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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando
por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo
nível."
Eduardo Viveiros de Castro
A inconstância da alma selvagem
e outros ensaios de antropologia
Para Irene
De todas as mudanças de linguagem que o viajante deve enfrentar em terras
longínquas, nenhuma se compara à que o espera na cidade de Ipásia, porque a
mudança não concerne às palavras, mas às coisas.
I. Calvino
Prólogo
Os nove ensaios e a entrevista reunidos neste livro retomam, com correções,
modificações e acréscimos variados, textos dados à luz anteriormente. A única
exceção é o capítulo 9, que traz uma breve comunicação inédita. Todas as versões
primitivas dos textos, desta vez com a exceção do capítulo 1, foram publicadas nos
últimos dez anos, em veículos de acesso quase sempre fácil, e apenas três dos
capítulos (4, 6 e 9) baseiam-se em textos inexistentes em português. O problema
deste prólogo, portanto, é oferecer uma boa razão – ou desculpa – para a presente
coletânea.
No que me concerne, a primeira e bastante razão foi o generoso convite de
Augusto Massi, em nome da Cosac Naify, para que eu a publicasse. Aceitei de
imediato a proposta, pois havia muito esperava uma oportunidade de reformar
vários de meus escritos, sem o que eles arriscavam passar à pequena história que
lhes cabe em versões cheias de defeitos estilísticos e analíticos, de omissões
importantes e, em alguns casos, de erros tipográficos irritantes. Além disso, o
sentimento, frequentemente ilusório, de poder dizer melhor agora o que dissera antes
costuma acompanhar cada releitura que faço de meus trabalhos (o que me leva a
relê-los com grande impaciência). Nos capítulos aqui reunidos, tento exatamente isto:
dizer um pouco melhor o que já disse, e um pouco mais. O livro é, assim, uma
espécie de homenagem ao esprit d’escalier que, com assiduidade variável, acometenos a todos. Essa a desculpa.
A segunda e talvez mais razoável razão foi ter percebido que, postos juntos, os
capítulos a seguir mostravam certa coerência, respondendo a uma mesma
preocupação teórica e elaborando as mesmas duas ou três intuições etnográficas que
guiam minha prática profissional desde o início. O principal motivo da publicação
do capítulo 1, que remonta a uma dissertação de mestrado escrita em 1976, foi a
intenção de assinalar tal continuidade. Incluí-o com relutância, porque as
modificações necessárias eram, ali, realmente de monta, e porque as condições da
pesquisa que fundamenta os textos originais foram mais que insuficientes. Mas,
percebendo que muitas das ideias desenvolvidas quinze ou vinte anos mais tarde já se
encontravam esboçadas naqueles textos, decidi conceder-lhes uma segunda chance, e
passá-los a limpo como aos outros.
Nenhum dos capítulos a seguir reproduz literalmente os artigos em que se
baseiam, com exceção talvez (pois introduzi umas poucas mudanças de pontuação)
da entrevista concedida à revista Sexta Feira. Alguns capítulos utilizam materiais
provenientes de mais de um texto anterior, ou de versões de um mesmo texto
publicadas em outras línguas; alguns contêm passagens e seções inteiras reescritas ou
adicionadas quando da composição desta coletânea; outros, enfim, sofreram apenas
retoques cosméticos, mais ou menos extensos, de expressão ou de paginação (notas
incorporadas ao texto, redivisão das seções etc.). Os adendos ou modificações
maiores, nos textos mais antigos, estão consignados explicitamente, sobretudo se
supõem uma informação posterior à data dos originais. Muitas vezes, porém,
modifiquei ou suprimi sorrateiramente expressões, frases e trechos que me
desagradavam, de modo a reconstruir os argumentos originais sob um aspecto mais
afim à maneira como me expressaria hoje – e, escusado dizer, de modo também a
aumentar a impressão de consistência entre os ensaios. Os capítulos desta coletânea
trazem também, quase sempre, títulos novos em relação aos textos que lhes serviram
de modelos principais (ou únicos), o que exprime, entre outras coisas, a distância de
conteúdo frente aos modelos. Como não se está aqui a republicar clássicos,
submetidos ao imperativo do ne varietur, julguei que essa recauchutagem geral era
admissível e, o mais das vezes, indispensável.
Acrescentei muitas referências bibliográficas ausentes dos textos originais, por
descuido ou limitações de espaço, e introduzi algumas referências surgidas
posteriormente à sua publicação. Evitei, contudo, qualquer atualização sistemática da
bibliografia; em alguns casos (como no cap. 6), isso teria exigido a redação de um
ensaio várias vezes maior; em outros (como no cap. 5), a elaboração de uma
monografia inteira; em outros ainda (como nos caps. 2 e 7), o perigo seria o de uma
excessiva autorreferência indireta, em vista da quantidade de respostas que eles
suscitaram. Evitei, em especial, utilizar referências que incorporavam os argumentos
de meus próprios textos, fosse para demoli-los, fosse para aboná-los. Por outras
palavras, não procurei responder às críticas de que eles foram objeto, e tampouco
apoiá-los em quem veio a se basear neles. Temo que essa evitação não tenha sido
rigorosa, em um sentido ou no outro; mesmo assim, fiz o possível.
A ordenação dos capítulos segue, com exceção da entrevista (cap. 10), a
cronologia original de publicação dos principais textos ali reescritos. Não cabia uma
ordenação temática, visto que, à parte o capítulo 5, de corte didático e enciclopédico,
todos os demais textos tratam dos mesmos temas, sob ângulos apenas ligeiramente
distintos.
Os ditos mesmos temas desenvolvem, com efeito, as poucas intuições (ou
obsessões) a que me referi acima, e que são como os fios condutores a ligar os
diferentes momentos de meu trabalho de etnólogo. De um ponto de vista mais
abstrato, tratou-se sempre, para mim, de tentar problematizar e complexificar os
dualismos característicos do repertório conceitual de nossa disciplina, como também
aqueles, e isto é o realmente importante, que costumam ser atribuídos pela
antropologia aos sistemas de pensamento da Amazônia indígena: organizações
dualistas, classificações sociais binárias, dualidades míticas e cosmológicas, e assim
por diante. Os escritos sobre os Yawalapíti (cap. 1) abordaram a questão da
irredutibilidade da cosmologia xinguana ao dualismo natureza/cultura, sugerindo o
caráter contínuo e ternário, antes que descontínuo e binário, das classificações e
processos simbólicos xinguanos. A monografia sobre os Araweté (1986a, 1992a; ver
o cap. 4 desta coletânea ), em seguida, propôs uma conexão entre sociologia e
cosmologia – relações dos humanos entre si e relações entre os humanos e os sobrehumanos – que buscava passar ao largo da dualidade durkheimiana entre
instituição e representação, definindo uma configuração hierárquica complexa, mas
ontologicamente homogênea, a opor-ligar os deuses e os humanos, e
consequentemente os vivos e os mortos, os xamãs e os guerreiros, os homens e as
mulheres, os concidadãos e os inimigos. Os artigos sobre o parentesco (caps. 2 e 8)
apontaram as linhas de instabilidade que atravessam uma matriz dualista difundida
na Amazônia, insistindo na natureza triádica, concêntrica e hierárquica – antes que
diádica, diametral e equipolente – da oposição entre consanguinidade e afinidade, e
resultaram na proposição de um novo conceito, o de afinidade potencial. Finalmente,
os trabalhos sobre o perspectivismo consolidados nos capítulos 7 e 8 retomam, em
termos bem mais ambiciosos, a questão da oposição natureza / cultura, ligando-a à
antinomia moderna do relativismo e do universalismo, de modo a submeter esta
última a uma crítica propriamente etnográfica.
O outro fio condutor, este mais concreto, são os temas da pessoa e da
corporalidade, e sua conexão com uma ideia-valor característica, que chamei de
predação ontológica, e que me pareceu constituir o regime geral de subjetivação ou
personificação na maioria, senão na totalidade, das culturas da Amazônia indígena.
Minha aprendizagem etnográfica junto aos Yawalapíti concentrou-se no problema da
fabricação social do corpo e em seu recíproco, a inscrição corporal dos processos e
identidades sociais. O trabalho sobre os Araweté, embora menos centrado na
corporalidade, tratou das concepções tupi-guarani sobre a pessoa, desenvolvendo o
tema da predação ontológica e explorando seu esquema principal, o canibalismo.
Esse complexo amazônico da “predação” (assim o chamei para opô-lo
provocativamente ao complexo modernista da “produção”; hoje talvez o chamasse
por outro nome) foi igualmente o foco de meus estudos sobre a dinâmica da
afinidade (caps. 2, 3 e 4), e o horizonte para uma reelaboração teórica, ainda
incipiente, da noção de troca ou intercâmbio. Os artigos mais recentes, por fim –
aqueles sobre o perspectivismo e sobre a passagem do virtual ao atual na socialidade
indígena (caps. 7 e 8) –, tentam uma determinação da economia conceitual do
“corpo” e da “alma” nas cosmologias ameríndias.
Corpo, alma, pessoa, natureza e cultura, predação, troca, afinidade potencial,
perspectiva, estes são os nomes dos temas, ou melhor, dos conceitos que foram
surgindo em minha reflexão sobre a etnologia amazônica. Como o leitor advertirá,
tais palavras recebem sentidos cada vez mais precisos ao longo dos textos a seguir,
porque cada vez mais motivados teórica e etnograficamente, e portanto cada vez
mais diferentes de seus sentidos usuais. Esses conceitos são o resultado provisório de
um trabalho desde sempre orientado por um desiderato maior: contribuir para a
criação de uma linguagem analítica à medida (à altura) dos mundos indígenas, o
que significa dizer uma linguagem analítica radicada nas linguagens que constituem
sinteticamente esses mundos. Sua elaboração envolve forçosamente uma luta com os
automatismos intelectuais de nossa tradição, e não menos, e pelas mesmas razões,
com os paradigmas descritivos e tipológicos produzidos pela antropologia a partir de
outros contextos socioculturais. O objetivo, em poucas palavras, é uma reconstituição
da imaginação conceitual indígena nos termos de nossa própria imaginação. Em
nossos termos, eu disse – pois não temos outros; mas, e aqui está o ponto, isso deve
ser feito de um modo capaz (se tudo “der certo”) de forçar nossa imaginação, e seus
termos, a emitir significações completamente outras e inauditas. A antropologia,
como se diz às vezes, é uma atividade de tradução; e tradução, como se diz sempre, é
traição. Sem dúvida; tudo está, porém, em saber escolher quem se vai trair. Espero
que minha escolha tenha ficado clara. Quanto a saber se a traição foi eficaz, eis aí
uma questão que não me cabe responder.
Algumas palavras, enfim, sobre a dívida deste livro para com a antropologia de
Lévi-Strauss, que lhe forneceu a agenda temática e o referencial teórico principal. Os
temas, em primeiro lugar. Não é necessário recordar o papel que a noção de troca e o
valor transcendental (no sentido kantiano) concedido à aliança de casamento
ocupam na obra desse autor. Por outro lado, talvez caiba sublinhar que o tema da
corporalidade, tal como aqui elaborado, deve enormemente às análises
desenvolvidas nas Mitológicas (1964, 1966, 1967b, 1971). Ou seja, ele não é em
nada tributário da voga do embodiment hoje em curso na antropologia mundial,
pois remonta, em meu trabalho, a um período em que o “corpo” ainda estava bem
distante de ser a palavra de ordem que depois se tornou. Minha motivação foi
etnográfica, partindo da demonstração, implícita nos estudos mitológicos de LéviStrauss, de que as sociologias ameríndias formulam-se diretamente nos termos de
uma dinâmica dos corpos e dos fluxos materiais. Quanto aos temas da predação e
do perspectivismo, aqui a margem de invenção pessoal foi maior; mas eles também
podem ser vistos como uma extrapolação feita a partir do cruzamento das ideias de
afinidade e de corporalidade, ou melhor, como uma tentativa de extrair delas, e de
sua conjugação, algumas consequências etnográficas interessantes. (Vejo meu
trabalho, em geral, como tendo sido sempre o de buscar extrair todas as
consequências possíveis de certas ideias alheias, sejam elas as ideias dos índios, sejam
as dos antropólogos que escreveram sobre elas. As consequências interessam-me
infinitamente mais que as causas, porque elas permitem uma confrontação
verdadeiramente simétrica, no sentido de Bruno Latour (1991), dos pensamentos em
jogo, o nosso próprio e o alheio. Sempre que ouço um pronunciamento sobre as
causas – sob este ou outro nome, e sejam elas da natureza que forem – do
comportamento de alguém, em especial de um “nativo”, sinto como se estivessem a
lhe tentar bater epistemologicamente a carteira.)
Em seguida, o referencial teórico. A questão dos dualismos, por exemplo. O
estruturalismo é costumeiramente associado a uma dileção imoderada por
classificações dicotômicas e a uma propensão a enxergar dualidades em toda parte.
Isso é como tantos outros clichês: não está completamente longe da verdade, mas
também não chega nem perto dela. Pois é justamente na obra de Lévi-Strauss que se
acham alguns dos instrumentos mais eficazes, dentre os hoje disponíveis, para se
problematizar radicalmente – e fundamentar etnograficamente essa problematização
– os esquemas dicotômicos que formam como as muralhas de nossa cidadela
intelectual. Muitas das páginas a seguir são apenas o desenvolvimento das intuições
de Lévi-Strauss (indo talvez mais longe do que esse autor admitiria) sobre a natureza
intrínseca e deliberadamente inacabada, imperfeita, desequilibrada e assimétrica das
dualidades conceituais indígenas – a ideia, em suma, de que o real foge por todos os
buracos da malha, sempre demasiadamente larga, das redes binárias da razão; e,
ainda mais importante, a ideia de que essa fuga é ela mesma um objeto privilegiado
do pensamento indígena.
Insisto nisso porque tenho escassa simpatia pelos dós de peito dos antropólogos
pós-estruturalistas, quando anunciam a superação miraculosa de qualquer vestígio
de dualismo em seu próprio discurso, denunciando o caráter sempre ilusório,
invariavelmente maligno, e supremamente inaplicável aos mundos não ocidentais,
de tudo que cheire a uma oposição binária ou a uma estrutura. {1} Falar é fácil. Ou
melhor, falar, nesse caso, torna-se horrivelmente difícil (deve ser por isso que eles
falam tanto), pois a imaculada concepção é tão improvável no plano do espírito
como no do corpo. Estimo, ao contrário, e parafraseando uma paráfrase do mesmo
Lévi-Strauss, que os dualismos são como a história: eles levam a tudo – desde que se
saia deles. Os que começam por se instalar “fora deles” acabam, quase sempre,
voltando a eles pela porta dos fundos – e não saindo mais. Faço minhas, por isso, as
palavras abaixo, oriundas do outro referencial teórico desta coletânea, o
contrarreferencial que lhe serviu na tarefa de cartografar o exterior do estruturalismo:
a filosofia de Gilles Deleuze. Nas palavras, então, do Mil platôs:
Não invocamos um dualismo senão para recusar um outro. […] A cada momento,
são necessários corretores cerebrais que desfaçam os dualismos que não quisemos
fazer, e pelos quais passamos. Chegar, assim, à fórmula mágica que buscamos
todos: PLURALISMO = MONISMO, passando por todos os dualismos que são
o inimigo, mas o inimigo absolutamente necessário, aquele móvel que não cessamos
de mudar de lugar
(Deleuze & Guattari 1980: 31).
O estruturalismo de Lévi-Strauss não é, mas nem de longe, meu “inimigo”. Ao
contrário, foi quem me forneceu régua e compasso, estabelecendo as condições de
minha interlocução com a etnologia amazônica e com ele mesmo. Deu-me, em
suma, as armas com as quais tento medir-me com ele (à medida de minhas forças).
Mas pensando bem, talvez ele seja, sim, o meu inimigo principal, no sentido que tem
esse conceito nas socialidades amazônicas, onde designa algo perfeitamente positivo,
isto é, “absolutamente necessário”, algo que é preciso afirmar, não negar, para se
poder passar adiante. E, assim, não é apenas nem principalmente o dualismo, mas a
antropologia estrutural que se mostra, no presente livro, como aquele móvel que não
cessamos de mudar de lugar. Móvel que o leitor provavelmente constatará, no fim
das contas, ter estado sempre “imóvel e alhures”, como disse Foucault de Hegel – que
este se encontraria sempre à nossa espera, no fim do caminho por onde pensávamos
lhe ter escapado. Pois, e agora nas palavras de meu amigo Pete Gow, a etnologia
amazônica (ele estava falando da boa) pouco mais é, a rigor, que uma série de notas
de pé de página às Mitológicas.{2} O presente livro é uma dessas notas, na melhor
das hipóteses.
Mas, como se vê, não sem reclamar um pouco. Eu disse, acima, que os ensaios
aqui apresentados se aventuram no exterior do estruturalismo; tudo está no genitivo.
Não pretendo me situar em um lugar exterior ao estruturalismo, mas no exterior do
estruturalismo, no interior da dimensão de exterioridade que lhe é imanente. O que
me interessa explorar, e franquear, são os “limites internos” da antropologia
estrutural, utilizando-a positivamente para pensar o que ela mesma precisou excluir
para se constituir; e me interessa porque, ao fazê-lo, ela excluiu ou minorou certos
aspectos que estimo fundamentais do pensamento e da prática indígenas. O
pensamento selvagem não cabe todo em O pensamento selvagem. Mais exatamente, o
pensamento dos selvagens – o dos povos da selva amazônica – apresenta dimensões
de domesticação próprias, relativamente àquele pensamento em estado selvagem que
é o de todos nós (o nosso inclusive, quando não pensamos estar fazendo “ciência”).
Esse ponto é esboçado no capítulo 4 e se acha um tantinho mais desenvolvido no
capítulo 9. Ele é, por fim, um dos objetos do livro que tenho em preparação (ver
bibliografia), e do qual partes substanciais derivam dos capítulos 7 e 8 aqui
publicados. Nesse livro, advogo a necessidade de uma consideração mais atenta das
dimensões intensivas das ontologias amazônicas, isto é, dos processos de alteração
diferencial mais que das figuras da alteridade diferenciada; para dizê-lo em
pouquíssimas palavras, trata-se de esboçar uma teoria amazônica do virtual. Isso
envolve, entre outras coisas, uma rediscussão em regra da questão do contínuo e do
discreto no pensamento indígena, tema que, todos se recordam, é uma das vigas
mestras da contribuição lévi-straussiana à etnologia ameríndia. Mas isso é, todos
também podem imaginar, uma pedreira. Como não sei se terei fôlego para atacá-la,
e portanto se o dito livro chegará de fato, um dia, a ver a luz, entrego à benevolência
do leitor os capítulos aqui reunidos, e que são apenas como a promessa de uma
outra coisa.
FONTES
O capítulo 1 combina e reescreve três artigos: “Alguns aspectos do pensamento
yawalapíti (Alto Xingu): classificações e transformações”, publicado no Boletim do
Museu Nacional, 26, 1978; “Notas sobre a cosmologia yawalapíti”, publicado em
Religião & Sociedade, 3, 1978; e “A fabricação do corpo na sociedade xinguana”,
publicado no Boletim do Museu Nacional, 32, 1979. {3} O terceiro artigo é uma
espécie de apêndice ao ensaio de A. Seeger, R. DaMatta & E. Viveiros de Castro, “A
construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras”, publicado no mesmo
número do Boletim.
O capítulo 2 é uma adaptação do ensaio “Alguns aspectos da afinidade no
dravidianato amazônico”, publicado em E. Viveiros de Castro & M. Carneiro da
Cunha (orgs.), Amazônia: etnologia e história indígena (NHII-USP/Fapesp, 1993).
Porções substanciais desse ensaio foram antes retomadas em “La Puissance et l’acte:
la parenté dans les basses terres de l’Amérique du Sud”, escrito em colaboração com
Carlos Fausto e publicado em L’Homme 126-128, 1993.
O capítulo 3 foi publicado, sob o mesmo título, na Revista de Antropologia, 35,
1992. Apareceu também em francês, em A. Becquelin & A. Molinié (orgs.), Mémoire
de la tradition (Société d’Ethnologie, 1993). Ele foi escrito para esta última
publicação.
O capítulo 4 publica, com várias modificações, o artigo “Le Meurtrier et son
double chez les Araweté (Brésil): un exemple de fusion rituelle”, em M. Cartry & M.
Detienne (orgs.), Destins de meurtriers (EPHE/CNRS, 1996).
O capítulo 5 traduz e reescreve o verbete “Society”, publicado em A. Barnard & J.
Spencer (orgs.), Encyclopedia of Social and Cultural Anthropology (Routledge,
1996). Uma versão em português, com o título “O conceito de “sociedade” em
antropologia: um sobrevoo”, acha-se em Teoria & Sociedade, 5, 2000.
O capítulo 6 é uma nova versão de “Images of nature and society in Amazonian
ethnology”, publicado no Annual Review of Anthropology, 25, 1996.
O capítulo 7 combina e reescreve pelo menos dois artigos e cinco conferências.
Sua fonte principal é “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”,
publicado em Mana, 2 (2), 1996. Esse artigo foi republicado em francês, sob o
mesmo título, em E. Alliez (org.), Gilles Deleuze: une vie philosophique (Institut
Synthélabo/Les Empêcheurs de Penser en Rond, 1998). Uma versão inglesa
ligeiramente modificada, sob o título “Cosmological deixis and Amerindian
perspectivism”, apareceu no Journal of the Royal Anthropological Institute, 4 (3),
1998. A segunda fonte do capítulo é o artigo “La trasformazione degli ogetti in sogetti
nelle ontologie amerindiane”, em C. Severi (org.), Antropologia e psicologia:
interazioni complesse e rappresentazione mentali [número temático de Etnosistemi
[Processi e dinamiche culturali], VII (7), 2000], o qual, por sua vez, provém de
comunicações lidas em simpósios em Manchester (1998) e Chicago (1999). A
terceira fonte são as conferências ministradas no Departamento de Antropologia da
Universidade de Cambridge, sob o título geral de “Cosmological perspectivism in
Amazonia and elsewhere”, em fevereiro-março de 1998. Por fim, o capítulo traz
alguns parágrafos originalmente lidos na Conferência Munro intitulada “Relativism,
cultural and otherwise: a view from Amazonia”, proferida na Universidade de
Edimburgo em fevereiro de 1998.
O texto que está na origem do capítulo 8 foi escrito para um Festschrift em
homenagem a Peter Rivière. Ele acaba de ser publicado ali, sob o título “GUT
feelings about Amazonia: potential affinity and the construction of sociality” (L. Rival
& N. Whitehead [orgs.], Beyond the visible and the material: the amerindianization of
society in the work of Peter Rivière, Oxford University Press, 2001). Uma versão em
português, sob o título “Atualização e contraefetuação do virtual na socialidade
amazônica: o processo do parentesco”, apareceu antecipadamente em Ilha-Revista de
Antropologia, 2 (1), 2000. O capítulo 8 traz correções e acréscimos substanciais em
relação a essas duas versões anteriores (já diferentes entre si), incorporando vários
parágrafos do livro em preparação.
O capítulo 9 deve ser publicado em espanhol, na coletânea Chamanismo y
sacrificio organizada por J.-P. Bouchard e J.-P. Chaumeil (IFEA / CAAP, Lima). Ele
deriva de uma comunicação apresentada ao simpósio de mesmo título e mesmos
organizadores, realizado em abril de 2000, em Paris.
O capítulo 10, por fim, reproduz uma entrevista publicada na revista Sexta Feira
(nº. 4, 1999).
As referências bibliográficas utilizadas são, no que respeita à língua, quase sempre
as originais. Igualmente, a tradução de todas as citações de obras estrangeiras são de
minha lavra, com exceção apenas, creio, de uma passagem de Marx (traduzida de
uma versão em inglês) no capítulo 7. No capítulo 3, decidi manter, para guardarlhes o sabor, as citações dos autores quinhentistas e seiscentistas em sua língua e
grafia originais, com exceção do livro de Claude d’Abbeville, citado segundo a
tradução de Sérgio Milliet que eu tinha à mão, e o de Hans Staden, citado na
tradução de G. de Carvalho Franco.
As referências e remissões bibliográficas utilizam a data da publicação original
(ou, mais raramente, de uma edição posterior quando esta traz modificações
substanciais). As indicações de paginação, contudo, remetem às edições utilizadas por
mim. O leitor poderá facilmente fazer a correspondência na bibliografia ao final do
volume, onde à data original citada no texto se segue a data da edição utilizada.
AGRADECIMENTOS
No início de cada capítulo, as circunstâncias de produção do texto ou textos originais
estão consignadas, e as dívidas intelectuais imediatas de cada um deles, reconhecidas.
Não obstante, quero agradecer, ou voltar a agradecer, a algumas pessoas. Em
primeiro lugar, a meus mestres Luiz Costa Lima e Roberto DaMatta, Paru e
Pirakumã, Toiyi e Iwãkãñi. Sem eles eu não teria, ou escolhido a profissão de
antropólogo, ou ido trabalhar na Amazônia, ou conseguido achar meu rumo entre
os livros (para os dois primeiros) e as sabedorias yawalapíti e araweté (para os
quatro últimos). A eles, minha admiração e gratidão profundas.
Em segundo lugar, agradeço a meus alunos (hoje colegas) Tânia Stolze Lima,
Aparecida Vilaça, Márcio Silva, Marcela Coelho de Souza, Carlos Fausto, Marco
Antônio Gonçalves, Márnio Teixeira-Pinto e Vanessa Lea. Graças à sua paciência,
inteligência e experiência, pude ter, testar, corrigir, modificar inúmeras vezes as ideias
aqui expostas. Eles são cúmplices, ainda que eventualmente recalcitrantes, de tudo o
que segue.
Por fim, agradeço a Bruce Albert, Manuela Carneiro da Cunha, Philippe Descola,
Peter Gow, Michael Houseman, Stephen Hugh-Jones, Tim Ingold, Bruno Latour,
Claude Lévi-Strauss, Cecilia McCallum, Patrick Menget, Joanna Overing, Peter
Rivière, Marshall Sahlins, Anthony Seeger, Marilyn Strathern e Anne Christine Taylor.
Manuela, Philippe, Pete, Michael, Bruno, Tony, Marilyn e Anne Christine foram
interlocutores especialmente presentes, em ocasiões diversas e cruciais. Mas o
trabalho de todos eles tem tido uma importância literalmente inestimável para o
meu. Foi graças a esses colegas que comecei e que continuo a ver a antropologia
como uma aventura intelectual emocionante. E foi apenas por causa de sua
inspiração, exemplo e generosidade que os textos que compõem este livro puderam
ser escritos.
1. Advirto assim, e por exemplo, que a exposição de todo o argumento do capítulo 5
em termos de bipolaridades conceituais foi uma pirraça deliberada de minha parte e
não um atavismo inconsciente de “estruturalista”.
2. O que faria de Lévi-Strauss, não nosso Hegel, mas nosso Platão – já que a tirada
de Gow parafraseia a célebre frase de Whitehead sobre a filosofia ocidental.
3. As referências completas desses e dos artigos a seguir estão na lista de publicações
do autor, ao final do volume.
CAPÍTULO 1
Esboço de cosmologia yawalapíti
A Paru, in memoriam
Este artigo expõe algumas noções cosmológicas dos Yawalapíti, um povo aruaque
do Alto Xingu. {1} Principiando pela análise de um aspecto marcante da prática
classificatória indígena, ele discorre sobre a conceituação dos seres vivos, sobre a
lógica do sensível que subjaz ao regime alimentar dos humanos e sobre os processos
de fabricação e metamorfose corporal.
Modos do ser
Um traço muito saliente do estilo de categorização yawalapíti consiste na afixação de
certos modificadores aos conceitos-base. Não tenho competência para abordar as
dimensões propriamente linguísticas desse fenômeno, nem elementos para avaliar
sua eventual ocorrência pan-xinguana; ainda assim, julgo ser útil chamar a atenção
para o emprego extensivo de tais morfemas em yawalapíti, e temo ser inevitável
arriscar uma interpretação de seu significado.
Quando eu pedia a meus interlocutores que classificassem uma entidade qualquer
(um objeto, um animal, uma qualidade, as funções e relações portadas por um dado
indivíduo), isto é, quando buscava subsumir um referente em uma classe mais geral,
as respostas, quase sempre, levavam-me a inferir que existiam distinções cruciais
dentro do paradigma denotado pela categoria. Tudo parecia se passar como se a
língua (ou a cultura) dispusesse de um repertório fechado de conceitos puros ou
ideais, e como se a adequação de um referente qualquer a tais conceitos só fosse
possível através de dispositivos semânticos – esses que chamo de modificadores –
cuja função seria estabelecer a distância metonímica ou a diferença metafórica entre
protótipo ideal e fenômeno atual. Ou, dito de outra forma, como se as categorias
classificatórias só pudessem ser proveitosamente acionadas através de afixos que
indicam o modo de pertinência do referente à classe.
Quatro modificadores parecem-me desempenhar essa função no discurso
yawalapíti: -kumã, -rúru, -mína e -malú. Eles são quase sempre pospostos aos
nomes. Assim, a classe zoológica úi, “cobra”, é passível de se especificar em: úi-tyumá
(um alomorfe de -kumã), cobras-espírito; úi-rúru, cobras venenosas; úi-mína,
animais semelhantes às cobras; úi-malú, cobras não-venenosas. Tais divisões não
são subclasses, mas formas de ajustar o taxon a casos concretos. Certa feita, um
homem censurava os Waurá por comerem poraquê. À minha questão: “mas
poraquê não é peixe (kupáti)?”, respondeu: “não, é cobra (úi)”.{2} Retorqui: “cobra
mesmo?”, ao que ele replicou: “não, só úi-mína”. Os modificadores são encontrados
em uma variedade de áreas semânticas; eles definem as formas culturalmente
reconhecidas de relação entre os conceitos gerais e os indivíduos por eles classificados.
Um exame de seu significado pode talvez, por isso, aproximarnos de uma atitude
cognitiva fundamental da cultura alto-xinguana.
Os Yawalapíti traduziram-me os modificadores de modo mais ou menos
constante. A classe úi, por exemplo, foi dividida em: cobras “grandes, bravas,
invisíveis” (-kumã); cobras “de verdade” (-rúru); cobras “imprestáveis, ruins” (malú); “bichos parecidos com as cobras” (-mína). Os modificadores, portanto,
designam respectivamente o “excessivo”, o “autêntico”, o “inferior” e o “semelhante”.
Essas relações complexas envolvem uma oposição entre forma e essência, segundo
um princípio de gradação entre tipo e indivíduo. Os sufixos constituem, ademais, um
sistema de oposições flexíveis; em vários casos, um contraste diádico subsume as
outras relações residualmente: ora -kumã opõe-se a -rúru como o “monstruoso” ao
“perfeito”, ora -kumã é o “arquétipo” por contraste com -mína como o “existente”, e
assim por diante. A análise de cada modificador requer uma consideração dos
valores que ele assume no sistema total.
Dois modificadores são especialmente produtivos: -kumã, cujo sentido mais
marcado parece-me ser o de “equivalente sobrenatural”, e -mína, que se poderia
glosar por algo como “análogo a um modelo por participação substancial neste”.
Tanto a sobrenaturalidade de -kumã quanto a analogia participativa de -mína,
porém, ordenam-se segundo múltiplos critérios e condensam significados
aparentemente díspares.
O SUPERLATIVO -KUMÃ
O sufixo -kumã (fem. -kumálu) aplica-se, em geral:
[1] à maior espécie de uma ordem animal: kutipíra-kumã é a harpia, o maior
dos pássaros (kutipíra); kupáti-kumã são a pirarara e o jaú, os maiores peixes
(kupáti) da região.
[2] a certas espécies ou variedades de seres vivos, classificadas por derivação de
outra: iru (tracajá) e iru-kumálu (jaboti), ou áwtu (caititu) e áwtu-kumã (queixada).
Não me está claro se as espécies marcadas por -kumã são necessariamente maiores
que as não-marcadas; no caso das plantas, não parece haver sempre proximidade
taxonômica (botânica) entre as classes distinguidas pela afixação de-kumã, ao
contrário dos dois exemplos zoológicos acima.
[3] a seres e objetos que estão fora do espaço e do tempo locais, como os animais
vistos por alguns xinguanos nos zoológicos do Rio e São Paulo ou, mais geralmente,
quaisquer espécies exóticas, quase sempre classificadas pela anexação de -kumã ao
termo para uma espécie nativa vista como análoga; ou, ainda, a posições de
parentesco geracionalmente afastadas, como os bisnetos e demais descendentes, que
são ipuyáka-kumã (neto-kumã).
O boi e o cavalo são tsöma-kumã, antas-kumã; awayúlu-kumã (raposa-kumã) é
o cachorro; a girafa é um cervo-kumã. E mais: putáka (aldeia)-kumã é a cidade;
waráyu-kumã são os índios (warayu) não-brasileiros; öuyá-kumã é o mar,
“lagoa grande”. Yawalapíti-kumã é o grupo semilendário de Yawalapíti que se
separou dos atuais durante uma migração, indo morar nas cabeceiras do
Kuluene; são invisíveis até hoje. Na literatura etnológica são chamados de
Agavotoqueng, palavra caribe que traduz exatamente a autodesignação dos
Yawalapíti: Agav-oto corresponde a Yawala-píti (a tradução do primeiro termo é
algo como “donos [da aldeia] dos tucuns”, a do segundo, “lugar [aldeia] dos
tucuns”), e -queng ou -kuegi é o correspondente caribe de -kumã.
[4] a seres espirituais correspondentes a seres reais-atuais: yanumáka-kumã é a
onça sobrenatural; iishá-kumã, a canoa monstruosa dotada de animação, que figura
em um mito; pitöpo-kumã, o bem-te-vi espiritual patrono dos xamãs.
[5] a todos os seres e coisas que figuram nos mitos: descritos pelo termo comum,
quando eu perguntava se tal ou tal entidade era “a mesma que” ou “como a que”
vemos hoje, respondiam-me: “não, é (X)-kumã”.
No sentido [1], -kumã foi-me traduzido por “grande”. Em [2], apenas por “outro”.
Em [3], o significado coincide em parte com o anterior, e, como veremos, com o de
[5]; sua tradução mais comum foi “longe”. Em [4], a glosa foi “apapalutápa” ou, no
caso de alguns interlocutores, diretamente sua tradução portuguesa, “espírito”. Ambas
as palavras quase sempre implicavam algum predicado antropomórfico. Em [5],
por fim, eu diria simplesmente que é mítico. Muitas vezes há ambiguidade entre os
sentidos: kutipíra-kumã é a harpia, animal empírico, mas é também o urubu
bicéfalo, ave-espírito senhora do céu; kupáti-kumã é a pirarara, e também qualquer
peixe sobrenatural; ayöma-kumã é tanto a girafa do zoológico carioca como o veado
do mito.
Quando eu perguntava simplesmente a alguém o que significava o termo “(nome
do animal)-kumã”, a resposta mais comum era: “bicho bravo, valente, grande, que
ninguém vê”. Esse modificador articula, assim, vários atributos: ferocidade,
tamanho, invisibilidade, monstruosidade, alteridade, espiritualidade, distância. O
importante, aqui, é que eles se superpõem em larga medida. A noção mesma de
“espírito” parece radicar-se no sentido deste modificador.
A sufixação de -kumã a um conceito-tipo marca uma alteridade do referente face
à essência do tipo. Essa alteridade é exterioridade, mas também excesso. Um excesso
que, esquematizado pelas imagens da ferocidade e do tamanho (-kumã é o “grandeoutro”, com a licença de Lacan), parece condensar os dois significados contraditórios
do modificador: ele indica o diferente, mas também o arquetípico. O Outro é o
Próprio, e vice-versa. Como se estivéssemos diante destas duas proposições: todo
modelo apresenta uma superabundância ontológica; toda superabundância é
monstruosamente outra.
Quando -kumã significa espiritual ou monstruoso, opõe-se às coisas-rúru,
autênticas ou “propriamente ditas”. Mas quando ele significa grande ou arquetípico,
opõe-se às coisas-mína, que definem o existente como réplica enfraquecida de um
modelo mítico: as personagens dos mitos são eminentemente -kumã neste sentido
específico. Alguns interlocutores me disseram que os animais originários eram
demasiado grandes e ferozes, e que, no início do tempo histórico, todos eles foram
mandados embora do Xingu pelos gêmeos Sol e Lua: “eles estão na África; aqui só
ficou a onça”.{3}
A analogia entre os diversos significados de -kumã – grande, outro, feroz,
invisível, distante – ilumina o fundo cosmológico desse modificador. Há interseções
entre o mundo da experiência cotidiana e a esfera das coisas-kumã por excelência,
que são os espíritos e os seres míticos; há animais e (coisas) -kumã que são
experiencialmente ordinários, e seres-kumã que são apapalutápa, entidades
extraordinárias: “espíritos”. O mundo como um todo parece dispor-se entre um polo kumã, cosmologicamente exterior, e a região das entidades -rúru, -mína ou -malú,
modos diversos da interioridade cosmológica. “Real” e “imaginário” não são noções
que façam qualquer sentido nesse contexto; a oposição relevante é entre as coisas
superlativas, originais, arquetípicas e / ou monstruosas, e as coisas próprias,
autênticas e atuais, mas que são também réplicas minoradas dos modelos.
O CLASSIFICADOR -MÍNA
Esse modificador é mais difusamente empregado.
[1] como um operador de inclusão classificatória, ou generalizador: kutipíramína são os animais alados (kutipíra, “ave”); atatapá-mína são as plantas de que se
utilizam as raízes (atatapá, “raiz”); nesta acepção, o sufixo significa algo como “do
gênero de”, “uma sorte de”.
[2] para distinguir as entidades ou relações que, pertencendo a uma dada classe,
não são exemplares perfeitos, integrais, do modelo da classe: úi-mína, como vimos, é
o poraquê, que apenas parece com uma cobra; úa-mína é um tio materno
classificatório; amulaw-mína, um líder que não preenche todos os critérios definidores
do estatuto, ou que não desempenha plenamente suas funções; putáka-mína são os
Suyá, Juruna, Kayabí e Trumai, povos que, embora diferentes dos alto-xinguanos
(putáka),{4} estabeleceram-se na região há algum tempo e mantêm laços de
parentesco com estes últimos. Nesta acepção, o sufixo conota as ideias de “parecido
com”, “quase”, “forma mais fraca de”.
Os Txukarramãe, entretanto, são warayu-rúru, “índios [não-xinguanos] de
verdade”, isto é, realmente ferozes e selvagens. {5} Note-se que warayu-kumã são
os “outros selvagens” – os chineses, os japoneses, os Iatmul e Nuer que meus
interlocutores viam nos livros que levei ao campo. Os fotógrafos e turistas
japoneses que visitaram o Alto Xingu, contudo, foram-me também classificados
de putáka-kumã, termo que eu traduziria por “outros nós” ou “super-xinguanos”.
Os demais alienígenas de aparência ocidental, como os antropólogos norteamericanos e europeus, estes eram karaiba-kumã, “outros não-índios” ou “superbrasileiros”…
[3] como integrante de expressões que descrevem estados ou condições da pessoa,
como em katúpa-mína, “tristeza”, kaputsaká-mína, “pele avermelhada pelo urucum”,
ou ahí-mína, “cheiro do corpo após relações sexuais”.
[4] há outra ocorrência da forma /mína/, cuja assimilação às anteriores não é
evidente. A palavra mína-tíji foi-me proposta como a tradução do português “corpo”,
e dita aplicar-se aos seres humanos ou a qualquer animal; -tíji parece ser uma
partícula reflexiva ou enfática. Não tenho certeza de que o /mína/, neste caso, seja o
mesmo -mína dos exemplos precedentes. Sua anteposição ao -tíji e seu
funcionamento aparente como substantivo militariam contra uma assimilação ao
sufixo -mína. Entretanto, a existência de uma forma feminina, tápa-tíji, que designa
o corpo das fêmeas, sugere uma aproximação entre esta ocorrência da forma /mína/
e o modificador. O argumento depende de se aceitar a segmentação do termo
apapalutápa, “espírito”, em /apapálu/ + /-tápa/, onde o primeiro segmento seria o
mesmo termo apapálu que designa as flautas jacuí, instrumentos que são,
efetivamente, a manifestação modelar da espiritualidade alto-xinguana. {6} Nesse
caso, os espíritos em geral seriam “espécies de” apapálu. Esta última palavra é
gramaticalmente feminina; sua modificação pela forma feminina de um */mína/
sufixado sugeriria que o modificador -mína dos casos [1], [2] ou [3] pode conhecer
uma flexão idêntica à do /mína/ em mína-tíji.{7}
Se o que precede está correto, não seria descabido postular uma conexão entre o mína nos empregos de tipo [1], “pertencente à classe X”; de tipo [2], “exemplar
imperfeito de X”; de tipo [3], “no estado corporal X” (a tristeza, katúpa, deveria, nesse
caso, ser concebida como um estado somático, não psíquico); e, finalmente, de tipo
[4], o /mína/ que integra a palavra para “corpo”. Uma tradução de -mína por
“corporificação da substância X” talvez desse conta do sentido geral do modificador, se
entendermos a participação substancial como nexo metonímico. E, de fato, pode-se
dizer que -kumã corresponde à metáfora, e -mína, à metonímia. {8}
Na acepção [1], -mína indica a pertinência plena do referente a uma classe,
opondo-se a -malú, modificador que indica ser o referente um exemplar inferior do
tipo. Por exemplo, ipuñöñöri-mína é “homem bom” (mais propriamente, “pessoa de
bem”), e ipuñöñöri-malú são aqueles indivíduos que “não sabem falar”, ou que são
egoístas, agressivos e antissociais – que são o oposto dos aristocratas, os
amulawnaw. Aqui, portanto, -mína inclui positivamente o indivíduo enquanto
exemplar de um tipo-ideal.
Em minha dissertação (Viveiros de Castro 1977), examino essa forma de
classificação das pessoas, especialmente os atributos do amulaw, “capitão”, i. e.
chefe ou aristocrata. Observo que ipuñöñöri-malú é o antônimo de amulaw, mas
que nem todo ipuñöñöri-mína é um amulaw, embora a recíproca seja idealmente
verdadeira. Por fim, “homem mau, ruim” é mipuñöñöri-tári, lit. “não-gente”. Dos
homens-malú para os não-homens trata-se, portanto, de uma questão de grau.
Ipuñöñöri-mína poderia ser traduzido, segundo a acepção [1], por “da espécie
humana”; segundo a acepção [2], por “próximo ao tipo ideal de pessoa”.
Significativamente, ipuñöñöri-rúru é um sinônimo de ipuñöñöri-mína, opondose, aqui, tanto às “não-gentes” como aos ipuñöñöri-kumã, espíritos
antropomorfos genéricos que soem habitar as lagoas do Alto Xingu.
No sentido [2], o mais generalizado, -mína funciona como o operador básico do
estilo classificatório yawalapíti. Ele é aqui um marcador minorativo, indicando a
distância escalar entre o objeto classificado e o tipo-ideal que preside a classificação.
Nesta acepção, ele se opõe a -rúru, “autêntico” ou “próprio”, invertendo, curiosamente,
o sentido [1]. As coisas-mína são coisas que se enquadram apenas em parte no
modelo, ao passo que as coisas-rúru mostram adequação plena: itutaká-rúru é um
irmão “real”, filho do mesmo pai e/ou mesma mãe que Ego; itutaká-mína, todos os
parentes paralelos (e dependendo do contexto, também os cruzados) da geração de
Ego, a quem se aplicam, atenuadas, as mesmas regras de relacionamento. O
próprio, -rúru, pode ser concretizado pelo qualificativo utúna, “muito”. O quase, mína, por pahítsi, “pouco”, parúti, “metade”, ou ihöwku, “longe”.{9}
Na verdade, porém, é possível argumentar a favor de uma superposição dos
sentidos [1] e [2]. Os membros de uma espécie são sempre exemplares imperfeitos,
réplicas ou cópias do Arquétipo, o qual é frequentemente encarnado em um ser
mítico. A totalidade dos entes, em certo sentido, é sempre -mína por oposição aos
modelos, os seres-kumã. O modificador -rúru, por sua vez, fica a meio caminho:
define aquelas coisas, dentre as atualmente existentes, que tendem ao modelo
representado pelos seres-kumã, os quais, por sua vez, tendem a hipertrofiar-se em
monstros. O modelo, a arquetipia, o excesso e a monstruosidade, por um lado; a
réplica, a atualidade, a carência e a inferioridade, por outro. O sistema se dispõe entre
dois polos, o dos seres-kumã e o dos seres-malú: monstros perfeitos versus
simulacros imprestáveis, passando pelas coisas-rúru, adequadas ao modelo, e as
coisas-mína, próximas ao modelo.
Um exemplo de variação no uso dos modificadores conforme as exigências do
contexto seria a categoria kutipíra, ave. Kutipíra-mína é, em geral, todo animal
alado, e kutipíra-kumã, como já referi, a harpia. No entanto, ouvi, em certo
passo, a expressão kutipíra-rúru, que me foi traduzida por “passarinhos de
verdade”, designando não os passeriformes, mas as aves rapaces e carniceiras,
entre as quais se acha a harpia. Neste contexto, kutipíra-mína limitava-se à
significação de “passarinho pequeno” (os passeriformes, mas também os
psitacídeos etc.), e kutipíra-kumã, consequentemente, foi traduzido apenas por
“passarinho-espírito”. No domínio dos peixes – outro exemplo –, o poraquê é úimína, pseudocobra, ou kupáti-parúti, meio peixe; já a arraia é kupáti-malú,
peixe imprestável ou peixe impróprio, por oposição aos kupáti-rúru, os peixes de
escama, e, neste contexto, a maioria dos de couro; kupáti-kumã passam a ser
apenas os peixes-espíritos. A possibilidade de se desdobrar uma oposição diádica
(-mína/-kumã, -rúru/-malú) de acordo com as exigências de especificação indica
que o sistema dos modificadores não está colado a taxonomias cristalizadas.
O SISTEMA DOS MODIFICADORES
Em outro texto (Viveiros de Castro 1977), tive ocasião de me referir à difusão das
noções de “muito” e “pouco” na atribuição de identidades grupais, na classificação dos
graus de chefia (amulaw) e na ordenação das relações de parentesco yawalapíti. O
livro de Thomas Gregor sobre os Mehináku, publicado em 1977, chama atenção
para esse mesmo ponto (ver caps. 17 e 18). {10} Na verdade, a classificação por
gradientes de distância relativa a um tipo não se aplica apenas às relações sociais: ela
parece caracterizar um traço geral da cultura yawalapíti, que se exprime no uso
frequente do modificador -mína. Tal estilo cognitivo contínuo e escalar é consistente
com uma organização socioespacial marcadamente concêntrica (ver Lévi-Strauss
1956) e com a ausência de qualquer separação radical entre as esferas da Natureza e
da Cultura.
Uma palavra adicional sobre os dois modificadores restantes. O sufixo -rúru,
autêntico ou legítimo, contrasta em alguns contextos diretamente com -malú, falso,
imperfeito ou inferior. Apenas a grande casa do putáka wököti, o “dono da aldeia” ou
representante grupal, é pa-rúru, “casa de verdade”; as demais são pa-malú. {11} Ou
ainda, dentro da tipologia dos gêneros de fala (Gregor 1977: 76 e ss), distingue-se
entre yayakatualhí-rúru, “fala verdadeira” – o discurso formal do chefe, pronunciado
no centro da aldeia, ou qualquer mensagem linguística que exprima adequação ao
modo de ser xinguano –, e yayakatualhí-malú, “fala ruim”, expressão que qualifica
os rumores e mexericos, próprios da casa e das áreas periféricas da aldeia. Mas são
também fala-malú o balbucio de crianças pequenas, as brincadeiras verbais
(normalmente de cunho sexual) entre primos cruzados, e o discurso agressivo dos
feiticeiros. O sufixo -malú costuma ser aplicado a objetos e seres que “não são” ou
“não fazem” conforme seu protótipo. No exemplo já utilizado, as úi-malú são as
cobras sem veneno; o modificador não conota necessariamente, assim, a ideia de
perigo ou malignidade, mas sempre a de imperfeição.
A estrutura do sistema, em suma, pode ser visualizada de dois modos:
Figura 1.1. Contrastes entre os modificadores
Se levarmos em conta que, na verdade, os modificadores se ordenam em uma escala
contínua, das subcoisas às supercoisas, teríamos também:
Figura 1.2. Escala dos modificadores
Com uma descontinuidade mais marcada entre -kumã e -rúru, que podem, recordo,
opor-se diametralmente como sobrenatural a atual: -rúru passa a subsumir a
essência dos seres não-kumã, funcionando como limite superior de -mína e -malú.
O esquema é bastante produtivo. Os animais terrestres, como veremos, são
chamados de apapalutápa-mína, em contraste com os apapalutáparúru, os
espíritos propriamente ditos. Como os espíritos são os seres-kumã por excelência,
teríamos então um kumã-mína, um kumã-rúru e, no limite, um kumã-kumã:
deve haver, aventou-me alguém uma vez, muitos apapalutápa-kumã, isto é,
espíritos-kumã no Rio de Janeiro.
Para concluir esta introdução, observo, em primeiro lugar, que o esquema cognitivo
acima descrito repercute no ethos yawalapíti. As coisas-rúru e, sobretudo, as coisaskumã, no sentido de sobrenaturais, são objetos do kawíka, “respeito” ou “medo”. Em
geral, quanto mais próximo algo está de seu modelo, mais forte e definida é a atitude
face ao ente ou à relação em causa.
Em segundo lugar, seria instrutivo comparar o modelo aqui proposto com a
quadripartição que Ellen Basso (1973:17-26) estabelece para os Kalapalo, baseada
nos critérios da “metáfora humana” e do “sufixo de posse”. Embora um esquema
fundado em oposições discretas, como esse de Basso, não me pareça dar conta do
caráter essencialmente contínuo das classificações xinguanas, ele cobre aspectos
importantes que não tenho condições de abordar, como a das relações implicadas nos
afixos de posse. Lembro, ainda, que o modificador -kumã foi atestado para línguas
xinguanas não-aruaque; ele corresponde ao /kuegi/kalapalo (Basso op. cit.) e ao
/aruwiyap/ kamayurá (Agostinho 1974a). Não há informações sobre os outros
modificadores nessas línguas. O trabalho de Gregor (1977) sobre os Mehináku,
falantes de aruaque como os Yawalapíti, além de indicar o mesmo uso de -kumã,
registra um equivalente de -rúru, -waja, e o mesmo -malú. Quanto ao cognato de mína, -mune, morfema que Gregor estima “de significado complexo”, este é glosado
como “substancial”, solução que me soa demasiado restritiva, mas certamente
apropriada. O problema do autor ali (id. ibid.: 321) é traduzir apapãiyei mune, em
yawalapíti apapalutápa-mína, isto é, “animal terrestre”. Como já indiquei, o termo
certamente significa “espírito-mína”, e as conclusões que se podem tirar disso são
diferentes das de Gregor.
Estou ciente, por fim, de que a existência dos modificadores não é de modo algum
exclusiva dos Aruaque (e/ou demais povos) do Alto Xingu. Não pretendo isolar um
recurso linguístico provavelmente universal para torná-lo distintivo dessa região. Os
Suyá, por exemplo e para não irmos muito longe, bem como muitos outros povos
Jê, possuem algo semelhante (Seeger 1974; com. pess.). {12} A questão é antes a da
prevalência de uma cosmologia de tipo continuísta ou concêntrico no Alto Xingu; o
uso sistemático e frequente dos modificadores em yawalapíti foi aqui tomado apenas
como via de aproximação a essa característica.
DOIS ADENDOS A ESTA EDIÇÃO
[1] Haveria uma outra maneira de esquematizar o sistema formado pelos sufixos
modificadores. Combinando as propriedades dos dois diagramas precedentes, ela
interpreta esse sistema como uma realização da estrutura discutida no capítulo 8
infra, que sugiro ao leitor consultar:
Figura 1.3. Os momentos da ontologia yawalapíti
A linha que desce descreve o processo de atualização e corporificação dos
existentes, e aquela que sobe, o movimento contraefetivo de sua virtualização ou
“espiritualização”. O estado-kumã do mito, regime de alteridade absoluta ou de
alteração perpétua, distingue-se globalmente do estado-mína característico do mundo
histórico (a que o estado-outro dá origem e acompanha como seu fundo virtual),
onde vigoram a semelhança relativa e a identidade transitória. O ritual, figura do
mundo histórico, seria entretanto o momento onde o coletivo humano (-mína)
reaproxima-se ao máximo (-rúru) dos sucessos míticos, perante o qual, por sua vez,
a vida cotidiana (-mína) é avaliada como ontologicamente inferior (-malú).
[2] Quando da redação deste ensaio, em 1977-78, eu desconhecia o trabalho
pioneiro de Kenneth Kensinger sobre os modificadores cashinahua (Pano) kuin,
kuinman, kayabi e bemakia, os quais não deixam de apresentar analogias com a
série yawalapíti. {13} A convergência entre o tipo de problema de Kensinger e o aqui
esboçado merece registro; quando mais não seja, para assinalar a diferença entre
uma análise baseada no conhecimento seguro do vernáculo indígena, como é o caso
daquele autor, e outra que partiu, muito ingenuamente, de fragmentos de conversas
em português sobre uma língua que jamais cheguei a articular.
Desde então, os modificadores cashinahua deram, sem trocadilho, muito pano
para manga. Patrick Deshayes e Barbara Keifenheim, em um livro de 1994,
dedicam-lhes ao menos sessenta páginas de discussão, propondo uma interpretação
que discrepa da de Kensinger em aspectos importantes. {14} Não tenho, obviamente,
condições de me pronunciar sobre a maior correção dessa exegese. Seja como for, a
análise de Deshayes e Keifenheim permitiria correlacionar (bastante imperfeitamente,
por certo) as séries cashinahua e yawalapíti da seguinte maneira: kuin, que os
autores traduzem por “Eu” (ou “si-mesmo”, Soi), corresponde a -rúru; bemakia, o
“Outro”, assemelha-se ao -kumã; kuinman, o “não-Eu” (non-Soi), a -malú; e kayabi,
o “não-Outro”, ao -mína. Tal correlação, porém, minimiza o componente gradativo e
contínuo da série yawalapíti.
Para o Alto Xingu, Bruna Franchetto (1986) apontou os paralelos e, sobretudo, as
lacunas e discrepâncias entre a série yawalapíti e seus possíveis análogos kuikúro
(Caribe). À parte a recorrência do contraste entre os equivalentes de -kumã e -rúru,
nenhuma forma correspondente a -mína existe em kuikúro; uma ausência,
certamente, crucial, que limita a produtividade de qualquer extrapolação panxinguana com base exclusiva nessa singularidade linguística. Para os Waurá, de
língua aruaque como os Yawalapíti e os Mehináku, as pesquisas iniciais de
Aristóteles Barcelos Neto (1999: 74, 98-100, 2000) tendem a confirmar esta análise
dos modificadores yawalapíti; o autor glosa o sufixo -müna (yaw. -mína) por
“ordinário” e “visível”, em contraste com os seres-kumã, extraordinários e invisíveis.
Para as línguas jê setentrionais, a extensa revisão etnográfica de Marcela Coelho
de Souza (2002) discute o funcionamento dos qualificativos kumrem, dzwoy, kaàk e
kaigo,{15} bastante utilizados, por exemplo, na modalização do cálculo de
parentesco. Eles foram em geral traduzidos, respectivamente, por “verdadeiro”,
“autêntico”, “fictício” e “inautêntico”, e tidos por parcialmente redundantes (dois a dois).
A autora sugere, ao contrário, que eles talvez formem ao menos dois pares nãoredundantes de oposições, um de tipo discreto e categórico, o outro de tipo contínuo e
casuístico, o que evoca o sistema cashinahua tal como analisado por Kensinger. {16}
Ainda mais ignorante andava eu, enfim, de uma abordagem linguístico-cognitiva
então na vanguarda, a chamada “teoria dos protótipos” de Eleanor Rosch, que
lançou um desafio formidável à teoria clássica ou aristotélica da categorização (ver o
balanço em Lakoff 1987). Estivesse mais bem informado, poderia ter sugerido que
os Yawalapíti desenvolveram uma etnoteoria dos protótipos muito antes de Rosch…
Mas penso que o interesse antropológico pela gradação categorial, fruto do
desconforto diante da hegemonia de uma concepção excessivamente discretiva e
“totemicista” da razão classificatória – ou de uma concepção excessivamente
classificatória da razão – era algo que se disseminava amplamente na atmosfera
teórica de então. Donde, com certeza, minha atenção a esse aspecto do pensamento
yawalapíti. {17}
Tipos de seres
Os modificadores yawalapíti desempenham papel importante na classificação dos
seres vivos; -mína caracteriza as espécies ou gêneros de certas ordens animais, e kumã define a essência dos espíritos, apapalutápa. Homens, animais e espíritos são
os polos principais de uma macrotaxonomia que passamos a expor. {18}
Os Yawalapíti propuseram-me uma noção geral, yakawaká, como tradução
para o português “coisas” – os entes e objetos do mundo. As principais subdivisões
são: apapála, bens; e ipúla, os seres vivos, que, embora sejam “teoricamente”
yakawaká, nunca são designados por este termo. {19} Ipúla inclui os humanos, certas
ordens animais e vegetais. Os espíritos são problemáticos: alguns interlocutores os
classificaram como ipúla, ressalvando que são invisíveis; outros os puseram à parte.
Note-se que certas entidades inanima-das também podem assumir um caráter
espiritual ou sobrenatural (quando são marcadas por -kumã).
Mas ipúla também se aplica a itens como “peixe sem assar, pau verde”; refere-se,
portanto, a objetos ainda não transformados pela atividade humana, ou que estão
“vivos” em um sentido particular: crus. Ipúla se diz ainda do alimento em estado
potencial. Tudo indica, assim, que não há um conceito exatamente coextensivo à
nossa noção de “seres vivos”.{20}
O traço mais saliente da taxonomia yawalapíti do que chamaríamos seres vivos
é a ausência de separação categórica entre os humanos e demais animais. Não existe
um conceito correspondente à nossa noção de “animal (não-humano)”; é impossível,
portanto, fazer a Natureza corresponder a uma ideia geral de animalidade, como
seria o caso, ao contrário, dos Suyá, que opõem mbru, “animal”, e me, “humano”
(Seeger 1974: 22). As principais distinções que se me apresentaram no domínio dos
ipúla foram as seguintes: ipuñöñöri (“gente”, ou humanos); apapalutápa-mína
(animais terrestres; os Yawalapíti traduziram o termo por “bichos”); kutipíra-mína
(aves); kupáti (animais aquáticos, categoria que, além dos peixes, inclui pelo menos
um quelônio, o tracajá); e pátshi, plantas cultivadas (as plantas selvagens foram-me
descritas pela expressão ipúka-pira, “crescem sozinhas”). {21} Outras categorias que
recortam o domínio são utö (“bichos da terra molhada”), aplicada a uma variedade
de insetos, e yúlu-yúlu (“bichinhos que voam”). Não há taxon para “inseto” ou
similar; e é importante ressaltar que muitos animais não estão incluídos nesse nível
mais geral de contraste. {22}
À parte (em parte) os humanos, vê-se que as linhas mestras da classificação
animal apoiam-se na distinção terra/água/céu, para as classes principais. Há
subdistinções, por exemplo, entre pássaros “que andam a pé” (galináceos), pássaros
“em cima d’água”, pássaros “no céu” etc. Por sua vez, as subclasses vegetais mais
importantes pareceram-me ser ataya, os eméticos, e irána, os “remédios”.
Apapalutápa-mína, que glosei por “animais terrestres”, pois estes, e mais
particularmente os mamíferos, são os primeiros nomeados quando se exemplifica a
classe, inclui na verdade certos animais voadores, insetos e répteis aquáticos, como os
morcegos, as abelhas e os jacarés. Inclui também, significativamente, certos peixes:
os kupáti-kumã, “peixes grandes”, isto é, os pimelodídeos como a pira-rara e o jaú.
Isso nos leva ao critério de ordenação do domínio animal que interessa mais
diretamente a este trabalho, o regime alimentar. As categorias animais yawalapíti
têm como um de seus eixos conceituais principais as relações que as espécies mantêm
com os homens, e a alimentação é certamente um componente essencial de tais
relações.
GENTE É MACACO DE ONÇA
Os apapalutápa-mína, inclusive os kupáti-kumã, são fundamentalmente
incomestíveis. Dos kutipíra-mína, comem-se apenas uns poucos, da subclasse dos
que “andam a pé”. Os kupáti-rúru, enfim, são o alimento animal por excelência.
Os apapalutápa-mína, ou “bichos”, são seres que hesitam, por assim dizer, entre
os humanos e os espíritos. “Quase-espíritos”, “da classe dos espíritos”, seria a tradução
literal do termo. Quando se diz, então, que os peixes grandes, os kupáti-kumã, são
apapalutápa-mína, pode-se estar dizendo, ou que eles são parecidos com espíritos, ou
que eles não são peixes, mas “bichos”, parecidos demais com os humanos. Pois a
relação mítica dos apapalutápa-mína com a humanidade é complicada. Os gêmeos
Sol e Lua, pais dos humanos e filhos do Jaguar arquetípico, nasceram na aldeia dos
apapalutápa-mína, chefiada por esse mesmo Jaguar. O surgimento da humanidade
está associado a uma disjunção entre os gêmeos e a tribo do pai: os primeiros índios,
feitos de caniços de taquara pelo Sol, mataram todos os animais. Mas nos mitos
subsequentes do ciclo, quando Sol e Lua fazem a primeira festa dos mortos, a luta
cerimonial opõe os convidados-peixes aos anfitriões-bichos, e estes últimos são
definidos como o “pessoal do Sol” (Kami ipuköñöri). Em outros mitos, são os
pássaros que enfrentam os apapalutápa-mína, sempre comandados por Sol e Lua.
O arquétipo ou “chefe” dos apapalutápa-mína é, como disse, a onça, yanumaka.
Ela é o único animal que não tem kawíka (medo ou respeito) dos humanos; isso a
aproxima dos espíritos, de quem, ao contrário, são os humanos que têm grande
kawíka. Seu oposto absoluto é o macaco kúji-kúji (termo genérico para os pequenos
cebídeos), que é o único apapalutápa-mína que os Yawalapíti admitem comer,
argumentando, bastante curiosamente, que é “porque ele parece gente” (Basso 1972
registra o mesmo argumento para os Kalapalo). As onças comem os humanos, os
humanos comem os macacos: “gente é macaco de onça”, disse-me alguém. {23} Em
determinados contextos, notadamente durante sua caça, o macaco é chamado
ipuñöñöri, gente, metáfora que evita que se esconda do caçador. {24} Uma das
características fundamentais do ethos xinguano é seu professado pacifismo; dizer que
se vai caçar gente, referindo-se ao macaco, deve ser, assim, considerado uma forma
irônica.
Os primeiros macacos eram bebês do sexo masculino abandonados pelas
Amurikumálu, as mulheres monstruosas que deixaram a sociedade humana. Isso
foi-me lembrado por um interlocutor, quando perguntei o porquê do consumo de
macacos. Estes são, portanto, humanos que reverteram ao mundo natural, província
dominada pela figura do jaguar, de quem os humanos se separam no início dos
tempos. Penso que a explicação para a eleição do macaco como alimento – e
alimento animal o menos perigoso, o primeiro a ser consumido após os jejuns
rituais – exige que se considere o jaguar como terceiro termo do sistema. Os
macacos correspondem, no seio dos apapalutápa-mína, aos humanos, enquanto a
onça é a quintessência não-humana desta categoria de seres. {25} Comer macaco,
então, lembraria aos homens que eles são diferentes das onças (isto é, dos bichos)?
Macacos e jaguares parecem exercer um certo fascínio no pensamento yawalapíti, ao
encarnarem aspectos complementares da anti-humanidade. {26} Somos o que
comemos; mas também somos o oposto daquilo que comemos – e essas
proposições coincidem no consumo dos macacos pelos humanos.
Se os macacos são comida especialmente apropriada para os humanos, os
apapalutápa-mína em geral, por sua vez, são a presa adequada às onças. {27} Sol e
Lua tentaram convencer seu pai de que doravante devia comer apenas bichos, não
gente, um contrato que estabelece a separação humanos/jaguares, lembrada cada vez
que os homens comem macacos (e, a contrario, cada vez que uma onça ataca um
humano).
Mas a comida humana por excelência é o peixe. Macacos e peixes opõem-se em
outro eixo que macacos e onças: os peixes são os mais diferentes dos humanos, sendo
assim o alimento característico destes; os macacos, os bichos mais parecidos
conosco, são o alimento em situações “pré-alimentares”, aquilo que se come quando
ainda não se pode comer peixe.
BICHO É GENTE
Pode-se sugerir que a situação especial dos “bichos” deve-se ao fato de que os
humanos são, na verdade, uma subcategoria dos apapalutápa-mína, e/ou vice-versa.
Muitas vezes, ouvi que “apapalutápa-mína é ipuñöñöri”, ou seja, que “bicho” é “gente”.
Os arquétipos da humanidade, Sol e Lua, nasceram da união do Jaguar com uma
humana (feita pelo demiurgo Kwamuty), e estão associados aos “bichos” em
oposição aos peixes e pássaros. {28} Vale notar que, ao negarem a relação com o
Jaguar e se ligarem afetiva e “especificamente” à mãe humana, os gêmeos míticos
procederam a contrapelo da teoria concepcional indígena, que atribui exclusivamente
ao pai a substância do filho. Negar a animalidade negando a paternidade, atingir a
cultura afirmando a maternidade – eis aí uma ideia que não se pode dizer
ortodoxamente freudiana. {29}
A proximidade entre “bichos” e espíritos, marcada no próprio nome da categoria,
não é imediatamente óbvia, uma vez que, se os apapalutápa-mína e os humanos
vivem na terra, espíritos os há em toda parte; os mais poderosos, aliás, vivem sob as
águas. Minha impressão é que os apapalutápa-mína são quase-espíritos exatamente
por sua relação ambígua com a humanidade. Semelhantes aos bichos por seu
habitat terrícola e pela forma de nascimento,{30} os humanos surgem ao negarem
sua relação com os apapalutápa-mina. Observo que, ao glosarem o termo vernáculo
por “bicho”, os Yawalapíti estavam empregando esse termo no duplo sentido que
possui no português popular: ele significa “animal”, mas também “coisa
desconhecida, monstro”.{31} O fato de a onça ser o chefe ou modelo dos apapalutápa-
mína também é significativo, visto que esse felino, por sua ferocidade e sua
antropofagia, tangencia a classe dos espíritos. Note-se, porém, que o “dono” (wököti)
dos apapalutápa-mína não é a onça, mas um sobrenatural antropomorfo, Apasha,
cuja aparência física é singularmente semelhante à de um macaco. {32}
De qualquer forma, os apapalutápa-mína distinguem-se das outras categorias de
seres vivos por serem essencialmente incomestíveis, como o são, aliás, os espíritos,
modo supremo da incomestibilidade. Causadores de doença, os espíritos impõem
formas variadas de abstinência alimentar ao doente e sua família, além de exigirem
uma distribuição cerimonial de comida para a comunidade, levada a cabo pelos
abstinentes. Muito ao contrário de se darem a comer, os espíritos começam por nos
fazer não comer, e exigem em seguida que demos de comer, para que não sejamos,
talvez, comidos por eles. {33}
PÁSSAROS E PEIXES
As aves (kutipíra-mína) habitam aldeias celestes, e são chefiadas pelo Urubu Bicéfalo
(ulúpu iöhöwtiw). Os representantes prototípicos da classe são os rapaces, que lutam
com as almas dos mortos periodicamente, nas festas no céu. As aves ensinaram aos
humanos várias cerimônias, como o Iraláka (o “Javari”, duelo de dardos) e o Pihiká
(rito de perfuração da orelha dos adolescentes). A reclusão pubertária foi inaugurada
pelo Urubu. Em geral, os alados estão associados aos jovens (wikinöri), o que se
observa na pintura corporal, especialmente do Pihiká, quando os meninos são
pintados com motivos aviformes na face, e na relação entre xerimbabos (animais de
estimação) e crianças.
Kutipíra, com efeito, significa tanto “ave” como “xerimbabo”; mesmo o cachorro
é, sob esse aspecto, um kutipíra. Os Yawalapíti, como os demais xinguanos,
apreciam entreter-se com periquitos, papagaios, bem-te-vis e muitas outras aves. As
harpias são encerradas em grandes gaiolas cônicas no centro da aldeia, e suas penas
têm uso ornamental.
A relação entre os kutipíra e seus donos é formulada no idioma da filiação; um
xerimbabo é criado e alimentado pelo dono como um filho pelos pais. Alguns mitos
contam como pássaros defuntos ajudam viajantes ao céu, em retribuição aos
cuidados que receberam na terra. A relação persiste, assim, após a morte, visto que o
céu é dos pássaros e das almas. Os kutipíra são enterrados junto à rede dos donos e
são ditos possuir alma (ipaiöri). Note-se, ainda, que os membros da facção de um
amulaw são chamados de kutipíra do líder, que lhes “dá comida” e “toma conta deles”.
E o representante aldeão (putáka wököti) dirige-se a seus constituintes pelo vocativo
nuñañaw, “meus filhos”, ou yumönaw, “criançada.”
Os peixes são a base proteica da alimentação xinguana. Seu consumo é objeto de
inúmeras restrições, que examinaremos logo a seguir. Lembro aqui, apenas, que a
distinção entre peixes de escama (iráta, “casca”) e de couro (imá, “pele”) é importante,
e que os primeiros são mais próprios que os segundos. Os peixes com dentes
aguçados são perigosos para os doentes, porque causam dores. Os peixes ensinaram
aos homens a cerimônia do Tapanawanã, e foram os animais convidados a se bater
contra o pessoal do Sol, na primeira cerimônia fúnebre em honra da mãe dos
Gêmeos.
As ordens animais se organizam como os humanos, possuindo chefes, campeões
(“donos de luta”) e xamãs. O cará (yatakúlu, um ciclídeo) é o xamã dos peixes; o
bem-te-vi, o das aves; a sucuri é o campeão das cobras; a bicuda, dos peixes; a onça,
dos animais terrestres. A cascavel é o chefe das cobras; o peixe-cachorra (um
caracídeo), o dos peixes. Os animais também possuem aldeias, uma para cada
espécie. Além disso, as ordens animais (peixes, pássaros, bichos), ou certas espécies,
podem estar associadas a um “dono”, wököti, semelhante aos Mestres dos Animais
comuns na América indígena (ver Reichel-Dolmatoff 1973). Esse dono pode ser um
animal-kumã, ou um espírito com nome próprio. O Jacaré (yaká ou yaká-kumã) é
o dono dos peixes; Apasha, o dos apapalutápa-mína; o Urubu Bicéfalo é o dono das
aves.
Há, como se poderia esperar, uma variedade de ressonâncias simbólicas
particulares a diferentes espécies ou ordens animais: a raposa é associada aos
mortos, cujas almas viram esse animal à noite (ou viram cobras); as borboletas
estão ligadas a Apasha;{34} a arara vermelha, ao Sol; a harpia e a onça, aos chefes
(enfeites de couro e garras de onça são usados exclusivamente pelos amulaw); o
jacaré, ao pequi; os pássaros, como já disse, aos jovens. Talvez seja possível, além
disso, propor uma analogia entre os peixes e os grupos convidados nas cerimônias
interaldeias, se recordarmos que esses animais foram os primeiros opositores de Sol
e Lua na festa dos mortos. Quanto aos vegetais, a mandioca e o pequi estão
associados às mulheres; os eméticos, aos reclusos homens; várias raízes e plantas,
como a pimenta e o tabaco, aos xamãs.
Substâncias
As três categorias básicas da cozinha yawalapíti são: otsökö, assado em contato
direto com o fogo ou brasas; wakúpö, cozido em água, e yulatáka, moqueado
(assado a fogo lento sobre jirau). A preparação do mingau de mandioca obedece a
outros critérios, dos quais o mais importante é a noção de “engrossar”, ficar no ponto
(utukwá). Cru, no caso da carne, é dito átsa otsökö pá: “não está assado”. O que não
deixa de ser curioso, visto que o assado parece ser o modo mais “natural” de
preparação. Os reclusos, após o jejum inicial, não podem absolutamente comer
assado: no caso do adolescente (maritshaya), ele provoca paralisia das articulações
ou dos membros, pois é antagônico aos eméticos que se está ingerindo; no do xamã
iniciante, causa a penetração de flechas do espírito (apapalutápa inukúla) no corpo,
causando muita dor; no do pai em couvade, “prende o sangue” que este tem na
barriga. A ordem, do mais para o menos perigoso, é assado, moqueado e cozido, ou
seja, conforme a distância crescente do fogo. A comida cozida está associada às
mulheres, que carregam a água; a menstruação de uma mulher estraga toda a
comida cozida de sua casa, não a assada.
Essa virtualidade natural do assado, sua menor capacidade de transformar
culturalmente o alimento, pode ser inferida de uma observação, que me foi feita
repetidas vezes, de que o peixe assado mantém com mais força o cheiro ahí
característico desses animais. A classificação das substâncias pelo cheiro é importante
na cultura yawalapíti, ajudando-nos a entender os princípios do regime alimentar.
{35}
ODORES VITAIS
Há uma variedade de distinções no código olfativo. Duas noções interessam-nos
diretamente, por corresponderem à classificação animal e indicarem estados
corporais. A primeira é o cheiro (isha) chamado ha, que é o odor dos apapalutápamína e do suor humano, bem como dos animais comestíveis que se tornaram
impróprios para o consumo por se terem alimentado de coisas iñöyö (“nojentas”),
como o caso de um peixe em cujo estômago foi encontrado excremento de capivara.
O ha, cheiro de corpo humano, é mais forte nos adultos de ambos os sexos; crianças
e velhos “não têm cheiro”. A segunda noção é o já citado ahí, cheiro de peixe, de
sangue e de sêmen e, em geral, cheiro de sexo. Após uma relação sexual, fica-se ahímína, o que é perigoso para quaisquer pessoas em estado liminar que estiverem
próximas. As mulheres menstruadas também emitem ahí. {36} A única outra
substância que emite ahí é o jenipapo. A tintura feita do sumo dessa fruta é usada
para desenhar ou pintar o corpo dos jovens recém-saídos da reclusão e dos enlutados
no fim do seu período de resguardo. Ela parece estar associada ao acesso à atividade
sexual, ou a sua retomada (Agostinho 1974a: 136).
Ahí púka hã? – “Ainda sai cheiro?” – é pergunta que se faz para saber se o peixe
está suficientemente cozinhado. Tornado alimento, ele supostamente perde muito
do ahí. Um mito kamayurá registrado por Etienne Samain (1991) abre outras
conexões, que permitem incluir o pequi no sistema cheiro-sexualidade-alimento.
O pequizeiro originário brotou das cinzas de um jacaré sexualmente voraz, que
copulava com duas humanas. (Em algumas glosas que ouvi, o pequi nasce dos
testículos do jacaré.) O cheiro desse fruto era, originalmente, “ruim” – cheiro de
sexo, ahí. Mais tarde, o Sol transferiu o cheiro original da genitália feminina
para o fruto, e deu a esta parte do corpo o cheiro penetrante de uma espécie de
formiga. Mas o pequi também é um fruto fálico-seminal, como o jacaré; diz-se
que ele engorda mais as mulheres que os homens.
As coisas ahí são incompatíveis com as pessoas em estado transicional: jovens em
reclusão pubertária, xamãs aprendizes, pais em resguardo, todos gente que não pode
comer peixe. Menos que uma correlação negativa entre sangue e peixe (como propõe
Basso 1972), penso que o que se verifica é uma suplementaridade perigosa, pois os
liminares estão associados ao sangue: os adolescentes são escarificados
frequentemente, o pai em couvade está com a barriga cheia de sangue. {37} No que
concerne aos xamãs, por sua vez, o problema é que as coisas ahí possuem “flechas” e
o aprendiz precisa imunizar-se contra esses objetos causadores das doenças, pois seu
ofício é tratar com eles. Note-se que, além de não terem cheiro, os espíritos possuem
um olfato hipersensível, detestando sobremaneira as coisas ahí: eles abominam o
odor de gente, especialmente o cheiro de relações sexuais. Por outro lado, as almas
dos mortos (yakulá, lit. “sombra”), embora também não gostem de cheiro de gente
viva, têm um cheiro, e muito forte, também dito ahí (ahí-rúru). Isso é curioso,
porque as almas possuem um sangue muito fraco e insubstancial. Não sei resolver
essa aparente inconsistência. {38}
As restrições alimentares yawalapíti giram em torno da noção de ahí: os eméticos
tomados na reclusão são incompatíveis com tal odor, donde a distância que devem
manter os reclusos face ao peixe, ao sexo e às mulheres menstruadas. Estas, por sua
vez, não comem peixe para evitar a referida suplementaridade: já “com sangue”, o
excesso de ahí causaria a coagulação da substância no ventre. Os doentes e seu grupo
familiar também se abstêm desse alimento: disseram-me uns que é porque os peixes
– especialmente as espécies grandes – têm flechas, e a etiologia mórbida atribui a
doença a flechas lançadas por espíritos ou feiticeiros; outros, que eles têm muito ahí.
Mas por que essa associação entre peixe e sexualidade?{39} Não se trata, penso,
de uma mera conexão organoléptica, mas de uma questão conceitual. O peixe parece
ser o alimento animal por excelência, que complementa e se opõe à mandioca,
comida vegetal prototípica, a primeira a ser consumida pelos reclusos e doentes, sob
a forma de beiju. Desenvolvendo a oposição entre vivos e mortos, meus
interlocutores diziam que “peixe de alma é grilo”, passadio seguramente menos
substancial que um tucunaré ou matrinxã, adequado portanto às almas, que têm um
“sangue fininho” ou nenhum sangue, e não praticam sexo.
Recordo também que os animais incomestíveis (os apapalutápa-mína e a
maioria dos pássaros) têm o mesmo cheiro dos humanos sexualmente ativos, o ha,
ao passo que o cheiro do peixe é diretamente o mesmo das substâncias sexuais.
Apesar da semelhança olfativa entre peixe, sêmen e sangue, observe-se que as
relações entre os três termos são diferenciadas: comer peixe impede a saída livre do
sangue, coagulando-o no ventre, exatamente como faz o esperma no ventre feminino,
que “corta” o sangue e vem formar o feto. Mas o sêmen, por seu turno, deve ser retido
pelos rapazes em reclusão.
OS ANTIALIMENTOS
O “antônimo” do peixe, no sentido de ser a substância ingerida nas reclusões, são os
eméticos, ataya. A cultura xinguana elaborou em profundidade o simbolismo do
vômito como antidigestão. Os eméticos são usados em todo momento de transição
ritual, especialmente na reclusão pubertária masculina, pois são considerados
formadores do corpo adulto do lutador. Algumas pessoas, aliás, afirmaram-me que
o sêmen é fabricado pela ataya. Os eméticos são também usados para tirar o sangue
(complementando a escarificação) da barriga do pai em resguardo. {40} Assim,
peixe não deve entrar, sangue deve sair, sêmen não deve sair, e os ataya condensam
esta dinâmica: formam o sêmen, tiram o sangue, excluem o peixe. Se este último é o
alimento por excelência, associando-se à sexualidade, os ataya são antialimentos que
fabricam o corpo em uma esfera alternativa à da sexualidade: são uma metáfora do
sêmen. Os ataya fortalecem o corpo, mudam-no (“mudar o corpo” é o objetivo de
todas as reclusões), engrossam-no – literalmente, encorpam-no. Note-se que as
seivas vegetais (e o mel) são chamadas yátshi, sêmen, e que o que se toma é ataya
yátshi, a seiva ou esperma da ataya.
Ataya wököti, o espírito antropomorfo patrono dos ataya, que encarna as
qualidades ideais do lutador, aborrece a sexualidade e o sangue a tal ponto que os
homens que estão tomando eméticos devem parar momentaneamente as
escarificações terapêuticas. Os eméticos purificam e protegem o corpo; pouco antes de
uma festa em que se vai lutar, eles são ingeridos para impedir que o “cheiro do peixe
velho” servido pelos anfitriões enfraqueça o lutador; prestes a se iniciar a vida sexual
ativa, na reclusão pubertária, tomam-se os ataya, e assim também ao recomeçá-la,
como os xamãs aprendizes que retornam à vida normal.
Os Yawalapíti conhecem uma variedade de eméticos, cada qual com uma
serventia determinada, uma época apropriada, para cada sexo etc. O mais forte
ou kawikári, perigoso, é o túti (mucuna, uma papilionácea), ingerido no início
da reclusão pubertária masculina, e que pode aleijar o tomador. As mulheres
também usam eméticos, para formar o corpo adulto ou para interromper o
fluxo menstrual; os homens consideram-nos fracos e irrelevantes. Os eméticos do
encerramento pubertário são atribuídos ao Urubu, conforme a associação mítica
entre o gabinete de reclusão e o céu. O cheiro dos eméticos é dito hipúka,
categoria que também se aplica ao cheiro do suco venenoso da mandioca. Há,
aparentemente, uma relação entre ataya e veneno, o primeiro sendo uma forma
atenuada do segundo. Assim, o timbó (tyúma), cipó cuja seiva é usada para
asfixiar os peixes, é tomado pelo pai de uma criança gerada fora do casamento,
com o fito de matar um “verme” que se cria na barriga do genitor. Donde a
correlação: (genitor legítimo: sangue na barriga: emético) :: (genitor ilegítimo:
verme na barriga: veneno para peixe). O que fornece, ademais, uma prova
indireta da associação entre peixe, sexualidade e sangue.
Duas outras substâncias que estão na periferia do alimento participam desse sistema:
a pimenta e o tabaco. Ambas são ditas kahi-úti, dolorosas ou ardidas, e são parte da
dieta própria dos xamãs. Apenas os homens adultos fumam; o tabaco é a substância
predileta dos espíritos, que apreciam seu perfume örö (que contrasta, assim, com o
sangue e os fluidos genitais, detestados pelos espíritos). Ele é, porém, incompatível
com a atividade do lutador, pois enfraquece; os jovens não fumam, e o ataya wököti
aborrece o cheiro de tabaco. Assim como os eméticos são o distintivo do lutador, o
tabaco e a pimenta o são do xamã. O tabaco é um supremo agente transformador: o
demiurgo Kwamuty fabricou os primeiros humanos assoprando fumaça sobre toras
de pau; Sol ressuscitou Lua fumigando-o. Os mitos abundam em episódios onde o
tabaco vivifica, repara e refaz. As flautas apapálu, originalmente espíritos aquáticos,
foram capturadas mediante o recurso à pimenta e, sobretudo, ao tabaco.
Esta última substância, em suma, parece ser o equivalente e a contrapartida
espiritual do esperma. Se o segundo fabrica os indivíduos, o primeiro os recria e
cura, pois é o instrumento básico do xamã. E assim como a reclusão pubertária está
vinculada aos ataya –um dos epítetos do recluso é ataya ötsöri, “tomador de emético”
– o tratamento das doenças e a reclusão iniciática do xamã, que decorre de uma
doença onde o indivíduo é escolhido pelos espíritos, estão associados ao tabaco.
Ambos, ataya e aíri (tabaco), são anti- ou para-alimentos que ocupam os espaços e
momentos extraordinários de transição sociocósmica; nisto, opõem-se ao peixe,
sobretudo ao peixe assado, superalimento em relação direta com as matérias básicas
da sexualidade humana. {41}
Pode-se, assim, estabelecer uma correlação entre essas três substâncias que, a
títulos diversos, desempenham papel central na fabricação do corpo: o sêmen está
para a natureza como os eméticos para a cultura, e como o tabaco para a
sobrenatureza. Isso sugere que, no sistema alimentar yawalapíti, como em outras
dimensões de sua cosmologia, não parece ser possível a redução a um dualismo
natureza/cultura. Partindo do peixe como símbolo sobredeterminado, análogo ao
sangue mas com traços fálicos, que aumenta a barriga e coagula o sangue, e lança
flechas espirituais,{42} chegamos a substâncias para-alimentares, como os eméticos
e o tabaco, e a substâncias corporais, como o sangue e o sêmen.
A ABSTINÊNCIA
Duas noções principais orientam as restrições alimentares: tiñökötí, “jejum”, e
kanupa, que parece corresponder à “reima” dos caboclos amazônicos, indicando a
influência nefasta de certas substâncias sobre pessoas em estado transicional,
especialmente as crianças. Ambas as noções não se restringem à alimentação, mas
incluem outras atividades.
A abstinência tiñökötí é uma prática que se impõe: aos adolescentes no início da
reclusão pubertária; aos genitores (de ambos os sexos) em resguardo de parto; aos
xamãs iniciantes; aos meninos que furaram a orelha no Pihiká; aos doentes,
sobretudo aqueles que foram atingidos por flechas invisíveis enviadas por espíritos ou
feiticeiros; às mulheres menstruadas. Em todos os casos, ele é parte de uma restrição
mais geral, que inclui limitação dos movimentos (fica-se patakwaráta, “deitado na
rede, sem mexer”) e invisibilidade social mais ou menos estrita. No que concerne à
alimentação, o tiñökötí pode ir de um jejum absoluto à proscrição variavelmente
extensiva de certos alimentos, tendo o peixe como caso exemplar, e em especial os
peixes grandes. A noção de abstinência aplica-se também à interdição de relações
sexuais, que acompanha as restrições alimentares em todos os casos acima.
A abstinência define um conjunto, idealmente bem delimitado, de pessoas ligadas
por laços corporais: tiñökölaw, “os do jejum”, aqueles por quem me abstenho. Um
indivíduo pode se abster em causa própria, mas também em benefício de outros. Os
pais do recluso adolescente não devem, no começo da reclusão, ter relações sexuais
(diz-se deles que estão “fazendo o filho”, expressão usada também para o trabalho de
concepção, só que agora é precisamente o sexo que é banido); os genitores em
resguardo fazem o mesmo, sobretudo o pai (yumamukú wököti, “dono de criança”),
que se abstém de sexo e de peixe, em primeiro lugar por si mesmo – para que o
sangue saia de sua barriga e ele volte a ter força –, depois pelo filho; o xamã que
inicia um outro também evita sexo e peixe, pois é concebido como pai do iniciado;
finalmente, os pais, irmãos e filhos-rúru de um doente, isto é, ligados a ele por laços
corporais próximos e socialmente sancionados, devem abster-se de peixe para evitar
causar dores ao parente.
Assim, o tiñökötí define laços intercorporais entre parentes, exprimindo uma
continuidade essencial dentro da comunidade de substância. {43} Note-se que tal
unidade se exprime através de uma série de proibições e que ela surge a partir da
sexualidade, pois a intercorporalidade deriva do parentesco (no caso do xamã, o
iniciador é dito ser seu “pai”). A prática do tiñökö parece decorrer da ideia de que os
indivíduos são fabricados por um coletivo: ele exprime a unidade da família de
procriação. O grupo, ou melhor, a categoria que se opõe ao tiñökölaw são os
iwíkalaw, “aqueles que eu respeito”, isto é, de quem tenho kawíka: os afins. Os
tiñökölaw ou consubstanciais definem-se por serem o conjunto de pessoas que se
abstêm em conjunto; os iwíkalaw ou afins são os indivíduos cujo nome eu não
pronuncio. Os primeiros estão em relação de mutualidade e de continuidade de
substância; os segundos estão em relação de reciprocidade e de descontinuidade
substancial. Em certo sentido, pode-se dizer que os iwíkalaw são um caso particular
da categoria mais ampla que se opõe ao grupo de entre-abstinência: a comunidade
da aldeia, ligada aos tiñökölaw através da distribuição alimentar na ocasião de
doença, quando o grupo de substância do doente se abstém e posteriormente produz
alimento, entregue à comunidade (e jamais comido por ele) na festa em honra ao
espírito causador do mal. {44}
Fazer tiñökö por alguém é marcar uma relação de consubstancialidade; não
pronunciar o nome de alguém é marcar uma relação de afinidade. Não comer ou
não falar: proibições complementares exprimem relações complementares. {45}
É facilmente observável que as situações que exigem a abstinência são aquelas em
que os indivíduos estão em contato com forças anti ou parassociais, isto é, nos
momentos de crise ou passagem. A abstinência é uma forma de exprimir e controlar
essas crises. Toda comunicação entre esferas cósmicas acompanha-se de tiñökö. A
não-observância de uma proscrição alimentar ou sexual pode ocasionar malefícios
físicos; quando se trata de um jejum em causa própria, porém, transforma o
indivíduo em ipuñöñöri-malú: homem de segunda classe, e feiticeiro em potencial.
Um feiticeiro é alguém que, entre outras coisas, não segue as proscrições alimentares,
não sabendo controlar suas relações com os domínios extrassociais. {46} Os
amulawnaw (aristocratas) e os ipuñöñöri-mína, ao avesso dos feiticeiros e homens
ruins, são pessoas generosas e que seguem as regras restritivas do tiñökötí. Como se
vê, a generosidade e a abstinência são faces da mesma moeda. O tiñökötí contribui
assim para a definição do ethos yawalapíti; ele replica o kawíka, respeito e
generosidade. {47} Fazer tiñökö pelos parentes de substância, ou em causa própria,
desdobra-se na generosidade e na presteza em distribuir alimento para os afins e a
comunidade mais ampla.
A prática do tiñökö manifesta a relação intrínseca entre estados corporais e
estados sociais: mudanças no/do corpo sempre acompanham mudanças de estatuto
social. A evitação do consumo de apapalutápa-mína, neste sentido, poderia talvez ser
vista como uma forma de tiñökö generalizado, que define a humanidade social e
corporalmente própria, a gente xinguana.
Os indivíduos submetidos a qualquer abstinência alimentar só se alimentam, via
de regra, de coisas insossas; alimentos doces (pu-júa), como o mel e o mingau
nukáya, são evitados, e o sal é igualmente banido. Sobretudo, devem se evitar coisas
com ahí. Os primeiros peixes comidos após o jejum são pequenos e magros, das
espécies com menos ahí. Isso é visto como uma provação, parte de uma ética da
purificação e da ascese que é um tema importante da cultura xinguana. Os eméticos,
instrumento principal de purificação, acompanham o tiñökö: eles também são
insossos (iñöyö, “nojentos” ou “sem gosto”), e são incompatíveis com os alimentos
sápidos.
Uma classe especial de alimentos e práticas que devem ser evitados durante os
períodos de abstinência é denominada kanupa. As coisas kanupa são prejudiciais às
crianças pequenas, doentes e liminares em geral. Nukanupaa pá, “estou kanupa”,
anuncia o indivíduo que acabou de ter relações sexuais ou cuja esposa está
menstruada; ele não pode visitar um tomador de ataya (um recluso), um xamã
iniciante, um doente grave. Certos peixes grandes, ou espécies determinadas como as
arraias e os pacus, não podem ser comidos pelo grupo de substância do doente
porque são kanupa. Alguns animais “são muito kanupa”, como o mutum-cavalo ou
o macuco. Os animais ditos umañí (ver adiante) são supremamente kanupa. Mas o
termo se aplica também a alguns atos que não podem ser realizados por,
notadamente, pais de crianças pequenas: matar onça, pegar penas de tucano, fazer
pentes (aperta a barriga da criança), trabalhar na feitura de colares. Em alguns
casos, trata-se de analogias entre a ação e eventos corporais nas crianças; em outros,
de animais umañí, ou de motivos que ignoro. {48} Certos temas da música das
flautas apapálu são ditos kanupa, e as crianças não podem ouvi-los.
Processos
Ao tratarmos dos tipos de conversa distinguidos pelos Yawalapíti (os assim
chamados “gêneros de fala”), meus interlocutores distinguiram consistentemente uma
modalidade narrativa denominada awnatí, que eu traduziria por “mito”, de uma
outra, inutayá, significando “história” e/ou “estória”.{49} Os personagens e ações que
ocorrem nos awnatí são, como já observei, modelos e causas do que deve ocorrer no
presente.
A maior parte dos personagens míticos antropomorfos, como o demiurgo
Kwamuty ou os gêmeos Sol e Lua, são referidos como awapúka: “nossos primeiros”,
“os que nos começaram” (ver /púk-/, brotar ou crescer). Os ancestrais nomeados nas
inutayá, por seu turno, são classificados como shikúñalaw, “os antigos”, ou
tshawakálaw, “os de ontem”. Esse ontem marca uma continuidade básica com o hoje,
em contraste com a diferença de natureza que nos separa dos seres atuantes nos
awnatí, os “nossos primeiros”, awapúka. O tempo em que viveram – ou melhor,
vivem – os awapúka é dito ser um “outro tempo” (kumã iwáku), de essência diversa
do atual.
OS SERES UMAÑÍ
Uma distinção importante para que as propriedades do tempo mítico possam ser
mais bem discernidas é a que se faz entre os awapúka e os seres qualificados de
umañí, conceito que me foi traduzido por “criação”. Ele se aplica a tudo o que foi feito
pelos awapúka, isto é, aos protótipos dos seres atuais. A palavra umañí é
provavelmente um derivado de /umá-/, fazer ou fabricar; mas deve ser distinguida
de inumakiná, forma participial do mesmo verbo, que se refere ao que é feito pelas
mãos humanas; umañí foi-me dito ser “o inumakiná dos awapúka”.
Tive muita dificuldade em conseguir uma definição extensionalmente fechada do
conceito de umañí; meus interlocutores enumeravam: “gente, os bichos, a água, a
terra, os caramujos (com os quais se fazem os colares) que Takumã descobriu (em
tal lugar)…”. Em outras ocasiões, determinados animais foram-me classificados ad
hoc como umañí, e por isso declarados impróprios para o consumo, seja dos pais de
recém-nascidos, como o macuco, seja de todo xinguano, como a anta, a onça, o
queixada ou o veado campeiro. Normalmente, a classificação visava animais que
desempenham papel importante nos mitos; várias “coisas” (yakawaká), entretanto,
também são umañí, como os seixos polidos de diabásio que enfeitam os colares, ou
os atributos diferenciadores dos diversos grupos étnicos, como as panelas de barro,
os arcos de uma certa madeira, as armadilhas de pesca, a espingarda dos brancos
etc. {50} Umañí é um qualificativo que legitima ou majora ontologicamente aquilo a
que se aplica: certos apetrechos, como as pedras pisciformes capazes de propiciar
pesca abundante, ou os cacos de cerâmica atribuídos a uma tribo desaparecida, são
ditos umañí porque “sempre existiram”, não foram feitos por mão de homem. Mas
umañí, acima de tudo e todos, são os apapalutápa. Ou melhor, tudo aquilo que é
umañí é de algum modo “espírito”.
Os awapúka são ditos morrerem (ou terem morrido); os seres umañí, em
contrapartida, são imortais, makamári. Neste sentido, Sol, Lua ou Kwamuty
muitas vezes foram-me classificados como umañí antes que como awapúka,
visto que ainda vivem no sítio original da humanidade, o travessão Morená.
Umañí parece-me uma noção mais inclusiva que awapúka, não necessitando de
referência explícita a um criador.
Ao indagar quais dos bichos eram umañí, um dos exemplos mais frequentes eram os
animais que alguns Yawalapíti haviam visto nos jardins zoológicos do Rio de
Janeiro ou São Paulo. Quando eu perguntava, por exemplo, se o jacaré atual é o
mesmo animal mítico que originou o pequizeiro, diziam-me: “Esse que tem aqui,
não; só o yaká-kumã que tem lá no Rio” (o crocodilo africano, ou mais
provavelmente o jacaré-açu). Os animais umañí eram demasiado ferozes e, por isso,
foram “mandados embora” por Sol e Lua, que estabeleceram a fisionomia atual do
mundo xinguano. Esses animais foram “para a África”; aqui “só ficou a onça”,
animal que estaria assim ligado ao mundo mítico de forma mais direta. Como se
vê, a distância espacial espelha uma distância temporal; o que está no Rio é o que
estava nos mitos.
Outra característica fundamental dos animais míticos é que são/ eram seres com
forma humana e comportamento animal ou, inversamente, com comportamento
humano e aparência animal. O jacaré originário é gente debaixo de sua “roupa”
(iná) reptiliana; o Jaguar pai dos Gêmeos tem figura felina, mas conduta
parassocial.
Mas, quando eu perguntei, certa vez, se gente era umañí, responderam-me que
“nós” – os ali presentes – não éramos, mas que “gente” era, sim…{51} Se bem
compreendi, é o conceito de ser humano que é umañí, não os indivíduos concretos;
umañí são os putáka ipúka, os ancestrais-modelos dos xinguanos, criados por Sol e
Lua. Portanto, se um determinado animal é dito umañí, isso se refere à espécie, não
aos exemplares individuais; é ela que é umañí e, como tal, é representada por um ser
mítico que, no caso limite, só tem atualidade fora do espaço xinguano.
Umañí, portanto, parece referir-se à essência dos seres, manifesta nos mitos; o
awnatí é discurso sobre as coisas umañí, originárias e exemplares, e é isso que o
distingue das inutayá. Tatiñowálu, chefe da “primeira aldeia yawalapíti”, pode muito
bem ser um personagem mítico do ponto de vista do antropólogo, mas não surge
nos awnatí, não é yawalapíti ipúka, é apenas um homem comum. Mais que
exemplos, as realidades umañí definem uma partição ontológica entre os arquétipos
originais e aquilo que existe hoje, réplicas enfraquecidas das origens. Não se trata
apenas de uma idealização do passado, mas verdadeiramente de uma
contraemanação das atualidades sob a forma de protótipos ideais. Platonismo? Seria
tentador assim rotular essa concepção, pois as coisas umañí o são, efetivamente, em
seu aspecto de ideia ou conceito.
Um dos temas básicos da mitologia xinguana é a diferença entre os modelos
originais e as atualizações posteriores. Assim, o pequizeiro original dava frutos
muito maiores, com polpa abundante e caroços pequenos; as primeiras flautas
apapálu eram espíritos aquáticos, mas seu descobridor as escondeu, fabricando
réplicas de madeira, que jamais puderam emular a voz potente do original
(Villas Boas 1972: 101–ss.; Agostinho 1974b: M26). Os primeiros humanos
foram feitos de madeira, pelo demiurgo Kwamuty, que também chegou a
ressuscitá-los a partir de troncos dessa madeira; não o conseguindo, a morte
definitiva passa a ser comemorada numa cerimônia (o Itsatí, em kamayurá
Kwaryp ou Quarup) que usa os troncos como modelo ou símbolo do morto. Os
gêmeos Sol e Lua, além de modeladores dos índios xinguanos, são também seus
modelos: a maioria de suas aventuras resume-se na realização inaugural de
práticas adotadas pelos xinguanos: luta, escarificação, xamanismo.
Meus interlocutores nunca respondiam à questão: “por que vocês fazem isso
(escarificam-se, lutam, jejuam na reclusão etc.)?” com o esperado “é nosso costume,
sempre se fez assim”. Já recorriam a uma explicitação dos efeitos – não comemos
peixe quando nasce filho porque senão a barriga incha, o sangue não sai etc. –, já,
mais comumente, lembravam: “foi Sol que ensinou, quem fez primeiro”. Outras
vezes, contavam fragmentos de um mito que apresentasse a origem do costume em
questão. Embora não tenha condições de descrever as situações “naturais” em que os
mitos são acionados como explicação, na conversa com o antropólogo, ao menos,
os Yawalapíti compraziam-se em referir seu comportamento atual aos eventos
mitológicos. Condenando um jovem kuikúro que manteria relações sexuais com a
sogra, meu mentor Paru sentenciou: “esse rapaz fica fazendo igual a Warakuní”.
Warakuní, vim a saber depois, é o nome do personagem que inaugurou o incesto
(não com a sogra, mas com a irmã; ver Schultz 1965-66: 76 e ss).
Assim, o mito não é apenas o repositório de eventos originários que se perderam
na aurora dos tempos; ele orienta e justifica constantemente o presente. A geografia
da região é pontilhada de sítios onde ações míticas se desenrolaram; as cerimônias se
explicam pela iniciativa de seres míticos (“foi Sol que abriu festa”); o mundo é
povoado de seres imortais que remontam à origem do mundo; os criadores da
humanidade de alguma forma ainda vivem no Morená. Na verdade, o tempo mítico
não é apenas, ou essencialmente, uma esfera localizável na cronologia. O mundo
perfeito do mito se declina, por assim dizer, no pretérito imperfeito, ou em uma
espécie de aoristo. {52} Os seres umañí estão aí sempre, semidesencarnados, tornados
categorias; a ação dos homens replica a ação dos modelos. O mito existe como
referência temporal, mas, acima de tudo, conceitual.
A PALAVRA TRISTE E O FEITO ALEGR
As cerimônias mantêm uma relação privilegiada com o mundo do mito. Dois tipos
principais de ritual são praticados no Alto Xingu: [1] as festas que recebem o nome
de um espírito, normalmente aquele que causou uma doença no “dono” da cerimônia,
e que se restringem ao âmbito da aldeia; os participantes ativos do ritual –
dançarinos, cantores e músicos – representam visual ou musicalmente esse espírito;
[2] as cerimônias interaldeias, tal a celebração dos aristocratas mortos (Itsatí ou
Amakakáti), o duelo de dardos (Iraláka) e a festa de perfuração de orelhas (Pihiká),
que não estão ligadas a nenhum espírito nem têm dono fixo. Esta última classe de
cerimônias foi instituída pelos gêmeos Sol e Lua; as aldeias participantes, no mito,
são compostas de animais que vivem em meios diferentes: animais terrestres versus
pássaros, peixes versus animais terrestres. O primeiro tipo de cerimônias inclui
cantos e danças aprendidos por um humano que entrou em contato com o mundo
sobrenatural: um homem visitou o mundo subaquático e assistiu ao Tapanawanã,
outro capturou os espíritos/flautas Apapálu, e assim por diante. Em ambos os casos,
o que se faz no ritual é algo que está descrito em um mito; o mito, de fato, é a
explicação última das ações rituais, cujo simbolismo não parece ser elaborado
exegeticamente pelos Yawalapíti.
Se formos ao mito, entretanto, veremos que o ritual não é uma simples repetição
ou encenação sua. O que o rito celebra, de fato, é a impossibilidade de uma repetição
idêntica: “agora só vai ter festa”, disse o demiurgo ao fracassar na transformação de
troncos de árvores em humanos ressurretos, inaugurando assim a mortalidade. O
termo yawalapíti que designa o que chamaríamos, em geral, de rito ou cerimônia é
jumualhí; meus interlocutores traduziram-no por “festa” ou, mais geralmente, por
“alegria”. O discurso mítico awnatí, por outro lado, divide-se em dois gêneros: as
narrativas kihári, “gostosas”, isto é, saborosas ou picantes (estórias de adultério, em
geral), tidas por simples entretenimento, e os grandes mitos etiológicos, qualificados
de katupa, ou “tristes”.{53} O mito, então, é triste, o ritual, alegre. O que pode
significar isso? Uma interpretação possível é que as narrativas míticas recordam,
explícita ou implicitamente, a diferença entre um modelo e sua réplica inferior, entre
um espírito e sua representação esquemática, entre um evento e sua evocação
memorativa. O ritual, assim, transformaria em alegria a tristeza causada pela
ciência dessa diferença, ao aproximar a atualidade dos sucessos ocorridos no mito.
Mas a diferença entre festa e realidade é marcada; o ritual repete aquilo que no mito
era autenticidade, e hoje é mimese (ishorikutaa pa: “imitar”, diz-se por exemplo das
participantes do Amurikumálu, que celebram as amazonas míticas) ou símbolo
(pita-latíji: figura, desenho, representação).
Os participantes e objetos de um ritual são ditos “iguais” ou “parecidos” com os
personagens e seres míticos. As flautas apapálu existentes na aldeia, por exemplo,
foram-me descritas como apapálu ipöriáti, “da mesma categoria que” os espíritos
apapálu originais; as mulheres na cerimônia do Amurikumálu são tinawkumãlaw
ipöku, “semelhantes às mulheres monstruosas”. Embora eu não tenha condições de
determinar a natureza desses conceitos de equivalência e semelhança em yawalapíti
(ipöriáti diz-se de objetos de mesma espécie, arco e arco, pote e pote; ipöku diz-se de
coisas visualmente parecidas, como pai e filho, como dois desenhos etc.), parece-me
quase certo que não existe a ideia de uma identidade de substância entre ações ou
personagens rituais e seus arquétipos míticos. Em suma, o ritual humano é um
modelo icônico reduzido dos sucessos sobre-humanos descritos no mito.
Se o mito é palavra, o ritual evoca diretamente o domínio do fazer. Ou, melhor
dizendo, talvez seja todo fazer que respeite ao domínio do ritual. Vejamos, assim,
como a alegria está no fazer.
A FABRICAÇÃO DO CORPO
Uma ideia que me pareceu ter um papel central na cultura yawala-píti é a de que o
corpo humano necessita ser submetido a processos intencionais e periódicos de
fabricação. Falo em fabricação do corpo ao pé da letra: traduzo a já referida raiz
/umá-/, fazer ou fabricar. As relações sexuais entre os genitores de um futuro
indivíduo são apenas o momento inicial dessa tarefa. Tal fabricação é concebida
também como um “mudar o corpo”, quando ela respeita aos processos de fabricação
pós-concepcionais. Ela consiste dominante mas não exclusivamente em um conjunto
de intervenções sobre as substâncias que conectam o corpo ao mundo, e sobre as
quais já nos demoramos acima: fluidos vitais, alimentos, eméticos, tabaco, óleos e
tinturas vegetais.
As mudanças corporais não podem ser tomadas apenas como signos das
mudanças de identidade social, mas como seus correlatos necessários, e mesmo
mais: elas são ao mesmo tempo a causa e o instrumento de transformação das
relações sociais. Isso significa que não é possível fazer uma distinção entre processos
fisiológicos e processos sociológicos; transformações do corpo, das relações sociais e
dos estatutos que as condensam são uma coisa só. Assim, a natureza humana é
literalmente fabricada ou configurada pela cultura. O corpo é imaginado, em todos os
sentidos possíveis da palavra, pela sociedade.
Com tal proposição, quero sugerir que a pessoa yawalapíti não parece ser
facilmente redutível a um dualismo de tipo jê (ver Melatti 1976, DaMatta 1976), e
menos ainda ao Homo duplex da metafísica durkheimiana. O social não se deposita
sobre o corpo como sobre um suporte inerte, mas o constitui.
Um exame da noção do “fazer” exige que se o articule a uma outra noção
cosmológica fundamental, a de metamorfose (yaka-), processo corriqueiro nos
mitos e que também caracteriza certas formas da doença e do xamanismo (ver
Gregor 1977: 340 e ss). A fabricação subordina a natureza aos desígnios da cultura,
produzindo seres humanos. A metamorfose reintroduz o excesso e a
imprevisibilidade na ordem do socius, transformando os homens em animais ou
espíritos. Ela é concebida como uma modificação de essência, que se manifesta desde
o plano do comportamento até, nos casos extremos, o plano da transfiguração
corporal.
Cabe observar que esses dois processos, sobre não serem simplesmente simétricos
e inversos, comportam cada um sua própria dialética. A fabricação é criação do
corpo; mas do corpo humano, e, nesta medida, pressupõe uma recusa das
possibilidades do corpo não-humano. A metamorfose é desordem, regressão e
transgressão; mas não se trata de uma simples recuperação pela natureza daquilo
que lhe fora roubado pela cultura. Ela é também criação, pois, além de manifestar
uma dimensão do real que totaliza a natureza e a cultura, isto é, uma dimensão que
afirma aquilo que a fabricação nega, faculta a reprodução da cultura como
transcendência extra-humana. Deve-se, assim, ter em mente que o conceito de
fabricação só adquire inteligibilidade plena em conexão com o de metamorfose – até
porque a fabricação é um caso particular da metamorfose, visto que mesmo a
“criação” primordial é uma transformação.
A expressão “estou fazendo (meu filho etc.)” é usada para descrever e justificar as
ações de um indivíduo em certos contextos de produção de novas identidades: [1]
durante o período em que o homem constrói, por relações sexuais repetidas, o corpo
da criança no corpo da mãe;{54} [2] durante a reclusão pubertária, sobretudo em
seu momento inicial, quando ambos os pais devem se abster de sexo, devem
ministrar eméticos ao recluso e cuidar de suas necessidades; [3] para descrever a
relação entre um morto e seus pais, durante a cerimônia Itsatí. O xamã que inicia
um outro é igualmente dito ser seu “fazedor” (inumötsöri). Sua relação com o xamã
noviço em reclusão iniciática é explicitamente assimilada à relação do pai com o
jovem em reclusão pubertária.
Os três momentos enumerados são passagens críticas do ciclo vital: acesso à
vida, capacidade de reproduzi-la (maturidade sexual) e fim da vida. A iniciação
xamanística talvez possa ser pensada como capacidade de restaurar ou proteger a
vida.
Os momentos mencionados não são, assim, concebidos como naturais, no
sentido de espontâneos ou independentes da intervenção humana. Seu caráter liminar
marca o tempo da fabricação de uma nova condição social por meio de uma
tecnologia do corpo. Na transição entre estados da pessoa, a sociedade intervém
radicalmente, submetendo o indivíduo e o individual (Pocock 1967) a uma
normalização sociofisiológica.
A fabricação primordial dos humanos, reza o mito,{55} foi levada a cabo por
um demiurgo (Kwamuty, em kamayurá Mavutsinin) que, soprando fumaça de
tabaco sobre toras de madeiras dispostas em um gabinete de reclusão, deu-lhes vida.
Ele criou assim as primeiras mulheres e, entre elas, a mãe dos gêmeos Sol e Lua,
protótipos e autores da humanidade atual. Essa mulher foi a primeira mortal, em
cuja honra se celebrou a primeira festa dos mortos. O demiurgo é designado, nas
narrativas, por um epíteto, itsatí, que, como já vimos, é também o nome da
cerimônia dos mortos. Qualquer ritual, em verdade, pode ser designado como itsatí,
palavra que, assim, é um equivalente de jumualhí, alegria. Mas apenas a cerimônia
dos mortos é itsatí-rúru, porque nela, como me foi dito, reúnem-se na aldeia anfitriã
todos os povos do Alto Xingu. {56} Esse rito é, com efeito, o mais importante da
sociedade xinguana, e consiste, como mostrou Agostinho (1974a), em uma
reencenação da criação primordial. Seu símbolo focal são toras da mesma madeira
primeva, verdadeiros colossoi dos mortos (Vernant 1965). Ele é também o momento
privilegiado de apresentação pública dos jovens recém-saídos da reclusão pubertária.
Assim, é um ritual que entretece a morte e a vida; as moças que saem da reclusão
são como as primeiras humanas, mãe dos homens. {57}
Por que itsatí “é” o demiurgo e a festa mortuária? Itsatí é um qualificativo que se
aplica a indivíduos muito hábeis na confecção de objetos culturalmente valorizados:
bancos, máscaras, colares e adornos plumários, cestos, flautas. Neste sentido, ele
parece referir o artesão ao modelo por excelência do fabricador: o demiurgo
Kwamuty, que produziu o artefato mais precioso – os seres humanos –, fazendo o
protótipo de todo fazer. Itsatí, assim, designa a produção cultural, e implica uma
ideia dos humanos como produção ou construção cultural.
A fabricação dos primeiros humanos teve lugar em um contexto particular: um
gabinete de reclusão. As moças de pau transformam-se em gente depois de
encerradas no gabinete de palha (pöju) que abriga os reclusos dentro da casa de seus
pais. Todo o complexo xinguano da reclusão, acionado nos momentos da couvade,
da puberdade, da doença, da iniciação xamanística e do luto, e que pode ser visto
como também incluindo, senão mesmo como tendo por modelo, a gestação (mas
também o sepultamento) – todo esse complexo se radica na ideia de que o corpo é
corpo humano a partir de uma fabricação cultural. Fica-se recluso, disseram-me,
para “trocar o corpo”, “mudar o corpo”. Não apenas para isso, é certo: para formar,
também, ou reformar, a personalidade ideal, sobretudo no caso da reclusão
pubertária, a mais importante. Admoestando-se os avarentos, interpela-se-os: “Você
não ficou preso [recluso] não?”. Vale notar, entretanto, que a personificação do
homem ideal depende primacialmente de sua adesão à conduta resultante dessa
tecnologia do corpo recluso. Aqueles que não seguiram as regras alimentares e
sexuais da reclusão pubertária tornam-se ipuñöñöri-malú, “gente ruim”, e são
candidatos ideais a acusações de feitiçaria, além de sofrerem defeitos físicos típicos
dos feiticeiros: abdômen proeminente, pequena estatura e fraqueza, resultados da
incontinência alimentar e sexual. A feiura e a avareza refletem, assim, reclusões
malsucedidas; os aristocratas (amulaw) são idealmente belos, fortes e generosos – e
devem ter ficado reclusos por períodos mais longos na adolescência.
Essas trocas e mudanças do corpo são marcadas pelo parikú, a “vergonha”,
categoria básica do ethos xinguano (ver Basso 1973, para o ifutisu kalapalo). A
transição social é uma mudança corporal, esta é “vergonhosa”, e deve ficar invisível.
O ser em fabricação está nu (não usa pintura nem adornos) e frágil, pois depende de
seu grupo de substância para suas necessidades mais elementares, e exposto a
variados perigos físicos e metafísicos. Os reclusos são frequentemente comparados a
recém-nascidos.
O complexo da reclusão é, em suma, um dispositivo de construção da pessoa. O
fato de que o propósito da reclusão seja expresso sobretudo no idioma da
corporalidade indica, assim, o papel central que a imagem do corpo desempenha na
concepção xinguana da pessoa. Com isso quero dizer que se deve levar a sério a
teoria yawalapíti a respeito da reclusão como uma fabricação do corpo. Uma
interpretação como a avançada por Gregor (1977: cap. 14), que toma a reclusão por
um método de manutenção do equilíbrio psicossocial, garantindo uma privacidade e
um momento de descanso dos desempenhos públicos, não permite nenhuma
aproximação ao significado da reclusão (versus a função imposta à instituição pelo
observador) dentro da cosmologia xinguana; não permite que se veja, por exemplo,
que a morte é pensada como reclusão, e assim também a doença e a gestação.
{58}Sobretudo, a teoria de Gregor – a única até agora formulada sobre a reclusão
xinguana – desqualifica a interpretação nativa da instituição, uma opção teórica que
recuso. Se os Yawalapíti dizem que a reclusão é “para mudar o corpo”, essa
afirmativa não pode ser tomada como metáfora; ela deve ser tomada estritamente
ao pé da letra. Desde que se entenda que o corpo, para os Yawalapíti, é algo diverso
do que assim chamamos. {59}
Se a fabricação do corpo define o domínio da casa, da periferia da aldeia, do
privado e do secreto, a exibição do corpo, seu uso como tela onde se depositam as
marcas de estatuto (sexo, idade, papel cerimonial), caracteriza o pátio da aldeia, a
vida pública, o confronto com as outras aldeias da região e o contexto cerimonial.
Fabricação-reclusão opõem-se, assim, à decoraçãoexibição. Tal contraste parece
marcar fortemente a vida xinguana, que se desenrola como oscilação entre esses dois
momentos complementares, cuja dinâmica ilumina os modos de emergência da
individualidade nessa cultura. O pátio, a fala do pátio, a luta corporal, a dança, a
exibição (tipicamente masculina) da própria singularidade no centro da aldeia só
existem articulados com o gabinete de reclusão, seu silêncio e seu segredo, a
fabricação demorada do corpo, submetido a regras de continência alimentar e
sexual. Aquilo que distingue os indivíduos – seus corpos – transforma-se, na
reclusão, naquilo que os identifica.
Como se vê, portanto, há um sistema de três termos: a fabricação do corpo, a
exibição do corpo e a metamorfose. Esses processos poderiam ser postos em
correspondência com a tríade: natureza, cultura, sobrenatureza, desde que com isso
não se retire deles seu caráter fundamental – o de serem, justamente, processos, que,
mais que distinguindo esses três domínios cosmológicos, põem-nos em
comunicação. Acrescente-se ainda que, à decoração cotidiana do corpo, sobrepõemse as pinturas e ornamentos cerimoniais. Tais ornamentos representam
frequentemente os espíritos que ameaçam, fora do contexto do ritual (e fora da
aldeia), os humanos; e o perigo que representam é sobretudo o de metamorfosear
estes últimos em não-humanos.
Assim como a fabricação do corpo se faz no gabinete de reclusão, que é uma
hipérbole do espaço doméstico, as metamorfoses se dão sobretudo fora da aldeia,
na floresta, quando os indivíduos estão sós. A reclusão-fabricação isola o
indivíduo para poder incorporá-lo (em duplo sentido); a metamorfose expele o
indivíduo para além das fronteiras do grupo e da forma corporal humana. O
espaço, em suma, também pode ser dividido em três domínios corporais: a
periferia doméstica (fabricação), a praça central (exibição), e o exterior da aldeia
(metamorfose). Pode-se assim, talvez, conceber a fabricação como uma
metamorfose controlada, ou melhor, pode-se definir o processo geral da
humanização como uma contrametamorfose.
OS APAPALUTÁPA
Os Yawalapíti postulam a existência de uma multiplicidade de seres espirituais com
influência considerável nos negócios humanos: eles causam a maioria das doenças,
encontram-se com os humanos na floresta, ajudam os xamãs, são os “donos” de
certas espécies animais. Como já observei, sua classificação como seres vivos é
problemática. A categoria dos espíritos é fundamentalmente aberta; e aberta,
inclusive, à invenção e manipulação individuais, como bem mostrou Gregor (1977:
cap. 19). Mais que de espíritos, melhor seria falar, com efeito, de uma
espiritualização potencial a que todos os seres estão submetidos.
Em geral, há duas classes de espíritos: (a) os seres-kumã, isto é, duplos
transcendentes de espécies animais e classes de objetos acessíveis à experiência
ordinária; (b) os apapalutápa dotados de nomes próprios, de correspondência mais
vaga com as entidades do mundo cotidiano. Este segundo conjunto inclui
manifestações antropomórficas de fenômenos naturais, como o trovão e o raio, e
espíritos com uma forma singular. Os Yawalapíti possuem uma representação visual
deles, manifesta nos rituais. Entre os apapalutápa nomeados, os mais importantes
são os patronos de cerimônias, como Apasha, Yakuí-katu, Apapálu e outros. Em
ambas as classes, é comum conceber-se os espíritos como possuindo uma essência
antropomorfa por baixo de uma aparência monstruosa, concretamente pensada
como uma roupa ou envoltório (iná).
Os espíritos são invisíveis, munupakinári; só aparecem para os doentes e os
xamãs em transe. Ver um espírito acidentalmente (sempre quando se está só, e fora
da aldeia) provoca por si só doença ou morte. Ver, com efeito, é algo que parece
definir a relação com o sobrenatural: o xamã é aquele que tem uma visão poderosa
(awíri nuritá, “olho bom”). Quando se está morrendo, veem-se as almas dos mortos;
com febre, vê-se o espírito causador da doença. A alma do doente viaja até as aldeias
dos apapalutápa, e os Yawalapíti comprazem-se em contar o que viram nessas
viagens febris. O feiticeiro, igualmente, é um ser que vê demais, sabendo o que se
passa em casa alheia. Ele e os xamãs lançam mão de remédios que aguçam a visão.
Os apapalutápa estão usualmente em toda a parte, menos dentro da aldeia, onde
surgem apenas nas situações extraordinárias da doença, do xamanismo e do ritual.
Eles abundam sobretudo nas lagoas e na floresta profunda. O céu não é considerado
especialmente como morada de espíritos, embora lá vivam alguns, como o Trovão e
o Urubu Bicéfalo. Clareiras na mata, locais embaixo de árvores grandes também
são “casa de apapalutápa”. Certos sítios particulares são conhecidos por abrigarem
espíritos individuais. Uma lagoinha que existe entre a aldeia e o Posto Indígena é
morada de uma apapalutsí (flauta pequena) causadora de doenças em recémnascidos. A Lagoa do Segredo, área de antigas aldeias yawalapíti, abrigava uma
legião de espíritos maléficos. A vizinhança de tais locais é perigosa, visto que o modo
principal de relacionamento entre humanos e espíritos é a doença.
A afixação do modificador -kumã ao termo para determinado animal ou objeto
indica, como vimos, que ele é um sobrenatural: grande, feroz, invisível. Há peixeskumã, onças-kumã, canoas-kumã, tachos de assar beiju que são -kumã. Alguns
animais, no entanto, prescindem do modificador para que sejam considerados como
apa-palutápa: o jacaré, a onça, o cervo, o macaco foram-me indicados como
exemplos. Esses animais (todos, por sinal, apapalutápa-mína, bichos), por sua vez,
incluem-se entre os umañí ou arquétipos. Todos os personagens míticos são definidos
como apapalutápa: Sol, Lua, Kwamuty, Ayanamá etc. Assim, os espíritos são uma
categoria de seres que atesta a perenidade da relação entre o mundo mítico e o
mundo histórico.
A questão de saber se um determinado apapalutápa é um indivíduo singular ou
uma raça ou espécie de seres não parece preocupar os Yawalapíti. Alguns, como os
Apasha, constituem verdadeiras sociedades, com homens, mulheres, crianças, aldeias
etc. Todos os espíritos são iguais no olfato sensível, no gosto pelo tabaco, pelo cheiro
de akukúti (a semente usada nos colares dos xamãs) e na atração mesclada de temor
pela cor negra.
Duas figuras da sociedade humana mantêm uma relação especial com os
apapalutápa: os xamãs e os feiticeiros. Todo espírito é por definição um iatamá,
xamã. Alguns são xamãs específicos de certas ordens animais, mas “espírito” e
“xamã” são em certa medida sinônimos. Os iatamá humanos são conhecidos, dentro
da comunidade dos xamãs do Alto Xingu, pelo nome de seu espírito tutelar. Nuia-
tamá, literalmente “meu xamã”, é como o iatamá humano refere-se a seu espírito
familiar, o que sugere que o exercício da capacidade xamanística se radica na
presença ativa do espírito. Mas os espíritos são também feiticeiros (shököu wököti,
“dono de feitiço”), pois possuem flechas invisíveis que lançam no corpo dos doentes,
como seus congêneres humanos. Sendo feiticeiros e xamãs a um só tempo, os
espíritos provocam e curam as doenças.
Os apapalutápa relacionam-se com a sociedade yawalapíti em bases
predominantemente individuais. Afora Apapálu, espírito das flautas sagradas
proibidas às mulheres, que talvez se constitua em um culto da comunidade
masculina – e o espírito feminino das Amu-rikumálu, para a comunidade feminina
–, não parece existir qualquer relação fixa entre espíritos determinados e papéis ou
segmentos sociais definidos. Os espíritos se manifestam para a sociedade através de
uma relação com um indivíduo, cuja forma básica é a doença.
A doença não é um mal absoluto, ou não é apenas isso. Grande parte do sistema
ritual xinguano depende das ideias ligadas à doença, e o circuito de reciprocidade
ativado pelas cerimônias constitui-se no mecanismo mais geral de integração da
comunidade aldeã, além de estabelecer os lineamentos de um sistema político, visto
seu papel na coordenação do trabalho coletivo (Dole 1966). Sobretudo, pela doença
definem-se as relações entre o indivíduo (e seu grupo de substância) e a comunidade,
incorporando uma crise individual na dinâmica coletiva. Dessa forma, o sistema
cerimonial ativado pela doença preenche o lugar dos grupos cerimoniais ou de
parentesco que fariam a mediação entre “indivíduo” e “sociedade”, inexistentes na
constituição social xinguana.
À parte os males causados por feiticeiros, os quais podem, de resto, prevalecer-se
da ajuda de espíritos, todas as doenças decorrem de um contato com o mundo
sobrenatural. O doente é alguém que foi “morto” (kuká inukakína, o que se diz
igualmente do xamã em transe) por um apapalutápa. Tal estado se deve à
penetração de dardos invisíveis no corpo, que o xamã extrai e exibe na sessão
curativa. Ele também pode ser causado por um roubo da alma (ipaiöri) pelo
espírito, que a leva para a aldeia dos apapalutápa. Esse roubo é experimentado pelo
doente como uma viagem onírica especialmente intensa (todo sonho ou delírio febril
é uma viagem da alma); ela termina quando o xamã repõe a alma com o auxílio de
uma boneca spirit catcher (yakulátsha; ver yakulá, “sombra”, “alma dos mortos”)
concebida como imagem do doente. Uma vez curado, o indivíduo passa a dever algo
ao espírito que viu. Ele deve patrocinar uma cerimônia em que se representa o
espírito por meio de cantos, danças e adornos/pinturas corporais. {60} Essa
cerimônia é o momento em que o grupo de substância do doente (que tende a ser
uma unidade de produção cotidiana) distribui comida a toda a aldeia. O espírito é
encarnado-representado pela comunidade, e ambos, espírito e comunidade, são
alimentados pelo grupo que, idealmente, jejuou durante a doença: a comida
distribuída é dita “X (nome do espírito) inúla”, a comida de X. O doente torna-se
patrono (wököti) da cerimônia, e dela não participa como ator. {61}
Nota sobre a noção de “dono”. Venho usando a tradução, feita pelos próprios
Yawalapíti, da palavra wököti por “dono”. A tradução é problemática, pois o
termo indígena é usado em contextos que não são cobertos pelos conceitos
ocidentais subjacentes ao uso mais comum de “dono” no sentido de “proprietário”.
Os correspondentes de wököti em outras línguas do Alto Xingu já foram
discutidos pela etnografia (como Basso 1969, para o oto kalapalo, ou Gregor
1977, para o wekehe mehináku). Trata-se, com efeito, de uma noção
fundamental da cultura xinguana. Apenas humanos e espíritos, ou animais
espiritualizados, podem ser wököti de algo. Em alguns casos, o wököti é um
“patrono” (como nas cerimônias em que um indivíduo é o responsável pela
distribuição de alimentos); em outros, é um “mestre” (caso de especialistas rituais
e mestres cantores); ou um “Senhor” (os espíritos wököti de espécies animais ou
vegetais); em outros ainda, é um “representante” (o chefe de aldeia ou putáka
wököti, cuja função principal é representar o grupo em cerimônias interaldeias).
Pode significar também “proprietário”, no sentido comum. Em todos os casos, o
conceito define um “sujeito” através de sua relação com um determinado “recurso”.
Assim, nem sempre se pode usar a expressão x + wököti como substituto da
forma (possessivo) + x. Ou seja, não é porque certas coisas são minhas que eu
sou dono delas.
O conceito de wököti parece definir mais propriamente uma relação entre
sujeito e objeto, que pode ser concebida em duas direções: uma relação de
substância, uma relação de representação. O vínculo de paternidade foi-me
apresentado repetidas vezes como uma espécie de modelo concreto da noção de
wököti. Como tradução abstrata, eu sugeriria a ideia de “mediador”. O wököti é
aquele humano ou espírito que faz a conexão entre o objeto e o grupo, facultando
o acesso (material ou ideal) do coletivo ao recurso de que é o dono. Nesse
sentido, o wököti é um representante, mas que se define pelo que representa; se ele
objetiva o recurso para a comunidade, é, por seu turno, subjetivado por ele. Boa
parte da estrutura social xinguana se apoia em uma classificação de quem é o
wököti de quê. Essa categoria, que tem conhecidos paralelos em várias outras
línguas indígenas (pense-se no -jara dos povos Tupi, ou no kande e kate dos
Suyá e Timbira), sugere uma análise semelhante à realizada por Benveniste para
certos conceitos indo-europeus, notadamente o de */poti/ (Benveniste 1969: cap.
7), em que as ideias de mestre, representante e dono se confundem.
O doente também é identificado ao apapalutápa. O momento de cura estabelece uma
“participação mística” entre xamã, doente e espírito, expressa no conceito de
metamorfose (yakaa pa). O xamã em transe, o doente em delírio, os humanos que,
nos mitos, transformaram-se em apapalutápa, todos evidenciam processos de
metamorfose. A cura xamanística implica essa metamorfose; yakátshö é o nome do
xamã especializado em descobrir feitiços no mato e em conversar com os espíritos. A
doença é uma metamorfose, assim como o xamanismo: a vocação xamânica é uma
doença em que um espírito se manifesta, dá tabaco ao noviço, e lhe ensina cantos e
remédios. A metamorfose é indicada por um comportamento desordenado, cujo
paradigma é o “correr no mato”, ação típica dos xamãs em transe profundo. Os
processos de metamorfose estão frequentemente associados ao uso (ativo ou passivo)
do tabaco. Se definirmos a metamorfose como processo de passagem entre cultura e
sobrenatureza, poderíamos contrapô-la aos processos de tipo concepcional que
articulam a natureza à cultura, associados ao sêmen e à noção de fabricação (umaa
pa).
Os Yawalapíti não me pareceram entreter a ideia de que o espírito se apossa,
entra no corpo do doente ou do xamã em transe; antes, é a alma do paciente que
sai, ou as flechas invisíveis que entram. {62} Mas isso não é completamente claro;
há situações em que o xamã fica violento e sai correndo pela aldeia, quebrando
tudo, ferindo crianças. Ele está “transformado” (yakaa pa), e seus atos são
concebidos como atos do espírito, que dirige seu comportamento. Jamais se me
afirmou, entretanto, que o espírito entrasse de alguma forma no corpo do
possesso; antes, é este que vira espírito, movendo-se em um mundo que ninguém
vê; a lógica de seus atos é inescrutável. Tal comportamento violento do xamã
ocorre, tipicamente, quando o apapalutápa o chama pela primeira vez para a
profissão; pois há xamãs que foram feitos, “trabalhados”, diretamente por um
espírito. Mas suspeito que as explosões de transe violento ocorrem sobretudo em
momentos de crise aguda da comunidade, como a morte de um líder faccional,
ou quando o xamã está em perigo de ser deslegitimado por acusações de
feitiçaria.
As noções de metamorfose e, sobretudo, a de apapalutápa são muito complexas;
estou longe de as haver compreendido satisfatoriamente. À guisa de conclusão,
observo apenas que sua importância no pensamento indígena parece-me, mais uma
vez, colocar em questão a pertinência, ou pelo menos a suficiência, da grande
dualidade entre Natureza e Cultura para uma caracterização adequada da
cosmologia yawalapíti. Nas Mitológicas (Lévi-Strauss 1964, 1966, 1967b, 1971),
essa dualidade aparece como organizando todo o discurso mítico ameríndio; ela
deixa escapar, entretanto, ou não lhe dá todo o espaço que merece, um terceiro
domínio ontológico, que chamamos, na falta de termo melhor, de Sobrenatureza (ver
J.-P. Dumont 1972, para a primeira discussão do problema). Cada um destes três
domínios pode ser entendido como uma perspectiva que neutraliza a oposição entre
os dois restantes: do ponto de vista dos espíritos, humanos e animais se assemelham;
do ponto de vista dos humanos, espíritos e animais comungam aspectos essenciais;
do ponto de vista dos animais, humanos e espíritos quiçá sejam a mesma coisa. Há
portanto, talvez, dualidade; mas ela seria apenas a redução de uma estrutura mais
rica.
1. As páginas a seguir são um resumo de parte de minha dissertação de mestrado
[Indivíduo e sociedade no Alto Xingu: os Yawalapíti (1977)]. Esta baseou-se em duas
curtas visitas à aldeia yawalapíti, nos meses de setembro-outubro de 1976 e julho de
1977. Escusado advertir que minha interlocução com o grupo fez-se em português,
língua que a maioria dos membros masculinos da aldeia domina com fluência. As
interpretações aqui sugeridas encontram-se severamente limitadas por tal
circunstância. Na verdade, minhas estadas junto aos Yawalapíti foram sobretudo
dedicadas a conversar com eles, em minha língua, sobre a língua deles. Agradeço a
Roberto DaMatta, Anthony Seeger e Gilberto Velho pelas sugestões oferecidas quando
da defesa da dissertação, e a Renata Bondim, estagiária de Linguística do Museu
Nacional que esteve entre os Yawalapíti, pela discussão de aspectos centrais dos temas
aqui abordados. Como sempre, a responsabilidade pelos erros e lacunas recai apenas
sobre o autor.
2. O peixe, por oposição à maioria dos animais terrestres e de muitas aves, é o
alimento por excelência para os alto-xinguanos.
3. Essa afirmação contradiz outras, segundo as quais várias espécies animais
atualmente existentes no Alto Xingu são originárias: ver adiante, sobre a categoria
umañí.
4. Putáka significa “povos alto-xinguanos”, “sociedade xinguana” e também “aldeia”,
no sentido tanto humano como espacial; o termo exprime, portanto, algo semelhante
à noção grega de polis.
5. Para continuarmos a analogia da nota anterior, se os Suyá, Juruna, Kayabí e
Trumai são xenoi, os Kayapó (Txukarramãe) são decididamente barbaroi.
6. Tal derivação etimológica é puramente especulativa, mas, cuido, plausível.
7. Absurdamente, não me ocorreu inquirir se a expressão de tristeza por uma mulher
deve-se dizer “(nu)katúpa-tápa” em vez de “katúpa-mína”, como penso dever ser o
caso se minha especulação for acertada.
8. Nota à presente edição. Hoje estou um tanto mais convencido de que o modificador
-mína, em sua função de operador de inclusão em uma classe, contém uma
referência essencial à ideia de corporalidade. É pelo corpo, seus afetos e seus estados
que os seres se distinguem uns dos outros e se identificam como si mesmos. Se o kumã conota a alteração espiritual (ou diferença interna e intensiva), o -mína conota
a identidade corporal (ou diferença externa e extensiva). Esses dois modificadores
determinam, em suma, o sentido dos conceitos de “alma” e de “corpo” no pensamento
yawalapíti. Cf. capítulos 7 e 8 infra.
9. O sufixo -rúru pode ser usado como ênfase, p. ex. em átsa-rúru, “não mesmo”. Seu
regime sintático parece ser algo mais flexível que o dos demais modificadores.
10. Gregor correlaciona esse pendor gradativista da classificação mehináku com a
flexibilidade sociológica dos povos xinguanos e, a partir daí, infere que os Mehináku
vislumbram claramente “o homem por detrás da máscara” (op. cit.: 295, 298 et
passim). Aqui não é o local para discutir essas conclusões, mas não me parece que a
questão da flexibilidade dos sistemas sociais sul-americanos autorize uma solução
desse tipo.
11. Essa casa é dita ser umatalhi, “feita”, i. e. construída coletiva e cerimonialmente
pela comunidade aldeã.
12. Em suyá, -kumeni corresponderia a -rúru; -uràgà, a -mína; e -kàsàga
condensaria -kumã e -malú, uma aproximação improvável em yawalapíti. Lembro
ainda as analogias entre a série yawalapíti e os conhecidos modificadores tupiguarani -guaçu e -ju (respectivamente “grande” e “espiritual” [lit. “amarelo”]), -eté
(“autêntico”), e -rana (“falso”, “semelhante”); não me ocorre nenhum equivalente
exclusivo do -mína, parcialmente recoberto (junto com -malú) pelo -rana tupi.
13. Kensinger 1975, republicado em id. 1995: capítulo 7. O sistema dos quatro
qualificativos cashinahua tem como polaridades principais kuin/kuinman e kayabi/
bemakia.
14. Esse livro foi originalmente uma tese de doutorado defendida em 1982. Ver
ainda, sobre os modificadores cashinahua, o artigo de Keifenheim 1992.
15. A grafia corresponde às realizações kayapó dessas formas.
16. Salvo engano, uma discussão comparativa séria dos dispositivos de modalização
ontológica nas línguas indígenas é algo que ainda está por fazer. Por exemplo, o fato
de que as séries cashinahua, yawalapíti e kayapó contenham, cada uma, quatro
modificadores é uma coincidência, ou não?
17. Em 1981, recebi uma carta de Willett Kempton comentando os paralelos entre a
série dos modificadores yawalapíti e certos sufixos tarahumara. Esse antropólogo,
que muito depois vim a saber autor de um livro fundamental sobre a prototipia
cognitiva e a gradação classificatória naquela cultura mesoamericana (Kempton
1981; cf. Lakoff op. cit.: 15), tomou conhecimento do presente artigo através de meu
professor Anthony Seeger.
18. Os trabalhos de Basso (1972, 1973) sobre o simbolismo alimentar e a
taxonomia dos seres vivos dos Kalapalo trazem análises bem mais rigorosas e
exaustivas destes temas.
19. Nota desta edição. Em um artigo recente, Emilienne Ireland (2000: 253) traduz o
idêntico termo waurá yakawaká por “coisas de pouca importância”, esclarecendo que
ele significa literalmente “insetos”, “bichinhos”, “coisas pequeninas espalha-das”. A
palavra se aplicaria, em geral, aos elementos da cultura material, embora os objetos
de valor cerimonial sejam distinguidos pelo termo apapa alai yajo, “coisas de real
valor”. O segmento /yajo/ (mehin. waja) corresponde certamente ao -rúru, e o
yawalapíti apapála deve corresponder ao waurá apapa alai. É bem possível que a
tradução que me foi sugerida de “coisas” (no sentido geral de “entidades”) por
yakawaká tenha sido uma concessão de meus interlocutores a minha busca ingênua
de macrocategorias ontológicas: eu procurava o nome do “Objeto” em geral, deramme “bichinhos” e “coisas pequeninas espalhadas”…
20. Ipúla parece conter a raiz /ipu-/, presente em ipúka, “crescer”, “broto”, “ancestral”, e
em ipuñöñöri, “gente”. Já os vivos, i. e. os seres atualmente vivos por oposição aos
mortos, são kutírilaw, “os acordados”.
21. Diz-se ipúka-pira também dos filhos de mãe solteira.
22. P. ex., as cobras e as formigas. Meus interlocutores nem sempre concordavam
sobre a inclusão de certos animais nesta ou naquela classe. Para alguns, as cobras
são apapalutápa-mína; para outros, são “só cobras mesmo”. O tracajá ora era
kupáti, ora apapalutápa-mína – o que parecia depender de se esse animal estava
sendo considerado como alimento ou não.
23. Cf. capítulo 7 infra, para uma discussão geral do “perspectivismo” implicado
nesse tipo de afirmação.
24. Ou recebe outros eufemismos, como apaláka-riñöjô (“nossa cara”), ipuñöñöri
ukúna (“gente do mato”), ip. tika-tiwá (“gente em cima da árvore”). A caça, em geral,
é descrita por um verbo que significa primariamente “andar”.
25. Lévi-Strauss (1964: 140 e ss) observa um sistema correlativo entre os Ticuna: “O
jaguar é o contrário do homem; o macaco é, antes, sua contrapartida”. O exemplo
yawalapíti ilustra e suplementa essa proposição, ao introduzir uma regra alimentar.
A proibição do consumo dos apapalutápa-mína possui alguma semelhança com a
proibição do incesto; o consumo de macacos seria o símbolo que viola e, assim,
recorda a separação entre os humanos e os animais terrestres.
26. Note-se, porém, que a mitologia xinguana não parece reservar grande papel aos
macacos.
27. Os waráyunaw, selvagens não-xinguanos, comem “carne de bicho” – o que os
torna agressivos (kañuká) e imprevisíveis como os jaguares. O regime alimentar é
um dos critérios distintivos da humanidade verdadeira e está associado ao ethos
pacífico e respeitoso propugnado pelos grupos xinguanos.
28. O mito de criação xinguano pode ser lido, em várias versões, em Villas Boas
1972, Agostinho 1974b, Monod-Becquelin 1975.
29. Mas é bem verdade que os gêmeos-arquétipos da humanidade “mataram o Pai”,
matando metonimicamente o Jaguar (e não, como em Totem e tabu, um grande
Macaco…) sob a espécie de seus animais subordinados.
30. O nascimento vivíparo é dito yumököpöño. A raiz /yum-/ define um paradigma
de termos ligados à fisiologia reprodutiva: menstruação, criança pequena, feto etc.
31. Esta é, como se sabe, uma de nossas noções-mana: “o que é este bicho vermelho?”
(Lévi-Strauss 1950: XLIII).
32. Zarur (1975: 72) afirma que o Apasha está associado aos velhos, enquanto
Bastos (s/d: 7) observa que o macaco só é comido pelos velhos, entre os Kamayurá.
Este último ponto não se verifica para os Yawalapíti; mas “velho” (wököñöjí) é, de
fato, uma perífrase para Apasha. O ritual do Apasha admite ou mesmo exige
palhaçadas, e não é considerado kawíka. Os dançarinos vão de casa em casa
pedindo comida, o que nunca se faz no cotidiano. Tal comportamento desregrado
talvez pudesse ser associado aos velhos, se atentarmos para os paralelos suyá (Seeger
1976). Heloísa Fénelon Costa sugeriu-me uma relação entre Apasha e primitividade,
ou humanidade pré-cultural.
33. A doença, em muitas culturas indígenas, é vista como uma forma de
canibalismo espiritual. Não sei, porém, se os Yawalapíti entretêm a mesma ideia.
34. A alma do morto, se morre de novo, transforma-se em uma borboleta grande e
preta, mapapalúlu-kumã, que voa de um modo errático, comparado pelos
Yawalapíti à corrida dos xamãs em transe.
35. Seeger (1974: cap. 5) chamou-me a atenção para os usos simbólicos do código
olfativo, embora eu não tenha chegado a atestar, entre os Yawalapíti, a mesma
centralidade cultural que as categorias olfativas têm para os Suyá.
36. Entre as outras categorias olfativas estão örö, perfume, aplicável ao urucum, ao
tawaji (óleo vegetal) e ao pequi; ou haká, cheiro dos animais comestíveis à exceção
do peixe, como certas aves e os macacos.
37. Os meninos que acabaram de furar a orelha no Pihiká também entram em
reclusão, ficando longe de peixe por cerca de dois meses. Comem beijus de mandioca,
depois macaco, aves. Eles são comparados explicitamente às mulheres menstruadas,
devido à perda do sangue.
38. Mas cf. DaMatta 1976: 85 n. 15, para a conexão entre cheiro, sangue e alma,
entre os Apinayé.
39. Note-se que sexualidade e comida possuem, para os Yawalapíti como para
inúmeras outras culturas (cf. Lévi-Strauss 1962b: 140), uma semelhança essencial.
Comer e copular são descritos pelo mesmo vocabulário, e sonhar com uma relação
sexual pressagia uma pesca abundante.
40. Após o nascimento do primeiro filho, estima-se que o ventre do pai enche-se de
sangue, o qual deve ser rapidamente eliminado através do jejum de peixe e do uso de
eméticos; caso contrário, fica-se barrigudo e vira-se um “homem ruim” (ipuñöñörimalú). Os mesmos perigos ameaçam o executor de um feiticeiro: o sangue da vítima
enche sua barriga, e a profilaxia é idêntica à da couvade.
41. Observe-se que os ataya correspondem ao gabinete de reclusão, ao passo que o
tabaco é sobretudo fumado pelos xamãs no wökúka, a praça da aldeia, ao
crepúsculo. Dentro de casa, os homens só fumam quando estão tratando um doente
ou quando estão em aprendizagem xamanística. Considera-se que o tabaco engorda
o xamã iniciante, assim como os ataya fazem com o adolescente recluso.
42. Ukú, flecha, é uma metáfora para pênis.
43. Cf. Seeger 1975 e DaMatta 1976, para uma discussão dessa “comunidade de
substância” característica das ideologias de parentesco do Brasil Central.
44. “O pagamento em alimentos é um indicador crucial de certas relações definidas
por outros critérios que os de parentesco…” (Basso 1969: 165).
45. E proibições, portanto, que são usadas estrategicamente na definição das relações
que se deseja ver sancionadas pela comunidade: cf. Basso op. cit.
46. Seeger (1974) observou entre os Suyá a mesma equação entre quebra de
restrições alimentares e feitiçaria.
47. O desrespeito a uma proscrição alimentar é um acontecimento kanakatí.
Kanakatí se diz do incesto, do nascimento de gêmeos e, em geral, de qualquer
acidente desagradável e imprevisto. A gemelaridade é abominada pelos Yawalapíti,
que a ligam a um excesso animalesco, fruto de uma sexualidade exagerada. Note-se
que Sol e Lua eram gêmeos e filhos de um animal, o que aponta para o mundo
excessivo que é o mundo do mito e das coisas originárias.
48. Cf. Gregor 1977: 272, para a enumeração das restrições do pai em couvade.
49. Cf. inutayata, contar ou narrar.
50. Tais atributos figuram em destaque nos mitos.
51. Esta foi exatamente a formulação da resposta por Aritana. À minha pergunta: “A
gente, nós todos, aqui, somos umañí?”, ele replicou: “Nós aqui… não, quem fez a gente
foi pai… agora, gente, assim, ipuñöñöri, é umañí, foi Sol que fez”.
52. Isso é um modo de falar. Recordo mais uma vez que não compreendo yawalapíti
e ignoro os regimes temporal e aspectual das narrativas míticas.
53. A classificação dos mitos etiológicos como katupa (tristes, ou talvez mais
propriamente, ligados ao sentimento de luto e perda – katupalhí é o viúvo) foi
aplicada ao ciclo de criação da humanidade, à invenção da festa dos mortos (que no
entanto é definida, hoje, como “alegria”), à narrativa das Amurikumálu, ao mito de
origem do pequi, e assim por diante. Observe-se que a definição do mito como
discurso triste ou de luto assinala que os mitos estão longe de serem apenas
instrumentos cognitivos, pois veiculam emoções complexas e culturalmente
marcadas.
54. A mãe, esta, usa a expressão apenas no plural (“estamos fazendo”), o que é
coerente com a ênfase indígena no papel formador do sêmen. Cf. Bastos 1978: 34-36,
para o conceito kamayurá de “trabalhar” a criança, onde a contribuição da mãe
parece ser mais elaborada.
55. Versões deste mito em: Villas Boas & Villas Boas 1972, Agostinho 1974b,
Monod-Becquelin 1975.
56. O outro nome dessa cerimônia é Amakakáti, lit. “perna de rede”, uma referência
provável ao sepultamento dos grandes chefes em redes presas a dois pilares
subterrâneos.
57. A saída da reclusão coincide idealmente com o primeiro casamento.
58. A morte é especificamente pensada como reclusão pubertária: aqueles que
morrem pré-púberes chegam ao céu já pós-reclusos. Basso (1973: 58) esclarece que
a alma recém-chegada aos céus entra em reclusão para recuperar suas forças após a
longa e perigosa viagem. Não há crianças, como não há sexo, afinidade ou trabalho,
no mundo dos mortos – mundo congelado, sucessão infindável de festas e rituais.
59. Cf. Whitherspoon 1977: 86, sobre a necessidade de distinguir o que é metáfora do
que é afirmação literal nos termos da cultura do grupo estudado, e não da cultura do
pesquisador.
60. O doente pode, alternativamente, entregar o patrocínio a alguém que tenha
condições econômicas para tal (o que permite a acumulação de patrocínios, e assim
de prestígio, nas mãos dos poderosos).
61. Se o doente torna-se wököti da cerimônia em honra do espírito que lhe causou a
doença, o espírito, por seu lado, é dito ser o wököti da doença.
62. O xamã, essa espécie de doente, também possui flechas em seu corpo, só que nele
elas são um poder curativo (yutshö).
CAPÍTULO 2
O problema da afinidade na Amazônia
Trata-se mais uma vez, como se vê, de uma questão de exterior e interior.
S. Freud
Não há solução porque não há problema.
M. Duchamp
As chamadas terras baixas da América do Sul, designação que hoje praticamente
equivale, do ponto de vista etnográfico, à floresta amazônica e ao Planalto Central
brasileiro, abrigam uma variedade de sistemas de parentesco, em consonância com
a diversidade linguística e cultural ali prevalecente. {1} Entretanto, há muito se
constata que a essas duas grandes sub-regiões correspondem duas configurações
básicas. A Amazônia gravitaria em torno de uma estrutura dita dravidiana –
terminologia de duas seções, aliança simétrica –; o Brasil Central se distinguiria por
sistemas terminológicos sem correlatos matrimoniais claros, que evocam, em suas
equações oblíquas, o tipo crow-omaha. Há, por certo, vários povos com uma cultura
de floresta tropical que utilizam sistemas semelhantes aos centro-brasileiros, como os
Sirionó, os Pakaa-Nova (Wari’) ou os Tupari, e sociedades centro-brasileiras onde
vigoram terminologias simétricas, como os Xavante ou os Kaingang. As relações
entre os sistemas amazônicos e os centro-brasileiros ainda não foram determinadas
com exatidão. A intuição e o bom-senso sugerem que deve ser possível encontrar
uma ponte entre eles, mas as tentativas até agora têm sido de corte antes históricoevolutivo que propriamente sociológico.
Ao mesmo tempo balanço bibliográfico e programa teórico, o presente texto
bosqueja as linhas mestras de uma sociologia do parentesco ameríndio. As
referências ao Brasil Central serão, entretanto, episódicas. Vamos nos concentrar na
Amazônia dravidiana, que já é complicada o bastante.
O dravidianato sul-americano{2}
O americanismo tropical, que um de seus praticantes mais argutos caracterizou,
certa feita, como “a mais a-sociológica das etnologias regionais” (Taylor 1984: 231),
sempre desempenhou um papel menor na história da reflexão antropológica sobre o
parentesco. Ausentes da síntese fundadora de Morgan (1871), as sociedades das
terras baixas da América do Sul só vieram a franquear o limiar teórico com dois
artigos, hoje raramente lidos, de Paul Kirchoff (1932, 1933), onde eram tomadas
como ponto de partida para a construção de uma tipologia análoga à conhecida
classificação de Lowie (terminologias “geracional”, de “fusão bifurcada” etc.). Elas
foram, em seguida, incorporadas aos arquivos de Murdock (1949), onde
exemplificavam, junto a inúmeras outras, os tipos básicos de terminologia
estabelecidos por esse autor: “havaiano”, “iroquês”, “crow” etc. Servindo para evocar as
diferentes formas abstratas dos vocabulários de parentesco, esses rótulos exóticos
continuam empregados para a América tropical. A despeito de sua praticidade
sinóptica, eles, a rigor, mais atrapalham que esclarecem, pois, ou sugerem correlatos
institucionais em geral inexistentes, ou fazem passar uma definição nominal por uma
definição real, esgotando-se em uma álgebra sociologicamente vazia.
“Dravidiano” é um rótulo que não pertence à tradição tipológica americana, mas
à teoria de Louis Dumont (1953) da aliança de casamento, onde possui um
significado sociológico bem determinado. Ele designa as configurações de parentesco
da Índia do Sul, onde se achariam exemplificadas de modo eminente as “estruturas
elementares” da doutrina estruturalista. Os vocabulários (dos povos) dravidianos
seriam, em particular, a expressão mais pura e mais simples da troca matrimonial
restrita. Note-se que Dumont (1971: 8), por descrer da existência de estruturas
complexas no sentido lévi-straussiano, não fala exatamente em estrutura elementar,
mas em “regra positiva de casamento”.{3}
A caracterização de terminologias da América tropical como dravidianas
começa, salvo engano, com Maybury-Lewis (1967), passa por Basso (1970, 1975)
e finalmente se consagra com Overing Kaplan (1972, 1973, 1975). Mas foi Rivière
(1969, 1973) quem primeiro aproximou efetivamente os contextos sul-americano e
indiano, sugerindo que a aliança simétrica expressa nas terminologias dravidianas é
um invariante amazônico. Rivière, porém, manteve a linguagem de Needham,
falando em sistemas de “duas seções” ou “duas linhas”, expressões que designam,
grosso modo, o mesmo sistema terminológico-matrimonial chamado dravidiano.
Essas questões vocabulares não são triviais; cada opção tem seus riscos e
manifesta divisores teóricos. Sistemas de “duas seções” ou “duas linhas” é uma
caracterização que, embora associada ao reconhecimento de um correlato
matrimonial (a “aliança simétrica”), não o destaca, referindo-se essencialmente a um
tipo terminológico. Ela pode, além disso, induzir a erro, pelas conotações dos termos
escolhidos: “seções” evoca os sistemas australianos, e “linhas”, a noção de descendência
unilinear, correlatos raramente apropriados ao caso sul-americano (e, de certa
forma, também ao sul-indiano). Tal caracterização está vinculada à concepção de
“sociedade prescritiva” presente nos primeiros trabalhos de Needham (1958a: 75, 89;
1958b: 202; 1962: 95-97), isto é, à ideia de “estruturas totais” organizadas por uma
regra prescritiva de aliança – o que é ainda mais inadequado à situação sul-
americana.
“Dravidiano”, por sua vez, remete à teoria de Louis Dumont, pondo em primeiro
plano a dimensão matrimonial (a regra positiva de casamento) dos sistemas assim
rotulados, e filia os fatos sul-americanos ao paradigma interpretativo da matriz
indiana. Isso, naturalmente, tem os seus problemas, que poderíamos resumir,
paráfraseando Needham (1971: 15): não há sistemas dravidianos, a não ser os dos
povos dravidianos. Pois há sempre o perigo de manejarmos esse rótulo daquele
modo equívoco apontado para os tipos etnonímicos de Murdock, isto é, ou dizendo
demais, ao projetar particularidades do modelo sobre o modelado, ou de menos, ao
limitar-nos a uma aproximação no plano da semântica terminológica. A hesitação
só faz aumentar quando vemos os estudiosos da Índia adotarem uma postura
cautelosamente historicista, sublinhando antes as especificidades dos sistemas
dravidianos que seus paralelos alhures. Dumont (1970), como é notório, deu-se a
um grande trabalho para distinguir os sistemas indianos e os australianos,
amalgamados por Radcliffe-Brown e outros especialistas. O balanço de Trautmann
radicaliza esse historicismo, repudiando caracterizações meramente formais (1981:
72, 83, 89, 237). Via de regra, os indologistas evitam sair de seus domínios; bem ao
contrário, como no caso de Trautmann, têm procurado purificar uma essência
dravidiana dentro da paisagem complexa da Índia. Os poucos teóricos que
generalizaram morfologicamente o tipo dravidiano fizeram-no contra Dumont,
recusando, em particular, qualquer correlação intrínseca entre as terminologias de
duas seções e a norma de casamento bilateral. Este é o caso, notadamente, de
Scheffler (1971), que tem, contudo, recebido uma quantidade de desmentidos
convincentes, para a Índia (Good 1980; Trautmann op. cit.: 61) como para a
América do Sul (Overing Kaplan 1984).
Tais cautelas, ressalte-se, não impediram os americanistas de perceber as
analogias evidentes entre os fatos que lhes cabem e aqueles da Índia do Sul. Não se
trata apenas da associação entre um paradigma terminológico e uma norma de
casamento análoga. As variações na nomenclatura e em seus correlatos
matrimoniais, as peculiaridades no ajuste entre os níveis categorial, normativo e
empírico dos sistemas de parentesco, tudo isso apresenta semelhanças tão notáveis,
que nosso problema passa a ser, na verdade, o de determinar as diferenças quanto a
esses aspectos, e de as referir às propriedades particulares da paisagem ameríndia.
Há boas razões, portanto, para operarmos com uma noção forte de “dravidiano” no
caso amazônico, já para determinar onde cessam as analogias, já para ver até que
ponto as lições sul-americanas podem ser úteis para o modelo teórico baseado na
realidade indiana.
A AMAZÔNIA NA TEORIA DA ALIANÇA
Para se avaliar a pertinência da “questão dravidiana” no contexto americanista, é
preciso recuar até os fundamentos da teoria da aliança, em As estruturas elementares
do parentesco (Lévi-Strauss 1967a [1ª. ed. 1949], doravante referida como EEP).
Os materiais sul-americanos têm ali uma presença ao mesmo tempo discreta e
fundamental. A experiência etnográfica de Lévi-Strauss entre os Nambikwara parece
ter sido decisiva para o desenvolvimento da primeira parte do livro, onde se
estabelece o princípio de reciprocidade e a ele se remete o casamento bilateral. Os
Nambikwara e os Tupi-Guarani já estavam na origem das primeiras reflexões do
autor sobre o valor sociológico da afinidade (id. 1943), e nas EEP aparecem
exemplificando a forma mínima de troca matrimonial, o casamento avuncular.
Após terem servido para estabelecer a fórmula verdadeiramente elementar de
aliança – o casamento de primos cruzados (EEP: 151, 166-67) –, os fatos sulamericanos são, porém, logo abandonados em favor de uma análise minuciosa dos
sistemas australianos, cujas seções matrimoniais prestam-se melhor à determinação
conceitual da troca restrita. O “método das relações” que subjaz ao casamento de
primos cede o lugar ao procedimento global do “método das classes” empregado na
Austrália. As sociedades australianas aparecem como encarnando a forma pura da
troca restrita (EEP: 531), pois exibiriam uma fórmula global de casamento que é,
ao mesmo tempo, um algoritmo da morfologia social. Lévi-Strauss, no fim das
contas, dá a impressão de ter-se deixado influenciar pelo que ele mesmo chamou de
“aristotelismo australiano” (EEP: 475) – o privilégio das classes sobres as relações –,
o que gera contradições internas ao livro. Assim, as organizações dualistas são
reentronizadas, apesar da crítica do autor à sua reificação pelos evolucionistas, e
formas implícitas de descendência são postuladas, após se ter denunciado exatamente
tal procedimento (EEP: 124-31; ver Dumont 1966: 121).
O abandono dos fatos sul-americanos se explicaria apenas pela pobreza da
etnografia regional à época da redação das EEP? Ou seria ele função do
durkheimianismo a marcar esse livro, que já foi chamado de “pré-estruturalista” por
sua preocupação com a integração morfológica da sociedade (Dumont 1971: 132;
Schneider 1972: 62 nº. 11)? Com efeito, o autor visa ali a determinação de estruturas
de troca matrimonial capazes de funcionar como dispositivos de totalização dedutiva
do socius; todo o argumento das EEP é dominado por uma concepção morfologista
da “estrutura social” (expressão que se tornará cada vez mais rara ao longo da obra
de Lévi-Strauss). As seções australianas ligadas pela troca restrita, assim como as
linhagens aliadas nos sistemas de troca generalizada, são grupos sociologicamente
integrados por fórmulas globais que totalizam logicamente sociedades. É essa
concepção morfológico-dedutiva que levará o autor à célebre definição do casamento
patrilateral como uma figura “primitiva”, incapaz de gerar uma rede
diacronicamente estável de relações entre grupos.
Por fim, e sobretudo, o privilégio analítico do método das classes em detrimento
do método das relações é acompanhado de uma ênfase ambígua e problemática na
unifiliação (descendência unilinear) como condição formal das estruturas
elementares. Se a fórmula básica do casamento de primos é dita independer de
qualquer “regra particular de filiação” (EEP: 154, 506), os sistemas de classes (seções
ou linhagens) são sistemas de aliança entre grupos sociocêntricos, para cuja definição
unívoca uma regra de unifiliação é postulada. {4} Em trecho acrescentado na segunda
edição do livro (EEP: 121-24), Lévi-Strauss matizará sua hipótese de 1949 sobre a
unilinearidade geral das sociedades primitivas, reconhecendo a grande frequência de
sistemas cognáticos. Mas descarta-se destes afirmando não possuírem estruturas
elementares de parentesco, as quais se veem, portanto, restritas a sociedades dotadas
de dispositivos de unifiliação.
Tudo isso suscita grandes dificuldades para a aplicação da teoria das EEP aos
materiais sul-americanos. Como o autor adverte,
Estamos longe de pôr em dúvida a existência de estruturas de parentesco
elementares nas outras partes do mundo, sobretudo na África e na América…
[Mas] nem a África, nem a América nos oferecem nada de comparável, em
precisão e limpidez, ao que nos propicia o estudo das sociedades australianas
(EEP: 527-28).
Essa falta de “precisão e limpidez” sul-americana deriva, como está claro, da
dificuldade de se analisarem as sociedades deste continente em termos de fórmulas
globais de intercâmbio matrimonial entre grupos unilinearmente constituídos. Por
seu turno, as indicações do autor sobre os sistemas cognáticos, introduzidas na edição
das EEP de 1967, tampouco parecem autorizar sua extensão direta aos materiais
sul-americanos, como atesta a ausência destes na discussão sobre o conceito de
“Casa” em Paroles données (id. 1984a). As sociedades cognáticas visadas nesse livro,
as mesmas, note-se, que o autor tinha em mente nas EEP, podem ser vistas como
situadas, tipologicamente, além das estruturas elementares. Trata-se de sociedades de
descendência cognática (Goodenough 1970), dotadas de um rico aparato
institucional, que exibem um cognatismo sociocêntrico, produtor de corporações ou
pessoas morais (as Casas) de um tipo bem mais complexo que as seções ou
linhagens dos sistemas com estrutura elementar. Nestes últimos, termos e relações
estão claramente separados: a regra de filiação e a regra de aliança são distintas e
complementares. Nos sistemas de descendência cognática, em contrapartida, eles se
confundem e permutam seus valores.
Já as sociedades simples da Amazônia, como os exemplares Nambikwara e
tantas outras, estariam situadas não além, mas aquém das estruturas elementares.
Reduzidas à incoatividade do método das relações e do casamento de primos,
indiferentes a qualquer forma de descendência, com morfologias não-segmentares,
elas praticariam um cognatismo de carência. O parentesco, aqui, não ultrapassaria o
esquematismo sumário da parentela egocêntrica, mero dispositivo operatório
incapaz de se constituir em termo de uma estrutura de intercâmbio. De resto, muitas
dessas sociedades incidem naquelas formas degeneradas (no sentido matemático,
mas não só nele) de reciprocidade, como os casamentos avuncular e patrilateral, que
inibem a vocação sociogenética da aliança matrimonial. Na Amazônia,
parafraseando uma expressão das EEP, encontraríamos os limites internos da troca
restrita. Como já observara Fred Eggan, “há todo um mundo de estruturas sociais
“embaixo” das “estruturas elementares de parentesco” de Lévi-Strauss” (apud Ives
1993: 19).
Pré-estruturalista – juízo algo arriscado –, o livro que inaugurou a teoria da
aliança sê-lo-ia menos por sociológico, que pela sociologia ali praticada. O
problema com as EEP não é propriamente o favorecimento do método das classes
em detrimento do método das relações (classes são um tipo particular de relação,
como sabemos desde De Morgan e Peirce), mas a adesão a uma lógica de termos em
detrimento da consideração estrita das relações. O modelo da sociedade segmentar
talvez responda por essa concepção ainda demasiado morfologista de estrutura
social. A categoria da totalidade comanda a dedução; inseparáveis de seus termos, as
relações servem à produção de um todo que é o termo final. De certa forma, as EEP
trazem apenas uma teoria restrita das estruturas elementares; uma verdadeira teoria
generalizada dessas estruturas ainda está por fazer. {5}
Os trabalhos de Louis Dumont e o debate subsequente sobre os sistemas
dravidianos introduziram modificações importantes no modelo das EEP. Dumont
elucidou com minúcia o funcionamento de um sistema terminológico que,
exprimindo a regra positiva de aliança bilateral, não implicava estruturalmente
quaisquer regras de descendência ou de intercâmbio entre grupos exogâmicos. A
partir de ideias inicialmente formuladas por Leach (1951), ele elaborou a diferença
entre os sistemas de fórmula global, sociocêntricos, e aqueles de fórmula local,
egocêntricos; no caso dos sistemas de aliança simétrica, esta seria a diferença entre as
seções australianas e as categorias dravidianas. Adaptando, finalmente, a distinção
britânica entre prescrição e preferência, Dumont examinou a articulação entre a
terminologia simétrica e as preferências matrimoniais assimétricas encontradas na
região tamil.
A releitura das EEP por Dumont propôs vários deslocamentos, seja
radicalizando a perspectiva estruturalista, seja tomando rumos idiossincráticos. No
primeiro caso estão a crítica à noção de unifiliação (o “fetiche da filiação subjacente”),
a ênfase na ideia de transmissão da afinidade (a “aliança diacrônica”) e a dupla
recusa da reificação do conceito de grupo e do problema da integração social; no
segundo, está o abandono do que o autor chama de “noção semiempírica de troca”,
em favor de uma teoria da “integração mental” de oposições conceituais primárias
(consanguinidade versus afinidade). É entretanto o mesmo Dumont, crítico da
passagem irrefletida do local ao global, quem irá mais tarde hipostasiar a ideia
durkheimiana de totalidade, evoluindo, portanto, em direção diametralmente oposta
à de Lévi-Strauss.
A dificuldade de se analisarem as sociedades amazônicas em termos de fórmulas
globais foi um ponto cedo levantado pelos americanistas, com implicações para
a validade do conceito de “sistema dravidiano” na Amazônia. Rivière (1969: 276,
1973: 6-7, 1984: 104) adotou alguns dos argumentos de Yalman (1962, 1967)
contra Dumont, recusando a ideia de aliança diacrônica no contexto guianense,
por associá-la a situações unilineares, no que foi seguido por Schwerin (198384). Overing Kaplan (1973: 568 nº. 4; 1975: cap. 9), ao contrário, sustentou
uma interpretação dumontiana dos sistemas indiferenciados e endogâmicos da
Guiana, postura que foi assumida, entre outros, por Albert (1985), Taylor (1983,
1989) e Seymour-Smith (1988). Minha própria posição se alinha com a de
Overing; entretanto, considero que a noção de aliança diacrônica, em um
contexto onde inexistem grupos ligados por intercasamento, exigiria precisões
adicionais. Dumont (1971: 134, 1975: 5), por exemplo, já distinguia entre os
aspectos coletivo e permanente da aliança perpétua: ela seria coletiva (e
permanente) em contextos de tipo australiano; e seria permanente (mas
individual) no contexto dravidiano. A própria estratégia teórica desse autor,
porém, buscando estabelecer que a aliança pode ser um princípio de perpetuação
tão eficaz como a descendência, levou-o a tratar a primeira como um pendant da
segunda: transmite-se a afinidade como se transmite a consanguinidade – e a
transmissão da consanguinidade não está claramente distinguida da ideiainstituição da descendência. Depois de Yalman, outros autores (Good 1980: 479,
483) protestaram contra o que seria uma adesão de Dumont àquilo que ele mais
denunciara, a reificação de grupos de descendência. A resposta do indologista
francês (1983: 149) a esse ponto em particular não é muito esclarecedora.
Sobre termos e relações. É possível imaginar-se três formas simples de
combinação entre esses dois elementos, em um modelo de sistema de parentesco:
[1] subordinação das relações aos termos; [2] termos e relações em equilíbrio;
[3] subordinação dos termos às relações. O primeiro caso é representado pela
teoria da descendência, onde a aliança matrimonial não tem estrutura própria,
sendo mecanismo ancilar de perpetuação das corporações de parentesco; no
segundo caso estariam as estruturas elementares das EEP, que supostamente
exigiriam uma regra de unifiliação; o terceiro caso seria o das sociedades
indiferenciadas da Amazônia. Isto coincide com a distinção feita por Overing
Kaplan (1975: 2), entre “sociedades que enfatizam a descendência, aquelas que
enfatizam tanto a descendência como a aliança, e por fim aquelas que utilizam
apenas a aliança como princípio básico de organização” (ver também Århem
1981a: cap. 10). Por sua vez, os sistemas de Casas descritos por Lévi-Strauss
poderiam constituir uma quarta situação, variante da terceira: a Casa é a
“objetivação de uma relação” (1984: 195); termos e relações, aqui, seriam
indiscerníveis. Vanessa Lea (1986, 1993) desenvolveu argumentos persuasivos
para pensar-mos alguns sistemas centro-brasileiros a partir do conceito de
maison; isso me faz suspeitar que a via que leva do “aquém” ao “além” da
elementaridade clássica – do cognatismo de carência dos povos amazônicos ao
cognatismo sobredeterminado das sociedades de Casas – pode ser curta, e talvez
não precise passar por alguma etapa de unilinearidade. O mesmo se diga das
situações terminológico-matrimoniais: entre o minimalismo 2-section de
algumas partes da Amazônia e a paisagem crow-omaha do Brasil Central, entre
a troca restrita das primeiras e o regime semicomplexo das segundas, as figuras
de transição são inúmeras, e praticamente nenhuma delas passa pela troca
generalizada clássica. Sugeri, em outro trabalho (Viveiros de Castro 1990), que
as figuras-chave na paisagem sul-americana são o casamento patrilateral e o
regime de intercâmbio multibilateral, estruturas nas quais a distinção entre
elementaridade e complexidade é problemática.
O período moderno da reflexão sobre o parentesco na América do Sul tropical iniciase em duas frentes, abertas no fim dos anos 60: os estudos sobre os Jê e Bororo do
Brasil Central, e aqueles sobre os Caribe e demais povos da Guiana. Como já
advertimos, os primeiros, por envolverem dificuldades específicas, à margem do
dravidianato amazônico, não serão tratados neste artigo, bastando-nos uma rápida
evocação.
Um dos principais resultados obtidos pela equipe do Harvard-Central Brazil
Project (ver Maybury-Lewis [org.] 1979) foi a dissolução, que poderíamos chamar
culturalista, do domínio do parentesco entre os Jê-Bororo. Tradicionalmente descritas
como portadoras de variadas formas de descendência, as sociedades do Brasil
Central foram reanalisadas pelo HCBP de um ângulo inteiramente diverso. A
residência uxorilocal substituiu a unifiliação como dispositivo de base, e as
terminologias de parentesco (especialmente as dos Jê do Norte) foram postas em
correlação com outras dimensões da práxis indígena, notadamente com as conexões
onomásticas e as relações cerimoniais.
É preciso apreciar os resultados do HCBP à luz da época. Travava-se, então, um
combate com a teoria genealógico-extensionista de Scheffler e Lounsbury, outro com
o juralismo de Radcliffe-Brown e sua essencialização do parentesco, e outro ainda,
mais discreto, com as tentativas malsucedidas, por parte de Lévi-Strauss, de
enquadrar os dados centro-brasileiros na teoria das estruturas elementares. Com
isso, as contribuições positivas feitas pelo grupo do HCBP tiveram como correlato
algumas lacunas. Os regimes matrimoniais permaneceram indeterminados; a ênfase
na especificidade dos princípios estruturais daquelas sociedades isolou-as na
paisagem sul-americana, dificultando a comparação e a generalização; e a redução
analítica do parentesco não se acompanhou de uma reflexão propriamente
sociológica (com a exceção, importante, do trabalho de Terence Turner). {6} Mas
esses reparos não nos podem fazer esquecer que a crítica do HCBP (ou dos Jê) à
teoria da aliança, e sua desmontagem do parentesco como domínio totalizador,
foram então, e continuam sendo, aportes preciosos à análise desses mesmos temas
no continente – desde que tomados com as devidas precauções, como se impõe para
o caso daquelas sociedades que apresentam sinais evidentes de estruturas de aliança
simétrica, ou seja, a maioria dos grupos da Amazônia.
O livro de Peter Rivière (1969) sobre o casamento entre os Trio, povo caribe da
Guiana, é a primeira descrição etnográfica rigorosa de um sistema de parentesco
amazônico. Ele está na origem de numerosas outras monografias regionais (o
parentesco é o tema guianense por excelência), tendo disposto a maioria das balizas
hoje utilizadas. Em Marriage among the Trio, Rivière define uma paisagem que logo
se tornaria típica: sociedades pequenas, sem segmentações sociocêntricas, onde o
grupo local concebido como unidade endogâmica é politicamente autárquico;
terminologias que tecem variações sobre um paradigma de duas seções, podendo
codificar diferentes ideais matrimoniais; superposição ideológica da endogamia local
e da endogamia de parentela, acompanhada da presença discreta, mas essencial, de
casamentos extralocais; vigência de classificações sociais por gradiente de distância
genealógico-residencial, exprimindo um dualismo concêntrico entre exterior e
interior; valor político central, mas profundamente ambíguo, das relações de
afinidade, que se constituem ao mesmo tempo em cimento do grupo local e em sua
linha de fratura. Pouco depois, Rivière (1973) irá sugerir que a terminologia de
aliança simétrica é uma estrutura comum a todas as sociedades da floresta tropical,
definindo mesmo uma “área cultural” das terras baixas sul-americanas. Em 1984, o
autor publica uma influente síntese bibliográfica sobre as estruturas sociais
guianenses, onde reitera e desenvolve essas ideias a partir de um modelo de
“economia política do casamento”, no qual a variável crítica é o controle masculino
sobre a produção e reprodução femininas, realizado na Guiana pela endogamia, a
tendência uxorilocal e o avunculato. Esse modelo permite-lhe, ademais, articular
comparativamente as organizações sociais da Guiana, do Rio Negro e do Brasil
Central (ver comentários em Viveiros de Castro 1987).
Em 1975, Joanna Overing Kaplan publica The Piaroa, livro que segue a trilha
aberta por Rivière, e que será uma contribuição decisiva para o estudo do parentesco
no continente. Reivindicando a teoria de Dumont, a autora estabelece a feição
dravidiana do sistema piaroa e redefine a norma endogâmica guianense, mostrando
a importância da parentela bilateral localizada na organização social da região. Ela
detecta, além disso, a coexistência de modelos alternativos de parentesco e casamento,
os quais traduziriam concepções heterogêneas da composição do grupo local.
Também aqui a afinidade surge como o nexo crítico do sistema social, submetida a
uma complexa dialética de repetição-diversificação, e a toda uma manipulação
prescritiva que trai sua natureza frágil e contraditória. Overing procede a uma
avaliação inovadora dos limites da teoria clássica das EEP, dissociando
definitivamente a aliança matrimonial, enquanto princípio sociológico instituinte, de
todo descent construct e do paradigma de sociedade segmentar. Mais tarde, a autora
irá propor uma comparação continental – ao longo do triângulo exemplar
Guiana/Brasil Central/Rio Negro – que privilegia as filosofias sociais indígenas,
definidas como portadoras de uma constante: o lugar problemático da diferença entre
as categorias de humanos que povoam o mundo (id. 1981, 1984). A diferença, cujo
esquema sociológico básico é a afinidade, aparece ao mesmo tempo como necessária
e perigosa, como condição e limite do socius, e portanto como aquilo que é preciso
tanto instaurar quanto conjurar. A afinidade revela-se, com isso, o elemento por
excelência do político, e o horizonte negativo de utopias sociológicas e escatológicas.
Não é difícil reconhecer, nessas análises de Overing, uma inspiração essencialmente
lévi-straussiana (mais ou menos inconfessa), bem como sua convergência com
temas importantes do americanismo da década de 70 (H. Clastres 1975; Carneiro da
Cunha 1978).
Os trabalhos de Rivière e Overing são a primeira tentativa de generalização
sociológica na América do Sul tropical. Eles confirmam no plano macrorregional a
convicção, sempre manifestada por Lévi-Strauss, sobre a profunda unidade cultural
do continente. O sucesso da tentativa, na verdade, impôs o paradigma guianense
com tal força persuasiva que o problema, hoje, é evitar sua aplicação descontrolada.
O atomismo sociopolítico, a prescritividade endogâmica, o binarismo cosmológico
do dentro/fora são características cuja pertinência descritiva mais ampla não deve
conduzir à sua essencialização – seja em outras regiões da Amazônia, seja na
própria Guiana.
A complexificação do modelo etnográfico guianense tem sido, sem dúvida, levada
a cabo por numerosos pesquisadores. Simone Dreyfus (1977), seguindo Overing,
mostrou como a estrutura de aliança simétrica pode gerar e gerir espaços sociais de
dimensões variáveis, conclusão que dissocia os aspectos geográfico e genealógicocategorial da endogamia (algo que Kirchoff já intimara); Kaj Århem (1981a)
discutiu a interação entre a aliança simétrica e princípios unifiliativos, para o caso do
Rio Negro; Rivière (1984) sublinhou as implicações diferenciais dos modos de
residência e da interveniência de segmentações sociais globais; Overing Kaplan
(1981), em um importante comentário sobre a etnologia dos Jê, generalizou a noção
de troca simétrica para domínios não-matrimoniais. Dentro e fora da Guiana,
finalmente, o caráter atômico ou autárquico das estruturas sociais amazônicas foi
submetido a uma cerrada crítica histórico-etnográfica. Farage (1985, 1991), Colson
(1983-84a, b, c, 1985), Dreyfus (1983-84, 1993a), Villalón (1983-84) e Howard
(1993) insistiram sobre a importância das redes regionais de comércio e casamento,
bem como sugeriram a presença uma organização política mais diferenciada que o
horizontalismo igualitário comumente imputado às sociedades da Guiana. Albert
(1985), por sua vez, demonstrou detalhadamente como o conjunto
multicomunitário, horizonte social da práxis yanomami, é gerado pela articulação
dinâmica entre a dimensão do parentesco e a esfera político-ritual; e eu mesmo
propus (1986a), para os Tupi-Guarani, uma topologia algo mais complexa que a
tradicional relação de exclusão mútua, ou complementaridade extensiva, entre o
exterior e o interior do socius.
A ênfase nos sistemas regionais em que estão ou estavam inseridas as sociedades
amazônicas – estudadas tradicionalmente de um ponto de vista que, ao se
concentrar no grupo local, assumia ao mesmo tempo certas ideologias nativas e
os resultados da situação colonial – tem sido uma nota dominante na etnografia
das últimas décadas. Além dos já citados, ver: Århem 1989; Bastos 1983;
Chaumeil 1985; Jackson 1976; Menget 1977, 1978, 1985a, b; Ramos 1981;
Renard-Casevitz, Saignes & Taylor-Descola 1986; Taylor 1985. Seria tempo de
se tentar uma análise comparativa das morfologias e processos supralocais na
Amazônia, que dispusesse lado a lado os “conjuntos multicomunitários”
yanomam, os “grupos” e “aglomerações” trio, os madiha kulina, os itso’fha
piaroa, os “nexos endógamos” jívaro, os “subgrupos” parakanã ou wari’, e assim
por diante. Minha impressão (pace Colson 1983-84a: 12-14) é que essas
morfologias não são, geralmente, segmentares, mas antes indutivas e nãototalizáveis, isto é, de tipo rede. Os grupos locais e aglomerados regionais são
condensações mais ou menos transitórias dessas redes policêntricas, comandadas
por um regime contrátil de aliança, e não por qualquer estrutura finalizada em
termos de descendência ou território. Mesmo onde temos grupos nomeados
(Kulina, Wari’, Parakanã, a complicada situação dos nawa pano, ou os sibs e
grupos exógamos tukano), a natureza histórica mais que estrutural dessas
unidades sobressai. O caráter de fluxo que tomam as identidades coletivas na
paisagem amazônica torna questionável a aplicação da categoria clássica de
“tribo” (Howard op. cit.). Sob este aspecto, a teoria pertinente deveria ser, para
usarmos um símile desajeitado, antes ondulatória que corpuscular.
Chegamos com isso, enfim, à hipótese do presente ensaio. Sem poder realmente
verificá-la, não posso senão formulá-la como segue. É justamente porque a aliança
simétrica não funciona segundo uma fórmula global, na Amazônia, que os limites do
parentesco se traduzem numa limitação do foco sobre o parentesco no dar conta das
propriedades globais dos sistemas da região. Os limites da aliança como princípio de
organização coletiva são, em larga medida, os limites do grupo local (aldeia, nexo
endógamo); para além desse círculo, a aliança serve essencialmente de substrato
indutivo para a operação de circuitos de intercâmbio de outra natureza: cerimoniais,
guerreiros, funerários, metafísicos, que funcionam como outros tantos princípios
sociológicos. A sociologia da Amazônia indígena não pode limitar-se a uma
sociologia do parentesco (ou de sua simples sublimação cosmológica), porque o
parentesco é limitado e limitante ali. Sua evidência às vezes cegante é o resultado da
convergência entre a reificação ideológica do grupo local, própria de alguns modelos
nativos, e o positivismo de seus analistas (ver Albert 1985: 679-84, 1988: 89;
Viveiros de Castro 1986a: 666). O desafio posto pelas socialidades da Amazônia é
sua irredutibilidade a uma abordagem extensionista (no sentido que a lógica dá a
este termo) ou positivista dos fenômenos sociais. O positivismo, em certo sentido,
nada mais é que uma interpretação extensionista do objeto. Daí ao célebre
“individualismo” tantas vezes imputado aos povos amazônicos, o passo é curto.
A partir da segunda metade dos anos 70, os estudos de parentesco na Amazônia
começam a experimentar uma expansão ainda em curso. Ao lado de monografias
detalhadas, multiplicam-se os simpósios temáticos e os esforços de generalização. O
simpósio do XLII Congresso de Americanistas (Overing Kaplan [org.] 1977) foi,
nesse sentido, particularmente decisivo. Ali se oficializou, por assim dizer, a
decretação de falência dos modelos clássicos (africanos ou australianos) de descrição
da estrutura social e reconheceu-se a necessidade de se forjar uma linguagem
adequada à realidade etnográfica, reimergindo-se o parentesco em sistemas mais
amplos de classificação social e em concepções cosmológicas globais. Nos últimos
dez anos, trabalhos importantes têm tomado essa direção, debruçando-se, por
exemplo, sobre o papel das trocas de violência na geração de estruturas supralocais –
o que é um comentário eloquente às limitações da axiomática do parentesco na
dedução das totalidades sociais amazônicas (ver Albert 1985, e Menget [org.] 1985)
–; ou sobre a imbricação entre a lógica matrimonial e os circuitos de troca
onomástica (Ladeira 1982; Lea 1986); ou ainda, sobre a relação entre o idioma do
parentesco, os ideais de sociabilidade (Gow 1991a; McCallum 1989; Townsley 1988)
e os mecanismos de identificação coletiva e individual (Erikson 1990, 1996); ou, por
fim, sobre a articulação entre classificação terminológica e classificação sociopolítica
(C. Hugh-Jones 1979).
O trabalho mais exaustivo já produzido sobre os sistemas de parentesco sulamericanos, entretanto, foi publicado por Alf Hornborg (1988). Esse livro compara
48 sociedades do continente, buscando correlacionar as terminologias, os padrões de
afiliação, as normas de casamento, o tamanho e a composição dos grupos locais, a
natureza das relações com o exterior, os indícios de estratificação sociopolítica, e
assim por diante. Extrapolando para todo o subcontinente a hipótese de Rivière sobre
a estrutura amazônica de aliança simétrica, e adotando como configuração
elementar um complexo definido pela endogamia, a ambilocalidade, a cognação e a
terminologia dravidiana, o objetivo de Hornborg é determinar a rede fatorial
responsável pela passagem dessa configuração às demais existentes na América do
Sul, isto é, não só ao Brasil Central, como às formações do altiplano andino.
Eclético e conciliador em sua abordagem, mas fiel a uma concepção
resolutamente positivista de estrutura social, o livro de Hornborg exigiria uma
avaliação detalhada, algo que não podemos fazer aqui. Há nele abundantes méritos:
a consolidação de materiais dispersos, a elaboração de uma suma sobre os
principais debates a respeito dos sistemas de duas seções, a retomada corajosa da
questão do parentesco jê, a abertura para o altiplano, e, em geral, a admirável
ambição da tentativa. Mas há também sérios defeitos, como a manipulação ingênua,
senão tendenciosa, de equações terminológicas extraídas de seus contextos, ou a
simplificação brutal de conjuntos etnográficos complexos. O livro falha, sobretudo,
pelo achatamento das sociedades do continente à dimensão do parentesco – tratada
nos termos mais tradicionais, onde a referência constante a Lévi-Strauss não esconde
uma inspiração murdockiana –, que elide uma questão crucial, a do englobamento
dessa dimensão por outros circuitos de troca simbólica. O que vem a ser a tese do
presente ensaio.
O paradigma e os desvios
Partamos da hipótese sobre a existência de um substrato pan-amazônico de tipo
dravidiano, deixando de lado, por ora, os debates sobre se isso significa apenas uma
terminologia de troca bilateral (uma ideologia da aliança simétrica sem implicações
sociológicas), ou se efetivamente implica uma forma de organização sociopolítica,
um determinado regime matrimonial fundado na transmissão da aliança. Constatese, de saída, que muito poucos sistemas amazônicos coincidem com o tipo-ideal
terminológico e que as variações a partir do padrão de aliança simétrica são
“surpreendentes” (Overing Kaplan 1977: 394). Mesmo na Guiana, seu lugar de
eleição, a terminologia conhece flutuações importantes (Rivière 1984: 44-48; Henley
1983-84).
O PROBLEMA NA AMAZÔNIA
De um ponto de vista puramente tipológico, são interessantes, por exemplo, as
variedades de classificação das gerações distais (G±2 e G±3): ora tratadas ao modo
clássico dravidiano, com a neutralização do contraste entre consanguíneos e afins;
ora assimiladas às categorias de afinidade das gerações centrais (GØ e G±1); ora
exibindo equações alternadas complexas e/ou bipartições lineares de tipo kariera. As
nomenclaturas dos Piaroa, Yanomam, Cuiva, Ye’kuana, Panare, e de muitos povos
Pano são exemplos dessa variação. Outros casos apresentam marcas de uma
preferência avuncular, que pode contaminar (via de regra, apenas parcialmente)
diferentes níveis geracionais, como entre os Trio, os Zoró, os Cinta-Larga ou os
Parakanã.
Outro desvio característico é uma certa inflexão “havaiana” em GØ, que se
costuma explicar por deriva histórica (Dole, J. Shapiro), por neutralização contextual
(Basso), por ideologias de negação da afinidade (Thomas), sempre a partir de uma
base dravidiana canônica. Os Kuikúro, Kamayurá, Tenetehara, Cauyá, Tapirapé,
Kalapalo e Pemon são bons exemplos. Em outros casos, como o dos Aruaque altoxinguanos, traços “iroqueses” estão presentes em G-1, o que complica o panorama,
se aceitarmos o consenso teórico sobre a diferença, sutil mas decisiva (apontada por
Lounsbury 1964), entre as terminologias dravidiana e iroquesa.
A diferença diz respeito, basicamente, ao modo de cálculo do cruzamento dos
primos de segundo grau em diante. Em um sistema dravidiano, os filhos de
primos cruzados de mesmo sexo são cruzados (ou afins), os filhos de primos de
sexo oposto são paralelos (são germanos); em um sistema iroquês, dá-se o
inverso. Gregor (1977: 277, 288), apesar de registrar uma terminologia com
cruzamento iroquês para os Mehináku, classifica-a de “dravidiana”. Achei o
mesmo traço entre os Yawalapíti (Viveiros de Castro 1977: apêndice VI). A
presença de um cálculo iroquês de cruzamento, na determinação de casamentos
preferenciais, encontra-se entre os Aguaruna e Candoshi (Taylor 1989). Os
materiais amazônicos permitem repensar toda a questão das relações entre
sistemas dravidianos, iroqueses e havaianos. Taylor (op. cit.) e Viveiros de
Castro (1990) chegaram a formulações de uma estrutura complexa de troca
restrita – casamento com primos de segundo grau cruzados ao modo iroquês –
que pode ser aproximada a casos conhecidos fora da Amazônia (Ngawbe do
Panamá, Umeda da Nova Guiné, Aluridja da Austrália).
Não cabe aqui examinar a discussão sobre os sistemas tupi-guarani e altoxinguanos (o cross-generational type de Dole, os artigos de Wagley e Galvão, o
debate Basso/Dole etc.). Registro apenas um ponto referente às terminologias
tupi-guarani, que é tratado com perspicácia em Fausto 1991: a instabilidade das
designações para os primos cruzados. A tese de Fausto é que as terminologias
tupi-guarani não possuem termos exclusivos para esta categoria de parentes,
devido à interferência entre uma estrutura horizontal dravidiana e uma estrutura
oblíqua avuncular; esse vazio é preenchido de diversas formas, inclusive por uma
deriva havaiana. Ora, tal situação evoca o vazio terminológico dos Trio para os
primos cruzados, fenômeno ligado ao avunculato e, como no caso parakanã,
girando criticamente em torno da FZD. Suspeito que a instabilidade para os
cruzados de GØ é mais difundida na Amazônia, e arriscaria mesmo uma
aproximação disso com as terminologias oblíquas dos Jê do Norte – que, como
mostraram DaMatta (1979) e Ladeira (1982), variam, entre si e internamente,
justo na classificação dos primos cruzados. Quanto à presença de sistemas
terminológicos alternativos, ela sugere a vigência de níveis e contextos
hierárquicos (sensu Dumont) de classificação social, e de estratégias
matrimoniais elas mesmas hierarquizadas. {7}
A expressão analítica da afinidade é outro problema típico, e crucial. Dumont
afirmava que “o traço geral, e característico, dos vocabulários correspondentes ao
casamento de primos cruzados é a ausência de termos distintos para os parentes por
afinidade” (1971: 114)– e os vocabulários dravidianos são, quanto a isso,
perfeitamente característicos. Ora, tal traço está longe de ser universal na Amazônia.
Há um continuum quanto à presença de termos específicos para afins reais (distintos
de afins terminológicos ou virtuais), desde aquelas terminologias puramente duas
seções (Makuxi, Akawaio, Wayana, Yanomam, Ka’apor, Paresi, Wayãpí), até
aquelas que exibem conjuntos completos de termos de afinidade sem denotação
consanguínea (muitos Tupi-Guarani, os alto-xinguanos, os Trio, alguns grupos
Jívaro). Neste extremo da escala, fica um tanto difícil caracterizar as terminologias
como prescritivas, no sentido “draconiano” (id. ibid.: 129) de Needham e MayburyLewis. Outra dificuldade são aquelas terminologias que, embora evocativas do
padrão sul-indiano, e acompanhadas de normas bilaterais de casamento,
apresentam numerosos termos descritivos e/ou distinguem parentes lineares de
colaterais de um modo nem sempre redutível pela postulação de superclasses, como é
o caso dos Tukano, de numerosos povos Tupi-Guarani ou dos Waimiri-Atroari.
Tudo isso sugere que é preciso um pouco mais de esforço para refutar Scheffler (1971:
237), mesmo que se esteja convencido da solidez da posição de Dumont, e dos
argumentos decisivos de Trautmann (op. cit.: 61) para o caso indiano.
O recurso à presença de termos específicos de afinidade (antes que ao modo de
cruzamento) para distinguir os sistemas iroqueses dos dravidianos parece
remontar a Buchler & Selby (1968: 233). E, de fato, Dumont (1953, 1970: 50,
94) e Trautmann (op. cit.: 85, 121-24), para ficarmos apenas neles, sublinham a
ausência de tais termos como um traço fundamental dos sistemas dravidianos,
diretamente ligado à regra positiva de casamento. Acontece que, se a ausência de
termos específicos de afinidade pode ser um bom índice de um sistema elementar
de aliança, a presença de tais termos não garante a não-elementaridade. Na
Amazônia, são muito comuns os sistemas com conjuntos mais ou menos
completos de termos de afinidade (Rivière 1984: 47-48, 61, 69; Basso 1970: 412;
Jackson 1983: 121-22; Seymour-Smith 1988: 211-14, Viveiros de Castro 1986a:
397-99 – para apenas alguns poucos casos), o que não impediu os etnógrafos de
falar em aliança simétrica, regra positiva de casamento etc. Não há dúvida,
porém, que tal traço em um ambiente dravidianoide pede explicação; a maioria
dos autores sugere uma tensão entre a regra de casamento e o sistema de
atitudes, e/ou a presença de uma distinção entre afins aparentados e nãoaparentados. Concordando com tais interpretações, sugiro que o que está em
jogo é a ambiguidade característica da afinidade na Amazônia e, ao mesmo
tempo, a possibilidade de um descolamento do regime dravidiano mínimo em
direção a um regime mais complexo (Seymour Smith 1988: 211; Taylor 1989;
Fausto 1991).
Entre vários povos da família Pano, por fim, a tendência tão difundida na Amazônia
– presente no Alto Xingu, nos Tukano, Panare, Ye’cuana, Cuiva, Shiwiar, nos
Quichuas de Canelos – à identificação entre as gerações alternas cristaliza-se em
seções matrimoniais de clara feição australiana, sem deixar de apresentar
características comuns ao dravidianato amazônico (Melatti 1977; Kensinger 1984;
McCallum 1989; Erikson 1990). A questão aqui, portanto, não é a da discriminação
entre “dravidiano” e “iroquês” ou “havaiano”, mas a da diferença entre “dravidiano” e
“kariera”.
Em suma, a adequação do modelo dravidiano à paisagem amazônica parece
multiplamente duvidosa. O paradigma é neutralizado nos desvios havaianos e
iroqueses; é infletido por equações oblíquas, que exprimem o casamento avuncular de
um modo mais completo que no caso da Índia do Sul, onde as terminologias
guardam certas simetrias básicas, evitando identificações terminológicas do tipo FZ
= MM etc. (Good 1980: 491, 493-95); é descritivizado, no caso dos termos
separados de afinidade e de designações compostas; é linearizado, nos sistemas com
classificação kariera. E se, em uma interpretação historicista da hipótese de Rivière,
estendermos o paradigma dravidiano até os Jê-Bororo e outros povos “marginais”,
então a quantidade de sociologia conjetural necessária para explicar os desvios logo
atinge o inverossímil.
No que concerne às normas de casamento, ainda outras anomalias aparecem. A
prescrição terminológica bilateral, quando é este realmente o caso, pode ver-se
especificada por preferências patrilaterais (Tukano, Machiguenga) e pela difundida
preferência avuncular, que vai desde a sua expressão terminológica (Trio, Zoró,
Parakanã, Tupinambá) até a sua prática estratégica, espécie de incesto preferencial,
ali onde é tida por união problemática ou imprópria. {8} É particularmente
importante, sobretudo, uma distinção por vezes registrada, entre parentes “reaispróximos” de categorias desposáveis, proibidos ou menos preferidos, e parentes
“distantes-classificatórios”, preferidos. Isso inverte o ideal guianense de casamento
próximo, configurando uma espécie de havaianização matrimonial (EEP: XXX), e é
o caso dos Kulina, dos alto-xinguanos, dos Shiwiar e Candoshi, para os primos
cruzados; para a união com a ZD, é o caso dos Araweté e dos Pemon; para
casamento entre membros de gerações alternas, é o caso dos Panare e dos Ye’cuana.
E isso traz à mente a situação das Ilhas Fiji, onde o dravidianato se acompanha da
proibição de casamento com primos cruzados “reais” (Sahlins 1962: 160 e ss; LéviStrauss 1984: 212-26) – uma aproximação que talvez não seja irrelevante. {9}
O dravidianato amazônico, por fim, com todas essas variações, encontra-se nas
sociedades sem regra de descendência, que são maioria na região; em outras
variamente patri-orientadas, como os Tukano, os Jívaro, os Yaminahua, os
Parakanã ou Waimiri-Atroari; em sistemas uxorilocais e virilocais; em povos
pequenos e sociologicamente “amorfos”, e em outros com grupos locais muito
populosos, como os Tupinambá ou Guarani quinhentistas. Alguns autores –
Hornborg, em particular – têm sugerido que o dravidianato clássico seria adaptado
a unidades pequenas, tornando-se disfuncional uma vez franqueado um certo limiar
demográfico. A ideia é lógica, mas não inatacável. A possibilidade de variantes ricas
do dravidianato, capazes de articularem conjuntos sociais vastos, mas atomizados e
igualitários, foi convincentemente defendida por Taylor (1989). Ademais, caberia
explicar o funcionamento matrimonial das grandes aldeias tupi históricas, cujo
regime avuncular se definiria antes como “infra-” que como “meta-dravidiano”.
Alguns desses desvios têm sido regularmente registrados, e explicados dos modos
mais diversos: mudança de escala demográfica, regras de casamento emergentes ou
vestigiais, interveniência de formas de unifiliação, mudança nas soluções residenciais,
ideologias de substância, filosofias da aliança, e assim por diante. O livro já
mencionado de Hornborg é uma suma desses esforços, lançando, aliás, sua rede bem
além do dravidianato, e buscando compor todos os fatores que se mostrem
necessários para reduzir tal diversidade à condição de deformações “classificatórias”
de uma estrutura “real”, postulada como histórica e ontologicamente primeira: a
aliança simétrica entendida como fluxo empírico de trocas de “bens, serviços e
pessoas” (1988: 12, 18). Em um espírito mais afim ao do presente ensaio, Dreyfus
(1993b) e Taylor (1989), sem se afastarem da Amazônia dravidiana, buscaram
relativizar certas das anomalias evocadas, sugerindo que elas seriam variantes
inerentes ao paradigma. Variantes já presentes, aliás, na situação indiana. {10}
O PROBLEMA NA ÍNDIA
Com efeito, antes de abandonarmos o paradigma dravidiano como mais um falso
universal, um daqueles modelos africanos que nos comprazemos em repudiar, cabe
inquirir de seu tratamento pelos indologistas. Verificamos, então, que praticamente
todas as variações amazônicas ao esquema terminológico-matrimonial dravidiano
foram registradas na Índia do Sul.
O pioneiro estudo comparativo de Dumont (1957) já se via a braços com: [1] a
coexistência entre uma prescrição terminológica bilateral e preferências unilaterais;
[2] a determinação genealógica destas preferências; [3] as inflexões produzidas na
terminologia por regras diversas de afiliação unilateral; [4] a distinção entre
consanguíneos ou afins “plenos-reais” e aqueles “distantes-convencionais”. Nos grupos
estudados por esse autor, acrescente-se, havia uma aversão geral à troca de irmãs e à
sua repetição. Ou seja, inexistiam primos cruzados bilaterais do tipo MBD-=-FZD,
em uma discrepância flagrante com o espírito da terminologia (ver também Good
1980, 1981).
No que toca à estrutura dos vocabulários, encontram-se flutuações análogas.
Assim, a consolidação de Trautmann (op. cit.) detecta: [1] uma proliferação de
termos específicos de afinidade, ao longo da fronteira dravidiana/indo-ariana; [2]
equações “havaianas” que acompanham proibições de casamento entre primos
cruzados; [3] bipartições nas gerações ±2, eventualmente associadas a uma regra de
casamento entre gerações alternas. Este último ponto foi observado por outros (Beck
1972; Good 1980: 479, 1981: 115), e constitui um desmentido etnográfico de monta
à distinção tipológica entre dravidiano e kariera. Dumont se apoiava (inter alia)
nesse traço para opor os sistemas indianos, de fórmula local, e os australianos, de
fórmula global. Isso evoca de imediato o caso amazônico dos Pano e, mais
indiretamente, os variados exemplos de circularidade terminológica na Amazônia.
As soluções para tais variações foram de diferentes tipos: históricas, sociológicas,
formais, teóricas. Elas são interessantes porque, valham o que valerem para a Índia,
quase todas revelam-se insatisfatórias para o caso amazônico.
Entre as soluções históricas, está a de Trautmann (op. cit.: 122-24, 156-61, 231)
para a presença de termos específicos de afinidade na fronteira setentrional do
domínio dravidiano. O autor a imputa a uma influência indo-ariana e a declara
redundante dentro do paradigma meridional, visto que tais termos específicos não
atravessam as células da “caixa” terminológica dravidiana. Outra solução histórica
deve-se, mais uma vez, a Trautmann, e diz respeito às variantes “havaianas”: elas
seriam o resultado de uma proibição adventícia do casamento de primos cruzados.
Entre as soluções sociológicas, mencione-se a de Dumont (1957: 41-47) para as
diferentes preferências unilaterais, explicadas como resultado da aplicação da
estrutura terminológica em contextos de filiação e residência diversos (recurso às
noções lévi-straussianas de “harmonia” e “desarmonia”). Entre as soluções formais,
destaca-se a de Trautmann (op. cit.: 177-85) para as classificações bipartites nas
gerações distais e para as equações alternas, solução que generaliza até esses níveis o
princípio do cruzamento, demonstrando, aliás, que um perfil “kariera” pode surgir
sem o acompanhamento de seções.
A estrutura semântica das terminologias dravidianas e similares é usualmente
representada por um diagrama popularizado por L. Dumont. Ele dispõe os kin
types em torno de um meridiano que separa os consanguíneos, à esquerda, dos
afins, à direita, a partir de um Ego situado no setor consanguíneo de GØ. Utilizo
a notação inglesa, com “m” e “w” designando o sexo de Ego, quando a distinção
é relevante. As posições de Ego, masculino e feminino, vão sublinhadas:
Figura 2.1. O esquema dravidiano
No paradigma clássico, ou tamil, a distinção entre afins e consanguíneos
neutraliza-se em G±2: nesses dois níveis, há apenas uma categoria de parente,
“avô/avó” em G+2 e “neto/neta” em G-2. Como Trautmann demonstrou,
entretanto, há várias terminologias sul-indianas que distinguem entre “avós” (e
“netos”) paralelos e cruzados, como no diagrama acima.
As terminologias ditas “kariera”, ou de tipo australiano, foram frequentemente
tomadas por idênticas às de tipo dravidiano. Na verdade, elas apresentam
diferenças cruciais em G±1, como se pode depreender do diagrama abaixo. {11}
Figura 2.2. O esquema australiano
Além dos Gondi e Koya na Índia, dos Panare e de alguns Pano na Amazônia,
pode-se encontrar na África bantu um exemplo de sistema terminológico
perfeitamente “kariera” sem qualquer vestígio de seções matrimoniais: os
Makhuwa estudados por Geffray (1990). A terminologia makhuwa é ainda
mais parecida com a dos Pano que o é a dos Kariera propriamente ditos, e seu
regime de aliança é inequivocamente de fórmula local, descontínuo e com
inflexão patrilateral: eles são mesmo o caso-tipo de “troca multibilateral” (termo
cunhado por Geffray, usado em Viveiros de Castro 1990). Decididamente, é
preciso abandonar a associação dumontiana entre bipartição em G±2, equações
alternas e fórmula global.
Rivière (1973: 10), para a Amazônia, como outros autores para a diferença
dravidiano/kariera em geral (W. Shapiro 1970), estima “diagnostically
unimportant” as variações terminológicas em G±2. Eu tendo a considerá-las
importantes, porque dão uma ideia da ciclicidade do sistema. As variações nesses
níveis mostram que não temos apenas (como na Índia) dois casos típicos: a
majoritária neutralização dravidiana do binarismo em G±2; a bipartição e as
equações alternas kariera dos Pano e Panare. Além dos Piaroa, Yanomam e
Ye’cuana, que fecham seus sistemas terminológicos de modos peculiares, o caso
dos Cuiva (Arcand 1977; ver também Campbell 1989: cap. 7) é especialmente
interessante, com suas equações entre gerações alternas que invertem o padrão
kariera, não se encaixando em uma fórmula de seções matrimonais redutíveis a
linhas, e, sobretudo, não permitindo uma explicação em termos de generalização
a G±2 do contraste paralelo/cruzado: em vez de sequências-padrão do tipo MF
= XC = DS (FF = B = SS) e MB = ZS (F = S), temos MF = B = DS (FF = XC
= SS) e MB = S (F = ZS).
Não há dúvida que as terminologias pano apresentam uma fórmula global
de tipo kariera (Erikson 1990), em pelo menos uma dimensão terminológica, e
que algumas das sociedades dessa família têm seções matrimoniais. (Na
verdade, certas terminologias pano, de povos com ou sem seções, adequam-se a
um esquema de seções bem melhor que a própria terminologia dos Kariera). Por
outro lado, como o próprio Erikson sugere (1990: 165-6; 1993a), as seções
pano, e mesmo sua terminologia em geral, poderiam ser o resultado da
aplicação automática de uma fórmula egocêntrica de nominação. A semelhança
entre a terminologia australianoide dos Pano e a ideologia de parentesco de seus
vizinhos Kulina (Pollock 1985b), cuja simbólica “bilinear” do sêmen e do leite
sustenta uma terminologia dravidiana ortodoxa, sugere transições interessantes.
As soluções teóricas à variação intradravidiana aplicam diferentes versões da
oposição entre prescrição e preferência, jogando com as distinções analíticas entre
estrutura terminológica e seu uso em contextos sociopolíticos, entre terminologia e
normas matrimoniais, entre estas normas e o plano empírico, estatístico, das
alianças. Assim, Dumont (1957: 30, 46) mostra como a terminologia bilateral
especifica-se em preferências unilaterais nos Kallar e Vellalar, mas que o resultado
estatístico das alianças reintroduz a simetria. Trautmann, que sublinha a existência de
apenas dois graus de distância lateral na terminologia (zero: paralelos; um:
cruzados), indica que as preferências matrimoniais introduzem um gradiente linear;
para as sociedades com um ideal de casamento próximo, “a noção de proximidade,
ausente da terminologia de parentesco, aparece no plano do comportamento” (op. cit.:
221). Dumont já sugerira que a aplicação das terminologias conhecia gradações,
mas que estas eram secundárias (1957: 53, 1953: 90), visto que contidas no interior
da oposição terminológica central, consanguinidade versus afinidade, e que era
importante distinguir – mas de um modo menos essencialista que o do primeiro
Needham, que distinguia tipos de sociedade – entre o nível prescritivo-imperativo da
terminologia e o nível empírico, subordinado, do uso-preferência (1971: 129-31).
Good, finalmente (1980, 1981), adotando a estratificação do segundo Needham
(1966, 1967, 1973) entre os níveis categórico, jural e estatístico, sugerirá uma
“autonomia” entre a prescrição bilateral, a preferência assimétrica e o plano da
prática, no que nos parece ser uma verdadeira declaração de impotência teórica.
Em todos os casos, portanto, o que os dravidianistas citados têm procurado fazer
é resguardar a dimensão estrutural pura da terminologia, em sua natureza categorial
e categórica, em seu dualismo diametral, em sua expressividade histórica e formal
da aliança simétrica. Preferências e gradações, padrões objetivos de aliança,
pertencem ao mundo sublunar da “prática”.
Essa me parece uma solução simplista, ou pelo menos inadequada para o caso
amazônico. Mas não há dúvida que os dravidianistas, na sequência de Leach,
insistiram em um ponto essencial: nem de uma terminologia de aliança, nem de
uma regra de casamento é possível deduzir uma estrutura morfológica global da
sociedade. A correspondência lévi-straussiana entre formas de casamentos de primos
e fórmulas de integração social se vê, assim, relativizada: “não se pode extrair uma
fórmula holista de uma regra local” (Dumont 1971: 124).
Antes de passar aos aspectos do dravidianato amazônico que sugerem um
comentário alternativo, observe-se que os desvios sul-americanos ao paradigma
tamil são mais pronunciados que os indianos. A deriva havaiana, terminológica ou
matrimonial, é bem mais difundida; o casamento avuncular é terminologicamente
marcado; as equações entre gerações alternas são relativamente comuns, e mais
variadas que o estilo kariera; a presença de termos de afinidade separados não pode
ser posta na conta de influências alógenas. Isso não significa, contudo, que se deva
recusar a validade do conceito de sistema dravidiano (ou de um dravidianato no
sentido morfológico) para a Amazônia. Considerar, como fazemos aqui, a referência
abstrata a uma troca simétrica como insuficiente para determinar os diferentes
regimes sociológicos das terras baixas não implica defender uma pulverização
nominalista dos conceitos. O que é preciso é examinar de perto as modulações do
paradigma clássico. Como trabalhos recentes vêm demonstrando, é preciso
enriquecer o paradigma dravidiano, isto é, generalizá-lo.
O próximo e o distante
A diferenciação terminológica e/ou normativa entre parentes “próximos” ou
“verdadeiros” e parentes “distantes” ou “classificatórios” parece-me um aspecto de
fundamental importância nos sistemas amazônicos. Ela corresponde, em alguns
casos, a um estilo cognitivo global, que privilegia as classificações escalares
(Kensinger 1975: 18-25; Viveiros de Castro 1978). Mas o que realmente interessa é
que tal diferenciação manifesta a presença de um componente genealógico e/ou
socioespacial a interferir estruturalmente na sintaxe binária do paradigma
dravidiano. Sua extrema difusão no subcontinente convida a uma reflexão crítica
sobre os limites do “categorismo imperativo” da escola britânica da aliança, que em
sua reação contra o genealogismo de Scheffler e associados pode ter ido demasiado
longe. Hoje está claro que as terminologias amazônicas admitem interpretações tanto
categoriais quanto genealógicas, e que estas últimas são não-triviais. {12}
A assimilação da distância genealógica à distância geográficosocial, tão bem
descrita para a Guiana, é apenas um caso particular do fenômeno mais geral da
consideração da distância para as classificações de parentesco e as estratégias
matrimoniais: a aliança simétrica e a grade terminológica correlata se exercem em
um meio espacial escalar (ver Dreyfus 1977). Tal regime dá lugar a funcionamentos
mais “performativos” que “prescritivos” (Sahlins 1985); assim, não se trata apenas de
observar que, quanto mais prescritivo um sistema, tanto mais indeterminada será
sua relação com a realidade, dada a normalização retroativa das ficções prescritivas
(Hornborg 1988: 34; ver a “autonomia” proposta em Good 1981). O ponto a
sublinhar não é simplesmente a existência de uma indeterminação, mas o de uma
interferência entre o diametralismo digital e diatônico da grade terminológica e a
estrutura analógico-escalar, cromática, da oposição entre o próximo e o distante, de
disposição concêntrica. Tal interferência impede que se pense a pragmática social em
termos de uma subordinação simples à sintaxe terminológica. {13}
COGNAÇÃO E CONSANGUINIDADE
Bruce Albert, em sua magistral etnografia dos Yanomam (1985: 221-35 ), pôs em
evidência uma superposição do gradiente próximo → distante ao contraste binário
entre consanguíneos e afins, fenômeno que exprime uma distinção básica entre
cognatos (no caso guianense, identificados a co-residentes) e não-cognatos (não coresidentes). O parente próximo, genealógica ou espacialmente, está para o parente
distante como a consanguinidade está para a afinidade. Um afim efetivo é
assimilado aos cognatos co-residentes – ele é, idealmente, um cognato co-residente –,
sendo portanto, antes, um consanguíneo; ao passo que um cognato distante
(classificatório, não co-residente) é classificado como um afim potencial. No caso
guianense em geral, isso deriva de uma situação de “endogamia prescritiva” (Rivière
1984: 49), tanto local como de parentela: os afins efetivos devem estar a priori
ligados como cognatos próximos, ao passo que a dinâmica político-demográfica
projeta para fora do grupo de co-residentes os consanguíneos que não consolidam a
cognação pela aliança endogâmica, transformando-os em afins potenciais,
eventualmente reconsanguinizados por novos casamentos. No caso yanomam, essa
afinização terminológica do distante ganha uma dimensão geracional: as gerações
distais são sistematicamente afinizadas, mesmo para os kin-types “reais-próximos”,
e, no caso dos avós e netos classificatórios, o modo de afinização abre efetivas
possibilidades matrimoniais. {14} De um modo geral, uma vez que (e isto vale para
toda a Guiana) a cognação não é impedimento à aliança – ao contrário, aquela é
mantida por esta –, o efeito global é uma expansão máxima da classe terminológica
dos afins, mas acompanhado de uma fissão decisiva em seu interior: afins efetivos
versus afins potenciais. Fenômeno muito pouco dravidiano, que não deve ser
confundido com a distinção de Dumont (1957: 51) entre aliados sincrônicos ou
imediatos e aliados diacrônicos ou genealógicos. {15}
Para maior clareza, convém precisar: o contraste entre cognatos e não-cognatos é
uma distinção sociológica, de natureza concêntrica e contínua, que contém uma
referência genealógica não-trivial; o contraste entre consanguíneos e afins é uma
distinção terminológica, diametral e discreta, de conteúdo categorial. O domínio dos
cognatos inclui, no modelo endogâmico da Guiana, tanto consanguíneos quanto
afins; o dos não-cognatos (parentes “classificatórios”), obviamente, também. Mas, e
este é o ponto, o gradiente da cognação sobredetermina o cálculo de classes da
terminologia. No interior da esfera dos cognatos, a afinidade é dominada pela
consanguinidade: um afim é uma subespécie de consanguíneo. No exterior dessa
esfera, ou melhor, na extremidade distal desse gradiente, a consanguinidade é
dominada pela afinidade: os consanguíneos distantes, categoria que pode incluir de
modo teórico todo o grupo étnico, são transformados em afins potenciais – todo
não-cognato pode ser afinizado. O que equivale a dizer que a circularidade lateral do
paradigma terminológico, com sua alternância infinita entre consanguíneos e afins
(Trautmann op. cit.: 41), dá lugar a um conceito escalar de distância: a afinidade
envolve de modo potencial a esfera do parentesco atual; as calibragens métricas (real
→ classificatório, próximo → distante) não são, como no caso indiano, internas a
cada uma das duas classes terminológicas, mas as atravessam, convertendo uma
classe em outra.
A expressão propriamente terminológica dessa interferência varia, como variará
a assimilação dos afins efetivos aos cognatos (caso eles já não o sejam). Assim, em
alguns sistemas, modificadores linguísticos que distinguem consanguíneos e afins
“próximo-reais” daqueles “distante-classificatórios” desempenham um papel central,
como nos Yanomam, no Alto Xingu, nos Pano, Machiguenga, Wayãpi, Pemon e
Jívaro. Em outros, como nos Piaroa, é a tecnonímia que tende a assimilar o afim
efetivo a um cognato, mediante sua definição indireta como consanguíneo de
consanguíneo; aqui, são os afins potenciais, não-efetivos, que se veem efetivamente
marcados como afins. Em outros, ainda, a presença de termos específicos de
afinidade marca apenas os afins efetivos não-cognatos (ou estrangeiros): a divisória
passa entre os afins aparentados, assimilados a cognatos, e os afins nãoaparentados, categoria que inclui tanto afins efetivos como potenciais, mas que se vê
marcada, do ponto de vista das atitudes de parentesco, pela afinidade potencial
(tensão, ambiguidade). Este é certamente o caso dos Trio, como indica Rivière (1969:
172, 225-26, 1984: 56-57, 61). {16}
Assim, enquanto os Yanomam e os Piaroa assimilam os afins efetivos a
cognatos, e os consanguíneos “não-efetivos” (aqueles que não mantiveram a
consanguinidade cognática pela reiteração da aliança) a afins potenciais, os Trio
assimilam os afins efetivos não-cognatos a afins potenciais, fazendo possivelmente o
mesmo com os consanguíneos não-efetivos. Entre os Trio, a fissão básica da
afinidade não se exprime diretamente como atual versus potencial, mas na distinção
entre uma afinidade implícita e outra explícita: uma na qual, para falarmos como
Yalman (1962: 565), “nada acontece”, pois ela é analiticamente inerente à cognação, e
outra muito problemática, pois que testemunho da natureza fictícia da endogamia.
Nota sobre o vocabulário analítico. A formulação, por Dumont, da oposição
central dravidiana em termos de “consanguíneos versus afins” não foi a melhor
escolha vocabular. A distinção consanguinidade/afinidade é, para esse autor,
analítica e estrutural, não envolvendo nenhuma ideia “cultural” da
consanguinidade enquanto partilha de substância, ou a afirmação de uma noção
do parentesco que exclua a afinidade; como diz o autor em algum lugar,
parentesco é consanguinidade mais afinidade. Alguns autores (David, Carter),
porém, confundindo cognação – isto é, parentesco – com consanguinidade, e
dando a este último termo uma conotação substancialista supostamente “êmica”,
criaram uma certa confusão, afirmando que os afins são, antes de serem afins,
consanguíneos, e que a oposição dumontiana não se sustenta. Esse argumento
parece-me igualmente subjazer às posições de Yalman e Rivière. Visto que
Dumont constrói a oposição consanguíneos/afins de modo puramente relacional,
pela mútua exclusão e mútua implicação, teria sido melhor se falasse em “afins
vs. não-afins”. Isso teria a vantagem adicional de definir a afinidade como o polo
não-marcado da oposição, o que é mais conforme ao espírito da teoria
dumontiana. Mas, como veremos adiante, é o próprio Dumont quem,
curiosamente, nega qualquer assimetria entre afinidade e consanguinidade nos
sistemas dravidianos, em favor de uma relação dita “equistatutária”.
Por causa desses equívocos sobre a noção de consanguinidade, Good (1980:
481, 1981: 115) prefere formular a situação dravidiana como opondo parentes
paralelos a parentes cruzados, distinção que Dumont havia explicitamente
afastado, por genealogista e etnocêntrica. Trautmann (op. cit.: 173 e ss), que
recusa a teoria dumontiana da aliança de casamento, também se exprime em
termos de paralelismo e cruzamento. Enquanto permanecemos na Índia do Sul,
os méritos respectivos dessas duas oposições são difíceis de avaliar; como
Trautmann reconhece, o que caracteriza o tipo de cruzamento dravidiano é
exatamente a regra de casamento sobre a qual Dumont insistiu. A dificuldade
surge alhures: há outras formas de cálculo de cruzamento, que geralmente se
considera sem relação com figuras de aliança, como é caso do esquema dito
“iroquês”. Isso pareceria sugerir a primazia lógica da oposição
paralelos/cruzados. Entretanto, é possível construir modelos formais de aliança
que determinem alguns parentes cruzados em cálculo iroquês como afins
terminológicos. {17} Taylor (1989) demonstrou decisivamente que a oposição
consanguíneo/afim, em certas variantes do dravidianato amazônico, separa-se
da oposição paralelo/cruzado em cálculo dravidiano clássico, sem entretanto
perder sua referência a um sistema de aliança simétrica. Meu único reparo à
brilhante argumentação de Taylor diz respeito à sua ênfase na independência
absoluta da oposição entre consanguinidade e afinidade frente àquela entre
paralelos e cruzados. Sem a continuidade etnográfica que a autora estabelece
entre as “variantes ricas” e as “variantes pobres” do dravidianato, uma
consideração pura das primeiras seria tautológica (em outras palavras,
“prescritiva”): afinidade e consanguinidade não receberiam outra definição que
“casável” e “não-casável”. Tudo isso posto, permaneço aceitando a formulação
dumontiana como a mais interessante, e guardo por tradição o par
consanguinidade/afinidade.
A importância de se ter bem clara a distinção entre as nomenclaturas de
parentesco e o parentesco como fenômeno ideológico institucional pode ser
apreciada nas discussões sobre o melhor arranjo da “caixa” terminológica
dravidiana. Assim, naqueles casos de terminologias dravidianas em ambientes
patrilineares, por exemplo, certos autores costumam alinhar F e FZ sobre B e Z,
situando M e MB na coluna dos parentes cruzados. Com isso, confundem a
oposição terminológica entre consanguíneos e afins com a oposição sociológica
entre parentes agnáticos e uterinos. Esse é um erro grave. Em um sistema
patrilinear, a FZ é ao mesmo tempo uma parenta agnática e uma afim
terminológica (com efeito, FZ = WM); a M, em contrapartida, é uma parenta
uterina e uma consanguínea. Se o parentesco uterino é culturalmente inferior ao
agnático, então parentes como os MZCH, que continuam terminologicamente
consanguíneos, podem eventualmente derivar para o não-parentesco, ou para
uma situação ambígua; mas não se transformam por isso em afins
terminológicos – ver o conhecido caso tukano dos mother’s children (C. HughJones 1979). Em um sistema indiferenciado e endogâmico, por seu turno, o F e o
MB são ambos cognatos, sem por isso deixarem de ser, o primeiro,
consanguíneo, e o segundo, afim. A representação diagramática de Dumont
(1953: 92), embora tenha desvantagens – como a heterogeneidade no
alinhamento das categorias em GØ e G+I –, não confunde terminologia e
instituição, ao contrário das soluções de Keesing (1975: 108-9) e Good (1980:
495; e ver id. 1981: 114, onde se define a FZ como “paralela” e a M como
“cruzada”). É essencial separar estas duas ordens de fatos, a terminologia e a
ideologia, para que possamos analisar sua interferência mútua.
DAS TRÊS AFINIDADES
A necessidade de se distinguir diferentes aspectos da afinidade nos sistemas
amazônicos exprime-se na oposição avançada por Basso (1970, 1975), para o Alto
Xingu, entre affinity e affinibility, e naquela feita por Rivière (1984: cap. 5) entre
affinity e affinability, para as Guianas. O que está em jogo aqui é a marcação
terminológica ou comportamental da diferença entre afinidade efetiva e afinidade
virtual ou potencial. Isso contrasta com a secundariedade da distinção dumontiana
entre afinidade sincrônica ou imediata (efetiva) e afinidade diacrônica ou
“genealógica” (virtual): a primeira é meramente um caso particular da segunda, uma
simples atualização que nada acrescenta à relação diacrônica de aliança, e é
englobada por esta.
A afinidade não é, portanto, um conceito simples na Amazônia. Proponho que
distingamos ali três manifestações básicas: [1] a afinidade efetiva ou atual (os
cunhados, os genros etc.); [2] a afinidade virtual cognática (os primos cruzados, o tio
materno etc.); [3] a afinidade potencial ou sociopolítica (os cognatos distantes, os
não-cognatos, os amigos formais etc.). A distinção entre os tipos [2] e [3] é, a meu
ver, essencial. Ela incorpora, com algumas modificações de ênfase, a distinção feita
por Rivière entre afins aparentados e não-aparentados; mas esse autor divide apenas
os afins efetivos dessa forma. Com efeito, a maioria dos autores não costuma
separar a afinidade que chamo aqui virtual da afinidade potencial. {18}
Não estou afirmando que existam três conjuntos de termos de relação que
correspondam a esses três aspectos da afinidade, nos sistemas amazônicos. Nos
sistemas dravidianos ortodoxos dessa região eles se confundem, ao menos
lexicalmente. Nos sistemas com termos próprios para afinidade efetiva, há alguns
que estendem a [3] os termos para [2]; outros, os termos para [1]. Em alguns casos,
porém, há termos característicos da afinidade potencial: penso no pito trio, e até certo
ponto no tiwã araweté, que, embora denote os primos cruzados, aplica-se a todo
não-parente, parente distante ou aos inimigos, sob certos aspectos – ao passo que os
pais dos primos cruzados recebem termos específicos de afinidade virtual. {19} Em
alguns sistemas com preferência avuncular, por fim, não existem termos próprios
para [2] na geração dos primos. Na verdade, a classificação acima simplifica uma
realidade variada: os termos para afins efetivos [1] podem existir apenas em alguns
níveis geracionais, há assimetrias sexuais, decalagens críticas entre terminologia
vocativa e de referência, e assim por diante.
Quando estão presentes termos de afinidade efetiva, há algumas possibilidades
básicas. Em alguns casos (Trio), os termos de afinidade só são empregados quando
o casamento não liga cognatos; eles marcam a diferença entre afim aparentado e
não-aparentado. Em outros, os termos de afinidade só são empregados quando um
casamento transforma afins virtuais em afins reais – alguns Tupi-Guarani, os AltoXinguanos. Em outros, enfim, os termos de afinidade só são usados para aqueles
não-parentes com quem eu não casei: isto é, os cognatos cruzados (MB etc.) e os
afins efetivos são todos designados por termos de afinidade cognática, virtual (WF é
chamado de “MB” etc.), ao passo que estrangeiros, afins simbólicos, seriam
designados por termos de afinidade – um estrangeiro seria chamado de “WF” ou
“ZH”. (Como variante aqui, os afins efetivos são designados por termos próprios,
mas chamados pelos termos de afinidade cognática.) Este parece ser o caso dos
Piaroa (Overing Kaplan 1975), dos Nambikwara (Price 1972), dos Curripaco
(Journet 1993: 58), de alguns Jívaro (Taylor 1989), e de todos aqueles sistemas onde
a endogamia prescritiva transforma afins não-aparentados em afins aparentados,
isto é, em parentes cruzados.
Rivière (com. pess. 1987, 1989), comentando as observações acima, insistiu
sobre um ponto que defende alhures (1984: 64, 69-71): os termos de afinidade
efetiva não são, a rigor, termos de afinidade, mas exprimem apenas distância
social. Para ele, a distinção essencial (para a Guiana, ao menos) é entre kindred e
strangers, interior e exterior; a oposição consanguinidade/afinidade, em suma,
desaparece. Quando o casamento é com um parente, não há afinidade; quando
com um estrangeiro, o que se marca é a distância social, mais que a aliança.
Concordando com Rivière sobre a importância dos gradientes de distância, não
creio, em primeiro lugar, que eles tornem inútil ou inexistente a diferença entre
consanguinidade e afinidade, enquanto oposição terminológica e estrutural. Em
segundo lugar, é Rivière mesmo quem mostrou como as relações estabelecidas
pelo casamento são um laço político crítico na dinâmica social guianense (e
alhures). E, por fim, é preciso recordar que os termos que, conforme esse autor,
“marcam distância social” trazem todos uma referência implícita ou explícita,
simbólica ou mesmo semântica, a relações criadas pelo casamento: os afins
potenciais são exatamente isto, doadores ou tomadores potenciais de mulheres.
A distinção entre o próximo e o distante é característica de socialidades onde a
residência predomina sobre a descendência, a contiguidade espacial sobre a
continuidade temporal, a ramificação lateral de parentelas sobre a verticalidade
piramidal de genealogias. Ela pode atingir uma eminência absoluta, a ponto de
neutralizar a dicotomia dravidiana, particularmente na geração de Ego, como
naqueles sistemas com traços havaianos que consanguinizam os parentes dessa
geração (Thomas 1977). A concepção de que a consanguinidade engloba a afinidade
– um englobamento, contudo, local, que inverte a ordem superior do valor –, isto é,
de que a afinidade deve ser um caso particular da consanguinidade, encontraria aqui
sua expressão completa. Mas é preciso notar que há diferenças básicas entre esses
sistemas (Rivière 1984: 67-69). Em alguns casos (Pemon, Waiwai) tal
havaianização é quase-tecnonímica, tendo por função resolver contradições do
sistema de atitudes. Ela se exerce apenas sobre parte do domínio terminológico, e as
equações havaianas são desambiguadas por referência a G+1, que guarda a
bifurcação dravidiana: mantém-se o ideal de casamento próximo e sua especificação
cruzada. Em outros casos, porém, essa havaianização, contextual ou absoluta (Alto
Xingu, Shiwiar, Candoshi, Tapirapé), exprime um conceito positivo de distância
matrimonial: o casamento é visto como se dando preferencialmente entre germanos
distantes, primos cruzados distantes, filhos de primos cruzados. Cognatos distantes
são, aqui, vistos como afins preferenciais; a subordinação da dicotomia
terminológica ao gradiente de distância pode manter a forma guianense, mas seu
conteúdo matrimonial se inverte, e com isso chega a neutralizar, de diferentes formas,
tal dicotomia.
Em sistemas que favorecem o casamento com representantes distantes das
categorias prescritas, em detrimento dos próximos, estes últimos, afins virtuais,
podem receber os valores de ambiguidade ou hostilidade ritual característicos da
afinidade potencial. Assim, em vez dos afins efetivos serem assimilados a cognatos
(primos cruzados), como é o caso da Guiana, são os primos cruzados com quem
não se estabeleceram trocas matrimoniais que se veem assimilados a afins
potenciais, ou a inimigos rituais. O afim real é objeto de evitação, sem dúvida, mas
de uma evitação que é uma atitude de super-parentesco; recordemos que o famoso
ifutisu dos Kalapalo (Basso 1973) caracteriza a afinidade, mas é ao mesmo tempo,
enquanto “respeito”, a atitude geral da cognação próxima; tudo se passa como se a
afinidade efetiva fosse transformada em um caso especial da cognação. Já o afim
virtual, concebido como afim potencial, é objeto de relações jocosas (ausência de
ifutisu) e de confronto cerimonial. Esse é o caso dos Kamayurá, como bem mostrou
Bastos (1990), e certamente dos demais grupos do Alto Xingu. Para os Tupi-Guarani
em geral, como assinala Fausto (1991), há os casos dravidianos, onde os afins
virtuais, efetivos e potenciais estão terminologicamente em uma só categoria; há os
casos onde a presença de termos de afinidade efetiva distinguem afins reais, de um
lado, e virtuais mais potenciais, de outro; e haveria aqueles onde as três posições são
mantidas distintas (mas esta é uma situação instável, como no caso parakanã).
Sobre a relação entre a noção de afinidade e a de distância, note-se uma
interessante referência de McCallum (1989: 165), a propósito dos Cashinahua: o
termo para primo cruzado ou cunhado, chai, “também significa ‘distante ’, quando
usado como adjetivo”. Isso não deixa de recordar o termo tupinambá para cunhado
ou inimigo: tovajara, cuja raiz remete ao locativo posicional “oposto”, “fronteiro”.
(Para continuar o diálogo acima com Rivière, observo que chai, apesar de sua
conotação de distância, denota cognatos muito próximos, do ponto de vista
genealógico e residencial. A distância do chai é estrutural, não empírica; é a distância
que permite a troca matrimonial.)
Percebe-se, assim, como seria possível pensar a passagem amazônica entre
“dravidiano” e “havaiano”. Nos sistemas mais fiéis ao modelo que chamaríamos
“cingalês” (endogamia mais dravidianato), os consanguíneos distantes são
transformados em afins potenciais, ao passo que os afins virtuais próximos são
consanguinizados, no plano das atitudes; nos sistemas havaianos e/ou naqueles que
interditam o casamento bilateral próximo, os afins são preferencialmente recrutados
entre os cognatos distantes, como estratégia de consolidação de parentelas amplas em
contextos políticos fortemente faccionalizados (ver Basso 1984, para os Kalapalo; este
talvez seja também o caso dos Tapirapé). Essas considerações podem ser estendidas
para as situações de neutralização da afinidade em outros níveis geracionais, como
no caso dos Aruaque alto-xinguanos. E seria preciso incluir transformações mais
radicais, como a dos Piro (Gow 1991a), onde a aliança simétrica desaparece da
terminologia e das normas de casamento, e o gradiente próximo-distante passa a
funcionar de modo exclusivo; a afinidade deixa de ter qualquer definição prescritiva
(o que aconteceria também no Alto Xingu, na interpretação de Basso).
A métrica do próximo e do distante exige, em suma, um exame aprofundado no
contexto amazônico. Ela não é privilégio do dravidianato, pois está na base do
funcionamento matrimonial dos sistemas de tipo jê e txapakura. {20} Deve-se
observar que ela se exerce de modo essencialmente diferenciado no interior de cada
sociedade: os ideais de endogamia ou exogamia, local e/ou de parentela, são ideais
exatamente por não serem empiricamente gerais. Assim, as estratégias matrimoniais
podem definir situações específicas de poder, já por abertura dos dispositivos
endogâmicos, já por sua máxima contração (avunculato): ora forma de aliança
política supralocal, ora manifestação de auto-suficiência (Overing Kaplan 1975: 15663; Taylor 1983). Outras vezes, são os casamentos marginais fora do grupo local
endogâmico, isto é, aquelas uniões “desprivilegiadas” estabelecidas pelos desprovidos
de poder, que respondem pela costura de proche en proche de laços intercomunitários
com função de substrato para estruturas de troca simbólica (Albert 1985: 208 e ss;
Taylor id.). Finalmente, mesmo ali onde vigoram normas de exogamia local, esta é
diferenciada ao longo de um continuum análogo ao que vigora nos sistemas
endogâmicos (Århem 1981b). O gradiente de distância é o terreno por excelência da
performação, da interação entre norma e ação, estrutura e história. A simplicidade
do modelo mecânico da aliança simétrica amazônica impõe uma tradução estatística
complexa (Taylor id.), que não pode ser descartada pelo recurso usual à contingência
demográfica: aqui, o “jogo” das regras é parte das regras do jogo. Começamos a ter
elementos para retomar criticamente aquela distinção implícita em Lévi-Strauss entre
sistemas aquém e além das estruturas elementares.
Mas é preciso verificar quais os conteúdos que o gradiente de distância recebe em
cada caso. Se na situação duplamente ideal da Guiana há uma coincidência
prescritiva entre proximidade de parentesco, cumulatividade de alianças e
contiguidade espacial (ver a noção de “casamento próximo” para os Piaroa, em
Overing Kaplan 1975: 186-98), há que se distinguir e hierarquizar esses aspectos.
Entre os mesmos Piaroa, onde a distância de parentesco não é calculada por
triangulação a partir de um ascendente, mas pela sequência de laços matrimoniais
intervenientes entre ego e alter (id. 1984: 142), a reiteração sincrônica e diacrônica da
aliança parece ser a dimensão de proximidade privilegiada. Entre os Kalapalo, o
gradiente de distância, que funciona em sentido até certo ponto inverso ao do caso
piaroa, envolve quatro princípios hierarquizados: residência, facção, aldeia e grupo
linguístico (Basso 1984: 36).
O diametral e o concêntrico
A oposição entre consanguinidade e afinidade, direta ou indiretamente (questão de
opção teórica) expressa nas terminologias dravidianas, funciona então, nos sistemas
amazônicos, segundo um regime concêntrico, potencialmente ternário, e graduável.
Essa é a divergência maior do dravidianato amazônico em relação ao paradigma
sul-indiano, tal como este se apresenta na literatura.
A estrutura formal das terminologias de duas seções ou dravidianas é de tipo
diametral, como sugere, de resto, sua representação costumeira em “diagramas de
caixa”. Isto é, há uma partição do campo terminológico, minimamente nas três
gerações centrais, em duas classes exaustivas e mutuamente exclusivas, sem terceira
posição. O cálculo terminológico obedece a um princípio de fechamento booleano
simples: dentro de cada geração, consanguíneo de consanguíneo é consanguíneo,
afim de afim é consanguíneo; consanguíneo de afim é afim, afim de consanguíneo é
afim (ver Trautmann op. cit.: 178-85, para a extensão transgeracional do cálculo).
Essa exaustividade diametral vale mesmo lá onde, na Índia dravidiana, ideologias
de substância distinguem dois tipos de consanguíneos (David 1973), ou onde um
regime unilocal e unilinear harmônico diferencia, no plano difuso das atitudes,
também duas espécies de consanguíneos – por exemplo, os FBCH e os MBCH,
“irmãos co-residentes co-linhageiros” e “irmãos dispersos” (Dumont 1957: 53-55).
{21}
Mais ainda, a oposição consanguíneo/afim é concebida como oposição “distintiva”
e equipolente (Dumont 1971: 131, 1983: 166-67). Afinidade e consanguinidade têm o
mesmo valor, e implicam-se mutuamente: “pas de consanguinité sans alliance, pas
d’alliance sans consanguinité” (id. 1953: 94). A mútua implicação é função da mútua
exclusão: a diametralidade da terminologia submete a oposição de base aos
princípios da não-contradição, da dupla negação e do terceiro excluído. Tudo se
passa como se consanguíneo = não-afim, afim = não-consanguíneo (e daí cc = c,
aa = c etc.); as duas classes interdefinem-se pela negação. Afinidade e
consanguinidade articulam-se como se predicados contraditórios, alternativas
universais e exclusivas. Um alter qualquer é ou consanguíneo, ou afim de ego, não
podendo ser ambos ao mesmo tempo ou nenhum dos dois. Numa versão mais fraca
do paradigma, que admita a existência no campo matrimonial de não-parentes
(nem consanguíneos nem afins a priori), as duas classes terminológicas são então
ligadas por contrariedade não-graduável, não admitindo nem intermediários, nem
interseções. Tudo isso, bem entendido, nas três gerações centrais; nas distais a
oposição se neutraliza (no esquema tamil), o que já sugere virtualidades ternárias.
Tal representação da terminologia é formalmente inatacável – desde que se separe
a lógica categorial das dimensões normativo-pragmáticas que sua aplicação
implica. O que tem sido, como vimos, a postura básica dos indologistas. Tal
concentração na “perfeita simetria” (Good 1981: 111) da terminologia é consistente
com as críticas de Dumont (1971: 35-38) à ênfase de Radcliffe-Brown e Lévi-Strauss
nos sistemas de atitudes. O caráter concêntrico e escalar das atitudes tornaria esta
dimensão do parentesco “pouco sistemática”, obscurecendo a consideração estrutural
(binário-diametral) de terminologias como a dravidiana. De outro lado, quando,
como bom sociólogo, Dumont vai examinar as condições de funcionamento da
estrutura, entram em cena inúmeros matizes: gradação interna a cada classe; cisão
comportamental da classe dos consanguíneos; ambiguidade da tia paterna em
sistemas patrilineares e do tio materno em sistemas matrilineares; e, finalmente, a
existência de
um número considerável de pessoas que não são automaticamente diferenciadas, e
que podem ser, ao mesmo tempo, irmãos em um sentido local vago e aliados
virtuais: é somente a rede das alianças individuais que decide, em cada caso (1970:
55).
Esses são pontos importantes, pelo que evocam do caso amazônico: o funcionamento
egocêntrico da terminologia gera necessariamente um potencial de ambivalência ou
de indeterminação; o a priori terminológico dá lugar ao a posteriori históricopolítico.
É crucial, para uma sociologia do dravidianato amazônico, que se vá além de
uma consideração formal das grades terminológicas, trazendo à cena a interação
entre terminologia e atitudes, cuja natureza “dialética” já fora havia muito apontada
por Lévi-Strauss. Nos sistemas sul-americanos – neles, pelo menos –, a oposição
entre consanguinidade e afinidade é concêntrica, no plano ideológico e, eventualmente
no plano do uso terminológico. Os consanguíneos estão no centro do campo social,
os afins na periferia, os inimigos no exterior. Ou melhor: no centro desse campo estão
os consanguíneos e os afins cognatos co-residentes, todos concebidos sob o signo
comportamental da consanguinidade, que no nível local engloba a afinidade; na
periferia do campo estão os consanguíneos distantes e os afins potenciaisclassificatórios, dominados pelo signo da afinidade potencial, que ali engloba a
consanguinidade; no exterior estão os inimigos, categoria que pode receber e fornecer
afins potenciais, assim como o segundo círculo recebe consanguíneos distantes e
devolve eventualmente afins reais. Concêntrico, o sistema é também dinâmico.
SUBORDINAÇÃO DO PARENTESCO
A caracterização acima segue, de muito perto, a construção concêntrica das relações
intercomunitárias yanomam feita por Albert (1985). A validade da análise de Albert
parece-me transcender o contexto étnico ou regional, aplicando-se, com as devidas
modulações, também aos sistemas de exogamia local. À primeira vista, esses
círculos concêntricos de sociabilidade seriam mais um avatar dos conhecidos setores
de reciprocidade e distância social de Sahlins (1965) – ou da classificação análoga de
Leach (1965)–, frequentemente evocados na etnologia amazônica. {22} Mas aqui é
preciso observar uma diferença fundamental. No modelo de Sahlins, assiste-se a um
englobamento hierárquico dos setores exteriores pelo círculo mais interior: a
“reciprocidade generalizada” interna é o valor, o padrão a partir do qual se
escalonam formas de sociabilidade progressivamente mais negativas. Ora, se isso
parece corresponder ao idealismo endogâmico de regiões como a Guiana, não
corresponde, entretanto, à estrutura que comanda tanto esses ideais como os
processos reais da socialidade amazônica. Em tal estrutura, as relações hierárquicas
acompanham, como em um diagrama de Venn, as inclusões geométricas do
esquema concêntrico, a saber: se no nível local a consanguinidade engloba a
afinidade, no nível supralocal a afinidade engloba a consanguinidade e, no nível
global, é a própria afinidade que se vê englobada – definida e determinada – pela
inimizade e pela exterioridade. É o parentesco como um todo que se vê,
primeiramente englobado pela afinidade e finalmente subordinado à relação com o
exterior.
A ordenação concêntrica do campo social amazônico acompanha-se, como
vimos, de uma classificação por gradientes, que redistribui a partição diametral do
arcabouço terminológico. {23} Há gente “mais” ou “menos” consanguínea (os co-
residentes versus os de fora) e gente “mais” ou “menos” afim (os afins potenciais vs. os
afins cognatos); a relação entre afinidade e consanguinidade não é a de
contraditórios, mas a de contrários graduáveis. E há gente, enfim, que é
consanguínea e afim. Não, sem dúvida, “ao mesmo tempo, sob o mesmo respeito e
na mesma relação”, para recordarmos Aristóteles (Lloyd 1987: 87), pois a fôrma
terminológica implica a exclusão mútua das classes; mas, pelo menos, no sentido de
que a não-marcação comportamental da afinidade cognática assimila-a à
consanguinidade, e de que a consanguinidade distante é atraída pela afinidade
potencial. De resto, dada a natureza múltipla das conexões de parentesco traçáveis
nessas sociedades pequenas ou endogâmicas (efeito, por sua vez, do funcionamento
disperso e egocêntrico das alianças), pode-se ser consanguíneo terminológico sob
certos aspectos, e afim terminológico sob outros. Finalmente, não são poucos os
sistemas que dispõem de uma categoria de não-parente – e todos dispõem de uma
categoria de estrangeiro –, gente que não é nem consanguínea, nem afim, mas que é
altamente significativa do ponto de vista matrimonial. Via de regra, esta classe é
assimilada, terminológica ou sociologicamente, à dos afins potenciais. A oposição
distintiva, equipolente e exaustiva do paradigma dravidiano recebe assim uma
inflexão dinâmica e assimétrica, quando projetada sobre o concentrismo
sociocosmológico amazônico. No plano dos valores, há uma oposição hierárquica
entre consanguinidade e afinidade: elas não estão na mesma relação com o “todo”.
A proliferação de padrões ternários (ou terno-quinários, como nos Tukano: ver C.
Hugh-Jones op. cit.) de classificação étnica ou sociopolítica – entre muitos exemplos,
ver os Yanomam, os Jívaro, os Yagua, os Pano e os Wari’ – já sugere a inadequação
de esquemas que dicotomizem absolutamente entre um exterior e um interior do
coletivo. Isso posto, vale insistir na diferença toto cœlo entre o modelo de
englobamento do interior pelo exterior, aqui proposto, e uma leitura meramente
concentrista do esquema ternário básico, onde o valor é localizado no centro e vai
tendendo a zero, ou transpolarizando-se em negatividade, à medida que nos
afastamos dele. Por isso, a crítica de Menget à oposição exterior/interior parece-me
ainda insuficiente:
Pode-se, assim, substituir a consideração estática de um interior oposto a um
exterior (do grupo social) por um ponto de vista mais relativista: as sociedades
amazônicas […] não definem fronteiras permanentes das unidades sociais; elas
categorizam graus de alteridade social, que correspondem a diferentes sistemas
sociais que se entrecruzam, englobam-se ou se justapõem (1985b: 137).
Não há dúvida que a noção cromática de “graus de alteridade” permite relativizar um
binarismo diatônico simples; mas à passagem acima faz falta a perspectiva da
hierarquia. Entre exterior e interior não há apenas um gradiente, mas uma relação
assimétrica, a mesma que se estabelece entre afinidade e consanguinidade, entre
afinidade potencial e afinidade atual. {24} Recorde-se, neste contexto, uma observação
de Tcherkézoff sobre a necessidade de se distinguir entre o modelo geométrico da
oposição hierárquica e as representações espaciais indígenas; o primeiro pode tomar
a forma de círculos concêntricos, “mas é necessário precisar que não se trata de uma
ordem linear de afastamento de um centro, caso em que estaríamos substituindo a
hierarquia por uma gradação” (1983: 124).
As noções de oposição hierárquica e de englobamento do contrário são, como é
mais que sabido, da lavra de Dumont. Mas estou aqui lançando mão delas contra o
modelo dravidiano desse mesmo autor. É intrigante, com efeito, constatar que
Dumont, paladino da hierarquia na Índia e alhures, crítico feroz daqueles que
reduziriam a noção de oposição à sua variante pobre, distintiva e simétrica (1978c:
210-21), foi encontrar na Índia do Sul “uma ilha de igualdade em um oceano de
castas”: a oposição dravidiana entre consanguinidade e afinidade é definida, mais
precisamente, como “equistatutária” (1981: VII, 166-7). A hierarquia aparecerá
assim em toda parte, menos ali: no plano supraparentesco da casta, no interior da
consanguinidade (a idade relativa), na distinção entre o nível “imperativo” da
terminologia e o nível “subordinado” da preferência, e assim por diante. A hipótese do
presente ensaio, ao contrário, transporta as noções de oposição hierárquica e de
englobamento do contrário para dentro do dravidianato – do amazônico, ao menos.
Isso permite abordar de frente uma série de paradoxos e questões da análise do
parentesco nessa região.
Entre os paradoxos, o mais evidente é aquele que afirma, ao mesmo tempo, a
afinidade como a forma canônica do vínculo social e como relação impregnada de
valores inimigos ou antissociais. Ele nos acompanhará até ao fim deste ensaio. Entre
as questões, pode-se citar a marcação de gênero dos valores da exterioridade e da
interioridade, da afinidade e da consanguinidade. Os materiais jívaro e cashinahua,
por exemplo, atestam a pertinência de uma relação entre as mulheres, a
consanguinidade e o interior do socius, ao passo que os homens estão associados à
afinidade e à exterioridade. Nos Jívaro, isso se manifesta em uma simbólica que
junta mulheres, agricultura e intimidade consanguínea, de um lado, e homens, caça e
antagonismo entre afins, de outro (Descola 1986); manifesta-se também em uma
complexa assimetria terminológica, no registro vocativo, que faz as mulheres
aparecerem como “absorventes da afinidade” (Taylor 1983). Quanto aos
Cashinahua, McCallum observa que esse povo “concebe a relação com o mundo
“exterior” como sendo de afinidade masculina; em contraste, a afinidade entre homens
e mulheres é característica do ‘interior’” (1989: 176). {25} McCallum argumenta que
tal contraste corresponde a uma oposição entre uma afinidade cognática realizada,
feminina e interior, e uma afinidade potencial, masculina e exterior (id. ibid.: 182-3).
Tal oposição parece associada a uma outra, mais geral, que contrapõe relações de
produção (internas, entre homens e mulheres) e relações de predação-troca (externas,
entre homens). Com efeito, após ter elaborado o idioma da produção que articula o
parentesco no interior do grupo, a autora nota, de passagem, ao falar das relações
com o exterior, que “esses diferentes espaços [do mundo exterior] são o cenário de
diferentes formas de predação e intercâmbio”.{26}
Na Amazônia, enfim, não só podemos atestar o englobamento da
consanguinidade pela afinidade no plano político, ritual e cosmológico (Overing
Kaplan 1984: 146; Albert 1985) – ao passo que no plano local ou cotidiano é o
inverso que tem lugar, como é próprio das oposições hierárquicas –, como a própria
afinidade, e através dela o domínio do parentesco em seu todo, vê-se englobada pelo
exterior, englobamento que se realiza no elemento simbólico da predação canibal. O
valor ambíguo, estratégico e problemático da afinidade nas sociedades da região
derivaria assim da posição mediadora dessa categoria dentro de uma estrutura
hierárquica complexa, cujo movimento de totalização é eminentemente paradoxal.
Isso acarreta uma fratura interna à afinidade, como logo se verá.
Nota sobre a ideia de oposição. É realmente intrigante que Dumont, em seu
balanço crítico das críticas que recebeu (1983: 145-214), tenha tanto insistido no
caráter “equistatutário” da oposição dravidiana entre consanguinidade e afinidade.
Semelhante insistência parece responder ao desafio que uma antropologia
posterior, de inspiração schneideriana, lançou à sua teoria. O desafio consistia na
sugestão, avançada por vários etnógrafos, de uma estrutura que só pode ser
chamada de englobamento hierárquico, onde a afinidade dravidiana encontra-se
subordinada à consanguinidade, entendida esta como uma ideologia do
parentesco fundada em símbolos tais o sangue, a consubstancialidade etc. A tese,
entretanto, é apenas mais um exemplo da já mencionada confusão analítica entre
cognação e consanguinidade. Rebatê-la não exigiria, de modo algum, o
argumento do equistatutarismo brandido por Dumont.
Digo que a insistência é intrigante porque, já em 1957, Dumont contrastava o
“princípio de filiação” e o “princípio de aliança” nos grupos tamil que estudou,
concluindo que o segundo era “o princípio fundamental do parentesco”. Em
seguida, porque autores como Trautmann, Good e David acusaram-no
exatamente de conceder um privilégio indevido à afinidade, com seu conceito de
“aliança de casamento”.
Creio que o equistatutarismo de Dumont, em tão flagrante contradição com
sua ênfase na hierarquia, deriva do método “fonologista” de construção da
oposição entre consanguinidade e aliança, empregado no artigo fundador de
1953, e da necessidade então experimentada pelo autor de emparelhar a aliança
à filiação. E, de fato, o paradigma da oposição equistatutária é a oposição
fonológica (1978c: 264), e mais especialmente o que Dumont chama de
“oposição distintiva”. Consultando-se a autoridade primordial para esses assuntos
– os Princípios de Trubetzkoy (1939: 33, 68-96) –, podem-se observar, porém,
os pontos seguintes:
[1] “Distintivo” é ali um termo funcional, que se refere à capacidade
discriminatória de uma oposição e possui um significado fonológico preciso: as
oposições distintivas são aquelas que distinguem “significados intelectuais”. Para
Trubetzkoy, oposição distintiva e oposição fonológica são sinônimos. O termo
“oposição distintiva” em Dumont não significa, a rigor, nada de muito definido.
[2] As oposições distintivas dividem-se em três tipos, quanto à relação entre
os termos opostos: privativas, graduais e equipolentes. As oposições privativas
implicam uma marca, e portanto uma assimetria – toda oposição privativa é
entre um termo marcado e um não-marcado. A determinação objetiva do termo
não-marcado (ou do marcado) se faz através da neutralização fonológica.
[3] As oposições podem ser lógicas ou efetivas, conforme sua estrutura e
função em um sistema. As oposições privativas, graduais e equipolentes podem
ser efetivamente equipolentes; mas uma oposição logicamente equipolente só
pode ser efetivamente equipolente. A noção de equipolência é complexa, e
Trubetzkoy não a determina com clareza. A equipolência parece ser uma espécie
de limite inferior da heterogeneidade.
[4] O método de construção da oposição entre consanguinidade e afinidade
em Dumont a determinaria, conforme Trubetzkoy, como logicamente privativa.
Mas, tratando-se de uma oposição isolada, esse caráter termina por receber uma
espécie de tom equipolente, visto que afinidade = não-consanguinidade e
consanguinidade = não-afinidade. Não é possível precisar qual o termo nãomarcado. Entretanto, como observamos anteriormente, tudo se passa como se
Dumont pusesse de fato a afinidade como o termo englobante, e portanto como
não-marcado – pois a oposição é logicamente privativa. A expressão “oposição
distintiva”, em Dumont, parece significar oposição privativa. As posições de
neutralização em G±2 não permitem uma decisão objetiva no plano exclusivo
da terminologia, entretanto.
[5] Mas a interpretação ideológica de Dumont, reforçada em seu Stocktaking
de 1983, determina a oposição entre consanguinidade e afinidade como
equipolente (“equistatutária”). Isto é, tudo se passa como se a oposição em causa
fosse logicamente privativa mas efetivamente equipolente. É aqui que se poderia
introduzir a diferença etnográfica entre Índia do Sul e Amazônia – a citada
oposição deve ser tratada, na Amazônia, como efetivamente privativa, no sentido
de que a afinidade é o termo não-marcado, isto é, englobante (no plano
terminológico). No outro plano (ideológico ou da cognação), trata-se de uma
oposição gradual,cuja neutralização faz aparecer então a afinidade como termo
extremo.
Seria interessante reler toda a questão da afinidade versus consanguinidade à
luz de Trubetzkoy. Sua distinção entre oposições “bilaterais” e “multilaterais”, por
exemplo, pode ser muito útil para pensar a aliança amazônica. Registre-se, aliás,
o curioso silêncio de Dumont e seus discípulos diante da noção linguística
(praguense) de marca, que implica diretamente a questão da hierarquia. Ver
aqui, sobretudo, Jakobson & Pomorska (1985: 93-98) e Holenstein (1978: 13440). {27}
PASSAGENS
Poder-se-ia, numa primeira aproximação, explicar o regime concêntrico do
parentesco amazônico pela refração do binarismo terminológico em um meio
sociológico geralmente cognático, de filiação indiferenciada, que exibe parentelas
densamente intrincadas em suas regiões centrais, adelgaçando-se na periferia. As
classificações por gradiente seriam típicas de sistemas cognáticos, em particular os de
tipo kindred. Sem prejuízo dessa hipótese, é importante notar que sistemas unilineares
como os dos Tukano também apresentam ordenações concêntricas do campo
matrimonial (Århem 1981b), além de um ternarismo superposto à estrutura
dravidiana de base. O mesmo se diga de sistemas dualistas como os dos Pano, onde
convivem terminologias binárias e classificações ternárias e graduáveis. Isso posto, a
questão não é a da simples coexistência de uma grade binária e de uma escala
contínua, mas sim a da interferência estrutural que a segunda provoca sobre a
primeira, modificando o significado da oposição de base. De resto, a gradação não
explica a distribuição diferencial da consanguinidade e da afinidade (terminológicas
e/ou ideológicas) ao longo da escala, muito menos o englobamento hierárquico da
consanguinidade pela afinidade, e do interior pelo exterior.
Os Jê do Norte, caso clássico de coexistência de concentrismo e diametralismo,
parecem adotar uma solução diferente. Esses dois dualismos organizam domínios
separados da vida social: a gradação imperaria na periferia doméstica, lugar de
operação do parentesco, e a diametralidade no centro cerimonial. E o centro engloba
hierarquicamente a periferia, o que seria a versão jê da limitação estrutural do
parentesco, aspecto que estimo geral nas terras baixas do subcontinente. Ali, o interior
domina o exterior, como o centro domina a periferia, mas ao preço de um
deslocamento do parentesco para uma posição periférica, isto é, relativamente
exterior. De qualquer modo, como Turner (1984) parece sugerir, é ainda a afinidade,
cerimonialmente metaforizada, que comanda a consanguinidade entre os Jê.
Quanto aos Pano, Hornborg (1988) insistiu em seu valor estratégico como
transição entre as configurações amazônicas e centro-brasileiras. O argumento
provém, salvo engano, de um artigo de Rivière (1973), onde se acha a tripartição:
terminologias 2-section sem dualismo, 2-section com dualismo, dualismo sem 2section (Amazônia dravidiana, Pano, Jê). Por motivos algo diferentes, concordo com
essa ideia do papel transicional dos Pano, mas, antes, como passagem entre o
triadismo concêntrico dominante na Amazônia e o dualismo diametral dominante
no Brasil Central. Sem entrar em detalhes que seria preciso elaborar (sobretudo a
partir de Townsley 1988), observo que essa tripartição é pertinente no que concerne
ao papel constitutivo do exterior nas socialidades amazônicas. Os sistemas da região
mostram uma dependência essencial do exterior. É ali que eles colocam os inimigos,
os mortos, os afins potenciais; é dali que extraem recursos simbólicos para sua
reprodução social. Os sistemas centro-brasileiros, por seu turno, parecem-me o caso
por excelência de incorporação do fora, de interiorização das diferenças, de tal modo
que são efetivamente sistemas fechados, onde o exterior é um mero complemento
diacrítico do interior. Neste último estão todas as diferenças necessárias, extraídas do
exterior nos tempos míticos de origem da cultura. O dualismo concêntrico
dentro/fora, próprio dos sistemas amazônicos, vê-se convertido em dualismo
diametral interno, entre os Jê. Os sistemas pano seriam o elo de passagem: uma das
metades dos Cashinahua e Yaminahua é identificada ao exterior, a outra ao interior, e
certos rituais sugerem que a metade de fora engloba e determina a de dentro
(Townsley 1987; McCallum 1989). {28}
Na Amazônia temos a prevalência do dualismo concêntrico, pois a oposição
diametral entre consanguíneos e afins está subordinada à oposição concêntrica entre o
dentro e o fora. Nos Jê, teríamos o inverso: o dualismo concêntrico entre periferia e
praça está subordinado aos dualismos diametrais dos sistemas de metades (assim
interpreto Turner 1984, e os demais jê-ólogos, discrepando de Lea 1986 neste aspecto
particular). Os Pano representariam a mediação: um dualismo diametral ainda
qualificado de modo forte por valores concêntricos.
Chama a atenção, além disso, o fato de que tanto as terminologias pano quanto
as jê tenham uma leitura onomástica explícita. Em ambos os casos, podem-se
conceber os traços característicos dessas terminologias (ciclicidade geracional kariera,
fusão oblíqua crow-omaha) como o resultado de equivalências onomásticas entre
parentes, isto é, como um fenômeno de generalização e abstração da regra
onomástica. Note-se que a onomástica pano é sociocêntrica, a jê é egocêntrica, e que,
no caso pano, onomástica e regra de casamento caminham juntas (daí o efeito
“australiano”), ao passo que nos Jê, elas estão em distribuição complementar: a troca
de nomes e a troca de cônjuges (Ladeira 1982) são mutuamente exclusivas. {29}
Lévi-Strauss (1984: 148) sugeriu um contraste entre as sociedades dos Pueblo,
sistemas fechados ao exterior, que tirariam seu dinamismo de diferenças e
antagonismos internos, e os sistemas abertos, como os das sociedades das pradarias
norte-americanas, que reprimiriam os antagonismos internos para melhor
exprimirem os externos. Esse contraste não deixa de evocar aquele entre as
sociedades centro-brasileiras e as mônadas endogâmicas e canibais da Amazônia.
Por fim, recorde-se uma distinção proposta por J. Shapiro (1984: 7-8), entre
aqueles sistemas de duas seções onde a divisão consanguíneos/afins está incluída em
um universo mais amplo de relações sociais, e aqueles onde ela é exaustiva e
universal (as versões “contrária” e “contraditória” da oposição de base, ver supra). O
primeiro caso parece ser mais comum nos sistemas amazônicos, o segundo se
aproximaria da situação indiana (Good 1981: 111, 114; mas ver a passagem de
Dumont acima citada 1957: 55, sobre os “terceiros” ambíguos). Evidentemente, não
é sempre fácil definir o que é um universo social (o universalismo dos sistemas
indianos se detém nas fronteiras da subcasta, por exemplo), e a distinção de Shapiro
é demasiado estática, ao não contemplar a dinâmica de afinização ou
consanguinização de estranhos, afins potenciais ou inimigos. Mas a ideia é valiosa,
por sublinhar a natureza englobada ou incluída do domínio do parentesco dentro de
campos sociais mais vastos. A ideologia endogâmica tão insistentemente
mencionada para a Guiana, por exemplo, parece ser uma manifestação clara disso,
desde que seja interpretada como a incidência local desse englobamento, isto é, como
sua inversão hierárquica subordinada: como percepção invertida (efeito
propriamente ideológico) de uma situação onde o parentesco não responde pela
totalização do socius, pois seus limites são mais estreitos que o campo social. O
atomismo guianense é uma ilusão sociológica gerada pela ótica restrita do
parentesco.
É verdade que não poucas sociedades do dravidianato amazônico aparentam
estender o manto classificatório de uma consanguinidade geral sobre todo o grupo
étnico, como os Piaroa, os Pemon e os Jívaro, ou mesmo de uma identidade
segmentar que abarca conjuntos pluriétnicos, como no Alto Xingu. Esse ponto foi
invocado em considerações que afirmam o englobamento da afinidade por uma
consanguinidade anterior e superior. Recordo que Dumont (1983) combateu a
mesma ideia na Índia do Sul, atribuindo-a ao “monolithic frame of mind” de Yalman
e às teorias substancialistas da “segmentaridade” do parentesco dravidiano, de
Barnett, David e Carter.
Há duas coisas a distinguir no argumento acima: a extensão universal do
parentesco; a subordinação da afinidade à consanguinidade no nível global. A
universalização do parentesco não significa universalização da consanguinidade, mas
da cognação. Confunde-se aqui, mais uma vez, a categoria terminológica da
consanguinidade com a categoria socioideológica da cognação. A interferência entre
esses dois planos é o que vimos analisando aqui, mas isso só reforça a necessidade de
distingui-los analiticamente. É na faixa proximal do gradiente de cognação que os
afins (efetivos) são assimilados a consanguíneos; na zona distal é o inverso que
sucede, é o consanguíneo distante que se torna um caso particular do afim. E o
gradiente cognático pode, sem solução de continuidade, diluir-se até a sua “negação”,
o campo dos estrangeiros ou dos inimigos, que são espécies de afins (como os afins,
quando estrangeiros, são espécies de inimigos). A extensão católica da cognação não
é um procedimento característico de todos os sistemas amazônicos – há aqueles que
reconhecem matrimonialmente a existência de não-parentes (Araweté, Alto Xingu,
Waimiri-Atroari, Aguaruna, Candoshi, para não falarmos dos Jê) –, e uma
excessiva ênfase analítica sobre ela pode induzir à reificação do grupo étnico, algo
geralmente inapropriado na região. De qualquer modo, ali mesmo onde ela se
verifica, permanece como limite conceitual a exprimir uma realidade negativa
(parafraseando as EEP: 55), extensão frouxa de uma similitude geral que produz
uma “identidade” tão instável quanto a alteridade complementar dos estrangeiros, e
que se vê constantemente desmentida pela política, pelo ritual e pela cosmologia, onde
impera a afinidade potencial, a verdadeira categoria dinâmica da diferença na
Amazônia indígena. Note-se, ademais, a interessante ambiguidade de certos taxa
étnicos que oscilam entre a auto- e a alo-referência, e que têm um conteúdo de
afinidade potencial, como o nawa dos Pano (Erikson 1990: 80-84) e o achuar dos
Jívaro (Taylor 1985: 168): a relação definidora do socius, e que lhe dá portanto
nome, é a de afinidade potencial, não a de consanguinidade; a alteridade ou
exterioridade é interna e instituinte. A célebre equação tupinambá entre inimigo e
cunhado não é uma inversão desses dois exemplos; ao contrário, ela sugere
justamente, e igualmente, a centralidade da relação com os inimigos para os TupiGuarani (Viveiros de Castro 1986a).
Poder-se-ia argumentar que análises como as de Basso sobre a terminologia
kalapalo (Alto Xingu) apontam na direção oposta: a terminologia geracional,
logicamente englobante, usa como termos não-marcados vocábulos de
consanguinidade; os termos de afinidade são marcados. Mas não se deve
esquecer, justamente, que Basso está descrevendo o universo do parentesco, i. e.
da cognação: um universo de parentelas egocêntricas, que subsume a diferença
entre consanguíneo e afim cognático em uma linguagem consanguínea. No
plano cerimonial, organizado pelas relações sociocêntricas entre grupos locais/
étnicos, vigora a linguagem da afinidade potencial. Quando estive no Alto Xingu,
havia um jovem waurá, recém-casado com uma moça yawalapíti, que acabara
de se mudar para a aldeia da esposa. Ele era referido arrogantemente como
“nosso genro” por todos os homens da aldeia yawalapíti, mesmo por aqueles
que, na interação com o rapaz, dirigiam-se a ele por termos de consanguinidade,
isto é, por homens que não se consideravam, individualmente, seus sogros.
Em Basso (1970: 408) vê-se um bom exemplo de articulação entre contrastes
binários e gradientes de distância: no registro geracional da terminologia
kalapalo, o termo para germano inclui germanos e afins virtuais (primos
cruzados); no registro dravidiano, a oposição entre germano e afim se sobrepõe
àquela entre germanos reais e germanos distantes, visto que estes últimos são
reunidos aos afins virtuais sob uma só categoria (para ego masculino).
Socorro-me, ainda, de uma observação de W. Shapiro (1970: 386), que distingue
aqueles sistemas de duas seções onde o campo social está equitativamente repartido
entre consanguíneos e afins (os sistemas australianos, as castas dravidianas de
Dumont) – onde vigora, portanto, o princípio “afim de afim é consanguíneo” –,
daqueles onde os termos de consanguinidade são aplicados a uma parentela restrita,
enquanto os termos de afinidade estendem-se ao resto da sociedade, e mesmo a
estrangeiros. Os exemplos deste último tipo dados por Shapiro são quase todos sulamericanos, a começar pelos Nambikwara e Tupinambá de Lévi-Strauss (1943).
Em seu Stocktaking de 1983, Dumont contrastou a oposição equipolente das
terminologias da Índia do Sul com um caso efetivo de oposição hierárquica. Seu alvo
crítico era a noção de “segmentaridade” proposta por certos antropólogos para o
parentesco dravidiano, segundo a qual os afins são, primeiro de tudo, consanguíneos.
Ele escreveu:
A Índia do Norte oferece um exemplo nítido, no plano mesmo do vocabulário, do
que é aqui chamado de “segmentaridade”: a palavra bhai, “irmão”, faz efetivamente
uma ponte entre o parentesco e a casta, ao assumir significados cada vez mais
abrangentes à proporção que ascende-mos das relações imediatas até círculos
cada vez mas amplos. Ela, assim, engloba repetidamente, nos níveis superiores, o
que era seu contrário nos níveis inferiores. Este é um caso daquilo que nossos
autores denominam “segmentaridade”. […] Prefiro chamar o fenômeno de
“englobamento do contrário”, ou oposição hierárquica. […] No vocabulário
meridional, não encontramos nada desse tipo; as categorias (principais) …
dispõem-se em uma clara oposição distintiva […] que poderíamos chamar de
[…] oposição equistatutária (1983: 166-67). {30}
Ora, na Amazônia dravidiana são justamente os termos de afinidade que “englobam
nos níveis superiores o que era seu contrário nos níveis inferiores”. O que os indoarianos (e indo-europeus) fazem com “irmão”, os ameríndios tendem a fazer com
“cunhado”, como qualquer especialista na região se recordará. A oposição
afinidade/consanguinidade é hierárquica, não equistatutária ou “distintiva”. Mas, ao
contrário do que defendem Barnett e outros para o caso dravidiano, não é a
consanguinidade o polo englobante, e sim a afinidade: a afinidade potencial, isto é, a
afinidade em sua plena potência. É ela que faz a ponte entre o parentesco e seu
exterior.
O ato e a potência
Os ternarismos inerentes ao regime amazônico de socialidade (consanguíneos, afins
efetivos ou aparentados, afins potenciais ou não-aparentados; cognatos, nãocognatos, inimigos) encontram uma manifestação clara na forma daqueles que eu
chamaria de “terceiros incluídos” (Viveiros de Castro 1986a: 434), posições que
escapam ao dualismo consanguíneos vs. afins ou parentes vs. estrangeiros, e que
desempenham funções mediadoras fundamentais.
OS TERCEIROS INCLUÍDOS
Chama de fato a atenção, em quase todas as sociedades amazônicas, a importância
de relações institucionalizadas que guardam uma referência complexa às categorias e
atitudes de parentesco. Pense-se, por exemplo, nos pito e pawana dos povos Caribe,
parceiros de troca comercial, afins “lógicos” que estão entre o irmão, o cunhado e o
inimigo (Rivière 1969: 81, 227; Howard 1993); nos ato e ajo dos Kalapalo,
“amigos” e “amantes” que duplicam e invertem o idioma da afinidade efetiva, e que
tecem laços diádicos extralocais (Basso 1973: 102-6); ou nos apihi-pihã araweté,
parceiros de partilha de cônjuges, escolhidos entre os afins potenciais e singularizados
como “anti-afins” (Viveiros de Castro 1986a: 422 e ss); nos compadres piro,
escolhidos entre os co-residentes que não sejam consanguíneos próximos ou afins
efetivos, isto é, entre os parentes distantes ou os afins de afins, e cujas relações
contrastam tanto com a germanidade como com a afinidade (Gow 1991a: 172-78).
A lista deve ainda incluir posições como a dos cativos de guerra tupinambá,
cunhados paradoxais; os amigos formais jê, afins metafóricos; os substitutos
funerários bororo, que são como “auto-afins”; os laços criados pelo He barasana; os
amigri jívaro, e muitos outros casos. Todos esses fatos estão a esperar uma teoria das
relações de não-parentesco na América do Sul (Viveiros de Castro id.: 435-47).
Tais posições e relações não se caracterizam por uma mera exterioridade ao
campo do parentesco, mas se articulam a esse campo de modos variados: inversão,
neutralização, generalização, metaforização, e assim por diante. Na maior parte dos
casos, esses terceiros incluídos, que operam a mediação entre o mesmo e o outro, o
interior e o exterior, o cognato e o inimigo, o individual e o coletivo, os vivos e os
mortos, estão associados de modo privilegiado ao lugar simbólico da afinidade.
Resumindo o que pediria desenvolvimentos maiores, pode-se dizer que essas
encarnações da “thirdness” (com a licença de C. S. Peirce) são soluções específicas
para o “problema” da afinidade. Elas são o testemunho de um trabalho de
ternarização, isto é, de significação (ainda com Peirce 1955: 74-97) da oposição
simplesmente formal entre a consanguinidade (uma “firstness”) e a afinidade (uma
“secondness”) indeterminadas, tal como exprimidas na grade terminológica. Os
terceiros incluídos dão ao sistema seu dinamismo propriamente racional. Eles são
efetuações complexas da afinidade potencial, cristalizações rituais e políticas dessa
categoria tipicamente amazônica.
Generalizo aqui, portanto, a noção de afinidade potencial, cuja importância tem
sido reconhecida de várias maneiras, como nas já citadas distinções entre “afinidade”
e “afinabilidade” de Basso e Rivière, ou nas análises de Joanna Overing (1982, 1984)
sobre a filosofia da troca matrimonial piaroa e de Albert (1985) sobre o sistema
político-ritual yanomam. Ela atesta as limitações do paradigma indologista para o
caso amazônico, bem como permite que definamos um espaço comparativo mais
amplo dentro do continente, aproximando, por exemplo, os sistemas jê de nossa
problemática. Longe de serem, como os afins diacrônicos ou “analíticos” do esquema
dravidiano, operadores de fechamento do sistema social dentro de uma caixa
terminológica totalizante, os afins potenciais amazônicos, se ainda são afins a priori,
operam entretanto uma abertura sintética do campo social.
Minha inspiração para a questão dos terceiros incluídos provém da etnografia
tupi-guarani, onde o estatuto paradoxal de “anti-afim” dos cativos tupinambá ou dos
parceiros conjugais araweté deixa clara a relação entre as amizades ou inimizades
formais e a simbólica da afinidade. Mas entre os Timbira, por exemplo, não fica
menos patente a duplicação metafórica da oposição consanguíneo/afim na dupla
companheiro/amigo formal (Melatti 1979; Carneiro da Cunha 1979). Os Jê, que
dispõem de segmentações dualistas globais de valor cerimonial, organizam o campo
do parentesco de modo análogo ao dos sistemas amazônicos, isto é, por gradientes
de distância. Por isso mesmo, especulo, é que isolariam este domínio da esfera
cerimonial, onde vigem as oposições diametrais. Note-se, contudo, que, à medida
que se desce dos Jê do Norte para os povos mais meridionais, há como que um
recolamento dos planos do parentesco e da organização cerimonial, verificando-se
uma relação metonímica entre os terceiros incluídos e a esfera do parentesco, e
particularmente a esfera da afinidade. Confira-se o caso dos Panará (Schwartzman
1988), onde os primos paralelos patrilaterais, pais dos cônjuges prescritos
terminologicamente, estão na relação jocosa característica do complexo da amizade
formal timbira (onde um indivíduo tem essa relação jocosa com os pais de seu
amigo formal). Ou veja-se o caso dos Bororo, onde afinidade, amizade funerária e a
díade iniciador-iniciado seguem as linhas do dualismo exogâmico. {31}
Seria preciso especificar as relações entre consanguinidade, afinidade efetiva e
afinidade potencial entre os Jê a partir de outras distinções, como aquelas, igualmente
ternárias, entre pais, sogros e tios maternos, ou entre irmãos, cunhados e amigos
formais. Em pelo menos alguns Jê do Norte, as posições de amizade formal e os
laços entre nominadores e nominados poderiam ser concebidas como definindo uma
“afinidade cerimonial”, que deve ser mantida distinta da afinidade efetiva. Contra
Hornborg – mais uma vez –, não creio ser acertado conceber os amigos formais e
nominadores dos Jê como “afins dravidianos” vestigiais, que se tornaram afins
metafóricos apenas porque esses povos abandonaram a troca simétrica. A meu
parecer, o que se tem ali é uma hipérbole da distinção, perfeitamente amazônica, entre
afinidade efetiva e potencial, que no caso jê torna-se interna à sociedade, e é
caracteristicamente estilizada. Não há dúvida, porém, de que casos como os dos
Bororo (onde o substituto funerário pode ou deve ser um cunhado, e o par iniciadoriniciado deve trocar irmãs) ou dos Panará (onde o sogro pode ser um nominador)
exigem reflexão. De qualquer modo, as relações entre amizade formal e sistema
matrimonial jê podem vir a se mostrar bem mais complicadas que as de metáfora
ou vestígio de uma estrutura de aliança simétrica (Lea com. pess. 1990).
Crocker fala do i-orubadari (termo recíproco para a díade iniciador-iniciado,
idealmente composta por um FZS e um MBS) como “o elemento terceiro da estrutura
que, além dele, inclui as residências natal e conjugal” (1985: 107). O i-orubadari é
um cunhado ideal; mas essa relação marca a etapa da vida do homem na casa dos
solteiros. A relação é simétrica, e Crocker a contrasta com a assimetria das relações
de afinidade. Ela, na verdade, contrasta com a relação de afinidade efetiva e com a de
germanidade. O autor acrescenta que ela sintetiza as características das relações com
o pai e com o tio materno. {32} Ainda no Brasil Central, registre-se a descoberta de
Ladeira (1982: 34 e ss) sobre o sistema social dos Timbira, para quem a regra de
troca de nomes entre irmão e irmã – o tio materno nomeia o sobrinho uterino, a tia
paterna, a sobrinha agnática – distingue entre irmãos reais-próximos e distanteclassificatórios, definindo os últimos como parceiros preferenciais. Reencontramos
aqui, no domínio da troca onomástica entre germanos, a distinção próximo/distante
dentro de uma mesma categoria.
A LINHA DE FISSÃO
Há uma fratura que atravessa o domínio da afinidade nos sistemas amazônicos. O
“reino dos afins” acha-se internamente dividido, cortado por um quiasma que o
reparte em regiões simétricas e inversas: de um lado, têm-se afins sem a afinidade;
do outro, a afinidade sem afins. Termos e relações divergem, segregados pela mesma
linha que separa o ato da potência. De um lado, a afinidade atual é atraída para a
consanguinidade: pela endogamia local, a troca simétrica reiterada, as alianças
curtas avunculares e patrilaterais, as ficções terminológicas prescritivas, a
tecnonímia, as ideologias da cognação e da consubstanciação conjugal, as
preferências matrimoniais expressas em termos de proximidade genealógica. A
afinidade reduz-se aos afins. Do outro lado, a afinidade potencial, coletiva ou
genérica, abre a introversão localista do parentesco ao comércio com a exterioridade:
no mito e na escatologia, na guerra e no rito funerário, nos mundos imaginários do
sexo sem afinidade ou da afinidade sem sexo. Ela se “reduz” a uma pura relação, que
articula termos justamente não-ligados por casamento. O verdadeiro afim é aquele
com quem não se trocam mulheres, mas outras coisas: mortos e ritos, nomes e bens,
almas e cabeças. O afim atual é sua versão enfraquecida, impura e local,
contaminada atual ou virtualmente pela consanguinidade; o afim potencial é o afim
global, clássico e arquetípico. Uma situação pouco aristotélica, dir-se-ia, visto que a
potência aparece como mais perfeita que o ato. O que significa que a potência não é,
neste caso, mera indeterminação, mas determinação de outra potência mais geral,
que comanda de fora o parentesco. A afinidade potencial é o lugar onde o parentesco,
como estrutura, conhece seus limites de totalização, ecoando apenas como linguagem
– como tropo que só ganha sentido pleno porque se afasta da letra. O parentesco, e a
aliança matrimonial que o cria, é estrutura estruturada, condicionada pela estrutura
estruturante da exterioridade, que se exprime como afinidade potencial.
Tudo se passa, assim, como se tivéssemos, de um lado, o parentesco –
consanguinidade mais afinidade efetiva – e, de outro, a afinidade potencial. Uma
figura que parece resultar do estatuto problemático da afinidade, exprimindo uma
tensão fundamental. À força de domar a afinidade dividindo-a entre a potência e o
ato, as sociedades amazônicas terminam por produzir uma afinidade pura, que
assume o valor de termo não-marcado, a limitar o parentesco na medida mesma
em que este se localiza e cria uma afinidade generalizada à sua volta. A neutralização
da aliança mediante as formações de compromisso do casamento próximo, das
ficções endogâmicas, da tecnonímia, é essencialmente precária: condição indestrutível,
a afinidade potencial é uma espécie de retorno do recalcado sociológico, a reaparição
fora do que foi abolido dentro, e agora com o valor de condição.
É essa fissão interna da categoria sociológica da afinidade que nos dá elementos
para generalizar a questão levantada por Peter Rivière, quando este se pergunta “se a
noção de afinidade, tal como o termo é geralmente entendido, é aplicável na região
da Guiana” (1984: 69), ou a contradição piaroa analisada por Overing (1975,
1984), onde as mônadas locais constituem-se pelo casamento endogâmico – o grupo
local é criado pela aliança –, mas onde a afinidade “não existe”, pois está projetada
para fora, para o plano supralocal, e remetida mitologicamente às origens selvagens
da cultura. O verdadeiro afim não é ali o afim verdadeiro, mas o estrangeiro
canibal, não domesticado pela troca simétrica repetida que, afinizando,
consanguiniza. (A afinidade unilateral, sugiro, é um caso particular da afinidade
potencial, donde sua raridade como forma de aliança na Amazônia.) Ou vá-se aos
Tupinambá, para sair da Guiana. Com efeito, aqui também o cunhado ideal é o
inimigo cativo, vítima canibal casada no grupo de seus captores antes do sacrifício.
Entre a preferência avuncular da sociedade tupinambá e este simulacro ritual de
exogamia a que se submetem a vítima e seus captores (Viveiros de Castro 1986a:
685), a afinidade desaparece, dilacerada entre extremos: o canibalismo literal, contra
afins metafóricos, e o incesto metonímico, com a filha da irmã. Ou reportemo-nos
aos Wari’, saindo da área do dravidianato canônico. Aqui, os laços individuais de
afinidade efetiva são desmarcados por uma terminologia vocativa de
consanguinidade e por uma ideologia de cognação generalizada; mas os rituais, que
confrontam subgrupos territoriais idealmente endogâmicos, caracterizam esses
estrangeiros, com quem não se trocam mulheres, como afins prototípicos. Tais ritos
tematizam a predação canibal e sexual dos oponentes, cujas mulheres, dada a
afinização terminológica, serão assim “irmãs” de seus atacantes. Uma dupla negação
da afinidade, portanto: predação do alheio e incesto ao mesmo tempo (Vilaça 1992).
Os fatos wari’ conduzem-nos àquele aspecto da afinidade potencial que aparece
com máxima clareza no estudo de Albert sobre os Yanomam (1985: 536-44 et
passim): sua natureza classificatória, no sentido de coletiva e sociocêntrica. Com
efeito, enquanto a afinidade efetiva tende a ser egocêntrica nos sistemas de fórmula
local (sobretudo nos sistemas cognáticos) – e o mesmo se passa na maioria dos
casos de “terceiros incluídos” –, a afinidade potencial qualifica relações entre
categorias genéricas: compatriotas e inimigos, vivos e mortos, humanos e animais,
humanos e espíritos. Essa passagem à dimensão global se faz, como já observamos,
às custas de uma perda, absoluta ou relativa, de conteúdo matrimonial efetivo por
parte da noção de afinidade: a aliança permanece presa a soluções locais, no sentido
geográfico (endogamia local) ou sociológico (endogamia de parentela, ciclos curtos,
intransitividade do cálculo terminológico). A afinidade potencial é um fenômeno
político-ritual, exterior e superior ao plano englobado do parentesco. Tudo se passa
como se a dinamização (também no sentido homeopático) da afinidade, reduzindo à
imaterialidade sua referência substantiva original, liberasse em estado puro os
predicados dessa relação, alçados à condição de predicados universais – à condição
de uma autêntica categoria. A afinidade se reveste então de um valor propriamente
transcendental. Assim como Lienhardt (1961: 46) falou em uma “paternidade
transcendental” que se manifestaria na Divindade dos Dinka, pode-se, para a
Amazônia, falar em uma afinidade transcendental – em alguns casos, em sentido
idêntico ao de Lienhardt (Viveiros de Castro 1986a). Lá onde a ancestralidade é o
valor cardinal da sociedade, a filiação é transcendentalizada; aqui, onde a troca de
cônjuges fornece “a metáfora básica da ordem social” (Collier & Rosaldo 1981: 299),
é a afinidade que se transforma em categoria.
Muitas são as indicações da etnologia americanista sobre o valor político, ritual e
cosmológico da afinidade. Isso vai além do princípio geral lévi-straussiano da
aliança como instauradora da Sociedade. Lembremos, entretanto, que Lévi-Strauss
começa sua reflexão com uma bagagem de americanista, e que um de seus
primeiros trabalhos pretendia mostrar como “um certo laço de parentesco, a relação
de cunhado, possuía um significado que, para muitas tribos sul-americanas,
transcendia de longe a simples expressão de uma relação [de parentesco]” (1943:
398), inaugurando assim a longa série de referências ao caráter estratégico da
afinidade, à sua função de charneira ou ponte entre o local e o global, o parentesco e a
política, o interior e o exterior. {33} Por seu turno, o célebre parágrafo final das EEP,
que confere um significado universal ao mito andamanês de um Além sem afins,
recebeu uma tematização particularmente rica por parte dos americanistas, o que
sugere a eminência ambígua da afinidade na filosofia social ameríndia. {34}
Deve-se sublinhar, entretanto, que é a afinidade potencial o modo específico de
operação dessa categoria como mediadora inter-dimensional do socius. Isso implica
seu descolamento do que lhe serve de substrato empírico, a aliança matrimonial. A
afinidade só pode funcionar como dispositivo de subordinação hierárquica do
parentesco quando ela deixa de se referir aos conteúdos concretos ou imediatos da
afinidade atual. Estou, com isso, assinalando minhas ressalvas diante das tentativas
de redução da economia simbólica dos sistemas ameríndios a um efeito da
“economia política do casamento” ali vigente. Os limites do parentesco não são postos
pelo parentesco. A consideração da afinidade potencial, estratégica para uma
rediscussão do conceito de estrutura elementar à luz da paisagem amazônica, deve,
igualmente, ir além das soluções que se contentam em assinalar a “idiomaticidade”
do parentesco na veiculação de conteúdos de poder e a circunscrição do cálculo
político pelo exprimível nesse código (Overing Kaplan 1975: 65-66, 122; Taylor
1983: 350). Não há dúvida que tais sugestões são importantes, por descartarem uma
leitura individualista que subordina a estrutura ao uso, e este a uma teoria
pseudopsicológica da “manipulação” e dos “interesses”. Mas elas não são suficientes,
como outros trabalhos das mesmas autoras dão plena fé (Overing Kaplan 1984;
Taylor 1985). Tanto quanto o parentesco, o “político” carece de ser ressituado na
economia simbólica que o circunscreve.
Assim, em suma – e pelo menos no dravidianato amazônico –, para além dos
juízos prescritivos da afinidade cognática, onde o casamento não faz senão desdobrar
o que já estava lá (pois os afins efetivos são atributos da cognação e de sua bipartição
terminológica, e no casamento “nada acontece”), há um outro uso a priori reservado
à afinidade potencial, que é o de pensar, isto é, socializar, o que está fora do Mesmo.
Ao regime complementar da oposição entre consanguinidade e afinidade, submetido
aos critérios formais do juízo analítico, é preciso sobrepor a suplementaridade
inerente ao caráter sintético da afinidade potencial, lugar onde “algo acontece”. A
afinidade potencial é a primeira determinação sociológica da alteridade.
Isso nos leva ao tema da relação entre a afinidade potencial e o mundo dos
inimigos. Os terceiros incluídos, relações rituais normalmente estabelecidas com
membros da categoria dos afins potenciais (parentela distante, afins de afins, não coresidentes), apresentam atributos que ternarizam a oposição entre consanguíneos e
afins; mas eles são, justamente, incluídos, são atualizações singulares da
potencialidade. Já os afins potenciais, enquanto categoria coletiva, aparecem como o
termo médio e mediador entre cognatos e inimigos, co-residentes e estrangeiros,
posições aqui tomadas em seu aspecto sociocêntrico. Eles são o operador de
determinação das categorias brutas da interioridade e da exterioridade, do parentesco
e da inimizade, sem o qual o sistema estagnaria na indiferença: exterior e interior
estariam associados de modo puramente extrínseco. Os afins potenciais não são
“inimigos”, um mero complemento diacrítico do “Nós”, mas outros coletivos com
quem se travam relações socialmente determinadas de troca simbólica. Ainda ali
onde estas relações incluem a violência e a “reciprocidade negativa”, trata-se sempre
de uma violência simbólica (simbólica mesmo quando é real, para falarmos como
Sahlins 1983: 88), e de uma reciprocidade, mesmo que “negativa” (para falarmos
novamente como Sahlins 1965), manifestando um uso positivo e necessário da
alteridade.
Os exemplos dessa função de mediação dinâmica (de terceiros includentes ou
inclusivos) exercida pelos afins potenciais são numerosos, como o são os matizes da
paleta de diferenças que seria preciso considerar. Evoque-se rapidamente: a afinização
ritual do cativo tupinambá; a transformação dos inimigos mortos pelos Araweté em
tiwã, afins potenciais, de seus matadores; a mediação endocanibal exercida pelos
afins classificatórios no rito funerário yanomam, entre os predadores exocanibais
inimigos e os cognatos enlutados; a posição privilegiada, e socialmente
intermediária, daqueles inimigos que são o objeto da caça de dentes ou cabeças pelos
Yagua e Jívaro, entre a solidariedade (ou vendetta equilibrável) interna e a violência
indiferente (ou a indiferença amigável) externa – posição que caracteriza estes
inimigos úteis como afins lógicos –; o canibalismo metafórico dos estrangeiros nos
ritos wari’, distinto do exocanibalismo literal exercido contra os inimigos (de outras
etnias) e do endocanibalismo funerário, também literal, a cargo dos afins efetivos,
mascarado por uma linguagem piedosamente consanguínea; a rivalidade entre os
líderes locais (xamãs) piaroa, expressa como afinidade potencial e marcada por um
canibalismo “realmente simbólico”, que se distingue tanto do canibalismo
“imaginariamente real” entre inimigos exteriores, quanto da afinidade efetiva, interna
ao grupo local; os diálogos cerimoniais dos Trio, travados numa frequência média e
tensa, entre o silêncio belicoso frente aos não-Trio e a comunicação informal interna
– ligando portanto afins potenciais, homens de outras aglomerações locais –; ou, por
fim, os ritos funerários alto-xinguanos, onde os primos cruzados não-aliados por
casamento, afins potenciais portanto, são os antagonistas arquetípicos.
É importante observar como os contextos culturalmente mais densos, os
momentos críticos para a reprodução simbólica das sociedades acima evocadas,
põem em cena, como sujeito ou como objeto, os afins potenciais, do sacrifício
tupinambá à cauinagem guerreira araweté, do reahu yanomam à celebração shuar
da tsantsa, do tamara wari’ ao sari piaroa, ao kwarup e yawari alto-xinguanos. {35}
Uma economia simbólica da predação
Os exemplos enumerados mostram como se constrói o além da afinidade que sua
função mediadora implica. A fissão interna dessa categoria, longe de resolver, só faz
redobrar sua instabilidade. Por um lado, sua neutralização pela troca simétrica ou
endogâmica, isto é, sua atualização, é sempre imperfeita e inacabada: nem todo afim
é parente; os laços de afinidade são, de diversos modos, a linha de fratura do grupo
local; os afins continuam a desempenhar, por trás de um eventual convencionalismo
cognático, as indispensáveis funções de alteridade. Por outro lado, o uso positivo da
potencialidade, seu aproveitamento ritual, marca a afinidade com o selo simbólico
do canibalismo.
A AXIOMÁTICA CANIBAL
A necessidade da afinidade é a necessidade do canibalismo. A associação intrínseca
entre essas duas noções – talvez muito geral, mas especialmente saliente na América
indígena – é um indício decisivo a favor da tese de um englobamento hierárquico do
interior do socius por seu exterior: do parentesco, via a afinidade potencial, pela
inimizade; da ordem local do casamento pela ordem global das trocas simbólicas,
onde circulam partes de corpos e propriedades metafísicas; da sociologia em sentido
estrito pela cosmologia em sentido lato – em geral, e em suma, da semelhança pela
diferença. É tal associação constitutiva entre afinidade e canibalismo que me
persuade, igualmente, a não tomar o papel estruturante da afinidade potencial por
uma mera emanação (indutiva ou dialética) do parentesco e das relações primárias
ali vigentes, mas, ao contrário, a ver nesse domínio subordinado uma estabilização
particular do regime generalizado da diferença, do qual a afinidade potencial é a
primeira determinação particularizante. O vetor da estrutura dirige-se de fora para
dentro.
Falamos da afinidade como uma categoria. A rigor, continuando a aproveitar a
linguagem “obscura mas cômoda” de Kant (como disse Mauss em algum lugar),
deveríamos mais propriamente afirmar que ela é o esquema sociológico da real
categoria, a categoria da diferença ou da relação, cujo outro esquema transcendental
é o canibalismo. Afinidade e canibalismo são os dois esquematismos sensíveis da
predação generalizada, que é a modalidade prototípica da Relação nas cosmologias
ameríndias. Há uma observação de Lévi-Strauss que nos ajuda:
Os observadores revelaram-se, frequentemente, surpresos diante da
impossibilidade, para os indígenas, de conceber uma relação neutra, ou, mais
exatamente, uma ausência de relação. […] A ausência de relação familiar não
define um nada, ela define a hostilidade. […] É tão pouco possível manter-se
aquém quanto além do mundo das relações (EEP: 552-53).
Isso equivale a dizer que, “para os indígenas”, nenhuma diferença é indiferente, pois
toda diferença é imediatamente relação, dotada de uma positividade; a hostilidade
não é um nada, mas uma relação socialmente determinada. Seria possível, contudo,
ir mais longe na Amazônia: o esquema geral de toda diferença, como se pode ler
reiteradamente na etnologia da região, é a predação canibal, da qual a afinidade é
apenas uma codificação específica, ainda que privilegiada. Com o risco de um certo
excesso alegórico, diríamos que, nas cosmologias em pauta, a proposição atributiva
genérica é uma proposição canibal. O protótipo da relação predicativa entre sujeito e
objeto é a predação e a incorporação: entre afins, entre homens e mulheres, entre
vivos e mortos, entre humanos e animais, entre humanos e espíritos, e, naturalmente,
entre inimigos. A cópula predicativa de toda proposição sintética, neste universo que
se enuncia segundo uma lógica das qualidades sensíveis, é efetivamente uma cópula,
carnal ou carnívora. Sujeito e objeto se interconstituem pela predação incorporante,
cuja reciprocidade característica, sublinhe-se, atesta a inexistência de posições
absolutas (do sujeito como substância, do predicado como acidente). {36}
Às proposições analíticas de identidade próprias do mundo substantivista do
parentesco (concebido, nas sociologias amazônicas, na forma da comunidade de
substância, e como convertendo continuamente relações em termos), contrapõe-se e
sobrepõe-se o mundo sintético da predação, onde é justamente a heterogeneidade de
substância que instaura o jogo dinâmico da relação. A diferença (a “hostilidade”),
longe de ser um nada, é aquilo cujo limite inferior define a “relação familiar”. É ela o
termo não-marcado, regente da estrutura global. É a predação que é generalizada,
não o parentesco; ela é a Relação.
Assim, as “estruturas alimentares do parentesco” de Meillassoux (1975), com sua
ênfase nas relações materiais de produção, devem ser vistas como circunscritas pelas
estruturas autrement alimentares de não-parentesco – pelas relações simbólicas de
predação canibal. Já se observou que as sociedades amazônicas, tecnologicamente
“neolíticas”, possuem uma imaginação “paleolítica”: seu paradigma da produção e
da reprodução não é o casamento fecundo com a terra-mãe, mas a predação
canibal, cinegética e guerreira, entre inimigos-afins. A natureza é “afinal” (Descola
1986: 317-30; Erikson 1984: 112), não maternal. {37} Do mesmo modo, a relação
com os mortos e espíritos se trava no elemento da aliança tensa entre afins potenciais,
não naquele da ancestralidade cultual filiativa: a sobrenatureza não é paternal, mas
também “afinal” (Carneiro da Cunha 1978; Viveiros de Castro 1986a). O que vai ao
encontro de uma breve anotação em O pensamento selvagem:
Entre as populações onde as classificações totêmicas e as especializações funcionais
têm um rendimento muito reduzido, isto quando não estão completamente ausentes,
as trocas matrimoniais podem fornecer um modelo diretamente aplicável à
mediação da natureza e da cultura
(Lévi-Strauss 1962b: 170).
As relações amazônicas de predação, apresso-me a sublinhar, são intrinsecamente
relações sociais. A reciprocidade inerente à predação canibal já sugere que se trata
aqui de uma predação subjetivante, interna ao mundo das relações de que falava
Lévi-Strauss. Ela nada tem a ver com a produção objetivante moderna, que supõe
uma relação neutra, impossível nas cosmologias ameríndias, onde se defrontam um
Sujeito humano ativo e um Outro inerte e naturalizado. A predação generalizada
ameríndia é uma figura do mundo “do dom e da luta dos homens” (Lefort, 1978),
não do mundo do trabalho e do domínio das coisas: ela pertence à troca, não à
produção. Chaumeil (apud Erikson 1984: 110) observa, a respeito dos Yagua, algo
que poderia ser estendido à maioria das sociedades amazônicas: que a caça é uma
forma de “commerce, échange, troc”, não de “labeur”. Diga-se isso de toda forma de
predação na Amazônia, e diga-se, sobretudo, que o inverso é ainda mais verdadeiro:
que toda troca, a começar pela matrimonial, é uma forma de predação (Bidou,
Landaburu, também referidos em Erikson op. cit.: 112).
A predação é uma predicação da humanidade, e seu predicamento. A afinidade é
um caso particular do canibalismo porque o canibalismo é uma relação
essencialmente social – porque só há relações sociais. Ela é, em verdade, sua
determinação social máxima, a tal ponto que é preciso afinizar para poder
incorporar: seja porque é preciso afastar o demasiado próximo, como as presas
animais para os Piaroa (Overing 1986), seja porque é necessário determinar o
indeterminado, como a vítima sacrificial para os Tupinambá (Viveiros de Castro
1986a). Mais ainda, às vezes é preciso afinizar para incorporar, e é preciso
incorporar para consanguinizar. Penso naqueles muitos sistemas onde as substâncias
e as identidades internas são o produto da “digestão” de relações exteriores, postas
como a condição de possibilidade das primeiras: penso no canibalismo guerreiro
wari’, que torna o inimigo filho de seu matador (Vilaça 1992); ou na gestação
masculina induzida pela vítima jívaro, condição da fecundidade feminina (Taylor
1985, 1994). Aqui o canibalismo efetivo aparece como homólogo à afinidade efetiva,
que, com o casamento, traduz a potência em ato e subjetiviza o objeto; e ele também
depende de um canibalismo potencial, da predação generalizada que define a ordem
da socialidade cósmica. Mais geralmente, a predação do exterior surge como
condição de produção do corpo social em sua dimensão interna, como o elemento de
construção das diferenças e dinamismos sexuais, etários e estatutários, que
manifestam assim sua dependência da ordem global da predação. Penso aqui nos
Ikpeng e nos Mundurucu, nos Yanomam e nos Tupinambá. {38}
A MORTE E A ALIANÇA
Na socialidade amazônica, em suma, o axioma canibal é anterior e superior aos
teoremas do parentesco. As relações de predação englobam as relações de produção.
Isso significa que uma economia das trocas simbólicas ligadas à criação e destruição
de componentes humanos (componentes relacionais mais ou menos reificados em
“substâncias”) circunscreve e determina a economia política do casamento e da
alocação de recursos produtivos, a qual deve ser vista como uma incidência, entre
outras, da ordem da socialidade canibal. A concepção simplista do intercâmbio
matrimonial como envolvendo a distribuição, circulação e controle de indivíduos
(classicamente, do sexo feminino) precisa dar lugar a uma consideração mais fina
dos atributos e propriedades que circulam, não apenas no casamento, mas no fluxo
universal da predação predicativa. É nesse sentido que o parentesco, enquanto ordem
econômica da produção de pessoas, e enquanto ordem jurídico-política de sua
circulação, reprodução e controle, aparece como determinado por uma economia
cosmológica bem mais geral – por uma economia, literalmente, cósmica. {39}
Seria necessário, por exemplo e no mínimo, complementar a descrição da
economia política do parentesco por um exame da economia simbólica da morte nas
sociedades amazônicas. O trabalho de controle da morte parece ali ter uma
relevância cósmica e social tão grande quanto, senão maior que, a conferida aos
dispositivos de produção de indivíduos. É conhecido o aparente paradoxo daquelas
sociedades “simples” que, fundadas na aliança simétrica e tendo o casamento como
arena política principal, minimizam ao máximo, por assim dizer, justamente estes
aspectos, do ponto de vista de sua ênfase ritual. Essa “implicitação” da aliança seria
característica das brideservice societies, em contraste com o cerimonialismo que cerca
o matrimônio nas bridewealth societies, conforme o sugestivo modelo de Collier &
Rosaldo (1981). Não cabe aqui discutir as razões desse fenômeno; ele pode ser uma
propriedade inerente à aliança prescritiva, onde o casamento é pensado sob a forma
da repetição; mas também pode estar manifestando uma inibição política que
reconhece, em negativo, o valor do casamento na criação de diferenciais de poder
dentro dessas sociedades igualitárias. O que não tem recebido a atenção teórica que
sua evidência etnográfica impõe, no caso amazônico ao menos, é a contraface
positiva da desmarcação do casamento, a saber, a elaborada maquinária ritual que
envolve a morte. Se o matrimônio e o nascimento são, em geral, tratados de modo
deliberada e modestamente doméstico, a morte, interna ou alheia, sofrida ou
exercida, é assunto eminentemente público, e imediatamente político-ritual,
acionando para os ritos funerários, purificatórios ou comemorativos toda a
comunidade, e por vezes mais que ela.
Uma especulação comparativa. Se, na África – entenda-se, naquelas sociedades
africanas que serviram de protótipo para a teoria dos grupos de descendência –,
o “problema” parece ser o de produzir e localizar juridicamente os vivos, na
Amazônia, em contraste, o problema seria fabricar e situar cosmicamente os
mortos. A ausência ou pobreza de cultos de ancestrais na América tropical
poderia estar ligada a isto: a linha divisória de base não passa entre grupos
distintos de pessoas, vivas como mortas, internamente unidas por laços de
descendência, mas entre a comunidade dos vivos, de um lado, e a dos mortos, de
outro, ligadas-separadas por laços de afinidade (Carneiro da Cunha 1978 ). Em
muitas sociedades africanas, com efeito, a condição de morto aparenta um
indíviduo a toda a sociedade: mesmo os ancestrais alheios são parte do
patrimônio coletivo (Houseman, com. pess. 1989). Na Amazônia, ao contrário,
essa condição transforma-o simbolicamente em afim, mesmo para seus
consanguíneos. O desloca-mento da carga simbólica da afinidade para as
relações vivos/mortos permite, ao mesmo tempo, o mascaramento da aliança
no interior do mundo dos vivos (o “efeito guianense”) e revela seu valor
instituinte: a afinidade é transcendentalizada. Os mortos, como os inimigos, são
afins potenciais, e por isso ambos são indispensáveis. Não é por acaso, portanto,
que, se um consanguíneo morto é uma espécie de afim ou de inimigo, um
inimigo morto será uma espécie de afim ou de consanguíneo (Taylor 1985;
Viveiros de Castro 1986a; Vilaça 1992).
E uma correção de curso. Albert (com. pess. 1991) chamou-me a atenção
para um aspecto que obriga a matizar o que digo aqui sobre o predomínio da
administração da morte sobre a gestão da vida: a óbvia importância, em
numerosas sociedades amazônicas, dos rituais de iniciação, e de sua simbólica
da fecundidade. Lembrou-me ainda (evocando um comentário de Rivière) que,
na maioria das sociedades guianenses, à parte os Yanomami, verifica-se uma
desmarcação dos funerais e uma ênfase na iniciação. Poderíamos também
recordar o complexo tukano do Jurupari etc. O contraste que eu perseguia acima,
entretanto (nos passos de DaMatta 1976 e de Carneiro da Cunha 1978), era
antes aquele entre uma gestão política da reprodução e da continuidade social
internas – o paradigma africano da descendência, com sua dependência da
parentalidade – e uma gestão simbólica da exterioridade afim, e sua dependência
do parentesco. (Para o contraste entre parentalidade e parentesco, ver Houseman
1988.) Seja como for, deve-se considerar a relação entre a produção ritual de
adultos capazes de dar a vida – os ritos de puberdade, a importância da
menarca etc. – e a fabricação ritual dos mortos. Em não poucas sociedades,
esses temas estão intrinsecamente ligados. Para um instigante tratamento da
problemática da fecundidade na Amazônia, ver Santos 1986, que sublinha o que
aqui minimizei, e vice-versa.
Não é possível, portanto, separar o problema da afinidade do problema da
mortalidade, atribuindo ao primeiro uma primazia sociopolítica face à evanescência
cosmológica do segundo. A morte e a aliança são condições conexas de possibilidade
do socius, como atestam aquelas utopias ameríndias que, negando uma, negam
conjunta e necessariamente a outra (H. Clastres 1975). A economia política do
casamento, em sua modalidade amazônica, é a face local de uma economia
simbólica da morte. E é a axiomática canibal que traduz uma na outra, visto que a
morte, como a sexualidade que impõe a aliança, é concebida em termos dessa
axiomática.
Recordemos aqui o vasto complexo descrito nas Mitológicas, onde a origem da
cultura é ao mesmo tempo origem do fogo culinário, da aliança e da mortalidade. O
canibalismo, regime alternativa ou cumulativamente alimentar, sexual e funerário,
não pode senão ser um emblema poderoso da condição humana nesta visão de
mundo. E em visões análogas: como disse Sahlins para o povo das Ilhas Fiji, “a
origem do canibalismo é a origem da cultura” (1983: 72). O que poderia ter sido
dito, é claro, pela etnógrafa dos Piaroa. Se muitas sociedades amazônicas usam a
aliança simétrica em um espírito de introversão endogâmica, conforme a ideia
reguladora de uma autonomia andrógina do grupo local, uno e indiviso (para
falarmos como Pierre Clastres), é a morte que impõe a abertura heteronômica da
mônada matrimonial. Ela sempre vem de fora, dos inimigos, animais e espíritos, e
ela sempre produz um exterior, seja quando é a feitiçaria interna que divide o grupo,
seja porque toda morte transforma um vivente em ente de fora. Os limites da
autonomia local não são apenas aqueles impostos à vontade endogâmica pela
demografia ou a política: eles são limites cósmicos impostos pela mortalidade. Os
Outros são necessários para a administração, no duplo sentido, da morte. A perfeita
autonomia só seria possível se os humanos fossem imortais, mas aí é a sociedade
que seria inviável, o que é um tema recorrente nas escatologias ameríndias. Ou se a
morte não fosse um problema para a razão. Mas é ela a janela da mônada. Se é às
vezes possível casar entre si, é sempre preciso morrer fora; a fórmula de Tylor não
representa uma verdadeira alternativa. E em muitos casos, como já vimos, não são
apenas predadores que é mister buscar fora, para a socialização da morte interna,
mas também presas. Pois, se é possível casar dentro, muitas vezes é preciso matar
fora, naqueles regimes que dependem da captura canibal de relações exteriores: os
“cooked men” podem ser tão ou mais escassos que as “raw women” (Sahlins 1983).
Determinar a morte como questão sociológica fundamental na paisagem
amazônica implica concluir que o que é escasso, especificamente, talvez seja o sentido,
e nada mais: é ele que é efetivamente raro, e que está sempre alhures. A morte gera
uma economia propriamente simbólica, para além de uma economia política
baseada numa suposta escassez de coisas, ou de pessoas tomadas como coisas
(Baudrillard 1976).
Dentro dessa perspectiva de uma economia generalizada, seria interessante
passar em revista os diferentes tipos de escassez que foram acionados para dar
conta das propriedades globais de alguns (ou todos os) sistemas
sociocosmológicos ameríndios. Para não falar na escassez de proteínas ou de
solos férteis, cara aos ecologistas culturais, ou da luta de morte pela reprodução
diferencial, cara aos sociobiólogos, recordem-se: Rivière 1984 e 1985, que sugere
uma escassez da força de trabalho ou de pessoas; Lizot 1976, que diz que, para
os Yanomami, as mulheres são os bens escassos por excelência; Taylor 1985 e
1994, que fala de uma escassez de identidades ou de “virtualidades de pessoas”
para os Jívaro, motor de sua caça às cabeças. Os especialistas no noroeste
amazônico, por sua vez, mencionam frequentemente uma certa escassez
termodinâmica, a ideia de uma quantidade finita de energia cósmica que deve ser
reciclada. Os trabalhos de Overing sobre os Piaroa sugerem, enfim, que o
conhecimento xamanístico é o recurso escasso dessa sociedade. Há, portanto,
economias políticas, economias simbólicas, economias físicas, economias
metafísicas da escassez; há uma escassez “ética”, uma escassez “êmica”, e assim
por diante. Não sei bem o que pensar disso tudo. Talvez devêssemos nos pôr de
acordo quanto ao que é escasso, afinal, nesses sistemas. Em seguida, caberia ver
se de fato a noção é realmente heurística. Para uma análise inovadora das
sociedades ameríndias em termos de uma economia do desejo, não da escassez,
ver Gow 1989 e 1991a.
Os afins, enfim, são inevitáveis, desde que a questão é obter esposas; mas essa
questão pode ser resolvida em casa, para tantas dessas sociedades; os inimigos,
entretanto, são indispensáveis para a produção social dos mortos, e muitas vezes dos
vivos, e para isso é preciso olhar além do horizonte do grupo. E os afins potenciais,
como já dissemos, são a ponte a ligar essas duas fases da socialidade.
É assim que entendo, por exemplo, a situação piaroa resumida por Joanna
Overing nos termos de uma tensão dialética entre duas imagens da sociedade: de um
lado, “um mundo ideal de parentelas endógamas”; do outro, “a sociedade como
incluindo o todo mais amplo [the wider whole] – os afins potenciais e os oponentes
políticos” (1984: 148). Com efeito, o regime intentado pelo casamento é o da
coexistência extensiva, partes extra partes, de totalidades imaginárias fechadas;
aquele conduzido no elemento da reciprocidade canibal é o de uma estrutura
simbólica aberta e intensiva, comandada pelo exterior. É o wider whole de onde vem
a morte – e também o sentido, e assim a vida –, povoado por afins inimigos,
espíritos animais, estrangeiros canibais e tantos outros avatares da exterioridade. A
mesma interpretação, creio, pode ser dada às sugestões de Rivière (1984: 70-71, 8586) sobre a abertura do localismo guianense graças às “cosmologias e noções causais
da região”;{40} isto é, não como mera compensação cosmológica negativa da
introversão sociológica, mas como afirmação de uma abertura necessária. Isso pode
ser generalizado para os nexos endógamos jívaro, por exemplo, que encontram seus
limites no nível superior da troca de cabeças entre afins simbólicos; ou para a
comunidade intramatrimonial yanomam, que se engrena, no ciclo funerário, ao
complexo multicomunitário definido pela afinidade potencial e o canibalismo; ou
para a introversão avuncular tupinambá, que se abre ao wider whole no sacrifício do
inimigo, momento de congregação de numerosas aldeias aliadas em torno de um
afim exterior, para devorá-lo. O esquema da predação é por onde a parte passa ao
todo e vice-versa. Predação é passagem.
A questão da troca simétrica como ideologia dominante na Amazônia pode ser
retomada desse ponto de vista. Enquanto nas bridewealth societies vigora a
intercambiabilidade maussiana entre pessoas e coisas, as brideservice societies, ao
contrário, destacam-se pela ausência de valor transcontextual dos objetos, e,
portanto, pelo princípio: “a única coisa que pode ser trocada por uma mulher é outra
mulher” (Collier & Rosaldo 1981: 298). Nelas, o significado central do casamento
para a autonomia masculina e a ênfase igualitária resultam na reciprocidade
equilibrada da troca direta, figura que forneceria “a metáfora básica da ordem social
nas sociedades de serviço da noiva” (id. ibid.: 299). Haverá certamente reparos a
fazer ao modelo de Collier & Rosaldo, no contexto amazônico (Rivière 1985;
McCallum 1989); mas ele permite extensões interessantes. Talvez seja esse princípio
de equivalência estrita entre pessoas, sua “imediação” objetiva, que articule o
canibalismo e a afinidade potenciais. Com efeito, se não se trocam
matrimonialmente pessoas, então isso será efetuado pela reciprocidade canibal. A
ausência de casamento ou, alternativamente, um fluxo apenas unidirecional de
pessoas abrem um crédito canibal recíproco ou unidirecional, na direção inversa. A
aliança cumulativa endogâmica e a troca direta aparecem como casos-limite onde a
constante canibal se cancela. A predação sexual recíproca quita a dívida sempre
latente, ou, de modo mais geral, converte em troca de pessoas vivas o potencial de
troca de pessoas mortas sempre presente entre Outros. Nas sociedades amazônicas,
pode-se dizer que o casamento não só é um processo gradual (Collier & Rosaldo op.
cit.: 286), mas que ele é vivido como uma espécie de predação sexual consentida entre
as partes assim aliadas. {41} A captura belicosa de mulheres no exterior (prática,
note-se, bem menos comum na região do que se imagina) é um dos polos de um
contínuo sem falhas, cujo outro polo é a endogamia cumulativa.
A aliança reiterada e a troca simétrica são formas de estabilização do potencial
canibal em seu estado de energia mínima. Percebe-se então por que a afinidade
potencial, concebida do ponto de vista masculino, onde as mulheres exteriores são
um alvo, é especificada nos mitos como afinidade efetiva mas unilateral, onde os
doadores de mulheres são os canibais por excelência. Quem dá mulheres sem recebêlas em troca (e só uma pessoa vale outra) abre um crédito canibal contra os
tomadores. A mitologia sul-americana tem como uma de suas figuras típicas o
sogro antropófago, que impõe ao genro provas perigosas, nas quais o fracasso é
sancionado pela devoração, e de quem se obtêm os bens culturais. O Kuemoi dos
Piaroa é um bom exemplo (Overing Kaplan 1984: 144-47). Com a cultura (o fogo
culinário) e as mulheres recebe-se, muitas vezes, a mortalidade; mas, nesses mitos
prometeicos sul-americanos, o credor terrível é normalmente um wife-giver, sogro ou
irmão da mulher, não uma figura paterna – mais uma vez, a alteridade aqui é afim.
O conhecido rito tupinambá é explícito: a mulher cedida ao cativo de guerra era, de
preferência, uma filha ou irmã de seu captor, ou de seu futuro matador. Como se,
para justificar devidamente a morte do inimigo, fosse primeiro necessário endividálo como genro ou cunhado receptor. A prestação de um prisioneiro aos doadores de
esposa, além disso, era uma das obrigações do jovem recém-casado, que
presenteava seus afins com um substituto em espécie de si mesmo. E a outra
prestação capaz de terminar a fase uxorilocal do serviço da noiva era a cessão de
uma filha ao irmão da mulher, isto é, o casamento avuncular. Um cativo, duplo de si
mesmo, ou uma filha, duplo da mulher obtida, em troca desta: pessoa por pessoa e
corpo por corpo (Viveiros de Castro 1986a: 683-85). É necessário, portanto,
generalizar a fórmula de Collier e Rosaldo: a única coisa que pode ser trocada por
uma pessoa é outra pessoa. A não-simbolicidade entre pessoas e objetos – a ausência
de bridewealth – associa-se à equivalência entre mortos, cativos e mulheres, e a uma
equivalência potencial entre componentes pessoais e modalidades de predação.
A afinidade unilateral aparece, assim, como caso particular da afinidade
potencial; caso onde a atualização não neutraliza a afinidade, mas a “potencializa”, ao
lhe fornecer um esquema sociológico próprio do raciocínio demonstrativo do mito. O
sogro e o cunhado (WB) canibais são, sem dúvida, representações típicas de
sociedades uxorilocais ou de brideservice, onde a ausência de irmã para trocar com o
WB abre um crédito canibal em favor dos doadores. Crédito que, exceto nas
sociedades que praticam o casamento avuncular, sempre estará aberto em favor do
sogro. A Dívida ameríndia não concerne filiação e parentalidade, mas aliança e
casamento (Viveiros de Castro 1990: 28-31). “O caçador é por excelência um genro”
(Erikson 1984: 113); com efeito, pois, em caso contrário, o genro será a caça por
excelência.
Thomas (1979), analisando a filosofia matrimonial dos Pemon – e antecipando
a máxima de Collier e Rosaldo, ao observar que, “no plano ideal, a única
contrapartida de uma mulher é outra mulher” –, mostra um gradiente de
obrigações para com o sogro conforme a sequência: casamento com mulheres
não-aparentadas; com primas cruzadas; com a ZD. No primeiro caso, WF e
DH são apenas isto; no segundo, são MB e ZS; no terceiro, WF=ZH, DH=WB.
Nos Pemon, quem dá uma mulher é seu pai, não seu irmão; a troca simétrica,
assim, não quita a dívida para com o WF, só cancelável com a troca oblíqua
avuncular, que transforma o sogro em cunhado (o que Thomas chama de
“elimination of the father-in-law”) e especificamente em cunhado receptor. O que
se busca parece ser menos, pace Thomas, suprimir a afinidade que evitar
qualquer assimetria. Os Shiwiar adotam a estratégia mais comum e menos
radical, que é a de contrabalançar as dívidas para com os WF pela troca de
irmãs: “Os doadores de esposa ocupam uma posição superior frente aos
receptores, que estão em dívida permanente para com eles, devendo fornecer-lhes
alimentos e lhes prestar serviços. Essas relações podem ser amenizadas ou
neutralizadas, porém, pelo matrimônio entre primos cruzados, pelo intercâmbio
de irmãs e outras formas de aliança repetida ou recíproca” (Seymour-Smith
1988: 202). Se podemos dizer que a predação entre afins potenciais é a estrutura
que comanda as relações supralocais no socius amazônico (que são as relações
propriamente políticas, como argumenta Albert 1985), a relação entre WF e DH
é, por seu turno, o modelo dominante da hierarquia interpessoal, e mesmo a
matriz real ou imaginária de toda relação de poder (ver Turner 1979a, b; Albert
1988: 89; Viveiros de Castro 1986a: 319-20, 628-29, 683-90).
Joanna Overing tem mostrado a relação profunda entre o ideal da simetria
endogâmica e o horizonte canibal. O canibalismo é o resultado de uma ausência de
reciprocidade sempre latente:
A relação própria, ou melhor, segura de intercâmbio é aquela que é reciprocada, e
é apenas mediante tal reciprocidade que o perigo inerente à relação entre afins pode
ser invertido […] Os afins são gente estranha, que pode nos comer… (1981: 162,
apud Erikson 1984: 109 n. 4).
Consegue, entretanto, essa vontade de intercâmbio endogâmico alcançar a segura
simetria visada, esconjurando o fantasma canibal, despachando-o para o espaço
exterior à sociedade ou para o tempo anterior do mito? Falamos acima em
estabilização do potencial canibal em um estado de energia mínima; mínima, notese, não nula. Não existe vácuo sociológico absoluto, não há zero relacional: a
“ausência de relação”, como vimos, é inconcebível no pensamento ameríndio. A
simetria absoluta é, por isso mesmo, impossível. O canibalismo não é um resultado,
mas um princípio. Cito Vilaça, citando outros:
A troca de mulheres, mesmo simétrica, não é jamais uma troca igual, pois que
“cada mulher conserva um valor particular” (EEP: 569). Como diz Lima (1986:
146) para os Juruna, “a irmã cedida jamais poderá ser substituída perfeitamente
pela outra […] que se recebe” (1992: 294).
Com efeito, além de a simetria de facto dificilmente poder abarcar a relação com o
sogro – a solução avuncular parece ter ido o mais longe possível nessa direção –, ela
encontra um limite de jure, infranqueável: toda troca contém um potencial
assimétrico. As mulheres não são apenas signos, mas valores, argumentava LéviStrauss; e se cada sexo é, para o outro, relação e abertura – é isso que significa o
conceito de “proibição do incesto” (Viveiros de Castro 1990: 26-27) –, pode ser
também termo e fechamento. A injunção da exogamia institui uma equivalência
formal entre as mulheres; mas a única coisa perfeitamente equivalente a uma mulher
cedida é ela própria, aquela, e não outra. A perfeita simetria é o incesto, porque é
perfeita autonomia; e o incesto conduz, literalmente, ao canibalismo. Se os sistemas
de troca generalizada revelam-se obcecados por um “fantasma patrilateral” (EEP:
356), os sistemas de troca restrita têm o incesto sororal como seu fantasma. {42}
Mito e rito juntam-se para sublinhar a assimetria inerente a toda troca. Esta, quando
simétrica, faz tanto dois ganhadores como dois perdedores: o jogo de perspectivas é
aqui crucial. {43}
A troca é sempre desigual, em última análise. Se ela funda a sociedade, não é,
então, por acaso que a sociedade amazônica será sempre “uma sociedade que
suspeita de sua própria natureza social” (Overing Kaplan 1984: 150). Suspeitando da
troca, busca anulá-la de diversas maneiras: pela endogamia, que autoriza uma
“reciprocidade generalizada” sem contabilidade; pela repetição de alianças em um
meio cognático, que dissolve quaisquer unidades diacrônicas; pela união avuncular,
que pensa toda irmã como, literalmente, grávida de uma esposa; por simulacros de
exogamia, enfim, que são apenas empréstimos a curto prazo de componentes
pessoais destotalizados (Rivière 1985). “Através do casamento endogâmico é a
própria noção de troca matrimonial, e não apenas seus perigos, que se vê suprimida”
(Overing Kaplan op. cit.: 149).
Com efeito. Mas isso significa apenas liberar a noção de troca ou intercâmbio de
sua servidão ao parentesco, de modo a utilizá-la para outros fins. Lévi-Strauss fez
uma observação sobre a Nova Guiné que, mudando o que deve ser mudado, aplicase bem à situação amazônica:
Na Nova Guiné, a oposição entre consanguinidade e aliança não é definível em
termos clássicos. Ao contrário do que se passa na maior parte das sociedades
sobre cuja observação edificou-se a teoria antropológica, nas quais é preciso
colocar a consanguinidade de um lado, a aliança e a troca do outro, a Nova Guiné
desloca a linha de demarcação. Aqui, ela separa a consanguinidade e a aliança,
postas juntas, da troca, que constitui quase uma ordem à parte (1984: 206).
A linha de demarcação disporia, em nosso caso, a consanguinidade e a aliança, de
um lado, e a afinidade potencial, do outro, “que constitui quase uma ordem à parte”.
É ela que recolhe em si os valores do conceito de troca. Mas esse conceito deve ser
repensado, então, em termos especificamente amazônicos (Albert 1985: 685-88),
entenda-se, em termos não-contratuais e não-substancialistas. A troca amazônica é
predação ontológica: é constituição imanente, e subversão intrínseca, do interior pelo
exterior. A ordem à parte é a parte da contraordem.
Pensando bem, então, talvez não se trate – mais uma vez – de uma questão de
interior e exterior.
1. Este ensaio procede de uma reflexão sobre a etnologia ameríndia à luz da teoria do
parentesco (e vice-versa) que venho empreendendo desde 1985, junto com um grupo
de estudantes do PPGAS do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Os temas aqui
tratados foram desenvolvidos em trabalhos desse grupo (cf. Vilaça 1992, 1993;
Teixeira-Pinto 1989; Silva 1993; Gonçalves 1993; Fausto 1991), e expostos por mim
em seminários em Nanterre (1986-87, 1989), na London School of Economics
(1987), na Unicamp (1988), em duas reuniões da Associação Brasileira de
Antropologia (1988, 1990), e em Oxford (1989). Agradeço a Bruce Albert, Manuela
Carneiro da Cunha, Nádia Farage, Carlos Fausto, Michael Houseman, Patrick
Menget, Joanna Overing, Peter Rivière, Márcio Silva, Anne-Christine Taylor e
Aparecida Vilaça, pela atenção crítica que deram aos sucessivos rascunhos.
2. O substantivo “dravidianato” é aqui empregado para designar o complexo
ideológico-institucional característico de sociedades dotadas de terminologias
dravidianas e de estruturas de troca matrimonial simétricas. Formei-o por analogia
com palavras como “indigenato” ou “mecenato”, e não por tradução do adjetivo
dravidianate (dravidianático) proposto por Trautman 1981.
3. Para reflexões sobre os conceitos de “elementaridade” e “complexidade” que
reformulam as posições d’As estruturas elementares, cf. Héritier 1981; Muller 1982:
147-213; Viveiros de Castro 1990. A ideia de que a terminologia dravidiana é algo
de uma simplicidade clássica é constantemente repetida na literatura, e
constantemente desmentida pela quantidade de discussões que sua estrutura continua
gerando. Ver os comentários de Trautmann 1981: 176 e ss; Hornborg 1988: cap. 21;
Campbell 1989: cap. 7.
4. E mesmo outra, unilocal, concebida como segunda linha de filiação: ver as noções
de “harmonia” e “desarmonia”.
5. O trabalho em curso de Anne Christine Taylor (1989), bem como minha
reconsideração de L’Exercice de la parenté (Viveiros de Castro 1990), de Françoise
Héritier, são esforços na direção de uma tal teoria generalizada dos sistemas de troca
restrita.
6. Uma nova geração de jêólogos vem tentando compensar tais omissões: Lopes da
Silva 1986; Ladeira 1982; Lea 1986, 1993.
7. Estou incluindo, sob esse rótulo de “sistemas alternativos”, situações algo diferentes,
como a dos Trio (Rivière 1969), dos Kalapalo (Basso 1970), dos Piaroa (Overing
Kaplan 1975), dos Arara (Teixeira-Pinto 1989), talvez a dos Mayoruna (Fields &
Merrifield 1980) e dos Yaminahua (Townsley 1988).
8. A aparente preferência patrilateral dos Pemon, Trio e Panare é apenas um
idiomatismo – a prima cruzada bilateral, esposa preferencial, é referida como “FZD”
(Rivière 1984: 50; Henley 1982: 93-4). Mas o fenômeno é, mesmo assim,
interessante, se aproximado ao que se passa entre alguns Jívaro (Taylor 1989), Pano
(Erikson 1990: 127-28) e Tupi-Guarani (Kracke 1984: 124 n. 7). Tudo isso parece
exprimir uma inflexão patrilateral da norma bilateral, que estimo característica das
terras baixas. Sobre o casamento avuncular como “desvio favorito” das normas, ou
como união semilícita, semi-incestuosa (mesmo ali onde é terminológica e
culturalmente favorecido), cf.: McCallum 1989: 160; Erikson 1990: 136-46; Overing
Kaplan 1975: 133-34; Campbell 1989: 150; Henley 1983-84: 160; Thomas 1979;
Rivière 1969: X. Aparentemente, os únicos “avunculares sem complexo” das terras
baixas seriam alguns povos Tupi, tais os Tupinambá, os Parakanã e os Mondé.
9. Kulina: Pollock 1985a, b; Alto Xingu e Araweté: Basso 1984, Dole 1984, Viveiros
de Castro 1986a; Candoshi: Amadio & D’Emilio 1984; Panare e Ye’cuana: Henley
1982: 98; Shiwiar: Seymour-Smith 1988; Pemon: Thomas 1979: 69. A presença de
variações quanto à distância genealógico-social apropriada para os cônjuges, no
interior de um conjunto de sociedades aparentadas, com a mesma estrutura
terminológica, reencontra-se na Austrália: ver o caso dos Walbiri e Pintupi analisado
por Myers (1986: cap. 7). O tratamento dos materiais pintupi por Myers mostra
situações muito familiares aos americanistas: presença de diferentes sistemas de
classificação, deriva localista de um sistema formalmente global, oscilação
dravidiano/australiano, gradação de distância expressa em modificadores, interdito
de casamentos próximos dentro da categoria prescrita, e assim por diante. A
sequência Aranda/Walbiri/Pintupi/Aluridja (id. ibid.) tem numerosas analogias com
certos conjuntos ameríndios, em termos de gradientes de “havaianização” ou
“iroqueização”.
10. Minha discordância principal com Hornborg deriva de seu uso ao mesmo tempo
abstrato e realista da noção de troca simétrica. Como disse, muito a propósito, LéviStrauss, “se nos apressamos a postular a homogeneidade do campo social, entretendo
a ilusão de que ele é imediatamente comparável em todos os seus aspectos e níveis,
deixamos escapar o essencial […] e, acreditando estar formulando leis da natureza
social, estaremos, na verdade, limitando-nos a descrever propriedades superficiais ou
a enunciar tautologias” (1960: 22-23).
11. Essas diferenças são detalhadamente comentadas em Viveiros de Castro 1998a.
12. I. e., não basta dizer, com Hornborg (1988: 35-37), que tais interpretações são
“congruentes”. Cf. Overing Kaplan 1975: 189-90; Thomas 1977: 69, 1979: 62; Rivière
1984: 53; Silva 1993; Fausto 1991.
13. Mencionamos acima o fenômeno dos “modelos alternativos”, i. e. de uma
pluralidade de modelos de classificação vigentes em uma mesma sociedade (cf.
também Seymour-Smith 1988: 206, 209-10, 221). Entretanto, às vezes tal ideia –
que substituiu, com vantagens, aquela de uma sucessão evolutiva, defendida por Dole
(1969), p. ex. – esconde justamente esta interferência entre princípios (binarismo
terminológico e gradiente de distância, ou matriz dravidiana e regra avuncular), que
exige a construção de um “modelo complexo” mais que a postulação de contextos
distintos onde vigem diferentes modelos simples. Cf. Fausto 1991, para um exemplo
etnográfico, e Houseman 1984 e 1985, para a noção de “modelo complexo” e sua
relação com a hierarquia.
14. O que nos aproxima dos casos panare, ye’cuana e mayoruna, cf. nota 8 supra e
Fields & Merrifield 1980: 16-17.
15. Essa distinção é, em Dumont, explicitamente secundária.
16. Rivière menciona, igualmente, a natureza escalar da oposição “related/unrelated”.
17. Cf. p. 109 supra, e Viveiros de Castro 1998a.
18. Recorrendo à tripartição kantiana, poderíamos dizer que a afinidade virtual é
analítica; a efetiva, sintética a posteriori; a potencial, sintética a priori.
19. O tiwã seria mais bem um caso de extensão, ou melhor dizendo, contração, de
[3] a [2].
20. Como infiro de DaMatta 1976; Seeger 1981: 127-28, 132; Ladeira 1982; Vilaça
1992. Cf. Héritier 1981: 127, para uma generalização aos “sistemas semicomplexos”.
21. Isto recorda a oposição, terminológica e coletiva, feita pelos Tukano entre irmãos
de um mesmo grupo agnático local e os MCH, primos paralelos matrilaterais ou
afins de afins, “irmãos” antagonistas que competem pelas mulheres de um mesmo
terceiro grupo exogâmico (C. Hugh-Jones 1979: 80 e ss).
22. Cf. Thomas 1977: 70; Århem 1981a, b; Albert 1985: 212, 560; Rivière 1985.
23. Para testemunhos adicionais, cf., p. ex., Thomas 1982: 227 e ss; Rivière 1984:
70-71; Albert 1988: 89-90; McCallum 1989: 177.
24. Menget adotou, mais tarde, uma interpretação que parece convergir com a aqui
proposta. Em um artigo sobre a adoção entre os Ikpeng, ele menciona, de passagem,
uma “oposição hierárquica entre o dentro e o fora […] produtora da realidade do
grupo” (1988: 71). É provável que a fórmula seja uma reação desse autor às
conferências que ministrei em Nanterre em 1986-87, quando expus a tese principal
do presente ensaio; seja como for, não está claro que Menget dê à noção de oposição
hierárquica o mesmo sentido (e direção) que o expresso aqui.
25. O que a autora chama de “male-female affinity” seria, a rigor, mais
apropriadamente definida como conjugalidade, não como afinidade.
26. Na medida em que se pode realmente falar, na situação amazônica, de uma
dominância simbólica dos homens sobre as mulheres, ela seria o resultado da
associação dos homens com a dimensão da exterioridade. Mesmo em grupos onde o
tom da vida social é marcado pelo igualitarismo e a afabilidade nas relações entre os
sexos, parece-nos necessário levar em conta essa assimetria cosmológica, que só
pode ser minimizada se nos concentramos na dimensão doméstica do parentesco,
recusando a imanência da exterioridade. A subordinação lógica da consanguinidade
à afinidade, e em geral do parentesco à exterioridade, é a mesma coisa que o
englobamento simbólico da feminilidade pela masculinidade. Ver, por fim, as
instigantes sugestões de Erikson (1984: 116) sobre o desdobramento das oposições de
gênero e de parentesco até o domínio das relações com os animais: as mulheres
estariam ligadas por consanguinidade aos animais de estimação, e os homens por
afinidade aos animais de caça.
27. Um interessante artigo de Nick Allen (1985), de que só vim tomar conhecimento
pouco antes da publicação do presente ensaio, registra os paralelos entre a hierarquia
dumontiana e o conceito de marca. Cf. também Viveiros de Castro 1986b.
28. Recorde-se que alguns dos sistemas de metades jê guardam tal associação com o
contraste radial entre centro e periferia. Mas, por um lado, é o valor “centro” o
englobante, e, por outro, essa assimetria é sobredeterminada por um ideal de
simetria.
29. A propósito, é possível definir as terminologias dos Jê do Norte como prescritivas
no estrito sentido needhamiano. Apenas, elas não exprimiriam uma transmissão da
afinidade, mas das identidades onomásticas.
30. Ver Jamous 1991: 102 et passim, para a aplicação detalhada desse argumento ao
sistema de parentesco dos Meo, uma casta guerreira muçulmana da Índia do Norte.
31. No caso bororo, porém, a dialética entre patrifiliação espiritual e matrifiliação
doméstico-clânica impede a superposição de todas as oposições e relações sociais
sobre uma só partição dualista absoluta.
32. No livro de Jean Monod sobre os Piaroa, bem longe do Brasil Central, encontra-
se esta interessante menção a um conceito de thirdness: “[É] preciso distinguir entre
três categorias de pessoas para nomear duas, que formam o corpo inteiro da
sociedade: aquelas a quem se está ligado de nascença, e aquelas a quem se está ligado
por casamento – os parentes e os aliados. Esta é a distinção principal. O terceiro
termo são os “amigos” (tsawaraua), que podem-se tornar parentes por aliança”
(1987: 148). Agradeço a P. Rivière a referência.
33. P. ex.: Rivière 1969; 1984: 79-80; Overing Kaplan 1975, 1984; Dreyfus 1977:
380; Taylor 1983: 345-47; Turner 1979b, 1984; Albert 1985.
34. H. Clastres 1975; Carneiro da Cunha 1978; Overing Kaplan 1981, 1984; cf.
Viveiros de Castro 1986a: 527-28.
35. Tupinambá, Araweté: Viveiros de Castro 1986a. Yanomam: Albert 1985. Yagua:
Chaumeil 1985. Jívaro: Taylor 1985: 166-68, 1994; Descola 1986: 329. Wari’:
Vilaça 1992. Piaroa: Overing Kaplan 1986. Trio: Rivière 1969: 236-37, 1971. Alto
Xingu: Menget 1977: 47-48; Bastos 1990.
36. Cf. Overing Kaplan 1986: 90-95, para uma análise do canibalismo como o
idioma básico de toda relação social, entre os Piaroa. Entre os estudos que ressaltam
a importância da predação ontológica na Amazônia, ver os trabalhos de Albert
(1985, 1988) sobre os Yanomam, e o de Vilaça (1992) sobre os Wari’. Albert
analisou com grande riqueza de detalhes a simbólica canibal como elemento onde se
travam as relações políticas (i. e., supralocais) yanomam, identificando ainda uma
complexa configuração de graus e modalidades diferenciadas de predação conforme
os níveis da classificação sociopolítica, diferenciação esta que recorre a diferentes
técnicas agressivas e afeta diferentes componentes pessoais.
37. O tema da predação canibal entre afins humanos e animais tem como variante
muito frequente a sedução erótica. Cf. Holmberg 1969: 240; Murphy 1958: 39;
Erikson, 1984; McCallum 1989: 155; Descola 1986: 322 e ss; Seymour-Smith, 1988:
116-19. Esses temas são possivelmente panamericanos, cf. Désveaux 1988: 199.
38. Menget, 1977, 1993c; Albert 1985; Viveiros de Castro 1986a; Carneiro da Cunha
& Viveiros de Castro 1985.
39. Ver, nesse sentido, as formulações muito sugestivas de Strathern (1984), para a
Melanésia, e de Rivière (1985), para a Amazônia.
40. O autor está se referindo às noções causais sobre a doença e a morte.
41. Para os Parakanã (Fausto 1991), p. ex., a troca matrimonial simétrica é vista
menos como um contrato de aliança que como uma dupla captura, duplo roubo que
torna as partes quites – ou antes, visto tratar-se de um sistema de casamento
avuncular, como um roubo que deverá ser quitado na geração seguinte. E ver, supra,
as referências a Chaumeil, Bidou e Landaburu em Erikson 1984.
42. Como seu fantasma, ou como seu símbolo explícito: ver as observações de
Taylor (1989, 1994) sobre o par irmão/irmã como modelo da conjugalidade jívaro;
cf. Rivière (1969) sobre o mesmo par entre os Trio; e, naturalmente, o atrator
avúnculo-patrilateral amazônico (Viveiros de Castro 1990; Fausto 1991).
43. Alguns antropólogos (Descola 1986: 322; Erikson 1984: 113), ao comentarem a
linguagem de afinidade que envolve a caça ameríndia, contrastaram a reciprocidade
real entre cunhados humanos com a “trapaça” implicada na aliança sem contrapartida entre humanos caçadores e animais caçados. À parte o fato de que não são
poucas as sociedades onde tal assimetria se vê reconhecida e respondida pelo envio de
doenças dos animais aos humanos – doenças concebidas como contrapredação
canibal (Overing Kaplan 1986; Vilaça 1992) –, constate-se que, se a reciprocidade
matrimonial é real, e a venatória é apenas imaginária, sendo realmente unilateral,
muitas são as representações imaginárias da reciprocidade matrimonial como se
fosse unilateral, assimétrica e desigual. Uma trapaça; mas, desta vez, da sociedade
contra os indivíduos, ou do todo contra as partes?
CAPÍTULO 3
O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem
O problema da descrença no século XVI brasileiro{1}
Em uma página magnífica do Sermão do Espírito Santo (1657), Antonio Vieira
escreve:
Os que andastes pelo mundo, e entrastes em casas de prazer de príncipes, veríeis
naqueles quadros e naquelas ruas dos jardins dois gêneros de estátuas muito
diferentes, umas de mármore, outras de murta. A estátua de mármore custa muito
a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas, depois de feita uma vez, não é
necessário que lhe ponham mais a mão: sempre conserva e sustenta a mesma
figura; a estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com que se
dobram os ramos, mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela,
para que se conserve. Se deixa o jardineiro de assistir, em quatro dias sai um ramo
que lhe atravessa os olhos, sai outro que lhe descompõe as orelhas, saem dois que
de cinco dedos lhe fazem sete, e o que pouco antes era homem, já é uma confusão
verde de murtas. Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na
doutrina da fé. Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais
dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados; resistem com
as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se,
teimam, argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas, uma
vez rendidas, uma vez que receberam a fé, ficam nela firmes e constantes, como
estátuas de mármore: não é necessário trabalhar mais com elas. Há outras nações,
pelo contrário – e estas são as do Brasil – que recebem tudo o que lhes ensinam
com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem
resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o
jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser
mato como dantes eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre
delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não
veem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que não deem
ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez, que lhes decepe o que vicejam
os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidade. E só
desta maneira, trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das
raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura
dos ramos.
O imperador da língua portuguesa, como o chamou Fernando Pessoa, elabora nessa
passagem um tópico venerável da literatura jesuítica sobre os índios. O tema
remonta ao início das atividades da Companhia no Brasil, em 1549, e pode ser
resumido em uma frase: o gentio do país era exasperadoramente difícil de converter.
Não que fosse feito de matéria refratária e intratável; ao contrário, ávido de novas
formas, mostrava-se entretanto incapaz de se deixar impressionar indelevelmente por
elas. Gente receptiva a qualquer figura mas impossível de configurar, os índios eram
– para usarmos um símile menos europeu que a estátua de murta – como a mata
que os agasalhava, sempre pronta a se refechar sobre os espaços precariamente
conquistados pela cultura. Eram como sua terra, enganosamente fértil, onde tudo
parecia se poder plantar, mas onde nada brotava que não fosse sufocado incontinente
pelas ervas daninhas. Esse gentio sem fé, sem lei e sem rei não oferecia um solo
psicológico e institucional onde o Evangelho pudesse deitar raízes. {2}
Entre os pagãos do Velho Mundo, o missionário sabia as resistências que teria a
vencer: ídolos e sacerdotes, liturgias e teologias – religiões dignas desse nome,
mesmo que raramente tão exclusivistas como a sua própria. No Brasil, em troca, a
palavra de Deus era acolhida alacremente por um ouvido e ignorada com
displicência pelo outro. O inimigo aqui não era um dogma diferente, mas uma
indiferença ao dogma, uma recusa de escolher. Inconstância, indiferença, olvido: “a
gente destas terras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a mais avessa,
a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo”, desfia e desafia o
desencantado Vieira. Eis por que São Tomé fora designado por Cristo para pregar no
Brasil; justo castigo para o apóstolo da dúvida, esse de levar a crença aos incapazes
de crer – ou capazes de crer em tudo, o que vem a dar na mesma: “outros gentios são
incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são incrédulos”.{3}
Il selvaggio è mobile. O tema da inconstância ameríndia fez fortuna, dentro e fora
da reflexão missionária, e bem além de seu exemplo primordial, os Tupinambá
litorâneos. {4} Serafim Leite, o historiador da Companhia de Jesus no Brasil, fundouse nas observações dos primeiros catequistas para identificar a “deficiência da
vontade” e a “superficialidade de sentimentos” como principais impedimentos à
conversão dos índios; mas socorreu-se também da opinião de leigos, alguns
insuspeitos de jesuitismo: Gabriel Soares de Souza, Alexandre Rodrigues Ferreira,
Capistrano de Abreu, unânimes no apontar a amorfia da alma selvagem (Leite
1938: 7-11). {5} Essa proverbial inconstância não foi registrada apenas para as
coisas da fé. Ela passou, na verdade, a ser um traço definidor do caráter ameríndio,
consolidando-se como um dos estereótipos do imaginário nacional: o índio malconverso que, à primeira oportunidade, manda Deus, enxada e roupas ao diabo,
retornando feliz à selva, presa de um atavismo incurável. A inconstância é uma
constante da equação selvagem.
A imagem do selvagem inconstante é conspícua na historiografia, desde o
eminente e reacionário Varnhagen: “eram falsos e infiéis; inconstantes e
ingratos…”(1854: 51). A importação de mão-de-obra africana, é consabido, foi
frequentemente justificada pela incapacidade de os índios suportarem o trabalho
na plantation canavieira (Freyre 1933: 316-18). A antropologia racialista de
Gilberto Freyre reservou ao contraste entre o vigor animal dos africanos e a
preguiça vegetal dos ameríndios um papel de destaque. Mas autores muito mais
politicamente corretos que esses dois também exploraram a oposição
índios/africanos em termos da inconstância do gentio brasileiro:
[Os antigos moradores da terra] dificilmente se acomodavam […] ao trabalho
acurado e metódico que exige a exploração dos canaviais. Sua tendência
espontânea era para atividades menos sedentárias e que pudessem exercer-se
sem regularidade forçada e sem vigilância e fiscalização de estranhos. Versáteis
ao extremo, eram-lhes inacessíveis certas noções de ordem, constância e
exatidão, que no europeu formam como que uma segunda natureza e parecem
requisitos fundamentais da existência da sociedade civil
(Buarque de Holanda 1936: 43).
O tema das “três raças” na formação da nacionalidade brasileira tende a atribuir
a cada uma delas o predomínio de uma faculdade: aos índios a percepção, aos
africanos o sentimento, aos europeus a razão, numa escala que, como em Freyre,
evoca as três almas da doutrina aristotélica. E por falar em Aristóteles, patrono
do debate quinhentista sobre a natureza e condição do gentio americano,
pergunto-me, com o devido medo do ridículo, se ele não teria a sua parte na
história da imagem vegetal dos índios, a partir, justamente, dessa proverbial
inconstância e indiferença à crença. Na Metafísica, lê-se que o homem que “não
tem opinião própria sobre nada”, recusando-se, em particular, a se curvar ao
princípio de não-contradição, “não é melhor que um vegetal” (1006a1-15); mais
adiante o filósofo pergunta: se este homem “não acredita em nada, que diferença
haveria entre ele e as plantas?” (1008b5-10). Como se sabe, o homem-planta é
aqui o sofista, que, em seu relativismo radical, não deixa de ser um antepassado
à altura dos Tupinambá. E veja-se, enfim, esta passagem do Diálogo da
conversão do gentio: “Sabeis qual hé a mor dificuldade que lhes acho? Serem tam
faciles de diserem a tudo si ou pá, ou como vós quiserdes; tudo aprovão logo, e
com a mesma facilidade com que dizem pá [“sim”], dizem aani [“não”]…”
(Nóbrega 1556-57: II, 322). {6}
Por geral que seja, entretanto, e fundado em experiências variadas, parece-me que o
conceito da natureza inconstante da alma selvagem deriva principalmente, no caso
brasileiro, dos anos iniciais de proselitismo missionário entre os Tupi. O problema
dos índios, decidiram os padres, não residia no entendimento, aliás ágil e agudo,
mas nas outras duas potências da alma: a memória e a vontade, fracas, remissas.
{7} “É gente de muy fraca memória para as coisas de Deus” (Pires 1552: I, 323). Do
mesmo modo, o obstáculo a superar não era a presença de uma doutrina inimiga,
mas o que Vieira descrevia como “as ações e costumes bárbaros da gentilidade” –
canibalismo e guerra de vingança, bebedeiras, poliginia, nudez, ausência de
autoridade centralizada e de implantação territorial estável –, e que os primeiros
jesuítas rotulavam mais simplesmente de “maus costumes”. Veja-se esta passagem de
Nóbrega, por exemplo, que está provavelmente entre as fontes inspiradoras do
concetto do mármore e da murta:
Esta gentilidad no tiene la calidad de la gentilidad de la primitiva Iglesia, los quales
o maltratavan o matavan luego a quien les predicava contra sus ídolos, o creían en
el Evangelio; de manera que se aparejavan a morir por Christo; pero esta
gentilidad como no tiene ídolos por quien mueran, todo quanto les dízen creen,
solamente la dificultad está en quitalles todas sus malas costumbres […] lo qual
pide continuación entr’ellos […] y que vivamos con ellos y les criemos los hijos dea
pequeños en doctrina y buenas costumbres […] (1553: I, 452). {8}
Anchieta enumera concisa e precisamente os entraves:
Os impedimentos que ha para a conversão e perseverar na vida cristã de parte dos
Indios, são seus costumes inveterados […] como o terem muitas mulheres; seus
vinhos em que são muito continuos e em tirar-lhos ha ordinariamente mais
dificuldade que em todo o mais […] Item as guerras em que pretendem vingança
dos inimigos, e tomarem nomes novos, e titulos de honra; o serem naturalmente
pouco constantes no começado, e sobretudo faltar-lhes temor e sujeição […] (1584:
333).
É bem conhecida a estratégia catequética que tal imagem motivou: para converter,
primeiro civilizar; mais proveitosa que a precária conversão dos adultos, a educação
das crianças longe do ambiente nativo; antes que o simples pregar da boa-nova, a
polícia incessante da conduta civil dos índios. Reunião, fixação, sujeição, educação.
Para inculcar a fé, era preciso primeiro dar ao gentio lei e rei. A conversão dependia
de uma antropologia capaz de identificar os humana impedimenta dos índios (Pagden
1982: 100-02), os quais eram de um tipo que hoje chamaríamos “sociocultural”.
Muito já foi escrito sobre o impacto cosmológico causado pela descoberta do
Novo Mundo, sobre a antropologia tomista ibérica, sobre a catequese jesuítica, e
sobre o papel da Companhia no Brasil colonial. Nada posso acrescentar a temas que
fogem à minha competência. {9} Interessa-me apenas elucidar o que era isso que os
jesuítas e demais observadores chamavam de “inconstância” dos Tupinambá. Tratase sem dúvida de alguma coisa bem real, mesmo que se lhe queira dar outro nome;
se não um modo de ser, era um modo de aparecer da sociedade tupinambá aos olhos
dos missionários. É preciso situá-la no quadro mais amplo da bulimia ideológica
dos índios, daquele intenso interesse com que escutavam e assimilavam a mensagem
cristã sobre Deus, a alma e o mundo. Pois, repita-se, o que exasperava os padres não
era nenhuma resistência ativa que os “brasis” oferecessem ao Evangelho em nome de
uma outra crença, mas sim o fato de que sua relação com a crença era intrigante:
dispostos a tudo engolir, quando se os tinha por ganhos, eis que recalcitravam,
voltando ao “vómito dos antigos costumes” (Anchieta 1555: II, 194).
A CULTURA COMO SISTEMA RELIGIOSO
A aceitação entusiástica mas altamente seletiva de um discurso totalizante e exclusivo,
a recusa em seguir até o fim o curso desse discurso, não podiam deixar de parecer
enigmáticas a homens de missão, obediência e renúncia; e penso que esse enigma
continua a nos incomodar, a nós antropólogos, mesmo que por motivos outros que
os dos velhos jesuítas. Primeiro, a inconstância selvagem é um tema que ainda
ressoa, em seus múltiplos harmônicos, na ideologia dos modernos disciplinadores
dos índios brasileiros. {10} Segundo, e mais importante, ela de fato corresponde a
algo que se pode experimentar na convivência com muitas sociedades ameríndias,
algo de indefinível a marcar o tom psicológico, não só de sua relação com o
cardápio ideológico ocidental, mas também, e de um modo ainda mais difícil de
analisar, de sua relação consigo mesmas, com suas próprias e “autênticas” ideias e
instituições. Por fim, e sobretudo, ela constitui um desafio cabal às concepções
correntes de cultura, antropológicas ou leigas, e aos temas conexos da aculturação ou
da mudança social, que dependem profundamente de um paradigma derivado das
noções de crença e de conversão.
Dizer, como fizeram a seu modo os jesuítas, que a resistência dos Tupinambá ao
cristianismo não se devia à sua religião, mas à sua cultura, não ajuda muito. Pois
nós, modernos e antropólogos, concebemos a cultura sob um modo teológico, como
um “sistema de crenças” a que os indivíduos aderem, por assim dizer, religiosamente.
A redução antropológica do cristianismo, empresa tão decisiva para a constituição de
nossa disciplina, não deixou de impregnar o conceito de cultura com os valores
daquilo que ele pretendia abarcar. A “religião como sistema cultural” (Geertz 1966)
pressupõe uma ideia da cultura como sistema religioso. {11}
Sabemos por que os jesuítas escolheram os costumes como inimigo principal:
bárbaros de terceira classe, os Tupinambá não tinham propriamente uma religião,
apenas superstições. {12} Mas os modernos não aceitamos tal distinção etnocêntrica, e
diríamos: os missionários não viram que os “maus costumes” dos Tupinambá eram
sua verdadeira religião, e que sua inconstância era o resultado da adesão profunda a
um conjunto de crenças de pleno direito religiosas. Os jesuítas, como se tivessem lido
mas não entendido muito bem Durkheim, separaram desastradamente o sagrado do
profano (Pagden 1982: 78). Nós, em troca, sabemos que o costume é não só rei e lei,
mas deus mesmo. Pensando bem, talvez os jesuítas soubessem disso, no fundo, ou
não teriam logo detectado nos costumes o grande impedimento à conversão. Está
claro também, hoje, que o gentio tinha algo mais que maus costumes. Desde
Métraux (1928), os antropólogos identificam nos testemunhos dos primeiros
cronistas um conjunto de mitos de óbvia significação filosófica, bem como estão
cientes da importância dos xamãs e profetas na vida religiosa e política dessas
sociedades. Sabemos por fim que os Tupinambá, como os demais povos tupiguarani, dispunham de um “sistema de crenças” – antropológicas, teológicas,
cosmológicas – no qual o tema da “Terra sem Mal” ocupava um lugar maior (H.
Clastres 1975).
O equívoco dos jesuítas serviu de lição. Hoje a concepção religiosa da ordem
cultural conhece grande sucesso no seio da Igreja progressista, só que desta vez a
favor dos índios. Mais próximas que a nossa dos valores originais do
cristianismo, as sociedades indígenas transpirariam religiosidade por todos os
poros, sendo verdadeiras teodiceias em estado prático. E assim, substituindo a
imagem cristológica da encarnação por aquela antropológica da enculturação, o
novo missionário descobre que não são os índios que precisam se converter, mas
ele próprio – alguém, naturalmente, precisa se converter. A Cultura Indígena,
devidamente sublimada por uma vigorosa interpretação anagógica, torna-se a
quintessência do bem, do belo e do verdadeiro. Daí o tradicionalismo ingênuo do
missionário progressista, hostil ao menor sintoma de Aufhebung antropofágica
(no sentido oswaldiano) por parte de suas ovelhas, e sua não menos ingênua
crença na própria capacidade de transcender sua cultura de origem e de ser
miraculosamente enculturado, com perdão da expressão, pelo outro. Os velhos
jesuítas, ao menos, sabiam que isso de deixar maus costumes é via de regra
muito complicado.
“Eles” tinham, enfim, uma religião. Mas isso só torna o problema mais difícil de
resolver: “dizem que querem ser como nós”; “desean ser christianos como nosotros”
(Nóbrega 1549: I, 111-139). Por que, afinal, desejariam os selvagens ser como nós?
Se possuíam uma religião, e se de qualquer modo a cultura é um sistema de crenças,
cabe indagar que religião e que sistema eram esses que continham em si o desejo da
própria perdição. Tomando a inconstância pela outra ponta, é preciso perguntar por
que os Tupinambá eram inconstantes em relação à sua própria cultura-religião; por
que, malgrado o que dizia Vieira sobre a dificuldade em fazê-los surdos às “fábulas
dos antepassados”, mostravam-se dispostos a prestar tão bom ouvido às patranhas
alheias. {13}
No século XVI, a religião sem culto, sem ídolo e sem sacerdote dos Tupinambá
ofereceu um enigma aos olhos dos jesuítas, que em troca viram na cultura o núcleo
duro do esquivo ser indígena. Hoje, o problema parece ser o de explicar como tal
cultura, em primeiro lugar, foi capaz de acolher de modo tão benevolente a teologia e
a cosmologia dos invasores, como se estas, e estes, estivessem prefigurados em
algum desvão de seu mecanismo (Lévi-Strauss 1991: 292), como se o inaudito
fizesse parte da tradição, o nunca visto já estivesse na memória (S. Hugh-Jones 1988:
149). Efeito-demonstração suscitado pelo reconhecimento da superioridade
tecnológica dos estrangeiros? Coincidência fortuita de conteúdos entre a mitologia
nativa e alguns aspectos da sociedade invasora? Tais hipóteses têm um fundo de
verdade, mas, menos que explicando algo, exigem elas próprias explicação. Pois elas
supõem uma postura mais fundamental, uma “ouverture à l’Autre” característica do
pensamento ameríndio (Lévi-Strauss op. cit.: 16), e que no caso tupinambá era
particularmente extensa, e intensa. O outro não era ali apenas pensável – ele era
indispensável.
O problema, portanto, é determinar o sentido desse misto de volubilidade e
obstinação, docilidade e recalcitrância, entusiasmo e indiferença com que os
Tupinambá receberam a boa-nova. É saber o que eram essa “fraca memória” e essa
“deficiência da vontade” dos índios, esse crer sem fé; é compreender, enfim, o objeto
desse obscuro desejo de ser o outro mas, este o mistério, segundo os próprios termos.
Nossa ideia corrente de cultura projeta uma paisagem antropológica povoada de
estátuas de mármore, não de murta: museu clássico antes que jardim barroco.
Entendemos que toda sociedade tende a perseverar no seu próprio ser, e que a cultura
é a forma reflexiva deste ser; pensamos que é necessária uma pressão violenta,
maciça, para que ela se deforme e transforme. Mas, sobretudo, cremos que o ser de
uma sociedade é seu perseverar: a memória e a tradição são o mármore identitário
de que é feita a cultura. Estimamos, por fim, que, uma vez convertidas em outras que
si mesmas, as sociedades que perderam sua tradição não têm volta. Não há
retroceder, a forma anterior foi ferida de morte; o máximo que se pode esperar é a
emergência de um simulacro inautêntico de memória, onde a “etnicidade” e a má
consciência partilham o espaço da cultura extinta.
Talvez, porém, para sociedades cujo (in) fundamento é a relação aos outros, não
a coincidência consigo mesmas, nada disso faça o menor sentido:
As narrativas de contato e mudança cultural têm sido estruturadas por uma
dicotomia onipresente: absorção pelo outro ou resistência ao outro. […] Mas, e se
a identidade for concebida, não como uma fronteira a ser defendida, e sim como
um nexo de relações e transações no qual o sujeito está ativamente comprometido?
A narrativa ou narrativas da interação devem, nesse caso, tornar-se mais
complexas, menos lineares e teleológicas. O que muda quando o sujeito da
“história” não é mais ocidental? Como se apresentam as narrativas de contato,
resistência ou assimilação do ponto de vista de grupos para os quais é a troca, não
a identidade, o valor fundamental a ser afirmado? (Clifford 1988: 344).
O INFERNO E A GLÓRIA
Antes de serem as efêmeras e imprecisas estátuas de murta vieirianas, os Tupinambá
foram vistos como homens de cera, prontos para a impressão de uma forma. A
primeira carta brasileira de Nóbrega é otimista:
Todos estes que tratam comnosco, dizem que querem ser como nós, senão que nom
tem com que se cubrão como nós, e este soo inconveniente tem. Se ouvem tanger à
missa, já acodem, e quanto nos vem fazer, tudo fazem: assentão-se de giolhos,
batem nos peitos, alevantão as mãos ao ceo; e já hum dos principaes delles
aprende a ler e toma lição cada dia com grande cuidado, e em dous dias soube ho
ABC todo, e ho insinamos a benzer, tomando tudo com grandes desejos. Diz que
quer ser christão e nom comer carne humana, nem ter mais de uma molher e
outras cousas; soomente que há-de ir à guerra e os que cativar vendê-los e servir-se
delles, porque estes desta terra sempre tem guerra com outros e asi andão todos em
discordia. Comem-se huns a outros, digo hos contrarios. Hé gente que nenhum
conhecimento tem de Deus, nem idolos, fazem tudo quanto lhe dizem. (1549: I,
111)
Aqui estão alguns dos elementos cruciais do problema: entusiasmo mimético pelo
aparelho ritual dos missionários; disposição em deixar os maus costumes; vácuo
religioso clamando por ser preenchido. Os Tupinambá aparecem alienados, escravos
de um triste desejo de reconhecimento. {14} Discretamente, é verdade, o texto refere
uma pequena intransigência daquele principal tão solícito: larga o canibalismo e
outros péssimos costumes, mas vai continuar indo à guerra. Tal intransigência
reaparece em uma anedota de Thevet, onde se esboça uma faceta adicional do
“encontro” entre os Tupi e os missionários:
Un Roy aussi de ce païs, nommé Pinda-houssoub, que je fus voir, luy estant au lict,
attaint d’une fievre continue, me demanda que devenoient les ames apres qu’elles
estoient sorties hors du corps: et comme je luy eusse respondu, qu’elles alloient avec
Toupan, là hault au ciel, avec ceux qui avoient bien vescu, et qui ne s’estoient vengez
de l’injure de leurs ennemis, y adjoustant foy, entra en grand contemplation. […]
Deux jours apres il m’envoya querir, et estant devant luy me dist, Viença, je t’ay ouy
faire grand compte d’un Toupan, qui peut toutes choses: Je te prie parle à luy pour
moy, et fais qu’il me guerisse, et lors je seray debout, et en santé je te ferai de grands
presens, et veux estre acoustré comme toy, et porter mesme grand barbe, et honorer
Toupan comme tu l’honore. Auquel je feis response, que s’il vouloit guerir, et croire
en iceluy, qui a fait le ciel, la terre, et la mer, et qu’il ne creust plus […] à leurs
Caraibes et enchanteurs, et qu’il ne se vengeast, ny mangeast ses ennemis, comme il
avoit fait toute sa vie […] sans doute il gueriroit, et que son ame apres sa mort ne
seroit tourmentee des esprits malins, comme estoient celles de ses peres et meres. A
quoy ce maistre Roytelet me fit response, que volontiers estant guery par la
puissance de Toupan, qu’il accordoit presentement tous les articles que je luy avois
proposez, hor mis un, qui estoit de ne se vanger de ses ennemis: et encores quand
Toupan luy commanderoit de ne le faire, il ne scauroit accorder: Ou si par cas
fortuit il l’accordoit, il meritoit mourir de honte (Thevet 1575: 85-86). {15}
A pergunta de Pindabuçu sobre o destino póstumo das almas torna-se ainda mais
intrigante quando vemos que ela aparece, no texto da Cosmographie, logo após uma
exposição da escatologia pessoal tupinambá (op. cit.: 84-85), a qual girava
precisamente em torno da proeza e vingança guerreiras, destinando aos bravos o
paraíso, aos covardes uma existência miserável na terra. Note-se que o “régulo”
indígena não argumenta com Thevet em termos metafísicos, recusando a chantagem
cristã em nome de uma soteriologia diferente, mas em termos éticos, com a simples
afirmação de um imperativo categórico. Note-se, enfim, que, para ele, como para o
principal de Nóbrega, é a vingança o ponto inegociável, não o canibalismo a ela
associado.
Voltaremos ao problema do canibalismo e da guerra; fiquemos, por ora, com o
pedido de informações sobre o Além feito por Pindabuçu. Foi provavelmente tal tipo
de demanda que encantou os jesuítas, certos de terem encontrado os fregueses ideais
para sua mercadoria. Assim, rejubilava-se Nóbrega (1549: I, 136): “ningún dios
tinen cierto y qualquiera que le dizen ese creem…”. Pedindo mais missionários a
Portugal, dizia que não carecia serem ilustrados: “Acá pocas letras bastan, porque es
todo papel blanco y no ay más que escrivir a plazer…” (id. ibid.: I, 142). Pero Correia
(1551: I, 220) relata a vontade dos principais em aprender a fé de Cristo; e Leonardo
Nunes avança uma possível explicação de tal desejo:
Pues quanto a los gentiles de la tierra veo tantas muestras que por el gran aparejo
que veyo, me ponen muchas vezes en confusão para dexar de todo los christianos y
meterme por antre ellos con todos los Hermanos, y segundo los deseos que esta
gentilidad muestra que andemos entre ellos, por la mucha voluntad que muestran.
[…] Y por no andar ya enseñándo-los se perdieron muchas ánimas, porque son
grandíssimos los deseos que tienen de conoscer a Dios y de saber lo que han de
hazer para salvarse, porque temen mucho la muerte y el día del juizio y el infierno,
de que tienen ya alguna notitia, después que nuestro Señor truxo al charíssimo
Pedro Correa a ser nuestro Hermano, porque en las pláticas que les haze siempre
le mando tocar en esso, por que el temor los meta en gradíssima confusión. (1551:
I, 234-35)
A notícia do Juízo Final foi causa de grande maravilha (Rodrigues 1552: I, 410). E
as solicitações de longa vida e saúde aos padres eram constantes: “Ho seu intento hé
que lhe demos muyta vida e saude e mantimento sem trabalho como os seus
feiticeiros lhe prometem” (Pires 1552: I, 325); “porque pensan que le podíanmos dar
salud…” (Lourenço 1554: II, 44). No relatório da embaixada de Anchieta aos
Tamoios, o missionário recorda seu discurso de chegada; disse então que viera para
que Deus
lhes désse abundancia de mantimentos, saúde, e vitória de seus inimigos e outras
coisas semelhantes, sem subir mais alto, porque esta geração sem êste escalão não
querem subir ao céu… (1565: 199).
O principal da aldeia ouviu maravilhado sobre “o inferno e a glória”, e advertiu seus
companheiros para que não fizessem mal ao padre: “Se nós outros temos medo de
nossos feiticeiros, quanto mais o devemos ter dos padres, que devem ser santos
verdadeiros…” (id.: 204-05); por fim, pediu a intercessão de Anchieta junto a Deus:
“rogai-lhe que me dê longa vida, que eu me ponho por vós outros contra os meus…”
(id.: 210).
Embora os jesuítas fossem os destinatários ideais, essa demanda de longa vida
parece ter sido também dirigida a outros europeus eminentes. Ver Thevet (1575:
20) sobre os pedidos a Villegagnon: “fais que nous ne mourions point…”.{16} Não
demorou muito, é verdade, para que a atribuição de poderes taumatúrgicos aos
missionários se transformasse no inverso. A água batismal, poderoso vetor
patogênico (além de frequentemente administrada in extremis), foi logo
associada à morte, e recusada com horror pelos índios, que chegavam a fugir à
chegada dos padres, e a lhes entregar os cativos de guerra por medo de feitiçaria
(Nóbrega 1549: I, 143; Pires 1552: I, 395-97; Grã 1554: II, 133-34; Sá 1559:
III, 18-20). Considerava-se ainda que o batismo estragava a carne dos
prisioneiros, tornando-a mortal para quem a ingerisse (Lourenço 1553: I, 51718; Correia 1554: II, 67-68); o que não devia andar longe da verdade. A
mensagem escatológica dos padres passou a ser vista como mau agouro:
Como los ví juntos dixe a una lengua que aí venía que les dixesse alguna cosa
de Dios, y ellos todos escuchavam, mas como vino a hablar de la muerte no
quisieron oir, y dizían a la lengua que no hablase más… (Lourenço 1554: II,
44);
El hablar de la muerte es acerca dellos mui odioso, porque tienen para sí que
se la echan, y este pensamiento basta para morrerem de imaginación; y
muchas vezes me an ellos rogado que no se la echasse… (Grã 1554: II, 137).
Os grandes popularizadores dessa teoria da letalidade do batismo foram os pajés
e karaiba.
DIVISÃO NO PARAÍSO
Longa vida, abundância, vitória na guerra: os temas da “Terra sem Mal”. Os padres
da Companhia foram assimilados aos xamãs-profetas tupinambá, os karaiba. Isso
deve ser visto no contexto da classificação dos europeus como personagens
sobrenaturalmente poderosos: Mair (ou “Maíra”), nome de um importante
demiurgo, era o etnônimo para os franceses; e karaiba (termo que qualificava os
demiurgos e heróis culturais, dotados de alta ciência xamânica) veio a designar os
europeus em geral, não apenas os padres. Falando dos karaiba e suas práticas,
Anchieta esclarece:
Todas estas invenções por um vocábulo geral chamam Caraiba, que quer dizer
como cousa santa, ou sobrenatural; e por esta causa puseram este nome aos
Portugueses, logo quando vieram, tendo-os por cousa grande, como do outro
mundo, por virem de tão longe por cima das águas (1584: 332).
Thevet sugere mais diretamente que a assimilação dos europeus aos karaiba míticos
encontrava-se pré-formada na religião tupinambá; o esperto frade parece também
ter sido o primeiro a perceber a generalidade da associação ameríndia entre a
chegada dos brancos e a volta de heróis míticos ou divindades:
Je ne passeray aussi plus oultre sur la dispute, si le diable sçait et congnoist les
choses futures… Mais un cas vous diray-je bien, que long temps avant que nous y
arrivassions l’esprit leur avoit predit nostre venüe: et je le sçai, non seulement d’eux
mesmes, mais aussi de plusieurs Chrestiens Portugais, qui estoient detenuz
prisonniers de ce peuple barbare: Et autant en fut dit aux premiers Espagnols, qui
onc descouvrirent le Peru, et Mexique (Thevet op. cit.: 82; ver também. Léry 1578:
193-94). {17}
Há, de fato, fortes indícios de que a “leitura” dos brancos em termos de Mair e
karaiba foi mais do que uma metáfora inofensiva, e de que a astúcia tecnológica dos
invasores desempenhou um papel nesta assimilação. {18} Aqui se entrevê a ponta de
um iceberg mitológico, que pode dar sentido aos pedidos de longa vida aos padres e a
outros europeus eminentes. Os mitos tupi da separação entre os humanos e os heróis
culturais ou demiurgos são também mitos de origem da mortalidade; eles remetem,
sob vários aspectos, ao tema da “origem da vida breve” analisado por Lévi-Strauss
(1964). Foi essa mesma matriz mítica de separação entre humanos e heróis culturais
– fundante da condição humana, isto é, condição social e mortal (H. Clastres 1975)
– que serviu para pensar a diferença índios/europeus: os mitos de origem do homem
branco, dos Tupi como de muitos outros ameríndios, utilizam o motivo da má
escolha, característico do complexo da vida breve, para dar conta da superioridade
material dos brancos. Pode-se imaginar assim que, tendo feito a “boa escolha” na
origem dos tempos, os brancos dispusessem também da ciência divina da nãomortalidade, atributo dos mair e dos karaiba, de quem eram os “successeurs et vrays
enfans”.
O tema da má escolha como originando as diferenças culturais entre índios e
brancos não aparece diretamente em Thevet, mas em Abbeville (1614: 60-61),
sob a difundida forma da opção oferecida aos humanos pelo(s) demiurgo(s)
entre as armas indígenas e europeias. Esse tema se reencontra, por exemplo, nas
mitologias alto-xinguana (Agostinho 1974b: M2) e rionegrina. Nesta última,
tanto na versão barasana (S. Hugh-Jones 1988) como na maku (que diz respeito
à diferença Maku/Tukano – Ramos et al. 1980: 168), acha-se o motivo “Esaú e
Jacó” da inversão da ordem de senioridade entre um par de irmãos, que Abbeville
(op. cit.: 251-52) também registra para o mito tupinambá.
Roberto DaMatta (1970, 1973), em trabalhos pioneiros, demonstrou a
relação estrutural entre os mitos timbira de origem da cultura (do fogo culinário)
e de surgimento dos brancos. Mais recentemente, Lévi-Strauss (1991) observou
que a narrativa de Auké analisada por DaMatta é uma inversão do mito
tupinambá de origem dos brancos, recolhido por Thevet como episódio de um
vasto ciclo cosmogônico. De minha parte, sugeriria uma relação entre os mitos
de gênese dos brancos e a etiologia da vida breve ou da mortalidade, cuja
pertinência ao complexo de origem do fogo/cultura foi exposta em O cru e o
cozido (1964). Lévi-Strauss aborda os mitos da vida breve em termos do
“código dos cinco sentidos”. Seria possível ver no motivo da má escolha uma
modulação desse código: em lugar de erros relacionados à sensibilidade,
teríamos aqui uma falta ligada ao “bom senso” (ao entendimento). O divórcio
dos demiurgos tupinambá, fruto da ingratidão ou agressividade dos humanos,
pode igualmente ser vista como caso exemplar de má escolha, ausência de
discernimento por parte da humanidade (i. e. dos índios, pois a ruptura
engendrou a diferença brancos/índios a partir destes últimos).
O mito rionegrino analisado por Hugh-Jones é uma variante muito próxima
do mito tupinambá. Não há aqui espaço para analisar em detalhe a relação
entre eles; chamo a atenção apenas para um aspecto do primeiro. Ele estabelece
uma conexão direta entre a origem da vida breve (dos índios) e a origem dos
brancos; estes últimos são semelhantes às aranhas, cobras e mulheres, em sua
capacidade de longa vida, ligada à troca de pele. Ao contrário da troca de pele
natural das cobras, aranhas e mulheres (a menstruação é concebida como uma
troca de pele), os brancos trocam uma pele cultural, as roupas; saber técnico e
imortalidade, assim, mostram-se ligados. O tema da troca de pele como signo
ou instrumento de imortalidade é central na cosmologia de vários grupos tupi
contemporâneos; entre os Araweté (Viveiros de Castro 1986a) ele está associado
aos Maï (ver o tupinambá Mair).
Mencione-se ainda uma transformação negativa do tema, que associa
causalmente a imortalidade dos brancos e a vida breve dos índios: o famoso
complexo andino e subandino do pishtaco ou pelacara, hipóstase monstruosa
dos brancos que caça os índios para retirar-lhes a pele do rosto (ou a gordura do
corpo) e usá-la para o rejuvenescimento de seu próprio povo (Gow 1991a: 245).
Os Piro estudados por Gow sustentam a tese de que os pelacara abastecem os
cirurgiões plásticos das grandes cidades, o que é uma brilhante leitura moderna
do motivo da troca de pele.
Isso não significou, diga-se claro, que aos europeus tenha sido votado qualquer culto,
de dulia ou de latria. Assim que começaram a mostrar a face mesquinha, foram
mortos como todo inimigo; sua covardia no momento de enfrentar a borduna do
executor, aliás, era motivo de espanto e chacota. A religião tupi-guarani, como
argumenta Hélène Clastres, fundava-se na ideia de que a separação entre o humano e
o divino não era uma barreira ontológica infinita, mas algo a ser superado: homens
e deuses eram consubstanciais e comensuráveis; a humanidade era uma condição,
não uma natureza. {19} Semelhante teologia, alheia à transcendência, era igualmente
avessa à má consciência, e imune à humildade. Mas ela tampouco favorecia a
contrapartida dialética destas afecções: era inconcebível aos Tupi a arrogância dos
povos eleitos, ou a compulsão a reduzir o outro à própria imagem. Se europeus
desejaram os índios porque viram neles, ou animais úteis, ou homens europeus e
cristãos em potência, os Tupi desejaram os europeus em sua alteridade plena, que
lhes apareceu como uma possibilidade de autotransfiguração, um signo da reunião
do que havia sido separado na origem da cultura, capazes portanto de vir alargar a
condição humana, ou mesmo de ultrapassá-la. Foram então talvez os ameríndios,
não os europeus, que tiveram a “visão do paraíso”, no desencontro americano. Para
os primeiros, não se tratava de impor maniacamente sua identidade sobre o outro,
ou recusá-lo em nome da própria excelência étnica; mas sim de, atualizando uma
relação com ele (relação desde sempre existente, sob o modo virtual), transformar a
própria identidade. A inconstância da alma selvagem, em seu momento de abertura,
é a expressão de um modo de ser onde “é a troca, não a identidade, o valor
fundamental a ser afirmado”, para relembrarmos a profunda reflexão de Clifford.
Afinidade relacional, portanto, não identidade substancial, era o valor a ser
afirmado. Recordemos aqui que a “teologia” de alguns povos tupi formula-se
diretamente nos termos de uma sociologia da troca: a diferença entre deuses e
homens se diz na linguagem da aliança de casamento (Viveiros de Castro 1986a),
aquela mesma linguagem que os Tupinambá usavam para pensar e incorporar seus
inimigos. Os europeus vieram compartilhar um espaço que já estava povoado pelas
figuras tupi da alteridade: deuses, afins, inimigos, cujos predicados se
intercomunicavam. É a partir daí que se podem interpretar as diversas observações
sobre a “grande honra” almejada pelos índios ao entregarem suas filhas e irmãs em
casamento aos europeus (Anchieta 1554: II, 77; 1563: III, 549; 1565: 201-02;
Abbeville op. cit.: 63). Além de um cálculo de benefícios econômicos – ter genros ou
cunhados entre os senhores de tantos bens era certamente uma consideração de peso
–, há que se levar em conta os aspectos não-materiais, pois está-se falando de honra.
Era em termos desta mesma ideia de honra que os cronistas interpretavam a cessão
de mulheres aos cativos de guerra, antes de sua execução cerimonial (Correia 1551:
I, 227; Monteiro 1610: 411; Cardim 1584: 114). A honra parece-me aqui marcar o
lugar do valor primordial da cultura tupinambá: a captura de alteridades no exterior
do socius e sua subordinação à lógica social “interna”, pelo dispositivo prototípico do
endividamento matrimonial, eram o motor e motivo principais dessa sociedade,
respondendo por seu impulso centrífugo. Guerra mortal aos inimigos e hospitalidade
entusiástica aos europeus, vingança canibal e voracidade ideológica exprimiam a
mesma propensão e o mesmo desejo: absorver o outro e, neste processo, alterar-se.
{20} Deuses, inimigos, europeus eram figuras da afinidade potencial, modalizações
de uma alteridade que atraía e devia ser atraída; uma alteridade sem a qual o
mundo soçobraria na indiferença e na paralisia.
Perguntas como a de Pindabuçu para Thevet ecoam na literatura missionária;
{21} a pregação escatológica dos jesuítas fez grande sucesso, ao menos no começo.
Ela vinha encontrar uma questão-chave da religião indígena, a recusa da
mortalidade pessoal (Clastres 1975; Viveiros de Castro 1986a; Combès 1992). Por
sua vez, a mensagem apocalíptica cristã coincidia com o tema nativo da catástrofe
cósmica que irá aniquilar a terra. {22} Mas parece-me haver aqui mais que tais
coincidências – evidentemente filtradas de um conjunto, sob outros aspectos,
totalmente estranho às ideias nativas – na atenção às notícias do Além trazidas pelos
padres. Na medida mesma em que provinham “do outro mundo”, como formulou
Anchieta, os europeus eram mensageiros da exterioridade, familiares das almas e da
morte: como os karaiba ou “santidades” a que foram assimilados, sua província era
a não-presença; como os magos indígenas, os europeus estavam na posição de
enunciação adequada para falar do que estava além do domínio da experiência.
Não penso que a inegável convergência de conteúdos entre a religião tupi-guarani
e a palavra dos missionários possa servir de explicação final. Demandas tão
desconcertantes (para os antropólogos e demais culturalistas) quanto as dos
Tupinambá podem ser observadas ainda hoje: P. Gow (1991b, c) relata como os
Piro, cuja cosmologia não é particularmente semelhante à dos Tupi quinhentistas,
dirigiam aos missionários do Summer Institute of Linguistics o mesmo tipo de
pergunta, delegando a eles e a outros gringos a competência cognitiva, nada
isenta de ambiguidade, quanto ao que se passa no Exterior: a morte, os confins
do mundo habitado, os céus. Muitos observadores testemunharam fatos
análogos. Por isso, encaro com reservas a hipótese de H. Clastres (1975: 63) de
que o êxito dos jesuítas junto aos Guarani (o sucesso junto aos Tupi costeiros foi
bem menor, diga-se de passagem) {23} deveu-se às analogias entre a escatologia
cristã e o tema da Terra sem Mal – com a vantagem extra, para a primeira, de
que ela não corria o risco de desmentidos, pois, ao contrário do que prometia o
discurso profético nativo, o paraíso cristão não podia ser atingido em vida. A
explicação para a receptividade (inconstante) ao discurso europeu não deve,
parece-me, ser procurada apenas ou principalmente no plano dos conteúdos
ideológicos, mas naquele das formas socialmente determinadas de (auto-)
relação com a cultura ou tradição, de um lado, e naquele das estruturas
(culturais) de pressuposição ontológica, de outro. Uma cultura não é um sistema
de crenças, mas antes – já que deve ser algo – um conjunto de estruturações
potenciais da experiência, capaz de suportar conteúdos tradicionais variados e de
absorver novos: ela é um dispositivo culturante ou constituinte de processamento
de crenças. Mesmo no plano constituído da cultura culturada, penso que é mais
interessante indagarmos das condições que facultam a certas culturas atribuir às
crenças alheias um estatuto de suplementaridade ou de alternatividade em
relação às próprias crenças. {24}
Os missionários, em particular, foram vistos como semelhantes aos karaiba, e
souberam utilizar-se disso. Sua errância e seu discurso hortativo aparentava-os desde
o início àqueles. Passaram também a adotar a pregação matinal, à moda dos
xamãs e chefes (Correia 1551: I, 220); usaram liberalmente do canto como
instrumento de sedução, aproveitando o alto conceito de que gozavam a música e os
bons cantores (entre eles os karaiba) junto aos Tupinambá, provavelmente
beneficiando-se da mesma imunidade que protegia os profetas errantes e demais
“senhores da fala” (Cardim 1583: 186). Atenderam ainda, com as devidas reservas
mentais, à demanda nativa, prometendo vitória sobre os inimigos e abundância
material (Anchieta 1565: 199). Aos pedidos de cura e longa vida, respondiam com o
batismo e a pregação da vida eterna (Azpicuelta 1550: I, 180); e aceitaram,
levemente constrangidos, até mesmo imputações de presciência (Sá 1559: III, 40).
{25}
Os Tupinambá souberam também, é óbvio, aproveitar-se dos missionários. Em
primeiro lugar, se os karaiba se mostraram, em diversas ocasiões, opositores
ferrenhos dos padres, não poucos destes personagens apropriaram-se do discurso
cristão, desafiadora ou oportunisticamente:
Trabajé por me ver con un hechizero, el mayor desta tierra. […] Preguntéle in qua
potestate hec faciebat, si tenía comunicación con Dios que hizo el cielo y la tierra y
reinava en los cielos. […] Respondióme con poca verguença, que él era dios y avía
nacido dios, y presentóme alli uno a quien dezia aver dado salude, y que el Dios de
los cielos era su amigo, y le aparecía en nuves, y en truenos, y en relámpagos…
(Nóbrega 1549: I, 144).
Outro “feiticeiro errante”, de uma aldeia pernambucana,
viendo el crédito que tenían los Padres con el gentil, decía que era su pariente y que
los Padres dezían la verdad, y que él iá muriera y pasara desta vida y tornara a
vivir como decían los dichos Padres, y que portanto creiessen en él, y dávanle en
este medio tiempo las hijas a su pettición… (Rodrigues 1552: I, 320). {26}
Em segundo lugar, as inúmeras referências epistolares a principais desejosos de se
converter sugerem que os homens politicamente poderosos, cabeças de aldeia ou de
casa, agarraram pelos cabelos a oportunidade de entrar de posse em um saber
religioso alternativo ao dos karaiba; sem que seja preciso aceitar integralmente a
hipótese de H. Clastres sobre a “contradição entre o político e o religioso” na sociedade
tupi pré-colonial, pode-se ainda assim ver aqui uma disputa entre eminências
concorrentes. {27} O uso dos padres para a consecução de objetivos políticos próprios,
aliás, era extensivo: os Tamoio de Iperoig aceitaram a embaixada de Anchieta de
forma a ganhar os portugueses como aliados contra seus adversários tradicionais, os
Tupiniquim de São Vicente. Aparentemente pouco inclinados a qualquer oposição
segmentar, os Tupi vendiam a alma aos europeus para continuar mantendo sua
guerra corporal contra outros Tupi. Isso nos ajuda a entender por que os índios não
transigiam com o imperativo de vingança; para eles a religião, própria ou alheia,
estava subordinada a fins guerreiros: em lugar de terem guerras de religião, como as
que vicejavam na Europa do século, praticavam uma religião da guerra.
DO QUE CUSTA CRER
Os padres foram, então, vistos como uma espécie particularmente poderosa de
karaiba. Mas eis-nos diante do grande problema: acreditavam os Tupinambá em
seus profetas? As primeiras cartas jesuíticas lamentam, não sem antecipar um
proveito, a credulidade dos índios, que se deixariam guiar cegamente pelas
santidades: “qualquier de los suios que se quiere hazer su dios lo creen y le dan entero
crédito…” (Nóbrega 1549: I, 137-38); “ay entre ellos algunos a quien tienen por
sanctos y dan tanto crédito que lo que les mandan hacer esso hazen” (Correia 1551: I,
231). São bem conhecidas as cerimônias de transfusão de poderes espirituais
realizadas pelos xamãs, as curas, previsões e proezas sobrenaturais que se lhes
creditavam, suas funções de mediação entre o mundo dos vivos e dos mortos, para
não falarmos nas formidáveis migrações desencadeadas e conduzidas pelos karaiba
em busca da Terra sem Mal. Não há dúvida, em suma, que xamãs e profetas
gozavam de “imenso prestígio” (H. Clastres 1975: 42) junto aos Tupinambá,
desempenhando um papel religioso de destaque. Resta saber se tal prestígio, que se
comunicou em larga medida aos missionários cristãos, pode ser traduzido na
linguagem político-teológica da fé e da crença.
Embora os jesuítas constatem o prestígio deletério dos karaiba, é curioso que estes
não apareçam nas cartas como obstáculo principal à conversão do gentio, mas antes
como um percalço suplementar, parte dos maus costumes nativos, incapaz, por si só,
de turvar o desejo de cristianização:
Los gentiles, que parece que ponían la bienaventurança en matar sus contrarios y
comer carne humana, y tener muchas mugeres, se van mucho emendando, y todo
nuestro trabajo consiste en los apartar desto. Porque todo lo demás es fácil, pues
no tienen ídolos, aunque ay entre ellos algunos, que se hazen santos y les prometen
salud y victoria contra sus enemigos. Con quanto gentiles tengo hablado en esta
costa, en ninguna hallé repugnancia a lo que dezía: todos quieren y dessean ser
christianos, pero deixar sus costumbres les parece áspero… (Nóbrega 1551: I,
267-68).
Tirándoles las matanças y el comer carne humana, y quitándoles los hechizeros y
haziéndolos bivir con una sola muger… (Blázquez 1558: II, 430).
No período do desencanto jesuítico que logo seguiu o otimismo inicial, a típica
inconstância selvagem prepondera sobre a ação das santidades como entrave à
conversão: “porque como não tem quem adorem, salvo uma sanctidade que lhe vem
de anno em anno, […] facilmente dizem que querem ser christãos, e asi facilmente
tornão atraz…” (Pires 1552: I, 324). Pouco a pouco, os padres começaram a perceber
que o tipo de crença depositada nos karaiba não era exatamente aquele que
gostariam fosse votado a eles e à sua doutrina: “Algunos dellos que se hazen santos
entre ellos aora les dan crédito aora no, porque las más de las vezes los hallan en
mentira” (Correia 1553: I, 447). Não se ponha isto na conta de mero despeito ou
ciúme profissional; o ceticismo, reconheciam os padres, estendia-se a eles mesmos:
Y vale poco irles predicar y volver para casa, porque, aunque algún crédito den, no
es tanto que baste a los desraigar de sus biejas costumbres, y créennos como creen
a sus hechizeros, los quales a las vezes les mienten y a las vezes aciertam a dezir
verdad… (Nóbrega 1558: II, 452).
Profetas que caíam em desgraça junto a seus seguidores eram frequentemente mortos
(Thevet 1575: 81; Cardim 1584: 103). Em certos casos, como naquele do feiticeiro
pernambucano reportado por Vicente Rodrigues (ver supra), foram os padres os
responsáveis por tal descrédito (ver também Abbeville op. cit.: cap. XII). Uma
situação sem dúvida inquietante: não seria esse tipo de adesão condicionada à
veracidade das profecias e à eficácia das curas que poderia predispor à religião
revelada. O estilo de religiosidade tupinambá não era de molde a criar um ambiente
para a autêntica fé: “bien que no hai en esta tierra idolatría, sino ciertas sanctidades
que ellos dizen que ni creen ni dexan de creer…” (Grã 1556: II, 292). Nem creem nem
deixam de crer: os índios, pelo jeito, não conseguiam acreditar nem em Deus, nem
no terceiro excluído. Ou, como diria mais tarde Vieira, “ainda depois de crer, são
incrédulos”. Os missionários, que poucos anos antes haviam insistido sobre a
universal credulidade do gentio, deram-se conta de que as coisas eram bem mais
complicadas, e que a crença nas santidades e nas fábulas dos antepassados não
demarcava em negativo o lugar de uma conversão.
Essa versão tupinambá do “problème de l’incroyance au seizième siècle”, para
evocarmos o celebrado livro de Lucien Fèvre, apresenta dois aspectos interligados:
um, cognitivo, e o outro, político. Quando Vieira dizia que o jardineiro de suas
estátuas de murta deve cortar “o que vicejam os olhos, para que creiam o que não
veem”, talvez estivesse fazendo mais que uma alusão evangélica. Do mesmo modo,
quando os cronistas pintam os Tupinambá a modalizar certas declarações
cosmológicas por frases do tipo: “conforme nos dizem os nossos karaiba”, “o lugar
que nossos pajés dizem ter visto” (Thevet op. cit.: 85, 99; Léry 1578: 220-21), isso
pode significar mais – ou, antes, menos – que o reconhecimento da absoluta
autoridade dos xamãs e profetas no que respeitava ao Além.
A língua tupinambá, como é comum nas culturas ameríndias, distinguia entre a
narração de eventos pessoalmente experimentados pelo locutor e aqueles ouvidos de
terceiros. {28} Minha experiência com os Araweté, povo tupi que apresenta
numerosas afinidades com os Tupinambá – inclusive na centralidade da figura dos
xamãs como formuladores e divulgadores do saber cosmológico –, inclina-me a
tomar as declarações do tipo “assim dizem nossos pajés” como fórmulas citacionais
que marcam uma relação não-experiencial do locutor com o tópico do discurso. No
caso araweté, onde proliferam xamãs e versões do que se passa no céu com os
mortos e os deuses, isso está claramente associado com uma distinção entre o
conhecimento obtido pelos próprios sentidos e aquele obtido pela experiência (direta
ou indireta) de outrem, conhecimentos que não possuem o mesmo estatuto
epistêmico. Estou longe de pensar que os Araweté “não creiam no que não veem”;
mas eles tomam extremo cuidado em distinguir o que viram do que ouviram; e isso
é especialmente marcado no caso das informações cosmológicas que dão ou pedem.
Não duvido que eles acreditem em seus xamãs, mas de um modo que Vieira
possivelmente resumiria como “ainda depois de crer, são incrédulos”, pois certamente
não têm nada de parecido com uma verdade revelada, e a noção de dogma lhes é
completamente estranha. É claro, por fim, que as variadas fabulações xamânicas
convergem para um foco virtual com todas as características de um sistema; mas
não penso que se trate de um sistema de “crenças”. De resto, a proliferação de xamãs e
discursos xamanísticos impede o congelamento de qualquer ortodoxia. Lá não pode
haver crentes, pois não há hereges. Teria sido diferente no caso tupinambá?
O problema epistêmico era na verdade político, como perceberam os jesuítas:
Me parece que se ha de tener con ellos mucho trabajo, y una de las causas y más
principal es porque no tienen rey, antes en cada Aldea y casa ay su Principal. Assí
es que es necessario andar de povoación en povoación. […] Y sy oviera rey, él
convertido, fueron todos… (Correia 1551: I, 231);
Não estão sujeitos a nenhum rei ou chefe e só têm nalguma estima aqueles que
fizeram algum feito digno de homem forte. Por isso frequentemente, quando os
julgamos ganhos, recalcitram, porque não há quem os obrigue pela força a
obedecer… (Anchieta 1554: II, 114).
Mas é no Diálogo da conversão do gentio que se põe o dedo na ferida:
Se tiveram rei, poderão-se converter, ou se adoráram alguma cousa; mas, como
nam sabem que cousa hé crêr nem adorar, não podem entender ha pregação do
Evangelho, pois ella se funda em fazer crer e adorar a hum soo Deus, e a esse só
servir; e como este gentio nam adora nada, nem cree nada, todo o que lhe dizeis se
fiqua nada. (Nóbrega 1556-57: II, 320).
Aqui está: os selvagens não creem em nada porque não adoram nada. E não
adoram nada, no fim das contas, porque obedecem a ninguém. A ausência de poder
centralizado não dificultava apenas logisticamente a conversão (não vigorando o
cujus regio, os missionários precisavam trabalhar no varejo); ela a dificultava,
acima de tudo, logicamente. Os brasis não podiam adorar e servir a um Deus
soberano porque não tinham soberanos nem serviam a alguém. Sua inconstância
decorria, portanto, da ausência de sujeição: “não há quem os obrigue pela força a
obedecer…”. Crer é obedecer, lembra-nos Paul Veyne (1983: 44); é curvar-se à verdade
revelada, adorar o foco de onde emana, venerar seus representantes. No modo de
crer dos tupinambá não havia lugar para a entrega total à palavra alheia: “como no
tiene[n] idolos por quien mueran”, não podiam ter religião e fé, que exigem a
disposição em morrer por alguma coisa. Modo de crer, modo de ser. E conclui
filosoficamente Luís da Grã (1554: II, 147): “y lo que parecía que les ayudaría a ser
christianos, que es no tener ídolos, esso parece que les desayuda, porque no tienen
sentido alguno”. Inconstância, indiferença, nada: “Lo que yo tengo por maior
obstáculo para la gente de todas estas naciones es su propria condición, que ninguna
cosa sienten mucho, ni pérdida spiritual ni temporal suia, de ninguna cosa tienen
sentimiento mui sensible, ni que les dure…” (Grã 1556: II, 294).
A validação da cosmologia nativa pelo recurso à palavra dos pajés e profetas
não significava, portanto, uma “crença” nesta palavra, no sentido políticoteológico do termo, porque faltava exatamente o componente de sujeição, de
abdicação do juízo e da vontade. O reformado Léry (1578: 192) notava com
certo prazer perverso:
Au reste, nos Toüoupinambaoults […] nonobstant toutes les cérémonies qu’ils
font, n’adorent pas en fléchissant les genoux ou selon d’autres manifestations
extérieures. Ils n’adorent ni leurs Caraïbes, ni leurs Maracas, ni quelque
créature que ce soit…{29}
A referência de Léry aos maracás é interessante, pois a insistência dos jesuítas
sobre o fato de que os selvagens não tinham ídolos não significa que praticassem
uma religião sem qualquer forma de objetivação material. Os chocalhos de
xamanismo, sobre possuírem uma evidente importância mágica e simbólica,
recebiam uma decoração antropomorfa e falavam com seus donos;{30} e há
referências esparsas a desenhos e objetos supostos representarem espíritos. Do
mesmo modo, os jesuítas e demais cronistas se estendem sobre as marcas de
respeito dedicadas aos karaiba errantes: limpeza dos caminhos que os
conduziam até às aldeias, cânticos de boas-vindas, doação de alimentos,
extraterritorialidade. Mencionam também o temor que estes xamãs-profetas
despertavam, em sua capacidade de lançar a morte sobre os que os
desagradavam; e naturalmente escandalizavam-se ao ouvi-los se definirem
como “deuses e filhos de deuses”, nascidos de virgens etc. Entretanto, nada disto
bastou para caracterizar, aos olhos europeus, uma religião e um culto, na
ausência dos indispensáveis “temor e sujeição” (Anchieta); os Tupinambá não
adoravam estes objetos e personagens, desconhecendo a capacidade de sentir
uma reverência e um temor propriamente religiosos, fundamento de uma crença
digna deste nome. {31}
Assim se vê que as três ausências constitutivas do gentio brasileiro estavam
causalmente encadeadas: não tinham fé porque não tinham lei, não tinham lei
porque não tinham rei. Sua língua não tinha nem o som (efes, eles e erres), nem o
sentido. A verdadeira crença supõe a submissão regular à regra, e esta supõe o
exercício da coerção por um soberano. Porque não tinham rei, acreditavam nos
padres; pela mesma (des) razão, porque não o tinham, desacreditavam. A recusa do
Estado, para recordarmos um tema célebre, não se manifestava portanto apenas, ou
principalmente, em um discurso profético negador da ordem social (H. Clastres
1975); ela já estava embutida na relação com todo discurso, enquanto ordem de
razões com pretensão totalizante, e isto incluía a palavra dos karaiba. {32} Os
Tupinambá faziam tudo quanto lhes diziam profetas e padres – exceto o que não
queriam.
Ressalvo que não vejo os Tupinambá como um povo de empiristas céticos; nem
penso que sugerir ser inadequado assimilar uma cultura a um sistema de crenças
deva desaguar no utilitarismo da razão prática (no sentido de Sahlins 1976). Meu
ponto é apenas que o “génie du paganisme” (Augé 1982) não fala a língua teocrática
da crença. Pierre Clastres fez uma boa pergunta: é possível conceber um poder
político que não esteja fundado no exercício da coerção? Bem, ela vale esta outra: é
possível conceber uma forma religiosa que não esteja assentada na experiência
normativa da crença? Talvez se trate exatamente do mesmo problema; mas a
resposta de Clastres foi a invenção da Sociedade Primitiva, sujeito transcendente do
poder político não coercitivo, ao passo que a resposta à segunda pergunta implicaria
uma problematização radical desse sujeito.
O nó da questão está na ideia de que “o religioso” é a via real que conduz à
essência última de uma cultura. Por trás disso ergue-se o ídolo durkheimiano da
totalidade: impulso de contemplação e constituição do todo, a Crença da tribo é a
crença na Tribo, é o Ser e o perseverar do Ser da tribo. Duvidar que tal ídolo seja
adorado pelos selvagens é suspeitar da ideia de sociedade enquanto totalidade
reflexiva e identitária que se institui pelo gesto fundacional de exclusão de um exterior.
E não é preciso ser pós-moderno (Deus nos livre) para duvidar disso. A religião
tupinambá, radicada no complexo do exocanibalismo guerreiro, projetava uma
forma onde o socius constituía-se na relação ao outro, onde a incorporação do outro
dependia de um sair de si – o exterior estava em processo incessante de
interiorização, e o interior não era mais que movimento para fora. Essa topologia
não conhecia totalidade, não supunha nenhuma mônada ou bolha identitária a
investir obsessivamente em suas fronteiras e usar o exterior como espelho diacrítico
de uma coincidência consigo mesma. A sociedade era ali, literalmente, um “limite
inferior da predação” (Lévi-Strauss 1984: 144), o resíduo indigerível; o que a movia
era a relação ao fora. O outro não era um espelho, mas um destino.
Não estou dizendo – para insistirmos nesta antropologia negativa – que não
tenha existido algo como uma religião, ou uma ordem cultural, ou uma sociedade
tupinambá. Estou apenas sugerindo que essa religião não se pensava em termos da
categoria da crença, essa ordem cultural não se fundava na exclusão unicista das
ordens alheias, e essa sociedade não existia fora de uma relação imanente com a
alteridade. O que estou dizendo é que a filosofia tupinambá afirmava uma
incompletude ontológica essencial: incompletude da socialidade e, em geral, da
humanidade. Tratava-se, em suma, de uma ordem onde o interior e a identidade
estavam hierarquicamente subordinados à exterioridade e à diferença, onde o devir e
a relação prevaleciam sobre o ser e a substância. Para esse tipo de cosmologia, os
outros são uma solução, antes de serem – como foram os invasores europeus – um
problema. A murta tem razões que o mármore desconhece.
A inconstância selvagem apareceu ainda, aos olhos dos jesuítas, sob a luz
agravante do interesse mesquinho. Crer ou não crer, eis, para o gentio, uma
questão respondida pelas vantagens materiais que dali adviessem:
Esta gente, Padre [Loyola], no se convierte con le dizir de las cosas de la fee, ni
con razones, ni palabras de predicación. […] El modo de los convertirlos, de
los blancos, es alleguar commodidades tempora-les sin noticia alguna de cosas
de la fee… (Grã 1554: II, 137).
Y si algunas apparentias de bien y alguna esperança nos tienen dado en estos
seis años que a que con ellos tratamos, alo causado más el interesse y la
esperança dél que ellos tienen, que no el fervor de la fe que en sus coraçones
tengan (Nóbrega 1555: II, 171).
É verdade […] que nossos catecúmenos nos deram ao princípio grande mostra
de fé e probidade. Mas, como se movem mais pela esperança de lucro e certa
vanglória do que pela fé, não têm nenhuma firmeza e fàcilmente à menor
contrariedade voltam ao vómito, sobretudo não tendo nenhum temor dos
cristãos (Anchieta 1555: II, 208).
Huma cousa tem estes peior de todas, que quando vem à minha tenda, com
hum anzol que lhes dê, os converterei a todos, e com outros os tornarei a
desconverter, por serem incostantes, e não lhes entrar a verdadeira fee nos
coraçõis… (Nóbrega 1556-57: II, 320).
Se, a princípio, os jesuítas rejeitaram isso que viam como pura venalidade
espiritual, não demorou a que recorressem pragmaticamente à chantagem
econômica como forma de persuasão e controle:
Grande es la embidia que los gentiles tienen a estos nuevamente convertidos,
porque ven quán favorecidos son del gobernador y de otras principales
personas, y si quisiéssemos abrir la puerta al baptismo quasi todos se
vendrían, lo qual no hazemos si no conocemos ser aptos para esso, y que
viene[n] con devoción, y con contrición de los malos costumbres en que se
ha[n] criado, y tambíen porque no tornen a retroceder… (Pires 1551: I, 254).
Yo tengo dicho a algunos indios principales destas partes algunas cosas acerca
de mandar el Rei que no les den cuchillos grandes ni pequeños […] y que lo
haze, porque no es razón que las cosas buenas que Dios crió que las den a los
que a Dios no conoscen, hasta entretanto que primero se hagan todos
christianos […] en estas partes de S. Vicente, como por toda la costa, lo más
seguro y firme a de ser ponerlos en necessidad, que vean ellos claramente que
no tienen ningún remedio para aver la heramienta para sus roças, sino es
tornarse christianos… (Correia 1553: I, 444-45).
Em suma: o gentio não só era inconstante, como se guiava, em suas
deambulações ideológicas, pela cobiça de bens temporais. Eis um outro tema que
fez fortuna, na construção da imagem negativa do Índio – sujeito leviano, capaz
de fazer qualquer coisa por um punhado de anzóis – e que continua a frequentar
os pesadelos de muitos observadores bem-intencionados: antropólogos,
indigenistas, missionários progressistas que gostariam de ver “seus” índios
recusarem, em nome dos valores mais altos da cultura nativa, as quinquilharias
com que lhes acenam. À guisa de racionalização, costuma-se recorrer ao
argumento da superioridade técnica dos implementos europeus, cuja irresistível
atração corrói o mármore do orgulho e da autenticidade culturais. Sem pôr em
dúvida as vantagens materiais muito palpáveis que “cuchillos grandes y
pequeños” oferecem a povos desprovidos de metalurgia,{33} penso que essa
explicação exprime um utilitarismo banal, terminando por validar juízos como
o dos jesuítas. A alternativa de se considerar a “venalidade” e “leviandade”
indígenas como uma camuflagem estratégica, que permite a obtenção de coisas
preciosas (como instrumentos de ferro, ou a tranquilidade) em troca de
concessões irrelevantes (como a alma, ou o reconhecimento dos poderes
constituídos), não é inteiramente falsa, mas me parece insuficiente. Certamente
muitos povos indígenas trataram e tratam os brancos como idiots savants de
quem se pode subtrair objetos maravilhosos em troca de gestos de fachada; e
muitos outros pagam o preço da adesão verbal para que os deixem em paz. {34}
Mas, sobre implicar uma concepção estática e reificada da cultura, como algo a
ser preservado sob camadas de verniz refletor, esse argumento esquece que em
muitos casos as concessões foram bem reais, e que os efeitos da introdução de
bens e valores europeus sobre as estruturas sociais nativas foram profundos. Ele
esquece também que a relação com a parafernália dos invasores, ainda que
inevitavelmente guiada por fins culturais autóctones, não se deixa ler sempre em
termos de um instrumentalismo autoesclarecido. Ele ignora, sobretudo, que a
cultura estrangeira foi muitas vezes visada em seu todo como um valor a ser
apropriado e domesticado, como um signo a ser assumido e praticado enquanto
tal.
Não é mera pirueta dialética dizer que os Tupinambá nunca foram mais si
mesmos que ao exprimirem seu desejo de “ser christianos como nosotros”. As
eventuais vantagens práticas que buscavam ao declarar seu desejo de conversão
estavam imersas em um “calcul sauvage” (Sahlins 1985) onde ser como os
brancos – e o ser dos brancos – era um valor disputado no mercado simbólico
indígena. Os implementos europeus, além de sua óbvia utilidade, eram também
signos dos poderes da exterioridade, que cumpria capturar, incorporar e fazer
circular, exatamente como a escrita, as roupas, os salamaleques rituais dos
missionários, a cosmologia bizarra que propalavam. Exatamente, aliás, como
os valores contidos na pessoa dos inimigos devorados: os Tupinambá sempre
foram uma “sociedade de consumo”. Isto que chamaríamos de impulso
aloplástico ou alomórfico dos Tupi não pode estar mais distante do patetismo da
alienação ou do espelhismo do Mestre e do Escravo; ele é a contrapartida
necessária de um canibalismo generalizado, que se distingue radicalmente da
vertigem aniquiladora própria dos imperialismos, ocidentais ou outros. As
leituras da antropofagia tupi nos termos simplistas de um impulso de absorção e
controle (simbólico, político ou como se o queira chamar) do outro negligenciam
esta dupla face e este duplo movimento: incorporar o outro é assumir sua
alteridade. À moda inconstante da casa, bem entendido. O “virar branco e
cristão” dos Tupinambá não correspondia em nada ao que queriam os
missionários, como veio a demonstrar o recurso à terapia de choque do compelle
intrare. {35}
Como os Tupinambá perderam a guerra
A pregação escatológica dos padres coincidia com as ideias nativas sob alguns
aspectos: imortalidade da alma, destino póstumo diferenciado conforme a qualidade
da vida levada na terra, conflagração apocalíptica. Mas havia uma discordância de
princípio quanto às injunções envolvidas nas concepções cristã e indígena do reto
caminho. Como ouvimos na fala de Pindabuçu, guerrear e vingar-se era
consubstancial ao ser de um homem. O imperativo da vingança sustentava a
máquina social dos povos da costa: “como os Tupinambá são muito belicosos, todos
os seus fundamentos são como farão guerra a seus contrários” (Soares de Souza op.
cit.: 320). {36} Eis o avesso da inconstância indígena. Pois se os índios mostravam-se
admiravelmente constantes em algo, e se de alguma coisa tinham um “sentimento
muy sensible, y que les dure”, era em tudo que dizia respeito à vingança:
Tienen guerra unos con otros, scilicet una generación contra otra generación, a diez
e quinze e veynte leguas, de manera que todos entre sí están divisos. […] Y en estas
dos cosas, siclicet, en tener muchas mugeres y matar sus contrarios, consiste toda
su honrra, y esta es su felicidad y deseo. […] Y no tienen guerra por cobdicia que
tengan […] sino solamente por odio y vengança… (Nóbrega 1549: I, 136-37).
Llamando todos sus parientes que se viniesen a vengar – la qual es la maior
honrra que tienen, porque quando alguno está en la fin de sus últimos días pide
carne de sus contrarios para comer, porque así van consolados, y también se
honrran mucho tener en la cabecera de la red, donde duermen, un novillo de
carne… (Rodrigues 1552: I, 307-08).
Y lo que más los tiene ciegos, es el inçassiable appetitu que tienen de venguança, en
lo qual consiste su honra… (Grã 1554: II, 132-33).
Sus guerras, en las quales como tengan puesto quasi todo su pensamiento y
cuidado en ellas… (Anchieta 1560: III, 258-59).
[Antes de partirem à guerra, um principal os arenga, falando-lhes da] obrigação
que têm de ir tomar vingança de seus contrários, pondo-lhes diante a obrigação
que têm para o fazerem e para pelejarem valorosamente; prometendo-lhes vitória
contra seus inimigos, sem nenhum perigo de sua parte, de que ficará dêles memória
para os que após êles vierem cantar em seus louvores… (Soares de Souza 1587:
320).
Se os brasis não tinham ídolos por quem morressem, morriam entretanto, e
matavam, por outras coisas: por seus “costumes inveterados”. Eis por que estes eram
o verdadeiro obstáculo, mais que os profetas. A vingança guerreira estava na origem
de todos os maus costumes: canibalismo, poligamia, bebedeiras, acumulação de
nomes, honras, tudo parece girar em torno desse tema. Note-se que o discurso dos
karaiba, ele também, se pregava a abolição de regras essenciais, suspendendo a
ordem social – abandono das regras matrimoniais, da vida agrícola e aldeã –,
preservava e estimulava a empresa guerreira. A Terra sem Mal não excluía, antes
potencializava a guerra. Recordemos a tríade clássica de promessas dos profetas:
longa vida, abundância sem trabalho, vitória contra os inimigos. O xamanismo
possuía conexões decisivas com a guerra: os “Pagez et Caraibes”, diz Thevet, “rendent
responsables, comme oracles, à ce peuple, sur les evenemens de leurs affaires, et
nommément des guerres, qui est leur estude principal”{37} (1575: 77); “les plus
grandes choses que lesdits Pagez demandent à l’esprit, c’est sur le faict de la guerre…
(id.: 82). {38}
O fio rubro da vingança percorria a vida e a morte dos homens e mulheres
tupinambá. Ao nascer, um menino recebia um pequeno arco e flecha e um colar de
garras de jaguar e de harpia,
À fin qu’il soit vertueux et de grand courage, comme le faisant protester de faire à
jamais guerre à leurs ennemis: d’autant que ce peuple ne se reconcilie jamais à ceux
contre lesquels il a eu autrefois guerre. […] Si c’est une fille, on luy pend au col des
dens d’une beste qu’ils nomment Capiigouare […] à fin disent-ils, que leurs dents
soient meilleures et plus fortes à manger leurs viandes…” (id. ibid.: 50). {39}
Não sei se é demasiado supor que “leurs viandes” se referia à carne dos cativos; mas
os ritos da menarca envolviam a mesma imposição de um colar de dentes de
capivara, “à fin […] que leurs dents soient plus fortes à mascher leur breuvage qu’ils
appellent Kaouin” (id. ibid.: 207) {40}. Isso parece marcar os dois sexos por suas
atividades principais no complexo guerreiro: os homens como responsáveis pela
captura e morte dos inimigos, as mulheres, pela produção de um componente
essencial do festim canibal, o cauim. {41}
Para os homens, o rito de passagem equivalente aos ritos da menarca era a
execução cerimonial de um prisioneiro. Sem ter morto um cativo e passado por sua
primeira mudança de nome, um rapaz não estava apto a se casar e ter filhos
(Anchieta 1585: 434; Cardim 1584: 103; Monteiro 1610: 409); nenhuma mãe daria
sua filha a um homem que não houvesse capturado um ou dois inimigos e assim
trocado seu nome de infância (Thevet op. cit.: 134). A reprodução do grupo,
portanto, estava idealmente vinculada ao dispositivo de preação e execução ritual de
inimigos, motor da guerra. Casados, os homens deviam presentear seus sogros e
cunhados com cativos, para que estes pudessem vingar-se e ganhar novos nomes;
essa prestação matrimonial parece ter sido um dos requisitos para a saída de um
homem da “servidão” uxorilocal. {42}
À medida que iam tomando e executando cativos de guerra, os homens
acumulavam nomes e renome:
Sua bem-aventurança hé matar e ter nomes, e esta hé sua gloria por que mais
fazem… (Nóbrega 1556-57: II, 344).
Considera um homem sua maior honra capturar e matar muitos inimigos, o que
entre êles é habitual. Traz tantos nomes quantos inimigos matou, e os mais nobres
entre êles são aqueles que tém muitos nomes (Staden 1557: 172).
De todas as honras e gostos da vida, nenhum é tamanho para este gentio como
matar e tomar nomes nas cabeças de seus contrarios, nem entre elles ha festas que
cheguem às que fazem na morte dos que matão com grandes ceremonias…
(Cardim 1584: 113).
Um dos mores apetites, que tem esta nação, é a matança dos imigos, pelo que
fazem extremos […] à conta de serem havidos por esforçados, que entre eles é a
suprema honra e felicidade, tomando novos nomes, conforme os contrários que
matam, dos quais alguns chegam a ter cento e mais apelidos… (Monteiro 1610:
409).
Tais nomes, memória dos feitos de bravura, signos e valores essenciais da honra
tupinambá, eram parte de uma panóplia que incluía escarificações, batoques faciais,
direito a discursar em público e acumulação de esposas. A poligamia suntuária
parece ter sido um atributo dos chefes ou grandes guerreiros. Acumulação de cativos,
de signos, de mulheres, de genros: escapando da dependência uxorilocal pelo renome
guerreiro, um homem seria capaz de impor essa sujeição a seus jovens genros,
maridos das filhas geradas nas suas muitas esposas: “e assim quem tem mais filhas
é honrado pelos genros que com elas adquirem, que são sempre sujeitos a seus
sogros e cunhados…” (1584: 329). {43}
Por fim, se a proeza guerreira era condição da honra neste mundo, era também
necessária para uma existência confortável no Além: só os bravos tinham acesso ao
paraíso, as almas dos covardes estavam votadas a uma miserável errância na terra,
junto aos demônios Anhang (Thevet 1575: 84-85; Léry 1578: 185; Abbeville 1614:
252; Métraux 1928: 111-12, e Fernandes 1949: 285). {44} E mais: se vingar-se
matando inimigos era a marca de uma vida de valor, o kalos thanatos era o que se
obtinha em combate, e supremamente sendo a vítima de uma execução cerimonial
em terreiro. O cativeiro e o “sacrifício” deveriam ser suportados com bravura e
altivez:
Aqueste mal de comer unos a otros anda muy dañado entre ellos, y es tanto que
los días passados hablaron a uno o dos que tenían a engordar para esto, si quería
que le rescatassen; él dezía que no lo vendiessen, porque le cumplía a su honrra
passar por tal muerte como valiente capitán (Azpicuelta 1551: I, 279).
Aos contrarios lhe tem persuadido que em fazer todas aquelas cerimonias são
valentes e esforçados, e logo lhes chamão fracos e apoucados se com o medo da
morte refusão de fazer isto; e daqui ssocede que por fugir esta infamia, a seu
parecer grande, fazem cousas ao tempo de morrer que será incredivel a quem não
no tem visto, porque comem e bebem e se deleitão, como homens sem sentido, em os
contentamentos da carne tão devagar como se não ouvessem de morrer (Blázquez
1557: II, 386).
Há aqui dois motivos entrelaçados, um de ordem escatológica e pessoal, outro de
ordem sociológica e coletiva. A devoração pelos inimigos estava associada a um
tema característico das cosmologias tupi-guarani, o horror ao enterramento e à
putrefação do cadáver:
Até os cativos julgam que lhes sucede nissso coisa nobre e digna, deparando-se-lhes
morte tão gloriosa, como eles julgam, pois dizem que é próprio de ânimo tímido e
impróprio para a guerra morrer de maneira que tenham de suportar na sepultura
o peso da terra, que julgam ser muito grande (Anchieta 1554: II, 113).
E alguns andão tão contentes com haverem de ser comidos, que por nenhuma via
consentirão ser resgatados para servir, porque dizem que é triste cousa morrer, e ser
fedorento e comido de bichos (Cardim 1584: 114).
Jácome Monteiro, evocando os “agouros do gentio”, relata que uma das coisas que
fazia uma expedição guerreira desistir da empresa era o apodrecimento das
provisões que levava:
Se a carne depois de cozida toma bichos, o que é mui fácil por causa da muita
quentura da terra, e dizem que assi como a carne toma bichos, assim seus
contrários não os comerão, mas deixá-los-ão encher de bichos depois que os
matarem, o que é a mor desonra que há entre estes bárbaros (Monteiro 1610:
413).
Vê-se a cumplicidade entre cativos e captores, que fazia com que o inimigo ideal de
um tupinambá fosse outro tupinambá. De resto, vários aspectos do cativeiro e
execução dos inimigos atestam um esforço de transformação do prisioneiro em um
ser à imagem dos Tupinambá, se já não o era: os europeus eram depilados e
pintados à moda da casa (caso de Hans Staden); os cativos deviam dançar, comer e
beber com seus captores, eventualmente acompanhá-los à guerra; e a entrega de uma
mulher ao cativo, sua transformação em um cunhado, parece-me dever ser
interpretada neste sentido, como uma empresa de socialização do inimigo. Os
Tupinambá queriam estar certos de que aquele outro que iriam matar e comer fosse
integralmente determinado como um homem, que entendesse e desejasse o que estava
acontecendo consigo.
Não há dúvida de que a morte e devoração pelos inimigos se insere na
problemática pan-tupi de imortalização pela sublimação da porção corruptível da
pessoa (H. Clastres 1975; Viveiros de Castro 1986a), e que o exocanibalismo
tupinambá era diretamente um sistema funerário; mas é igualmente certo que os
Tupinambá não devoravam seus inimigos por piedade, e sim por vingança e honra.
Aqui entra o motivo sociológico que me parece fundamental, remetendo a algo talvez
mais profundo que este conjunto de temas personológicos sobre a putrefação e a
incorruptibilidade – e mais resistente que o canibalismo aos esforços catequéticos e
reformadores dos missionários. O que a morte dos inimigos e a morte em mãos dos
inimigos permitia era nem mais nem menos que a perpetuação da vingança:
E depois que assi chegam a comer a carne de seus contrarios, ficam os odios
confirmados perpetuamente, porque sentem muito esta injuria, e por isso andam
sempre a vingar-se huns dos outros… (Gandavo 1576: 139).
É preciso primeiramente que se saiba que não fazem a guerra para conservar ou
estender os limites de seu país, nem para enriquecer-se com os despojos de seus
inimigos, mas unicamente pela honra e pela vingança. Sempre que julgam ter sido
ofendidos pelas nações vizinhas ou não, sempre que se recordam de seus
antepassados ou amigos aprisionados e comidos pelos seus inimigos, excitam-se
mutuamente à guerra…
(Abbeville op. cit.: 229).
A morte em mãos alheias era morte excelente porque era morte vindicável, isto é,
justificável e vingável; morte com sentido, produtora de valores e de pessoas. André
Thevet exprime bem a conversão da fatalidade natural da morte em necessidade
social, e desta em virtude pessoal:
Et ne pensez pas que le prisonnier s’estonne de ces nouvelles [que seria executado e
devorado em breve], ains a opinion que sa mort est honorable, et qu’il luy vault
beacoup mieux mourir ainsi, que en sa maison de quelque mort contagieuse: car
(disent-ils) on ne se peult venger de la mort, qui offense et tue les hommes, mais on
venge bien ceux qui ont été occis et massacrez en fait de guerre (Thevet op. cit.:
196). {45}
A vingança não era assim um simples fruto do temperamento agressivo dos índios,
de sua incapacidade quase patológica de esquecer e perdoar as ofensas passadas;{46}
ao contrário, ela era justamente a instituição que produzia a memória. Memória, por
sua vez, que não era outra coisa que essa relação ao inimigo, por onde a morte
individual punha-se a serviço da longa vida do corpo social. Daí a separação entre a
parte do indivíduo e a parte do grupo, a estranha dialética da honra e da ofensa:
morrer em mãos alheias era uma honra para o guerreiro, mas um insulto à honra
de seu grupo, que impunha resposta equivalente. {47} É que a honra, afinal,
repousava em se poder ser motivo de vingança, penhor do perseverar da sociedade
em seu próprio devir. O ódio mortal a ligar os inimigos era o sinal de sua mútua
indispensabilidade; este simulacro de exocanibalismo consumia os indivíduos para
que seus grupos mantivessem o que tinham de essencial: sua relação ao outro, a
vingança como conatus vital. A imortalidade era obtida pela vingança, e a busca da
imortalidade a produzia. Entre a morte dos inimigos e a própria imortalidade,
estava a trajetória de cada um, e o destino de todos.
FALAR DO TEMPO
O lugar onde se pode melhor apreciar a função mnemônica da vingança é o diálogo
cerimonial entre o cativo e seu futuro matador. O sacrifício do prisioneiro operava
em duas dimensões distintas, uma, “lógica”, e a outra, “fágica”. A antropologia
canibal dos Tupinambá era preparada por uma antropofagia dialógica, uma solene
logoma-quia que opunha os protagonistas do drama ritual da execução. Esse
diálogo era o ponto culminante do rito. Foi ele, diga-se de passagem, que tornou os
Tupinambá famosos, graças à leitura cavalheiresca feita no “Des cannibales”, onde
Montaigne o interpreta como um combate quase hegeliano pelo reconhecimento,
uma luta de morte travada no elemento do discurso (Lestringant 1982).
De fato, o diálogo se presta à maravilha para uma leitura em termos de honra
guerreira. Mas, aparentemente, a pouco mais que isso. Os exemplos não trazem
nenhuma evocação religiosa, nenhuma menção a divindades, ou ao destino póstumo
da alma da vítima. Em troca, todos eles falam de algo que passou despercebido aos
comentadores. Eles falam do tempo.
O diálogo consistia numa arenga do matador, que perguntava ao cativo se ele era
um daqueles que mataram membros da sua tribo, e se estava preparado para
morrer; exortava-o a tombar como um bravo, “deixando uma memória” (Monteiro
1610: 411). O cativo replicava orgulhosamente, afirmando sua condição de matador
e canibal, evocando os inimigos que havia morto nas mesmas circunstâncias em que
agora se achava. Versão feroz da vítima aquiescente, reivindicava a vingança que o
abateria, e alertava: matem-me, pois os meus me vingarão; vocês tombarão da
mesma forma.
Há diversas referências a estes diálogos, a maioria, infelizmente, em estilo indireto
livre ou em glosas resumidas:
Y un día antes que le maten, lávanlo todo, y el día siguiente lo sacan, y pónenlo en
un terrero atado por la cintura con una cuerda, y vienne uno de ellos muy bien
ataviado, e le haze una plática de sus antepassados. Y acabada, el que está para
morir, le responde diziendo que de los valien-tes es no temer la muerte, y que él
también matara muchos de los suyos, y que acá quedavan sus parientes, que lo
vengarían, y otras cosas semejantes (Nóbrega 1549: I, 152).
Feitas estas cerimonias, afasta-se algum tanto delle, e começa a fazer huma falla a
modo pregaçam, dizendo-lhe que se mostre mui esforçado em defender sua pessoa,
pera que o nam deshonre, nem digam que matou hum homem fraco, afeminado, e
de pouco animo, e que se lembre que dos valentes he morrerem daquella maneira,
em mãos de seus immigos, e nam em suas redes como mulheres fracas, que nam
foram nascidas pera com suas mortes ganharem semelhantes honras. E se o
padecente he homem animoso, e nam está desamaiado naquelle passo, como
acontece a alguns, responde-lhe com muita soberba e ousadia que o mate muito
embora, porque o mesmo tem elle feito a muitos seus parentes e amigos, porem que
lhe lembre que assi como tomam de suas mortes vingança nelle, que assi tambem
os seus o hão de vingar como valentes homens e haverem-se ainda com elle e com
todo a sua geraçam daquella mesma maneira (Gandavo 1576: 137).
A seguir retoma o tacape aquele que vai matar o prisioneiro e diz: “Sim, aqui estou
eu, quero matar-te, pois tua gente tambem matou e comeu muitos dos meus
amigos”. Responde-lhe o prisioneiro: “Quando estiver morto, terei ainda muitos
amigos que saberão vingar-me” (Staden 1557: 182).
“N’est-tu pas de la nation… qui nous est ennemie? et n’as-tu pas toy-mesme tué et
mangé de nos parents et amis?” – Lui, plus assuré que jamais, répondait: “ Pa che
tantan, aiouca atoupavé, Ouy, je suis très fort et en ay voirement assommé et
mangé plusieurs… Ô que je ne m’y suis pas feint; ô combien j’ay esté hardi à
assailir et à prendre de vos gens, desquels j’ay tant et tant de fois mangé”.
L’exécuteur ajoutait: “Toy estant maintenant en notre puissance seras presentement
tué par moy, puis boucané et mangé de tous nous autres”. – “Eh bien, était-il
répondu, mes parents mes vengeront aussi.” (Léry apud Métraux 1967: 62-63).
{48}
Mas pouco aproveitei, que ele não quis ser Cristão, dizendo-me que os que nós
outros batizavamos não morriam como valentes, e ele queria morrer morte
formosa e mostrar sua valentia, em o terreiro atado com cordas mui longas pola
cinta, que três ou quatro mancebos têm bem estiradas, começou a dizer: “Mataime, que bem tendes de que vos vingar em mim, que eu comi a fulano vosso pai, a
tal vosso irmão, e a tal vosso filho” – fazendo um grande processo de muitos que
havia comido des-toutros, com tão grande ânimo e festa, que mais parecia ele que
estava para matar os outros que para ser morto (Anchieta 1565: 223-24).
E é tanta a bruteza deste que, por não temerem outro mal senão aquelle presente
tão inteiros estão como se não fosse nada, assim para fallar, como para exercitar
as forças, porque depois de se despedirem da vida com dizer que muito embora
morra, pois muitos tem mortos, e que alem disso cá ficão seus irmãos e parentes
para o vingarem, e nisto aparelha-se um para furtar o corpo, que é toda a honra
de sua morte (Cardim 1583: 118).
E como êstes cativos veem chegada a hora em que hão de padecer, começam a
pregar e dizer grandes louvores de sua pessoa, dizendo que já estão vingados de
quem os há de matar, contando grandes façanhas e mortes que deram aos parentes
do matador, ao qual ameaçam e a tôda a gente da aldeia, dizendo que seus
parentes os vingarão (Soares de Souza 1587: 326).
O diálogo parecia inverter as posições dos protagonistas. Anchieta se espanta: o
cativo “mais parecia estava para matar os outros que para ser morto”. E Soares de
Souza registra esta outra inversão, agora temporal: os cativos diziam que já estavam
vingados de quem os iriam matar. O combate verbal dizia o ciclo temporal da
vingança: o passado da vítima foi o de um matador, o futuro do matador será o de
uma vítima; a execução iria soldar as mortes passadas às mortes futuras, dando
sentido ao tempo. Compare-se esse discurso que só contém passado e futuro com o
que disse H. Clastres sobre os cantos sagrados Guarani:
[Nesta linguagem sagrada] aquele que fala é também, e ao mesmo tempo, aquele
que escuta. E, se ele questiona, sabe porém que não há outra resposta que sua
própria questão indefinidamente repetida… […] Uma questão que não suscita
nenhuma resposta. Ou antes, o que as belas palavras parecem indicar, é que
pergunta e resposta são igualmente impossíveis. Basta atentar para os tempos e
formas verbais: a afirmação não aparece senão no passado e no futuro; o presente
é sempre o tempo da negação (1975: 143-44).
No diálogo tupinambá, ao contrário, o presente é o tempo da justificação, isto é, da
vingança: da afirmação do tempo. O dueto e o duelo entre cativo e matador,
associando indissoluvelmente as duas fases do guerreiro, que se respondem e se
escutam – as perguntas e as respostas são permutáveis –, é aquilo que torna possível
uma relação entre passado e futuro. Só quem está para matar e quem está para
morrer é que está efetivamente presente, isto é, vivo. O diálogo cerimonial era a
síntese transcendental do tempo na sociedade tupinambá. A categoria a priori da
vingança impunha esse duplo esquematismo, verbal e canibal, que dava corpo ao
devir. Antes de comer, era preciso conversar – e esses dois atos explicavam a
temporalidade, que emergia de dentro da relação de mútua implicação e recíproca
pressuposição com o inimigo. Longe de ser um dispositivo de recuperação de uma
integridade originária, e assim de negação do devir, o complexo da vingança, por
meio desse agonismo verbal, produzia o tempo: o rito era o grande Presente.
Uma semiofagia. Como já mencionamos, tomava-se o máximo cuidado para
que aquilo a ser morto e comido fosse um homem, um ser de palavra, de
promessa e de lembrança. Inúmeros detalhes do rito, culminando no diálogo,
testemunham esse esforço de constituição da vítima como um sujeito
integralmente humano. Frank-Lestringant (1982), em uma bela análise do
ensaio de Montaigne sobre os Tupinambá, detecta ali a redução do canibalismo a
uma mera “economia da palavra”, o ocultamento de sua dimensão selvagem tão
presente nos cronistas. Montaigne, argumenta Lestringant, teria elaborado uma
versão não-alimentar do canibalismo tupinambá, antecipando a leitura
simbolista da antropologia moderna, após um longo hiato de naturalização,
representado no mesmo século XVI pelo materialismo truculento de Cardano,
uma espécie de antepassado de Marvin Harris. O modo como Lestringant
caracteriza a “idealização” montaigniana, contudo, parece-me exprimir
perfeitamente o momento dialógico do rito tupinambá; seja-me permitido assim
pôr suas palavras a meu serviço:
A carne do prisioneiro que se vai devorar não é, de modo algum, um alimento:
ela é um signo… […] O ato canibal representa uma vingança extremada…
[…] Esse esforço para apreender nas práticas do canibal a permanência de
um discurso… […] Sem se demorar sobre as sequelas do massacre,
Montaigne retorna sempre ao desafio de honra, à troca de injúrias, àquela
“canção guerreira” composta pelo prisioneiro antes de sua morte. Acabamos,
assim, por esquecer que a boca do canibal é provida de dentes. Em vez de
devorar, ela se limita a proferir (1982: 38-40).
Não há dúvida que a boca dos canibais tinha dentes, além de língua (igualmente
afiada); mas Lestringant esquece que eram os próprios Tupinambá, não
Montaigne, que separavam a boca que devora daquela que profere: o matador
era o único a não comer a carne do inimigo (Correia 1551: I, 228; Gandavo
1576: 139). O discurso, “representação” da vingança, transformava num signo a
carne que se ia consumir. O cozinheiro dialógico não provava dela.
Qual o conteúdo dessa memória instituída por e para a vingança? Nada, senão a
própria vingança, isto é, uma pura forma: a forma pura do tempo, a desdobrar-se
entre os inimigos. Com a permissão de Florestan Fernandes (1952), não penso que a
vingança guerreira fosse um instrumentum religionis que restaurava a integridade do
corpo social ameaçado pela morte de um membro, fazendo a sociedade voltar a
coincidir consigo mesma, religando-a aos ancestrais mediante o sacrifício de uma
vítima. Não creio, tampouco, que o canibalismo fosse um processo de “recuperação
da substância” dos membros mortos, por intermédio do corpo devorado do inimigo.
Pois não se tratava de haver vingança porque as pessoas morrem e precisam ser
resgatadas do fluxo destruidor do devir; tratava-se de morrer (em mãos inimigas de
preferência) para haver vingança, e assim haver futuro. Os mortos do grupo eram o
nexo de ligação com os inimigos, e não o inverso. A vingança não era um retorno,
mas um impulso adiante; a memória das mortes passadas, próprias e alheias,
servia à produção do devir. A guerra não era uma serva da religião, mas o
contrário. {49}
A dupla interminabilidade da vingança – processo sem termo e relação que não
se deixava apreender por seus termos – sugere que ela não era uma daquelas tantas
máquinas de abolir o tempo, mas uma máquina de produzi-lo, e de viajar nele (o
que talvez seja o único modo de realmente aboli-lo). Ligação com o passado, sem
dúvida; mas gestação do futuro igualmente, por meio do grande presente do duelo
cerimonial. Sem a vingança, isto é, sem os inimigos, não haveria mortos, mas
tampouco filhos, e nomes, e festas. Assim, não era o resgate da memória dos finados
do grupo que estava em jogo, mas a persistência de uma relação com os inimigos.
Estes eram os guardiães da memória coletiva, pois a memória do grupo – nomes,
tatuagens, discursos, cantos – era a memória dos inimigos. Longe de ser uma
afirmação obstinada de autonomia por parte dos parceiros desse jogo (como quis
Florestan, e mais tarde Pierre Clastres), a guerra de vingança tupinambá era a
manifestação de uma heteronomia primeira, o reconhecimento de que a heteronomia
era a condição da autonomia. O que é a vingança como motivo, senão um modo de
reconhecer que a “verdade da sociedade”, para hegelianizarmos com Bataille (1973:
64), está sempre nas mãos dos outros? A vingança não era uma consequência da
religião, mas a condição de possibilidade e a causa final da sociedade – de uma
sociedade que existia por e para os inimigos. Portanto, não se trata simplesmente de
deslocar da religião e suas crenças para a vingança e suas honras a função de
hipóstase da Totalidade: o que a vingança guerreira tupinambá exprimia, ao se
constituir como valor cardinal dessa sociedade, era uma radical incompletude – uma
incompletude radicalmente positiva. Constância e inconstância, abertura e teimosia,
eram duas faces de uma mesma verdade: a indispensabilidade dos outros, ou a
impensabilidade de um mundo sem Outrem (Deleuze 1969).
A LEI VELHA
A vingança era, assim, o fundamento da “lei velha” (Pires 1559: III, 110-11) que os
missionários precisavam destruir. Se a religião stricto sensu era o domínio onde os
índios abriam-se à mensagem cristã, a guerra e seus desdobramentos era por onde
eles se fechavam; se mostravam “muy fraca memória para as coisas de Deus”,
revelavam uma memória elefantina para as coisas dos inimigos. A inconstância
lamentada pelos padres significava, invariavelmente, o retorno às práticas de
execução ritual dos cativos, e por vezes ao canibalismo. O Apóstolo do Brasil, por
exemplo, deblatera contra uma dessas recaídas, a do chefe converso Tibiriçá, grande
esperança dos jesuítas de Piratininga (São Paulo), que na “guerra geral” de 1555 dos
Tupiniquim contra os Tupinambá tomou cativos e queria a todo transe matá-los à
moda antiga:
Assim manifestou o fingimento da sua fé, que até então disfarçara, e ele e todos os
mais catecúmenos cairam e voltam sem freio aos antigos costumes. Não se pode
portanto esperar nem conseguir nada em toda esta terra na conversão dos gentios,
sem virem para cá muitos cristãos que […] sujeitem os Indios ao jugo da
escravidão e os obriguem a acolher-se à bandeira de Cristo (Anchieta 1555: II,
207).
Esse foi um dos pomos da longa discórdia entre os jesuítas e colonos pelo controle
dos índios. Mesmo que não fossem cegos aos benefícios eventuais que a belicosidade
intra-tupi trazia à segurança dos europeus e eventualmente à catequese,{50} os padres
obstavam à guerra por saberem de seus objetivos e consequências – a perseveração
nos velhos costumes:
Iendo los christianos nuevamente convertidos con sus otros parientes a la guerra, la
qua[l] lo defendían los Padres porque era para se comer unos a otros…
(Rodrigues 1552: I, 318).
Os impedimentos que pera isto ir desta maneira como nós muito há deseja-vamos
erão as guerras continuas e muy crueis que os mesmos naturaes entre si trazem, e
este era o principal impedimento de com elles se poder entender por sua pouca
quietação, e daqui procedião as mortes e comerem-se huns aos outros, que não foy
pouco defender-lho… (Pires 1558: II, 463-64).
Por isso queixavam-se amargamente dos moradores europeus, que estimulavam as
hostilidades entre os índios e coonestavam a abominação canibal:
A estes Indios, que ficarão aqui junto os christãos, posto que lhe defenderão o
comer carne humana, não lhes tirão o hirem à guerra e lá matarem, e por
conseguinte comerem-se huns a outros, o que bem se pudera defender a estes
vizinhos dos christãos, segundo estão amedrontados, mas hé a pratica comum de
todos os christãos fazerem-nos guerrear e matar, e induzirem-nos a isso por
dizerem que assi estarão mais seguros; ho que hé total estorvo de sua conversão, e
por esta causa e outras não ouzarão os Padres a bautizá-los, até se niso não
prover (Blázquez 1556: II, 267).
Em toda a costa se tem geralmente, por grandes e pequenos, que hé grande serviço
de N. Senhor fazer aos gentios que se comão e se travem huns com os outros, e
nisto tem mais esperança que em Deus vivo, e nisto dizem consistir o bem e
segurança da terra. […] Louvão e aprovão ao gentio o comerem-se huns aos
outros… (Nóbrega 1559: III, 76-77). {51}
Por esta causa se alevantou tambem grande murmuração antre os christãos,
dizendo que os deixassem comer que nisso estava a segurança da terra, não
olhando que, aynda pera o bem da terra, hé milhor serem eles christãos e estarem
sobjeitos… (Nóbrega 1559: III, 90).
Mas os padres conseguiram, afinal, que os governadores-gerais condicionassem as
guerras nativas a uma licença oficial, punissem o crime de canibalismo e definissem
os termos de rendição impostos aos grupos vencidos nas sucessivas guerras que lhes
moveram os portugueses:
Que não matassem os contrarios senão quando fossem à guerra, como soem fazer
todas as outras nações, e, se por acaso os cativassem, ou que os vendessem ou que
se servissem delles como escravos (Blázquez 1557: II, 382).
A lei, que lhes hão-de dar, é defender-lhes comer carne humana e guerrear sem
licença do Governador; fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se pois tem muito
algodão, ao menos despois de cristãos, tirar-lhes os feiticeiros… fazê-los viver
quietos sem se mudarem para outra parte, se não for para antre cristãos, tendo
terras repartidas que lhes bastem, e com estes Padres da Companhia para os
doutrinarem (Nóbrega 1558: II, 450). {52}
Pôde vencer Men de Saa a contradição de todos os Christãos desta terra, que era
quererem que os Indios se comessem, porque nisso punhão a segurança da terra e
quererem que os Indios se furtassem huns aos outros pera elles terem escravos e
quererem tomar as terras aos Indios contra rezão e justiça e tiranizarem-nos por
todas as vias, e não que[re] rem que se ajuntem pera serem doutrinados […] e
outros inconvenientes desta maneira, os quais todos elle vence, a qual eu não tenho
por menor victoria, que as outras que Nosso Senhor lhe deu; e defendeo a carne
humana aos Indios tão longe quanto o seu poder se estendia, a qual antes se comia
ao redor da cidade e às vezes dentro nella, prendendo os culpados, e tendo-os
presos até que elles bem conhecessem seu erro (Nóbrega 1561: III, 329).
Através de uma implacável guerra aos índios, o dispositivo teológico-político dos
invasores conseguiu finalmente domesticar a guerra dos índios, retirando-lhe o
caráter de finalidade social para transformá-la em meio para seus próprios fins. E
foi assim que os Tupinambá perderam, duas vezes, a guerra.
As numerosas referências jesuíticas ao estímulo dado pelos colonos às
hostilidades intratupinambá levantam a questão de saber se a extensão e
intensidade da guerra indígena não teriam sido muito ampliadas pela invasão
europeia, não apenas daquele modo já evocado (ver nota 33 supra), mas de
forma mais direta e deliberada. Penso que esse foi de fato o caso, pelo menos
para algumas partes do Brasil; mas daí a se sustentar que o padrão guerreiro
tupinambá de meados do século XVI explica-se essencialmente pelo “contato com
o Ocidente” (esta é a posição geral que Ferguson [1990], apesar de suas ressalvas,
termina por caucionar), vai uma distância só franqueável pela atual tendência a
se imputar qualquer aspecto problemático – via de regra, irredutível a
considerações prático-adaptativas – das sociedades ameríndias aos efeitos
avassaladores do Ocidente.
A guerra tupinambá era um dado irredutível dessa sociedade, sua condição
reflexiva e seu modo de ser, que, se foi potencializado pela introdução de objetos
estrangeiros e eventualmente explorado pelos europeus, não foi posto lá por eles.
De resto, a importância da guerra na sociedade tupinambá não se mede pelo
número de mortos que provocava, nem se deixa explicar facilmente por
racionalizações ecológicas:
Toda esta costa marítima, na extensão de 900 milhas, é habitada por índios
que sem excepção comem carne humana; nisso sentem tanto prazer e doçura
que frequentemente percorrem mais de 300 milhas quando vão à guerra. E se
cativarem quatro ou cinco dos inimigos, sem cuidarem de mais nada,
regressam para com grandes vozearias e festas e copiosíssimos vinhos, que
fabricam com raízes, os comerem de maneira que não perdem nem sequer a
menor unha, e toda a vida se gloriam daquela egrégia vitória
(Anchieta 1554: II, 113).
Essa citação permite introduzir uma precisão necessária em face de algumas
discussões mais ou menos recentes a propósito da guerra indígena. Não penso
que os materiais tupinambá corroborem de qualquer maneira que seja as
especulações sociobiológicas (enfeitadas por um duvidoso aparelho estatístico) de
Chagnon (1988, 1990) sobre a vingança de sangue yanomami, o sucesso
reprodutivo diferencial dos matadores, e assim por diante. No que concerne aos
Yanomami, minha posição é de irrestrita concordância com Albert (1989, 1990)
e Lizot (1989). Quanto aos Tupinambá, o que dissemos aqui sobre a guerra e a
vingança refere-se ao que se poderia chamar de ordem ideológica dessa
sociedade, tal como apreensível a partir dos relatos quinhentistas. Os dados não
permitem qualquer estimativa estatística sobre os casos de morte violenta, ritual
ou não. Trechos como o de Anchieta, acima, parecem indicar que não se buscava
o extermínio dos inimigos (e o raciocínio de Brás citado na nota 50 supra
pertence indubitavelmente ao domínio das “Just-so stories”). As batalhas
indígenas descritas pelos cronistas envolviam um bocado de bravatas, troca de
insultos e gesticulação, e não há nenhuma referência a carnificinas – exceto, é
claro, quando se fala das guerras dos portugueses contra os índios.
A pessoa do prisioneiro, que podia viver anos entre seus inimigos até ter a
morte decidida, era simbolicamente apropriada por uma quantidade de gente: o
captor, as mulheres que recebiam e guardavam o cativo, os homens a quem ele
era presenteado pelo captor, o matador ritual. Depois de executado, o inimigo era
comido por centenas de pessoas; uma só morte podia reunir diversas aldeias
aliadas, que compartilhavam uma espécie de sopa muito rala, onde se achava
diluída a níveis quase homeopáticos a carne do contrário. O corpo dos inimigos
era simbolicamente (se nem sempre realmente) escasso, pois um contrário era
comido até a última unha, como diz Anchieta. Quanto à poligamia dos
principais e guerreiros renomados, é difícil precisar a parte real deste ideal.
Estimo que a situação tupinambá encaixa-se sem grandes problemas no quadro
das “brideservice societies” proposto por Collier e Rosaldo (1981), sendo assim
possível que valesse também para eles a observação de que o laço entre
poligamia e proficiência bélica é mais ideológico que objetivo, nesse tipo de
sociedade (op. cit.: 294, 312). Isto posto, não se pode nem se quer ignorar as
inúmeras informações que sublinham o alto valor atribuído à proeza guerreira,
a onipresença do tema da vingança, a natureza iniciatória do homicídio, e as
conexões entre guerra e casamento. Seja como for, embora talvez caiba rotular os
Tupinambá de extremamente belicosos, seria muito difícil considerá-los
particularmente violentos. Os cronistas e missionários representam sua vida
cotidiana como marcada por uma notável afabilidade, generosidade e cortesia.
E, como observei acima, seu ódio aos inimigos e todo o complexo do cativeiro,
execução ritual e canibalismo estavam assentados em um reconhecimento
integral da humanidade do contrário – o que nada tem a ver, bem entendido,
com qualquer humanismo.
O SUMO DA MEMÓRIA
Há um aspecto dos maus costumes do gentio que merece destaque: o lugar central
que o cauim de milho ou mandioca ocupava no complexo guerreiro. O significado
das bebidas fermentadas nas culturas ameríndias ainda está à espera de uma síntese
interpretativa. Ele mantém relações estreitas com o motivo do canibalismo, e aponta
para a importância decisiva das mulheres na economia simbólica dessas culturas.
Os materiais tupinambá sugerem, além disso, uma vinculação entre as festas de
bebida e a memória, mais especificamente a memória da vingança. Os Tupinambá
bebiam para não esquecer, e aí residia o problema das cauinagens, grandemente
aborrecidas pelos missionários, que percebiam sua perigosa relação com tudo que
queriam abolir. Já vimos que Anchieta punha como um dos impedimentos à
conversão do gentio “seus vinhos em que são muito continuos e em tirar-lhos ha
ordinariamente mais dificuldade que em todo o mais…” (1584: 333). Foi mais difícil
acabar com os “vinhos” que com o canibalismo; mas as bebedeiras conjuravam
sempre o espectro dessa abominação:
Seus prazeres são como an-de ir ã guerra, como an-de beber hum dia e huma
noute, sempre beber e cantar e bailar, sempre em pee correndo toda a Aldea, e
como an-de matar os contrarios e fazer cousa nova pera a matança; an-de
aparelhar pera seus vinhos e cozinhadas de carne humana; e as suas santidades,
que dizem que as velhas se an-de tornar moças… (Jácome 1551: I, 242).
Porque es esta gente tan indómita y bestial, que toda su felicidad tiene puesta en
matar y comer carne humana, de lo qual por la bondad de Dios tenemos
apartados estos; y con todos tienen tan arraigada la costumbre de beber y cantar
sus cantares gentílicos, que no ay remedio para los apartar del todo dellos
(Anchieta 1554: II, 120-21).
Y lo que más los tiene cegos, es el inçassiable appetitu que tienen de venguança, en
lo qual consiste su honra, y con esto el mucho vino que beven, hecho de raízes o
frutas, que todo a de seer masticado por sus hijas y otras moças, que solas ellas en
quanto son vírgines usão pera este officio. Ni sé otra mejor traça de infierno que ver
una multitud dellos quando beven, porque pera esso combidan de mui lexos; y esto
principalmente quando tienen de matar alguno o comer alguna carne humana, que
ellos traen de moquen (Grã 1554: II, 132-33).
De aqui fuy harto triste para otras aldeas, donde también les hablé cosas de
nuestro Señor. Holgavan de oyrlas, mas luego se les olvidan, mudando el sentido en
sus vinos y guerras (Azpicuelta 1555: II, 248).
Torno aos nossos, os quais estão divididos em tres habitações para que possam
livremente beber, porque este costume, ou por melhor dizer natureza, mui
dificultosamente se lhes há de extirpar, o qual permanecendo não se lhes poderá
plantar a fé de Christo (Anchieta 1557: II, 368).
A atitude dos jesuítas quanto à bebida recorda os discursos modernos sobre as
drogas como fonte de todos os males e crimes, com a particularidade de que as
cauinagens tupinambá eram uma intoxicação pela memória. Bêbados, os índios
esqueciam a doutrinação cristã e lembravam do que não deviam. O cauim era o
elixir da inconstância:
Estes nossos catecumenos, de que nos ocupamos, parecem apartar-se um pouco
dos seus antigos costumes, e ja raras vezes se ouvem os gritos desentoados que
costumam fazer nas bebedeiras. Este é o seu maior mal, donde lhe vêm todos os
outros. De facto, quando estão mais bêbados, renova-se a memória dos males
passados, e começando a vangloriar-se deles logo ardem no desejo de matar
inimigos e na fome de carne humana. Mas agora, como diminui um pouco a
paixão desenfreada das bebidas, diminuem também necessariamente as outras
nefandas ignomínias; e alguns são-nos tão obedientes que não se atrevem a beber
sem nossa licença, e só com grande moderação se a compararmos com a antiga
loucura… […] Diminui contudo esta nossa consolação a dureza obstinada dos
pais, que, excepto alguns, parece quererem voltar ao vómito dos antigos costumes,
indo às festas dos seus miserrimos cantares e vinhos, na morte próxima de um
[contrário] que se preparava numa aldeia vizinha (Anchieta 1555: II, 194).
A função presentificadora das cauinagens e sua relação com o complexo oral dos
cantos, declaração dos feitos de bravura e proferimento dos nomes são soberbamente
expressas por Jácome Monteiro:
Tomando novos nomes, conforme aos contrários que matam, dos quais chegam
alguns a ter cento e mais apelidos, e em os relatar são mui miudos, porque em
todos os vinhos, que é a suma festa deste gentio, assi recontam o modo com que os
tais nomes alcançaram, como se aquela fora a primeira vez que a tal façanha
acontecera; e daqui vem não haver criança que não saiba os nomes que cada um
alcançou, matando os imigos, e isto é o que cantam e contam. Contudo os
cavaleiros nunca fazem menção dos seus nomes, senão quando há festa de vinhos,
na qual só se ouve a prática da guerra, como mataram, como entraram na cerca
dos imigos, como lhe quebraram as cabeças. Assim que os vinhos são os
memoriais e crónicas de suas façanhas (1610: 409-10). {53}
Recorde-se, finalmente, que o cauim só podia começar a ser bebido por quem já
matara inimigo, ou por pessoas casadas – logo, por homicidas e mulheres que
passaram pelo rito de puberdade (Monteiro id.: 409; Cardim 1584: 103-04). Isso
explica observações como as seguintes:
De los niños tenemos mucha esperança, porque tienen habilidad y ingenio, y
tomados ante que vaian a la guerra, ado van y aún las mujeres, y antes que bevan
y entendian en desonnestidades (Grã 1554: II, 132-33).
Los hombres hasta 18 y 20 annos dan buena muestra, dende adelante comiençan
a bever y házense tan rudos y tan ruínes que no es de creer. Este es el peccado de
que parece menos se emendarán, porque mui poco es el tiempo que no estén
beodos, y en estos vinos, que ellos hazen de todalas cosas, se tratan todalas
malicias y deshonestidades… (Grã 1556: II, 294).
E explica também o orgulho dos padres quando os meninos internos nos colégios
tomavam atitudes como a relatada por Pero Correia:
Y son algunos destos moços [da escola de Piratininga] tan vivos y tan buenos y tan
atrevidos, que quiebran las tinajas llenas de vino a los suyos para que no bevan
(1554: II, 70). {54}
CANIBAIS RECALCITRANTES
Chegamos, enfim, à questão do abandono do canibalismo. Vimos como a primeira
carta de Nóbrega (1549: I, 111), bem como o colóquio de Pindabuçu com Thevet
sugeriam que os Tupinambá pareciam dispostos a deixar o aspecto canibal de seu
sistema guerreiro em troca da saúde, longa vida e outras coisas prometidas pelos
padres, mas que a guerra de vingança, enquanto tal, era intocável.
Transcrevemos passagens das cartas e demais crônicas onde se atesta a
importância do canibalismo, enquanto forma perfeita e acabada da vingança, vindo
coroar o sistema ritual de captura, cativeiro e execução dos inimigos. Há numerosas
outras referências sobre as dificuldades de se resgatarem inimigos das mãos dos
índios, sobre a violenta oposição a seu batismo in articulo mortis (estragava-lhes a
carne, como já referimos) e sobre os artifícios que utilizavam os Tupinambá para
comer os contrários ao arrepio dos interditos dos padres. {55} Mas as cartas
mostram também uma certa ambiguidade dos índios frente aos argumentos
escandalizados dos missionários, uma atitude que hesita entre a firmeza e o lavar as
mãos:
[Estão] muy arraygados en el comer carne humana, de tal manera que, quando
están en el traspasamiento deste mundo, piden luego carne humana, deciendo que
no lleva[n] otra consolación sino esta, y si no les aciertan allar, dicen que va[n]
más desconsolados hombres del mundo; la consolación es su vingança. El más del
tiempo gasto em repreender este vicio. La respuesta que algunos me dan es que no
comen sino las viejas. Otros me dicen que sus abuelos comieron, que ellos an de
comer también, que es costumbre de se vengaren de aquella manera, pues los
contrarios comen a ellos: que porqué les quiero tirar su verdadero manjar?
(Azpicuelta 1550: I, 182).
Mesmo entre os Tamoio de Iperoig, muito pouco sujeitos aos europeus e ainda fora
do círculo da doutrinação jesuítica, Anchieta encontra uma certa compreensão para
com sua mensagem anticanibal:
[Admoestei-lhes]… especialmente que aborrecessem o comer da carne humana
porque não perdessem suas almas no inferno, ao qual vão todos os comedores dela
e que não conhecem a Deus seu Creador, e eles nos prometiam de nunca mais
comê-la, mostrando muito sentimento de ter mortos, sem êste conhecimento, seus
antepassados e sepultados no inferno. O mesmo diziam algumas mulheres em
particular, que pareciam folgar mais com nossa doutrina, as quais prometiam que
assim o fariam; aos homens em geral falámos nela, dizendo-lhes como Deus o
defende, e que nós outros não consentiamos em Piratininga aos que ensinavamos
que os comessem a eles nem outros alguns, mas eles diziam que ainda de comer de
seus contrarios, até que se vingassem bem deles, e que devagar cairiam em nossos
costumes, e na verdade, porque costume em que eles têm posta sua maior felicidade
não se lhes ha de arrancar tão presto, ainda que é certo que ha algumas de suas
mulheres que nunca comeram carne humana, nem a comem, antes ao tempo que se
mata algum, e se lhes faz festa no lugar, escondem todos seus vasos em que comem
e bebem, porque não usem deles as outras, e junto com isto têm outros costumes
tão bons naturalmente que parecem não haver procedido de nação tão cruel e
carniceira (1565: 201).
Na verdade, se algumas cartas trazem os índios dizendo que a carne humana é “seu
verdadeiro manjar”, como a de Azpicuelta acima, ou esta de Blázquez:
Asi como alguns em o dinheiro ou contentamento sensual, ou em o muito valer
põem sua bem-aventurança, asi estes gentios tem posta sua felicidade em matar
hum contrario e despois em vingança comer-lhe a carne tão sem horror e nojo que
não há manjar a seu gosto que se achegue a este… (1557: II, 383)
outras, como a de Anchieta acima, indicam que o canibalismo não era exatamente
uma unanimidade. O Apóstolo do Brasil repetirá isto anos mais tarde: “Todos os da
costa que têm uma mesma língua comem carne humana, posto que alguns em
particular nunca comeram e têm grandíssimo nojo dela” (1584: 329). É nesse
mesmo documento, aliás, que se acha aquela enumeração dos impedimentos à
conversão que transcrevemos no começo do presente ensaio. Note-se que a lista de
Anchieta já não inclui o canibalismo como um dos impedimentos. Àquela altura,
entre os índios sob o controle dos jesuítas e dos colonos, a guerra índia estava
completamente submetida aos fins dos invasores, ou prosseguia sob a forma
minimalista da vingança sem festim canibal. No Maranhão francês dos primeiros
anos do século seguinte, Abbeville encontrará uma mesma aparente repugnância
física ao canibalismo, praticado quase como por obrigação:
Não é prazer propriamente que as leva a comer tais petiscos, nem o apetite sensual,
pois de muitos ouvi dizer que não raro a vomitam depois de comer, por não ser o
seu estômago capaz de digerir a carne humana; fazem-no só para vingar a morte
de seus antepassados e saciar o ódio invencível e diabólico que votam a seus
inimigos (1614: 233).
Não parece fácil conciliar essas informações sobre a repulsa ao canibalismo, e sobre
uma certa disposição em deixá-lo, com aquelas que afirmam seu valor e honra, e
mesmo sua excelência enquanto prática alimentar, como o celebérrimo diálogo de
Hans Staden com o principal Cunhambebe:
Durante isto Cunhambebe tinha à sua frente um grande cesto cheio de carne
humana. Comia de uma perna, segurou-m’a diante da boca e perguntou-me se
também queria comer. Respondi: “Um animal irracional não come um outro
parceiro, e um homem deve devorar um outro homem?” Mordeu-a então, e disse:
“Jauára ichê. Sou um jaguar. Está gostoso.” Retirei-me dele, à vista disto (1557:
132). {56}
Pode-se, decerto, argumentar que os dados sobre os Tupi antigos provêm de muitos
pontos da costa brasileira, e referem-se a épocas diferentes. Não haveria por que
termos uma opinião monolítica sobre as virtudes da carne humana. Teríamos algo
como o caso dos Aché, que à época da pesquisa dos Clastres estavam divididos em
dois grupos, um canibal, o outro não, e que assim
responderam à questão do etnólogo, que queria saber por que cada grupo era o
que era. Os canibais: comemos os mortos porque a carne humana é doce. Os
outros: não comemos da carne humana porque ela é amarga (H. Clastres 1972:
82).
Questão de gosto cultural, dir-se-ia. O problema é que no caso tupinambá as
opiniões, aparentemente, variavam dentro de um mesmo grupo. Sobretudo, mesmo
aqueles grupos que prezavam enormemente esse comer e essa comida deixaram com
relativa facilidade tais práticas. De qualquer modo, tudo indica que a prática do
canibalismo tinha um peso diferenciado no sistema guerreiro dos Tupi e Guarani da
costa. Os Tupinambá da Bahia, por exemplo, parece terem sido especialmente
tenazes no apego a ela; os Tupiniquim de São Paulo deixaram-se dissuadir com
maior facilidade; e os Carijó (Guarani) do litoral sul seriam, talvez, menos dados ao
canibalismo.
Uma explicação para o abandono do canibalismo pelos índios, ou, antes, a
determinação dos motivos e processos que responderam pela maior facilidade com
que essa prática foi coibida pelos jesuítas e governadores-gerais, comparativamente
ao caso da guerra de vingança, exigiria uma análise global do significado do
canibalismo nas culturas tupi, algo que não podemos fazer aqui. Já mencionamos
um aspecto do motivo canibal, aquele que o toma pela perspectiva da vítima:
evitação do enterramento e da putrefação, ou, dito de outra forma, um método de
aligeiramento do corpo, tema importante na personologia tupi-guarani (H. Clastres
1975; Viveiros de Castro 1986a; Combès 1987, 1992). Tomado pela outra ponta, da
perspectiva dos devoradores, o canibalismo deixa entrever múltiplas conexões. Antes
de mais nada, ele era o aspecto e o modo da vingança que cabia à coletividade dos
captores e seus aliados (ao passo que a execução ritual era levada a cabo por um só
homem, que não comia da carne do contrário); neste sentido, era a máxima
socialização da vingança, pela qual todos os devoradores se afirmavam como
inimigos dos inimigos, colocando-se no campo da “revindita compulsória”
(Fernandes 1949: 123) por parte do coletivo associado à vítima. Em seguida, há
indícios de que ele remetia aos mesmos temas escatológicos e personológicos que
atravessam a religião, o xamanismo e a mitologia tupi-guarani: assim, as repetidas
menções à voracidade das velhas, grandes inimigas dos jesuítas nesta história de
acabar com o canibalismo, sugerem que o que se buscava no repasto canibal não
devia ser diferente daquilo que os karaiba prometiam: “Y promételes longa vida, y
que las viejas se han de tornar moças…” (Nóbrega 1549: I, 151; ver também Jácome
1551: I, 242; Azpicuelta 1555: II, 246). {57} O canibalismo parece ter sido, entre
muitas outras coisas, o método especificamente feminino de obtenção da longa vida,
ou mesmo da imortalidade, que no caso masculino era obtido pela bravura no
combate e pela coragem na hora fatal. Há mesmo indicações de que a carne humana
era diretamente produtora daquele aligeiramento do corpo que os Tupi-Guarani
buscaram de tantas formas diferentes, pela ascese xamânica, a dança, ou a ingestão
do tabaco (ver Combès 1987, e Saignes s/d, citado por ela). Por fim, o rito canibal
era uma encenação carnavalesca de ferocidade, um devir-outro que revelava o
impulso motor da sociedade tupinambá – ao absorver o inimigo, o corpo social
tornava-se, no rito, determinado pelo inimigo, constituído por este (Viveiros de
Castro 1986a).
Forma máxima da vingança, o canibalismo não era entretanto sua forma
necessária. O gesto próprio da vingança guerreira, e o requisito crucial para a
obtenção de um novo nome, era o esfacelamento ritual do crânio do contrário:
Posto que este gentio pelo campo mate o inimigo às estocadas… como o não
matou com lhe quebrar a cabeça, logo hão que o morto não é morto, nem o
matador se pode jactar de lhe haver dado a morte, nem poderá tomar nome nem
riscar-se (Brandão 1618: 259-60).
Por vezes, desenterravam-se inimigos para lhes partir a cabeça:
Porque não se contentam de matar os vivos, mas também de desenterrar os mortos
e lhes quebrar as cabeças para maior vingança e tomar novo nome (Anchieta
1565: 237).
Se encontram alguma sepultura antiga dos contrários, lhe desenterram a caveira, e
lha quebram, com o que tomam nome novo, e de novo se tornam a inimizar
(Soares de Souza 1587: 301).
Esse gesto era exclusivamente masculino. As mulheres podiam matar um prisioneiro
com as próprias mãos, quando furiosas; mas precisavam chamar um homem para
quebrar o crânio do cadáver (Anchieta 1565: 203).
O fato de a vingança em sua forma mínima e necessária – confronto com o
inimigo para quebrar-lhe o crânio, de preferência na situação ritual – ter resistido
mais que o canibalismo às injunções jesuíticas deve-se, provavelmente, à sua
indispensabilidade na produção de pessoas masculinas completas, matadores
renomados e renominados. Sem dúvida, o fato de que a antropofagia era uma
abominação absoluta, ao passo que a vingança era apenas um “mau costume”,
também deve ter contribuído para uma maior tolerância dos europeus frente a esta
última. De qualquer forma, talvez seja possível ver no abandono do canibalismo
uma derrota, sobretudo, da parte feminina da sociedade tupinambá. {58}
Quão fácil foi dissuadir os Tupinambá de comerem os inimigos? Na Bahia, isso
exigiu uma campanha de guerras, às vezes de extermínio (Itapoã, Paraguaçu),
conduzidas pelos governadores-gerais, que terminou com a proibição de guerras
indígenas sem licença e com a decretação da pena capital para o crime de
antropofagia. Os índios submetiam-se com a morte na alma:
[O principal Tubarão vai à guerra]: Pediu elle licença ao Governador pera matar
aquelle, pois era dos que avião mortos aos seus pera consolar ho nojo que tinha
dos que lhe aviam mortos. Deu-lhe o Governador licença pera o matarem fora da
Aldea. Fizerão-no asi, e mataram-no e comerão-no, porque lho acharão a cozer.
[Ante o protesto dos padres, o governador Duarte da Costa] mandou apregoar por
suas Aldeas sob pena de morte que ninguem comece carne humana, de maneira que
os Indios fiquaram mui atemorizados (Blázquez 1556: II, 267-68).
Fez-se-lhe duro aos Indios este contrato, porque, asi como alguns em o dinheiro ou
contentamento sensual, ou em o muito valer põem sua bem-aventurança, asi estes
gentios tem posta sua felicidade em matar hum contrario e despois em vingança
comer-lhe a carne tão sem horror e nojo que não há manjar a seu gosto que se
achegue a este: e esta era a causa porque dizião ao Governador que em lhes tirar
isto lhes tiravão toda a gloria e honrra que lhes deixarão seus avoos, mas contudo
que elles estavão aparelhados dahi por diante não fazer mais isto que nós tanto
abominavamos, com tal condição que lhes deixassem agora matar sete contrarios
que avia muito tempo que os tinhão em cordas pera comer, alegando que elles
tinhão mortos seus pais e seus filhos. Concedeo-lho o Governador, excepto que não
nos comessem, e asi o prometerão, cousa que elles nunqua fizerão, nem fizerão se
não nos pusera em tam grande aperto, porque não se tem por vinguados com os
matar, senão com os comer
(Blázquez 1557: II, 382-83).
Mas terminaram por se submeter, e logo o canibalismo não era mais que uma
memória envergonhada:
Todos estes vão perdendo ho comer carne humana e, se sabemos que alguns ha tem
pera comer e lha mandamos pedir, ha mandão, como fizerão os dias passados e
no-la trazem de mui longe pera que a entreremos ou queimemos, de maneira que
todos tremem de medo do Governador…
(Pires 1558: II, 471).
Ha carne humana que todos comião e muy perto da cidade hé agora tirada, e
muitos tomão já por injuria alembrar-lhe aquelle tempo, e se em alguma parte se
comem são amoestados e castigados por isso
(Nóbrega 1559: III, 57).
E que não avião de matar nem comer carne humana: isto foy superfluo porque já
o eles agora não fazem (Pires 1560: III, 313).
Dizem-me todos que hé muy facil acabarmos com elles que não comão carne
humana… (Pereira 1561: III, 334).
No sul, entre os Tupiniquim de São Vicente e Piratininga, os jesuítas parece terem
conseguido sucesso mais rápido na empresa de dissuasão:
Es también mucho para espantar y dar muchas gratias al todo poderoso Dios que
ni estes ni los otros de los lugares vezinos que ya algún tiempo oyeron de nosotros
y aún agora muchas vezes oyen la palabra de Dios no comen carne humana, no
teniendo ellos subiectión alguna ni miedo de los christianos (Anchieta 1560: III,
259-60).
Mesmo as recaídas eventuais dos catecúmenos, que levaram Anchieta repetidas vezes
a clamar pela “prédica da espada e da vara de ferro” (1563: III, 554), não incluíam
essa prática:
[Estão] totalmente metidos en sus antiguas y diabólicas costumbres, excepto el
comer comer carne humana, lo qual, por la bondad del Señor, paresce que está
algo desarraigado entre estos que ya enseñamos. Verdad es que aún hazen grandes
fiestas en la matança de sus enemigos ellos y sus hijos, etiam los que sabían leer y
escrivir, bebiendo grandes vinos como antes acostumbravan y, si no los comen,
danlos a comer a otros sus parientes que de diversas partes vienen y son
convocados para las fiestas. Todo eso viene de ellos no estar subiectos… (Anchieta
1561: III, 370).
Uma peça essencial da luta contra o canibalismo – talvez a jogada decisiva – foi a
internação dos meninos índios nas escolas jesuíticas, com a inculcação muito
provável de um horror sagrado àquela prática:
Porque aunque muchos mochachos buelven atraz a seguir las costumbres de sus
padres adonde no tienen subjectión, a lo menos esto se gana, que no buelven a
comer carne humana, antes lo estrañan a sus padres…
(Nóbrega 1561: III, 361).
Haveria todo um outro estudo a fazer sobre a estratégia jesuítica de sequestro dos
meninos tupinambá.
ELOGIO DA INCONSTÂNCIA
Os materiais tupinambá parecem, enfim, justificar as observações de Lévi-Strauss
sobre a labilidade do canibalismo. Ali onde essa prática existe, ela é raramente
coextensiva ao corpo social; e mesmo
lá onde sua prática parece ser a norma, notam-se exceções sob a forma de
reticência ou de repugnância. O caráter lábil dos costumes canibais é algo que
chama a atenção. Em todas as observações disponíveis, do século XVI até nossos
dias, vemo-los surgir, difundir-se e desaparecer em um lapso de tempo muito curto.
É isso, sem dúvida, que explica seu abandono frequente desde os primeiros
contatos com os brancos, antes mesmo que estes dispusessem de meios de coerção
(1984: 143).
No caso tupinambá, o canibalismo coincidia com o corpo social inteiro: homens,
mulheres, crianças, todos deviam comer do contrário. De fato, ele era o que
constituía este corpo em sua máxima densidade e extensão, no momento dos festins
canibais. Sua prática, entretanto, exigia uma exclusão aparentemente menor e
temporária, mas decisiva: o matador não podia comer de sua vítima. Isto me parece
significar mais que uma aplicação daquele princípio de ampla difusão na América
indígena, que veda ao caçador comer de sua presa. A abstinência do matador aponta
para uma divisão do trabalho simbólico no rito de execução e devoração, onde,
enquanto a comunidade se transformava em uma malta feroz e sanguinária,
encenando um devir-animal (lembremos do jaguar de Cunhambebe) e um
devirinimigo, o matador suportava o peso das regras e dos símbolos, recluso, em
estado liminar, prestes a receber um novo nome e uma nova personalidade social.
Ele e seu inimigo morto eram, num certo sentido, os únicos propriamente humanos,
em toda a cerimônia. O canibalismo era possível porque um não comia.
Vimos também que, apesar de suas múltiplas conexões religiosas e seus
significados cosmológicos e escatológicos, o canibalismo não era o sine qua non do
sistema da vingança guerreira, mas sua forma última. Vimos ainda que algumas
fontes atestam a existência de movimentos de repulsa à manducação de carne
humana. Observamos que, em pelo menos algumas partes do Brasil, o canibalismo
foi abandonado por não muito mais que a pregação jesuítica, antes de qualquer
possibilidade de pressão militar. E notamos, por fim, que ele não parece ter passado
da década de 1560, entre os Tupinambá em contato direto com os europeus.
Lévi-Strauss tem o canibalismo por uma forma instável que se desenha contra
um fundo de identificação a outrem, fundo este que seria como a condição geral da
vida social (1984: 143-44). O canibalismo estaria situado em uma espécie de ponto
extremo de um gradiente de sociabilidade, cujo outro polo seria a indiferença ou
incomunicabilidade. Se este é o caso, então o abandono de tal prática significou, de
alguma forma, a perda de uma dimensão essencial da sociedade tupinambá: sua
“identificação” aos inimigos, entenda-se, sua autodeterminação pelo outro, sua
essencial alteração. Mas então, igualmente, cabe perguntarmos se a relativa rapidez
com que o canibalismo foi abandonado não se deveu de fato à chegada dos europeus:
não apenas ou principalmente, porém, porque estes a abominavam e reprimiram,
mas antes porque vieram ocupar o lugar e as funções dos inimigos na sociedade tupi,
de uma forma tal que os valores que portavam, e que deviam ser incorporados,
terminaram por eclipsar os valores que eram interiorizados pela devoração da
pessoa dos contrários. A persistência da vingança guerreira e de suas consequências
onomásticas, honoríficas e memoriais atesta que o motivo da predação ontológica
continuou a ocupar os Tupinambá por algum tempo ainda. Atesta também que,
como o atesta a etnologia dos ameríndios contemporâneos, não é necessário comer
literalmente os outros para continuar dependendo deles como fontes da própria
substância do corpo social, substância que não era mais que essa relação canibal aos
outros. De qualquer modo, se o canibalismo é mesmo uma forma lábil e instável
por excelência – eu ia dizer inconstante –, então ele não pode ter sido mais
emblemático dos Tupinambá, gente admiravelmente constante em sua inconstância.
Os Araweté, pequeno povo tupi contemporâneo da Amazônia oriental, afirmam
– não sei se creem – que os Maï, raça de divindades celestes, são canibais. Os Maï
devoram as almas dos mortos recém-chegadas ao céu; em seguida, imergem os
despojos em um banho mágico que ressuscita e rejuvenesce os mortos,
transformando-os em seres imortais como eles mesmos, que vivem em um paraíso
perfumado onde abundam a bebida, o sexo e a música. As únicas almas que não
sofrem a prova da devoração são aquelas de homens que mataram um inimigo em
vida. Temidos pelos Maï, os matadores araweté já são como eles, ferozes e
canibalescos (considera-se que um homicida tem a barriga enchida com o sangue do
inimigo, e o deve purgar); não precisam assim que se lhes digira uma humanidade
já deixada para trás. Os Maï, que abandonaram a terra no começo dos tempos, não
são concebidos como pais, criadores ou mesmo heróis culturais dos homens. Na
verdade, são classificados como “nossos gigantescos tiwã”. Tiwã, palavra de
conotações agressivas, significa “afim potencial”, e é desta forma que o espírito de um
inimigo morto chama seu matador, em sonhos, para ensinar-lhe cantos. Em suma:
esses canibais celestes, que nos devoram para nos transformarem em algo à sua
imagem e (des) semelhança, são inimigos e afins potenciais dos humanos, mas
também representam um ideal para nós. A partir da sociologia canibal dos Tupi do
século XVI, os Araweté desenvolveram uma escatologia não menos canibal; os
inimigos se transformaram em deuses, ou, antes, os humanos ocupamos agora o
lugar dos inimigos, enquanto esperamos ser, com a morte, transformados em nossos
inimigos-cunhados, os deuses. Os Maï são, de certo modo, os Tupinambá
divinizados. Como se vê, a alma selvagem dos Tupi continua implicada em histórias
de canibalismo.
1. Agradeço a Marcio Goldman, Tânia Stolze Lima e Carlos Fausto pelas discussões
que levaram à versão final deste ensaio, e especialmente a Manuela Carneiro da
Cunha pela parceria na formulação, há alguns anos, de muito do aqui exposto (cf.
Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro 1985). O ensaio foi escrito graças à
insistência generosa de Aurore Becquelin e Antoinette Molinié, que o aguardaram
com paciência e (no caso de Aurore) o traduziram parcialmente para sua publicação
na coletânea Mémoire de la tradition (Becquelin & Molinié [orgs.] 1993).
2. Taylor já observou que a naturalização dos índios da América tropical fez-se
sobretudo em termos do reino vegetal (1984: 233 n. 8). Para um exemplo que a
autora não usa, veja-se, com efeito, o contraste de Gilberto Freyre (1933: 214-15)
entre a “resistência mineral” dos Inca e Azteca – a metáfora é aqui o bronze, não o
mármore – e a resistência de “pura sensibilidade ou contratilidade vegetal” dos
selvagens brasileiros. Valeria a pena fazer a história dessa imagística, que por vezes,
como na página vieiriana, recorda irresistivelmente as composições de Arcimboldo.
3. Isto é ainda o Sermão do Espírito Santo (Vieira 1657: 216). Sobre o motivo de
São Tomé na Ásia e na América, e sua assimilação ao demiurgo tupinambá Sumé,
cf. Métraux 1928: 7-11, e Buarque de Holanda 1969: 104-25.
4. Como é praxe na bibliografia etnológica, emprego o etnônimo “Tupinambá” para
designar os diversos grupos tupi da costa brasileira nos séculos XVI e XVII:
Tupinambá propriamente ditos, Tupiniquim, Tamoio, Temiminó, Tupinaé, Caeté etc.,
que falavam uma mesma língua e participavam da mesma cultura.
5. Poderia ter citado Gandavo: “sam mui inconstantes e mudaveis: crêm de ligeiro
tudo aquillo que lhes persuadem por dificultoso e impossivel que seja, e com qualquer
dissuaçam facilmente o tornam logo a negar […]” (1576: 122; cf. também a p. 142,
onde a inconstância aparece no contexto da catequese); ou ainda a anedota de Léry
que conclui: “voilà l’inconstance de ce pauvre peuple, bel exemple de la nature
corrompue de l’homme […]” [eis a inconstância desse pobre povo, belo exemplo da
natureza corrompida do homem]. (Léry 1578: 193-94). Abbeville é o único, salvo
engano, a destoar, com um otimismo quase suspeito: “outros dizem que eles são
inconstantes, volúveis. Na verdade são inconstantes se deixar-se conduzir unicamente
pela razão pode ser chamado inconstância; mas são dóceis aos argumentos
razoáveis, e pela razão faz-se deles o que se quer. Não são volúveis, ao contrário, são
razoáveis e em nada obstinados […]” (1614: 244). Mesmo Évreux, em geral tão
simpático aos nativos como o outro capuchinho, bate na tecla: “Ils sont fort amateurs
de vin […] lubriques extrêmement […], inventeurs de fausses nouvelles, menteurs,
légers, inconstants […]” [Eles são grandes amantes de vinho […] extremamente
lúbricos, inventores de falsas histórias, mentirosos, levianos, insconstantes.] (1614:
85). Cf. também a Crônica da Companhia de Jesus: “São inconstantes, e variáveis
[…]” (Vasconcelos 1663: I, 103).
6. As citações das cartas jesuíticas pelos algarismos I, II e III remetem à edição em
três volumes das Cartas dos primeiros jesuítas no Brasil (1538-1563): cf. Leite (org.)
1956-58. Já os escritos de Anchieta citados ou referidos sem indicação de volume
remetem às Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões (Anchieta 1933).
7. Para as “três potências da alma” no caso dos índios, cf. o Diálogo da conversão do
gentio (Nóbrega 1556-57: II, 332-40).
8. O topos do contraste entre o apostolado no Velho e no Novo Mundo parece ter
desempenhado um papel importante na reflexão de Vitoria, Soto e seguidores: “[O]s
missionários encaravam sua tarefa como sendo, primariamente, uma de instrução.
Os índios não eram judeus ou muçulmanos que tinham de ser forçados a aceitar
uma religião desprezada por suas próprias crenças. Eles eram apenas uma gente
ignorante e desorientada que logo veria a luz da razão, uma vez removida a
bagagem de seu velho modo de vida” (Pagden 1982: 102).
9. A literatura é enorme. Sobre os debates antropológicos ibéricos, cf. Pagden 1978;
para os jesuítas no Brasil, cf. ao menos Menget 1985c e Baeta Neves 1978; para a
questão geral da imagem do índio no século XVI, Carneiro da Cunha 1990; para as
fontes francesas sobre os Tupinambá, Lestringant 1990.
10. A antropologia dos jesuítas, como nota Menget (1985c: 192), deixou inúmeros
frutos na legislação e nas políticas do Estado brasileiro para os índios.
11. Naturalmente, essa conjetura algo ponderosa sobre a relação entre as modernas
noções de cultura e as noções teológicas de crença exigiria muito trabalho para se
tirar dela algo de útil. Desde Bourdieu, pelo menos, tornou-se de bom tom castigar o
viés teoricista dos antropólogos, que os faria ver a cultura como sistema
arquitetônico de regras e princípios etc. Seria interessante explorar a dependência
dessa própria postura teoricista frente ao paradigma teológico. A questão da crença,
por seu turno, que continua a obcecar a antropologia de tradição anglo-saxã, deita
provavelmente suas raízes bem para além de Hume, direto na epistemologia da
Reforma. Quanto ao papel da doutrina calvinista do símbolo na formação da
antropologia religiosa vitoriana (sem falarmos no que pode ter contribuído para o
princípio – genebrino! – da arbitrariedade do signo), esta é mais outra coisa que
ainda está por ser devidamente elucidada.
12. Literalmente de terceira classe, pois os Tupinambá são um dos exemplos da
terceira categoria de bárbaros de Acosta (Pagden 1982: 164-72). Serafim Leite
(1938: 12-13) aventura o delicioso sofisma: como a questão da conversão dos índios
do Brasil não era doutrinária, mas uma questão de costumes (grifos dele), não houve
nenhuma violência na catequese jesuítica, nem vileza alguma nas chantagens
materiais que os missionários praticavam contra os índios para convertê-los:
“porque só há lugar para a violência, quando se arranca uma religião ou um culto,
impondo-se-lhe outro. Ora não era isto que se dava”. Ali onde é portanto a irreligião
o sistema cultural, introduzir uma religião torna-se uma questão, digamos,
meramente cultural. E o compelle intrare vira ensino de boas maneiras.
13. Mas podiam também escarnecer da doutrina católica, sobretudo depois que
tiveram tempo de experimentar as iniquidades dos brancos. Vieira relata
escandalizado como encontrou a missão aos Tobajaras da Serra do Ibiapaba, em
meados do século XVII: “Na veneração dos templos, das imagens, das cruzes e dos
sacramentos estavam muitos deles tão calvinistas e luteranos, como se nasceram em
Inglaterra ou Alemanha. Estes chamam à Igreja igreja de Moanga, que quer dizer
igreja falsa, e à doutrina moranduba dos abarés, que quer dizer patranhas dos
padres…” (s/d: 231). Mas, bem antes disto, Hans Staden já se defrontara com o
sarcasmo indígena frente à religião europeia: “Tive que cantar-lhes alguma cousa, e
entoei cantos religiosos, que precisei explicar-lhes em sua língua. Disse: ‘Cantei sobre
o meu Deus’. Responderam que o meu Deus era uma imundície, em sua língua:
teõuira…” (1557: 100). Suspeito que esta palavra é o mesmo tyvire de Léry (1578:
200), que significa sodomita passivo.
14. Nas duas narrativas dos capuchinhos franceses (Abbeville e Évreux) sobre os
Tupinambá do Maranhão, a solicitude em atirar-se nos braços dos europeus é ainda
mais sublinhada, e pintada em cores temerariamente apologéticas, sem a cautela
pessimista que os jesuítas portugueses rapidamente adotaram.
15. [Fui visitar um rei dessa região, chamado Pindabuçu. Estando acamado, presa
de uma febre persistente, ele me perguntou o que era feito das almas depois que
saíam do corpo. Respondi-lhe que elas iam para junto de Tupã, lá no alto, no céu,
com aqueles que viveram bem e que não se vingaram da injúria de seus inimigos; ao
que o rei deu fé, e, caiu em grande contemplação. […] Dois dias mais tarde,
mandou-me buscar, e, estando eu diante dele, me disse “Vem cá, eu te ouvi dizer
grandes coisas de um Tupã que pode tudo. Rogo-te que fales a ele por mim, e faze
com que me cure; assim que eu estiver de pé e com saúde, eu te darei grandes
presentes, e terei prazer em me paramentar como tu, e usar a barba comprida, e
honrar Tupã como tu o fazes”. Ao que respondi que, se ele queria curar-se, e crer
Naquele que fez o céu, a terra e o mar, e não crer mais […] em seus Caraíbas e
feiticeiros, e que se não mais se vingasse, nem comesse seus inimigos, como fizera
toda sua vida, […] sem dúvida ele se curaria, e sua alma, após a morte, não seria
atormentada pelos espíritos malignos, como o eram as de seus antepassados. Ao que
esse senhor régulo me respondeu que com prazer, uma vez curado pelo poder de
Tupã, ele se conformaria a todos os artigos que eu lhe propusera, com exceção de um
só, que era o de não se vingar de seus inimigos; e que, mesmo se o próprio Tupã lho
ordenasse, ele não poderia assentir, e, se por acaso o fizesse, mereceria morrer de
vergonha.]
16. [“faça com que não morramos mais…”] É certo que tal pedido foi feito no
contexto de uma epidemia que andava a dizimar os índios, os quais suspeitaram de
feitiçaria francesa. O pedido de “não-morte” ao senhor do Forte Coligny (e também a
Thevet – op. cit.: 88), portanto, implica uma concepção deste como feiticeiro-chefe,
não como dispensador puramente positivo de longa vida. Recorde-se que os pajés e
karaiba tupinambá costumavam ameaçar os índios de morte mágica, segundo os
cronistas.
17. [Eu não vou entrar na disputa sobre se o diabo sabe e conhece as coisas futuras…
Mas uma coisa posso dizer: muito tempo antes que nós chegássemos, seu espírito já
lhes havia predito nossa vinda: e sei disso não apenas por eles mesmos, mas por
vários cristãos portugueses aprisionados por esse povo bárbaro. E o mesmo foi dito
aos primeiros espanhóis que descobriram o Peru e o México.]
18. Para Thevet (op. cit.: 41), os franceses são tidos como filhos de Maire Monan por
serem grandes tecnólogos, e senhores de muitas coisas nunca vistas. O problema é
que os portugueses, que não deviam ser muito diferentes dos franceses sob estes
aspectos, nunca foram chamados de Mair, mas de Peró, nome provavelmente
derivado do antropônimo Pero ou Pedro. Anchieta (1584: 332) entende que a
aplicação do termo Mair aos franceses vinha do fato de essa personagem mítica ser
inimiga de Sumé, figura que, de alguma forma, seria identificada aos portugueses
(creio ter sido Anchieta quem, aproximando Sumé a São Tomé, identificou-se, e aos
seus patrícios, a esse personagem). Uma outra razão possível para os franceses
terem sido “mairizados” foi a tez dos marinheiros normandos, mais clara que a dos
portugueses, e seus cabelos louros. (Um outro nome para os franceses era ajurujuba,
“papagaios amarelos”.) O tema da pele muito branca de Maíra aparece em algumas
mitologias tupi, estando associado ao motivo da imortalidade obtida pela troca de
pele.
O termo tupinambá geral para os europeus parece ter sido mesmo karaiba, e a
explicação de Anchieta é razoável. A etimologia dessa palavra, difundida entre os
Tupi contemporâneos como etnônimo para os brancos, é incerta. Montoya (1640:
90v) identificou na forma guarani caraí o lexema cara, que significaria “hábil,
engenhoso, astuto”. Há, é claro, o espinhoso problema de saber se a palavra karaiba
tem algo a ver com Caribe, Caraíbas etc. No Alto Xingu, karaiba é o termo usado
para os brancos por todas as tribos. Von den Steinen estava convencido que este era
um termo de origem caribe.
Vale notar que os europeus, chamados de karaiba, e como tais personagens
inicialmente tratados, terminaram trazendo para os índios o exato oposto do que os
karaiba prometiam: em vez de errância migratória, aldeamento forçado; em lugar
de longa vida e abundância sem esforço, morte por epidemias e trabalho escravo; em
lugar de vitória sobre os inimigos, proibição de guerra e de canibalismo; em lugar de
liberdade matrimonial, novas restrições.
19. Adiante, o leitor encontrará alguns pontos de discordância diante das análises de
Hélène Clastres; por isso mesmo, fique logo registrado que acho La Terre sans Mal
um livro admirável por sua penetração e densidade, especialmente no que concerne à
caracterização dos temas centrais da filosofia tupi-guarani.
20. Por isto, foi tanto o caso dos Tupinambá “quererem virar brancos” quanto o de
querer que os brancos virassem Tupinambá. As cartas jesuíticas abundam em
queixas sobre os maus cristãos que estariam going native, casando poligamicamente
com índias, matando inimigos em terreiro, tomando nomes cerimonialmente, e
mesmo comendo gente.
21. Ver os edificantes diálogos de conversão em Évreux (1614: “second traité”, caps.
XV a XXI), onde os índios endereçam uma quantidade de questões cosmológicoteológicas aos padres.
22. Além dos Guarani contemporâneos, cujo casotipo são os Apapocuva de
Nimuendaju (1914), ver ainda os Wayãpi (Gallois 1988) e os Araweté (Viveiros de
Castro 1986a). Hélène Clastres (1975: 35) afirma que praticamente não se acha
menção nos cronistas ao tema indígena do apocalipse (exceto uma muito vaga
passagem de Thevet). Nas Cartas dos primeiros jesuítas no Brasil, entretanto,
Anchieta narra a anedota de um velho índio que doutrinara: “Lo que más se le
imprimió fué el mysterio de la Ressurrectión, lo qual repetía muchas vezes diziendo:
‘Dios verdadeiro es Jesú que se salió de la sepultura y se fué al cielo, y después a de
venir muy airado a quemar todas las cosas’” (Anchieta 1563: III, 560). É óbvio que
há aí uma influência do Juízo Final, mas suspeito também da presença da
conflagração universal da mitologia tupi; de qualquer modo, foi esse tema cristão
que marcou o velho.
23. Os jesuítas da costa brasileira, desanimados com suas ovelhas, acalentaram
longos sonhos de mudar-se ao Paraguai, pois ouviam maravilhas sobre os índios de
lá, os Guarani: que eram excelentes cristãos, monógamos, não comiam gente,
tinham chefes de verdade, obedeciam aos padres etc. Anchieta resume: “Além destes
índios [Tupi], há outro gentio espalhado ao longe e ao largo, a que chamam Carijós,
nada distinto destes quanto à alimentação, modo de viver e língua, mas muito mais
manso e mais propenso às coisas de Deus, como ficamos sabendo claramente da
experiência feita com alguns, que morreram aqui entre nós, bastante firmes e
constantes na fé” (1554: II, 116; cf. também Nunes 1552: I, 339-40; Nóbrega 1553:
I, 493-94; id. 1553: II, 15-16; id. 1555: II, 171-72; id. 1557: II, 402-03; id. 1558: II,
456-57). Nisso entrava, sem dúvida, uma boa dose de idealização; mas os jesuítas
do Brasil insistiam que muitos Carijó não eram canibais. (Embora os Irmãos Pero
Correia e João de Souza tenham sido mortos pelos Carijó do sul em 1554 – e dois
índios que os acompanhavam, devorados –, Anchieta esclarece que estes eram ainda
indômitos, mas que a maioria da nação já estava bem sujeita aos espanhóis.)
24. Para uma discussão inspiradora de um problema muito semelhante, ver o artigo
de D. Tooker (1992) sobre os Akha da Birmânia, cuja referência agradeço a Tim
Ingold.
25. Hélène Clastres interpreta as indicações das fontes sobre o prestígio e imunidade
dos cantores e “senhores da fala” como se aplicando exclusivamente aos karaiba,
conforme sua teoria da extraterritorialidade destes personagens. Isso, penso, não se
sustenta. Ver Blázquez: “Avía en esta poblazión un principal mui antigo y a quien […]
tienen grande crédito, porque lle llaman ‘señor de la habla’” (1561: III, 408).
Anchieta: “Fazem muito caso entre si, como os Romanos, de bons linguas e lhes
chamam senhores da fala e um bom lingua acaba com eles quanto quer e lhes fazem
nas guerras que matem ou não matem e que vão a uma parte ou outra, e é senhor de
vida e morte. […] Por isso ha pregadores entre eles muito estimados que os exortam
a guerrear, matar homens e fazer outras façanhas desta sorte” (1585: 433). Soares de
Souza: “Entre este gentio são os músicos mui estimados, e por onde quer que vão,
são bem agasalhados, e muitos atravessaram já o sertão por entre seus contrários,
sem lhes fazerem mal” (1587: 316). Monteiro: “os dextros nesta arte [canto] são entre
eles mui prezados, tanto que se têm em seu poder algum contrário, bom cantor e
inventor de trovas, que entre eles são raros, como a insignes na arte lhe dão a vida e
o têm em muita conta só pela música, que é o único remédio com que alguns se
livram de morrer no terreiro” (1610: 415). Nenhuma destas referências pode ser
interpretada como se referindo exclusivamente aos karaiba, mas apontam para o
valor geral que a música e o discurso tinham na sociedade tupinambá. Sobre a
música como tática de conversão, cf. Azpicuelta 1550: I, 180; o delicioso trecho de
Pires 1552: I, 383-84; e Blázquez 1557: II, 350-51.
26. Portanto, se os padres eram uma espécie de karaiba, os karaiba eram uma
espécie de padres. Ver os desejos de ser padre exprimidos pelo xamã Pacamão, em
Évreux 1614: 241 e ss. Para um caso de apropriação do discurso cristão por um
profeta, cf. Abbeville 1614: cap. XII.
27. Cf. Évreux (op. cit.: 220-21), para o conflito entre um principal e um “grand
barbier”.
28. Aproveito aqui ideias apresentadas por Peter Gow (1991b, c) em duas palestras
no Museu Nacional, bem como retomo observações já feitas em Viveiros de Castro
1986a, sobre a “política discursiva” dos Araweté.
29. [De resto, nossos Tupinambá […], apesar de todas as cerimônias que fazem, não
cultuam de joelhos ou com outras manifestações exteriores. Não veneram nem seus
Caraíbas, nem seus Maracás, nem qualquer outra criatura.]
30. Mentes menos teológicas, como a de Hans Staden, tinham os chocalhos por
objeto de crença: “os selvagens creem numa cousa que cresce como uma abóbora”
(1557: 173). Para uma referência à antropomorfização dos chocalhos, cf. Azpicuelta
1555: II, 246.
31. A repugnância dos índios a castigos físicos ou a ordens ásperas, e a dificuldade
que dali advinha em educá-los no temor à autoridade, é registrada duas vezes por
Luís da Grã (1554: II, 136-7; 1556: II, 294).
32. A insistência de H. Clastres na tese do incipiente centralismo político dos TupiGuarani – e portanto no papel revolucionário dos profetas, que questionariam o
poder perigosamente pré-estatal dos grandes chefes de guerra – levou-a, penso, a
minimizar as informações que sugerem um certo ceticismo inconstante dos índios em
relação aos karaiba. A autora tampouco parece levar em conta as inúmeras
observações dos jesuítas e cronistas sobre a “ausência de rei”, i. e., de poder político
forte e com algum indício de centralismo, nos Tupi costeiros. No mínimo, deve-se
observar que pode ter havido diferenças profundas entre os Guarani do atual
Paraguai e os Tupi da costa, ou, para citar a própria autora, “é preciso proceder com
prudência, pois a homogeneidade […] da cultura tupi-guarani obviamente não
autoriza uma atribuição automática aos segundos do que sabemos ser verdade dos
primeiros” (1975: 22). Sobre o poder político entre os Tupi da costa, cf. Fausto 1992.
33. Algumas das quais residindo, justamente, na possibilidade de intensificação de
práticas tradicionais valorizadas. Veja-se aqui a notável carta de Pero Correia (1553:
I, 445), onde este observa uma conexão causal entre a introdução de implementos de
ferro, o aumento das áreas plantadas e a intensificação das cauinagens e das guerras.
34. O melhor exemplo dessa tolerância irônica para com os brancos está numa
divertida passagem de Nimuendaju 1914: 28-29.
35. Não é o caso de discutirmos aqui a virada jesuítica em direção à linha dura. Os
trechos das cartas jesuíticas pertinentes estão em: Anchieta 1554 II: 114, 118; 1555:
II, 206-08; Câmara 1557: II, 421; Nóbrega 1557: II, 401-02; 1558: II, 447-48, 450;
Pires 1558: II, 463; Nóbrega 1559: III, 72; Pereira 1560: III, 293; e a célebre carta de
Anchieta 1563: III, 554.
36. Sobre a guerra e o canibalismo tupi, cf. Métraux 1967; Fernandes 1949, 1952; H.
Clastres 1972; Viveiros de Castro 1986a; Combès 1992; Carneiro da Cunha &
Viveiros de Castro 1985; Saignes 1985; Combès & Saignes 1991; Fausto 1992.
37. [Pajés e Caraíbas transmitem, como oráculos, a esse povo os acontecimentos em
suas atividades, especialmente as guerras, que são seu assunto principal; as maiores
coisas que os ditos Pajés inquirem ao espírito são assuntos da guerra.]
38. É isto que torna pouco sustentável a tese de H. Clastres sobre o caráter negador
do discurso profético: pois se a guerra era o fundamento da sociedade tupi, e um dos
temas principais dos karaiba… (Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro 1985:
196). As cartas jesuíticas e demais crônicas atestam à abundância essa relação entre
a palavra dos xamãs e a guerra. Cf. Correia 1551: I, 225; Anchieta 1554: II, 108-09;
Blázquez 1556: II, 270; Staden 1557: 174; Léry 1578: 190-91.
39. [Para que seja virtuoso e de grande coragem, incitando-o a jurar fazer guerra
para sempre contra seus inimigos, até porque esse povo jamais se reconcilia com
aqueles contra os quais já guerreou. Se é uma menina, penduram-lhe ao pescoço os
dentes de um animal que chamam Capiigouare (capivara) de modo que, dizem, seus
dentes fiquem maiores e mais fortes para comer suas carnes…]
40. [De modo que seus dentes sejam mais fortes para mascar a beberagem que
chamam Kaouin (cauim)]
41. Cf. também Cardim: “[S]e [o filho] é macho lhe faz um arco com frechas, e lho
ata no punho da rede, e no outro punho muitos molhos d’ervas, que são os contrarios
que seu filho ha de matar e comer…” (1584: 107).
42. Uma prestação alternativa a esta era a cessão de uma filha ao irmão da esposa;
os Tupinambá, como se sabe, eram adeptos do casamento avuncular. O
descumprimento dessas obrigações podia levar ao confisco de uma mulher por seus
irmãos. Ver o relato de Vicente Rodrigues (1552: I, 307): “fueránse a la guerra para
se vengar, donde fué hun hijo de un Principal de la misma Aldea, christiano […] que
se llamava Bastián Téllez…; y iendo mataron muchos contrarios y cativaron, el qual
cativó uno que le vino a su parte. Yendo así con victoria, los parientes de la muger de
Bastián Téllez le pedieron el suio, diciendo que si no se lo diesen, que le avían de
tomar la muger, el qual se lo dió con verguença que recibiría de los blancos si le
tomassem la muger”. Sobre a cessão de filhas como condição para a saída da
uxorilocalidade, e sobre a obrigação de um jovem recém-casado presentear seus
afins com cativos, cf. Thevet 1575: 130, 132.
43. Sobre a acumulação de nomes e escarificações memoriais, cf. Anchieta 1585:
434; Abbeville 1614: 268. Sobre a proliferação de batoques à medida que se
acumulavam cativos mortos, e sobre o direito a falar em público que o porte desses
adereços significava, cf. Monteiro 1610: 409. Sobre a relação entre poligamia e
prestígio, cf. Thevet op. cit.: 135-36; Léry 1578: 199; Soares de Souza 1587: 304;
Abbeville op. cit.: 222-33, 255. Nos documentos jesuíticos, a relação entre poligamia
e proeza guerreira é em geral apenas de parataxe; não consegui encontrar ali
nenhuma vinculação causal, salvo em um trecho da “Informação do Brasil e de suas
capitanias” (Anchieta 1584: 329), que nos afirma ser usual ter um homem três ou
quatro mulheres, exceto “se é principal e valente, [quando] tem dez, doze e vinte”.
Sobre a acumulação de nomes pelas mulheres conforme o número de cativos mortos
pelos maridos, cf. Staden 1557: 170. Monteiro (1610: 411) acrescenta que elas
tomavam novos nomes também ao participarem da cerimônia de recepção dos
cativos. Sobre a sujeição dos homens a seus afins doadores, cf. ainda: “el suegro en
esta tierra tiene el marido de la hija subiecto y los hermanos della al cuñado…” (Grã
1556: II, 295).
44. Seria apressado, entretanto, concluir que a guerra tupinambá era guiada pelo fim
exclusivo, ou mesmo principal, de se aceder ao paraíso; recordo que Pindabuçu não
evocou a salvação de sua alma como motivo para não transigir com o imperativo
da vingança, mas simplesmente afirmou a impensabilidade de tal desistência. Seu
argumento foi a vergonha absoluta, não a perdição eterna. Não há dúvida que a
guerra possuía múltiplas conexões religiosas, e que os Tupinambá eram
razoavelmente obcecados com o tema da imortalidade pessoal; mas penso que o
caso era antes o de atingir o céu porque se obedeceu às normas da bravura guerreira,
que o de se obedecer a elas para atingir o céu. A possibilidade de as mulheres
atingirem o paraíso é algo sobre que pouco se sabe; cf. Métraux 1928: 112.
45. [E não pensem que o prisioneiro se assusta com essas notícias, ao contrário,
acredita que sua morte é honrada, e que mais vale morrer assim do que em sua
casa, de alguma doença contagiosa, pois, dizem eles, não podemos nos vingar da
morte, que ofende e mata os homens, mas podemos vingar aqueles que foram
mortos e massacrados no trato da guerra.]
46. “Et de là sont venues ces guerres san juste occasion, ains d’une seule opinion de
vengeance, et d’une bestiale aprehension, qui les fait aussi sanguinaires, en laquelle ils
sont si plongez, que si une mouche leur passe par devant les yeux, ils s’en voudront
venger…” [E daí vieram essas guerras sem justa causa, obra de uma mera vontade de
vingança, e de uma índole bestial, que os faz tão sanguinários e na qual estão tão
imersos, que, se uma mosca passar diante de seus olhos, eles quererão vingar-se
dela…] (Thevet op. cit.: 207).
47. Daí a repulsa de muitos cativos a fugir ou ser resgatados pelos europeus: “ainda
que são alguns tam brutos que não querem fugir depois de os terem presos; porque
houve algum que estava já no terreno atado pera padecer e davão-lhe a vida e não
quiz senão que o matassem, dizendo que seus parentes o não teriam por valente, e
que todos correrião com elle; e daqui vem não estimarem a morte; e quando aquella
hora não na terem em conta nem mostrarem nenhuma tristeza naquelle passo
(Gandavo c. 1570: 55). Ver também Abbeville: “embora lhes seja possível fugir, à
vista da liberdade de que gozam, nunca o fazem apesar de saberem que serão mortos
e comidos dentro em pouco. E isso porque, se um prisioneiro fugisse, seria tido em
sua terra por cuave eim, i. e., poltrão, covarde, e morto pelos seus entre mil censuras
por não ter sofrido a tortura e a morte junto aos inimigos, como se os de sua nação
não fossem suficientemente poderosos e valentes para vingá-lo” (1614: 230-31).
48. [“Você não é da nação… que é nossa inimiga? E você mesmo não matou e comeu
nossos parentes e amigos?”. Ele, mais seguro que nunca, respondeu: “Pa che tantan,
aiouca atoupavé; Sim, sou muito forte e realmente abati e comi vários dos seus. Não
me fiz de rogado. Como fui corajoso para atacar e capturar suas gentes, que tantas e
tantas vezes comi!”. O executor acrescentava: “Você, estando agora em nosso poder,
será morto por mim e depois moqueado e comido por todos os outros”. “Muito bem,
respondia-lhe, meus parentes me vingarão também.”]
49. Em Viveiros de Castro 1986a acha-se uma crítica argumentada da teoria
sacrificial de Florestan Fernandes.
50. Há conjeturas malthusianas: “Son tantos, y es la tierra tan grande, y van en tanto
crecimiento, que si no tuviessen continua guerra, y se no se comiessen los unos a los
otros, no poderían caber” (Brás 1551: I, 275). Há raciocínios mais políticos: “[Na
Baia] andão elles agora todos baralhados em crueis guerras. […] E hé agora o mais
conveniente tempo pera a todos sujeitarem e os emporem no que quizerem…”
(Nóbrega 1555: II, 16-17); “esta guerra fué causa de mucho bien para nuestros
antiguos discípulos, los quales son agora forçados por la necessidad de dexar todas
sus habitationes en que se avían dispargido y recogerse todos a Piratininga” (Anchieta
1563: III, 553-54). Mas os padres nunca chegaram à fria ação de graças de um
Gandavo, p. ex.: “E assi como são muitos permitiu Deos que fossem contrarios huns
dos outros, e que houvesse entrelles grandes odios e discordias, porque se assi não
fosse os portuguezes não poderião viver na terra nem seria possível conquistar
tamanho poder de gente” (c. 1570: 52).
51. “De facto, alguns cristãos nascidos de pai português e mãe brasílica, que estão
apartados de nós 9 milhas numa povoação de Portugueses, não cessam nunca de
esforçar-se, juntamente com seu pai [João Ramalho], por lançar a terra a obra que
procuramos edificar com a ajuda de Deus, pois exortam repetida e criminosamente
os catecúmenos a apartarem-se de nós e a crerem neles, que usam arco e frechas
como os índios, e a não se fiarem de nós que fomos mandados aqui por causa de
nossa maldade. Com estas e semelhantes coisas conseguem que uns não creiam na
pregação da palavra de Deus e que outros, que parecia já termos encerrado no redil
de Cristo, voltem aos antigos costumes e se apartem de nós, para poderem viver
mais livremente. Os nossos Irmãos tinham gasto quase um ano inteiro em doutrinar
uns, que distam de nós 90 milhas, e eles renunciando aos costumes gentílicos, tinham
resolvido seguir os nossos e tinham-nos prometido nem matar nunca os inimigos
nem comer carne humana. Agora, porém, convencidos por estes cristãos e levados
pelo exemplo duma nefanda e abominável depravação, preparam-se não só para
matar mas também para os comer” (Anchieta 1554: II, 114-15). Este trecho, se é
mais um exemplo dos antagonismos ferozes a separarem colonos e jesuítas, não é
imediatamente interpretável como mais um exemplo da perfídia dos primeiros, pois
ele pode também se inscrever nos casos de “indigenização” de europeus (cf. nota 20
supra).
52. Esse é o famoso “plano civilizador” de Nóbrega, desencadeado pela devoração do
Bispo Sardinha pelos Caetés (1556), que levou os jesuítas a endossar a doutrina da
guerra justa ao gentio (Nóbrega 1558: II, 449). Distinga-se, portanto, a posição da
Companhia sobre as guerras intratupinambá daquela sobre as guerras movidas
contra os índios pelos europeus. Neste último caso, a Companhia oscilou entre a
condenação – movida tanto pela indignação contra as atrocidades cometidas pelos
colonos como pela competição com estes, que apresando os índios furtavam-nos à
fixação nas aldeias missionárias (Nóbrega 1559: III, 93-94) – e a recomendação,
no quadro da guerra justa e do compelle intrare. Mesmo neste caso, a guerra deveria
ser o mais oficial possível, movida ou sancionada pelo governo geral. Por fim, a
atitude jesuítica quanto à guerra anti-indígena está ligada ao problema ainda mais
complicado da legitimidade da escravidão dos índios, que não temos espaço para
abordar aqui.
53. Cf. também Soares de Souza (1587: 323) sobre homicídio, nominação e bebidas:
“Costuma-se, entre os Tupinambá, que todo aquele que mata contrário, toma logo
nome entre si, mas não o diz senão a seu tempo, que manda fazer grandes vinhos; e
como estão para se poderem beber, tingem-se à véspera de jenipapo, e começam à
tarde a cantar, e toda a noite, e depois que têm cantado um grande pedaço, anda toda
a gente da aldeia rogando ao matador, que diga o nome que tomou, ao que se faz de
rogar, e, tanto que o diz, se ordenam novas cantigas, fundadas sobre a morte daquele
que morreu, e em louvores daquele que matou…”. Estamos aqui, mais uma vez,
diante do que se poderia chamar de complexo da oralidade canibal dos Tupinambá:
enorme prestígio dos cantores e “senhores da fala”, marcação, pelo porte do batoque,
do direito a discursar em público, proferimento ritual dos nomes etc. Jácome
Monteiro: “Assim que a 2ª. bem-aventurança destes é serem cantores, que a primeira
é serem matadores” (op. cit.: 415). Ver, por fim, o costume indígena de jactar-se dos
feitos de bravura com discursos intermináveis, que irritava grandemente os europeus
(Thevet 1575: 92; Anchieta 1565: 206, 219, 222-23; Blázquez 1559: III, 133).
54. O cauim tupinambá, cuja importância para o festim canibal foi abundantemente
documentada pelos cronistas, parece assim estar articulado a diferenciações sexuais e
etárias. Os jovens de ambos os sexos não bebiam; mas as responsáveis pela
mastigação da matéria-prima da bebida eram moças virgens, como registra Grã
1554: II, 132-33 (cf. Thevet 1575: 55-56), o que significa também pré-púberes. Os
adultos casados de ambos os sexos bebiam, e às velhas parece ter cabido a
organização do processo de produção da bebida, bem como a fabricação dos vasos
de cerâmica para guardá-la.
55. Sobre as artimanhas a que recorriam os índios para comer contrários mesmo
sob o protesto dos padres, cf. Nóbrega 1550: I, 159-60. Sobre as dificuldades em se
resgatarem cativos destinados à morte e devoração, cf. Nóbrega 1550: I, 165 (“et è
tanto difficile a fare il riscatto [a] questa generatione de Topenichini che non si potria
mai pensare”) e Rodrigues 1552: I, 307-08 (“Y iá lo tenían chamuscado y concertado
para abrirlo y hazer repartición. Tremían como vergas quando nos lo querían tomar,
y antes murieran que dexar passar por sí tal flaqueza”).
56. Sobre a excelência gustativa da carne humana para os Tupinambá, ver as
referências recolhidas por Combès 1987. Para uma análise dessa réplica de
Cunhambebe, cf. Viveiros de Castro 1986a: 625-26.
57. Ver o trecho já citado de Azpicuelta: “La respuesta que me dan es que no comen
sino las viejas…”. As referências à grande influência das velhas nos negócios públicos,
em particular na guerra e no canibalismo, mereceriam um estudo aprofundado:
Lourenço 1553: I, 517-18; Blázquez 1557: II, 352 e 387-88; Anchieta 1560: III, 259.
Há muito mais aqui que um fantasma ideológico projetado pelos observadores,
como quer Bucher 1977.
58. O horror à carne humana sentido por algumas mulheres de Iperoig (cf.
Anchieta) poderia, assim, ser tomado como uma demonstração a contrario desta
inscrição feminina do canibalismo.
CAPÍTULO 4
Imanência do inimigo
Pois que trago a mim comigo tamanho imigo de mim
Sá de Miranda
Discutem-se neste artigo as relações entre o guerreiro e sua vítima tal como
concebidas pelos Araweté, um povo de língua tupi-guarani da Amazônia oriental. {1}
Os materiais que oferecemos à consideração do leitor já foram apresentados em um
texto de maior fôlego; eles são aqui resumidos e retomados de uma perspectiva
comparativa. {2} Nossa questão é a dinâmica identitária envolvida na determinação
do estatuto do moropï’nã (“matador”) araweté. A questão diz menos respeito,
portanto, às funções – políticas, ideológicas ou outras – associadas a esse estatuto
que à sua constituição mesma, levada a cabo através de certos processos rituais.
Cuidamos que seu exame pode contribuir para o melhor entendimento de um regime
simbólico de ampla difusão na Amazônia indígena, uma economia da alteridade
onde o conceito de “inimigo” assinala o valor cardinal.
Modï-do afiando a ponta de uma flecha para caça grossa (Ipixuna, 1982) A dança
do cauim araweté (Ipixuna, 1981)
Elementos de cosmologia
O universo dos Araweté tem sua origem e fundamento na diferenciação entre a
humanidade (Bïde) e a divindade (Maï). Essa diferença foi criada pela separação
entre o céu e a terra, no começo dos tempos. Em consequência de uma querela que
opôs os homens aos futuros deuses, estes últimos partiram, levantando o firmamento
e levando consigo a ciência da eterna juventude e da abundância sem trabalho. Os
humanos, desde então, definem-se como “os abandonados” (heñã mi re), os que
foram deixados para trás pelos Maï. Tudo que existe sobre a terra compartilha de
uma condição geral de minoridade ontológica frente às pessoas e coisas que
passaram ao patamar celeste. Em particular, os viventes terrestres estão submetidos
ao tempo, isto é, são mortais.
Entre todos os seres perecíveis de nosso nível cósmico, entretanto, os humanos
ocupam um lugar à parte: eles são “aqueles que irão” (uha me’e rin), os únicos que se
juntarão postumamente aos Maï. Por ocasião da morte, uma parte da pessoa, a in
ou “alma”, sobe aos céus, onde é recebida pelos Maï-hete, os “deuses por excelência”, a
raça divina mais diretamente interessada na humanidade. {3} Os Maï-hete
assemelham-se aos Araweté, salvo que são mais belos, mais altos e mais fortes que
qualquer humano, como é o caso de tudo que é celeste. A ornamentação corporal dos
deuses é uma hipérbole daquela típica do grupo em ocasiões cerimoniais: pele e
cabelos untados de urucum vermelho-vivo, salpicados com plúmulas brancas do
peito do gavião-real; diademas coronais feitos com as rêmiges das araras vermelha
ou canindé; brincos floriformes compostos da plumagem amarela do papo de tucano
e do azul-turquesa das penas de cotinga. Mas os Maï ostentam, além disso,
esplêndidos desenhos geométricos sobre seus corpos, gregas, losangos e riscos finos
feitos com o suco negro-azulado do jenipapo. Esse estilo é característico de vários
inimigos dos Araweté, em particular, dos temidos Kayapó. Os Araweté besuntam o
rosto e o corpo com o suco desse fruto, associado ao jaguar, quando vão à guerra ou
à caça, mas jamais o utilizam para desenhar sobre o corpo. Os Maï, em suma, têm
uma aparência que mistura traços araweté e inimigos.
Com efeito, os Araweté afirmam que os Maï, mesmo sendo “como nós”, são ao
mesmo tempo “como inimigos”. Não apenas porque se pintam como inimigos, mas,
sobretudo, porque são ferozes e perigosos. Os Maï são antropófagos. Eles matam e
comem os mortos assim que estes chegam aos céus. Em seguida, eles os refazem,
mergulhando os ossos de suas vítimas em uma bacia de pedra cheia de uma água
mágica, que ferve (-pipo, ferver ou fermentar) sem fogo. Os mortos então
ressuscitam, tornando-se “como os Maï”, isto é, eternamente jovens e belos. Os
mortos tornados divinos casam-se com os deuses, voltando à terra com eles para
compartilhar os alimentos oferecidos pelos humanos ao povo celeste, por ocasião dos
rituais. Os xamãs (peye), em suas viagens ao céu, tratam com os deuses e os
mortos, trazendo-os frequentemente à terra para esses banquetes festivos, ou
simplesmente para conversar com os viventes. O xamanismo araweté é
essencialmente um dispositivo de intercâmbio entre os viventes e os Maï. Os
humanos dão de comer aos deuses, no sentido alimentar como no sexual,{4}
recebendo em troca cantos (a “música dos deuses” cantada pelos xamãs) e outros
bens espirituais: a vida póstuma nos céus, bem entendido, mas também a
persistência do mundo, pois a consumação canibal e sexual dos mortos impede que
os Maï façam cair o firmamento, esmagando a terra.
Os deuses araweté são ambíguos a mais de um título. Diferentemente do que
sucede na maioria das cosmologias tupi-guarani, a dos Araweté não concebe os Maï
como heróis culturais, pais criadores, ou senhores da humanidade. {5} Os deuses
araweté estão ao mesmo tempo além e aquém da cultura ou civilização. Se eles
dispõem de uma ciência xamânica absoluta, capaz de ressuscitar os mortos, ou fazer
com que os instrumentos trabalhem sozinhos, nem por isso deixam de ser definidos
como primitivos (uka-hete me’e, “meramente existentes”, como se diz dos animais),
gente sem fogo e sem plantas cultivadas. Essas conquistas da civilização não se
devem aos Maï; muito ao contrário, foi um humano quem outrora lhas ensinou.
Assim, embora empreguem hoje uma tecnologia culinária semelhante à dos
humanos, um curioso epíteto continua a marcar os deuses como selvagens: me’e wi
a-re, “comedores de carne crua”, expressão que descreve exemplarmente os jaguares.
{6}
É preciso compreender bem o que querem dizer os Araweté, quando afirmam que
os Maï são “como inimigos” (awin herin). Os deuses são como inimigos porque
tratam os mortos araweté como se estes fossem inimigos: eles os matam e devoram.
Mas o fazem porque os mortos comportam-se como inimigos frente aos deuses: um
morto recente é um ser feio, sujo e mesquinho, cheio de rancor por ter morrido. Ao
chegar ao céu, as almas masculinas são acolhidas pelos Maï com demandas
insistentes de presentes preciosos; as almas femininas, com a exigência de favores
sexuais. Como os mortos são sempre muito avaros, recusando-se a estabelecer
relações com os Maï, fazem-se matar. Os deuses, então, são “como inimigos”; na
verdade, porém, são os mortos os verdadeiros inimigos, pois os senhores da
perspectiva celeste são os deuses. O que os faz ser, finalmente, “como nós” (bïde herin):
eles são os detentores legítimos da posição de sujeito em seu mundo.
A palavra bïde, que traduzi por “humanidade”, significa também “nós”, “a gente”,
e “os Araweté”. Não se trata, note-se, de um etnônimo, equivalente a “Araweté”
(palavra inventada pelos brancos) ou de uma “autodesignação” substantiva e
distintiva. Bïde é sintática e semanticamente equivalente a ñane, o pronome da
primeira pessoa do plural inclusivo (por oposição a ure, primeira do plural
exclusivo). Bïde é uma marca de posição enunciativa, ou seja, trata-se
efetivamente de um pronome que marca a posição de sujeito, não de um nome
próprio. Como várias outras sociedades amazônicas, os Araweté não objetificam
o coletivo a que pertencem por meio de substantivos de tipo etnonímico,
reservando-os para os outros, isto é, precisamente, para os inimigos (awin). {7}
A ambiguidade categorial dos deuses reflete seu estatuto sociológico: cônjuges futuros
dos mortos, os Maï são afins dos viventes. Os Maï-hete, em particular, recebem o
epíteto de ure tiwã oho, “nossos gigantescos-temíveis afins potenciais”. Tiwã, afim
potencial ou primo cruzado, é um termo que se aplica a todo não-parente; ele carrega
conotações agressivas e/ou lascivas, e não deve ser normalmente empregado como
forma de tratamento para um concidadão. Um tiwã é quase um awin, um inimigo,
mas um inimigo concebido sob o modo da aliança possível. Os Araweté designam
por tiwã todo não-Araweté com quem estabelecem relações outras que aquelas,
globais e impessoais, em vigor entre eles e os coletivos inimigos.
Ferozes mas esplêndidos, perigosos mas desejados pelos humanos, omófagos
mas providos de uma supercultura xamânica, inimigos mas aliados, os Maï estão
marcados por uma ambivalência fundamental. Eles são ao mesmo tempo o “ideal
de Ego” araweté e o arquétipo do Outro. Os Araweté olham-se com os olhos dos
deuses, ao mesmo tempo em que olham os deuses do ponto de vista humano,
terrestre e mortal.
O matador e sua vítima
Se os mortos araweté são inimigos – já frente aos humanos, pois a morte gera um
espectro terrestre que assombra os viventes até a desaparição das partes moles do
cadáver, já frente aos deuses, pois as almas celestes comportam-se incivilmente ao
adentrar o paraíso –, e se os Maï são a seu modo igualmente inimigos, não há,
entretanto, lugar no céu para os inimigos humanos dos Araweté. As almas dos
inimigos mortos não acham acolhida, mesmo canibal, entre os Maï, que as
arremessam de volta à terra, onde perecem definitivamente.
Mas o caso do inimigo morto pelos Araweté é muito diferente. A alma de um
moropï’nã (matador) araweté e aquela do inimigo que ele matou não somente
sobem aos céus, como ali desfrutam de uma situação especial. Elas se fundem em
uma entidade dual que, como veremos, é tratada pelos Maï com a atenção e cautela
devidas a quem lhes está à altura.
Após ter matado, ou simplesmente ferido, um inimigo numa escaramuça, um
homem “morre” (umanun). Assim que volta à aldeia ele cai em uma espécie de
estupor, permanecendo imóvel e semiconsciente por vários dias, durante os quais
nada come. Seu corpo está cheio do sangue do inimigo, que ele vomita
incessantemente. Esta morte não é um simples afastamento da alma (que sobrevém
diversas vezes na vida de uma pessoa), mas um verdadeiro tornar-se cadáver. O
matador ouve o barulho das asas dos urubus que se reúnem à volta de “seu” corpo
morto – isto é, o corpo de seu inimigo deixado na floresta –; sente-se “como se
apodrecendo”, seus ossos amolecem, ele cheira mal.
Quando o inimigo foi verdadeiramente morto (e não apenas ferido), o estado de
morte do matador dura cerca de cinco dias. Ele deve beber uma infusão amarga de
casca de iwirara’ï (Aspidosperma sp.), a mesma que tomam as mulheres durante as
regras e os pais em couvade. Ele não pode tocar qualquer parte do corpo de sua
vítima, sob pena de ver seu próprio ventre inchar e explodir, em uma espécie de parto
mortal.
O matador está também submetido a um interdito mais longo. Durante várias
semanas após seu feito, ele não pode ter comércio com a esposa. O espírito do
inimigo, estando “sobre ele”, seria o primeiro a penetrar sexualmente a mulher; o
matador, “vindo após o inimigo”, seria contaminado pelo esperma da vítima, o que
acarretaria sua morte imediata.
O período de abstinência termina quando o espírito da vítima decide ir aos
confins da terra “buscar cantos”. Ao retornar, transmite esses cantos ao matador
durante o sono, bem como uma série de nomes pessoais que serão conferidos aos
recém-nascidos. Certa noite, o espírito do inimigo acorda bruscamente o matador,
exortando-o: “Vamos, tiwã, ergue-te e dancemos!”. O inimigo é dito estar enraivecido
com o matador, mas ao mesmo tempo acha-se-lhe indissoluvelmente ligado. Com o
tempo, essa raiva se transforma em amizade; a vítima e seu matador tornam-se
“como apihi-pihã”. Apihi-pihã é o nome da relação mais valorizada na sociedade
araweté. Trata-se de uma forma de amizade cerimonial na qual dois casais
compartilham sexualmente os cônjuges de sexo oposto, passam longos períodos
juntos na floresta em expedições de caça, e são parceiros obrigatórios nas danças
coletivas que ocorrem durante as cauinagens.
Pode-se ver aqui uma nítida progressão nas relações entre a vítima e seu
matador. Elas vão da alteridade mortífera à identidade fusional: alguém que era um
puro inimigo, um awin, transforma-se primeiramente em um tiwã, um afim
potencial; em seguida, torna-se um amigo ritual, uma espécie de duplo social e
afetivo do Eu que é na verdade um anti-afim, pois que se trata de alguém com quem
se compartilham esposas em vez de se trocarem irmãs. Finalmente, com a morte do
matador, a vítima se consubstancializa à pessoa deste: ela fica para sempre “com” [rehewe] ou “em” [-re] o matador, tornando-se um como apêndice seu, distinguindo-o
do comum dos mortais no mundo celeste.
Note-se que, inicialmente, as relações sexuais do matador com a esposa eram
perigosas porque o esperma do inimigo poderia contaminá-lo; ao inverso, a
transformação subsequente da vítima em apihi-pihã do matador sugere a
mistura de sementes, por compartilhamento das mesmas mulheres. Note-se,
ainda, que este comum acesso aos respectivos cônjuges, ao distinguir os amigos
rituais dos cunhados, pareceria aproximá-los da relação entre germanos de
mesmo sexo, que têm oficiosamente tal prerrogativa. Entretanto, se as relações
de apihi-pihã podem ser estabelecidas entre pessoas ligadas por uma variedade
de laços de parentesco prévios, elas excluem precisamente dois tipos de laço:
aquele entre cunhados e aquele entre germanos. Dois irmãos reais não podem
jamais entrar em relações de amizade ritual – a inversão da afinidade (o amigo
como “anti-afim”) não reconduz, portanto, à mera consanguinidade, mas cria
uma terceira posição. De um modo geral, os apihi-pihã são recrutados na
periferia da parentela, isto é, na esfera onde se encontram os tiwã, não-parentes
ou parentes distantes, que podem ser alternativamente afinizados ou
transformados em amigos rituais.
A morte ventríloqua
Durante a dança que encerra a reclusão do moropï’nã e celebra a morte do inimigo,
o espírito deste é dito postar-se imediatamente às costas do matador, que é também o
cantador da cerimônia. O inimigo é seu “professor de canto” (marakã memo’o-hã),
soprando-lhe ao ouvido as palavras da canção que ele deve proferir, as quais são
retomadas pela comunidade masculina da aldeia reunida à sua volta. Assim, se o
inimigo “vinha adiante” do matador durante a reclusão, o que tornava as relações
sexuais perigosas, na dança guerreira ele passa a ocupar uma posição posterior. Se,
antes, havia uma espécie de competição de corpos entre o inimigo e o matador (o
risco da mistura seminal), na dança tem-se uma colaboração entre os dois,
manifestada numa comunhão de palavras.
Os inimigos recebem em geral dois epítetos muito sugestivos: kã’un nãhi, “molho
do cauim” (a cerveja de milho servida durante a dança comemorativa), e marakã
nin, “futura música”. O primeiro é uma clara alusão canibal. Se os Araweté não
comem seus inimigos, pois a antropofagia é própria dos deuses, ao menos eles os
utilizam para dar gosto à bebida, infundir-lhe “espírito”. O segundo indica a função
principal dos inimigos: trazer novos cantos. Vistos por seu lado bom – seu lado
morto –, os inimigos são aqueles que trazem novas palavras ao grupo, ou ao menos
que vêm dar un sens plus pur aux mots de la tribu.
As canções cantadas durante as danças araweté, notadamente durante as festas de
cauim que se realizam várias vezes ao ano, são todas canções dos inimigos cantadas
originalmente por um matador.
As awin marakã (“música dos inimigos”, expressão com sentido tanto genitivo
como possessivo) são simples: quatro a oito versos repetidos dezenas de vezes, de
ritmo binário e linha melódica monótona. Elas são cantadas em um registro grave
por toda a comunidade masculina, em uníssono, após o matador ter proposto as
palavras. Cada inimigo morto pode dar várias canções a seu matador. Uma vez
enunciadas na dança que comemora o fim da reclusão de homicídio, os cantares de
inimigo caem no domínio público, podendo ser retomadas por qualquer homem que
se encontre na função de cantador de uma cauinagem.
A complexidade essencial dessas canções reside em seu regime enunciativo,
marcado pelo ponto de vista do inimigo. O sujeito da enunciação é sempre a vítima,
que pode estar falando em seu próprio nome, mas pode também estar citando a
palavra de terceiros. O estilo citacional típico das narrativas araweté atinge um
grande rendimento nos awin marakã, criando um jogo intrincado de identificações
entre os dois cantores, a vítima e seu matador. Vejamos, a título de exemplo, uma
canção atribuída a Yakati-ro, um homem araweté falecido em 1976, que lhe foi
ensinada por uma vítima do povo Parakanã:
1. “Estou morrendo”,
2. assim dizia o finado Moiwito;
3. assim falava minha presa,
4. assim falava o finado Koiarawï;
5. Em seu amplo pátio,
6. “Eeh!” – disse o Towaho,
7. “Eis meu prisioneiro,
8. no pátio do grande pássaro”.
O morto que diz estar morrendo – o finado Moiwito ou Koiarawï – é um homem
que tombara sob as flechas parakanã pouco antes da expedição retaliatória araweté,
quando o inimigo que fala nessa canção foi morto por Yakati-ro. Dessa forma, o
inimigo-cantor se põe a si mesmo, no verso n.º 3, como sendo o matador de
Moiwito, e cita o que diz sua vítima: “Estou morrendo”. Na segunda parte do canto,
marcada por uma mudança de andamento, o sujeito do enunciado muda. O verso
n.º 5 refere-se ao urubu, evocado no verso n.º 8 pelo circunlóquio “grande pássaro”. O
“pátio do grande pássaro” é uma metáfora macabra para a clareira aberta pelos
urubus na floresta, em torno do cadáver do inimigo morto – entenda-se, do cadáver
do homem parakanã que é o sujeito da enunciação desse canto, não de Moiwito. As
palavras da segunda parte do canto são atribuídas ao Towaho mencionado (pelo
inimigo) no verso n.º 6. Towaho é o nome de uma antiga tribo inimiga dos Araweté,
{8} que funciona como sinédoque para “inimigo” em muitas narrativas tradicionais.
Mas, no presente canto, o Towaho não é ninguém menos que o próprio Yakati-ro,
isto é, o matador araweté que está a cantar a canção ensinada pelo inimigo. Do
ponto de vista da vítima parakanã, seu matador é um Towaho, um Inimigo. Yakatiro, o matador-cantor, fala de si mesmo, falando as palavras de sua vítima, as quais
são uma citação do que ele estaria dizendo: o matador “repete” portanto suas
próprias palavras. Uma espécie de ecolalia enunciativa, ou um processo de
reverberação: um inimigo morto cita sua vítima araweté (verso n.º 1), e em seguida
cita seu próprio matador (versos n.º 5-8), tudo isso pela boca deste último, que cita
globalmente o que sua vítima está a dizer. Os que acabam por falar, ou ser citados,
são todos araweté: o morto Moiwito, o matador Yakati-ro, mas ambos do ponto de
vista de um terceiro, a vítima inimiga. E fica-se sem saber, diante dessa construção
em abismo: quem fala, em tal cantar? quem é o morto, quem o inimigo?
Veja-se outro exemplo, um tanto mais bucólico. Trata-se de um canto ensinado a
Kañiwïdin-no pelo espírito de um homem do povo Asuriní, por ele ferido no começo
dos anos 70:
1. “O falcão tata se rejubila”
2. – disse a cotinga [pousada] no pequeno arco;
3. “ele está alegre no galho de yocïn”,
4. – assim ouviu minha mulher;
5. “A taquarinha se desvia,
6. ela se desvia de nós;
7. ela se desvia de nosso caminho”
8. – assim conversava minha mulher.
Aqui o inimigo, que escapou com vida das flechas de Kañiwïdin-no, rejubila-se
por sua sorte. Ele cita o que disse ou ouviu sua esposa. A primeira parte do canto
evoca o falcãozinho tata saltitando alegre num galho da árvore yocïn; uma cotinga,
pousada no arco do cantor, é quem diz isso à esposa do inimigo. A segunda parte
comemora a má pontaria do cantor, cuja flecha (“taquarinha”) {9} desvia-se do
inimigo e sua mulher. Aqui também o inimigo cita sua esposa.
Ao transcrever este canto, o antropólogo obtemperou com seus interlocutores:
mas o inimigo asuriní fora flechado quando estava sozinho na floresta; quem,
portanto, seria esta minha mulher que fala? Explicaram-lhe: tratava-se de
Kañiwïdin-hi, ou seja, da esposa do guerreiro araweté; “minha mulher” designava a
esposa do cantor, mas quem estava dizendo “minha mulher” era o espírito do
inimigo. O canto é enunciado de seu ponto de vista: as flechas desviam-se dele. Mas o
regime enunciativo faz com que o cantador, referindo-se à própria esposa como
“minha esposa”, esteja na verdade citando palavras do inimigo. Vimos as precauções
que o matador deveria tomar quanto ao sexo, logo após o homicídio: sua esposa, de
fato, se torna uma esposa de inimigo.
O destino do guerreiro
A reverberação entre o matador e sua vítima está na origem da situação paradoxal
da dança guerreira, situação de maior coesão social e de máxima “efervescência
coletiva” na sociedade araweté, quando a comunidade masculina reúne-se em torno
do matador para, identificando-se a este, repetir palavras enunciadas por outrem.
Esse processo, como se pode imaginar, tem seu preço. A fusão entre o matador e o
inimigo pressupõe um devir-outro do primeiro: o espírito de sua vítima jamais o
deixa. Assim que mata seu inimigo, as armas do matador devem ser afastadas dele;
o espírito do morto, tomado de sentimentos de vingança, inspira-lhe um furor
homicida capaz de virá-lo contra os seus. Um guerreiro permanece exposto a esse
perigo durante muito tempo depois de seu feito. Ele é frequentemente presa de acessos
de raiva que devem ser apaziguados por suas amigas rituais (as esposas dos apihipihã, ver supra). Por vezes, precisa fugir para a floresta, pois o inimigo “empluma
sua cabeça” e lhe transtorna os sentidos. “Quando chega sobre o matador, o espírito
do inimigo transforma-o em um inimigo para nós”, diziam-me os Araweté. O
inimigo não pode se vingar do matador, já que é uma parte sua; assim, ele tenta
vingar-se sobre os concidadãos de seu duplo. Só muitos anos depois, ao que parece,
ele entra em quiescência e deixa o homicida em paz.
Os moropï’nã araweté são tidos por pessoas temperamentais, capazes de passar
às vias de fato quando irritados. Nisso eles se distinguem das pessoas marin-in me’e,
“inofensivas” (todos os não-matadores), que exibem, normalmente, um notável
autocontrole. A posição de matador não confere privilégios cerimoniais, e tem como
única marca visível a franja falhada, pois o espírito do inimigo faz cair os cabelos da
fronte do homicida. Mas essa é uma condição honrosa; os moropï’nã são admirados
e ligeiramente temidos. Os seis homens que tinham tal estatuto na sociedade araweté,
em 1991, estavam entre as poucas pessoas que jamais eram alvo da maledicência e
do sarcasmo tão apreciados pelos Araweté, e que não poupam sequer xamãs
reputados. O colapso demográfico causado pelo contato, em 1976, fez os Araweté
perderem em pouco tempo oito matadores, e isso é frequentemente lamentado.
Antigamente, “todos os homens eram matadores, sem exceção”. Declaração
certamente exagerada, mas que exprime, também com certeza, um ideal.
A diferença metafísica da pessoa do matador só se revela plenamente após a
morte. Ser devorado postumamente é o destino de todo indivíduo, macho ou fêmea,
xamã ou homem comum. Um único estatuto põe seu titular ao abrigo do
canibalismo divino: o de moropï’nã. O espírito de um matador sobe aos céus fundido
com o espírito de sua vítima. Lá, eles se transformam em um Iraparadï, um tipo de
entidade que os Maï temem e respeitam. Um Iraparadï, a alma de um matador
araweté acrescida de seu suplemento inimigo, não é devorado pelos deuses. Ele passa
diretamente ao banho de imortalidade, transformando-se em um ser incorruptível
sem passar pela prova da morte canibal. É possível, aliás, que o matador deixe de
passar pela prova da morte, pura e simplesmente. Diz-se de vários guerreiros da
antiguidade que eles não morreram, tendo subido aos céus em carne e osso. A ideia
às vezes se exprime de modo dogmático: “um matador não morre”.
Vimos que, ao matar um inimigo, o matador “morre”, e em seguida ressuscita
aqui mesmo na terra. Doravante, pode-se dizer, ele é imortal; eis por que não é
devorado ao chegar ao céu. Ele é em si mesmo um canibal (seu ventre está cheio do
sangue do inimigo); e ele já é um inimigo, uma fusão complexa de atributos bïde e
awin. Em suma: ele já é um Maï. O matador é um deus antecipado: ele encarna a
figura do Inimigo sendo ao mesmo tempo o Araweté ideal.
O consumo canibal dos mortos no céu é a condição de sua transformação em
seres imortais, dotados de um corpo glorioso e incorruptível. Mas, como o matador
é um outro – sendo um inimigo –, ele já sofreu sua apoteose. Na antiguidade
exemplar, os matadores subiam aos céus em seus corpos; hoje, o corpo enterrado de
um matador apodrece, como todos podem atestar; mas alguns me sugeriram que
seu cadáver não produz o espectro terrestre, maldoso e repugnante, que todo cadáver
emite. Disseram-me, alternativamente, que os moropï’nã mortos produzem, sim,
um espectro, mas que este é “inofensivo”, ao contrário do espectro das pessoas comuns
– que eram, ao contrário dos matadores, inofensivas quando vivas.
Enquanto transformação final da condição de matador, o conceito de Iraparadï se
mostra como sendo essencialmente uma perspectiva. Se os deuses canibais são, ao
mesmo tempo, o equivalente celeste dos Araweté e uma figuração do Inimigo, se eles
nos olham com olhos de inimigo e se nós os vemos como inimigos, a perspectiva do
Iraparadï mostra os Araweté vendo-se ativamente como inimigos. Essa capacidade
de se ver como Outro – ponto de vista que é, talvez, o ângulo ideal de visão de si
mesmo – parece-me a chave da antropofagia tupi-guarani. Enfim, se é verdade que
“o canibal é sempre o outro” (Clastres & Lizot 1978: 126), então o que é um
Iraparadï, senão o Outro dos Outros, um inimigo dos deuses que, por isso mesmo,
torna-se, como estes, um mestre do ponto de vista celeste?
O ideal de que, antigamente, todos os homens eram matadores traduz,
implicitamente, uma situação em que só as mulheres seriam devoradas pelos deuses.
{10} Ou melhor, ele sugere que a posição de “comida dos deuses” (Maï demïdo, epíteto
que descreve a condição humana) é feminina – que a condição de vivente humano é
feminina, portanto. O morto “típico” é assim uma mulher, como o imortal ideal é um
guerreiro. Ideal, mas paradoxal: um matador morto, um homem que só realiza
plenamente sua potência nessa dupla relação com a morte. Um matador morreu ao
matar seu inimigo, identifica-se a ele, e só aproveita efetivamente estas mortes
quando morre: confrontado com os deuses, não é tratado como um inimigo, porque
é um inimigo, e assim imediatamente um Maï.
No tempo em que convivi com os Araweté, a posição de matador era bem menos
importante e conspícua que a de peye, xamã. O lugar de cantador das festas de
cauim era vicariamente ocupado por qualquer adulto capaz de lembrar-se dos
cantos. Em troca, o exercício cotidiano do xamanismo cabia a homens que
dispunham do poder intransferível de manifestar a voz dos deuses.
Essa importância diferencial dos dois modos de ser masculinos pode ser
creditada, em parte, à paz vivida então pelos Araweté; mas creio que ela tem um
fundamento estrutural. Um xamã é um morto antecipado; em suas descrições das
viagens ao céu, sempre menciona que os deuses se referem a ele como “futura presa”.
Mas desempenha uma função vital e social: ele é um ser-para-o-grupo. O matador,
se é um deus antecipado, manifesta uma função mortal e individual: ele é um
serpara-si. O peye é o vivente por excelência, o representante dos viventes no céu, e o
canal de transmissão dos mortos celestes. Ele é um mediador; ubíquo mas sempre
distinto do que comunica, comunica o que está separado. Sua eficácia depende de ele
estar vivo, e trazer os mortos. Já o matador não representa ninguém, mas encarna o
inimigo, com quem se confunde; ele é o lugar de uma metamorfose complexa, que só
beneficia a si mesmo. É certo que o ideal de uma sociedade composta integralmente
de matadores está presente na cultura araweté, e terá sido duplamente vital em sua
história de tantas guerras. Mas, do ponto de vista da escatologia pessoal, um
moropï’nã é alguém que já passou para o outro lado, virado inimigo e virado
divindade. Por isso, se o xamã está para o morto como o matador para a divindade,
o primeiro está para os vivos como o segundo para os mortos. A sociedade seria
impossível sem o peye; mas a masculinidade seria impensável sem a figura do
moropï’nã.
Os Maï são ao mesmo tempo xamãs e matadores, vida e morte. São o arquétipo
do xamã, pois detêm a ciência da ressurreição; e são o arquétipo do matador, pois
são fusões ambivalentes de ego e inimigo, bïde e awin, que transformam os mortos
neles mesmos pela devoração, exatamente como o homicida transformava o
inimigo, transformando-se nele.
O ponto de vista do inimigo
Excetuando-se a natureza relativamente elaborada do jogo ventríloquo das canções
de inimigo, os materiais araweté sobre as relações entre o matador e sua vítima
surpreendem pela simplicidade, se comparados ao que se sabe sobre as ressonâncias
simbólicas e imaginárias da violência guerreira em outras sociedades da América
tropical. À parte as reais limitações de seu etnógrafo, é possível atribuir tal aparência
esquemática ao estilo geral desta sociedade, que, sobre pouco afeita a grandes
elaborações rituais, tem sido antes vítima que agressora frente às diversas sociedades
inimigas com que se defrontou nas últimas décadas. A valorização da condição de
matador entre os Araweté não significa que eles sejam particularmente belicosos, ou
particularmente eficazes como guerreiros.
É possível, também, que a predação ontológica do exterior como condição da
reprodução social, tema característico de muitas sociedades amazônicas, {11}
desempenhe um papel menos importante entre os Araweté que entre, digamos, os
Tupinambá, os Jívaro ou os Munduruku. Isso talvez se explique por um movimento
de translação que se pode observar na cosmologia araweté: os conteúdos simbólicos
que, em outras sociedades amazônicas, são veiculados pelo complexo guerreiro
encontram-se, no caso araweté, em grande parte deslocados para a relação entre os
deuses e os homens; o espaço e as funções da exterioridade foram apropriados pelos
Maï. Uma comparação com os Tupi quinhentistas reforça tal interpretação (Viveiros
de Castro 1992a; ver cap. 3 supra). A sociologia canibal dos Tupinambá, que
sustentava um sofisticado sistema ritual de captura, cativeiro, execução e devoração
de inimigos-cunhados, transforma-se, entre os Araweté, em uma “teologia” e uma
escatologia que, mesmo se sempre marcadas pela linguagem da afinidade e do
canibalismo, mostram um rendimento institucional inferior à sua riqueza ideológica.
Isso posto, talvez seja tal despojamento mesmo que nos permita abordar
diretamente certos elementos essenciais do duo matador-vítima na Amazônia
indígena.
Os materiais araweté manifestam a pregnância de um complexo simbólico muito
geral na Amazônia – e certamente encontrável alhures –, que tem como elementos
mínimos os traços seguintes:
[1] O estado de perigo místico em que cai o matador, contornado por precauções
que visam impedir fenômenos letais de “ricochete” causados direta ou indiretamente
pela vítima;
[2] Um comércio espiritual entre o matador e o inimigo morto e, ao mesmo
tempo, um paralelismo entre os processos ocorrentes no corpo do matador e no da
vítima;
[3] Um conjunto de ritos de homicídio concebidos como metabolização do
sangue do inimigo, com ênfase ora anabólica (digestão, sublimação em outras
substâncias corporais), ora catabólica (vômito, sangria);
[4] Um interdito de contato entre o matador e os despojos do inimigo, os quais
sofrem processos variados de socialização, isto é, de apropriação pela comunidade
do matador; em particular, ali onde se pratica o canibalismo efetivo, o matador
jamais pode comer de sua vítima;
[5] A abstinência sexual do matador durante a reclusão, usualmente associada a
outras restrições alimentares e de conduta, que evocam em alguns casos a prática da
couvade, e em outros uma analogia explícita com o resguardo menstrual;
[6] O incremento do capital ontológico do matador ao fim do resguardo,
expresso em uma relação de anexação de certos atributos metonímicos da vítima:
alma, nomes, cantos, troféus.
Deste complexo, comentem-se apenas alguns aspectos. Em primeiro lugar, tudo
parece se passar como se o aumento da potência espiritual do matador dependesse de
um período de sujeição prévia às influências corporais da vítima, ou aos poderes
espirituais desta enquanto inerentes a certas substâncias vitais, notadamente o sangue.
Os processos de elaboração do sangue inimigo devem ser portanto encarados sob
uma dupla perspectiva: se eles manifestam uma transformação do inimigo realizada
no matador, não são menos, por outro lado, uma transformação do matador levada
a cabo pela vítima. A ideia de que o moropï’nã morre após seu feito sugere uma
alienação do matador, sua captura pela imagem da vítima. {12} Recordo que as
reclusões de homicídio, particularmente quando funcionam como ritos de passagem,
facultando o acesso a estatutos valorizados (adulto em condições de casar, líder ritual,
chefe de guerra), fazem um uso abundante dos símbolos clássicos de morte e
ressurreição: liminaridade, silêncio, nudez, perda do nome. Nesse sentido, a morte da
vítima é efetivamente a morte do matador, e o renascimento deste não é menos um
renascimento daquela.
Em segundo lugar, as regras que impedem um comércio excessivo entre o
matador e sua presa humana são particularmente salientes nas sociedades que
praticavam o canibalismo efetivo; naquelas onde a decantação das vítimas em
troféus incomestíveis (cabeças reduzidas, dentes, escalpos) desempenhava um papel
maior, em contrapartida, não parece terem vigorado interditos de manipulação
destas partes pelo matador. {13} O interdito de manducação da vítima pelo matador
evoca imediatamente a difundida regra amazônica que impede um caçador de comer
sua própria presa. Essa regra é usualmente interpretada nos termos de uma injunção
de reciprocidade, que baniria o “autoconsumo” como análogo do incesto etc. Não há
dúvida que algo do mesmo tipo aplica-se às presas humanas; de resto, nas
sociedades adeptas da caça de cabeças, tais troféus deviam ser igualmente
socializados, isto é, deviam beneficiar toda a comunidade do matador, trazendo-lhe
abundância, fecundidade, proteção contra os inimigos, prestígio. O que merece
atenção aqui, entretanto, é menos a semelhança entre os tratamentos das presas
humanas e animais, por sujeitas a uma mesma lógica do dom, que as condições de
possibilidade de tal aproximação.
A evidente continuidade, técnica como simbólica, entre caça e guerra na
Amazônia foi, durante muito tempo, recalcada pelos antropólogos. Talvez porque
reconhecê-la implicaria imputar às culturas da região uma “animalização” dos
inimigos, quando não terminasse por explicar a guerra indígena em termos
etológicos mais que etnológicos. Mas tais consequências, inaceitáveis, não são
inevitáveis, se adotarmos um ponto de vista menos estranho às concepções indígenas.
A animalização do inimigo latente no complexo bélico-venatório depende de uma
primeira, e bem mais fundamental, humanização do animal. Para dizê-lo
rapidamente: na Amazônia indígena, as relações entre humanos e não-humanos,
“sociedade” e “natureza”, não são concebidas como relações naturais, mas como
relações elas mesmas sociais. {14} Guerra e caça são, literalmente, um mesmo
combate: um combate entre seres sociais, isto é, entre “sujeitos”. Nesse sentido, não há
descontinuidade entre a predação venatória e a predação bélica; a alienação ritual do
matador não é essencialmente diversa daquela perigosa identificação entre o caçador
e sua presa, que impõe uma disjunção na ordem do consumo, isto é, no momento de
objetivação da presa, que se acha vedado ao caçador. O caráter integralmente
subjetivo da relação entre predador e presa, humana ou animal, é a meu ver a
dimensão crucial do fenômeno, respondendo pela reversibilidade latente nesta
relação: a recíproca pressuposição, ou determinação, entre matador e vítima.
Por fim, as precauções rituais do matador, na medida em que são justificadas por
uma concepção do sangue como indutor ou signo de uma mudança de estatuto
metafísico, trazem à cena as mulheres. Muito já se escreveu sobre o papel essencial da
comunidade feminina nos rituais guerreiros e no canibalismo; as observações de
Lévi-Strauss (1984) a esse respeito têm sido amplamente verificadas para a
Amazônia. Por outro lado, a equivalência simbólica ou o encadeamento causal entre
condições masculinas associadas à imposição da morte e condições femininas
envolvidas na produção da vida (homicídio e menstruação, reclusão ritual e
gestação, guerra e casamento) é um tema que se encontra um pouco em toda parte,
da Amazônia à Polinésia, da Nova Guiné à Grécia antiga. Cabe apenas observar
que, pelo menos em alguns casos amazônicos, tais analogias sugerem um potencial
de feminização do matador, sua “fecundação” ou “possessão” pela vítima, condição
que deve ser ritualmente transmutada em um poder propriamente masculino de
criação. Elas sugerem ainda uma série de conexões entre a transformação ritual de
inimigos em vítimas, isto é, em identidades capturadas do exterior, e a geração de
filhos, isto é, a produção de novas identidades no interior do grupo. Isso nos leva ao
segundo ponto geral.
INTERIORIZAÇÃO E EXTERIORIZAÇÃO
Vimos uma progressão operando no caso araweté. Uma situação inicial
caracterizada por uma distância social máxima e uma distância física mínima – a
morte violenta de um inimigo – desencadeia uma catástrofe fusional que produz
uma identificação instável entre os polos, e sua resolução posterior na forma de um
englobamento metonímico da vítima pelo matador. Esse processo pode ser
encontrado, sob múltiplas variantes, em outras sociedades amazônicas. Nos
Araweté, a vítima torna-se um apêndice espiritual do moropï’nã, funcionando como
seu escudo ou emblema no ambiente canibal do céu. Em outras culturas – os Nivacle
são um bom exemplo (ver Sterpin 1993: 49-50) –, ela é concebida como um traidor,
um elemento estrangeiro que se bandeou para o grupo do homicida, mantendo-o
informado sobre os movimentos de seu próprio grupo. Ela funciona, aqui, como
uma espécie de xerimbabo ou animal de estimação, isto é, como uma subjetividade
exterior selvagem que foi domesticada e desviada de sua natureza original.
Os crânios-troféus dos Shipaya tinham a mesma função de “auto”-delatores
(Nimuendaju 1981: 23-24), assim como os espíritos dos Kayapó mortos pelos
Tapirapé, que se tornavam familiares dos xamãs, avisando-os dos ataques dos
Kayapó vivos (Wagley 1977: 184-85). Entre os Araweté, essa inversão do
comportamento da vítima verifica-se no caso do jaguar. O espírito de um jaguar
morto fica junto a seu matador, de quem se torna uma espécie de cão de caça:
dorme embaixo de sua rede, apontando-lhe em sonhos os sítios de caça
abundante. O canto tradicional que comemora a morte de um jaguar obedece à
mesma reverberação dos cantares de inimigo; o nome desse canto é “futura
vítima da onça”, e põe em cena um jaguar falando dos humanos que comerá.
Uma dupla inversão, lógica e temporal, de ponto de vista.
Em outros casos, a humanidade da vítima é radicalmente reciclada em novos
componentes do grupo. O matador wari’ metaboliza o sangue inimigo em sêmen,
vindo a gerar um filho que encarna o espírito da vítima, o que completa a
transmutação da exterioridade canibal e predatória em consubstancialidade, cuidado
paternal e comensalidade (Vilaça 1992: 101-15). Os ritos jívaro de celebração da
cabeça reduzida culminam na transformação desta em um filho genérico (mais
precisamente, um feto) das mulheres do grupo (Taylor 1994). As cabeças-troféus
munduruku, igualmente, eram concebidas como filhos de uma “mãe” masculina, o
matador. Os Munduruku ilustram ainda outro tema comum na região: a cabeça do
inimigo morto era preparada e decorada de modo a se tornar a imagem étnica de
um munduruku (Menget 1993a); isso evoca os Tupi quinhentistas, onde um cativo de
guerra era laboriosamente depilado, pintado e adornado à imagem de seus futuros
executores.
Temos, assim, um processo geral de assimilação da vítima à pessoa do matador
ou, mais geralmente, ao seu grupo. Tal assimilação parece depender, em certos casos,
do reconhecimento prévio da vítima como, de algum modo, semelhante a seus
agressores, e assim apenas os estrangeiros “à boa distância” são considerados como
presas legítimas – é o que sucede entre os Jívaro, que só tomavam cabeças de outros
subgrupos da mesma etnia (Taylor 1985). Mas ela pode também produzir tal
semelhança a posteriori, como nos casos tupinambá e munduruku, em que o
inimigo era “nacionalizado” antes de ser ritualmente elaborado. Esta combinação de
uma diferença e uma semelhança igualmente necessárias cristaliza-se,
frequentemente, na identificação dos inimigos a afins: os cunhados-inimigos
tupinambá (H. Clastres 1972) são apenas o exemplo mais célebre de uma
configuração ameríndia muito geral, em que a tensão característica da afinidade –
relação que tem a semelhança como base e a diferença como princípio – é utilizada
para pensar a categoria do inimigo e reciprocamente, isto é, onde os valores da
exterioridade predatória formam o subtexto da aliança matrimonial.
Todas essas ideias, vale observar, pressupõem a humanidade integral do inimigo.
Isto significa dizer que a relação entre matador e vítima só pode acarretar aquelas
identificações místicas e fusões rituais se for imediatamente apreendida como relação
social. Por outro lado, porém, a definição ou produção ritual do inimigo como
sujeito, o processo de subjetivação do outro necessário à sua assimilação pelo
mesmo, contém em si, eu diria mesmo como sua condição, o momento inverso: a
objetivação do matador, sua alteração pela vítima – sua identificação ao inimigo
como inimigo. Vimos isto na reverberação dos cantos de guerra araweté, onde o
matador apreende-se como sujeito a partir do momento em que vê a si mesmo pelos
olhos de sua vítima, ou antes, em que diz sua própria singularidade pela boca desta
última. Podemos vê-lo alhures; a poética da alteridade dos Araweté encontra eco na
estética da exterioridade dos Wayana: ao partirem em expedição de guerra, os
homens wayana devem escarificar-se com padrões decorativos representando
jaguares e aves de rapina – figuras que encarnam os impulsos predatórios
característicos dos inimigos (Van Velthem 1995: 254-55). E já havíamos visto algo
semelhante na decoração corporal dos Maï.
Tudo parece militar, em suma, em favor de uma “impressionante indistinção
entre o agressor e a vítima, em favor de uma espécie de essência da guerra”, como tão
bem diz Menget (1993b: 29) a propósito dos Ikpeng. A interiorização do Outro é
inseparável da exteriorização do Eu; o domesticar-se daquele é consubstancial ao
“enselvajar-se” deste.
Resta perguntar: o que exatamente é assimilado, quando se assimila o inimigo?
Os etnógrafos da Amazônia mencionam recursos simbólicos muito variados, que
estão longe, aliás, de serem mutuamente exclusivos em cada configuração cultural:
nomes, cantos, substâncias espirituais, energias vitais, identidades, rostos, princípios
de individuação, e assim por diante. Sem poder retomar aqui uma argumentação já
desenvolvida a propósito do canibalismo tupinambá (Viveiros de Castro 1992a),
limito-me a repetir suas conclusões, que seguem de perto a lição dos cantares de
inimigo araweté.
Para além das substâncias ou princípios mais ou menos reificados que cada
sociedade (ou cada etnógrafo) escolhe como substrato e objeto dos processos de
assimilação do inimigo, penso que o que está em jogo é, em última análise, a
incorporação de algo eminentemente incorporal: a posição mesma de inimigo. O que
se assimila da vítima são os signos de sua alteridade, e o que se visa é essa alteridade
como ponto de vista ou perspectiva sobre o Eu – uma relação. Mas, se o que se
devora, real ou imaginariamente, da pessoa do inimigo é sua relação ao grupo
agressor, isso significa também que o socius se constitui precisamente na interface
com seu exterior, ou, em outras palavras, que ele se põe como essencialmente
determinado pela exterioridade. Ao escolher como princípio de movimento a
incorporação de predicados provenientes do inimigo, a socialidade ameríndia não
pode terminar senão definindo-se por esses mesmos predicados. Como não chegar a
esta conclusão, quando se vê que o protagonista dos momentos ritualmente mais
elaborados, e ideologicamente mais densos, destas sociedades é a unidade bifronte do
matador e sua vítima, que se espelham e reverberam ao infinito?
O PONTO DE FUSÃO
Se é verdade que “o ponto de vista cria o objeto”, não é menos verdade que o ponto de
vista cria o sujeito, pois a função de sujeito define-se precisamente pela faculdade de
ocupar um ponto de vista. Nesse sentido, a assimilação predatória de propriedades
da vítima, no caso amazônico, deve ser compreendida não tanto nos termos de uma
física das substâncias como nos de uma geometria das relações, isto é, enquanto
movimento de preensão perspectiva, onde as transformações resultantes da agressão
guerreira incidem sobre posições determinadas como pontos de vista.
Ao propor que a dinâmica identitária do par matador-vítima é um processo de
ocupação do ponto de vista inimigo, estou buscando discernir a peculiaridade das
ideias ameríndias sobre a “guerra”. Longe de implicar um tratamento do inimigo
como coisa (sistema material, corpo anônimo, autômato animal), o devir do par
matador-vítima envolve um confronto de sujeitos – não, certamente, ao modo
hegeliano de um combate de consciências, até porque nesta dialética só há Mestres –,
que trocam pontos de vista e que alternam momentos de subjetivação e objetivação.
Objetivação do matador pela subjetividade da vítima, quando esta o possui, controla
e “mata”; subjetivação do matador pela objetividade da vítima, quando esta se
decanta em cantos, nomes, troféus e outras sinédoques que assinalam a nova
condição ontológica do matador.
Pode-se, assim, dizer da violência guerreira amazônia o que Simon Harrison
disse de seu análogo melanésio:
A agressão é concebida integralmente como um ato comunicativo dirigido contra a
subjetividade de outrem; e guerrear requeria a redução do inimigo não ao estatuto
de uma não-pessoa ou de uma coisa, mas, muito ao contrário, a um estado de
extrema subjetividade (1993: 121).
O que o leva a concluir que a inimizade, nesse tipo de sociedade, “é conceitualizada
não como uma mera ausência objetiva de relações sociais, mas como uma relação
social tão definida como qualquer outra” (id. ibid.: 128). {15} O autor prossegue:
Assim como um dom corporifica a identidade de seu doador, assim também, na
guerra das terras baixas da Nova Guiné, o matador adquire, mediante o
homicídio, um aspecto da identidade de sua vítima. O homicídio é representado ora
como criando, ora como exprimindo uma relação social, ora, ainda, como
produzindo a involução [collapse] de uma relação social, ao fundir duas
alteridades sociais em um só ser (id. ibid.: 130).
A relação entre o matador e sua vítima, quintessência da “luta dos homens”, pertence
indubitavelmente ao “mundo do dom” (Lefort 1978). Mas, como se depreende da
passagem acima, ela ocupa uma posição-limite nesse mundo. Se a síntese a priori do
dom liga sujeitos que permanecem objetivamente separados, a imposição da morte
violenta e sua lógica canibal produzem, ao contrário, uma síntese onde toda distância
se anula. A relação é criada precisamente pela supressão de um de seus termos, que é
introjetado pelo outro; a dependência recíproca que liga e constitui os sujeitos da troca
atinge aqui seu ponto de fusão – a fusão dos pontos de vista –, onde a distância
extensiva e extrínseca entre as partes converte-se em diferença intensiva, imanente a
uma singularidade dividida. A relação de predação constitui-se em modo de
subjetivação.
Evocando um célebre conceito batesoniano, poderíamos chamar esse processo de
anticismogênese, pois ele parece jogar menos com uma diferenciação das perspectivas
dos protagonistas da “tragédia canibal” (Combès 1992) que com um movimento de
aproximação fusional e de imanentização da diferença. {16} Em lugar de aparecer
como termo de uma estrutura que se desdobra ou explica em polos opostos, ego e
inimigo, essa entidade “monopolar” que é o matador constitui-se por involução ou
implicação, determinando-se como foco virtual de uma condensação predicativa
onde a dupla negação – eu sou inimigo de meu inimigo – não restitui uma
identidade que já estaria lá como princípio e finalidade, mas, ao contrário, reafirma
a diferença e a faz imanente – eu tenho um inimigo, e por isso o sou. Ou o Eu o é.
A agressão guerreira ameríndia revela-se então um processo de “transformação
ritual do Eu”, para emprestarmos de Simon Harrison sua profunda definição da
guerra melanésia. Ela nos conduz ao outro lado do pensamento selvagem, à face
oculta da lua estruturalista: antes que ao totemismo, ao simbolismo e à metáfora, ela
remete ao sacrifício, ao animismo e à metonímia. Se a razão totêmica (se toda razão
não o é) opera através da articulação reversível entre séries que permanecem distintas
das relações a ligarem-nas, as figuras sacrificiais, tal essa do devir matador-vítima,
visam ao contrário a transformação de uma série em outra, operação “absoluta ou
extrema” (Lévi-Strauss 1962b: 298) que se move no elemento sombrio da
continuidade, da indiscernibilidade e da irreversibilidade. O matador e sua vítima
parecem estar, em suma, antes du côté de chez Lévy-Bruhl que du côté de chez LéviStrauss. Não se deve esquecer, porém, que, exatamente como Méséglise e
Guermantes, há mais de um caminho a ligar esses dois destinos. Mesmo porque,
como o demonstrou sua fusão final, eles nunca estiveram tão distantes um do outro
quanto imaginava o ponto de vista – inevitavelmente subjetivo – do Narrador.
1. Este trabalho foi originalmente apresentado no seminário do grupo de pesquisa
“Anthropologie Comparée du Champ Réligieux” dirigido por Marcel Detienne, na
Ecole Pratique de Hautes Etudes, em maio de 1992. Ele resume, outrossim, três
conferências feitas na Maison Suger, no mesmo mês e ano, sob o patrocínio do
projeto “Nouvelles approches de la tradition: représentation et communication des
connaissances culturelles”, do Laboratoire d’Anthropologie Sociale (Collège de France)
e do Laboratoire d’Ethnologie et de Sociologie Comparative (Nanterre). Agradeço a
Marcel Detienne, Carlo Severi, Michael Houseman e Pascal Boyer pelos convites e
pelos debates.
2. Cf. Viveiros de Castro 1992a.
3. Há dezenas de raças ou espécies divinas, com nomes e atributos próprios. O sufixo
modificador -hete indica a prototipia e autenticidade do referente do conceito
modificado, servindo ainda como marcador de ênfase ou de ipseidade.
4. Como é o caso de tantas outras línguas, o vocabulário araweté da manducação
aplica-se também ao comércio carnal.
5. Maï é um cognato de Maira, o nome muito difundido entre os Tupi para os
demiurgos ou heróis culturais que se afastaram dos homens no começo dos tempos.
6. A palavra wi corresponde ao português “sangue” e, aplicada especificamente à
carne, ao “cru”. Recordo que um dos epítetos de Dionísio era exatamente este: ōmēstés
ou ōmádios, “comedor de carne crua” (Detienne 1977: 150).
7. Cf. cap.7 infra.
8. Provável contração de *towã oho, “inimigo monstruoso (grande)”. *Towã, que não
existe em araweté como lexema autônomo, seria talvez um cognato da forma tupiguarani mais comum para “inimigo”, tovajar ou towayat (cf. tupinambá tovajara,
inimigo e cunhado).
9. Epíteto irônico, pois a ponta das flechas araweté é uma respeitável lâmina de
taquaruçu de até 60 cm de comprimento, muito maior que a das flechas asuriní.
10. As almas de crianças tampouco são devoradas pelos Maï. Seu “corpo” é esfregado
com o sumo de uma fruta que lhes regenera a pele (o banho da imortalidade em que
são submersos os despojos dos mortos adultos é igualmente dito “banho da troca de
pele”) e as transforma magicamente em jovens adultos.
11. Cf. cap. 2 supra.
12. Compare-se, p. ex., o apodrecimento do matador araweté e sua digestão do
sangue inimigo ao canibalismo do matador yanomami, que vomita a gordura e os
cabelos da vítima, sinal de que lhe comeu a alma, e a sua possessão pelo princípio
vital desta, que o atormenta e enlouquece de um modo análogo à obsessão do
matador araweté pelo espírito inimigo (Lizot 1976: 13, 228; Albert 1985: 360 e ss).
13. Para o primeiro caso, cf. Viveiros de Castro (1992a: 282 e ss) sobre os
Tupinambá, e Vilaça (1992: 101-15) sobre os Wari’. Para o segundo caso, cf. Taylor
(1994) sobre os Jívaro, Menget (1993) sobre os Munduruku e Sterpin (1993) sobre
os Nivacle.
14. Para esta ideia, cf. Viveiros de Castro 1992c, e sobretudo Descola 1993. O tema é
retomado no cap. 7 infra.
15. Observação que recorda imediatamente a passagem de Lévi-Strauss sobre a
impossibilidade, “pour les indigènes“, de se conceber uma ausência de relação (1967a:
552-53; cf. pp. 164-65 supra).
16. A ideia de um processo anticismogenético foi-me inspirada pela releitura do
naven iatmul empreendida no notável estudo de Houseman & Severi (1994).
CAPÍTULO 5
O conceito de sociedade em antropologia
Os dois sentidos{1}
Em sentido geral, a sociedade é uma condição universal da vida humana. Essa
universalidade admite uma interpretação biológica (instintual) e outra simbólicomoral (institucional). Por um lado, a sociedade pode ser vista como um atributo
básico, mas não exclusivo, da natureza humana: somos geneticamente predispostos
à vida social; a ontogênese somática e comportamental dos humanos depende da
interação com seus semelhantes; a filogênese de nossa espécie é paralela ao
desenvolvimento da linguagem e do trabalho, capacidades sociais indispensáveis à
satisfação das necessidades do organismo. Por outro lado, a sociedade pode ser vista
como dimensão constitutiva e exclusiva da natureza humana (Ingold 1994),
definindo-se por seu caráter normativo: o comportamento humano torna-se agência
social ao se fundar menos em regulações instintivas selecionadas pela evolução que
em regras de origem extrassomática historicamente sedimentadas. A noção de
“regra” pode ser tomada em sentido moral e prescritivo-regulativo (como no
estrutural-funcionalismo) ou cognitivo e descritivo-constitutivo (como no
estruturalismo e na antropologia simbólica); apesar dessa importante diferença, em
ambos os casos a ênfase nas regras exprime o caráter instituído dos princípios da
ação e da organização sociais. Os conteúdos normativos da sociedade humana,
sendo realidades institucionais, variam no tempo e no espaço, mas a existência de
regras é um invariante formal (Lévi-Strauss 1967a; Fortes 1983); como tal, ele seria
a característica distintiva da condição social, que deixa aqui de ser um dos atributos
do Homo sapiens para definir a Humanidade como entidade singular, composta não
mais de indivíduos, mas de sujeitos que são simultaneamente criadores e criaturas do
mundo das regras.
Em sentido particular, (uma) sociedade é uma designação aplicável a um grupo
humano com algumas das seguintes propriedades: territorialidade; recrutamento
principalmente por reprodução sexual de seus membros; organização institucional
relativamente autossuficiente e capaz de persistir para além do período de vida de um
indivíduo; distintividade cultural.
Aqui a noção pode ter como referentes principais o componente populacional, o
componente institucional-relacional ou o componente cultural-ideacional do grupo
(Firth 1951). No primeiro caso, o termo é usado como sinônimo de “(um) povo”
visto como um tipo específico de humanidade. No segundo, em que é equivalente a
“sistema” ou “organização” social, ele destaca o quadro sociopolítico da coletividade:
sua morfologia (composição, distribuição e relações dos subgrupos da sociedade
enquanto grupo máximo), o corpo de normas jurais (noções de autoridade e
cidadania, regulação do conflito, sistemas de status e papéis) e as configurações
características das relações sociais (relações de poder, formas de cooperação, modos
de intercâmbio). No terceiro caso – em que “sociedade” é frequentemente substituída
por “cultura” – visam-se os conteúdos afetivos e cognitivos da vida do grupo: o
conjunto de disposições e capacidades inculcadas em seus membros através de meios
simbólicos variados, bem como os conceitos e práticas que conferem ordem,
significação e valor à totalidade do existente.
Uma das formas de administrar a relação entre os dois sentidos de “sociedade” foi
pela divisão da antropologia em um aspecto etnográfico ou descritivo-interpretativo,
voltado para a análise do particular e privilegiando as diferenças entre as sociedades,
e um aspecto teórico ou comparativo-explicativo, que procura formular proposições
sintéticas válidas para toda sociedade humana. Apesar das tentativas de defini-los
como etapas metodologicamente complementares, a tendência histórica tem sido a de
uma polarização epistemológica entre “etnografia” e “teoria”. A perspectiva
universalista predominou na fase formativa da antropologia, com a ênfase no
método comparativo e na definição de grandes tipos de sociedade; em seguida, o
culturalismo e o funcionalismo marcaram o período áureo do método etnográfico,
usado polemicamente para a demolição de tipologias especulativas (Boas) ou como
via de acesso direto ao universal (Malinowski); os estruturalismos de RadcliffeBrown e Lévi-Strauss e os neo-evolucionismos americanos (L. White, J. Steward),
por sua vez, voltaram a visar a comparação e a generalização.
A partir dos anos 60, essa divergência se aprofunda. De um lado, o interesse pelo
significado e a interpretação repôs a etnografia como dimensão privilegiada,
valorizando o ponto de vista dos agentes e buscando nas diferentes “etnoconcepções”
de sociedade uma perspectiva que relativize criticamente os conceitos do observador.
A sociedade em sentido geral subordina-se à sociedade em sentido particular ou
plural. Mais que isso, na medida em que as concepções culturalmente específicas de
sociedade desafiam a atribuição de um valor referencial fixo a essa noção, ela passa
a ser apreensível apenas através da(s) cultura(s), e, no limite, a existir meramente
como um de seus conteúdos. De outro lado, os desenvolvimentos da sociobiologia,
da psicologia cognitiva e da ecologia cultural têm conduzido a hipóteses ambiciosas
sobre a socialidade enquanto propriedade genética da espécie, propondo universais
comportamentais e cognitivos (e remetendo eventualmente a diversidade fenotípica
do etograma humano a variáveis extrínsecas, como o ambiente). Tal polarização
entre interpretações culturalistas e explicações naturalistas terminou por esvaziar o
conceito de sociedade, que se viu assim reduzido ou à representação particular, ou ao
comportamento universal.
As duas concepções
O pensamento ocidental oscila entre duas imagens de sociedade, opostas e
combinadas de modo historicamente variável, onde se fundem os sentidos particular
e geral da noção. Podemos chamá-las, com Dumont (1965), de societas e
universitas, ou, usando a distinção popularizada por esse mesmo autor, de concepções
“individualista” e “holista” do social. A primeira se funda na ideia de contrato entre
átomos individuais ontologicamente independentes: a sociedade é um artifício
resultante da adesão consensual dos indivíduos, guiados racionalmente pelo interesse,
a um conjunto de normas convencionais; a vida social está em descontinuidade
radical com um estado de natureza, que ela nega e transcende. De inspiração
universalista e formalista, esta concepção tem como modelo metafórico (e
geralmente causa final) o Estado constitucional e territorial, e, como problema típico,
os fundamentos da ordem política. A segunda se funda na ideia de um todo orgânico
preexistente empírica ou moralmente a seus membros, que dele emanam e retiram
sua substância: a sociedade é uma unidade corporada orientada por um valor
transcendente; ela é um universal concreto onde a natureza humana se realiza. De
inspiração particularista e substantivista, seu modelo metafórico (e às vezes causa
eficiente) é o parentesco como princípio natural de constituição de pessoas morais
coletivas, e seu problema típico é o da integração cultural de um povo enquanto
Nação. As grandes imagens modernas para essas concepções são respectivamente o
contrato (ou seu negativo, o conflito) e o organismo, que atravessaram a
antropologia do século XX sob avatares múltiplos, dentre os quais um dos mais
conspícuos foi o contraste entre “teorias da ação” e “teorias da estrutura” (Giddens
1979, 1984; Verdon 1991).
A universitas está associada a um horizonte pré-moderno dominado pelo
pensamento de Aristóteles; a societas, aos teóricos do jusnaturalismo, de Hobbes a
Hegel (Bobbio 1993). Mas deve-se recordar que a Antiguidade conheceu sociologias
artificialistas com os sofistas e Antístenes, e que o nominalismo medieval preparou o
terreno para as teorias modernas do contrato. Por sua vez, o modelo holista e
organicista da universitas ressurgiu na reação romântica ao Iluminismo,
desempenhando um papel fundamental no desenvolvimento da imagem
antropológica de (uma) sociedade como uma comunidade étnica de origem que
partilha um mundo de significados tradicionais legitimados pela religião. De outro
lado, boa parte da antropologia vitoriana e sua descendência pode ser vista como
herdeira tardia do Iluminismo (Stocking 1987).
Uma das manifestações da polaridade societas/universitas é a concorrência entre
“sociedade” e “cultura” como rótulos englobantes para o objeto da antropologia, que
opôs as duas tradições teóricas dominantes entre 1920 e 1960. A noção de sociedade,
característica da “antropologia social” britânica, deriva da sociedade civil dos
jusnaturalistas, do racionalismo francês e escocês do século XVIII e, mais
proximamente, das sociologias de Comte, Spencer e Durkheim. A noção de cultura,
emblema da “antropologia cultural” americana, deita suas raízes no Romantismo
alemão, nas escolas histórico-etnológicas da primeira metade do século XIX, e
diretamente na obra de Boas. Isso não significa que se possam derivar univocamente
a antropologia social do individualismo da societas e a antropologia cultural do
holismo da universitas. Sob certos aspectos, as coisas se passam ao inverso. Maine
ou Durkheim, por exemplo, ao mesmo tempo em que assimilaram os esquemas
progressistas do século XVIII, reagiram ao artificialismo e utilitarismo a eles
associados, em nome de concepções essencialistas e organicistas que irão inspirar a
antropologia de Radcliffe-Brown e seguidores. De seu lado, Boas, embora herdeiro
do idealismo e do historicismo alemães, entreterá uma concepção nominalista da
cultura, concebendo o indivíduo como único locus real da integração cultural. Mas
não há dúvida que se encontram marcas do utilitarismo racionalista em várias
tendências da antropologia social, particularmente no funcionalismo de Malinowski
ou Leach e no componente spenceriano do pensamento de Radcliffe-Brown; é
igualmente claro que as preocupações “configuracionais” de antropólogos americanos
como Kroeber, Benedict ou Geertz derivam do paradigma romântico da sociedade
como organismo espiritual.
As duas antinomias
“Sociedade” e “cultura” vieram ainda dividir o campo estruturado pela oposição
jusnaturalista entre “(estado de) natureza” e “sociedade (civil)”, com a diferenciação
das duas antinomias centrais das ciências humanas: natureza/cultura e
indivíduo/sociedade. Ambas conotam o mesmo dilema teórico, o de decidir se as
relações entre os termos opostos são de continuidade (solução reducionista) ou de
descontinuidade (solução autonomista ou emergente). A cultura é um prolongamento
da natureza humana, exaustivamente analisável em termos da biologia da espécie,
ou ela é uma ordem suprabiológica que ultrapassa dialeticamente seu substrato
orgânico? A sociedade é a soma das interações e representações dos indivíduos que a
compõem, ou ela é sua condição supraindividual, e como tal um “nível” específico da
realidade?
Os cruzamentos entre as duas polaridades são complexos, pois sobre serem
frequentemente subsumidas uma na outra, com “sociedade” ou “cultura” opondo-se a
“indivíduo” e “natureza”, as duas últimas noções são vastamente polissêmicas.
“Indivíduo” possui no mínimo um sentido empírico universal (os exemplares
individuais da espécie, o componente humano de qualquer sociedade) e um sentido
cultural particular (o Indivíduo como valor último, origem e finalidade das
instituições sociais). “Natureza”, por sua vez, pode significar o mundo físico-material
em oposição às suas representações simbólico-conceituais, o domínio dos fatos versus
o domínio dos valores, o componente inato ou constante do comportamento humano
em oposição a seu componente adquirido ou variável, o espontâneo e necessário
versus o artificial e convencional, a animalidade em oposição à humanidade, e assim
por diante.
A ideia de que o social-cultural está “acima” do individual e/ou natural aparece
em todos os autores que definiram as grandes orientações da antropologia, mas com
diferenças importantes (Ingold 1986). Spencer concebe a sociedade como resultado
da associação interativa de indivíduos, e como instrumento dos fins destes últimos;
ela constitui uma esfera supraindividual, mas não suprabiológica, da realidade. A
sociedade é um fenômeno natural (que não distingue os homens de outros animais),
sendo a fase superorgânica de um processo evolutivo universal que engloba as esferas
inorgânica e orgânica. Durkheim situa-se no extremo oposto, vendo a sociedade
como um fenômeno exclusivamente humano, uma realidade supraindividual e
suprabiológica sui generis, de natureza moral e simbólica. Ela é uma totalidade
irredutível às suas partes, dotada de finalidade própria, uma consciência coletiva
superior e exterior às consciências individuais, produzida pela fusão destas últimas.
Com Boas, enfim, a antinomia recebe uma terceira solução: a cultura é uma
realidade extrassomática de tipo ideacional, mas não constitui um domínio
ontológico distinto; existindo nas mentes individuais, ela é individual e
suprabiológica, uma entidade nominal (semelhante à espécie darwiniana) redutível
aos comportamentos adquiridos; e a sociedade é o instrumento de transmissão da
cultura entre os indivíduos.
As teorias antropológicas posteriores exibem combinações desses três
paradigmas. A teoria da cultura de Kroeber, por exemplo, oscilou entre posições
boasianas e durkheimianas, enquanto seu conceito de sociedade é de tipo spenceriano.
Em geral, a antropologia americana tendeu a se concentrar no par cultura/natureza,
tomando o segundo conceito ora no sentido de natureza humana – analisando então
a padronização afetiva e cognitiva dos indivíduos pela cultura, ou ao contrário
buscando estabelecer constantes psicológicas transculturais –, ora no sentido de
natureza não-humana, como no caso das tendências ditas materialistas, que
concebem a cultura como instrumento e resultado de um processo de adaptação ao
ambiente.
A antropologia social britânica, em troca, orientou seu eixo problemático pela
polaridade indivíduo/sociedade e pelos conceitos (herdados do organicismo) que a
exprimiam: “estrutura” e “função”. Para Malinowski, o conceito de função referia-se ao
papel desempenhado pelas instituições sociais na satisfação das necessidades básicas
dos organismos individuais. Para Radcliffe-Brown, ele designava a contribuição
destas instituições na manutenção das condições de existência do organismo coletivo,
definição que responde ao problema central da teoria estrutural-funcionalista, o dos
fundamentos e modos de permanência de uma dada forma social. Sob o nome de
“reprodução”, tal problema não foi menos central para o marxismo antropológico
difundido a partir dos anos 70, o qual pode assim ser considerado como uma
variante tardia do estrutural-funcionalismo.
Radcliffe-Brown avançou tanto definições natural-interativas como moralregulativas do conceito de estrutura social, hesitando entre a imagem de uma rede de
relações interindividuais e a de um arranjo normativo de relações intergrupos. A
imagem preponderante, entretanto, foi a da estrutura como codex “jural” que aloca
personalidades sociais a indivíduos ou coletividades, definindo sua posição relativa
em termos de direitos e deveres. Essa concepção, aprofundada sobretudo por Fortes,
conheceu sua época de hegemonia. Mas a orientação individualista e utilitarista, que
teve em Malinowski seu grande campeão antropológico, começou a voltar ao
primeiro plano com a reação de Leach ao estrutural-funcionalismo, e em seguida
floresceu em diversas alternativas transacionalistas ao paradigma durkheimiano,
todas insistindo na diferença entre código normativo e organização empírica, a
sociedade oficial e a sociedade real, e privilegiando as “estratégias” ou o “processo”
contra as “normas” ou a “estrutura”, a “ação” contra a “representação” e o “poder”
contra a “ordem”. Estes contrários conceituais manifestam o dilema clássico da
antropologia britânica, a disjunção entre as “normas” e a “prática”, que por sua vez
traduz a persistência da antinomia sociedade/ indivíduo nesta tradição teórica.
Lévi-Strauss, por seu lado, herdou dos boasianos a questão da relação entre
universais psicológicos e determinismos culturais, o interesse pela dimensão
inconsciente dos fenômenos sociais, e a linguagem da oposição natureza/cultura. Mas
seu tratamento desta última oposição evoca as tentativas clássicas de fornecer uma
gênese ideal da sociedade a partir do estado de natureza, e sua “cultura” guarda
muitas analogias com a noção de sociedade civil. Ao definir a proibição do incesto e
a troca matrimonial como condição transcendental da socialidade humana, o autor
concebe a passagem entre as ordens da natureza e da cultura em termos
sociopolíticos diretamente inspirados na teoria da reciprocidade de Mauss – teoria
que já foi lida como resposta alternativa ao problema hobbesiano da emergência da
ordem social a partir do estado natural de guerra, com o Dom e a troca postos como
o análogo primitivo do Estado e do contrato (Sahlins 1972). Mas Lévi-Strauss irá
também se reclamar de Boas e de Saussure para explorar um novo modelo
analógico para os fenômenos socioculturais, a linguagem. Ao contrapor à tese
durkheimiana sobre as origens sociais do simbolismo o tema dos fundamentos
simbólicos do social, ele vai derivar tanto a cultura como a sociedade do mesmo
substrato, o “inconsciente”, lugar onde se anulariam as antinomias natureza/cultura e
indivíduo/sociedade.
O modelo da linguagem subjaz à concepção lévi-straussiana de estrutura como
código, isto é, como um sistema de signos dotados de valores posicionais. O
problema organicista da função dá aqui lugar ao problema semiótico do sentido,
deslocamento que, entre outras coisas, responde pela pouca importância concedida
pelo estruturalismo à noção de estrutura social. Após seu livro sobre o parentesco,
onde ainda se acham empregos de “estrutura” próximos aos significados
morfológicos tradicionais, Lévi-Strauss concentrou-se em complexos classificatórios
e mitológicos, isto é, em estruturas mais propriamente “culturais”. Ao proclamar, em
uma página famosa, que a etnologia era uma psicologia, o antropólogo francês
terminou de dissolver a distinção entre sociedade e cultura; com isso, o estruturalismo
contribuiu indiretamente para a dominância atual do conceito de cultura sobre o de
sociedade na cena antropológica. Essa mesma ênfase nos aspectos taxonômicos e
cognitivos da vida social tem sido apontada, nas avaliações contemporâneas, como
sintoma de uma das limitações maiores do estruturalismo: sua dificuldade em dar
conta da passagem entre significação e ação, as ordens concebidas e as ordens
vividas, a estrutura e a história. Esse diagnóstico levou a antropologia
contemporânea a experimentar uma variedade de novas abordagens, em geral
adjetivadas de “fenomenológicas”.
As duas sociedades
Os problemas associados à noção de sociedade em sentido particular dizem respeito,
principalmente, ao estabelecimento de tipos históricos e morfológicos e aos princípios
de relação entre eles.
A distinção entre tipos sociais tem uma longa história intelectual. Um esquema
especialmente pregnante foi a tripartição iluminista entre povos selvagens, bárbaros e
civilizados. De caráter inicialmente mais geográfico que histórico (em Montesquieu,
por exemplo), ela foi temporalizada por pensadores como Turgot, Adam Smith,
Ferguson e Condorcet, gerando ainda a lei dos três estágios de Comte, de grande
importância para as teorias vitorianas da religião (Stocking 1987). Esse esquema
ganhou cidadania antropológica plena com a divisão de Morgan em sociedades de
caçadores-coletores (selvageria), sociedades agrícolas (barbarismo) e sociedades
industriais ou complexas (civilização), que foi incorporada pelo pensamento
marxista e desenvolvida pelas teorias neo-evolucionistas (Earle 1994). As tipologias
tripartites são em geral continuístas e nomotéticas, buscando princípios e
mecanismos de passagem de um estado a outro.
O esquema de maior produtividade no pensamento ocidental, entretanto, foi o
dicotômico, que se presta melhor a descontinuidades fortes. Traduzindo a polaridade
conceitual entre universitas e societas em termos de uma oposição real, as dicotomias
tipológicas destacam aspectos variados de um contraste em última análise redutível a
“Nós” versus os “Outros”, constituindo o núcleo de teorias do Grande Divisor que
singularizam o Ocidente moderno frente às demais sociedades humanas. Entre as
dicotomias mais famosas – todas contendo alguma referência aos pares
primitivo/civilizado ou tradicional/moderno – podemos enumerar:
parentesco/território (Morgan); status/contrato (Maine); solidariedade
mecânica/orgânica (Durkheim); comunidade/sociedade (Tönnies); sociedades
simples/complexas (Spencer); dom/mercadoria ou dom/contrato (Mauss);
tradicional/racional (Weber); holismo/individualismo (Dumont); história
fria/quente, pensamento selvagem/domesticado (Lévi-Strauss).
Essas dicotomias evocam certos valores da oposição natureza/ cultura, com o
primeiro termo de cada uma delas representando um estado mais natural (em
vários sentidos do termo). Evocam também valores da oposição
indivíduo/sociedade, mas aqui a polaridade se inverte, pois os primeiros termos
denotam formas sociais onde prevalece o grupo como unidade básica, enquanto os
segundos denotam uma forma social onde o indivíduo ganha preeminência. Por fim,
elas ecoam a divisão tradicional do trabalho teórico entre a antropologia, que
estudaria as sociedades fundadas no parentesco, com uma economia do dom, sem
Estado etc., e a sociologia, que se encarregaria das sociedades modernas, industriais e
(originalmente) ocidentais.
As dicotomias acima podem ser interpretadas em termos de um dualismo
ontológico que opõe essências sociais irredutíveis, mas também como um contraste
sobretudo heurístico, que exprime a predominância de um polo sobre o outro no
interior de cada tipo social. A tendência recente tem sido a de desconfiança perante
formulações sugestivas de qualquer Grande Divisor, em particular aquelas que
validem a imagem de “sociedade primitiva” estabelecida pelos pensadores vitorianos,
e que teria servido de modelo básico para a antropologia desde então. Argumenta-se
que tal objeto teórico é uma mera projeção invertida da imagem, constituída a partir
do século XVIII, da sociedade burguesa moderna (Kuper 1988). Seja como for, a
antropologia não parece poder passar facilmente sem tais dicotomias. Se elas
arrastam consigo uma pesada bagagem ideológica, não deixam por isso de indicar
uma série de diferenças igualmente de peso, entre a maioria das sociedades
tradicionalmente estudadas pela antropologia e a sociedade capitalista moderna,
diferença cujo rendimento teórico pode ser atestado na retomada de certos contrastes
clássicos (Gregory 1982, Strathern 1988), ou nas tentativas de relativizar e redefinir o
Grande Divisor sem dissolvê-lo completamente (Latour 1991).
A história da antropologia registra diferentes modos de conceber a relação entre
os termos dessas dicotomias. Os evolucionistas interpretaram-na como uma
sucessão histórica objetiva: a sociedade moderna seria uma societas; a sociedade
primitiva, antiga ou tradicional, uma universitas. Tal solução, note-se, é dominada
pela perspectiva da societas, a qual aparece como a causa final de um movimento
progressivo envolvendo todas as sociedades, e portanto como a verdade imanente do
mundo da universitas. Despido eventualmente de suas conotações teleológicas, esse
modelo ecoa nas tendências teóricas que privilegiam supostos universais formais da
ação (como a chamada escolha racional, por exemplo) e que consideram as
categorias sociológicas geradas por e para a sociedade moderna (como o indivíduo,
o poder, o interesse, a economia, a política) aplicáveis a qualquer sociedade, visto que
a oposição entre os tipos é antes de grau que de natureza.
A posição alternativa, que enfatiza a diferença qualitativa entre os termos, tende a
privilegiar a perspectiva da universitas. Esta última seria a forma normal ou
“natural” da sociedade, a societas moderna revelando-se uma singularidade histórica
e/ou uma ilusão ideológica: o Ocidente é um acidente… Aqui, a oposição entre os dois
tipos de sociedade manifestaria sobretudo a diferença entre duas concepções
sociocosmológicas globais – e uma destas, a holista, revelaria a verdadeira natureza
do social. Tal ideia, que lança suas raízes imediatas na sociologia da religião
durkheimiana e no determinismo cultural dos boasianos, sofreu desenvolvimentos
bastante diferentes entre si nas mãos de autores como Dumont, Sahlins ou Schneider.
Na medida em que muitos antropólogos concebem sua atividade como sendo
primordialmente a de empreender uma crítica político-epistemológica da razão
sociológica ocidental, esta posição ocupa um lugar central na disciplina. A
valorização da universitas pode ser entrevista mesmo naqueles autores que apontam
a implicação mútua e necessária entre visões holistas e individualistas, recusando
ambas como etnocêntricas em nome das sociologias imanentes a outras sociedades.
A “escolha” da sociedade primitiva como objeto legou à antropologia uma quase
identidade entre seu conceito de sociedade e o tema do parentesco. As críticas de Maine
e Durkheim ao utilitarismo de Bentham e Spencer; a descoberta por Morgan das
terminologias classificatórias ameríndias, e sua inserção em uma teoria do grupo de
parentesco como a unidade política original da sociedade humana; as especulações de
McLenann e Bachofen sobre o matriarcado primordial – tudo isso levou a
antropologia nascente a explorar uma dimensão da socialidade que a tradição
contratualista havia negligenciado em favor da oposição imediata entre o indivíduo e
o Estado (pois a sociedade civil dos jusnaturalistas só veio a significar plenamente
uma esfera distinta do Estado a partir de Marx). Ao tomar o parentesco como laço
constitutivo das unidades sociais primitivas, a antropologia recuperou, de certa
forma, a concepção aristotélica de uma continuidade natural entre a família e a polis,
aquela continuidade que, precisamente, havia sido negada pelos jusnaturalistas como
fundamento legítimo da ordem política. Aqui jaz a inspiração profunda da chamada
teoria da descendência britânica, produto de uma fusão dos conceitos de status e de
corporação de Maine com a solidariedade mecânica de Durkheim, que dominou a
antropologia britânica nos anos 40 e 50. Visto desse ângulo, entende-se melhor por
que, para um dos mestres da teoria da descendência, o modelo concorrente da
aliança matrimonial, dos estruturalistas franceses, é problemático: a
consanguinidade (fundadora da descendência) encerrando em si o princípio do status,
a afinidade só pode remeter ao contrato, e, portanto, a uma dimensão secundária do
socius primitivo (Fortes 1969).
É certo que a teoria estrutural do parentesco evoca algo do paradigma
contratualista, ao conceber a proibição do incesto como uma intervenção da cultura
em um espaço deixado indeterminado pela natureza (a escolha do cônjuge), e ao
definir a troca matrimonial em termos da submissão das inclinações individuais aos
interesses da ordem coletiva. Mas tratar-se-ia aqui mais bem de um “contrato
natural” estabelecido no plano da dinâmica inconsciente da vida social, que em sua
modalidade elementar liga grupos corporados de parentesco (e não indivíduos) por
laços estatutários perpétuos. Nessa medida, descendência e aliança remetem ambas
ao modelo durkheimiano de “sociedade segmentar” (Schneider 1965), hoje sob forte
suspeita crítica.
Opor as tradições antropológicas a partir das antinomias e dicotomias acima
não passa de uma simplificação didática, pois a tensão entre os modelos hobbesiano
e aristotélico – ou malinowskiano e durkheimiano, para usarmos totens mais
recentes (Kuper 1992) – é na verdade interna às principais orientações teóricas, sendo
assim melhor falar em preponderâncias relativas. O esquema evolucionista, ao
projetar na diacronia a oposição entre o mundo coletivista primitivo, fundado no
parentesco grupal e nas relações normativas de status, ao mundo individualista
moderno, organizado na base da contiguidade local, do contrato individual e da
liberdade associativa, já mostrava um compromisso conceitual. Ele serviu de
contraste crítico a quase toda a antropologia social posterior, que se dedicou a
mostrar a operação simultânea de ambas as orientações no interior das sociedades
“primitivas”. Nesse sentido, uma solução muito comum foi a divisão do campo
social em dois aspectos complementares, um mais social, o outro mais individual,
partição que se exprime em várias análises famosas, a começar pelo contraste
trobriandês entre direito materno e amor paterno (Malinowski), passando pelo papel
do irmão da mãe nas sociedades patrilineares (Radcliffe-Brown), e desembocando
em oposições como descendência versus filiação complementar (Fortes), descendência
versus parentesco (Evans-Pritchard), estrutura social versus organização social
(Firth), estrutura versus communitas (Turner). Uma vez estabelecidas tais
polaridades, o esforço analítico dos antropólogos foi (algo paradoxalmente) em boa
parte dedicado a mediatizá-las, isto é, a determinar os mecanismos institucionais de
articulação entre os laços grupais e os laços interpessoais, a ordem doméstica do
parentesco e a ordem política da sociedade global, o componente normativo ou
obrigatório das relações sociais e seu componente optativo ou estratégico.
Em suma, pode-se dizer que a imagem de sociedade primitiva vigente na fase
clássica da antropologia social internalizou um contraste que havia sido usado
anteriormente para opor globalmente sociedades, ou concepções globais da
sociedade. E, por mais que deva muito de sua inspiração à tradição “aristotélica”, há
um aspecto da modernidade “hobbesiana” a que a antropologia não ficou imune:
trata-se da ideia de que a sociedade, mesmo se é uma condição natural, por
consubstancial à humanidade, não deixa por isso de ser uma condição problemática,
isto é, algo que exige explicação, senão mesmo justificação. Isto se deve por sua vez à
ideia (analisada, p. ex., em Strathern 1992a, b) de que a sociedade se constitui real ou
formalmente a partir de indivíduos associais, que devem ser “socializados”, isto é,
constrangidos pela inculcação de representações normativas a se comportarem de
um modo determinado, e que resistem a esta constrição por uma manipulação
egoísta das normas ou pela regressão imaginária a uma liberdade original. Tal ideia
se encontra, com nuances variadas, em Durkheim como em Freud, em Lévi-Strauss
como em Fortes ou Leach. O Homo sapiens pode bem ser um “animal social”, mas
para a modernidade essa expressão sugere um inquietante oxímoro, que está na raiz
da busca incessante pela antropologia de soluções que transcendam as antinomias
dele decorrentes.
Crítica e crise
A representação antropológica clássica de (uma) sociedade, precipitada pelas
tradições funcionalista e culturalista, é a de uma mônada que exprime à sua maneira
o universo humano: um povo etnicamente distinto, vivendo segundo instituições
específicas e possuindo uma cultura particular. A coincidência ideal dos três
componentes constituiria uma totalidade individual, dotada de organização e de
finalidade internas. A ênfase funcionalista é no aspecto total e sistêmico; a culturalista,
no aspecto individual e expressivo.
Essa imagem tem sido questionada há algum tempo. No plano teórico, LéviStrauss (1950, 1958) insistiu que o estruturalismo não era um método de análise de
sociedades globais, sugerindo que uma sociedade é um complexo contraditório onde
coexistem estruturas de diferentes ordens, e que a “ordem das ordens”, ou totalização
inteligível dessas estruturas, é um problema antes ideológico que analítico. No plano
etnográfico, Leach (1954) demonstrou a inanidade de modelos epistemologicamente
bem-comportados, que não levem em conta os contextos históricos e políticos de
inscrição das estruturas sociais.
Mais recentemente, tem-se observado que a noção de sociedade como totalidade
autocontida depende de categorias e de instituições características do Ocidente
moderno, não podendo almejar à universalidade antropológica do conceito, mas
meramente à particularidade etnográfica de uma concepção cultural. Argumenta-se,
por exemplo, que a ideia de uma humanidade dividida em unidades étnicas discretas,
social e culturalmente singulares, deriva da ideologia do Estado-nação, imposta aos
povos não-ocidentais pelo colonialismo, esse grande inventor conceitual e prático de
“tribos” e “sociedades”. Tal crítica (p. ex. Wolf 1988) tem-se traduzido em uma ênfase
na interdependência dos sistemas sociais concretos (concebidos como superposições
de redes sociais heterogêneas e abertas), onde as relações constitutivas de
configurações regionais mais amplas determinam os processos internos às unidades
locais – o que dissolve a sociedade em sistemas cada vez mais globais, até o nível
planetário –, e em um privilégio de conceitos de tipo processual e pragmático em
detrimento de conceitos de tipo estrutural e normativo – o que não infrequentemente a
resolve em interações e representações atômicas.
Em seu sentido geral, a noção vem igualmente perdendo terreno. A antropologia
contemporânea tende a recusar concepções essencialistas ou teleológicas da sociedade
como agência transcendente aos indivíduos. À sociedade como ordem (instintiva ou
institucional) dotada de uma objetividade de coisa, preferem-se noções como
socialidade, que exprimiriam melhor o processo intersubjetivamente constituído da
vida social. O realismo sociológico tem assim dado lugar a uma postura que estende
reflexivamente à sociedade o mesmo construtivismo que a sociologia do
conhecimento aplicou com sucesso à natureza (em particular à natureza das culturas
do outro lado do Grande Divisor).
Se é possível definir uma orientação predominante na antropologia
contemporânea (Ortner 1984), esta consiste no abandono das concepções estruturais
de sociedade em favor de pragmáticas da agência social capazes de “promover uma
recuperação do sujeito sem cair no subjetivismo” (Giddens 1979: 44). As várias
teorias da “prática”, da “ação comunicativa” ou da “estruturação” (Bourdieu 1972;
Sahlins 1981; Habermas 1984; Giddens 1984); a insatisfação com a alternativa entre
concepções interativo-naturalistas e regulativo-culturalistas de sociedade (Ingold
1986); a crítica unânime ao paradigma “saussuriano” da ação como atualização
passiva de um conjunto de regras localizado na consciência coletiva ou no aparelho
mental da espécie; o retorno multiforme de abordagens fenomenológicas – estes são
os sinais de que a intencionalidade e a consciência, antes descartadas como mero
epifenômeno de estruturas que encerravam em si a inteligibilidade e a eficácia da
sociedade (senão mesmo denunciadas como obstáculos epistemológicos à
determinação dessas estruturas), tornam-se agora não apenas aquilo que deve ser
urgentemente explicado, mas a própria essência (quando não a verdadeira
explicação) da socialidade. Em suma: crise da “estrutura”, retorno do “sujeito”. Tal
retorno pode ser teoricamente alerta, como nas propostas que pretendem superar as
antinomias do pensamento social ocidental, em particular aquela entre indivíduo e
sociedade, que é a que está em jogo nessa ideia de uma concepção não-voluntarista
da ação social. Mas ele pode também significar uma retomada literal de várias
figuras em boa hora rejeitadas pelos estruturalismos das décadas recém-passadas:
filosofia da consciência, celebração da criatividade infinita do sujeito,
retranscendentalização do indivíduo etc. Recordando que cada teoria social já vinda à
luz acreditou um dia deter a chave da síntese entre os polos das antinomias da razão
sociológica ocidental, apenas para ser mais tarde acusada de favorecer
escandalosamente um desses polos, resta ver se as neopragmáticas contemporâneas
terão de fato escapado de serem mais um mero momento da oscilação perene entre o
nominalismo subjetivista da societas e o realismo objetivista da universitas.
A crítica contemporânea atinge a noção antropológica de sociedade por todos os
lados: a sociedade primitiva como tipo real; a sociedade como objeto empiricamente
delimitado; a sociedade como suporte objetivo das representações coletivas, entidade
dotada de coerência estrutural e de finalidade funcional. Tal crise conceitual deriva,
em primeiro lugar, de uma crise histórica. O fim do colonialismo político formal e a
aceleração dos processos de mundialização dos fluxos econômicos e culturais
tornaram mais evidente o caráter desde sempre ideológico e artificial de algumas das
ideias em questão: a mônada primitiva não era primitiva, e nunca foi monádica.
Mas tal crise histórica reflete também uma mudança na apercepção social ocidental,
isto é, uma crise cultural. O objeto-ideal da antropologia, a “sociedade primitiva”,
dissolveu-se menos pela (bastante relativa) globalização objetiva dos mundos
primitivos locais, ou pelo (algo duvidoso) progresso das luzes antropológicas, que
pela falência da noção de “sociedade moderna” que lhe serviu de contramodelo. Cresce
a convicção de que o Ocidente abandonou seu período moderno, fundado na
separação absoluta entre o domínio dos fatos e o domínio dos valores – separação
que permitia atribuir, por um lado, transcendência objetiva ao mundo natural e
imanência subjetiva ao mundo social, e, por outro lado, instrumentalidade passiva
aos objetos e agência coercitiva aos valores. Resta ver se ingressamos (e este “nós”
inclui todas as sociedades do planeta) em uma fase pós-moderna onde não mais
funciona tal separação, ou se, ao contrário do que supõe a cosmologia do Grande
Divisor que tornou possível a antropologia, jamais fomos modernos, exceto na
imaginação de alguns ideólogos (Latour 1991). Sabemos, entretanto, e isto é uma
lição da própria antropologia, que concepções imaginárias (mas todas o são)
produzem efeitos reais (e todos o são). Se este é o caso, então continuamos à procura
de conceitos capazes de iluminar as diferenças entre as sociedades, única via aberta à
antropologia para visar eficazmente a condição social de um ponto de vista
verdadeiramente universal, ou melhor, “multiversal”, isto é, um ponto de vista capaz
de gerar e desenvolver a diferença.
1. Este texto foi encomendado por e publicado na Encyclopedia of Social and Cultural
Anthropology, organizada por A. Barnard & J. Spencer. Suas limitações de conteúdo,
estilo e dimensões (da bibliografia inclusive) refletem tal origem. Ele não pretende ser
mais que um mapa muito geral das incidências do conceito de sociedade na
disciplina antropológica.
CAPÍTULO 6
Iriwupai-ru no acampamento de caça (Ipixuna, 1981)
Meninas araweté pescando de manhãzinha no porto da aldeia (Ipixuna, 1981)
Imagens da natureza e da sociedade
Quando o Annual Review of Anthropology publicou sua última revisão geral do
campo (Jackson 1975), a antropologia da Amazônia estava no começo de um
crescimento sem precedentes: em termos comparativos, a literatura sobre a região
parece ser a que mais aumentou nos últimos vinte anos. {1} O fenômeno foi celebrado
por vários comentadores (Taylor 1984; Urban & Sherzer 1988; Descola 1993;
Rivière 1993; Henley 1996), que costumam citar uma coletânea subintitulada “o
continente menos conhecido” (Lyon [org.] 1974) para concluir que o panorama,
felizmente, mudou.
O otimismo se justifica. Se, como observa Taylor (1984), até o começo dos anos
70 não havia mais que cinquenta monografias sobre a Amazônia indígena, então a
explosão posterior quadruplicou, no mínimo, essa base etnográfica. Muitas
sociedades foram pela primeira vez descritas segundo padrões técnicos aceitáveis;
algumas delas foram estudadas por sucessivas levas de pesquisadores, oriundos de
diferentes tradições teóricas; e, para certas áreas geográficas, a bibliografia atinge
hoje uma densidade impressionante. No mesmo período, a ecologia, a história e a
arqueologia realizaram um avanço não menos notável. Esse amadurecimento pode
ser avaliado em cinco coletâneas publicadas na década de 90, que trazem uma boa
amostra dos desenvolvimentos das pesquisas em diferentes áreas de conhecimento,
bem como diversos panoramas críticos e comparativos: Carneiro da Cunha (org.)
1992; Descola & Taylor (orgs.) 1993; Roosevelt (org.) 1994; Sponsel (org.) 1995;
Viveiros de Castro & Carneiro da Cunha (orgs.) 1993.
O presente artigo discute apenas as mudanças mais gerais por que passa a
antropologia regional. Os últimos anos assistem à emergência de uma imagem da
Amazônia indígena caracterizada pela ênfase na complexidade das formas sociais e
na diversidade da fisionomia natural da região. Essas novas imagens da sociedade e
da natureza se formam em um contexto teórico marcado pela sinergia entre
abordagens estruturais e históricas, por uma tentativa de superação de modelos
explicativos monocausais (naturalistas ou culturalistas) em favor de uma apreensão
mais nuançada das relações entre sociedade e natureza, e por esperanças de uma
“nova síntese” (Roosevelt 1994) capaz de vir integrar o conhecimento acumulado
pelas diversas disciplinas.
O modelo padrão
Os apelos a uma nova síntese refletem a obsolescência da imagem tradicional da
Amazônia, derivada do monumental Handbook of South American Indians, editado
por Julian Steward há meio século (Steward [org.] 1946-1950), e do digesto dessa
obra dado à luz alguns anos depois (Steward & Faron 1959). Combinando um
esquema de áreas culturais, uma tipologia de “níveis de integração sociocultural” e
uma teoria da ação determinante do ambiente sobre o “núcleo cultural” de cada
sociedade, a visão da Amazônia indígena que emergiu da síntese de Steward e
colaboradores criou raízes profundas no imaginário etnológico.
Nesse modelo, os horticultores de queimada do tipo “Floresta Tropical” apareciam
como sociedades evolucionariamente intermediárias e tipologicamente híbridas:
semelhantes, quanto à cultura material, às chefaturas circuncaribenhas – de quem
teriam tomado vários traços –, tais sociedades, do ponto de vista sociopolítico, pouco
difeririam das “Tribos Marginais” de caçadores-coletores do Brasil Central e da
Patagônia (id. 1948, Steward & Faron 1959). {2} A “tribo” típica da floresta tropical
era uma pequena constelação de aldeias autônomas, igualitárias, limitadas em suas
dimensões e estabilidade por uma tecnologia simples e pelo ambiente improdutivo,
incapazes, portanto, de gerar o excedente indispensável à emergência da
especialização econômica, da estratificação social e da centralização política presentes
em outras áreas do continente. Steward reconhecia a existência de diferenças
ecológicas entre os meios ripários e interfluviais, bem como uma certa variedade
interna ao tipo, em função das diferentes condições locais e da relação com os centros
de difusão cultural, mas a impressão de conjunto era a de uma grande uniformidade
socioecológica da “Floresta Tropical”: a Amazônia, em especial, era percebida como
um meio hostil à civilização, de ocupação recente, demograficamente rarefeito,
sociologicamente rudimentar e culturalmente tributário de áreas mais avançadas.
Ademais, estimava-se que as sociedades indígenas que mantinham seu modo de vida
tradicional caminhavam a passos largos para a assimilação às populações
nacionais.
Na época em que a “velha síntese” foi produzida, a etnologia do subcontinente era
dominada por uma combinação de difusionismo e determinismo geográfico, em
consonância com a tradição histórico-cultural alemã, sob cuja inspiração se
constituíra. Acrescentando à mistura uma teoria da evolução social, Steward iria
transformar criativamente essa tradição na nova disciplina da ecologia cultural, de
prolífica descendência na antropologia norte-americana e de grande peso nos estudos
ameríndios desde então. Os herdeiros da ecologia cultural de Steward (e do neoevolucionismo de Leslie White) tiveram por várias décadas a Amazônia como
campo de especulação privilegiado, como atesta o acirrado debate sobre os “fatores
limitantes” responsáveis pela fisionomia sociopolítica da área, que monopolizou as
atenções dos pesquisadores dessa persuasão até, pelo menos, os anos 80 (Hames &
Vickers 1983; Sponsel 1986).
A antropologia europeia começou a desafiar a hegemonia desse paradigma já
nos anos 50, com Lévi-Strauss (1952a, b, 1955a, 1956, 1967a); mas foi a partir da
publicação das três primeiras Mitológicas (id. 1964, 1966, 1967b) que o
estruturalismo consolidou sua presença na etnologia regional, propondo um estilo
analítico e, sobretudo, uma agenda temática de enorme influência. Enfatizando o
valor cognitivo e simbólico daquelas dimensões materiais estudadas pelos ecologistas
culturais de um ponto de vista adaptativo – relação com os animais, origem das
plantas cultivadas, dieta, tecnologia –, Lévi-Strauss deslocou para o interior das
cosmologias ameríndias a macro-oposição conceitual entre natureza e cultura que
subjazia às teorias deterministas dos herdeiros de Steward.
No final dessa década, surgem as primeiras etnografias derivadas da tradição
antropológica britânica, praticamente ausente do americanismo tropical até então.
Os estudos pioneiros de David Maybury-Lewis (1967) e de Peter Rivière (1969),
ambos claramente influenciados por Lévi-Strauss, inauguram a fase contemporânea
da etnologia amazônia, e são a origem imediata do salto qualitativo experimentado
pela produção subsequente. Nos Estados Unidos, a etnociência e a antropologia
simbólica – transformações complementares do culturalismo boasiano que tinham
afinidades com alguns aspectos do estruturalismo – vieram dividir o palco com o
materialismo cultural de Steward e White. A onda de monografias sobre os sistemas
sociocosmológicos amazônicos que se iniciou nos anos 70 mostrará, em dosagem
variável conforme o estilo de formação dos pesquisadores, uma combinação de
influências das escolas sociológicas europeias e do neoculturalismo americano, mas
nenhum eco perceptível – senão sob a forma de um silêncio hostil – das abordagens
ecológico-materialistas. {3}
As duas décadas seguintes assistirão, assim, a uma polarização crescente. De um
lado, os descendentes de Steward e White, adeptos do “four-field approach”,
interessados em grandes panoramas histórico-culturais e em macrotipologias,
guiados por uma concepção adaptacionista e energética da cultura que sublinhava
seu ordenamento material pela natureza, e privilegiava a interface tecnológica. Do
outro lado, os antropólogos de orientação estrutural-funcionalista ou “estruturalculturalista”, voltados para a análise sincrônica de sociedades indígenas particulares –
ou para um comparativismo antes morfológico que genético –, interessados nas
dimensões institucionais (parentesco, organização social) e ideológicas (sistemas de
classificação, cosmologias) dos grupos que estudavam, e privilegiando o
ordenamento simbólico da natureza pela cultura, e portanto a interface cognitiva.
Não obstante a polarização, vários aspectos da imagem produzida pelo
Handbook eram compartilhados pelos dois campos: a Amazônia continuava a ser
vista como o habitat de pequenos grupos dispersos e isolados, autônomos e
autocontidos, igualitários e tecnologicamente ascéticos. Os ecólogos culturais
procuravam descobrir quais eram as determinações ambientais que respondiam por
esse perfil sociopolítico “simples”, ou, em outras palavras, a que recurso natural
escasso (solos férteis, proteína animal) ele era uma adaptação. Os antropólogos
sociais tomavam tal perfil como um dado não-problemático, tratando de descrever
os conteúdos culturais complexos e específicos associados a tal simplicidade material;
ou então, quando tentavam a generalização, explicavam a autonomia, o
igualitarismo e a economia minimalista das sociedades indígenas contemporâneas,
não por pressões ambientais extrínsecas e negativas, mas por limitações
socioculturais intrínsecas e positivas (como na obra de Clastres [1974], e em certas
passagens de Lévi-Strauss): recusa ideológica da mudança histórica, resistência
social à centralização política, bloqueio cultural à acumulação econômica.
A derrocada do modelo padrão
Os elementos que contribuíram para a falência dessa imagem vêm se acumulando
há bastante tempo. Eles procedem, antes de mais nada, de uma revisão das ideias
aceitas sobre a ecologia e a história cultural da Amazônia. Essa revisão é parte de
uma reavaliação geral da América pré-colombiana, que vem consistentemente
tendendo a: [1] majorar as estimativas da população ameríndia em 1492; [2] recuar
as datações arqueológicas; [3] atribuir maior complexidade às formações sociais
fora das áreas andina e mesoamericana, promovendo várias “tribos” à categoria das
“middle-range societies” de tipo chefatura ou protoestado; [4] sublinhar a importância
de sistemas regionais que articulavam zonas ecológicas e tipos sociopolíticos
heterogêneos; [5] destacar a ação de influências societárias de longa distância.
O outro elemento responsável pela reformulação da imagem tradicional da
Amazônia foi a consolidação de uma antropologia teoricamente renovada das
formações sociais nativas. Aqui também muito se deve a reordenamentos intelectuais
mais amplos, notadamente: [1] à crítica dos paradigmas clássicos da teoria do
parentesco, na medida em que estes foram percebidos como dependentes de uma
concepção regulativa e mecanicista da vida social; [2] à recusa muito generalizada de
um conceito de sociedade como entidade ontologicamente fechada e internamente
estruturada; [3] às tentativas insistentes de escapar das dicotomias clássicas, como as
chamadas “teorias do Grande Divisor”, a oposição entre Natureza e Cultura, o
antagonismo entre abordagens materialistas e mentalistas, a antinomia entre
estrutura e processo, e assim por diante.
No que segue, assinalam-se as incidências mais importantes desses pontos sobre
a antropologia recente da Amazônia indígena.
Ecologia humana
A mudança mais relevante na área da ecologia diz respeito à ênfase crescente na
diversidade ambiental da Amazônia e nas correlações entre essa diversidade e a
atividade humana. Sabia-se havia bastante tempo (Lathrap 1970; Meggers 1971) da
diferença entre a várzea, as planícies aluviais dos rios de “água branca” que recebem
os sedimentos andinos, e a terra firme, o meio interfluvial mais pobre, de solos
drenados por rios de “água preta” ou de “água clara”. Mas, como Moran (1993,
1995) e outros (Prance & Lovejoy [org.] 1985) têm insistido, a diversidade
pedológica, florística e faunística da Amazônia não cabe nesta oposição simples;
sobretudo, não é possível continuar a subsumir na categoria geral de “terra firme”,
que caracteriza cerca de 98% da região, uma quantidade de ecossistemas fortemente
heterogêneos.
Além disso, acumulam-se as evidências de que várias zonas fora da várzea
possuem solos mais férteis do que se imaginava, e que algumas delas foram objeto
de ocupação pré-histórica intensa e prolongada, como atestam os sítios de ocorrência
de solos antropogênicos, que representariam, apenas na Amazônia brasileira, no
mínimo 12% de toda a terra firme (Balée 1989b). Esses solos costumam ser
favorecidos pelas populações atuais, por sua alta fertilidade; sustentam, além disso,
associações vegetais de extrema importância para a economia indígena, como as
matas de palmeiras, os castanhais e outras, que representariam “velhas florestas de
capoeira (arrested successional forest) sobre sítios arqueológicos, incluindo tanto
rocas préhistóricas como aldeias e acampamentos” (id. ibid.: 6). Em outras
palavras, boa porção da cobertura vegetal da Amazônia é o resultado de milênios de
manipulação humana. {4} William Balée, o pesquisador que tem extraído as lições
mais importantes dessas descobertas, observa que a “natureza” amazônica é parte e
resultado de uma longa história cultural, e que as economias indígenas tomadas
como exemplos de “respostas adaptativas” (Hames & Vickers [org.] 1983) a um
ambiente primevo e transcendente são, na verdade, meta-adaptações à cultura, ou ao
resultado histórico de uma transformação cultural da natureza (Balée 1988, 1989a,
b, 1990, 1992, 1994). Ao contrário do que se imaginaria, aliás, as florestas
antropogênicas apresentam maior biodiversidade que as florestas não perturbadas
(id. 1993a, b).
A perspectiva adaptacionista da antropologia ecológica produziu estudos valiosos
sobre certas dimensões quantitativas das práticas de subsistência ameríndias; mas
seu diálogo com a antropologia social sempre foi mínimo, visto serem duas
abordagens tão incomensuráveis como a economia neoclássica e a economia política
(Gregory 1982). Essa é mais que uma mera analogia: pois as teorias
adaptacionistas partem dos postulados marginalistas da escassez de recursos e da
otimização do balanço custo/resultado (yield-to-effort ratio), supondo uma
racionalidade infusa de tipo evolucionário, regida por parâmetros termodinâmicos,
ao passo que a antropologia social da Amazônia tende a sublinhar as determinações
estruturais de regimes socioeconômicos fundados na reciprocidade e na troca de dons,
e a destacar a natureza histórica, socialmente constituída, da interação com o meio
físico (embora, como se verá adiante, algumas formas de escassez não-ambiental
tenham sido sugeridas para explicar as morfologias sociais amazônicas). A distância
entre as duas abordagens, de qualquer forma, diminuiu significativamente com o
surgimento, após a voga das teorias dos “fatores limitantes” e depois do “forrageio
ótimo” (ver Hames & Vickers 1983; Roosevelt 1980; Sponsel 1986, para avaliações
internas à tradição; e Descola 1985, 1988a, para uma crítica informada pelo outro
paradigma), de estudos sobre as estratégias de “manejo de recursos” implementadas
pelos povos indígenas (Posey & Balée [org.] 1989), que dão grande destaque às
conceitualizações nativas dos ecossistemas (Balée 1994) e permitem, pela primeira
vez, que a expressão “ecologia cultural” não signifique mais apenas “aspectos
ecologicamente causados da cultura”, mas também “aspectos culturalmente
construídos da ecologia”. Há problemas empíricos e teóricos pendentes nesta
abordagem – por exemplo, a questão do grau e da natureza (intencional ou não) da
modelagem ambiental —, mas ela manifesta uma salutar, ainda que incipiente,
propensão da antropologia ecológica a admitir a causalidade formal da cultura (ou,
para usarmos uma linguagem mais moderna, a capacidade de “auto-seleção
cultural”, ver Durham 1991). Isso parece ser parte de uma tendência geral a se
abandonar a visão das sociedades como isolados em tête-à-tête adaptativo com a
natureza, em favor de uma concepção essencialmente histórica da ecologia humana,
que começa a dar frutos na Amazônia (Balée [org.] 1998; Heckenberger 1996).
Arqueologia
Foi do interior mesmo dos quadros do materialismo cultural que surgiu a reação
atualmente mais em evidência à imagem da Amazônia como região impropícia à
complexidade social. Trata-se da tese que Anna Roosevelt (1980, 1987, 1991a, b,
1992, 1993) vem advogando sobre as sociedades da várzea, e que tem como
antagonista principal as ideias de Betty Meggers sobre as limitações ambientais ao
desenvolvimento cultural na Amazônia, formuladas inicialmente nos anos 50 (ver
Meggers 1954, 1957, 1971; Meggers & Evans 1954). Defrontada com a sofisticação
das culturas que deixaram os vestígios cerâmicos do baixo Amazonas – e com as
descrições dos primeiros cronistas sobre as sociedades que encontraram na várzea
desse rio —, Meggers procurou salvar a teoria de que a região não poderia sustentar
(e sobretudo gerar) formações sociopolíticas estratificadas e complexas, atribuindo
tais registros arqueológicos a uma influência ou mesmo a uma migração andina.
Contra isso, Roosevelt argumenta que a várzea foi capaz de sustentar populações
muito densas, graças ao cultivo do milho e outras plantas de semente (Roosevelt
1980) ou a uma intensificação produtiva mais ampla (id. 1991a). Ela sugere que o
milho não teria sido difundido a partir dos Andes ou da Mesoamérica em direção à
Amazônia, mas pode ter sido domesticado independentemente nesta última região, e
que, em geral, os Andes não foram um fator de difusão cultural para a Amazônia, e
sim o inverso: embora as sociedades da várzea só tenham atingido um nível de
complexidade elevado bem mais tarde que o mundo andino, certos traços culturais
panamericanos (cerâmica, sedentarismo, agricultura) teriam surgido primeiro ali.
As formações pré-históricas tardias da várzea, em particular a sociedade que
floresceu na ilha de Marajó entre 400 e 1300 AD, seriam chefaturas complexas ou
mesmo Estados de origem autóctone, exibindo estratificação social, manufaturas
especializadas, sacerdotes, culto de ancestrais e outras características “avançadas”.
A autora conclui que as sociedades indígenas atuais são “remanescentes
geograficamente marginais dos povos que sobreviveram à dizimação ocorrida nas
várzeas durante a conquista europeia” (id. 1992: 57; ver também id. 1991b: 130),
tendo involuído até um nível anterior ao da formação das chefaturas agrícolas, ao
passarem a ocupar o ambiente improdutivo da terra firme. Seria preciso assim,
conclui ela, evitar a “projeção etnográfica” (id. 1989) praticada por aquela
antropologia ecológica que toma a simplicidade regressiva da situação indígena
presente como representativa de limites inexoráveis da natureza amazônica.
As pesquisas de Roosevelt deram grande ímpeto à arqueologia sul-americana;
sua visão das chefaturas amazônicas do pré-histórico tardio é a mais sofisticada de
que dispomos até o momento, e tem encontrado acolhida mesmo entre antropólogos
distantes do contexto teórico em que ela foi produzida. {5} Mas a autora não foi a
primeira a romper a continuidade entre as abordagens adaptacionistas, que conferem
ao ambiente físico um valor causal na interpretação das formas sociais amazônicas,
e a ideologia naturalizante que, desde o século XVI, fez dos habitantes do Novo
Mundo, em particular os ameríndios da floresta tropical, o tipo por excelência do
“Homem Natural”, incapacitado de atingir a autonomia civilizacional por sua
sujeição a uma natureza hostil e limitante (Descola 1985). O grande Donald Lathrap
já havia proposto a Amazônia como berço de sociedades complexas e foco de difusão
cultural, e formulado o argumento contra a “projeção etnográfica” (1968, 1970).
Robert Carneiro (ver 1995, para uma recapitulação) já havia desmentido Meggers
no que respeita às limitações pedológicas da Amazônia, e proposto uma influente
teoria sobre a emergência da centralização política, adaptada e utilizada, aliás, por
Roosevelt. E, já em 1952, Lévi-Strauss mencionava os “centros de civilização”
amazônicos e sugeria o “falso arcaísmo” de vários povos atuais (1952a; ver também
id. 1993). Como observa Carneiro, Roosevelt comete não poucos anacronismos
interessados, ao tomar o modelo Steward-Meggers como se houvesse persistido, de
fato, intacto até hoje.
As teses de Roosevelt, ademais, apresentam alguns aspectos problemáticos. O
papel central concedido em Parmana (Roosevelt 1980) ao argumento da mutação
tecnológica e ao cultivo do milho na evolução das chefaturas desaparece em seu
trabalho posterior sobre Marajó (id. 1991a), o qual se vê, com isso, privado de
qualquer hipótese causal específica. Esta é exatamente a fraqueza que ela havia
criticado, dez anos antes, em vários outros autores. Ao insistir em um contraste
genérico entre a várzea e a terra firme como determinante da evolução cultural da
Amazônia (id. 1980, 1992), o modelo se mostra também em atraso, diante da visão
mais diferenciada e menos miserabilista da terra firme a que aludimos acima, e,
nesse sentido, é um exemplo do determinismo ecológico tradicional. Ele parece, às
vezes, supor que o meio interfluvial era desabitado antes da invasão europeia
(Carneiro 1995), o que é mais que improvável, ou, então, que todos os grupos que
porventura ali viviam ou vivem seriam marginais alijados do paraíso aluvial –
como se houvesse um tropismo irresistível de toda sociedade, seja qual for seu regime
de produção e reprodução sociais, em direção a áreas abstratamente mais férteis. O
modelo, por fim, essencializa a distinção entre as chefaturas ripárias (que a autora
compara ao Vale do Indus, às cidades-Estado minoicas e micênicas, ou aos Ashanti
– ver Roosevelt 1992) e os sistemas sociais da terra firme, antigos ou
contemporâneos. Seria mais avisado, considerando-se o substrato cultural comum a
toda a Amazônia, imaginar uma dinâmica de tipo gumsa/gumlao (Leach 1954; ver
Santos 1993: 226, para essa analogia na Amazônia atual), sujeita a contrações e
expansões conjunturais, articulando populações da várzea e da terra firme em
sistemas regionais ecológica e sociopoliticamente heterogêneos.
A presença de desenvolvimentos “complexos” alhures que na várzea, baseados na
horticultura de mandioca, começa a ser comprovada arqueologicamente
(Heckenberger 1996). {6} Se isto fortalece, sem dúvida, a imagem de uma Amazônia
pré-colombiana sociopoliticamente diferente da atual, vem entretanto minimizar o
contraste entre várzea e terra firme, e desmentir qualquer causalidade ecológica
direta. Parece cada vez mais claro que a emergência e persistência de estruturas
sociais “simples” ou “complexas” – valham o que valerem estas caracterizações, que
evocam o velho evolucionismo social – não podem ser explicadas por fatores
ambientais tomados em abstração de dinâmicas históricas e interações societárias de
larga escala, bem como de processos de decisão política guiados por sistemas de
valores que respondem a bem mais que a desafios ou problemas ambientais
definidos de maneira extrínseca e objetivista.
Quanto aos ataques à “projeção etnográfica”, observe-se que Roosevelt faz um uso
abundante – e bastante ingênuo – de analogias etnográficas em suas próprias
reconstruções, socorrendo-se da literatura contemporânea para propor, por exemplo,
que a sociedade marajoara era algo próximo a um “matriarcado” (1991a), o que
pode ser ideologicamente agradável, mas é (pace Whitehead 1995) teoricamente
problemático e etnologicamente improvável.
Antropologia social
A contribuição principal da antropologia dos povos contemporâneos deu-se na área
da organização social, que é tratada de modo muito sumário na tradição tipológica
derivada do Handbook. Steward (1948; Steward & Faron 1959) atribuía à
descendência unilinear um papel de destaque, vendo a Amazônia ocupada por aldeias
mono- ou multilinhageiras. Lévi-Strauss (1967a), por seu turno, não podia dizer
grande coisa sobre os sistemas de parentesco sul-americanos, no livro que fundou a
teoria da troca matrimonial; muito mal conhecidos à época, estes lhe apresentavam
antes enigmas que soluções (id. 1952a, b, 1956c). A partir de meados dos anos 70, a
etnografia então já acumulada suscitou uma avaliação dos paradigmas da
descendência e da aliança no contexto sul-americano (Overing Kaplan [org.] 1977;
Murphy 1979). O reestudo das sociedades centro-brasileiras, em particular, infirmou
ou qualificou as descrições anteriores em termos de grupos de descendência e, ao
mesmo tempo, minimizou as implicações matrimoniais dos dualismos onipresentes
nessas sociedades: a uxorilocalidade substituiu a descendência como princípio
explicativo, e os diversos sistemas de metades foram vistos como regulando
transações principalmente onomásticas e cerimoniais (Maybury-Lewis [org.] 1979).
Na Guiana, Peter Rivière (1969) e Joanna Overing (1975) identificaram uma
combinação entre aliança simétrica, endogamia local e parentesco cognático que se
revelou muito difundida na Amazônia; a aliança simétrica foi mesmo proposta
como traço invariante da organização social da região (Rivière 1973). Lançando
mão da teoria de Dumont sobre os sistemas dravidianos, Overing dissociou, com
grande sucesso analítico, a aliança matrimonial de todo construto de descendência e
do paradigma de sociedade segmentar. Os desenvolvimentos posteriores nesse campo
(ver Rivière 1993) foram marcados pela exploração dos códigos culturais que
faziam as vezes de princípios organizatórios das sociedades amazônicas (Seeger,
DaMatta & Viveiros de Castro 1979; Overing Kaplan 1981), por sínteses
comparativas locais e regionais (Århem 1981a; Rivière 1984; Hornborg 1988), por
tentativas de precisar as características formais e as implicações sociológicas dos
regimes de aliança amazônicos (Taylor 1983, 1989; Viveiros de Castro 1993a;
Viveiros de Castro & Fausto 1993; Henley 1996), e pela exploração de novas
categorias teóricas capazes de substituir a noção de descendência para sociedades
segmentares como os povos Jê e Tukano (Lea 1992, 1995; S. Hugh-Jones 1993,
1995).
Por muito tempo, os etnólogos tenderam a tomar a aldeia ou comunidade local
como sua unidade de análise mais abrangente. A necessidade de descrever sociedades
praticamente desconhecidas impôs, a princípio, tal limitação, isso quando ela não foi
o simples resultado de uma situação objetiva: vários dos povos indígenas
contemporâneos estão reduzidos a uma só aldeia. Em outros casos, a visão da
comunidade local como um microcosmo representativo da estrutura social do povo
estudado parece ter-se devido a uma adesão demasiado estreita às ideologias nativas,
ou foi o resultado de uma posição teórico-filosófica explícita (Clastres 1974, 1977).
Progressivamente, contudo, passou-se a destacar a importância de redes supralocais
de comércio e aliança político-matrimonial, e a adotar uma perspectiva mais
centrada nos sistemas regionais que em seus componentes (ver Colson 1983-84c
1985 para a Guiana; para o Vaupés, C. Hugh-Jones 1979 e Jackson 1976, 1983;
para o Alto Xingu, Menget 1978, 1993c e Bastos 1983; para os povos Pano, Erikson
1993b; para os Aruaque subandinos, Renard-Casevitz 1993). A imagem política
associada ao miserabilismo ecológico do Handbook e ao voluntarismo filosófico de
Clastres também foi submetida a uma crítica severa (Descola 1988b).
Podem-se encontrar três estilos analíticos principais, nos estudos contemporâneos
das sociedades amazônicas. Essa classificação indica apenas ênfases teóricas dentro
de um campo temático largamente compartilhado, e vários etnólogos (inclusive
alguns dos abaixo citados) as combinam ou empregam alternativamente. A
primeira orientação é o que eu chamaria de economia política do controle,
desenvolvida nos trabalhos de Terence Turner (1979a, b, 1984) e Peter Rivière (1984,
1987), bastante influenciada pela distinção estrutural-funcionalista entre os
“domínios” doméstico e político-jural. Os etnólogos do Brasil Central (ver MayburyLewis [org.] 1979) recusaram, com efeito, a pertinência etnográfica do conceito de
descendência, mas mantiveram o substrato analítico essencial do modelo fortesiano,
atribuindo a instituições comunais como as metades e as classes de idade a função de
mediação entre os domínios doméstico e público. {7} A isto, Turner acrescentou o
controle uxorilocal dos homens mais velhos sobre os mais jovens através das
mulheres, determinando a relação sogro-genro como o motor estrutural das
sociedades centro-brasileiras e elaborando uma teoria sofisticada, de inspiração
marxista, sobre a dialética recursiva que gera e articula hierarquicamente os
domínios público e doméstico. Rivière, por seu turno, generalizou o modelo, ao
propor (em oposição às teorias dos fatores limitantes) que o recurso crucialmente
escasso na Amazônia é o trabalho humano, o que geraria uma “economia política de
pessoas” fundada na distribuição e controle das mulheres; a partir daí, o autor
procurou explicar as variações morfológicas presentes nas terras baixas amazônicas
através de um exame da correlação entre os modos de gestão dos recursos humanos
e a presença ou ausência de instituições supradomésticas.
A segunda orientação é a economia moral da intimidade presente na obra recente
de Overing e de seus ex-alunos (Overing 1991, 1992, 1993a, b; Renshaw 1986; Gow
1989, 1991a; McCallum 1989; Santos 1991; Belaunde 1992). Influenciada pela
crítica feminista à oposição público/doméstico (em alguns casos, especialmente pelas
ideias de Marilyn Strathern), essa vertente é responsável por contribuições decisivas à
nossa compreensão da filosofia social e da prática da sociabilidade cotidiana na
Amazônia indígena. Os trabalhos do grupo enfatizam a complementaridade
igualitária entre os gêneros e o caráter íntimo da economia nativa, recusando uma
sociologia da escassez objetiva (natural ou social) em favor de uma fenomenologia
do desejo como demanda intersubjetiva (Gow 1989). Essa orientação tende a
valorizar as relações internas ao grupo local – definidas pelo compartilhamento e
solicitude entre parentes – em relativo detrimento das relações interlocais, concebidas,
nas ideologias nativas, como definidas por uma reciprocidade sempre à beira da
violência predatória, a qual marca também as relações entre humanos e nãohumanos. Pode-se dizer que o estilo da economia moral da intimidade valoriza
teoricamente a produção sobre a troca, as práticas de mutualidade sobre as
estruturas de reciprocidade, e a ética da consanguinidade sobre a simbólica da
afinidade. Apesar de sua rejeição à noção de sociedade como totalidade a priori
dotada de uma racionalidade estrutural transcendente, este estilo, em sua visão
essencialmente moral da socialidade, não deixa de ter analogias curiosas com a
concepção fortesiana da Amity (Fortes 1969, 1983), e/ou com a célebre etnodefinição
schneideriana do parentesco como “solidariedade difusa e persistente” (Schneider
1968). Por fim, a crítica cerrada à oposição público/ doméstico feita pela economia
moral da intimidade traduziu-se, não poucas vezes, em uma redução da sociedade
ao nível doméstico, e em uma assimilação indevida da noção de socialidade à de
sociabilidade.
A terceira vertente é a que chamo (em causa própria) de economia simbólica da
alteridade; ela é representada por etnólogos de inspiração estruturalista (p. ex. Albert
1985; Menget 1985; Viveiros de Castro 1986a; Erikson 1986; Descola 1986, 1993;
Keifenheim 1992; Vilaça 1992; Taylor 1994). Essa vertente produziu análises de
sistemas multicomunitários complexos como o dos Yanomami (Albert 1985) ou dos
Jívaro (Descola 1982; Taylor 1985), análises que, ao operarem com uma distinção
entre as redes endogâmicas locais e as estruturas político-rituais de articulação
interlocal, não deixam de ser uma versão amazônica da concepção bidimensional da
estrutura social presente na etnologia centro-brasileira. {8} Mas a inspiração do grupo
é claramente lévi-straussiana. Interessados nas interrelações entre as sociologias e as
cosmologias nativas, estes pesquisadores concentraram-se nos processos de troca
simbólica (guerra e canibalismo, caça, xamanismo, rituais funerários) que, ao
atravessarem fronteiras sociopolíticas, cosmológicas e ontológicas, desempenham
um papel constitutivo na definição das identidades coletivas. Isso desembocou em
uma crítica da noção de Sociedade como mônada fechada e autossubsistente,
contraposta já a mônadas análogas que lhe serviriam de espelho sociológico
(Viveiros de Castro 1986a, 1993a), já a uma Natureza com função de Outro
transcendente (Descola 1996) – duas imagens conspícuas na etnografia regional.
Essa vertente explorou os significados múltiplos da categoria da afinidade nas
culturas amazônicas (tema que aparece também em autores como Rivière ou
Overing, mas de forma emicamente negativa) sugerindo seu valor de operador
sociocosmológico central (Viveiros de Castro 1993a), e buscando determinar a
tensão entre identidade e alteridade que estaria na base dos regimes sociopolíticos
amazônicos.
A tentativa mais sistemática de confrontação entre as perspectivas ecológicas e
sociológicas sobre a relação entre natureza e sociedade na Amazônia deve-se a um
representante desta última corrente, Philippe Descola. Em seus estudos minuciosos
sobre a ecologia e a economia dos Jívaro Achuar (Descola 1986, 1994a), povo que
não pode ser considerado como um sobrevivente regressivo da conquista europeia, o
autor refutou várias teses caras ao determinismo ecológico. Ele demonstrou, por um
lado, que a diferença entre os potenciais produtivos dos meios ripário e interfluvial
ocupados pelos Achuar não é relevante econômica ou politicamente, e, por outro
lado, que certos limites socioculturais à duração do esforço de trabalho, bem como as
formas gerais da organização social e as concepções das relações com o mundo
natural, levam a uma homeostase das forças produtivas em um nível “baixo” de
operação, suficiente entretanto para manter o grupo em condições nutricionalmente
luxuosas. Em outros textos, Descola desenvolveu um modelo geral de “ecologia
simbólica” que procura dessubstantivizar a oposição entre natureza e cultura,
diferenciando-a em modos prático-cognitivos distintos conforme os regimes sociais
em que se acha imersa (id. 1992, 1996). O autor contrastou, em particular, o modo
“naturalista” característico da tradição Ocidental (onde vigora uma relação
metonímica e natural entre natureza e sociedade), o modo “totêmico” privilegiado
pelo estruturalismo clássico (onde a relação é puramente diferencial e metafórica), e o
modo “anímico” que vigoraria nas culturas amazônicas (onde a relação
natureza/cultura é metonímica e social). A noção de um “modo anímico” permitiria
elucidar alguns problemas etnológicos tradicionais, como a ausência de
domesticação animal na Amazônia (id. 1994b). {9} A teoria de Descola dialoga com
as ideias de Bruno Latour (1991), e não deixa de ter certas analogias com os
trabalhos de Tim Ingold (p. ex. 1986, 1992), dois autores cuja presença no contexto
teórico da etnologia amazônica apenas começa a se fazer sentir, e que oferecem
alternativas interessantes à desgastada antinomia entre abordagens naturalistas e
culturalistas, que marcou a etnologia amazônica por tanto tempo.
História
A história dos povos amazônicos é uma área em forte expansão (Whitehead 1993b).
Isso reflete uma tendência teórica geral, mas também, mais proximamente, o
“exame de consciência” provocado pelo quinto centenário da invasão da América. Os
historiadores profissionais começaram a se voltar para o tema; os etnólogos
deixaram de se contentar com referências a fontes secundárias, debruçando-se sobre
materiais de arquivo na verdade bastante ricos. O conhecimento etnográfico tem
sido, por sua vez, aplicado sobre as fontes históricas, facultando hipóteses capazes de
dar consistência a informações frequentemente vagas e contraditórias. Uma das
consequências disto é a revalorização do conteúdo etnográfico das fontes antigas
(Forsyth 1983, 1985; Combès 1992; Viveiros de Castro 1993b; Whitehead 1995), e o
recuo da tendência hipercriticista a interpretá-las como mero registro dos preconceitos
e interesses europeus. A interdigitação da antropologia e da história tem beneficiado
principalmente a região do escudo da Guiana (Grenand 1982; Whitehead 1988,
1993a, 1994; Farage 1992; Dreyfus 1993a; Arvelo-Jiménez & Biord 1994) e a zona
pré-andina (Renard-Casevitz 1992; Renard-Casevitz et al. 1986; Santos 1988, 1993;
Combès & Saignes 1991; Taylor 1992), mas outras áreas começam a ser bem
estudadas, como o noroeste amazônia (Wright 1990, 1992) e o Brasil Central
(Verswijver 1992; Turner 1992), isso para não falarmos dos povos que há muito são
objeto de interesse histórico, como os Guarani.
A linha de estudos sobre a tradição oral tem produzido alguns trabalhos sobre
etno-história em sentido estrito (Hill & Wright 1988; Franchetto 1993; Hendricks
1993; Basso 1995) que demonstram a importância de uma consciência
propriamente histórica nas culturas amazônicas, problematizando a imagem
tradicional que tende a submergir a memória indígena no mundo intemporal do
mito. As relações entre mito e história, entretanto, têm sido analisadas quase
exclusivamente no quadro da experiência indígena da situação colonial (Hill [org.]
1988); suas implicações para a história cultural mais ampla dos povos amazônicos
ainda não foram adequadamente exploradas.
A “virada histórica” da etnologia regional levou à generalização do interesse pela
interação entre as sociedades indígenas e as estruturas sociopolíticas ocidentais. Há
muito privilegiado por algumas tradições teóricas nacionais (Ramos 1990), esse
tema encontra-se, hoje, alçado à ribalta metropolitana, por uma antropologia que se
estima mergulhada em profunda crise pós-colonial. Tal mudança de rumo analítico
reflete, no caso da Amazônia, transformações históricas objetivas: a incorporação
maciça da região à economia mundial, a partir dos anos 70, não se traduziu na
extinção ou assimilação generalizada dos povos nativos, como se antecipava; ao
contrário, eles estão em crescimento demográfico, têm mantido sua distintividade
sociocultural, e emergiram como atores políticos importantes nos cenários nacional e
internacional.
A resposta da antropologia a este processo foi uma bem-vinda dissolução da
divisão tradicional do trabalho entre os especialistas em sociedades “puras” e aqueles
em sociedades “aculturadas”. Começa-se a escapar da antinomia entre uma
concepção das sociedades indígenas como atualizações mecânicas de princípios
estruturais atemporais, o que nos obrigava a reconhecer que a transformação era
algo teoricamente inexplicável, e uma concepção da mudança social como resultado
inexorável de determinações externas às sociedades indígenas, o que simplesmente
substituía a transcendência estrutural intrínseca por uma transcendência histórica
extrínseca, resultando em uma imagem ainda mais mecânica, se possível, das
sociedades nativas. A emergência de abordagens que consideram conjuntamente as
dinâmicas locais e globais responsáveis pela trajetória dos povos indígenas associa,
então, a uma antropologia atenta à subjetividade histórica das sociedades, uma
atitude decididamente presentista, ao passo que a divisão do trabalho acima referida
era dominada, ao contrário, por perspectivas igualmente a-históricas, isto é, por
uma ideia das sociedades indígenas como entidades passivas ou reativas, e por uma
orientação para longe do presente: seja para um passado de plenitude adaptativa,
seja para um futuro de desagregação e anomia. Exemplos dessa nova capacidade de
articular cosmologia e história, etnicidade e ritual, economia política e análise
simbólica são os trabalhos de Turner (1988, 1991a, 1992, 1993), Albert (1988,
1993), Gow (1991a, 1994), Gallois (1987-89, 1993), Brown e Fernandez (Brown
1991, 1993; Brown & Fernandez 1991) e Taussig (1987), entre muitos outros.
Outro fator responsável pela superação da antinomia foi a progressiva convicção
de que as sociedades tomadas como exemplares de uma condição prístina ao serem
recentemente “contatadas” pelo Estado nacional deviam aspectos fundamentais de sua
demografia, morfologia, economia e ideologia a uma longa história de interação
direta e indireta com a fronteira colonial (Turner 1992; Whitehead 1993a). O mesmo
se diga do sentido e intensidade de práticas vistas como manifestação de adaptações
ambientais originárias, ou de princípios socioculturais imanentes, como a guerra
(Ferguson 1990, 1995) ou uma economia de caça e coleta (Balée 1992). Por outro
lado, e não menos importante, uma consideração teoricamente sofisticada de povos à
primeira vista irremediavelmente “aculturados” tem demonstrado que eles
administram e mantêm sua reflexividade sociocultural recorrendo a estratégias
políticas e categorias cosmológicas exatamente semelhantes às descritas pelos
etnólogos de sociedades “tradicionais” (Gow 1991a).
Conclusões
Quais as implicações teóricas e ideológicas dessa nova imagem da Amazônia, que
faz dela uma região originalmente populosa, com uma ecologia fortemente marcada
pela intervenção humana, e de perfil sociopolítico “complexo” – obrigando-nos a
concluir que o impacto da invasão e colonização europeias foi ainda mais destrutivo
que o tradicionalmente admitido? Aceito praticamente todos os seus elementos; mas
confesso, também, um certo desconforto diante da ênfase excessiva na distância entre
as sociedades contemporâneas e antigas. A reavaliação “para cima” do impacto da
conquista parece-me perfeitamente justa; mas a consequente maior vitimização das
populações indígenas pode caucionar uma visão degeneracionista dos grupos atuais,
que lhes nega qualquer capacidade de autodeterminação histórica e, no limite, pode
desembocar na absurda conclusão (que nenhum de nós subscreveria, mas aos índios
não faltam inimigos poderosos) de que as sociedades contemporâneas, sendo nãorepresentativas da plenitude original, são descartáveis, isto é, podem ser assimiladas
à sociedade nacional sem maiores perdas para a humanidade. Se a projeção
etnográfica tem certamente seus perigos, não se pode desprezar o risco inverso, o de
uma “perversão arqueológica”, sobretudo em um momento em que os povos nativos
vêm utilizando sua ligação histórica com o passado para justificar sua presença na
cena política mundial, e assim assegurar seu futuro.
Creio, também, que é preciso muito cuidado antes de se atribuir qualquer aspecto
problemático das sociedades ameríndias – via de regra, algo de difícil redução a
explicações adaptativas, ou algo politicamente incorreto segundo os cânones atuais,
como a guerra ou o canibalismo – aos efeitos avassaladores do Ocidente.9 Apesar de
seu radicalismo bem-intencionado, esse tipo de explicação termina por ver os povos
indígenas como joguetes da lógica onipotente do Estado e do Capital, como eles o
seriam, por outro lado, da razão ecológica ou sociobiológica: presos entre a História
europeia (ou mundial) e a Natureza americana (ou humana), as sociedades nativas
se veem, com isso, reduzidas a puros reflexos de uma contingência ou de uma
necessidade igualmente extrínsecas. É preciso, talvez, recordar que a história desses
povos não começou em 1492 (em muitos casos, bem ao contrário, ela terminou ali),
assim como não foi somente a partir daquela data que os índios passaram de uma
adaptação à natureza a uma adaptação da natureza – mesmo que os efeitos da
intervenção humana sobre o ambiente amazônico tenham mudado dramaticamente
de escala, e sobretudo de direção (em lugar de estimulando, destruindo a
biodiversidade; ver Balée 1993b) com a implantação das soberanias estatais.
Sobretudo, não se pode raciocinar como se, até aquele momento, a Amazônia
indígena fosse o palco de uma trajetória evolutiva exclusivamente determinada pela
interação entre tecnologia, população e ambiente, interação “natural” depois truncada
pela irrupção da “história”.
Não resta nenhuma dúvida que a várzea abrigava, à época da invasão,
populações bastante densas; que esta região é mais propícia à cultura de cereais e
leguminosas; e que as sociedades dali mostravam maior centralização política e
especialização econômica que os grupos contemporâneos. É praticamente certo,
ainda, que alguns dos grupos atuais sejam descendentes dos povos da várzea, tendo
fugido das doenças, missionários e caçadores de escravos internando-se nas matas
interfluviais. Está claro, por fim, que várias das (raras) sociedades caçadorascoletoras contemporâneas foram forçadas a abandonar a agricultura devido a
pressões diretas ou indiretas da conquista (Balée 1995), e é igualmente correto
argumentar que atividades como a guerra aumentaram de intensidade, ou
mudaram de sentido, como efeito da invasão europeia (Turner 1992). Mas, se não se
pode mais tomar a Amazônia como cenário dominado exclusivamente por pequenas
aldeias de caçadores-horticultores igualitários, tampouco se deve exagerar pelo outro
lado, atribuindo uma condição vestigial, degenerativa e marginal aos povos da terra
firme. Importa observar, sobretudo, que fenômenos como a “regressão agrícola”, ou,
mais geralmente, os modos de vida indígenas atuais, não são um evento
evolucionário, mas o fruto de um conjunto de escolhas políticas (Rival 1998a), de
decisões históricas de recusa à assimilação pelos brancos, escolhas e decisões que
privilegiaram certos valores (p. ex., a autonomia) em detrimento de outros (p. ex., o
acesso às mercadorias).
Há, por fim, um problema intrigante com a nova visão de uma Amazônia
dominada por chefaturas agrícolas. As evidências etnográficas convergem no sugerir:
[1] a enorme importância ideológica conferida à caça nas cosmologias indígenas
contemporâneas, e isso mesmo no caso das sociedades entusiasticamente
horticultoras, numerosas na região; [2] a generalidade de uma concepção das
relações com a natureza que privilegia as interações sociais e simbólicas com o
mundo animal, e na qual o xamanismo é uma instituição central – as semelhanças,
quanto a isso, entre as culturas amazônicas e os povos caçadores da América do
Norte e alhures são notáveis (Descola 1996); [3] a difusão de uma ideologia da
predação ontológica como regime de constituição das identidades coletivas (Viveiros
de Castro 1993a). Tudo isso parece casar algo mal com os regimes ideológicos
associados à agricultura e/ou à centralização política em outras partes do mundo; e é
difícil imaginar que se trate apenas de um atavismo cognitivo manifestado por
sociedades em “regressão”. Nesse caso, em lugar de se avaliar as culturas
contemporâneas a partir de um padrão definido pela agricultura intensiva e a
centralização política do passado pré-colombiano, talvez seja necessário repensar as
bases culturais e as expressões sociopolíticas efetivas dessas chefaturas antigas à luz
de um horizonte ainda atual. Além disso, se aceitarmos (como é o caso aqui) que o
estado de homeostase produtiva evidenciado por Descola para os Achuar é intrínseco
a essa sociedade, nada devendo a qualquer involução adaptativa pós-colombiana, e
se atentarmos para o quanto ele é semelhante ao que se constata em várias outras
sociedades contemporâneas, isso nos obriga a reabrir a discussão sobre qual foi o
tipo, exatamente, de mutação extratecnológica que teria levado à emergência das
sociedades da várzea.
Quanto às esperanças de uma “nova síntese” teórica, o autor se confessa um
tantinho cético. Em que pese à auspiciosa aproximação entre pesquisadores egressos
de tradições antagônicas – agora unidos no desiderato muito atual de transcender as
antinomias clássicas entre natureza e cultura, história e estrutura, economia política
da mudança e análise de mônadas em equilíbrio cosmológico, mentalismo e
materialismo etc. —, é difícil não notar a persistência de posturas características de
fases anteriores da disciplina. Assim, por exemplo, as teorias do “manejo de recursos”
não deixam de ser, elas próprias, adaptações do ponto de vista adaptacionista a um
ambiente intelectual que favorece os conceitos de história e de cultura; a crítica de
Roosevelt (1991b) ao determinismo ecológico de Meggers não faz muito mais que
transformar fatores inibidores em fatores estimulantes, mantendo a mesma
concepção reativa das sociedades indígenas; e as teses de Descola sobre as
autolimitações históricas de um regime “anímico” ou sobre a homeostase jívaro
talvez não sejam, finalmente, tão distantes assim do deslocamento lévi-straussiano
do par natureza/sociedade para o plano das cosmologias indígenas e das ideias do
mesmo Lévi-Strauss, ou de Clastres, sobre a contenção estrutural que manteve as
sociedades amazônicas longe do produtivismo, do despotismo e do progressivismo.
Talvez seja realmente este o caso; mas não estou certo de que tal conclusão seria
epistemologicamente pessimista. Pois é provável que as perspectivas autopoiéticas e
alopoiéticas (Varela 1979) sobre a dicotomia natureza/sociedade sejam descrições
alternativas que se implicam mutuamente, e, portanto, que qualquer síntese deva
começar por reconhecer sua necessária complementaridade.
1. Agradeço a Alcida Ramos e William Balée pelas sugestões e indicações, e a
Philippe Descola pelo convite a expor alguns dos argumentos em seu seminário na
Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris), em novembro de 1995.
2. Os Jê e Bororo do Brasil Central, “Marginais” no Handbook, foram reclassificados
como “hunters and gatherers turned farmers” por Steward & Faron (1959: 285, 36273), e aproximados do tipo “Floresta Tropical”.
3. Dentre essas monografias (livros ou teses aparecidos entre 1976 e 1995),
recordem-se, p. ex.: DaMatta 1976; Gregor 1977; Carneiro da Cunha 1978; C.
Hugh-Jones 1979; S. Hugh-Jones 1979; Seeger 1981; Chaumeil 1983; Albert 1985;
Crocker 1985; Viveiros de Castro 1986a; Gallois 1988; Erikson 1990; Gow 1991a;
Santos 1991; Vilaça 1992; Gonçalves 2001; Lima 1995; Teixeira-Pinto 1997; Van
Velthem 1995.
4. Há mesmo quem estime, como Denevan (1992), que já não existiam quaisquer
florestas tropicais “virgens” em 1492, o que pode ser um tanto exagerado.
5. Cf. p. ex. S. Hugh-Jones 1993 e Rivière 1995, que aludem às teses de Roosevelt
sobre a várzea para sugerir que as hierarquias clânicas do Noroeste amazônico
teriam tido, no passado, uma significação socioeconômica muito mais marcada.
6. Por outro lado, conhecem-se economias da terra firme baseadas no cultivo do
milho, mas neste caso, curiosamente, parece tratar-se antes de um indício de
“regressão agrícola” que de avanço tecnológico (cf. Balée 1992).
7. Constate-se, além disso, a grande influência do tema do “ciclo de desenvolvimento
do grupo doméstico”, e em particular do célebre artigo de Leach (1958) sobre o
parentesco trobriandês, na interpretação do sistema de parentesco jê elaborada por
esse grupo de pesquisadores.
8. As semelhanças entre os modelos bidimensionais da estrutura social avançados
pelos etnólogos do Brasil Central e da Amazônia não devem ser exageradas; no
primeiro caso, há uma preocupação marcada com a totalização que não se encontra
no segundo. Ademais, o lugar e a função da alteridade nas topologias sociais
amazônia e centro-brasileiras parecem ser muito diferentes.
9. Sobre a questão das relações com o mundo animal na Amazônia, deve-se
consultar também o importante trabalho de Erikson 1984. Sobre a crítica à leitura
“totemizante” das sociocosmologias amazônicas, cf. também Viveiros de Castro
1986a.
CAPÍTULO 7
Brincando com o fotógrafo (Ipixuna, 1981)
Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena
A relatividade do espaço e do tempo tem sido imaginada como se
dependesse da escolha de um observador. É perfeitamente legítimo incluir
o observador, se ele facilita as explicações. Mas é do corpo do observador
que precisamos, não de sua mente.
A. N. Whitehead
Assim, a reciprocidade de perspectivas que vi como a característica
própria do pensamento mítico pode reivindicar um domínio de aplicação
muito mais vasto.
C. Lévi-Strauss
Introdução{1}
O tema deste ensaio é aquele aspecto do pensamento ameríndio que manifesta sua
“qualidade perspectiva” (Århem 1993) ou “relatividade perspectiva” (Gray 1996):
trata-se da concepção, comum a muitos povos do continente, segundo a qual o
mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e nãohumanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos. Os pressupostos e
consequências dessa ideia são irredutíveis (como mostrou Lima 1995: 425-38) ao
nosso conceito corrente de relativismo, que à primeira vista parecem evocar. Eles se
dispõem, a bem dizer, de modo exatamente ortogonal à oposição entre relativismo e
universalismo. Tal resistência do perspectivismo ameríndio aos termos de nossos
debates epistemológicos põe sob suspeita a robustez e a transportabilidade das
partições ontológicas que os alimentam. Em particular, como muitos antropólogos
já concluíram (embora por outros motivos), a distinção clássica entre Natureza e
Cultura não pode ser utilizada para descrever dimensões ou domínios internos a
cosmologias não-ocidentais sem passar antes por uma crítica etnológica rigorosa.
Tal crítica, no caso presente, exige a dissociação e redistribuição dos predicados
subsumidos nas duas séries paradigmáticas que tradicionalmente se opõem sob os
rótulos de Natureza e Cultura: universal e particular, objetivo e subjetivo, físico e
moral, fato e valor, dado e construído, necessidade e espontaneidade, imanência e
transcendência, corpo e espírito, animalidade e humanidade, e outros tantos. Esse
reembaralhamento das cartas conceituais leva-me a sugerir o termo
multinaturalismo para assinalar um dos traços contrastivos do pensamento
ameríndio em relação às cosmologias “multiculturalistas” modernas. Enquanto estas
se apoiam na implicação mútua entre unicidade da natureza e multiplicidade das
culturas – a primeira garantida pela universalidade objetiva dos corpos e da
substância, a segunda gerada pela particularidade subjetiva dos espíritos e do
significado{2} –, a concepção ameríndia suporia, ao contrário, uma unidade do
espírito e uma diversidade dos corpos. A cultura ou o sujeito seriam aqui a forma do
universal; a natureza ou o objeto, a forma do particular.
Essa inversão, talvez demasiado simétrica para ser mais que especulativa, devese desdobrar em uma interpretação fenomenologicamente rica das noções
cosmológicas ameríndias, capaz de determinar as condições de constituição dos
contextos que se poderiam chamar “natureza” e “cultura”. Recombinar, portanto, para
em seguida dessubstancializar, pois as categorias de Natureza e Cultura, no
pensamento ameríndio, não só não subsumem os mesmos conteúdos, como não
possuem o mesmo estatuto de seus análogos ocidentais; elas não assinalam regiões
do ser, mas antes configurações relacionais, perspectivas móveis, em suma – pontos
de vista.
Como está claro, penso que a distinção natureza/cultura deve ser criticada, mas
não para concluir que tal coisa não existe (já há coisas demais que não existem). O
“valor sobretudo metodológico” que Lévi-Strauss (1962b: 327) veio a lhe atribuir
será, aqui, entendido como valor sobretudo comparativo. A florescente indústria da
crítica ao caráter ocidentalizante de todo dualismo tem advogado o abandono de
nossa herança intelectual dicotômica; o problema é bem real, mas as
contrapropostas etnologicamente motivadas têm-se resumido, até agora, a
desideratos pós-binários antes verbais que propriamente conceituais. Prefiro,
enquanto espero, perspectivizar nossos contrastes, contrastando-os com as distinções
efetivamente operantes nas cosmologias ameríndias.
Perspectivismo
O estímulo inicial para esta reflexão foram as numerosas referências, na etnografia
amazônica, a uma concepção indígena segundo a qual o modo como os seres
humanos veem os animais e outras subjetividades que povoam o universo – deuses,
espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, plantas, fenômenos
meteorológicos, acidentes geográficos, objetos e artefatos – é profundamente diferente
do modo como esses seres veem os humanos e se veem a si mesmos.
Tipicamente, os humanos, em condições normais, veem os humanos como
humanos e os animais como animais; quanto aos espíritos, ver estes seres
usualmente invisíveis é um signo seguro de que as “condições” não são normais. Os
animais predadores e os espíritos, entretanto, veem os humanos como animais de
presa, ao passo que os animais de presa veem os humanos como espíritos ou como
animais predadores: “O ser humano se vê a si mesmo como tal. A lua, a serpente, o
jaguar e a mãe da varíola o veem, contudo, como um tapir ou um pecari, que eles
matam”, anota Baer (1994: 224) sobre os Machiguenga. Vendo-nos como nãohumanos, é a si mesmos que os animais e espíritos veem como humanos. Eles se
apreendem como, ou se tornam, antropomorfos quando estão em suas próprias
casas ou aldeias, e experimentam seus próprios hábitos e características sob a espécie
da cultura: veem seu alimento como alimento humano (os jaguares veem o sangue
como cauim, os mortos veem os grilos como peixes, os urubus veem os vermes da
carne podre como peixe assado etc.), seus atributos corporais (pelagem, plumas,
garras, bicos etc.) como adornos ou instrumentos culturais, seu sistema social como
organizado identicamente às instituições humanas (com chefes, xamãs, ritos, regras
de casamento etc.). Esse “ver como” refere-se literalmente a perceptos, e não
analogicamente a conceitos, ainda que, em alguns casos, a ênfase seja mais no
aspecto categorial que sensorial do fenômeno; de qualquer modo, os xamãs, mestres
do esquematismo cósmico (Taussig 1987: 462-63) dedicados a comunicar e
administrar as perspectivas cruzadas, estão sempre aí para tornar sensíveis os
conceitos ou inteligíveis as intuições.
Em suma, os animais são gente, ou se veem como pessoas. Tal concepção está
quase sempre associada à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é um
envoltório (uma “roupa”) a esconder uma forma interna humana, normalmente
visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como
os xamãs. {3} Essa forma interna é o espírito do animal: uma intencionalidade ou
subjetividade formalmente idêntica à consciência humana, materializável, digamos
assim, em um esquema corporal humano oculto sob a máscara animal. Teríamos
então, à primeira vista, uma distinção entre uma essência antropomorfa de tipo
espiritual, comum aos seres animados, e uma aparência corporal variável,
característica de cada espécie, mas que não seria um atributo fixo, e sim uma roupa
trocável e descartável. A noção de “roupa” é, com efeito, uma das expressões
privilegiadas da metamorfose – espíritos, mortos e xamãs que assumem formas
animais, bichos que viram outros bichos, humanos que são inadvertidamente
mudados em animais –, processo onipresente no “mundo altamente
transformacional” (Rivière 1994) proposto pelas culturas amazônicas. {4}
Essas concepções são consignadas em várias etnografias sul-americanas, mas
foram, via de regra, objeto de registros sucintos, e parecem ser muito desigualmente
elaboradas pelas cosmologias em pauta. {5} Elas se acham também, e ali com um
valor talvez ainda mais pregnante, nas culturas da zona setentrional da América do
Norte e da Ásia, e mais raramente entre alguns caçadores-coletores tropicais de
outros continentes. {6} Na América do Sul, as sociedades do noroeste amazônico
mostram os desenvolvimentos mais completos (ver Århem 1993 e 1996, em quem a
caracterização que precede foi largamente inspirada; Reichel-Dolmatoff 1985; S.
Hugh-Jones 1996a). Mas são as etnografias de Vilaça (1992) sobre o canibalismo
wari’ e de Lima (1995) sobre a epistemologia juruna que trazem as contribuições
mais diretamente afins ao presente trabalho, por ligarem a questão dos pontos de
vista não-humanos e da natureza relacional das categorias cosmológicas ao quadro
mais amplo das manifestações de uma economia geral da alteridade (Viveiros de
Castro 1993a 1996a). {7}
Alguns esclarecimentos iniciais são necessários. Em primeiro lugar, o
perspectivismo raramente se aplica em extensão a todos os animais (além de
englobar outros seres); ele parece incidir mais frequentemente sobre espécies como os
grandes predadores e carniceiros, tais o jaguar, a sucuri, os urubus ou a harpia, bem
como sobre as presas típicas dos humanos, tais o pecari, os macacos, os peixes, os
veados ou a anta. Pois uma das dimensões básicas, talvez mesmo a dimensão
constitutiva, das inversões perspectivas diz respeito aos estatutos relativos e
relacionais de predador e presa. {8} A ontologia amazônica da predação é um
contexto pragmático e teórico altamente propício ao perspectivismo.
Em segundo lugar, a “personitude” e a “perspectividade” – a capacidade de ocupar
um ponto de vista – são uma questão de grau e de situação, mais que propriedades
diacríticas fixas desta ou daquela espécie. Alguns não-humanos atualizam essas
potencialidades de modo mais completo que outros; certos deles, aliás, manifestamnas com uma intensidade superior à de nossa própria espécie, e, neste sentido, são
“mais pessoas” que os humanos (Hallowell 1960: 69). Além disso, a questão possui
uma qualidade a posteriori essencial. A possibilidade de que um ser até então
insignificante revele-se como um agente prosopomórfico capaz de afetar os negócios
humanos está sempre aberta; a experiência pessoal, própria ou alheia, é mais
decisiva que qualquer dogma cosmológico substantivo.
Nem sempre é o caso, além disso, que almas ou subjetividades sejam atribuídas
aos representantes individuais, empíricos, das espécies vivas; há exemplos de
cosmologias que negam a todos os animais pós-míticos a capacidade de consciência,
ou algum outro predicado espiritual. {9} Entretanto, a noção de espíritos “donos” dos
animais (“Mães da caça”, “Mestres dos queixadas” etc.) é, como se sabe, de enorme
difusão no continente. Esses espíritos-mestres, invariavelmente dotados de uma
intencionalidade análoga à humana, funcionam como hipóstases das espécies
animais a que estão associados, criando um campo intersubjetivo humano-animal
mesmo ali onde os animais empíricos não são espiritualizados. Acrescente-se que a
distinção entre os animais vistos sob seu aspecto-alma e os espíritos-mestres das
espécies nem sempre é clara ou pertinente (Alexiades 1999: 194); de resto, é sempre
possível que aquilo que, ao toparmos com ele na mata, parecia ser apenas um bicho
revele-se como o disfarce de um espírito de natureza completamente diferente.
Recordemos, por fim e sobretudo, que, se há uma noção virtualmente universal
no pensamento ameríndio, é aquela de um estado originário de indiferenciação entre
os humanos e os animais, descrito pela mitologia:
[O que é um mito?] – Se você perguntasse a um índio americano, é muito provável
que ele respondesse: é uma história do tempo em que os homens e os animais
ainda não se distinguiam. Esta definição me parece muito profunda (Lévi-Strauss
& Eribon 1988: 193).
As narrativas míticas são povoadas de seres cuja forma, nome e comportamento
misturam inextricavelmente atributos humanos e não-humanos, em um contexto
comum de intercomunicabilidade idêntico ao que define o mundo intra-humano
atual. O perspectivismo ameríndio conhece então no mito um lugar, geométrico por
assim dizer, onde a diferença entre os pontos de vista é ao mesmo tempo anulada e
exacerbada. Nesse discurso absoluto, cada espécie de ser aparece aos outros seres
como aparece para si mesma – como humana –, e entretanto age como se já
manifestando sua natureza distintiva e definitiva de animal, planta ou espírito. De
certa forma, todos os personagens que povoam a mitologia são xamãs, o que, aliás,
é afirmado por algumas culturas amazônicas (Guss 1989: 52). Discurso sem sujeito,
disse Lévi-Strauss do mito (1964: 19); discurso “só sujeito”, poderíamos igualmente
dizer, desta vez falando não da enunciação do discurso, mas de seu enunciado. Ponto
de fuga universal do perspectivismo, o mito fala de um estado do ser onde os corpos
e os nomes, as almas e as ações, o eu e o outro se interpenetram, mergulhados em
um mesmo meio pré-subjetivo e pré-objetivo. Meio cujo fim, justamente, a mitologia
se propõe a contar.
Tal fim – também no sentido de finalidade – é, como sabemos, aquela
diferenciação entre cultura e natureza analisada na monumental tetralogia de LéviStrauss (1964, 1966, 1967, 1971). Este processo, porém, e o ponto foi relativamente
pouco notado, não fala de uma diferenciação do humano a partir do animal, como é
o caso em nossa mitologia evolucionista moderna. A condição original comum aos
humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. A grande divisão
mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza se
afastando da cultura: os mitos contam como os animais perderam os atributos
herdados ou mantidos pelos humanos (Lévi-Strauss 1985: 14, 190; Brightman
1993: 40, 160). Os humanos são aqueles que continuaram iguais a si mesmos: os
animais são exhumanos, e não os humanos ex-animais. {10}
Em algumas etnografias amazônicas, encontra-se claramente formulada a ideia
de que a humanidade é a matéria do plenum primordial, ou a forma originária de
virtualmente tudo, não apenas dos animais:
A mitologia dos Campa é, em larga medida, a história de como, um a um, os
Campa primordiais foram irreversivelmente transformados nos primeiros
representantes de várias espécies de animais e plantas, bem como de corpos celestes
ou de acidentes geográficos. […] O desenvolvimento do universo, portanto, foi um
processo de diversificação, e a humanidade é a substância primeva a partir da qual
emergiram muitas, senão todas as categorias de seres e coisas no universo; os
Campa de hoje são os descendentes dos Campa ancestrais que escaparam à
transformação (Weiss 1972: 169-70).
Assim, se nossa antropologia popular vê a humanidade como erguida sobre alicerces
animais, normalmente ocultos pela cultura – tendo outrora sido “completamente”
animais, permanecemos, “no fundo”, animais –, o pensamento indígena conclui ao
contrário que, tendo outrora sido humanos, os animais e outros seres do cosmos
continuam a ser humanos, mesmo que de modo não-evidente.
Em suma, para os ameríndios “o referencial comum a todos os seres da natureza
não é o homem enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição” (Descola
1986: 120). Esta distinção entre a espécie e a condição humanas deve ser sublinhada.
{11} Ela tem uma conexão evidente com a ideia das roupas animais a esconder uma
“essência” humano-espiritual comum, e com o problema do sentido geral do
perspectivismo.
Xamanismo
O perspectivismo ameríndio está associado a duas características recorrentes na
Amazônia: a valorização simbólica da caça, e a importância do xamanismo. {12}
No que respeita à caça, sublinhe-se que se trata de uma ressonância simbólica, não
de uma dependência ecológica: horticultores aplicados como os Tukano ou os Juruna
– que além disso são principalmente pescadores – não diferem muito dos grandes
caçadores do Canadá e Alasca quanto ao peso cosmológico conferido à predação
animal (venatória ou haliêutica), à subjetivação espiritual dos animais, e à teoria de
que o universo é povoado de intencionalidades extra-humanas dotadas de
perspectivas próprias. {13} Nesse sentido, a espiritualização das plantas, meteoros e
artefatos talvez pudesse ser vista como secundária ou derivada diante da
espiritualização dos animais: o animal parece ser o protótipo extra-humano do
Outro, mantendo uma relação privilegiada com outras figuras prototípicas da
alteridade, como os afins. {14}
Ideologia de caçadores, esta é também e sobretudo uma ideologia de xamãs. A
noção de que os não-humanos atuais possuem um lado prosopomórfico invisível é
um pressuposto fundamental de várias dimensões da prática indígena; mas ela vem
ao primeiro plano em um contexto particular, o xamanismo. O xamanismo
amazônico pode ser definido como a habilidade manifesta por certos indivíduos de
cruzar deliberadamente as barreiras corporais e adotar a perspectiva de
subjetividades aloespecíficas, de modo a administrar as relações entre estas e os
humanos. Vendo os seres não-humanos como estes se veem (como humanos), os
xamãs são capazes de assumir o papel de interlocutores ativos no diálogo
transespecífico; sobretudo, eles são capazes de voltar para contar a história, algo que
os leigos dificilmente podem fazer. O encontro ou o intercâmbio de perspectivas é um
processo perigoso, e uma arte política – uma diplomacia. Se o “multiculturalismo”
ocidental é o relativismo como política pública, o perspectivismo xamânico
ameríndio é o multinaturalismo como política cósmica.
O xamanismo é um modo de agir que implica um modo de conhecer, ou, antes,
um certo ideal de conhecimento. Tal ideal é, sob vários aspectos, o oposto polar da
epistemologia objetivista favorecida pela modernidade ocidental. Nesta última, a
categoria do objeto fornece o telos: conhecer é objetivar; é poder distinguir no objeto o
que lhe é intrínseco do que pertence ao sujeito cognoscente, e que, como tal, foi
indevida e/ou inevitavelmente projetado no objeto. Conhecer, assim, é dessubjetivar,
explicitar a parte do sujeito presente no objeto, de modo a reduzi-la a um mínimo
ideal. Os sujeitos, tanto quanto os objetos, são vistos como resultantes de processos de
objetivação: o sujeito se constitui ou reconhece a si mesmo nos objetos que produz, e
se conhece objetivamente quando consegue se ver “de fora”, como um “isso”. Nosso
jogo epistemológico se chama objetivação; o que não foi objetivado permanece irreal
e abstrato. A forma do Outro é a coisa.
O xamanismo ameríndio parece guiado pelo ideal inverso. Conhecer é
personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido – daquilo, ou,
antes, daquele; pois o conhecimento xamânico visa um “algo” que é um “alguém”, um
outro sujeito ou agente. A forma do Outro é a pessoa. {15}
Para usar um vocabulário em voga, eu diria que a personificação ou subjetivação
xamânicas refletem uma propensão a universalizar a “atitude intencional” destacada
por Dennett (1978) e outros filósofos modernos da mente (ou filósofos da mente
moderna). Sendo mais preciso – visto que os índios são perfeitamente capazes de
adotar as atitudes “física” e “funcional” (op. cit.) em sua vida cotidiana –, diria que
estamos diante de um ideal epistemológico que, longe de buscar reduzir a
“intencionalidade ambiente” a zero a fim de atingir uma representação absolutamente
objetiva do mundo, toma a decisão oposta: o conhecimento verdadeiro visa à
revelação de um máximo de intencionalidade, por via de um processo de “abdução
de agência” (Gell 1998) sistemático e deliberado. Eu disse acima que o xamanismo
era uma arte política. O que estou dizendo, agora, é que ele é uma arte política. {16}
Pois a boa interpretação xamânica é aquela que consegue ver cada evento como
sendo, em verdade, uma ação, uma expressão de estados ou predicados intencionais
de algum agente (id. ibid.: 16-18). O sucesso interpretativo é diretamente
proporcional à ordem de intencionalidade que se consegue atribuir ao objeto ou
noema. {17} Um ente ou um estado de coisas que não se presta à subjetivação, ou
seja, à determinação de sua relação social com aquele que conhece, é
xamanisticamente insignificante – é um resíduo epistêmico, um “fator impessoal”
resistente ao conhecimento preciso. Nossa epistemologia objetivista, escusado dizer,
toma o rumo oposto: ela considera a atitude intencional do senso comum como uma
mera ficção cômoda, algo que adotamos quando o comportamento do objeto-alvo é
complicado demais para ser decomposto em processos físicos elementares. Uma
explicação científica exaustiva do mundo deve poder reduzir toda ação a uma cadeia
de eventos causais, e estes a interações materialmente densas (nada de “ação” a
distância).
Em suma, se no mundo naturalista da modernidade um sujeito é um objeto
insuficientemente analisado, a convenção interpretativa ameríndia segue o princípio
inverso: um objeto é um sujeito incompletamente interpretado. Aqui, é preciso saber
personificar, porque é preciso personificar para saber. O objeto da interpretação é a
contrainterpretação do objeto. {18} Pois este deve, ou ser expandido até atingir sua
forma intencional plena – de espírito, de animal em sua face humana –, ou, no
mínimo, ter sua relação com um sujeito demonstrada, isto é, ser determinado como
algo que existe “na vizinhança” de um agente (Gell op. cit.). No que respeita a esta
segunda opção, a ideia de que os agentes não-humanos percebem-se a si mesmos e a
seu comportamento sob a forma da cultura humana desempenha um papel crucial.
A tradução da “cultura” para os mundos das subjetividades extra-humanas tem
como corolário a redefinição de vários eventos e objetos “naturais” como sendo
índices a partir dos quais a agência social pode ser abduzida. O caso mais comum é
a transformação de algo que, para os humanos, é um mero fato bruto, em um
artefato ou comportamento altamente civilizados, do ponto de vista de outra espécie:
o que chamamos “sangue” é a “cerveja” do jaguar; o que temos por um barreiro
lamacento, as antas têm por uma grande casa cerimonial, e assim por diante. Os
artefatos possuem esta ontologia interessantemente ambígua: são objetos, mas
apontam necessariamente para um sujeito, pois são como ações congeladas,
encarnações materiais de uma intencionalidade não-material (Gell 1998:16-18, 67).
E, assim, o que uns chamam de “natureza” pode bem ser a “cultura” dos outros. Eis
aí uma lição que a antropologia poderia aproveitar. {19}
Animismo
O leitor terá advertido que meu “perspectivismo” evoca a noção de “animismo”,
recentemente recuperada por Descola (1992, 1996) para designar um modo de
articulação das séries natural e social que seria o simétrico e inverso do totemismo.
Afirmando que toda conceitualização dos não-humanos é sempre referida ao
domínio social, Descola distingue três modos de “objetivação da natureza”: o
totemismo, onde as diferenças entre as espécies naturais são utilizadas para organizar
logicamente a ordem interna à sociedade, isto é, onde a relação entre natureza e
cultura é de tipo metafórico e marcada pela descontinuidade intra- e inter-serial; o
animismo, onde as “categorias elementares da vida social” organizam as relações
entre os humanos e as espécies naturais, definindo assim uma continuidade de tipo
sociomórfico entre natureza e cultura, fundada na atribuição de “disposições humanas
e características sociais aos seres naturais” (id. 1996: 87-88); e o naturalismo, típico
das cosmologias ocidentais, que supõe uma dualidade ontológica entre natureza,
domínio da necessidade, e cultura, domínio da espontaneidade, regiões separadas por
uma descontinuidade metonímica. O “modo anímico” seria característico das
sociedades onde o animal é “foco estratégico de objetivação da natureza e de sua
socialização” (id. 1992: 115), como na América indígena, reinando soberano
naquelas morfologias sociais desprovidas de segmentação interna elaborada. Mas ele
pode se apresentar em coexistência ou combinação com o totemismo, ali onde tais
segmentações existem, como no caso dos Bororo e seu dualismo aroe/bope (Crocker
1985).
A teoria de Descola é mais um exemplo da insatisfação generalizada com a
ênfase unilateral na metáfora, no totemismo e na lógica classificatória que
marcaria a imagem lévi-straussiana do pensamento selvagem. Tal insatisfação
suscitou várias tentativas recentes de exploração da face oculta da lua
estruturalista, que buscavam resgatar o sentido radical de conceitos como
“participação” ou “animismo”, afastados pelo intelectualismo de Lévi-Strauss. {20}
Não obstante, está claro que muitas das proposições de Descola (como ele seria o
primeiro a admitir) já estão presentes na obra desse autor. Assim, as “categorias
elementares de estruturação da vida social” que organizariam as relações entre
humanos e não-humanos são essencialmente, nos casos amazônicos discutidos
por Descola, as categorias de parentesco, e em particular as categorias da
consanguinidade e da afinidade. Ora, em O pensamento selvagem lê-se a
observação que já citei alhures (cap. 2 supra):
Entre as populações onde as classificações totêmicas e as especializações
funcionais têm um rendimento muito reduzido, isto quando não estão
completamente ausentes, as trocas matrimoniais podem fornecer um modelo
diretamente aplicável à mediação da natureza e da cultura (Lévi-Strauss
1962b: 170).
Isso é uma prefiguração concisa do que muitos etnógrafos vieram a escrever,
mais tarde, sobre o papel da afinidade como operador cosmológico na
Amazônia. Ao sugerir, outrossim, a distribuição complementar desse modelo de
troca entre natureza e cultura e dos sistemas totêmicos, Lévi-Strauss parece estar
visando algo muito semelhante ao modelo anímico aqui discutido. Outra
convergência: Descola menciona os Bororo como exemplo de coexistência entre
animismo e totemismo; mas poderia ter citado também o caso dos Ojibwa,
onde a coabitação dos sistemas totem e manido (Lévi-Strauss 1962a: 25-33), que
serviu de matriz para a oposição geral entre totemismo e sacrifício (id. 1962b:
295-302), pode ser diretamente interpretada no quadro da distinção
totemismo/animismo. {21}
Vou concentrar meu comentário no contraste entre animismo e naturalismo; ele é um
bom ponto de partida para a apreensão da diferença característica do perspectivismo
ameríndio. Tomo o contraste em sentido ligeiramente diferente do original, pois
penso que a descrição do naturalismo moderno exclusivamente em termos de
“dualismo ontológico” é algo incompleta. Quanto ao totemismo, ele me parece um
fenômeno heterogêneo, antes classificatório que ontológico: não é um sistema de
relações entre natureza e cultura, como os outros dois modos, mas de correlações
puramente lógicas e diferenciais. Fiquemos assim, por ora, com o animismo e o
naturalismo.
O animismo pode ser definido como uma ontologia que postula o caráter social
das relações entre as séries humana e não-humana: o intervalo entre natureza e
sociedade é ele próprio social. O naturalismo está fundado no axioma inverso: as
relações entre sociedade e natureza são elas próprias naturais. Com efeito, se no
modo anímico a distinção natureza/cultura é interna ao mundo social, pois humanos
e animais acham-se imersos no mesmo meio sociocósmico (e neste sentido a
natureza é parte de uma socialidade englobante), na ontologia naturalista a mesma
distinção é interna à natureza (e neste sentido a sociedade humana é um fenômeno
natural entre outros). O animismo tem a sociedade como polo não-marcado, o
naturalismo, a natureza: esses polos funcionam respectiva e contrastivamente como a
dimensão do universal de cada modo. Animismo e naturalismo são, portanto,
estruturas assimétricas e metonímicas (o que os distingue do totemismo, estrutura
metafórica e equipolente). {22}
Em nossa ontologia naturalista, a interface sociedade/natureza é natural: os
humanos são organismos como os outros, corpos-objetos em interação “ecológica”
com outros corpos e forças, todos regulados pelas leis necessárias da biologia e da
física; as “forças produtivas” aplicam as forças naturais. Relações sociais, isto é,
relações contratuais ou instituídas entre sujeitos, só podem existir no interior da
sociedade humana. Mas – e este é o problema do naturalismo – quão “não-naturais”
são essas relações? Dada a universalidade da natureza, o estatuto do mundo humano
e social é profundamente instável, e, como mostra nossa tradição, perpetuamente
oscilante entre o monismo naturalista (de que a sociobiologia ou a psicologia
evolucionária são dois dos avatares atuais) e o dualismo ontológico natureza/cultura
(de que o culturalismo ou a antropologia simbólica são algumas das expressões
contemporâneas). {23} A afirmação deste último dualismo e seus correlatos
(corpo/mente, razão pura/razão prática etc.), porém, só faz reforçar o caráter de
referencial último da noção de Natureza, ao se revelar descendente em linha direta da
oposição teológica entre esta e a noção de Sobrenatureza, de etimologia transparente.
Pois a Cultura é o nome moderno do Espírito – recorde-se a distinção entre as
Naturwissenschaften e as Geisteswissenschaften –, ou pelo menos o nome do
compromisso incerto entre a Natureza e a Graça. Do lado do animismo, seríamos
tentados a dizer que a instabilidade está no polo oposto: o problema aqui é
administrar a mistura de cultura e natureza presente nos animais, e não, como entre
nós, a combinação de humanidade e animalidade que constitui os humanos; a
questão é diferenciar uma natureza a partir do sociomorfismo universal, e um corpo
“particularmente” humano a partir de um espírito “público”, transespecífico.
Muito bem. Mas é realmente possível, e sobretudo interessante, definir o
animismo como uma projeção das diferenças e qualidades internas ao mundo
humano sobre o mundo não-humano, isto é, como um modelo “sociocêntrico” onde
categorias e relações intra-humanas são usadas para mapear o universo (Descola
1996)? Tal interpretação projetivista é explícita em algumas glosas da teoria: “se os
sistemas totêmicos tomam a natureza por modelo da sociedade, então os sistemas
anímicos tomam a sociedade por modelo da natureza” (Århem 1996: 185). O
problema aqui, obviamente, é o de evitar uma indesejável proximidade com a
acepção tradicional do termo “animismo”, ou com a redução das “classificações
primitivas” a emanações da morfologia social; mas é também o de ir além de outras
caracterizações clássicas da relação sociedade/natureza, notadamente a que devemos
a Radcliffe-Brown, em seu primeiro artigo sobre o totemismo. {24}
Ingold (1991, 1996) mostrou como os esquemas de projeção metafórica ou de
modelização social da natureza escapam do reducionismo naturalista apenas para
caírem em um dualismo natureza/ cultura que, ao distinguir entre uma natureza
“realmente natural” e uma natureza “culturalmente construída”, revela-se como uma
típica antinomia cosmológica, viciada pela regressão ao infinito. A noção de modelo
ou analogia supõe a distinção prévia entre um domínio onde as relações sociais são
constitutivas e literais e outro onde elas são representativas e metafóricas. Em outras
palavras, a ideia de que humanos e animais estão ligados por uma socialidade
comum depende contraditoriamente de uma descontinuidade ontológica primeira. O
animismo, interpretado como projeção da socialidade humana sobre o mundo nãohumano, não passaria da metáfora de uma metonímia, permanecendo cativo de
uma leitura “totêmica” ou classificatória. {25}
Entre as questões que restam a resolver, portanto, está a de saber se o animismo
pode ser descrito como um uso figurado de categorias do domínio humano-social
para conceitualizar o domínio dos não-humanos e suas relações com o primeiro.
Isso redunda em indagar até que ponto o perspectivismo, que poderia ser visto como
uma espécie de corolário do “animismo” de Descola, exprime realmente um
antropocentrismo. O que significa, afinal, dizer que os animais são pessoas?
Outra questão: se o animismo depende da atribuição aos animais das mesmas
faculdades sensíveis dos homens, e de uma mesma forma de subjetividade, isto é, se
os animais são “essencialmente” humanos, qual então a diferença entre os humanos e
os animais? Se os animais são gente, por que não nos veem como gente? Por que,
justamente, o perspectivismo? Cabe também perguntar se a noção de formas
corporais contingentes (as “roupas”) pode ser de fato descrita em termos de uma
oposição entre aparência e essência (Descola 1986: 120; Århem 1993: 122; Rivière
1994; S. Hugh-Jones 1996a).
E, por fim, se o animismo é um modo de objetivação da natureza onde o
dualismo natureza/cultura não vigora, o que fazer com as abundantes indicações a
respeito da centralidade dessa oposição nas cosmologias sul-americanas? Tratar-seia apenas de mais uma “ilusão totêmica”, se não de uma projeção ingênua de nosso
dualismo ocidental? É possível fazer um uso mais que sinóptico dos conceitos de
Natureza e Cultura, ou eles seriam apenas “rótulos genéricos” (Descola 1996: 84)
usados nas Mitológicas para organizar os múltiplos contrastes semânticos dos mitos
americanos, contrastes estes irredutíveis a uma dicotomia única e fundamental?
Etnocentrismo
Em um texto muito conhecido, Lévi-Strauss observa que, para os selvagens, a
humanidade cessa nas fronteiras do grupo, concepção que se exprimiria
exemplarmente na grande difusão de autoetnônimos cujo significado é “os humanos
verdadeiros”, e que implicam portanto uma definição dos estrangeiros como
pertencentes ao domínio do extra-humano. O etnocentrismo não seria assim o triste
privilégio dos ocidentais, mas uma atitude ideológica natural, inerente aos coletivos
humanos. O autor ilustra a reciprocidade universal de tal atitude com uma anedota:
Nas Grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta da América, enquanto os
espanhóis enviavam comissões de inquérito para investigar se os indígenas tinham
ou não uma alma, estes se dedicavam a afogar os brancos que aprisionavam, a fim
de verificar, por uma demorada observação, se seus cadáveres eram ou não sujeitos
à putrefação. (Lévi- Strauss 1952c: 384)
Lévi-Strauss extrai dessa parábola a lição paradoxal: “O bárbaro é, antes de mais
nada, o homem que crê na existência da barbárie”. Alguns anos depois, ele iria
recontar o caso das Antilhas, mas dessa vez sublinhando a assimetria das
perspectivas: em suas investigações sobre a humanidade do Outro, os brancos
apelavam para as ciências sociais, os índios, para as ciências naturais; e, se os
primeiros concluíam que os índios eram animais, os segundos se contentavam em
desconfiar que os brancos fossem divindades (id. 1955a: 82-83). “À ignorance égale”,
conclui o autor, a última atitude era mais digna de seres humanos.
A anedota revela algo mais, como veremos. Por ora, observe-se que seu “ponto”
geral é simples: os índios, como os invasores europeus, consideravam que apenas o
grupo a que pertenciam encarnava a humanidade; os estrangeiros estavam do outro
lado da fronteira que separa os humanos dos animais e espíritos, a cultura da
natureza e da sobrenatureza. Matriz e condição de possibilidade do etnocentrismo, a
oposição natureza/cultura aparece como um universal da apercepção social. Em
suma, a resposta à questão dos investigadores espanhóis era positiva: os selvagens,
realmente, têm alma. {26}
No tempo em que Lévi-Strauss escrevia essas linhas, a estratégia para se fazer
valer a plena humanidade dos selvagens, e assim indistingui-los de nós, era mostrar
que eles faziam as mesmas distinções que nós: a prova de que eles eram verdadeiros
humanos é que consideravam que somente eles eram humanos verdadeiros. Como
nós, eles distinguiam a cultura da natureza, e também achavam que os Naturvölker
são os outros. A universalidade da distinção cultural entre natureza e cultura atestava
a universalidade da Cultura como Natureza do humano.
Agora, porém, tudo mudou. Os selvagens não são mais etnocêntricos, mas
cosmocêntricos; em lugar de precisarmos provar que eles são humanos porque se
distinguem dos animais, trata-se agora de mostrar quão pouco humanos somos
nós, que opomos humanos e não-humanos de um modo que eles nunca fizeram:
para eles, natureza e cultura são parte de um mesmo campo sociocósmico. Os
ameríndios não somente passariam ao largo do Grande Divisor cartesiano que
separou a humanidade da animalidade, como sua concepção social do cosmos (e
cósmica da sociedade) anteciparia as lições fundamentais da ecologia, que apenas
agora estamos em condições de assimilar (Reichel-Dolmatoff 1976; Wagner 1977).
Antes, ironizava-se a recusa, por parte dos índios, de conceder os predicados da
humanidade a outros homens; agora se sublinha que eles estendem tais predicados
muito além das fronteiras da espécie, em uma demonstração de sabedoria “ecosófica”
(Århem 1993) que devemos emular, tanto quanto permitam os limites de nosso
objetivismo. {27} Outrora, era preciso contestar a assimilação do pensamento
selvagem ao animismo narcísico, estágio infantil do naturalismo, mostrando que o
totemismo afirmava a distinção cognitiva entre o homem e a natureza. Hoje, o
animismo é de novo imputado aos selvagens, mas desta vez ele é largamente
proclamado (não por Descola, apresso-me a sublinhar) como reconhecimento
verdadeiro, ou ao menos “válido”, da mestiçagem universal entre sujeitos e objetos,
humanos e não-humanos, a que nós modernos sempre estivemos cegos, por conta de
nosso hábito tolo, para não dizer pecaminoso, de pensar por dicotomias. Da húbris
moderna, salvem-nos assim os híbridos primitivos e pós-modernos.
Duas antinomias, portanto, que são de fato uma só: ou os ameríndios são
etnocentricamente avaros na extensão do conceito de humanidade, e opõem
totemicamente natureza e cultura; ou eles são cosmocêntricos e anímicos, e não
professam tal distinção, sendo mesmo modelos de tolerância relativista, ao admitir a
multiplicidade de pontos de vista sobre o mundo. Em suma: fechamento sobre si, ou
“abertura ao Outro” (Lévi-Strauss 1991: 16)?
Penso que a solução para essas antinomias não está em escolher um lado,
sustentando, por exemplo, que a versão mais recente é a justa e relegando a outra às
trevas pré-pós-modernas. Trata-se mais bem de mostrar que tanto a tese como a
antítese são razoáveis (ambas correspondem a intuições etnográficas sólidas), mas
que elas apreendem os mesmos fenômenos sob aspectos distintos; e também de
mostrar que ambas são imprecisas, por pressuporem uma concepção substantivista
das categorias de natureza e cultura (seja para afirmá-las ou para negá-las)
inaplicável às cosmologias ameríndias.
A primeira coisa a considerar é que as palavras indígenas que se costumam
traduzir por “ser humano”, e que entram na composição das tais autodesignações
etnocêntricas, não denotam a humanidade como espécie natural, mas a condição
social de pessoa, e, sobretudo quando modificadas por intensificadores do tipo “de
verdade”, “realmente”, “genuínos”, funcionam, pragmática quando não sintaticamente,
menos como substantivos que como pronomes. Elas indicam a posição de sujeito;
são um marcador enunciativo, não um nome. Longe de manifestarem um
afunilamento semântico do nome comum ao próprio (tomando “gente” para nome
da tribo), essas palavras fazem o oposto, indo do substantivo ao perspectivo (usando
“gente” como a expressão pronominal “a gente”). Por isso, as categorias indígenas de
identidade coletiva têm aquela enorme variabilidade de escopo característica dos
pronomes, marcando contrastiva e contextualmente desde a parentela imediata de
um Ego até todos os humanos, ou todos os seres dotados de consciência; sua
coagulação como etnônimo parece ser, na maioria dos casos, um artefato produzido
no contexto da interação com o etnógrafo. Não é, tampouco, por acaso que a
maioria dos etnônimos ameríndios que passaram à literatura não são
autodesignações, mas nomes (frequentemente pejorativos) conferidos por outros
povos: a objetivação etnonímica incide primordialmente sobre os outros, não sobre
quem está em posição de sujeito (ver Urban 1996: 32-44). Os etnônimos são nomes
de terceiros, pertencem à categoria do “eles”, não à categoria do “nós“. {28} Isso é
consistente, aliás, com uma difundida evitação da autorreferência no plano da
onomástica pessoal: os nomes não são pronunciados por seus portadores, ou em sua
presença; nomear é externalizar, separar (d)o sujeito.
Assim, as autodesignações coletivas de tipo “gente” significam “pessoas”, não
“membros da espécie humana”; e elas são pronomes pessoais, registrando o ponto de
vista do sujeito que está falando, e não nomes próprios. Dizer então que os animais e
espíritos são gente é dizer que são pessoa; é atribuir aos não-humanos as capacidades
de intencionalidade consciente e de agência que facultam a ocupação da posição
enunciativa de sujeito. Tais capacidades são reificadas na alma ou espírito de que
esses não-humanos são dotados. É sujeito quem tem alma, e tem alma quem é
capaz de um ponto de vista. As almas ou subjetividades ameríndias, humanas ou
não-humanas, são assim categorias perspectivas, dêiticos cosmológicos cuja análise
pede menos uma psicologia substancialista que uma pragmática do signo (Viveiros
de Castro 1992b; Taylor 1993a; 1996). {29}
Todo ser a que se atribui um ponto de vista será então sujeito, espírito; ou melhor,
ali onde estiver o ponto de vista, também estará a posição de sujeito. Enquanto nossa
cosmologia construcionista pode ser resumida na fórmula saussureana: o ponto de
vista cria o objeto – o sujeito sendo a condição originária fixa de onde emana o ponto
de vista –, o perspectivismo ameríndio procede segundo o princípio de que o ponto de
vista cria o sujeito; será sujeito quem se encontrar ativado ou “agenciado” pelo ponto
de vista. {30} É por isso que termos como wari’ (Vilaça 1992), dene (McDonnell
1984) ou masa (Århem 1993)significam “gente”, mas podem ser ditos por – e
portanto ditos de – classes muito diferentes de seres; ditos pelos humanos, designam
os seres humanos, mas ditos pelos queixadas, guaribas ou castores, eles se
autorreferem aos queixadas, guaribas ou castores.
Sucede que esses não-humanos colocados em perspectiva de sujeito não se “dizem”
apenas gente; eles se veem morfológica e culturalmente como humanos, conforme
explicam os xamãs e, mais geralmente, professam os leigos. {31} A espiritualização
simbólica dos animais implicaria sua hominização e culturalização imaginárias; o
caráter antropocêntrico do pensamento indígena, assim, parece inquestionável. Mas
creio que se trata de algo completamente diferente. Todo ser que ocupa vicariamente o
ponto de vista de referência, estando em posição de sujeito, apreende-se sob a espécie
da humanidade. A forma corporal humana e a cultura – os esquemas de percepção e
ação “encorporados”{32} em disposições específicas – são atributos pronominais do
mesmo tipo que as autodesignações acima discutidas. Esquematismos reflexivos ou
aperceptivos (“reificações” sensu Strathern 1988), tais atributos são o modo mediante
o qual todo agente se apreende, e não predicados literais e constitutivos da espécie
humana projetados “metaforicamente”, ou seja, impropriamente, sobre os nãohumanos. Esses atributos são imanentes ao ponto de vista, e se deslocam com ele. O
ser humano – naturalmente – goza da mesma prerrogativa, e portanto, como diz a
enganadora tautologia de Baer (ver supra p. 350), “vê-se a si mesmo como tal”.
Deixemos claro: os animais e outros entes dotados de alma não são sujeitos
porque são humanos (disfarçados), mas o contrário – eles são humanos porque são
sujeitos (potenciais). Isto significa dizer que a Cultura é a natureza do Sujeito; ela é a
forma pela qual todo agente experimenta sua própria natureza. O animismo não é
uma projeção figurada das qualidades humanas substantivas sobre os nãohumanos; o que ele exprime é uma equivalência real entre as relações que humanos e
não-humanos mantêm consigo mesmos: os lobos veem os lobos como os humanos
veem os humanos – como humanos. O homem pode bem ser, é claro, um “lobo
para o homem”; mas, em outro sentido, o lobo é um homem para o lobo. Pois se,
como sugeri, a condição comum aos humanos e animais é a humanidade, não a
animalidade, é porque humanidade é o nome da forma geral do Sujeito.
A atribuição de consciência e intencionalidade de tipo humano (para não
falarmos na forma corporal e nos hábitos culturais) aos seres não-humanos
costuma ser indiferentemente denominada de “antropocentrismo” ou de
“antropomorfismo”. Penso, porém, que esses dois rótulos devem ser tomados
como designando atitudes cosmológicas antagônicas. O evolucionismo popular
ocidental, por exemplo, é ferozmente antropocêntrico, mas não me parece ser
particularmente antropomórfico. Por seu turno, o animismo indígena pode ser
qualificado de antropomórfico, mas certamente não de antropocêntrico. Pois, se
uma legião de seres outros que os humanos são “humanos” – então nós os
humanos não somos assim tão especiais. O velho narcisismo primitivo é uma
balela. Para se achar um verdadeiro caso de narcisismo, é preciso ir aos
modernos. Ao jovem Marx, por exemplo, que assim escreveu sobre o “homem”
(i. e., o Homo sapiens):
Ao criar um mundo objetivo por meio de sua atividade prática, ao trabalhar a
natureza inorgânica, o homem prova a si mesmo ser uma espécie consciente
[…] Sem dúvida, os animais também produzam […] Mas um animal só
produz o que necessita imediatamente para si mesmo ou sua prole. Ele produz
unilateralmente, ao passo que o homem produz universalmente […] Um
animal só produz a si mesmo, enquanto o homem reproduz o todo da natureza
[…] Um animal forma as coisas em conformidade com o padrão e as
necessidades de sua espécie, ao passo que o homem produz em conformidade
com os padrões de outras espécies (Marx 1961 [1844]: 75-76 apud Sahlins
1996).
Seja lá o que Marx quisesse dizer com essa proposição de que o homem “produz
universalmente”, leio-a como se estivesse afirmando que o homem é o animal
universal: uma ideia interessante. (Se o homem é o animal universal, então as
outras espécies animais são, cada uma, humanidades particulares?) Embora
isso pareça ir ao encontro da noção ameríndia de que a humanidade é a forma
universal da agência, o juízo de Marx é, na verdade, sua inversão absoluta. Ele
está dizendo que os humanos podem ser qualquer animal, que temos mais Ser
que qualquer outra espécie; os índios, ao contrário, dizem que qualquer animal
pode ser humano, que há mais Ser em um animal do que parece. O Homem é o
animal universal em dois sentidos inteiramente diferentes: a universalidade é
antropocêntrica no caso de Marx, e antropomórfica no caso indígena.
Afirmei, mais acima, que o animismo deve ser visto como exprimindo a
equivalência lógica das relações reflexivas que cada espécie, a humana inclusive,
entretém consigo mesma. Considere-se, com efeito, este parágrafo de MarieFrançoise Guédon sobre a cosmologia dos Tsimshiam da Costa Noroeste:
De acordo com os mitos principais, o mundo, para o ser humano, tem o aspecto de
uma comunidade humana circundada por um domínio espiritual, o que inclui um
reino animal onde todos os seres levam a vida de acordo com suas características e
interferem na vida dos demais seres. Contudo, se nos transformássemos em um
animal – em um salmão, por exemplo –, descobriríamos que a gente salmão é,
para si mesma, o que os seres humanos são para nós, e que, para os salmões, os
humanos aparecemos como naxnoq [espíritos], ou talvez como ursos devoradores
de salmões. Esse processo de tradução atravessa vários níveis. Assim, por exemplo,
as folhas do algodoeiro que caem no Rio Skeena são o salmão da gente salmão.
Não sei o que os salmões seriam para as folhas, mas suspeito que são vistos por
estas como o somos pelos salmões (1984: 141).
Portanto, se os salmões parecem aos salmões o que os humanos parecem aos
humanos – e isto é o animismo –, os salmões não parecem humanos aos humanos,
nem os humanos aos salmões – e isto é o perspectivismo. Mas, então, talvez o
animismo e o perspectivismo tenham uma relação com o totemismo mais profunda
que a prevista no modelo de Descola.
Por que os animais (ou outros) veem-se como humanos? Precisamente, sugiro,
porque os humanos os veem como animais, vendo-se a si mesmos como humanos.
Os pecaris não se podem ver como pecaris (e, quem sabe, especular que os humanos
e demais seres são pecaris debaixo de suas roupas específicas) porque esta é a forma
pela qual são vistos pelos humanos. Se os humanos veem-se como humanos e são
vistos como não-humanos – como animais ou espíritos – pelos não-humanos,
então os animais devem necessariamente se ver como humanos. Tal torção
assimétrica do animismo perspectivista contrasta interessantemente com a simetria
exibida pelo totemismo. No primeiro caso, uma correlação de identidades reflexivas
(um humano está para si mesmo como um determinado animal para si mesmo)
serve de substrato à relação entre a série humana e a série animal; no segundo, uma
correlação de diferenças (um humano está para um animal como um outro humano
para um outro animal) articula as duas séries. Uma correlação de diferenças produz
uma estrutura simétrica e reversível, ao passo que uma correlação de identidades
produz a estrutura assimétrica e pseuprojetiva do animismo. Isso se dá, penso,
porque o que o animismo afirma, finalmente, não é tanto a ideia de que os animais
são semelhantes aos humanos, mas sim a de que eles – como nós – são diferentes de
si mesmos: a diferença é interna ou intensiva, não externa ou extensiva. Se todos têm
alma, ninguém é idêntico a si. Se tudo pode ser humano, então nada é humano
inequivocamente. A humanidade de fundo torna problemática a humanidade de
forma.
Multinaturalismo
A ideia de mundo que compreende uma multiplicidade de posições subjetivas traz
logo à mente a noção de relativismo. E, de fato, menções diretas ou indiretas ao
relativismo são frequentes nas descrições das cosmologias ameríndias. Tome-se, ao
acaso, este juízo de Kaj Århem, etnógrafo dos Makuna. Após ter descrito com
minúcia o universo perspectivo desse povo do Noroeste amazônico, Århem conclui: a
noção de múltiplos pontos de vista sobre a realidade implica que, no que concerne
aos Makuna, “qualquer perspectiva é igualmente válida e verdadeira”, e que “uma
representação verdadeira e correta do mundo não existe” (1993: 124; grifo meu).
Århem tem razão, por certo; mas só em certo sentido. Pois é altamente provável
que, no que concerne aos humanos, os Makuna diriam, muito ao contrário, que só
existe uma vera e justa representação do mundo. Se começarmos a ver, por exemplo,
os vermes que infestam um cadáver como peixes grelhados, ao modo dos urubus, só
poderemos concluir que algo anda muito errado conosco. Pois isso significa que
estamos virando urubu, o que não consta normalmente dos planos de ninguém: é
sinal de doença, ou pior. As perspectivas devem ser mantidas separadas. Apenas os
xamãs, que são como andróginos no que respeita à espécie, podem fazê-las
comunicar, e isso sob condições especiais e controladas. {33}
Mas há uma questão bem mais importante aqui. A teoria perspectivista
ameríndia está de fato, como afirma Århem, supondo uma multiplicidade de
representações sobre o mesmo mundo? Basta considerar o que dizem as etnografias,
para perceber que é o exato inverso que se passa: todos os seres veem
(“representam”) o mundo da mesma maneira – o que muda é o mundo que eles
veem. Os animais utilizam as mesmas categorias e valores que os humanos: seus
mundos, como o nosso, giram em torno da caça e da pesca, da cozinha e das
bebidas fermentadas, das primas cruzadas e da guerra, dos ritos de iniciação, dos
xamãs, chefes, espíritos etc. (Guédon op. cit.: 142). Se a lua, as cobras e as onças
veem os humanos como antas ou porcos selvagens, é porque, como nós, elas comem
antas e porcos selvagens, comida própria de gente. Só poderia ser assim, pois, sendo
gente em seu próprio departamento, os não-humanos veem as coisas como “a gente”
vê. Mas as coisas que eles veem são outras: o que para nós é sangue, para o jaguar é
cauim; o que para as almas dos mortos é um cadáver podre, para nós é mandioca
pubando; o que vemos como um barreiro lamacento, para as antas é uma grande
casa cerimonial…
A ideia, à primeira vista, soa ligeiramente contraintuitiva, pois quando
começamos a pensar sobre ela parece transformar-se em seu contrário, como
naquelas ilusões de ótica figura-fundo. Gerald Weiss, por exemplo, descreve o mundo
dos Campa como “um mundo de aparências relativas, onde diferentes tipos de seres
veem as mesmas coisas diferentemente” (1972: 170). Mais uma vez, isso é, em certo
sentido, verdadeiro. Mas o que Weiss não consegue “ver” é que o fato de diferentes
tipos de seres verem as mesmas coisas diferentemente é meramente uma
consequência do fato de que diferentes tipos de seres veem coisas diferentes da mesma
maneira. Pois o que conta como “as mesmas coisas”? Mesmas em relação a quem, a
que espécie? O espectro da coisa-em-si ronda a formulação de Weiss.
O perspectivismo não é um relativismo, mas um multinaturalismo. O relativismo
cultural, um multiculturalismo, supõe uma diversidade de representações subjetivas e
parciais, incidentes sobre uma natureza externa, una e total, indiferente à
representação; os ameríndios propõem o oposto: uma unidade representativa ou
fenomenológica puramente pronominal, aplicada indiferentemente sobre uma
diversidade real. Uma só “cultura”, múltiplas “naturezas”; epistemologia constante,
ontologia variável – o perspectivismo é um multinaturalismo, pois uma perspectiva
não é uma representação.
Uma perspectiva não é uma representação porque as representações são
propriedades do espírito, mas o ponto de vista está no corpo. {34} Ser capaz de
ocupar o ponto de vista é sem dúvida uma potência da alma, e os não-humanos são
sujeitos na medida em que têm (ou são) um espírito; mas a diferença entre os pontos
de vista – e um ponto de vista não é senão diferença – não está na alma. Esta,
formalmente idêntica através das espécies, só enxerga a mesma coisa em toda parte;
a diferença deve então ser dada pela especificidade dos corpos. Isso permite responder
às perguntas feitas acima: se os não-humanos são pessoas e têm almas, em que se
distinguem dos humanos? E por que, sendo gente, não nos veem como gente?
Os animais veem da mesma forma que nós coisas diversas do que vemos porque
seus corpos são diferentes dos nossos. Não estou-me referindo a diferenças de
fisiologia – quanto a isso, os ameríndios reconhecem uma uniformidade básica dos
corpos –, mas aos afetos, afecções ou capacidades que singularizam cada espécie de
corpo: o que ele come, como se move, como se comunica, onde vive, se é gregário ou
solitário… A morfologia corporal é um signo poderoso dessas diferenças de afecção,
embora possa ser enganadora, pois uma figura de humano, por exemplo, pode estar
ocultando uma afecção-jaguar. O que estou chamando de corpo, portanto, não é
sinônimo de fisiologia distintiva ou de anatomia característica; é um conjunto de
maneiras ou modos de ser que constituem um habitus. Entre a subjetividade formal
das almas e a materialidade substancial dos organismos, há esse plano central que é
o corpo como feixe de afecções e capacidades, e que é a origem das perspectivas.
Longe do essencialismo espiritual do relativismo, o perspectivismo é um maneirismo
corporal.
A diferença dos corpos, entretanto, só é apreensível de um ponto de vista exterior,
para outrem, uma vez que, para si mesmo, cada tipo de ser tem a mesma forma (a
forma genérica do humano): os corpos são o modo pelo qual a alteridade é
apreendida como tal. Não vemos, em condições normais, os animais como gente, e
reciprocamente, porque nossos corpos respectivos (e perspectivos) são diferentes.
Assim, se a Cultura é a perspectiva reflexiva do agente objetivada no conceito de
alma, pode-se dizer que a Natureza é o ponto de vista do agente sobre os outros
corpos-afecções; por outras palavras, se a Cultura é a natureza do Sujeito, a Natureza
é a forma do Outro enquanto corpo, isto é, enquanto algo para outrem. A cultura tem
a forma do pronome-sujeito “eu”; a natureza é a forma por excelência da “nãopessoa” ou do objeto, indicada pelo pronome impessoal “ele” (Benveniste 1966a:
256).
Se o corpo é o que faz a diferença aos olhos ameríndios, então se compreende,
afinal, por que os métodos espanhóis e antilhanos de averiguação da humanidade do
outro, na anedota narrada por Lévi-Strauss, mostravam aquela assimetria. Para os
europeus, tratava-se de decidir se os outros tinham uma alma; para os índios, de
saber que tipo de corpo tinham os outros. O grande diacrítico, o sítio da diferença de
perspectiva para os europeus, é a alma (os índios são homens ou animais?); para os
índios, é o corpo (os europeus são homens ou espíritos?). Os europeus não
duvidavam que os índios tivessem corpos – animais também os têm; os índios, que
os europeus tivessem almas – animais também as têm. O que os índios queriam
saber era se o corpo daquelas “almas” era capaz das mesmas afecções e maneiras
que os seus: se era um corpo humano ou um corpo de espírito, imputrescível e
proteiforme. Em suma: o etnocentrismo europeu consiste em negar que outros corpos
tenham a mesma alma; o ameríndio, em duvidar que outras almas tenham o
mesmo corpo.
O estatuto do humano na tradição ocidental é, como sublinhou Ingold (1994,
1996), essencialmente ambíguo: por um lado, a humanidade (humankind) é uma
espécie animal entre outras, e a animalidade um domínio que inclui os humanos; por
outro, a Humanidade (humanity) é uma condição moral que exclui os animais.
Esses dois estatutos coabitam no conceito problemático e disjuntivo de “natureza
humana”.{35} Dito de outro modo, nossa cosmologia imagina uma continuidade
física e uma descontinuidade metafísica entre os humanos e os animais, a primeira
fazendo do homem objeto das ciências da natureza, a segunda, das ciências da
cultura. O espírito é nosso grande diferenciador: é o que sobrepõe os humanos aos
animais e à matéria em geral, o que singulariza cada humano individual diante de
seus semelhantes, o que distingue as culturas ou períodos históricos enquanto
consciências coletivas ou espíritos de época. O corpo, ao contrário, é o grande
integrador, o veículo da “participação moderna”: ele nos conecta ao resto dos
viventes, unidos todos por um substrato universal (o ADN, a química do carbono
etc.) que, por sua vez, remete à natureza última de todos os “corpos” materiais. {36}
Os ameríndios, em contrapartida, imaginam uma continuidade metafísica e uma
descontinuidade física entre os seres do cosmos, a primeira resultando no animismo
– a “participação primitiva” –, a segunda, no perspectivismo. O espírito, que não é
aqui substância imaterial mas forma reflexiva, é o que integra; o corpo, que não é
substância material mas afecção ativa, o que diferencia.
O perspectivismo não é um relativismo, mas um relacionalismo. Vejamos uma
outra discussão do suposto relativismo amazônico: aquela feita por Renard-Casevitz
(1991) em seu livro sobre a mitologia machiguenga. Comentando um mito em que
os protagonistas humanos visitam diversas aldeias habitadas por gentes estranhas
que chamam “peixe”, “cutia” ou “arara” (comida humana) às cobras, morcegos ou
bolas de fogo de que se alimentam, a autora se dá conta que o perspectivismo
indígena não é exatamente um relativismo cultural:
O mito afirma que existem normas transculturais e transnacionais, em vigor em
toda parte. Essas normas determinam os mesmos gostos e desgostos, os mesmos
valores dietéticos e as mesmas proibições ou aversões. […] Os mal-entendidos
míticos decorrem de visões defasadas, não de gostos bárbaros ou de um uso
impróprio da linguagem (op. cit.: 25-26; grifo meu).
Mas isso não impede a autora de ver aqui algo perfeitamente banal:
Essa posição em perspectiva [mise en perspective] é apenas a aplicação e
transposição de práticas sociais universais, tais como o fato de que a mãe e o pai
de X são os sogros de Y […] A variabilidade da denominação em função do lugar
ocupado explica como A pode ser ao mesmo tempo peixe para X e cobra para Y
(op. cit.: 29).
O problema é que tal generalização da relatividade posicional própria da vida em
sociedade, com sua aplicação às diferenças interespecíficas ou intergenéricas, tem a
consequência paradoxal de fazer da cultura humana (i. e., machiguenga) algo
natural, isto é, absoluto: todo mundo come “peixe”, ninguém come “cobra”.
A analogia feita por Casevitz, entre as posições de parentesco e o que passa por
peixe ou cobra para diferentes tipos de ser, é entretanto muito interessante. Façamos
um experimento mental. Os termos de parentesco são relatores, ou operadores
lógicos abertos; eles pertencem àquela classe de nomes que definem algo em termos
de suas relações com outra coisa (os linguistas certamente têm um rótulo para essas
palavras, talvez “predicados de dois lugares”, ou algo assim). Já conceitos como
“peixe” ou “árvore”, por outro lado, são substantivos “próprios”, fechados ou bem
circunscritos, aplicando-se a um objeto em virtude de suas propriedades
autossubsistentes e autônomas. Ora, o que parece ocorrer no perspectivismo indígena
é que substâncias nomeadas por substantivos como “peixe”, “cobra”, “rede” ou “canoa”
são usados como se fossem relatores, algo entre o nome e o pronome, o substantivo e
o dêitico. (Há, supostamente, uma diferença entre nomes de natural kinds como
“peixe” e nomes de artefatos como “rede” – ver adiante.) Alguém é um pai apenas
porque existe outrem de quem ele é o pai: a paternidade é uma relação, ao passo que
a peixidade ou a serpentitude é uma propriedade intrínseca dos peixes e cobras. O que
sucede no perspectivismo, entretanto, é que algo também só é peixe porque existe
alguém de quem este algo é o peixe.
Mas se dizer que os grilos são os peixes dos mortos (ver cap. I, supra) ou que os
lameiros são a rede das antas é realmente como dizer que Nina, filha de minha irmã
Isabel, é minha sobrinha – o argumento de Renard-Casevitz –, então, de fato, não
há nenhum relativismo envolvido. Isabel não é uma mãe para Nina, do ponto de
vista de Nina, no sentido usual, subjetivista, da expressão. Ela é a mãe de Nina, ela é
real e objetivamente sua mãe, e eu sou de fato seu tio. A relação é interna e genitiva –
minha irmã é a mãe de alguém, de quem sou o tio, exato como os grilos dos vivos
são os peixes dos mortos –, e não uma conexão externa, representacional, do tipo “X
é peixe para alguém”, que implica que X é apenas representado como peixe, seja lá o
que for “em si mesmo”. Seria absurdo dizer que, desde que Nina é filha de Isabel mas
não minha, então ela não é uma “filha” para mim – pois de fato ela o é, filha de
minha irmã, precisamente. Em Process & reality, Whitehead observa: “a expressão
‘mundo real’ é como ‘ontem’ ou ‘amanhã’ – ela muda de sentido conforme o ponto de
vista” (apud Latour 1994: 197). Assim, um ponto de vista não é uma opinião
subjetiva; não há nada de subjetivo nos conceitos de “ontem” e “amanhã”, como não
há nos de “minha mãe” ou “teu irmão”. O mundo real das diferentes espécies depende
de seus pontos de vista, porque o “mundo” é composto das diferentes espécies, é o
espaço abstrato de divergência entre elas enquanto pontos de vista: não há pontos de
vista sobre as coisas – as coisas e os seres é que são pontos de vista (Deleuze 1969:
203). A questão aqui, portanto, não é saber “como os macacos veem o mundo”
(Cheney & Seyfarth 1990), mas que mundo se exprime através dos macacos, de que
mundo eles são o ponto de vista.
Imagine-se que todas as “substâncias” que povoam os mundos ameríndios sejam
desse tipo. Suponha-se que, assim como dois indivíduos são irmãos porque têm os
mesmos pais, eles sejam conspecíficos porque têm o mesmo peixe, a mesma cobra, a
mesma canoa e assim por diante. Entende-se, então, por que os animais são tão
frequentemente concebidos como ligados por afinidade aos humanos, nas
cosmologias amazônicas. O sangue dos humanos é o cauim do jaguar exatamente
como minha irmã é a esposa de meu cunhado, e pelas mesmas razões. Os
numerosos mitos ameríndios que põem em cena casamentos interespecíficos,
demorando-se nas difíceis relações entre os genros ou cunhados humanos e seus
sogros ou cunhados animais, não fazem senão combinar as duas analogias em uma
só. Vemos assim como o perspectivismo tem uma relação estreita com a troca. Ele
não apenas pode ser tomado como uma modalidade de troca (a “reciprocidade de
perspectivas” de nossa epígrafe), mas a troca mesma deve ser definida nestes termos
– como troca de perspectivas (Strathern 1988, 1992a, b).
Teríamos, com isso, uma ontologia integralmente relacional, na qual as
substâncias individuais ou as formas substanciais não são a realidade última. Aqui
não haveria distinção entre qualidades primárias e secundárias – para evocarmos
um tradicional contraste filosófico –, ou entre “fatos brutos” e “fatos institucionais” –
para evocarmos a dualidade advogada em um livro recente de Searle (1995).
Falemos um pouco desse livro de Searle. Ali, o autor opõe o que chama de fatos
ou objetos brutos, cuja realidade é independente da consciência – como a
gravidade, as montanhas, as árvores e os bichos (todos os natural kinds
pertencem a esta classe) –, aos fatos e objetos ditos institucionais, cuja existência,
identidade e propósito derivam de significados culturais específicos a eles
atribuídos pelos humanos – coisas como o casamento, o dinheiro, os machados
ou os computadores. Note-se que o livro em pauta se intitula The construction of
social reality, e não The social construction of reality, como o de Berger &
Luckmann. Os fatos brutos não são construídos, os fatos institucionais sim (as
afirmações sobre os fatos brutos inclusive). Nesta versão modernizada do velho
dualismo natureza/cultura, o relativismo cultural valeria para os objetos
culturais, ao passo que o universalismo natural aplicar-se-ia aos objetos
naturais.
Se por acaso topasse com minha exposição do perspectivismo ameríndio,
Searle diria, provavelmente, que o que estou dizendo é que, para os índios, todos
os fatos são do tipo mental ou institucional, e que todos os objetos, mesmo as
árvores e os peixes, são como o dinheiro ou as canoas, no sentido de que sua
única realidade (enquanto dinheiro ou canoas, não enquanto pedaços de papel ou
de pau) se deve aos significados e usos que os humanos lhes atribuem. Isto não
seria senão um relativismo – uma forma, aliás, extremada, absoluta de
relativismo.
Uma das implicações da ontologia anímico-perspectiva ameríndia, com
efeito, é a de que não existem fatos naturais autônomos, pois a “natureza” de uns
é a “cultura” de outros (ver supra). Se a fórmula de uma regra constitutiva ou de
um fato institucional é “X conta como Y no contexto C” (Searle 1969: 51-52),
então os fatos indígenas que nos interessam aqui são, realmente, deste tipo:
“Sangue conta como Cauim no contexto Jaguar”. Mas estes fatos institucionais
(os “Y” da fórmula de Searle) são aqui universais, o que escapa à alternativa de
Searle, onde os fatos brutos são universais, os institucionais, particulares. É
impossível reduzir o perspectivismo a um tipo de relativismo construcionista
(que definiria todos os fatos como de tipo institucional e concluiria que eles são
culturalmente variáveis). O que temos aqui é um caso de universalismo cultural,
cuja contrapartida é um relativismo natural (tomo a expressão de Latour 1991:
144). É semelhante divergência face a nossa conjugação da natureza com o
universal e da cultura com o particular que chamo de multinaturalismo.
Todos se recordam do dito de Wittgenstein: “se um leão pudesse falar, não seríamos
capazes de entendê-lo”. Esta é uma declaração relativista. Já para os índios, eu diria,
os leões – no caso, os jaguares – não apenas podem falar, como somos
perfeitamente capazes de entender o que eles dizem; o que eles querem dizer com isso,
entretanto, é outra história. Mesmas representações, outros objetos; sentido único,
referências múltiplas. O problema dos índios não é um problema fregeano.
O corpo selvagem
A ideia de que o corpo aparece como o grande diferenciador nas cosmologias
amazônicas – isto é, como aquilo que só une seres do mesmo tipo na medida em que
os distingue de outros – permite retomar sob nova luz algumas questões clássicas da
etnologia regional.
Assim, o tema já antigo da importância da corporalidade nas sociedades
amazônicas (Seeger, DaMatta & Viveiros de Castro 1979) ganha um fundamento
cosmológico. É possível, por exemplo, entender melhor por que as categorias de
identidade – individuais, coletivas, étnicas ou cosmológicas – exprimem-se tão
frequentemente por meio de idiomas corporais, em particular pela alimentação e pela
decoração corporal. A pregnância simbólica universal dos regimes alimentares e
culinários – do “cru e cozido” mitológico e lévi-straussiano à ideia dos Piro de que sua
“comida legítima” é o que os faz, literalmente, diferentes dos Brancos (Gow 1991a);
das abstinências alimentares definidoras dos “grupos de substância” do Brasil Central
(Seeger 1980) à classificação básica dos seres em termos de seu regime alimentar
(Baer 1994: 88); da produtividade conceitual da comensalidade, semelhança de dieta
e condição relativa de presa-objeto e predador-sujeito (Vilaça 1992) à onipresença do
canibalismo como horizonte predicativo de toda relação com o outro, seja ela
matrimonial, manducatória ou guerreira (Viveiros de Castro 1993a) –, essa
universalidade manifesta justamente a ideia de que o conjunto de maneiras e
processos que constituem os corpos é o lugar de emergência da diferença.
O mesmo se diga do intenso uso semiótico do corpo na definição da identidade
pessoal e na circulação dos valores sociais (Turner 1995). A conexão entre tal sobreexploração do corpo (particularmente de sua superfície visível) e o recurso restrito, no
socius amazônico, a objetos capazes de servir como suporte de relações – isto é, uma
situação onde a troca social não é mediada por objetivações materiais densas como
as que caracterizam as economias do dom ou da mercadoria – foi sagazmente
destacada por Turner, que mostrou como o corpo humano deve então aparecer como
o protótipo do objeto social. Mas a ênfase ameríndia na construção social do corpo
não pode ser tomada como culturalização de um substrato natural, e sim como
produção de um corpo distintivamente humano, entenda-se, naturalmente humano.
Tal processo parece exprimir menos a vontade de “desanimalizar” o corpo por sua
marcação cultural que a de particularizar um corpo ainda demasiado genérico,
diferenciando-o dos corpos de outros coletivos humanos tanto quanto de outras
espécies. O corpo, sendo o lugar da perspectiva diferenciante, deve ser maximamente
diferenciado para exprimi-la completamente.
O corpo humano pode ser visto como lugar de confrontação entre humanidade e
animalidade, mas não porque carregue uma natureza animal que deve ser velada e
controlada pela cultura (Rivière 1994). Ele é o instrumento fundamental de expressão
do sujeito e ao mesmo tempo o objeto por excelência, aquilo que se dá a ver a
outrem. Por isso, a objetivação social máxima dos corpos, sua máxima
particularização expressa na decoração e exibição ritual, é ao mesmo tempo sua
máxima animalização (Goldman 1975: 178; S. Hugh-Jones 1979:141-142; Seeger
1987: caps. 1 e 2; Turner 1991b, 1995), quando eles são recobertos por plumas,
cores, grafismos, máscaras e outras próteses animais. O homem ritualmente vestido
de animal é a contrapartida do animal sobrenaturalmente nu: o primeiro,
transformado em animal, revela para si mesmo a distintividade “natural” do seu
corpo; o segundo, despido de sua forma exterior e se revelando como humano,
mostra a semelhança “sobrenatural” dos espíritos. O modelo do espírito é o espírito
humano, mas o modelo do corpo são os corpos animais; e, se a cultura é a forma
genérica do eu e a natureza a do ele, a objetivação do sujeito para si mesmo exige a
singularização dos corpos – o que naturaliza a cultura, isto é, a “encorpora” –,
enquanto a subjetivação do objeto implica a comunicação dos espíritos – o que
culturaliza a natureza, isto é, a sobrenaturaliza. A problemática ameríndia da
distinção natureza/cultura, nesses termos, antes de ser dissolvida em nome de uma
comum socialidade anímica humano-animal, deve ser relida à luz do perspectivismo
somático.
Como um argumento importante em favor da ideia de que o modelo do corpo
são os corpos animais, recordaria que não há praticamente nenhum exemplo, na
etnologia e na mitologia amazônicas, de animais “vestindo-se” de humanos, isto é,
assumindo um corpo humano como se fora uma roupa. Todos os corpos, o humano
inclusive, são concebidos como vestimentas ou envoltórios; mas jamais se veem
animais assumindo a veste humana. O que se acha são humanos vestindo roupas
animais e tornando-se animais, ou animais despindo suas roupas animais e
revelando-se como humanos. A forma humana é como um corpo dentro do corpo, o
corpo nu primordial – a “alma” do corpo. {37}
É importante observar que esses corpos ameríndios não são pensados sob o
modo do fato, mas do feito. Por isso a ênfase nos métodos de fabricação contínua do
corpo (Viveiros de Castro 1979), a concepção do parentesco como processo de
assemelhamento ativo dos indivíduos (Gow 1989, 1991a) pela partilha de fluidos
corporais, sexuais e alimentares – e não como herança passiva de uma essência
substancial –, a teoria da memória que inscreve esta na “carne” (Viveiros de Castro
1992a: 201-07), e mais geralmente uma teoria do conhecimento que o situa no corpo
(McCallum 1996). A Bildung ameríndia incide sobre o corpo antes que sobre o
espírito: não há mudança espiritual que não passe por uma transformação do corpo,
por uma redefinição de suas afecções e capacidades.
O caráter performado mais que dado do corpo, concepção que exige que se o
diferencie “culturalmente” para que ele possa diferenciar “naturalmente”, tem uma
evidente conexão com a metamorfose interespecífica, possibilidade sempre afirmada
pelas cosmologias ameríndias. Não devemos nos surpreender com um pensamento
que põe os corpos como grandes diferenciadores e afirma ao mesmo tempo sua
transformabilidade. Nossa cosmologia supõe a distintividade singular dos espíritos,
mas nem por isso declara impossível a comunicação (embora o solipsismo seja um
problema constante) ou desacredita da transformação espiritual induzida por
processos como a educação e a conversão religiosa; na verdade, é precisamente
porque os espíritos são diferentes que a conversão se faz necessária (os europeus
queriam saber se os índios tinham alma para poder modificá-la). A metamorfose
corporal é a contrapartida ameríndia do tema europeu da conversão espiritual.
A relativa raridade de exemplos inequívocos e elaborados de possessão espiritual
no complexo ameríndio do xamanismo pode estar, portanto, associada à
prevalência do tema oposto, a metamorfose corporal. O problema da conversão
religiosa dos indígenas poderia também receber alguma luz daí. A experiência
indígena da “aculturação” parece focalizar mais a incorporação e encorporação
de práticas corporais ocidentais – alimentação, vestuário, sexo interétnico, a
linguagem como capacidade somática – que a ideia de uma assimilação
espiritual. {38} As teorias antropológicas sobre a mudança sociocultural tendem a
recusar, desnecessário dizer que com razão, as ideias etnogenéticas ocidentais
sobre a mestiçagem e a assimilação racial como conduzindo à perda da
distintividade étnico-cultural. Os processos de aculturação são definidos, ao
contrário, em termos de mudanças ideológicas, isto é, como processos
essencialmente mentais que afetam primeiro que tudo as “crenças” nativas; a
aculturação é pensada à imagem da conversão religiosa, justo como a “cultura” é
pensada à imagem da religião (ver cap. 3 supra). Consequentemente, e por mais
que conceitos como o de habitus venham tentando matizar essa tendência, as
mudanças corporais envolvidas na aculturação são concebidas como efeito de
mudanças no plano das “representações coletivas”, antes que como sua causa.
Penso que os índios pensam diferentemente, até porque seu “pensamento” está
diferentemente associado ao seu “corpo”.
A metamorfose ameríndia, advirta-se, não é um processo tranquilo, e muito menos
uma meta. Se o solipsismo é o fantasma que ameaça perenemente nossa cosmologia
– traduzindo o medo de não nos reconhecermos em nossos semelhantes, por eles na
verdade não o serem, dada a singularidade potencialmente absoluta dos espíritos –,
a possibilidade da metamorfose exprime o temor oposto, o de não se poder mais
diferenciar o humano do animal, e, sobretudo, o temor de se ver a alma humana que
insiste sob o corpo animal que se come (Goldman 1975: 183; Brightman 1993: 206
e ss; Erikson 1997: 223). {39} Isso se traduz em uma das recorrências etnográficas
mais importantes do perspectivismo: a humanidade passada dos animais se soma à
sua atual espiritualidade oculta pela forma visível para produzir um difundido
complexo de restrições ou precauções alimentares, que ora declara incomestíveis
certos animais miticamente consubstanciais aos humanos, ora exige a
dessubjetivação xamanística do animal antes que se o consuma, neutralizando seu
espírito, transubstanciando sua carne em vegetal, ou reduzindo-o semanticamente a
outros animais menos próximos do humano – tudo isso sob pena de retaliação em
forma de doença, concebida como contrapredação canibal, levada a efeito pelo
espírito da presa tornada predador, em uma inversão mortal de perspectivas que
transforma o humano em animal. {40} O fantasma do canibalismo é o equivalente
ameríndio do problema do solipsismo: se este deriva da incerteza de que a
semelhança dos corpos garanta a comunidade real dos espíritos, aquele suspeita que
a semelhança dos espíritos possa prevalecer sobre a diferença real dos corpos, e que
todo animal que se come permaneça, apesar dos esforços xamanísticos para sua
dessubjetivação, humano. O que não impede, naturalmente, que tenhamos entre nós
solipsistas mais ou menos radicais, nem que várias sociedades ameríndias sejam
deliberada e mais ou menos literalmente canibais.
No canibalismo amazônico, o que se visa é precisamente a incorporação do
aspecto subjetivo do inimigo, que é, por isso, hiper-subjetivado, e não sua
dessubjetivação, como é o caso dos corpos animais (ver Viveiros de Castro
1992a, 1996a [cap. 4 supra] e Fausto 2001). Como disse, boa parte do trabalho
do xamã consiste na transformação dos animais mortos em corpos puramente
naturais, desespiritualizados e assim possíveis de serem consumidos sem riscos.
Em contraste, o que define os espíritos é, entre outras coisas, o fato de serem
supremamente incomestíveis; isso os transforma em comedores por excelência,
ou seja, em antropófagos. Por isso, é comum que os grandes animais predadores
sejam formas diletas de manifestação dos espíritos. Entende-se, ademais, por que
os animais de presa veem os humanos como espíritos, por que os predadores
nos veem como animais de presa, e por que animais tidos por incomestíveis
sejam frequentemente assimilados a espíritos.
A noção de metamorfose está diretamente ligada à doutrina das roupas animais,
várias vezes aqui referida. Como conciliar essa ideia de que o corpo é o sítio da
perspectiva diferenciante com o tema da aparência e da essência, sempre evocado
para interpretar o animismo e o perspectivismo? Aqui me parece haver um equívoco
importante, que é o de tomar a “aparência” corporal como inerte e falsa, a “essência”
espiritual como ativa e verdadeira (ver as observações definitivas de Goldman 1975:
63, 124-25, 200). Nada mais distante, penso, do que os índios têm em mente ao
falarem dos corpos como roupas. Trata-se menos de o corpo ser uma roupa que de
uma roupa ser um corpo. Não esqueçamos que nessas sociedades inscrevem-se na
pele significados eficazes, e se utilizam máscaras animais (ou pelo menos conhece-se
seu princípio) dotadas do poder de transformar metafisicamente a identidade de seus
portadores, quando usadas no contexto ritual apropriado. Vestir uma roupamáscara é menos ocultar uma essência humana sob uma aparência animal que
ativar os poderes de um corpo outro. {41} As roupas animais que os xamãs utilizam
para se deslocar pelo cosmos não são fantasias, mas instrumentos: elas se
aparentam aos equipamentos de mergulho ou aos trajes espaciais, não às máscaras
de carnaval. O que se pretende ao vestir um escafandro é poder funcionar como um
peixe, respirando sob a água, e não se esconder sob uma forma estranha. Do mesmo
modo, as roupas que, nos animais, recobrem uma “essência” interna de tipo humano
não são meros disfarces, mas seu equipamento distintivo, dotado das afecções e
capacidades que definem cada animal. {42} É verdade que “as aparências enganam”
(Hallowell 1960; Rivière 1994); mas minha impressão é que as narrativas
ameríndias que tematizam as roupas animais mostram tanto ou mais interesse no
que essas roupas fazem do que no que escondem. {43} Além disso, entre um ser e sua
aparência está o seu corpo, que é mais que esta – e as mesmas narrativas mostram
como as aparências são sempre “desmascaradas” por um comportamento corporal
inconsistente com elas. {44} Em suma: não há dúvida que os corpos são descartáveis
e trocáveis, e que “atrás” deles estão subjetividades formalmente idênticas à humana.
Mas esta ideia não é semelhante à nossa oposição entre aparência e essência; ela
manifesta apenas que a permutabilidade objetiva dos corpos está fundada na
equivalência subjetiva dos espíritos.
Um outro tema clássico da etnologia sul-americana que poderia ser interpretado
nesse quadro é o da descontinuidade sociológica entre os vivos e os mortos (Carneiro
da Cunha 1978). A distinção fundamental entre os vivos e os mortos passa pelo
corpo e não, precisamente, pelo espírito; a morte é uma catástrofe corporal que
prevalece como diferenciador sobre a comum “animação” dos vivos e dos mortos. As
cosmologias ameríndias dedicam igual ou maior interesse à caracterização do modo
como os mortos veem o mundo que à visão dos animais, e, como no caso destes,
comprazem-se em sublinhar as diferenças radicais em relação ao mundo dos vivos.
Os mortos, a rigor, não são humanos, estando definitivamente separados de seus
corpos. Espírito definido por sua disjunção com um corpo humano, um morto é
então atraído logicamente pelos corpos animais; por isso, morrer é se transformar
em animal, {45} como é se transformar em outras figuras da alteridade corporal,
notadamente os afins e os inimigos. Dessa forma, se o animismo afirma uma
continuidade subjetiva e social entre humanos e animais, seu complemento somático,
o perspectivismo, estabelece uma descontinuidade objetiva, igualmente social, entre
humanos vivos e humanos mortos. (As religiões fundadas no culto de ancestrais
parecem fazer a postulação inversa: a identidade espiritual atravessa a barreira
corporal da morte, os vivos e os mortos são semelhantes na medida em que
manifestam o mesmo espírito – ancestralidade sobre-humana e possessão espiritual,
de um lado, animalização dos mortos e metamorfose corporal, do outro.)
Após ter examinado o componente diferenciante do perspectivismo ameríndio,
resta-me atribuir uma função cosmológica à unidade transespecífica do espírito. É
aqui, penso, que se pode propor uma definição relacional de uma categoria, a de
“Sobrenatureza”, hoje em descrédito, mas cuja utilidade me parece inquestionável. {46}
À parte seu uso muito cômodo para rotular domínios cosmográficos de tipo “hyperouranios”, ou para definir uma terceira categoria de entidades intencionais – pois
decididamente há vários seres nas cosmologias indígenas que não são nem humanos
nem animais (refiro-me aos “espíritos”) –, essa noção pode servir para designar um
contexto relacional específico e uma qualidade fenomenológica própria, distinta tanto
da intersubjetividade característica do mundo social como das relações
“interobjetivas” com os corpos animais.
Seguindo a analogia com a série pronominal (Benveniste 1966a, b), vê-se que,
entre o eu reflexivo da cultura (gerador do conceito de alma ou espírito) e o ele
impessoal da natureza (marcador da relação com a alteridade corpórea), há uma
posição faltante, a do tu, a segunda pessoa, ou o outro tomado como outro sujeito,
cujo ponto de vista serve de eco latente ao do eu. Cuido que esse conceito pode auxiliar
na determinação do contexto sobrenatural. Contexto anormal no qual o sujeito é
capturado por um outro ponto de vista cosmológico dominante, onde ele é o tu de
uma perspectiva não-humana, a Sobrenatureza é a forma do Outro como Sujeito,
implicando a objetivação do eu humano como um tu para este Outro.
A situação sobrenatural típica no mundo ameríndio é o encontro, na floresta,
entre um humano – sempre sozinho – e um ser que, visto primeiramente como um
mero animal ou uma pessoa, revelase como um espírito ou um morto, e fala com o
homem (a dinâmica dessa comunicação é excelentemente analisada por Taylor
[1993a]). {47} Esses encontros costumam ser letais para o interlocutor, que,
subjugado pela subjetividade não-humana, passa para o lado dela, transformandose em um ser da mesma espécie que o locutor: morto, espírito ou animal. Quem
responde a um tu dito por um não-humano aceita a condição de ser sua “segunda
pessoa”, e ao assumir, por sua vez, a posição de eu já o fará como um não-humano.
(Apenas os xamãs, pessoas multinaturais por definição e ofício, são capazes de
transitar entre as perspectivas, tuteando e sendo tuteados pelas agências extrahumanas sem perder sua própria condição de sujeito.) A forma canônica desses
encontros sobrenaturais consiste, então, na intuição súbita de que o outro é humano,
entenda-se, que ele é o humano, o que desumaniza e aliena automaticamente o
interlocutor, transformando-o em presa – em animal. E este, enfim, seria o
verdadeiro significado da inquietação ameríndia sobre o que se esconde sob as
aparências. As aparências enganam porque nunca se pode estar certo sobre qual é o
ponto de vista dominante, isto é, que mundo está em vigor quando se interage com
outrem. Tudo é perigoso; sobretudo quando tudo é gente, e nós talvez não sejamos.
Nota final
É importante atentar para o fato de que os dois pontos de vista cosmólogicos aqui
contrastados – o que chamei de “ocidental” e o que chamei de “ameríndio” – são, do
nosso ponto de vista, incompossíveis. Um compasso deve ter uma de suas pernas
firme, para que a outra possa girar-lhe à volta. Escolhemos a perna correspondente
à natureza como nosso suporte, deixando a outra descrever o círculo da diversidade
cultural. Os índios parecem ter escolhido a perna do compasso cósmico
correspondente ao que chamamos “cultura”, submetendo assim a nossa “natureza” a
uma inflexão e variação contínuas. A ideia de um compasso capaz de mover as duas
pernas ao mesmo tempo – um relativismo finalizado – seria assim
geometricamente contraditória, ou filosoficamente instável.
Mas não devemos esquecer em primeiro lugar que, se as pontas do compasso
estão separadas, as pernas se articulam no vértice: a distinção entre natureza e cultura
gira em torno de um ponto onde ela ainda não existe. Esse ponto, como Latour
(1991) tão bem argumentou, tende a se manifestar em nossa modernidade apenas
como prática extrateórica, visto que a Teoria é o trabalho de purificação e separação
do “mundo do meio” da prática em domínios, substâncias ou princípios opostos: em
Natureza e Cultura, por exemplo. O pensamento ameríndio – todo pensamento
mitoprático, talvez – toma o caminho oposto. Pois o objeto da mitologia está situado
exatamente no vértice onde a separação entre Natureza e Cultura se radica. Nessa
origem virtual de todas as perspectivas, o movimento absoluto e a multiplicidade
infinita são indiscerníveis da imobilidade congelada e da unidade impronunciável.
Em segundo lugar, e por fim: se os índios têm razão, então a diferença entre os
dois pontos de vista não é uma questão cultural, e muito menos de mentalidade. Se
os contrastes entre relativismo e perspectivismo ou entre multiculturalismo e
multinaturalismo forem lidos à luz, não de nosso relativismo multicultural, mas da
doutrina indígena, é forçoso concluir que a reciprocidade de perspectivas se aplica a
ela mesma, e que a diferença é de mundo, não de pensamento:
Talvez venhamos a descobrir, um dia, que a mesma lógica opera no pensamento
mítico e no pensamento científico, e que o homem sempre pensou igualmente bem.
O progresso – se é que o termo poderia então se aplicar – não tivera portanto a
consciência por teatro, mas o mundo, onde uma humanidade dotada de faculdades
constantes encontrara-se, no decorrer de sua longa história, continuamente às
voltas com novos objetos (Lévi-Strauss 1955b: 255).
1. As páginas que seguem têm sua origem em um diálogo com Tânia Stolze Lima. A
primeira versão do principal dos artigos aqui refundidos (Viveiros de Castro 1996c)
foi escrita e publicada sincronicamente ao estudo de Tânia sobre o perspectivismo
juruna, a que remeto o leitor (Lima 1996). O ensaio de Latour (1991) sobre a noção
de modernidade foi uma fonte indireta, mas decisiva, de inspiração para essa
primeira versão. Meses depois de ver publicado o artigo de 1996, li um velho texto de
Fritz Krause (1931; referido em Boelscher 1989: 212 n. 10) onde encontrei ideias
curiosamente convergentes com algumas das aqui expostas; elas serão discutidas em
outra oportunidade. A real convergência ignorada no artigo de 1996, entretanto, é
com a teoria desenvolvida por Roy Wagner em A invenção da cultura, livro que eu
lera quinze anos antes (em 1981, ano de sua segunda edição) mas apagara de todo
da memória, certamente por estar ele acima de minha capacidade de compreensão.
Ao relê-lo, em 1998, percebi que assimilara alguma coisa afinal, visto haver
reinventado certos passos cruciais do argumento de Wagner (isto ficará mais claro no
cap. 8 infra). Peter Gow, Aparecida Vilaça, Philippe Descola e Michael Houseman
contribuíram, como sempre, com sugestões e comentários, em vários estágios da
elaboração do texto. Por fim, os desenvolvimentos em curso das teses aqui expostas
(Viveiros de Castro em preparação) devem às luzes de Bruno Latour e de Marilyn
Strathern muito mais do que é possível registrar, por ora.
2. “Tal é a lógica de um discurso, comumente conhecido como ‘ocidental’, cujo
fundamento ontológico reside em uma separação dos domínios subjetivo e objetivo,
o primeiro concebido como o mundo interior da mente e do significado, o segundo, o
mundo exterior da matéria e da substância” (Ingold 1991: 356).
3. Quando estão reunidos em suas aldeias na mata, p. ex., os animais despem as
roupas e assumem sua figura humana. Em outros casos, a roupa seria como que
transparente aos olhos da própria espécie e dos xamãs humanos.
4. A noção de “roupa” corporal foi registrada, entre outros, para os Makuna (Århem
1993), os Yagua (Chaumeil 1983: 125-27), os Piro (Gow com. pess.), os Trio
(Rivière 1994) ou os Alto-Xinguanos (Gregor 1977: 322; Viveiros de Castro 1977:
182). Ela é provavelmente panamericana, tendo um grande rendimento, p. ex., na
cosmologia kwakiutl (Goldman 1975: 62-63, Z24-25, 182-86, 227-28).
5. Cf., para alguns exemplos: Baer 1994: 102, 119-224 (Machiguenga); Grenand
1980: 42 (Wayãpi); Jara 1996: 68-73 (Akuriyó); Osborn 1990:151 (U’wa); Viveiros
de Castro 1992a: 68 (Araweté); Weiss 1969: 158 (Campa).
6. Cf., p. ex., Saladin d’Anglure 1990, Fienup-Riordan 1994 (Esquimó); Nelson
1983, McDonnell 1984 (Koyukon, Kaska); Tanner 1979, Scott 1989, Brightman 19
Saladin d’Anglure 1990 (Cree); Hallowell 1960 (Ojibwa); Goldman 1975
(Kwakiutl); Guédon 1984 (Tsimshian); Boelscher 1989 (Haida). Para a Sibéria, cf.
Hamayon 1990. Cf., enfim, Howell 1984, 1996 e Karim 1981, para os Chewong e
Ma’Betisék da Malásia. O estudo de Howell 1984 foi um dos primeiros a se demorar
sobre o tema. Concepções semelhantes também foram registradas em uma
cosmologia melanésia, a dos Kaluli (Schiefflin 1976: cap. 5).
7. Cf. caps. 2 e 4, supra. As noções de perspectiva e ponto de vista têm um papel
decisivo em textos que escrevi anteriormente, mas seu foco de aplicação era ali,
principalmente, a dinâmica intra-humana, em particular o canibalismo tupi, e seu
significado quase sempre analítico e abstrato (Viveiros de Castro 1992a: 248-51,
256-59; 1996a [cap. 4 supra]). Os estudos de Vilaça e, sobretudo, o de Lima
mostraram-me que era possível generalizar essas noções. (N. B. A menção à noção
de perspectiva nas linhas finais do cap. 1 do presente livro não constava das versões
originais dos artigos ali fundidos.)
8. Cf. Renard-Casevitz 1991: 10-11, 29-31; Vilaça 1992: 49-51; Århem 1993: 11-12;
Howell 1996: 133.
9. Overing 1985: 249 e ss; 1986: 245-46; Viveiros de Castro 1992a: 73-74; Baer
1994: 89.
10. A noção de que o sujeito – os homens, os índios, meu grupo – que distingue é o
termo historicamente estável da distinção entre o “eu” e o “outro” – os animais, os
brancos, os outros índios – aparece tanto no caso da diferenciação interespecífica
quanto no da separação intraespecífica, como se pode ver nos diferentes mitos
ameríndios de origem dos Brancos (cf., p. ex., DaMatta 1970, 1973; S. Hugh-Jones
1988; Lévi-Strauss 1991; cf. também cap. 3 supra, e Viveiros de Castro 2000). Os
outros foram o que somos, e não, como para nós, são o que fomos. E assim se
percebe quão pertinente pode ser a noção de “sociedades frias”: a história existe sim,
mas é algo que só acontece aos outros, ou por causa deles.
11. A distinção é análoga às de Wagner (1983: 133 ) ou Ingold (1994), entre a
humanidade como espécie (ou humankind ) e como ideal moral (ou humanity ).
12. A relação entre o xamanismo e a caça é uma questão clássica. Cf. Chaumeil
1983: 231-32 e Crocker 1985: 17-25.
13. A importância da relação venatório-xamanística com o mundo animal, em
sociedades cuja economia é baseada na horticultura e na pesca mais que na caça,
suscita problemas interessantes para a história cultural da Amazônia (Viveiros de
Castro 1996b – cf. cap. 6 supra).
14. Cf. Erikson 1984: 110-12; Descola 1986: 317-30; Århem 1996. Registre-se,
entretanto, que nas culturas da Amazônia ocidental, em especial naquelas que fazem
uso de alucinógenos, a personificação das plantas parece ser ao menos tão saliente
quanto a dos animais, e que, em áreas como o Alto Xingu, a espiritualização dos
artefatos desempenha um grande papel cosmológico.
15. Observo que esse modo de exprimir o contraste não é apenas semelhante à
célebre oposição entre “dom” e “mercadoria”. Entendo que se trata do mesmo
contraste, formulado em termos não-economicistas: “se, em uma economia
mercantil, as coisas e as pessoas assumem a forma social da coisa, então em uma
economia do dom elas assumem a forma social da pessoa” (Strathern 1988: 134; cf.
Gregory 1982: 41).
16. A definição teórico-antropológica da “arte” como envolvendo o processo de
abdução de agência está magistralmente exposta por Alfred Gell em Art and agency
(1998).
17. Estou me referindo ao conceito de Dennett sobre a n-ordinalidade dos sistemas
intencionais. Um sistema intencional de segunda ordem é aquele onde o observador
atribui não apenas crenças, desejos e outras intenções ao objeto (primeira ordem),
mas também crenças etc. a respeito de outras crenças etc. A tese cognitivista mais
aceita sustenta que apenas o Homo sapiens exibe intencionalidade de ordem igual ou
superior a dois. Observe-se que meu princípio xamanístico de “abdução de um
máximo de agência” vai de encontro, evidentemente, aos dogmas da psicologia
fisicalista: “Os psicólogos têm frequentemente recorrido ao princípio conhecido pelo
nome de ‘cânon de parcimônia de Lloyd Morgan’, que pode ser visto como um caso
particular da navalha de Occam. Esse princípio reza que se deve atribuir a um
organismo o mínimo de inteligência, ou consciência, ou racionalidade suficientes
para dar conta de seu comportamento” (Dennett op. cit.: 274). Com efeito, o chocalho
do xamã é um instrumento de tipo inteiramente diferente da navalha de Occam; esta
pode servir para escrever artigos de lógica, mas não é muito boa, p. ex., para
recuperar almas perdidas.
18. Como observa Marilyn Strathern, a propósito de um regime epistemológico
semelhante ao ameríndio: “[Esta] convenção requer que os objetos de interpretação –
humanos ou não – sejam entendidos como outras pessoas; com efeito, o próprio ato
de interpretação pressupõe a personitude [personhood] do que está sendo
interpretado. […] O que se encontra, assim, ao se fazer interpretações, são sempre
contrainterpretações…” (1999: 239).
19. Wagner (1981) foi um dos poucos que soube fazê-lo.
20. Para ficarmos no âmbito americanista, recordem-se, entre outros: a recusa do
privilégio da metáfora por Overing (1985), em favor de um literalismo relativista
que parece se apoiar na noção de crença; a teoria da sinédoque dialética como
anterior e superior à analogia metafórica, proposta por Turner (1991b), autor que,
como outros especialistas (Seeger 1981; Crocker 1985), tem procurado contestar as
interpretações do dualismo natureza/cultura dos Jê e Bororo em termos de uma
oposição estática, privativa e discreta; o conceito de “dualismo triádico dual” ou de
“dualismo dinâmico” de Peter Roe (1990), que o autor estima ser uma característica
distintiva da arte e do pensamento amazônicos (o que certamente seria abonado por
Lévi-Strauss: cf. cap. 8 infra); ou a retomada que fiz (Viveiros de Castro 1992a) do
contraste entre totemismo e sacrifício à luz do conceito deleuziano de devir, que
procura dar conta da centralidade dos processos de predação ontológica nas
cosmologias tupi, bem como do caráter diretamente social (e não especularmente
classificatório) da interação das ordens humana e extra-humanas.
21. Para uma discussão conjunta dos pares totemismo/sacrifício e aroe/bope, cf.
Viveiros de Castro 1991: 88, 91 n. 11
22. Digo que essas estruturas são assimétricas porque, no caso do naturalismo, por
exemplo, a noção de natureza não necessita da noção de cultura para ser definida,
mas a recíproca não é verdadeira. Em outras palavras, em nossa ontologia a
interface natureza/sociedade é natural porque a distinção ela própria é vista como
“cultural”, i. e., construída, e, assim, subordinada (cf. Searle 1995: 227: “Não poderia
haver uma oposição entre cultura e biologia, porque, se houvesse, a biologia
ganharia sempre”). Nas ontologias ameríndias, ao contrário, a dita interface é social
porque a distinção é vista como “natural”, i. e., dada. Aqui, é a categoria da natureza
que exige a definição prévia da cultura. (Para o contraste entre o “dado” e o “inato”, cf.
Wagner 1981, e sua aplicação no cap. 8 infra.)
23. Cf. Strathern 1980 e Latour 1991, para essa instabilidade; em Malik 2000 achase
uma boa exposição popular da tensão entre monismo e dualismo na consciência
moderna.
24. Cf. Radcliffe-Brown 1929: 130-31, onde, entre outros argumentos dignos de nota,
distinguem-se os processos de personificação das espécies e fenômenos naturais (que
“permitem conceber a natureza como se fosse uma sociedade de pessoas, fazendo dela
uma ordem social ou moral”), como os que se acham entre os Esquimós ou
Andamaneses, dos sistemas de classificação das espécies naturais, como os
encontrados na Austrália, e que configuram um “sistema de solidariedades sociais”
entre homem e natureza. Isto evoca de perto a distinção animismo/totemismo de
Descola, bem como o contraste manido/totem explorado por Lévi-Strauss.
25. Nota desta edição: Hoje, penso que o argumento de Ingold é eloquente, mas, em
última análise, insatisfatório, especialmente em seu momento propositivo, que não
discuto aqui. Reservo para outra oportunidade a fundamentação desse juízo (Viveiros
de Castro em preparação).
26. Note-se que a questão quinhentista é a versão teológica do chamado “problema
das outras mentes”, que entretém cabeças filosóficas desde os primórdios da
modernidade.
27. O mesmo Lévi-Strauss ilustra essa reviravolta, em um esplêndido parágrafo de
sua homenagem a Rousseau: “Começou-se por separar o homem da natureza, e por
constituí-lo em reino soberano; acreditou-se assim apagar sua característica mais
inquestionável, a saber, que ele é antes de mais nada um ser vivo. A cegueira diante
dessa propriedade comum abriu caminho para todos os abusos. Nunca como agora,
ao cabo dos quatro últimos séculos de sua história, pôde o homem ocidental se dar
conta de como, ao se arrogar o direito de separar radicalmente a humanidade da
animalidade, concedendo à primeira tudo aquilo que negava à segunda, ele abria um
ciclo maldito, e que a mesma fronteira, constantemente recuada, servia-lhe para
afastar homens de outros homens e para reivindicar, em benefício de minorias cada
vez mais restritas, o privilégio de um humanismo que já nasceu corrompido, por ter
ido buscar no amor-próprio seu princípio e seu conceito” (1962c: 53).
28. Uma variante dessa recusa de auto-objetivação onomástica se acha naqueles
casos ou momentos em que, quando o coletivo em posição de sujeito se toma como
parte de uma pluralidade de coletivos análogos a si, o termo autorreferencial significa
“os outros”, sendo usado primordialmente para identificar os coletivos de que o
sujeito se exclui. A alternativa à subjetivação pronominal é uma auto-objetivação
igualmente relacional, onde “eu” só pode significar “o outro do outro”: cf. o achuar dos
Achuar, ou o nawa dos Pano (Taylor 1985: 168; Erikson 1990: 80-84). A lógica da
autoetnonímia ameríndia exigiria um estudo específico. Para outros casos
ilustrativos, cf.: Vilaça 1992: 49-51; Price 1987; Viveiros de Castro 1992a: 64-65.
Para uma análise iluminadora de um caso norte-americano semelhante aos
amazônicos, cf. McDonnell 1984: 41-43.
29. Assim, Taylor escreve sobre o conceito jívaro de wakan, “alma”: “Essencialmente,
wakan é autoconsciência […] uma representação da reflexividade […]. Wakan é
portanto comum a muitas entidades, e de forma nenhuma um atributo
exclusivamente humano: há tantos wakan quanto coisas a que se possam,
contextualmente, atribuir reflexividade”(1993b: 660).
30. “Tal é o fundamento do perspectivismo. Ele não exprime uma dependência
perante um sujeito definido previamente; ao contrário, será sujeito aquele que aceder
ao ponto de vista…” (Deleuze 1988: 27). A fórmula de Saussure (da mais pura estirpe
kantiana) está logo no começo do Cours (1916: 23).
31. Cf., p. ex., Brown, sobre os conceitos aguaruna de wakan, alma humana, e aents,
“pessoa” ou alma de entes não-humanos, que o autor estima fundamentalmente
semelhantes, definindo ambos como “uma essência oculta e permanente que, quando
se faz visível, tem a forma e as características de um ser humano”(1986: 54-55).
32. Traduzo o verbo inglês to embody e seus derivados, que hoje gozam de uma
fenomenal popularidade no jargão antropológico (cf. Turner 1994), pelo neologismo
“encorporar”, visto que nem “encarnar” nem “incorporar” são realmente adequados.
33. No mesmo espírito de Århem, Signe Howell afirma que “os Chewong são
relativistas; para eles, cada espécie é diferente, mas igual” (1996: 133). Isso também é
verdadeiro; mas seria provavelmente mais verdadeiro se invertêssemos a ênfase:
cada espécie é igual (no sentido de que não existe um ponto de vista absoluto,
independente de toda “especificidade”), mas diferente (pois tal igualdade não significa
que um dado tipo de ser possa assumir indiferentemente o ponto de vista de outras
espécies).
34. “O ponto de vista está no corpo, diz Leibniz…” (Deleuze 1988: 16).
35. Para nós, a espécie humana e a condição humana coincidem necessariamente em
extensão, mas a primeira tem primazia ontológica; por isso, recusar a condição
humana a outrem termina, cedo ou tarde, em uma recusa de sua conspecificidade.
No caso indígena, é a condição que tem primazia sobre a espécie, e a segunda é
atribuída a todo ser que se postula compartilhar da primeira.
36. A prova a contrario da função singularizadora do espírito em nossa cosmologia
está em que, quando se quer universalizá-lo, não há outro recurso – a sobrenatureza
estando hoje fora do jogo – senão o de identificá-lo à estrutura e funcionamento do
cérebro. O espírito só pode ser universal (natural) se for corpo.
37. Note-se também que as célebres máscaras duplas da Costa Noroeste
norteamericana, quando trazem uma face humana e outra animal, têm
invariavelmente a primeira como a face oculta interior.
38. Ver os desenvolvimentos recentes desta sugestão em Vilaça 1999.
39. “O maior perigo da vida está no fato de que a comida do homem consiste quase
inteiramente em almas” (Birket-Smith citando um xamã esquimó, apud Bodenhorn
1988: 1).
40. Cf. Viveiros de Castro 1978 (cap. 1 supra); Crocker 1985; Overing 1985, 1986;
Vilaça 1992; Århem 1993; S. Hugh-Jones 1996a, entre muitos outros.
41. Peter Gow (com. pess.) afirma que os Piro concebem o ato de vestir uma roupa
como um animar a roupa. A ênfase seria menos, como entre nós, no fato de cobrir o
corpo que no gesto de encher a roupa, ativá-la. Em outras palavras, vestir uma
roupa modifica a roupa mais que o corpo de quem a veste. Goldman (op. cit.: 183)
observa que as máscaras kwakiutl “ficam excitadas” durante o grande Festival de
Inverno; e Kensinger (1995: 255) lembra que, para os Cashinahua, as penas de
pássaros (usadas como adorno corporal) pertencem à categoria dos “remédios”.
42. “‘Roupa’, neste sentido, não significa meramente uma cobertura do corpo, pois se
refere também à habilidade e capacidade de desempenhar certas tarefas” (Rivière in
Koelewijn 1987: 306).
43. Rivière (1994) apresenta um mito interessante, no qual fica claro que a roupa é
menos forma que função. Um sogro-jaguar oferece a seu genro humano roupas de
onça. Diz o mito: “O jaguar dispunha de tamanhos diferentes de roupa. Roupa para
pegar anta, roupa para pegar queixada […] roupa para pegar cutia. Todas essas
roupas eram mais ou menos diferentes e todas tinham garras”. Ora, os jaguares não
mudam de tamanho para caçar presas de tamanhos diferentes, eles apenas
modulam seu comportamento. Essas roupas do mito estão adaptadas às suas
funções específicas, e da forma-jaguar só permanecem, pois só importam, as garras,
instrumento de sua função.
44. Como observa Fienup-Riordan (1994: 50) sobre os mitos esquimó de
transformação animal: “Os visitantes invariavelmente traem sua identidade animal
por algum traço peculiar de seu comportamento durante a visita…”.
45. Exs.: Schwartzman 1988: 268 (Panara); Vilaça 1992: 247-55 (Wari’); Turner
1995: 152 (Kayapó); Pollock 1985b: 95 (Kulina); Gray 1996: 157-78 (Arakmbut);
Alexiades 1999: 134, 178 (Ese Eja); Weiss 1972: 169 (Campa).
46. A noção está desacreditada desde, pelo menos, Durkheim. O argumento contra
ela é mais ou menos o seguinte: como os “primitivos” não estão de posse do conceito
de necessidade natural, i. e., da Natureza como domínio regulado pelas leis da física,
não há sentido em falar de Sobrenatureza para eles, pois não existe um domínio
suprafísico de causalidade. Talvez. Mas muitos daqueles que fazem objeção a este
conceito continuam a usar a noção de natureza para designar um domínio das
cosmologias indígenas, e não veem grandes problemas com a oposição
Natureza/Cultura, seja como distinção supostamente “êmica”, seja como divisória
ontológica “ética”. Como observei mais acima, muitas das funções tradicionais da
Sobrenatureza teológica foram absorvidas pelo moderno conceito de Cultura. Por
fim, se a oposição Natureza/Cultura pôde ser vista como tendo um “valor sobretudo
metodológico”, por que a noção de Sobrenatureza também não teria direito ao
mesmo habeas corpus?
47. Veja-se o que os Achuar estudados por Taylor recomendam, como método de
proteção ao se encontrar um iwianch, um fantasma ou espírito, na floresta. Devese
dizer ao iwianch: “Eu também sou uma pessoa!…”. Ou seja, deve-se afirmar o
próprio ponto de vista; quando o humano diz que também é uma pessoa, o que ele
está dizendo é que ele é o eu, não o outro: a verdadeira pessoa aqui sou eu.
CAPÍTULO 8
Yapii-do e sua filha (Ipixuna, 1981)
Atualização e contraefetuação do virtual: o processo do parentesco
Em geral, um estado de coisas não atualiza um virtual caótico sem lhe
tomar de empréstimo um potencial que se distribui no sistema de
coordenadas. […] Mesmo o sistema mais fechado tem sempre um fio que
sobe até o virtual, e é por ele que desce a aranha.
G. Deleuze & F. Guattari
Todo homem é dois, e o outro é o mais verdadeiro.
J. L. Borges
O dado de lá{1}
O dom não é dado – adverte-nos o autor do Ensaio. Não é dado, pelo menos, ao
antropólogo, que deve começar por observar o que é dado, e “o dado é Roma, é
Atenas, é o francês médio, é o melanésio de tal ou tal ilha, e não a prece ou o direito
em si” (Mauss 1923-24: 276). Parece que aprendemos bem a lição; bem demais, dirse-ia, visto que a prece, o direito, o dom e objetos similares (uma lista completa se
confundiria com o inventário conceitual da antropologia) são hoje considerados não
simplesmente como constructos ideais, mas como essências imaginárias, senão
malévolas. Mesmo o caráter “dado” desse ícone disciplinar, o Melanésio, acha-se sob
suspeita. O dado, como um todo, bateu em retirada.
Mas que seja o melanésio o dado do antropólogo, como queria Mauss (que teve o
cuidado de acrescentar: de tal ou tal ilha), ou coisa alguma, como vamos dando a
impressão de crer, resta em aberto a questão de saber o que seria o dado do
melanésio. Tal questão, convenhamos, não é irrelevante. Se é verdade que “a
antropologia procura elaborar a ciência social do observado” (Lévi-Strauss 1954:
379), então uma de nossas tarefas principais consiste em elucidar o que, para os
povos que estudamos, faz as vezes de dado – de fato inato que circunscreve e
condiciona a agência humana —, e o que, correlativamente, é percebido como
construível ou feito, isto é, como pertencendo à esfera da ação e da responsabilidade
dos agentes. Por coincidência, devemos a um especialista na Melanésia uma
formulação especialmente rica desse problema (Wagner 1981).
O presente artigo transporta o “problema do dado” para a Amazônia indígena.
Apoiando-me no contraste proposto por Roy Wagner, em A invenção da cultura, entre
os modos pelos quais diferentes tradições pressupõem o contraste entre o “dado” e o
“construído”, esboço aqui os contornos do que poderia vir a ser uma teoria geral da
socialidade amazônica, a partir de seu conceito de parentesco.
O que se segue foi extraído de um livro inacabado (Viveiros de Castro em
preparação), onde se discute, entre outras coisas, a tendência na antropologia
contemporânea de se insistir no caráter socialmente construído – no sentido práticoprocessivo mais que teóricodiscursivo da expressão – do nexo de parentesco. {2}
Embora aprecie e acolha a fecundidade dessa ideia, entendo também que nenhuma
dimensão da experiência humana é (dada como) inteiramente construída; algo
sempre deve ser (construído como) dado.
As construções indígena e ocidental do dado, entretanto, diferem radicalmente. Já
explorei parte dessas diferenças no contexto das transformações que uma perspectiva
amazônica impõe ao dualismo natureza/cultura (Viveiros de Castro 1996c; ver cap.
7 supra ); a discussão se estende aqui ao parentesco e, mais geralmente, às categorias
básicas da socialidade indígena. Digo a discussão se estende, mas deveria dizer se
restringe, uma vez que estaremos observando – e deslocando – uma manifestação
específica do dualismo cosmológico anteriormente analisado, o modo pelo qual ele
investe e polariza o campo das relações sociais. Os termos do problema, portanto,
são os mesmos, como não deixa de sê-lo a solução proposta.
A relação entre a abordagem adotada em meu artigo de 1996 sobre o
perspectivismo indígena e as ideias de Wagner passou-me, então, completamente
despercebida (ver cap. 7 supra, n. 1). O presente texto reconhece tal relação e a
leva adiante. Reservando para outra oportunidade uma apreciação de meus
pontos de divergência com a semiótica wagneriana, gostaria aqui, ao contrário,
de sublinhar minha proximidade a ela. Pois a crítica do argumento
construcionista que esboço a seguir não se deve confundir com certos ataques
recentes de que ele vem sendo objeto, com referência ao parentesco, ao gênero, às
emoções, à pessoa etc. Tais reações reduzem-se a uma afirmação da estabilidade
transcultural de categorias e experiências características da modernidade
ocidental, afirmação que termina, via de regra, na restauração da velha divisão
do trabalho ontológico entre natureza e cultura. Em outras palavras, o dado do
melanésio é imaginado como exatamente o mesmo que o nosso, “dados” certos
universais – já físico-materiais (a natureza), já psicocognitivos (a natureza
humana), já sociofenomenológicos (a condição humana). Ao contrário dessas
reações, penso, como Wagner – se bem o compreendo —, que o que é préhistórico e genérico é que um dado é sempre pressuposto, mas não sua
especificação; o que é dado é que haverá sempre algo construído como dado.
O foco desta análise é uma dicotomia central na teoria e prática do parentesco
ocidental: a distinção, consagrada por Morgan, entre consanguinidade e afinidade.
Meu argumento, em síntese, é que o parentesco amazônico distribui diversamente os
valores que associamos a tal distinção, atribuindo à afinidade a função do dado na
matriz relacional cósmica, ao passo que a consanguinidade irá constituir a província
do construído, daquilo que toca à intenção e ação humanas atualizar.
O tratamento teórico concedido pela antropologia às noções de consanguinidade e
afinidade oscila entre dois extremos bem conhecidos. Muitos antropólogos têm-nas
por um dado, um universal formal do parentesco, vendo portanto sua própria tarefa
como consistindo na simples determinação dos conteúdos variáveis da distinção: que
tipos de parentes são definidos (construídos) como consanguíneos ou afins “em tal ou
tal ilha”. Outros antropólogos, em contrapartida, estimam que a distinção ela mesma
é um constructo ocidental, e portanto inaplicável a outros mundos relacionais. A
disciplina, pensam eles, deveria livrar-se dessa dicotomia e da noção culturalmente
específica de “parentesco” que lhe está associada.
Recuso essa alternativa. Por um lado, sou estruturalista demais para achar que a
distinção que nomeamos “consanguinidade/afinidade” não seja uma das dimensões
constitutivas do parentesco humano. Por outro lado, porém, penso que é a forma (ou
compreensão) mais que apenas o conteúdo (ou extensão) dessas noções que varia
crucialmente. Não é tanto quem é um consanguíneo ou um afim que difere de um
mundo relacional para outro, mas, antes de mais nada e sobretudo, o quê é um
consanguíneo ou um afim. Os conceitos amazônicos de afinidade e consanguinidade
não só determinam outros referentes que os nossos, como envolvem outros
componentes.
Mas se é assim, dir-se-á, então para que aplicar os termos “consanguinidade” e
“afinidade”, e mesmo o de “parentesco”, ao mundo amazônico? Precisamente, penso,
para poder enxergar a diferença que liga esse mundo ao nosso. Suponho que há uma
relação entre, digamos, nosso conceito de parentesco e o que vou chamar de
parentesco no contexto amazônico. Mas tal relação não é de identidade, nem de
equivalência, nem exprime um fundo comum – e menos ainda um “ar de família”,
noção wittgensteiniana cuja aplicação aqui seria uma petição de princípio, pois ela já
traz implicada toda a nossa concepção de parentesco. Seguindo nisso, como se verá,
a lição indígena, deve-se imaginar um conceito de relação que não tenha a identidade
como protótipo. Em outras palavras, é desnecessário apelar para algum tipo de
coisa-em-si, uma Essência que esteja lá como referente último da relação entre os
conceitos amazônico e ocidental. A entre-expressão analógica desses conceitos não
exprime outra coisa que suas relações diferenciais aos outros conceitos de seus
respectivos planos de imanência (Deleuze & Guattari 1991); suas dissonâncias são
tão ou mais significativas que suas ressonâncias. A decisão de dar o mesmo nome a
dois conceitos ou multiplicidades diferentes não se justifica, então, por causa de suas
semelhanças, e apesar de suas diferenças, mas o contrário: a homonímia visa
ressaltar as diferenças, a despeito das semelhanças. A intenção, justamente, é fazer
parentesco querer dizer outra coisa.
A afinidade potencial
Há muito que os antropólogos atentam para as profundas ressonâncias simbólicas
da noção de afinidade na América do Sul indígena; desde, pelo menos, um antigo
texto de Lévi-Strauss, onde se aproximavam certos aspectos da vida social dos
Nambikwara à dos Tupinambá e se observava, em conclusão: “Um certo laço de
parentesco, a relação de cunhado, possuía um significado que, para muitas tribos
sul-americanas, transcendia de muito a simples expressão de uma relação [de
afinidade matrimonial]” (1943: 398).
Tais ressonâncias simbólicas, é verdade, não excluem dissonâncias teóricas. A
afirmação de Lévi-Strauss contrasta claramente, por exemplo, com a atitude
dubitativa de Peter Rivière quanto a se saber “se a noção de afinidade, tal como o
termo é geralmente compreendido, é aplicável na região da Guiana” (1984: 69).
Lévi-Strauss está dizendo que a afinidade indígena significa mais que a nossa noção;
Rivière está sugerindo que ela significa menos, visto que no contexto guianense ela só
se aplicaria quando o casamento se dá com um estrangeiro (um membro de outro
grupo local). Nas sociedades fortemente endogâmicas dessa região, um casamento
ideal não produziria afinidade, pois simplesmente reafirma conexões cognáticas
prévias e não acarreta mudanças nas atitudes de parentesco entre os envolvidos.
Dessa forma, a afinidade não só significaria menos, mas poderia mesmo nada
significar, pelo menos para “algumas tribos” sul-americanas.
Como reconciliar as duas opiniões? Sua aparente discordância não se deve, creio,
a diferenças etnográficas entre os grupos indígenas em questão (que certamente as há,
e não pequenas). Na verdade, penso que ambos os autores estão exprimindo uma
mesma situação. A similaridade pode ser vista ao estendermos a observação de
Rivière sobre a afinidade ser noção aplicável apenas a casamentos entre estranhos.
Pois a afinidade amazônica pode se aplicar a relações com estranhos mesmo se
nenhum casamento acontece; e mais, ela se aplica sobretudo àqueles estranhos com
os quais o casamento não é uma possibilidade pertinente. E assim reencontramos o
ponto de Lévi-Strauss a respeito dos usos extraparentesco do idioma da cunhadez.
Recorde-se que tovajar, a palavra tupinambá que significava “cunhado” e “inimigo”,
exprimia tanto a aliança amigável dentro como a inimizade mortal fora, e muito
provavelmente vice-versa. Ela aproximava e opunha de um só golpe.
Em trabalhos anteriores sobre o parentesco amazônico, observei que as
terminologias de tipo dravidiano tão comuns nessa região divergem, sob aspectos
importantes, do esquema epônimo descrito por Louis Dumont para a Índia do Sul.
{3} A diferença principal é que as categorias da consanguinidade e da afinidade, na
Amazônia, não formam uma oposição “distintiva” ou “equistatutária” como no
modelo tamil proposto por esse antropólogo. O padrão concêntrico das classificações
sociopolíticas amazônicas, e da linguagem cognática em que elas são usualmente
expressas, inflete o arranjo diametral da terminologia, criando um desequilíbrio
pragmático e ideológico – por vezes mesmo terminológico – entre as duas
categorias. À medida que passamos da área proximal às regiões distais do campo
relacional, a afinidade vai progressivamente prevalecendo sobre a consanguinidade,
acabando por se tornar o modo genérico da relação social. Antes que a caixa
diagramática dravidiana, com suas categorias simetricamente distribuídas em torno
de um meridiano, a estrutura amazônica evocaria aquelas caixas chinesas (ou
bonecas russas), com a consanguinidade alojada dentro da afinidade. Em poucas
palavras, a afinidade engloba hierarquicamente seu contrário, a consanguinidade.
Essa torção do modelo dravidiano foi produzida ao se aplicar, por assim dizer, a
teoria de Dumont sobre si mesma, fazendo com que os conceitos de hierarquia e
englobamento do contrário investissem a estrutura equipolente do dravidianato. Mas
Dumont estava perfeitamente ciente da possibilidade de que as duas categorias de
parentesco se articulassem dessa forma. Com efeito, ele sustentava que a principal
diferença entre as configurações de parentesco da Índia do Sul (dravidiana) e do norte
(indo-ariana) reside no fato de que, se a primeira não se organiza em termos de
oposições hierárquicas, a segunda o faz. Na Índia do Norte, ele escreveu, a noção de
bhai, “irmão”, conecta efetivamente o parentesco e a casta, “ao tomar significados
progressivamente mais amplos quando se passa das relações imediatas a círculos
cada vez mais vastos”. Com isso, “ela engloba reiteradamente no nível mais elevado o
que era seu contrário no nível mais baixo”. Nas terminologias dravidianas, em
contrapartida, “não achamos nada desse tipo, as categorias (principais) […] formam
uma nítida oposição distintiva” (Dumont 1983: 166).
Dumont jamais parece ter considerado a terceira possibilidade, que seria o
inverso do caso norte-indiano: a afinidade englobando reiteradamente a
consanguinidade “quando se passa das relações imediatas a círculos cada vez mais
vastos”. Esse seria justamente, sugeri, o caso na Amazônia, sobretudo naquelas
sociedades localmente endogâmicas e cognáticas, em que a “aliança prescritiva” não
se apoia em nenhum esquema de descendência, como os Trio (Rivière 1969), os
Piaroa (Overing Kaplan 1975), os Jívaro (Taylor 1983), os Yanomami (Albert
1985) e outros povos (Viveiros de Castro 1993a (ver cap. 2 supra); id. [org.] 1995).
A sugestão não era inaudita. Bruce Albert (op. cit.), embora não tivesse usado o
conceito de oposição hierárquica, chegara a algo bem próximo dessa conclusão; e
muito do que vim a escrever sobre o regime da afinidade amazônica foi apenas uma
extrapolação sistemática de sua análise. {4} Antes disso, porém, a ideia central havia
sido formulada com perfeita concisão por Joanna Overing, a propósito dos Piaroa e
sociedades congêneres:
Devemos distinguir entre as sociedades que enfatizam a descendência, aquelas que
enfatizam tanto a descendência como a aliança, e por fim aquelas que utilizam
apenas a aliança como princípio básico de organização (1975: 2).
Tal tricotomia chamava a atenção para um caso deixado a descoberto pelos dois
protótipos etnográficos da época: os sistemas africanos da antropologia britânica
(descendência) e as estruturas australianas e sul-asiáticas do estruturalismo francês
(descendência mais aliança). Pode-se ler aqui, com efeito, uma distinção formulável
em termos lévi-straussianos, entre os sistemas “pós-elementares” nos quais a aliança
é ancilar à perpetuação dos grupos de unifiliação (as relações têm um papel apenas
regulativo, estando subordinadas a termos constituídos de modo independente), os
sistemas elementares nos quais o “método de classes” prevalece (termos e relações são
mutuamente constitutivos), e, finalmente, as estruturas amazônicas “pré-elementares”
em que vigora o “método de relações” (as relações subordinam e constituem os
termos). {5} Mas esses contrastes também poderiam ser mais simplesmente
traduzidos no vocabulário dumontiano, e lidos como distinguindo entre as sociedades
onde a consanguinidade engloba a afinidade, aquelas onde os dois princípios estão
em oposição equistatutária, e aquelas onde a afinidade engloba a consanguinidade.
Tal leitura exige que se interprete a “descendência” e a “aliança” da formulação de
Overing como sendo apenas as elaborações institucionais de, respectivamente, a
consanguinidade e a afinidade tomadas como os dois estados básicos do nexo de
parentesco. Admitido isso, dizer, então, que em uma dada sociedade a aliança
prevalece sobre a descendência como princípio institucional é o mesmo que dizer que,
ali, a afinidade predomina sobre a consanguinidade como princípio relacional.
Nos trabalhos supracitados, o que fiz foi tentar extrair todas as consequências
etnográficas possíveis (e algumas talvez nem tanto) dessa ideia da afinidade como
princípio dominante. Escolhi chamar tal princípio “afinidade potencial”, distinguindo
assim entre a afinidade como valor genérico e a afinidade como manifestação
particular do nexo de parentesco. A distinção significa que a afinidade potencial, valor
genérico, não é um componente do parentesco (como o é a afinidade matrimonial,
efetiva), mas sua condição exterior. Ela é a dimensão de virtualidade de que o
parentesco é o processo de atualização.
O batismo do conceito (Viveiros de Castro 1993a) não foi lá muito feliz. Eu
contrastava a “afinidade potencial” não somente com a “afinidade efetiva”,
matrimonialmente criada (a relação de cunhados, p. ex.), mas também com o
que chamei de “afinidade virtual” (os cognatos cruzados, p. ex., que são afins
terminológicos no dravidianato). Um dos problemas é que “potencial” e “virtual”
eram tratados como sinônimos na literatura, e aplicados indiferentemente aos
afins cognáticos que chamei “virtuais” (os afins potenciais não tinham existência
teórica de direito). Talvez uma expressão mais apropriada fosse “metaafinidade”, por analogia com a noção de “metagermanidade” cunhada por R.
Jamous (1991) para caracterizar a matriz de parentesco dos Meo da Índia do
Norte. O paralelo é relevante, uma vez que a metagermanidade meo (ligada ao
exemplo do bhai evocado na citação de Dumont, supra) é o equivalente
consanguíneo da afinidade potencial amazônica. Taylor (2000: 312 n. 6) propôs
recentemente uma permutação, no contexto jívaro, dos qualificativos “virtual” e
“potencial” que me parece defensável, e que teria para mim a vantagem de
aproximar a afinidade, como valor genérico, do conceito de virtual desenvolvido
por Gilles Deleuze, e utilizado no presente artigo. Entretanto, como minha
distinção potencial/virtual foi mais ou menos absorvida, nesses termos, pela
literatura (ver Barry et al. 2000: 721), sinto-me obrigado a honrá-la, ou pelo
menos a continuar usando “potencial” no mesmo sentido em que o empreguei até
agora (até porque ainda acho o adjetivo “potencial” cheio de, como direi,
potencial). “Virtual”, entretanto, não mais me parece apropriado para designar a
afinidade cognática. Tentarei, em outra oportunidade, resolver essa indecisão e
imprecisão vocabulares.
Fui compelido a fazer tal diferença por causa das considerações a seguir. A questão
inicial era simples: saber o que acontecia quando se passava da esfera das relações
internas ao grupo local ou aldeia à esfera das relações interlocais. No modelo d’As
estruturas elementares (Lévi-Strauss 1967a), a unifiliação é o princípio que responde
pela composição interna das unidades de intercâmbio, enquanto a aliança articula as
conexões entre elas e assim gera a forma e a continuidade do sistema global. Em sua
interpretação da morfologia social piaroa, Overing deu o passo decisivo, que foi
trazer a aliança para o interior das unidades mesmas, transformando-a em princípio
de constituição e perpetuação de grupos locais (as parentelas endogâmicas e
localizadas comuns na Guiana e alhures). Esse deslocamento abriu todo um novo
horizonte de entendimento dos universos de parentesco amazônicos, além de permitir
uma reconceitualização geral dos chamados sistemas de troca restrita. Se resolvia
vários problemas, entretanto, ele criava outros. Em lugar de grupos de descendência
ligados por fórmulas globais de aliança, tínhamos grupos locais fundados na aliança
matrimonial – mas ligados pelo quê? Se a afinidade era um mecanismo interno,
então como se exprimiriam as relações externas, supralocais, visto que não
poderiam sê-lo por dispositivos de unifiliação, inexistentes ou rudimentares em boa
parte da Amazônia, e tampouco por simples consanguinidade, esta concentrando-se
igualmente no grupo local? Se adotássemos a visão tradicional da “sociedade
primitiva” como fundada no parentesco, seria preciso concluir que a Sociedade, em
inúmeros casos amazônicos, coincide com a comunidade local: o grupo local seria
um grupo total. O que pareceria consistente com “xenofobia típica” (Rivière 1984: 61)
de muitos povos indígenas, que veem gente não-aparentada e membros de outros
grupos como seres de escassa e dúbia humanidade. O exterior, nessa visão, seria
pura negatividade, ausência de relação. A socialidade termina onde a sociabilidade
acaba. {6}
Uma solução avançada pelos amazonistas consistiu em demonstrar que nenhum
grupo local de intra-aliança é uma ilha. A despeito de sua vontade de autarquia, cada
comunidade está (ou estava) no centro de uma teia de relações com outros coletivos;
tais relações são plenamente reconhecidas, mesmo se ambiguamente estimadas, pela
ideologia e prática nativas. Contudo, tal ênfase nos quadros sociológicos mais vastos
– o “conjunto multicomunitário”, o “aglomerado”, o “nexo” etc. – em que as quasemônadas locais estão imersas não resolve todos os problemas, pois que permanece
inspirada por uma preocupação teórica tradicional com a totalização morfológica.
Mesmo um comércio ligeiro com a etnografia amazônica leva qualquer um a se dar
conta de que os “quadros sociológicos mais vastos” são, naquela região, realmente
vastos, incluindo muito mais que apenas outros grupos locais da mesma família
étnica ou linguística – e não me refiro aqui a outras “tribos”, ou aos grandes e
heterogêneos sistemas regionais pré-colombianos. Os quadros sociológicos vão tão
longe quanto as sociologias nativas vão; e estas mobilizam uma vária multidão de
Outros, humanos como não-humanos, multidão que não é nem distribuível, nem
totalizável de modo evidente. {7}
As implicações disso não se limitam à morfologia social. Considere-se, por
exemplo, a noção de uma economia política de pessoas, várias vezes sugerida para
caraterizar regimes de socialidade como o amazônico. Ela é sem dúvida interessante.
Ela toma por dado, contudo, precisamente o que não poderia tomar: que se sabe de
antemão quem são as pessoas, isto é, que todos os povos do planeta entretêm mais
ou menos as mesmas ideias sobre quem se qualifica à condição de pessoa (e o que a
qualifica). Mas como é óbvio que esse não é o caso, fica a questão: o que poderia
querer dizer uma “economia política de pessoas” em mundos como os amazônicos,
nos quais há mais pessoas no céu e na terra do que sonham nossas antropologias?
{8}
Mas consideremos as relações supralocais na Amazônia. Elas compõem uma
paleta variada: intercasamentos estatisticamente minoritários (nos regimes
endogâmicos), mas politicamente estratégicos; laços de amizade formal e de parceria
comercial; cerimônias e festins intercomunitários; e um estado, latente ou manifesto,
de “guerra”, onde grupos aliados e grupos inimigos estão constantemente a mudar de
posição, e cujas manifestações variam do combate xamânico de almas ao choque
bélico de corpos, da vendetta mais ou menos individualizada ao raid massivo, da
pressão psicológica à caça de cabeças e vítimas canibais, passando pela captura de
mulheres, crianças e outros bens socialmente valorizados. Em alguns casos, esses
diferentes modos correspondem a diferentes níveis de supralocalidade: interaldeão,
inter-regional, intertribal, interétnico etc. Mas, em muitos outros, eles se entrecruzam,
confundem ou oscilam conjunturalmente dentro da mesma zona de distância
estrutural. Além disso, esse complexo atravessa diferentes esferas sociocosmológicas:
animais, plantas, espíritos e divindades, todos circulam em múltiplos canais que
tanto os ligam aos humanos como os separam destes. Sejam quais forem as
situações e os personagens envolvidos, porém, todas essas relações evocam o mesmo
fundo de valores e disposições, como atesta o simbolismo comum em que se
exprimem: elas são todas declinadas em um idioma de afinidade. Hóspedes e
amigos ao mesmo título que estrangeiros e inimigos; aliados e clientes políticos
assim como parceiros comerciais ou companheiros rituais; animais de caça tanto
quanto espíritos predadores – todas essas gentes estão banhadas em afinidade,
concebidas que são como afins genéricos ou como versões (às vezes, inversões)
particularizadas dessa posição onipresente. {9} O Outro, em suma, é primeiro de tudo
um Afim.
Sublinhe-se que essa afinização de outrem ocorre a despeito do fato de que a vasta
maioria das alianças matrimoniais efetivas se firma no interior do grupo local. E, de
qualquer modo, tais alianças não podem não se concentrar no grupo local, uma vez
que é essa concentração que define a dimensão do “local” – aldeia, nexo ou conjunto.
Com isso estou sugerindo que a situação não muda muito, quando trazemos o foco
para aqueles regimes amazônicos que encorajam ou prescrevem a exogamia de
aldeia ou de grupo de descendência. A afinidade potencial e seus harmônicos
cosmológicos continuam a dar o tom das relações genéricas com os grupos nãoaliados, os brancos, os inimigos, os animais, os espíritos. {10}
Além dessas relações coletivas de afinidade com o exterior, podem (ou devem)
também vigorar conexões particularizadas, como as que associam parceiros de
troca, amigos rituais, os xamãs e seus aliados não-humanos, os guerreiros e suas
vítimas humanas. Tais relações personalizadas de afinidade (ainda nãomatrimonial, no sentido de que não se apoiam em um elo de casamento efetivo, ou
ao menos intra-humano) são uma peça central da cosmopolítica indígena, visto que
servem ao mesmo tempo de evidência e de instrumento para a relação genérica.
Foi essa configuração característica da socialidade amazônica que chamei de
afinidade potencial. O importante, entretanto, é que tal afinidade “simbólica” pareciame encarnar as qualidades distintivas desse modo de relação mais plenamente do que
o fazem os laços de afinidade efetiva que constituem “o grupo”. No contexto da
endogamia local e cognática que prevalece em muitas das sociedades da região, a
afinidade como relação particular é expurgada de todos, ou quase todos, os
significados atribuídos à versão genérica. Se a afinidade como valor genérico era
uma “afinidade sem afins”, a situação dentro do coletivo de intra-aliança produz,
inversamente, “afins sem afinidade” (ver cap. 2 supra). Os afins cognáticos são
tratados como cognatos mais que como afins; os afins efetivos são consanguinizados
no plano das atitudes; os termos específicos de afinidade (quando existem) são
evitados, em favor de tecnônimos que exprimem co-consanguinidade; os cônjuges
são concebidos como se tornando consubstanciais por via do sexo e da
comensalidade, e assim por diante. Pode-se, então, dizer que a afinidade como
relação particular é eclipsada praticamente pela consanguinidade, ao longo do
processo de construção do parentesco. Como observou Rivière, “dentro da
comunidade [settlement] ideal, a afinidade não existe” (1984: 70).
Essa frase de Rivière exprime, sem dúvida, um ideal de muitas comunidades
amazônicas. Mas eu a tomo como significando que a afinidade, se não existe dentro
da comunidade ideal, deverá então existir em algum outro lugar. Dentro de uma
comunidade real, com certeza; mas também, e sobretudo, fora da comunidade ideal:
no exterior ideal da comunidade, como afinidade ideal, isto é, pura. Pois, quando a
perspectiva (do observador ou do nativo) se desloca, passando das relações locais a
contextos mais amplos – relações matrimoniais e rituais interaldeães, guerra e
comércio intergrupais, caça e xamanismo interespécies —, a distribuição de valor se
inverte, e a afinidade torna-se o modo geral da relação. A socialidade começa onde a
sociabilidade acaba.
O fato e o feito
Vimos, assim, através de quê os coletivos de parentesco amazônicos se relacionam.
Mas isso não é o bastante. É preciso perguntar: em relação a quê são semelhantes
coletivos definidos e constituídos? O que faz, de tais comunidades, grupos “locais”?
Sugiro que esses coletivos são definidos e constituídos em relação, não a uma
sociedade global, mas a um fundo infinito de socialidade virtual. E sugiro que tais
coletivos se tornam locais, isto é, atuais, ao se extraírem desse fundo infinito e
construírem, literalmente, seus próprios corpos de parentes. Esses seriam,
respectivamente, os sentidos dos conceitos de afinidade e de consanguinidade no
mundo amazônico.
O parágrafo acima não faz mais que enunciar uma tese desenvolvida em
Viveiros de Castro, em preparação. Isso que chamo de fundo de socialidade
virtual encontra sua plena expressão na mitologia indígena, onde se acha
registrado o processo de atualização do presente estado de coisas a partir de um
pré-cosmos dotado de transparência absoluta, no qual as dimensões corporal e
espiritual dos seres ainda não se ocultavam reciprocamente. Ali, muito longe de
qualquer indiferenciação originária entre humanos e não-humanos – ou índios e
brancos etc. —, o que se vê é uma diferença infinita, mas interna a cada
personagem ou agente (ao contrário das diferenças finitas e externas que
codificam o mundo atual). {11} Donde o regime de metamorfose, ou
multiplicidade qualitativa, próprio do mito: a questão de saber se o jaguar
mítico, digamos, é um bloco de afecções humanas em figura de jaguar ou um
bloco de afecções felinas em figura de humano é rigorosamente indecidível, pois a
metamorfose mítica é um acontecimento ou um devir (uma superposição
intensiva de estados), não um “processo” de “mudança” (uma transposição
extensiva de estados). A linha geral traçada pelo discurso mítico descreve a
laminação desses fluxos pré-cosmológicos de indiscernibilidade ao caírem no
processo cosmológico: doravante, o aspecto humano e o aspecto jaguar do
jaguar (e do humano) funcionarão alternadamente como fundo e forma
potenciais um para o outro. A transparência absoluta se bifurca, a partir daí, em
uma invisibilidade (a alma) e uma opacidade (o corpo) relativas – relativas
porque reversíveis, já que o fundo virtual é indestrutível ou inesgotável. A
afinidade potencial remonta a esse fundo de socialidade metamórfica implicado
no mito: é por isso que as grandes narrativas de origem, nas mitologias
indígenas, põem em cena personagens ligados paradigmaticamente por aliança
transnatural: o protagonista humano e o sogro urubu, o cunhado queixada, a
nora planta e assim por diante. O parentesco humano atual provém dali, mas
não deve jamais (porque pode sempre) retornar ali, pelo menos à revelia do
socius – por isso o esforço manifesto em dispositivos como a couvade, pelo qual
se cortam as ligações potenciais entre o recém-nascido e a alteridade précosmológica e se lhe atribui uma opacidade especificamente humana.
Aludi, mais acima, a uma inversão da distribuição do valor quando passamos das
relações imediatas a relações mais distantes. Mas tal modo de falar é completamente
inapropriado. Ele exprime nosso renitente automatismo extensionista, ao implicar
que o movimento próprio da socialidade amazônica vai de uma sociabilidade
próxima, ordinária e cotidiana (onde a consanguinidade prevalece), até contextos
cosmologicamente mais abrangentes, de natureza algo extraordinária (onde a
afinidade predomina). Ou seja, de uma intimidade socialmente positiva a uma
distância socialmente negativa – o que corresponde a um modelo egocentrado
comum no Ocidente, no qual o protótipo da relação é a autoidentidade. {12} O
movimento amazônico me parece ir no sentido oposto. Longe de ser uma projeção
metafórica, uma atenuação semântica e pragmática da afinidade matrimonial, a
afinidade potencial é a fonte da afinidade atual, e da consanguinidade que esta gera. E
assim é porque relações particulares devem ser construídas a partir de relações
genéricas: elas são resultados, não origens. Se isso é verdadeiro, então as relações
“classificatórias” de parentesco não podem ser vistas como extensões das relações
“reais”; ao contrário, são estas últimas que constituem reduções das primeiras. Na
Amazônia, um consanguíneo próximo ou real (o que não quer dizer “biológico”, e
menos ainda “etnobiológico”) é talvez mais consanguíneo que um consanguíneo
distante ou classificatório – mas um afim classificatório é certamente mais afim que
um afim real. Isso sugere que a consanguinidade e a afinidade amazônicas não são
categorias taxonomicamente descontínuas, mas zonas de intensidade de um mesmo
campo escalar. O movimento que percorre esse campo não vai do proximal ao
distal, do ordinário ao extraordinário, mas o inverso. Algo extra precisa ser
mobilizado para que se traga o ordinário à luz.
Este é um ponto teórico mais amplo. Os laços imediatos de cognação são
necessários para a fabricação das relações e categorias classificatórias; eles
funcionam como causa material e eficiente do parentesco. Mas, reciprocamente,
os chamados laços classificatórios são necessários para a instituição daqueles
laços imediatos, e do parentesco em geral; eles são a causa formal e final do
sistema, e a esse título são pressupostos pela primeira ordem de causalidade. A
velha querela entre extensionistas e categoristas se resume a isto: os primeiros
acreditam que a fabricação (necessariamente particular) fabrica também a
instituição (necessariamente geral) – o que é patentemente falso —; os segundos
cometem o erro inverso, ou simplesmente não fazem a distinção. Tais
considerações serão desenvolvidas em outra oportunidade; adianto apenas que a
distinção entre fabricação e instituição poderia ser pertinente para um outro
debate, aquele que opõe as interpretações “projecionistas” e “imanentistas” do
chamado animismo: as primeiras supõem que a antropomorfização de nãohumanos procede por extensão dos predicados dos humanos aos não-humanos;
as segundas recusam a noção de antropomorfismo e sustentam que a
“personitude” é uma propriedade imediata e substantiva tanto dos humanos
como dos não-humanos (ou de alguns deles).
A relevância da ideia da afinidade como o dado não se acha em suas incidências
eventuais sobre as terminologias de parentesco, mas no fato de que ela é uma
manifestação privilegiada das premissas ontológicas dos mundos amazônicos. A
primeira e principal dessas premissas é: a identidade é um caso particular da
diferença. Assim como o frio é ausência relativa de calor, mas não vice-versa (o calor
é uma quantidade sem estado negativo), assim a identidade é ausência relativa de
diferença, mas não vice-versa. O que equivale a dizer que só existe diferença, em
maior ou menor intensidade: essa é a natureza do valor medido. Traduzindo-se a
analogia para o domínio do parentesco – e tomando-se “parentesco” como uma
abreviação cômoda para o que, na Amazônia, seria melhor chamado teoria da
relacionalidade generalizada —, diríamos que a consanguinidade é um valor-limite
da afinidade. Um limite no sentido estrito, visto que ele não pode ser atingido. O que
o parentesco mede ou calcula na socialidade amazônica é o coeficiente de afinidade
nas relações, que não chega jamais a zero, visto que não pode haver identidade
consanguínea absoluta entre duas pessoas, por mais próximas que sejam. {13} A
rigor, sequer as pessoas individuais são idênticas a si mesmas, visto não serem
realmente individuais – pelo menos enquanto estão vivas.
Esta, portanto, a regra cardinal: não há relação sem diferenciação. O que, em
termos sociopráticos, é dizer que os parceiros de qualquer relação estão relacionados
porque são diferentes entre si, e não apesar de o serem. Eles se relacionam através de
sua diferença, e se tornam diferentes através de sua relação. Mas não é justamente
nisso que consiste a afinidade? Esse é um vínculo no qual os termos se ligam por
diferirem em sua relação com o termo de ligação: minha esposa é tua irmã etc. O
que nos une é o que nos distingue. Assim se explicaria por que a afinidade é um
símbolo tão poderoso do nexo social na Amazônia. Um símbolo, para falarmos
como Lévi-Strauss, que transcende de muito a simples expressão de um laço de
parentesco; que transcende, na verdade – de onde descende —, o parentesco enquanto
tal. Se o Outro, para nós, emerge do indeterminado ao ser posto como um irmão,
isto é, como alguém que se liga a mim por estarmos em idêntica relação a um termo
superior comum (o pai, a nação, a igreja, um ideal), o Outro amazônico será
determinado como cunhado, alteridade horizontal e imanente (Keifenheim 1992: 91).
Se chamarmos “liberdade” à finalidade mesma da vida social, então, no caso
amazônico, os meios para tal fim não são a igualdade e a fraternidade, mas a
diferença e a afinidade – liberté, différence, affinité. Enfim: a Relação como
semelhança ou a Relação como diferença.
Mas onde entra, nisso tudo, a consanguinidade? Ela precisa, justamente, entrar,
pois não está lá como fato. Uma vez que a afinidade é o estado fundamental do
campo relacional, algo deve ser feito, uma certa quantidade de energia deve ser
dispendida para se poderem criar zonas de valência consanguínea nesse campo. A
consanguinidade deve ser deliberadamente fabricada; é preciso extraí-la do fundo
virtual de afinidade, mediante uma diferenciação intencional e construída da diferença
universalmente dada. Mas então, ela só pode ser o resultado de um processo,
necessariamente interminável, de despotencialização da afinidade: sua redução pelo (e
ao) casamento. Este, em suma, é o sentido do conceito de afinidade potencial: a
afinidade como dado genérico, fundo virtual contra o qual é preciso fazer aparecer
uma figura particular de socialidade consanguínea. O parentesco é construído, sem
dúvida; ele não é dado. Pois o que é dado é a afinidade potencial.
A linha que desce e a linha que sobe
Vemos portanto como a linguagem indiana do englobamento hierárquico pode ser
traduzida na linguagem melanésia da convenção e da invenção, do literal e do
figurativo, do dado e do construído. Mas, o que se ganha com isso?
O recurso ao conceito de oposição hierárquica foi uma consequência, em primeiro
lugar, dos materiais com que inicialmente me defrontara: as terminologias
amazônicas de duas seções, de um tipo que havia sido canonicamente descrito por
Dumont. Como esse autor havia lançado mão da ideia de hierarquia para dar conta
de outros (ou todos) os aspectos da sociedade indiana, sua recusa em aplicá-la ao
parentesco dravidiano me intrigava. Tanto mais que ele havia usado essa mesma
ideia para realizar um ataque devastador contra as interpretações “equistatutárias”
dos dualismos sociocosmológicos propostas por Needham e seus associados. {14} O
argumento de Dumont, de que toda oposição socialmente posta sempre implica – na
ausência de um esforço consciente para equalizá-la – uma assimetria de valor,
parecia-me fortemente convincente. Era um passo óbvio, portanto, usá-lo para fazer
a crítica do crítico, pelo menos no contexto do dravidianato amazônico.
Em segundo lugar, tomei o conceito de oposição hierárquica como uma aplicação
interessante do conceito linguístico de marca.{15} Nesse sentido, minha tese sobre a
afinidade como hierarquicamente superior à consanguinidade não pretendia dizer
senão que a primeira é a categoria não-marcada da socialidade amazônica,
significando relação nos contextos genéricos, enquanto a segunda é a categoria ou
qualidade relacional marcada. A consanguinidade é não-afinidade, antes de ser
qualquer outra coisa.
Quero dizer com isso que a consanguinidade amazônica requer a afinidade para
ser definida, e que a recíproca não é verdadeira, pois a afinidade é
axiomaticamente primitiva. É importante ressaltar que este não é um argumento
sobre a estrutura lexical das terminologias. É em tal acepção limitada que o
conceito de marca aparece na antropologia do parentesco (p. ex. Scheffler 1984).
A observação de Dumont sobre a diferença entre a Índia do Norte e do Sul,
acima citada, também está formulada em termos lexicais, embora ele
claramente esteja visando algo mais geral. No caso da Amazônia, não vejo
sinais inequívocos de um estatuto não-marcado dos termos de afinidade. Nesse
plano, se algo é não-marcado seriam antes os termos de consanguinidade, como
acontece naquelas terminologias “pseudo-iroquesas” que mostram uma
neutralização (em favor dos termos de germanidade) do contraste
consanguíneos/afins em GØ. A situação mais comum, entretanto, é aquela onde
os termos afins e consanguíneos são igualmente primários e não-neutralizáveis:
uma situação equistatutária, se nos restringimos à estrutura lexical. Desse modo,
a paisagem terminológica amazônica não contradiz a (discutível) tese de
Greenberg que afirma o estatuto universalmente marcado dos termos para afins
e colaterais cruzados (Hage 1999). Mas, como disse, meu ponto não é lexical.
Ele se refere à pragmática dos usos de parentesco, ao escopo de aplicação dos
termos de afinidade e consanguinidade, e aos valores manifestados pelas duas
categorias. Sobretudo, ele implica que o estatuto marcado dos termos de
afinidade dentro do domínio do parentesco é uma evidência de que o parentesco
como tal é um modo marcado (particular) de socialidade, em contraste com o
valor não-marcado (genérico) da alteridade encarnada na afinidade potencial.
Havia, é verdade, um sabor especificamente dumontiano nesse meu emprego da
ideia de marca, visto que ele ressaltava a inversão de dominância lógica ocorrida
quando se “mudava de nível” na consideração de um sistema: assim, para o caso do
dravidianato amazônico, se nos situamos no plano inferior do grupo local cognático,
veremos o princípio inferior tornar-se dominante, com a consanguinidade
englobando a afinidade. O fato de que tal englobamento seja sempre parcial,
inacabado, e constantemente ameaçado pela irrupção, em seu seio, do princípio geral
superior – tudo isso seria apenas o signo do estatuto secundário do próprio contexto
criado por esse englobamento, a saber, o parentesco.
Mas foram tais palavras, “superior” e “inferior”, surgindo por assim dizer
naturalmente no esquema conceitual da hierarquia, que talvez tenham suscitado uma
certa reserva, por parte de alguns de meus colegas, quanto ao bem-fundado da
aplicação das teorias de Dumont no contexto amazônico. Nossa visão das sociedades
indígenas contemporâneas as representa como fundamentalmente igualitárias, tanto
em termos de sua organização política como de sua prática interpessoal. Há
certamente alguma controvérsia em torno das relações de gênero, ou da continuidade
histórica de tal igualitarismo, mas, em geral, a natureza nitidamente não-hierárquica
(no sentido corrente do termo) da socialidade amazônica tem sido destacada pelos
etnógrafos, o presente autor inclusive. Acrescente-se a isso, enfim, a aura negativa que
hoje envolve as ideias de Dumont, denunciadas que foram como uma espécie de
despotismo orientalista (um black holism), ou o corrente desfavor de que gozam
termos como “hierarquia” e “estrutura”, cujas ressonâncias supostamente
antiprocessivas e anticonstrutivas são tidas por antiquadas.
Não pretendo defender a palavra “hierarquia” aqui, e muito menos entrar nos
debates em torno de Dumont, a Índia, o poder, o colonialismo etc. {16} Advirto
apenas que meu uso do conceito não implicava as estruturas de poder das sociedades
amazônicas, não confirmando nem infirmando seu igualitarismo político (se esse é o
termo adequado) ou sua ênfase na autonomia pessoal (idem). Ou, por outra: a
dominância hierárquica da afinidade sobre a consanguinidade certamente cria
diferenciais de poder— entre afins de gerações adjacentes, por exemplo (Turner
1979b, 1984) —, mas ao mesmo tempo restringe drasticamente o potencial de
hierarquia político-segmentar presente nos regimes com dominância institucional da
consanguinidade (descendência). {17} Seja como for, a tradução desse conceito na
linguagem do dado e do construído vai aqui sugerida como uma opção menos
polêmica. {18}
Há, é claro, razões mais relevantes para o recurso a essa outra linguagem.
Considere-se por exemplo aquela ideia avançada por Overing, de uma ênfase
variável na afinidade e na consanguinidade, que propus retraduzir como
englobamento hierárquico. Se dermos o passo adicional de equacionar tal ênfase à
tese da distribuição diferencial do dado, estaremos imprimindo uma qualidade mais
dinâmica àquela tipologia. O princípio secundário em cada configuração deixa de ser
visto como meramente desenfatizado, passando a possuir sua própria esfera de
atividade. O que não pertence ao dado não é meramente “não-dado”, no sentido de
não-existente. Ele é algo que deve ser feito – feito com, e em larga medida contra, o
dado. É verdade que o conceito de englobamento do contrário já propiciava um certo
dinamismo, ao sublinhar a bidimensionalidade da hierarquia, isto é, as inversões de
valor que têm lugar quando os contextos subordinados passam ao primeiro plano
(Dumont 1980: 225). {19} Veremos, contudo, que o modelo dumontiano não é
suficiente como descrição do parentesco amazônico. Além disso, deve-se reconhecer
que a noção de englobamento não está inteiramente livre da implicação de que o
princípio englobado é secundário, não no sentido correto de “vindo depois”, mas no
muito incorreto de “menos estimado”. A hierarquia é facilmente interpretável como
uma gradação linear de valor, o que, entre outras coisas, faz o conceito de valor
como estrutura real degenerar em uma ideia de valor como sentimento moral. (Este
é um problema que, a meu ver, onera vários dos trabalhos da escola que batizei de
“economia moral da intimidade”: ver cap. 6 supra.)
Mas a verdadeira dificuldade que o presente texto quer obviar é de outra ordem.
Ela diz respeito ao enraizamento da abordagem dumontiana em uma problemática
da totalidade.
Minha aplicação do conceito de hierarquia aos materiais amazônicos teve de
distorcê-lo mais ou menos deliberadamente, uma vez que eu me encontrava diante de
um regime de “antitotalização” no qual o exterior englobava o interior sem estar com
isso criando simplesmente um interior mais amplo. O desafio aqui era evitar sair-se
com uma figura que contivesse o interior e o exterior como níveis diferentes de um
todo único – pois isso seria o mesmo que transformar o exterior em um meio de
interioridade.
O ponto é importante. Nas mãos de Dumont, o englobamento gera a
característica de uma Totalidade, dentro da qual as diferenças estão ordinalmente
aninhadas. Tal estrutura, com efeito, não tem exterior, pois o englobamento é uma
operação análoga à notória “sublação” dialética: movimento de síntese inclusiva, de
subsunção da diferença pela identidade. {20} A diferença é interior ao todo, mas
também lhe é inferior. A ênfase da etnologia amazônica no papel constitutivo da
alteridade, ao contrário, visa um regime no qual o englobamento não produz ou
manifesta uma unidade metafísica superior. Não existe identidade transcendente entre
diferença e identidade – apenas diferença, de cima a baixo. A subsunção do interior
pelo exterior própria do processo cosmológico amazônico especifica uma estrutura
em que o interior é um modo do exterior, e como tal só pode se constituir ao se pôr
fora dele. (Para fazer jus a sua condição englobada de interior do exterior, o interior
precisa se tornar o exterior do exterior, o que só pode fazer, contudo, a título precário.)
A síntese hierárquica amazônica é disjuntiva, não conjuntiva. Consequentemente,
dizer que o inimigo está “incluído na sociedade” (ver Viveiros de Castro 1992a: 282301) não é dizer que o Outro é, no final das contas, um tipo de Eu, mas sim que o Eu
é, antes de mais nada, uma figura do Outro.
Em meus passeios anteriores por searas dumontianas, incorri ocasionalmente
em uma aplicação simplória do modelo, falando no “todo da sociedade”. Isso foi
certamente um equívoco. Perdida em algum lugar entre a sociabilidade íntima e
a socialidade última, a “sociedade”, na Amazônia, não chega a ser um objeto de
contornos muito nítidos. Ali onde ela efetivamente parece se constituir em
reificação cardinal – entre os povos centro-brasileiros, por exemplo —, seria
mais bem vista como o resultado de um processo de pré-captação da
sociabilidade intradoméstica e da socialidade interespecífica. Essa sugestão
estende o conhecido argumento de Terence Turner sobre o nível comunal das
sociedades Jê como transformação das relações domésticas. Turner sobe do
doméstico ao comunal; estou sugerindo que devemos igualmente descer até ele,
pois a esfera pública nessas sociedades é feita com materiais extraídos do
doméstico e do cósmico. Mas como o doméstico, por sua vez, também é uma
transformação particularizante do cósmico, os dois movimentos devem passar
por esse último momento. A domesticidade não pertence ao dado.
Entendamo-nos sobre essa função inclusiva ou interna definida pela alteridade.
Internalidade em sentido ontológico (a alteridade como relação constitutiva) não é a
mesma coisa que internalidade em sentido mereológico (o outro como parte de um
todo social ou cosmológico). Sob certos aspectos, a primeira noção implica o oposto
da segunda. É justamente porque, na Amazônia, a alteridade é uma relação interna
que se pode afirmar, sem pretender ao paradoxo, que algumas sociedades da região
não têm interior. {21} Assim, dizer que o exterior engloba o interior não significa dizer
que o segundo está (tautologicamente) dentro do primeiro, como um peixe dentro do
oceano em que nada, mas sim que o exterior é imanente ao interior, como o oceano
que nada dentro do peixe, penetrando-o e constituindo-o como figura do (e não
apenas no) oceano. O corolário dessa imanência é que qualquer ponto
arbitrariamente escolhido do interior é um limite entre um interior e um exterior: não
existe meio absoluto de interioridade. Reciprocamente, qualquer lugar do exterior é
um foco de interioridade possível: em cada gota do oceano nada um peixe virtual.
{22}
A linguagem dumontiana de “todos” e “englobamentos” é portanto incômoda, por
facilitar uma confusão entre os dois sentidos de internalidade acima distinguidos, o
que é especialmente problemático ali onde os valores cosmológicos em jogo possuem
uma expressão topológica fundamental, como no caso do interior e exterior
amazônicos. Essa seria outra razão para utilizarmos o idioma teórico alternativo, o
do dado e do construído, que não tem conotações mereológicas.
Não estou, com isso, advogando que fujamos de toda noção de todo, como se
essa fosse uma categoria visceralmente antiamazônica, mas apenas que cuidemos
para não cair em uma falácia da totalidade mal-colocada. Qualquer cosmologia é,
por definição, total, no sentido de que não pode não pensar tudo o que há, e pensá-lo
– a esse tudo que não é um Todo, ou a esse todo que não é Uno – segundo um
número finito de pressupostos. Mas daí não se segue que toda cosmologia pense tudo
o que há sob a categoria da totalidade, isto é, que ponha um Todo como o correlato
objetivo de sua própria exaustividade virtual. Arrisco-me a sugerir que nas
cosmologias amazônicas o todo não é (o) dado, e tampouco a soma do dado e do
construído. O todo é, antes, a parte que cabe ao construído, àquilo que os humanos
devem lutar para trazer à luz mediante uma redução do dado: do dado como
antitodo, ou relação diferencial universal.
O que tenho em mente é algo como a seguinte estrutura. {23} Uma vez suposta
(dada “por construção”, como se diz em geometria), a afinidade põe imediatamente a
não-afinidade, pois a primeira, princípio da diferença, porta sua própria diferença
interna, em lugar de encarnar um todo unitário transcendente. A não-afinidade é um
valor puramente indeterminado, como atesta sua condição marcada; como se disse
acima, a consanguinidade é não-afinidade antes de ser qualquer outra coisa. Mas
para que esse valor não-afim se torne outra coisa – uma qualidade determinada —,
ele deve recíproca e ativamente proceder a uma extrusão da afinidade de dentro de si
mesmo, já que esta última é o único valor positivo disponível (dado). A nãoafinidade se diferencia então internamente em afinidade e não-afinidade. É sempre
possível, entretanto, extrair mais afinidade da não-afinidade, de modo a determinar
mais perfeitamente esta última como consanguinidade. Na verdade, é necessário
fazê-lo, visto que a diferenciação da não-afinidade reproduz a afinidade pelo próprio
movimento de extraí-la ou separá-la de si. O potencial de diferenciação é dado pela
afinidade: diferenciar-se dela é afirmá-la por contraefetuação. E assim, mediante a
exclusão reiterada da afinidade a cada nível de contraste, a consanguinidade aparece
como incluindo-a no nível seguinte: a afinidade se dissemina e infiltra até os menores
recessos da estrutura. Esse processo recursivo de “obviação” (Wagner 1978) da
afinidade, que também poderíamos chamar, para usarmos os clichês antropológicos
atuais, de “construção do parentesco”, deve permanecer inacabado; um estado de pura
consanguinidade não é atingível, pois ele significaria a morte do parentesco (é ele que
a morte significa, como veremos). Ele seria um estado estéril de não relacionalidade,
de indiferença, no qual a construção se autodesconstruiria. A afinidade é o princípio
de instabilidade responsável pela continuidade do processo vital do parentesco: “desse
desequilíbrio dinâmico depende o bom funcionamento do sistema que, sem isso,
estaria a todo instante ameaçado de cair em um estado de inércia”, como observou
Lévi-Strauss (1991: 90) em outro contexto – um contexto, como logo veremos,
muito próximo ao de que aqui se trata. Trocando em miúdos, a consanguinidade é a
continuação da afinidade por outros meios (fig. 8.1).
Figura 8.1. A construção amazônica do parentesco
O diagrama acima manifesta uma estrutura “estruturante” antes que “estruturada”,
pois indica as condições de constituição de um valor (o parentesco) mais que
representa uma forma organizacional constituída; descreve uma morfogênese, não
uma morfologia. Consequentemente, essa estrutura difere da hierarquia dumontiana,
que articula valores determinados desde o início, aproximando-se antes do que
Houseman (1984) chama de “hierarquia antiextensiva”.{24} Nesse tipo de
configuração, a “antiextensão” marcada (não-afinidade) do princípio dominante nãomarcado (afinidade) inclui em um nível inferior o princípio dominante como sua
própria – da antiextensão – versão marcada. Mas, como o princípio dominante é
inerentemente não-marcado, tal inclusão cria uma tensão interna insolúvel, que
simultaneamente compele o princípio subordinado a uma atualização cada vez mais
particularizada e gera um contrafluxo ascendente de generalização cada vez mais
abrangente, guiado por e para o princípio dominante: atualização e contraefetuação.
Note-se, no diagrama, que cada triângulo voltado para baixo (com origem na linha
diagonal da direita) separa dois modos do valor encarnado no vértice superior, ao
passo que o vértice inferior de cada triângulo voltado para cima (com origem na
diagonal esquerda) conecta os dois valores dispostos acima dele. Como as duas
diagonais são orientadas, tanto as separações particularizantes como as conexões
generalizantes são assimétricas ou hierárquicas, mas com distribuição de marcação
invertida. A linha que se sobe não é a mesma linha que se desce:
Desce-se dos virtuais aos estados de coisas atuais, sobe-se dos estados de coisas
aos virtuais, sem que se possam isolá-los uns dos outros. Mas não é a mesma
linha que se sobe ou se desce, assim: a atualização e a contraefetuação não são
dois segmentos da mesma linha, mas linhas diferentes (Deleuze & Guattari 1991:
151).
Em outras palavras, o dualismo amazônico da afinidade e da consanguinidade está
em desequilíbrio perpétuo.
O desequilíbrio
Essa expressão, desequilíbrio perpétuo, traz-nos de volta à terra firme do
americanismo. Em História de Lince, como todos se recordam, Lévi-Strauss
caracterizou o princípio de movimento do processo cosmológico indígena nestes
termos: um dualismo instável e dinâmico, em perpétuo desequilíbrio (1991: 90, 306316).
Costuma-se associar o nome desse antropólogo a uma certa fascinação malsã
por oposições binárias, estáticas e simétricas. Tal imagem, contudo, corresponde bem
melhor a certas versões britânicas do estruturalismo. Lévi-Strauss foi o primeiro, e
isso desde muito cedo, a apontar a natureza ilusória da simetria exibida pelas
dualidades sociocosmológicas. É quase desnecessário recordar os pontos
estabelecidos em seu artigo de 1956 sobre as organizações dualistas: a qualidade
estática do dualismo diametral como estrutura formal; os valores assimétricos
frequentemente atribuídos às partições diametrais enquanto estruturas vividas; a
combinação explícita ou implícita de dualismo diametral e concêntrico; a
derivabilidade do primeiro a partir do segundo; a origem triádica do dualismo
concêntrico, e, mais geralmente, o estatuto derivativo das oposições binárias em
relação a estruturas ternárias. O tema jamais esteve ausente da obra de LéviStrauss; mas ele ganha seu maior destaque em História de Lince, o último estudo
mitológico do autor, onde recebe também, vale notar, uma caução filosófica nativa:
“o pensamento ameríndio atribui […] à simetria um valor negativo, maléfico
mesmo” (1991: 305).
Um aspecto essencial do modelo lévi-straussiano do dualismo concêntrico é sua
abertura ao exterior. Enquanto os dualismos diametrais definem uma totalidade
circunscrita por um limite infranqueável, uma barreira dimensional heterogênea em
relação à linha meridiana interna – do ponto de vista do sistema, seu exterior não
existe{25} —, o exterior da figura concêntrica, ao contrário, é imanente a ela: “tratase de um sistema que não se basta a si mesmo, e que precisa sempre se referir ao
meio circundante” (id. 1956: 168). O exterior é aqui um traço interno, constitutivo da
estrutura como um todo – ou melhor, ele é o traço que impede ativamente a estrutura
de se constituir como um todo. {26} O exterior é relativo, e isso faz o interior
igualmente relativo. Essa forma de “dualismo” traz a indeterminação para o centro,
em lugar de expulsá-la para as trevas do não-ser; e recordemos que um centro não
passa do limite inferior da infinidade de círculos que se podem traçar à sua volta. {27}
A dependência do dualismo concêntrico em relação ao exterior evoca por
antecipação uma exteriorização mais tardia na obra de Lévi-Strauss: a “ouverture à
l’Autre” que esse autor vê como característica da ideologia bipartite ameríndia (1991:
16, 299 e ss). A noção de tal abertura ao Outro deriva diretamente do dualismo em
“perpétuo desequilíbrio” exibido pelo mito de referência da História de Lince, a célebre
cosmogonia tupinambá recolhida por Thevet por volta de 1554. Estou certo de que a
figura 8.1 acima não terá deixado de trazer à mente do leitor o esquema das
bipartições sucessivas que atravessam esse mito (fig. 8.2).
Figura 8.2. Bipartições do mito tupinambá (Lévi-Strauss 1991: 76)
Ora, parece-me claro que esse dualismo recursivo de 1991 é uma simples
transformação do dualismo concêntrico de 1956. Tal simples transformação não é,
porém, uma transformação banal; pois ela permite determinar uma propriedade
bem menos evidente no modelo mais antigo. As bifurcações do mito tupinambá
começam na zona mais abrangente do universo de discurso, procedendo por
oposições sucessivamente decrescentes, que se afunilam em direção a um atrator
representado pelo polo de enunciação do mito (a sociedade do narrador). Traduzido
no modelo concêntrico, este é um caminhar de fora para dentro. Os passos
descendentes na cascata de distinções cada vez menores do esquema dinâmico
aproximam-nos do centro do esquema concêntrico, ponto onde está o sujeito,
entidade de compreensão infinita e extensão nula – a perfeita autoidentidade. Mas é
claro que nunca se chega lá, pois a identidade pura do centro é puramente
imaginária. O centro é um limite de convergência, o mesmo limite indicado como
“consanguinidade” no diagrama da figura 8.1. {28}
Não creio que tenha sido uma coincidência o fato de que a expressão “dualismo
em perpétuo desequilíbrio” tenha surgido, no curso da História de Lince, dentro de
um argumento que dá grande atenção à dinâmica estrutural de um mito
tupinambá. Ao lê-la ali, fiquei com a impressão de que já a tinha visto alhures,
em um contexto parecido. Voltando a minha monografia araweté, constatei que
eu mesmo a havia empregado, ao comentar um parágrafo do estudo clássico de
Florestan Fernandes sobre a guerra tupinambá: “malgrado o que [Florestan]
quer demonstrar, o que aí fica claro é que o sistema tupinambá se caracterizava
por um desequilíbrio perpétuo, onde a “autonomia” de uns só podia ser obtida às
custas da “heteronomia” dos outros” (Viveiros de Castro 1992a: 283). Ao reler o
que escrevi, porém, tive a convicção quase imediata de que eu tomara a
expressão do próprio Lévi-Strauss, e que o fizera por ela remeter a um contexto,
mais uma vez, pertinente. E – com efeito! —, ela está n’As estruturas elementares,
onde qualifica o regime de casamento oblíquo ou avuncular: “a perspectiva
‘oblíqua’ acarreta um desequilíbrio perpétuo, pois cada geração deve especular
sobre a geração seguinte…” (Lévi-Strauss 1967a: 515-16). Essa forma
matrimonial, desnecessário lembrar, era característica dos Tupinambá. {29}
A ideia de que os dualismos ameríndios mostram um “desequilíbrio
dinâmico” (Lévi-Strauss 1991: 90), enfim, retoma o debate com Maybury-Lewis
(1960), autor que criticou o conceito de dualismo concêntrico e sugeriu (id. 1989)
que os dualismos centro-brasileiros exprimiriam um “equilíbrio dinâmico” (ver
Ewart 2000, para um balanço da polêmica). A conexão lógica e histórica entre o
concentrismo de 1956 e o dinamismo de 1991 parece-me, assim, patente,
embora Lévi-Strauss (1991: 311 e ss) ele mesmo não a explicite. {30}
Os dois diagramas das figuras acima não trazem apenas a mesma mensagem por
meio de códigos diferentes; elas manifestam a mesma estrutura. Isso talvez fique
mais claro se dermos uma interpretação etnográfica concreta a cada nível do
diagrama da afinidade /não-afinidade (fig. 8.1). A figura 8.3 corresponde a uma
atualização possível dessa estrutura conforme um repertório de valores de ampla
distribuição na Amazônia, em particular nas socialidades endogâmicas do tipo
originalmente descrito por Peter Rivière (1984).
Esse diagrama inscreve um processo que abarca, sem solução de continuidade, as
relações interpessoais e intrapessoais. A construção da pessoa é coextensiva à
construção da socialidade; ambas se baseiam no mesmo dualismo em desequilíbrio
perpétuo entre os polos da identidade consanguínea e da alteridade afim. As relações
intra- e interpessoais são, além disso, “co-intensivas”, visto que a pessoa não pode ser
tomada como parte de uma totalidade social, mas como versão singular de um
coletivo – o qual, por sua vez, é uma amplificação da pessoa. É neste sentido que a
estrutura acima é “fractal”: a distinção entre parte e todo não é pertinente. {31} Eis
então que a distância entre as sociedades individualistas (ou particularistas) da
Guiana e as sociedades coletivistas (ou totalistas) do Brasil Central pode ser bem
mais curta do que imaginávamos. {32}
Figura 8.3. Bipartições do parentesco amazônico
A região superior da figura 8.3 é relativamente óbvia, limitando-se a inscrever no
diagrama (mas dando-lhes uma interpretação muito diversa) aquelas zonas ou
círculos de sociabilidade sahlinianos tantas vezes mencionados na etnografia; sua
região inferior, porém, exige alguma elaboração. A divisão entre germano
júnior/sênior e ego se justifica com base na ideia de que a germanidade (de mesmo
sexo), na Amazônia, é quase sempre marcada por um princípio de idade relativa,
sugerindo uma noção de repetição diacrônica e diferencial mais que de identificação
sincrônica e total; ela tampouco está livre de uma potencialidade afim residual. {33}
Há mais aqui, contudo. Seria em princípio possível introduzir um degrau
intermediário no diagrama (ele é, de direito, indefinidamente “intensível”) e opor, ao
polo germano sênior/júnior, um polo intitulado gêmeo. Teríamos chegado então ao
limite da identidade interpessoal, com essa figura da alteridade apenas numérica
entre um par perfeitamente consanguíneo: ao zero absoluto de temperatura
relacional, por assim dizer. Sucede, porém, como Lévi-Strauss argumentou na
mesma História de Lince, que os gêmeos não são concebidos como idealmente
idênticos no pensamento indígena, mas, ao contrário, como devendo se diferenciar.
Na prática usual do parentesco, quando não são ambos mortos ao nascer (o que
zera a partida), ou se mata um, o que cria uma diferença absoluta entre eles, ou se
poupam a ambos mas se os distinguem pela ordem de nascimento, o que os
retransforma em um par sênior/júnior. Na mitologia, que abunda em figuras
gemelares, a estratégia é outra: ou se atribuem genitores diferentes aos gêmeos (o que
os “desgemelariza”), ou se insiste na progressiva diferenciação de caráter e
comportamento entre eles, divergência que é o tema mesmo da narrativa. Mesmo se
indiscerníveis ao nascer, os gêmeos míticos sempre derivam em direção à diferença.
A gemelaridade reproduz a polarização eu/outro, que se vê posta como inapagável
mesmo nesse caso-limite de identidade consanguínea total. Ela define o mínimo
múltiplo do pensamento ameríndio. {34}
Os gêmeos e sua imparidade essencial permitem-nos passar ao nível da “pessoa”.
Descendo um degrau em nosso diagrama, observo que a placenta é frequentemente
concebida como um duplo do recém-nascido, uma espécie de gêmeo natimorto, ou
Outro não-humano da criança (Gow 1997: 48; Karadimas 1997: 81 ). {35} Em
algumas tradições míticas, como a dos Ye’kuana, ela dá origem a um verdadeiro
gêmeo antagonista (Guss 1989: 54). Quanto à distinção entre o polo placenta e o par
corpo/cadáver (recordemos o par grego soma/sema) observo que a placenta e o corpo
são também frequentemente opostos em termos de seus movimentos no espaço e no
tempo, com a primeira devendo ser enterrada e apodrecer de modo a que o segundo
possa crescer e se desenvolver; a placenta parece ser concebida como uma espécie de
anti- e antecadáver (C. Hugh-Jones 1979: 128-29), ou como um corpo pelo avesso
(i. e., como as entranhas exteriorizadas da criança: Gow 1997).
A divisão entre corpo e alma manifesta a mesma polaridade. Como a placenta, a
alma é um aspecto separável da pessoa, um duplo seu. A minha “alma gêmea”, no
caso amazônico, é na verdade meu gêmeo-alma: é a minha própria alma, jamais
própria, pois ela é meu “outro lado”, que é o lado do Outro. Placenta e alma, aliás,
respondem-se temporalmente: a separação da primeira marca a possibilidade e o
início da vida; a da segunda prefigura ou manifesta a morte. A alma, como a
placenta e como a gemelaridade minimamente múltipla, está inequivocamente
inscrita no polo outro-afim do diagrama amazônico. Atingimos aqui o núcleo
relacional – a relação nuclear – da pessoa. A construção do parentesco amazônico
diz essencialmente respeito à fabricação (e destruição) de corpos, ao passo que as
almas não são feitas, mas dadas: ora absolutamente durante a concepção, ora
transmitidas junto com os nomes e outros princípios pré-constituídos, ora capturadas
“prontas para usar” do exterior. A alma é a dimensão eminentemente alienável,
porque eminentemente alheia, da pessoa amazônica. Dada, pode ser tomada. {36}
O mundo das almas e outras atualizações invisíveis da transparência originária
(ver supra) é frequentemente designado, nas cosmologias indígenas, por
expressões que significam “o outro lado”. Tal designação, à primeira vista
análoga ao nosso “o além”, traz em si uma sorrateira simetria: o outro lado do
outro lado é este lado, o que pode significar que o invisível do invisível é o visível,
o não-humano do não-humano é o humano, e assim por diante. A leitura
tradicionalmente platonizante feita do dualismo indígena do corpo e da alma,
que o toma como opondo aparência a essência, deve assim dar lugar a uma
interpretação dessas duas dimensões como constituindo o fundo e a forma uma
para outra: o fundo do corpo é o espírito, o fundo do espírito é o corpo. As
relações disso com o tema da dêixis perspectivista são claras.
Vimos que sequer os gêmeos são perfeitos consanguíneos entre si. Isso significa que
uma pessoa individual o seria, reflexivamente (uma vez, isto é, separada de seu
Outro placentário original)? Penso que não. Uma pessoa viva não é um indivíduo,
mas uma singularidade dividual de corpo e alma, um “divíduo” internamente
constituído pela polaridade eu/outro, consanguíneo/afim (Kelly 2001; Taylor 2000).
{37} Essa singularidade compósita do vivente é decomposta pela morte, que separa
um princípio de alteridade afim, a alma, de um princípio de identidade
consanguínea, o corpo. Isso equivale a dizer que a consanguinidade pura só pode ser
alcançada na morte: ela é a consequência última do processo vital do parentesco,
exatamente como a afinidade pura é a condição cosmológica desse processo. A morte
divide a pessoa, ou revela sua essência dividida: como almas desencorporadas, os
mortos são arquetipicamente afins (na demonstração clássica de Carneiro da Cunha
1978); como corpos desespiritualizados, porém, eles são supremamente
consanguíneos. A morte, assim, desfaz a tensão (a diferença de potencial) entre
afinidade e consanguinidade que move o processo do parentesco, completando o
percurso de consanguinização, isto é, de desafinização, visado por esse processo.
A estrutura inscrita na figura 8.3 é orientada mas cíclica, ilustrando o movimento
cosmológico de transformação da afinidade/alteridade em
consanguinidade/identidade e vice-versa. A linha que desce, contudo, não é a mesma
linha que sobe. O processo do parentesco requer a progressiva particularização da
diferença geral mediante a constituição de corpos de parentes – o corpo singular
construído pelo coletivo de parentesco e o coletivo construído como corpo de
parentesco —, que formam as concreções de identidade consanguínea dentro do
campo universal de afinidade potencial.
A crítica trivial ao organicismo sociológico e à naturalização do social não
permite ver uma dimensão básica da socialidade amazônica. Nos mundos
relacionais indígenas, o coletivo é efetivamente algo orgânico, ou melhor,
corporal. Não é um organismo no sentido de uma totalidade funcionalmente
diferenciada (o que seria uma definição circular: como Gabriel Tarde já advertia,
não é a sociedade que é um organismo, é o organismo que é uma sociedade),
mas um ente orgânico ou vivo, um corpo formado de corpos, não de mentes ou
consciências: corpos extraídos de outros corpos, corpos absorvidos de outros
corpos, corpos transformados em outros corpos. A ênfase no processo do
parentesco como “construção” da socialidade exprime essa imaginação corporal
do coletivo, seu fundamento nas trocas corporais entre as pessoas, e uma
concepção da pessoa fundada em um idioma corporal. A “sociedade indígena”
não é uma consciência coletiva unificada, mas tampouco é um fluxo processivo
de (in)consciências individuais: ela é um corpo distributivamente coletivo. Ver:
Seeger, DaMatta & Viveiros de Castro 1979; Viveiros de Castro 1979, 1996c;
Gow 1991a; e Vilaça 2000a, que está levando essas ideias à frente.
Mas o processo vital do parentesco termina cada ciclo com a produção de uma
entidade que é absolutamente autoidêntica, e portanto absolutamente ímpar: o corpo
morto do parente, a pura singularidade substantiva do cadáver. Pois a parte outra,
relacional antes que substancial, da pessoa vai-se com a alma, que, como ensina a
etnografia, recebe várias determinações póstumas (alternativas ou sequenciais) de
tipo afim: ela se transforma em inimigo para os parentes vivos do morto, ou toma
um corpo não-humano como sua morada, ou se transmite a parentes nãosubstanciais, ou volta a uma condição de princípio subjetivo indeterminado, uma
espécie de equivalente ontológico geral, medida de toda diferença significante no
universo. Assim, o corpo conecta os parentes, a alma os separa – porque a alma
conecta os não-parentes (os humanos aos não-humanos), enquanto o corpo os
separa. {38} O corpo e a alma desempenham funções inversas conforme desçamos
ou subamos no diagrama. O processo do parentesco continua a diferenciação ou
especiação dos corpos desencadeada ao fim do período pré-cosmológico. Mas a
alma, essa “radiação de fundo” deixada pelo big bang mítico, testemunha da
transparência primeva entre os seres, impede, por sua alteridade residual mas
irredutível, uma diferenciação completa das exterioridades corporais. A alma
assegura a conexão com a diferença infinita e interna do pré-cosmos virtual. Ou,
para dizê-lo como Nelson Rodrigues, sem alma não se chupa nem um chica-bom.
Há, por certo, um outro produto do processo do parentesco ao cabo do ciclo vital:
a criança procriada, que completa o movimento de consanguinização iniciado com o
casamento de onde ela provém. Esse novo divíduo jamais é a réplica consanguínea
de seus pais, pois seu corpo mistura os corpos destes (e portanto de dois cunhados –
ver Taylor 2000), e sua alma deve vir de um não-genitor: minimamente, de um
antigenitor, isto é, um genitor de genitor (avós) ou um germano de sexo oposto ao do
genitor (tio materno, tia paterna). {39} Mais importante de tudo, essa criança
dividual precisa ser feita parente de seus parentes, visto que, nos mundos indígenas,
as identificações substanciais são consequência de relações sociais e não o contrário:
as relações de parentesco não exprimem “culturalmente” uma conexão corporal
“naturalmente” dada; os corpos são criados pelas relações, não as relações pelos
corpos, ou antes, os corpos são a marca deixada no mundo quando as relações se
consomem, ao se atualizarem. {40} Isso significa que a criança precisa ser
desafinizada: ela é um estranho, um hóspede a ser transformado em um
consubstancial (Gow 1997; Rival 1998b). A construção do parentesco é a
desconstrução da afinidade potencial; mas a reconstrução do parentesco ao fim de
cada ciclo deve apelar para esse fundo de alteridade dada que envolve a socialidade
humana.
Algumas manifestações do diagrama
Todo o raciocínio que precede exigiria uma certa sintonia fina para funcionar
realmente a contento. Mas não é difícil divisar, desde já, várias expressões
etnográficas dessa estrutura amazônica – expressões que não estão necessariamente
codificadas em categorias de parentesco. Os seguintes exemplos me ocorrem neste
momento:
1. O modelo da terminologia kalapalo de relacionamento proposto por Ellen
Basso (ver a figura em Basso 1973: 79), que poderia receber uma interpretação
dumontiano-hierárquica ao invés daquela etnocientífico-taxonômica oferecida pela
autora, especialmente se atentarmos para o recuo da relação da germanidade como
idioma de base em favor da relação de primos cruzados, quando se passa do
contexto intralocal ao contexto interlocal, e em particular aos grandes rituais
interaldeães. Note-se que esses rituais constroem a “sociedade xinguana” como
unidade maximamente inclusiva. No capítulo i do presente livro, vimos um outro
exemplo de aplicação do diagrama no contexto alto-xinguano (fig. 1.3, p. 41), o que
sugere que ele descreve uma dinâmica não apenas sociológica, como na análise de
Basso, mas também ontológica.
2. As associações sistemáticas de gênero veiculadas pelas diagonais direitadescendente e esquerda-ascendente do diagrama da figura 8.1, quando se o aplica ao
regime social achuar. A consanguinidade pura parece só ser atingível por e entre
mulheres, assim como a afinidade pura é uma condição masculina. Esses impulsos
divergentes geram, na interface do sistema de atitudes com o sistema terminológico,
uma dinâmica de parentesco complexa, magistralmente analisada por Taylor (1983,
2000).
3. A circulação entre os Maï e os humanos na cosmologia araweté. A figura 8.4
combina duas figuras apresentadas anteriormente (Viveiros de Castro 1992a: 251,
253), as quais são os ancestrais diretos da estrutura proposta no presente ensaio: {41}
Figura 8.4. Bipartições cosmológicas araweté
4. As “descrições alternativas” da socialidade tukano propostas por S. Hugh-Jones
(1993). A prática cotidiana – e o ritual Food-giving House que seria como sua
hipérbole —, dominada por um ethos de cognação generalizada, de igualitarismo, de
simetria dos gêneros e de inclusividade grupal, corresponde à linha descendente do
diagrama. {42} Os grandes rituais He, por seu turno, que validam e reproduzem a
ideologia (por oposição à prática cotidiana) hierárquica e androcêntrica dos povos
Tukano, corresponderiam à linha ascendente de contraefetuação, momento em que as
diferenças cosmológicas são repostas – o que exige, aliás, uma passagem pelo
mundo da metamorfose infinita do período pré-cosmológico. Hugh-Jones associa os
ritos da Food-giving House à “consanguinidade”, e o He à “descendência”.{43} Quanto
à afinidade, diz o autor, esta “contém um potencial de ambiguidade inerente, que
depende de um ponto de vista relativo” (id. ibid.: 112). Em outras palavras, ela não
estaria claramente localizada, nem do lado da consanguinidade cotidiana, nem da
descendência ritual. Sugiro, ao contrário, que ela está localizada de ambos os lados
(como a consanguinidade o está para Hugh-Jones, visto que sua “descendência” é
uma consanguinidade pura), mas sujeita a dinâmicas complementares. Na linha
ascendente percorrida pelo He, a afinidade aparece essencialmente sob o modo da
potencialidade: é a afinidade implicada na definição do grupo como entidade
monolítica, separada de entidades análogas por descendência diferencial, mas
implicitamente ligada a estas por aliança matrimonial – a “afinidade sem os afins”.
Na linha que desce do Food-giving House, a afinidade aparece como finalizada, isto é,
efetiva, e portanto dissolvida na cognação – os “afins sem a afinidade”. Assim, seria
menos a afinidade que é ambígua que a vida cotidiana ela própria, polarizada como
se mostra entre os modelos do He e do Food-giving House.{44}
5. A passagem ao primeiro plano da divisão consanguíneos/afins, submersa
durante o processo vital do parentesco, que ocorre no sistema de endocanibalismo
funerário dos Wari’ (Vilaça 1992). É tentador especular que os afins do morto são os
que devem comer seu corpo precisamente porque esse objeto encarna a pessoa em
sua fase ou estado puramente consanguíneo; a alma do morto, em troca, embarca
em uma jornada ao Além toda ela marcada pela afinidade, transformando-se por
fim em um porco selvagem que pode ser abatido e comido pelos consanguíneos do
morto. Esse corpo/porco é, a meu ver, um anticadáver humano; ele é o corpo da
alma, e nessa medida perfeitamente “outro” em relação a seus consanguíneos (para
uma situação muito semelhante na escatologia dos Ese Eja, ver Alexiades 1999:
135).
6. A construção da socialidade piro como uma “mistura de sangues” (Gow
1991a). A partir de um estado primevo de pura afinidade potencial entre diferentes
“povos”, a história humana se desenrola como processo de parentesco (“história é
parentesco”, diz Gow dos Piro). Assim, poderíamos ler nosso diagrama como
descrevendo o movimento do mito (da afinidade miticamente dada) à história (à
consanguinidade historicamente construída) e vice-versa. Esse macroprocesso ecoa
recursivamente nas microoscilações entre alteridade e identidade que balizam as
diversas etapas do ciclo de vida.
7. Os rituais guerreiros dos Tupinambá e dos Jívaro, que envolvem múltiplas
divisões da pessoa (do matador e da vítima) em metades ego-consanguíneas e
outro-afins (Viveiros de Castro 1992a: 287-92; Taylor 1994). Mais geralmente, os
processos amazônicos de incorporação do Outro pelo Eu – que pressupõem ou
implicam crucialmente processos de determinação do Eu pelo Outro – analisados
por autores como Taylor (1985, 1994), Vilaça (1992, 2000b), Fausto (2001) ou
Kelly (2001), são casos particulares de nossa estrutura. O metadiagrama da figura
8.1 pode ser usado para representar a dinâmica da predação tanto quanto a da
afinidade potencial – pois se trata da mesma dinâmica. A figura 8.5 sugere as linhas
gerais dessa tradução:
Figura 8.5. A assimilação do Outro (e a dissimilação de si)
8. Os “terceiros incluídos” (ver cap. 2, supra), aquelas figuras antiafins que
escapariam à oposição afinidade/consanguinidade, também podem ser localizados
no diagrama. O leitor se recordará que esses terceiros incluídos foram definidos
como afins potenciais; em seguida, que eles foram definidos não apenas como
exteriores ao parentesco, mas como representando o exterior do parentesco (para
adotarmos a distinção da nota 26). Nos termos do presente diagrama, proponho que
eles estariam situados nas posições de afinidade da linha da esquerda, mas quando se
a toma como linha dominante (quando, digamos, ela passa de linha pontilhada a
cheia). Os terceiros incluídos representam a afinidade quando esta se torna o foco do
investimento social: a linha que sobe é a linha da contraefetuação ritual do socius, a
linha que desce, a de sua atualização cotidiana. Se, no cotidiano, um afim (efetivo) é
um tipo inferior de consanguíneo, no ambiente ritual um consanguíneo torna-se um
tipo provisório de afim (potencial); e se, no cotidiano, a afinidade é o que deve ser
extraído e excluído de modo a gerar uma interioridade consanguínea por um
processo de disjunção limitativa, no ritual a consanguinidade deve ser absorvida de
modo a remetê-la a suas condições exteriores de possibilidade, em um processo de
síntese inclusiva. Mais geralmente, a linha que sobe é, como dissemos, a linha do
ritual: o ritual é o contexto por excelência de invenção deliberada do dado, ou o
momento de “coletivização do inato” (Wagner 1981: 118), e portanto de invenção da
natureza; quando a linha pontilhada se torna cheia, passamos da “contraefetuação”
(Deleuze) ou “contrainvenção” (Wagner) à inversão da invenção. Lembro, por fim, que
essa linha ascendente está constantemente ameaçando se contraefetuar fora do
contexto controlado do ritual: há como que um empuxo para cima a cada
movimento para baixo da linha correlativa, uma pressão constante de retorno ao
virtual a cada movimento de atualização. Donde o perigo da metamorfose, e o tema
do caráter enganoso das aparências (ver capítulo anterior).
9. Voltando aos exemplos etnográficos, e para concluir, sugiro que uma das
aplicações mais instrutivas do diagrama é a redescrição do modelo (ou modelos) da
estrutura social kayapó elaborado por Turner (1979a, b, 1984, 1992). A figura 8.6 é
uma esquematização parcial das dimensões isoladas por esse autor. {45}
Notem-se, sobre essa figura, apenas dois pontos. Em primeiro lugar, que a
natureza engloba (no sentido imanente que elucidamos acima) a sociedade, na
cosmologia jê. Com efeito, como Turner parece estar sugerindo em seus trabalhos
mais recentes, a construção ritual da sociedade – sua determinação “contra” sua
própria condição inicialmente derivativa, marcada, de não-natureza – passa pelo
reconhecimento e controle (pela internalização) do potencial relacional infinito detido
pela exterioridade “natural”. Mas então a estrutura social jê não é, no fim das contas,
um sistema fechado, como nos fizeram pensar por tanto tempo; é muito mais
parecida com a paisagem sociocosmológica geral da Amazônia do que se
imaginava – ou, pelo menos, do que eu imaginei. {46}
Figura 8.6. A estrutura social kayapó (via Turner)
O segundo ponto é que se pode argumentar que, na cosmologia jê, as mulheres
não representam o polo da natureza em nenhum sentido relevante. Ao contrário, o
diagrama sugere que um estado socialmente puro só poderia ser atingido em um
mundo constituído e reproduzido exclusivamente pelas mulheres. Tal é precisamente
o sentido da uxorilocalidade jê, penso eu.
Nota final
Enquanto algumas sociedades amazônicas (e/ou seus etnógrafos) parecem dar
grande ênfase à diagonal descendente de meu metadiagrama, isto é, ao vetor de
consanguinização que guia o processo do parentesco, outras mantêm seus olhos
firmemente voltados, por assim dizer, para a fonte e condição geral desse processo: a
afinidade potencial. Tal diferença de orientação dentro de um mesmo quadro
cosmológico explica, a meu ver, os contrastes e confrontos que estão constantemente
vindo à tona na etnografia da região: pacifismo ou belicosidade, mutualidade íntima
ou reciprocidade predatória, xenofobia ou abertura ao outro, visada filosófica
intramundana ou extramundana, e assim por diante. Esses contrastes só podem
mesmo vir à tona: eles são, justamente, superficiais. Em que pese a toda sua saliência
intuitiva, não passam de visões parciais de uma única estrutura geral que se move
necessariamente nos dois sentidos.
Mas a linha que se sobe continua não sendo a linha que se desce.
1. As teses principais deste capítulo foram originalmente apresentadas no encontro de
americanistas em homenagem a Peter Rivière, ocorrido em Linacre College, Oxford,
em dezembro de 1998. Várias das comunicações ao encontro (inclusive uma versão
inglesa modificada do presente texto) estão reunidas em um Festschrift recentemente
dado à luz (Rival & Whitehead [orgs.] 2001). Advirto que muitos argumentos
formulados no cap. 2 supra aparecem, aqui, repetidos; inexistindo uma versão em
inglês daquele texto, foi-me necessário retomar seu conteúdo no encontro de Oxford e
na publicação do Festschrift. Agradeço a Peter Gow, Aparecida Vilaça, Claude LéviStrauss, Marcela Coelho de Souza, Michael Houseman, Bruce Albert, Cristiane
Lasmar e Anne-Christine Taylor pelos comentários e as críticas.
2. Cf. Hacking 1999 para um exame equilibrado (ou talvez equilibrista) do tema da
“construção social”; sua discussão se concentra no sentido discursivo-conceitual da
expressão, estreitamente relacionado ao sentido prático-processivo mas com
conotações distintas.
3. Cf. Viveiros de Castro 1993a (ver cap. 2 supra), 1998; Viveiros de Castro &
Fausto 1993.
4. Em minha tese de 1984 sobre os Araweté, a noção de afinidade potencial, no
sentido que vim a lhe dar mais tarde (ver adiante), encontrava-se razoavelmente
desenvolvida; mas foi sem dúvida a tese de Albert sobre os Yanomami que soube
mostrar todo o seu alcance sociológico e a sua importância comparativa (citando,
inclusive, os materiais araweté). Cf. Albert op. cit.: 542-44.
5. As noções de “método de classes” e “método de relações” são usadas em LéviStrauss 1967a.
6. Para a diferença entre “socialidade” e “sociabilidade”, noções usualmente
amalgamadas na etnologia amazônica, cf. Strathern 1999: 18-19, ou Edwards &
Strathern 2000: 152-53.
7. O fato de que, no pensamento indígena, outros humanos possam ser
“etnocentricamente” definidos como não-humanos está ligado por implicação mútua
ao fato de que muitos não-humanos são “animisticamente” conceitualizados como
humanos (cf. cap. 7 supra). Além disso, é comum nas ideologias amazônicas a
simultânea negação da humanidade de povos estrangeiros e a afirmação de que eles
possuem conhecimentos culturais muito superiores aos do grupo de referência. O
mínimo que se pode dizer é que a xenofobia indígena é uma atitude imensamente
ambivalente.
8. Para o conceito de uma political economy of people, cf. Wagner 1981: 24-26;
Meillassoux 1975; Turner 1979b; Gregory 1982; Rivière 1984: 87-100. Esses autores
dão diferentes nomes ao conceito, e têm interpretações algo diversas das noções de
“economia política” e “pessoa”. Sua ênfase comum, entretanto, é na produção e
circulação de agentes ou sujeitos na sociedade, não de organismos na natureza.
Assim, não haveria nenhuma razão imperativa para se restringir a extensão de
“pessoa” ou “gente” à nossa própria espécie. Tal restrição, pressuposta nos usos do
conceito, pode ser derivada de uma dependência implícita face à noção de reprodução
biológica, a qual se vê, então, reproduzida em um plano metabiológico (senão
metafísico) como a assim chamada “produção social de pessoas”.
9. Como exemplo de inversão, ver o caso dos amigos cerimoniais araweté, os
apihipihã, que são “antiafins” sem por isso serem concebidos como consanguíneos
(Viveiros de Castro 1992a: 167-78), cf. cap. 4 supra.
10. Não se deve confundir o geograficamente local com o estruturalmente local. Uma
única comunidade local pode perfeitamente ser “global” no sentido de conter –
representar dentro de si mesma – o cosmos inteiro. Essa é a imagem que se extrai, p.
ex., da etnografia clássica sobre as sociedades centro-brasileiras (imagem que está
começando a mudar; cf. Ewart 2000, e infra). Inversamente, um conjunto de
comunidades ligadas em rede é “local” se exclui especificamente relações com outras
comunidades e, mais geralmente, se institui um “fora” cosmológico como imanente à
sua própria constituição.
11. “Sem dúvida, nos tempos míticos, os humanos não se distinguiam dos animais;
mas, entre esses seres indiferenciados que iriam dar origem aos primeiros e aos
segundos, certas relações qualitativas preexistiam às especificidades ainda deixadas
em estado virtual” (Lévi-Strauss 1971: 526).
12. Pense-se na Ética a Nicômaco e sua célebre definição da philia: o Amigo é “um
outro Eu”. Como observa Francis Wolff, a teoria aristotélica implica que “toda relação
com outrem, e por conseguinte toda forma de amizade, encontra seu fundamento na
relação do homem consigo mesmo” (2000: 169). O vínculo social pressupõe a
autorrelação como origem e modelo.
13. Prosseguindo na analogia térmica, diria que a afinidade e a consanguinidade tal
como expressas nas terminologias de parentesco são medidas convencionais da
temperatura relacional, mas que o que está sendo medido é o calor relacional contido
na afinidade. Existe uma temperatura negativa de afinidade, a saber, a
consanguinidade terminológica, mas não existe energia de afinidade negativa.
14. Cf. Dumont 1978b e Needham (org.) 1973. O interesse de Needham nas
classificações simbólicas dualistas derivava diretamente de seus estudos sobre as
terminologias de duas seções e suas supostas “implicações estruturais totais”.
15. Sobre o grande rendimento extralinguístico da noção de marca, que devemos à
escola estruturalista de Praga, cf. Jakobson & Pomorska 1985. Não se deve esquecer
que, na oposição marcado/não-marcado, “marcado” é, desafortunadamente, o termo
lexicalmente não-marcado, e “não-marcado” o marcado.
16. Cf. Parry 1998 para uma avaliação sóbria, e que termina, em larga medida, por
“descolonializar” Dumont.
17. Estou sugerindo, assim, uma congruência específica entre as brideservice societies
de Collier & Rosaldo (1981) e essa cosmologia amazônica da afinidade potencial.
18. Seria igualmente factível traduzir o idioma dumontiano do “englobamento”
naquele stratherniano do “eclipsamento” (Strathern 1988; cf. Gell 1999: 41-42 para a
conexão implícita), que teria a mesma vantagem do modelo de Wagner, a de não
implicar um horizonte de totalização (ver adiante).
19. Esse aspecto importante da teoria passou inteiramente despercebido de certos
críticos do conceito de afinidade potencial, que parecem ter tomado uma estrutura
hierárquica sensu Dumont como se ela consistisse em uma taxonomia classificatória.
20. Estou ciente de que Dumont discordaria disso. Ele contrastou várias vezes o
englobamento hierárquico com a totalização dialética. Mas não acho a distinção fácil
de manter – como o mostra sua confusão proposital por Turner (1984), p. ex. —, e,
de qualquer forma, ambos os modos de construir teoricamente o Todo não dão conta
das operações cosmológicas amazônicas.
21.Cf. Viveiros de Castro 1992a: 4, 1999: 119-22.
22.O que é uma maneira de resumir o perspectivismo indígena. Cf. cap. 7 supra.
23. Se porventura ao leitor não agrada a palavra “estrutura”, sinta-se à vontade para
substituí-la por alguma outra – que tal, p. ex., “processo”? No presente caso, dá
exatamente na mesma, visto que o que essa estrutura estrutura é um processo, o que
esse processo processa é uma estrutura.
24. Na hierarquia clássica ou “extensiva” (Houseman ibid.), o valor dominante inclui
seu contrário em sua própria extensão: “Homem” inclui “homem” e “mulher” etc.
Como o modelo-padrão dumontiano opera sobre valores determinados, ele não é
dinâmico o bastante para dar conta dos processos cosmológicos amazônicos. A
bidimensionalidade da hierarquia não basta aqui, pois é de um operador de
indeterminação e de recursividade que se carece. Houseman (1988) é o responsável
por uma formulação decisiva desse argumento, em um contexto etnográfico
diferente.
25. A moldura que separa a totalidade diametral de seu exterior pertence ao universo
do observador mais que ao do observado.
26. O exterior da figura diametral é exterior a ela; o da figura concêntrica é o exterior
dela. Para a distinção entre “exterior a” e “exterior de”, cf. Deleuze & Guattari 1980: 65.
27. Um centro é indubitavelmente necessário para se traçar um círculo; mas sem um
círculo não há nenhum centro, apenas um ponto qualquer. Se o ponto central
“fabrica” o círculo, é o círculo que “institui” o ponto como central.
28. Uma outra construção diagramática possível da figura 8.2 acima permitiria ver
bem sua diferença para com um dualismo diametral que, à primeira vista, ela
evocaria, devido a seu binarismo tão patente (“nós” e os “outros” etc.). Imagine-se um
quadrado dividido por uma linha mediana. A reiteração diametral dessa estrutura
consistiria em traçar uma mediana perpendicular à primeira, e assim
sucessivamente, transformando o quadrado em um tabuleiro de xadrez de
quadrados cada vez menores, mas sempre iguais. Imagine-se, ao contrário, que a
reiteração da divisão inicial consista em dividir ao meio apenas um dos retângulos
criados pela partição inicial, e em seguida um dos retângulos destes dois retângulos
menores, ad infinitum. A figura tomaria o aspecto de um espectro de bandas cada vez
mais finas em uma direção, tendendo assintoticamente a um dos lados do quadrado
inicial, o qual serve assim de atrator intensivo – de centro, ou, mais precisamente, de
pólo – das divisões internas, em lugar de mero limite inerte a circunscrevê-las, como
no caso da reiteração diametral. Observe-se, por fim, que as bipartições decrescentes
do dualismo de 1991, e portanto o esquema concêntrico de 1956, não mostram
nenhuma semelhança significativa com a “oposição segmentar” de Evans-Pritchard.
A oposição segmentar junta-opõe entidades de mesma natureza; ela se organiza em
torno de um único princípio que percorre toda a estrutura (o conflito); e ela não
decorre de uma assimetria inicial. O dualismo em desequilíbrio perpétuo tampouco é
dialético: a composição-decomposição da estrutura é infinita ou fractal, jamais se
estabilizando em torno de um par final de contrários reconciliados e unificados.
29. A mesma passagem d’As estruturas elementares está citada e comentada em
Viveiros de Castro 1990: 67.
30. Uma expressão similar, “dualismo dinâmico”, foi empregada por Peter Roe em
The cosmic zygote (1982: 15-17, cf. também id. 1990), onde visa uma configuração
muito próxima aos dualismos instáveis e perpetuamente desequilibrados de História
de Lince. O contexto, mais uma vez, é lévi-straussiano (e mitológico, mas não
tupinambá).
31. A imagem da fractalidade vem de R. Wagner (1991) e de M. Strathern (1988,
1992b); ela é aplicada de maneira muito sugestiva a alguns materiais sulamericanos em um artigo recente de J. A. Kelly (2001), que foi, aliás, uma das
inspirações imediatas do presente ensaio.
32. Estou me referindo aqui ao contraste feito por Peter Rivière (1984: 98) entre as
sociedades dotadas de instituições comunais, como as do rio Negro e do Brasil
Central, e os povos da Guiana, onde o socius não seria mais que “o produto
agregado de relações individualmente negociadas”, e onde “relações societais e
relações individuais permanecem da mesma ordem de complexidade”. Essa mesma
ordem de complexidade, no argumento de Rivière, é, de fato, uma mesma ordem de
simplicidade. Mas se, ao contrário, tomarmos a estrutura como fractal, tudo muda
de figura, e a ideia de uma “mesma ordem” passa a significar que relações societais e
individuais são as mesmas relações. Não há diferença de ordem, porque a diferença
não passa entre “indivíduo” e “sociedade”, mas os perpassa igualmente. O singular e o
coletivo (Strathern 1988), não o indivíduo e a sociedade, são os verdadeiros modos
ou momentos dessa diferença complexa.
33. Especialmente no caso dos germanos masculinos, eu diria. Considere-se o uso
araweté de irmãos adultos chamarem-se de he rayin-hi pihã, o que pode ser
traduzido tanto como “meu companheiro-de-mãe-de-criança” como “companheiro
de minha mãe-de-criança”. Em ambos os casos, mas especialmente se a segunda
tradução é a mais correta, a expressão significa “marido de minha esposa (possível)”.
Assim, dois irmãos se veem como ligados não por meio de sua cofiliação atual, mas
de sua coafinidade potencial, i. e., via um relator de sexo oposto, como o fazem, mas
ao contrário, dois cunhados (Viveiros de Castro 1992a).
34. Lévi-Strauss vê no clinamen da gemelaridade imperfeita o esquematismo-chave
do dualismo assimétrico ameríndio. O contraste que esse autor faz entre a
gemelaridade nas mitologias europeia (ênfase na semelhança) e ameríndia (ênfase
na diferença) é isomorfo ao que ele havia feito n’As estruturas elementares (1967a:
554-55) entre a relação de irmãos e a relação de cunhados. Isso indica a
continuidade intrínseca entre a mitologia gemelar analisada em História de Lince e a
mitologia da afinidade explorada nas Mitológicas.
35. Cf., para exemplos norte-americanos, Lévi-Strauss 1978 e Désveaux 1998. O
tema é também comum na área malaio-polinésia, e possivelmente alhures.
36. Simplifico aqui, pois a etnografia amazônica conhece numerosos tipos de alma (e
almas múltiplas). Mas me parece que a distinção básica a fazer é entre um conceito
de alma como representação do corpo e um outro conceito de alma que não designa
uma mera imagem do corpo, mas o outro do corpo. Ambas as ideias existem e
coexistem nas cosmologias indígenas, mas é à última que me refiro quando digo que
a alma é dada, alheia e afim. Simplifico, também, quando coloco o nome pessoal
como uma entidade de mesmo tipo geral que a alma; ainda que esse seja o caso em
várias culturas amazônicas, em outras o nome é um terceiro princípio pessoal,
distinto tanto do corpo como da alma.
37. Minha alusão ao conceito de “divíduo” (dividual) deriva, naturalmente, de M.
Strathern (1988), que, partindo de uma noção proposta originalmente por McKim
Marriott, deu-lhe um tratamento teórico de enorme alcance, na Melanésia e alhures.
Sem poder me demorar aqui no bem-fundado da minha transposição, adianto
apenas que o divíduo (belo conceito, feia palavra) amazônico não parece se
“dividualizar” segundo a linha de gênero, como na Melanésia, mas segundo os
contrastes entre consanguinidade e afinidade e entre humano e não-humano (esses
dois contrastes são isomorfos). A questão de saber se o mal-estar generalizado que as
dualidades de tipo alma/corpo (costumeiramente insultadas de cartesianas)
provocam no pensamento filosófico contemporâneo não se deveria, paradoxalmente,
ao potencial subversivo desse (divi) dualismo face ao nosso individualismo – eis aí
outra coisa a que só posso, no momento, aludir.
38. Cf. Viveiros de Castro 1996c (cap. 7 supra).
39. Nas culturas onde as almas, ou suas reificações onomásticas tão comuns na
Amazônia, devem vir do interior do socius, elas passam por canais sistematicamente
outros que aqueles por onde circulam as substâncias corporais. A diferença mínima,
como indiquei, pode ser obtida deslocando-se um passo na rede cognática, i. e.,
pondo-se os avós ou os tios cruzados como nominadores. Tanto quanto me recordo,
esses parentes nunca são incluídos no círculo de abstinência por doença que define a
unidade de comunhão e produção de corpos. Nesse sentido, a couvade pode ser vista
como uma cerimônia de antinominação.
40. Se o primeiro postulado das ontologias amazônicas é “não há relação sem
diferenciação”, o segundo é a ideia de que as substâncias procedem das relações e não
vice-versa. Não há espaço para desenvolvê-lo aqui.
41. O segundo diagrama (op. cit.: 253), que descreve as transformações póstumas
da pessoa, foi incorretamente interpretado por mim, o que vai corrigido em seu
presente embutimento no primeiro diagrama.
42. Na verdade, no caso do ritual Food-giving House (o Dabucurí), há mais que uma
simetrização das relações de gênero próprias dessas sociedades descritas como
fortemente patrilineares e patrilocais: o grupo de referência, ou grupo anfitrião, é
assimilado a uma posição feminina. Isso inverte o modelo ideológico geral
(exacerbado no ritual do He, o Juruparí), o qual faz das mulheres a epítome da
exterioridade afim e dos homens, a da interioridade consanguínea.
43. O que S. Hugh-Jones chama aqui de consanguinidade, eu chamaria de cognação.
Cf. cap. 2 supra, seção “Cognação e consanguinidade”.
44. O parágrafo acima corrige radicalmente o que foi dito nas versões anteriores
deste ensaio sobre a dinâmica ritual tukano e sua conexão com o diagrama.
Agradeço a Cristiane Lasmar por terme chamado a atenção para as incorreções
contidas nas versões anteriores, e pela discussão da presente (e ainda incompleta)
formulação.
45. Não apresento aqui a constituição dos níveis intrapessoais segundo os mesmos
princípios, algo que foi longamente elaborado por Turner (1995, p. ex.).
46. Um elemento de convicção importante, aqui, promete ser a tese recém-defendida
de Elizabeth Ewart (2000) sobre os Panará, que mostra a internalidade constitutiva
da “dialética” entre Eu e Outro, Panará e não-Panará. Ewart sugere que o dualismo
diametral dos Panará é na verdade uma figura do dualismo concêntrico,
argumentando além disso que o centro (físico e metafísico) da sociedade panará é o
lugar da mudança e da história, ao passo que a periferia é o lugar da estabilidade e
da permanência – o que vira de ponta-cabeça pelo menos alguns dos fundamentos
do dualismo centro/periferia dos Jê.
CAPÍTULO 9
Yuriñatoro afasta-se para que os Maï comam do banquete de jaboti (Ipixuna, 1982)
Kañinpaye-ru e os instrumentos xamânicos, o chocalho aray e o charuto (Ipixuna,
1982)
Xamanismo e sacrifício
Estas notas consistem em uma breve evocação dos usos que fiz, em meu trabalho, do
conceito de sacrifício. Elas refletem minha experiência com a etnografia tupi-guarani
e, em especial, minha pesquisa junto aos Araweté da Amazônia oriental (Viveiros de
Castro 1992a). {1}
Se os Araweté dispõem de um xamanismo vigoroso, pouco têm, à primeira
vista, que pareça corresponder à noção antropológica corrente de sacrifício. Eles não
diferem, quanto a isso, da maioria dos povos das terras baixas sul-americanas, onde
se encontram aqui ou ali práticas que poderiam talvez ser ditas de “tipo sacrificial”,
mas que jamais atingem a elaboração sociológica, a formalização ritual e a
densidade cosmológica alcançada, por exemplo, nos sistemas religiosos das culturas
andinas ou mesoamericanas.
Isso posto, a questão não é tanto a de saber se os Araweté são um exemplo
adequado para um exame da noção de sacrifício na América indígena, mas, ao
contrário, a de saber se essa noção é adequada a eles e aos povos congêneres. Mais
geralmente, a questão é saber se a definição maussiana clássica de sacrifício (Hubert
& Mauss 1899), que continua a nos servir de referência, é rica o bastante para incluir
de modo pertinente (ou para excluir de modo significativo) o complexo do
xamanismo sul-americano. Pois a palavra “sacrifício”, nos raros momentos em que
surge no universo de discurso dos etnólogos da Amazônia, vem quase sempre
associada a esta outra, bem mais comum entre nós, xamanismo.
A conexão entre os materiais etnográficos araweté e a noção de sacrifício,
entretanto, não se impõe, ao menos de modo direto, em vista das práticas xamânicas
desse povo, mas a partir de seu discurso escatológico. A cosmologia dos Araweté
reserva um lugar central ao canibalismo póstumo: as divindades celestes (os Maï)
devoram as almas dos mortos chegadas ao céu, como prelúdio à transformação
destas em seres imortais semelhantes a seus devoradores. Como argumentei (op.
cit.), esse canibalismo místico-funerário araweté é uma transformação, tanto
histórica como estrutural, do canibalismo bélico-sociológico dos Tupinambá da costa
brasileira. {2}
O complexo canibal dos Tupinambá do século XVI, cujos traços gerais é
desnecessário recordar,{3} foi frequentemente interpretado como uma forma de
sacrifício humano, seja no sentido metafórico da expressão, utilizada por alguns dos
primeiros cronistas e missionários, seja em um sentido conceitualmente preciso,
como fez o grande sociólogo Florestan Fernandes (1952), que aplicou de modo
bastante literal a teoria de Hubert e Mauss aos materiais quinhentistas. Para poder
fazê-lo, porém, Florestan precisou postular algo que não se encontrava diretamente
nas fontes documentais: um destinatário do sacrifício, isto é, uma “entidade
sobrenatural”. Segundo esse autor, o destinatário do sacrifício canibal tupinambá
seriam os espíritos dos mortos do grupo, supostamente vingados e celebrados pela
execução e devoração do cativo de guerra.
Em minha reinterpretação do canibalismo tupi-guarani, contestei a aplicabilidade
do modelo maussiano, a ideia de que quaisquer entidades sobrenaturais estivessem
necessariamente envolvidas, e que sua presença e propiciação fossem a causa final do
rito. É verdade que, justo no caso dos Araweté, encontravam-se de fato entidades
sobrenaturais no papel de termo da relação canibal. Mas, em minha leitura do
canibalismo escatológico araweté como transformação do canibalismo sociológico
tupinambá, a condição “sobrenatural” dos devoradores não tinha a menor
importância. O ponto crucial do argumento era que as divindades desse povo
ocupavam o lugar que, no rito tupinambá, era ocupado pelo grupo em função de
sujeito – o grupo do matador, que devorava o cativo —, ao passo que o lugar de
objeto do sacrifício, o cativo do rito tupinambá, era ocupado pelos mortos araweté.
Os viventes araweté, por fim, ocupariam o lugar de co-sujeito que nos Tupinambá
era ocupado pelo grupo inimigo, aquele de onde a vítima era extraída. Tomei, em
suma, o canibalismo divino araweté como uma inversão muito particular do
canibalismo humano tupinambá. Tal inversão não dizia respeito ao conteúdo
simbólico dessa prática, a seu estatuto ontológico ou a sua função social, mas a um
deslocamento pragmático, uma translação de perspectiva que afetava os lugaresfunções de sujeito e de objeto, de ego e de inimigo, de si e de outrem.
Vim, em seguida, a concluir que essa ideia de uma inversão de ponto de vista
fazia mais que descrever apenas a relação entre versões araweté e tupinambá do
tema canibal. Ela apontava, na verdade, para uma propriedade distintiva do
canibalismo tupi ele próprio, enquanto estrutura actancial. Minha análise desse
complexo terminou por defini-lo como um processo de transmutação de
perspectivas, onde o devorador assume o ponto de vista do devorado, e o devorado,
o do devorador: onde o “eu” se determina como “outro” pelo ato mesmo de incorporar
este outro, que por sua vez se torna um “eu”. Tal definição pretendia resolver uma
questão muito simples: o quê, do inimigo, era realmente devorado? Se não era sua
substância – pois se tratava de um canibalismo ritual, onde a ingestão da carne da
vítima, em termos quantitativos, era insignificante; ademais, são muito raras e
inconclusivas as evidências de quaisquer virtudes bromatológicas atribuídas ao corpo
dos inimigos —, só podia, então, ser sua posição, isto é, sua relação ao devorador, e,
portanto, sua condição de inimigo. O canibalismo, e o tipo de guerra indígena a ele
associado, implicaria assim um movimento fundamental de assunção do ponto de
vista do inimigo.
O apoio etnográfico imediato para essa ideia foram as canções de guerra
araweté, onde o matador-cantador, por meio de um jogo pronominal, fala de si
mesmo do ponto de vista enunciativo de seu inimigo morto: a vítima fala dos
araweté que matou, e fala de seu matador – que é quem “fala”, isto é, quem canta a
fala do inimigo morto – como se de um inimigo. Através de seu inimigo, o matador
araweté vê-se como inimigo. {4} Tal interpretação do canibalismo levoume a
qualificar a imagem tupi da pessoa de “perspectivista”, bem antes que eu formulasse o
conceito de “perspectivismo cosmológico” e o generalizasse para toda a América
indígena. {5}
Foi, então, menos pelo xamanismo que pela guerra e pelo canibalismo que vim a
me defrontar com o conceito de sacrifício. Ora, se a definição maussiana parecia-me
inapropriada, a noção de sacrifício avançada por Lévi-Strauss em sua discussão do
totemismo, ao contrário, parecia-me iluminar aspectos fundamentais da
antropofagia ritual tupi.
Todos se recordam do contraste multidimensional entre “totemismo” e “sacrifício”
desenvolvido em O pensamento selvagem. Utilizando alguns dos termos de seu autor
(Lévi-Strauss 1962b: 295302), podemos resumi-lo como segue:
1. O totemismo postula uma homologia entre duas séries paralelas (natural e
cultural), estabelecendo uma correlação formal e reversível entre dois sistemas de
diferenças globalmente isomórficas;
2. O sacrifício postula uma só série, contínua e orientada, ao longo da qual se
efetua uma mediação real e irreversível entre dois termos polares e não-homólogos
(humanos e divindades), cuja contiguidade deve ser estabelecida por identificações ou
aproximações sucessivas;
3. Assim, o totemismo é metafórico; o sacrifício, metonímico; o primeiro é um
“sistema interpretativo de referências”; o segundo, um “sistema técnico de operações”;
o primeiro é da ordem da langue; o segundo, da parole.
Pode-se concluir, dessa caracterização, que o sacrifício envolve princípios de um
tipo inteiramente distinto das equivalências de proporcionalidade manifestas no
totemismo e nos demais “sistemas de transformação” analisados em O pensamento
selvagem e nas Mitológicas. As transformações lógicas do totemismo (e do mito)
estabelecem-se entre termos que veem suas posições recíprocas modificadas por
permutações, inversões, quiasmas e outras redistribuições combinatórias e extensivas
– o totemismo é uma tópica da descontinuidade. As transformações sacrificiais, ao
contrário, manifestam relações intensivas que modificam a natureza dos termos eles
próprios, pois “fazem passar” algo entre eles: a transformação, aqui, não é
permutação dedutiva, mas efetuação transdutiva, ou transmutação – ela lança mão
de uma energética do contínuo. Se o objetivo do totemismo é assemelhar séries de
diferenças dadas cada qual por seu lado, o propósito do sacrifício é diferenciar
semelhanças; não no sentido de “dessemelhar” termos originalmente pensados como
semelhantes (muito pelo contrário), mas sim no de diferenciar internamente polos
pressupostos como autoidênticos, ao induzir uma zona ou momento de
indiscernibilidade entre eles. Recorrendo a uma alegoria matemática (e leibniziana),
diríamos que o modelo das transformações estruturais do totemismo é a análise
combinatória, ao passo que o instrumento necessário para explorar o “reino da
continuidade” (Lévi-Strauss 1962a: 296) estabelecido pelas metamorfoses intensivas
do sacrifício remeteria, antes, a algo como o cálculo diferencial. Com efeito, a
caracterização lévi-straussiana do totemismo o apreende como um puro sistema de
formas, ao passo que a do sacrifício recorre a formulações que sugerem a presença de
algo como um sistema de forças. O autor fala, por exemplo, em uma “solução de
continuidade” entre “reservatórios”, em um “déficit de contiguidade” preenchido
“automaticamente” – enfim, usa toda uma linguagem de vasos comunicantes que
evoca irresistivelmente a ideia de uma diferença de potencial envolvida na estrutura
do sacrifício.
Duas imagens, em suma, muito diferentes, talvez mesmo “incompatíveis” (id.
ibid.: 295), da diferença. Uma imagem extensiva e uma imagem intensiva: a forma
e a força. Acontece que o método estrutural clássico está muito mais bem capacitado
a dar conta da forma que da força, da combinatória que do diferencial, da langue que
da parole, da categorização que da ação. {6} Consequentemente – talvez devêssemos
dizer, infelizmente —, esses aspectos que resistem em maior ou menor medida ao
método estrutural foram quase sempre vistos por Lévi-Strauss como menores, seja
porque dão testemunho dos limites do pensável, seja porque relevam do
assignificante, seja, enfim, porque exprimem as potências da ilusão. Assim, por
exemplo, o sacrifício é visto como imaginário e falso, o totemismo como objetivo e
verdadeiro (id. ibid.: 301-02), juízo que se repete, aliás, no contraste entre mito e rito
feito em O homem nu (id. 1971: 596-603) – e juízo que, é forçoso reconhecer, ensinanos mais sobre a cosmologia de Lévi-Strauss que sobre a dos povos que ele estudou.
À parte tais julgamentos de valor, os contrastes entre continuidade metonímica e
descontinuidade metafórica, qualidade vetorial e “quantidade” posicional, operação
sintagmática e referência paradigmática pareceram-me muito iluminadores,
levando-me a marcar o canibalismo ritual tupi com o selo do sacrifício, no sentido
lévistraussiano. O canibalismo se me afigurou um autêntico operador antitotêmico:
ele realiza uma transformação recíproca mas irreversível entre dois termos, mediante
um ato de suprema contiguidade (a execução e a ingestão) que implica uma
dinâmica complexa de identificações (melhor seria chamá-las de indiscernibilidades)
entre matadores e vítimas, devoradores e devorados. Nenhuma necessidade de
postular entidades sobrenaturais, portanto. Em meu modelo do “sacrifício” canibal
tupinambá, os elementos em jogo são o grupo dos devoradores, a vítima e o grupo
inimigo; o “morto” é uma posição vicária assumida alternativa ou sucessivamente
pelos três actantes do rito, e é ela que conduz as forças circulantes no processo
(Viveiros de Castro 1992a: cap. 10).
O totemismo, hoje – depois de O totemismo hoje —, encontra-se completamente
dissolvido na atividade classificatória do pensamento selvagem. {7} O fenômeno
sacrificial, em contrapartida, ainda está à espera de um “O sacrifício hoje”. Pois, antes
que se o retome como instituição religiosa sui generis, seria avisado fazê-lo passar
pelo mesmo processo de análise e generalização que Lévi-Strauss realizou para o
caso do totemismo.
Sabe-se como o totemismo foi dissolvido: ele deixou de ser visto como uma
instituição, e passou a um método de classificação e um sistema de significação, cuja
referência à série das espécies biológicas é contingente. {8} Pois bem: seria possível
repensar o sacrifício segundo essa mesma inspiração? Seria possível ver as
divindades que funcionam como termos da relação sacrificial como tão contingentes
quanto as espécies totêmicas? O que seria um esquema genérico do sacrifício, o
quadro de possíveis formais do qual as cristalizações institucionais clássicas (o que
chamamos usualmente de “sacrifício”) não seriam senão uma realização particular?
Ou, para formularmos o mesmo problema em uma linguagem mais sacrificial que
totêmica, qual seria o campo de virtualidades dinâmicas das quais o sacrifício é uma
atualização singular? Que forças o sacrifício mobiliza?
O esquema genérico do sacrifício parecia-me ser muito próximo daquilo que
Descola (1992, ver também id. 1996) começava então a chamar de “animismo” ou
de “modelo anímico”. Com efeito, os contrastes totemismo/sacrifício, de Lévi-Strauss,
e totemismo/animismo, de Descola, possuem diversos pontos em comum. Não vou
resumir aqui a teoria de Descola, que é bem conhecida, e que ainda está em fase de
elaboração. Basta recordar que o animismo consiste na ideia de que o cosmos é
habitado por muitas espécies de seres dotados de intencionalidade e consciência;
vários tipos de não-humanos, assim, são concebidos como pessoas, isto é, como
sujeitos potenciais de relações sociais. Ao contrário do totemismo, sistema de
classificação que utiliza as espécies naturais para significar as relações sociais intrahumanas, o animismo utilizaria as categorias da socialidade para significar as
relações interespecíficas. {9} Assim, o animismo estabelece uma só série – a série
social das pessoas —, em lugar de duas; e as relações entre natureza e cultura são de
contiguidade metonímica, não de semelhança metafórica. {10} O jogo das
semelhanças e diferenças é interno a uma série única, onde as espécies naturais
diferem entre si tanto quanto diferem da – e/ou se assemelham à – espécie humana.
A série natural do totemismo torna-se, no animismo, interna à série cultural e viceversa: elas são aqui cointensivas, não coextensivas. A humanidade não constitui uma
constante autônoma, mas antes a variável de uma função, isto é, um ponto de vista
que pode ser assumido por qualquer espécie. (A função ela mesma não é senão o que
se costuma chamar de “realidade”.)
À primeira vista, haveria pouca coisa em comum entre o canibalismo que eu
buscava analisar e o animismo tal como discutido por Descola. Mas não é difícil
concluir que, se o animismo afirma que vários não-humanos – entre os quais
diversas espécies consumidas pelos humanos – são pessoas, então guerra e caça,
antropofagia e zoofagia, estão muito mais próximas do que se costuma imaginar.
Não porque a guerra seja uma forma de caça, mas porque a caça é um modo da
guerra – uma relação entre sujeitos. E, se a guerra e o canibalismo indígenas são
essencialmente um processo de transmutação de perspectivas, então é provável que
algo do mesmo gênero ocorra nas relações entre humanos e não-humanos. Assim,
logo me ficou evidente que o modelo anímico de relações entre “natureza” e “cultura”
recebia uma elaboração específica nas cosmologias amazônicas. Tratava-se do que
chamei de perspectivismo, isto é, a concepção segundo a qual as diferentes
subjetividades que povoam o universo são dotadas de pontos de vista radicalmente
distintos (ver cap. 7 supra). Tal concepção, extremamente difundida nas culturas
ameríndias, sustenta que a visão que os humanos têm de si mesmos é diferente
daquela que os animais têm dos humanos, e que a visão que os animais têm de si
mesmos é diferente da visão que os humanos têm deles. Os jaguares nos veem como
pecaris, os pecaris nos veem como jaguares (ou como espíritos canibais); mas os
jaguares e os pecaris, cada qual por seu lado, veem-se como gente, e veem seu
comportamento como cultural: o sangue que o jaguar bebe é sua cerveja de milho, a
lama onde chafurdam os pecaris é sua casa cerimonial, e assim por diante.
Essa “doutrina” perspectivista, cujos fundamentos se encontram na mitologia – na
ideia de que o fundo originário comum à humanidade e à animalidade é a
humanidade (e não, como para nós, a animalidade) —, está pressuposta em muitas
dimensões da praxis indígena, mas vem ao primeiro plano no contexto do
xamanismo. O xamanismo pode ser definido como a capacidade manifestada por
certos humanos de cruzar as barreiras corporais e adotar a perspectiva de
subjetividades não-humanas. {11} Sendo capazes de ver os não-humanos como estes
se veem (como humanos), os xamãs ocupam o papel de interlocutores ativos no
diálogo cósmico. Eles são como diplomatas que tomam a seu cargo as relações
interespécies, operando em uma arena cosmopolítica onde se defrontam as diferentes
categorias socionaturais.
Pareceu-me claro, então, que o papel do xamã não difere essencialmente do papel
do guerreiro. Matadores e xamãs são comutadores ou condutores de perspectivas, os
primeiros comutando o “eu” e o “outro” intra-humanos, os segundos o “eu” e o “outro”
interespecíficos. Como já se disse tantas vezes, o xamanismo é a continuação da
guerra por outros meios: mas isso nada tem a ver com a violência em si mesma, e
sim com a comunicação. Portanto, seria igualmente correto dizer que a guerra é a
continuação do xamanismo por outros meios. Na Amazônia, o xamanismo é
agonístico tanto quanto a guerra é sobrenatural.
Nos termos do contraste feito em O pensamento selvagem, o xamanismo
amazônico está inequivocamente localizado do lado do sacrifício, não do totemismo.
Como o canibalismo ritual dos Tupi, ele é uma estrutura sacrificial. É certo que a
atividade xamânica consiste no estabelecimento de correlações ou traduções
(Carneiro da Cunha 1998) entre os mundos respectivos de cada espécie natural, isto
é, na busca de homologias e equivalências entre os diferentes pontos de vista em
confronto. Mas o xamã ele próprio é um “relator” real, não um “correlator” formal: é
preciso que ele passe de um ponto de vista a outro, que se transforme em animal
para que possa transformar o animal em humano e reciprocamente. O xamã utiliza
– e, literalmente, encarna – as diferenças de potencial inerentes às divergências de
perspectivas que constituem o cosmos: seu poder, e os limites de seu poder, derivam
dessas diferenças.
E aqui talvez possamos, finalmente, recuperar algo do esquema maussiano do
sacrifício. Uma característica fundamental do xamanismo é que o xamã é ao mesmo
tempo o sacrificador e a vítima. Ele realiza em si mesmo, em sua própria pessoa –
corpo e alma —, a conexão sacrificial entre humanos e não-humanos. É o próprio
xamã quem atravessa para o outro lado do espelho; ele não manda delegados ou
representantes. Essa me parece ser uma diferença decisiva entre as figuras do xamã e
do sacerdote. Estamos, a meu ver, no umbral de um outro regime sociocósmico
quando o xamã começa a se tornar o sacrificador de outrem: quando ele passa, por
exemplo, a ser o executor de vítimas humanas, o administrador dos sacrifícios
alheios, o sancionador de movimentos que ele não executa, mas apenas supervisiona.
Com isso, ele deixa de ser xamã.
Não se trata, decerto, de uma oposição absoluta. O que se classifica sob o rótulo
de “xamanismo” conhece, na Amazônia indígena, ao menos uma diferença interna
importante, correspondente à distinção feita por S. Hugh-Jones (1996b) entre um
“xamanismo horizontal” e um “xamanismo vertical”. Tal contraste é particularmente
saliente em povos como os Bororo do Brasil Central ou os Tukano e Aruaque do rio
Negro, onde há duas categorias distintas de mediadores místicos: uma, a dos xamãs
“horizontais”, é composta de especialistas cujos poderes derivam da inspiração e do
carisma, e cuja atuação, voltada para o exterior do socius, não se encontra isenta de
agressividade e de ambiguidade moral; a outra, a dos xamãs “verticais”, compreende
essencialmente o que se poderia chamar de mestres cerimoniais, guardiães pacíficos
de um conhecimento esotérico, voltados para a reprodução das relações internas ao
grupo. {12} O xamã que qualifiquei de “sacrificador-vítima” é sobretudo o xamã
horizontal de Hugh-Jones. Tal tipo de especialista, observa esse autor, predomina nas
sociedades de perfil mais igualitário e belicoso; o xamã vertical, presente em
sociedades mais hierarquizadas e pacíficas, aproximar-se-ia da figura do sacerdote.
O contraste de Hugh-Jones é feito, note-se, em termos de tipos ideais: por um lado,
não há sociedade amazônica onde existam apenas xamãs verticais; por outro, ali
onde só há um tipo reconhecido de xamã, este acumula as funções especializadas dos
dois xamãs dos Bororo ou Tukano. Mas nada disso tira da distinção dentre os
xamanismos “horizontal” e “vertical” sua pertinência mais ampla.
É importante observar que os movimentos milenaristas ocorridos na região do
Noroeste amazônico a partir de meados do século XIX foram, como sublinha HughJones, sempre comandados por xamãs de tipo horizontal. Isso me leva a sugerir que
a distinção a fazer não é tanto entre dois tipos de xamã, o xamã propriamente dito
(ou horizontal) e o xamã-sacerdote, mas, antes, entre duas derivas possíveis da
função xamânica: a transformação sacerdotal e a transformação profética. O
profetismo seria, nesse caso, o resultado de um processo de “aquecimento” histórico
do xamanismo, ao passo que a emergência de uma função sacerdotal bem definida
seria o resultado de seu “resfriamento” político, isto é, sua subsunção pelo poder
social. (Imagine-se, alternativamente, a emergência da figura do profeta como um
estado do modelo sacrificial – sensu Mauss – onde o xamã, em lugar de encarnar o
sacrificador e a vítima, passa a encarnar o sacrificador e a divindade, ao passo que o
grupo passa a encarnar ao mesmo tempo a função de sacrificante e de vítima. A
diferenciação completa dessas posições actanciais só ocorreria nos sistemas e derivas
de tipo sacerdotal.)
Outro modo de formular essa hipótese é dizer que a transformação sacerdotal,
sua diferenciação a partir da função xamânica de base, está associada a um processo
de constituição de uma interioridade social de natureza substantiva, isto é, ao
surgimento de valores de tipo “ancestralidade”, que enfatizam a continuidade
diacrônica entre vivos e mortos, e de valores de tipo “hierarquia”, que enfatizam as
descontinuidades sincrônicas entre os vivos. Com efeito, se o Outro arquetípico com
quem se confronta o xamã horizontal é teriomórfico ou dendromórfico, o Outro do
xamanismo vertical tende a assumir as feições antropomórficas do ancestral. {13} O
xamanismo horizontal supõe uma economia ontológica onde a diferença entre
humanos vivos e humanos mortos é pelo menos tão grande quanto a semelhança
entre humanos mortos e não-humanos vivos. Talvez seja possível ver a emergência
do xamanismo vertical como associada à separação entre essas duas posições de
alteridade, com os mortos humanos sendo vistos mais como humanos que como
mortos, o que tem por consequência a possibilidade de uma objetivação dos nãohumanos, isto é, sua “desanimização” potencial.
Para resumir os contrastes feitos por Hugh-Jones, podemos dizer que o
xamanismo horizontal é exoprático, o vertical, endoprático. O argumento aqui
esboçado sugere que, na Amazônia indígena, a exopráxis é anterior – lógica,
cronológica e cosmologicamente – à endopráxis, e que ela permanece sempre
operativa, mesmo naquelas formações de tipo mais hierárquico como as do rio
Negro, ao modo de um resíduo que bloqueia a constituição de chefaturas ou Estados
dotados de uma interioridade metafísica acabada. O xamã horizontal panamazônico impede a coincidência entre poder político e potência cósmica, e assim a
elaboração de um sistema sacrificial de tipo clássico. Pois a instituição do sacrifício é
a captura do xamanismo pelo Estado. Concluamos, assim, com uma saudação a
Pierre Clastres, feita por este seu admirador inconstante.
1. Esta comunicação foi apresentada no colóquio “Chamanisme et sacrifice”, que
reuniu especialistas nas culturas andinas, mesoamericanas e amazônicas, organizado
por J.-F. Bouchard e J.-P. Chaumeil, e realizado no Collège de France em abril de
2000.
2. Na verdade, ambos esses canibalismos podem ser ditos ao mesmo tempo
funerários e bélicos. No caso dos Tupinambá, a morte e a devoração dos inimigos, e
pelos inimigos, eram consideradas o kalos thanatos masculino; no caso dos Araweté,
os deuses canibais são concebidos como inimigos-afins dos mortos e imaginados sob
a forma de superguerreiros araweté (para uma discussão mais ampla sobre a
relação do guerreiro araweté e seu inimigo, cf. cap. 4 supra).
3. Cf., entre muitos: Métraux 1928; Fernandes 1949, 1952; H. Clastres 1972; Combès
1992.
4. Note-se que um matador araweté é considerado, ao mesmo tempo, como tendo
devorado seu inimigo (sua barriga se enche com o sangue deste) e tendo-se tornado
seu inimigo (ele sente seu corpo apodrecer como o de sua vítima deixada na floresta).
5. Para as canções de guerra araweté cf. Viveiros de Castro 1992a: 238-48 e o cap. 4
supra; e para o conceito de perspectivismo cf. cap. 7 supra.
6. O desafio de construir uma “morfodinâmica” capaz de introduzir o ponto de vista
da força nas intuições formais do estruturalismo vem sendo enfrentado por Jean
Petitot (1988, 1999). Os resultados obtidos são promissores, mas, no meu entender,
ainda demasiado abstratos e preliminares.
7. Tão eficazmente dissolvido, que o problema agora é o de recuperar sua realidade
institucional específica, ali onde é o caso (Adler [org.] 1998 ).
8. Ou apenas parcialmente contingente, uma vez que, para Lévi-Strauss, as espécies
vivas são como um símbolo natural da descontinuidade; e a descontinuidade é, por
sua vez, como o elemento natural do pensamento na cosmologia estruturalista.
9. Os não-humanos privilegiados pela reflexão de Descola são as espécies animais;
no caso de minha pesquisa junto aos Araweté, os não-humanos que se dispunham
em continuidade social com os humanos eram, principalmente, os espíritos ou
divindades celestes, os Maï.
10. Esse ponto é importante, porque se costuma definir o animismo como afirmando
uma semelhança metafórica entre humanos e não-humanos; isso é, a meu ver, uma
leitura completamente equivocada do fenômeno.
11. Ou, mais geralmente, como a capacidade manifesta por certos (ou todos os)
indivíduos de uma dada espécie de cruzar as barreiras específicas e transformar-se
em (adotar o ponto de vista de) seres de outras espécies. Como se sabe, não são só os
humanos stricto sensu que dispõem de xamãs.
12. Cf. o quadro em S. Hugh-Jones op. cit.: 37, para um resumo dos atributos
contrastivos dos dois xamãs do Noroeste amazônico.
13. Esse ponto pode ser verificado em S. Hugh-Jones (op. cit.) e, sobretudo, em um
instigante artigo recente de Morten Pedersen (2001) sobre as ontologias do Norte da
Ásia, onde o contraste entre totemismo e animismo é cruzado com aquele entre
verticalidade e horizontalidade sociocosmológicas. Meu argumento foi tomado
diretamente deste último texto.
CAPÍTULO 10
Entrevista com Eduardo Viveiros de Castro
Realizada no Rio de Janeiro em 21 de dezembro de 1998 por Renato Sztutman,
Silvana Nascimento e Stelio Marras, para a revista Sexta Feira.{1}
Qual era o seu ideal de antropologia quando você começou a estudar as sociedades
indígenas?
Eu queria fazer uma etnografia “clássica” de um grupo indígena. Meu problema
teórico era entender aquelas sociedades em seus próprios termos, isto é (e só pode
ser), em relação às suas próprias relações: as relações que as constituem e que ela
constitui, o que obviamente inclui suas relações com a alteridade social, étnica,
cosmológica… Acho que existem dois grandes paradigmas que orientam a etnologia
brasileira. De um lado, a imagem antropológica de “sociedade primitiva”; de outro,
a tradição derivada de uma “Teoria do Brasil”, de que a obra de Darcy Ribeiro é
talvez o melhor exemplo. O título de um livro de Roberto Cardoso de Oliveira,
Sociologia do Brasil indígena, é expressivo desta segunda orientação: o foco é o
Brasil, os índios são interessantes em relação ao Brasil, na medida em que são parte
do Brasil. Nada a objetar, esta sociologia do Brasil indígena é uma empresa
altamente respeitável e resultou em trabalhos extremamente importantes. Mas esta
não era a minha. A minha era a mal-chamada “sociedade primitiva”, meu foco eram
as sociedades indígenas, não o Brasil: o que me interessava eram as sociologias
indígenas. A minha era Lévi-Strauss, Pierre Clastres, as antropologias de
Malinowski, de Evans-Pritchard…
Em que pé estavam os estudos sobre a Amazônia indígena na época de suas
primeiras investigações etnológicas?
É preciso não esquecer que boa parte da Amazônia que veio a ser estudada nos anos
70 não existia do ponto de vista geopolítico, tendo sido incorporada à sociedade
nacional a partir do boom desenvolvimentista iniciado naquela década. Não era a
Amazônia, mas o Brasil Central que estava então na berlinda, graças aos trabalhos
de Curt Nimuendaju das décadas de 30 e 40, que tinham sido discutidos por Robert
Lowie e Claude Lévi-Strauss. Este último – estava-se no apogeu do estruturalismo,
nas décadas de 60-70 – colocou o Brasil Central na pauta teórica da antropologia. O
grupo que estudou o Brasil Central, ligado a David Maybury-Lewis, foi o que teve o
maior número de pessoas trabalhando coordenadamente em uma mesma área da
América do Sul; uma área, aliás, exclusivamente brasileira. Quando eu era
estudante, nos anos 70, a impressão que se tinha era que a única coisa interessante
que restava em etnologia indígena era o Brasil Central. Eu não tinha nem muita
clareza que a Amazônia existisse como possibilidade de trabalho. Em parte, porque
estava lendo maciçamente teses e livros dos meus professores, e associados deles, que
eram todos sobre grupos Jê, Bororo e tal. Todo o meu trabalho posterior foi muito
marcado por um “escrever contra” a etnologia centro-brasileira – “contra” não no
sentido polêmico ou crítico, mas contra como a partir de, como figura que se desenha
contra um fundo: contra a paisagem em que se deu minha formação.
O que mais o impressionou no campo com os Yawalapíti do Alto Xingu, então sua
primeira experiência de pesquisa em uma sociedade indígena?
A primeira coisa que me chamou a atenção, no Xingu, era que aquele sistema social
era diferente dos regimes do Brasil Central. Uma preocupação que me acompanha
desde então tem sido a de como descrever uma forma social que não tem como
esqueleto institucional qualquer espécie de dispositivo dualista, considerando que
minha imagem básica de sociedade indígena era a de uma sociedade com metades
etc. Aquele era um tempo em que as oposições binárias eram consideradas a grande
chave de abertura de qualquer sistema de pensamento e ação indígenas. Ficou claro
para mim que o que acontecia no Xingu não podia ser reduzido à oposição entre o
físico e o moral, o natural e o cultural, o orgânico e o sociológico. Ao contrário,
havia uma espécie de interação entre essas dimensões muito mais complexa do que
os nossos dualismos. O que me chamou a atenção foi o complexo da reclusão
pubertária do Alto Xingu, em que os jovens têm o corpo literalmente fabricado,
imaginado por meio de remédios, de infusões e de certas técnicas como a
escarificação. Em suma, ficava claro que não havia distinção entre o corporal e o
social: o corporal era social, e o social era corporal. Portanto, tratava-se de algo
diferente da oposição entre natureza e cultura, centro e periferia, interior e exterior, ego
e inimigo. Minha pesquisa com os Yawalapíti foi um tipo de indagação sobre essas
questões, embora eu estivesse fazendo uma espécie de aquecimento etnológico, muito
mais do que uma pesquisa.
Como o tema do corpo surgiu como questão teórica fundamental nos seus estudos
iniciais?
Quando cheguei ao Xingu, vinha de uma tradição (reforçada por minha educação
jesuítica) que ensinava que o corpo era uma coisa insignificante, em todos os sentidos
dessa palavra. No Xingu, a maioria das coisas que consideramos como mentais,
abstratas, lá eram escritas concretamente no corpo. O antropólogo que primeiro
efetivamente tematizou a questão da corporalidade na América do Sul foi LéviStrauss, nas Mitológicas, uma obra monumental sobre a “lógica das qualidades
sensíveis”, qualidades do mundo apreendidas no corpo ou pelo corpo: cheiros, cores,
propriedades sensoriais e sensíveis. Ele ali demonstrava como era possível a um
pensamento articular proposições complexas sobre a realidade a partir de categorias
muito próximas da experiência concreta.
Em 1981 você conheceu os Araweté do Pará, com os quais realizou sua pesquisa de
campo mais longa. O que mais o atraiu em começar uma pesquisa com esse grupo
Tupi-Guarani contemporâneo, parentes (distantes) dos Tupinambá, famosos pelas
suas práticas antropofágicas?
Os Tupi, quando comecei a estudar antropologia, eram vistos meio como se fossem
povos do passado, extintos ou “aculturados”; era como se não houvesse mais o que
se fazer em termos de pesquisa etnológica junto a eles, que não fosse reconstrução
histórica ou sociologia da “transfiguração étnica”. Só que, na década de 70, com a
abertura da Transamazônica, alguns grupos tupi-guarani “isolados” do Pará foram
“contatados”: Assurini, Araweté, Parakanã… Obviamente, o que chamava a atenção
no material tupi-guarani clássico era o famoso canibalismo guerreiro tupinambá,
mas eu não tinha a menor ideia de que fosse encontrar algo do gênero nos Araweté.
Estava indo para os Araweté porque queria um grupo pequeno, e não-estudado. Por
acaso aquele grupo era tupi. A pesquisa entre os Araweté foi complicada, porque eles
tinham cinco anos de “contato”, e cinco anos é muito pouco. O grupo ainda está
desorientado, ainda está administrando a revolução social e cosmológica – e mais
que tudo, a catástrofe demográfica – desencadeada pelo contato. Eles eram
“selvagens” para valer, uma gente dramática e enigmática, ao mesmo tempo gentil e
brusca, sutil e exuberante; eram muito diferentes dos povos do Alto Xingu, que
haviam me impressionado pela etiqueta, o refinamento, a compostura quase solene.
Então, como foi sua primeira experiência de contato com os Araweté?
Eles estavam elaborando a experiência deles conosco. Testavam todos os modos
possíveis. Não sabiam ainda muito bem o que iriam fazer com os brancos. Eu fui
uma das primeiras cobaias deles. Eles tentaram comigo vários métodos, digamos
assim, de administração da alteridade. Então foi uma pesquisa psicologicamente
complexa, mas me dei muito bem com eles.
Eles não tentaram te afogar, como faziam os Tupinambá com os portugueses no
século XVI?
Não, não me afogaram, pelo menos não daquele jeito – pois acho que vocês estão se
referindo a outra coisa, à anedota de Lévi-Strauss sobre os espanhóis e os índios das
Antilhas. Embora para eles eu sempre tenha sido uma espécie de enigma, impressão,
aliás, recíproca. A pesquisa toda foi marcada por eles investigando a minha
natureza. Claro que eles já conheciam branco desde muitos anos antes do contato
oficial. Os Araweté são uma daquelas sociedades que devem ter tido vários encontros
com brancos nos últimos séculos, se é que eles não são remanescentes de grupos tupi
que tiveram contato direto com missões cristãs ou coisa parecida. Eles esqueceram
muita coisa, mas nem tudo. Você percebe que eles sabem muito mais sobre a gente
do que dão a impressão de saber.
A pesquisa interessava a eles, porque, como eu não tinha uma grande questão
teórica a perseguir desde o início, segui os interesses dialógicos dos Araweté. Não
tinha questão, então tive de ir acompanhando o que interessava a eles e o que eu
conseguia entender, quer dizer, flutuei inteiramente ao sabor da corrente de nossa
interação.
De que modo a experiência com os Araweté inspirou a elaboração da noção de
“perspectivismo ameríndio”?
Meu livro sobre os Araweté está cheio de referências a um perspectivismo, a um
processo de pôr-se no lugar do outro, que me apareceu, inicialmente, no contexto da
visão que os humanos têm dos Maï, os espíritos celestes, e reciprocamente. Propus,
em seguida, que o canibalismo tupi-guarani poderia ser interpretado como um
processo em que se assume a posição do inimigo. Mas este era um perspectivismo
ainda meu, o conceito era principalmente meu, e não dos índios. Está lá, mas sou eu
que formulo: o canibalismo tem a ver com a comutação de perspectivas etc. Anos
depois, Tânia Stolze Lima, (então) minha orientanda e (sempre) amiga, estava
escrevendo sua tese sobre os Juruna, que concluía com uma discussão sobre o
relativismo juruna, que me fez voltar a pensar na questão do perspectivismo. Tratase de um trabalho esplêndido, de uma das etnografias mais originais do pensamento
indígena até agora produzidas em nossa disciplina. Eu e Tânia começamos a
conversar sistematicamente sobre o material que ela estava analisando. Foi aí que
começamos a definir esse complexo conceitual do perspectivismo, a concepção
indígena segundo a qual o mundo é povoado de outros sujeitos ou pessoas, além dos
seres humanos, e que veem a realidade diferentemente dos seres humanos.
Como foi possível passar das manifestações particulares registradas por essas
etnografias recentes à construção de um modelo genérico – o “perspectivismo
ameríndio”?
Tal generalização é de minha exclusiva irresponsabilidade: Tânia não tem culpa de
nada aqui. A minha questão era identificar em diversas culturas indígenas elementos
que me permitissem construir um modelo, ideal em certo sentido, no qual o contraste
com o naturalismo característico da modernidade europeia ficasse mais evidente.
Obviamente, esse modelo se afasta mais ou menos de todas as realidades
etnográficas que o inspiraram. (Por exemplo, os Araweté, tanto quanto eu saiba, não
têm essa ideia em particular de que certas espécies animais veem o mundo de um
jeito diferente do nosso.) Mas o fenômeno que Tânia encontrou entre os Juruna era
muito comum na Amazônia, embora a imensa maioria dos etnógrafos não tenha
tirado grandes consequências dele. Eu tinha a impressão de que se podia divisar uma
vasta paisagem, não apenas amazônica mas pan-americana, onde se associavam o
xamanismo e o perspectivismo. Era possível perceber também que o tema
mitológico da separação entre humanos e não-humanos, isto é, cultura e natureza,
não significava a mesma coisa que em nossa mitologia evolucionista. A proposição
presente nos mitos é: os animais eram humanos e deixaram de sê-lo, a humanidade
é o fundo comum da humanidade e da animalidade. Em nossa mitologia é o
contrário: nós humanos éramos animais e “deixamos” de sê-lo, com a emergência da
cultura etc. Para nós, a condição genérica é a animalidade: “todo mundo” é animal,
só que uns são mais animais que os outros, e nós somos os menos. Nas mitologias
indígenas, todo mundo é humano, apenas uns são menos humanos que os outros.
Vários animais são muito distantes dos humanos, mas são todos ou quase todos, na
origem, humanos, o que vai ao encontro da ideia do animismo, a de que o fundo
universal da realidade é o espírito.
Você poderia nos dar um exemplo de como opera esse pensamento perspectivista na
vida cotidiana de grupos indígenas?
Tenho um exemplo que mostra a atualidade e a pregnância do motivo perspectivista.
Há uns três anos, o filho de Raoni (líder dos Kayapó Txukarramãe) morreu, creio
que na aldeia dos Kamayurá, onde ele estava em tratamento xamanístico. Tinha
sido enviado pela família para ser tratado pelos xamãs de lá. Esse rapaz morreu,
segundo os médicos brancos, de um ataque epiléptico. Bem, ele havia matado dois
índios (não me recordo se em sua própria aldeia, onde tinha ido passar um tempo
entre as diversas fases da cura xamanística, ou na aldeia kamayurá mesmo), e
algum tempo depois morreu. A morte desse rapaz entre os Kamayurá virou notícia
na Folha de S. Paulo, que publicou uma reportagem sobre o clima de tensão
intergrupal que se seguiu, com os Kayapó acusando os Kamayurá de feitiçaria.
Parece que se chegou mesmo a falar em guerra entre os dois grupos. Então começou
aquela paranoia, e a Folha, sabendo disso (sabe-se lá como), mandou um repórter e
fez a matéria. Poucas semanas depois, Megaron, txukarramãe que é o Diretor do
Parque do Xingu (e sobrinho de Raoni), resolveu escrever uma carta para a Folha
dizendo que não era nada daquilo que o repórter havia contado e que os Kamayurá
eram feiticeiros mesmo… Acho fascinante isso de acusações de feitiçaria entre grupos
indígenas no Xingu sendo ventiladas em cartas à redação da Folha. Eu acho que essa
coisa de modernização, depois de pós-modernização, de globalização, não quer dizer
que os índios estejam virando brancos e que não haja mais descontinuidades entre os
mundos indígenas e o “mundo global” (que talvez fosse melhor chamar de “mundo
dos Estados Unidos”). As diferenças não acabaram, mas agora elas se tornam
comensuráveis, coabitam no mesmo espaço: elas na verdade aumentaram seu
potencial diferenciante. Assim, no mesmo jornal, você pode ler as platitudes políticoliterárias do Sarney, um empresário discorrendo sobre as propriedades miraculosas
da privatização, um astrofísico falando sobre o big bang – e um Kayapó acusando os
Kamayurá de feitiçaria! Tudo no mesmo plano, na mesma “folha”. Bruno Latour, em
seu Jamais fomos modernos (1991), insiste com muita pertinência nesse fenômeno.
Pois bem. Megaron argumentava, em sua carta: “Esse rapaz morreu porque foi
enfeitiçado pelos Kamayurá. É verdade que ele matou duas pessoas antes de morrer,
mas isso foi porque ele achou que estava matando animais, pois os pajés kamayurá
deram um cigarro para ele e ele achou que estava matando bicho. Quando voltou a
si, viu que eles eram humanos e ficou muito abalado”. Essa é uma explicação que
recorre ao argumento perspectivista, esse negócio de ver gente como animal. Acontece
que, quando uma pessoa vê os outros seres humanos como bichos, é porque ela na
verdade já não é mais humana: isso significa que ela está muito doente e precisa de
tratamento xamanístico. Megaron diz, entretanto: foram os xamãs kamayurá que
enfeitiçaram o rapaz e o desumanizaram, fazendo-o ver os humanos como bichos,
isto é, fazendo-o comportar-se ele mesmo como um bicho feroz. Pois uma das teses
do perspectivismo é que os animais não nos veem como humanos, mas sim como
animais (por outro lado, eles não se veem como animais, mas como nos vemos, isto
é, como humanos).
Eis assim que o perspectivismo não só está bem vivo, como pode entrar em
palpitantes argumentos políticos.
Em que medida esse modelo perspectivista pode ser estendido para todos os grupos
ameríndios, mesmo tendo em vista as profundas diferenças entre eles? Como falar,
por exemplo, em perspectivismo entre populações Jê que não têm no xamanismo
uma prática corrente?
Bem, acabamos de ver um membro de um grupo Jê recorrendo a um argumento
desse tipo. De qualquer modo, mesmo que os Jê não digam que os animais atuais
são humanos ou que cada animal vê as coisas de um certo jeito etc., sua mitologia,
como a de todos os ameríndios, afirma que, no começo dos tempos, animais e
humanos eram uma coisa só, que os animais são ex-humanos, e não que os
humanos são ex-animais. Tal humanidade pretérita dos animais nunca é
completamente evacuada, ela está lá como um potencial – justo como, para nós,
nossa animalidade “passada” permanece pulsando sob as camadas de verniz
civilizador. Além disso, não é preciso ter xamãs para se viver em uma cosmologia
xamanística. (Os Txukarramãe, por exemplo, estavam usando os xamãs dos
Kamayurá.)
A ideia de que os animais são gente, comum a muitas (mas não todas, nestes
termos simplificados) cosmologias indígenas, não significa que os índios estejam
afirmando que os animais são gente como a gente. Todo mundo em seu juízo
perfeito, e o dos índios é tão ou mais perfeito que o nosso, “sabe” que bicho é bicho,
gente é gente etc. Mas sob certos pontos de vista, em determinados momentos, faz
todo o sentido, para os índios, proceder segundo a noção de que alguns animais são
gente. O que significa isso? Quando você encontra numa etnografia uma afirmação
do tipo “os Fulanos dizem que as onças são gente”, é preciso ter claro que a proposição
“as onças são gente” não é idêntica a uma proposição trivial do tipo “as piranhas são
peixes” (isto é, “‘piranha’ é o nome de um tipo de peixe”). As onças são gente mas são
também onças, enquanto as piranhas não são peixes “mas também” piranhas (pois
elas são peixes porque são piranhas). As onças são onças, mas têm um lado oculto
que é humano. Ao contrário, quando você diz “as piranhas são peixes” não está
dizendo que as piranhas têm um lado oculto que é peixe. Quando os índios dizem que
“as onças são gente”, isso nos diz algo sobre o conceito de onça e também sobre o
conceito de gente. As onças são gente – a humanidade ou “personitude” é uma
capacidade das onças – porque, ao mesmo tempo, a oncidade é uma potencialidade
das gentes, e em particular da gente humana.
E aliás, não devemos estranhar uma ideia como “os animais são gente”. Afinal,
há vários contextos importantes em nossa cultura nos quais a proposição inversa, “os
seres humanos são animais”, é vista como perfeitamente evidente. Não é isto que
dizemos, quando falamos do ponto de vista da biologia, da zoologia etc.? E
entretanto, achar que os humanos são animais não te leva necessariamente a tratar
teu vizinho ou colega como você trataria um boi, um badejo ou um urubu. Do
mesmo modo, achar que as onças são gente não significa que se um índio encontra
uma onça no mato ele vai necessariamente tratá-la como trata a seu cunhado
humano. Tudo depende de como a onça o trate…
O que você quer dizer exatamente quando afirma que o perspectivismo não é um
relativismo?
Foi no diálogo com a Tânia que a questão surgiu, de que esse perspectivismo teria a
ver com o relativismo ocidental, que ele seria uma espécie de relativismo. Eu achava
que não era relativismo, e sim outra coisa. O perspectivismo não é uma forma de
relativismo. Seria um relativismo, por exemplo, se os índios dissessem que para os
porcos todas as outras espécies são no fundo porcos, embora pareçam humanos,
onças, jacarés etc. Não é isso que os índios estão dizendo. Eles dizem que os porcos
no fundo são humanos; os porcos não acham que os humanos sejamos no fundo
porcos. Quando eu digo que o ponto de vista humano é sempre o ponto de vista de
referência quero dizer que todo animal, toda espécie, todo sujeito que estiver ocupando
o ponto de vista de referência se verá a si mesmo como humano – nós inclusive.
Como bom estruturalista, o que você pensa dos caminhos trilhados pela
antropologia pós-Lévi-Strauss?
Sou um estruturalista, como todo bom antropólogo; só não sei se sou um bom
estruturalista… A minha impressão é que o estruturalismo foi o último grande
esforço feito pela antropologia para encontrar, como fizeram várias outras correntes
antes dele, uma mediação entre o universal e o particular, o estrutural e o histórico.
Hoje você vê uma divergência cada vez maior dessas duas perspectivas, elas estão se
tornando incomunicáveis. É como se a herança da antropologia clássica tivesse sido
dividida: os universais foram incorporados pela psicologia; os particulares, pela
história. Como se a antropologia fosse hoje apenas uma soma contingente de
psicologia e história, como se ela não tivesse um objeto próprio. Mas com isso se
perde, a meu ver, a dimensão própria de realidade do objeto antropológico: uma
realidade coletiva, isto é, relacional, e que possui uma propensão à estabilidade
transcontextual da forma. E isso me parece uma coisa que é preciso recuperar.
Acredito que a antropologia deva escapar da divisão para encontrar o “mundo do
meio”, o mundo das relações sociais.
Tendo em vista essa especificidade, como você pensa a diferença entre a antropologia
e a sociologia?
A antropologia é o estudo das relações sociais de um ponto de vista que não é
deliberadamente dominado pela experiência e a doutrina ocidentais das relações
sociais. Ela tenta pensar a vida social sem se apoiar exclusivamente nessa herança
cultural. Se vocês quiserem, a antropologia se distingue na medida em que ela presta
atenção ao que as outras sociedades têm a dizer sobre as relações sociais, e não,
simplesmente, parte do que a nossa tem a dizer e tenta ver como é que isso funciona
lá. Trata-se de tentar dialogar para valer, tratar as outras culturas não como objetos
da nossa teoria das relações sociais, mas como possíveis interlocutores de uma teoria
mais geral das relações sociais. Para mim, se há alguma diferença entre
antropologia e sociologia, seria esta: o objeto do discurso antropológico tende a estar
no mesmo plano epistemológico que o sujeito desse discurso.
Como é possível para a antropologia escapar do objetivismo hegemônico no
pensamento ocidental, esse pensamento domesticado?
A gente sabe, todo mundo que leu Kant sabe, que o ato de conhecer é constitutivo do
objeto de conhecimento. Ainda assim, nosso ideal de Ciência guia-se precisamente
pelo valor da objetividade: deve-se ser capaz de especificar a parte subjetiva que entra
na visão do objeto, e de não confundir isso com o objeto em si. Conhecer, para nós, é
dessubjetivar tanto quanto possível. Você conhece algo bem quando é capaz de vê-lo
de fora, como um objeto. Isso inclui o sujeito: a psicanálise é uma espécie de casolimite desse ideal ocidental de objetivação, aplicado à própria subjetividade. Nossa
ideologia básica é de que a Ciência será um dia capaz de descrever todo o real em
uma linguagem integralmente objetiva, sem resto. Ou seja, para nós a boa
interpretação do real é aquela em que se pode reduzir a intencionalidade do objeto a
zero. Sabemos que as ciências sociais, na ideologia oficial, são ciências provisórias,
precárias, de segunda classe. Toda ciência deve se mirar no espelho da física… O que
significa isso? Significa guiar-se pela pressuposição de que quanto menos
intencionalidade se atribui ao objeto, mais se o conhece. Quanto mais se é capaz de
interpretar o comportamento humano em termos, digamos, de estados energéticos de
uma rede celular, e não em termos de crenças, desejos, intenções, mais se está
conhecendo o comportamento. Ou seja, quanto mais eu desanimizo o mundo, mais
eu o conheço. Conhecer é desanimizar, retirar subjetividade do mundo, e idealmente
até de si mesmo. Na verdade, para o materialismo científico oficial, nós ainda somos
animistas, porque achamos que os seres humanos têm alma. Já não somos tão
animistas quanto os índios, que acham que os animais também têm. Mas se
continuarmos progredindo seremos capazes de chegar a um mundo em que não
precisaremos mais dessa hipótese, sequer para os seres humanos. Tudo poderá ser
descrito sob a linguagem da atitude física, e não mais da atitude intencional. Essa é a
ideologia corrente, que está na universidade, que está no CNPq, que está na velha
distinção entre ciências humanas e ciências naturais, que está na distribuição
diferencial de verbas e de prestígio… Não estou dizendo que este seja o único modelo
vigente em nossa sociedade. É claro que não é. Mas esse é o modelo dominante.
Em contrapartida ao esquema ocidental, o que move as epistemologias indígenas?
Eu diria que o que move o pensamento dos xamãs, que são os cientistas de lá, é o
contrário. Conhecer bem alguma coisa é ser capaz de atribuir o máximo de
intencionalidade ao que se está conhecendo. Quanto mais eu sou capaz de atribuir
intencionalidade a um objeto, mais eu o conheço. O bom conhecimento é aquele
capaz de interpretar todos os eventos do mundo como se fossem ações, como se
fossem resultado de algum tipo de intencionalidade. Para nós, explicar é reduzir a
intencionalidade do conhecido. Para eles, explicar é aprofundar a intencionalidade do
conhecido, isto é, determinar o objeto de conhecimento como um sujeito.
Até no nosso senso comum esse modelo é dominante…
Exatamente. “Sejamos objetivos.” Sejamos objetivos? – Não! Sejamos subjetivos,
diria um xamã, ou não vamos entender nada. O pecado epistemológico ali é a falta
de subjetividade. Bem, esses respectivos ideais ou modelos implicam ganhos e
perdas, cada um de seu lado. Há ganhos em subjetivar, como há perdas. Essas são
escolhas culturais básicas.
Que lugares sobrariam na nossa sociedade para um conhecimento menos objetivo e
mais intencional?
Você tem uma série de ideais alternativos, é claro, mas são casos dominados,
subalternos, ou então restritos a certas dimensões do real, que se vê ontologicamente
dualizado: ninguém prega, ou pelo menos ninguém leva muito a sério se alguma vez
alguém o pregou, que a Verstehen, a compreensão intersubjetiva, deva incluir as
plantas, as pedras, as moléculas ou os quarks… Isso não seria Ciência. Aquele ideal
de subjetividade que penso ser constitutivo do xamanismo como epistemologia
indígena encontra-se em nossa civilização confinado àquilo que Lévi-Strauss
chamava de parque natural ou reserva ecológica no interior do pensamento
domesticado: a arte. O pensamento selvagem foi confinado oficialmente ao domínio
da arte; fora dali, ele seria clandestino ou “alternativo”. Valorizada como seja a
experiência artística, ela nada tem a ver com o experimento científico: a arte é inferior
à ciência como produtora de conhecimento. Ela pode ser emocionalmente superior,
mas não é epistemologicamente superior. É essa distinção que não faz nenhum
sentido no que eu estou chamando de epistemologia xamânica, que parece proceder
mais de acordo com o modelo de nossa arte que de nossa ciência. O xamanismo,
como a arte, procede segundo o princípio de subjetivação do objeto. Uma escultura
talvez seja a metáfora material mais evidente desse processo de subjetivação do
objeto. O que o xamã faz é um pouco isso: ele esculpe sujeitos nas pedras, paus e
bichos, ele esculpe conceitualmente uma forma humana.
Como você vê os estudos atuais em antropologia urbana?
Não gosto da expressão “antropologia urbana”. Nada contra estudar em cidades,
evidentemente. Mas não gosto da expressão antropologia urbana, como não gosto de
antropologia suburbana, rural, silvestre, montanhosa, costeira, submarina. Mas não
creio que vocês estejam pensando em antropologia urbana no sentido de estudo dos
contextos sociais das grandes aglomerações humanas, que é antropologia como
outra qualquer. Vocês estão falando, suponho, da chamada “antropologia das
sociedades complexas”, das pesquisas sobre sociedades nacionais de tradição cultural
europeia (ou eurasiática). Boa parte do que se fez em antropologia das sociedades
complexas limitava-se a projetar para o contexto urbano os conceitos e o tipo de
objeto característico da antropologia clássica. Isso não foi muito longe, pois, para
fazer uma verdadeira projeção, teria que ser uma projeção no sentido geométrico da
palavra: o que se deve preservar são as relações, não os termos. Então, o
“equivalente” do xamanismo ameríndio não é o neo-xamanismo californiano, ou
mesmo o candomblé baiano. O equivalente funcional do xamanismo indígena é a
ciência. É o cientista, é o laboratório de física de altas energias, é o acelerador de
partículas. O chocalho do xamã é o acelerador de partículas de lá. Isso não quer
dizer que não devamos estudar candomblé ou neo-xamanismo, pois é evidente que
devemos. O que estou dizendo é, simplesmente, que uma verdadeira tradução da
antropologia das sociedades de tradição não-ocidental para a antropologia das
sociedades ocidentais deveria preservar certas relações funcionais internas, e não
apenas, ou mesmo principalmente, certas continuidades temáticas e históricas. Não
estou dizendo, insisto, que não se deva estudar parentesco, candomblé, xamanismo
urbano, pequenos grupos, interações face a face… O que estou dizendo é que uma
antropologia urbana que “fizesse a mesma coisa” que faz a etnologia indígena
(supondo que isso seja algo desejável, o que não é óbvio) estaria ou está estudando os
laboratórios de física, as multinacionais do setor farmacêutico, as novas tecnologias
reprodutivas, as grandes correntes de pensamento nas universidades, a produção do
discurso jurídico, político etc.
Então que tipo de produção você qualificaria como digna do título “antropologia das
sociedades complexas”?
Para ficarmos apenas nos nomes estrangeiros, evocaria autores tão diferentes como
Louis Dumont, Michel Foucault, Bruno Latour ou Marilyn Strathern. Eu veria o
trabalho de Foucault como mais representativo de uma autêntica antropologia das
sociedades complexas que, por exemplo, o estudo de Raymond Firth sobre o
parentesco em Londres. A antropologia apenas recentemente descobriu toda uma
nova área de “antropologicidade” das sociedades complexas que até então era reserva
cativa de epistemólogos, sociólogos, cientistas políticos, historiadores das ideias.
Contentávamo-nos com o marginal, o não-oficial, o privado, o familiar, o
doméstico, o alternativo. Fazia-se antropologia do candomblé, mas não havia
antropologia do catolicismo. Antropologia da religião de sociedades complexas é só
estudar culto afro-brasileiro? Por que não a CNBB? É claro que é mais fácil – e foi
absolutamente necessário —, num primeiro momento, transportarmos o que
aprendemos nos estudos de religião africana para os estudos sobre o candomblé.
Mas não estivemos aqui preservando as relações, só os termos. O segundo momento
está sendo perceber que há mais coisas a fazer do que transportar termos. Você pode
transportar relações, e ao fazer isso estará criando conceitos, algo que a antropologia
das sociedades complexas levou algum tempo para fazer. Até bem recentemente, a
antropologia estava muito marcada por aqueles conceitos produzidos em seu
contexto clássico: reciprocidade, feitiçaria, mana, troca, totem, tabu. Então os
antropólogos das sociedades complexas buscavam o mana aqui, o totemismo
acolá… Tudo bem, mas acho que dá para ir mais longe, e estamos efetivamente indo
mais longe: estamos começando de fato a fazer antropologia simétrica, que é
antropologizar o “centro” e não apenas a “periferia” da nossa cultura. O centro da
nossa cultura é o estado constitucional, é a ciência, é o cristianismo. Ser capaz de
estudar estes objetos é uma conquista recente da antropologia. A antropologia das
sociedades complexas teve o inestimável mérito de mostrar que o “periférico” e o
“marginal” eram parte constitutiva da realidade sociocultural do mundo urbanomoderno, desmontando assim a autoimagem do Ocidente como império da razão,
do direito e do mercado. Mas o próximo passo é analisar essas realidades mais ou
menos imaginárias que, de início, empenhamo-nos em deslegitimar. Não é mais tão
necessário deslegitimar essas coisas; agora o que é preciso é estudar seu
funcionamento.
Você acredita que sua obra possa contribuir para uma antropologia da sociedade
brasileira?
Não estou excessivamente familiarizado com a antropologia da sociedade brasileira.
Fui fazer etnologia para fugir da sociedade brasileira, esse objeto compulsório de todo
cientista social no Brasil. Como cidadão, sou brasileiro e não tenho nenhuma objeção
a sê-lo. Mas, como pesquisador, não acho que eu tenha de ter obrigatoriamente como
objeto a chamada “realidade brasileira”, essa curiosa e intraduzível noção. Não se
exige isso dos matemáticos ou dos físicos. Os físicos brasileiros não estão estudando
a realidade brasileira. Estão estudando, salvo engano (meu ou deles), apenas a
realidade. Por que um cientista social brasileiro não pode fazer a mesma coisa? O
Brasil é uma circunstância para mim, não é um objeto; e penso, igualmente, que o
Brasil é uma circunstância para os povos que estudo, e não sua condição fundante.
E o compromisso em relação às sociedades indígenas que você estuda?
Aqui é outra história. Acho que o Brasil, entenda-se, o Estado e as classes
dominantes, sempre se comportou de maneira ignóbil perante as populações
indígenas. Escolhi estudar os índios. Mas o meu compromisso com estes povos que
estudo não é um compromisso político, e sim um compromisso vital. Eu não faço
do meu compromisso com os índios, nem o objeto da minha pesquisa, nem sua
justificativa. Ele não é nenhuma dessas coisas; ele é a condição do meu trabalho, que
aceito e que nunca me pesou. Tenho grande desconfiança de justificações políticas da
pesquisa. Não acho uma coisa lá muito nobre justificar-se mediante um apelo, em
geral ostentatório, à importância política do que se está fazendo. Os perigos da
autoilusão e da autocomplacência são enormes. Por fim, tenho visto tantas vezes esse
tal de “compromisso político” sendo usado como uma espécie de tranquilizante
epistemológico… Confesso que não tenho nenhuma simpatia por isso. Eu nada tenho
contra os tranquilizantes, mas, quando se trata de pensamento, prefiro os
inquietantes.
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Sobre o autor
EDUARDO BATALHA VIVEIROS DE CASTRO nasceu em 19 de abril de 1951, no
Rio de Janeiro. Cursou a graduação em Ciências Sociais na PUC-RJ. Em 1974,
ingressou no Programa de Pós-graduação do Museu Nacional (UFRJ) com um
projeto de mestrado em antropologia urbana. Em 1976, uma breve visita a um
povo indígena, os Yawalapíti, desviou-o para a etnologia indígena. Terminou seu
mestrado em 1977, sob orientação de Roberto DaMatta, com uma dissertação sobre
esse povo aruaque do Alto Xingu. Em 1978, tornou-se docente do Museu Nacional,
onde é hoje professoradjunto de etnologia. Obteve seu doutorado na mesma
instituição, em 1984, com uma tese sobre a cosmologia dos Araweté, um povo tupiguarani do Pará, junto a quem residiu em 1981-1982 e com o qual mantém contato.
A tese, premiada pela Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências
Sociais (ANPOCS), foi publicada em 1986 no Brasil e em 1992 nos Estados Unidos.
Seu trabalho posterior versou sobre temas etnológicos como parentesco,
corporalidade, cosmologia e guerra, abordados em uma série de artigos, entre os
quais se destacam “Alguns aspectos da afinidade no dravidianato amazônico”
(1993), que teve grande impacto nos estudos de parentesco dessa região, e,
sobretudo, “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio” (1996),
cujo insight teórico influenciou a reflexão antropológica em todo o mundo, sendo
traduzido para diversas línguas.
O autor foi professor visitante nas universidades de Chicago (1991) e de Manchester
(1994). Em 1997-1998, ocupou a Cátedra Simón Bolívar de Estudos Latinoamericanos da Universidade de Cambridge, quando tornou-se também Fellow do
King’s College. Entre 1999 e 2001, trabalhou como diretor de pesquisa do Centre
National de la Recherche Scientifique (CNRS, Paris), junto à Equipe de Recherche
en Ethnologie Amérindienne, que o elegeu membro permanente. Foi também
professor e pesquisadorvisitante na Universidade de Paris X (Nanterre), na Ecole
Pratique des Hautes Etudes, na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales e na
Universidade de São Paulo. Em 1998, recebeu o Prix de la Francophonie da
Academia Francesa, e, em 2004, o Prêmio Érico Vanucci Mendes do CNPq.
Recebeu ainda, em 2008, a Ordem Nacional do Mérito Científico, concedida pela
Presidência da República e pelo Ministério de Ciências e Tecnologia.
Eduardo Viveiros de Castro é casado com Déborah Danowski, com quem tem uma
filha, Irene.
LIVROS
Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor/Anpocs, 1986
[republicado como From the enemy’ spoint of view: humanity and divinity in an
Amazonian society. Chicago: The University of Chicago Press, trad. de Catherine
Howard, 1992.]
Araweté: o povo do Ipixuna. São Paulo: CEDI, 1992.
Amazônia: etnologia e história indígena [organizador em colaboração com Manuela
Carneiro da Cunha]. São Paulo: NHII-USP/Fapesp, 1993.
Antropologia do parentesco: estudos ameríndios (org.). Rio de Janeiro: Editora da
UFRJ 1995.
Qu’est-ce qu’un corps? (Afrique de l’Ouest/Europe occidentale/NouvelleGuinée/Amazonie). Paris: Musée du Quai Branly/Flammarion, 2006.
[organizador em colaboração com S. Breton, J.-M. Schaeffer, M. Houseman e A.C. Taylor].
Encontros: Eduardo Viveiros de Castro (org. Renato Sztutman). Rio de Janeiro:
Azougue Editorial, 2008.
Métaphysiques cannibales. Lignes d’anthropologie post-structurale. Paris: PUF, 2009.
ARTIGOS E ENSAIOS
“As categorias de sintagma e paradigma nas análises míticas de C. Lévi-Strauss”.
Revista Tempo Brasileiro, nº. 32, 1973, pp. 112-31.
“Esboço de análise de um aforismo de G. Rosa”, in Luiz Costa Lima. A metamorfose
do silêncio: análise do discurso literário. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974.
“Romeu e Julieta e a origem do Estado” [em colaboração com Ricardo B. de Araújo],
in Gilberto Velho (org.). Arte e sociedade: ensaios de sociologia da arte. Rio de
Janeiro: Zahar, 1977.
“Pontos de vista sobre os índios brasileiros: um ensaio bibliográfico” [em colaboração
com Anthony Seeger]. Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais, 2,
1977.
“O conceito de cultura e o estudo de sociedades complexas” [em colaboração com
Gilberto Velho]. Artefato, Jornal do Conselho de Cultura do Estado do Rio de
Janeiro, i (1), 1978.
“Alguns aspectos do pensamento yawalapíti (Alto Xingu): classificações e
transformações”. Boletim do Museu Nacional (N.S.) antropologia no.26, abril
1978.
“Notas sobre a cosmologia yawalapíti”. Religião & Sociedade,3, novembro 1978.
“A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras” [em colaboração com
Anthony Seeger e Roberto DaMatta]. Boletim do Museu Nacional (N.S.)
antropologia nº. 32, maio 1979.
“A fabricação do corpo na sociedade xinguana”. Boletim do Museu Nacional (N.S.)
antropologia nº. 32, maio 1979.
“Quanto custa ser a metáfora de si mesmo: os paradoxos da identidade xinguana”.
Publicações Avulsas, nº. 1, Museu de Antropologia, UFSC, 1979.
“Terras e territórios indígenas no Brasil” [em colaboração com Anthony Seeger].
Revista Civilização Brasileira, 12, junho 1979.
“Two rituals of the Xingu”, in Howard Becker (org.). Exploring Society
Photographically (a catalogue to accompany an exhibition of the same title on
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“Índios, leis e políticas” in: S. Coelho dos Santos (org.). O índio perante o direito.
Florianópolis: Editora da UFSC, 1982.
“Hierarquia e simbiose em questão” [ensaio sobre Alcida Ramos, Hierarquia e
simbiose: relações intertribais no Brasil]. Anuário Antropológico, 81. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
“A autodeterminação indígena como valor”. Anuário Antropológico, 81. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
“Os deuses canibais: a morte e o destino da alma entre os Araweté”. Revista de
Antropologia, 27-28, 1984-85.
“Vingança e temporalidade: os Tupinambás” [em colaboração com Manuela
Carneiro da Cunha]. Journal de la Société des Américanistes, LXXI, 1985.
“Escatologia pessoal e poder entre os Araweté”. Religião & Sociedade, 13 (3), 1986.
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“Nimuendaju e os Guarani”, in C. Nimuendaju. As lendas da criação e destruição do
mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani. São Paulo: Hucitec,
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“Hidrelétricas do Xingu: o Estado contra as sociedades indígenas” [em colaboração
com Lúcia Andrade], in L. Ayer dos Santos e L. Andrade (orgs.). As hidrelétricas
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“Os povos indígenas do Médio Xingu” [em colaboração com Lúcia Andrade], in L.
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2005 [ed. bras.: São Paulo, Exo Experimental Org.].
Índice onomástico
ABBEVILLE, Claude d’ 22, 186, 197, 204, 206, 211, 214, 229, 230, 233-34, 255
ABREU, Capistrano de 186
ADLER, Alfred 465
AGOSTINHO, Pedro 40, 50, 55, 68, 74, 204
ALBERT, Bruce 23, 89, 98, 104, 106, 122, 133, 137-38, 142, 154, 158, 160, 163,
165, 168, 170, 177, 180, 247, 285, 323, 335, 339, 403, 410
ALEXIADES, Miguel 354, 395, 451
ALLEN, Nick 144
ALLIEZ, Éric 21
AMADIO, Massimo 113
ANCHIETA, José de 188-90, 199-203, 206, 208-10, 212, 216, 218, 221, 224, 22629, 231, 237, 242, 244, 246-51, 253-55, 257-59, 261
ANTÍSTENES 301
ÅRHEM, Kaj 99, 104, 133, 137, 145, 332, 347, 351-53, 357, 366-67, 370, 373, 378,
392
ARISTÓTELES 43, 138, 187, 301
ARVELO-JIMÉNEZ, Nelly 338
AUGÉ, Marc 219
AZPICUELTA 210-11, 218, 230, 249, 253-54, 257
BACHOFEN, Johann J. 309
BAER, Gerhard 350, 352, 354, 374, 387
BAETA NEVES, Luiz Felipe 190
BALÉE, William 319, 325-27, 330, 340-42
BARCELOS NETO, Aristóteles 43
BARNARD, Alan 21, 297
BARNETT, Anthony 148, 152
BARRY, Laurent 412
BASSO, Ellen [Becker], 40, 44, 48, 56, 62, 76, 82, 91, 108-11, 113, 127, 131-32,
134, 152-53, 338, 448
BASTOS, Rafael J. de Menezes 51, 73, 104, 131, 163, 333
BATAILLE, Georges 241
BAUDRILLARD, Jean 172
BECK, Brenda 115
BECQUELIN, Aurore ver Monod-Becquelin, Aurore
BELAUNDE, Luisa Elvira 334
BENEDICT, Ruth 302
BENVENISTE, Émile 83, 381, 396
BERGER, Peter L. 386
BIORD, Horacio 338
BIRKET-SMITH, Kay 391
BLÁZQUEZ 210-11, 213, 227, 231, 243, 244, 251, 254, 257, 259, 260
BOBBIO, Norberto 301
BODENHORN, Barbara 391
BOELSCHER, Marianne 348, 352
BORGES, Jorge L. 403
BOUCHARD, J.P. 22, 459
BOURDIEU, Pierre 192, 314
BOYER, Pascal 267
BRANDÃO, Ambrósio F. 258
BRIGHTMAN, Robert 352, 355, 391
BROWN, Michael 93, 101, 135, 299, 302, 304, 311, 339, 366, 373
BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio 185, 187
BUCHER, Bernadette 257
BUCHLER, Ira 111
CÂMARA 224
CAMPBELL, Alan 91, 113, 118
CARDIM, Fernão 207, 210, 214, 227-29, 237, 251
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela 20, 23, 89, 103, 154, 160, 166, 168-70, 183,
190, 225, 227, 320, 323, 395, 445, 469
CARNEIRO, Robert 20, 23, 89, 103, 154, 160, 166, 168-70, 183, 190, 225, 227,
320, 323, 329-30, 395, 445, 469
CARTRY, M., 21
CARVALHO FRANCO, G., 22
CHAGNON, Napoleon 247
CHAUMEIL, Jean-Pierre 22, 104, 163, 167, 175, 323, 351, 357, 459
CHENEY, Dorothy 385
CLASTRES, Hélène 103, 160, 171, 193, 205, 207-08, 210, 212-13, 219, 226, 238,
256, 289, 460
CLASTRES, Pierre 171, 219, 241, 256, 324, 333, 344, 460, 472, 476
CLIFFORD, James 196, 206
COELHO DE SOUZA, Marcela 23, 43, 403
COLLIER, Jane 159, 169, 174-77, 248, 427
COLSON, Audrey Butt 104, 105, 333
COMBÈS, Isabelle 207, 225, 255-57, 293, 338, 460
COMTE, Auguste 301, 306
CORREIA, Pero 199-200, 207, 209-10, 212, 214, 216, 222-23, 227, 239, 252
CROCKER, Jon Christopher 155, 323, 357, 362, 392
DAMATTA, Roberto 20, 23, 27, 56, 62, 72, 110, 132, 170, 204, 323, 332, 355, 387,
446
DAVID, Kenneth 125, 134, 143, 148, 322, 476
DELEUZE, Gilles 18, 21, 241, 373, 380, 385, 403, 407, 412, 434, 436, 453
DE MORGAN, Augustus 97
DENEVAN, William 326
D’EMILIO, Anna Lucia 113
DENNETT, Daniel 359, 360
DESCOLA, Philippe 23, 104, 141, 163, 166, 179, 286, 319-20, 327, 329, 333, 33537, 343, 348, 356-57, 361-63, 366-68, 370, 376, 466-67
DESHAYES, Patrick 42
DÉSVEAUX, Emmanuel 166, 442
DETIENNE, Marcel 21, 267, 270
DOLE, Gertrude 81, 108-09, 113, 122
DREYFUS, Simone 104, 114, 121, 160, 338
DUCHAMP, Marcel 89
DUMONT, Jean Paul 85
DUMONT, Louis 91, 97-99, 102, 110-11, 115-16, 119-20, 123, 125-27, 134-35,
142-44, 148, 151, 300, 307, 309, 409-10, 412, 424-26, 428-29, 490
DURHAM, William 327
DURKHEIM, Émile 192, 301, 303, 307, 309-10, 312, 396
EARLE, Timothy 307
EDWARDS, Jeanette 414
EGGAN, Fred 97
ERIBON, Didier 354
ERIKSON, Philippe 106, 112-13, 118-19, 149, 166-67, 175-76, 178-79, 323, 335,
337, 357, 372, 391
EVANS, Clifford 311, 328, 438, 476
EVANS-PRITCHARD, E. E. 311, 438, 476
ÉVREUX, Yves d’ 186, 197, 207, 211, 212
EWART, Elizabeth 417, 439, 454
FARAGE, Nádia 89, 104, 338
FARON, Louis 320-21, 331
FAUSTO, Carlos 20, 23, 89, 109, 111, 121-22, 131, 175, 179, 183, 219, 225, 332,
409, 451
FÉNELON COSTA, Heloísa 51
FERGUSON, R. Brian 246, 306, 340
FERNANDES, Florestan 225, 230, 240, 257, 438, 460
FERNANDEZ, Eduardo 339
FÈVRE, Lucien 214
FIELDS, Harriet 110, 123
FIENUP-RIORDAN, Ann 352, 394
FIRTH, Raymond 298, 311, 490
FORSYTH, Donald 338
FORTES, Meyer 298, 304, 310-12, 335
FOUCAULT, Michel 18, 490
FRANCHETTO, Bruna 43, 338
FREUD, Sigmund 89, 312
FREYRE, Gilberto 185, 187
GALLOIS, Dominique 207, 323, 339
GALVÃO, Eduardo 109
GANDAVO, Pero de Magalhães de 186, 232, 234, 236, 239, 242
GEERTZ, Clifford 191, 302
GEFFRAY, Christian 118
GELL, Alfred 359-61, 427
GIDDENS, Anthony 301, 314
GOLDMAN, Irving 351, 352, 388, 391, 393
GOLDMAN, Marcio 183
GONÇALVES, Marco Antônio 23, 89, 323
GOOD, Anthony 93, 99, 112, 115, 119, 121, 125, 127, 135, 143, 148
GOODENOUGH, William 96
GOW, Peter 18-19, 23, 106, 132, 153, 173, 205, 208, 215, 323, 334, 339-40, 348,
351, 387, 390, 393, 403, 442-43, 446-47, 451
GRÃ, Luís 200-01, 214, 217-18, 221, 225, 230, 249, 251-52
GRAY, Andrew 347, 395
GREGOR, Thomas 37-38, 40, 64, 72, 76-77, 79, 82, 109, 323, 351
GREGORY, Cris 308, 326, 359, 415
GRENAND, Pierre 338, 352
GUATTARI, Félix 18, 403, 407, 434, 436
GUÉDON, Marie-Françoise 352, 376, 379
GUSS, David 355, 442
HABERMAS, Jürgen 314
HACKING, Ian 404
HAGE, Per 425
HALLOWELL, A. Irving 352-53, 394
HAMAYON, Roberte 352
HAMES, Robert 322, 326-27
HARRISON, Simon 292-93
HECKENBERGER, Michael 327, 330
HEGEL, Georg W. F. 18-19, 301
HENDRICKS, Janet 338
HENLEY, Paul 108, 112-13, 319, 332
HÉRITIER, Françoise 91, 97, 132
HILL, Jonathan 338
HOBBES, Thomas 301
HOLENSTEIN, Elmar 144
HOLMBERG, Alan 166
HORNBORG, Alf 91, 107, 114, 121, 146, 155, 332
HOUSEMAN, Michael 23, 89, 122, 170, 267, 293, 348, 403, 433
HOWARD, Catherine 104-05, 152
HOWELL, Signe 352-53, 378
HUBERT, Henri 459-60
HUGH-JONES, Christine 107, 127, 134, 138, 323, 333, 443
HUGH-JONES, Stephen 23, 107, 204, 323, 329, 332-33, 352, 355, 367, 389, 392,
443, 449-50, 470-72
HUME, David 192
INGOLD, Tim 23, 209, 297, 303, 314, 337, 349, 356, 366-67, 381
IRELAND, Emilienne 45
JACKSON, Jean 104, 111, 319, 333
JAKOBSON, Roman 144, 424
JAMOUS, Raymond 151, 412
JARA, Fabíola 352
JOURNET, Nicolas 129
KANT, Immanuel 164, 486
KARADIMAS, Dimitri 442
KARIM, Wazirjaham 352
KEESING, Roger 127
KEIFENHEIM, Barbara 42, 335, 423
KELLY, José Antonio 440, 444, 451
KEMPTON, Willett 44
KENSINGER, Kenneth 42-43, 112, 121, 393
KIRCHOFF, Paul 90, 104
KOELEWIJN, Cess 394
KRACKE, Waud 113
KRAUSE, Fritz 348
KROEBER, Alfred 302, 303
KUPER, Adam 308, 311
LACAN, Jacques 31
LADEIRA, Maria Elisa 101, 106, 110, 132, 147, 156
LAKOFF, George 44
LASMAR, Cristiane 403, 450
LATHRAP, Donald 325, 329
LATOUR, Bruno 16, 23, 308, 315, 337, 348, 365, 384, 387, 398, 482, 490
LEA, Vanessa 23, 99, 101, 106, 147, 155, 332
LEACH, Edmund 97, 120, 137, 302, 304, 312-13, 330, 334
LEFORT, Claude 167, 292
LEIBNIZ, G. Wilhelm 380
LEITE, Serafim 186, 188, 192
LÉRY, Jean de 186, 194, 202, 215, 217, 218, 227, 229-30, 236
LESTRINGANT, Frank 190, 235, 239
LÉVI-STRAUSS, Claude 16-19, 23, 38, 48, 50, 57, 85, 94-95, 97-99, 101, 103, 107,
113, 115, 133, 136, 147, 151, 159, 166, 180, 194-95, 203-04, 220, 261, 263,
287, 292, 294, 298-99, 305-07, 312, 322, 324, 329, 331, 344, 347, 349, 354-55,
362-63, 366, 368-71, 381, 399, 403-04, 407-08, 413, 419, 423, 432, 434-39,
441-42, 463-66, 476, 479, 485, 488
LÉVY-BRUHL, Lucien 294
LIENHARDT, Godfrey 159
LIMA, Tânia Stolze 23, 178, 183, 323, 347-48, 352, 480
LIZOT, Jacques 172, 247, 281, 285
LLOYD, G.R. 138
LOPES DA SILVA, Aracy 101
LOUNSBURY, Floyd 101, 109
LOVEJOY, Thomas 325
LOWIE, Robert 90, 476
LUCKMANN, Thomas 386
LYON, Patricia 319
MAINE, Henry Summer 301, 307, 309-10
MALIK, Kenan 365
MALINOWSKI, Bronislaw 299, 302, 304, 311, 476
MARRIOTT, Mckim 444
MARX, Karl 22, 310, 375-76
MAUSS, Marcel 164, 305, 307, 403-04, 459-60, 471
MAYBURY-LEWIS, David 91, 100, 110, 322, 332-33, 439, 476
MCCALLUM, Cecilia 23, 106, 112-13, 131, 138, 141, 146, 166, 174, 334, 390
MCDONNELL, Roger 352, 372, 373
MEGGERS, Betty 325, 328,-29, 343
MEILLASSOUX, Claude 166, 415
MELATTI, Júlio Cezar 72, 112, 154
MENGET, Patrick 23, 89, 104, 106, 139, 163, 168, 190-91, 285, 289-90, 333, 335
MERRIFIELD, William 110, 123
MÉTRAUX, Alfred 185, 193, 225, 230, 236, 460
MOLINIÉ, Antoinette 20, 183
MONOD, Jean 50, 74, 156
MONOD-BECQUELIN, Aurore 20, 50, 74, 183
MONTEIRO, Jácome 207, 210, 228-31, 235, 250-51
MONTESQUIEU, Charles 306
MONTOYA, Antonio Ruiz de 203
MORAN, Emilio 325
MORGAN, Lewis 90, 97, 307, 309, 360, 406
MULLER, Jean-Claude 91
MURDOCK, George 91-92
MURPHY, Robert 166, 332
MYERS, Fred 113
NEEDHAM, Rodney 92, 110, 119, 424
NELSON, Richard 352
NIMUENDAJU, Curt 207, 223, 288, 476
NÓBREGA, Manuel 188-89, 193, 196, 198, 200, 209, 211-14, 216, 221, 224-25,
235, 242-45, 252-53, 257, 260-61
NUNES, Leonardo 199, 209
ORTNER, Sherry 314
OSBORN, Ann 352
OVERING (KAPLAN), Joanna 23, 89, 91, 93, 98-99, 102-04, 106, 108, 110, 113,
121, 129, 133, 142, 154, 158, 160-61, 163, 165, 167, 173, 175, 177, 179, 332,
334, 336, 354, 362, 392, 410-11, 413, 427
PAGDEN, Anthony 189, 190, 192
PARRY, Jonathan 426
PEDERSEN, Morten 471
PEIRCE, Charles Sanders 97, 153
PETITOT, Jean 464
PIRES 188, 199-200, 211, 213, 222, 224, 241, 243, 260
POCOCK, David 74
POLLOCK, Donald 113, 119, 395
POMORSKA, Krystyna 144, 424
POSEY, Daryl 327
PRANCE, Gilean 325
PRICE, David 129, 372
RADCLIFFE-BROWN, A. R. 93, 101, 135, 299, 302, 304, 366
RAMOS, Alcida 104, 204, 319, 338
REICHEL-DOLMATOFF, Gerardo 53, 352, 370
RENARD-CASEVITZ, France-Marie 104, 338, 353, 382, 384
RENSHAW, John 334
RIVAL, Laura 22, 342, 403, 447
RIVIÉRE, Peter 21-23, 89, 91-92, 98, 101-04, 107-08, 110-13, 118, 121-22, 12425, 127-30, 132, 137-38, 146, 152, 154, 156, 158, 160, 163, 168, 170, 172-74,
179, 319, 322, 329, 332-34, 336, 351, 367, 388, 394, 403, 408, 410, 413, 415,
418, 439-40
RODRIGUES FERREIRA, Alexandre 186, 243
RODRIGUES, Nelson 446
ROE, Peter 362, 439
ROOSEVELT, Anna 320, 327-31, 343
ROSALDO, Michelle 159, 169, 174-77, 248, 427
ROSCH, Eleanor 44
SAHLINS, Marshall 23, 113, 121, 137, 162, 171-72, 219, 224, 305, 309, 314, 375
SAIGNES, Thierry 104, 225, 257, 338
SALADIN D’ANGLURE, Bernard 352
SAMAIN, Etienne 55
SANTOS, Fernando 171, 323, 330, 334, 338
SAUSSURE, Ferdinand de 305, 373
SCHEFFLER, Harold 93, 101, 111, 121, 425
SCHIEFFLIN, Edward 352
SCHNEIDER, David 94, 309-10, 335
SCHULTZ, Harald 69
SCHWARTZMAN, Stephan 154, 395
SCHWERIN, Karl 98
SCOTT, Colin 352
SEARLE, John 364, 385-86
SEEGER, Anthony 20, 23, 27, 41, 44, 46, 51, 54, 62-63, 132, 323, 332, 362, 387,
389, 446
SELBY, Henry 111
SEVERI, Carlo 21, 267, 293
SEYFARTH, Robert 385
SEYMOUR-SMITH, Charlotte 98, 111, 113, 122, 166, 177
SHAPIRO, Judith 108
SHAPIRO, Warren 108, 118, 147-48, 150-51
SHERZER, Joel 319
SILVA, Márcio F. da 23, 89, 121
SOARES DE SOUZA, Gabriel 186, 225-26, 237, 251, 258
SPENCER, J. 21, 297, 301, 303, 307, 309
SPONSEL, Leslie 320, 322, 327
STADEN, Hans 22, 194, 218, 227-28, 229, 236, 255
STERPIN, Adriana 285, 287
STEWARD, Julian 299, 320-23, 329, 331
STOCKING JR., George 301, 306
STRATHERN, Marilyn 23, 168, 308, 312, 348, 359-60, 365, 374, 385, 414, 427,
440-41, 444, 490
TANNER, Adrian 352
TARDE, Gabriel 445
TAUSSIG, Michael 339, 351
TAYLOR, Anne-Christine 23, 89-90, 97-98, 104, 109, 111, 113-14, 126, 129, 133,
141, 149, 160-61, 163, 167, 170, 172, 179, 185, 285, 288-89, 319-20, 332, 335,
338, 372-73, 397, 403, 410, 412, 444, 447-48, 451
TCHERKÉZOFF, Serge 139
TEIXEIRA-PINTO, Márnio 23, 110, 323
THEVET, André 197-98, 200, 202, 204, 207, 214-15, 226, 228-30, 233, 251-52,
436
THOMAS, David 37, 108, 113, 121, 130, 137-38, 177
TÖNNIES, Ferdinand 307
TOOKER, Deborah 209
TOWNSLEY, Graham 106, 110, 146
TRAUTMANN, Thomas 91, 93, 111, 115, 116-17, 119, 124, 126, 134, 143
TRUBETZKOY, Nicolas 143-44
TURGOT, Anne R. J. 306
TURNER, Terence 101, 145, 147, 160, 177, 311, 333, 338-40, 342, 362, 374, 38889, 395, 415, 427, 429-30, 453-54
URBAN, Greg 319, 372
VAN VELTHEM, Lúcia 290, 323
VARELA, Francisco 344
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de 187
VASCONCELOS, Simão de 186
VERDON, Michel 301
VERNANT, Jean-Pierre 75
VERSWIJVER, Gustaf 338
VEYNE, Paul 217
VICKERS, William 322, 326, 327
VIEIRA, Antonio 183, 185, 188, 194, 214-15
VILAÇA, Aparecida 23, 89, 132, 158, 163, 165, 167, 170, 178-79, 285, 288, 323,
348, 352-53, 372-73, 388, 391-92, 395, 403, 446, 451
VILLALÓN, Maria Eugenia 104
VILLAS BOAS, Cláudio E VILLAS BOAS, Orlando 50, 68, 74
WAGLEY, Charles 109, 288
WAGNER, Roy 348, 356, 361, 365, 370, 404-05, 415, 427, 432, 440, 453
WEBER, Max 307
WEISS, Gerald 352, 356, 379, 395
WHITE, Leslie 299, 322-23
WHITEHEAD, Neil 19, 22, 331, 337-38, 340, 347, 384, 403
WHITHERSPOON, Gary 77
WITTGENSTEIN, Ludwig 387
WOLF, Eric 313
WOLFF, Francis 420
WRIGHT, Robin 338
YALMAN, Nur 98-99, 125, 148
ZARUR, George 51
Índice de figuras
FIGURA 1.1. Contrastes entre os modificadores
FIGURA 1.2. Escala dos modificadores
FIGURA 1.3. Os momentos da ontologia yawalapíti
FIGURA 2.1. O esquema dravidiano
FIGURA 2.2. O esquema australiano
FIGURA 8.1. A construção amazônica do parentesco
FIGURA 8.2. Bipartições do mito tupinambá
FIGURA 8.3. Bipartições do parentesco amazônico
FIGURA 8.4. Bipartições cosmológicas araweté
FIGURA 8.5. A assimilação do Outro (e a dissimilação de si)
FIGURA 8.6. A estrutura social kayapó
COLEÇÃO ENSAIOS
Eduardo Viveiros de Castro A inconstância da alma selvagem
Davi Arrigucci Jr. Coração partido: uma análise da poesia reflexiva de Drummond
Maurice Merleau-Ponty A prosa do mundo
Marcel Mauss Sociologia e antropologia
Pierre Clastres A sociedade contra o Estado
Ismail Xavier O olhar e a cena
Pierre Clastres Arqueologia da violência
Maurice Merleau-Ponty O olho e o espírito
Franklin de Mattos A cadeia secreta: Diderot e o romance filosófico
Antonio Arnoni Prado Trincheira, palco e letras
Eunice Ribeiro Durham A dinâmica da cultura: ensaios de antropologia
Otília Beatriz Fiori Arantes Mário Pedrosa: itinerário crítico
Eduardo Escorel Adivinhadores de água
Ronaldo Brito Experiência crítica
Fernando A. Novais Aproximações: estudos de história e historiografia
Jean-Paul Sartre Situações I: crítica literária
Alcides Villaça Passos de Drummond
Gérard Lebrun A filosofia e sua história
Lúcia Nagib A utopia no cinema brasileiro: matrizes, nostalgia, distopias
Alfonso Berardinelli Da poesia à prosa
Ismail Xavier Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome
Marthe Robert Romance das origens, origens do romance
Leopoldo Waizbort A passagem do três ao um: crítica literária, sociologia, filologia
Michael Hamburger A verdade da poesia
Bento Prado Jr. A retórica de Rousseau e outros ensaios
Claude Lévi-Strauss Antropologia estrutural
Jorge Coli O corpo da liberdade
Roy Wagner A invenção da cultura
Jorge de Almeida, Wolfgang Bader Pensamento alemão no século XX
Manuela Carneiro da Cunha Cultura com aspas
© E DUARDO VIVE IROS DE CAST RO
© COSAC NAIFY , 2002
Co o rd e n a ç ã o e d ito ria l
FLORE NCIA FE RRARI
Re visã o
RE NAT O SZ T UT MAN e E LIANE SANT ORO
Ca p a e p ro je to g rá fic o o rig in a l
RAUL LOURE IRO
Ilu stra ç ã o d a c a p a
CÉ LIA E UVALDO
Fo to s
E DUARDO VIVE IROS DE CAST RO
Fo to d o a u to r
KIKO FE RRIT E
Ad a p ta ç ã o e c o o rd e n a ç ã o d ig ita l
ANT ONIO HE RMIDA
1ª e d iç ã o e le trô n ic a , 2014
Nesta edição, respeitou-se o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Da d o s In te rn a c io n a is d e Ca ta lo g a ç ã o n a Pu b lic a c ã o (CIP)
(Câ ma ra Bra sile ira d o Livro , SP Bra sil)
Vive iro s d e Ca stro , E d u a rd o [1951– ]
A in c o n stâ n c ia d a a lma se lva g e m – e o u tro s e n sa io s d e
a n tro p o lo g ia : E d u a rd o Vive iro s d e Ca stro
Sã o Pa u lo : Co sa c Na ify, 2014
10 ils.
ISBN 978-85-405-0386-1
11-7962
CDD 306
Ín d ic e s p a ra c a tá lo g o siste má tic o :
1. An tro p o lg ia c u ltu ra l 2. Pa re n te sc o 3. Po vo s in d íg e n a s d o Bra sil 4.
E d u a rd o Vive iro s d e Ca stro
COSAC NAIFY
Ru a Ge n e ra l J a rd im, 770, 2.º a n d a r
01223-010 Sã o Pa u lo SP
[55 11] 3218 1444
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Ate n d ime n to a o p ro fe sso r [55 11] 3218 1473