo, cuja trajetória é marcada
por conspirações e apoios a golpes de Estado – como em 1964 e 2016, apenas para citar dois momentos –refira-se à noção de “golpe” como estivesse ao lado da democracia.
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e buscar a (supostamente ausente) legitimação popular dos constituintes via eleições. Para além do casuísmo da proposta e do governismo
histórico do jornal, importa observar sua participação política, expressa
na afirmação em primeira pessoa do plural, que, aliás, lhe é comum
em determinadas circunstâncias. Quanto aos temas cruciais referentes aos capítulos sobre a ordem Econômica e a Social, dá-se o mesmo
tom. Quando, por exemplo, o “Centrão” se estruturou com a divisão
do PMDB e conseguiu algumas vitórias importantes, OG o concitou
a uma vitória total sobre a esquerda/nacionalistas ao afirmar que: “Não
cabe aos moderados colocarem panos quentes, contemporizando em
questões da gravidade (...) [como a] concessão de estabilidade no emprego após três meses (...) A divisão [do PMDB] já existe (...) Só resta
consagrá-la. (...) Que os moderados do PMDB assumam a divisão para
o restabelecimento da Aliança Democrática (...)” (OG, 07/07/1987).
O jornal pressiona, veta, orienta, dirige; numa palavra, procura organizar interesses, funcionando como intelectual coletivo do establishment. Sobretudo nos momentos de derrota, mesmo que parcial,
assim como nas circunstâncias em que a base governista se dispersou
(por motivos diversos), a linguagem e o clima tornam-se ostensivos,
pois, afinal: “Não há outro caminho senão o de todos nos unirmos pondo
acima de superadas divergências ideológicas ou de futuras disputas eleitorais
os supremos objetivos da Nação.” (OG, 05/05/1988, ênfases nossas). A
clareza meridiana dessa passagem sintetiza o papel da grande imprensa. Esse editorial não apenas foi publicado em primeira página como
ocupou largamente sua parte superior (a área mais nobre e visível do
jornal), além de ter sido assinado pelo próprio Roberto Marinho, intitulando-se justamente “Os supremos objetivos da Nação”, sinônimo
dos interesses defendidos pelos periódicos. Trata-se da velha estratégia
de universalização do particular, cabível às entidades unilaterais como a
grande imprensa. Para além desse aspecto, percebe-se claramente como
OG chama a atenção dos aliados, cobrando-lhes unidade.
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Ora, se esse expediente fora utilizado por periódicos pragmáticos, o que dizer do conservador e tradicionalista OESP? Sendo ainda
mais incisivo, concitou os “liberais” à luta. A cada passo da Constituinte a grande imprensa fora se posicionando, ora recuando, ora
pressionando com vigor, ora abrindo espaços à negociação. Dessa forma, acompanhar a movimentação dos jornais nesse momento decisivo da elaboração da nova Constituição encerra muitas lições, dada a
importância de temas que foram votados. Para OESP, portanto, “(...)
A hora é de os liberais acordarem – porque depois será tarde.” (OESP,
05/02/1987). Afinal, houve inúmeras batalhas no Congresso Constituinte: a eleição dos membros para a Comissão de Sistematização, a
modificação do Regimento, as votações nos dois turnos, dentre inúmeras outras. Conforme as teses consideradas prejudiciais foram sendo aprovadas, sobretudo quanto aos direitos sociais, assim o atônito
OESP se posicionou, com vistas a reagrupar as forças aliadas:
A votação espelha a falta de governo e o caos mental que corroem o Brasil;
a incapacidade de os empresários se articularem, de maneira ordenada
(...) a indecisão de muitos constituintes, que não sabiam como votar
assunto dessa magnitude [os direitos sociais] porque as lideranças empresariais ou políticas não souberam transmitir instruções precisas. (OESP,
11/10/1987, ênfases nossas).
No limite, esse editorial faz espécie de mea culpa, pois, aparentemente, a grande imprensa teria demonstrado inabilidade para
dirigir, orientar seus representados. Para além disso, contudo, é clara
a postura de OESP em cobrar, repreender, instigar, sem nunca “jogar
a toalha”, pois, tal como numa luta de boxe, por mais que o lutador
esteja perdendo, é papel do treinador orientar estimular o “lutador”.
É isso que sobretudo OESP faz exaustivamente, acompanhado pelos
seus pares. Daí, para o jornal:
A NÃO REGULAMENTAÇÃO DA COMUNICAÇÃO SOCIAL E OS VETOS À SOCIEDADE DE DIREITOS
NA CONSTITUIÇÃO – O PAPEL DA MÍDIA NO BRASIL
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(...) os liberais brasileiros têm diante de si ingente tarefa; se não se organizarem para combater o populismo estatizante (...) o Brasil corre o
risco de regredir (...) (OESP, 20/11/1987, ênfases nossas).
A atuação da imprensa, como se vê, foi/é vigorosamente militante, tanto na elaboração da Constituição como após sua proclamação, a ponto de, passados 30 anos, inúmeros temas jamais terem sido
regulamentados – caso da comunicação social, que os atinge diretamente – e outros tantos terem sido alterados radicalmente, caso das
diversas reformas constitucionais de FHC e Temer.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista o conjunto de evidências quanto à atuação
do conglomerado midiático comercial brasileiro, as conclusões foram
apresentadas no transcorrer do texto quanto ao conservadorismo liberal pró-Capital e classes médias, em detrimento da sociedade de
direitos, entre os quais o direito à comunicação. Os vetos e bloqueios,
tanto na Constituinte como após a aprovação da Constituição foram/
são permanentes em relação às políticas distributivas e aos direitos dos
trabalhadores e dos movimentos, partidos e ideias que os defendem.
São e permanecem intelectuais orgânicos das elites proprietárias
e atuam como aparelhos privados de hegemonia que, como tal, vêm
sistematicamente impedindo a democracia política e social no Brasil.
Por fim, os grandes meios de comunicação articulam-se ao
universo digital e das redes sociais, uma vez que parte significativa
do que é produzido pelos grandes meios comerciais é veiculado pelas
novas formas digitais de comunicação. Já a emergência dos robôs de
envio de “fake news” e de outras formas altamente profissionais de veiculação de “notícias montadas e descontextualizadas”, notadamente
pela via do whatsApp, representam desafio contemporâneo de análise,
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
tal como se observou na eleição de Trump nos EUA, na votação do
Brexit, assim como da “campanha eleitoral” no Brasil em 2018 que,
embora sob Estado informal de exceção, artificialmente foi conduzida
como se o processo tivesse sido legítimo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DARDOT Pierre e LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo – ensaio
sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, Boitempo, 2016
FERREIRA, F. Whitaker. Cidadão Constituinte: a saga das emendas populares. São Paulo, Paz e Terra, 1989
FONSECA, Francisco. Mídia e Poder: elementos conceituais e empíricos para
o desenvolvimento da democracia brasileira. Brasília, Ipea, 2010. Texto para
Discussão 1509: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/Tds/
td_1509.pdf.
______. O Consenso Forjado: a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil. São Paulo, Hucitec, 2005.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999-2002 (6 volumes).
HIRSCHMAN, Albert. A retórica da intransigência – perversidade, futilidade e ameaça. São Paulo, Cia. das Letras, 1992.
LEAL FILHO, Laurindo, Novo Congresso, velhas dívidas. São Paulo, Revista
do Brasil, edição 56, 2011.
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SOBRE O ORGANIZADOR
José Celso Cardoso Jr. é economista pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São
Paulo (FEA/USP), com mestrado em Teoria Econômica e doutorado em Desenvolvimento (com especialização em Economia Social
e do Trabalho), ambos pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp). Desde 1997 é Técnico
de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), tendo desde então assumido cargos de coordenação
e direção no próprio Ipea e em outras instâncias da Administração
Pública Federal brasileira.
Ademais, tem produzido estudos, pesquisas aplicadas e assessoramento governamental direto em temas do Trabalho e Proteção
Social, além de Estado, Instituições e Planejamento Estratégico Governamental. Igualmente nessas áreas tem sido professor-colaborador
em cursos no Ipea, ENAP, ESAF, GDF, TCU, FGV, dentre outros.
Em 2017 realizou seu pós-doutorado em Governo e Políticas
Públicas pelo IGOP-UAB (Universidade Autônoma de Barcelona,
Espanha). Pela Fundação Perseu Abramo (FPA), organizou e lançou
em 2016 o livro Resistência e Contestação: sociedade brasileira e comunidade internacional contra o golpe de 2016”, e em 2017 o livro
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| A CONSTITUIÇÃO GOLPEADA | 1988-2018
Planejamento Governamental e Finanças Públicas no Brasil Contemporâneo: perspectivas críticas ao financiamento do desenvolvimento
no século XXI.
O trabalho de José Celso Cardoso Jr.,
neste livro, é um resgate não maniqueísta da Constituição Federal de
1988. Naquele momento, há três décadas, foi resultado de um pacto político
e não de um constitucionalismo sem
vida e sem conflito.
Nos 13 capítulos presentes, é possível
analisar a época, os dilemas do texto
constitucional – com suas lacunas e
insuficiências –, e a fase posterior, a do
emendamento, seja pela via governamental, seja pela via congressual.
Considero este volume uma importante contribuição num momento histórico tão importante quanto o vivido
hoje, porque ele coloca o texto constitucional no plano da Política, não restrito a uma redução da hermenêutica
constitucionalista.
José Genoino