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Resenha
Psicoterapia, Subjetividade e Pós-Modernidade.
Uma Aproximação Histórico-Cultural
Psychotherapy, Subjectivity and Post Modernity:
An Historical-Cultural Approach
Gonzalez Rey, F. (2007).
Psicoterapia, subjetividade e pós-modernidade.
Uma aproximação histórico-cultural. São Paulo, SP: Thomson.
Maurício da Silva Neubern*
Instituto de Psicologia & Universidade de Brasília
O presente trabalho consiste numa resenha crítica do
livro “Psicoterapia, subjetividade e pós-modernidade” de
Fernando Gonzalez Rey, publicado pela Editora Thomsom,
São Paulo, em 2007. Trata-se de um livro que procura
destacar a pertinência da reflexão histórico-cultural na
psicoterapia, principalmente a partir de Vigotsky, tanto para
levantar críticas ao desenvolvimento histórico desse campo, como para propor algumas possibilidades de reflexão
sobre o mesmo. No seu primeiro capítulo, discute criticamente o desenvolvimento da psicoterapia, destacando suas
limitações ontológicas e as possibilidades de resgatá-la
numa leitura que inclua suas dimensões culturais e sociais.
Nos segundo e terceiro capítulos, apresenta uma proposta
inovadora de discussão com a perspectiva histórico-cultural, realçando tanto o impacto desta na reflexão sobre a
psicoterapia, como a contribuição que a noção de subjetividade pode possuir neste campo de reflexão teórica e
prática. O último capítulo é destinado a um diálogo com
perspectivas atuais da psicoterapia pós-moderna, como o
construtivismo e o construcionismo social, principalmente
em termos da noção de sentido subjetivo e sujeito.
Ao longo de suas 280 páginas, o livro demonstra acentuado e vasto conhecimento de seu autor Dr. Fernando
Gonzalez Rey, cubano radicado no Brasil, cuja trajetória
acadêmica em diversas instituições nacionais e estrangeiras tem trazido contribuições significativas para a psicologia do país em diferentes frentes relacionadas ao tema
da subjetividade, tais como epistemologia, psicoterapia,
psicologia da saúde e pesquisa qualitativa. Num estilo acessível e pertinente, discorre sobre diferentes contribuições
*
Endereço para correspondência: Departamento de Psicologia Clínica (IP/UnB), ICC-Sul, Campus Universitário
Darcy Ribeiro, Brasília DF, Brasil, CEP 70910-900. E-mail:
[email protected]
Esta resenha é fruto da pesquisa institucional “Hipnose, dor
e subjetividade: Sobre a construção do contexto terapêutico”
pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub).
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no campo da psicoterapia, abrangendo desde autores modernos até autores contemporâneos da pós-modernidade.
Nesse sentido, o livro possui uma característica interessante na medida em que, mesmo focando um campo específico, dialoga com autores de outros campos, como
Foucault, Morin, Touraine, Guidens, dentre outros, oferecendo importantes possibilidades de articulação com a
psicologia e outras ciências sociais. Assim, Vigotsky é desvencilhado da visão estreita de psicólogo do desenvolvimento, comum no Brasil, e resgatado como um pensador
da psicologia, cujas contribuições não se restringem a um
único campo. Embora o livro não o faça explicitamente,
abre-se uma possibilidade para que se conceba uma aproximação entre psicoterapia, educação e saúde a partir da
noção de subjetividade nele proposta.
Em seu primeiro capítulo, é destacado que um dos principais problemas epistemológicos da psicologia, que teve
conseqüências diretas na prática psicoterápica, foi a inexistência de uma definição ontológica sobre a psique. Nas
diferentes expressões do pensamento psicológico, muito
influenciadas pelo fisicalismo, pelo metodologismo e pela
ênfase no patológico, a psique surge ligada a alguma
outra dimensão do saber, de caráter invariante e universal, não sendo reconhecida em sua especificidade. Assim,
inspirando-se no enfoque histórico-cultural, o livro propõe
a noção de subjetividade como uma alternativa de reconhecimento da psique como um processo subjetivo, construído
histórico e socialmente a partir das ações so-ciais do sujeito, ao invés de uma entidade reificada e transcendente
distante das trocas sociais do cotidiano.
Na sua revisão crítica de diversos autores da psicologia,
o livro destaca que, malgrado a evolução que se deu no
século XX, a definição ontológica da psique ainda permanece em aberto no seio de muitos movimentos psicológicos. Assim, reconhecendo um desenvolvimento acentuado desde autores como Freud, que a concebiam dentro
de parâmetros universais e essencialistas, a autores como
Psicologia: Reflexão e Crítica, 22 (2), 312-314.
Castoriadis, Guattari, Elliot e, para quem já se configuram
dimensões emocionais e sociais mais amplas, o problema
ainda não se resolve, uma vez que não houve uma definição precisa, com o estudo de seus processos constitutivos e
suas articulações com o complexo mundo sócio-cultural.
Vale destacar que além de ressaltar as virtudes e contradições de tais autores, o livro também toca vez por outra nos
processos típicos dos movimentos sociais da psicoterapia,
como a dogmatização e a institucionalização, embora não
os desenvolva em profundidade. Esta contribuição, semelhante à de outros autores que não entram nesta obra
(Neubern, 2005; Roustang, 2001) é particularmente importante, uma vez que os espaços de psicoterapia, tanto de
prática, como de ensino e divulgação, freqüentemente se
tornam espaços reprodutivos de modelos dominantes que
impedem a reflexão crítica e reduzem a psicoterapia a uma
simples prática de aplicação de conceitos e técnicas. Desse
modo, tal livro se torna um interlocutor valoroso para
profissionais de psicologia, ciências sociais e educação
que já possuam alguma familiaridade com o tema e que se
interessem pela psicoterapia no tocante a uma reflexão
aprofundada e coesa. Alunos de graduação e pós-graduação podem encontrar nele um importante aliado para a
formação do espírito crítico como também enquanto fonte
de aprofundamento de reflexão e pesquisa.
Fugindo da perspectiva comum de restringir Vigotsky à
psicologia do desenvolvimento, no segundo capítulo, a obra
destaca que a abordagem histórico cultural é bastante pertinente para a psicoterapia devido às possibilidades que
abre em termos de uma forma complexa de pensar. Fazendo uma interessante revisão da psicologia soviética, que
no Ocidente muitas vezes é reduzida à teoria da atividade
ou a perspectivas discursivas, ressalta o potencial da noção
de sentido de Vigotsky, que não se prendeu a um simples
processo de mediação, mas a uma integração complexa de
elementos cognitivos e emocionais relacionados à personalidade do sujeito como um todo. Daí seu autor evolui
para sua própria noção na qual não mais o cognitivo, mas
o simbólico se integra ao emocional numa processualidade
que vai além do intrapsíquico e integra a subjetivação dos
processos sociais em que o sujeito toma parte. Essa integração – nomeada pelo autor como configuração – está na
base da construção de sentidos do sujeito e relacionada, de
uma forma não linear, aos registros que se dão na sociedade e na cultura. É interessante notar como essa proposta se
aproxima de uma forma complexa de pensamento, como a
de Morin que é discutida pelo autor, uma vez que integra o
sujeito, com seus processos internos, numa dialética sóciocultural sem dissolver ou dicotomizar as diferentes dimensões envolvidas. Por buscar integrar tais processos numa
perspectiva sistêmica de definir a subjetividade, sua proposta se apresenta mais abrangente do que outras já discutidas em termos de complexidade (Delourne, 2001; Pagès,
1993) com as quais, infelizmente não estabelece diálogo.
Buscando fugir do dogmatismo típico dos movimentos
psicológicos, o livro não pretende fundar uma nova escola
em torno de sua noção de subjetividade – o que seria in-
compatível com sua proposta de uma reflexão constante
sobre o tema. Quando propõe, já em seu terceiro capítulo,
a subjetividade como um conjunto complexo de sistemas
organizados de forma configuracional caracterizado por
uma processualidade emocional e uma geração de sentidos
incessante, ele apenas busca oferecer condições para romper com a perspectiva de patologia dominante nas práticas
psicoterápicas atuais, onde a noção de transtorno tem ganhado cada vez mais espaço. Desse modo, a possibilidade
de gerar sentidos, em determinados momentos e circunstâncias de vida, define uma psique saudável ou geradora de
danos, termo este utilizado para se desvencilhar da noção
de transtorno. Sua crítica é bastante pertinente, como no
comentário do texto de Foucault sobre Pierre Rivière, ao
demonstrar que por trás do laudo frio e descontextua-lizado
há um sujeito, suas tramas sociais e as construções que daí
advém, ou seja, uma série de momentos da subjetividade
que são excluídos por um diagnóstico centrado em transtornos. Entretanto, esta obra não chega a confrontar sua
noção com processos de desagregação psíquica mais profundos, como certos tipos de psicose, o que deixa um grande espaço em aberto a partir de sua noção de subjetividade.
A proposta psicoterapêutica aqui trazida confere uma
ênfase especial à noção de sujeito, de maneira que o paciente assume essa condição quando se posiciona de forma
ativa na terapia, principalmente, no tocante à sua própria
produção de sentidos, o que pressupõe uma postura reflexiva quanto a si, ao terapeuta e ao processo. Atacando a
noção exclusiva de que a psicoterapia se restringe ao consultório, considera que se trata de uma prática passível de
ocorrer em qualquer espaço de subjetivação, como hospitais, tribunais, escolas, já que suas características mais
importantes são o vínculo, o diálogo e a construção de
sentidos. Aproximando-se, em um diálogo aberto, de autores construcionistas e construtivistas, ele enfoca que a dimensão subjetiva do processo terapêutico não deve ser
dogmatizada num ritual ou lugar físico, mas privilegiar o
que a caracteriza como fundamental.
Em seu diálogo, já no quarto capítulo, com autores construtivistas como Mahoney e Guidano a quem confere considerável importância, esta obra ressalta a pertinência de
algumas de suas propostas, como a construção própria do
sujeito, a criatividade técnica, e o papel ativo do sujeito no
processo terapêutico. Ao mesmo tempo, não deixa de destacar que a perspectiva racionalista neles presente os leva
a uma concepção de significado como algo intencional, o
que difere radicalmente da noção de sentido, cuja
emocionalidade, freqüentemente, está além da percepção
do sujeito. Esse racionalismo, inspirado em boa parte
pelas escolas cognitivistas, também conduz o terapeuta a
uma postura de explicitar os momentos significativos da
mudança do sujeito, o que é criticado nesta obra, na qual a
mudança advém das próprias produções subjetivas do
sujeito e não depende linearmente das interpretações do
terapeuta. Lamenta-se, por outro lado, que aqui não se tenha desenvolvido mais a fundo a noção de inconsciente,
tema em que chega a resvalar algumas vezes ao se referir
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Psicologia: Reflexão e Crítica, 22 (2), 312-314.
à própria noção de sentido, mas sobre o qual não se aprofunda, o que ocasiona outro campo relevante ainda em
aberto em sua proposta.
Já em seu diálogo com outra perspectiva recente, o construcionismo social, o livro não deixa de ressaltar o valor de
suas contribuições, mas se apresenta de forma muito mais
crítica. Apesar de destacar sua proximidade no que se refere ao diálogo e a valorização das construções singulares do
sujeito, ressalta a contradição desse movimento que ataca
enfaticamente as posturas realistas, mas, ao mesmo tempo, acaba por reificar o discurso, como ocorre com freqüência em Gergen. Em termos de psicoterapia, considera
que, malgrado a busca de uma assimetria, não é possível
reconhecer o papel do cliente, uma vez que sua condição
de sujeito não é reconhecida. Ao mesmo tempo, ressalta
que a ênfase dos construcionistas sobre o que aparece explicitamente no diálogo encobre uma série de processos,
subjetivos (como as emoções) sociais e culturais que não
surgem nos mesmos, mas participam ativamente da configuração subjetiva dos sujeitos. Daí semelhante perspectiva
pode conduzir a uma cegueira no processo terapêutico, uma
vez que não é capaz de reconhecer processos mais amplos
que o perpassam, mas só podem ser conhecidos de forma
indireta.
Por fim, vale ressaltar que a obra é concluída destacando
o campo heurístico que define a especificidade da psicoterapia. Embora cometa um pequeno deslize de organização
ao não enfatizar esse trecho como um capítulo conclusivo,
o livro é finalizado em termos da pertinência da noção de
sentido e subjetividade que requerem uma postura investigativa, reflexiva e aberta que fuja da naturalização do
conhecimento tão comum na psicologia. Tal postura deve
ser acompanhada de um saber que permita o diálogo com
outros domínios ontológicos que se relacionam incessantemente na complexidade do mundo em que vivemos.
Referências
Delourne, A. (Ed.). (2001). Pour une psychothérapie plurielle.
Paris: Retz.
Gonzalez Rey, F. (2007). Psicoterapia, subjetividade e pósmodernidade. Uma aproximação histórico-cultural. São
Paulo, SP: Thomson.
Neubern, M. (2005). A dimensão regulatória da psicologia clínica: O impacto da racionalidade dominante nas relações terapêuticas. Estudos de Psicologia (Natal), 10(1), 73-82.
Pagès, M. (1993). Psychothérapie et complexité. Paris: Hommes
et Groupes.
Roustang, F. (2001). Tout fait ventre. In A. Delourne (Ed.), Pour
une psychothérapie plurielle (pp. 94-110). Paris: Retz.
Recebido: 08/07/2008
1ª revisão: 11/08/2008
2ª revisão: 28/08/2008
Aceite final: 04/09/2008
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