DIREITOS HUMANOS NO BRASIL 3
Diagnóstico e perspectivas
Movimento Nacional de Direitos Humanos
Plataforma DhESCA Brasil
Processo de Articulação e Diálogo
Parceiros de MISEREOR no Brasil
DIREITOS HUMANOS NO BRASIL 3
Diagnóstico e perspectivas
Passo Fundo
2012
Organizações Promotoras:
Movimento Nacional de Direitos Humanos
Plataforma DhESCA Brasil
Processo de Articulação e Diálogo
Parceiros de MISEREOR no Brasil
Coordenação Geral:
Movimento Nacional de Direitos Humanos: Ricardo Barbosa de Lima
Secretaria Executiva do Projeto: Enéias da Rosa
Processo de Articulação e Diálogo: Júlia Esther Castro
Parceiros de MISEREOR no Brasil: Daniel Rech
Capa, Normatização e Diagramação: Diego Ecker
Revisão de Provas: Wanduir R. Sausen
Impressão e Acabamento: Gráfica Berthier
Coordenação da Edição: Paulo César Carbonari e Enéias da Rosa
Apoio: MISEREOR, EED e CESE
CIP – Catalogação na Publicação
D597
Direitos humanos no Brasil 3: diagnósticos e perspectivas /
Movimento Nacional de Direitos Humanos. et. al.
Passo Fundo : IFIBE, 2012.
464 p.: il. ; 24 cm.
ISBN : 978-85-99184-98-1
Inclui bibliografia
1. Direitos Humanos – Brasil. 2. Direitos fundamentais.
I. Movimento Nacional de Direitos Humanos, coord.
II. Título.
CDU: 342.7(81)
Catalogação: Bibliotecária Daniele Rosa Monteiro - CRB 10/2091
2012
Reprodução permitida para fins não comerciais
mediante autorização das organizações promotoras.
SUMÁRIO
Prefácio....................................................................................................................................... 9
Apresentação ........................................................................................................................... 15
PRIMEIRA PARTE
Aspectos gerais dos direitos humanos
Capítulo I: Macrotemas
Direitos humanos no brasil: a promessa é a certeza de que a luta
precisa continuar ......................................................................................................... 21
Paulo César Carbonari
Direito à participação: uma vontade que ainda esta a se realizar ....................... 37
Clóvis Henrique Leite de Souza
Jose Antonio Moroni
Paula Pompeu Fiuza Lima
Desenvolvimento e injustiças ambientais no Brasil .............................................. 53
Processo de Articulação e Diálogo (PAD)
Capítulo II: Temas
Diversidade e discriminação ..................................................................................... 69
Lúcia Xavier
Políticas públicas e promoção dos direitos humanos ........................................... 79
Alexandre Ciconello
Criminalização dos movimentos e lutas sociais no Brasil ................................... 93
Marco Apolo Santana Leão
Participação e controle social no Brasil ................................................................ 111
Jorge Alfredo Gimenez Peralta
Nara Aparecida Peruzzo
5
Direitos e violência: Tensões e fluxos no Brasil atual.......................................... 119
Melisanda Trentin
Evanildo Barbosa da Silva
Pedro Cláudio Cunca Bocayuva
Territorialidade e luta por direitos ......................................................................... 127
Sérgio Sauer
Gladstone Leonel da Silva Júnior
SEGUNDA PARTE
Enfoques específicos dos direitos humanos
Capítulo III: Direitos
Direito humano ao meio ambiente ....................................................................... 141
Melisanda Trentin
Maureen Santos
A conquista da água como direito .......................................................................... 151
Roberto Malvezzi
A realização do direito humano à alimentação adequada no Brasil ................ 163
Célia Varela
Clóvis Zimmermann
Jônia Rodrigues
O direito à cidade no Brasil no período 2008-2011
desafios para efetivação da agenda da reforma urbana ...................................... 177
Mércia Maria Alves da Silva
Orlando Alves dos Santos Junior
Cristiano Muller
A educação e a política de desenvolvimento:
o permanente desafio de superação das desigualdades educacionais .............. 195
Denise Carreira
Ester Rizzi
Salomão Ximenes
Suelaine Carneiro
Comunicação: um direito a ser reivindicado e conquistado no Brasil ............ 211
Bia Barbosa
Direito à memória, à verdade e à justiça ............................................................... 227
Rosiana Queiroz
Liberdade de expressão, culto e religião ................................................................ 239
Rafael Soares de Oliveira
Jorge Atilio Silva Lulianelli
6
Direitos sexuais e direitos reprodutivos no Brasil ............................................... 249
Maria Luísa Pereira de Oliveira
Direito humano à saúde no Brasil .......................................................................... 261
Valdevir Both
Democratização do acesso à terra:
direito da sociedade e dever constitucional do Estado ....................................... 275
Fernando G. V. Prioste
Tchenna Fernandes Maso
Acesso à justiça como sinônimo de paz:
um desafio à realização dos direitos humanos no Brasil.................................... 285
Léia Tatiana Foscarini
Da segurança pública à segurança cidadã: elementos para uma reflexão ...... 295
Luis Emmanuel Barbosa da Cunha
Rodrigo Deodato de Souza Silva
Valdênia Brito Monteiro
Mercado de trabalho no segundo mandato do presidente lula ......................... 307
Sérgio E. A. Mendonça
Capítulo IV: Sujeitos
Os direitos humanos dos trabalhadores e trabalhadoras do Brasil.................. 317
Eduardo Paludette
Direitos humanos das crianças e dos adolescentes no Brasil ............................ 323
Maria das Graças F. Cruz
LGBT e direitos humanos no Brasil ....................................................................... 333
Léo Mendes
Odílio Torres
Afrodescendentes e direitos humanos no Brasil.................................................. 347
Maurício Paixão
Direitos humanos dos/das migrantes .................................................................... 367
Serviço Pastoral dos Migrantes
Mudanças e permanências na vida das mulheres ................................................ 375
Silvia Camurça
Anotações sobre a situação dos povos indígenas no Brasil
no período de 2007-2010 ......................................................................................... 381
Denise da Veiga Alves
Adelar Cupsinski
Cleber Buzatto
Monitoramento dos direitos das pessoas com deficiência no Brasil ................ 395
Vida Brasil
7
A gestão das prisões no Brasil ................................................................................. 405
Rodolfo de Almeida Valente
Direitos humanos e povos tradicionais do Brasil ................................................ 417
Carlos Alberto Dayrell
João Batista de Almeida Costa
Aderval Costa Filho
Envelhecimento digno: um direito a ser conquistado ........................................ 443
Áurea Eleotério Soares Barroso
Idenéia Silveira dos Santos
Um olhar sobre a população em situação de rua
e direitos humanos no Brasil ................................................................................... 457
Várias Pastorais
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PREFÁCIO
Este livro caiu em minhas mãos como mais um daqueles alentados relatórios traçando com franqueza uma radiografia panorâmica da situação dos direitos humanos
neste vasto, belo e muito amado Brasil.
Mesmo para quem já tem a epiderme endurecida pela lida constante com as violações que ainda compõem a paisagem principal da nação, seja em 512 anos de Estado
brasileiro, seja em 24 anos de normalidade constitucional republicana, seja em 10 anos
de governos federais pautados por honesta sensibilidade social, a leitura dos 35 textos
aqui reunidos nada tem de repousante.
A cada página virada, as perguntas do leitor se repetem e avolumam: por que isso
ainda não mudou? Estamos realmente seguros de que um dia vai mudar? Qual a nossa
dose de responsabilidade nisso tudo? Qual a minha responsabilidade individual, como
pessoa e como militante?
Não que o livro seja um libelo acusatório. As denúncias estão presentes, sim, em todos
os artigos. Mas predominam amplamente as propostas e recomendações, a indicação clara
de caminhos para superar. O livro é um trabalho de construção. Escritos por especialistas e
militantes dos direitos humanos que se articulam em organizações pluralistas da sociedade
civil, os textos chegam a impressionar pela paciência com que aguardam posições mais corajosas do governo Dilma e de outras estruturas do aparelho de Estado.
Aliás, o livro chega a ser um roteiro para refletir sobre as possibilidades e múltiplas
barreiras estabelecidas em torno da oposição entre Estado e sociedade civil. Todos os
textos, sem exceção, abordam essa relação tensa. Alguns, como os escritos por meus
amigos e companheiros Carbonari e Ciconello, que tiveram papel destacado no planejamento e condução da histórica 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, em
2008, bem como na construção do PNDH-3, dedicam parágrafos inteiros ao tema.
O segundo desses autores abre seu texto com uma bela síntese sobre o que seja a
função do Estado. Ali parei minha leitura por uns bons momentos, notando o contraste
entre a definição quase idílica, muito positiva, ali apresentada, e aquela outra, clássica,
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assimilada por mim com profunda convicção na primeira juventude. Falo da leitura feita
por Marx e Engels a respeito do Estado como fruto das contradições inconciliáveis entre
classes sociais e instrumento de opressão de uma(s) sobre outra(s). Recordei, vagamente, uma das formulações do Manifesto de 1948 em que o Estado chega a ser reduzido a
um comitê executivo da burguesia.
Mesmo tendo em conta que esse meu marxismo juvenil permanece vivo em tudo
o que penso hoje, mas agora fundido ecleticamente com outras fontes de grande importância (às vezes brinco comigo mesmo me apresentando como marxista, cristão,
umbandista, um pouquinho judeu, freudiano, bobbiano e são-paulino), me perguntei se
o Estado é isso mesmo que o texto de Ciconello resume, ecoando aquelas belas páginas
iniciais de nossa Constituição Cidadã, promulgada em 1988 por Ulysses Guimarães com
o emocionante discurso em que lembrou e resgatou Rubens Paiva.
Ou se ainda estamos muito longe disso.
Antes de lembrar, nos próximos parágrafos, que a visão marxista sobre o Estado
não parou no que disseram seus fundadores, fiquei pensando sobre a enorme contribuição que uma leitura pausada destes 35 artigos traria aos dirigentes do Estado brasileiro,
indo da sua presidenta da República, até o performático STF; do Ministério Público federal e estadual aos senadores e deputados; de minha querida companheira e sucessora
leal, Maria do Rosário, aos atuais titulares de Minas e Energia, da Agricultura, Defesa,
Cidades e tantas outras pastas onde o rumor dos direitos humanos muitas vezes é recebido como ataque, e não como alerta vital.
Fiquei triste sentindo que essa leitura será altamente improvável. Eu mesmo, em
cinco anos e dez dias como ministro, dificilmente teria conseguido mais do que folhear
e ler algumas poucas páginas, talvez para conhecer o tom e decidir se precisaria dar alguma resposta ou não.
Se, por um sonho, todos os ministros de Dilma decidissem ler com atenção este
livro na íntegra, desacatando meu ceticismo, certamente alguns deles formariam a avaliação de que os artigos possuem exageros e visões unilaterais. Replico que sim, mas do
mesmo nível de exageros e unilateralismos que são inevitáveis em qualquer relatório
ou diagnóstico oficial. O ditado popular diz: o risco que corre o pau, corre também
o machado. E as distorções inevitáveis dos diagnósticos oficiais nem representam necessariamente um malfeito ou picaretagem do assessor ou mandatário. Sabendo-se que
qualquer trecho mais realista de um documento oficial vira manchete no Jornal Nacional para pronta utilização oportunista pelas forças políticas mais à direita, todos evitam
reconhecer aspectos negativos e cuidam de amplificar os positivos.
Com Gramsci, o pensamento marxista começou a falar em “Estado ampliado”, chave
conceitual que ajuda mais do que os textos de Marx e Lênin na busca de uma compreensão
teórica do que sejam governos como o de Lula e Dilma. Resultantes que são, em primeiríssimo lugar, das lutas pela democracia, por justiça social e pelos direitos humanos que
acumularam força a partir da segunda metade dos anos 1970, esses governos só podem ser
adequadamente compreendidos mediante um sereno exame de suas contradições.
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Por um lado, os últimos dez anos da evolução política brasileira configuram um
cenário profundamente inovador, inédito mesmo, com pouquíssimos experimentos internacionais aos quais recorrer como analogia. Nem as Frentes Populares da França e
da Espanha, nem a Viena Vermelha, nem a Guatemala de Jocobo Arbenz, o governo
João Goulart ou a Unidade Popular de Salvador Allende podem oferecer pistas muito
claras ao Brasil de Lula e Dilma a respeito de como e por onde caminhar, em que ritmo,
qual o trade-off necessário num jogo estratégico de avançar e recuar, demarcar e agregar,
disputar e conciliar.
O novo sempre produz angústias e desconfortos. A militância dos direitos humanos não pode sucumbir a qualquer desalento por isso. Afinal de contas, ninguém no
mundo trabalha mais pela busca do novo do que essa militância. O novo sempre gera
incertezas e sérias dúvidas, como as minhas neste prefácio.
O que fazer? Parar tudo e mergulhar em discussões conceituais até que se adquira
uma compreensão teórica desprovida de incertezas. Ou conviver com elas e seguir
apostando nas dinâmicas políticas concretas como eixo motor das mudanças, incluindo
todos os seus imprevistos, seus paradoxos e mesmo suas frustrações e decepções.
Vale lembrar, aqui, uma interessante formulação do cientista político Adam
Przeworski, polonês radicado nos Estados Unidos, que vincula o comportamento democrático à capacidade de conviver bem com as dúvidas e incertezas, ao contrário de
quem só consegue agir quando imbuído de certezas absolutas, perigosas como todos os
absolutos. Em resumo: lute e trabalhe bem suas incertezas e dúvidas para ser realmente
democrático, não se desfaça delas.
O barulhento episódio do PNDH-3 despontou, na virada 2009/2010, como ilustração perfeita de que o Estado, mesmo quando altamente ampliado e democratizado,
como na ocorrência brasileira com Lula, ainda exibe seus pontudos caninos quando
vislumbra, à sua frente, qualquer ameaça propondo avanços maiores na concretização
dos direitos de igualdade.
Um desses caninos aguçados, como bem discorre neste livro o texto de Bia Barbosa, foi representado pelo linchamento exercido contra o Programa pela mídia monopolista, absolutamente intocada em seus poderes políticos durante longos dez anos
de governos federais reformistas. Distorceu, deturpou e mentiu para inventar um outro
PNDH-3, muito diferente do real, que conteria um subversivo projeto autoritário, ditatorial, até bolchevique nas versões mais extremadas.
Uma revista como a Veja, por exemplo, chamou o secretário de Direitos Humanos de maluco e terrorista, aproveitando aquele semanário de ultra direita para projetar
como herói, mais uma vez, em citação com aspas, seu braço direito no Legislativo, o ínclito senador Demóstenes Torres, que evitou meios termos para chamar aquele ministro
de “psicopata ideológico”.
A poderosa Abert veiculou em estridente campanha do horário nobre, uma denúncia do PNDH-3 em que a ingênua recomendação contida no programa de se construir
um ranking de programas onde os direitos humanos fossem bem contemplados (para
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premiação, inclusive), assim como aqueles que incitavam a violações, era transformada
em algo completamente diferente: “O PNDH-3 propõe uma comissão do governo para
decidir quais programas violam direitos humanos...”. Quem se der ao trabalho de ler o
PNDH-3 constatará que no texto do decreto assinado por Lula não existe nenhuma referência a qualquer comissão de governo.
Mais uma vez na história, os meios de comunicação privados berravam em nome
da liberdade para se protegerem contra os perigos da igualdade, repetindo o cinismo da
primeira burguesia, que recusou enfaticamente à classe trabalhadora europeia, emergente no início do século 19, os mesmos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade
com que a nova elite tinha encurralado e derrubado a nobreza feudal.
A mídia foi a grande articuladora de um ataque que seguiu explosivo nas primeiras
semanas de 2010 e se manteve até maio daquele ano, quando uma alteração em poucos
itens do Programa, decidida pelo governo, amainou uma parte da histeria, sem extingui-la de todo nos meses que avançaram até o dia das eleições vencidas por Dilma, que teve
como uma de suas dificuldades maiores exatamente o festival de mentiras e o besteirol
reproduzido pela democrática mídia brasileira, que tinha o seu candidato naquela disputa.
Entrevistado, um bispo meu amigo declarou que o PNDH-3 queria retirar o Cristo
Redentor do topo do Corcovado, quando se propunha a retirada dos símbolos religiosos
das repartições federais, em obediência às disposições constitucionais sobre a laicidade
do Estado brasileiro.
Uma senadora do DEM – que nos dias de hoje é cogitada como possível ministra
de Dilma – chamou reiteradamente o PNDH-3 de “amontoado de sandices”, gritando
que invadíamos a esfera de autoridade do Judiciário, quando o Programa só clamava
pela não repetição de episódios como Corumbiara, Eldorado de Carajás, Dorothy Stang
e tantos outros.
O direito de uma mulher decidir sobre sua saúde sexual e reprodutiva, incluindo
as possibilidades de interrupção da gravidez já previstas em lei, foi atacado de maneira
fóbica até o ponto em que a histeria reacionária tomou conta de um candidato como José
Serra, que só abandonou seus ataques mentirosos quando nocauteado por Dilma num
debate televisionado.
As discórdias internas do governo Lula a respeito da Comissão Nacional da Verdade – estopim gerador de todos os ataques ao PNDH-3 – foram arbitradas com a introdução de mudanças que sigo avaliando como quase irrelevantes para um saldo global.
Prova disso é que, em menos de dois anos, as instituições brasileiras já mergulharam na
investigação das violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura de 19641985, multiplicam-se dezenas de comissões da verdade em todo o país, preparam-se
novos passos – inevitáveis e indispensáveis – na conclusão do processo que internacionalmente é conhecido como Justiça de Transição.
A mídia monopolista estruturou seu ataque ao PNDH-3 seguindo literalmente um
roteiro de nove pontos apresentado a Lula por um dos ministérios às vésperas do lan12
çamento oficial, roteiro esse que foi adequadamente “vazado” por alguém de dentro do
governo que pedia e queria o ataque de fora.
A edição revista do PNDH-3, publicada em maio de 2010 conjuntamente com
o envio ao Legislativo do projeto de lei instituindo a Comissão Nacional da Verdade,
incluiu arbitragens promovidas pelo presidente Lula para superar as desavenças interministeriais. Os recuos introduzidos não abalam em nada a natureza consistente do programa em seu conjunto, na opinião do prefaciador, que no entanto curvou-se respeitosamente perante a cobrança de todos os defensores de direitos humanos que discordaram
enfaticamente de qualquer alteração no texto original.
Os recuos mais injustos impostos ao texto, que tinha sido construído em longo e
amplo processo de diálogo democrático entre sociedade civil, Legislativo e Executivo,
foram exatamente os que recomendavam avanços nos compromissos da mídia com o
respeito aos direitos humanos. O próprio presidente da República, na mesa em que eram
decididas as modificações, ao ler pausadamente, por várias vezes, os itens do PNDH-3
que a mídia atacava como autoritários, mostrou-se surpreso, indignado e defendeu a
manutenção do texto original, sendo convencido pela maioria de ministros presentes
em favor da prudência, da cautela, da sinalização positiva frente à mídia adversária num
ano de eleições presidenciais.
Passaram-se as eleições de 2010, passaram-se as eleições municipais seguintes, está
passando o próprio julgamento midiático do chamado Mensalão, em que o STF curvou-se ao pré-julgamento imposto pela imprensa, deixando cada vez mais claro que o nó
principal a ser desatado nos próximos anos, para desbloquear os próximos avanços da
democracia e do respeito aos direitos humanos em nosso país está na imperativa batalha
pela democratização da mídia. Tinha razão, mais uma vez, o PNDH-3 em suas previdentes recomendações.
Os 35 artigos deste livro representam uma atualização, com pormenores e com
profundidade, do ponto em que se localiza hoje o Brasil nessa longa caminhada. O primeiro deles já apresenta uma lúcida síntese sobre isso, ecoando a conhecida recomendação de Norberto Bobbio: o problema fundamental dos direitos humanos em nossos dias
já não é o de fundamentá-los, e sim implementá-los.
Sem nenhuma ambição ou pretensão descabida, podemos sustentar com serenidade: o Brasil tem em mãos um Programa Nacional de Direitos Humanos, já em sua terceira versão histórica, que desponta como roteiro sólido para orientar todo o empenho
de implementação. A Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Navy Pilay,
já escreveu defendendo-o enfaticamente e recomenda seu estudo por todos os países
que decidem formular o seu programa, na esteira da recomendação da Conferência de
Viena de 1993.
Está claro que os movimentos sociais não podem aguardar de braços cruzados que
os avanços surjam do próprio governo Dilma. Não surgirão espontaneamente. Resultarão, isto sim, de uma adequada pressão para exigir a concretização do muito que ainda
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falta, começando pela vitalização do Comitê Interministerial de Monitoramento e da
concretização dos Planos Bienais formalmente prometidos, com todos os seus reflexos
no Orçamento.
Pressão adequada, na visão deste prefaciador, não poderá significar, em hipótese
alguma, tratar o governo Dilma como inimigo, o que traria deleite para as forças mais
reacionárias da política brasileira. E sim como um governo que encerra as contradições
que todos conhecemos e que, por sinal, já estavam presentes também no governo Lula
e até no de FHC.
Os avanços futuros também dependerão do exercício pelos movimentos sociais de
pressões sobre o Legislativo e o Judiciário. No primeiro deles, avolumam-se plataformas e
frentes fundamentalistas contra avanços nos direitos à igualdade racial, à diversidade sexual e à equidade de gênero, além de poderosos nichos ali mantidos pela mídia conservadora
para barrar qualquer avanço democratizador no marco regulatório das Comunicações.
No Judiciário, já antes da impressionante invasão do espaço eleitoral que o julgamento recente do chamado Mensalão evidenciou, em estreita parceria com os ditames
da mídia, abundavam decisões criminalizando os movimentos sociais e as lutas pela
terra, descaso ou cumplicidade com episódios de genocídio indígena, omissão reincidente perante a multiplicação dos crimes cometidos pela própria imprensa, incluindo o
linchamento de seus adversários políticos etc.
Nesse sentido, teria chegado o momento de realinhar a estratégia dos movimentos
sociais perante o Estado, fazendo com que o foco das pressões se distribua mais entre os
três poderes republicanos que compõem o núcleo desse grande aparelho político multitentacular, sem abrandar suas demandas perante o Executivo.
Por último – e o artigo de Carbonari aborda com clareza a questão – o avanço
dos direitos humanos depende também de um rigoroso auto exame dos movimentos
populares a respeito de suas próprias instalações e mecanismos: o que renovar, o que
fortalecer, o que corrigir.
Paulo Vannuchi
Ex-ministro de Direitos Humanos
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APRESENTAÇÃO
O presente relatório é uma iniciativa do Projeto Monitoramento em Direitos Humanos no Brasil. Este projeto é coordenado em parceria pelas redes Articulação de
Entidades Parceiras de Misereor no Brasil, Movimento Nacional de Direitos Humanos
(MNDH), Processo de Articulação e Diálogo entre as Agências Ecumênicas Europeias e
Parceiros Brasileiros (PAD) e Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos,
Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca Brasil). Atendendo ao objetivo inicial de ser
uma publicação de caráter periódico, este é o terceiro volume do Relatório, sucedendo o
primeiro, que foi lançado em 2003, e o segundo, lançado em 2007.
O Relatório tem como finalidade contribuir no monitoramento político da situação concreta dos direitos humanos com enfoque nos sujeitos de direitos. Neste sentido,
o foco do relatório não está em analisar determinadas políticas ou aspectos específicos
destas, mas sim em fazer reflexões abrangentes, com caráter analítico-político, podendo
conter estudos de caso, denúncias e recomendações. Este volume pretende analisar o
período de 2007 a 2011.
O terceiro Relatório Periódico sobre a situação dos direitos humanos no Brasil objetiva sistematizar leituras e compreensões dos sujeitos e das organizações da sociedade
civil que fazem o cotidiano das lutas por direitos humanos a fim de oferecer posicionamento político sobre a situação dos direitos humanos; subsidiar um processo formativo
e educativo que fortaleça os sujeitos populares na luta por direitos humanos; contribuir
com o fortalecimento da luta por direitos humanos construindo interação entre lutas locais e processos estaduais e nacionais; além, de oferecer sugestões e recomendações para
o enfrentamento dos problemas identificados, a fim de subsidiar a incidência política e
o controle social das políticas em diferentes áreas.
Para dar conta da finalidade e dos objetivos traçados para o terceiro Relatório Periódico, a coordenação em conjunto com mais de vinte organizações participantes no
Projeto estruturou o conteúdo em duas partes. A primeira parte versa sobre aspectos gerais dos direitos humanos e está dividida em capítulos que tratam de temas e macrotemas,
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buscando dar atenção para reflexões gerais e transversais que acumulem uma avaliação política da situação e das perspectivas dos direitos humanos no Brasil. São os seguintes: Direitos
Humanos; Democracia e Participação Popular; Desenvolvimento; Diversidade e Discriminação; Políticas Públicas; Criminalização dos Movimentos e Lutas Sociais; Participação e
Controle Social; Violência e Garantia de Direitos; Territorialidade e Luta por Direitos.
A segunda parte versa sobre enfoques específicos dos direitos humanos e está
dividida em capítulos que tratam de direitos e de sujeitos de forma a articular os direitos dos sujeitos específicos e a cada direito específico, diversos sujeitos. São os seguintes os direitos: Meio Ambiente; Água; Alimentação; Cidade; Educação; Comunicação;
Memória, Justiça e Verdade; Liberdade de Expressão, Culto e Religião; Direitos Sexuais
e Direitos Reprodutivos; Saúde; Terra; Acesso à Justiça; Segurança Pública; e Trabalho
e Renda. São os seguintes os sujeitos: Trabalhadores; Crianças e Adolescentes; LGBTs;
Afrodescendentes; Migrantes; Mulheres; Povos Indígenas; Pessoas com Deficiência; Populações Encarceradas; Populações Tradicionais; Idosos; e Populações de Rua.
A elaboração dos textos foi feita a muitas mãos, contando com a contribuição de
muitos autores e autoras ligados a centros de pesquisa e às organizações e movimentos
sociais. Os textos mesclam pesquisa acadêmica e leituras e posicionamentos práticos a
partir da experiência cotidiana da luta e da organização. Enfim, este Relatório constitui-se como um importante instrumento de monitoramento dos direitos humanos no Brasil. Oferece informações, denúncias e análises sobre uma ampla gama de temas e uma
rica plataforma de lutas pela garantia e realização dos direitos humanos no Brasil.
Coordenação do Projeto
Articulação de Entidades Parceiras de Misereor no Brasil
Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH)
Processo de Articulação e Diálogo entre as Agências Ecumênicas Europeias e Parceiros Brasileiros (PAD)
Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca Brasil)
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PRIMEIRA PARTE
Aspectos gerais dos direitos humanos
CAPÍTULO I: MACROTEMAS
DIREITOS HUMANOS NO BRASIL:
A promessa é a certeza de que a luta precisa continuar
Paulo César Carbonari*
Somente os que forem capazes de encarnar a utopia serão aptos para o combate decisivo,
o que pretende recuperar o quanto de humanidade já tivermos perdido.
Ernesto Sábato. Antes del fin, 1998.
Analisar a situação dos direitos humanos nos últimos anos de alguma forma equivale a identificar os avanços e limites do processo de construção de uma política nacional de direitos humanos, expressa especificamente no terceiro Programa Nacional de
Direitos Humanos (PNDH-3). O Programa representou, em certo sentido, a síntese de
convergência de um conjunto de lutas e de processos organizativos, por um lado, mas
também parece indicar para certa dificuldade de dar prosseguimento ao que foi conquistado. Interessa perguntar: 1) qual o lugar e o sentido da luta por direitos humanos?; 2)
que sentido tem a luta por direitos humanos no conjunto das lutas sociais?; 3) em que
medida se pode fortalecer as lutas populares na relação com as políticas?
Nossa tese central é que o processo do PNDH-3 é a expressão do histórico gap
vivido pela luta popular no Brasil quando se trata de processos de participação na formulação de políticas. O gap não está na dificuldade de transformar demandas/agendas
em políticas/normatividade/institucionalidade, nem na concretização destas; está sim
na permanência dos processos organizativos que mantêm vivas as demandas do campo
popular, com capacidade de incidir na política/normatividade/institucionalidade. No
caso específico, além de saber sobre a capacidade de efetivar o PNDH-3 , trata-se de
*
Conselheiro nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), doutorando em filosofia (Unisinos),
mestre em filosofia (UFG-GO) e professor de filosofia no Instituto Berthier (IFIBE, Passo Fundo, RS).
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saber em que medida se mantêm os processos organizativos de luta por direitos humanos com força para tensionar este processo de efetivação e, mais do que isto para gerar
novos processos, novas lutas e noas agendas para além dele. A questão está em refletir
sobre os caminhos da organização dos sujeitos de direitos e de suas lutas, identificando
no momento histórico as exigências para superar as perspectivas parasitárias típicas das
sociedades capitalistas e buscando espaço para a convivência humanizada na cultura e
também na relação com o ambiente natural, desafios prementes em nosso tempo. Por isso
é que dizemos, com ênfase, que a luta por direitos humanos, mesmo difícil, é necessária.
Compreender as contradições que demarcam este processo objetivando apontar
alternativas para a luta popular por direitos humanos é o núcleo do exercício reflexivo
que pretendemos fazer nesta análise. Para tal, contextualizamos a situação dos direitos
humanos; retomamos, em breves linhas, o processo que levou ao PNDH-3 e o estágio
de sua efetivação; e finalizamos indicando questões por nós entendidas como elementos para que a luta popular retome forças e capacidade organizativa. Esperamos, dessa
forma, contribuir com a reflexão e a ação em direitos humanos como prática de justiça
e de liberdade.
Contexto plural e complexo
O contexto geral que marca a luta pelos direitos humanos é plural e complexo. Nele
novos sujeitos de direitos comparecem ao espaço público e configuram compreensões
e agendas, além de novas lutas que, de alguma forma, se somam àquelas permanentes.
Isso porque, em direitos humanos, a diversidade dos sujeitos em luta, seja por reconhecimento, seja por bens, é marca estruturante e se traduz em agendas que radicam na
exigência de condições e oportunidades para que a dignidade humana seja efetivada no
cotidiano da vida de cada uma e de todas as pessoas.
Em termos gerais, salvos os grandes esforços sociais e das políticas governamentais no sentido de enfrentar a pobreza e a miséria nos últimos anos, o cotidiano da maioria do povo brasileiro é – e tem sido historicamente – marcado por um contexto
que inviabiliza a produção e a reprodução da vida, interdita a manifestação e a expressão necessárias à participação, desmoraliza e criminaliza lideranças e movimentos
sociais e ignora sujeitos.
A inviabilização da produção e da reprodução da vida se manifesta nos altíssimos graus de desigualdade e na pobreza insidiosa que atinge a milhões de pessoas,
afetando de forma mais dura a negros, mulheres e jovens, entre outros grupos. A situação vem melhorando – dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada mostram
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que nos últimos cinco anos houve redução tanto da pobreza extrema quanto da pobreza absoluta –, o que é motivo de alento, mas não de satisfação, pois a desigualdade
persiste.1 A pobreza, como já declarou a Organização das Nações Unidas (ONU), é
violação sistemática de vários dos direitos humanos e é fruto de um modelo de desenvolvimento altamente concentrador e excludente.
A interdição da manifestação e da expressão se revela na persistência da violência,
assim como na alta concentração dos meios de informação e de opinião. A violência
esgarça o tecido social e reproduz o medo, mantendo comunidades inteiras afastadas
da convivência em sociedade – condição básica para que possam se organizar e propor
livremente seus anseios e reivindicações. Associa-se a isso a alta concentração dos meios
de comunicação, que reagem negativamente a todo tipo de medida de socialização ou
de controle sob a alegação de que se trata de medidas de censura.2 Mas, instalam uma
censura privada, pautada por interesses nem sempre públicos. Assim, juntos, violência e
concentração dos meios de comunicação geram a interdição de milhões de pessoas, que
são impedidas de participar da vida pública com sua opinião livre.
A desmoralização e criminalização de lideranças e movimentos sociais vem sendo
usada como estratégia para conter a organização popular e, com isso, os avanços por ela
propostos. A desmoralização é uma forma de transformar lutas e pessoas em defensores
do anacronismo. A criminalização é uma maneira dura de instituições que foram criadas
para proteger a sociedade e seus direitos se tornarem agentes que propõe a “extinção”
de organizações populares – como fez, por exemplo, o Ministério Público gaúcho em
relação ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Organizações e lideranças
populares são essenciais à democracia por serem a manifestação da rebeldia, necessária
aos avanços da luta por direitos. Particulares e o Estado agem fora do direito, não em
nome da justiça e sim em nome de interesses e privilégios, contra os/as que se erguem
em luta por justiça, quando promovem a desmoralização e a criminalização.
Por fim, o “ignorar sujeitos” se manifesta no conservadorismo persistente, que até
aceita a diversidade social, contanto que não onere privilégios e, em alguns casos, inverte
posições, colocando a promoção de determinados grupos historicamente excluídos
como se fosse um privilégio. Os exemplos mais cristalinos deste tipo de postura vêm se
revelando: 1) no cerceamento do acesso a territórios por indígenas e quilombolas; 2) na
proposição da inconstitucionalidade das políticas de quotas para a população negra; 3) na
rejeição aos avanços propostos pelo movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis,
transexuais e transgêneros); entre outros. O discurso da igualdade – neste caso, contra1
2
O Censo 2010 do IBGE mostra que os 10% mais ricos têm renda média mensal 39 vezes maior que a dos 10% mais
pobres. Os 10% mais pobres ficam com apenas 1,1% do total de rendimento e os 10% mais ricos com 44,5% do total.
O rendimento médio do 1% mais rico era de R$ 16.560,92; a renda média mensal, considerando todos os rendimentos e todos os brasileiros, era de R$ 668; e metade da população tinha renda mensal de até R$ 375,00, valor inferior
ao salário mínimo oficial em 2010 (que era R$ 510,00).
Passo importantíssimo foi dado no sentido de dotar o país com uma legislação adequada de acesso à informação pública, o que inclui abertura de arquivos sobre violações de direitos humanos. Trata-se da Lei nº 12.527, de 18/11/2011.
23
ditoriamente à desigualdade real e à diversidade efetiva – é invocado como recurso de
invisibilização, quando não de inviabilização, desses sujeitos sociais. Por outro lado, o sentido do reconhecimento dos sujeitos está na pauta central da luta por direitos, mesmo que
isso não signifique colocá-lo em contradição com a luta por bens (materiais e simbólicos),
significa conjugá-las. A presença da diversidade exige muito mais que a visibilidade, ou
mesmo a simples afirmação da identidade, dos diversos agentes e grupos sociais.
Persiste, de modo geral, uma baixa percepção dos direitos humanos como conteúdo capaz de traduzir uma agenda social que afirme a cidadania e, ao mesmo tempo, expresse sinteticamente os anseios dos setores populares organizados e críticos. Revela-se
uma posição paradoxal sobre o significado dos direitos humanos e, em consequência, de
sua força para orientar a prática social e política.
O debate sobre o PNDH-33 revelou uma contradição importante: de um lado, os que
aceitam direitos humanos, quando os aceitam, apenas para si próprios ou para proteger
seus interesses; de outro, os que compreendem direitos humanos como conteúdo substantivo da luta cotidiana para que cada pessoa possa ser o que deseja ser e não como uns ou
outros gostariam que fosse. As elites insistem numa visão limitada dos direitos humanos.
Pode-se dizer que ficam entre uma posição completamente negativa e outra relativa.
A negativa identifica direitos humanos com a proteção do que chama de “bandidos
e marginais”, aquilo que de “pior” a sociedade produz. A segunda, usando um aparente
trocadilho, o “humanos direitos”, retoma as velhas fórmulas já experimentadas do reconhecimento restrito e que resultaram na eliminação física dos indesejáveis – o holocausto é o mais conhecido exemplo, mas a ele somam-se o extermínio dos indígenas e a
escravidão dos africanos. Essas posições querem fazer coincidir direitos com privilégios.
Ou seja, pretendem que direitos humanos sirvam de conteúdo legitimador da desigualdade e de sua permanência. Expressam-se, por exemplo, na defesa da pena de morte,
no já citado posicionamento contrário às quotas para negros, entre tantos outros temas,
todos marcadamente discriminatórios, segregacionistas e discricionários.
Alguns grupos ainda persistem em posições pautadas pelo universalismo abstrato
na compreensão dos direitos humanos. São orientados por noções metafísicas que,
mesmo reconhecendo a universalidade dos direitos humanos, vinculam-na à noção de
natureza humana. Esta última, por seu generalismo, ignora a diversidade e resulta por tomar exemplaridades como referência do que significa dignidade. Insistem em dizer que
os direitos humanos são “naturais” e “inerentes”. Essas posturas, em geral, são refratárias a
mudanças significativas no campo moral e jurídico e se manifestam contrárias, por exemplo, à descriminalização do aborto e à instituição da união civil de pessoas do mesmo sexo.
Outros se agarram às normas e reduzem direitos humanos àqueles que configuram como “fundamentais”, na tentativa de circunscrevê-los na positividade estrita da
lei. Trata-se de uma nova versão do velho positivismo jurídico na qual a norma, para
3
24
Ocupou as manchetes das diversas mídias do final de dezembro/2009 a praticamente maio/2010. Um estudo mais
acurado sobre o que significou este debate público ainda precisa ser feito.
que possa ter vigência, tem que ser precisa e objetiva. É claro que direitos humanos
requerem proteção normativa e que as normas devem ser objetivas. Isso, no entanto,
não significa restringi-los à “letra fria”. Esse tipo de visão aparece, por exemplo, quando
magistrados são acusados de defenderem posições ideológicas que alargam o conteúdo
da compreensão dos direitos e, especialmente, quando o fazem para proteger os setores
sociais excluídos.
Ainda há os que insistem em “direitos” e direitos uns mais e outros menos importantes, uns mais e outros menos urgentes. Ou seja, uns argumentam que os direitos
civis e políticos são primeiros e mais importantes que os direitos sociais, econômicos e
culturais, por exemplo. Numa sociedade marcada por carências, facilmente a cidadania
se vê forçada a fazer escolhas, a definir prioridades. Mas, prioridades não significam
necessariamente optar entre o disponível e o indisponível. Posições desse tipo abrem
mão dos avanços – e das dificuldades – implicados numa perspectiva interdependente e
indivisível dos direitos humanos. Elas se refletem nas opiniões de que o PNDH-3 trata
de muitos temas, indo além do que seria a tarefa dos direitos humanos, por exemplo.
Vem crescendo uma compreensão histórico-crítica dos direitos humanos. Esta
posição os entende como processo conflituoso apto a estabelecer condições ao reconhecimento dos sujeitos de direitos. Defendem que a dignidade humana não é uma
característica dispensável. Isso não significa dizer que todos nascem e que ela permanece imutável ao longo da vida, mas que vai ganhando conteúdos e conformações novas
como obra dos próprios seres humanos. Nesse sentido, os direitos humanos expressam
o que as pessoas precisam para viver e não estão disponíveis nem aos indivíduos, nem à
sociedade e nem ao Estado.
Essa compreensão subsidia a formação de agendas consistentes e que expressam os
anseios das organizações populares. Partem da posição de que os direitos humanos se
afirmam historicamente como luta por direitos, tendo nos sujeitos populares seus principais protagonistas. No debate sobre o PNDH-3 pode-se ver esse entendimento expresso largamente nos posicionamentos de organizações sociais, de intelectuais e personalidades comprometidas com o fortalecimento da perspectiva de que os direitos humanos
ganham efetividade no cotidiano da vida das pessoas, como substantividade e não como
mais uma adjetivação.
Em termos institucionais, crescem as iniciativas para que os direitos humanos ganhem força programática, se transformem em agenda de atuação da sociedade e também do Estado. Para isso, o PNDH-3 pode ter sentido como um poderoso instrumento,
especialmente por articular diversos temas e perspectivas e por ter sido publicado com
amplo apoio dos diversos setores do governo – são 31 os Ministérios que o assinam junto
com o Presidente da República – além de se pretender uma política de Estado.
Mas, o movimento de institucionalização dos direitos humanos é relativamente
recente no Brasil e pode-se dizer que foi inaugurado pela Constituição de 1988. Nesta
esteira, a comitiva do Estado e da sociedade civil que participou da Conferência de Viena,
25
em 1993, ao retornar, construiu o que ficou conhecido como Agenda Brasileira de
Direitos Humanos. Isto ensejou a implementação de várias iniciativas, entre as quais os
PNDHs – o primeiro é de 1996 e o segundo de 2002, sendo o terceiro de 2009. A prática
de políticas como forma de assumir a complexa responsabilidade do Estado em matéria de direitos humanos exige desenvolver ações de forma sistemática e articulada que
visem reconhecer, respeitar, garantir, promover e proteger os direitos, além de reparar
violações. Ademais, determina que, considerando a natureza federativa do país, haja
compromisso também dos Estados e dos Municípios.
As políticas governamentais, de modo geral, ainda estão longe de se constituirem
em políticas de Estado e de terem capacidade de resposta sistemática. O que se vê muito
é a ação “socorrista”, aquela que é reativa às circunstâncias, sobretudo em se tratando
de situações de violações. Soma-se a isso que a maioria das políticas sequer se entende
como de direitos humanos, não sendo formuladas nesta perspectiva. Nesse campo, a
formulação das políticas ainda tem um longo caminho a percorrer para que seja orientada pelos direitos humanos. Alguns casos já avançam nesta direção, como a política de
atenção à criança e ao adolescente, ao idoso e às pessoas com deficiência. Todavia, se
considerarmos as pautas temáticas, como saúde, educação, moradia, alimentação, assistência, previdência, trabalho, cultura, ciência e tecnologia e tantas outras, pode-se notar
que, em grande medida, elas sequer incorporaram a gramática dos direitos humanos,
havendo, em alguns casos, até resistência.
No campo da execução é fundamental que se considere a centralidade do orçamento público. Mesmo que venha crescendo a presença de programas e ações de direitos
humanos, os ajustes fiscais são privilegiados, não existindo a perspectiva de direcionar
prioritariamente os recursos públicos para a realização de direitos. Um dos principais
instrumentos do ciclo orçamentário, o Plano Plurianual, por exemplo, ainda tem uma
compreensão restrita dos direitos humanos, já que vislumbra apenas as ações feitas junto
a grupos e segmentos sociais excluídos, atendo-se praticamente a programas e ações das
Secretarias Especiais. Essa constatação mostra que ainda há muito a ser feito, considerando inclusive os compromissos assumidos com a publicação do PNDH-3, para que o
orçamento público traduza as intenções com a realização de políticas de direitos humanos de forma ampla e sistêmica.
A Constituição Federal introduziu importantes instrumentos para promover a
participação direta da sociedade civil organizada em espaços públicos – Conferências,
Conselhos e outros – a fim de que seja efetivado o controle social das políticas. Todavia,
quando se trata de observar a centralidade do papel dos Conselhos, mesmo que existam
em várias áreas e sobre os mais diversos temas, esses ainda são poucos e frágeis no campo específico dos direitos humanos. Prova concreta disso é que o Projeto de Lei que institui o novo Conselho Nacional de Direitos Humanos tramita no legislativo desde 1994 e
que somente 14 Estados têm Conselhos de Direitos Humanos constituídos, mesmo que
não estejam satisfatoriamente em funcionamento.
26
A garantia da participação da sociedade no controle social de políticas requereria
também acesso público amplo às informações, permitindo o diagnóstico de situações e
mesmo condições de avaliação das ações realizadas. No que tange aos direitos humanos,
ainda engatinha a formulação de indicadores consistentes e capazes de subsidiar a elaboração de diagnósticos da situação e de orientar de forma sistemática a elaboração das
políticas. O acesso a informações sobre execução das políticas, inclusive do orçamento,
ainda é restrito e direcionado, o que efetivamente impede o empoderamento dos sujeitos
sociais que participam das instâncias, comprometendo a efetividade desses espaços.
O desafio sugerido pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH)4 e
aprovado pela IX Conferência Nacional de Direitos Humanos, em 2004, ainda persiste:
sem que se avance na implantação de um Sistema Nacional de Direitos Humanos capaz
de articular e orientar sistematicamente os instrumentos, os órgãos e as ações de direitos humanos estar-se-á longe da desejada ação programática em direitos humanos. O
PNDH-3 é um avanço fundamental, necessário, mas insuficiente para que as políticas
públicas sejam pautadas pelos direitos humanos e que os direitos humanos se convertam
em conteúdo programático das políticas, ou seja, para que se possa dizer que o Brasil
tem uma política nacional de direitos humanos.
Impasses do processo de construção da política de direitos humanos
A construção do PNDH-3 resultou de amplo processo do qual participaram diversos agentes e lideranças de todo o País. A dinâmica da 11ª Conferência Nacional
de Direitos Humanos, realizada em dezembro de 2008, as consultas feitas ao longo da
elaboração, em 2009, e a convergência das mais de 50 conferências nacionais que nos
anos anteriores traçaram diretrizes políticas para vários temas, fazem do texto publicado
em 21 de dezembro de 2009 um marco democrático no caminho da efetivação de uma
política nacional de direitos humanos.
O sentido fundamental de um PNDH-3 é que, com ele, aprofunda-se o compromisso do Estado com a responsabilidade na realização dos direitos humanos. O mais
central ainda é que o PNDH-3 será ainda mais significativo se conseguir que os direitos
humanos ganhem efetividade no cotidiano da vida das pessoas, sem com isso pretender
substituir as lutas populares.
A luta pela realização dos direitos humanos, mesmo relativamente recente, tem
uma trajetória histórica marcada pelo protagonismo das organizações e movimentos
populares. As organizações de direitos humanos de todo o Brasil vêm pautando das mais
diversas formas a necessidade de uma política nacional de direitos humanos, enquanto
4
Ver MNDH. Sistema Nacional de Direitos Humanos. Brasília: MNDH, 2004 [Caderno de Estudos]. Comentamos a proposta em CARBONARI, Paulo César. Realização dos direitos humanos. Coletânea de referências. Passo Fundo: IFIBE, 2006.
27
também permanecem na construção da agenda popular de luta por direitos humanos.
A história recente do Brasil mostra que os direitos humanos foram antes uma aspiração
e uma luta dos setores populares e, muito depois, uma agenda incorporada pelo Estado.
A resistência à ditadura militar, o florescimento de diversas organizações populares, a Constituição de 1988, a adesão aos sistemas protetivos internacionais e os vários
processos para efetivar políticas de direitos humanos têm as organizações populares
como agentes centrais. Elas é que serviram de fermento e de fomento para que os avanços democráticos em matéria de direitos humanos convergissem para uma maior responsabilização do Estado. A Agenda Brasileira de Direitos Humanos (1994), pactuada
pelos agentes do Estado e da sociedade civil que estiveram na Conferência de Viena (em
1993), resultou em várias iniciativas de políticas, entre as quais os Programas Nacionais.5
Mas isso não necessariamente significou maior compromisso do Estado e do conjunto
da sociedade com os direitos humanos, visto que ainda há grande resistência tanto de
setores do Estado e de governos quanto de setores conservadores da sociedade.
Neste sentido, pode-se dizer que o advento do PNDH-3, considerando sua abrangência, complexidade e a abordagem transversal dos direitos em relação ao conjunto das
políticas, constitui-se na síntese de um processo histórico que pode ensejar um novo
alento à luta por direitos humanos no Brasil.
Na aspiração dos setores populares que ajudaram a formatá-lo está a expectativa de
que possa se converter em balizador de uma nova agenda pública para o País. Em grande medida, esta aspiração coincide com a expectativa da sociedade – mesmo que não
àquela dos setores conservadores, que rapidamente perceberam esta possibilidade e reagiram de forma contundente exatamente aos pontos que indicam avanços estruturantes.
Considerando que é um Decreto do poder executivo, também coincide com a vontade
do governo, o que não significa que coincida com o que será a atuação do Estado (o conjunto dos poderes e das esferas administrativas).
Um exemplo desta distância é o Plano Nacional de Educação (PNE). O Projeto de
Lei nº 8.035, encaminhado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional em dezembro
de 2010, estabelece o Plano Nacional e Educação para os próximos dez anos (2011-2020).
É um documento enxuto e objetivo se comparado ao primeiro PNE (Lei n° 10.172/2001).
Porém, a proposta, estranhamente, sequer faz referência – nem usa o termo – aos direitos
humanos em geral e à educação em direitos humanos, em particular. Isto caracteriza uma
situação de ausência dos direitos humanos. Mais do que isso, uma clara ausência de coordenação entre as políticas, até porque o PNDH-3 prevê uma série de ações neste campo
e, considerando que o PNE é uma forma de aplicação no campo específico da educação,
se teria que esperar ao menos alguma relação de referência entre eles. No PNDH-3 está
5
28
Detalhamos com mais precisão esta reconstrução em CARBONARI. Paulo César. Direitos Humanos no Brasil: uma
leitura da situação em perspectiva. In: MNDH/DhESC Brasil/PAD/Misereor/CERIS. Direitos Humanos no Brasil 2:
Diagnóstico e Perspectivas. Rio de Janeiro: Ceris/Mauad, 2007, p.19-66, atualizado para a publicação em ROQUE, Átila
e COSTA, Luciana (Org.). Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas. Brasília: INESC, 2007, p. 86-103.
previsto um eixo inteiro dedicado à Educação em Direitos Humanos (Eixo Orientador
V), com cinco diretrizes (nº 18, 19, 20, 21 e 22), objetivos estratégicos e mais de 50 ações
programáticas, das quais pelo menos a metade está diretamente voltada para a educação
escolar (básica e superior), além de previsões relacionadas à educação nos vários outros
eixos do Programa. Deste também o Ministério da Educação é um dos signatários. Assim
fica difícil entender que o mesmo governo lance dois documentos referenciais de políticas,
no prazo de um ano, sendo que o posterior tenha qualquer relação expressa com o anterior.
No mínimo o PNE teria que fazer referência aos compromissos assumidos no PNDH-3 no
que diz respeito à educação, dando-lhe consequência.
O que se vislumbrou no seguimento do PNDH-3 foi a constituição de um processo parcial de monitoramento no qual a participação da sociedade civil foi tida por
secundária e suplementar.
O Decreto nº 7.037, de 21/12/2009, que aprovou o Programa Nacional de Direitos
Humanos (PNDH-3) estabelece, em seu artigo 3º que; “As metas, prazos e recursos necessários para a implementação do PNDH-3 serão definidos e aprovados em Planos de
Ação de Direitos Humanos bianuais”. No artigo 4º, que institui o Comitê de Acompanhamento e Monitoramento do PNDH-3 formado exclusivamente por órgãos do Poder
Executivo, que pode “convidar representantes dos demais Poderes, da sociedade civil e
dos entes federados para participarem de suas reuniões e atividades” (parágrafo 4º do
mesmo artigo). Entre as finalidades deste Comitê está, no inciso II, “elaborar os Planos
de Ação dos Direitos Humanos” e, no inciso III, “estabelecer indicadores para o acompanhamento, monitoramento e avaliação dos Planos de Ação dos Direitos Humanos”.
A leitura sistemática desta previsão indica que a principal tarefa do Comitê é a elaboração dos Planos de Ação e o que deles é decorrente [articulação, inciso I; indicadores,
inciso III; acompanhamento, inciso IV; e regimento interno, inciso V], entre as quais o
sistema de seu acompanhamento, monitoramento e avaliação. Assim, a agenda deste
Comitê, instalado em meados de 2010, deveria estar exatamente centrada nesta tarefa:
a de elaboração dos Planos de Ação. Os Planos de Ação de Direitos Humanos têm uma
natureza bem específica e determinada: estabelecer as metas, prazos e recursos necessários para implementação do PNDH-3.
O fato é que estes Planos deverão tomar o que está estabelecido no conjunto do
PNDH-3, como expectativa programática e de longo prazo [dez anos] e traduzir em
efetivação para um período histórico determinado, no caso, dois anos, de tal forma a incidir concretamente na orientação das políticas a serem implementadas. O Decreto fala
em Planos, não esclarecendo se o plural se refere ao fato de serem vários no período de
vigência do PNDH-3 [o que equivaleria a cinco, considerando serem bienais e que a vigência do PNDH-3 é de 10 anos] ou se abre a possibilidade de haver vários Planos dentro
de um mesmo biênio [por exemplo, um plano para cada um dos Eixos Orientadores].
Por isso, definir uma posição político-metodológica a este respeito seria essencial como
“preliminar” para orientar as elaborações a serem empreendidas.
29
O essencial a ser esperado dos Planos é que estabeleçam metas, prazos e recursos
necessários para a implementação do PNDH-3 dentro de um biênio. A questão que
se coloca é: sim, seria o caso de implementar todo o previsto no PNDH-3 em um biênio ou de “escolher” o que está previsto para 10 anos indicando o que será feito em
dois anos? O texto do Decreto não deixa dúvidas sobre isso: trata-se de implementar o
conjunto do PNDH-3. Ou seja, a questão é identificar uma dinâmica histórica e cumulativa para realizar o previsto no PNDH-3. Assim não fosse, o próprio PNDH-3 teria
estabelecido o prazo para cada uma de suas ações. Para isso, será necessário tomar
o conjunto do PNDH-3 e completar a sua formulação no sentido de estabelecer uma
estratégia de conjunto traduzida em períodos históricos mais curtos, identificando o
que será feito em cada uma das ações programáticas nele previstas em cada um dos
Planos de Ação. Assim, é necessária uma análise minuciosa de cada ação programática contida no PNDH-3, para identificar metas periódicas, bienais, deveria ser este o
exercício político-metodológico a ser construído.
A definição construída deveria ensejar a formatação da previsão dos recursos para
sua correta e suficiente implementação, dialogando com o Ciclo Orçamentário, sob pena
de ficar completamente prejudicada a terceira tarefa de implementação que é a de viabilização dos recursos necessários, podendo vir a comprometer os Planos de Ação.
Qualquer outra posição político-metodológica resultaria em “fatiamento” do
PNDH-3 e, em consequência, na produção de sérios danos à sua correta efetivação. Está
longe de qualquer compreensão do previsto no Decreto imaginar que a elaboração dos
Planos de Ação confronte o previsto no PNDH-3 com as disponibilidades políticas e
orçamentárias para um determinado período, no sentido de “ver o que se pode fazer”
dentro das previsões. A lógica do Decreto indica o inverso: é o PNDH-3 que deve ditar
o que deve ser feito no período, informando e conformando, a construção das políticas
públicas e sua consequente previsão de recursos [orçamentários].
No que diz respeito à participação da sociedade civil na elaboração dos Planos de
Ação, uma interpretação estreita e literal do Decreto poderia levar à compreensão de
que é tarefa do Comitê restringindo a participação à “vontade” deste, já que a ele cabe a
prerrogativa de “convidar”, não havendo qualquer previsão normativa de que este processo “deva” contar com a participação direta e efetiva das organizações da sociedade
civil [de outros poderes e de outros entes federados]. Todavia, em termos sistemáticos,
considerando o processo de elaboração do conjunto do PNDH-3, é de se esperar uma
interpretação menos estreita e que se traduza na previsão de participação sistemática e
consistente da sociedade civil na elaboração dos Planos de Ação.
Para isso, é necessário elaborar e implementar uma estratégia político-metodológica. Ou seja, é tarefa do Comitê instituído pelo Decreto formular e implementar uma
política de participação da sociedade civil no processo de acompanhamento, de monitoramento e de avaliação da implementação do PNDH-3. Isto implica em prever espaços,
momentos, dinâmicas, canais e interlocutores de tal forma transparentes que todas as
organizações interessadas, em qualquer momento do processo, possam vir a fazê-lo, sem
precisar aguardar qualquer tipo de “beneplácito”. Ela não pode ficar restrita ao “convite
informal” para a participação nas reuniões do Comitê. Esta iniciativa seria necessária,
30
mas longe de ser suficiente para que a participação consagrada no processo de elaboração do PNDH-3 possa também se traduzir na dinâmica de sua implementação. Também
não há notícia de que tenha havido processo sistemático e participativo na elaboração
do Plano Plurianual 2012-2015, ficando em aberto a possibilidade de articulação entre a
política de direitos humanos e o principal instrumento de planejamento estratégico do
conjunto da ação do governo.
O MNDH, em sua Carta Aberta publicada em abril de 2010, pedia ao governo a
“abertura imediata de processo público e participativo para a elaboração do primeiro Plano Bienal previsto no artigo 3º do Decreto que instituiu o PNDH-3”, entre ouros
aspectos. Mas isso não se efetivou. O fato é que as expectativas, até onde se tem notícia
pública, não foram satisfeitas, ficando o processo comprometido no sentido da participação significativa e sistemática. No término do primeiro biênio de implementação
do PNDH-3, em dezembro de 2011, sequer foi publicado um Plano e, ao que parece,
menos ainda se avançou nos processos consistentes e públicos de sua implementação,
monitoramento e avaliação.
Este processo fica ainda mais comprometido visto que não houve movimentos significativos na votação do Projeto de Lei que cria o novo Conselho Nacional de Direitos
Humanos e tramita no Congresso desde 1994. O fato de não ter sido constituído este
importante fórum de participação e controle social da política de direitos humanos deixa o processo de efetivação da política nacional de direitos humanos a meio caminho,
dado não contar com um espaço legítimo de participação e controle social o que, aliás, é
previsão constitucional e já prática em outras áreas de políticas.
A pergunta que fica é: afinal, o que está sendo feito do PNDH-3? Mais do que especificamente dele, o que está sendo feito da política de direitos humanos como política
de Estado, para além de muitas e significativas iniciativas pontuais e temáticas, sempre
altamente relevantes, mas ainda pouco articuladas no sentido de uma intervenção efetivamente sistemática e programática?
A agenda popular de luta: necessária e difícil
Nenhuma política, por mais consistente e ampla que seja, esgota a agenda popular de luta por direitos humanos. Claro que pode haver políticas com maior ou
menor sintonia em relação a esta agenda e que a política pode assumir o papel de
facilitadora, reguladora, mas a questão que está posta é a da capacidade da sociedade organizada manter-se presente com uma agenda consistente de luta, mesmo
quando aparentemente suas bandeiras foram incorporadas em programas públicos,
até porque, a política governamental tem limites no sentido de expressar todas as
bandeiras e lutas populares. Em outras palavras, trata-se de refletir sobre possíveis pontes para superar o gap que identificamos inicialmente.
31
É da forma de agir e de se fazer dos movimentos populares que atuem como agentes
de crise e de desestabilização social: ao demandar reconhecimento e bens, participação e
controle social que, por isso, exercitam o desejo (utopia) de novas formas de organização
social que contrastam com a institucionalidade (do Estado e do Mercado) que, em geral,
prima pela manutenção da ordem e da estabilidade social. Temem, por isso, que direitos
humanos se reduzam a conteúdo funcional ao poder ou recurso de retórica.6 Pautam-se
pela compreensão de que direitos humanos são mais aspirações dos sujeitos históricos
que cobram Justiça (não só procedimental) e, por isso, querem que os direitos humanos
sejam compromisso com a promoção e proteção dos direitos, a reparação das violações e
a memória das vítimas, no sentido de que as dinâmicas não sejam reprodutoras de novas
vítimas e de novas/velhas violações de direitos humanos.
Por isso, se, por um lado, os movimentos populares participaram ativamente do
processo de construção de políticas e confiam nelas como instrumento para inaugurar
uma nova agenda no Brasil, como é o caso do PNDH-3, por outro, permanecem comprometidos com sua raiz que é a de fomentar lutas capazes de, ao mesmo tempo, tornar
efetivos os compromissos do Estado com a realização dos direitos humanos e gestar
novas demandas e direitos, alimentando a afirmação de sujeitos históricos, os sujeitos
de direitos humanos.
Permanece na agenda popular a luta contra a inviabilização da produção e da reprodução da vida. Querer um Brasil que respeite e promova os direitos humanos requer uma agenda central com a realização de ações que modifiquem este quadro de
forma sustentável e definitiva. Isso significa reorientar o modelo de desenvolvimento,
para além da ampliação da capacidade de consumo das classes populares. A questão do
modelo de desenvolvimento exige muito mais do que isso e põe na pauta dos debates o
sentido de projeto de nação que o Brasil vem construindo nos últimos anos e, acima de
tudo, qual o lugar nele ocupado pelos setores populares.
A incidência e o controle público sobre o mercado e suas posturas privatistas e de privilégio exige que as organizações de direitos humanos também incorporem em sua agenda a luta pelo desenvolvimento com direitos humanos. Os direitos humanos precisam se
constituir em parâmetro efetivo de avaliação dos projetos de desenvolvimento e de atuação
do mercado sob pena de virem a ser por ele assumidos como simples direitos dos proprietários, gerando a exclusão dos direitos humanos como dos sujeitos de direitos.
Permanece na agenda popular também a luta contra a interdição da manifestação
e da expressão que está na persistência da violência e na alta concentração dos meios de
informação e de opinião. Assim, permanece a reivindicação de ampliação da participação
traduzida em medidas sustentáveis para que as condições fundamentais da democracia
6
32
Desenvolvemos melhor esta noção CARBONARI, Paulo César. Direitos Humanos: sugestões pedagógicas. Passo Fundo: IFIBE, 2008, p. 65-68 e em CARBONARI, Paulo César. Democracia e direitos humanos: reflexões para uma agenda substantiva e abusada. In: BITTAR, Eduardo C. B.; TOSI, Giuseppe. Democracia e Educação em Direitos Humanos
numa Época de Insegurança. Brasília: SEDH; UNESCO; ANDHEP, UFPB, 2008, p. 13-34.
cheguem a cada pessoa a fim de que, desde suas próprias condições, exerça sua presença
no mundo, o que também inclui a busca de caminhos adequados para que a lei de acesso à
informação pública, recentemente sancionada, ganhe efetividade.
A luta contra a desmoralização e a criminalização de lideranças e movimentos sociais é outro aspecto que, mesmo presente no PNDH-3, o extrapola, havendo necessidade de processos a serem implementados de forma autônoma e independente pelas
próprias organizações populares buscando seu fortalecimento, ao tempo em que também resistem a eles e cobram proteção do Estado. Assim, na agenda popular de direitos
humanos permanece a necessidade de fortalecer as organizações populares para que
suas agendas ganhem força e possam ser pautadas na sociedade. Permanece também
a necessidade de revisar a institucionalidade que, a serviço do poder, usa da violência
como forma de conter a Justiça.
A luta e a ação a fim de gerar presença e voz aos vários sujeitos de direitos também
permanece como parte da agenda popular. Ela é tarefa fundamental das organizações
populares. Neste mesmo diapasão, está aqui inserida a luta pelo direito à memória e à
verdade das lutas de resistência e de organização dos setores populares. Assim que, permanece na agenda popular o querer um Brasil justo e igualitário que seja capaz de tomar
a diversidade como conteúdo dos direitos humanos, o que passa pela efetivação de ações
aptas a fortalecer a organização dos diversos sujeitos de direitos humanos.
A agenda de luta pelo direito à memória, à verdade e à justiça também está posta.
Nela, o fundamental é manter aberto o processo de reflexão e de luta capazes de gerar
um significado profundo, consistente e favorável da Comissão Nacional da Verdade7
para a luta por direitos humanos.8 Seu sentido maior está, por um lado, em ser um espaço capaz de construir uma verdade sobre o período da ditadura civil-militar brasileira
e, por outro, em desconstruir algumas das verdades repetidas – nem tão verdadeiras
assim – pelos que têm pavor de verdades que não sejam as deles próprios. Mesmo que não
venha a ter o alcance para fechar o tripé, pois dela não se poderá esperar justiça, se ela for
capaz de produzir verdades com base na memória das vítimas, certamente abrirá caminho para que venha também a justiça. Todos os que lutam por direitos humanos sabem
desde há muito que uma coisa é a luta por direitos e outra é o que de direitos o statu quo
reconhece. Mesmo que nada mais possa ser feito do ponto de vista institucional, ainda
há muito a fazer no sentido de incidir nos trabalhos da Comissão a fim pressioná-la para
que acumule subsídios e a justiça possa ser feita para além dela.
O embate com os conservadorismos e os particularismos interesseiros e interessados
no que diz respeito à compreensão dos direitos humanos também permanece na agenda
7
8
Projeto de Lei votado na Câmara Federal em 21/09/2011 e no Senado Federal em 25/10/2011, em ambos os casos
por acordo, e sancionado como Lei nº 12.528, pela presidenta Dilma Rousseff, no dia 18/11/2011. A Comissão foi
instalada no dia 16 de maio de 2012.
Desenvolvemos uma reflexão sobre o significado da Comissão em “A verdade: por uma Comissão verdadeira” e em
“O risco da verdade”, artigos publicados por Carta Maior [www.cartamaior.com.br], respectivamente em 17/10/2011
e 12/11/2011.
33
popular. Enfrentar os conservadorismos e particularismos no processo de compreensão
e de ação em direitos humanos requer afastar aqueles que fazem coincidir direitos com
privilégios, ou seja, que pretendem limitar os direitos humanos à legitimação da desigualdade e da sua permanência. Lutar pelo universalismo de chegada9 e que toma a diversidade como conteúdo permanente e consistente deste processo é tarefa permanente
e que tem nos setores populares agentes protagonistas fundamentais.
O desafio fundamental está em fortalecer a organização e a luta dos diversos sujeitos de direitos, tanto com suas agendas específicas, quanto no sentido de consolidar uma
agenda popular de articulação das diversas lutas na qual os diversos possam se expressar
de forma consistente e significativa. Manter viva e criativa a luta por direitos humanos é
o caminho forte no sentido de, por um lado, fazer frente às violações de direitos e a produção de vítimas, que persiste, exigindo a justiça ética às vítimas; e, por outro, para criativamente construir novos direitos e novos conteúdos para os direitos já conquistados. A
história dos direitos humanos é a história da luta dos sujeitos de direitos humanos pelo
reconhecimento e pela garantia de bens (materiais, simbólicos e espirituais). Por isso,
sem que se fortaleça esta luta dificilmente se verá consistência nos múltiplos processos
de realização dos direitos humanos.
Para prosseguir na prática e na reflexão
A perspectiva popular de compreensão dos direitos humanos confia que a força
transformadora que está neles, não seja suplantada pelo poder, por privilégios ou por
interesses privados. No momento em que se dá um passo importante para que direitos
humanos avancem no caminho de se constituir em política de Estado é fundamental dizer que a atuação e a luta por direitos humanos não se esgota nisso. Antes, pode ter nele
um instrumento poderoso que, a depender da qualidade do processo de implementação,
pode abrir novos tempos para a luta popular ou ser mais um passo para funcionalizá-los
ao poder. É fundamental manter abertos os “intervalos críticos” para que direitos humanos continuem sendo construção de sujeitos que os querem como insumo da rebeldia
criativa, construtiva e transformadora.
Consolidar uma política nacional de direitos humanos é parte da luta popular que
exige a responsabilidade do Estado com a realização dos direitos humanos, mas também
é parte desta mesma luta o investimento criativo na independência e autonomia das organizações populares. A responsabilidade das organizações populares com a realização
dos direitos humanos tem em sua participação independente e autônoma no monitora9
34
Ao modo defendido por Joaquín Herrera Flores no artigo “Direitos humanos, interculturalidade e racionalidade de
resistência” [In: Revista Sequência, Florianópolis, UFSC, v. 23, n. 44, p. 9-30, 2002].
mento e na avaliação dos compromissos do Estado com os direitos humanos uma tarefa
fundamental. Mas, acima de tudo, sua principal tarefa é permanecerem fortes e capazes
de gestar novos direitos e novos conteúdos aos velhos direitos, afirmando sempre os
sujeitos de direitos humanos.
Enfim, conscientes de que está em jogo manter viva e forte a luta popular por direitos humanos e que a luta que se faz desde as organizações e os sujeitos populares
não pode nunca ser substituída por qualquer ação, por melhor que seja, do Estado ou
do governo – e que, aliás, um Estado democrático é aquele que abre espaço para a luta
popular, ciente de que, sem ela, perderão sentido seus fundamentos e os princípios que o
justificam –, a tarefa abusada de organizar a luta é o desafio fundamental.
35
DIREITO À PARTICIPAÇÃO:
uma vontade que ainda esta a se realizar*
Clóvis Henrique Leite de Souza**
Jose Antonio Moroni***
Paula Pompeu Fiuza Lima****
Após avanços e retrocessos no processo de redemocratização brasileiro, marcado
pela Constituição de 1988, encontramos uma arquitetura da participação cada vez mais
institucionalizada no país, mesmo que inúmeras contradições e limites existam em seu
funcionamento. A difícil garantia dos DHESCAS (direitos econômicos, sociais, culturais
e socioambientais) e dos direitos políticos e civis, convive com a consolidação de espaços
públicos institucionalizados de participação que forçam experiências políticas de afirmação e reconhecimento de novos direitos e a legitimidade para que diferentes sujeitos
políticos possam atuar no espaço público.
Amplos setores da sociedade continuam depositando esperanças de transformação
política, econômica, social e cultural, nestes espaços, a partir da efetiva partilha de poder
entre governo e sociedade. Por outro lado, outros setores também abandonaram este
“campo de batalha” por avaliarem que isso não se realiza sem uma profunda transformação do Estado. É notória a dimensão deste desafio, mas antes que expectativas
*
Este texto é baseado nas conclusões do Projeto “Arquitetura da participação no Brasil: avanços e desafios” desenvolvido por Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) e Pólis (Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas
Sociais) em parceria com Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada) no âmbito do programa PROREDES.
Para acessar a integra da pesquisa consultar os sites dos institutos referidos.
** Mestre em Ciência Política pela UNB e assistente de pesquisa no IPEA.
*** Colegiado de gestão do INESC e membro da plataforma dos movimentos sociais pela reforma do sistema político.
**** Bacharel em Ciências Políticas pela UNB e bolsista do projeto INESC/Polis/IPEA.
37
tornem-se simplesmente frustrações, cabe analisar as contradições, limites e impedimentos na construção da democracia participativa/deliberativa no Brasil. Nesse sentido, este texto tem um olhar sobre os conselhos e conferências nacionais, mas com certeza suas conclusões podem ser ampliadas para os outros mecanismos de participação
institucionalizada e nas demais esferas de governo.
1. Alguns números da participação institucionalizada no Brasil
Entre conselhos de políticas, de direitos ou de fundos que contam com a participação de 2conselhos nacionais. Se incluídos os conselhos ligados à administração pública
indireta, esse número sobe para 71, conforme quadro abaixo:
Conselhos Nacionais mapeados
38
39
Conselho de Representantes de
Brasileiros no Exterior
Conselho de Relações do
Trabalho
Ministério das Relações Exteriores
Direitos
2010
Ministério do Trabalho e Emprego
Políticas
2010
Como podemos perceber no quadro abaixo a estratégia de construção de conselhos vem de longa data no Brasil. Alguns desses conselhos foram criados em períodos
não democráticos, o que pode parecer uma contradição. Grande parte dos conselhos foi
criada ao longo do processo de redemocratização, pós-constituição de 1988. No ano da
promulgação da constituição e nos dois que se seguiram foram criados sete conselhos.
No ano de 2003 foram criados mais conselhos em número de oito. No primeiro mandato
do presidente Lula foram criados mais conselhos, com a instituição de 22 espaços, sendo
que, no segundo mandato (período 2007/2010) foram criados apenas cinco conselhos.
40
Ano de criação dos Conselhos Nacionais
Em relação ao caráter de decisão os conselhos são diversos conforme podemos ver
no gráfico abaixo. Observamos que metade do total de conselhos tem CARATER DELIBERATIVO – ainda que disso não resulte, necessariamente, uma efetividade deliberativa.
No que diz respeito ao processo de escolha da representação pela sociedade civil
podemos constatar um dado preocupante, ou seja, apenas 12 conselhos têm processos
eletivos onde a própria sociedade escolhe a sua representação. Nos demais a escolha
passa de uma forma ou outra, pelo governo.
41
Quanto à participação nos conselhos nacionais há uma diferença significativa entre participantes homens e mulheres, sendo que 56% dos representantes são homens e
25,9% são mulheres (não foi possível identificar o gênero de 18,1% dos conselheiros).
Com certeza a expressão da nossa cultura machista está presente também nos espaços
participativos. Apesar de haver maior proporção de mulheres em espaços participativos
nacionais do que nos cargos políticos eletivos, o que indicaria maior abertura desses
espaços, ainda se nota a exclusão das mulheres à medida que a análise dos dados da
participação ganha amplitude nacional.
42
A primeira Conferência nacional de saúde remonta ao governo Vargas em 1941. Já
neste período o objetivo da Confêrencia era formular e implantar políticas nacionais que
deveriam reunir periodicamente, em caráter oficial, delegações de todos os estados. De
1941 até 2010 já foram realizadas 111 Conferências nacionais com este caráter.
Apesar desta “antiguidade”, foi entre 2003 e 2010, que os temas tratados diversificaram-se e a quantidade de pessoas mobilizadas foi ampliada. Nesses oito anos do governo
Lula ocorreram no país 74 Conferências, sendo 32 no primeiro mandato e 42 no segundo. Foram 40 temas diferentes sendo 70% (28) realizadas pela primeira vez, 21 Conferências ocorreram uma única vez e 9 mais de três vezes. Chama atenção que não foram
realizadas conferências em áreas estratégicas e que impactam diretamente no modelo
de desenvolvimento implantado no Brasil: 1) Agricultura, Pecuária e Abastecimento; 2)
Defesa, Fazenda, Planejamento, Minas e Energia, Transportes e Turismo.
Estima-se que mais de 12,9 milhões de brasileiras e de brasileiros tenham participado em etapas municipais, regionais, estaduais e nacionais. A seguir algumas explicações sobre este dado.
Obteve-se a quantidade de participantes apenas em 35 das 74 edições de Conferências realizadas. Se considerada, a Confêrencia Infanto-Juvenil pelo Meio Ambiente
foi a que mais mobilizou no país, pois em sua primeira edição foram 5,6 milhões e na
segunda foram 3,8 milhões de pessoas. Em seguida destacam-se a 1ª Conferência de
Segurança Pública e a 6ª Conferência de Assistência Social que mobilizaram mais de 500
mil pessoas cada uma. Em seguida, a 1ª Conferência de Educação e a 1ª Conferência de
Juventude com mais de 400 mil participantes. Com os dados obtidos, o total de participantes chega a 12,9 milhões de pessoas, caso não se considere a Conferência Infanto-Juvenil pelo Meio Ambiente que mobilizou 3,4 milhões de participantes.
Em relação ao número de participantes nas etapas nacionais, foram obtidas informações de 49 Conferências. No total foram 70.258 pessoas (44% representantes da
sociedade civil, 43% do governo e 13% não identificado) o que dá uma média de 1.433
participantes por etapa nacional, mas a distribuição não foi uniforme tendo 34% dos
processos menos de mil participantes, destacando-se a 1ª Conferência Infanto-Juvenil
pelo Meio Ambiente com 378 participantes. Em contraste, a 13ª Conferência da Saúde
contou com 4.700 pessoas presentes na etapa nacional.
Em relação à escolha dos delegados/as para a etapa nacional algumas Conferências
adotaram as seguintes políticas de cotas:
• Uma Confêrencia fala em paridade entre homens e mulheres: 11ª Conferência
de Direitos Humanos;
• Oito Conferências especificaram cotas por gênero (1ª Conferência de Saúde Ambiental; 1ª Conferência de Gays, Lesbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais; 1ª
Conferência de Desenvolvimento Rural Sustentável; 1ª e 2ª Conferências do Esporte; 1ª a 3ª Conferências do Meio Ambiente), sendo mais comum (6 casos) reservar 30% das vagas. A 2ª Confêrencia de Esportes fala em 20% e a 1ª Confêrencia de Gays, Lesbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais fala em 50% de vagas;
43
•
Quatro Conferências especificam cotas por idade: 1ª Conferência dos Direitos da Pessoa Idosa - 20% das vagas para maiores de 60 anos; 2ª Conferência
dos Direitos da Pessoa Idosa - 40% para maiores de 60 anos; 6ª Conferência dos
Direitos da Criança e do Adolescente - 18% para adolescentes; 7ª Conferência
dos Direitos da Criança e do Adolescente - 22% para adolescentes;
• Cinco Conferências especificam cotas por cor ou raça: 1ª Conferência de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - 60% das vagas são reservadas a negros,
sendo que há menção a vagas para outros grupos étnico-raciais (ciganos e indígenas); 2ª Conferência de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - 15%
de vagas para comunidades tradicionais (terreiro, cigana, quilombo, indígena);
3ª Conferência de Segurança Alimentar e Nutricional - 20% das vagas são destinadas à População negra (80%) e indígena (20%); 3ª Conferência do Meio
Ambiente - 5% de vagas reservadas para indígenas e 5% para comunidades
tradicionais; 1ª Conferência de Educação Escolar Indígena não fala em cotas,
mas pela peculiaridade do tema destina 75% das vagas para indígenas;
• Duas Conferências não falaram em cotas, mas apresentaram condições diferenciadas para participação de grupos étnico-raciais: 1ª Conferência da Juventude realizou consulta especifica a populações tradicionais, destinando 2% do
total de vagas para este processo; 3ª Conferência de Gestão do Trabalho e da
Educação na Saúde destinou 2% das vagas para indígenas;
• Duas Conferências falaram em compor delegações com critérios de gênero,
cor, raça ou idade, mas sem especificar cotas: 11ª Conferência de Direitos Humanos; 2ª Conferência de Políticas Públicas para as Mulheres;
• A Conferência de Segurança Alimentar e Nutricional destinou vagas na 2ª edição para pessoas pobres (25%) e na 3ª edição para pessoas em situação de insegurança alimentar (20%).
Em relação às deliberações, conseguimos mapear 59 Confêrencias, que produziram
aproximadamente 14 mil propostas e 1.100 moções. As propostas foram assim distribuídas:
44
O acompanhamento destes espaços participativos justifica-se pela amplitude da
mobilização e pela diversidade de temáticas tratadas conforme demonstramos acima.
Portanto, com o intuito de contribuir para a discussão a respeito da situação da democracia brasileira e, portanto, dos Direitos Humanos, apresentamos reflexões sobre a
finalidade, a forma e a conseqüência do direito à participação nos processos decisórios.
Os dados apresentados a seguir dizem respeito ao período de 2003/2010:
2. Quais são os objetivos dos espaços participativos?
Saber qual é o objetivo e as competências de um espaço participativo é fundamental
para saber qual o seu potencial e limite. Este desafio é ainda mais importante quando percebemos que os conselhos e as conferências nacionais possuem as mais diferentes atribuições.
Os conselhos apresentam objetivos e competências ligados a diferentes fases do ciclo de
construção de políticas públicas, podendo dar ênfase maior ao apontamento de diretrizes e
prioridades, ao planejamento, monitoramento e avaliação, ou mesmo à operacionalização
da política. Convocadas com distintas finalidades, as conferências tiveram objetivos ligados à proposição de políticas públicas, como era esperado, mas também possuíram outras
finalidades como fortalecer a participação, analisar situações e fortalecer agendas públicas.
Nos conselhos nacionais, os objetivos ligados à construção de projetos, estratégias
e prioridades são os mais recorrentes, o que é bastante significativo quando falamos
de conselhos “gestores” de políticas públicas. Esse dado mostra que, ao menos legalmente, os espaços de partilha de poder devem participar da construção dos projetos
que norteiam as políticas públicas. Nota-se, contudo, que entre os diferentes objetivos
tratados, aqueles que se referem ao direcionamento dos rumos da política são os mais
recorrentes, correspondendo a aproximadamente 80% dos espaços. Em seguida, há os
objetivos referentes à coordenação e articulação e os objetivos ligados à assessoria técnica. Por último, estão os objetivos que buscam aprofundar a democracia participativa na
formulação de políticas públicas, presente em apenas 33,3% dos conselhos. É intrigante pensar que tanto no discurso político quanto no acadêmico, os conselhos são vistos
como espaços promotores da democracia participativa. O que aparenta acontecer é que
preenchendo o requisito mínimo de participação – criação do conselho – outros esforços de aprofundamento da democracia participativa não seriam tão importantes, por
isso, não estariam previstos. Não significa que esses esforços não aconteçam, mas sim
que não estão institucionalizados como uma competência dos conselhos.
Competências bastante recorrentes também são as ligadas a tarefas necessárias para
a operacionalização das políticas, como normatizar procedimentos, orientar as pessoas e
julgar processos. Esse tipo de competência, contudo, possui uma dualidade que deve ser
levada em consideração. Podem servir para que os conselhos se tornem espaços bastante
45
efetivos de partilha de poder, porque de fato passam a tomar decisões. No entanto, em
alguns casos, esse tipo de competência pode se sobrepor a outras finalidades do conselho. Como essas tarefas muitas vezes são demandas rotineiras, em que decisões têm que
ser tomadas com certa urgência, o conselho pode se desviar de outras atribuições que
muitas vezes fortalecem o controle social do Estado pela sociedade civil, mesmo que
essas tarefas, de certa forma, dêem poder e legitimidade ao colegiado.
Nessas situações, a sociedade civil presente no conselho pode estar de fato exercendo poder quando se ocupa dessas tarefas importantes, mas pontuais, que não necessariamente interferem na formulação das políticas públicas de forma mais ampla? Afinal,
ao mesmo tempo em que exerce essa função, deixa de monitorar e avaliar políticas e
incidir na construção de um projeto político que atenda às necessidades dos grupos que
ela representa. O Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) é um exemplo de
conselho cujas tarefas, relacionadas a essa competência, prejudicaram o funcionamento
do espaço, tanto que em 2009, deixou de exercer parte dessas atribuições (MARTINS,
2009). O CNAS não é um caso isolado no que concerne à atribuição normatizadora, por
isso, é importante investigar se os demais conselhos que possuem essa competência são
prejudicados da mesma forma ao terem que exercer essa atribuição.
No que se refere às conferências no período 2003/2010, dentre 74, 26 tiveram a
difusão de idéias, reflexões e debates, a troca de experiências, a afirmação de compromissos, a articulação entre atores e o fortalecimento de redes em seus objetivos. É importante perceber que as conferências podem ser um instrumento para difundir idéias
fomentando uma agenda pública, até pela capilaridade que alguns desses processos têm
nos municípios. No entanto, cabe a reflexão se um evento cujo propósito central é disseminar visões deve ser considerado como processo participativo na gestão de políticas
públicas, principalmente porque apenas as conferências que se propuseram exclusivamente a agendar assuntos não tiveram finalidades propositivas1.
Trinta conferências definiram entre suas finalidades a análise, seja pelo diagnóstico
de uma situação ou pela avaliação da implementação de uma política. Chama a atenção
que nem todas as conferências tiveram por finalidade a formulação de políticas, afinal,
sem identificar a situação a tratar, as proposições pautadas podem ficar desconectadas
da realidade.
No que diz respeito ao fortalecimento da participação vale ressaltar que foi mencionada esparsamente a garantia de participação para grupos sociais excluídos dos processos políticos, mesmo que a dimensão da articulação de diferentes sujeitos políticos tenha
aparecido como finalidade das conferências. Apenas cinco, justamente aquelas ligadas a
questões indígenas, crianças, adolescência e juventude, falaram de seus próprios grupos.
Não há nos objetivos de outras conferências a menção à garantia de acesso aos espaços
participativos de sujeitos sub representados nos espaços de poder, embora se saiba que algumas conferências garantiram cotas por gênero, idade, raça e condição sócio-econômica.
1
46
A 1ª e a 2ª Conferências de Comunidades Brasileiras no Exterior, a 1ª de Arranjos Produtivos Locais e as 2ª e 3ª
Infanto-Juvenis pelo Meio Ambiente propuseram-se apenas ao agendamento.
Como era de se esperar, além de difundir idéias, analisar situações e fortalecer a participação, as conferências se propuseram a formular propostas de políticas públicas. Sobre
o sentido da proposição desejada quando da formulação dos objetivos do processo, foram
encontrados os seguintes conteúdos: 1) a garantia de direitos; 2) a formulação de estratégias; 3) a indicação de prioridades de ação; 4) a articulação de entes federados; 5) a indicação de alternativas de financiamento; e 6) a criação ou qualificação de programas, políticas, planos e sistemas. A garantia de direitos ou a aplicação de determinada legislação foi
apontada em seis conferências, mas apenas em um caso (Direitos da Pessoa Idosa) fala-se
de um grupo específico como sujeito de direito a ser garantido. Mesmo que algumas mencionassem o acesso à política pública como um direito fundamental, percebe-se tanto na
inclusão de sujeitos políticos marginalizados dos espaços de decisão, como na intenção
propositiva que a consideração à garantia de direitos não esteve no centro da pauta.
O financiamento apareceu com menor frequência. Possivelmente o tema apareceu
nas proposições finais, mas foi declarado como pauta do debate em apenas três conferências: 2ª de Arranjos Produtivos Locais, 2ª dos Direitos da Pessoa Idosa e 1ª de Educação Profissional e Tecnológica. A formulação de estratégias apareceu como finalidade
em quatro conferências. Isso indica uma visão estratégica para o espaço da conferência
que antes de tratar de especificidades da política precisa traçar linhas gerais para a área.
Corroborando com esta perspectiva de formulação estratégica estão 11 conferências que
almejavam definir prioridades de ação para órgãos governamentais em geral ou para
órgãos responsáveis pela conferência.
Boa parte das finalidades com caráter propositivo se refere a programas, planos, políticas e sistemas. Por um lado, poucas conferências, apenas duas (1ª de Segurança Pública
e 11ª de Direitos Humanos), se propuseram a tratar particularmente de um programa, respectivamente Programa Nacional de Segurança com Cidadania (PRONASCI) e Programa
Nacional de Direitos Humanos (PNDH3). Isso pode trazer a idéia de que a proposição para
ações em curso ou a formulação de soluções específicas não se coloca como pauta nas conferências, sendo a discussão mais genérica o foco desejado. Ao mesmo tempo, 12 processos
intencionaram formular diretrizes visando um plano nacional. Isso pode indicar que exista
na pauta das conferências, embora em casos específicos, a percepção da importância da
definição de diretrizes com metas e prazos. Cabe considerar que no caso de conferências
já inseridas em sistemas, como a da Saúde e a da Assistência Social, a formulação de propostas para o plano da área pode estar em suas atribuições como instâncias participativas.
Foram 20 as conferências que falaram em políticas nacionais em seus objetivos, o que pode
indicar a disseminação da necessidade de articulação de ações governamentais.
O que mais chama a atenção é a quantidade de conferências, 20 também, que falaram
em criação ou fortalecimento de um sistema de políticas públicas. Embora não se saiba o
significado da idéia de sistema quando declarada nas finalidades das conferências, a proposição de ações para a criação ou fortalecimento de um sistema aparece com bastante frequência. Embora uma visão sistêmica possa trazer articulação e integração de ações, o peso
administrativo para a criação de estruturas municipais, estaduais e federais em tantas áreas
talvez não seja considerado se o modelo desejado é o do Sistema Único de Saúde – SUS.
47
Além disso, a transversalidade desejada em tantas políticas, principalmente as ligadas aos direitos humanos, pode inclusive ser dificultada se os sistemas não forem articulados. Curioso é observar que a 9ª Conferência de Direitos Humanos cuja intenção era
a criação de um sistema mudou sua orientação na edição seguinte. Na 11ª Conferência
de Direitos Humanos não foi mencionado o sistema nos objetivos. Pode-se dizer que
as implicações da articulação de um sistema vieram ao debate e a opção tenha sido por
focalizar a formulação de uma política nacional como uma ação estratégica para a área.
Algo a pensar é como conselhos e conferências se articulam. É perceptível que as
atribuições de conselhos coincidem, em muitos casos, com os objetivos das conferências. Muitos conselhos, inclusive, são responsáveis pela organização e acompanhamento
dos debates das conferências. Contudo, em alguns casos, conselhos e conferências podem funcionar como instituições paralelas. Conselhos e conferências possuem características temporais, e de abertura à participação, bem diferentes, e que podem fomentar a
colaboração entre os espaços.
Enquanto as conferências são processos com começo meio e fim, os conselhos se
estendem no tempo, podendo ser instrumentos poderosos para a concretização do que
foi deliberado nas conferências, e sustentação do que foi debatido nesses espaços mais
amplos. As conferências, por sua vez, permitem uma participação muito mais ampla do
que os conselhos, e por isso têm o potencial de oxigenar as pautas e discussões destes.
Nesse sentido, uma agenda para debates e pesquisas está em saber se esses espaços participativos concretizam de fato o seu potencial ou são apenas meros espaços institucionalizados para legitimar decisões já tomadas.
3. Como se dá a participação em conselhos e conferências nacionais?
Em se tratando de quem participa dos conselhos, 20,4% dos/as conselheiros/as
titulares são vinculados a organizações empresariais. Movimentos sociais correspondem à 20% sendo que 11,3% são de movimentos ligados a algum grupo sub representado nos espaços de poder, como mulheres, negros/as, indígenas, população LGBT e
8,7% correspondem a movimentos populares. A presença de número significativo de
organizações que representam minorias políticas se deve ao grande número de conselhos de direitos, que são 11.
Em conselhos de direitos, há a prática de incluir pessoas e organizações ligadas aos
direitos cujo conselho quer promover a defesa. Se olharmos somente os conselhos de
direitos, os movimentos sociais correspondem a 34,5% dos representantes. Em seguida, 15,5% são representantes de associações de trabalhadores. Também é significativa
a presença de entidades ligadas à pesquisa e especialistas nos assuntos dos conselhos,
compondo 9,6% dos conselheiros nacionais. Organizações de defesa de direitos, assim
como organizações religiosas, correspondem igualmente, a 3,7% dos conselheiros.
48
Nos conselhos, em 30% dos casos, os representantes fazem parte de organizações
e movimentos sociais “reconhecidos como relevantes pelo governo”, e por isso, são citadas no próprio instrumento que cria o conselho. Um número muito parecido de conselhos tem seus representantes escolhidos via indicação do ministro. Eleições para a
assunção da função de representante só correspondem a 17,7% dos casos, e mesmo
assim, essas eleições costumam envolver somente as organizações interessadas, ou seja,
nem sempre há um envolvimento mais amplo daqueles que seriam beneficiados pelas
políticas públicas.
Além disso, é comum que não haja restrições à permanência de organizações. Salvo
algumas exceções que restringem o mandato da organização a duas gestões, a maior parte dos conselheiros deixa de sê-lo caso queiram ou faltem às reuniões sistematicamente.
Esses métodos de escolha e a falta de limite nos mandatos dos participantes podem revelar certo engessamento da representação em conselhos nacionais.
Quem participa normalmente já é reconhecido como importante para determinado
debate político, e esse reconhecimento é expresso por meio da presença da organização nas
composições constantes nos regimentos internos, da indicação de ministros, ou até mesmo pelo reconhecimento dos pares. Pode haver, nesse caso, certa dificuldade para organizações novas e que defendem novas pautas se inseriam no debate político institucional.
Normalmente os presidentes dos conselhos são os ministros dos órgãos aos quais os
conselhos estão vinculados. Isso permite maior responsabilização do ministério pelo encaminhamento das decisões tomadas no conselho. Ao mesmo tempo, o fato de o conselho
ser presidido pelo ministro pode trazer prejuízos à autonomia do espaço. Some-se a isso o
fato de que as pautas comumente são organizadas pela secretaria executiva, estrutura do
próprio ministério. Resta saber se conselheiros/as da sociedade civil têm liberdade e poder para inserir novas pautas e discussões ou se ficam à mercê das agendas dos ministérios.
Em se tratando das conferências, 46 desses processos contaram com etapas municipais, estaduais e nacionais. Em alguns casos, para facilitar a mobilização, foram realizadas também conferências regionais e intermunicipais. Em 16 edições não foram
realizadas etapas municipais ou estaduais, sendo que destas, sete realizaram conferências regionais e nove não realizaram processos preparatórios ao nível nacional (1ª a 4ª
de Arranjos Produtivos Locais; 1ª e 2ª das Comunidades Brasileiras no Exterior; 1ª de
Aprendizagem Profissional; 8ª e 10ª de Direitos Humanos).
As conferências, mesmo convocadas pelo governo federal, podem ter incidência
no âmbito em que são realizadas. Uma conferência municipal pode formular propostas
a serem encaminhadas à etapa estadual e nacional, mas também pode discutir questões
locais e ali encaminhar ao órgão competente. É notório que essa possibilidade depende
da vontade política, pois na maior parte dos casos as conferências não estão institucionalizadas e acabam vulneráveis ao poder constituído.
Destacaram-se no período as conferências livres que, realizadas pela primeira vez
na temática de Juventude, foram posteriormente utilizadas em outras seis temáticas
(Comunicação; Cultura; Defesa Civil e Assistência Humanitária; Direitos Humanos; Esporte e Segurança Pública). As conferências livres, realizadas como etapas não eletivas e sim
mobilizatórias, permitiram o envolvimento de pessoas que possivelmente, sem essa liberdade
49
organizativa, não participariam de conferências. Para garantir o mínimo de uniformidade, os
atos normativos das conferências estabeleceram requisitos a serem cumpridos para a validação da mobilização no contexto do processo de formulação de políticas públicas. Mas
ainda há que ser enfrentada a questão do grau de importância dado a estas modalidades,
pois uma vez tidas como não eletivas, podem ser consideradas de maneira diferente na
sistematização das propostas, fragilizando a própria realização das mesmas.
Além das conferências livres, foram experimentadas pela primeira vez as virtuais.
Estas, utilizando ferramentas de comunicação e informação já amplamente difundidas
na sociedade brasileira, foram formas de mobilização nas conferências de Comunicação,
Cultura e Segurança Pública. Destaque para a 2ª de Cultura que, além de discussões
pela Internet, possibilitou que as vagas setoriais fossem preenchidas com votações à distância. Mesmo que a participação presencial em formatos de assembléia seja o padrão
organizativo das conferências é importante perceber as inovações na interação tanto no
formato (livre) como no meio (virtual), pois podem sinalizar oportunidades para a inclusão de outros sujeitos políticos que se organizam de forma diferente do costume nos
processos decisórios.
Conferências setoriais, que reúnem grupos específicos dentro do tema, ocorreram
em 10% dos casos, assim como também foram experimentadas outras modalidades de
participação. No caso de etapas setoriais é perceptível a intenção de garantir a presença
de uma diversidade de sujeitos políticos que, sem uma articulação paralela não elegeria
delegados para a etapa nacional, como no caso da Conferência de Juventude que realizou consulta específica para populações tradicionais. Isso também se coloca nas áreas
de Cultura e Meio Ambiente, mas de outra maneira, pois a presença de determinados
setores é garantida evitando a exclusão de determinadas vozes por terem capilaridade
reduzida. Ou seja, para garantir a participação de setores que trazem contribuições específicas para o entendimento do tema em pauta, uma alternativa foi realizar discussão
paralela que também possibilitou a eleição de representantes.
Foi possível obter informações relativas à quantidade de etapas municipais de 31
edições das conferências. Com os dados obtidos, percebe-se uma tendência ao incremento da participação de municípios quando há reedições dos processos. No movimento inverso observa-se a Conferência das Cidades que da segunda para a terceira edição
teve uma redução de 51% dos municípios participantes caindo de 3050 para 1554 municípios mobilizados. Além de Cidades, envolveram menos municípios de uma edição
para outra as conferências de Direitos da Criança e do Adolescente e Infanto-Juvenil
pelo Meio Ambiente. Vale destacar que o processo com mais etapas municipais realizadas foi a 6ª Conferência Nacional de Assistência Social que ocorreu em 4693 municípios.
A conferência com o menor número de etapas municipais foi a 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em 137 municípios.
50
4. Qual a possibilidade dos espaços participativos incidirem no
planejamento governamental?
Muitos conselhos possuem em suas atribuições, tarefas relacionadas ao acompanhamento de políticas, seja na fase do planejamento, de monitoramento ou de avaliação.
Nesse caso, o mais comum é o conselho ter a competência de monitorar e avaliar políticas e ações. Esse dado pressupõe que esses espaços devem estar atentos aos acontecimentos na política pública para que a partir disso possam exercer o controle social.
Ao mesmo tempo, os objetivos de planejamento não são muito frequentes, estão
presentes em apenas 20% dos conselhos. Isso nos faz questionar se os conselhos de
fato participam do planejamento das políticas públicas. Sem as tarefas relacionadas ao
planejamento das políticas, as decisões referentes à construção de projetos e estratégias podem se perder ao longo do processo de construção da política e não serem,
de fato, concretizadas. Além disso, a falta de previsão da partilha de poder na etapa
do planejamento das políticas pode comprometer também atividades referentes ao
monitoramento e avaliação.
Quando se monitora e avalia uma política o faz com relação à quê? Normalmente
o faz levando-se em consideração o que foi planejado. Nesse sentido, um espaço participativo deveria ter a atribuição de monitorar e avaliar atividades que ele não necessariamente ajudou a planejar. Há os critérios, diretrizes e prioridades definidos participativamente que podem ser considerados como um norte para o monitoramento e avaliação,
contudo essas informações normalmente se encontram em um âmbito mais amplo do
que o planejamento.
Em 2011, houve um esforço por parte do Ministério do Planejamento, Orçamento
e Gestão, em conjunto com a Secretaria de Articulação Social da Presidência da República, de fomentar a participação dos conselhos na formulação, monitoramento e avaliação
do processo do Plano Plurianual (PPA). Para a incidência na construção do Plano, foi
realizado um fórum interconselhos em que representantes da sociedade civil dos diferentes conselhos foram chamados a participar.
Infelizmente, esse processo começou de forma bastante apressada, por isso, parte
do potencial dos conselhos para incidir na construção do Plano não foi utilizado. O discurso governamental, no momento, é que esse fórum interconselhos terá papel ativo no
monitoramento e avaliação do PPA. Resta saber se essas expectativas se cumprem, e para
isso a sociedade civil terá um papel importante para relembrar o governo das promessas
feitas nesse ano.
Observando a data de realização das 74 edições de conferências nos oito anos de
governo, percebe-se uma distribuição regular, existindo um aumento no ano de 2009 e
uma diminuição na ocorrência em 2004 e 2007. Diante dos 40 tipos de conferências realizados, percebe-se, tendo como base as datas de realização do evento nacional, uma tendência à inconstância na periodicidade, pois apenas 28% das conferências mantiveram
regularidade seja anual, bienal, trienal, quatrienal ou quinquenal. Entre as conferências
com mais de uma edição no período, 42% não mantiveram a periodicidade esperada, ou
seja, não houve regularidade de edições.
51
A princípio, a periodicidade não informa muito sobre o processo participativo,
tendo em vista que não é determinante sobre as consequências do mesmo. No entanto,
a indefinição pode prejudicar o acompanhamento dos resultados da mobilização, pois
se cria um momento de deliberação e depois não há espaço para prestação de contas
e cobrança de resultados. Ao mesmo tempo, a escolha por realizar a Conferência em
anos que a formulação do PPA2 já está concluída pode resultar em pouca ou nenhuma
eficácia para o processo, pois sem a garantia de recursos, cada vez mais vinculados aos
PPAs, é difícil reestruturar ações que por ventura sejam avaliadas de forma negativa
pela população nas conferências.
Assim, para a incidência no planejamento governamental o período de realização
das conferências necessita ser compatibilizado com a agenda de formulação do PPA. Ademais, a inter-relação entre órgãos correlatos é necessária para a efetividade das proposições. Mesmo que 64% dos órgãos federais com status de ministério tenham se envolvido
em ao menos uma conferência nacional, apenas quatro temas (Economia Solidária, Infanto-Juvenil pelo Meio Ambiente, Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental) contaram
com o envolvimento de mais de um ministério como responsável. É sabido que nas comissões organizadoras tomam assento diferentes órgãos federais, mas a convocação conjunta pode indicar comprometimento diferenciado no encaminhamento dos resultados.
A única experiência conjunta de realização entre poder legislativo e executivo ocorreu na Conferência de Direitos Humanos, pela peculiaridade do processo que foi por
muitos anos convocado pela Câmara dos Deputados. Ainda no que tange ao envolvimento de órgãos nos processos, cabe destacar as áreas que não realizaram conferências no período: Agricultura, Pecuária e Abastecimento; Defesa; Fazenda; Minas e Energia, Transportes e Turismo. Cabe questionar porque áreas estratégicas para o redirecionamento
da ação estatal, como a Fazenda, não estão incluídas nos espaços em que se autoriza a
participação. Para que os espaços participativos avancem na incidência governamental é
necessário que áreas com blindagem à participação, mas influentes nas políticas públicas,
tornem-se mais permeáveis às demandas sociais.
Como podemos perceber houve uma multiplicação de espaços e temas sujeitos à
participação, mas a economia e o modelo de desenvolvimento estão blindados à participação popular. A multiplicação dos espaços não significou a criação de um sistema de
participação popular e não temos indicativos de que a participação institucionalizada
teve força política para alterar o rumo das políticas. Neste sentido o direito à participação ainda é uma vontade que precisa se realizar.
Referência bibliográfica
MARTINS, Valdete de Barros. Participação e controle social no SUAS: o que temos e o que
queremos. In: MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME.
Conselho Nacional de Assistência Social. Caderno de textos: subsídios para o debate. 2009..
2
52
Plano Plurianual é uma das peças do processo orçamentário, elaborado a cada 4 anos, e define quais serão as políticas
e prioridades do período.
DESENVOLVIMENTO E INJUSTIÇAS AMBIENTAIS NO BRASIL
Processo de Articulação e Diálogo (PAD)*
Nesse texto pretende-se tratar do tema do desenvolvimento como um direito humano fundamental, e no atual contexto brasileiro, considerá-lo na relação com a questão
ambiental, entendendo que:
[...] o direito ao desenvolvimento se relaciona com a combinação entre controle e uso da
riqueza a fim de promover os direitos econômicos, sociais e culturais apoiado como meio
de superação de desigualdades e discriminações, tendo em conta nos modos de apropriação e construção das relações socioambientais lidas na perspectiva da sustentabilidade e da
justiça ambiental (PAD, [s/d]].
A intenção principal desta reflexão é tratar do tema como denúncia das violações
de direitos humanos ocorridas. Por isso, tomamos como referência a definição utilizada
pela Rede Brasileira de Justiça Ambiental, segundo a qual o termo injustiça ambiental
refere-se ao:
[...] mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social,
destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de
baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis (REDE BRASILEIRA DE
JUSTIÇA AMBIENTAL, [s/d]).
Os danos socioambientais que recaem sobre esses grupos não se referem apenas à
degradação e à contaminação dos seus ambientes de convivência, mas também a outras
diferentes formas de violência. Dentre elas, a negação da participação nos processos decisórios, a expulsão sumária, a exploração de seu trabalho e de suas necessidades
*
Texto institucional elaborado pelo Processo de Articulação e Diálogo (PAD).
53
históricas, a desassistência, a violência física, as ameaças e os assassinatos. Tais injustiças estão no centro, e são, ao mesmo tempo, meio e resultado do moderno desenvolvimento brasileiro.
No Brasil – tido por muitas vozes, especialmente pelas representantes históricas
da esquerda, como “espelho” para o desenvolvimento, soberania e autonomia política e
econômica para a América Latina –, as injustiças ambientais são, ou ao menos deveriam
ser, um dos mais constrangedores assuntos. Os indicadores que apontam avanços na
área social nos últimos anos contrastam com os rumos que o país vem tomando no que
se refere às questões socioambientais. Nesse contexto, verifica-se o flagrante desencontro
entre melhoria nos níveis de consumo geral da população e a incapacidade do Estado em
construir projetos econômicos democratizantes, que sejam base para o aprofundamento, consolidação e ampliação de uma efetiva e sustentável melhoria da qualidade de vida.
Pode-se dizer (o senso comum o faz), que o Estado e a iniciativa privada estão cumprindo seu papel no desenvolvimento do país. Porém, num contexto de permanência,
aprofundamento e reconfiguração de injustiças, faz-se necessário questionar o preço e
o destino desse desenvolvimento, objetivando promover o debate democrático. É precisamente nesses pontos que se evidenciam o caráter injusto do modus operandi e dos
impactos — não mencionados nos indicadores oficiais de crescimento econômico — do
desenvolvimento na vida dos povos e no ambiente natural.
É nesse contexto que o PAD busca colaborar no âmbito do presente relatório,
tratando da visibilização das injustiças e da mobilização das sociedades nacional e internacional na promoção e defesa dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais
e ambientais das populações e povos atingidos pelo desenvolvimento brasileiro. Para
atingir o intuito proposto, e apontar com maior realismo as contradições geradas pelo
modelo de desenvolvimento vigente no país, enfocaremos com especificidade algumas
questões e informações referentes às injustiças e conflitos ambientais que afetam as populações e territórios campesinos e tradicionais.1
1. Agronegócio. São Francisco e Belo Monte: o desastre socioambiental
traduzido em desenvolvimento
Dentre as atividades produtivas que impulsionam a economia brasileira, está o
agronegócio voltado para exportação. As monoculturas de soja, de cana-de-açúcar, de
eucalipto, da fruticultura irrigada e outras, assim como a pecuária intensiva, geram divisas e influenciam o PIB nacional, sendo responsáveis pela ascensão do Brasil no cenário
mundial como a 7ª economia do mundo.
1
54
As informações aqui contidas foram coletadas da impressa convencional, mídias alternativas e sites institucionais,
mas, sobretudo, das produções dos coletivos, movimentos e organizações de defesa dos direitos humanos.
Porém são também responsáveis, dentre outras, pela produção de extensos desertos verdes, eliminação da agricultura camponesa, redução da produção de grãos para
suprimento de alimentos da população e pela readequação da estrutura latifundiária de acesso à terra, com recrudescimento da concentração fundiária e fortalecimento
da participação de grupos empresariais estrangeiros, associados a empresas nacionais.
Para se ter uma ideia da dimensão das desigualdades no acesso ao território e aos bens
ambientais, o último censo agropecuário do IBGE (2006) dá conta de uma enorme concentração, onde apenas 1% dos proprietários detém 43% da área agricultável no Brasil.
Além disso, há uma crescente estrangeirização das terras brasileiras: dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária dão conta de que até o primeiro semestre de 2010, pelo menos 4,2 milhões de hectares eram propriedades de estrangeiros.
A efetivação do agronegócio está vinculada também à produção e ao uso intensivo
de agrotóxicos, internacionalmente denunciados como danosos ao meio ambiente:
à fauna, à flora e aos seres humanos. A Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos,
realizada por um coletivo de organizações e movimentos sociais, denuncia que:
[...] mais de um milhão de toneladas (o equivalente a mais de 1 bilhão de litros) de venenos
foram jogadas nas lavouras em 2009. [...] Na safra de 2007-2008 foram gastos no Brasil
6,8 bilhões de dólares em venenos, [...] na safra 2008-2009,foram 7,125 bilhões de dólares,
transformando nosso país no maior consumidor mundial de venenos. Esse valor equivale à
aplicação de 734 milhões de toneladas de venenos na nossa agricultura. Eles afetam o solo,
a água, os alimentos produzidos e o ar, pois muitos são secantes que evaporam, vão para
atmosfera e depois retornam com as chuvas (CPT, Caderno Formação 1, [s/d]).
As dez principais empresas responsáveis pela comercialização de quase 80% desses
produtos foram: Syngenta (14,0%), Milenia (11,3%), Monsanto (11,1%), Nufarm (8,3%),
Dow (7,5%), Bayer (7,1%), Basf (6,0%), Nortox (4,7%), Atanor (4,6%) e DuPont (4,2%).
A moderna produção agroexportadora também guarda as heranças históricas do
escravagismo. Dados do Ministério do Trabalho e Emprego dão conta de que pelo menos 220 empresas, a maioria vinculada a esse setor, formam uma lista de usuários de
trabalho escravo no seu processo produtivo. Entre os anos de 1995 e 2010, quase 29 mil
trabalhadores da agricultura foram libertados de condições análogas à escravidão.
Nos territórios da Região Nordeste do Brasil, uma das propostas dos Governos
Federal e Estaduais e da iniciativa privada para a dinamização da economia regional é a
Transposição do Rio São Francisco (TRSF). Sob o pretexto de levar água para 12 milhões
de nordestinos, essa obra representa para os Estados da Bahia ao Ceará um enorme salto
de infraestrutura para irrigar o agronegócio, a indústria da mineração, a siderurgia e a
carcinicultura, dinamizando o Complexo Industrial Porto do Pecém, no Ceará, de onde
a produção deságua na exportação.
55
Embora o Governo Federal, os políticos e os empresários que defendem a TRSF
tentem convencer a população do caráter altruísta da obra -“matar a sede do povo”-,
o próprio projeto do governo deixa claro que apenas 4% das águas transpostas serão
destinadas à população das caatingas; 26% terão uso urbano e 70% se destinarão a
projetos de irrigação.
A TRSF reposiciona a economia do Nordeste nos cenários nacional e internacional.
Porém, para ela acontecer, 38 povos indígenas, e outras populações tradicionais e camponesas, serão retiradas de seus territórios. Os segmentos retirados do seu ambiente e os
que permanecerem no entorno das águas deste rio, terão seus modos de vida e cultura
inteiramente impactados pela devastação causada pela obra.
São consequências da obra: 1) a privatização da terra e das águas para uso das
atividades produtivas beneficiadas; 2) o aumento da poluição e contaminação socioambiental que essas atividades provocam; 3) a redução das possibilidades para as atividades
tradicionalmente exercidas pelas populações locais. Os povos atingidos pela TRSF, juntamente com organizações de defesa dos direitos humanos, denunciam diversas irregularidades na implementação do projeto, de tal modo que a “[...] insuficiência dos estudos
de impactos ambientais e a ofensa ao direito de participação, levaram a sucessivas interrupções por ordem judicial. Foram mais de quinze ações judiciais em diversos estados
brasileiros” (APOINME, [s/d]).
A conjugação das atividades produtivas e de infraestrutura, da qual a TRSF é emblema, agrega diferentes atores públicos e privados. Entretanto, destaca-se que, além de
garantir infraestrutura, o Estado, a partir de seu principal banco público, o BNDES, capitaliza e subsidia os grupos privados investidores da economia brasileira. É seguindo, e
ao mesmo tempo dinamizando esse ritmo, que hoje o BNDES, alimentado pelo Tesouro
Nacional, se tornou um dos maiores financiadores de recursos públicos para a iniciativa
privada, superando inclusive o Banco Mundial: entre 2005 e 2010, os empréstimos do
BNDES cresceram 391% em dólar, enquanto os do BIRD avançaram 196% (ESTADO
DE SÃO PAULO, 10/03/2011).
Interessa observar que há uma imensa desigualdade na distribuição do fomento
à produção agrícola: nos anos de 2009 e 2010, o Governo brasileiro investiu R$ 100 bilhões no agronegócio e apenas R$ 16 bilhões foram destinados à produção camponesa
familiar. Por outro lado, é a agricultura familiar responsável por 70% do suprimento de
alimentos da população brasileira. O censo do IBGE (2006) constatou que a agricultura
familiar, da qual participam camponeses e populações tradicionais, garante 74% da mão
de obra campesina, o que representa pelo menos 12 milhões de pessoas. Não obstante,
é justamente a produção baseada no uso familiar e coletivo que garante a existência de
diferentes populações, a atividade produtiva mais impactada pela TRSF. Baseado na produção de commodities agrícolas e agropecuárias, as políticas oficiais e a iniciativa privada
priorizam a substituição acelerada da produção de alimentos e da biodiversidade pelos
monocultivos de altas escalas, estruturados na privatização e na concentração da terra,
das águas e dos territórios.
56
O BNDES é também responsável por 80% dos financiamentos para a Usina de
Belo Monte, que tem a construção prevista no Município de Altamira, Estado do Pará,
num trecho de cem quilômetros do Rio Xingu, a UHE de Belo Monte é um dos casos
emblemáticos da ocupação mercantil da Amazônia. Sua implementação tem sido permeada por intensos conflitos, de repercussão internacional, entre o Estado brasileiro
e os povos indígenas.
Fundamentada no modelo energético, voltado para a produção eletrointensiva,
Belo Monte custará R$ 30 bilhões aos cofres públicos, apesar das controvérsias em torno
de sua real capacidade de gerar energia. Num contexto de intensas disputas e ameaças
aos povos indígenas, um grupo de cientistas formou um Painel de Especialistas, que
realizou de forma independente, um estudo e um Relatório de Impacto Ambiental. Os
especialistas constataram que além de promover impactos irreversíveis sobre a biodiversidade e a vida dos povos locais, a capacidade real de gerar energia da usina será muito
inferior ao que é previsto no projeto do Governo: em vez de 11.181 MW, só poderá gerar
4.428 MW, devido aos longos períodos de estiagem do Rio Xingu.
Para Belo Monte acontecer, pelo menos seis povos indígenas terão suas vidas afetadas (Kayapó, Arara, Arareute, Apidereula, Juruna, Maracaná), além de índios isolados
da Região do Rio Xingu. A construção provocará o desmatamento de pelo menos 500
Km² de floresta e a inundação de 30 terras indígenas e 12 Unidades de Conservação,
num total de 668 Km², onde vivem, em interação direta com a biodiversidade local,
inúmeros povos indígenas e populações ribeirinhas.
Dentre os problemas detectados pelos estudiosos no projeto Belo Monte, vale
ressaltar alguns: 1) subdimensionamento da população atingida e da área afetada;
2) risco de proliferação de doenças endêmicas; 3) ausência de estudos sobre índios
isolados; 4) subdimensionamento das emissões de metano; 5) perda irreversível da
biodiversidade; 5) análises insuficientes sobre o impacto da migração, sobre o desmatamento e as terras indígenas.
Os povos indígenas e as organizações dos direitos humanos denunciam que além
da falta de transparência dos órgãos públicos em relação aos impactos ambientais, não
foram realizadas audiências públicas nas comunidades indígenas, e estas foram impedidas de tomar parte nos debates e processos decisórios sobre a construção da usina.
O Estado brasileiro age desrespeitando o acordo internacional da Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante aos povos tribais o direito à
participação nas decisões sobre seus territórios.
A negação dos povos indígenas na tomada de decisão levou a Organização
dos Estados Americanos (OEA), em abril de 2011, a advertir o Estado Brasileiro e
a recomendar que o Governo paralisasse o processo até que a participação dos povos fosse assegurada. Em resposta à OEA, o Estado Brasileiro, através da presidenta
Dilma Rousseff ameaçou deixar o órgão e cortou o repasse de verba do Brasil para a
Organização no ano de 2011.
57
Os casos da Transposição do São Francisco e da Usina de Belo Monte, são emblemáticos da forma social e ambientalmente injusta como o Estado brasileiro, aliado
à iniciativa privada, tem conduzido o desenvolvimento. Mas eles representam a ponta
de um processo muito mais amplo e complexo em que outros setores produtivos vêm
sendo dinamizados, tais como as termoelétricas, as indústrias de mineração, siderurgia
e petroquímica, a construção civil e o turismo de massa.
Além do agravamento da questão agrária, da destruição socioambiental nos campos
e nas florestas, a expansão das atividades produtivas e a infraestrutura de altos impactos
socioambientais se estendem também para as zonas costeiras, onde a biodiversidade e as
terras emergem como possibilidades para o mercado.
Aqui, à pesca industrial predatória soma-se o turismo de massa, que desterritorializa os povos do mar, marginaliza a população e transforma mulheres e meninas
em mercadorias inseridas nos pacotes turísticos; a criação de camarão em cativeiro, a
instalação de complexos portuários e, especial e mais recentemente na Região Nordeste,
a implementação mercantil dos parques de energia eólica, destroem manguezais e campos de dunas que são importantes geradores de serviços ambientais à humanidade e à
biodiversidade marinho costeira.
Os impactos sociais e ambientais desse modelo têm sido amplamente explicitados
pelos movimentos sociais e pelas populações locais. Todos têm em comum a conjunção
dos esforços institucionais dos poderes públicos e da iniciativa privada e a necessidade
de ocupar vastos territórios, acompanhada da apropriação e degradação dos bens ambientais, da expulsão e da contaminação das populações locais e da dizimação de seus
modos de vida.
2. Injustiça e conflitos ambientais espalham a tragédia por trás do
desenvolvimento brasileiro
Um dos principais indicadores dos problemas socioambientais que acompanham
o desenvolvimento do Brasil é a existência de inúmeros conflitos em todas as regiões
do país. Trata-se de conflitos ambientais marcados pela violência contra a população, a
perda dos territórios, a degradação da biodiversidade e dos modos de vida e trabalho,
seja em espaços urbanos ou rurais. Em todas as regiões do Brasil, a tensão e o estresse
coletivo das populações em situação de conflitos ambientais se justificam pelas ameaças
de perdas irreparáveis e pelas constantes mortes violentas.
Os processos de resistências dessas populações e o autoritarismo do poder público
e da iniciativa privada em se impor faz com que parte dos conflitos ambientais encontre-se em litígio, gerando o que os movimentos sociais têm denominado de “judicialização dos conflitos ambientais”. Esse fato tende a transformar os direitos das populações
58
em disputas burocráticas passíveis de serem mediadas pelos operadores do direito.
Contudo, propicia também a elaboração de contra argumentações e contra pareceres
indicando que os projetos de desenvolvimento econômico e “interação” cultural são, no
mínimo, problemáticos do ponto de vista dos interesses das populações locais.
Além dos argumentos jurídicos em defesa dos atingidos, não faltam mecanismos
eletrônicos, relatórios, manifestações de rua, notas públicas, denúncias e outros instrumentos políticos e pedagógicos que os movimentos sociais utilizam todos os dias nos
diferentes espaços aos quais têm acesso. Os depoimentos de quem vive diretamente os
efeitos dessas políticas e projetos destacam, desde a negação da participação nas decisões
sobre as intervenções nos territórios, à expulsão, à contaminação, à destruição dos bens
naturais e à violência das milícias particulares e do Estado, através de seus aparelhos
repressores e da pura omissão.
Dados sobre assassinatos e perseguições em torno dos conflitos são ilustrativos dessas violências: no período de 2003 a 2010, pelo menos 50 lideranças indígenas
foram assassinadas por ano nas disputas territoriais; e, nas últimas duas décadas,
mais de 1500 pessoas foram assassinadas no campo em situação de conflitos. A esses
dados devemos somar ainda os constantes assassinatos de lideranças dos movimentos
sociais, como o de Irmã Dorothy Stang (Pará, fevereiro de 2005), do líder sindical Zé
Maria do Tomé (Ceará, abril de 2010) e do advogado Sebastião Bezerra (Tocantins,
fevereiro de 2011). Isso tudo sem contar os muitos defensores dos direitos humanos
que estão ameaçados de morte e precisam viver sob a proteção e a solidariedade de
organizações e movimentos sociais.
No que refere ao campo, a Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2010) registrou a
ocorrência de 1.186 conflitos; desses, 638 envolvendo terra, 204 envolvendo conflitos trabalhistas e 87, disputas pela água. Nesses conflitos, pelo menos 34 pessoas foram
assassinadas. Como exemplo emblemático da violência no campo, citamos o Estado
do Pará, Região Norte do país, onde entre 2003 e 2005 pelo menos 52 pessoas foram
assassinadas no contexto das disputas por territórios. A CPT (2010) registrou 207 conflitos nesse Estado e o maior número de assassinatos, totalizando 18 mortes violentas.
Ressalte-se que, ainda no Pará, só no mês de junho de 2011, seis pessoas foram assassinadas em situações semelhantes.
De outro modo, têm sido cada vez mais recorrentes os casos em que o poder público demite ou desloca servidores públicos que, por meio de suas funções, dão apoio
aos atingidos pelas grandes atividades econômicas. A demissão do superintendente do
IBAMA, em fevereiro de 2010, por cumprir as exigências que lhe cabiam no processo
de licenciamento da Usina de Belo Monte, assim como as pressões dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário sobre os juízes e outros operadores do direito, envolvidos nos conflitos em litígio, são exemplos do autoritarismo das políticas e projetos
de desenvolvimento.
59
3. Racismo ambiental e opressão das mulheres alimentam e agravam as
injustiças ambientais
No Brasil, as injustiças ambientais estão fortemente marcadas pelo racismo ambiental quando grupos sociais tratados como racialmente inferiores, a exemplo das populações negras e dos povos indígenas, são os maiores atingidos. O Mapa das Injustiças
Ambientais e Saúde no Brasil, realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (2010), pesquisou
297 conflitos ambientais em todo o país, originados da implementação dos projetos de
desenvolvimento. Em tais conflitos, os povos indígenas e as populações quilombolas,
bem como os seus territórios, representam mais de 50% dos atingidos. A eles se seguem
inúmeras outras populações que, se não estão identificadas como negras ou indígenas,
são, em sua maioria, grupos que em termos étnicos e raciais, e considerando a constituição sócio territorial do país, desses se aproximam, como as comunidades de pescadores
e pescadoras artesanais, os ribeirinhos e agricultores familiares.
O desamparo e a deslegitimação das populações atingidas se agravam quando as
violações de direitos, a negação das diversidades étnicas, raciais, culturais e econômicas
que compõem o imenso território nacional é levada a cabo pelo próprio Estado, pelas
suas instituições dos poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário. Os casos Belo Monte
e TRSF são ilustrativos de como, em nome da implementação de modelos hegemônicos, o Estado brasileiro e a iniciativa privada se impõem mediante o racismo ambiental
e institucional, negando aos grupos raciais discriminados, e povos étnicos, o direito à
existência. As especificidades culturais, os modos de vida e de trabalho, diretamente
vinculados aos ecossistemas, e por isso tendo como pressuposto sua manutenção, são
desqualificados, tratados como transitórios e entraves ao desenvolvimento.
A lógica racista e patrimonialista do desenvolvimento brasileiro privilegia e premia
agressores, donos do poder político e econômico, ao passo que devasta e dizima os povos e territórios que tradicionalmente garantem o equilíbrio e a conservação ambiental.
Contradiz, na prática, o discurso oficial, pregado no plano internacional frente às urgentes necessidades de transformar o modelo de produção e consumo com o objetivo de
conter os problemas ambientais que colocam em risco a própria existência do planeta,
dos quais as mudanças climáticas são emblemas incontestáveis.
A tragédia socioambiental resultante do desenvolvimento brasileiro atinge as mulheres empobrecidas, negras e indígenas. De acordo com o IBGE, as mulheres representam 50% da população rural em idade produtiva, e cumprem historicamente papel
determinante na agricultura de subsistência, portanto, no suprimento de água e alimentação das famílias, comunidades e povos. Responsabilizadas pelo cuidado e manutenção
da casa e da família, com a destruição dos territórios e modos de vida, as mulheres, cujo
trabalho produtivo já é considerado secundário e complementar, passam a enfrentar o
aumento da subordinação e dependência em relação aos homens e às políticas sociais.
Sem contar que, ao migrarem para os canteiros de obras, muitos homens deixam para
trás suas famílias e uma imensa sobrecarga para as mulheres.
60
Na ausência de políticas que garantam condições de vida para as comunidades,
são as mulheres obrigadas a cumprir as lacunas do Estado, sendo também as maiores
usuárias das políticas sociais e suas instituições precárias. Mesmo considerando que elas
sempre estiveram, e estão, nas linhas de frente de resistência à expropriação da terra e do
território, e que nos últimos anos as camponesas têm emergido como sujeito político, as
mulheres são ainda mais sonegadas da participação política, e não é a toa que as consequências por elas suportadas acabam invisibilizadas. Sua participação está, em grande
medida, condicionada aos estigmas e ao papel no espaço doméstico, que impõe severas
interdições a seu acesso ao mundo público e ao fazer político.
As catástrofes ambientais geradas a partir do uso insustentável e predatório da natureza também atingem duramente as mulheres pobres, pois são as que mais se preocupam em reduzir perdas e danos; são as que passam maior parte do tempo nos abrigos
improvisados e são responsabilizadas pelo amparo às crianças, idosos e doentes, sendo
por isso as que mais enfrentam o racismo e a discriminação das políticas socais.
Na explosão de problemas tipicamente urbanos, as mulheres experimentam ainda,
além do aumento da violência doméstica, perdas irreparáveis, com o envolvimento de
seus filhos e filhas com o tráfico e consumo abusivo de álcool e drogas, como crack, hoje
considerado um grave problema de saúde pública no campo e na cidade.
Outro grave problema que afeta a vida das populações impactadas pelos grandes
projetos é a exploração sexual e o tráfico de mulheres e meninas. Estudiosas da questão
constatam que os intensos fluxos de migrações, especialmente de população masculina para o entorno das obras, cria fatalmente uma cadeia produtiva em que mulheres
e meninas são postas como mercadoria para suprimento das necessidades sexuais dos
operários, funcionários de alto escalão e políticos.
Em todas as regiões do país, são cada vez mais frequentes os casos de meninas indígenas e negras vendidas ou exploradas nos circuitos dos mercados de sexo, disfarçados
de pousadas, bares e restaurantes. O relatório da Plataforma DhESC de monitoramento
da implementação das usinas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio no Rio Madeira, em
Rondônia (ambas inseridas nas obras do PAC), identificou a diminuição de acesso aos
serviços básicos e o agravamento de problemas sociais, como o abuso sexual e o estupro,
o aumento do número de homicídios em 44%, e o aumento em 18% da quantidade de
crianças e adolescentes vítimas de abuso e exploração sexual.
Além disso, houve um aumento de 208% dos casos de estupros na região onde as
usinas estão sendo implementadas. Há também, em consequência, uma proliferação de
doenças sexualmente transmissíveis, do alcoolismo e do consumo de drogas.
A visão de empreendedores e políticos sobre o papel das mulheres nos projetos de
desenvolvimento fica perversamente explícita nas declarações de um dos seus representantes: “O Delta do Parnaíba é como uma menina de 15 anos. Linda, virgem e pronta para
ser explorada. Aliás, 15 não, 13 anos” (Vereador João Cláudio, PI). De outro modo, pode-se citar a festa de final de ano realizada em dezembro de 2009 pela construtora Camargo
Correia para os operários da usina hidrelétrica de Jirau, que teve como principais atrativos
um espetáculo de streap tease e pornografia para “aliviar” o cansaço dos trabalhadores.
61
4. Desafios para a garantia de direitos, enfrentamento das injustiças
ambientais e um novo modelo de desenvolvimento
A despeito das “transparentes” violências, questionar e enfrentar as injustiças sociais e ambientais que estão no cerne da dinamização da economia constitui tarefa
árdua, uma vez que tais injustiças estão assentadas naquilo que é a “pedra filosofal”
do desenvolvimento brasileiro: a capitalização da biodiversidade, com a privatização e
exploração econômica da terra, das águas e das florestas, e a expansão e diversificação
incontrolada das atividades produtivas de grande porte e de fortes impactos ambientais
e sociais, mediadas e viabilizadas pelas políticas públicas.
Nesse contexto, as exigências legais que atentam para os direitos dos atingidos e
para a sustentabilidade ambiental são criticadas e se tornam alvos de revisões, levadas
a cabo pela forte bancada ruralista da Câmara Federal; pelos vínculos, em muitos casos
orgânicos, entre os poderes legislativos e os investidores privados; e pela predominância
da visão desenvolvimentista dos poderes Executivos (nacional e local). Tais poderes entendem os direitos ambientais e culturais das populações e a conservação dos ambientes
naturais, assim como suas respectivas garantias legais, como entraves à expansão dos
grandes negócios, geradores de divisas e de alta incidência no PIB nacional.
A legislação ambiental, como instrumento de precaução dos problemas sociais,
averiguação e direcionamento da sustentabilidade ambiental das atividades produtivas,
é vista e tratada como peça burocrática que precisa ser flexibilizada ao máximo, de modo
a acelerar a implantação dos projetos e políticas econômicas. Figuram, como exemplo
de descaso da legislação, a recente revisão do Código Florestal Brasileiro (que prevê,
dentre outras coisas, o aumento das possibilidades de exploração de áreas anteriormente
protegidas) e os pacotes de decretos presidenciais para aceleração das concessões de
licenciamentos ambientais.
Enquanto se aceleram os esforços institucionais para a implementação desses grandes projetos, destacam-se, por outro lado, a morosidade e os impasses na implementação
dos direitos das populações tradicionais à terra, à água, ao território e à diversidade
cultural garantidos na Constituição Federal de 1988. É o caso dos poucos avanços nas
demarcações das terras indígenas; no reconhecimento e garantia dos povos quilombolas; nos direitos das demais populações tradicionais; na implementação de Unidades de
Conservação baseadas nos usos tradicionais e autonomia das populações; na consolidação de assentamentos rurais. Políticas que, se efetivadas, cumpririam importante papel
para a garantia dos direitos coletivos, do manejo sustentável dos ambientes considerando
as diversidades culturais, da soberania alimentar e da gestão democrática dos territórios.
Os esforços da sociedade civil organizada para garantir o exercício desses direitos
travam-se, principalmente por conta da pressão da iniciativa privada. Esta reivindica a
propriedade e os direitos de uso e ocupação dos territórios e a fragilidade política e orçamentária dos órgãos públicos responsáveis por implementar esses direitos.
62
Outros fatores que dificultam o enfrentamento das injustiças ambientais e a implantação de um novo modelo de desenvolvimento são:
•
•
a existência de um consenso quase absoluto das instituições e lideranças políticas sobre a importância e a necessidade das atividades produtivas de larga
escala e de grandes impactos ambientais para o progresso e o desenvolvimento
da nação. Este consenso envolve os poderes públicos e se espalha na sociedade
mediante a consolidação de um discurso único e da negação das vozes e práticas “destoantes”. Nesse processo, a propaganda oficial dos governos, a força
publicitária da iniciativa privada, assim como a indústria midiática são instrumentos determinantes na invisibilização das injustiças e desigualdades sob a
qual se assenta o desenvolvimento que predomina no Brasil;
as históricas negações e violações dos direitos das populações geralmente atingidas pelos conflitos ambientais. Seguindo as estruturas racistas da constituição social, política e econômica do Brasil, são as gerações indígenas e negras
– a quem historicamente foram negadas a cidadania, a participação política e a
existência material dignas – as mais atingidas pelos impactos socioambientais,
sejam eles rurais ou urbanos. As vulnerabilidades pré-existentes na realidade
dessas populações são uma oportunidade de “convencer” algumas delas de que
o “desenvolvimento” trará o emprego e o “progresso”. Assim, aquilo que é direito fundamental dos povos – como saúde, educação, saneamento, trabalho e
proteção social – transforma-se em “moeda” de troca e em promessas inviáveis
de futuro promissor.
5. Desafios e limites para a sociedade civil organizada
A articulação e a mobilização política são os principais (e talvez os mais importantes) mecanismos de enfrentamento das injustiças ambientais provocadas pelas políticas
e projetos de desenvolvimento econômico. Nesse sentido, muitas iniciativas são realizadas: campanhas, relatórios, denúncias, apoio direto aos atingidos, esforço de divulgação
das violências que recaem sobre os povos e as populações.
Porém, para se colocarem na cena pública enquanto sujeitos de direito (incluindo
o mais básico deles, o direito à existência em sua diversidade), os grupos diretamente
impactados pelas injustiças ambientais e os movimentos sociais enfrentam muitas dificuldades. Entre elas, destacam-se:
63
•
•
•
os altos níveis de violência institucional contra indivíduos e órgãos coletivos,
que sobrecarregam os grupos voltados para a promoção dos direitos humanos
e da democracia, assim como a ausência de recursos para a existência material
e a ação cotidiana desses sujeitos. Embora se tenha avançado em diferentes
formas de organizações sociais, a extensão do território brasileiro, a distância
geográfica, o isolamento de alguns grupos, assim como a sobrecarga de trabalho dos militantes sociais, reduzem as possibilidades de ação continuada de
acompanhamento, denúncia e proposição de soluções justas;
além disso, a recente ascensão, pactuada com os setores tradicionais e conservadores, de grupos mais ou menos originados nas lutas sociais, aos espaços de poderes institucionais do Estado, formando os chamados governos populares, nos quais muitas lideranças e organizações ambientalistas militaram e
militam, comprometem a autonomia e a capacidade de identificação, denúncia
e enfrentamento das injustiças ambientais;
a significativa redução do apoio das agências de cooperação internacional, que
nas duas últimas décadas colaboraram na ação da sociedade civil organizada
e com o avanço na conquista de direitos. Nesse contexto, os movimentos e
organizações da sociedade civil trabalham no plano da escassez dos recursos,
exigindo um alto grau de militância e gerenciamento.
Com todas as dificuldades, é preciso valorizar o enorme esforço que os grupos
atingidos, as organizações apoiadoras e os movimentos sociais realizam no sentido de
desenvolver alternativas e afirmar os modos de vida sustentáveis. Podemos citar como
exemplo os esforços de organizações de atividades produtivas pautadas no uso coletivo, solidário e sustentável dos bens ambientais, tais como a agroecologia, o turismo de
base comunitária, as múltiplas e diferenciadas experiências de economia solidária; assim
como os processos de socialização de novos valores e diretrizes, como as inúmeras redes
de articulação e solidariedade na defesa de direitos, valorização e fortalecimento dos
modos coletivos e sustentáveis de convivência social e com a biodiversidade. A existência dessas experiências é, em última instância, a possibilidade de pressionar o Estado,
fazer frente à iniciativa privada predatória e redirecionar os rumos de uma sociedade
desigual e injusta.
Referências bibliográficas
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violência urbana no Brasil. 2008. Disponível em: <www.amnesty.org/en/library/info/
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WILKINSON, John; HERRERA, Selena; COSTA, Vivian (Coord.) Agrocombustíveis:
armadilha para as mulheres? Rio de Janeiro: Instituto Eqüt. Gênero, economia e cidadania global, [s/d].
65
CAPÍTULO II: TEMAS
DIVERSIDADE E DISCRIMINAÇÃO
Lúcia Xavier*
1. Sobre a realidade das populações
As diferentes hierarquias estabelecidas nas sociedades como aquelas pautadas nas
dimensões de gênero, raça, etnia, gerações, localização geográfica ou territorial, classe,
orientação sexual, condição física ou mental, posições políticas e religiosas, participam
na produção das desigualdades e da violência a que estão submetidos estes grupos. Desigualdades expressas no acesso dificultado: 1) aos serviços e à justiça; 2) baixa renda e
escolaridade; 3) relações de trabalho precárias; 4) moradias inadequadas ou em áreas sem
infra-estrutura; 5) violência; 6) homicídios; 7) baixa participação nas instâncias de controle social das políticas públicas; e 7) pouca representatividade nos poderes constituídos.
Além do intenso processo de discriminação gerado por uma forte representação
social negativa desses grupos associados à inferioridade, à sujeira, ao perigo, à criminalidade, à violência e à promiscuidade; cujo sofrimento mental e físico não são computados como violação de direitos.
Homossexuais são submetidos a castigos físicos, servem de motivo para chacota
e exposição pública, são expulsos do seio familiar e dos serviços, especialmente das escolas, além de sofrerem violência. As travestis são as principais vitimas desse processo.
Saem da escola a partir dos 12 anos, quando começam os processos de transformação
física e de comportamento.
*
Assistente Social, formada pela Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente coordena CRIOLA: organização de mulheres negras com sede no Rio de Janeiro. Integra, como suplente, o Comitê Técnico
de Saúde da População Negra do Ministério da Saúde. É membro titular do Comitê Técnico de Saúde da População
Negra do Município do Rio de Janeiro.
69
Jovens negros são as principais vítimas de homicídios, inclusive aqueles perpetrados pelos agentes de segurança pública. Os adolescentes negros têm 2,6 vezes mais
chances de serem assassinados na comparação com adolescentes brancos, nas cidades
com população acima de 100 mil habitantes (UNICEF/LAV/UERJ/SDH-SPDCA/Observatório de Favelas: 2006).
A taxa de analfabetismo dos jovens negros é de 5,8%, três vezes maior do que a de
jovens brancos (1,9%). Em média, os jovens negros possuem 7,5 anos de estudo contra
9,4 anos dos jovens brancos da mesma faixa etária. Das 530 mil crianças de 7 a 14 anos
fora da escola, 330 mil são negras e 190 mil são brancas (IBGE/PNAD, 2009).
Os povos indígenas também passam por diversas violações de direitos agravadas pelo fato de sofrerem intervenções constantes do Estado brasileiro em todos os
aspectos da vida, no que se refere à demarcação de suas terras, manutenção de suas
culturas e acesso às políticas públicas. Um bom exemplo é a política de implantação
de creches em áreas indígenas, quando para esses a socialização da criança ocorre na
aldeia e no seio familiar.
Em relação à destruição das culturas indígenas, geralmente interpretadas como primitivas, há constantes intervenções de grupos religiosos que no intuito de incluir interferem
no modo de vida destas populações. No que se refere à participação no poder e no acesso à
justiça, os povos indígenas não são reconhecidos e não estão representados nessas instâncias.
As culturas negras passam pelo mesmo processo. Nos últimos anos, os ataques a
templos religiosos de matriz africana aumentaram. As pessoas ligadas a essas religiões,
que até o final da década de 50 eram perseguidas, voltaram a sofrer agressões físicas e
expulsão de áreas de favelas, verifica-se também a destruição de imagens e símbolos religiosos. Isto quando o Estado brasileiro passa a se comprometer com práticas e acordos
relacionados a entidades religiosas de maior influência política e social, a exemplo do
catolicismo e das religiões protestantes, estes últimos fortes opositores das religiões de
matriz africana.
Sobre as mulheres, pesam as desigualdades de gênero e a violência, com especial
destaque à violência intrafamiliar. Dados publicados pelo (IBGE, 2010) demonstram
que em 2009 a Central de Atendimento à Mulher (Disque 180) registrou 401.729 atendimentos, a maior parte referente à solicitação de informação (52,3%). Destes, 52,2%
estavam relacionados à agressão física; 2,2%, ameaças sofridas; e 9%, dano moral. Os
homicídios foram causas de 1/3 das mortes de mulheres da faixa etária entre 20 e 29
anos. No período de 2009 a 2010 foram registrados 15.994 casos de violência sexual
contra mulheres negras.
Quanto às condições de trabalho 69,2% das mulheres jovens de 16 a 24 anos de
idade, e 82,2% das mulheres com 60 anos ou mais, exercem atividades no mercado informal. Sem contar que recai sobre elas a dupla jornada de trabalho, com o desempenho
de papéis associados ao cuidado familiar.
70
Em relação à pobreza, dados do IBGE (2010) revelam que 16,2 milhões de brasileiros vivem em situação de extrema pobreza, com uma renda per capita de até R$ 70,00
por mês, ou pouco mais que R$ 2,00 por dia. Deste total, 70,8% são negros e 50,9% têm
19 anos de idade no máximo.
Nesse sentido, podemos dizer que o maior grau de incidência de violência e violações dos direitos humanos recai sobre esses grupos por que o Estado brasileiro reproduz
as práticas racistas, homofóbicas, sexistas e discriminatórias em suas ações. Deixando de
proteger os cidadãos e cidadãs, de acordo com o preceito constitucional brasileiro, que
“garante à cidadania, à dignidade da pessoa humana, a autodeterminação dos povos e o
bem estar, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação” (Constituição Federal de 1988).
Os grupos excluídos produzem diferentes formas de enfrentar as violações dos direitos. De um lado, constatamos o isolamento social, a aceitação e reprodução dos atributos negativos a eles imputados e inclusive manifestações e protestos contra a violação
dos direitos, especialmente quando envolve situações de violência. Na maior parte dos
casos, a população se sente culpada ou envergonhada por estar vivendo uma situação de
violência ou de violação dos seus direitos. De outro, a construção de mecanismos para
a defesa dos seus direitos. Fóruns, passeatas, comitês, audiências são implementados
para dar voz aos grupos. Mas, em sua maioria, essas ações não conseguem influenciar o
Estado, o que acaba reforçando a incapacidade deste em produzir proteção social, livre
de discriminação.
Nos últimos anos temos reconhecido a participação de diferentes setores em torno
de políticas públicas que possam garantir os seus direitos e expressar as suas necessidades. A presença de diversos setores em conselhos, participando de conferências temáticas e até mesmo criando mecanismos de aglutinação de interesses, é visível. Tomo aqui o
exemplo da juventude negra que diante dos constantes homicídios resolveram criar uma
campanha contra o “genocídio” em todo o país. Movimentos contra a corrupção surgem
em vários pontos do país a exemplo do protesto contra a prefeita de Natal, Micarla de
Souza, pelo caos administrativo. Jovens acampados na Cinelândia-RJ em protesto contra
o capitalismo, a corrupção, a construção da usina de Monte Belo, em defesa da reforma
agrária. As manifestações LGBT para aprovação do Projeto de Lei nº 122/2006 que torna
crime a homofobia.
Com esses exemplos, podemos dizer que o grau de consciência sobre os direitos é elevado em comparação à geração passada que conhecia mais seus deveres.
Porém, as ações em defesa dos direitos se tornam um longo caminho entre diferentes
serviços e setores que não permitem o controle dos procedimentos e processos que devem ser realizados para concretização desses direitos. Medidas tomadas pelo Estado
acabam revelando também relações complexas que perpassam instituições públicas
corruptas, desrespeitam o princípio da cidadania e não estão comprometidas com a
efetivação dos direitos.
71
2. Em relação à atuação do Estado
O Brasil goza em todo mundo de uma posição de prestigio, demonstrando que
é capaz de promover o desenvolvimento econômico e social assim como uma democracia sólida voltada para a sociedade e baseada no respeito aos direitos. Programas
visando à erradicação da miséria e ao desenvolvimento sustentado são apresentados
como processos naturais de um país avançado e preocupado com os seus cidadãos e
cidadãs. Além disso, há a criação de mecanismos para consulta à sociedade sobre as
políticas públicas, tais como os conselhos e as conferências sobre educação, saúde,
políticas para as mulheres e para a promoção da igualdade racial, esporte, cultura, dos
direitos das cidades, entre outras.
Medidas voltadas para a reforma do Estado e para o pagamento da dívida externa
ajudaram a consolidar esta imagem; bem como permitiram que gastos na área social
fossem reduzidos ao longo dos últimos 10 (dez) anos, atingindo áreas importantes como
a da seguridade social. Chegamos ao final de 2011 com um quadro importante de violação dos direitos que não geraram maior indignação dos demais setores sociais, devido a
medidas simpáticas no campo social.
Por um lado, o Programa Brasil sem Miséria, cujos resultados só serão medidos no
próximo ano, pretende alcançar 28 milhões de pessoas, onde 16,2 milhões destas vivem em
situação de extrema pobreza, com uma renda per capita de até R$ 70,00 por mês. Por outro
lado, cresce a remoção de populações que vivem em áreas a serem utilizadas para grandes
empreendimentos econômicos, tais como as usinas de energia elétrica. As terras de remanescentes de quilombos e as terras indígenas não são reconhecidas, demarcadas e protegidas.
Políticas que permitiriam verdadeiro avanço para a sociedade brasilera, como o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), ainda não foram implementadas na íntegra. Ao contrário, algumas de suas diretrizes foram alvo dos ataques de setores conservadores, a exemplo da descriminalização e legalização do aborto, a união civil,
a implantação da Comissão da Verdade para apurar os crimes cometidos no período da
ditadura militar, que só recentemente foi sancionada pela presidenta Dilma Rousseff.
O PNDH-3 representa para os setores interessados no cumprimento dos Direitos
Humanos a base para a implementação de ações voltadas à garantia dos direitos e ao
mesmo tempo alavanca para a superação das violações. O Programa também representa
um diálogo profícuo com diferentes setores do poder público, o que permitiria a consolidação de mecanismos de diálogo entre a sociedade civil e o Estado.
Ao mesmo tempo em que a sociedade pode propor diretrizes para o delineamento,
implantação e monitoramento de políticas públicas, assuntos como orçamento público,
segurança, economia e planejamento de estado, não entram no debate em conferências.
O Estado assume a condução dessas políticas e não permite que sejam objeto de análise
dos setores sociais especialmente atingidos pelas medidas tomadas.
Sobre a condução das políticas públicas, denúncias sobre corrupção e mau uso dos
recursos públicos por parte dos poderes executivo, legislativo e judiciário são constantes.
72
Em muitas dessas denúncias as organizações não governamentais estão envolvidas. Sem
mencionar o processo de terceirização de serviços essenciais como a saúde.
Não há dúvidas de que nos últimos anos o Estado brasileiro mudou. Elegemos pela
primeira vez uma mulher para o comando do país. Temas antes invisíveis hoje fazem
parte da agenda nacional; mas, no que se refere à atuação do Estado na prevenção, coibição e restauração dos direitos, foram poucas as mudanças. No campo das políticas
públicas, podemos destacar o conjunto de conferências que culminaram em programas
e planos de ação para o Estado e o enfrentamento da homofobia, do racismo e do sexismo – Programa Brasil sem Homofobia e os Planos de Políticas para as Mulheres e o de
Igualdade Racial; mas nenhuma dessas políticas foi efetivamente implementada.
As práticas do racismo, do sexismo e da homofobia que estão institucionalizadas
nos serviços públicos e privados não tiveram meios efetivos de enfrentamento implementados. Apesar de existirem leis para coibir a discriminação, as vítimas sofrem pela
segunda vez quando procuram os agentes e as autoridades do Estado e acabam sendo
desestimuladas a procurar a justiça. Na área da saúde constataram-se práticas institucionalizadas de racismo, sexismo e homofobia no processo de atendimento, bem como
diretrizes para o seu enfrentamento, mas nenhuma ação está em curso no momento
atual para cessar com as violações de direitos em questão.
No campo da segurança, o comportamento violador é mais grave. Os agentes públicos ainda são os principais violadores dos direitos nesse campo. Recentemente, em junho
de 2011, Juan de Moraes, negro, 11 anos, foi assassinado junto com Igor de Souza Afonso
de 17 anos, por policiais militares de Mesquita, no Rio de Janeiro, na comunidade Danon,
em Nova Iguaçu. Juan foi acusado de ter reagido à prisão, seu corpo foi jogado em um rio
sendo localizado após transcorridos 30 dias de sua morte. A família ficou à mercê das decisões das autoridades públicas, que sequer permitiram um velório adequado para a criança.
Em relação ao processo de pacificação e de implantação das Unidades de Polícia
Pacificadoras em algumas favelas da cidade do Rio de Janeiro, a falta de diálogo com a população também é notado. As denúncias de violência e violações sofridas, especialmente
causadas por soldados das forças armadas, são tratadas em tribunais especiais e com leis
diferenciadas. O uso negativo das imagens dos moradores e moradoras, bem como a sua
associação ao tráfico de drogas e à contravenção não foram discutidos. Os grupos violados em seus direitos não tiveram acesso a serviços de apoio assim como não puderam
denunciar para a sociedade as violações vividas, dada a carga de aceitação da sociedade às
ações governamentais, sobretudo àquelas realizadas pela polícia e pelas forças armadas.
Instrumentos como ouvidorias ou mesmo serviços de discagem telefônica não têm sido
valorizados no processo de consolidação dos direitos assim como não há espaços de diálogo
entre o Estado e a sociedade. A falta de canais independentes para o diálogo, a lentidão da
justiça, a falta de ações de prevenção contra as violações de direitos, não permitem a consolidação de uma cultura que possibilite gerar crença nas instituições públicas e nas autoridades.
Sobre o contexto das Nações Unidas merece destaque a criação de uma entidade
para a igualdade de gênero e para o empoderamento das mulheres em 2010, a “ONU
73
Mulheres” United Nations Entity for Gender Equality and the Empowerment of Women
(UN WOMEN). A comemoração do 10º Aniversário da Declaração e do Plano de Ação
de Durban, apesar da conturbada assembléia geral, recolocou em debate a situação das
vítimas do racismo, da discriminação racial, da xenofobia e das formas correlatas de intolerância em todo o mundo. Bem como, a condenação do Brasil pelo Comitê CEDAW
em relação à morte materna.
O Comitê das Nações Unidas para Eliminação da Discriminação contra Mulheres
(CEDAW) estabeleceu uma série de recomendações a serem seguidas pelo Brasil para
garantir que todas as mulheres tenham acesso a cesso a serviços de pré-natal, parto e pós-parto, livre de qualquer discriminação. Alyne Pimentel de 28 anos morreu em novembro de 2002, no sexto mês de gestação, cinco dias após dar entrada em hospital público
com sinais de gravidez de alto risco e não recebeu atendimento apropriado.
3. Em relação à atuação da sociedade civil
No que se refere à relação entre a sociedade e os grupos que tiveram os seus direitos
violados, pouca coisa mudou. A sociedade continua conservadora e com pouca solidariedade, apoiando medidas que permitem a violação dos direitos em nome da “paz”. E o
campo de maior tensão é o da segurança pública.
A sociedade conhece de certa forma, os processos de violação dos direitos cometidos pelo Estado e por grupos armados contra os jovens negros, mas não se solidarizam
com as denuncias dessas violações.
Dados apresentados pelo Mapa da Violência no Brasil, produzidos pelo Instituto
Sangari (WAISELFISZ, 2011) demonstraram que o número de homicídios de jovens
brancos caiu significativamente entre 2002 e 2008 variando de 6.592, para 4.582, o que
representa uma redução de 31%. Já entre os jovens negros, os homicídios passaram de
11.308 para 12.749 aumentando em 13%.
Os planos estaduais de segurança pública para o enfrentamento da violência, em
sua maioria estabeleceram indicadores de redução dos crimes violentos letais intencionais, homicídios dolosos, lesões corporais seguidas de morte e latrocínio, descartando
aqueles que envolvem a polícia.
Com a população LGBT, cresce a solidariedade em relação às manifestações
por direitos mas, por outro lado, aumenta os casos de violência. As “Paradas do
Orgulho Gay”, maior expressão política LGBT, têm arregimentado milhares de participantes em quase todas as capitais do Brasil como expressão do reconhecimento e
aceitação dessas demandas. No entanto, o número de ataques a gays aumentou nos
últimos anos. Em todo o país foram registrados no último ano, 200 assassinatos
de homossexuais. No Rio de Janeiro, onde o governo estadual implantou o programa
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Rio sem Homofobia, foram registradas 776 ocorrências por agressões de junho do ano
passado até a presente data. A união estável entre homossexuais foi reconhecida pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) em maio deste ano, mas ainda enfrenta o debate no
Congresso Nacional.
Situação semelhante vivem as trabalhadoras domésticas, maior categoria profissional
do país, que têm assegurados 9 dos 27 direitos trabalhistas constitucionais. São 7,2 milhões
de trabalhadoras/es, majoritariamente mulheres (93%) sendo que 61,6% são negras e
38,4% são brancas. Dados do Instituto de Pesquisas Aplicadas (IPEA, 2011) revelam que
340 mil crianças e adolescentes entre 10 e 17 anos estão trabalhando como domésticas (os).
Recentemente a Organização Mundial do Trabalho (OIT), organismo da Organizações das Nações Unidas (ONU), aprovou a Convenção 189 sobre o Trabalho Decente
para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos, que reconhece todos os direitos
para aqueles que exercem o trabalho doméstico. Mas as medidas para solucionar o problema ainda são frágeis e não atingem a questão. O governo federal organizou programas
e encaminhou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC nº 478/2010) que iguala os direitos dos empregados domésticos aos demais trabalhadores urbanos e rurais. E até agora
nenhuma medida concreta foi realizada em prol dos direitos das (dos) domésticas (os).
A sociedade rejeita qualquer medida que garanta os direitos trabalhistas, bem como
aquelas medidas que foram implementadas, quais sejam: 1) campanha para o aumento
da assinatura das carteiras de trabalho; 2) isenção na declaração anual de rendimentos
(IR) do recolhimento da alíquota da previdência social patronal; 3) formação educacional e aperfeiçoamento profissional. A principal justificativa para a manutenção dessa injustiça tem sido o ônus na renda familiar de quem contrata empregada (o) doméstica (o).
4. Perspectivas e recomendações
a) Ampliar o escopo das ações em Direitos Humanos relacionadas ao racismo, ao
sexismo e à homofobia e todas as formas de discriminação, que afetam cotidianamente a
maior parte da população, a exemplo da exclusão e do acesso dificultado aos bens e aos
serviços em razão de sua raça, etnia, identidade de gênero e orientação sexual, territorialidade, nacionalidade, classe e outros eixos de subordinação. Agregando a isso ações
de enfrentamento dessas práticas no âmbito do Estado;
b) Combater o racismo institucional vigente nas práticas dos órgãos públicos e privados.
c) Implementar as diretrizes do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3)
através de planos de ação, com recursos adequados para a sua execução;
d) Criar órgão fiscalizador independente que permita maior monitoramento e avaliação da implantação do PNDH-3;
e) Garantir a implementação dos DhESCA como elemento fundamental para o enfrentamento das desigualdades, da violência e das violações experimentadas por esses
grupos. Fortalecendo também as políticas públicas como instrumentos de viabilização
75
desses direitos. Ainda no campo das políticas públicas, recomendar elaboração consistente de metas e indicadores; com aplicação dos recursos orçamentários de forma correta. Além da aplicação dos instrumentos de intersetorialidade e transversalidade no
delineamento e execução das políticas públicas;
f) Criar canais de participação para ampliar a interlocução da sociedade com o
governo nas diferentes esferas e instâncias de poder, com vistas à consolidação da democracia brasileira;
g) No que se refere aos movimentos sociais, promover mudanças em torno das
concepções de atuação política que ainda consideram as dimensões identitárias como
questões secundárias à centralidade da luta política por direitos humanos;
h) Promover campanhas para a mudança das representações sociais dos grupos
discriminados com foco nos Direitos Humanos. A mudança da representação social é
um passo importante para a consolidação da cidadania desses sujeitos políticos;
i) Apropriação de tecnologias de comunicação para o uso nos processos de debate,
reivindicação e controle social das políticas públicas, que permita criar novas culturas e
arranjos sociais em torno dos Direitos Humanos;
j) Exigir o cumprimento das convenções e tratados internacionais que protegem
e garantem os direitos desses grupos, a exemplo da Convenção Internacional sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; bem com as leis
nacionais que versam sobre a proteção contra a discriminação;
l) Reclamar aos organismos das Nações Unidas e da OEA a prevenção, a punição
e reparação dos danos causados pelo racismo, sexismo e pela homofobia, bem como
outras formas de discriminação.
Referências bibliográficas
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Direitos Humanos da Presidência da República, 2010.
DIEESE. Anuário das mulheres brasileiras. São Paulo: DIEESE, 2011.
FPA/RLS. Diversidade intolerância e respeito às diferenças sexuais. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo (FPA); Fundação Rosa Luxemburgo Stiftung (RLS), 2009.
IBGE. Estudos e pesquisas informação demográfica e socioeconômica. Síntese de indicadores sociais. Uma análise das condições de vida da população brasileira 2010. Rio de
Janeiro: IBGE, 2010.
76
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domésticos. Disponível em <www.sepm.gov.br/legislacao-1/convencoes-internacionais/
convencao-sobre-o-trabalho-decente-para-as-trabalhadoras-e-os-trabalhadores
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WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2011: os jovens no Brasil. São Paulo:
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77
POLÍTICAS PÚBLICAS E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Alexandre Ciconello*
Introdução
Garantir uma vida com dignidade aos seus cidadãos, reduzir as desigualdades sociais, respeitar as diversidades e assegurar a sustentabilidade ambiental são os principais
objetivos dos Estados nacionais. Essa é a razão de ser dos nossos sistemas e instituições
políticas e jurídicas. Esses objetivos estão expressos na Constituição Federal, na legislação infra-constitucional e nos diversos tratados firmados pelo Estado brasileiro perante
a comunidade internacional.
Podemos dizer que há uma racionalidade bem delimitada por normas, conceitos,
instituições, agentes e sistemas de políticas públicas visando à realização dos direitos
humanos. Esse deveria ser o objetivo central de qualquer político e agente público. Contudo, muitas vezes as decisões públicas não são tomadas a partir dessa perspectiva. Vivemos em um mundo onde a economia capitalista é direcionada para a acumulação sem
limites da riqueza, onde os recursos naturais são explorados até a exaustão, colocando
em risco a sobrevivência humana no planeta e onde o patrimonialismo e seus derivados
(corrupção, clientelismo, nepotismo) deterioram a democracia e a capacidade do Estado
de regular a economia e promover os direitos humanos.
Este artigo tem como objetivo estabelecer algumas relações entre a promoção dos
direitos humanos e as políticas públicas.
*
Assessor político do INESC (Instituto de Estudos Socioeconômico), advogado formado em direito pelo Largo São
Francisco (USP), mestre em ciência política pela UNB, especialista em direitos humanos pela American University
(Humphrey Fellow), membro da coordenação da Plataforma Dhesca Brasil, conselheiro do CONASP (Conselho Nacional de Segurança Pública).
79
1. Direitos humanos: do que estamos falando
Entendemos direitos humanos como um conceito ao mesmo tempo jurídico,
político e utópico. O ideal de uma sociedade pautada pelos direitos humanos é a
referência normativa e política de nossas sociedades desde o pós-guerra, com a
criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e a promulgação da Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Do ponto de vista da dinâmica social, a luta por
direitos é uma construção histórica. Eles não são dados, mas sim conquistados por
aqueles/as que vivem situações de opressão, invisibilidade social e violação. Os
direitos só existem, portanto, pela contínua luta de sujeitos políticos buscando o reconhecimento de suas identidades ao longo da história assim como a redistribuição
dos recursos gerados pela sociedade.
Trata-se de um movimento dinâmico de lutas e avanços que eleva progressivamente a comunidade internacional a novos patamares de liberdade, igualdade,
respeito e dignidade.
Do ponto de vista normativo, podemos dizer que todo o arcabouço político
e jurídico dos direitos humanos deriva da máxima expressa no art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos “Todas as pessoas nascem livres e iguais em
dignidade e direitos”.
A idéia de dignidade humana se expressa não só na existência e gozo dos direitos
civis e políticos (previstos nos artigos 5º e 14º da nossa Constituição), mas também
dos direitos sociais, econômicos, culturais, ambientais, sexuais e reprodutivos (previstos nos artigos 6º, 7º e nas seções especiais da nossa Constituição, bem como em
outras normas nacionais e internacionais). Ou seja, direitos humanos significam: 1)
direito à educação; 2) direito à saúde pública de qualidade; 3) direito à moradia adequada; 4) direito a viver uma vida sem violência; 5) direito ao voto; 6) direito à liberdade de expressão e associação; 7) direito à participação política; 8) direito à expressão
da própria sexualidade; 9) direito à decisão sobre a vida reprodutiva; 10) direito a viver
em um meio ambiente saudável; entre outros.
Cabe ressaltar que a igualdade e a nãodiscriminação são princípios fundamentais que compõe o conceito de direitos humanos. Todos nascem iguais em dignidade
e direitos. Contudo, na desigual sociedade brasileira, o patriarcalismo, o sexismo e o
racismo ainda persistem. Isso faz com que as mulheres, indígenas e negros/as tenham
maiores dificuldades de acessarem direitos em razão do preconceito e de um histórico
de discriminação e exclusão.
80
2. Direitos humanos e as obrigações do Estado
Direitos humanos não são apenas um discurso bonito ou uma intenção política.
Eles são garantidos em nosso sistema jurídico nacional (tanto nas Constituições como
nas diversas leis infraconstitucionais) assim como na ordem internacional, e se expressam por meio de um sistema jurídico-normativo, que os indivíduos, os governos e a
comunidade internacional devem respeitar e promover.
Estamos falando de um conceito político, normativo e operacional que impõe obrigações aos Estados, incluindo todos os seus órgãos e instituições: 1) governo federal; 2)
estados; 3) municípios; 4) Congresso Nacional; 5) legislativos locais; 6) poder judiciário;
7) ministério público; 8) defensorias públicas; entre outros.
Entre essas obrigações está a de aplicar o máximo de recursos disponíveis para a
realização progressiva dos direitos humanos. Essa é uma obrigação assumida pelos Estados Nacionais quando da ratificação do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (PIDESC). Ou seja, a prioridade principal dos governos, quando da
alocação dos recursos públicos, deveria ser a promoção dos direitos. Digo deveria porque não é o que acontece na maioria dos casos.
É inspirado nessa obrigação prevista pelo PIDESC, que o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), desde 2007, vem implementando uma metodologia de análise
do orçamento, que busca articular o marco dos direitos humanos e das desigualdades,
com a medida de sua efetivação por meio das políticas públicas e do orçamento. Essa
metodologia é chamada de “Orçamento e Direitos Humanos”,1 e algumas idéias presentes nesse texto são baseadas nesse acúmulo institucional.
Cabe dizer que os Estados e seus agentes têm obrigações muito específicas com
relação ao respeito, proteção e promoção dos direitos humanos como podemos verificar
abaixo:
2.1. Respeitar os direitos humanos
É dever do Estado não ser o agente perpetrador da violação de direitos. Isso significa
que os agentes públicos do Estado não devem, em hipótese nenhuma, praticar tortura,
execuções sumárias (só para citar as violações mais explícitas de direitos), como também
manter sob custódia alguém em desacordo com a Lei. O Estado não pode interferir na
vida e intimidade das pessoas, ao menos que haja explícita disposição legal nesse sentido.
1 Para mais informações, consulte a publicação: Orçamento e Direitos: construindo um Método de Análise do Orçamento
à luz dos Direitos Humanos. Brasília, DF: INESC, 2011. Disponível na página eletrônica do INESC [www.inesc.org.br].
81
2.2. Proteger os direitos humanos
Além disso, é dever do Estado proteger os cidadãos das violações a seus direitos
provocadas por terceiros. Os entes públicos são responsáveis por fazer com que os indivíduos, grupos, ou empresas, respeitem a legislação vigente e, com isso, não prejudiquem os direitos individuais e coletivos de cada cidadão ou grupo.
2.3. Promover/realizar os direitos humanos
Um terceiro e fundamental dever do Estado, especialmente com relação aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, é a sua efetiva promoção por meio da
elaboração e implementação de políticas públicas. O Estado deve prover bens e serviços
públicos universais para garantir o direito das pessoas.
Para que um Estado seja garantidor dos direitos humanos, não significa apenas
respeitá-los, mas também promovê-los por meio da prestação de serviços públicos. Verificar se essa obrigação está sendo cumprida passa necessariamente pela análise do orçamento e das políticas públicas.
O Estado está destinando recursos suficientes para universalizar o acesso à educação, à saúde, à moradia, etc.? As políticas públicas possibilitam que as pessoas vivam
com dignidade? Os recursos são suficientes? Estão alocados onde deveriam?
2.4. Reparar os direitos violados
Outra obrigação do Estado é reparar e indenizar as pessoas que de alguma forma
têm seus direitos violados em razão da ação ou omissão dos entes públicos. Para que
essa obrigação seja cumprida, novamente temos que ter em mente o orçamento público.
Se o Estado viola o direito de algum cidadão/ã ou permite que esse direito seja violado,
deve reparar e indenizar a vítima da violação. Para tanto, parte dos recursos arrecadados da coletividade (por meio dos impostos) deve ser destinada para as vítimas dessas
violações. Isso dificilmente ocorre, dado a falta de acesso ao precário sistema de justiça
brasileiro.
82
Outras obrigações do Estado
• Respeitar e cumprir as determinações e recomendações das instâncias internacionais (tanto no Sistema das Nações Unidas, como no Sistema Interamericano de
proteção dos DHs);
• Quando ratificam um tratado internacional, os países estão obrigados a adotar
uma legislação nacional que esteja de acordo com os dispositivos desse acordo;
• Prestar informações e relatórios periódicos sobre a situação de direitos no país
junto aos Comitês de tratados internacionais e órgãos da ONU e OEA;
• Realizar campanhas e ações públicas para informar a população sobre os seus
direitos e os órgãos do Estado responsáveis por sua implementação;
• Promover a participação das pessoas nos processos de tomada de decisão sobre
as políticas públicas e orçamento. A perspectiva de direitos nos permite trocar a visão de beneficiário para falar do cidadão como protagonista das políticas públicas:
– no desenho;
– na aplicação dos recursos públicos;
– na avaliação e no monitoramento das políticas;
Promover os direitos humanos custa dinheiro. Por isso, os estados devem aplicar
o máximo de recursos disponíveis na realização progressiva dos direitos humanos,
como dissemos acima.
O conjunto dessas obrigações estatais configura o que chamamos de um Estado
Social e Democrático de Direito, que ainda não se efetivou para uma grande parte de
nossa população.
À sociedade cabe respeitar os direitos humanos, a diversidade e os diferentes modos de vida, construindo relações baseadas na solidariedade e na justiça, abolindo as
discriminações e os preconceitos.
3. Promovendo os direitos humanos por meio das políticas públicas
O Brasil não é um país pobre, possuindo recursos naturais e humanos suficientes
para garantir uma vida digna para toda a sua população. Contudo, a desigualdade de
renda, poder territorial, étnico-racial e de gênero impedem que parte da população acesse
esses recursos e desenvolva suas capacidades inatas.
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Para concretizar a intenção ético-política da construção de uma sociedade pautada nos direitos humanos, faz-se necessário, do ponto de vista do Estado,
que os conceitos abstratos de dignidade humana e cidadania sejam operacionalizados por meio de legislação ordinária, decretos, portarias; pela formulação e implementação de políticas públicas; e por uma dotação orçamentária suficiente para
a realização desses direitos.
O orçamento público é a materialização da ação planejada do Estado. É o nível de
realidade onde podemos realmente observar as prioridades de alocação dos recursos
que foram arrecadados de toda a coletividade e em que medida eles estão sendo aplicados na promoção dos direitos, ou pelo contrário, beneficiando grupos econômicos e
políticos que se apropriam dos recursos públicos a partir de seus interesses. Colocamos
esses elementos na figura abaixo para uma melhor visualização:
Constituição Federal /
Tratados Internacionais
Abstrato
Leis
Políticas públicas
Concreto
Orçamento Público
Figura 1 – Operacionalização dos Direitos Humanos
84
Assim, os governos, para além de explicitarem e concretizarem em legislação ordinária as diversas dimensões dos direitos (educação, saúde, moradia, alimentação,
segurança, cultura, trabalho, etc.), devem formular, implementar, monitorar e avaliar
políticas públicas, com dotação orçamentária suficiente para cumprir os objetivos de
universalização dos direitos previstos nessa mesma legislação, provocando mudanças
concretas na vida e no bem estar da população.
Uma política de direitos humanos pressupõe uma série de elementos a serem considerados, como por exemplo:
• o diagnóstico das violações de direitos;
• a participação da sociedade no planejamento e monitoramento da política;
• a elaboração de um programa/plano com ações concretas de promoção e defesa
de direitos;
• a construção de indicadores e metas de realização progressiva de direitos;
• mecanismos institucionais de proteção e denúncia;
• articulação institucional entre os diversos órgãos públicos responsáveis pela implementação da política.
3.1. Políticas públicas e orçamento
Mais do que um documento de receitas e despesas, o orçamento é um programa de
trabalho com metas e objetivos a serem alcançados. Ao elaborar o orçamento, o governo
faz uma estimativa de arrecadação e de gastos para garantir, entre outras coisas, que os
serviços sejam prestados, obras aconteçam sem cortes repentinos em programas sociais
ou atrasos no pagamento de aposentados e pensionistas, por exemplo.
Portanto, quando falamos em orçamento precisamos falar de políticas públicas e
suas diversas definições possíveis. Um bom sinônimo a ser utilizado é “política governamental”, muito embora, outras institucionalidades possam participar do processo de
construção e execução de uma política pública.
Política pública é uma ação formulada pelo poder público visando a um determinado objetivo, que produz resultados na coletividade. Uma política pública pode ter
como objetivo a promoção da educação básica de qualidade para crianças e jovens. As
ações dessa política podem ser: 1) construção de escolas; 2) compra de livros e outros
materiais didáticos; 3) o pagamento dos salários dos professores; etc.
Outra política pode ter como objetivo a promoção da agricultura familiar e
como público-alvo os pequenos produtores rurais. As ações dessa política podem
ser: 1) a aquisição de terras para a Reforma Agrária; 2) o apoio para a compra de
sementes e outros insumos agrícolas; 3) a garantia de compra de parte da produção
pelo governo; etc.
85
Ou seja, a política pública é uma idéia, um desejo, a intenção de realizar um objetivo e chegar a um resultado concreto sendo composta por um objetivo, público-alvo,
metas, ações, responsáveis, prazos, indicadores, etc. Um componente fundamental é o
orçamento que deve ser previsto e executado para cada ação da política pública. Esses
recursos são vinculados a determinados objetivos, atividades e resultados.
O que é política pública?
É um processo contínuo de decisões e resultados articulados em ações coordenadas
pelo Estado, que mobilizam conhecimentos, energias e recursos (físicos e financeiros)
com o objetivo de alcançar metas para transformar realidades, fornecer bens e serviços, solucionar problemas e materializar direitos. São exemplos: a política de educação, a política de financiamento da agricultura, a política de construção de moradias
populares, a política transferência de renda etc.
4. A estruturação das políticas públicas no Brasil contemporâneo
A Constituição restabeleceu o Estado Democrático de Direito no país após anos de
ditadura militar e de violação dos direitos humanos. No texto constitucional, a cidadania,
a dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária com
a redução das desigualdades sociais e a prevalência dos direitos humanos são objetivos a
serem alcançados pela República. Para que esses objetivos realmente se efetivem em uma
realidade histórica de exclusão, pobreza e desigualdades, a Constituição confere ao Estado
brasileiro um papel central na promoção dos direitos humanos e na redução das desigualdades, por meio da estruturação de políticas públicas de Estado e sistemas públicos de direitos.
Ao longo da década de 90 e início dos anos 2000, uma vasta normatização foi construída no sentido de operacionalizar os princípios constitucionais e construir políticas
públicas universais e permanentes. Esse verdadeiro reordenamento institucional foi formalizado por uma série de Leis, Decretos, Normas Operacionais, repartição de competências e recursos entre as três esferas da federação.
A Lei Orgânica da Saúde, da Assistência Social, o Estatuto da Criança e do Adolescente e mais recentemente o Estatuto do Idoso, Estatuto das Cidades, a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional e a Lei Maria da Penha,2 são alguns exemplos nesse sentido.
Apesar dos avanços conceituais e jurídicos, isso nem sempre refletiu e reflete no
formato/desenho das políticas públicas. Ainda vivemos a transição entre um modelo
tutelar das políticas para um modelo de garantia de direitos.
2
86
Lei nº 11.340/2006, que cria mecanismos para coibir e punir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Todo esse processo tem contado com uma intensa participação de organizações e
redes da sociedade civil, por meio de canais institucionais de participação, como Conselhos e Conferências, além da pressão direta nas esferas de poder (realizando estudos,
formação política, pressionando parlamentares e gestores, realizando protestos, manifestos, etc.). Nesse caminho cada vez mais as organizações da sociedade civil foram
obrigadas a se especializarem em áreas, lutas e “demandas específicas”, ao contrário do
grande bloco de forças políticas pela redemocratização do país dos anos 80. Isso gerou
uma falta de diálogo entre diversos espaços e políticas.
A opção feita, consciente ou não, foi de estruturar sistemas de direitos e políticas
públicas setoriais (saúde, educação, assistência, cidades, segurança alimentar) que ainda
têm muita dificuldade de diálogo entre si.
Por parte do Estado, devido a sua estrutura setorial burocrática, qualquer tentativa
de ações ministeriais conjuntas de gestão e execução compartilhada de políticas, encontra barreiras políticas (em que cada pasta deseja maximizar seus próprios resultados e
ações) e técnicas (pela hierarquia funcional existente nos ministérios e pela forma como
são elaboradas as peças orçamentárias por órgãos da administração).
Nesse sentido, é chegado o momento de (atingida uma certa estruturação e normatização necessária de diversas políticas públicas) trabalhar no sentido da integração
entre elas, na perspectiva da indivisibilidade dos direitos. Há alguns exemplos nesse sentido, contudo, há ainda uma cultura institucional no Estado e também na sociedade civil
que opera em uma lógica setorial e fragmentada, por motivos e condicionantes diversas.
Abaixo, apresentaremos três componentes fundamentais do conceito de políticas públicas previsto na nossa Constituição Federal:
4.1. Descentralização
A descentralização é uma das principais características da construção de políticas públicas no Brasil pós-1988. Cada esfera de governo: União, estados e municípios,
têm competências e recursos próprios para a construção de políticas públicas que visam
assegurar direitos. Ou seja, a implementação de políticas públicas passa por um pacto
federativo que é baseado em Políticas consensuais no âmbito nacional e implementadas
no nível municipal. Em alguns casos temos a implementação de sistemas, como o SUS
e o SUAS, e a criação de fundos orçamentários.3 Este novo desenho das políticas ainda
tem entraves no atual modelo de federação. Por exemplo, há a falta de objetividade na
3 A política de saúde é ainda o grande modelo de estruturação de políticas públicas universais, descentralizadas e participativas no Brasil. Estruturada a partir de um Sistema Único que reúne os três entes federativos e uma rede de privada de
hospitais filantrópicos, possui um Fundo orçamentário específico (Fundo de Saúde) e um sistema participativo de Conselhos de Políticas Públicas nos municípios, estados e no âmbito federal. Para além disso, prevê a realização periódica
de Conferências de Saúde (a cada quatro anos) com o objetivo de avaliar a situação de saúde no país e propor diretrizes
para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes.
87
definição do papel dos estados na execução das políticas públicas, o excesso de centralização da arrecadação dos recursos na esfera federal e a não articulação dos municípios
para a execução das políticas.
Portanto, para além das dificuldades de uma efetiva integração de políticas no âmbito nacional, há ainda o desafio de promover a intersetorialidade nos municípios, lócus
da prestação dos serviços públicos à população.
4.2. Universalidade
Estabelecer políticas públicas universais a serem promovidas pelo Estado é uma
das principais diretrizes da Constituição Federal. Contudo, há um grande desafio, contido no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) que é a universalização dos
direitos em um contexto de desigualdades.
Cabe dizer que muito se avançou após a Constituição Federal de 1988 na construção de um arcabouço legal de garantia de direitos. Contudo, pouco se avançou na efetivação de direitos dentro de um contexto de grandes desigualdades. No caso da sociedade brasileira, essa dimensão é essencial. Não há como falar em direitos sem considerar o
ambiente de desigualdades estruturais, no qual certos sujeitos de direitos (em razão de
fatores como cor, sexo, faixa etária, orientação sexual, etnia, etc.) tenham maiores dificuldades de acessar direitos ou tenham seus direitos negados e violados.
Combater a pobreza no Brasil ou as desigualdades de renda passa necessariamente
pelo entendimento de que aqui ambas têm relação com as variantes de cor e sexo. As
mulheres negras são as mais pobres e têm menor grau de escolaridade, enquanto os homens jovens e negros são os que mais sofrem com a violência, por exemplo. As inaceitáveis distâncias que ainda separam negros de brancos em pleno século XXI se expressam
no microcosmo das relações interpessoais diárias e se refletem nos acessos desiguais a
bens e serviços, ao mercado de trabalho, à educação (que persistem apesar das melhorias
nos indicadores tomados para o conjunto da população), bem como ao gozo de direitos
civis, políticos, sociais e econômicos.
Observamos que uma pequena parcela da população detém a maior parte da renda
nacional. Esta concentração faz com que o poder econômico e político também se reúnam nas mãos de poucos.
Todos esses fatores, fruto de uma sociedade marcada por profundas desigualdades,
impactam as políticas públicas, que muitas vezes são formuladas desconsiderando esse
contexto. Assim, a universalidade formal sucumbe à realidade de exclusão vivenciada
por grupos e setores de nossa sociedade para quem o Estado de Direito é uma ilusão e os
serviços públicos não garantem dignidade.
88
4.3. Participação popular
A criação de um sistema de participação social nas políticas públicas, a partir das
diretrizes da Constituição de 1988, ganhou forma pela criação de Conselhos setoriais de
Políticas Públicas nos três níveis federativos e pela realização periódica de Conferências
de Políticas Públicas. Ao longo da década de 1990, muita energia foi direcionada para
a constituição e consolidação de conselhos municipais e estaduais e na capacitação de
conselheiros/as. Isso ocorreu, especialmente, nas políticas de saúde, assistência social e
criança e adolescente, devido às previsões legais nesse sentido.
A partir de 2003, há uma nova geração de conselhos e processos de conferências
têm sido realizados, articulando e construindo uma nova geração de políticas públicas,
como a política de promoção da igualdade racial, política para as mulheres, cidades,
segurança alimentar, segurança pública, etc.
Em que pese a ampliação de espaços participativos de controle social e cogestão,
bem como a inclusão de novas pautas e temas às políticas públicas, o Estado (nas suas três
esferas), ainda não enxerga a participação de forma orgânica, como uma estrutura deliberativa e decisória integrada. Para algumas políticas setoriais essa participação é mais
estruturante (saúde, criança e adolescente, assistência social), contudo essa não é a regra.
A participação ainda é vista como instrumental e não como essencial nos processos
democráticos, portanto, com potencial enorme de provocar transformações políticas,
sociais, econômicas e culturais.
Na esfera federal não há uma integração horizontal entre os conselhos, que por
vezes discutem as mesmas questões de forma desconectada. A falta de vontade política
para a criação de um verdadeiro sistema participativo, somada a dificuldade de integração das políticas setoriais, faz com que os espaços de participação reproduzam a fragmentação das políticas.
O desenho da política influencia totalmente a sua efetividade. No caso da criança
e do adolescente, por exemplo, que é uma política transversal, não se observa elementos
explícitos de intersetorialidade, enquanto deveria estar contida nas ações dos diversos ministérios. Não se criou uma institucionalidade adequada para a efetivação do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA). A articulação dos direitos previstos no ECA com a política de assistência social, por exemplo, cujo foco principal é a proteção à infância e à adolescência, é residual e o debate público nos Conselhos da Criança e do Adolescente ficou
restrito à questão do adolescente em conflito com a lei e a violação de direitos. Isso vale
também para os conselhos da assistência que, na maioria das vezes, abordam a questão da
criança e do adolescente unicamente do ponto de vista do atendimento e não dos direitos.
Com relação às deliberações das Conferências, o impacto da fragmentação das políticas e dos espaços de participação também é evidente. A maioria das conferências e suas
deliberações são intersetoriais e há muita dificuldade dos órgãos setoriais efetivarem os
encaminhamentos de deliberações que estão relacionadas com outros órgãos gestores.
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Esses órgãos formulam e executam suas ações a partir de suas próprias diretrizes e dinâmicas e têm muita dificuldade de absorverem decisões e recomendações de outros espaços de poder. Não há um órgão centralizador de governo que assuma a responsabilidade
de dar sequência às demandas populares expressas nos processos de Conferências.
Na esfera federal esta atribuição é da Secretaria Geral da Presidência da República,
que vem envidando esforços para a criação de um Sistema Nacional de Participação
Social. A criação de um sistema como esse é fundamental para uma maior articulação e
efetividade da participação popular.
O argumento central a ser ressaltado é que a falta de uma visão estratégica da importância da participação por parte dos governos, e a forma como os espaços de participação estão constituídos, tem alimentado uma concepção de políticas públicas setoriais,
com dificuldade de articulação de ações e estratégias. Além disso, a participação ficou
reduzida praticamente às chamadas políticas sociais, sendo insignificante nas políticas
econômicas e de desenvolvimento.
5. Reflexões sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos
Com o processo preparatório e a realização da 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, ao longo de 2008, instalou-se um grande debate sobre as prioridades que
o Estado brasileiro deveria assumir na área de direitos humanos. Para representantes do
poder público, organizações da sociedade civil, e movimentos sociais, foi um momento
para avaliar essa situação e estabelecer diretrizes e metas para o novo Programa Nacional
de Direitos Humanos (PNDH-3).
Desde o início, o principal desafio político e metodológico da construção do
PNDH-3 foi o de construir um programa que considerasse a indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos em todas as suas dimensões. Seis delas foram consideradas estruturantes na construção do Programa: 1) a universalização dos direitos
em um contexto de desigualdades; 2) o impacto de um modelo de desenvolvimento
insustentável e concentrador de renda na promoção dos direitos humanos; 3) a questão
da violência e da segurança pública; 4) educação e promoção de uma cultura em direitos
humanos; 5) direito à memória e à verdade; 6) democracia e direitos humanos.
As principais críticas recebidas pelo Programa vieram dos latifundiários, das grandes empresas de mídia e de setores da Igreja Católica e das Forças Armadas, grupos mais
conservadores da sociedade. Isso porque o Programa estabelecia diretrizes e ações que
confrontavam privilégios e/ou interesses desses grupos. O Programa tocou em questões
sensíveis aos interesses dos grupos dominantes no país: 1) a função social da propriedade; 2) a democratização dos meios de comunicação; 3) a laicidade do Estado. Além
90
disso, ousou priorizar um processo de transparência quanto aos tristes acontecimentos
promovidos pelo Estado durante a ditadura militar.
Formulado de maneira transparente, dentro de um processo que envolveu grande
participação popular, consultas públicas e conferências municipais, estaduais e nacional,
com a presença de 14 mil representantes do poder público e da sociedade civil, o PNDH-3
caminha no sentido da efetivação de uma política real de Direitos Humanos.
Mesmo com as alterações realizadas e com as dificuldades de implementação enfrentadas no governo Dilma, o PNDH dá um passo adiante na promoção dos direitos no
Brasil, comparado com os programas formulados durante o governo FHC (PNDH-1, de
1996, e o PNDH-2, de 2002), e concretiza o que já está previsto nos inúmeros tratados
internacionais que o Brasil ratificou no âmbito das Nações Unidas e do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Contudo, ainda há muitos desafios para que o Brasil tenha políticas públicas efetivas em relação aos direitos humanos.
O principal desafio para a implementação do PNDH-3 é transformá-lo em uma
política de Estado, não de um governo, ou mesmo da Secretaria dos Direitos Humanos.
Isso significa que este programa deve ser um instrumento de referência para a formulação de programas e ações tanto para o poder executivo, como para o poder legislativo e
judiciário. No entanto, não é isso que está acontecendo desde a sua publicação.
Para a efetividade do Programa também é necessário que as diretrizes que o compõe tenham reflexos nos instrumentos de planejamento do Estado brasileiro (Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias, Lei Orçamentária Anual).
Embora o Estado brasileiro tenha se comprometido, com a ratificação do Pacto
Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), em 1992, a destinar o máximo de recursos disponíveis, visando assegurar progressivamente os direitos
elencados no Pacto, não é isso que ocorre. O orçamento da União não se destina prioritariamente a garantir os direitos da população, mas sim à manutenção de privilégios
(como o pagamento de juros da dívida do governo) para investimentos (diminuindo o
custo para a reprodução do capital) e em muitos casos, para políticas sociais compensatórias, que não garantem a emancipação de seus sujeitos de direito.
Por mais genéricas que possam ser as diretrizes e metas estabelecidas, todas elas
devem se materializar em ações concretas, monitoráveis e com recursos suficientes para
a sua realização. Isto é, devem ser elaborados planos anuais, como um instrumento sintético, monitorável e composto de diretrizes e metas de direitos humanos a serem efetivadas e cumpridas pelo Estado brasileiro em toda sua extensão (União, estados, municípios, executivo, legislativo, judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública). Um
Plano de Metas para a realização progressiva dos Direitos Humanos. Contudo, é triste
constatar que isso ainda é um objetivo distante.
91
6. Indicadores de direitos humanos
A produção e divulgação de dados e indicadores é um importante instrumento
para o monitoramento da política do Estado voltada à concretização de direitos humanos. Quando falamos em progressiva realização destes direitos, significa que precisamos
desenvolver indicadores aptos a demonstrar o nível de acesso da população aos diversos
direitos (educação, saúde, moradia, segurança, etc.).
A definição de indicadores em direitos humanos é um debate político e não apenas
técnico. Por essa razão a sociedade civil deve participar no debate sobre a construção de
indicadores de direitos humanos, inclusive pode ser fonte de dados.
Esses indicadores devem ser desagregados e o poder público deve produzi-los ou sistematizá-los com regularidade. A observância das desigualdades de raça, gênero e etnia e
da forma como homens e mulheres, negros/as e brancos/as têm acesso aos direitos devem
ser componentes centrais em um sistema de indicadores. É importante também a produção de indicadores desagregados por territórios, não apenas por municípios, possibilitando medir desigualdades existentes dentro das cidades e nas diversas regiões do país.
Acreditamos que a Secretaria dos Direitos Humanos (SDH) tem um papel central
de articulação do PNDH-3 dentro do governo federal, junto aos outros poderes, estados e
municípios. Para além de executar ações vinculadas ao PNDH-3 nas áreas da criança e do
adolescente, pessoa com deficiência, população LGBT, etc., a SDH deve manter um sistema de indicadores nacionais de DHs, além de atuar de forma transversal junto aos outros
ministérios e poderes, trabalhando em conjunto para elaborar e monitorar os diversos
programas e ações que irão contribuir para a realização das diretrizes e metas do PNDH-3.
Por fim, cabe dizer que se de um lado o PNDH-3 provocou a formação de uma
agenda comum para os movimentos de direitos humanos e uma indicação clara para as
políticas públicas no país, de outro lado, há a rearticulação de grupos conservadores e a
super exposição na esfera pública de posicionamentos claramente contrários à promoção dos direitos e à redução das desigualdades e da discriminação no Brasil. Para que
lado a balança irá pender nos próximos anos, ainda é uma incógnita.
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CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS
E LUTAS SOCIAIS NO BRASIL
Marco Apolo Santana Leão*
O Brasil é conhecido tanto pela realidade de violação de direitos humanos nos mais
diversos níveis quanto pela ação de uma sociedade civil articulada contra a ditadura
militar, na busca da anistia e abertura política, na elaboração de uma constituição democrática, e no reconhecimento e promoção de diversos direitos. Mas estas contribuições
não são bem aceitas pelos setores conservadores e elites econômicas de nosso país, fator
que gerou no passado fortes reações, perceptíveis também no momento presente, cuja
característica basilar é a manutenção, a todo custo, de privilégios e vantagens em detrimento de milhões de pessoas.
A atuação de defensores na promoção de direitos humanos enfrenta resistências
e retaliações sempre que determinados interesses individuais ou de grupos poderosos
são contrariados. Isto é facilmente constatado pelas diversas listas de pessoas marcadas
para morrer, que de fato foram renovadas em virtude da eliminação física de defensores
de direitos humanos em todo país.
O que mais chama a atenção de militantes e organizações ligadas à luta pelos direitos humanos é a existência de pelo menos três grandes tipos de violações colocadas em
prática de forma disseminada contra estes defensores e suas organizações: a vitimização,
a difamação e a criminalização (LEÃO, 2008).
*
Advogado Militante de Direitos Humanos, Presidente da Sociedade de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Brasília. O presente texto contou ainda com parte das elaborações e reflexões contidas no dossiê sobre a criminalização dos movimentos sociais no Brasil construído pelo PAD.
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A vitimização, que é a ação mais clássica contra lideranças do movimento social,
envolve violências praticadas contra estas pessoas caracterizadas principalmente por homicídios e ameaças.
A difamação consiste em ações e campanhas dirigidas contra a imagem e reputação
destas lideranças na tentativa de minar a credibilidade de que gozam diante de suas comunidades objetivando anular sua atuação em prol da exigibilidade de direitos.
E a “criminalização de movimentos sociais e de defensores de direitos humanos”
atribui indevidamente condutas ilícitas e promove procedimentos visando a atingir a
imagem, liberdade e atuação destas pessoas e organizações. Essa abordagem se faz necessária dada a constatação de uma crescente onda de criminalização e difamação dos
movimentos sociais e de suas lideranças no Brasil.
1. Um pequeno histórico da repressão política no Brasil
Em função da discussão sobre a criminalização de movimentos sociais e de defensores de direitos humanos ter se destacado na agenda das organizações populares,
em fóruns nacionais e internacionais, fica a impressão de que se trata de um problema
recente a incidir na realidade dos que discutem, defendem e promovem tais direitos. No
entanto, trata-se de uma forma de violação que remonta à história do Brasil.
O país, desde sua colonização, é marcado por uma estrutura econômica cuja característica é a concentração de riquezas, a exploração predatória de recursos naturais, desigualdades sociais e episódios graves de violência contra todos os que se opuseram a esta
realidade. Dito isso, podemos afirmar seguramente que índios e negros, bem como suas lideranças, foram as primeiras vítimas desse processo que denominamos de criminalização.
Não é à toa que a população indígena foi praticamente dizimada em muitos estados
brasileiros ao resistir à invasão, escravização e expropriação de seus bens naturais e territórios. Da mesma forma, a resistência da população negra à escravidão, praticada por
séculos no Brasil, sempre teve uma reação violenta por parte dos escravagistas, donos de
fazendas e do próprio Estado.
A repressão política também se fez presente no país quando, no início do século XX,
operários organizaram-se em sindicatos e ensaiaram movimentos grevistas por melhores
condições de trabalho, de salário e pela redução da jornada de trabalho, diante do nascente
processo de industrialização, que no Brasil foi mais lento do que na Europa e nos EUA. Contudo, o momento mais contundente da criminalização de movimentos sociais e de seus militantes deu-se com a instauração da Ditadura Militar em 1964, que reprimiu praticamente
todas as organizações populares cujos integrantes foram presos ou assassinados. Também é
deste período a legislação que, vigente até os dias de hoje, criou diversos delitos que expressam bem a criminalização patrocinada pelo Estado: a “Lei de Segurança Nacional”.
94
Portanto, ao abordar a questão da criminalização não falamos de um fenômeno
recente, mas de uma forma de ação estatal que tem subjugado os que politicamente
questionam ou, no mínimo incomodam, setores econômicos privilegiados ao longo de
toda a nossa história.
2. A realidade brasileira e conflitos sociais
A luta por direitos humanos seja numa perspectiva local ou nacional, individual ou
coletiva, sempre encontrou fortes resistências por parte de vários setores da sociedade.
Assim, podemos dizer que as ações desenvolvidas por ativistas sociais vão ao encontro
do reconhecimento de direitos ou à exigibilidade dos mesmos.
Na época da colonização e da escravidão predominou a busca da liberdade; no
momento da superexploração das fábricas, a reivindicação foi por condições dignas de
trabalho; a exclusão política e econômica das mulheres deu origem ao movimento feminista que obteve sucessivas vitórias ao longo do século XX.
Essa primeira explanação exige a contextualização da realidade à qual se dirige a
luta social, seus principais atores, e a ação do próprio Estado, que não tem sido inerte
aos conflitos que se estabelecem. Os entes públicos têm tomado partido e atuado decisivamente na defesa dos interesses que, historicamente, lhes sustentam.
O Brasil é um país com graves problemas de desigualdade sendo considerado, junto com o Equador, o país com maior concentração de renda das Américas:
O Brasil tem o terceiro pior nível de desigualdade de renda do mundo, empatado com
o Equador. A constatação é do primeiro relatório sobre desenvolvimento humano para
América Latina e Caribe sobre distribuição de renda, elaborado pelo Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2000).
No Brasil, o Índice de Gini, que mede a desigualdade, é 0,56. Quanto mais perto de 1, mais
desigual é o país. O levantamento aponta dois outros grupos de países com situação mais
grave: Bolívia, Camarões e Madagascar - empatados com 0,60 - e África do Sul, Haiti e
Tailândia, todos com 0,59. Dos 15 países do mundo com maior concentração de renda, dez
são da América Latina. Segundo a ONU, o baixo nível educacional é um dos fatores que
mais dificultam a melhoria social na região (BRÍGIDO, 2010).
Esse mesmo relatório da ONU indica que a transmissão intergeracional da desigualdade, a falta de acesso aos serviços básicos e de infraestrutura, a baixa renda, além
da estrutura fiscal injusta e da falta de mobilidade educacional entre as gerações, estão
entre as causas dessas desigualdades.
95
O País ainda convive com dados vergonhosos sobre educação, que apontam a existência de um fosso entre a zona urbana e a zona rural. O analfabetismo, por exemplo, se
faz presente numa taxa de 7,5% para pessoas acima de 15 anos nos centros urbanos e de
23,5% na zona rural (PNAD, 2010).
O desemprego, segundo a mesma pesquisa do IPEA, é maior entre negros (11,36 %)
do que entre brancos (7,71 %). Por outro lado, enquanto os brancos ganham em média
R$ 937,36 os negros recebem R$ 496,64. A desigualdade de gênero também predomina
no Brasil, onde as mulheres (11,6%) figuram como a maioria entre a população desempregada que conta com (7,4 %) de homens desempregados (PNAD, 2010).
A violência, fruto em boa parte desse desequilíbrio, também logra índices elevados
comparáveis a conflitos bélicos de nações em guerra. Em 30 anos, o Brasil ultrapassou a
marca de 1 milhão de vítimas de homicídio. Dados do Mapa da Violência 2012, divulgado pelo Instituto Sangari, apontam que o número de homicídios passou de 13,9 mil em
1980 para 49,9 mil em 2010, o que representa um aumento de 259%. Com o crescimento
da população nesses 30 anos, a taxa de homicídios passou de 11,7 em cada grupo de 100
mil habitantes em 1980 para 26,2 em 2010. De acordo com o relatório, a média anual de
mortes por homicídio no país supera o número de vítimas de enfrentamentos armados no
mundo. Entre 2004 e 2007, 169,5 mil pessoas morreram nos 12 maiores conflitos mundiais. No Brasil, o número de mortes por homicídio nesse mesmo período foi 192,8 mil.1
Este quadro de violência avança também sobre populações tradicionais como ribeirinhos, lavradores e quilombolas. Os povos indígenas brasileiros continuam a ser vítimas de
diversos crimes e no caso do Mato Grosso do Sul, de uma verdadeira “limpeza étnica”, segundo se pode apreender do recente relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI):
No ano de 2009 foram registrados 60 assassinatos de indígenas, número igual a 2008. Mais
uma vez a grande maioria dos casos (33) ocorreu no estado de Mato Grosso do Sul, sendo
que todas as vítimas pertenciam ao povo Guarani Kaiowá. O número elevado confirma a
continuidade da violenta realidade vivida por esse povo, que vem sendo registrada ao longo
dos anos. Além desses, foram registrados 7 na Bahia, 3 no Maranhão, l no Mato Grosso, 2
no Paraná, 3 em Pernambuco, 3 no Rio Grande do Sul, l em Rondônia, l em Roraima, 2 em
Santa Catarina, l em São Paulo e l no Tocantins (CIMI, 2009).
Levantamento feito pelo CIMI mostra que ao menos 450 obras afetam terras indígenas no país. Dentre estas, muitas estão incluídas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do Governo Federal. Dezenas de hidroelétricas, redes de transmissão,
rodovias, ferrovias, hidrovias, portos, são construídos em todas as regiões do país, sem
que os povos indígenas sejam ouvidos como exige a Constituição Federal. Aqui se destacam os licenciamentos ambientais, muitos deles eivados de vícios jurídicos e concedidos
pelos órgãos governamentais única e exclusivamente devido às pressões políticas sobre
técnicos e diretores responsáveis.
1
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Por outro lado, as condições com que o judiciário, o executivo e a polícia têm lidado com as pessoas que cometem crimes revelam as mazelas do processo de criminalização da pobreza e as condições sub humanas com que as mesmas têm sido tratadas nos
cárceres do país:
No Brasil existiam 473.626 pessoas presas em dezembro de 2010, para apenas 294.684
vagas no sistema penal. Uma pessoa em cada grupo de 262 adultos está presa no Brasil.
Em 1995, essa proporção era de 1 para 627. Em São Paulo, com um quinto da população
brasileira e um terço dos presos, um em 171 está na cadeia. Entre 1995 e junho de 2011, a
taxa de encarceramento (número de presos para cada cem mil habitantes) brasileira quase
triplicou (CIMI, 2009).
A implantação de grandes projetos que prometem o desenvolvimento da região sem
que isso represente profundas mudanças na realidade local permanece como característica do projeto de desenvolvimento nacional, que tem agora um Plano de Aceleração
Econômica, com previsão de obras sem o devido cuidado com o meio ambiente.
O caos das cidades brasileiras no acesso aos direitos econômicos e sociais, a
miséria na área rural do nordeste, a devastação das florestas provocada pelo avanço
do agronegócio e da pecuária, são resultados das opções do modelo de desenvolvimento em curso.
A Amazônia, embora seja a região mais rica do mundo em biodiversidade, convive com a exclusão social, e investimentos adotados pelo Estado brasileiro, que revelam
um lamentável quadro de ações predatórias como construção de barragens, incentivos
a atividades de mineração, plantação de soja, devastação da floresta para exploração da
madeira e incentivo da pecuária extensiva.
Ainda são comuns os casos de trabalho escravo, apesar da ação da sociedade civil e
do Estado, através da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. Estas ações, contudo, ainda não impedem a escravização de pessoas. Da mesma forma, persistem muitos
casos de violação de direitos como a discriminação e violência racial, étnica, homofóbica, de gênero e contra crianças e adolescentes.
Ao lado dos conflitos agrários, vale ressaltar a atividade minerária que tem capitaneado todos os setores interessados na manutenção dessa estrutura de desigualdade em
nome de um desenvolvimento para todos. Na questão energética multiplicam-se projetos com impactos desastrosos para o meio ambiente e populações tradicionais, como
nota-se pelo Projeto de construção da Hidrelétrica de Belo Monte, condenado inclusive
pela Comissão de Direitos Humanos da Organização de Estados americanos (OEA).
A grande concentração de terras também é, ao mesmo tempo, a motivação da atuação de boa parte dos defensores de direitos humanos e a causa de ameaças e de criminalização. Terezo (2006) afirma que:
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O Brasil tem entre seus indicadores aquele que demonstra ser um dos maiores países com
concentração de propriedade. Os estabelecimentos agrícolas chegam a 4,8 milhões, a área
ocupada representa 353,6 milhões de hectares. Os minifúndios e as propriedades com menos de 100 hectares somam 89,1 % dos imóveis e 20 % da área total. Apenas 1% dos imóveis
que detém 45 % das terras cadastradas são as grandes propriedades com área acima de
1.000 hectares. Além disso, os dados demonstram que 35 mil dos imóveis considerados
latifúndios estão sem produzir, ou seja, 1% do número de propriedade, os quais ocupam
mais de 60% de área cadastrada (IBGE, 1996).
A apropriação indevida de terras públicas por fazendeiros ou especuladores imobiliários envolve números inacreditáveis, inclusive do ponto de vista jurídico, pois a quantidade de terra no Brasil é muito superior à terra existente e de fato disponível.
Isso gera a exclusão e expulsão de lavradores, ribeirinhos, índios e quilombolas
das terras que ocupam há anos. Esses despejos, inclusive contam com o aval do poder
judiciário que defere reintegrações de posse sem ouvir as pessoas interessadas. Segundo a (CPT, 2011) ocorreram 1.186 conflitos no campo no ano de 2010, o que revela a
omissão do poder público, a paralisação e o retrocesso nas políticas públicas de reforma agrária.
Os conflitos diversificam-se cada vez mais, sendo a matriz hidroenergética o novo
foco de tensões como bem ressalta a CPT em seu relatório anual:
Estes conflitos atingem famílias e comunidades que têm terra, casa e benfeitorias alagadas pelas barragens das hidrelétricas ou que são impedidas de ter o livre acesso às
fontes, ou que tem sua água contaminada pelos agrotóxicos das grandes monoculturas
ou pelos resíduos de mineração. Conflitos que na outra ponta envolvem trabalhadores da
construção das grandes obras. Como ressalta o texto que analisa estes conflitos, é o econômico que se sobrepõe a qualquer outra dimensão e valor da água. E tudo com o apoio
e investimento do governo federal, que a todo custo quer impor seus grandes projetos
que fazem parte do Programa de Aceleração do Crescimento - PAC, sem dar ouvidos a
cientistas, movimentos sociais, entidades da sociedade civil e às comunidades tradicionais que historicamente acumularam saber na relação com as águas e a natureza, e que
alertaram para os imensuráveis impactos que os mesmos provocam. Os impactos sociais
e ambientais acabam se tornando mero detalhe, um apêndice sem muita importância
(CANUTO, 2011).
A impunidade em relação aos casos de ameaças e assassinatos contra defensores
de direitos humanos alimenta o ciclo da violência que, no entanto, vem apresentando
algumas mudanças nos últimos anos.
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3. Defensores de direitos humanos no Brasil
Diante desta realidade muitas pessoas têm se organizado e buscado intervir na expectativa de transformá-la. Objetivam alcançar o reconhecimento de direitos, como no
caso dos direitos homoafetivos, ou defender direitos já reconhecidos, como a igualdade
de gênero, ou promover direitos como o de acesso à terra e à moradia. Em recente dossiê
elaborado pelo Processo de Articulação e Diálogo (PAD) informa-se a situação destes
defensores:
A estes e estas militantes sociais, que visam, com suas atuações e proposições defender e
promover os direitos humanos é que chamamos de defensores de direitos humanos. No
caso brasileiro, a experiência social mais relevante tem sido de atuações coletivas através de
movimentos sociais como a Via Campesina, Movimentos de camponeses, de mulheres, de
índios, sindicatos ou mesmo de organizações não governamentais ou associações.
A Organização das Nações Unidas define defensores e defensoras de direitos humanos
como: [...] indivíduos, grupos e órgãos da sociedade que promovem e protegem os direitos
humanos e as liberdades fundamentais universalmente reconhecidas.(CITAR A RESOLUÇÃO) Não tem a fonte da informação [...].
A resolução da ONU que define quem são os defensores visa conferir legitimidade
a todos aqueles que atuam no campo dos direitos humanos. A Organização dos Estados
Americanos (OEA), também já se manifestou através da resolução nº 2036 de 8 de junho
de 2004, quando afirmou a necessidade dos Estados membros adotarem medidas para
garantir o trabalho de defensores de direitos humanos nos países das Américas uma vez
que neste continente “persistem situações que, direta ou indiretamente, impedem ou
dificultam as tarefas das pessoas, dos grupos ou das organizações que trabalham pela
proteção e promoção dos direitos fundamentais;” determinando expressamente:
1. Reiterar seu apoio à tarefa que os defensores de direitos humanos realizam, no
plano nacional e regional, e reconhecer sua valiosa contribuição para a promoção, respeito e proteção dos direitos e das liberdades fundamentais no Hemisfério;
2. Condenar os atos que, direta ou indiretamente, impedem ou dificultam as tarefas
dos defensores de direitos humanos nas Américas;
3. Incentivar os defensores de direitos humanos a manter a colaboração desinteressadamente no aperfeiçoamento dos sistemas nacionais de direitos humanos, com vista
à consolidação da democracia em observância dos princípios constantes da Declaração
das Nações Unidas sobre Defensores de Direitos Humanos.
A própria ONU tem acompanhado a situação dos defensores de direitos humanos
no Brasil, mas infelizmente não existem notícias de terem sido implementadas as recomendações feitas pela Relatora da instituição sobre a situação destas pessoas no país.
Hina Jilani visitou o Brasil de 5 a 21 de dezembro de 2005, ocasião em que se encontrou
99
com representantes do governo, com uma grande quantidade de defensores/as de direitos humanos e representantes de organizações não governamentais. Passados 7 anos
da visita da relatora, a realidade expressa em seu relatório permanece praticamente a
mesma, com o agravante do pretenso governo democrático do Governo Lula e Dilma
terem se somado a ataques aos movimentos sociais e ONGs que lhe fazem críticas principalmente na condução da política de meio ambiente e energética.
Em outras palavras, sobram exemplos de reconhecimento legal, seja no plano nacional ou no internacional, do trabalho desenvolvido por defensores de direitos humanos e movimentos sociais. Daí ser inexplicável que persistam o desrespeito e violações
no Brasil, apesar do fim da ditadura militar e do restabelecimento de um Estado, em tese,
democrático, de direito e calçado em uma nova Constituição.
4. Criminalização, difamação e vitimização de defensores
de direitos humanos e movimentos sociais no Brasil
São várias as formas de violação que atingem os defensores e suas organizações no
Brasil. Há pouco tempo somente a vitimização era visualizada dada a extensão e a gravidade de atos como os assassinatos, agressões físicas e as ameaças. Esta situação é tão crítica que
as diversas listas se renovam exatamente pela eliminação das pessoas que ali figuram como
ameaçadas. Somente no ano de 2010, em decorrência de conflitos no campo, 34 pessoas
foram assassinadas (CPT, 2011). No Ano de 2011, em um levantamento parcial feito entre
os meses de janeiro e novembro pela própria CPT, 23 pessoas foram assassinadas, sendo a
maioria em decorrência de conflitos envolvendo o meio ambiente, destaque-se que algumas
dessas lideranças já estavam inclusive ameaçadas como é o caso dos ambientalistas Maria
do Espirito Santo da Silva e José Claudio Silva, mortos no Estado do Pará, após figurarem
inclusive em uma lista oficial da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da
República, sem que nenhuma providência fosse adotada para preservar suas vidas.
Tal realidade denunciada há 7 anos pela relatora da ONU sobre a situação de defensores/as de direitos humanos, permanece intacta:
É entristecedor que em termos reais nem o retorno à democracia, com um sólido quadro
legal para a defesa dos direitos humanos, nem a presença da ação e da experiência da sociedade civil tem fornecido a proteção suficiente para os defensores de direitos humanos e
suas atividades. Em seus esforços de alcançar os direitos econômicos, sociais, ambientais
e culturais; na busca de denunciar as violações dos direitos humanos e de acabar com a
impunidade dessas violações; e na resistência à discriminação ou à marginalização, muitos
defensores de direitos humanos continuam sendo ameaçados e prejudicados.2
2
Relatório da Relatora da ONU para Defensores de Direitos Humanos. Versão disponibilizada pela Sociedade Paraense
de Defesa dos Direitos Humanos – Departamento Internacional (DIDH).
100
Foi assim com Dorothy Stang ameaçada e, apesar de seu nome constar na lista de
marcados para morrer, assassinada, sem que nenhuma ação efetiva de proteção ou de
combate às causas das ameaças fossem adotadas por parte do Estado. Tem-se constatado, no entanto, que nos últimos anos acirram-se outras duas formas de violação, a saber,
a difamação e a criminalização.
5. A difamação de movimentos sociais e de suas lideranças
Segundo o código penal brasileiro, difamar é imputar a alguém um fato ofensivo à
sua reputação. Trata-se de uma forma de ação que visa a atingir a imagem de uma pessoa, tentando desqualificar o argumento e o discurso dos defensores e suas organizações.
Com isso, esperam-se dois resultados: 1) eliminar o potencial transformador da ação ou
das denúncias destas pessoas; 2) ou pelo menos minimizar o seu alcance, uma vez que a
credibilidade, mola mestra da ação dos defensores, será afetada.
Não se trata, como se vê, de uma tarefa simples, identificar quando se está diante
dessa forma de violação, o que torna mais difícil adotar ações contra ela. As ações
ou campanhas difamatórias podem se dar como uma aparente crítica política, semelhantes às que enquadram militantes de ONGs ambientalistas como adversários do
desenvolvimento, ou mesmo mais agressivas; assim como aquelas que acusam movimentos sociais como o MAB e o MST de baderneiros, de foras-da-lei, de terroristas
ou criminosos.
Fernanda Maria da Costa Vieira, ao comentar as decisões tomadas pelos juízes ao
ordenar a prisão ou condenar militantes do MST afirma que:
[...] Essa reorientação se efetivou com a sedimentação de uma série de estereótipos veiculados, via mídia, gestando um terreno de demonização do MST, como um movimento
de desordeiros, baderneiros, enfim, uma ameaça ao Estado Democrático de Direito. Essa
criminalização vivenciada pelo MST se insere num processo mais amplo de criminalização
da miséria (VIEIRA, 2007).
São ações que têm na grande imprensa a sua principal fonte de propagação, que
invariavelmente obsta o direito do contraditório aos movimentos e pessoas acusadas de
fatos que notoriamente atingem a sua reputação.
As ações de difamação buscam a identificação do/a defensor/a de direitos humanos
como “defensor/a de bandidos” ou consistem em insinuações de que o/a defensor/a de
direitos humanos faria parte de esquemas criminosos, por exemplo. Essas campanhas
podem ainda ser dirigidas para expor o/a defensor/a de direitos humanos como um
agente contrário do desenvolvimento econômico e social local, ou a serviço de entidades
101
estrangeiras, ou ainda como responsável pelo desemprego e pela miséria em suas regiões. O próprio Ministro das Minas e Energia Edison Lobão diz que “forças demoníacas”
estão impedindo a realização de usinas hidrelétricas de grande porte no país, referindo-se a resistência dos movimentos sociais e índios ao projeto da UHE de Belo Monte.
6. Vitimização de defensores de direitos humanos
São ações e omissões que resultam em situações de violência física ou psicológica
contra defensores de direitos humanos. Destacamos aí as ameaças, agressões físicas, lesões corporais, torturas, estupros, tentativas de homicídio e assassinatos, entre outros.
Sabemos que a violência é um dos principais problemas de nossa sociedade e tem sido
sentida por defensor/a de direitos humanos e setores economicamente mais fragilizados,
com uma intensidade e constância que diferem do cotidiano da maior parte da população.
As ameaças não são dirigidas somente aos/às defensores/as, mas também aos
seus familiares, a outras lideranças e a pessoas ligadas à sua atuação. Boa parte das
situações de ameaças e de violações não é registrada pelos/as defensor/a de direitos humanos em delegacias de polícia, pois os ameaçados afirmaram que não o fizeram por
não confiarem na polícia. A descrença e desconfiança dos/as defensores/as quanto às
autoridades policiais, se dá por vários motivos:
1) o histórico destes agentes no envolvimento com grupos e pessoas que patrocinam violações, como fazendeiros, madeireiros e grileiros;
2) a atuação de policiais como autores das violações;
3) a corrupção policial;
4) a forma como a polícia tem atuado na repressão aos/as defensores, foram alguns
dos motivos emergentes dos relatos recebidos.
Não se trata de uma impressão apenas, pois em inúmeros casos a polícia realmente tem
agido junto com outros agressores nas violações aos/às defensor/a de direitos humanos. Segundo os/as defensor/a de direitos humanos ouvidos as violações são cometidas pelos próprios agentes públicos que seriam responsáveis pela apuração dos crimes, o que inviabiliza
até mesmo o comparecimento de um/a defensor/a à uma unidade policial. A este quadro
podemos ainda aditar o fato dos/as defensores/as nem sempre terem acesso a assessorias
jurídicas para acompanhar as denúncias que precisam fazer. Aliás, são poucas as entidades que possuem assessoria jurídica disponível aos/às defensor/a de direitos humanos, e
sempre existe o receio de que uma eventual denúncia feita, e não provada, possa reverter
contra o/a defensor/a de direitos humanos como um processo de calúnia ou mesmo uma
ação de indenização.
102
Por outro lado, segundo os/as defensores/as, os que ameaçam sempre têm advogados e aliados no poder público, além do apoio de pistoleiros ou mesmo de policiais que
lhes dão segurança.
As ameaças, contudo, não são as únicas formas de violação que vitimaram e vitimam defensor/a de direitos humanos no Brasil. Existem diversos relatos de crimes
praticados contra estes homens e mulheres no país ao longo das últimas três décadas.
A esse respeito, é bom lembrar que dezenas de crimes cometidos contra defensores/as de direitos humanos, em especial os homicídios, dificilmente são apurados e não
têm seus responsáveis penalizados na forma da lei.
Ora, se os homicídios não foram julgados, não é difícil entender porque diversos tipos de violações também não o são. Ao contrário do crime de ameaça que é considerado
pela legislação brasileira de menor potencial ofensivo e, portanto, tem mecanismos de
descriminalização de conduta; o homicídio qualificado (art.121 do CPB e seus parágrafos) é considerado um crime hediondo, inafiançável e insuscetível de graça ou indulto.
Há exigência de instauração e conclusão de inquérito policial, bem como a respectiva
ação penal para a instauração de processo e julgamento dos responsáveis.
Não é esse, porém, o retrospecto dos julgamentos dos homicídios praticados contra defensores de direitos humanos, trabalhadores rurais e sem-terra no Brasil, onde a
impunidade é a regra e a prestação jurisdicional com justiça é a exceção. Outros delitos
são lesão corporal, abuso de autoridade, danos ao patrimônio, invasão de domicílio,
calúnia, injúria e difamação. A maior parte desses crimes, a exemplo do delito de ameaça, não são julgados em virtude dos mecanismos de descriminalização (transação ou
suspensão do processo) e também porque a maior parte dos casos não foi noticiada à
polícia. Quando registradas, porém, verificamos que estas violações não tiveram suas
investigações encerradas satisfatoriamente, em face da inação da polícia para realizar
as apurações, ou pelos inquéritos e TCOS serem arquivados supostamente por falta de
provas quanto à autoria ou materialidade.
Muitos/as defensores/as encontram-se também em situação de risco ou vulnerabilidade. Para sermos ainda mais fiéis aos fatos, não há nenhum/a defensor/a ameaçado
que possa declarar-se isento de perigo no Brasil. Entre os autores destas violências encontramos organizações criminosas, traficantes de drogas, quadrilhas de madeireiros
que saqueiam as florestas, pistoleiros, arregimentadores de trabalho escravo para abertura de áreas para a pecuária, representantes do agronegócio, mineradoras e empresas
e fazendas ligadas ao agronegócio e agentes públicos, notadamente ligados à área de
segurança pública.
A existência de um ato ou omissão que resulta em violência marca este tipo de
violação, que atinge indiscriminadamente homens e mulheres que defendem os mais
variados direitos. Contudo, a causa mais marcante da vitimização no Brasil é de natureza
agro-ambiental.
103
7. A criminalização de defensores de direitos humanos
e movimentos sociais
Na criminalização, pode-se dizer que os objetivos são os mesmos das outras formas
de violação de direitos, mas a operação é diferente, pois se dá pela ação de agentes e instrumentos do Estado, revestindo-se de pretensa e aparente legalidade. São mobilizados
contra defensores/as um arcabouço legal, notadamente de natureza criminal, com o uso
ostensivo de órgãos policiais e judiciais.
Também se busca minar a credibilidade e poder de atuação de defensores, seja pela
repressão, pela ameaça ou efetivação de cerceamento da liberdade, ou ainda pelo efeito dissuasivo presente em tese no direito penal, cujo principal objetivo é a defesa da propriedade.
Considerando tais reflexões e a sistematização elaborada por Leão (2008) trabalharemos com a seguinte definição de criminalização de defensores/as de direitos humanos
e de movimentos:
[...] atos e omissões que resultam na imputação indevida de crimes ou condutas ilegais a
defensores/as de direitos humanos e/ou às suas organizações, através de procedimentos
judiciais, parlamentares, administrativos ou policiais, em função das atividades de defesa e
promoção de direitos humanos que os mesmos desenvolvem (LEÃO, 2010).
Assim tanto o/a defensor/a pode ser criminalizado, quanto movimentos sociais e
ONGs que são acusados de constituírem organizações criminosas ou de serem responsáveis pelo cometimento de diversos crimes.
Aliás, o Governo Dilma Roussef, no ano de 2011, ao adotar providências para combater a corrupção em algumas ONGs ligadas a políticos de sua base aliada, também
acabou atingindo as ONGs com atuação séria e legítima em prol de direitos humanos
no Brasil, o que motivou uma carta da Associação Brasileira de ONGs, a ABONG, em
protesto à conduta do Governo Federal.
Existe ainda contra as entidades, por exemplo, a possibilidade de ordenar-se a dissolução de uma organização, ou se obrigar pessoas e movimentos a determinadas condutas por via judicial. Esse é o caso das ações cíveis possessórias, onde se localizam as
famosas ações de reintegração de posse, que geralmente vêm acompanhadas com ações
policiais e/ou multas para os seus destinatários, sejam pessoas físicas ou jurídicas.
Já a criminalização no caso dos sindicatos assume também características diversas,
cuja penalização se dá tanto na esfera cível com a ameaça de pesadas multas por parte da
Justiça a pedido de órgãos do Governo e patrões, quanto na esfera administrativa com a
ameaça de demissões e suspensões.
No entanto, o principal elemento do processo de criminalização é a participação
do Estado e suas instituições. Em nosso entendimento, não é possível falar de criminalização praticada sem a participação de órgãos ou autoridades públicas, apesar de muitas
vezes outros atores concorrerem para esta prática.
104
Além do objetivo político de anular ou prejudicar a atuação do defensor de direitos
humanos, existe ainda as consequências para a liberdade do/a DDH, de seu patrimônio,
de sua organização, e por tabela à imagem, reputação e atuação destes/as defensores/as.
No Brasil inteiro existem relatos de trabalhadores rurais, sem-teto, índios, sindicalistas, advogados e lideranças populares criminalizadas. A principal alegação feita
pela polícia contra os/as defensor/a de direitos humanos, principalmente os/as que
estão envolvidos/as na luta pelo acesso a terra, são crimes de natureza patrimonial,
formação de quadrilha ou bando e contra a administração da justiça. Por outro lado,
os/as defensor/a de direitos humanos alegam que a polícia não age da mesma forma
quando se trata de algum fazendeiro, pistoleiro ou seus aliados, quando acusados de
praticar algum crime. A denúncia que fazem é de que a polícia aplica os rigores da
lei somente aos/às defensores/as e lavradores/as, mas quando se trata de investigar e
processar os agressores, a omissão, a parcialidade e a conivência passam a ser a regra.
Não é difícil o acionamento da máquina judicial no Brasil para processar alguém, ainda
que falsamente, principalmente se o interessado tiver recursos para a contratação de advogados ou formular tecnicamente representações ou, ainda, tiver influência junto à polícia. Do
lado dos/as defensor/a de direitos humanos, no entanto, a situação é bem diferente: a fragilidade na rede de apoio jurídico popular que conta com excelentes, mas poucos, advogados
não possibilita a todos/as os/as defensores/as criminalizados/as a busca de seus direitos.
Em muitas cidades, a distância entre os/as defensor/a de direitos humanos, o Ministério público e o judiciário, faz com que os integrantes destes dois órgãos não percebam quando estão diante de um caso de criminalização ou de um crime comum. Aliás,
mesmo quando existem juízes e promotores é necessário torcer para que estes tenham
alguma sensibilidade ou conhecimento da causa dos direitos humanos, pois trata-se de
duas instituições que muitas vezes contribuem decisivamente para a criminalização de
defensor/a de direitos humanos.
A Justiça Criminal no Brasil é, portanto, controle social punitivo institucionalizado, seletivo e estigmatizador, a serviço de interesses de grandes e poderosos grupos
econômicos. Isso porque o Estado é seletivo na sua composição, em suas benesses, e até
mesmo em seu braço repressor. Parece-nos que essa seleção se dá por critérios predominantemente econômicos, onde quem possui maiores riquezas pode influenciar no
controle social exercido pelo direito, daí o entendimento de que o Estado promove a
criminalização da pobreza. Não são poucos os exemplos nesse sentido.
Ora, 72% da população carcerária do país está presa por crimes de natureza patrimonial como furtos e roubos. Percebe-se, pela mesma estatística, que crimes contra o
sistema financeiro nacional sequer têm seus dados citados pelo INFOPEN.3 Não porque
inexistam tais crimes, mas sim porque o sistema penal e processual penal, os órgãos policiais e judiciais não são direcionados para a apuração e punição dos mesmos.
3
Sistema de Integrado de informações Penitenciárias do Ministério da Justiça.
105
O presidente Nacional do CIMI, Dom Erwin, denunciou em carta à CNBB que:
Outra questão que muito nos preocupa é a prática da criminalização das lideranças dos povos indígenas. A omissão do governo na demarcação das terras e a ação governamental na
implementação de projetos desenvolvimentistas surte como efeito até almejado por todos
nós a organização dos povos e comunidades indígenas para fazer avançar os procedimentos de demarcação, bem como, para evitar a construção dos empreendimentos causadores
de impactos danosos sobre as suas terras e suas vidas.
A reação, por parte dos aparatos estatais, a essa organização e mobilização dos povos indígenas foi imediata na forma esdrúxula de criminalizar suas lideranças. Exemplos mais
recentes são os constantes ataques promovidos por agentes da Polícia Federal contra os
povos Tupinambá e Pataxó Hã-Hã-Hãe, no Estado da Bahia. Muitas lideranças desses povos são processadas judicialmente, algumas delas estão presas. Outro exemplo bastante
sintomático diz respeito ao povo Xucuru, no Estado de Pernambuco: 42 lideranças foram
condenadas, em média, a 10 anos de prisão cada uma.
Dados fornecidos pelo Sistema Integrado de Informações Penitenciárias, vinculado ao Ministério da Justiça, demonstram que, atualmente, 758 indígenas encontram-se aprisionados no país.
Os tipos de crimes imputados aos defensores envolvem a proteção do direito de
propriedade ou ressaltam a preponderância do Estado e seus agentes sobre o particular em situações de conflito. Assim, a imputação do crime de esbulho é uma forma
de resguardar o direito de propriedade por parte do pretenso proprietário. O delito de
incitação ao crime é aplicado às lideranças que organizam trabalhadores sem terra para
ocuparem determinada área. Resistência à prisão e desacato são crimes mais utilizados
no momento das operações policiais frente a alguma manifestação pública ou despejo,
haja ou não algum tipo de resistência, e a formação de quadrilha, crime de pena mais
dura, é utilizado como a principal estratégia criminalizadora da coletividade, quando há
mais de três pessoas envolvidas, estigmatizando pela própria definição.
A outra ponta da investigação das motivações para a criminalização repousa em
verificar quais são os interesses envolvidos nos conflitos pelo perfil dos autores das violações contra defensores: em geral fazendeiros, pistoleiros, madeireiros grileiros e policiais, tendo diversos atores se dispersado na categoria “outros”.
Assim é possível concluir que, se a difamação e a vitimização podem ser feitas sem
necessariamente a participação direta do Estado, na criminalização estabelece-se obrigatoriamente uma aliança entre estes agressores e agentes dos entes públicos coniventes
com os interesses desses setores.
O grande número de liminares para reintegração de posse deferidas com rapidez,
em contraste com o grande número de homicídios praticados contra trabalhadores rurais e suas lideranças sem julgamento, comprovam esta assertiva.
Enquanto existe um grande número de prisões em flagrante de lideranças e integrantes dos movimentos sociais, são praticamente inexistentes os casos de fazendeiros e
pistoleiros presos ou levados a julgamento.
Para Leão (2008, p. 150) uma das principais características dos agressores é seu
grande poder econômico e a influência junto às diversas autoridades. Em decorrência
106
de sua situação financeira, tais agressores contam com uma eficiente cobertura jurídica,
tanto para o ajuizamento de ações contra lavradores sem terra, quanto para sua própria
defesa jurídica. Um dado curioso que revela bem a extensão da proteção jurídica deste
esquema é que em casos de julgamento de pistoleiros, é comum ver os mesmos advogados de fazendeiros patrocinarem as defesas destes executores, como no julgamento do
homicídio de Dorothy Stang.
Destaca ainda que a maior parte destes agressores possui um braço armado que
não tem sido historicamente reprimido a contento pelo Estado.
Diversas são as ações do Estado Brasileiro na criminalização de defensores de direitos humanos. A forma mais tradicional são as prisões em flagrante ou mesmo por
ordem judicial. Porém, processos judiciais, cíveis e administrativos também têm sido
utilizados. Até mesmo instrumentos que em tese, teriam um potencial de democratizar
a coisa pública, como as Comissões Parlamentares de Inquérito, já foram manuseados
para dar andamento a este tipo de violação de direito contra o MST e ONGs no Brasil.
São exemplos da criminalização citados em relatório do PAD:
As ações policiais e judiciais contra o Movimento de atingidos por barragens da
Usina Hidrelétrica de Campos Novos (UHECN), na Bacia do Rio Uruguai, região sul do
Brasil (RS/SC), com as ofensas morais, agressões físicas praticadas pelos policiais militares e a imputação de “vários crimes”, a qualificação de “bando”. Destaque-se que somente
na bacia do rio Uruguai, são 107 defensores/as de Direitos Humanos processados/as;
Os processos movidos pelo Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul contra
o MST, a tentativa da polícia de dissolver o XXIV Congresso Estadual do MST, a acusação feita pelo Conselho Superior do MP daquele estado de ser o MST uma organização
criminosa, com nítida inspiração “leninista”, que se utiliza de “táticas de guerrilha rural”,
as várias ações visando impedimento de marchas, cancelamento de títulos eleitorais,
retirada de crianças de marchas, solicitação de despejos de acampamentos, a restrição
do direito de ir e vir, de reunião e manifestação, e a exposição da integridade física de
cerca de centenas de famílias são exemplos da criminalização que atinge o movimento;
A invasão da sede da Associação das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Rio Grande do Sul (AMTR/RS), e da sede nacional da Associação Nacional de Mulheres Camponesas (ANMC), pela Polícia Civil que promoveu devassa em todos os cômodos e objetos
do local, muitos dos quais restando abusivamente apreendidos, visando reprimir a ação
destes movimentos contra a da multinacional Aracruz Celulose;
A violência genocida praticada contra a comunidade indígena do povo Guarani
Kaiowá no município de Coronel Sapucaia, no Estado do Mato Grosso do Sul, por parte
de fazendeiros da região e o processo de criminalização por parte dos agentes do Estado,
tudo decorrente da luta pelo direito à terra tradicional a qual reivindicam a sua demarcação. O assassinato de Ortiz Lopes com vários disparos de arma de fogo, dentro da Terra
indígena Taquapery, na porta de seu barraco. A criminalização da liderança Guarani
107
Kaiowá, Elizeu Lopes, e a total impunidade dos responsáveis ligados aos fazendeiros que
jamais foram processados por todas as violências;
O processo de criminalização, ameaças e difamação sobre lideranças que se opõem
a construção da Hidrelétrica de Belo Monte na Amazônia, as diversas reportagens em
jornais impressos, sites e blogs com matérias difamatórias e instigadoras da violência
contra o Bispo do Xingu, Dom Erwin, ONGs e movimentos sociais de Altamira e do
Pará. O processo de difamação constante, alguns orquestrados pelo próprio governo
brasileiro, como a acusação recente do próprio Ministro das Minas e Energia, Edson Lobão, que declarou que “forças demoníacas opõem-se à construção da UHE de Belo Monte.” A investigação de lideranças, ONGs e movimentos sociais pela ABIN – serviço de
inteligência do Governo.
Podemos verificar que o Estado age dando causa à criminalização ao violar direitos
econômicos, sociais, ambientais e culturais das pessoas que os defensores de direitos humanos tentam com sua atuação, beneficiar. O Estado persiste nessa situação de violação
seja através de ações ou omissões, e depois atua reprimindo a partir de seus instrumentos
de controle, os que se organizam e estabelecem um processo de luta contra tais violações.
A impunidade em relação à apuração e responsabilização dos mandantes dos crimes praticados por latifundiários e pistoleiros, também tem estimulado o ciclo de violações contra defensores, ainda que variem as formas de implementação.
Mas o Estado também atua diretamente nas violações de direitos dos defensores
e não somente dando causa às mesmas. Dessa forma podemos afirmar que o próprio
estado difama, criminaliza e vitima defensores.
Conclusão
Embora defensores de direitos humanos e movimentos sociais tenham sido fundamentais na redemocratização da sociedade brasileira, tendo contribuído com a elaboração da Constituição Federal, de diversas legislações asseguradoras de direitos como
o Estatuto da Criança e Adolescentes e Lei anti racismo, ainda persistem graves processos de violação de seus direitos, de manifestarem-se livremente, de organizarem-se e de
exercerem suas reivindicações.
O Estado tem participado diretamente destas violações seja em campanhas de difamação dessas organizações, seja criminalizando ou permitindo as situações de violência,
uma vez que não adota ações de prevenção ou de punição para os que atentam contra a
vida e integridade dos defensores.
Neste sentido é possível afirmar que o Estado Brasileiro, tem descumprido os princípios da Constituição Federal de 1988, os tratados internacionais a que se obrigou
108
a observar, e as recomendações da Relatora das Nações Unidas que em 2005 visitou o
Brasil que foram quase todas ignoradas nestes últimos sete anos.
Iniciativas como o Programa Nacional de Proteção a Defensores de Direitos Humanos são importantes, mas não serão eficazes enquanto não forem adotadas medidas
capazes de resolver os problemas.
Somente políticas públicas que garantam os direitos econômicos, sociais, culturais
que incidam sobre as causas dos conflitos podem atenuar as violações aos direitos civis e
políticos de defensores e movimentos sociais perseguidos e vitimados no Brasil.
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110
PARTICIPAÇÃO E CONTROLE SOCIAL NO BRASIL
Jorge Alfredo Gimenez Peralta*
Nara Aparecida Peruzzo**
O artigo objetiva discutir o tema controle social no Brasil pós Constituição Federal
de 1988. A discussão é permeada por um tensionamento conceitual do termo controle
social e por uma análise das diversas instâncias formais ou não nas quais a sociedade
civil participa da gestão do Estado. Ao mesmo tempo em que se multiplicam espaços de
controle social nas diferentes esferas de governo aproximando-nos de uma democracia
participativa, a incidência de tais espaços, muitas vezes, parece apática. De outro lado,
presenciam-se experiências nas quais de fato há o controle social exercido na gestão do
Estado. Desta forma, pretendemos suscitar, a partir das experiências de controle social
nos últimos anos no Brasil, a rediscussão deste conceito normativo.
1. Controle social como radicalização da democracia
A Constituição Cidadã de 1988 instituiu formalmente as bases para a criação de diversos mecanismos de participação e controle social das políticas públicas e ações do Estado. Um marco importante foram os Conselhos de políticas públicas e as Conferências.
*
Bacharel em Filosofia (IFIBE), especialista em direitos humanos (IFIBE) e educador popular do Centro de Educação
e Assessoramento Popular (CEAP), Passo Fundo, RS.
** Bacharel em Filosofia (IFIBE), mestranda em Educação (UPF) e educadora popular do Centro de Educação e Assessoramento Popular (CEAP), Passo Fundo, RS..
111
Ao fixar esses mecanismos na Constituição Federal, o Brasil avançou rumo ao que
se poderia chamar de democracia de alta intensidade, na qual a sociedade civil, não mais
compreendida como oposição ao Estado, participa diretamente da proposição e fiscalização das políticas públicas a serem implementadas pelo Estado.
No entanto, a partir da década de 1990 tivemos no Brasil a difusão de duas1 compreensões de controle social, fato que entendemos ser decisivo para uma análise da
conjuntura atual e discussão de uma democracia radicalizada.
A primeira delas compreende controle social como sinônimo do termo inglês “accountability”. Accountability remete à obrigação de membros de um órgão administrativo
ou representativo prestarem contas a instâncias controladoras ou a seus representados. A
idéia relaciona-se diretamente com a transparência do Estado e ao controle da corrupção. O Estado exerce o controle dele sobre ele mesmo (exemplo: Tribunal de Contas) e
submete-se a avaliação das suas ações à população. O ápice do accountability, segundo
Miguel (2005), é a eleição, na qual se efetivam os dois mecanismos centrais da representação política democrática: 1) a autorização, pela qual o titular da soberania (o povo)
delega capacidade decisória a um grupo de pessoas; 2) a própria accountability.
Controle social, compreendido por essa lógica, estabelece relação direta com a
compreensão difundida pela democracia neoliberal2. Nela o papel da sociedade civil é
apático e insuficiente, restringe-se apenas ao ato do voto e a eventuais denúncias de irregularidades e corrupção. Compreende que discutir, propor, elaborar políticas públicas,
pensar modelo de Estado é papel restrito dos Gestores do Estado, eleitos pelo povo, com
capacidade técnica para tal. O controle social apenas monitora a implementação de fato
das políticas públicas através da avaliação.
A segunda compreensão é aquela que os movimentos populares vêm discutindo
desde a elaboração da Constituinte e que acabou sendo praticamente contida pela compreensão neoliberal. Controle social nesta ótica é compreendido como partilha do poder
entre sociedade civil e Estado, ou seja, a sociedade civil estabelece uma relação direta
com o Estado. Lizandra Serafim ressalta que esta relação deve incluir
[...] desde a troca de informações, debate, deliberação e/ou intervenção sobre ações do
Estado, gestão pública e políticas públicas em todas as suas fases – desde a sua definição até
a fiscalização e avaliação de sua implementação, defendendo o interesse público e respeitando a autonomia dos atores da sociedade civil (SERAFIM, 2011).
Esta compreensão de controle social remete-nos diretamente à compreensão de democracia participativa, na qual a sociedade decide juntamente com o Estado.
1
É importante fazer uma breve ressalva sobre a inversão conceitual do termo Controle Social na sociedade brasileira.
Anterior a década de 80 a compreensão que se tinha era que o Estado deveria controlar seus cidadãos. Após esse
período, a luta social no Brasil faz inverter essa compreensão de Controle Social, entendendo que é a sociedade que
deve controlar o Estado.
2 A relação entre accountability e democracia neoliberal é estabelecida por Lizandra Serafim no texto: Controle Social:
que caminhos?
112
Há diferenças grandes entre as duas concepções com implicações práticas completamente distintas. Enquanto na primeira o sujeito é passivo, na segunda é ativo e
propositivo. Para além da fiscalização e avaliação das ações de governo, está a proposição, a definição, o monitoramento da gestão. Compreender controle social nesta ótica é
compreendê-lo como parte do processo decisório, é torná-lo parte da gestão do Estado.
Controle Social nesta compreensão é um dos instrumentos para radicalizar a democracia. Uma vez que a radicalização da democracia, segundo Boaventura de Souza Santos
(2008), se dá por duas vias: 1) a primeira via passa pelo aprofundamento da partilha de
autoridade; 2) e a segunda via consiste em estendê-la a um número cada vez maior de
domínios da vida social, transformando-a num princípio potencialmente regulador de
todas as relações sociais.
A relação sociedade civil e Estado está permeada por esse tensionamento normativo conceitual de controle social. Por um lado, os espaços formais de participação social
aumentaram desde a Constituição de 1988, por outro lado, há inúmeros desafios a serem superados desde o esvaziamento da participação social (resultado da compreensão
neoliberal de Estado) até a falta de reconhecimento, pelo Estado, desse espaço de poder
decisório. Desta forma, se quisermos falar em radicalização da democracia, precisamos
enfrentar esse pano de fundo que se estabelece na relação Estado e sociedade civil para
rediscutir qual o papel de cada um e a partir daí também qual o modelo de democracia.
Discorrer sobre tal tensionamento ajuda-nos a entender como a participação social
tem se instituído no Brasil e refletir sobre desafios concretos postos à luta pela participação social no Estado brasileiro.
2. Participação social:3 os primeiros passos de uma democracia
participativa
Apesar das diferenciações conceituais construídas historicamente, é preciso reconhecer que desde 1988 houve avanços significativos nos mecanismos de participação
social. Muitas políticas públicas, especialmente aquelas voltadas à questão social,
têm contemplado na sua formulação básica a participação da sociedade civil organizada. O Estado progressivamente tem criado mecanismos de participação social,
fortalecendo, com isso, sua legitimidade enquanto órgão responsável pela garantia dos
direitos fundamentais. Isso tem feito com que o Estado brasileiro, nos últimos anos,
tenha proporcionado o que o IPEA chama de maior interação com a sociedade civil.
Os números demonstram isso. Em 2002, 11,5% dos programas sociais do Estado eram
feitos em interação com a sociedade. Em 2010, esse percentual foi de 75,4% (IPEA,
2010). Ainda no âmbito federal, em 2010, segundo a Secretaria Geral da Presidência
3 O termo Participação Social refere-se à segunda compreensão de Controle Social enunciada nos parágrafos anteriores. Optamos por esta terminologia por considerar que Controle Social ainda está muito atrelado à concepção do Accountability.
113
da República, existiam 34 Conselhos e Comissões Nacionais onde a sociedade civil
tem forte representação (CONSELHOS NACIONAIS, 2010). Os dados dizem respeito
apenas às políticas do Governo Federal. Podemos afirmar que na mesma proporção
os estados e municípios têm implementado, seja por força das exigências federais, ou
por iniciativa própria, mecanismos de participação social que ampliaram a relação da
sociedade civil com os órgãos estatais.
Além dos conselhos, as conferências sobre diferentes temas também têm sido fortalecidas nos últimos anos, sendo um dos mecanismos de participação social onde a sociedade civil, pelas suas representações institucionais, contribui no debate sobre as políticas
públicas. Nos oito anos do Governo Lula, 73 Conferências Nacionais foram realizadas.
Entre 2011 e 2012, estão agendadas 18 Conferências Nacionais sobre vários temas, que no
seu conjunto apontam para o fortalecimento da interação do Estado com a sociedade civil.
A grande maioria das conferências possui a sua etapa municipal e estadual, envolvendo um contingente de entidades e indivíduos muito grande. Calcula-se que no
processo de realização da 14ª Conferência Nacional de Saúde realizada ano passado,
26 mil pessoas participaram das etapas municipal, estadual e federal. Assim, as demais
Conferências Nacionais têm envolvido inúmeros cidadãos representantes de entidades
no debate sobre as diferentes políticas públicas.
Os dados mostram ter havido avanços significativos no que se refere à abertura
do Estado para a participação social. É claro que essa participação tem graus diferentes
de incidência. Alguns conselhos são deliberativos e como tais têm poder de incidência
maior. Outros, na qualidade de consultivos, contribuem mais no âmbito das proposições
e menos no controle propriamente dito. Já as conferências têm sido um espaço importante de debates e contribuiu para a consolidação dos mecanismos de participação e
definição das estratégias de ação do Estado.
O cenário de avanços descrito aponta para a construção da participação social na
perspectiva de uma sociedade ativa e participativa, rediscutindo a base normativa da
democracia e construindo outra cultura política em que a sociedade tem o poder decisório sobre as grandes questões da ação do Estado. Contudo, mesmo que a abertura do
Estado (conselhos, conferências) seja um avanço importante, há limites estruturais que
precisam ser avaliados, especialmente no que se refere a dois aspectos: 1) a incidência na
formulação das políticas; 2) a qualidade da participação social.
3. Estado e participação social, até onde vai a incidência social?
Com a institucionalização do Estado Democrático de Direito, após 1988, o desafio
foi dar continuidade ao processo de democratização do próprio Estado, tendo em conta
que apenas a eleição dos representantes nos poderes executivo e legislativo não esgotava
o direito e o compromisso do cidadão de participar da vida política da nação. Ou seja,
114
era preciso construir um Estado que não apenas reconhecesse o jogo democrático das
eleições, mas que também criasse mecanismos de participação efetivos para a sociedade
indo além da compreensão neoliberal do accountability.
Foi assim que na própria constituinte, vários mecanismos de participação social,
como os conselhos, já foram contemplados e outros posteriormente institucionalizados.
Os avanços citados são indicativos de que estamos progressivamente construindo um
Estado em maior interação com a sociedade e é esse processo que traz hoje o debate
sobre a radicalização da democracia. No entanto, uma reflexão crítica sobre os processos
de participação social pode revelar inúmeros limites a serem discutidos.
Não há dúvidas de que os vários mecanismos de participação social instituídos têm
significado importante avanço para a jovem democracia brasileira. Há certo consenso, apesar das diferenças ideológicas, de que a sociedade exige maior participação, não só no controle das contas públicas, mas também na definição das estratégias de ação dos governos,
seja municipal, estadual ou federal, mas há vários elementos que limitam essa participação.
A primeira interrogação nesse sentido pode ter a seguinte formulação: efetivamente
incidimos nas questões estruturais das políticas públicas? Há vários problemas sobre essa
incidência. Se olharmos as conferências e os conselhos nacionais de políticas sociais, percebe-se que um dos elementos comuns de debate nesses espaços diz respeito à questão econômica. Em última instância, o econômico é o que dá a dimensão da incidência social, tendo
os governos das três esferas, seguidamente apontado a inviabilidade financeira de muitas
propostas surgidas nestes espaços. Até pode ser válido discutirmos nas conferências e conselhos sobre a necessidade de universalizarmos as políticas sociais, por exemplo, mas a prática
mostra que o fator importante para essa realidade é a insuficiência de recursos. Portanto, essa
insuficiência deve levar à reflexão sobre qual o desafio para podermos decidir também sobre
o econômico. Essa tese é para dizer que precisamos incidir em instâncias estruturais onde
efetivamente as grandes questões sociais e econômicas são decididas. Significa dizer que a
sociedade civil organizada precisa participar dos espaços que decidem o destino dos recursos
do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES), da PETROBRAS, do Pré-sal, etc.
Estes são os espaços onde se discute, de fato, para onde vai a maior parte dos recursos do país. Como a sociedade civil participa disso? Essas instâncias têm se tornado tema
de debate das inúmeras conferências realizadas? Radicalizar a democracia significa radicalizar a participação social e, especialmente, implica democratizarmos os recursos do
Estado discutindo, junto com a sociedade civil, o modelo econômico a ser adotado e o
destino dos recursos.
Além disso, sabemos que essas instâncias financeiras do Estado têm influência de
poderosas organizações que pressionam e decidem pelo destino dos recursos. Nos recentes cortes ao orçamento4 feito pelo governo federal nenhum conselho nacional foi consultado, não houve nenhuma participação da sociedade. Se tivéssemos construído grau
de participação social que propiciasse a ingerência da sociedade na política econômica,
4
O corte de 55 bilhões de reais foi anunciado pelo governo no dia 16 de fevereiro de 2012.
115
seguramente teríamos investido muito mais em saúde, assistência social, educação e muito menos em grandes hidrelétricas, no pagamento dos juros da dívida externa e na consolidação de uma política de superávit que consome grande parte da riqueza produzida.
O segundo elemento, não menos importante, é se de fato incidimos até mesmo nas
políticas setoriais. Para os conselhos deliberativos se coloca a pergunta sobre se de fato controlam, por exemplo, os recursos disponíveis para aquela área social específica. Neste ponto
vários elementos precisam ser colocados. O primeiro deles é que mesmo com os avanços
da participação social na interação com o estado, a relação com os gestores ainda é limitada.
Especialmente no âmbito dos municípios, muitos gestores não estão abertos a uma gestão participativa, envolvendo a comunidade como parte estruturante do exercício público da
gestão. Isso faz com que muitos conselhos tenham limites na sua função constitucional de
controle e proposição. É comum encontrar conselhos deliberativos de diferentes áreas que
não mantém nenhum diálogo com a gestão, não tendo nenhuma proposição e controle sobre
a prática desta. Consequência disso é a desmotivação de qualquer participação social, associada à sensação de que a militância dos representantes das entidades nesses espaços é inútil.
Ainda na mesma perspectiva, as inúmeras conferências das três esferas têm suscitado uma avaliação que coloca em risco, em nossa opinião, o modelo participativo
brasileiro ao desmotivar a participação social. Tem sido muito comum nas conferencias
a ideia de que as propostas apresentadas para o debate já foram discutidas em outras
conferências sem efetiva implementação.
Parece que as conferências e até mesmo os conselhos têm se tornado um espaço
onde cabem todas as propostas e sugestões possíveis. Ficando a cargo do gestor optar por
aquelas que poderão ou não fazer parte da sua gestão. Essa dinâmica pode fazer com que
o pensado como espaço por excelência da proposição e definição das estratégias de ação
do Estado se torne apenas um lugar de milhares de sugestões, algumas inclusive fora de
qualquer viabilidade concreta.
Um último elemento da incidência política que queremos considerar é o respeito
às instâncias deliberativas desses espaços. A experiência dos conselhos de saúde, por
exemplo, que possuem caráter deliberativo, tem mostrado a fragilidade jurídica desses
conselhos. Há um verdadeiro atropelo à função deliberativa por parte do próprio Estado
nas suas três esferas, tornando a função controladora do conselho absolutamente frágil
na hora de aplicar o que juridicamente lhe compete.
Citamos dois casos emblemáticos. O primeiro é o Conselho Estadual de Saúde do
Rio Grande do Sul que em toda a gestão da governadora Yeda Crusius não aprovou as
contas da Secretaria Estadual de Saúde por entender que esta não atendia algumas determinações legais, uma delas a obrigatoriedade de aplicação de 12% da receita em saúde.
Apesar da não aprovação dos gastos, que por lei deveria implicar em corte no repasse
dos recursos federais para o governo estadual, tal medida nunca foi aplicada. Não havendo penalizações, o Estado não respeita instâncias deliberativas.
Outro caso emblemático é a Resolução nº 333/ 2003 do Conselho Nacional de Saúde que, na falta de regulamentação da Emenda Constitucional Nº 29, que trata sobre os
116
gastos em saúde, naquela época em discussão no Congresso, publicou a resolução regulamentando o que seriam gastos em saúde. Na sua condição deliberativa, a resolução do
Conselho deveria ter validade jurídica, porém, nenhum gestor cumpriu as determinações da resolução. Exemplos como os que citamos aqui se multiplicam pelo Brasil, o que
fragiliza enormemente a participação social.
Outro elemento importante é a própria conjuntura política e social do país. Os avanços sociais dos últimos anos fizeram com que um contingente populacional considerável
passasse da condição de exclusão a potenciais consumidores de bens e serviços, sendo que
dentre estes serviços, muitos são atribuição do Estado como é o caso da saúde e da educação.
Assim, ao invés de fortalecermos as políticas de direitos fundamentais confirmando
com isso o papel do Estado, opta-se pela compra no mercado de tais serviços. Aliás, o próprio Estado vem fortalecendo esse tipo de iniciativa como o recente financiamento de seguros de saúde pela Caixa Econômica Federal, com participação da Caixa nas ações dessas empresas. Essa realidade sem dúvida complexifica o debate sobre o papel do Estado e, associada
à fragilidade da participação social, que tem dificuldade em trazer esses temas como debate
nos espaços políticos, inviabiliza a participação da sociedade em incidências estruturais.
Por último, apesar dos avanços e de algumas iniciativas por parte do Estado, há uma
deficiência muito grande na formação de conselheiros. É preciso instrumentalizar, formar
e ensinar a utilização de ferramentas de controle e participação, ensinar mecanismos de
incidência para aqueles que exercem a função de controlar o Estado e propor diretrizes.
É preciso que se estabeleça um processo de formação permanente para a qualificação da participação social nos espaços institucionais e o Estado tem se omitido dessa
responsabilidade, apesar de tímidas iniciativas na formação daqueles que não só o controlam, mas também passam a formular, qualificar e operacionalizar as suas ações.
Portanto, a reflexão sobre a participação social no Brasil perpassa, entre outros elementos, estes que elencamos aqui. Reiteramos que as questões colocadas são complexas
e polêmicas e por isso trata-se apenas de levantar alguns elementos de reflexão sobre o
tema sem esgotar a reflexão.
Conclusão
Os limites trabalhados no texto não implicam necessariamente considerarmos
que há uma prevalência da participação social no Brasil na perspectiva neoliberal do
accountability, mesmo que a possibilidade de um retrocesso nessa perspectiva ainda
seja latente. A última eleição presidencial mostrou isso claramente quando um dos
candidatos propôs na campanha a eliminação dos recursos previstos para as conferências nacionais.
No entanto, é preciso ir além do atual estágio de incidência política das representações sociais para dentro do Estado, além de ampliarmos o conceito de participação para
outras áreas e espaços onde a representação da sociedade ainda é ausente, como o caso
117
do próprio judiciário brasileiro, ainda muito resistente a iniciativas que buscam democratizá-lo, fazendo com que este também seja objeto da representação social.
Os desafios citados, portanto, implicam a necessidade de radicalizarmos o debate sobre a participação social no Brasil, considerando a necessidade de incidirmos em espaços
estratégicos de definição das políticas de Estado, reconhecendo os avanços conquistados.
Em síntese, deve haver um esforço conjunto, Estado e sociedade civil organizada,
para que possamos avançar na difícil e lenta construção de um Estado radicalmente
democrático. Este horizonte é o que mantém vivo o esforço militante de milhões de
brasileiros que anualmente dedicam seu tempo para discutir a construção de um Estado
inclusivo e democrático. Ou seja, um Estado para todos e todas.
Referências bibliográficas
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2011. Disponível em: <www.advivo.com.br/blog/gustavo-belic-cherubine/orgulho-de-ser
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SERAFIM, Lizandra. Controle social: que caminhos? Disponível em: <www.polis.org.
br/artigo_interno.asp?codigo=191>. Acesso em: 10 dez. 2011.
118
DIREITOS E VIOLÊNCIA:
tensões e fluxos no Brasil atual
Melisanda Trentin*
Evanildo Barbosa da Silva**
Pedro Cláudio Cunca Bocayuva***
O Brasil constata lenta e progressivamente algumas mudanças na promoção dos
direitos humanos. Resiste no seio governamental alguma institucionalidade orientada
para o enfrentamento da problemática violência e direitos humanos. Arranjos governamentais participativos e desenhos genéricos de políticas públicas nacionais anunciam
caminhos para o enfrentamento de nossa tragédia cívica mais permanente que é a efetiva
promoção e garantia dos direitos humanos como meio de contraposição à violência de
toda espécie contra sua população mais pobre.
Do lado da sociedade civil organizada resiste a capacidade de ser e se tornar coerente na defesa desses direitos e de suas populações mais vulneráveis a situações de
violência direta. Esse esforço, sabidamente, já organiza um novo modo de pensar e agir,
colaborando com a construção de uma nova cultura de direitos.
Mas a escala de seus impactos diz respeito ao modo como o Estado de direito concebe e empreende políticas de prevenção à violência, sem sucumbir à pobre interpretação e difusão do fenômeno na opinião pública como um mantra unidirecional que
afirma mais polícia, mais controle!
*
Advogada, mestranda em políticas públicas e formação humana (UERJ) e Técnica do Núcleo Justiça Ambiental e
Direitos da FASE.
** Historiador, doutor em desenvolvimento urbano (UFPE) e Diretor Executivo Adjunto da FASE.
*** Doutor em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ), professor no Instituto de Relações Internacionais (IRI/
PUC-Rio) e coordenador do Centro de Pesquisa BRICs. Contribuiu como co-autor direto no texto.
119
Aí o déficit cívico não só é enorme como induz ao erro, pois, apesar dos esforços
governamentais, o Estado brasileiro ainda manifesta uma clara incompreensão operacional da universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos civis, políticos, sociais,
econômicos, culturais, ambientais. De um lado isso impõe sobre os territórios e populações velhos modus operandi na operacionalização da política pública e, de outro lado,
explica a manifestação de um tipo de cultura política que se pauta pela insistência na
transmissão geracional da tragédia quanto ao enfrentamento da violência a partir da
promoção dos direitos humanos e não de sua definitiva desconsideração.
Sabemos que nos últimos anos, especialmente a partir de 2007, com o início do
segundo mandato do governo Lula, o Estado brasileiro agenciou a retomada do crescimento do país, tendo como principal orientador desse tipo de política federal o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Mesmo com a crise econômica e política
mundial de 2008, as taxas de crescimento no país variaram entre 5% e 6%. Mas apesar do
esforço do governo Lula no que diz respeito à redução da pobreza,1 com programas de
redistribuição de renda como o Bolsa Família, ainda persiste uma profunda desigualdade social e econômica na população.2 Podemos dizer que as altas taxas de crescimento e
o investimento em novas políticas se configuram (re)produzindo efeitos desiguais e contraditórios no modelo de desenvolvimento brasileiro, afetando diretamente populações
femininas, pobres, negras, urbanas e rurais.
Essa situação é ambientada generosamente em contexto marcado pela passagem
do governo Lula para o governo Dilma, cuja esteira do reposicionamento do Brasil no
cenário internacional e da configuração de novas relações internacionais dentro do sistema ONU, Banco Mundial e FMI, é inquietantemente marcada pela contenção do gasto
social público, através da descontinuidade de projetos e programas compensatórios.
Nesse período, o governo aumentou as isenções fiscais, estimulou o consumo e
fomentou programas de construção de moradia para a classe média baixa (ex. Programa
Minha Casa, Minha Vida). Ou seja: até 2008, os programas distributivos estavam no
centro e desde 2009 e 2010, os programas de consumo ganham lugar no centro.
A partir de 2010, portanto, tendo em vista o reajuste futuro de dotações orçamentárias de programas distributivos, o Brasil entrou em um cenário de desenvolvimentismo
ajustado, em que o objetivo estratégico de longo prazo tem três características principais: 1)
o ordenamento urbano com políticas de atração de capitais para as cidades; 2) a consolidação do Brasil como produtor energético e 3) o fortalecimento do papel do Brasil no mundo.
1
Em novembro de 2007, o Brasil foi incluído pela primeira vez em uma lista de países com alto índice de desenvolvimento humano, segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
2 O Brasil foi o país que mais avançou no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (0, 699). De acordo com o
Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento, apesar dessa evolução, o Brasil continua a exibir um IDH menor
do que a média da América Latina e Caribe (0,704) e de alguns países vizinhos. Já o Índice de Desenvolvimento Humano ajustado à Desigualdade (IDHD) rebaixa o índice do Brasil de 0, 699 para 0,509. Isto demonstra forte presença
de fatores de desigualdade no país, especialmente na seqüência dos itens “rendimento”, “educação” e “saúde”, apesar
do registro de leve queda desse tipo de desigualdade, na última década.
120
Apesar dessas incursões, o primeiro “Estudo Global sobre Homicídios” do Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC, 2011) estabelece uma relação
clara entre crime e desenvolvimento. De acordo com esse estudo os países com grande
disparidade nos níveis de renda estão quatro vezes mais sujeitos a serem atingidos por
crimes violentos do que as sociedades mais equitativas.
Em 2010, no mundo, foram cometidos 468 mil homicídios. Quase 36% desses homicídios ocorreram na África, 31% nas Américas, 27% na Ásia, 5% na Europa e 1% na
Oceania. A criminalidade crônica seria então, ao mesmo tempo, causa e conseqüência
da pobreza, da desigualdade e da insegurança geral.
No lado que nos toca mais diretamente a constatação é lacônica: o Brasil é e se
mantém um país violento! Essa afirmação pode ser apoiada pelos altos índices de homicídios. Aqui há 22,7 homicídios para cada 100 mil habitantes. De acordo com os números da ONU (dados divulgados em 2011), em 2009 a média de assassinatos ficou em 10
a cada grupo de 100 mil habitantes na capital paulista e 35 a cada 100 mil habitantes na
capital fluminense. Na América do Sul o índice é inferior somente ao da Venezuela e ao
da Colômbia.3 Em números absolutos, o Brasil tem a maior quantidade de homicídios
do mundo – 43.909 vítimas em 2009. A Índia é o segundo maior, com 40.752 vítimas
(UNODC, 2011).
É importante entender a dinâmica da violência também no interior do território
nacional. Dados preliminares do Ministério da Saúde (DATASUS, 2011) mostram que a
partir de 2008 houve uma reconfiguração das taxas de homicídios por 100 mil habitantes
no país. Atualmente a região Norte se constitui como a mais violenta, com índice de 37
mortes por 100 mil habitantes. Nos estados da região Nordeste, o crescimento econômico e a melhoria das condições de vida da população não têm sido acompanhados pela
redução dos índices de violência e de criminalidade. Em 2010, a taxa de homicídios em
Alagoas foi de 66,82 e no Espírito Santo foi de 50,01. A exceção nordestina é o estado
de Pernambuco (39,06), que pela primeira vez não aparece entre os três mais violentos,
ocupando agora a quarta posição desse perverso ranking. Uma das explicações para esse
reposicionamento está na adoção de estratégias diferenciadas na política de segurança
pública, como o investimento na gestão da polícia (NOBREGA, 2011).
Essa panorâmica nos sugere observar várias (e não uma) dimensões da violência
que, paradoxalmente, encontram-se articuladas diretamente à opção pela política de
crescimento econômico em curso que, em si, consubstancia um amplo leque de tensões
e conflitos na sociedade e nos territórios de sua reprodução. Os conflitos em torno das
grandes obras públicas para infraestrutura, por exemplo, têm aumentado. Desde os trabalhadores escravos da cana de açúcar e da agropecuária, os pescadores artesanais, aos
trabalhadores da construção civil das hidrelétricas e da obras de infra-estrutura urbanas
nas cidades e nas favelas, as violações nesse campo se produzem como violências.
3
Venezuela (49 por 100 mil) e Colômbia (33,4 por 100 mil). O maior índice é o de Honduras (82,1 por 100 mil).
121
Como no caso da luta dos pescadores e da população local contra a ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) na baía de Sepetiba, em Santa Cruz,
zona Oeste do Rio de Janeiro. A ação da empresa transnacional vem produzindo efeitos
avassaladores à vida dos moradores e ao meio ambiente. Uma das principais lideranças
da Associação dos Pescadores dos Cantos dos Rios (Apescari) foi ameaçada de morte
por ter organizado manifestações no mar e denunciado o envolvimento de milicianos
na segurança da empresa, a devastação ambiental e o uso privado dos locais de pesca.
O pescador teve que sair de casa e foi inserido no Programa Federal de Defensores dos
Direitos Humanos (PACS, 2009).
A violência também se manifesta nas inúmeras violações de direitos humanos que
afetam as populações e os trabalhadores em Porto Velho, Rondônia, provocadas pelas
obras das usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau. Uma revolta de grandes proporções tomou conta dos canteiros de obras da hidrelétrica de Jirau nos dias 15 a 17 de março
de 2011, resultando na queima de 54 ônibus e 70% do acampamento de trabalhadores.
Antes dessa revolta ocorreu uma greve devido às péssimas condições de trabalho, dentre
elas, jornadas de até 15 dias nas obras das duas usinas em setembro de 2009 (DHESCA,
2011). Em 2008, já haviam sido identificadas outras violações sofridas pela população.4
No campo as situações de violência também têm os projetos de desenvolvimento
como fonte de conflito e estão associadas às disputas por terra entre os grandes proprietários e os trabalhadores rurais, povos indígenas ou quilombolas. Dados sobre assassinatos e perseguições em torno dos conflitos revelam essas violências: no período de 2003
a 2010, pelo menos 50 lideranças indígenas foram assassinadas por ano nas disputas
territoriais. A esses dados devemos somar ainda os constantes assassinatos de lideranças
dos movimentos sociais, como o do líder sindical Zé Maria do Tomé (Ceará, abril de
2010) e do advogado Sebastião Bezerra (Tocantins, fevereiro de 2011).
Isso tudo sem contar os muitos defensores dos direitos humanos que estão sob ameaça de morte e precisam viver sob proteção. No ano de 2010, a Comissão Pastoral da Terra
registrou a ocorrência de 1.186 conflitos no campo, envolvendo disputas pela terra, pela
água e violações de direitos trabalhistas. Nesses conflitos, pelo menos 34 pessoas foram
assassinadas. No estado do Pará, região norte, pelo menos 52 pessoas foram assassinadas
entre 2003 e 2005. Desde o assassinato da Irmã Dorothy Stang em 2005, a violência se
agudiza. Em 2010, a CPT registrou 207 conflitos nesse Estado, e o maior número de assassinatos, totalizando 18 mortes violentas. Ressalte-se que, ainda no Pará, só no mês de
junho de 2011, seis pessoas foram assassinadas em situações semelhantes (Cf. PAD, 2011).
4
O Relatório da Missão realizada em 2008 pela Relatoria Nacional do Direito Humano ao Meio Ambiente da Plataforma DHESCA Brasil apontou falhas nos estudos sobre impactos ambientais; violação do principio da autodeterminação dos povos e soberania dos países; ofensa aos princípios democráticos e ao direito humano à informação e participação; violação dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais; ofensa ao direito humano ao meio
ambiente; ofensa ao direito humano à saúde: risco de contaminação por mercúrio, proliferação da malária e ausência
de estudos sobre qualidade da água; ofensa ao direito à alimentação segura; violação dos direitos dos trabalhadores;
violação do acesso à terra e à moradia adequada.
122
Outro grande, explosivo e importante lócus de produção de violência é o conjunto
de políticas dirigidas ao complexo da população judicializada. Nesse campo os problemas estão situados desde o acesso à justiça até os sistemas de punição. Com relação ao
insuficiente e precário acesso à justiça, emergem propostas de mediação de conflitos,
mas não há possibilidade de mediar conflitos em um cenário onde não há direitos sociais mínimos garantidos, onde os conflitos devem estar visibilizados e compreendidos
em um contexto social mais amplo de desigualdade.
O corpo negro, juvenil, pobre e armado também concentra conteúdo de violência
simbólica, que condena o desejo de uma economia proprietária da cidade, o que explica
porque os jovens de sexo masculino, principalmente nas Américas Central e do Sul,
Caribe e África Central e do Sul, estão mais expostos aos riscos e a serem vítimas de homicídios intencionais, segundo o Estudo Global sobre Homicídios da UNODC (2011).
Nas favelas e periferias brasileiras o tratamento dispensado à juventude passou a
contar com incrementos nas políticas de intervenção. Mas é preciso questionar os efeitos disso. O que essas políticas vêm produzindo em termos de integração, participação,
garantia de direitos efetivas para os jovens no território? O que mudou no conjunto de
novas fórmulas governamentais, e nas fórmulas paralelas ou milicianas de política de
segurança? É uma nova economia que cria dinâmicas diferenciadas e desiguais no conjunto urbano de um país com conjunturas locais muito móveis. A pergunta que não é
feita é aquela que dificulta mais uma estratégia real de direitos: o que fazer para que os
jovens não estejam nessas condições? É um problema de nova economia urbana, mas é
também um problema de políticas de juventude (saúde, educação, emprego), de programas de renda básica, dentre outros.
Nas cidades, apesar das esferas públicas, o debate inexiste, não há participação,
planos diretores, ordenamentos com diálogos. A expectativa que daí deriva é a de continuar reproduzindo ocupações parciais e zonas de ocupação / zonas de exclusão com
investimentos públicos mais intensivos nesses espaços. É uma economia que não projeta
estratégias de universalização da cidade. O que há é a possibilidade de uma nova gramática de controle de zonas de exclusão que opera por meio de remoções, desapropriações,
populações sem-teto, numa tentativa óbvia de retirar os pobres das zonas centrais e de
zonas escolhidas.
A resposta do governo federal tem sido confusa com relação à segurança pública.
Em 2007, foi lançado o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), voltado à prevenção do crime articulado ao discurso da inclusão social e, ao
mesmo tempo, houve apoio público do governo a operações policiais militarizadas de
grande repercussão, especialmente no Rio de Janeiro (Cf. ANISTIA INTERNACIONAL,
2008). Entendemos que a segurança pública só existe quando decorre de um conjunto de
projetos públicos e coletivos capazes de gerar ações no sentido de romper com a geografia das desigualdades no território. Sem isso não há segurança e sim controle truculento
dos pobres e resistentes na cidade (MALAGUTI, 2011).
123
Mais recentemente, com a ampliação do estado penal e do poder punitivo, por
meio de políticas como as UPPs, também observamos o aprisionamento das pessoas a
céu aberto no Rio de Janeiro. O policiamento se tornou um fluxo distribuído de maneira
diferente, como uma guerra de baixa intensidade. Assim mesmo a maioria das forças
policiais continua a adotar métodos violentos. Ainda no estado do Rio de Janeiro, segundo a Anistia Internacional, em 2007, a polícia matou pelo menos 1.260 pessoas sob
a classificação de “resistência seguida de morte”. Em 2010, de acordo com a Anistia, os
autos de resistência já não eram tão numerosos, mas continuaram altíssimos: 855 pessoas foram mortas nessas circunstâncias (Cf. ANISTIA INTERNACIONAL, 2011). A
economia política da polícia passou ser muito mais o controle da população e o tema
dos direitos voltou a ser o tema das liberdades. O processo de pacificação não nos serve, mas devemos avaliar que toda vez que a polícia é pacificada e controlada, o efeito é
positivo no território, a polícia não entra atirando e menos gente morre. No entanto, as
UPPs estão produzindo uma economia com novos elementos. Uma economia territorial
cara, autoritária e de alta especulação. Torna-se mais caro morar, mais caro trabalhar
a aumenta a dificuldade de acessar outros direitos. O fato das UPPs estarem restritas a
espaços de favelas e de algumas favelas, já seria um indício luminosos para desvendar
o que o projeto esconde: a ocupação militar e verticalizada de áreas de pobreza que se
localizam em regiões estratégicas aos eventos esportivos do capitalismo vídeo-financeiro
(Cf. BATISTA, 2011). Com isso queremos frisar que as UPPs aprofundam as desigualdades e as segregações socioespaciais no Rio de Janeiro. Passamos de um quadro de guerra
para um quadro de autoritarismo, de ocupação e confronto militar.5
Se todo esse conjunto de violência urbana atinge mais diretamente os homens, que
têm maior probabilidade de morrer em lugares públicos, as mulheres são assassinadas
principalmente dentro de casa. A maioria das vítimas de violência por parte do companheiro ou familiares são mulheres (UNODC, 2011). Em 2007 começamos a assistir o
julgamento dos primeiros casos regulados pela Lei Maria da Penha, de 2006. Há, porém,
obstáculos e dificuldades para implementação efetiva dessa lei, tanto pela resistência
do poder Judiciário,6 quanto pela precariedade dos serviços de apoio (delegacias, casas
abrigo etc). As mulheres estão expostas à violência tanto dos grupos criminosos (especialmente em territórios dominados pelo tráfico) quanto da polícia, uma vez que lutam
por justiça nos casos de familiares mortos pela polícia, sofrendo ameaças e intimidações.
5
Vale lembrar que nas áreas em que as UPPs não foram instaladas continuamos a ter operações de guerra clássicas. Há
também um conjunto de novas fórmulas governamentais, paralelas ou milicianas, de política de segurança, uma nova
economia que cria dinâmicas diferenciadas e desiguais no conjunto urbano do país. No território a milícia se expande,
se multiplica e está se institucionalizado cada vez mais. Apesar da repressão, elas estão se consolidando no controle da
várias áreas. Há uma ambivalência entre controle e legalização. As milícias estão se convertendo e podemos questionar se o conceito de milícias ainda é suficiente para explicar esse dispositivo, aparentemente ocorrem configurações
mafiosas. É importante mencionar que grande parte das recomendações da CPI das milícias de 2008 ainda não havia
sido implementada até o final de 2010.
6 Acusação de inconstitucionalidade da Lei, morosidade na implementação das varas especializadas de acordo com a
análise da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB). 2011.
124
Apesar da política de enfrentamento da violência contra as mulheres (Lei Maria da
Penha e Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher), o número de
mulheres assassinadas vem aumentando (AMB, 2011). Em 2007 teve projeção nacional
e internacional o caso da adolescente de 15 anos presa em Abaetetuba, no Pará, em uma
cela com cerca de 20 a 30 homens pelo período de um mês, sofrendo repetidos estupros
em troca de comida. A menina e seus familiares, ao denunciarem os abusos, foram ameaçados e inseridos em programa de proteção a vítimas e testemunhas. Esse caso trouxe a
tona o grande número de mulheres vítimas de violações de direitos humanos em locais
de detenção.
Atravessando toda essa gramática das violências, parece estar a violência comunicativa, como em um pacto de razão cínica, apoiada na subjetividade dos vários atores.
Essa adesão subjetiva à barbárie é, sem dúvida, um problema na medida em que impõe
obstáculos ao debate sobre promover os direitos humanos de forma universal, indivisível e interdependente, como princípios orientadores das políticas públicas e das relações
internacionais. A opinião pública e a sociedade civil passaram da crítica da truculência
e da militarização da segurança pública, à sua naturalização e agora ao aplauso. Diante
deste cenário, uma questão a ser destacada é a mudança da conjuntura do debate da
legitimidade dos direitos: o discurso dos direitos foi apropriado pelo discurso da ordem.
Assim, se antes a militância em direitos humanos já era difícil, ela é agora esvaziada,
adocicada, funcional e capturada, passando a ser co-responsabilizada por um discurso.
Quais são, então, os desafios? A chave passa por entender o conflito político que
constitui o direito à segurança, atravessado pelas grandes dinâmicas, por uma perspectiva de direitos humanos. Passa por políticas econômicas inclusivas (e não sub políticas
coladas à política de polícia), passa pela articulação das políticas de cidade, de cultura,
de saúde, de acesso à terra e ao território, de moradia para fortalecer uma cultura de
direitos efetiva nos territórios. Passa pela construção e consolidação de um sistema nacional de indicadores de direitos humanos, com a especificidade requerida, para orientar
e monitorar políticas públicas.
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125
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126
TERRITORIALIDADE E LUTA POR DIREITOS
Sérgio Sauer*
Gladstone Leonel da Silva Júnior**
O final do século XX e o início do século XXI foram marcados por uma ênfase na
importância do espaço e do território. Generalizando, é possível afirmar que, distintamente da lógica moderna do século XX, uma característica importante do pensamento
contemporâneo é a centralidade da dimensão espacial, especialmente pelo enfoque nos
processos de globalização, mas também na construção de noções como desenvolvimento territorial ou mesmo direitos territoriais de grupos humanos.
Estes processos – ou o “projeto da globalização”, conforme Massey (2008), ou ainda
a utilização da noção de globalização para explicar mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais recentes – criaram condições para a retomada da dimensão territorial. A
globalização, portanto, traz consigo noções como rompimento de fronteiras, desterritorialização, advento da “sociedade global”, novas relações entre local e global (GIDDENS,
1995), dando legitimidade a categorias espaciais.
Nesta perspectiva, a noção de lugar adquiriu uma “ressonância totêmica” (MASSEY,
2008), inclusive pela sua negação (o local contraposto ao universal), apesar das constantes redefinições ou re-elaborações como, por exemplo, processos de desterritorialização
acompanhados de reterritorialização, ou ênfases nas resistências a estes processos, etc.
Antes de ir adiante, é necessário reconhecer que este “projeto de globalização”
(MASSEY, 2008) está bastante desgastado, especialmente a partir da segunda metade da
primeira década do século XXI, no pós 11 de setembro e, mais recentemente, devido à
crise financeira mundial. O uso deste referencial, como interpretação das mudanças sociais e culturais, arrefeceu significativamente, mesmo assim o discurso da “inevitabilidade da globalização” se mantém como um olhar hegemônico sobre a contemporaneidade.
* Professor da UNB e Relator Nacional para o Direito à Terra, Território e Alimentação (Plataforma DhESCA Brasil).
** Assessor da Relatoria Nacional para o Direito à Terra, Território e Alimentação (Plataforma DhESCA Brasil).
127
Muito anterior ao advento do “projeto de globalização”, o campo brasileiro já era
– e continua sendo – palco de disputas territoriais, não só devido às resistências à expropriação e ações de demandas populares pelo acesso à terra. Ações e bandeiras das
organizações patronais rurais sempre explicitaram essa disputa, dando especial valor à
terra e ao território.
Esta valorização das terras se expressa no nível de sua concentração. O Brasil possui uma estrutura fundiária altamente concentrada, confirmada pelos dados do Censo
Agropecuário de 2006, publicado pelo IBGE em 2009 (BRASIL, 2009). Esta concentração tem origem nos tempos coloniais, agravada a partir dos anos 1960 com a implantação da Revolução Verde e do atual modelo agropecuário, baseado na modernização
técnica e capitalização de grandes extensões de terras.
A concentração da propriedade da terra no Brasil é evidente nos dados dos
três últimos Censos Agropecuários, realizados pelo IBGE em 1985, 1995 e 2006
(BRASIL, 2009). O índice de Gini, utilizado para medir a distribuição da propriedade da terra, manteve-se praticamente o mesmo no período, expresso por 0,857,
em 1995/96, e 0,856, em 2006.
Segundo dados do Censo Agropecuário de 2006, as propriedades com menos de
dez hectares representam mais de 47% do total de estabelecimentos (2,5 milhões de estabelecimentos), ocupando apenas 2,7% da área total dos estabelecimentos rurais, ou seja,
7,8 milhões de hectares. Na outra ponta do espectro fundiário, os estabelecimentos com
áreas acima de mil hectares somam apenas 0,91% do total de estabelecimentos, mas detém mais de 43% da área total, concentrando 146,6 milhões de hectares (BRASIL, 2009).
Esta concentração, e as disputas e conflitos por terras dela decorrentes, mantêm a
importância da territorialidade, requerendo reflexões sobre significados do campo, especialmente em conseqüência da prevalência e recente expansão de um modelo produtivo agroexportador que prioriza o mercado de commodities. Este é o embate atual, por
exemplo, nas propostas parlamentares de mudança do Código Florestal ou a oposição
ferrenha à demarcação de terras indígenas e ao reconhecimento de territórios quilombolas, em que o grande objetivo é liberar terra para a expansão agropecuária e a produção de commodities para exportação.
Nos últimos anos, vem ocorrendo uma nova expansão deste modelo, baseado no
grande agronegócio, expandindo ainda as fronteiras agrícolas e atraindo investimentos
pesados para o setor. Um novo ciclo de expansão do capital no campo é evidenciado,
sobretudo com investimentos nacionais e estrangeiros na compra de terras, resultado
da demanda e incentivos na produção de commodities agrícolas (grãos, carne, matéria-prima para agrocombustível) e não agrícolas (madeira, minérios, entre outras), com
preços em alta no mercado internacional (SAUER, 2011a).
De acordo com estudo do Banco Mundial (2010), a demanda mundial por terras
tem sido enorme, especialmente a partir de 2008, tornando a “disputa territorial”, histórica no Brasil e na América Latina, um fenômeno global. Este interesse internacional
128
pelas terras (relativamente abundantes) da América Latina (especial destaque ao Brasil,
Argentina e Uruguai) e da África subsaariana tem provocado um aumento dos preços
das mesmas. Além de acirrar as disputas por terras e pressionar pelo não reconhecimento de direitos territoriais, esta demanda afeta políticas públicas, porque, por exemplo,
fica mais caro desapropriar ou mesmo demarcar territórios e indenizar terras para fins
de reforma agrária ou para garantir direitos de comunidades tradicionais no Brasil.
Este processo de expansão é contraditório, pois se, de um lado, reedita a lógica
de apropriação de vastos territórios – reeditando lógicas colonialistas ou mantendo a
“acumulação por expropriação” (HARVEY, 2004) –, por outro, conta com apoios governamentais. Parte significativa dos investimentos estrangeiros no Brasil, inclusive na
compra de terras, são financiados com recursos públicos, especialmente com recursos
do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e dos Fundos
Constitucionais do Centro Oeste (FCO) e do Norte (FNO).
Estes empréstimos, e os incentivos fiscais, estão sendo alocados principalmente na
expansão do cultivo de cana para produção de etanol (no Cerrado de Goiás, Mato Grosso do Sul e Triângulo Mineiro), no cultivo da soja (região conhecida como “Mapitoba”,
mas também em partes da Região Amazônica) e na extração de minério e de madeira
(especialmente na região Amazônica).
Esta contradição não se restringe aos incentivos à produção de commodities agrícolas.
Há uma série de investimentos governamentais (fundamentalmente obras do Programa
de Aceleração do Crescimento, PAC) em grandes obras (construção de estradas, ferrovias,
hidrelétricas, etc.) que impactam diretamente sobre comunidades locais, violando direitos
territoriais. Exemplos destes investimentos e violações são as construções das barragens de
Riacho Seco e Pedra Branca no sertão do São Francisco (municípios de Santa Maria da Boa
Vista e Orocó) e a transposição das águas do rio que estão atingindo comunidades quilombolas, povos indígenas e famílias assentadas em projetos de reforma agrária.
Estas violações suscitam resistências e lutas de comunidades e grupos sociais que,
ao se oporem a esta expansão agrícola e às grandes obras, reivindicam direitos, reconstroem identidades, expressam modos de vida e de apropriações da terra, diferentes do
modelo hegemônico, com diversificação agrícola e valorização da floresta e da natureza,
insistindo no direito de reprodução social e cultural.
Toda essa dinâmica recria e resignifica históricas lutas por terra e territórios, apesar de ser
interpretado por muitos como expressão de atraso, resistência à modernização e ao desenvolvimento. Tratar da persistente concentração fundiária, e das novas investidas para apropriação
de mais terras via expansão de fronteiras, significa enfrentar setores que têm a propriedade
da terra não apenas como meio de produção, mas especialmente como exercício de poder.
A concentração fundiária e os persistentes conflitos por terra mantêm um desenvolvimento nacional predatório, excludente e concentrador de renda e riquezas, baseado na aliança
entre capital e latifúndio, voltado para a exportação de commodities, precarização do trabalho
e exclusão política de camponeses e agricultores familiares, ribeirinhos, povos indígenas, comunidades quilombolas, geraizeiros, faxinalenses, e tantos outros grupos sociais do campo.
129
As ações de movimentos sociais e resistências de comunidades tradicionais são vistas como ameaça, porque conflitos geram instabilidade e “afugentam os negócios”, mas
também porque explicitam a disputa pela terra, limitando os espaços de expansão das
monoculturas. Nessa lógica, movimentos sociais agrários, povos e comunidades tradicionais (quilombolas, faxinalenses, quebradeiras de coco, vazanteiros, pescadores artesanais, etc.), povos indígenas e muitos outros que questionam esse modelo são criminalizados, são “enquadrados na lei” como aqueles que a violam, portanto, são considerados
e tratados criminosos (SAUER, 2011c).
Neste contexto, cresce também o número de conflitos com comunidades tradicionais, especialmente com comunidades quilombolas e com povos indígenas. Estes caracterizam-se por um convívio mais sustentável com a natureza, assim os recursos ambientais
estão, em grande parte, preservados. Isto gera cobiça expropriatória e exploratória – a qual
não é combatida com medidas repressivas mas até incentivada por políticas governamentais via investimentos –, ampliando formas e tentativas de apropriação destes recursos e
terras. Além de acirrar os conflitos territoriais, a luta pela terra ganha novos contornos,
pois lutas dos destituídos da terra (os sem terra) são ampliadas em conseqüência de lutas
e resistências de comunidades e grupos sociais atingidos (SAUER, 2011b, 2011c).
Categorias Sociais envolvidas em conflitos - Brasil 2008
Gráfico: Categorias Sociais envolvidas em conflitos.
Fonte: (PORTO-GONÇALVES, 2008).
Todos estes conflitos gerados historicamente forçam uma estruturação político-organizativa das comunidades para resistir às investidas do agronegócio e do Estado. Esta
resistência se dá por “populações que estão associadas a regiões de elevada diversidade biológica, grande disponibilidade de águas [...], ou que ocupam margens de rios
[...].” (PORTO-GONÇALVES, 2008). Com toda esta disponibilidade de recursos, as
monoculturas, como soja, pinus e eucalipto, por exemplo, poderão desenvolver-se de
forma célere, pois as condições ideais a sua reprodução estão presentes.
130
Assim, algumas características peculiares, impulsionam a resistência destas comunidades, entre elas, a autodefinição e a organização política. Estes configuram instrumentos que possibilitarão fundamentar e garantir direitos àqueles povos que lutam pelo
reconhecimento de seus territórios. (SILVA Jr., 2010).
No entanto, são recorrentes atitudes autoritárias do Estado e da sociedade brasileira
no trato e na solução de conflitos, especialmente quando envolvem interesses resultados
de mobilizações sociais e de ações de movimentos populares organizados. Os movimentos
sociais agrários sempre conviveram com formas diferenciadas de repressão e perseguição, sendo que setores do Estado, defendendo interesses patrimonialistas (especialmente
a propriedade da terra como um instrumento e lugar de exercício do poder), têm sido os
principais repressores.
Essa repressão assumiu, em diferentes momentos históricos, formas e intensidades diferenciadas de violência física ou simbólica. Em linhas gerais, pode-se
dizer que as estratégias de repressão adotadas, usadas de forma simultânea ou
complementarmente, foram: 1) isolamento político (não dando voz nem conferindo legitimidade às demandas, visando à desintegração e à desmobilização); 2)
cooptação (tanto de grupos de base como de lideranças importantes, concedendo
pequenos privilégios, buscando o definhamento do movimento social); e 3) repressão, sobretudo, com o uso de aparelhos policiais.
Recentemente, a criminalização dá novas características à repressão, inclusive
porque introduz novos atores institucionais. Não são novidades ações condenatórias
da grande mídia, inclusive respaldando ideologicamente ações violentas e a perseguição política da Bancada Ruralista no Congresso. A novidade é a crescente participação
de setores de Estado constituídos democraticamente para defender a população como
é o caso do Ministério Público, exemplificado em episódios recentes que envolviam o
MST no Estado do Rio Grande do Sul, ou os interesses (bens) públicos, como é o caso
do Tribunal de Contas da União (TCU).
No Congresso Nacional, as ações parlamentares passam a ser mais proativas. Alguns
congressistas vêm utilizando mecanismos como, por exemplo, Comissões Parlamentares
de Inquérito, Propostas de Fiscalização e Controle, Projetos de Decreto Legislativo (projetos para cancelar decisões do Executivo que atendem reivindicações de grupos sociais),
requerimentos de fiscalização pelo TCU, entre outros. Exemplos disso foram as Comissões
Parlamentares de Inquérito (CPI) das ONGs (Senado) e Mista de Inquérito (CPMI) do
MST (Câmara e Senado) e a tramitação do PDC 44/07, de autoria do Dep. Collatto (DEM/
SC), na Câmara. Este PDC suspende todos os atos praticados pelo Poder Executivo com
base no Decreto nº. 4887/2003, que regulamenta os procedimentos relacionados à regularização dos territórios das comunidades quilombolas.
Neste último exemplo, ainda há uma atuação junto ao Judiciário, decorrente de
uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn), proposta em 2004, pelo antigo Partido da Frente Liberal (PFL), atualmente denominado Democratas (DEM). Esta ADIn
131
questiona o conteúdo do Decreto nº. 4887/2003, que regula a atuação da administração
pública na efetivação do direito territorial étnico das comunidades de remanescentes de
quilombo no Brasil.
A lógica autoritária da política brasileira não se restringe às ações do Legislativo,
pois amplos setores do Judiciário vêm atuando no sentido de caracterizar a luta pela
terra e por direitos territoriais como ações criminosas. Há dezenas, se não centenas,
de processos judiciais acusando lideranças populares e grupos sociais de formação
de quadrilha, porte ilegal de armas e desvios de recursos públicos. De uma maneira
geral, são ações jurídico-legais que explicitam a intolerância às demandas populares e
luta por direitos.
Exemplo disso é o que ocorre no território indígena de Maró, no município de Santarém (Pará). Existe uma criminalização crescente dos povos indígenas a partir de ações
de empresários e madeireiros em face dos povos indígenas, no oeste do Pará. Um ofício da
organização de direitos humanos, Terra de Direitos, encaminhado ao programa estadual
de proteção aos defensores de direitos humanos do Estado do Pará demonstra a ofensiva
judicial dos madeireiros com o propósito de criminalizar (transformar a defesa de direitos
em ações criminosas) dos atores sociais da luta indígena. Atualmente, são quatro processos judiciais que correm contra as lideranças indígenas da região de Santarém.
No entanto, em um regime democrático, além dos mecanismos de participação e
decisão estabelecidos na Constituição, é fundamental abrir espaço político para a consolidação de outros mecanismos aptos a tornar a soberania efetiva e a democracia uma realidade. É nessa perspectiva que existem ações e entidades da sociedade civil organizada
buscando pautar estas temáticas a fim de garantir a efetivação dos direitos, como é o caso
da Relatoria do Direito Humano à Terra, ao Território e à Alimentação, da Plataforma
DHESCA Brasil, que apóia e dá visibilidade a lutas e resistências de populações do campo, denunciando violações de direitos.
A Relatoria busca caminhos de fortalecimento da sociedade civil e dos movimentos
sociais, o que significa reconhecer a legitimidade dos embates políticos e das mobilizações sociais. Entre suas atividades, duas missões realizadas em 2010 e 2011 constataram
graves violações que exemplificam bem o grau de desrespeito aos direitos territoriais dos
povos e comunidades tradicionais do Brasil.
Uma das missões teve como objetivo averiguar denúncias de violações de Direitos
Humanos de Comunidades Quilombolas e Ribeirinhas, Povos Indígenas e famílias assentadas de reforma agrária às margens do rio São Francisco. Ocorrida em 2010, esta
missão constatou que a região, historicamente marcada pela insuficiência de políticas
públicas, sofre com impactos de mega-projetos, tais como obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Ali o Estado brasileiro age como grande violador de
direitos destes povos ao planejar e executar ou ainda financiar grandes obras como é
o caso da transposição das águas do rio ou construir mais duas hidrelétricas, que irão
inundar os territórios de três comunidades quilombolas, localizadas no município de
Santa Maria da Boa Vista (PE).
132
Outra missão de grande repercussão refere-se às violações de Direitos Humanos
aos Povos da terra indígena Maró no Oeste do Estado do Pará, já citado anteriormente.
Ao visitar e dialogar com lideranças e representantes de três comunidades que compõe
o território indígena Maró (Aldeia Novo Lugar, Aldeia Cachoeira do Maró e Aldeia São
José III), ficam evidentes graves violações de direitos humanos, como ameaças de morte,
agressões, tentativas de homicídio, extração ilegal de madeira, invasão da área das comunidades, precariedade em serviços de educação e saúde, entre outras situações preocupantes. A missão observou que a falta de políticas publicas se materializa na ausência
de garantias de direitos destas populações.
Essas situações demonstram uma falta de priorização do Estado brasileiro para
assegurar os direitos territoriais dos povos e comunidades espalhados por todo o país.
Outro aspecto evidenciado é o fato de os sujeitos que vivem e lutam por seus territórios
serem os principais responsáveis pela preservação ambiental da área em que vivem e
pela conquista de direitos para as comunidades. Devem, portanto, ser fortalecidos e não
atacados pelo Estado em suas variadas facetas (Executivo, Legislativo ou Judiciário).
Os embates territoriais, as resistências à expropriação das populações do campo,
“tradicionais” ou não, não se restringem a uma reação contra as demandas crescentes do
mercado de terras incentivado pelo Estado. Essa demanda apenas explicita que a terra e
o território devem ser entendidos além de um meio e um lugar de produção, mas como
um lugar “identitário, relacional e histórico”, construído nas lutas e processos sociais das
comunidades que aí vivem e se reproduzem.
Assim, resta necessário maior envolvimento da sociedade civil, vontade política do Estado, e respeito à reprodução social das comunidades, como prevê a Convenção 169 da OIT,
para a formulação e implantação de políticas públicas garantidoras de direitos territoriais.
Além disso, outras ações devem ser rigorosamente reformuladas. As obras de infraestrutura do Estado só devem ser viabilizadas quando não afetam o território de comunidades tradicionais e povos indígenas. Se for algo inevitável, deve ser comprovado que a construção dar-se-á de forma menos impactante para as comunidades, sendo
respeitados seus direitos, realizando audiências públicas, com consultas freqüentes às
comunidades, com o pagamento de indenizações proporcionais aos impactos gerados
na vida dos povos. Isso significaria, tão só, respeitar o que a legislação vigente determina.
Por outro lado, o Estado deve assegurar o direito humano à terra e ao território
repelindo quaisquer agressões aos povos que possuem esses direitos. A quantidade de
lutadores sociais que são ameaçados e assassinados em áreas indígenas, quilombolas e de
outros povos tradicionais é alarmante. O Estado, além de garantir o direito ao território
desses povos, deve permitir que possam viver em segurança. Neste sentido, os mecanismos de repressão aos crimes cometidos contra essas comunidades devem ser eficientes.
O Programa Nacional de Defensores de Direitos Humanos é um exemplo disso,
o qual deve ser estimulado e ampliado. Mesmo sendo um importante instrumento, é
necessário repensar sua proposta de funcionamento, que pauta a proteção individual
do ameaçado, geralmente retirando-o do seu local de atuação. Mostra-se essencial que
133
existam formas de atuação diferenciadas, as quais possibilitariam a proteção de uma coletividade e permitiriam que os próprios sujeitos ameaçados continuassem como protagonistas da luta social e garantidores dos próprios direitos sem serem retirados do local
onde vivem e se reproduzem social e culturalmente.
Pensar a segurança de pessoas somente com propostas individualistas e de atuação
ostensivas é reduzir a proteção das comunidades a partir de uma reprodução de modelo
de segurança nem sempre adequada a esses grupos. Formas de atuação mais inteligentes,
que permitam a proteção de uma coletividade de forma qualificada e constante devem ser
estimuladas e trabalhadas pelo Estado. Isso permitiria assegurar, não só os direitos territoriais, mas os direitos humanos básicos a vida dessas comunidades e povos tradicionais.
A educação em direitos humanos também é um ponto a ser trabalhado pelo Estado
para uma melhor compreensão e atuação dos poderes públicos instituídos ao se envolverem com a temática. Isto permitiria, por exemplo, pensar formas de incidência do Estado, não agressivas e violadoras de direito das comunidades. Além do mais, possibilitaria
melhor interlocução entre o Estado, a sociedade civil e os povos sujeito de direitos.
Essas são algumas medidas que têm a possibilidade de garantir direitos de povos
que foram historicamente espoliados e ainda hoje resistem e lutam pelo que acreditam:
um território para reprodução do próprio meio de vida e desenvolvimento das potencialidades que possuem como seres humanos.
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134
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_____. Mercado de terras: estrangeirização, disputas territoriais e ações governamentais no Brasil. In: SAQUET, M. A.; SUZUKI, J. C. e MARAFON, G. J. (Org.). Territorialidades e diversidade nos campos e nas cidades latino-ameircanas e francesas. São Paulo:
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SILVA Jr., Gladstone Leonel da. A luta por direitos étnicos e coletivos frente à expansão
do agronegócio: a experiência das comunidades tradicionais faxinalenses. Dissertação
(Mestrado em Direito). Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2010.
135
SEGUNDA PARTE
Enfoques específicos dos direitos humanos
CAPÍTULO III: DIREITOS
DIREITO HUMANO AO MEIO AMBIENTE*
Melisanda Trentin**
Maureen Santos***
Nos últimos anos o Brasil tem perseguido incansavelmente um ideal de país desenvolvido. Esse “modelo de desenvolvimento” que o país aspira vem se consolidando através
da instalação de grandes projetos de infra-estrutura, energia, transportes, manutenção do
latifúndio, pecuária extensiva e reordenamento das cidades. Com isso há um alto custo socioambiental para o conjunto da sociedade brasileira. E, sem dúvida, os impactos são ainda
maiores para determinadas parcelas da população: negros, mulheres, crianças, adolescentes e jovens, povos indígenas, pequenos produtores rurais, quilombolas, ribeirinhos, pescadores artesanais, extrativistas, moradores de favelas, trabalhadores sem terra e sem teto.
Esse modelo expropriador das bases materiais e culturais de existência de diversos grupos e populações se traduz institucionalmente no Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC), implantado em 2007, pelo governo Lula. Basta olharmos em volta
para constatar que, no campo e na cidade, o direito humano ao meio ambiente saudável
é violado reiteradamente e de diferentes maneiras pelos atores públicos e particulares.
Este texto pretende contribuir com o debate político sobre o direito humano ao meio
ambiente no Brasil, apresentando o estágio atual das discussões sobre a proteção desse direito em nível nacional e internacional, articulado à idéia de Justiça Ambiental e à situação dos
sujeitos atingidos. Mostrando os conflitos e as resistências pretendemos fortalecer a luta por
direitos e demonstrar como essas populações, ao defenderem o princípio da dignidade humana, contribuem para dar concretude ao conteúdo do direito humano ao meio ambiente.
*
Esse texto foi elaborado com a valiosa contribuição da equipe do Núcleo Justiça Ambiental e Direitos da FASE: Julianna Malerba, Fátima Mello e Jean Pierre Leroy, além da jornalista da FASE, Lívia Duarte
** Advogada, mestranda em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ) e técnica do Núcleo Justiça Ambiental e
Direitos da FASE.
*** Analista de Relações Internacionais, mestre em Ciência Política (UFRJ) e técnica do Núcleo Justiça Ambiental e
Direitos da FASE
141
1. Direito ao meio ambiente reconhecido como direito humano
Para garantir o direito ao meio ambiente efetivamente, é necessário afirmá-lo como
um direito humano. Os brasileiros têm o direito constitucional1 a um ambiente saudável
e equilibrado, o que não representa sua garantia como um direito humano. Quando usamos a expressão direito humano ao meio ambiente estamos fazendo uma afirmação política, com a pretensão de gerar consequências, uma vez que os direitos humanos tendem
a receber ampla proteção dos tribunais, da legislação e da sociedade. Afinal, os direitos
humanos são básicos ou fundamentais porque ocupam uma posição transcendental sobre outros direitos.
Apesar de não estar previsto desta maneira em nenhum tratado internacional específico a referência a outros direitos como dignidade, saúde, trabalho, vida, bem estar,
moradia, alimentação, água, livre determinação, inclui necessariamente o reconhecimento do meio ambiente como direito humano.2
Tal noção vem ganhando força progressivamente no mundo. Da Declaração de
Estocolmo da Convenção das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento3
ao Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), onde
os governos signatários reconhecem que nenhum povo pode ser privado de seus próprios meios de subsistência; os acordos internacionais ambientais e de direitos humanos
reconhecem o direito a uma vida saudável e o meio ambiente como um direito humano.
Desde a Rio 92 – Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento – consolidou-se o reconhecimento internacional da proteção ambiental como
algo indissociável da redução da pobreza. Agora, rumo à Rio+20, mais uma vez a agenda
da sociedade civil se volta para a tentativa de colocar a perspectiva dos direitos humanos
no centro das discussões.
1
Artigo 225/CF 88. “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo
e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo para as
presentes e futuras gerações”.
2 Declaração Universal de Direitos Humanos (toda pessoa tem direito a um nível de vida adequado que lhe assegure
saúde e bem estar); Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento/1986 (o ser humano deve ser o centro do processo
de desenvolvimento); Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador)/1988 (direito de viver em meio ambiente sadio e de contar
com serviços públicos básicos); Declaração do Rio de Janeiro e outros documentos aprovados pela Rio 92; Convenção
nº 169 da OIT relativa aos povos indígenas e tribais adotada pela ONU em Genebra/1989 e promulgada no Brasil
em 2004.; Agenda 21; Convenção sobre Mudança do Clima; Convenção sobre Diversidade Biológica; Convenção de
Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes; Convenção sobre Desertificação;Convenção de Roterdam; Cúpula
do Milênio entre outros.
3 A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, que resultou na Declaração de Estocolmo e no
Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) em 1972, inaugura o Direito Ambiental no cenário
internacional, estabelecendo o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental do
indivíduo, equiparando-o a outros direitos já consagrados como a liberdade e a igualdade. “Princípio nº 1: o ser humano tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequada em um meio
cuja qualidade lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, e tem a solene obrigação de proteger e melhorar
esse meio para as gerações presentes e futuras”.
142
O Programa das Nações Unidas sobre Meio Ambiente (PNUMA) e o Escritório do
Alto Comissariado para os Direitos Humanos (OHCHR) organizaram em 2009 uma reunião sobre o Futuro dos Direitos Humanos e Meio Ambiente, na qual chamaram a atenção
para a relação entre um ambiente seguro e saudável e o gozo dos direitos humanos. Também o Conselho de Direitos Humanos recentemente4 centrou-se sobre os efeitos e implicações das mudanças climáticas e a plena realização dos direitos humanos, aumentando a
conscientização de que o ambiente é um pré-requisito para a garantia dos direitos humanos.
Nas discussões da ONU, há três principais dimensões da inter-relação entre direitos
humanos e proteção ambiental: 1) o ambiente como um pré requisito para o gozo dos direitos humanos (o que implica que as obrigações dos Estados devem incluir a obrigação
de garantir o nível de proteção do ambiente necessário para permitir o pleno exercício
dos direitos protegidos); 2) alguns direitos humanos, especialmente o acesso à informação, à participação na tomada de decisões, e o acesso à justiça em questões ambientais,
como essenciais para um bom processo de decisão (ou seja, os direitos humanos devem
ser implementados a fim de assegurar a proteção ambiental); e 3) o direito a um ambiente seguro, sadio e ecologicamente equilibrado como um direito humano em si.
Estes debates e concepções contribuem para fortalecer a crença na relação de interdependência entre direitos humanos e direito ao meio ambiente. Quando se viola o direito
ao meio ambiente, viola-se o direito das pessoas, constituindo um duplo desequilíbrio:
ambiental e humano. Aqui abrimos uma chave de interpretação que trata de entender um
ambiente saudável como um direito social, comparável àqueles já protegidos pelo PIDESC.
O principal argumento para este enfoque é alçar as questões ambientais a um status
comparável aos outros direitos econômicos e sociais. Portanto, afirmamos que os impactos ambientais provocados pelo projeto de desenvolvimento adotado pelo Brasil podem
ser traduzidos em violações de direitos humanos. Em especial dos direitos econômicos,
sociais e culturais, na medida em que destroem a base material e cultural de existência
dos grupos e populações, ou seja, naquilo que socialmente se configura como conteúdo
do direito humano ao meio ambiente.
Entendemos que a manutenção das bases materiais e culturais de reprodução, como
objeto de direito fundamental, referem-se não apenas ao acesso (quantitativo e qualitativo) aos bens naturais, mas também à garantia das formas e modos de apropriação5 que
asseguram condições de vida comunitária para o exercício da liberdade do grupo.
A liberdade é compreendida aqui como “liberdade igual”, exercida na medida em
que todos tenham acesso aos bens econômicos, sociais e culturais. A liberdade que trata
o direito humano ao meio ambiente equilibrado é a liberdade da vida, é a liberdade de
ter condições de manutenção e reprodução da existência garantidas, neste sentido, a vida
se manifesta não só em cada indivíduo, mas também nas relações sociais que permitam
a sua manutenção (DERANI, 1998).
4
5
Resolução nº 23/07 de março de 2008 e Resolução nº 04/10 de março de 2009.
A forma de apropriação comum (comunitária) dos bens não se confunde com o acesso livre a eles. Há um conjunto
de valores e regras de solidariedade compartilhados pelos grupos tradicionais, que disciplina o acesso e impedem a
utilização exaustiva dos bens.
143
2. Disputas nos campos jurídico e político
Apesar da profusão dos debates, devemos reconhecer que em nível internacional,
não existem os instrumentos legais necessários para proteger as vítimas da degradação
ambiental. Já no Brasil, os instrumentos normativos estão em processo de flexibilização.
No contexto desse grande objeto de disputa do debate jurídico e legislativo – a necessidade de aperfeiçoamento dos mecanismos de proteção ao meio ambiente – os conflitos
e as violações não param de se intensificar em todo o território nacional.
Casos como os das usinas hidrelétricas de Belo Monte (PA) e de Santo Antonio e
Jirau, no rio Madeira (RO), revelam que em todo o país os conflitos ambientais estão
marcados pela violência,6 pela perda de territórios pelos povos, pela degradação da biodiversidade e dos modos de vida e de trabalho, seja em espaços urbanos ou rurais.
O processo permanente de enfraquecimento dos dispositivos de regulação ambiental sob a justificativa de que representariam “entraves para o desenvolvimento” se
evidencia em várias frentes, como por exemplo: 1) no debate legislativo sobre a modificação dos procedimentos de licenciamento e proteção ambiental7; 2) na proposta de
reestruturação do IBAMA que deixaria de ser uma autarquia para se tornar uma agência
reguladora, com maior autonomia objetivando agilizar os projetos do PAC (MALERBA,
2011); 3) além do conflituoso processo de revisão do Código Florestal8 que define regras
para preservação ambiental no país. O que está em disputa nesse processo é a posição
do Brasil como grande exportador de commodities, associada ao “modelo de desenvolvimento” escolhido pelo país.
Do ponto de vista político, entendemos que o debate sobre essa investida avassaladora dos grandes empreendimentos não pode ficar restrita ao debate sobre o marco legal
e/ou jurídico. O foco são os conflitos e as resistências. No final dos anos 1980 e início
dos 1990 no Brasil, as questões do combate às desigualdades se articularam às questões
ambientais, organizando um campo importante no interior do chamado movimento
ambientalista, com centralidade na elaboração da crítica ao modelo de desenvolvimento
dominante e na expansão dos direitos.
Dessa forma, a questão ambiental se mostra cada vez mais central e passa a integrar
um projeto político contra hegemônico que a articula às tradicionais questões sociais do
emprego e da renda. O ambiente passa assim a integrar as questões pertinentes à cultura
dos direitos.
6
Sobre a violência articulada ao modelo de desenvolvimento brasileiro, ver o texto Violência e garantia de direitos:
fluxos e tensões no Brasil atual nesta publicação.
7 Projeto de Lei Complementar 12/03 que define as competências da União, estados e municípios na área de proteção
do meio ambiente e licenciamento ambiental e institui exclusividade de competência para autuação ao órgão licenciador do empreendimento.
8 Projeto de Lei PL nº 1876/99, aprovado recentemente, inclui a redução das Áreas de Preservação Permanente (APPs)
e das Reservas Legais, prevê a anistia para desmatadores, entre outras medidas de franca flexibilização da legislação
ambiental do país.
144
Não há ambiente sem sujeito, ou seja, ele tem distintas significações e lógicas de uso
conforme os padrões das sociedades e culturas. Nessa perspectiva, os riscos ambientais
são diferenciados e desigualmente distribuídos, dada a diferente capacidade dos grupos
sociais escaparem aos efeitos das fontes de tais riscos (ACSELRAD, 2010). Por isso, entendemos que o debate sobre o direito humano ao meio ambiente deve ser orientado sob
o ponto de vista das populações mais diretamente atingidas.
A noção de Justiça Ambiental é, assim, um importante movimento de ressignificação de lutas sociais que integra o processo histórico de construção subjetiva da cultura
dos direitos e pode ser definida como
[...] mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários,
às populações marginalizadas e vulneráveis9.10
Essa noção de Justiça Ambiental resulta de uma apropriação singular da temática do meio ambiente por dinâmicas sociopolíticas tradicionalmente envolvidas com a
construção da justiça social. Os danos socioambientais que recaem sobre esses grupos
não se referem apenas à degradação e à contaminação dos seus ambientes de convivência, mas também a outras diferentes formas de violência. Entre elas, a negação da
participação nos processos decisórios, a expulsão sumária, a exploração do trabalho, a
desconsideração de suas necessidades históricas, as ameaças e os assassinatos.
Entendemos que para produzir efetiva alteração no quadro de injustiça social e
ambiental, é necessário alterar o modo de distribuição - desigual - de poder sobre os
recursos ambientais, impedindo a transferência dos custos ambientais do desenvolvimento para os mais vulneráveis.
Henri Acselrad (2010, p. 114), expressa com muita propriedade o papel dos movimentos por justiça ambiental e dos atingidos:
Cabe ressaltar também a defesa dos direitos das populações futuras. E como os representantes
do movimento fazem a articulação lógica entre lutas presentes e “direitos futuros”? Propondo
a interrupção dos mecanismos de transferência dos custos ambientais do desenvolvimento
para os mais pobres. Pois o que esses movimentos tentam mostrar é que, enquanto os males
ambientais puderem ser transferidos para os mais pobres, a pressão geral sobre o ambiente
não cessará. Fazem assim a ligação entre o discurso genérico sobre o futuro e as condições
históricas concretas pelas quais, no presente, se está definindo o futuro. Aí se dá a junção
estratégica entre justiça social e proteção ambiental: pela afirmação de que, para barrar a
pressão destrutiva sobre o ambiente de todos, é preciso começar protegendo os mais fracos.
9 Declaração de Princípios da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Disponível em: <www.justicaambiental.org.br>.
10 Ao contrário, a injustiça ambiental é o processo pelo qual a implementação de políticas ambientais, ou a omissão de
tais políticas ante a ação seletiva das forças de mercado, cria impactos socialmente desproporcionais, intencionais
ou não intencionais, concentrando os riscos ambientais sobre os mais pobres e os benefícios para os mais ricos.
Estes efeitos desiguais ocorrem através de múltiplos processos privados de decisão, de programas governamentais e
de ações regulatórias de agências públicas. Processos não-democráticos de elaboração e aplicação de políticas sob a
forma de normas discriminatórias, prioridades não discutidas e vieses tecnocráticos via de regra produzem conseqüências desproporcionais sobre os distintos grupos sociais.
145
3. Territórios, sujeitos e conflitos: violações do direito humano ao meio
ambiente
A crise ambiental global tem endereço: é no território que se exploram os recursos e é lá que, a despeito da generalidade do problema, grupos que sobrevivem
dos bens naturais enfrentam um poder desproporcional às suas capacidades e acabam
prejudicados na disputa.
Casos como o da mineração de urânio em Caetité na Bahia, da empresa siderúrgica TKCSA e o do Projeto Porto Maravilha,11 no Rio de Janeiro, entre outros,
evidenciam problemas socioambientais recorrentes que representam, de diversos modos, causa ou efeito da perda de bases materiais e culturais de sustentação da vida dos
grupos sociais atingidos.
As perdas de terras, o deslocamento forçado de populações, acompanhado por
compensações financeiras insuficientes ou inexistentes, a perda cultural, os reassentamentos incapazes de reestruturar a vida das pessoas/grupos atingidos, a falta de informação sobre os projetos e riscos ambientais dos empreendimentos, as insuficiências nos
processos de licenciamentos mostram à evidência questões e fatores ambientais como
cerne da realização da (in)justiça social, revelando-se conflitos - e especialmente resistências – demonstrando a necessidade de afirmação do conteúdo concreto do direito
humano ao meio ambiente.
É nesse contexto adverso que vemos constituírem-se sujeitos coletivos que exigem
amplo acesso às informações sobre o uso dos recursos ambientais e capacidade autônoma de decidir sobre seus territórios, pretendendo instaurar acesso justo e equitativo aos
recursos ambientais. A produção de contra informação é um exemplo de como esses
grupos, fortalecidos, podem incidir no debate público e na disputa de sentido desses
grandes projetos.
Entendemos que a proteção ambiental é parte integrante das lutas sociais e se constitui cada vez mais em um projeto contra hegemônico frente ao atual modelo desenvolvimentista brasileiro. Tanto no plano discursivo quanto nas formas de luta inovadoras
desses atores sociais, a questão ambiental se constitui em um potente espaço de construção de justiça, em contraposição à racionalidade do mercado. O processo de construção,
significação e ressignificação dos direitos humanos é constante através da disputa e sua
salvaguarda não reside só nos documentos nem nas instituições, mas também – e principalmente – no sentido de dignidade.
11
Cf. boxes no fim do artigo.
146
Referências bibliográficas
ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais: o caso do movimento por justiça ambiental. Dossiê de Teorias Socioambientais. Estudos Avançados. vol. 24, n. 68, São Paulo, 2010.
Declaração de Princípios da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Disponível em
<www.justicaambiental.org.br/>.
DERANI, Cristiane. Meio ambiente ecologicamente equilibrado: direito fundamental
e princípio da atividade econômica. In: FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de.
(Org.). Temas de direito ambiental e urbanístico. São Paulo: Max Limonad, 1998.
FASE e ETTERN/IPPUR. Relatório síntese: projeto de avaliação de equidade ambiental
como instrumento de avaliação de impacto de projetos de desenvolvimento. Rio de
Janeiro: FASE, 2011.
LEROY, Jean-Pierre. Direito humano ao meio ambiente. In: Direitos humanos no Brasil
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LISBOA, Marijane Vieira; ZAGALLO, José Guilherme. Relatório da Missão Caetité:
violações de direitos humanos no ciclo nuclear. Relatoria do Direito Humano ao Meio
Ambiente Plataforma DHESCA Brasil. Curitiba: DHESCA, 2011.
MALERBA, Julianna. Democratizar processos de avaliação ambiental e planejamento
territorial para garantir sustentabilidade. Revista Proposta, FASE: 50 anos e os desafios
do futuro. Rio de Janeiro: FASE, 2011.
PAD. Nota pública. Injustiças ambientais no Brasil desenvolvido e desafios para sociedade civil organizada. 2011. Disponível em: <www.aatijupa.org/2011/10/pad-divulga-nota-publica-sobre.html>. Acesso em: 13 de junho de 2012.
Relatório de Violação de Direitos e Reivindicações. Fórum comunitário do Porto. Grupo de Trabalho Relatório de Violação de Direitos e Reivindicações. 2011. Disponível
em: <www.fase.org.br/UserFiles/1/File/porto_final.pdf>.
TRENTIN, Melisanda; BARBOSA, Evanildo. Violência e garantia de direitos: fluxos e
tensões no Brasil atual. Nesta publicação.
147
Conforme Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente, a mineração de urânio em Caetité, na Bahia, viola um conjunto de direitos humanos: o direito à saúde, à
água, moradia, atividade econômica, direito político a organização e manifestação, direito a informação entre outros. O relatório reuniu várias denúncias apresentadas pelas
comunidades: vazamentos de material radioativo, falta de informação sobre os riscos
a comunidade, maior incorporação de urânio pela população e incidência anormal de
neoplasias, diminuição nos recursos hídricos da região e falta de segurança aos trabalhadores da INB – Indústrias Nucleares do Brasil, responsável pela extração e mineração
do urânio no município. O Ministério do Trabalho verificou a existência de resíduos
de urânio no chão, nas paredes, nas lâmpadas e nos dutos de ventilação improvisados
nas dependências da INB. Além disso, há denúncias de que a empresa não realiza testes
de saúde nos trabalhadores, compromisso que deveria ter acompanhamento perene, de
acordo com os tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Além disso, há falta de
informações e de transparência na gestão da INB, em funcionamento há 10 anos. Poços
de água foram lacrados por conta do alto índice de radiação e posteriormente liberados, sem que a população tenha real informação da qualidade da água que consome.
De acordo com Padre Osvaldino Alves, da Comissão Paroquial de Meio Ambiente de
Caetité, a “população não foi devidamente preparada para os riscos e para os danos
ambientais causados pela mina. A população foi enganada com a promessa de emprego,
desenvolvimento e melhoria da qualidade da vida”. O padre já foi processado pela INB
e foi recentemente ameaçado de morte por sua atuação frente à defesa da comunidade.
A população camponesa da região reclama que sua produção não é mais comprada nas
feiras, já que ninguém quer consumir produtos contaminados.
Relatório da Missão Caetité: Violações de Direitos Humanos no Ciclo Nuclear
Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente Plataforma DHESCA Brasil
Relatores: Marijane Vieira Lisboa e José Guilherme Zagallo
Assessora: Cecília Campello Mello
Agosto de 2011
A região portuária da cidade do Rio de Janeiro, AEIU – Área de Especial Interesse
Urbanístico, sofre atualmente um grande projeto de urbanização e requalificação ambiental. O Projeto Porto Maravilha (Operação Urbana Consorciada) está sob responsabilidade
do consórcio Porto Novo (empresas Odebrecht, OAS e Carioca Engenharia), e é objeto
de intensa disputa entre Estado, capital imobiliário, da construção civil e financeiro.
Essa dinâmica de interesses produz desigualdades sociais e injustiças ambientais: falta
de informação aos moradores sobre os projetos de urbanização, não participação dos
moradores na definição e negociação da proposta de urbanização, remoções forçadas
para localidades distantes e sem infraestrutura, truculência da ação do poder público,
148
indenizações insuficientes, moradias construídas sem levar em consideração o interesse
social. O projeto prevê a recuperação da infraestrutura urbana (drenagem; esgoto; água;
telecom; energia) e de transportes; geração de empregos, com prioridade para moradores da região; atração de sedes de grandes empresas, investimento no turismo marítimo.
Na área de habitação, está no centro a atração de novos moradores (crescimento de 20
mil para 100 mil moradores) e mudança do perfil econômico, prejudicando a favela da
Providência. A dimensão ambiental prevê arborização de calçadas, praças e parques, canal do mangue. Economia de consumo de água; geração local de energias limpas; uso de
aquecimento solar; telhados reflexivos; ventilação e iluminação naturais; materiais com
certificação ambiental; implantação de sistema de tratamento de efluentes em tempo
seco para o Canal do Mangue, Rio Comprido e Rio Maracanã.
O Relatório de Violação de Direitos e Reivindicações, elaborado por um grupo de
trabalho do Fórum Comunitário do Porto em maio de 2011, revela que atividades portuárias resultam em impacto ambiental considerável. Os projetos Porto Maravilha e Porto
Olímpico propõem reconfiguração das características do patrimônio histórico cultural.
Ainda conforme o Relatório, tanto o estudo, quanto a licença dos projetos devem obedecer a critérios específicos de Área de Proteção Ambiental-APA da área portuária. O
Grupo de trabalho recomenda que o Estudo de Impacto de Remoção não deve observar
somente os aspectos econômicos do impacto, mas também sociais e culturais (condições
de convivência pré-existente, traumas psicológicos, deterioração do acesso a serviços
sobre os diferentes grupos, mulheres, crianças, doentes, grupos marginalizados etc).
FONTE: Relatório de Violação de Direitos e Reivindicações
Fórum Comunitário do Porto – Grupo de Trabalho Relatório de Violação de Direitos e
Reivindicações
Maio de 2011
http://www.fase.org.br/UserFiles/1/File/porto_final.pdf
A ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA), inaugurada em
2010 Baía de Sepetiba em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio vem trazendo impactos
socioambientais, com danos à saúde, ao ambiente e à renda dos pescadores e moradores.
O complexo siderúrgico TKCSA é considerado um dos maiores empreendimentos privados do setor produtivo na América Latina, voltado à produção prevista de 5 milhões
de toneladas anuais de aço para a exportação.
Em setembro de 2011, pesquisadores da FIOCRZ elaboraram um relatório de Avaliação dos Impactos Socioambientais e de Saúde em Santa Cruz Decorrentes da Instalação e da Operação da Empresa TKCSA. O relatório denuncia que o pó emitido pela side149
rúrgica, que está em funcionamento desde o segundo semestre de 2010 em Santa Cruz,
contém substâncias tóxicas como silício, enxofre, manganês e outros e que a emissão de
substâncias poluentes ultrapassa em três ou quatro vezes o estipulado pela Organização
Mundial de Saúde.
A empresa siderúrgica responde a duas ações penais por crime ambiental e em decorrência da poluição atmosférica em níveis capazes de provocar danos à saúde humana,
afetando principalmente as comunidades vizinhas da usina, em Santa Cruz. A Defensoria Pública estadual ouviu relatos de 238 famílias da região sobre problemas de saúde
que surgiram ou se agravaram após o início da pré-operação da siderúrgica, em julho
de 2010. Eles citaram problemas dermatológicos, respiratórios e oftalmológicos relacionados à “chuva de prata” emitida pela companhia. Rachaduras nas casas durante a construção; crise social e econômica entre os pescadores afetados com a redução da pesca;
falta de informações; ameaças feitas as pessoas que denunciaram problemas da TKCSA
A TKCSA representa uma nova divisão internacional de riscos e fonte de injustiças
ambientais, pois afetam as populações, inclusive as tradicionais, que vivem nos territórios onde estão sendo implementados tais empreendimentos. Sua localização litorânea
junto aos portos vem afetando, além dos moradores, populações costeiras que dependem da vitalidade dos ecossistemas, como pescadores, indígenas e quilombolas.
Além disso, o relatório aponta para reivindicações de liberdade de expressão; fim
imediato da poluição; indenização e reparação dos pescadores/as e moradores/as; fim
das isenções fiscais cedidas a empresa; não à licença de operação definitiva e ao termo de
ajustamento de conduta. Vale mencionar também que já em 2009, os pesquisadores da
FIOCRUZ elaboraram um parecer técnico, a pedido da comunidade local, que apontava
falhas no estudo de impacto ambiental para a instalação da empresa. Os pesquisadores
responsáveis pela elaboração do relatório vêm sendo perseguidos e criminalizados por
sua atitude de trazer à tona os danos causados pela empresa.
FONTE: Avaliação dos Impactos socioambientais e de Saúde em Santa Cruz decorrentes
da instalação e operação da Empresa TKCSA
Fundação Osvaldo Cruz – FIOCRUZ – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
(ENSP) e Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV)
Setembro de 2011
150
A CONQUISTA DA ÁGUA COMO DIREITO
Roberto Malvezzi*
1. A água no contexto dos direitos humanos
A luta pela conquista do reconhecimento da água como um direito fundamental
da pessoa humana era o tema constante em todos os textos anteriormente escritos por
mim. Ao reescrever este texto atualmente, tenho a satisfação de afirmar que, ao menos
formalmente, a água passou a ser um direito humano, reconhecido pela Assembléia Geral da ONU em 28 de Julho de 2010. Portanto, um objetivo que parecia impossível de ser
alcançado tornou-se realidade.
Mas essa luta não foi fácil. Quando cheguei para morar no sertão nordestino, juntamente com outros colegas vindos do sul, fomos para Campo Alegre de Lourdes, extremo
da Bahia, na divisa com o Piauí. Ali, durante anos, enfrentando os coronéis locais no
trabalho pastoral da Diocese de Juazeiro, experimentamos o que é viver sem água, seja
em quantidade, seja em qualidade. Enfrentamos períodos de muita chuva alternados
com períodos secos – fato que nos parecia absurdo e que hoje sabemos ser o normal –,
de alguma forma estivemos muitos presentes no sofrimento da população sertaneja no
que toca à água.
Essa experiência foi fundamental para alterar nossa percepção e sensibilidade perante a água. Eu costumo confessar por aí que “só prestei atenção na água quando ela me
faltou”. No início da década de 1990, começamos alterar essa realidade, desenvolvendo
*
Membro da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
151
ações que visavam prevenir contra as estiagens. Foi quando veio a descoberta das
cisternas. Quando percebemos que a tecnologia era viável, CPT, Paróquia e Sindicato dos
Trabalhadores Rurais construíram o primeiro lote de 50 cisternas, com financiamento da
OXFAM. A experiência concreta nos mostrou que estávamos diante de uma pérola. Por
ali seria o caminho. Daí veio a idéia de generalizar a construção de cisternas por todo o
município. Hoje, para uma demanda de quatro mil cisternas no meio rural, Campo Alegre
já tem mais de três mil. Dessa experiência brotou a proposta da Diocese de Juazeiro com o
lema “Até 2004 nenhuma família sem água de qualidade”. Esse lema da Diocese inspirou a
ASA para nosso projeto “Um Milhão de Cisternas”.
O que jamais poderíamos imaginar há dez ou quinze anos atrás é que, aquele
problema de falta de água que nos parecia tão localizado, se tornasse um problema
global. Os dados da ONU publicados durante a Cúpula Mundial do Meio Ambiente
em Johannesburgo, em 2002, eram estarrecedores. Afirmava literalmente que “1,2 bilhões de pessoas no planeta não têm acesso à água potável e 2,4 bilhões não têm acesso
ao saneamento”. Alertava para a crise progressiva da água e afirmava que esse problema era “mais de gerenciamento que de escassez”. A partir daí, o que era para nós um
problema só do semi-árido, passou a ser debatido em nível nacional. A Campanha da
Fraternidade de 2004, “Água, Fonte de Vida”, da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, popularizou o assunto no Brasil.
No Fórum Social Mundial de 2001, em Porto Alegre, quando eu procurava oficinas que debatiam o tema da água, era uma raridade encontrá-las. Foi procurando
pelo tema que localizei um espaço sobre o assunto, fora do circuito normal dos debates, num recanto da cidade. Ao chegar ao local, deparei-me com Danielle Miterrand,
Ricardo Petrella e Mário Soares. Estavam numa plenária esvaziada, falando todas as
línguas menos o português, eu era praticamente o único brasileiro presente. Depois
chegaram alguns representantes do Movimento Nacional dos Atingidos por Barragens
(MAB). Foi quando ouvi pela primeira vez Petrella falar da “oligarquia internacional
da água”, formada por transnacionais, apoiadas por organismos multilaterais e acolhidas pelos governos locais. Segundo ele a estratégia dessa oligarquia era privatizar a
água no mundo inteiro e transformá-la numa mercadoria.
No Fórum Social de 2005, uma jornalista do Valor Econômico, me disse que o
tema da água, ao lado da educação, era o mais debatido no evento. O tema da água,
então, tinha saído da periferia e vindo para o centro dos debates. Agora já era interesse
de organizações do mundo inteiro. Umas das interfaces mais debatidas do problema era
exatamente sua relação com os direitos humanos.
152
2. A água como direito humano
Naquele momento a água ainda não tinha sido reconhecida explicitamente em nenhuma convenção internacional como um direito humano. O tema tinha sido ventilado
na “Declaração Universal dos Direitos das Crianças” e no Comentário Geral 15 da ONU:
“O direito humano à água é indispensável para a vida com dignidade humana. É um pré-requisito da realização de outros direitos humanos (2002)”.1
O que existia era uma luta crescente, cada vez mais irresistível, para que o reconhecimento
da água como direito. Essa luta não foi travada antes porque parecia absurdo que a humanidade
chegasse ao limite do inverossímil, isto é, ter que transformar em lei algo tão óbvio e natural.
Para a filosofia aristotélica-tomística, os direitos naturais precedem os direitos positivos e nenhuma lei positiva pode anular um direito natural. As necessidades naturais
eram consideradas direitos naturais.
Portanto, beber água, uma necessidade primária, era um direito natural óbvio. Hoje
a precariedade e a primariedade da doutrina neoliberal chegou ao nível de estabelecer
uma ruptura entre o direito natural e o direito positivo.
Enfim, se antes a água era um direito natural, agora era reduzida a uma necessidade. Isso implicava que governos não estavam sujeitos a sanções internacionais por
violarem os direitos das pessoas à água. É absurdo, aberrante, mas era o fato. Portanto,
chegávamos ao limite do inverossímil e tivemos que lutar para que a água fosse conhecida como um direito humano. A própria ONU já admitia o desafio e afirmava:
Nas instâncias internacionais tem-se defendido, com frequência, que o reconhecimento de
que a água é um direito humano pode revelar ser a medida mais importante para superar o desafio de fornecer às pessoas aquele que é o elemento mais fundamental da vida (ONU, 2003).
Portanto, estávamos diante de mais uma luta desnecessária diante do bom senso,
mas essencial diante da irracionalidade, ou da “demência humana”, como tanto tem falado Leonardo Boff. Segundo ele, o ser humano não é apenas “sapiens sapiens”, mas
“demens demens”. E o informativo da ONU, ainda sobre o assunto, prosseguia:
Um tema recorrente do debate sobre a água como um direito humano tem sido o reconhecimento de que ela é uma condição prévia de todos os nossos direitos humanos. Tem-se
dito que, sem o acesso equitativo a um mínimo essencial de água limpa, não é possível realizar outros direitos reconhecidos, como o direito a condições de vida adequadas à saúde
e ao bem-estar, bem como os direitos civis e políticos. De um modo geral pensa-se que a
linguagem da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que foi a pedra angular das declarações posteriores, não pretendia ser exaustiva, mas sim incluir os elementos que eram
indispensáveis para um nível de vida adequado. O fato de a água ter sido excluída como um
direito explícito, deveu-se mais à natureza desta; tal como o ar, era considerada tão fundamental que a sua inclusão explícita foi considerada desnecessária (ONU, 2003).
1
ONU. CESCR. Comentário Geral nº 15 sobre a aplicação dos artigos 11º e 12º do Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. Genebra: ONU, nov. 2002.
153
Portanto, aqueles que pensaram pela primeira vez a declaração dos direitos humanos, mesmo os DhESCAs, que vieram depois, jamais ousaram imaginar que um dia
seria necessário declarar a água como um direito humano, tamanho é o absurdo. Mas
agora é outro momento. A humanidade tinha que fazer a luta pelo direito humano à
água diante do caos experimentado em grande parte do mundo pelas populações mais
pobres e diante da crescente ganância das transnacionais em mercantilizar a água. Diante
do fato, a informação da ONU era a seguinte:
Muitos decisores políticos e responsáveis por atividades de sensibilização pediram que o
direito à água fosse reconhecido como um direito humano, considerando que isso seria um
passo essencial para garantir que fossem tomadas medidas a favor dos que sofrem de falta
de acesso ao abastecimento de água limpa. Entendem que a obrigação jurídica decorrente
do reconhecimento do direito à água motivaria os governos, tanto dos países em desenvolvimento como dos países doadores, a introduzirem alterações efetivas nas políticas internas e de ajuda e na atribuição de recursos e proporcionaria aos grupos de cidadãos uma
base mais firme para pressionarem os governos. Além disso, alguns críticos da crescente
privatização dos serviços de abastecimento de água no mundo inteiro acham que o direito
à água fortaleceria os seus argumentos a favor do reforço do papel do sector público - em
vez da intervenção das empresas, cuja motivação é o lucro – na satisfação dessa necessidade crucial (ONU, 2003).
3. A privatização e mercantilização da água como estratégia
e seu impacto na violação do direito humano à água
A percepção mundial, após alguns rápidos anos de privatização, é a mesma que
vem condensada na observação da ONU. Quando a água tornou-se objeto de lucro, os problemas se multiplicaram por toda face do planeta. Então veio a reação da
sociedade civil, das Igrejas e até de governos. Houve problemas de confronto entre
a população e as empresas, sempre respaldadas pelos governos locais, verdadeiras
guerras públicas, como em Cochabamba, Bolívia, onde a idealizada privatização das
águas mostrou seu verdadeiro rosto. Houve um confronto direto contra a tendência
privatista e o esforço de reconhecer a água como direito humano, embora continuasse a resistência das transnacionais da água, dos organismos multilaterais e de
governos locais.
154
4. A luta dos socialistas europeus
Ricardo Petrella, Danielle Miterrand e Mário Soares capitaneiam, na verdade, o
grupo de políticos ligados à Social Democracia Européia. Esse grupo tem sido muito
importante no para desvendar a estratégia política das transnacionais da água – a grande
maioria, e com mais poder, é francesa, como a Suez e a Vivendi – e de propor a defesa da
água como um bem público, patrimônio da humanidade, além de propor um parlamento internacional para gerenciar a água como patrimônio da humanidade.
São propostas polêmicas e sujeitas ao debate. Faz parte também da estratégia política do grupo a defesa da água como direito humano. Para eles, só a gestão democrática
e globalizada da água vai impedir o domínio do capital privado sobre um bem que é de
todos os seres humanos.
Esses políticos aglutinaram parlamentares, personalidades de destaque e representantes de Organizações Não Governamentais de diversos países e estiveram reunidos em
10 de Dezembro de 2003 em Roma, na Itália, para lançar o dia especial para a declaração
da água como um direito humano. A data de 10 de dezembro foi escolhida por ser o
aniversário de 55 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A iniciativa foi
da Associação Internacional para o Contrato Global da Água, um grupo de organizações que eles representam. Os organizadores contaram com o apoio do governo local de
Roma para a realização do evento (2003).2
Essa luta política foi importante porque a defesa da água como direito humano
também começava a integrar a agenda dos políticos e dos partidos, não apenas de entidades de defesa aos direitos humanos, de Igrejas ou da sociedade civil em geral. A luta
pela conquista da água como direito humano é essencialmente política.
5. A postura do governo brasileiro
O Brasil tem tradição em ser signatário de todas as convenções internacionais dos
direitos humanos. Porém, de forma surpreendente, o atual governo brasileiro vinha tomando uma posição oposta às tradições anteriores no campo dos direitos, não só recusando-se, mas militando contrariamente, ao não assinar documentos aptos a promover
o reconhecimento internacional do “direito humano à água”. Esse posicionamento vinha
sendo reincidente em momentos nacionais e eventos internacionais. É de se perguntar
2
EcoAgência [www.ecoagencia.com.br], em 11 dez 2003.
155
quais razões levavam o governo brasileiro, de um partido que nasceu das bases trabalhadoras, de um presidente que afirma “ter passado sede em sua infância e ter carregado lata
d’água na cabeça” a tomar esse tipo de atitude política.
O primeiro evento internacional onde o Brasil se posicionou contrária e publicamente ao reconhecimento da água como um direito humano foi no III Fórum Mundial
da Água em Kyoto, no ano de 2003. Porém, esse posicionamento público já refletia o espírito da Lei Brasileira de Recursos Hídricos 9.433/97, na qual os princípios norteadores
do uso da água estabelecidos em Dublin são incorporados apenas parcialmente. A lei
fala de “um recurso finito, vulnerável, com valor econômico, que exige gestão participativa”, mas não fala de seu valor biológico (vida), social (desenvolvimento) e ambiental
(meio ambiente) (HINRICHSEN; ROBEY; UPADHYAY, 1999).
Mais recentemente, durante o Fórum Mundial da Água no México, em Março de
2006, o Brasil permaneceu na posição de não referendar a água como um direito humano. Entretanto, ali aconteceu uma novidade. A presença do ministro da Água da Bolívia,
com a posição explícita de defesa da água como um direito humano rachou a posição
dos países nessa questão. A Bolívia se recusou a assinar o documento final exatamente porque não defendia essa tese. Foi apoiada publicamente pela Venezuela, Uruguai e
Cuba. Nos meandros da Conferência, os bolivianos tentaram se articular com o Brasil,
mas o governo brasileiro manteve sua posição.
Embora não fosse dito explicitamente, o temor brasileiro era de ordem econômica,
o que causa ainda maior preocupação. Por ser dono das maiores reservas mundiais de
água doce – 13,8% da água doce de superfície disponível no planeta –, o governo brasileiro temia que o reconhecimento explícito da água como direito humano interferisse na
soberania nacional das águas. Era um temor ingênuo, caso fosse esse mesmo o motivo.
As convenções internacionais de direitos humanos evidentemente têm o poder de fazer
seus relatórios e denunciar seus membros que violam esses direitos, mas não têm o poder de interferir em suas políticas.
Neste caso específico, o Brasil estaria sujeito às relatorias nacionais e internacionais
de um possível reconhecimento da água como direito humano, mas sua política de águas
não dependeria desse pacto. Na verdade, muito mais lógico, é pressupor a pressão das
transnacionais da água e de organismos multilaterais que não se queriam subordinados
às políticas internacionais de direitos humanos, como bem exemplifica a postura dos
Estados Unidos na questão do direito humano à alimentação. Afinal, o reconhecimento
desse direito obrigaria os estados nacionais a pelo menos garantir segurança hídrica doméstica aos cidadãos. As empresas do ramo também estariam sujeitas a essa obrigação,
sob pena de serem denunciadas e processadas como violadoras dos direitos humanos.
O Brasil tem uma longa dívida com sua população mais pobre no tocante ao acesso
à água. Para exemplificar, estima-se que 90% da população do semiárido brasileiro não
tenha acesso à água sequer para segurança biológica, isto é, 2,5 litros de água por pessoa
156
por dia para ingestão. Mas o estudo do Ministério das Cidades afirma que aproximadamente 45 milhões de brasileiros não têm esse direito garantido em seu cotidiano. Mesmo
quando a tem em quantidade, raramente a tem em qualidade de potabilidade.
Portanto, muito menos está garantida a segurança hídrica doméstica, isto é, o mínimo de 40 litros por pessoa por dia em qualidade e regularidade. É muito mais visível a
construção de longos canais para abastecer a agricultura irrigada para exportação, que a
construção de adutoras que visem o abastecimento da população difusa pelo semiárido
brasileiro. Esse é um dos nós que divide aqueles que defendem e aqueles que são contra
a transposição do rio São Francisco.
Não se pode retirar o mérito do governo brasileiro em duas iniciativas para assegurar o acesso à água da nossa população mais carente. O primeiro é que o governo tem
apoiado financeiramente o projeto Um Milhão de Cisternas da Articulação do Semiárido (ASA), agora ampliado pelo programa “Água para Todos”. A construção desses reservatórios de 16 mil litros garante a segurança hídrica biológica da família de seis pessoas
por oito meses. Melhor ainda, oferece água potável em qualidade e regularidade, mesmo
não atingindo o padrão da segurança hídrica doméstica. Portanto, o governo brasileiro
dá sinais de avanços, mesmo que a iniciativa seja da sociedade civil, mas está longe de
garantir o atendimento básico que o direito humano garante a essa população.
Outra iniciativa, paralisada no Congresso Nacional, é o projeto de Lei 5296/05 que
visa estabelecer uma política de saneamento ambiental no Brasil. Muito bem elaborado
na gestão do ministro Olívio Dutra, propõe um investimento de vinte anos em saneamento, à média de sete ou oito bilhões de reais ao ano. Entretanto, uma disputa pela
titularidade dos serviços de saneamento entre estados e municípios tem emperrado a
aprovação desse projeto de lei. Os avanços no saneamento nesses últimos anos são pequenos e estão longe de atender às necessidades da população, por outro lado, são simbolicamente muito importantes.
Atualmente, diante da decisão da ONU, o Brasil também reconheceu a água como
direito humano. Mas essa é uma luta que os defensores dos direitos humanos no Brasil
ainda terão que cultivar a fundo para um dia alcançar o objetivo almejado. A seguir
trataremos de alguns aspectos importantes de mobilização social postos nesta direção.
6. A luta das igrejas
A conquista do direito humano à água é fruto particularmente das lutas da sociedade civil, da qual as igrejas fizeram e fazem uma parte importante.
Na Campanha da Fraternidade de 2004, “Água, Fonte de Vida”, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil defendeu a água como um direito humano e que esse princípio fosse inscrito na legislação brasileira de águas. Este item faz parte de uma proposta de
mudança em nossa legislação de águas, principalmente nos fundamentos da Lei Brasileira
157
de Recursos Hídricos 9.433/97. Esta lei, baseada exclusivamente no “valor econômico”
da água, ignora os valores biológico, ambiental e social da água, além de ignorar sua
interface com os direitos humanos. No próprio corpo do Texto Base a CNBB escreveu:
O objetivo geral da CF-2004 é conscientizar a sociedade de que a água é fonte da vida, uma
necessidade de todos os seres vivos e um direito da pessoa humana, e mobilizá-la para
que esse direito à água com qualidade seja efetivado para as gerações presentes e futuras
(CNBB, 2003).
Na proposta concreta de mudança da legislação, particularmente em seu espírito,
a CNBB mais uma vez propõe a inclusão da água como direito humano em um dos
fundamentos da Lei Brasileira de Recursos Hídricos, principalmente no inciso III do
Capítulo I:
I – a água é um bem da União, de domínio público e um direito universal, cabendo ao
poder público e à sociedade sua gestão;
II – a água é um bem natural renovável, fundamento e componente de todas as formas de
vida, tendo múltiplos valores e usos, prevalecendo sobre todos os valores e usos seu supremo valor biológico, seguido de seu valor social;
III – a água é uma necessidade primária de todos os seres vivos e um direito fundamental
da pessoa humana. Em qualquer circunstância o uso prioritário da água será para o abastecimento das populações e a dessedentação dos animais;
IV – a gestão do patrimônio hídrico brasileiro deve sempre proporcionar o uso múltiplo
das águas, subordinando-o aos múltiplos valores da água, principalmente aos valores biológico e social.
A proposta da CNBB teve repercussão internacional, particularmente dentro das
Igrejas. Ao final do período quaresmal, quando se realiza a Campanha da Fraternidade
no Brasil, a CNBB recebeu uma carta do Cardeal Martino, presidente do Pontifício do
Conselho Justiça e Paz:
No decorrer do ano passado, o Pontifício Conselho da Justiça e da Paz teve o prazer de
encontrar os Bispos brasileiros por ocasião de sua visita ad limina e de discutir com eles
numerosas dificuldades que o povo a eles confiado deve enfrentar. Naquela ocasião, foi
tratado do tema da água e em particular o do “direito à água”. A esse respeito, esse Pontifício Conselho informou de haver publicado um documento sobre a água, apresentado no
Fórum de Tóquio sobre a Água, realizado em 2003, no qual foi pedido o reconhecimento
do “direito à água”.
Por esse motivo fiquei particularmente feliz ao tomar conhecimento da Mensagem
de Sua Santidade à Conferência Episcopal do Brasil para a sua “Campanha da Fraternidade 2004” para a Quaresma. Essa Campanha foi sabiamente centrada no tema “Fraternidade e Água” e adotou o lema “Água, fonte de vida”. Constatei com satisfação que, na
sua mensagem, o Santo Padre afirmou: “Enquanto dom de Deus, a água é um elemento
essencial para a sobrevivência; cada um de nós, por isso, tem direito a ela” (PCJP, 2004).3
3
Pontifício Conselho Justiça e Paz 441/04/L32, de 19 de abril de 2004. Disponível em: <http://pt.neotinea.com/
Pontif%C3%ADcio_Conselho_Justi%C3%A7a_e_Paz>. Acesso em: 19 de junho de 2012.
158
Em sua resposta ao Cardeal Martino, D. Geraldo Magella, presidente da CNBB,
afirmou:
Temos conhecimento da iniciativa da agência “Dévelopment et Paix”, da Conferência Episcopal Canadense em favorecer o “direito à água”, assim como de ações de outras Conferências Episcopais e de entidades ligadas à Igreja do nosso Continente na defesa de promoção
desse direito, sobretudo face à atual tendência de privatização da água. Como a posição dos
governos em relação a esse tema é de fundamental importância para garantia de acesso à
água por parte de todos, especialmente da população carente, vemos com interesse a idéia
de incentivar as Conferências Episcopais da América Latina e de outras regiões na promoção do direito humano à água.4
Os desdobramentos dessa iniciativa foram constantes e ganharam um contorno
ecumênico. Após reuniões de Igrejas cristãs, católica e de outras confissões na Suíça,
foi elaborada uma “DECLARAÇÃO ECUMÊNICA SOBRE A ÁGUA COMO DIREITO
HUMANO E BEM PÚBLICO”, lançada em Freiburg, em 22 de abril de 2005. A proposta
básica do documento afirma:
Nós, do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, da Confederação Suíça de Igrejas
Evangélicas, da Conferência Nacional de Bispos do Brasil e da Conferência dos Bispos da
Suíça, reunidos em Berna, na Suíça, no dia 22 de abril de 2005, em sintonia com a Década
Internacional da Água (2005-2015), declarada pela ONU, nos alegramos e nos animamos
com as iniciativas de nossas comunidades e assumimos as manifestações das nossas Igrejas
no mundo inteiro em favor da água como Direito Humano e Bem Público .
E segue:
Que o acesso à água é um direito humano. O “direito a uma alimentação adequada” é definido pela ONU, tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948 (Art. 25),
como no “Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”, em 1966 (Art.
11). À luz desse direito, reconhecemos que as mulheres devem merecer uma atenção especial frente aos problemas e sacrifícios que enfrentam. Em muitos países, elas, juntamente
coma as crianças e as jovens, são responsáveis pela provisão e pelo abastecimento da água.
Essa tarefa acarreta consequências e danos para a sua saúde. Igualmente, impede que as
adolescentes e as crianças frequentem a escola.5
Portanto, está posto que as Igrejas assumiram a luta pela água como direito humano e contra sua privatização. Considerando a força moral e simbólica das Igrejas, os defensores da água como direito humano tiveram aqui um fortíssimo aliado, afinal, as Igrejas estavam colocando seu peso moral em favor de um direito básico da pessoa humana.
4
5
Carta envida por D. Geraldo Magella, presidente da CNBB, à sua Eminência, o Cardeal Renato Raffaele Martino,
Presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz.
Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, da Confederação Suíça de Igrejas Evangélicas, da Conferência Nacional de Bispos do Brasil e da Conferência dos Bispos da Suíça, reunidos em Berna, na Suíça, no dia 22 de abril de 2005.
159
7. A luta da sociedade civil
Uma vasta rede de organizações não governamentais se articulou em todo o mundo, principalmente a partir dos Fóruns Sociais Mundiais, para defender a água como um
bem público e como um direito fundamental da pessoa humana. São organizações defensoras dos direitos humanos, trabalhadores do ramo do saneamento, pastorais sociais, movimentos camponeses, etc. Reagiam a fatos concretos de privatização da água e seu preço
exacerbado, privando pessoas pobres do seu acesso. Em vários locais do mundo a população veio às ruas para protestar contra a usurpação de um bem que era público e universal
e repentinamente tornara-se privado e de acesso restrito aos que têm poder de compra.
Em uma declaração a partir do Fórum Social Mundial de 2005, a REDE VIDA afirmava:
1. O direito à água forma parte do Direito à Vida, primeiro e fundamental na Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
2. Qualquer sistema político-institucional que limite ou permita a exclusão das pessoas ao
acesso à água potável viola os Direitos Humanos.
3. A melhor maneira de garantir o direito humano à água parte do compromisso de que
os governos assumam publicamente o compromisso de garantir este direito. Neste sentido
os estados, através dos governos nacionais, regionais e municipais, são responsáveis por
garantir o acesso à água com qualidade e igualdade, assim como preservar este recurso da
contaminação (2005).
Nesse sentido, houve grande convergência entre setores da política mundial, Igrejas
e sociedade civil no entendimento do futuro da água e de seu reconhecimento como
direito humano. Essa concepção se opõe ao entendimento mercantilista e privatista das
transnacionais da água, organismos multilaterais e governos locais que favorecem os
interesses do grande capital e querem abdicar de seu dever de garantir água em quantidade, qualidade e regularidade a seus cidadãos.
8. Padrão de segurança hídrica para garantir o direito humano à água
É preciso lembrar que a segurança hídrica biológica, segundo padrão da Organização Mundial da Saúde, exige um mínimo de dois litros de água por pessoa por dia para
ingestão. A água para ingestão insere-se no contexto do “direito humano à alimentação”
(MALVEZZI, 2002). A segurança doméstica exige um mínimo de quarenta litros de
água diários por pessoa por dia. A segurança econômica, segundo padrão da ONU, exige um mínimo de 1000 metros cúbicos por pessoa por ano. É praticamente impossível
160
que todos os países tenham segurança econômica, mas é absolutamente necessário que
todos tenham segurança biológica e doméstica. Principalmente no que toca a esses dois
níveis de segurança, quando falta a água para ingestão humana e necessidades domésticas, há uma clara e massiva violação do direito humano à água. Por isso, essa deve ser a
prioridade de qualquer governo quando se trata de implementar políticas que garantam
o direito humano à água.
Conclusão
Concluímos afirmando que uma dimensão importante de nossa luta foi alcançada,
isto é, hoje a água é um direito humano fundamental da pessoa humana. Falta concretizar esse direito na vida de bilhões de pessoas que ainda passam sede ao redor do mundo.
Tarefa hercúlea que devemos realizar em todas as dimensões, a partir de nosso dia a dia.
Referências bibliográficas
CNBB. Água, fonte de vida. Manual e texto base. São Paulo: Salesiana, 2003.
HINRICHSEN, D; ROBEY, B. & UPADHYAY, U. D. Rumo a uma revolução azul. In:
Questões globais: águas ameaçadas. Administrando os nossos recursos vitais. Revista
eletrônica de divulgação dos Estados Unidos. v. 4, n. 1, p. 18-22, 1999.
MALVEZZI, Roberto. Direito humano à água como alimento. 2002. Disponível em:
<www.adital.org.br>. Acesso em: 15 out. 2002.
ONU. Departamento de Informação das Nações Unidas. Direito à água. DIP/2293 F –
Fevereiro de 2003. Disponível em: <http://aguapublica.no.sapo.pt/artigos/onu_01.htm>.
Acesso em: 19 jun. 2012.
REDE VIDA, Carta de princípios RED VIDA. Porto Alegre: Fórum Social Mundial, 2005.
161
A REALIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO
À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA NO BRASIL
Célia Varela *
Clóvis Zimmermann*
Jônia Rodrigues*
Este texto objetiva discutir a efetivação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA)1 no Brasil durante o período de 2007 a 2011, enfatizando os avanços
conquistados nesses anos bem como os desafios que permanecem. Parte-se de uma breve abordagem conceitual que subsidia a leitura dos avanços e desafios.
1. Abordagem conceitual
Alimentar-se é um ato vital, sem o qual não há possibilidade de manutenção da
vida. A alimentação pode ser definida como um processo biológico e cultural no qual o
organismo assimila os nutrientes obtidos dos alimentos consumidos após o processo de
escolha e preparação. Ao se alimentar, o ser humano cria práticas alimentares, o que vai
além da utilização dos alimentos pelo organismo. Ou seja, atribui-se um sentido específico nesse “alimentar-se” que varia conforme a cultura.
*
Célia Varela e Jônia Rodrigues são da Secretaria Executiva da FIAN Brasil e Clóvis Zimmermann é do conselho diretor da FIAN Brasil e ex-Relator Nacional para o Direito Humano à Alimentação Adequada. Esse texto baseia-se no
relatório anterior, elaborado por Flavio Valente.
1 O Direito Humano à Alimentação Adequada está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo
11 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e o esclarecimento do seu conteúdo está
contido no Comentário Geral nº 12, do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e no texto das Diretrizes
Voluntárias em apoio à realização progressiva do Direito à Alimentação Adequada no contexto da segurança alimentar nacional aprovado em Novembro de 2004 na 127ª Sessão do Conselho da FAO (Organização das Nações Unidas
para a Alimentação e Agricultura).
163
O Direito Humano à Alimentação Adequada apresenta duas dimensões indivisíveis
e fundamentais, quais sejam: a primeira é o direito de estar livre da fome e da má nutrição;
a segunda é o direito de ter acesso aos meios para obtenção de uma alimentação adequada.
O acesso físico e econômico (alimentos em espécie ou renda para aquisição de
alimentos) tem que ser garantido imediatamente pelos Estados, enquanto que os meios
devem ser garantidos posteriormente. Para garantir o acesso físico e econômico, cada
Estado fica obrigado a assegurar a todos os indivíduos que se encontram sob sua jurisdição, o acesso à quantidade essencial de alimentos. Ressalta-se que essa quantidade deve
ser suficiente a fim de garantir que todos esses cidadãos estejam de fato livres da fome.
Segundo Flávio Valente (2002, p. 53), o “direito de estar livre da fome” é o patamar mínimo da dignidade humana, o qual não pode ser dissociado do direito a uma alimentação
adequada em quantidade e qualidade.
Para a realização do DHAA é necessário que os Estados adotem medidas de proteção social visando combater diretamente a fome através da introdução de Programas
de Transferência de Renda ou distribuição de alimentos. Contudo, isso não significa
necessariamente a realização do Direito à Alimentação Adequada. Para realizar este direito fundamental é necessário que os meios sejam garantidos (terra, emprego, reforma
agrária, território) e a elaboração de políticas públicas que garantam todos os outros
aspectos mencionados no Comentário Geral 12 do Comitê de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais das Nações Unidas. Neste sentido, o adjetivo “adequada” considera
alguns aspectos:
Diversidade e adequação nutricional: a diversidade diz respeito ao âmbito social e
econômico, não devendo comprometer de nenhuma forma outras necessidades básicas
como moradia, educação e lazer, bem como a diversidade cultural, sendo necessário
respeitar a cultura de cada grupo específico. Importa atentar para as necessidades nutricionais distintas entre os seres humanos. Por exemplo, uma criança de cinco anos e um
adulto possuem diferentes necessidades nutricionais. Da mesma forma, os celíacos2 e as
pessoas que têm rejeição a lactose, bem como as diferentes culturas alimentares entre as
diversas regiões e países.
Sustentabilidade: este aspecto se refere à sustentabilidade tanto econômica como
ambiental, visando a preservação de recursos naturais para gerações futuras, não podendo poluir o meio ambiente ou prejudicar a fertilidade do solo através da utilização de
florestas comerciais e mau uso de fertilizantes.
Além destes fatores, a realização do DHAA depende da disponibilidade de alimentos saudáveis, seja através da produção ou do extrativismo; do acesso econômico, o qual
pressupõe uma renda ou trabalho para obtenção do alimento e do acesso físico. Este
acesso físico se refere aos lactentes, às pessoas portadoras de necessidades especiais, aos
presidiários, entre outros, que dependem da distribuição direta do alimento.
2
Pessoas com intolerância permanente ao glúten.
164
1.2. Segurança alimentar e nutricional
Pela relação dos aspectos nutricionais do DHAA, há uma ligação com o conceito e as
implicâncias da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). A partir da Cúpula Mundial da
Alimentação de 1996 o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional ganha uma definição ampla: “Segurança Alimentar é quando todas as pessoas, em qualquer momento, têm
acesso físico e econômico à alimentação suficiente, segura e nutritiva, que vá ao encontro
de sua necessidade e preferências alimentares para uma vida saudável e ativa”. Aqui, a questão das práticas alimentares seguras, sem agrotóxicos e transgênicos ganha relevância.
1.3. Soberania alimentar
A soberania alimentar considera o direito dos povos a definir suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos que
garantam o direito à alimentação para toda a população, com base na pequena e média
produção, respeitando suas próprias culturas e a diversidade dos modos campeiros, pesqueiros e indígenas, além dos modos de produção agropecuária, de comercialização e
gestão dos espaços rurais (Fórum Mundial sobre Soberania Alimentar, 2001).
A soberania alimentar expõe a dimensão econômica internacional, sendo que os interesses de um povo não podem estar submetidos aos interesses do capital estrangeiro, ou
seja, “a política de Segurança Alimentar e Nutricional deve ser regrada e submetida à política e cada nação precisa entendê-la como elemento estratégico de seu desenvolvimento”
(CONTI, 2005). Desta forma, está interligada ao conceito de efetividade do DHAA.
Assim, o aspecto de maior relevância da soberania alimentar é a preservação da
cultura alimentar e da independência de cada povo. Um país não consegue garantir sua
soberania alimentar se permite que lhe seja imposto um padrão alimentar estranho a
suas características e tradições.
2. O DHAA no cenário brasileiro
As estratégias para garantir a segurança alimentar e nutricional no Brasil continuam fortemente associadas ao crescimento econômico. Este é um fator importante,
mas muito lento, para acabar efetivamente com a fome e a pobreza no Brasil. Assim,
embora conduza a uma redução da pobreza, a via do crescimento econômico necessita
de um longo lapso temporal para produzir uma transformação relevante na magnitude da pobreza per capita e um menor grau de desigualdade.
165
O Brasil possui pouca tradição na introdução de direitos sociais universais capazes de
combater a fome e a pobreza. Os direitos até então implementados encontram-se estritamente vinculados à inserção dos indivíduos no mercado de trabalho formal, implicando a
consequente contribuição para a previdência social. A lógica desse tipo de direitos contributivos baseia-se no princípio da meritocracia, ou seja, no mérito e esforço individual
conquistados através do trabalho e não numa perspectiva dos direitos universais.
Desse modo, aos indivíduos não inseridos no mercado de trabalho formal, o acesso
a direitos sociais é geralmente negado. Esse legado explica, em grande parte, o histórico
processo de exclusão social do país. Somente a partir da década de 1980, começam a
surgir mudanças nas concepções dos direitos sociais, haja vista a conquista de princípios
universais introduzidos na Constituição Federal de 1988. Em outros termos, surgem
pela primeira vez na história das políticas sociais brasileiras, programas de caráter não
contributivos, cujo intuito é garantir direitos universais.
Porém, nos últimos dez anos, em especial no período de 2007 a 2010, o Brasil apresentou avanços significativos na garantia da segurança alimentar e nutricional a partir de
vários programas e políticas públicas voltadas à realização do DHAA.
O programa de transferência de renda Bolsa Família tornou-se um dos principais
instrumentos do governo no combate à fome e em vista da garantia do direito humano à
alimentação no Brasil. A proposta vem sendo amplamente elogiada por diversos meios
de comunicação em nível mundial. Em recente artigo, publicado pela revista britânica
The Economist, o Bolsa Família é apresentado como uma nova forma de atacar um problema antigo, ou seja, a fome.
Os objetivos do milênio estabelecidos pelas Nações Unidas em 2000 definiram metas de redução da fome para 2015, que foram alcançadas pelo Brasil em 2007, e superadas ainda no ano de 2008, conforme o relatório nacional de acompanhamento dos objetivos do milênio. Com esses resultados o Brasil se colocou como meta reduzir a pobreza
em um quarto, enquanto a meta mundial é a metade (IPEA, 2010).
Outro programa que tem grande êxito na perspectiva de garantir a segurança alimentar e nutricional é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), instituído pela
Lei nº 10.696, de 02/07/2003, regulamentada pelo Decreto nº 5873 de 15/08/2006. O
Programa tem como objetivo garantir o acesso a alimentos em quantidade e regularidade necessárias às populações em situação de insegurança alimentar e nutricional, sendo
uma medida emergencial que visa à realização da primeira dimensão do DHAA que é
de estar livre da fome.
Da mesma forma, contribui para a formação de estoques estratégicos e permite
que os agricultores familiares armazenem seus produtos para que sejam comercializados a preços mais justos, além de promover a inclusão social no campo. Os agricultores
vendem os alimentos à Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a prefeituras
e a alguns Estados, a um preço equivalente ao do atacado do produto pesquisado no
mercado regional. Para alguns alimentos, o preço é estabelecido pelo Grupo Gestor
166
Interministerial do Programa. O PAA ainda conta com a participação dos Conselhos
Municipais de Segurança Alimentar (Conseas), como mecanismo de controle social
dos projetos, conferindo maior confiabilidade à sua fiscalização e execução.
Em dezembro de 2009 foi lançado o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), o qual tem como objetivo estratégico II (Diretriz 07, Eixo Orientador
III) o acesso ao DHAA por meio de políticas estruturantes, inclusive propondo ações
programáticas. Este programa se configura como um marco importante no que diz respeito ao reconhecimento do governo em respeitar e tentar promover a igualdade social
e econômica que historicamente foi deixada de lado pelo Estado.
A partir da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, sancionada em setembro de 2006, foi estabelecido o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) que tem como objetivo concretizar a realização do DHAA e da Segurança
Alimentar e Nutricional. Com a divulgação do Plano Nacional de Segurança Alimentar
e Nutricional (Plansan) em setembro de 2011, pactuado por 19 ministérios, o qual define
as metas a serem alcançadas no período de 2012/2015, inaugura-se um novo contexto
na elaboração de políticas públicas que visam a intersetorialidade e principalmente a
institucionalidade do SISAN e da Política Nacional de SAN. Estes instrumentos visam a
universalização do DHAA no Brasil.
Assim, o Brasil mostra avanços significativos na articulação de ações voltadas para
SAN, nos três níveis da Federação já que o SISAN é integrado pela Conferência Nacional
de SAN, pelo Conselho Nacional de SAN (CONSEA), pela Câmara Interministerial de
Segurança Alimentar e Nutricional, por órgãos e entidades SAN da União, dos estados,
Distrito Federal e municípios, pelas instituições privadas, com ou sem fins lucrativos,
que manifestem interesse na adesão e que respeitem os critérios, princípios e diretrizes
estabelecidos no SISAN.
O Plano Brasil sem Miséria lançado pelo governo Dilma no primeiro semestre
de 2011 tem como objetivo romper com as barreiras sociais, políticas, econômicas
e culturais que segregam as pessoas e regiões e que se encontram em situação de
extrema pobreza. Da mesma forma, tenta identificar e incluir as pessoas que ainda
não recebem o Bolsa Família, bem como, ajudar as famílias que já o recebem, a melhorar suas condições de vida através do aumento de produção no campo e geração
de ocupação e renda na cidade.
O Brasil mostra progressos no combate à fome e no reconhecimento do DHAA enquanto direito. Isto é evidente com o avanço no marco regulatório do direito humano à
alimentação adequada (DHAA) com a LOSAN em 2006, com a aprovação da lei 11.947,
em junho de 2009, a qual regulamenta o Programa Nacional de Alimentação Escolar,
ampliando o acesso a todos os alunos matriculados na rede pública e destinando 30% do
valor para compra de produtos produzidos pela agricultura familiar e com a introdução,
em 2010, da alimentação como um direito social no artigo VI da nossa Constituição.
167
3. Constatações gerais acerca do DHAA no Brasil
Estas constatações partem da experiência da FIAN Brasil no seguimento de casos
de violação ao DHAA ao longo de 10 anos de atuação no país e da leitura das mudanças
no contexto dos últimos quatro anos.
Apesar dos avanços acima referidos, tanto no que se refere à implementação de
políticas públicas como no marco legal, grande parte da população, organizações sociais
e especialmente os gestores públicos ainda entendem o DHAA a partir de iniciativas
que têm como objetivo central o enfrentamento exclusivo da fome e da desnutrição, por
meio de ações emergenciais.
Os conceitos e a abordagem de SAN, bem como de soberania alimentar, que se
ligam ao de DHAA vão muito além das políticas adotadas pelo Estado brasileiro. Na realidade conformam uma maneira diferente de olhar para o mundo, o que se chama de um
novo paradigma. Assim, apesar do Programa Bolsa Família e de outros programas de
segurança alimentar, em 2011 ainda existiam no Brasil mais de 16 milhões de brasileiros
que passavam fome. Além disso, não auxiliam na promoção de ações de caráter estruturantes para realização plena do DHAA, como a desconcentração da riqueza, reforma
agrária e regularização dos territórios dos povos e comunidades tradicionais e o acesso
a empregos nas cidades.
Os critérios para definir quem passa fome são bastante insipientes, já que segundo
o governo, apenas quem tiver renda média mensal abaixo de R$ 70,00 reais estaria nessa
situação. Na perspectiva do DHAA, é necessário poder pelo menos aliviar a fome, sendo
o valor referido insuficiente neste sentido.
A garantia do DHAA passa pela elaboração e implementação de um conjunto de
políticas públicas que incorporem os princípios de direitos humanos, tais como a universalidade, indivisibilidade, interdependência, participação e inclusão, equidade e não
discriminação, exigibilidade e monitoramento dos direitos humanos desde sua elaboração. As políticas públicas deveriam visar a implementação da Reforma Agrária e o fortalecimento da Agricultura Familiar enquanto meios de garantir a alimentação adequada
e saudável, possibilitando que todas as pessoas possam ter acesso a uma alimentação
adequada. Essa alimentação deve ser digna, e em conformidade com suas capacidades,
seja como produtor rural, seja como assalariado, ou enquanto pessoas com deficiências,
entre outras, que necessitam de ações especiais continuadas do poder público para garantir o seu DHAA.
A operacionalização de todo o direito humano previsto nos tratados internacionais e
na legislação nacional, requer obrigações do Estado, no sentido de respeitar, proteger, promover e prover estes direitos. O não cumprimento destas obrigações consiste em violação
dos tratados internacionais pelo poder público, mesmo que possam ter sido originalmente
provocadas por Empresas Privadas ou interesses políticos e econômicos hegemônicos.
168
As violações do DHAA se configuram pelo não cumprimento pelo Estado das obrigações de respeitar, proteger, promover e prover. Estas violações podem ocorrer pela
ação direita do Estado ou omissão, seja em nível municipal, estadual ou federal. A violação por ação indireta ocorre quando o próprio Estado ou suas instituições administrativas (direta ou indireta) estão violando o DHAA. A violação por omissão ocorre quando
não há adoção de medidas necessárias para garantia do respeito, proteção, promoção e
provimento do DHAA.
Mesmo com os avanços nas políticas públicas e programas a nível federal voltados
para garantia da SAN e realização do DHAA, constata-se que as ações não conseguem
chegar às populações que vivem na extrema pobreza e, desta forma, não garantem o
acesso universal. As populações em condições de vulnerabilidade e vítimas de violação
ao DHAA são populações que historicamente tiveram seus direitos negados: a população negra, povos indígenas, comunidades tradicionais e populações urbanas em situação de extrema pobreza.
O carro chefe das atuais políticas voltadas para garantia da SAN, o Programa Brasil
sem Miséria e o PAA, são insuficientes para implementar ações estruturantes, tais como
a desconcentração da riqueza, reforma agrária e regularização dos territórios, que precisam ser priorizadas para realização e universalização do DHAA. Os casos acompanhados pela FIAN Brasil, bem como pela Comissão Especial de Monitoramento de Violações do DHAA do Conselho de Defesa do Direito da Pessoa Humana, Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República que a FIAN compõe, têm como pano de
fundo a necessidade da regularização territorial e fundiária.
Um exemplo concreto desta deficiência nas ações governamentais voltadas para
garantia da SAN e para a realização do DHAA são as violações sofridas pelo povo Guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul. Há anos o Estado vem sendo cobrado para regularizar os territórios Guarani, sendo pressupostos para realização do DHAA, e nenhuma
medida eficaz para resolução da violação foi tomada. O Estado é omisso em relação à
obrigação de realizar o DHAA, permitindo o aumento da fome, insegurança alimentar
e violência contra este povo.
Os processos de titulação de territórios, fundamentais para garantia da SAN e
DHAA dos povos e comunidades tradicionais, não são prioridades do atual governo,
já que essas comunidades possuem um modo específico de se organizar, produzir e viver. Esse modo de vida é contrário ao modelo de desenvolvimento adotado pelo atual
governo. Considerando os aspectos necessários para a realização do DHAA, o processo
de regularização dos territórios dos povos e comunidades tradicionais é de fundamental
importância para a sobrevivência física e cultural dos vários povos indígenas e comunidades quilombolas que vivem no Brasil. Garantir a demarcação do território destas
comunidades significa não só assegurar sua subsistência, mas também garantir o espaço
cultural necessário para a preservação e resgate de suas tradições.
169
A morosidade no processo de titulação ocorre pelo fato de não haver vontade política para a reparação de tais violações, uma vez que para isso o governo terá que enfrentar o próprio modelo de desenvolvimento adotado como no caso dos guarani-kaiowás.
Enquanto o processo de regularização permanece estático, uma nova onda de desenvolvimento agroindustrial se consolida no Mato Grosso do Sul. O plantio de cana de açúcar
está ocupando áreas territoriais indígenas, já reconhecidas pelo Governo Federal, mas
em processo de homologação. No total há 25 empreendedores com participação em 38
usinas no Mato Grosso do Sul. Desta, 60% tem acionistas estrangeiros. O Governo Brasileiro continua incentivando o desenvolvimento e crescimento econômico no estado e
não atenta para os 30 mil indígenas que são exterminados dia a dia.
Outro fato que demonstra a despreocupação governamental com a reforma agrária
e a regularização fundiária é a falta de estrutura dos órgãos responsáveis pela gestão e implementação de políticas públicas como o INCRA e FUNAI. Nos casos acompanhados,
esses órgãos funcionam com um número de funcionários reduzidos, aquém da necessidade mínima. Por exemplo, no Estado de Minas Gerais, no ano de 2010, o INCRA contava com apenas um antropólogo, sendo que no estado há mais de 450 comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Palmares a espera de titulação (CEDEFES-MG).
A compra de produtos para alimentação escolar diretamente da produção da agricultura familiar, possibilita o combate à pobreza rural, a garantia da segurança alimentar,
a geração de renda e a sustentabilidade do modelo de desenvolvimento do campo. Porém,
em 2010 apenas cerca de 30% dos municípios conseguiram cumprir com a demanda da
compra mínima de 30% da alimentação escolar da agricultura familiar (FNDE, 2010).
Este baixo percentual de municípios que respondem a demanda se deve a burocracia
do Programa. Muitos produtores da agricultura familiar, principalmente nos grandes
centros, não possuem a documentação exigida pelo Programa. Outro problema constatado no programa é o acesso à agricultura familiar nas grandes cidades. Os agricultores
familiares estão longe dos grandes centros urbanos e, desta forma, há complexidade na
logística. Esse problema precisa ser solucionado, já que as grandes cidades concentram
quase 60% dos recursos da merenda escolar.
A partir dos casos de violação acompanhados constata-se também que os servidores públicos, em sua maioria, bem como os gestores públicos, não possuem a necessária
compreensão das obrigações de respeitar, proteger, promover e garantir a realização do
DHAA e dos direitos humanos em geral enquanto membros do Estado.
Outra deficiência clara presente no Estado é o acesso à justiça, que não funciona
de forma universalizada. Geralmente os sujeitos de direitos não conseguem acessar a
justiça por dois motivos básicos: a) falta de conhecimento; e b) dificuldade de acesso.
E, em muitos casos, quando conseguem acessar não recebem tratamento adequado dos
servidores e gestores que, por não estarem capacitados ao exercício daquela função, não
compreendem as pessoas vulneráveis como sujeitos de direitos.
170
É ainda muito frágil a institucionalidade da temática dos direitos humanos nos
estados e municípios. Faltam secretarias específicas, conselhos e políticas públicas que
respondam pela garantia e defesa desses direitos. Órgãos como o Ministério Público e a
Defensoria Pública vêm, crescentemente, trabalhando na perspectiva de efetivação dos
DhESCAs, mas ainda necessitam ampliar sua capacidade técnica e estrutural para exercerem essas atribuições. Para tanto, faz-se necessária a capacitação específica em direitos
humanos para a garantia do exercício do DHAA.
Os órgãos governamentais não possuem estrutura para responder a demanda e isto
gera grande morosidade no processo do Estado dar um retorno e reparar as violações.
Por exemplo, os relatórios da Comissão Especial de Monitoramento do DHAA, ligado
ao CDDPH, da qual a FIAN participa, enviados aos órgãos levam em média um mês e
meio para receber respostas. É um tempo muito longo por se tratar de violação a um
direito fundamental como é a alimentação adequada.
As populações em extrema pobreza, que atualmente representam mais de 16 milhões de pessoas segundo dados oficiais, são vítimas de uma cultura social que naturaliza
a pobreza e culpabiliza os sujeitos por sua condição, retirando a responsabilidade do Estado quanto às obrigações de prover e facilitar o acesso ao DHAA. Além disso, constata-se uma crescente criminalização dos defensores de direitos humanos.
O poder judiciário se mostra conservador e moroso em relação à garantia dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Assim, fica clara a falta de independência de grande
parte do judiciário ligado aos grupos econômicos e políticos hegemônicos. Isto se manifesta claramente na tramitação dos processos de desapropriação de terras para a Reforma
Agrária, de demarcação e homologação de terras indígenas e quilombolas e de desalojamento de comunidades tradicionais bem como no alto índice de criminalização dos movimentos sociais. Chegou-se ao absurdo de envolver criminalmente, por formação de quadrilha, indígenas mobilizados na luta pelo acesso ao território, para garantia do DHAA.
4. Exigibilidade do DHAA
Para cumprir com a concepção de direitos humanos, o Direito Humano à Alimentação Adequada deve ser exigível. Exigibilidade é a possibilidade de reivindicar a efetivação dos direitos. Nesse quesito os avanços no Brasil têm sido muito lentos, faltando
experiências especialmente do poder público em introduzir mecanismos de exigibilidade e formar os agentes públicos que possam atuar de forma adequada nesta perspectiva.
A exigibilidade pode ser:
Administrativa: que se faz junto aos órgãos públicos responsáveis pela garantia do
DHAA (conselhos, ouvidorias, secretarias de escolas etc). A alimentação escolar diária
é um direito do aluno, previsto na Constituição Federal. Caso a alimentação escolar não
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seja fornecida na escola, o DHAA dos alunos está sendo violado. Desta forma, deve-se
procurar a secretaria da escola para exigir a efetivação desse direito. Caso a secretaria
não possa resolver a situação, esta tem a obrigação de procurar outros meios para reparar a violação ao DHAA.
Político-administrativa: junto ao poder legislativo, seja municipal, estadual, federal ou organismos de gestão compartilhada (Conselhos de Políticas Públicas). Ainda
seguindo o exemplo da alimentação escolar: caso a secretaria da escola não tenha conseguido reparar a falta da alimentação escolar, pais e alunos daquela escola devem apresentar reclamação junto à Secretaria Municipal de Educação ou ao Conselho Municipal de
Alimentação Escolar sobre o não recebimento regular da alimentação na escola.
Semi judicial: junto aos órgãos que não são parte do poder judiciário, mas podem acionar a justiça para garantir direitos, como é o caso do Ministério Público, que pode instaurar
um Inquérito Civil Público ou elaborar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).
Judicial: junto ao judiciário, mediante vários instrumentos como Ação Civil Pública, Ações Populares, etc. Um indivíduo pode buscar reparações em nível nacional e
internacional. Para isso é necessário conhecer os instrumentos de exigibilidade (leis,
pactos) e os mecanismos de exigibilidade (Órgãos, Organizações), que auxiliam a colocar em prática o que está assegurado nos instrumentos.
Abaixo citamos os mecanismos de exigibilidade de DHS, em especial do DHAA
mais importantes:
1) O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, vinculado à Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República é, com toda certeza, o maior mecanismo,
em âmbito federal, a quem caberia a investigação e o monitoramento da realização dos
direitos humanos, inclusive dos DHESCAs da população que habita nosso território.
No entanto, sua presidência é exercida pela Ministra de Direitos Humanos, designada
pela Presidente da República, o que limita a independência do órgão. Desde 2005, por
pressão da sociedade civil e do CONSEA, foi instituída uma instância interna de monitoramento do DHAA. As instituições correspondentes em âmbito estadual apresentam
muitas das mesmas limitações.
2) A Comissão Especial de Monitoramento das Violações do DHAA, alocada no
Conselho de Defesa do Direito da Pessoa Humana (CDDPH) que está vinculado a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, instituída em 2005, é composta
por representantes da sociedade civil e órgãos governamentais, monitora as violações
do Direito Humano à Alimentação Adequada, constituindo-se como um mecanismo
de exigibilidade propondo: a) acompanhamento; b) monitoramento; e c) reparações das
violações do DHAA. É a primeira comissão que trata especificamente de um DHESC na
instância do CDDPH. Desta forma, constitui um avanço na direção do tratamento dos
direitos humanos em sua indivisibilidade.
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3) A Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Deputados, das Assembléias
Legislativas e Câmaras Municipais, desempenham um papel importante na apuração de
denúncias de violação, mas têm capacidade reduzida de interferir diretamente na superação ou reparação das violações, funcionando muito mais como caixa de ressonância
para dar visibilidade às situações denunciadas e não conseguem ainda atuar no campo
dos DHESCAs.
4) O mecanismo nacional de exigibilidade de direitos humanos com maior poder
de incidência, sem dúvida alguma, é o Ministério Público (Federal, Estadual, do Trabalho e Militar), mesmo que a ação nesta área ainda esteja limitada a setores ou mesmo
membros isolados do MP. No entanto, avanços significativos vêm sendo observados nos
últimos anos, em especial na área da promoção e da realização do DHAA.
5) Conforme apontado no relatório anterior, o judiciário continua sendo o poder
mais impermeável à promoção dos DHESC, inclusive ao DHAA.
6) A Comissão Permanente no âmbito do CONSEA foi instalada em novembro de 2004, tendo desenvolvido uma metodologia de avaliação de políticas, pela
ótica do DHAA, com base na experiência da Comissão de Direitos Humanos da
África do Sul e desde então vem desenvolvendo análises das políticas públicas implementadas pelo governo.
7) O Ministério Público Federal, através da Procuradoria Federal dos Direitos do
Cidadão (PFDC), constituiu um GT para o Direito Humano à Alimentação Adequada
que vem divulgando o tema aos procuradores do MPF e promotores do MPE desde
2004. O GT, além de analisar situações específicas, elaborou um manual para a operacionalização do DHAA para promotores e procuradores.
8) O Brasil tem assinado todos os instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos, mas entre as poucas exceções está o Protocolo Facultativo do Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, aprovado em dezembro de
2008, que permite o acesso ao sistema universal de proteção aos direitos humanos às
vítimas de violação.
Compreende-se que a universalidade do DHAA se relaciona à implementação do
SISAN, através do Plano Nacional de SAN e das discussões em torno de um sistema de
exigibilidade e monitoramento deste direito, precavendo que aconteçam omissões, abusos, contradições ou ambiguidades quanto às responsabilidades dos agentes públicos.
Vale ressaltar que a universalização de direitos configura-se por um processo social, político e jurídico que tem como pressuposto a transparência e a eficiência das instituições,
processos e procedimentos, da responsabilização de agentes públicos em todos os níveis
da federação bem como da participação ativa, informada e capacitada dos sujeitos de
direito e da sociedade civil organizada.
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5. Monitoramento e indicadores de direitos humanos
Como já mencionado anteriormente, a exigibilidade e o monitoramento são diretrizes necessárias para garantir a realização dos Direitos Humanos. Além de haver escassos
mecanismos que possibilitem essa exigibilidade e monitoramento no âmbito dos Conselhos de Direitos, estes não respondem aos Princípios de Paris. Estes princípios fazem parte
da Resolução 1992154 de 3.3.92 da Comissão de Direitos Humanos da ONU, e se relacionam com o status de instituições nacionais de direitos humanos. Versam sobre novas institucionalidades de proteção, defesa e monitoramento da realização dos direitos humanos
nos estados partes do sistema Internacional de Direitos Humanos. Estes princípios regem
a autonomia definindo que a instituição nacional deve ter infra estrutura que permita
a condução das atividades de modo harmonioso, em especial com recursos adequados.
O propósito desses recursos é permitir à instituição ter ambiente de trabalho e setor de
pessoal próprios, com independência do Governo e e sem sujeição ao controle financeiro.
Os princípios de Paris também regem a instituição competente para o monitoramento de direitos humanos que deve ser pluralista, composta de todas as forças da sociedade envolvidas na promoção e proteção dos direitos humanos, particularmente pelas
forças que tornarão possível o estabelecimento de cooperação como sociedade civil que
atua no campo dos direitos humanos, correntes de pensamento filosófico ou religioso, universidades e especialistas qualificados, parlamento; e departamentos do Governo
(apenas em caráter consultivo).
Estes elementos demonstram que para a promoção da realização do DHAA é necessário existir na estrutura do Estado um colegiado plural voltado ao recebimento, apuração e acompanhamento de denúncias de violação de direitos humanos. No entanto, o
único órgão com esta formação é o Ministério Público. Desta forma se faz necessário
institucionalizar a Comissão Especial do CDDPH, pois esta cumpre um papel indispensável para o fortalecimento do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
e do I Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. A Comissão é um canal
aberto ao público para o recebimento de denúncias e monitoramento de violação ao
DHAA em solo nacional, dando visibilidade a casos emblemáticos e criando uma oportunidade de incidência na agenda da segurança alimentar e nutricional no Brasil.
Para monitorar a execução do Plano Nacional de SAN e a implementação do SISAN
na perspectiva dos direitos humanos é importante entender o que são indicadores de
direitos humanos. É necessário fazer este monitoramento para além da análise de indicadores sociais. Esta análise parte do monitoramento de denúncias de violações oriundas
de grupos populacionais mais vulneráveis a situações de violação de seus direitos fundamentais e desta forma estabelece um avanço na construção de indicadores de direitos
humanos, pois isso evidencia de forma impactante a falta de efetividade da realização
do DHAA a partir de situações emblemáticas de violação e a partir de então monitora as
possibilidades de resolução das violações apontadas.
174
Este procedimento pode se associar a três conceitos de indicadores, apresentados por
Paul Hunt, ex-relator especial das nações unidas para a saúde, que aborda a base estrutural (ações do estado e marco legal), a base de processo (abrangência e qualidades das
políticas públicas, os grupos mais vulneráveis e prioridades), e a efetividade (impacto
real da implementação ou ao não das ações e políticas na realização dos direitos humanos).
No Brasil, há experiências interessantes na perspectiva de monitoramento de direitos humanos, tais como o da própria FIAN Brasil, que trabalha na identificação, documentação e acompanhamento de casos de violação ao DHAA. Merece destaque também
o Projeto Monitoramento em Direitos Humanos no país, que monitora o cumprimento
do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC); Plataforma de Direitos Humanos, Econômicos Sociais e Culturais (Plataforma DHESCA) a partir das Relatorias Nacionais, que também acompanham violações em Direitos Humanos;
entre outros, que tem como missão contribuir para a democratização e o fortalecimento
da Sociedade e do Estado, na perspectiva da vivência da cidadania plena e da indivisibilidade dos Direitos Humanos.
Referências bibliográficas
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alimentação adequada. 2011. Brasília: CDDPH. Mimeo.
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O DIREITO À CIDADE NO BRASIL NO PERÍODO 2008-2011
DESAFIOS PARA EFETIVAÇÃO DA AGENDA DA REFORMA URBANA
Mércia Maria Alves da Silva*
Orlando Alves dos Santos Junior**
Cristiano Muller***
1. O direito à cidade no Brasil: referências conceituais e desafios
contemporâneos
Tomando como referência o período 2008-2011, pode-se dizer que, nacionalmente, a dinâmica urbana foi marcada por três grandes políticas desenvolvidas pelo governo
federal: 1) o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado em 2007, com
grande impacto sobre as intervenções nas cidades, sobretudo no campo da mobilidade, do saneamento e da habitação; 2) o Programa Minha Casa Minha Vida, lançado
em 2009, destinado a promover a produção ou aquisição de novas unidades habitacionais, ou a requalificação de imóveis urbanos, para famílias com renda mensal de até R$
5.000,00; e 3) o projeto da Copa do Mundo de Futebol 2014, com intervenções estruturais vinculadas à realização desse megaevento em 12 cidades brasileiras.
As cidades brasileiras passaram a ser palco de grandes intervenções com abundância de recursos para obras de infraestrutura e de reestruturação das suas áreas urbanas
(centrais), as intervenções foram impulsionadas por essas políticas. No entanto, nem
* Assistente Social, membro do CENDHEC, OLINDA, PE.
** Relator Nacional do Direito à Cidade da Plataforma DHESCA, professor do IPPUR/UFRJ, pesquisador do Observatório
das Metrópoles.
*** Advogado, Doutor em Direitos Humanos e Desenvolvimento, membro do Centro de Direitos Econômicos e Sociais (CDES).
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sempre tais intervenções parecem ser acompanhadas por políticas de promoção e garantia do direito à cidade, especialmente do direito à moradia dos cidadãos situados nas
áreas de intervenção desses projetos.
Com efeito, em que pese a necessidade de reconhecer, durante a última década
de 2000, avanços gerais no país do acesso à habitação, saneamento ambiental e mobilidade urbana, percebem-se graves situações de violação do direito humano à cidade,
expressas, sobretudo, no alto número de remoção de pessoas gerado pelas intervenções urbanas em curso.
A forma como essas remoções estão sendo promovidas não deixa dúvida. Sem a
garantia do direito à moradia e à terra urbanizada, as famílias removidas não terão outra alternativa a não ser reproduzir o quadro atual: 1) construindo um barraco em área
irregular ou de risco, ainda não ocupada; 2) construindo moradia em uma favela ou
assentamento precário, reforçando o processo de adensamento dessas áreas; ou 3) morando na rua.
As situações encontradas nas grandes cidades brasileiras evidenciam problemas
relacionados diretamente com a construção de megaempreendimentos ou com a realização de megaeventos, em especial, a Copa do Mundo de 2014. É possível afirmar que
as intervenções urbanas em curso estão associadas ao processo de mercantilização das
cidades, com a entrega de seus espaços mais rentáveis e valorizados à iniciativa privada
e a transferência da população pobre para regiões cada vez mais afastadas do centro,
muitas vezes situadas em áreas de risco.
Tomando como referência o Estatuto das Cidades e os Pactos Internacionais, dos
quais o Brasil é signatário, antes de atender a interesses econômicos, a cidade precisa
cumprir sua função social, o que exige do poder público a garantia para a população do
direito à cidade.
Dessa perspectiva, o direito à cidade pode ser compreendido como um direito coletivo de todas as pessoas que habitam a cidade, a seu usufruto equitativo dentro dos
princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social. Ou seja, o direito
à cidade envolve o direito à moradia, à terra urbanizada, ao saneamento ambiental, à
mobilidade urbana, ao trabalho, à cultura e ao lazer, à educação e à saúde. Em outras
palavras, estamos falando do direito a todos os bens e serviços necessários a reprodução
social das pessoas na cidade.
Mas, além disso, o direito à cidade também envolve o direito de recriar a cidade, o
direito de ter uma cidade radicalmente democrática, onde a população possa participar
das decisões relativas a forma como a cidade deve funcionar e ao modo de organizar a
vida coletiva na cidade. Isso implica que todas as pessoas devem ter o direito de participar do planejamento e da gestão do habitat, para garantir que a utilização dos recursos e
a realização de projetos e investimentos repercutam em seu benefício, dentro de critérios
de equidade distributiva, complementaridade econômica, respeito à cultura e sustentabilidade ecológica.
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Pode-se dizer que o conjunto de direitos incluídos no direito à cidade está relacionado a três princípios fundamentais:
1) Exercício pleno da cidadania. Realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, assegurando a dignidade e o bem-estar coletivo dos habitantes da
cidade em condições de igualdade e justiça, assim como o pleno respeito à produção
social da cidade.
2) Gestão democrática da cidade. A cidade é uma construção coletiva, com múltiplos agentes e interesses. Deve ser garantido o controle e a participação de todas as pessoas que moram na cidade, através de formas diretas e representativas no planejamento
e governo das cidades.
3) Função social da cidade e da propriedade urbana. Nesse aspecto, é preciso considerar que os interesses e direitos coletivos devem subordinar os limites do direito individual de uso da propriedade, de forma a garantir o uso socialmente justo e ambientalmente equilibrado do espaço urbano. Assim, o usufruto da propriedade individual deve
estar dentro de parâmetros democráticos de justiça social e de condições ambientais
sustentáveis.
Para proteger e fazer cumprir adequadamente o direito à cidade é necessário inclusão jurídica e política de princípios, regras e instrumentos destinados ao reconhecimento e à institucionalização de direitos das pessoas que moram nas cidades, assim como
atribuir competências ao poder público para gerir a cidade e aplicar os instrumentos de
forma a garantir o cumprimento da função social da propriedade urbana e promover o
direito à cidade.
No Brasil, mesmo reconhecendo os avanços ocorridos ao longo da década de 2000,
ainda são evidentes as situações de flagrante desrespeito e violação do direito humano à
cidade. Nos últimos quatro anos (2008-2011), cabe destacar que as grandes intervenções
urbanas e os megaeventos – em especial a Copa do Mundo 2014 – se constituíram em
alguns dos principais processos de violação do direito a cidade, razão pela qual se tornam objeto desse relatório.
2. Os conflitos fundiários e a luta pela criação de um marco jurídico de
prevenção dos despejos
Os conflitos fundiários urbanos traduzem-se em um grave problema social e de
violação de direitos humanos no Brasil. Tratados sempre como um sub tema nas políticas públicas governamentais, os conflitos fundiários são responsáveis pelo despejo de
milhares de famílias e de comunidades inteiras dos locais onde residem. Esses despejos são possíveis por meio de ordens judiciais oriundas de processos de reintegração
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de posse, reivindicatória de propriedade, pedidos de tutela antecipada entre outros.
Existem também os despejos causados por ordens administrativas emanadas do poder
público municipal, estadual e federal, em sua maioria denominados de remoções. Esses
despejos geralmente ganham um sem número de justificativas como, por exemplo, os
ocupantes estarem residindo em áreas de risco, mesmo que não se tenha em conta o que,
efetivamente, pode ser denominado como sendo área de risco.
Essas medidas extremas são também responsáveis pela ocorrência de inúmeras situações de violência estatal praticadas contra comunidades pobres pelo Brasil afora e
que ocupam esses locais, representadas pelas violações do direito à vida e à integridade
física, do direito à moradia digna, do direito à cidade, do direito ao devido processo legal, do direito ao território e muitas outras violações à dignidade da pessoa humana que
se perpetram num processo/ato de despejo.
Os conflitos fundiários são aqueles que basicamente se relacionam com a disputa
pela posse e propriedade da terra, envolvendo em sua maioria comunidades de baixa
renda que podem estar num ambiente urbano, rural, em território quilombola entre
outros. Basicamente, estes conflitos se notabilizam nas situações onde existem precariedade e informalidade na posse exercida por comunidades onde residem famílias que
nunca tiveram um título que atestasse a propriedade do imóvel ocupado.
Nas áreas de terras ocupadas por remanescentes de quilombos, por exemplo, essas
ocupações já são consolidadas desde há muito tempo e, muito embora haja o reconhecimento da sua posse em nível constitucional (artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) e infraconstitucional (Decreto nº 3912/2001), ainda não se obteve
êxito na regularidade dominial desse tipo de posse. Os conflitos fundiários originados
em função do direito ao acesso à água também são considerados no momento em que se
fala em conflitos fundiários, tendo em vista a utilização de grandes áreas de terras para a
construção de barragens, açudes e hidrelétricas.
Nessa lista estão também as grandes obras viárias, os empreendimentos particulares e públicos que atingem moradias que podem ou não estar tituladas. Já no ambiente
urbano, assim como existem ocupações consolidadas por muito tempo, mas em que as
pessoas vivem sem nenhum tipo de segurança na sua posse, isto é, sem titulação alguma,
existem também aquelas ocupações recentes realizadas em vazios urbanos.
Essas ocupações são impulsionadas pelo grande déficit habitacional, realizadas por
pessoas que estão em estado de necessidade social, que não encontram outro tipo de solução para sua falta de moradia a não ser se organizar e ocupar uma área urbana ociosa e
sem utilização alguma, para ali residirem com suas famílias. Geralmente, essas ocupações
não dispõem de qualquer tipo de infraestrutura de moradia ou condições habitabilidade.
Nesse sentido, a realidade brasileira é grave. Além da total inexistência de uma política pública efetiva para o tema dos conflitos fundiários urbanos como um tema central
e não periférico na política urbana, a comunidade pobre é a que tem sofrido mais com
essa falta de um marco jurídico regulatório com ações e diretrizes para a mediação e
prevenção dos conflitos fundiários urbanos.
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Segundo dados da Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional brasileiro está em
torno de 6 milhões de moradias, sendo 15 milhões as moradias inadequadas, em grande
parte pela ausência de saneamento ambiental e infraestrutura adequada. Esse déficit de
moradias concentra-se na sua maioria – ao redor de 90% – na faixa de renda de 0 a 3
salários mínimos, afetando diretamente as comunidades de baixa renda. Por outro lado,
a política habitacional existente – programa Minha Casa Minha Vida – não teve ainda
a efetividade esperada de atacar esse déficit e reduzir consideravelmente o número de
pessoas sem teto no país.
Apesar disso, proliferam pelas grandes cidades obras gigantescas destinadas a faixa
de renda de 3 a 5 salários mínimos financiadas por esse programa, e quando as obras são
destinadas aos pobres, essas são localizadas na periferia das grandes cidades em geral a
15 km do centro – longe dos serviços públicos de transporte, saúde, educação, lazer e do
trabalho. A essa contradição, pode ser somada ainda a falta de investimentos públicos
em revitalização de áreas centrais onde existem vazios urbanos e da ociosidade e subutilização dos prédios públicos e privados que habitam também esses grandes centros
urbanos, os quais poderiam estar direcionados à habitação de interesse social.
Muito pouco ainda tem sido feito no Brasil em nível de intervenção pública para
enfrentamento do problema dos conflitos fundiários urbanos. Paradoxalmente, a sociedade civil organizada, representada pelos movimentos populares de moradia e pelas
organizações não governamentais, tem atuado incessantemente para denunciar essas
violações aos direitos humanos e propor alternativas para se evitarem as realizações de
despejos e cumprimento de ordens judiciais de desocupação que venham a violar direitos humanos.
Assim, com a finalidade de se buscar a garantia e a implementação efetiva desse arcabouço jurídico, é que a sociedade civil organizada vem atuando, especificamente, para
se buscar evitar os despejos, impulsionando propostas na voz de movimentos populares
e organizações não governamentais como, por exemplo, o Fórum Nacional da Reforma
Urbana no Brasil. No ano de 2006, no contexto deste Fórum, foi realizado um Seminário
em Recife que criou a Plataforma Brasileira de Prevenção dos Despejos. Nesta Plataforma, amplamente debatida, foi aprovada uma série de recomendações que o Estado brasileiro deveria seguir para prevenir os despejos em áreas urbanas, rurais, de comunidades
tradicionais e étnicas.
Dentre estas recomendações, está a necessidade de reformar o Código de Processo
Civil Brasileiro, o qual estabelece as regras processuais para aplicação dos direitos civis no
país. Essas alterações estão direcionadas à proteção jurídica, administrativa e processual
da posse contra os despejos e é por isso que deveriam se incorporar, especificamente, na
parte do código que trata do procedimento especial de reintegração de posse e similares.
Isto deveria acontecer da seguinte maneira: o juiz, antes de apreciar o pedido liminar deverá tomar várias providências que venham a impedir o despejo puro e simples
das pessoas que foram demandadas. Neste sentido, a obrigação do juiz deveria ser a de
181
designar audiência na tentativa de conciliação entre as partes, mediadas por ele e pelo
Ministério Público, com a citação e presença das pessoas envolvidas na ação, devidamente assistidas pela Defensoria Pública ou por advogado habilitado. Se não houver
acordo entre as partes, o juiz deverá apreciar o pedido liminar de reintegração de posse,
mas analisando e incluindo o cumprimento da função social da propriedade como requisito para concessão dessa medida.
Ademais, com base na reforma da lei processual, os juízes ficariam obrigados a pedir
informações aos entes públicos municipais, estaduais e federais sobre o efetivo cumprimento da função social da propriedade de um imóvel em disputa, além de realizar inspeção judicial na área em litígio.
Outro ator fundamental da sociedade civil e que tem atuado fortemente para denunciar as violações do direito humano à moradia digna nesses despejos, é a Plataforma
DhESCA Brasil, uma rede de organizações não governamentais e movimentos populares
que lutam por direitos humanos. Desde 2002, essa Plataforma, no âmbito do projeto Relatores, instituiu a Relatoria do Direito à Moradia, que hoje se denomina de Relatoria do
Direito Humano à Cidade. O objetivo desta Relatoria é dar visibilidade a essa violações
de direitos humanos que ocorrem em virtude dos conflitos fundiários urbanos no Brasil,
através da realização de missões e visitas aos locais de conflitos, bem como efetuar a fiscalização e monitoramento desses casos, desde o ponto de vista da atuação dos poderes
públicos, neles incluídos o poder judiciário.
Com base ainda nessa pressão da sociedade civil organizada é que foi possível a efetivação durante todo o ano de 2009 de Seminários Regionais de Prevenção e Mediação
de Conflitos Fundiários Urbanos em todo o Brasil para discutir a proposta de política
nacional para estes conflitos. Assim, no final do ano de 2009, foi aprovada a Resolução
Recomendada nº 87/2009 que aprovou a Política Nacional de Prevenção e Mediação de
Conflitos Fundiários Urbanos. A Resolução apresenta o primeiro conceito de conflito
fundiário urbano contido em um documento de política governamental:
[...] conflito fundiário urbano: disputa pela posse ou propriedade de imóvel urbano, bem
como impacto de empreendimentos públicos e privados, envolvendo famílias de baixa renda ou grupos sociais vulneráveis que necessitem ou demandem a proteção do Estado na
garantia do direito humano à moradia e à cidade.1
Além disso, no seu art. 4º estabelece uma série de princípios e diretrizes para serem
seguidos na implementação dessa política:
1
Ver outro conceito de conflitos fundiários na pesquisa coordenada pela PUC/SP sobre “Conflitos de Posse e Propriedade Urbana e Rural no Brasil” para o projeto Pensando o Direito do Ministério da Justiça. Disponível em: <http://
pota.mj.gov.br/data/Pages/MJBEB32F35ITEMID896547BFF6464EA594D3536E1ADA16A2PTBRIE.hatm>. Acesso
em: 1 jul. 2012.
182
I – a garantia do direito à moradia digna e adequada e à cidade;
II – o cumprimento da função social da propriedade e da cidade;
III – a garantia do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa;
IV – a garantia do acesso a terra urbanizada e bem localizada para a população de baixa
renda e grupos sociais vulneráveis;
V – a garantia da segurança da posse para as famílias de baixa renda e grupos sociais vulneráveis;
VI – a responsabilidade do Estado na estruturação e implementação da política de prevenção e mediação de conflitos fundiários urbanos nas esferas federal, estadual e municipal;
VII – a prevalência da paz e soluções pacíficas para situações de conflitos fundiários urbanos;
VIII – a participação popular e gestão democrática das cidades;
IX – a garantia do acesso às informações acerca dos conflitos fundiários urbanos.
Outra demanda proveniente do interior do Conselho por pressão dos movimentos
populares de moradia nacionais e organizações não governamentais, foi a da criação de
uma estrutura dentro do Ministério das Cidades que fosse responsável pela adoção de
medidas e ações de prevenção e mediação de conflitos fundiários. Assim, com a edição
da Portaria 587 em 2008, foi criada a Coordenação de Conflitos Fundiários Urbanos
no interior da Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades,
editada com base na Resolução nº 50 do Conselho das Cidades, e que tem como função
o recebimento e o processamento de denúncias de despejos visando à mediação de conflitos fundiários, a criação de estruturas regionais de mediação de conflitos, a adoção de
medidas de prevenção de conflitos fundiários, dentre outras.
Como visto anteriormente, o tema dos conflitos fundiários supera a questão urbana e se reflete também na disputa por áreas rurais, na regularização dos territórios
quilombolas, nas construções de barragens e usinas hidrelétricas, por exemplo. Nesse
sentido, é importante trazer a experiência produzida pelo ambiente rural no enfrentamento do tema dos conflitos fundiários no Brasil. Com a edição do Plano Nacional de
Combate à Violência no Campo pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, através do seu Departamento de Ouvidoria Agrária e Conflitos Fundiários, restaram consignadas, nacionalmente, 15 ações direcionadas à prevenção de violações aos direitos
humanos no campo, dentre elas a implantação de centros estaduais de gerenciamento
de crises e direitos humanos nas polícias militares, instalação de varas agrárias e de
defensorias públicas agrárias, elaboração de manual para cumprimento dos mandados
de reintegração de posse, alterações legislativas, regularização de terras quilombolas
e terras indígenas, dentre outras. Com relação à elaboração do manual para cumprimento dos mandados de reintegração de posse, essa medida foi implementada com a
construção de uma série de medidas que autorizam o cumprimento dos mandados de
desocupação sem que isso incorra em violência contra as famílias e comunidades que
estão sendo despejadas.
183
Essa medida é importante e tem reduzido os altos índices de violência no campo até
então noticiados, muito embora não tenha acabado, visto que essa medida foi firmada
por todas as secretarias de segurança pública dos estados da federação, com exceção do
estado do Rio Grande do Sul que se negou a participar da elaboração do documento.
Além disso, a experiência no meio rural propiciou impactos no ambiente urbano, já
que algumas polícias militares estaduais adotaram o sistema de gerenciamento de crises e direitos humanos proposto pelo Plano de Combate à Violência no Campo. Assim,
as ordens judiciais que requisitam força pública para o cumprimento dos despejos nas
áreas urbanas também passam por esses centros de gerenciamento de crises, os quais
impulsionam medidas de mediação do conflito antes do cumprimento da ordem, como
é o caso do estado do Piauí. Essas medidas evitam, efetivamente, violações aos direitos
humanos quando as negociações levadas a efeito pelo poder público impedem o cumprimento da ordem de despejo, a qual vem seguida de enfrentamento físico entre polícia e ocupantes, uso excessivo da força pelo aparato estatal, com consequências graves,
como constrangimentos, prisões, danificação de bens pessoais, violência contra a vida e
a integridade física e danos morais e psicológicos.
É bom lembrar que o tema dos conflitos fundiários urbanos desde a perspectiva da
proteção e da defesa do direito à moradia digna encontra uma forte base legal. Desde o
ano 2000, com a promulgação da Emenda Constitucional nº. 26/00 que incluiu o direito
à moradia como garantia social no art. 6º da Constituição Federal Brasileira, é que se
constroem normativas que visam o implemento efetivo desse direito na vida das pessoas.
Com esta determinação, o Brasil começa a garantir no seu aparato legal o que prevê o
Comentário Geral nº. 4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas: a proteção ao direito à moradia. Dentro dessa mesma perspectiva, foi aprovado em 2001, o Estatuto da Cidade juntamente com a Medida Provisória 2.220/2001.
Ambos os documentos tratam de princípios, mecanismos e instrumentos jurídicos e
administrativos de direito urbanístico e regularização fundiária.
Em 2009, foi publicada a Lei nº11.977/2009, oriunda do Programa Minha casa Minha Vida que contém um capítulo destinado unicamente a instrumentos inovadores em
termos de regularização fundiária. Além disso, com a aprovação do novo Código Civil
Brasileiro, foram incorporados ao ordenamento jurídico, novos conceitos de propriedade, agora prevendo na lei a sua função sócio-ambiental e também o reconhecimento
jurídico de inúmeras situações de posse antes tidas como ilegais. No entanto, estas conquistas concentradas no âmbito do direito à moradia e no impulsionamento de processos de regularização fundiária civil não se comunicam com a necessária criação de um
marco jurídico na prevenção dos despejos. Isto é: apesar de existir uma forte construção
jurídica comprometida com o direito à moradia e à função social da propriedade, estes
direitos não se efetivam de fato nas vidas das pessoas, nem tampouco se comunicam
com a prevenção dos despejos.
184
Por fim, existem ainda as iniciativas tomadas pelo Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), sobre o tema dos conflitos fundiários. Este conselho instituiu no ano de 2009 o
Fórum de Assuntos Fundiários Rurais e Urbanos, com base na Portaria nº 491, de 11 de
março de 2009, que já realizou dois seminários nacionais para discussão do tema com os
diversos atores da sociedade civil, universidade, poderes públicos, órgãos jurisdicionais
e auxiliares da justiça, entidades patronais e de trabalhadores sobre temas que vão desde
trabalho escravo, regularização fundiária, registros públicos, reforma agrária e questão
urbana. Esses encontros já produzirem várias recomendações a serem adotadas pelo
Judiciário nacional na tentativa de se buscar solução pacífica para os conflitos fundiários
seja em áreas urbanas, seja em áreas rurais.
A prática de despejos constitui violação grave aos direitos humanos2 conforme estabelece a Resolução n 1993/77 da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. É por
isso que a adoção dos padrões internacionais desses direitos pelo Brasil é tarefa obrigatória
e urgente a ser assumida pelas instituições desse país. Como visto acima, pressionado pela
sociedade civil, o Estado brasileiro estabeleceu uma ou outra medida infra legal sobre o tema
dos conflitos fundiários urbanos no Brasil. O Brasil parece caminhar a passos largos na
construção de um marco jurídico que promova o direito à moradia com a criação de instrumentos que garantam a função social da propriedade. No entanto, caminha a passos muito
lentos na tentativa de colocar em seu ordenamento jurídico disposições que previnam os despejos e garantam o direito à moradia desde a ótica da função social da propriedade.
3. Direito à cidade e conflitos socioambientais em razão dos megaeventos
Os investimentos previstos para a Copa do Mundo de 2014 indicam que estamos
diante de intervenções urbanas de grande magnitude, com grande impacto sobre a dinâmica urbana de todas as cidades sedes. O Projeto da Copa se relaciona diretamente
com a política urbana em pelo menos três aspectos: 1) mobilidade urbana, ou seja, as
intervenções vinculadas à mobilidade urbana; 2) planejamento e gestão do solo, relacionado à reestruturação urbana e aos processos de valorização imobiliária decorrentes das
intervenções urbanas; 3) moradia, sobretudo no que se refere às remoções decorrentes
das intervenções urbanas. Em síntese, a importância da Copa do Mundo parece estar
menos ligada à realização de um evento em si mesmo (a Copa, as Olimpíadas), e mais ao
processo de reestruturação da dinâmica urbana nas metrópoles brasileiras, legitimada e
possibilitada pela realização desses megaeventos.
2
Como Estado Parte do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Brasil está legalmente
obrigado a respeitar, proteger e garantir o direito à moradia adequada e o direito à propriedade, incluindo a proibição
da prática de despejos forçados, conforme assegurado no artigo 11(1). Além disso, é também obrigado a não interferir
nos casos em que as pessoas gozam do direito à moradia, bem como a proteger essas pessoas contra despejos
praticados por terceiros.
185
No processo de preparação dos megaeventos, a gestão pública tem tido um papel
central na criação de um ambiente propício aos investimentos, principalmente aqueles
vinculados aos setores do capital imobiliário, das empreiteiras de obras públicas, das
construtoras, do setor hoteleiro, de transportes, de entretenimento e de comunicações.
Nessa perspectiva, o poder público tem adotado diversas medidas vinculadas aos
investimentos desses setores, tais como: 1) isenção de impostos e financiamento com
taxas de juros reduzidas; 2) transferência de patrimônio imobiliário, sobretudo através
das parcerias público-privadas, privadas (PPPs) e operações urbanas consorciadas; e
3) remoção de comunidades de baixa renda das áreas a serem revitalizadas. De fato, a
existência das classes populares em áreas de interesse desses agentes econômicos se torna um obstáculo ao processo de apropriação desses espaços aos circuitos de valorização
do capital vinculados à produção e à gestão da cidade.
Efetivamente, tal obstáculo tem sido enfrentado pelo poder público através de
processos de remoção, envolvendo reassentamentos das famílias para áreas periféricas,
compra assistida de novos imóveis, indenizações ou simplesmente despejos. Na prática,
a tendência é que esse processo se constitua numa verdadeira transferência de patrimônio sob a posse das classes populares para alguns setores do capital.
São diversos os indícios de especulação imobiliária e supervalorização das áreas urbanas que estão sendo objeto de intervenção por parte do poder público, em especial em
torno dos projetos de mobilidade urbana. Vale registrar que os investimentos em mobilidade são um dos principais elementos de reestruturação das cidades, incidindo sobre a
sua dinâmica urbana na perspectiva da (re)valorização de certas áreas e na viabilização
dos investimentos na expansão urbana das cidades. O setor imobiliário, dependendo
da cidade e da área de intervenção, trabalha com índices de valorização imobiliária que
variam entre 100% a 1.000%.
De fato, em quase todas as cidades onde estão ocorrendo intervenções urbanas vinculadas à Copa do Mundo, há previsão de remoções. Efetivamente essas remoções representam a transferência de ativos sob a posse de grupos e classes populares, que habitam áreas
em situação fundiária irregular, para outros agentes econômicos e sociais que vão comprar e
se apropriar desses ativos valorizados. Em geral, essas remoções têm ocorrido desrespeitando-se os direitos coletivos das famílias e comunidades moradoras das áreas de intervenção.
Pode-se estimar a ocorrência de milhares de despejos nos últimos quatro anos,
somente nas intervenções urbanas vinculadas aos grandes projetos (PAC) e a Copa do
Mundo. E neste aspecto, cabe ressaltar que o PAC vem se constituindo em investimentos
no campo da infraestrutura urbana e social, com a urbanização de favelas e moradia, o
que vem sendo um aspecto importante para recuperação das áreas urbanas degradadas, mas ao mesmo tempo, em razão das ações amplas neste campo, como os grandes
empreendimentos, vêm se revelando como investimentos que impactam negativamente
nas cidades, sobretudo pela falta de uma política pública sobre o uso e ocupação do solo
urbano e o incremento da especulação imobiliária sobre o preço da terra e dos imóveis.
186
Em todos os casos monitorados pela Relatoria do Direito à Cidade e pelas redes de
organizações sociais, percebe-se a existência de procedimentos que podem ser caracterizados como de nítido desrespeito ao direito à cidade, em especial ao direito à moradia e
à terra urbanizada, e também a outros direitos humanos sociais e individuais, tais como
os direitos à educação, segurança, proteção à criança e ao adolescente, assistência aos
desamparados, saúde, saneamento e ao meio ambiente.
Chama a atenção o modo como são feitos os despejos. Em geral, mediante ordens
judiciais sem respeito ao princípio do devido processo legal, sem que haja direito à ampla defesa e ao contraditório para as pessoas envolvidas.
Em geral, pode-se afirmar que nessas áreas as indenizações oferecidas foram incapazes de garantir o acesso a outro imóvel situado na vizinhança próxima, tendo em vista
que o poder público – em geral as administrações municipais – não indenizava o valor
dos imóveis com base na cotação de mercado, o que era justificado pela situação de irregularidade fundiária desses imóveis, fato este agravado pela valorização decorrente dos
investimentos que estavam em curso ou que previstos.
Esse quadro permite caracterizar os processos de remoção ocorridos como processos de espoliação urbana, nos quais os imóveis em posse das classes populares são
transferidos para outros agentes sociais e econômicos a preços aviltados, e através de
processos de revitalização ou reurbanização, transformados em novos ativos nos circuitos de valorização econômica, permitindo altos ganhos de capital, na forma de mais valia
fundiária e/ou das novas atividades econômicas para as quais darão lugar.
De uma forma geral, o padrão de atuação das administrações públicas – em especial das prefeituras municipais e dos governos estaduais – poderia ser caracterizado
pelos seguintes aspectos: 1) completa ausência, ou precariedade, de informação por parte das comunidades, acompanhada de procedimentos de pressão e coação, forçando os
moradores a aceitar as ofertas realizadas pelo poder público; 2) completa ausência, ou
precariedade, de envolvimento das comunidades na discussão dos projetos de reurbanização promovidos pelo poder público, bem como das possíveis alternativas para os
casos onde são indicadas remoções; 3) deslegitimação das organizações comunitárias
e processos de negociação sempre individualizados com as famílias, nitidamente buscando enfraquecer sua capacidade de negociação com o Poder Público. Nessa mesma
perspectiva, cabe registrar que as negociações, em geral, são arbitrárias e sem critérios
claros de negociação, inclusive no que se refere aos valores das indenizações; 4) omissão
do Governo Federal. Apesar de não ser responsável direto pelas intervenções, o Governo
Federal é o principal agente financiador do PAC, Programa Minha Casa Minha Vida e
do Projeto da Copa 2014. No entanto, é evidente a ausência de critérios vinculados ao
direito à cidade e aos direitos humanos na liberação dos recursos para os governos estaduais e municipais, mesmo diante da evidente violação dos mesmos; 5) a utilização da
justiça como instrumento de legitimação da violação do direito à moradia. Tendo como
principal instrumento as ações judiciais, em geral promovidas pelas Procuradorias dos
187
Estados e Municípios, o poder público, em diversas situações vinculadas às grandes intervenções e à Copa do Mundo 2014, atuou como uma máquina irresponsável de despejos, sem qualquer compromisso com a vida das pessoas. Em diversas situações, ocorreram graves desrespeitos aos seres humanos e às comunidades envolvidas, através de
práticas tais como a remoção em 24 horas – antes sequer de receber as indenizações – ou
da sujeição das famílias a condições de vida degradantes, obrigando-as a viver entre os
escombros das demolições.
4. A política nacional de desenvolvimento urbano e os desafios para a
efetivação do direito à cidade
As reflexões expostas nos itens anteriores demonstram que o universo político da
agenda da reforma urbana, passou nos últimos 30 anos por uma total invisibilidade política, e nos primeiros oito anos do século XXI assumiu uma centralidade em razão do
protagonismo de setores da esquerda, militantes da Reforma Urbana, ao resgatar no
âmbito do Governo Lula parte da agenda política para a efetivação dos direitos consolidados no campo do Direito à Cidade e para uma justiça social urbana.
A estruturação jurídica e institucional para fortalecer o debate político em torno
da construção de uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano que integrasse as
demandas da habitação, terra urbanizada, saneamento ambiental e mobilidade urbana
está em consolidação. A visão, a “esperança do caminho”, era que o Governo Lula incorporasse a questão urbana como agenda prioritária e rompesse com a tradição política de
mercantilização da cidade.
Neste sentido, não se esperava que toda dívida histórica, expressa na crescente pobreza urbana, fosse resolvida por um governo democrático e popular, mas a esperança
utópica era que as principais questões geradoras das desigualdades sociais nas cidades,
como a concentração fundiária urbana, fossem enfrentadas, permitindo reversão da lógica da cidade mercadoria, espaço privilegiado do consumo, e se afirmasse a lógica da
cidade de direito, do direito de todos e de todas de viver dignamente na cidade.
A relação entre economia e política, sempre está determinada por um modelo econômico em que a mercantilização é a “pedra de toque”, e os investimentos no campo habitacional nos últimos oito anos demonstram isso. O percentual de recursos destinados
para reverter o déficit entre a população de 0 a 3 salários mínimos, onde há uma concentração de mais de 90% do déficit, e aquela entre 6 a 10 salários mínimos, que expressa
cerca de 2% do déficit é da ordem de 40% e 25%, respectivamente. Considerando que
esta última vem sendo beneficiada pelos juros baixos da política de financiamento via
FGTS, e por ter maior poder de compra, diferentemente do grupo situado no primeiro
estrato social (MARICATO, 2011).
188
Os investimentos no Governo Lula, tanto no setor econômico quanto no social,
vêm colocando o Brasil como referência de país do futuro e do desenvolvimento internacionalmente. Os dados são reveladores desta questão, a exemplo das medidas de
enfrentamento da pobreza, com a redução, entre 2001 e 2008, de 57 milhões para 30
milhões no número de pessoas pobres no Brasil. Credita-se parte desta redução às políticas de geração de renda, a exemplo do Bolsa Família. Mas, neste mesmo período, o
setor empresarial teve o que comemorar, com os investimentos do BNDES para a fusão
de empresas e os lucros dos bancos batendo recordes no ano 2010.
Esse modelo econômico tem impacto sobre a dinâmica urbana das cidades. Por
mais que tenha ocorrido uma mudança institucional (criação do MCidades e Secretarias
Nacionais, bem como os diversos marcos regulatórios aprovados), não houve alteração
significativa do modelo de gestão do uso e ocupação do solo urbano, principalmente, o
modelo de produção e gestão das cidades brasileiras. O que se deduz disso é que qualquer
mudança só pode ser significativa se também empreender mudanças no ambiente social
e territorial. E neste aspecto novas formas de pensar a cidade, expressas no Estatuto da
Cidade, tiveram e têm que conviver com velhas formas de construção do espaço urbano.
Assim, concordando com as análises dos militantes políticos, técnicos e analistas
sociais, o Governo Lula, em suas duas gestões, não conseguiu resolver, nem redimensionar, o cenário das questões das desigualdades nas cidades, a exemplo da questão fundiária. Ao contrário, esta permanece inalterada, e as medidas de investimentos, com
recursos públicos, tendem a favorecer um mercado imobiliário que comercializa o espaço público, promovendo a expulsão da população pobre da convivência com o espaço
urbano, impedindo ou bloqueando suas possibilidades de viver o direito à cidade.
Essa dimensão precisa ser considerada em meio à reflexão sobre os espaços públicos
ampliados – Conselhos, Conferências – para pensar a cidade a partir da sua diversidade regional. A esfera participativa tomou uma proporção significativa neste período, buscando
atender aos interesses e demandas políticas de setores que historicamente não eram considerados como sujeitos de direitos na formulação e no controle social sobre a política social.
Para agregar novos elementos ao diálogo, é importante trazer para o debate as reflexões do escritor português, Boaventura de Sousa Santos. Para ele, um dos desafios
contemporâneos é exatamente a democratização da democracia. Muito mais que um
jogo de palavras, essa expressão tem um sentido, e coloca em discussão os modelos de
participação institucional recentes, chamando a atenção que os mesmos não podem ser
a única expressão de participação e diálogo entre Estado e Sociedade Civil. Ou seja, os
Conselhos, Conferências, Fóruns, Orçamento Participativo, são esferas dentre tantas outras, onde a sociedade civil organizada deve se expressar a fim de influir e incidir sobre
os rumos da democracia e da política pública.
Para refletir sobre o campo da gestão democrática das cidades, é fundamental pensar sobre o palco da democracia participativa e avaliar se nos últimos 20 anos de experiência participativa institucional, houve avanço no chamado modelo descentralizado e
com gestão participativa.
189
A título de exemplo, nos últimos oito anos do governo Lula foram criados dezoito
conselhos nacionais, e 15 foram reformulados, totalizando em 2011, trinta e dois conselhos
e duas comissões nacionais (SECRETARIA GERAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA,
2010). Segundo dados oficiais, de 2003 a 2010, foram realizadas setenta e quatro conferências nacionais em diferentes temas mobilizando cerca de cinco milhões de pessoas.
Bem, os documentos e estudos apontam que essa foi a tônica do governo federal
em ampliar a esfera de democracia participativa. Mas, em que medida as definições são
de fato implementadas? Qual a obrigatoriedade legal para sua efetivação?
Os números são reveladores da ampliação do espaço de interlocução entre governo
e sociedade civil. No entanto, o que se percebe é que há uma forte tendência para a desarticulação e fragmentação das políticas sociais e setoriais urbanas, e parte significativa
da agenda governamental, no que se refere às ações das políticas sociais, passam ao largo
dos espaços dos conselhos nacionais e estaduais das cidades. E as definições estratégicas
muitas vezes não consideram o histórico de aprovações das resoluções das conferências
nacionais e resoluções dos Conselhos, a exemplo do Conselho Nacional das Cidades
(ConCidades).
É com base neste olhar de democratização da democracia que se reconhece os
avanços institucionais e também os limites reais no âmbito da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) e sua gestão democrática. Em 2011, o Estatuto da Cidade completou dez anos e desta trajetória, sete anos são de experiência democrática
no âmbito do ConCidades, o que provoca uma avaliação sobre os avanços e recuos na
implementação das diretrizes da PNDU.
O Estatuto da Cidade é afirmativo quando coloca a gestão democrática como um
instrumento fundamental para a participação da sociedade civil nos espaços institucionais, como: os conselhos; conferências; e audiências públicas. Objetivando reverter a
lógica e o modelo tecnicista de planejamento das cidades.
Para ilustrar essa caminhada, depois de 20 anos da aprovação da Carta Magna,
parte da agenda política do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU),3 sujeito político de grande expressão nacional no diálogo pela elaboração, implementação e controle
3 A coordenação do FNRU é composta hoje pelas seguintes entidades: Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE); Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM); União Nacional por Moradia Popular (UNMP);
Central de Movimentos Populares (CMP); Confederação Nacional de Associações de Moradores (CONAM); Federação Nacional das Associações de Empregados da Caixa Econômica (FENAE); Federação Interestadual dos
Sindicatos de Engenheiros (FISENGE); Federação Nacional de Arquitetos (FNA); Instituto de Estudos, Formação
e Assessoria em Políticas Sociais (Instituto Polis); Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM); Instituto
Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE); Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP); Centro
pelo Direito à Moradia contra Despejos (COHRE Américas); Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social
(CENDHEC); Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB); Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura e
Urbanismo do Brasil (FENEA); Centro de Assessoria à Autogestão Popular (CAAP); Associação Brasileira de Ensino
de Arquitetura e Urbanismo (ABEA); Fundação Bento Rubião – Centro de Defesa dos Direitos Humanos; Observatório das Metrópoles IPPUR/UFRJ/FASE, ActionAid do Brasil; Conselho Federal de Assistência Social; Habitat para
Humanidade Brasil; Terra de Direitos; Fórum Nordeste de Reforma Urbana; GT Urbano do Fórum da Amazônia
Oriental (FAOR); Fórum da Amazônia Ocidental e Fórum Sul de Reforma Urbana.
190
social da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU), foi sendo incorporada
na agenda da gestão pública nacional. Lembrando que nos anos 1980, a pauta por uma
reforma urbana e pelo Direito à Cidade, trazia quatro eixos centrais que são referências
atuais da luta política por uma justiça social nas cidades: 1) institucionalização da gestão
democrática das cidades; 2) descentralização político administrativa da política urbana;
3) regulação pública do uso do solo urbano, visando o cumprimento da função social da
propriedade urbana; e 4) ampliação dos investimentos na política urbana.
À primeira vista estas questões ainda estão no palco do debate da política urbana
no governo federal. A título de exemplo, no período de 2003 – 20010, sob a gestão do
Governo Lula, foi possível materializar esse conjunto de avanços através da incidência
política do FNRU, provocando a estruturação da política através da criação do Ministério das Cidades - Mcidades (2003); do Conselho Nacional das Cidades4 (2004); da aprovação, após 10 anos, da primeira lei de iniciativa popular que criou o Fundo Nacional
de Habitação de Interesse Social (2005) e o seu Conselho Gestor (2006); da elaboração
das diretrizes das políticas e planos nacionais de habitação, do planejamento territorial e
solo urbano, do saneamento e da mobilidade urbana.
No tocante ao MCidades, uma conquista para o campo da reforma urbana, não se
percebem avanços efetivos na perspectiva do funcionamento de uma estrutura institucional capaz de planejar e gerir políticas de desenvolvimento urbano, de forma a integrar
o conjunto das ações estratégicas no campo da habitação, saneamento ambiental, gestão
do uso do solo urbano e trânsito, transporte e mobilidade.
O ConCidades é um espaço plural de atores que atuam na política urbana e expressa uma correlação de forças entre diferentes interesses. A aprovação de uma agenda favorável à reforma urbana está relacionada ao poder de articulação dos segmentos
vinculados a esse campo político, bem como sua capacidade de incidência política no
âmbito dos poderes executivo e legislativo.
O cenário, desde 2005, para o ConCidades, com o reordenamento institucional no
MCidades, apontou e confirmou a necessidade de dotar o ConCidades de competências
e atribuições deliberativas por lei, uma vez que vários temas do campo da política urbana não têm este como espaço privilegiado, a exemplo das definições do PAC Urbano.
Esse tema vem se constituindo em uma das bandeiras do FNRU nas últimas duas conferências das cidades.
É importante registrar que no segundo mandato do Presidente Lula, a fragilização
do ConCidades foi ainda mais evidente, em razão da reforma ministerial, o que permitiu a substituição do Ministro Olívio Dutra e de uma base técnica profissional aliada
da agenda política da reforma urbana e pelo modelo de atendimento das reivindicações e demandas individualizado. Com a mudança ministerial as ações do MCidades
4
Decreto nº 5.079, de 25 de maio de 2006. Dispõe sobre a estrutura, competência e funcionamento do ConCidades.
Disponível em: <www.secretariageral.gov.br/.arquivos/imagens-publicacoes/Livro_Conselhos_peq.pdf>. Acesso em:
1 jul. 2012.
191
tornaram-se mais centralizadas, colocando entraves para o avanço do debate sobre a
construção de um Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano, cujo objetivo é integrar as políticas de desenvolvimento urbano (habitação, solo urbano, saneamento e
mobilidade) a um fundo nacional de desenvolvimento.
O MCidades no processo de alocação partidária é o que mais sofreu com esses ajustes, uma vez que vem demonstrando a sua fragilidade política junto aos órgãos estratégicos do Governo e com uma previsão orçamentária aquém do necessário, com recursos
sempre contingenciados, sobretudo em relação à execução da política de Regularização
Fundiária, cuja previsão orçamentária/ano não passa dos 3 a 4 milhões para todo território nacional por ano.
Assim, várias questões passaram ao largo da agenda política do Conselho, como
o debate sobre orçamento que não é objeto de deliberação e sim mero espaço de informações, uma vez que a definição das prioridades do orçamento anual é prerrogativa das
secretarias nacionais do MCidades em diálogo com o Ministério do Planejamento.
É importante registrar que no governo da Presidente Dilma, o tema da participação
da sociedade civil no Ciclo Orçamentário, com o chamado ciclo Diálogos Sociais, vem
apontando para outro caminho. A criação do Fórum Interconselhos, como espaço de
diálogo sobre o tema e integração dos conselhos setoriais gerou uma mudança de rota
para o ConCidades, uma vez que os dezessete conselheiros/conselheiras da sociedade
civil que participaram do fórum provocaram a inclusão deste tema na pauta da 29º Reunião do ConCidades, inclusive destacando a necessidade de se conhecer a proposta do
MCidades para o PPA 2012-2015.
Cabe refletir ainda acerca da fragmentação das políticas de habitação, regularização
fundiária, saneamento e mobilidade urbana no âmbito do MCidades. Há uma clara falta
de diálogo entre as ações, como também uma desigualdade na distribuição e alocação
dos recursos, que se agravaram com o lançamento de programa de governo como o PAC
Urbano e Programa Minha Casa Minha Vida, que interferem no debate da universalidade da política urbana e no enfrentamento das desigualdades sócio-espaciais e regionais.
Observando que o ConCidades, já se encontra em sua quarta gestão, e sendo este a
instância máxima de debate sobre as diretrizes da política urbana, observa-se que nos últimos tempos, vem perdendo o peso político no debate junto ao governo sobre os rumos da
política de desenvolvimento urbano. Ou seja, reforça-se a análise de que algumas definições estratégicas do Governo Federal, em relação à política nacional de desenvolvimento
urbano, não consideram o Conselho das Cidades como espaço privilegiado para o debate.
Neste aspecto é importante lembrar as reflexões sobre a influência de setores do
mercado sobre a política urbana, como o setor da construção civil. É evidente a força
política desse setor em impor medidas que favoreçam o mercado privado de habitação,
o que pode ser constatado no lançamento, em 2009, do Programa Minha Casa Minha
Vida; em 2007, do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) Urbano; e, no campo
da mobilidade, do PAC COPA.
192
O ConCidades vem possibilitando a articulação e interlocução de atores, mas tem o
desafio de avançar para se constituir em um espaço de discussão e elaboração da política
urbana de forma articulada ao sistema nacional de desenvolvimento urbano.
Como agenda política e objetivando a construção do “espaço da esperança nas cidades” (HARVEY, 2004), é notória a retomada do debate da agenda da reforma urbana,
dando centralidade à questão fundiária urbana.
Assim, lembrando a pauta política expressa na plataforma pelo direito à cidade, é
importante destacar a incidência nos seguintes campos:
• Fortalecimento institucional do Ministério das Cidades e do Conselho das Cidades para desenvolver de forma integrada e articulada as políticas de desenvolvimento urbano, habitação, gestão do solo urbano – regularização fundiária, saneamento ambiental
e mobilidade urbana;
• Aprovação do projeto de lei criando o Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano estabelecendo competências deliberativas para o Conselho das Cidades sobre as
políticas acima mencionadas;
• Destinação de recursos ao Desenvolvimento Urbano com a criação do Fundo
Nacional de Desenvolvimento Urbano e que todos os recursos destinados ao Desenvolvimento urbano deverão passar pelo controle social do ConCidades;
• Implementação do Plano Nacional de Habitação a fim de eliminar a falta de moradia e de condições dignas de habitação em 15 anos. Ações de apoio à aprovação da
PEC da Moradia (PEC nº 285/2008) que garante 2% dos Recursos federais e 1% dos Estados e municípios permanentes para os fundos de moradia popular;
• Aprovação de uma lei que implemente uma Política Nacional de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos no Congresso Nacional com base na resolução
aprovada pelo Conselho Nacional das Cidades. Fazendo com que os governos tenham
medidas de prevenção de despejos, deslocamentos e remoções coletivas de impacto social, através do acompanhamento das possíveis situações de despejo; colaborando para
a solução dos conflitos;
• Implementação de uma política nacional de saneamento ambiental, através da
efetivação da Lei Federal 11.445/07 que garante o acesso universal aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário;
• Investimento no Transporte Público Coletivo de forma a garantir a implementação de uma política de mobilidade sustentável para as cidades que priorize o transporte
público, da bicicleta e deslocamentos a pé.
Por fim, recuperando as reflexões da Professora Ermínia Maricato, é preciso retomar o ciclo da agenda política e institucional na defesa do direito à cidade e pela justiça
urbana, com a concretização das diretrizes das Políticas Nacionais de Desenvolvimento
Urbano, de forma a romper com o ciclo da mercantilização das cidades em voga, onde o
desenvolvimento é empreendido a qualquer custo.
193
Referências bibliográficas
ATOS INTERNACIONAIS. Decreto nº 591, de 06 de julho de 1992. Pacto internacional
sobre direitos econômicos, sociais e culturais. Promulgação. Disponível em: <www.planalto.
gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0591.htm>. Acesso em: 1 jul. 2012.
BRASIL. Secretaria Geral da Presidência da República. Conselhos nacionais. Brasília:
Secretaria Geral da Presidência da República; Secretaria Nacional de Articulação
Social, 2010.
BRASIL. Decreto Lei nº 5.079, de 25 de maio de 2006. Dispõe sobre a estrutura, competência e funcionamento do ConCidades. Disponível em: <www.secretariageral.gov.br/.
arquivos/imagens-publicacoes/Livro_Conselhos_peq.pdf>. Acesso em: 1 jul. 2012.
FNRU, Caderno de Textos. Capacitação dos conselheiros nacional das cidades: gestão
democrática e participativa na política nacional de desenvolvimento urbano. São Paulo
Mimeo, 2011.
HARVEY, David. Novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004.
MARICATO, Ermínia. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011.
194
A EDUCAÇÃO E A POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO:
o permanente desafio de superação das desigualdades educacionais
Denise Carreira*
Ester Rizzi**
Salomão Ximenes***
Suelaine Carneiro****
O presente artigo, com enfoque no direito à educação, procura colaborar com a
construção de uma visão panorâmica sobre a situação dos direitos humanos no Brasil,
que tenha como referência a agenda da sociedade civil organizada e os principais desafios à sua realização.
Para isso, procuramos pontuar as principais questões que vem desafiando a implementação dos referenciais normativos nacionais e internacionais que asseguram o
direito à educação, com destaque para os avanços e retrocessos institucionais ocorridos
nos últimos quatro anos. Alguns desses desafios foram reconhecidos, em 2009, pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU), nas Observações Finais sobre
a situação desses direitos no Brasil.
*
Jornalista, mestra e doutoranda em educação (USP), Relatora Nacional para o Direito Humano à Educação da
Plataforma DhESCA e coordenadora adjunta da ONG Ação Educativa.
** Advogada, mestra e doutoranda em sociologia jurídica (USP), assessora da ONG Ação Educativa.
*** Advogado, mestre em educação e doutorando em direito do Estado (USP), coordenador do programa Ação na
Justiça da ONG Ação Educativa.
**** Socióloga, assessora da Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação da Plataforma DhESCA e coordenadora
do programa de educação do Geledés Instituto da Mulher Negra.
195
É importante destacar que no último período foram aprovadas duas emendas constitucionais que modificaram a estrutura do direito à educação no Brasil. A EC n° 53/2006,
criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização
dos Profissionais da Educação (Fundeb), ampliando o enfoque de financiamento para
toda a educação básica e assegurando mais recursos do governo federal (União); enquanto a Emenda Constitucional n° 59/2009, dentre outras medidas, como a previsão de um
Sistema Nacional de Educação, ampliou a faixa etária de escolarização obrigatória a todas as crianças e adolescentes com idade entre 4 (quatro) e 17 (dezessete) anos.
Outra importante alteração normativa foi a incorporação ao ordenamento jurídico
brasileiro, como emenda constitucional, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência (Decreto-legislativo n° 186, de 09/07/2008). Também a Lei n° 11.738/2008,
que regulamentando o Piso Salarial Profissional Nacional para os Profissionais do Magistério Público da Educação Básica, e a Resolução CNE/CEB nº 2/2010, que dispõe sobre as diretrizes nacionais para a oferta de educação para jovens e adultos em situação de
privação de liberdade nos estabelecimentos penais, poderiam ser destacadas entre outras
medidas, como mudanças importantes do ponto de vista institucional, cada uma delas
alimentando novos desafios para o Estado e tornando visíveis violações pré-existentes.
Tomando como referência esse contexto institucional, no qual os avanços das garantias
jurídicas nem sempre são acompanhados de mudanças na realidade das populações, o artigo
também traz uma breve reflexão sobre as relações entre educação e agenda de desenvolvimento, pois sabemos que o crescimento econômico não gera necessariamente mais justiça
social e educacional. Tal reflexão faz sentido no atual contexto brasileiro, marcado pela retomada de políticas desenvolvimentistas que têm na educação um dos seus principais pilares.
Ao final, traçamos algumas recomendações que contribuem com o debate e a incidência conjunta em defesa do direito à educação e dos direitos humanos em geral.
1. O debate sobre educação e desenvolvimento
Um dos elementos que marca os últimos três anos do debate público educacional é a
expansão do discurso que estabelece uma relação de causa e efeito entre educação e desenvolvimento, transformando a primeira em condição, meio e instrumento para o segundo.
Sabe-se, no entanto, que tal vinculação é antiga e recorrente. Nela, muitas vezes, a educação
figura de forma isolada como a “salvação da lavoura”, “o caminho” para o desenvolvimento,
a “solução” para o enfrentamento da pobreza e superação de todas as desigualdades sociais.
Esta perspectiva é repetida no debate público e na fala de muitos governantes e
organismos internacionais, associada à idéia de responsabilização dos indivíduos pela
melhoria de suas condições de vida, afinal “abrimos as oportunidades, agora é com vocês!”. Tal discurso é usado para mascarar as contradições da exploração capitalista e,
sobretudo, a necessidade urgente de um conjunto de políticas públicas que enfrentem as
nossas profundas desigualdades econômicas, políticas, sociais e culturais.
196
Com certeza, a educação é fator fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade com justiça social, qualidade de vida e sustentabilidade. Sabe-se que a garantia do
direito humano à educação é decisiva no acesso a outros direitos. Porém, para se alcançar
uma transformação mais estrutural de nossa sociedade, é necessário articular as políticas
educacionais a um conjunto de outras políticas que promovam efetivamente a distribuição
de recursos, poderes e conhecimentos. O educador brasileiro Paulo Freire lembrava que,
“a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.
Tudo isso coloca um complexo desafio para a agenda de direitos humanos: lutar e
afirmar a importância estratégica de políticas de Estado que garantam uma educação de
qualidade para todos e todas, sem se deixar levar por um discurso que a isola das outras
políticas, caindo em uma lógica linear de causa-efeito ou a torne onipotente diante da
necessidade urgente de transformação estrutural da sociedade.
Um exemplo que demonstra a insuficiência das políticas educacionais como instrumento apto a mudar profundamente a realidade, se refere à situação das mulheres. Desde a década de 1980, as mulheres brasileiras ultrapassaram os homens em escolarização.
Atualmente, as mulheres apresentam os melhores indicadores educacionais relativos ao
acesso e ao desempenho escolar. A partir de 2008, as mulheres superaram os homens na
obtenção de títulos de doutorado. Mesmo com a desigualdade entre as mulheres, os indicadores apontam um forte investimento na educação como forma de melhoria de vida. É
importante destacar que, na ultima década, as mulheres negras constituem o grupo social
que apresentou as taxas mais aceleradas de escolarização. Porém, quando analisamos os
dados de desemprego, rendimento e condições de trabalho, aparece com nitidez que os
avanços educacionais das mulheres ainda não refletem a realidade do mundo do trabalho.
Esse dado foi identificado pelo Comitê DESC (ONU) em 2009, constituindo preocupação
e recomendação específica nas Observações Finais sobre o Brasil (ONU, CESCR, 2009).1
Ou seja, a educação é fundamental, importantíssima, mas para que haja transformação
social nas desigualdades de gênero (quanto à renda, raça/etnia, campo/cidade, região, orientação sexual, existência de deficiência, etc) é necessário que ela venha associada a outras políticas. Tal quadro torna explícita a indissociabilidade e a integralidade dos direitos humanos.
Também a partir das informações analisadas no Informe Brasil - Gênero e Educação (AÇÃO AFIRMATIVA; CARREIRA, 2011),2 podemos identificar que as mulheres e homens ainda continuam concentrados predominantemente em ocupações
1 ONU. CESCR. Observações finais do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Brasil, 2009: “14. [...] Ademais,
embora as mulheres em geral tenham um nível educacional superior ao dos homens, elas ainda são sub-representadas
nos cargos eletivos, em cargos administrativos e gerenciais, concentram-se em empregos de menor remuneração e/ou
de meio turno e recebem uma média salarial menor e proteção social limitada (art. 3) (p. 5)”.
2 AÇÃO EDUCATIVA, CARREIRA, Denise. Informe Brasil – Gênero e Educação. In: AÇÃO EDUCATIVA; CARREIRA,
Denise; ECOS; et al. (Coords). Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação. São Paulo: Ação Educativa, 2011.
Disponível em <www.acaoeducativa.org.br/portal/images/stories/pdfs/informegeneroeducacaoout2011.pdf>. Acesso
em: 03 de outubro de 2011. Informe desenvolvido para a Campanha Latino americana por uma educação não sexista
e anti discriminatória, de iniciativa do Comitê Latino americano dos Direitos da Mulher (Cladem). O Informe foi
apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) em
outubro de 2011.
197
consideradas “femininas” e “masculinas”, apesar de uma tímida e lenta transformação
que decorre da entrada das mulheres em áreas consideradas masculinas. As mulheres
continuam bastante concentradas nas áreas de saúde, educação, assistência social e no
trabalho doméstico, menos reconhecidas e valorizadas socialmente.
Nesse sentido, não bastam somente medidas destinadas a estimular a entrada das
mulheres e dos homens em áreas de predomínio do sexo oposto, mas a urgente valorização de tudo o que é considerado o mundo da reprodução e do cuidado com a vida.
2. Um panorama das desigualdades e exclusões educacionais
Diferentes desigualdades, discriminações e exclusões continuam a marcar a educação brasileira. Como veremos a partir dos dados de 2009, abaixo apresentados, o direito à
educação está mais distante para quem é pobre, negro ou negra, tem menos de 6 ou mais
de 14 anos de idade e para quem vive na zona rural, ou no Nordeste, pessoas com alguma
deficiência, ou que estejam na prisão, entre muitos exemplos que poderiam ser citados.
Um indicador importante é a taxa de analfabetismo, que também constituiu tema
de preocupação específica e recorrente do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (ONU), presente nas Observações Finais de 2009 (ONU, CESCR, 2009):3
Número absoluto
14,1 milhões de pessoas que não sabem ler e escrever
Brasil: 9,7%
Taxa de
analfabetismo na
população de 15
anos ou mais
Nordeste: 18,7%
Sudeste: 5,7%
Rural: 22,8%
Urbana: 7,4%
Preta/Parda: 13,4%
Branca: 5,9%
20% + pobre: 17,4%
20% + rico: 2,0%
Tabela 1 – Analfabetismo (2009).
Fonte: Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). Observatório da Equidade. As
desigualdades na escolarização no Brasil.
3
ONU. CESCR. Observações finais do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Brasil, 2009. Brasília:
Secretaria de Direitos Humanos, 2010: “12. O Comitê nota que as taxas de analfabetismo permanecem um problema no Estado Parte e que desigualdades no nível de analfabetismo entre populações negras e brancas persistem.
Ao Comitê também preocupa a taxa média de analfabetismo ser significativamente mais alta em áreas rurais e no
norte do Estado Parte. (art. 2.2) O Comitê insta o Estado Parte a fortalecer suas medidas corretivas para tratar do
problema do analfabetismo, particularmente em áreas rurais e na comunidade afrodescendente” (p. 4).
198
A persistente alta taxa de analfabetismo no Brasil, somada ao fato de que a taxa de
matrícula na modalidade educação de jovens e adultos (EJA) tenha caído nos quatro
anos sob análise (2007-2010), indica uma tendência à queda muito lenta do número de
pessoas analfabetas, bem como à continuidade da baixa taxa de conclusão de etapas educacionais elementares por jovens e adultos que não tiveram oportunidades educacionais
na idade apropriada. Ressalte-se que, como constatou o próprio Comitê DESC em 2009
(ONU, CESCR, 2009, p. 10-11), o sistema educacional brasileiro produz analfabetismo
funcional, que deveria ser enfrentado através de políticas específicas.
Em 2007, havia 4.985.338 estudantes matriculados em turmas de educação de jovens e adultos em todo o Brasil; em 2010, eram 4.287.234 (Censo Escolar, INEP, 2010)
matriculados: uma queda de 15%. Enquanto isso, no Brasil há cerca 81 milhões de habitantes com mais de 15 anos de idade que sequer concluíram o ensino fundamental
obrigatório (IBGE/PNAD, 2009). Some-se a isso a baixa taxa de efetividade das políticas
de alfabetização promovidas pelo Estado, como recentemente identificado pelo Instituto
de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA, 2010).4
Sobre a garantia de oportunidades educacionais às pessoas privadas de liberdade,
uma decorrência direta dos princípios da universalidade e da não discriminação, apesar
do avanço normativo representado pela aprovação da Resolução nº 2/2010, da Câmara
de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CEB/CNE), que estabelece diretrizes para a oferta de educação às pessoas privadas de liberdade, poucos foram os
avanços reais em termos de oferta educacional à população carcerária. No caso desta
população, 70%, não possui er possuir o ensino fundamental completo e de 60% ser
formada por jovens com idade entre 18 e 30 anos, somente 18% das pessoas privadas de
liberdade tem acesso a alguma atividade educativa, considerada tanto a educação formal
como a não formal, segundo os dados identificados pela Relatoria Nacional pelo Direito
Humano à Educação (CARREIRA; CAMEIRO, 2009).
Na verdade, quando considerada somente a educação formal – ensino fundamental
ou médio – as taxas de acesso ao sistema prisional são ainda mais baixas, respectivamente 12% e 6%. Dados do Infopen de 2009 (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2008) indicam
que a população prisional brasileira é de 473.622 pessoas.
As desigualdades de oportunidades educacionais perpassam todo o sistema de ensino, desde os níveis mais elementares, como a educação infantil. Apesar de ser uma das
principais conquistas da sociedade brasileira, que logrou o reconhecimento do direito
social ao cuidado e à educação das crianças pequenas na Constituição Federal de 1988,
só uma minoria da população o usufrue de fato, com marcantes desigualdades no acesso. Vejamos uma síntese dos dados no quadro abaixo:
4
BRASIL. IPEA. Políticas Sociais – acompanhamento e análise n. 19, v. I (jun./2010). Brasília: IPEA, 2000. Disponível
em: <www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/politicas_sociais/bps_19_completo.pdf>. Acesso em: 03 de outubro de 2011: “Vale ressaltar que o número de alunos atendidos pelo Brasil Alfabetizado todos os anos é muito maior
que a redução percebida pela PNAD no número absoluto de analfabetos ano a ano, que tem se mantido na casa dos
14 milhões de indivíduos, o que revela baixa efetividade do programa” (p. 150).
199
Brasil: 18,4%
Taxa de frequência a
estabelecimento de
ensino – 0 a 3 anos
(creche)
Preta/Parda: 16,7%
Branca: 20,2%
Rural: 8,9%
Urbana: 20,5%
Norte: 8,3%
Sul: 24,2%
20% + pobre:12,2%
20% + rico: 36,3%
Brasil: 74,8%
Taxa de frequência a
estabelecimento de
ensino – 4 e 5 anos
(pré-escola)
Preta/Parda: 73,6%
Branca: 76,4%
Rural: 63,5%
Urbana: 77,4%
Sul: 59,5%
Nordeste: 79,4%
20% + pobre: 7,8%
20% + rico: 92%
Tabela 2 – Educação infantil (2009).
Fonte: Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). Observatório da Equidade.
As desigualdades na escolarização no Brasil.
A evolução do acesso à educação infantil é preocupante, uma vez que os primeiros
dados indicam que a inclusão das matrículas em creches e pré-escolas no mecanismo
de financiamento colaborativo da educação básica representado pelo Fundeb não levou
a um efetivo incremento das matrículas: em 2009, apenas 18,4% das crianças na faixa
etária de 0 a 3 anos, frequentavam creches; e 74,8% das crianças entre 4 e 5 anos, pré-escolas. Uma hipótese para explicar esse fator é a desvalorização da educação infantil
no Fundeb, uma vez que o valor por aluno, praticado nesta etapa, está muito abaixo do
custo real das matrículas, o que na prática inibe os gestores públicos municipais – responsáveis diretos pela oferta – a ampliar significativamente as vagas.
Inúmeros estudos, por outro lado, demonstram a importância dessa etapa de ensino
para o desenvolvimento da criança, seu desempenho escolar e também a garantia dos direitos
econômicos das mulheres. Também é preciso considerar as condições de funcionamento dessas creches e escolas. O Censo Escolar (2009) mostrou que 55,1% das crianças matriculadas
na educação infantil frequentaram estabelecimentos que não possuem parque infantil. Outro
dado preocupante: 44,4% das crianças estavam em unidades sem sanitários adequados.
Outra questão, ainda longe de ser solucionada, é a inclusão educacional de pessoas com deficiência. Apenas 36,7% das escolas públicas, e 26,4% das escolas particulares, incluem alunos com deficiência (2009). A infraestrutura das escolas fundamentais
200
públicas também está longe do desejável para uma adequada inclusão: 28% dos alunos
estudam em escolas que não possuem biblioteca, e cerca de 40% deles, não contam com
quadra de esportes em suas escolas.
No caso do ensino médio (secundário), entre 2007 e 2010 o número de matrículas
permaneceu estável (Censo Escolar, INEP, 2010), mas entre os adolescentes e jovens de
15 a 17 anos, a taxa de escolarização líquida (percentual de pessoas que frequentavam a
escola no nível adequado à sua idade, ou seja, o ensino médio) é de apenas 50,9%. Além
disso, aproximadamente 15% da população nesta faixa etária não está matriculada no ensino médio e nem no ensino fundamental (IBGE, Síntese dos Indicadores Sociais, 2009).
No ensino superior – nível de ensino em que ainda são baixíssimas as oportunidades de
acesso, sobretudo à população de menor renda, residente no campo, afrodescendente e indígena – apesar do aumento de vagas em universidades públicas, mais de ¾ das vagas continuam em instituições de ensino privado, muitas delas marcadas pela baixa qualidade, que atendem predominantemente filhos e filhas de classes populares, grande parte negros e negras.
Outra característica presente na exclusão educacional brasileira, portanto, é a inserção
precária dos estudantes nos sistemas de ensino. Apesar do necessário reconhecimento das
diferenças entre redes públicas de ensino, encontramos muitas salas lotadas, com número
de alunos superiores aos referenciais normativos, prédios inadequados, falta e rotatividade de professores, situações agravadas nas regiões mais pobres e periféricas. As condições
de vida e de trabalho do professorado constituem um capítulo de destaque. Os baixos
salários e as precárias condições de trabalho tornam a profissão cada vez menos atrativa
para as novas gerações e levam a categoria a se desgastar em vários empregos. As condições
para a existência do trabalho coletivo e da formação e da preparação de aulas ainda são
bastante precárias, levando vários projetos inovadores a não vingarem nas escolas. Buscar
a valorização dos profissionais de educação no país, a gigantesca maioria constituída por
mulheres, é uma pauta central para avançarmos rumo à qualidade de educação.
Nesse sentido, a aprovação da Lei n° 11.738, em 2008, regulamentando o Piso Salarial Profissional Nacional para os Profissionais do Magistério Público da Educação Básica, e a confirmação de sua integral constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.167, em abril de 2011,
representaram um primeiro passo no sentido do enfrentamento desse enorme desafio.
No aspecto da diversidade na educação, é necessário rever e ampliar o conceito de
qualidade de educação e de aprendizagem em voga nas atuais políticas públicas, trazendo para a sua definição a valorização das múltiplas identidades humanas, das histórias
silenciadas e dos diferentes saberes, assim como o enfrentamento das discriminações
marcadas pelo racismo, pela homofobia e lesbofobia, entre outras tantas. Nossa escola
ainda é tem um referencial eurocêntrico, branco, machista e heteronormativo. Este modelo exclui cotidianamente milhares de crianças e jovens, com destaque para situação dos
meninos negros, o grupo social que apresenta os piores indicadores sociais na educação.
201
A implementação das Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 que estabelecem respectivamente a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africana, afrobrasileira
e indígena são grandes desafios. O debate sobre diversidade e o enfrentamento das diferentes discriminações vivenciadas cotidianamente na escola brasileira tem que permear
as macro-políticas de educação, em especial de formação, avaliação, material didático,
ultrapassando os programas fragmentados e isolados dentro da política educacional.
Ampliar o conceito de aprendizagem e qualidade é um desafio de democracia.
Nesse sentido, as políticas de avaliação, que têm um papel muito forte de induzir as
políticas educacionais, têm que se abrir para avaliar outras variáveis que impactam o
processo de aprendizagem. O desempenho e o fluxo escolar são profundamente impactados pelas desigualdades e discriminações vivenciadas pelos estudantes nas escolas.
3. Outros desafios para a realização do direito humano à educação
universal, gratuita, laica e de qualidade no Brasil
Para que se alcance a efetiva universalização de oportunidades educacionais, enfrentando-se as desigualdades e discriminações presentes na escola, e assegurando-se
um padrão adequado de qualidade, serão necessários mais recursos orçamentários destinados a educação pública. Hoje, segundo informações oficiais, cerca de 5% do PIB é
investido diretamente em educação pública (contra cerca de 4% em 2006), sendo 4,3%
em educação básica e 0,7% em educação superior. A Emenda Constitucional n° 59, de
2009, estabelece que o novo Plano Nacional de Educação (PNE), de duração decenal,
deverá prever uma meta de investimento para a educação em relação ao PIB. Por isso,
o Projeto de Lei n° 8.035/2010, que trata do novo PNE previu a meta de ampliação para
7% no prazo de uma década. No entanto, entidades sociais capitaneadas pela Campanha
Nacional pelo Direito à Educação (www.campanhaeducacao.org.br), reivindicam que o
atraso educacional no país exigiria um maior esforço por parte do Estado e defendem a
ampliação progressiva do investimento em educação, alcançando-se 10% do PIB.
Essa meta foi aprovada na Conferência Nacional de Educação (2010). Um avanço
conceitual importante no campo do financiamento, mas que só poderá ser transformado
em política pública se houver o aumento efetivo do patamar de dispêndio educacional,
é a definição do custo aluno qualidade inicial (CAQi) pelo Conselho Nacional de Educação, no Parecer n° 8, de 2010. O CAQi (CARREIRA; PINTO, 2008) procura adotar
como base do financiamento da educação o custo efetivo de uma escola de qualidade,
superando o patamar atual de valor por aluno calculado a partir dos constrangimentos
orçamentários impostos pela política fiscal.
Implementar o CAQi é outra agenda fundamental para a melhoria da educação
brasileira e sobretudo para enfrentar as enormes disparidades regionais que se expressam no próprio financiamento da educação pública.
202
Precisamos investir também na gestão democrática em educação, tão descaracterizada em muitas gestões da educação, que pouco dialogam com os profissionais da
área, com as famílias e com a sociedade. É necessário rever instâncias de gestão como
os atuais conselhos de educação, em muitos casos extremamente burocratizados, com
pouca autonomia e permeados de interesses privados.
Destaca-se também o desafio da defesa da laicidade em educação. A força de determinados grupos religiosos sempre foi historicamente grande na educação brasileira.
Há conflitos e tensões profundas que marcam a luta por uma educação laica no Brasil.
O acordo Brasil – Santa Sé, aprovado em 2009, a existência do ensino religioso em
escolas públicas (muitas vezes usadas como espaço de proselitismo), e o crescimento de
determinadas denominações religiosas fundamentalistas junto a professores e famílias,
tem atacado profundamente o direito às liberdades religiosas, sobretudo, de adeptos de
religiões de matriz africana, intolerância que é uma das faces do racismo brasileiro.
O crescimento dessa intolerância também tem sido um obstáculo para programas e projetos comprometidos com a promoção da igualdade de gênero e o reconhecimento da diversidade sexual (CARREIRA; CAMEIRO, 2010). É necessário somar forças contra o avanço de
tais fenômenos e afirmar que a garantia da liberdade de expressão e consciência religiosa se
dá com a laicidade do Estado, que deve permanecer neutro em relação às diferentes crenças.
Entendemos o direito humano à educação como um direito ao acesso a uma educação de qualidade, que tenha como eixo central a equidade, a articulação entre igualdade e diferença, a superação de desigualdades e discriminações. Avanços ocorreram nos
últimos anos, mas são insuficientes para romper a tradição de uma educação brasileira
ainda profundamente marcada pelas desigualdades, discriminações e racismo, por uma
educação pobre para pobres, pela inserção precária no mundo da aprendizagem.
4. Iniciativas de destaque da sociedade civil: a relatoria nacional de direito humano à educação da plataforma dhesca e a campanha nacional pelo direito à educação
Desde 2002 a Plataforma DhESCA Brasil vem desenvolvendo uma iniciativa inédita na sociedade brasileira: as Relatorias Nacionais de Direitos Humanos, que procuram
reproduzir, em condições nacionais, a experiência dos Relatores Especiais das Nações
Unidas. Nos últimos dois mandatos, a Relatoria do Direito Humano à Educação abordou ‘temas invisíveis’, que recebem pouca atenção nos debates sobre a educação brasileira e desafiam a garantia do direito à educação.
Entre 2007 e 2009 a Relatoria teve como eixo a agenda “Educação e Segurança Pública”, implementada por meio das missões Educação e Violência Armada no Complexo do Alemão (2008) e Educação nas Prisões Brasileiras (2009). Um dos documentos
203
internacionais utilizado como referência foi a Declaração Mundial sobre Desenvolvimento e Violência Armada, de 2006, que explicita as relações entre a violência armada,
as desigualdades sociais, a falta de políticas públicas, as iniquidades de gênero e raça e
a fragilização do Estado. Ou seja, é necessário avançar nessas agendas ainda mais em
um país que se destaca pelas altas taxas de encarceramento, pela violência armada não
originária de conflitos bélicos, e por uma retomada de políticas desenvolvimentistas que
privilegiam as grandes obras de infraestrutura sem considerar adequadamente as demandas das comunidades locais.
No segundo mandato (2009-2011), a Relatoria teve como foco de atuação o tema
“Educação e Racismo no Brasil”, por meio das missões Intolerância Religiosa em Escolas, Educação Quilombola e Racismo no Cotidiano Escolar. Tais missões explicitam, entre outras questões, a força do racismo no cotidiano das instituições e políticas
públicas, a pouca participação da população nas decisões políticas, as ambiguidades
do Estado em relação à laicidade, tornando-o permissivo às forças de grupos religiosos
contra direitos sexuais e reprodutivos e a promoção da igualdade racial na educação.
Explicitam também a importância de políticas distributivas e de reconhecimento e a
necessidade de um debate que supere uma visão dicotômica entre políticas universalistas e políticas de ação afirmativa, questão que foi abordada pela Relatora Nacional em
audiência pública, promovida pelo Supremo Tribunal Federal, em março de 2010, sobre
ações afirmativas no ensino superior.
Na missão em curso, sobre Educação Quilombola, a Relatoria constatou a força
desagregadora dos grandes empreendimentos (hidrelétricas, agronegócio, mineradoras
etc) e a ação de grupos que coagem as populações tradicionais. Muitos desses projetos
dividem comunidades, deslegitimam lideranças, desrespeitam, desestruturam e expulsam comunidades inteiras e as submetem a processos de marginalização urbana.
Os mandatos da Relatoria do Direito à Educação e a escolha por temas ‘invisíveis’,
contribuíram para adensar o debate público sobre violência e racismo na educação e
conseguiram atrair o interesse da mídia para essas pautas. Houve articulação com atores
representativos dos temas abordados, além de diálogo com todas as partes envolvidas
nas problemáticas investigadas. A Relatoria também ampliou e fortaleceu a articulação
com representações do Sistema ONU e fez apresentação dos relatórios aos órgãos públicos. Suas ações buscaram contribuir com o fortalecimento da atuação da sociedade civil
em prol do direito humano à educação.
Tanto os relatórios do primeiro mandato, sobre Educação e Segurança Pública,
como os do segundo mandato, que tratou sobre Educação e Racismo, estão disponíveis em www.dhescbrasil.org.br. Outra iniciativa de destaque na sociedade brasileira é a
Campanha Nacional pelo Direito à Educação, criada em 1999, e que congrega atualmente mais de 200 (duzentas) organizações da sociedade civil em defesa da educação pública
de qualidade como um direito exigível.
204
No último período a Campanha participou dos principais embates em torno da
ampliação do direito à educação no Brasil, sendo sua atuação decisiva para a inclusão
do atendimento em creches (0 a 3 anos de idade) no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb)
e para a garantia de repasse de mais recursos federais para os entes subnacionais através
deste fundo; para a regulamentação do Custo Aluno Qualidade na Resolução n°8/2010,
da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação; e para o avanço
dos processos de participação democrática na definição das políticas educacionais, com
destaque para sua atuação na Conferência Nacional de Educação (2010), que aprovou
importantes diretrizes para a construção do Sistema Nacional de Educação.
5. Perspectivas
Outro grande desafio enfrentado pela Campanha e pelo conjunto das organizações
acadêmicas, sindicais, e da sociedade civil, além das questões já relatadas, é mudar o patamar de investimentos públicos em educação no Brasil, alcançando um gasto educacional
em relação ao PIB que seja compatível com os desafios históricos enfrentados pelo País.
Atualmente, vivemos um momento muito importante e estratégico na educação,
com a tramitação do novo Plano Nacional de Educação no Congresso (Projeto de Lei
n° 8.035/2010), que estabelecerá metas educacionais para a próxima década. Um dos
pontos mais polêmicos se refere à meta de ampliação do financiamento educacional. O
governo federal apresentou a meta de 7% do PIB e a sociedade civil, representada pela
Campanha Nacional pelo Direito à Educação, defende os 10%. Em meio ao embate, está
a discussão sobre a fonte do dinheiro para a educação, e a exploração do Pré-sal aparece
como possível solução em um país que não consegue fazer uma reforma tributária “para
valer” implementando outras medidas que enfrentem o nosso modelo de desenvolvimento ainda concentrador.
Se está claro para as organizações da sociedade civil que a ampliação dos atuais
5% para 7% do PIB para os dispêndios educacionais é insuficiente para enfrentar os
desafios existentes, também se torna cada vez mais evidente que a distribuição justa de
oportunidades de acesso ao direito humano à educação só se dará com a mudança da
estrutura econômica e fiscal do País. A educação pública pode se tornar de fato um forte
instrumento de distribuição de renda e de poder, mas para isso será necessário superar
a forte segmentação do campo educacional e isso só será possível com massivos investimentos públicos no setor. Nesse sentido, o debate sobre novas fontes de recursos precisa
ser feito tomando como base, por um lado, os recursos já existentes, mas injustamente
concentrados e, por outro lado, a responsabilidade ambiental e com as futuras gerações
implicada na decisão de explorar as grandes reservas do Pré-sal.
205
6. Recomendações
Considerando as questões anteriormente colocadas, entendemos cabíveis as seguintes recomendações ao Estado brasileiro:
1. Que o Estado estabeleça metas e estratégias de equalização, inclusive através de
esforço legislativo e da destinação de mais recursos públicos no novo Plano Nacional de
Educação (2012-2021), garantindo mais atenção às políticas de equidade na educação
básica que tenham como objetivo corrigir as graves iniquidades e discriminações constatadas nos diferentes níveis escolares, seja em função da origem regional, da raça ou da
etnia, do gênero ou da orientação sexual, dando especial atenção aos mecanismos de
exclusão econômica de crianças e adolescentes que levam, por um lado, à indisponibilidade de escolas públicas justamente para os mais pobres, e por outro lado, à inserção
precária desta população no sistema de ensino;
2. Que o Estado regulamente com urgência o regime de colaboração entre os entes
federados (União, Estado e Municípios) rumo à construção de um Sistema Nacional de
Educação, superando um quadro marcado pela disputa, desigualdades entre responsabilidades e condições de oferta e falta de coordenação na garantia do atendimento educacional de qualidade à população;
3. Que o Estado implemente a lei do Piso Nacional Salarial dos Profissionais de
Educação e enfrente decididamente, por meio de outras ações que visem à melhoria das
condições de vida e de trabalho, a questão da desvalorização dos professores da educação básica pública e dos demais trabalhadores da educação, categoria constituída em
sua gigantesca maioria por mulheres. Tal situação tem levado à desmobilização e ao
desestímulo do magistério, com reflexos inclusive no desinteresse geral dos jovens em
seguir esta carreira. As políticas de valorização do magistério público devem garantir
que os profissionais de mesma formação sejam tratados de forma equitativa, independentemente da etapa da educação básica a que se dediquem;
4. Que o Estado considere na formulação e implementação de políticas públicas
a educação como um direito a ser exercido durante toda a vida e que valorize o desenvolvimento de sinergias entre as diferentes etapas escolares, assegurando significativa
melhoria tanto à educação destinada às crianças e adolescentes quanto àquela voltada
aos jovens e adultos e que tome como prioridade, nesse sentido, o direito universal à
educação básica, elevando a escolaridade geral da população e revertendo a preocupante
tendência de redução das matrículas de jovens e adultos com pouca escolaridade. Destaca-se a urgência da implementação das Diretrizes Nacionais de Educação de Pessoas Privadas de Liberdade, aprovadas pelo Conselho Nacional de 2010, frente a uma realidade
na qual apenas cerca de 10% de homens e mulheres encarcerados têm acesso à educação
formal, em um contexto marcado por altas taxas de encarceramento;
206
5. Que o Estado amplie o financiamento e fortaleça a política de educação infantil,
sobretudo quanto às creches, que mesmo após a criação do Fundeb, têm sido sistematicamente colocadas em segundo plano no âmbito das políticas até então adotadas, com
graves prejuízos às crianças com maior vulnerabilidade social e econômica. Associada a
tal política, deve-se valorizar as profissionais que atuam nesta etapa de ensino;
6. Que o Estado reveja seus currículos e propostas educacionais para o ensino secundário e técnico-profissional, uma vez que está evidenciada a dificuldade em atingir
parcela significativa da população na faixa etária própria, seja pela ausência de incentivos pedagógicos e econômicos à permanência na escola, seja pela não adaptação das
atuais propostas aos interesses do público juvenil; e que na revisão desses conceitos os
adolescentes e jovens exerçam papel decisório juntamente com os demais atores interessados. Deve-se buscar desenvolver estratégias que superem uma realidade ainda marcada pela segregação de gênero no ensino profissional e na educação superior;
7. Que o Estado reveja e fortaleça sua política de inclusão das crianças e adolescentes com deficiência na rede regular de ensino e procure adequar suas políticas ao que
determina a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência; que as escolas
sejam dotadas de capacidade infra-estrutural, técnica e pedagógica de lidar com as necessidades educacionais especiais da população em geral e, especialmente, das crianças
e adolescentes com deficiência; e que na política de financiamento do ensino seja dada
absoluta prioridade aos entes subnacionais e às escolas que promovam fortemente a inclusão educacional de todos na rede regular de ensino;
8. Que o Estado implemente de fato o princípio da não-discriminação na educação, preservando a neutralidade religiosa das escolas públicas, acabando com o ensino religioso confessional em sistemas públicos, revendo o acordo Brasil-Santa Sé e revisando a atual previsão
de oferta obrigatória de ensino religioso; e que continue respeitando o direito assegurado às
escolas privadas confessionais e o direito dos pais de matricular os filhos em tais escolas;
9. Que o Estado implemente de fato a LDB alterada pelas Leis nº 10.639 e nº 11.645; que
estabelece, respectivamente, a obrigatoriedade em toda a educação básica do ensino e da história da cultura africana e afrobrasileira e dos povos indígenas, e os compromissos da Declaração Interministerial da Cidade do México – Prevenir com Educação, que tem como foco a
educação em sexualidade. Que sejam criadas estratégias de superação do quadro de exclusão
acentuada de meninos e jovens negros da escolarização formal; construído protocolo nacional de registro e encaminhamento de casos de discriminação em ambiente escolar; fortalecido o programa Escola sem Homofobia, com a distribuição dos kits que foram vetados pelo
governo brasileiro em decorrência da pressão de grupos religiosos; e implementadas ações
que visem desenvolver o lugar da educação no sistema de garantia de direitos das crianças e
adolescentes, prevista no ECA, e da escola nas redes de proteção local;
10. Que o Estado construa e implemente uma política educacional destinada a territórios marcados pela violência armada, de forma articulada a outras políticas sociais,
de trabalho e de proteção das comunidades a partir de um lugar não subalterno à lógica
207
da segurança pública tradicional. É necessário dar um passo além de ações pontuais,
quando existentes, e atuar por meio de um conjunto de estratégias que promovam a
aprendizagem das crianças, adolescentes, jovens e adultos dessas comunidades, submetidas à presença ostensiva de grupos armados (narcotraficantes, milícias, etc) e a confrontos entre tais grupos e forças de segurança pública. É urgente a adaptação do documento internacional Requisitos Mínimos para Educação em Situação de Emergência e o
estabelecimento de outros referenciais sintonizados com a Declaração Internacional de
Violência Armada e Desenvolvimento que sejam assumidos, não somente como pauta
de diálogo para a cooperação entre governos federal, estaduais e municipais, mas como
parte de Planos de Estado e de condicionalidades para que os estados e municípios acessem recursos federais;
11. Que o Estado amplie o gasto público com o direito educacional, atingindo, no
mínimo, o valor equivalente a 10% do PIB, e que na distribuição dos recursos seja priorizado o enfrentamento das desigualdades econômicas entre os entes federados, de forma
a que o valor gasto por aluno a cada ano leve em conta o princípio da não discriminação,
assegurando-se, em todo seu território, que este valor respeite um custo aluno capaz de
assegurar condições adequadas de inserção e de desenvolvimento escolar de qualidade
– o Custo Aluno Qualidade (CAQ); que na ampliação dos gastos públicos educacionais
e na formulação de seus orçamentos o Estado considere a persistente realidade de exclusão educacional, de forma que seja assegurada a todos a garantia do acesso à escola
acompanhada de maior gasto público, de forma que a inclusão de novos estudantes não
leve à maior precarização da condição dos que já estão na rede;
12. Que o Estado reveja sua atual política de ajuste fiscal e suas prioridades orçamentárias, que inviabilizam boa parte das políticas sociais destinadas à garantia e promoção dos direitos econômicos, sociais e culturais e, principalmente, dos direitos de
crianças e adolescentes, e que passe a considerar em suas decisões os compromissos
internacionalmente assumidos em matéria de direitos humanos;
13. Que no debate sobre as novas fontes de recursos necessários à ampliação do
gasto público em educação, o Estado priorize as políticas de distribuição de renda e a
reforma fiscal e tributária, e que proponha um amplo debate sobre a exploração dos
recursos minerais fósseis, considerando seus impactos ambientais e a responsabilidade
com as futuras gerações;
14. Que o Estado brasileiro fortaleça a gestão democrática em educação, promovendo processos participativos como base para a construção de Planos de Educação e
avaliação de políticas; dinamizando instâncias como os conselhos escolares e os conselhos de educação; tornando mais acessível e amigável o tratamento de informações educacionais para o controle social; investindo em programas de formação de conselheiros;
e garantindo condições para a participação efetiva das famílias, compreendidas em sua
pluralidade de arranjos, vínculos e condições de vida.
208
Referências bibliográficas
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Educação/ Editora Global, 2008.
ONU. CESCR. Observações finais do Comitê de direitos econômicos, sociais e
culturais. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2009.
209
COMUNICAÇÃO:
um direito a ser reivindicado e conquistado no Brasil
Bia Barbosa*
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu artigo 19, explicita
que toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão, este direito inclui a liberdade de ter opiniões e de buscar receber e transmitir informações e ideias por quaisquer
meios, sem interferência, independentemente de fronteiras.
Em uma sociedade mediada pelos meios de comunicação, a liberdade de expressão só poder ser garantida de forma plena se também for exercida no espaço público
da mídia, ou seja, se a diversidade cultural, de visões e opiniões, existente numa sociedade também estiver refletida nesses meios. Do contrário, prevalecerá uma concepção
tradicional da liberdade de expressão, baseada na abstenção de intervenção do Estado,
como uma manifestação pura e simples da reivindicação de um livre mercado em que
forças desiguais se enfrentam e disputam espaço num cenário de ausência de regras.
Ganha fôlego então a formulação de um conceito de direito que vai além da liberdade de expressão e do já também consagrado direito de acesso à informação: o direito à
comunicação. Este direito está presente em debates no âmbito da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Em 1980, a organização
lançou o relatório “Um mundo e muitas vozes”, conhecido como Relatório MacBride, que
afirma a comunicação como um aspecto dos direitos humanos, na perspectiva de um
processo bidirecional, contraposto à idéia de monólogo, cujos participantes mantêm um
diálogo democrático e equilibrado.
*
Jornalista, especialista em direitos humanos pela USP, mestranda em políticas públicas pela FGV-SP e membro do
Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
211
Se o direito à comunicação significa reconhecer o direito de ter voz e se expressar, de
falar e ser ouvido, de participar do mundo midiático, é preciso ir além do simples acesso
aos meios de comunicação. A garantia deste direito implica a apropriação, pelo público,
dos meios de comunicação existentes; ou seja, todos precisam ser elevados à condição de
sujeitos de comunicação. Se no modo de organização social contemporâneo, a mídia assume um papel fundamental nos processos de compreensão do mundo, sendo os veículos
de comunicação o principal espaço de circulação da informação e da cultura e alguns dos
mais importantes espaços para a referência de valores e formação da opinião pública, é
essencial que esta arena seja sempre um lugar plural e diverso, nunca apropriado por interesses privados ou de governo. Do contrário, em vez de um espaço de exercício de direitos,
haverá somente a circulação de opiniões estabelecidas, às quais se espera uma adesão.
O direito humano à comunicação compreende ainda a garantia de uma visão autônoma da população em relação à mídia, com a formação de espectadores críticos; e a
participação popular na formulação, definição e acompanhamento de políticas públicas
de comunicação, como acontece em áreas como a saúde e a educação.
Num espaço onde poucos têm voz, não há apenas a violação do direito à comunicação. Historicamente, a mídia desempenha um papel duplo em relação à promoção dos
demais direitos humanos. Se por um lado pode atuar para a construção de uma sociedade
democrática, por outro, também pode negar o direito à liberdade de expressão de setores
significativos, invisibilizando suas reivindicações, na medida em que reproduz e legitima
visões de mundo que desrespeitam os direitos humanos e fortalecem uma sociedade individualista, preconceituosa e nada igualitária. Assim sendo, os meios de comunicação de
massa – sobretudo o rádio e a televisão, que são concessões públicas – ignoram princípios
constitucionais brasileiros como o respeito aos direitos humanos e a todas as diversidades.
1. Realidade brasileira
A análise do cenário das comunicações no Brasil mostra um quadro regulatório
complexo. O Código Brasileiro de Telecomunicações é de 1962, modificado em 1963,
e desde então sujeito a fragmentações. Nos anos 1990, foi promulgada a Lei do Cabo e,
em 1996, a Emenda Constitucional nº 08, que quebrou o monopólio estatal das telecomunicações. Anos depois, veio a Emenda Constitucional que autorizou a participação
de 30% do controle acionário das empresas de comunicação ao capital estrangeiro. No
entanto, os principais artigos da Constituição Federal referentes à Comunicação Social
permanecem sem regulamentação.
Entre eles, o artigo 220, que proíbe o monopólio ou oligopólios dos meios de comunicação. Como uma lei ordinária até hoje não especificou o que significaria um monopólio na mídia brasileira, as poucas limitações em relação à concentração no serviço de
212
radiodifusão estão no Decreto Lei nº 236/1967. Por ele, cada entidade pode controlar no
máximo quatro emissoras de ondas médias e seis de frequência modulada para radiodifusão de sons em nível local; três emissoras de ondas médias e ondas tropicais em nível
regional; e duas emissoras de ondas curtas em nível nacional. No caso da radiodifusão
de sons e imagens (televisão), o limite é de dez emissoras em todo território nacional,
podendo ser no máximo cinco em VHF e duas por estado.
Esta limitação é frequentemente burlada por artifícios como a criação de diferentes
pessoas jurídicas para a obtenção de concessões, em especial no caso das rádios. No caso
da televisão, a formação de redes com pouca ou nenhuma presença de produção regionalizada termina por criar uma relação que, no papel, pode estar amparada legalmente,
mas na prática fere frontalmente o princípio da proibição do monopólio e da regionalidade na difusão dos conteúdos.
Além disso, não há legislação que limite a propriedade cruzada de veículos em relação aos meios impressos ou à TV por assinatura, fazendo com que os mesmos grupos no
Brasil, ao contrário de muitos países do mundo, controlem os mais diferentes formatos
de produção e difusão de comunicação.
Atualmente, segundo informações do Epcom (Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação), apenas quatro redes privadas nacionais de televisão aberta e seus 124 grupos
regionais afiliados controlam 843 veículos de comunicação. Seu vasto campo de influência
se estende, por exemplo, por 248 emissoras de televisão, 245 emissoras FM e 65 jornais.
Nesse contexto se insere o fenômeno do “coronelismo eletrônico”, definido como
a utilização sistemática dos meios de comunicação para conquistar, assegurar e reforçar
a hegemonia política em âmbito local, regional ou estadual. Segundo o site Donos da
Mídia, no mandato de 2005-2008, 147 prefeitos eram proprietários de emissoras de rádio ou televisão. Na legislatura de 2007-2010, 20 dos 81 senadores (24,69%), 48 dos 513
deputados federais (9,35%) e 55 deputados estaduais eram proprietários de emissoras de
rádio ou televisão. Esta prática foi reduzida com a introdução de regras de licitação para
a distribuição de novas concessões, porém o fenômeno ganhou nova face a partir da utilização das outorgas para emissoras comunitárias como instrumento político, inclusive
como moeda de barganha.
Num cenário em que a maior parte da população não tem acesso aos meios impressos de comunicação, tampouco à televisão por assinatura, a concentração da propriedade de empresas concessionárias de rádio e de televisão, que chegam a mais de 90% da
população brasileira, é ainda mais preocupante.
A ausência de regulamentação também atinge o artigo 223 da Constituição Federal, que estabelece o princípio da complementaridade entre o sistema público, privado e
estatal na radiodifusão, como resultado atual tem-se as emissoras de rádio e de televisão
majoritariamente controladas por empresas privadas. Ao falar de sistema público, pensamos num conjunto de mecanismos que favoreça a apropriação da mídia pela população
e faça avançar uma comunicação pública, não estatal e não privada, sem fins comerciais.
213
Essa concepção busca inverter o paradigma que entende a informação como mercadoria e a comunicação como ferramenta, favorecendo a reorganização das comunicações
no Brasil sob outras referências. Mais do que o cumprimento de um dos artigos da nossa
Constituição, a organização de um sistema público de radiodifusão no país é um caminho a ser considerado para a garantia e efetivação do direito à comunicação em nossa
sociedade. É uma alternativa para o resgate do ambiente da mídia como espaço público.
O estímulo à construção de mídias públicas é justamente o inverso do que acontece
hoje com as rádios comunitárias que seguem criminalizadas, vítimas de um processo
de legalização sujeito a regras limitantes. Ao contrário de promover a diversificação das
mídias, a Lei nº 9.612/1998 restringe o surgimento e a manutenção dessas emissoras. A
norma, em conjunto com o decreto que a regulamenta, estabelece a potência de 25 W
para os transmissores das rádios e restringe sua cobertura a apenas 1 km de raio.
Limita a sobrevivência estrutural e financeira das rádios, que não podem veicular
publicidade, tendo apenas o instrumento denominado “apoio cultural” dos estabelecimentos que tenham sede na comunidade para gerar recursos. A lei ainda proíbe a formação de redes, prática disseminada nos meios comerciais e educativos, e limita a reserva
de apenas um canal por município para as rádios comunitárias.
Ainda em relação à regulamentação constitucional, a ausência de leis específicas
para o artigo 221, que define as prioridades para a programação das emissoras de rádio
e de televisão, incluindo a questão da produção regional e do estímulo à produção independente, resulta na exclusão da diversidade cultural brasileira e se distancia do interesse
público, por vezes brincando com a dignidade das pessoas como forma de auferir lucro.
Vendas de aparelhos de ginástica milagrosos, joias, remédios para dietas revolucionárias, exploração da miséria, exposição de mulheres como mercadorias, cenas de humor humilhantes e pegadinhas. A televisão comercial brasileira superou todos os limites
em sua programação. Para usar um termo que se tornou bastante popular nos últimos
anos, a tônica dessa desafinada sinfonia é a baixaria.
Apesar da previsão constitucional que delega à lei federal a criação de meios legais
que garantam aos cidadãos se defenderem de programas que desrespeitem esses princípios, as concessionárias não têm qualquer obrigação de criar espaços de diálogo e participação social para avaliação do serviço que prestam. Experiências como conselhos de imprensa, ombudsman, ouvidorias, audiências públicas, organizações de defesa dos usuários
e comitês de programação abertos ao público são pouco ou nada explorados no Brasil.
É importante ressaltar que o controle editorial e a censura por parte dos interesses
das corporações empresariais são práticas tão ou mais insidiosas quanto o controle estatal. Sua manifestação, menos explícita e mais sofisticada do que ocorre no âmbito dos
veículos estatais, a torna um problema difícil de ser denunciado e combatido.
O Brasil tampouco dispõe de um órgão regulador da radiodifusão, à Anatel cabe
apenas o tratamento das telecomunicações. Assim, a fiscalização das questões de rádio
214
e de televisão segue a cargo do Ministério das Comunicações. A realidade é que, ao
contrário de diversos países, que já encontraram fórmulas aptas a garantir a possibilidade da própria sociedade monitorar os meios de comunicação, o Estado brasileiro,
historicamente, se omite desta prerrogativa e compactua, muitas vezes, com violações
de direitos humanos praticadas pela mídia. Sequer no momento de renovação das
outorgas de radiodifusão essa questão é analisada. Pode-se dizer que, no Brasil, as
concessões de rádio e de televisão são renovadas automaticamente, dado que para isso
não acontecer é necessário que 2/5 dos parlamentares, em votação nominal, digam
não a uma determinada emissora.
Neste contexto, a internet surge como um espaço fundamental para ampliação da
diversidade de fontes de informação e possibilidade de produção e circulação de conteúdo pela sociedade em geral. Mas, apesar do crescente acesso da população às novas
tecnologias, o país enfrenta desafios significativos nesta área. O Brasil está abaixo da
média mundial em densidade de acesso à banda larga. Um estudo elaborado pela International Communication Union mostra que, descontando-se os impostos, a estimativa
de preço da banda larga no Brasil em 2008 era de US$ 47, enquanto na Argentina este
valor caía para US$ 38. Nos Estados Unidos, o custo estava em US$ 15. Hoje, a prestação
do serviço está focada nas classes A e B que residem nos grandes centros urbanos e um
percentual de 90% do mercado é controlado por apenas cinco empresas.
Segundo a pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação no
Brasil – TIC Domicílios, realizada anualmente pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil
–, somente 27% dos domicílios brasileiros possuíam acesso à internet em 2010. Enquanto na classe A este percentual era de 90%, na classe C caía para 24% e, nas D e E, para 3%
apenas. A desigualdade é regional também. Enquanto nas regiões sudeste e sul, respectivamente 36% e 30% da população tinham acesso à rede, nas regiões norte e nordeste este
número caía para 14% e 11%. Para 49% da população, o custo elevado é o motivo principal para a falta de internet no domicílio. Para 23%, é a falta de disponibilidade do serviço
na área. O resultado é que apenas 41% da população podem ser considerados usuários
de internet, ou seja, mais de 110 milhões de brasileiros ainda estão fora deste universo.
Portanto, quando se observa de perto o desenvolvimento da comunicação no Brasil
desde o início da década de 1980, se enxerga um rol de políticas públicas e processos de
regulamentação que, na maioria dos casos, favorecem os grandes atores empresariais e
são usados para manutenção de uma situação que não se transformou significativamente nos últimos 30 anos, a despeito das evidentes mudanças tecnológicas. Neste cenário
de convergência tecnológica, em que as tradicionais distinções entre os meios de comunicação vão se tornando cada vez mais tênues, e de uma conjuntura internacional de
desregulamentação liberal, a realidade para a garantia do direito à comunicação se torna
ainda mais complexa.
215
2. A atuação do Estado
Visto que o conceito de direito à comunicação vai além da reivindicação de um
simples “livre fluxo da informação”, ao Estado não cabe apenas não interferir na liberdade de expressão dos cidadãos. Para a efetivação do direito à comunicação, se espera
que o Estado deixe de ser apenas o garantidor da livre concorrência de entes privados e
passe a ser o garantidor de que, de forma individual e coletiva, o maior número de pessoas possível tenha condições técnicas e materiais para acessar os meios de produção e
veiculação de informação.
Na última década, a promoção da diversidade cultural nas diferentes mídias tem
se concentrado no Ministério da Cultura. Apesar de o orçamento do Ministério ser em
média inferior a 1% do total de investimentos da União, o órgão tem sido responsável
por esforços na descentralização e diversificação da produção audiovisual. É o caso do
projeto DOCTV, um prêmio de incentivo à produção de documentários por produtores
independentes que articula produção e difusão, prevendo a exibição em canais de TV
(abertos ou por assinatura) e em festivais. Além do audiovisual, o Ministério da Cultura
incentiva a produção multimídia nos Pontos de Cultura, iniciativas desenvolvidas pela
sociedade civil para impulsionar ações culturais nas comunidades. Além do financiamento para as atividades específicas, cada Ponto de Cultura recebe equipamentos para
produção de conteúdos multimídia.
De uma ação conjunta entre os ministérios da Ciência e Tecnologia, Planejamento, Comunicações, Cultura e Educação e de estatais como a Petrobras, Eletrobrás/Eletronorte, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, nasceu em 2003 o Projeto Casa
Brasil, visando à inclusão digital via implantação de espaços multifuncionais de conhecimento e cidadania em comunidades de baixo IDH, por meio de parcerias com instituições locais. Cada unidade de Casa Brasil abriga um telecentro, com uso de software
livre, e outros dois espaços, que podem ser uma biblioteca popular, auditório, estúdio
multimídia, oficina de produção de rádio, laboratório de popularização da ciência ou
uma oficina de manutenção de equipamentos de informática.
O fomento à produção audiovisual e a inclusão digital, no entanto, são apenas dois
aspectos dos quais o Estado brasileiro deveria cuidar para garantir o direito à comunicação. Outros seguem praticamente intocados. O país não dispõe de um conjunto estruturado de políticas públicas de fomento à diversidade e pluralidade na mídia, carece
de um acompanhamento mais permanente do Estado acerca da exploração do serviço
de radiodifusão pelas empresas de comunicação e tampouco dispõe de espaços institucionalizados de participação popular no setor. Decisões como a renovação ou não de
concessões de rádio e TV ou das próprias políticas públicas de comunicação são historicamente tomadas no Brasil sem considerar os anseios e demandas da população, aquela
que, em última instância, é a usuária deste serviço.
216
A Constituição prevê o estabelecimento de mecanismos de participação popular
nos meios de comunicação de massa quando esses não respeitarem as finalidades educativas, culturais, jornalísticas e artísticas a que devem responder. O parágrafo terceiro
do artigo 220 afirma que compete à lei federal “estabelecer os meios legais que garantam
à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações
de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de
produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente”. Falta,
assim, ao Estado brasileiro, efetivar este direito.
O único espaço institucionalizado do Estado brasileiro para debater questões da
comunicação com a participação de representantes da sociedade civil é o Conselho de
Comunicação Social do Congresso Nacional, previsto na Constituição de 1988 e instalado apenas em maio de 2002. No entanto, o órgão possui caráter meramente consultivo
para o Senado, sua composição é bastante restrita e, desde o final de 2006, quando terminou o mandato da primeira turma de conselheiros, está paralisado.
A verdade é que a organização do espaço público de comunicação no Brasil fez-se
até hoje sem que o Estado compreenda a comunicação como um direito fundamental.
Na outra ponta, a maior parte dos meios de comunicação comerciais historicamente
se organizou para manter seus privilégios e evitar qualquer tentativa de regulação do
setor, reforçando o caráter privado da esfera midiática brasileira. A afirmativa constante
é a de que o estabelecimento de regras para o funcionamento dos meios de comunicação representaria uma forma de cerceamento da liberdade de imprensa, e de expressão,
numa proposital confusão de conceitos. Foi este o mote central usado pelas empresas de
televisão, por exemplo, para se oporem ao estabelecimento da classificação indicativa de
faixas etárias na programação das emissoras, que entrou em vigor em 2007.
Infelizmente, o outro lado desta moeda é que o Brasil também carece de um reconhecimento do direito à comunicação pelo conjunto da sua população. Enquanto não
for reivindicado como tal, o direito à comunicação seguirá sendo cotidianamente violado em nosso território.
3. As lutas da sociedade civil
Diante da omissão do Estado e da resistência dos meios de comunicação privados,
a sociedade civil organizada tem buscado formas de conter tais violações, se articulando
em prol da democratização dos meios de comunicação, reivindicando liberdade de expressão para todos, denunciando violações de direitos humanos praticadas pela mídia
e produzindo seus próprios veículos de comunicação, em busca de mais diversidade e
pluralidade na esfera midiática.
217
O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), criado em 1991,
congrega dezenas de entidades da sociedade civil, como a Fenaj (Federação Nacional
dos Jornalistas), a Fitert (Federação dos Radialistas), a Abraço (Associação Brasileira de
Rádios Comunitárias), a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e o Conselho Federal
de Psicologia. Historicamente, o FNDC contribuiu com lutas como o estabelecimento da
regulamentação para o serviço de TV a cabo, a implantação do Conselho de Comunicação Social e a campanha pela adoção de um sistema brasileiro de TV Digital democrático.
A CMS (Coordenação dos Movimentos Sociais), da qual fazem parte o MST, a
UNE, a Marcha Mundial de Mulheres e a Central de Movimentos Populares, entre outros, também desenvolve ações em defesa da democratização da mídia no país. Em 2007,
em conjunto com diversas outras entidades, promoveu uma campanha por democracia
e transparência nas concessões de rádio e de TV.
Em 2002, como resultado de articulações feitas durante a VII Conferência Nacional
de Direitos Humanos, nasceu a Campanha pela Ética na TV, cujo objetivo principal é
avaliar o conteúdo da TV brasileira, especialmente através de denúncias feitas pela população acerca de programas considerados ofensivos ou violadores de direitos humanos.
A Campanha funciona em parceria com a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da
Câmara dos Deputados e elabora semestralmente o ranking da baixaria, que orienta os
anunciantes a deixarem de financiar este tipo de conteúdo. As denúncias também subsidiam o Ministério Público Federal em ações que buscam coibir tais violações.
Um exemplo foi o programa Direitos de Resposta, resultante de uma ação civil
pública movida em parceria com organizações civis, entre elas o Intervozes, contra violações praticadas pelo programa Tarde Quente, do apresentador João Kleber, veiculado
na Rede TV!. A ação conquistou um direito de resposta coletivo para as entidades, que
colocaram no ar 30 horas de programação sobre direitos humanos e respeito às diversidades, entre dezembro de 2005 e janeiro de 2006.
Outras ações já haviam acontecido sob o mesmo princípio, movidas, sobretudo, pelo
movimento negro, o movimento feminista e de defesa dos direitos da infância. Há cerca
de 20 anos a ANDI Comunicação e Direitos mobiliza jornalistas para novas perspectivas
no olhar sobre a infância e adolescência, desenvolvendo análises permanentes, principalmente sobre a mídia impressa, neste tema. Em 2000, nasceu a Rede ANDI, que hoje atua
em nove estados. Em 2007, surgiu a Articulação Mulher & Mídia, que vem se consolidando como espaço de referência para a promoção do controle social da imagem da mulher
na mídia. Também partiram da sociedade civil iniciativas regionais de acompanhamento
da mídia, como o Ombuds-PE, realizado pelo Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), de
Olinda, que desde 2004 faz o acompanhamento diário da mídia pernambucana.
O monitoramento e o acompanhamento dos meios de comunicação pela sociedade
civil organizada se transformaram, assim, numa importante ferramenta de construção
da democracia no setor. Exatamente por isso, o controle social não pode jamais ser confundido com censura.
218
Um segundo passo na aproximação entre movimentos sociais e o tema da comunicação é a criação de veículos alternativos como resposta à hegemonia da informação distribuída pelos meios tradicionais. Além dos trabalhos específicos da Abraço, da
Amarc/Brasil (Associação Mundial de Rádios Comunitárias), da ABCCOM (Associação Brasileira de Canais Comunitários) e Frenavatec (Frente Nacional pela Valorização
das TVs do Campo Público), entre os movimentos que trabalham neste sentido está o
MST, que mantém um jornal e uma revista próprios, além de uma agência de notícias
e da parceria com outras organizações na construção do jornal semanal Brasil de Fato.
A CUT também aposta nesta estratégia, através da Rede Brasil Atual, que reúne uma
revista, rádio, jornal, blogs e, mais recentemente, a TVT (TV dos Trabalhadores), veiculada na Grande São Paulo. Com enfoque voltado para a pauta da juventude, destaca-se o trabalho da Viração, um projeto de educomunicação que, de forma colaborativa
entre jovens de todo o país, produz uma revista mensal e alimenta uma agência de
notícias. E a Ciranda Internacional da Comunicação Compartilhada, nascida no Fórum Social Mundial como um importante espaço de produção jornalística coletiva em
torno da agenda dos movimentos sociais.
4. Três anos para fazer história
O ano de 2009 pode ser considerado um ponto marcante do início de uma mudança na história das comunicações brasileiras, em relação tanto à atuação do poder executivo, quanto da sociedade civil, em torno desta pauta. De lá pra cá, a pauta da comunicação tem ganhado cada vez mais espaço no debate público, mesmo que as mudanças
estruturais tão necessárias ao setor ainda estejam por vir.
Os maiores problemas do período vieram do poder judiciário. Foi em 2009 que o
Supremo Tribunal Federal decidiu pela desregulamentação da profissão de jornalista e
pela revogação completa da Lei de Imprensa, desregulamentando também o direito de
resposta, previsto constitucionalmente, com prejuízos significativos para quem busca se
defender de abusos e erros da imprensa.
Mas foi em janeiro de 2009 que o presidente Lula confirmou, durante o Fórum
Social Mundial em Belém, a convocação da primeira Conferência Nacional de Comunicação. Resultado de três anos de pressão dos movimentos populares e do fortalecimento
da idéia de que as demandas em relação ao direito à comunicação devem estar referenciadas numa legislação e em políticas públicas que modifiquem o quadro atual das comunicações no país, a I Confecom mobilizou 30 mil pessoas em todo o país, e inaugurou
um debate amplo e verdadeiramente público sobre o setor.
219
Pela primeira vez, o Estado brasileiro instituiu um mecanismo formal de consulta
a toda sociedade sobre os rumos da comunicação. Sua etapa nacional, realizada em dezembro de 2009, aprovou mais de 600 propostas, a quase totalidade com perfil claramente democrático e progressista. De 2009 pra cá, o quadro é de um vai-e-vem constante,
entre iniciativas importantes do governo, com limitações e recuos consideráveis.
O governo avançou, por exemplo, na construção da EBC, a Empresa Brasil de Comunicação, inaugurada no final de 2007 para ser o embrião de um sistema público de
comunicação no país. A EBC nasce para administrar a antiga Radiobrás, oito emissoras
de rádio e a nova TV Brasil, criada a partir da fusão das TVs educativas do Rio de Janeiro e do Maranhão e da TV Nacional de Brasília. A iniciativa sofreu forte resistência dos
partidos de direita no Congresso e também da mídia comercial, mas no período recente
avançou em aspectos importantes, como investimentos no parque tecnológico das emissoras e a melhoria e diversificação no conteúdo das programações, com destaque para a
programação infantil e a veiculação de produção independente.
Por outro lado, o modelo de gestão e controle da EBC ainda é pouco permeável
ao público e suas organizações. A ouvidoria deve ser fortalecida e é fundamental que a
autonomia do Conselho Curador, único órgão com representação oficial da sociedade
civil, seja garantido. Também é preciso ampliar os mecanismos de participação social
na EBC, assim como garantir a ampliação do alcance da TV Brasil em sinal aberto, a
transição para as transmissões digitais de rádio e de televisão e a consolidação da Contribuição para o Fomento da Comunicação Pública como fonte contínua e não contingente
de um fundo para a comunicação pública.
Ainda no âmbito da promoção da diversidade de fontes de informação, o governo
federal passou a adotar o critério de “mídia técnica” para distribuir a verba publicitária
governamental. Até o início do primeiro governo Lula, o dinheiro da publicidade era
repartido entre 400 empresas. Agora, oito anos depois, a verba é destinada a aproximadamente 6 mil empresas. Em 2003, eram 182 municípios atingidos. Em 2009, 1.149: uma
alta de 531%.
No final de 2009, foi lançado o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3),
com medidas interessantes para a democratização da mídia e a garantia do direito à
comunicação. Entre elas, a promoção do respeito aos direitos humanos nos meios de
comunicação, com a criação de um ranking dos veículos promotores de direitos e a punição para aqueles que pratiquem violações, incluindo a possibilidade de não renovação
das concessões de rádio e de televisão.
Pinçadas e analisadas de maneira enviesada pelos grandes grupos de comunicação, as medidas foram consideradas um atentado à liberdade de expressão. Da imprensa
veio uma manobra espetacular, que conseguiu transformar lutadores da democratização
dos meios de comunicação em censores. E o governo acabou retirando tais pontos do
PNDH-3.
220
A pressão orquestrada dos meios de comunicação contra a bandeira do controle
social é tão grande que a própria Presidenta da República, Dilma Rousseff, afirmou:
“O único controle da mídia que proponho é controle remoto na mão do telespectador”
(BORGES, 2010). Sua colocação foi reproduzida novamente em 2011, como resposta a
uma resolução aprovada em recente congresso do Partido dos Trabalhadores que mencionava a necessidade de regulação da mídia.
Não à toa, não é do Ministério das Comunicações que têm vindo as mais recentes
iniciativas de enfrentamento ao status quo na mídia. Foi a Secretaria de Políticas para as
Mulheres, por exemplo, que em setembro enviou um pedido ao CONAR (Conselho de
Autorregulamentação Publicitária) para que o órgão analisasse uma campanha da Hope
com a modelo Gisele Bünchen, que colocava a mulher numa situação de objeto sexual.
O pedido, legítimo e importante, foi duramente criticado pela imprensa, e o CONAR
decidiu manter a campanha da Hope no ar.
Em 2010, foi lançado o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), com o objetivo de
massificar a oferta de acesso à internet até 2014, chegando a 40 milhões de domicílios.
A Telebras, antiga holding das empresas estatais de telefonia, foi reativada pelo governo
para se tornar a operadora da rede pública de banda larga. O governo também lançou
programas de incentivo ao barateamento e aquisição de computadores e laptops, como
o Projeto Um Computador por Aluno. No último ano, no entanto, um conjunto de decisões do governo federal tem enfraquecido a responsabilidade do poder executivo na
efetivação das metas previstas do PNBL, deixando para as empresas de telefonia aquilo
que deveria ser dever do Estado: garantir o acesso à banda larga a toda a população, independentemente de condições financeiras ou geográficas.
O governo resiste em definir que o serviço de banda larga seja prestado em regime
público, como acontece com a telefonia fixa, o que permitiria estabelecer metas de universalização, qualidade, modicidade (preços acessíveis) e de continuidade do serviço.
A Telebrás também tem sofrido contingenciamento de recursos e não mais ofertará o
serviço na ponta, até a casa do usuário final, o que poderia gerar competitividade num
mercado monopolizado por poucas empresas e fazer da internet um direito de todos, e
não privilégio de alguns.
5. Debates no congresso nacional
Segundo informações da Transparência Brasil, a atual legislatura do Congresso
Nacional conta com 52 deputados (10,15%) e 18 senadores (22%) sócios ou associados
de empresas concessionárias, permissionárias ou autorizatórias de serviços de radiodifusão, fato que mostra o desafio de aprovar transformações significativas no setor no
âmbito legislativo. Apesar disso, é possível destacar alguns avanços obtidos a partir de
muita pressão pública neste último ano.
221
Entre eles, está a aprovação do Projeto de Lei da Câmara nº 116/2010, que uniformizou as regras para o funcionamento da TV por assinatura no país. O projeto, já
sancionado pela Presidenta Dilma Rousseff, estabelece cotas de canais brasileiros nos
pacotes comercializados no país, fomentando o surgimento de novos canais com conteúdo brasileiro e independente, combatendo a hegemonia dos estrangeiros na TV por
assinatura. De acordo com dados de 2010 da Agência Nacional do Cinema (Ancine), 85
do total de canais oferecidos no Brasil são estrangeiros contra 16 canais brasileiros e 15
canais com capital misto.
O Projeto de Lei da Câmara nº 116 também ampliará em mais de R$ 660 milhões
os recursos para a produção independente, além de aumentar as atribuições regulatórias
da Ancine sobre as empresas que comercializam canais de programação. Por outro lado,
um dos problemas da nova lei é a total abertura concedida ao capital estrangeiro. Até
agora, a Lei do Cabo limitava a 49% a participação do capital estrangeiro nas empresas
do setor. Assim, o texto favorece ainda mais as gigantes multinacionais que já atuam no
mercado brasileiro de telecomunicações, uma questão crítica para a soberania nacional.
Também já está na mesa para sanção da Presidenta da República a nova lei que
regulamenta o direito de acesso às informações mantidas por órgãos públicos, oito anos
após a primeira proposta ter sido apresentada ao Congresso Nacional. O texto impõe ao
governo a obrigação de divulgar proativamente informações de interesse público e de
responder a pedidos de informação. Todos os órgãos públicos ficam obrigados a criar
um serviço de informações ao cidadão, promover a participação por meio de audiências e consultas públicas e a usar a internet como um meio de divulgar informações. A
Controladoria Geral da União será a responsável por decidir sobre recursos a pedidos
denegados no Executivo. Informações relacionadas a violações de direitos humanos,
cometidas por agentes públicos, também não podem mais estar sujeitas a sigilo, uma
conquista para a luta pela abertura dos arquivos da ditadura militar.
Outra pauta central para a efetivação do direito à comunicação que começa agora a
ser debatida pelo Congresso é o Marco Civil para a Internet brasileira. Na última década,
diversos projetos de lei tramitaram no Congresso Nacional buscando regular questões
pontuais da operação da rede mundial de computadores. O Projeto de Lei nº 84/1999,
que ficou conhecido como “Lei Azeredo”, no entanto, propõe a criminalização de uma
série de condutas dos usuários de internet. Apelidado pelo movimento de AI-5 Digital, o
texto prevê, por exemplo, até quatro anos de prisão para quem desbloquear um aparelho
celular ou passar as músicas de um CD para o seu computador.
Uma mobilização intensa da sociedade civil conseguiu frear a tramitação do projeto, de forma a priorizar, antes de uma nova lei criminal, o debate sobre a aplicação dos
direitos fundamentais na rede, como a liberdade de expressão e a privacidade. Depois
de um processo de construção coletiva, que utilizou a própria internet para receber contribuições da sociedade, o Marco Civil chega agora ao Congresso, tratando também de
temas como a natureza participativa da Internet e a neutralidade da rede.
222
Por fim, destaca-se o lançamento, em abril de 2011, da Frente Parlamentar pela
Liberdade de Expressão e o Direito à Comunicação com Participação Popular, presidida
pela deputada federal Luiza Erundina (PSB/SP) e que conta com organizações da sociedade civil em sua coordenação. A FrenteCom tem realizado uma série de debates e audiências públicas na Câmara, impulsionando a tramitação de projetos que democratizem
as comunicações brasileiras.
No âmbito das Assembléias Legislativas, o ano de 2010 foi marcado pela proposição de projetos para a implantação de Conselhos Estaduais de Comunicação, em diferentes unidades da federação. Pensados como espaços de participação da população na
elaboração das políticas públicas estaduais e para a fiscalização da prestação do serviço
de radiodifusão, os conselhos podem cumprir um papel importante para garantir mais
democracia no setor. Podem realizar audiências para ouvir a população no momento
de renovação de uma outorga de TV ou encaminhar ao Ministério Público Federal denúncias de discriminação, que se multiplicam, por exemplo, em programas policialescos
exibidos à luz do dia. Os conselhos podem tratar ainda de políticas como o desenvolvimento da precária radiodifusão pública e comunitária local; o acesso da população à
banda larga; e a racionalização da distribuição das verbas publicitárias governamentais.
A aprovação do Conselho Estadual de Comunicação pela Assembléia Legislativa
do Ceará foi a senha para uma nova ofensiva da mídia comercial contra a regulamentação do setor. O argumento foi o de sempre: que os conselhos seriam órgãos de censura
da mídia pelo governo. Ao criá-los, no entanto, os estados não definem novas regras para
a radiodifusão, o que é prerrogativa da União, mas apoiam a aplicação dos princípios
constitucionais e leis já existentes. No final de 2011, estavam em passo de implementação no país os Conselhos Estaduais de Comunicação da Bahia e do Rio Grande do Sul.
Em aproximadamente dez estados há projetos em tramitação. No âmbito federal, por
outro lado, o tema segue engavetado pelo governo.
6. O fortalecimento do movimento pelo direito à comunicação
Na tentativa de transformar o quadro excludente e de constante violação do direito
à comunicação da maioria da população brasileira, o movimento social tem buscado, nos
últimos anos, consolidar iniciativas que fortaleçam referências democráticas do setor e
coloquem na agenda pública a necessidade de mudanças. Apesar de ainda não ter uma
base social consistente e organizada, o movimento tem se empenhado em mobilizar diferentes setores e consolidar instrumentos que criem condições para essa transformação.
O legado deixado pelo processo da I Conferência Nacional de Comunicação inaugurou um novo momento do movimento pela democratização da comunicação no país, que
passa a contar com novos e importantes atores para a luta. Do fortalecimento e nascimento
223
de articulações e organizações, como o Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de
Itararé, o Fórum de Cultura Digital, os Blogueiros Progressistas e as Blogueiras Feministas,
a Campanha Banda Larga é Direito Seu!, o Observatório de Mídia Regional, a Cojira (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial) e a Altercom (Associação Brasileira de Empresas e Empreendedores da Comunicação), à realização de inúmeros eventos e seminários
sobre o tema, como o Fórum de Mídia Livre e o Fórum da Internet no Brasil, o movimento
tem mostrado diversidade e disposição de enfrentamento às violações do direito à comunicação. Seja reivindicando mudanças na estrutura midiática tradicional, seja produzindo
conteúdos e disputando valores e ideias através de seus próprios veículos. A tarefa urgente
é criar uma agenda comum para a implementação dos resultados da Confecom.
Para responder a este desafio, em outubro de 2011 foi lançada a Plataforma da Sociedade Civil para um novo Marco Regulatório das Comunicações. A necessidade de uma
nova lei geral para a mídia brasileira está em debate nos últimos anos, motivada, por um
lado, pelo advento da convergência tecnológica, no bojo do qual se configura uma disputa
entre empresas de telecomunicações e de rádio e televisão, e por outro lado, pela pressão
popular por mais diversidade e pluralidade na mídia. Um projeto de nova lei geral teria
sido entregue pela gestão Lula ao governo Dilma, mas até agora o texto não foi colocado em
discussão pública. Como forma de pressionar o Ministério das Comunicações, a sociedade civil, buscando uma ação unitária do movimento, construiu sua própria proposta, que
reúne 20 pontos considerados prioritários na definição de um marco legal para as comunicações no país. A Plataforma tem a pretensão de popularizar o debate sobre as bandeiras e
temas da comunicação, normalmente restrito a especialistas e profissionais do setor.
Em paralelo, diversas outras iniciativas seguem em curso. Uma delas, feita em parceria pelo Intervozes, o Laboratório de Políticas de Comunicação da Universidade de
Brasília e o Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o apoio da Unesco, está aplicando indicadores internacionais de desenvolvimento da mídia à realidade brasileira. O resultado
poderá ser um interessante instrumento para balizar ações da sociedade civil e do Estado para promoção e garantia do direito à comunicação no país.
Têm crescido também as iniciativas de monitoramento e denúncia, por vezes com
ações judiciais, de violações de direitos humanos nos meios de comunicação. Os casos
mais recentes foram contra as declarações do apresentador Rafinha Bastos (ex-CQC),
que fez piadas com mulheres estupradas, e a ação movida pela ABGLT (Associação Brasileiras de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) contra o Pastor Silas Malafaia, que incitou a violência contra homossexuais em seu programa televisivo.
O Ministério Público Federal também tem agido por conta própria diante de casos mais
gritantes do “vale tudo” pela audiência, como a recente exibição, às 12h, de cenas reais do estupro de uma adolescente pela TV Correio, afiliada da TV Record na Paraíba. Em outubro de
2011, o MPF-PB propôs uma Ação Civil Pública pedindo a suspensão do programa, a cassação da concessão da emissora, o pagamento de indenização à adolescente e ao Fundo Municipal da Criança e do Adolescente das cidades de João Pessoa e Bayeux, onde ocorreu o crime.
224
Essas iniciativas, apesar de extremamente positivas, dependem exclusivamente do
poder judiciário para que gerem consequências concretas, já que não há um espaço institucional dos poderes executivo e legislativo que considere tais violações e responsabilize de forma célere os meios de comunicação. Daí a urgência de um novo marco regulatório para a mídia, que considere esta e as tantas outras questões levantadas anteriormente.
Um dos maiores desafios na luta por um Estado democrático e para a realização
plena de uma sociedade justa, sem opressões, é o resgate do ambiente da mídia como
espaço público, desprivatizando-o mediante a inclusão progressiva de todos os atores
sociais. Afinal, somente num espaço onde todos e todas tenham voz e acesso aos meios
de produção e veiculação de informação, os demais direitos humanos poderão ser conhecidos, reconhecidos, protegidos, defendidos, reivindicados e efetivados.
Tratar a legítima reivindicação da população de se fazer ouvir nesses processos
como ameaça à liberdade de imprensa, e de expressão, é movimento daqueles que querem manter privilégios em um campo marcado pela verticalização econômica, homogeneização cultural e desrespeito à legislação. Mais séria é a constatação de que tais setores
utilizaram o espaço das concessões públicas para defender tão somente seu ponto de
vista, evidenciando a tendência de manutenção de uma disputa desigual pelo sentido do
termo liberdade de expressão.
O que a sociedade reivindica é justamente o exercício direto da liberdade de expressão por todos os segmentos. E não apenas pelos poucos que detêm o controle dos
meios e que, pretensamente, afirmam vocalizar o conjunto do pensamento brasileiro,
impondo suas idéias à opinião pública como se fossem porta vozes de uma diversidade
que ignoram e omitem. Esta é a real censura ao direito à comunicação no país. Mudanças concretas seguem, portanto, dependendo da correlação de forças entre os diferentes
atores do campo e da vontade política do executivo e do legislativo em efetivar essas
transformações. E, como sempre, de muita luta.
Referência bibliográfica
BORGES, Laryssa. O único controle da mídia que proponho é o remoto na mão do expectador.
2010. Disponível em: <http://blog.opovo.com.br/blogdofabiocampos/dilma-rousseff
-o-unico-controle-da-midia-que-proponho-e-o-remoto-na-mao-do-telespectador/>.
Acesso em: 04 set. 2011.
225
Sites sugeridos
DONOS DA MÍDIA: <www.donosdamidia.com.br>.
FNDC: <www.fndc.org.br>;
ÉTICA NA TV: <www.eticanatv.org.br>.
DIREITOS DE RESPOSTA: <www.direitosderesposta.com.br>.
ANDI: <www.andi.org.br>.
OMBUDSMAN: <www.ombudspe.org.br>.
BRASIL DE FATO: <www.brasildefato.com.br>.
REDE BRASIL ATUAL: <www.redebrasilatual.com.br>.
VIRAÇÃO: <www.viracao.org>.
AGÊNCIA JOVEM: <www.agenciajovem.org>.
CIRANDA: <www.ciranda.net>.
COMUNICAÇÃO DEMOCRÁTICA: <www.comunicacaodemocratica.org.br>.
226
DIREITO À MEMÓRIA, À VERDADE E À JUSTIÇA
Rosiana Queiroz*
A história do Brasil é marcada por vários momentos autoritários que mereceriam
ser passados a limpo, tendo em vista o nível e a gravidade das atrocidades cometidas e
que, ao mesmo tempo, causaram grande impacto na identidade cultural e política do
país. É o caso do genocídio do povo indígena e a escravização do povo negro. Contudo,
neste texto será tratado o direito à memória, à verdade e à justiça tendo como referência
o período de 1964 a 1985, compreendido como regime militar.
Inicio contextualizando e conceituando o direito à memória, à verdade e à justiça.
Para essa conceituação opto por um marco político e filosófico, não me detenho à área
específica do direito. Na segunda parte descrevo como no Brasil tem se encarado essa
questão do direito à memória, à verdade e à justiça e o faço a partir de uma avaliação da
prática dentro do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), além do que
tenho acompanhado nos chamados grupos de anistiados políticos e grupos de familiares de presos e desaparecidos políticos. A partir da análise dessa vivência, pontuo como
surge a ideia de uma Comissão da Verdade, identificando nesse processo os limites e as
controvérsias que envolveram a sua criação por Lei. Por fim, indico como é possível ainda lutar pelo direito à memória, à verdade e à justiça, tendo como um dos instrumentos
a Lei que criou a Comissão da Verdade.
*
Assessora Técnica na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM), militante do Movimento Nacional de
Direitos Humanos e do Centro de Defesa de Vida Herbert de Souza, CE, e estudante de Filosofia na Universidade de
Brasília (UNB).
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1. Contextualização do direito à memória, à verdade e à justiça
Os 20 anos de regime militar no Brasil foram 20 anos de um Estado autoritário, violento e violador dos Direitos Humanos. No final da década de 1970 se inicia um processo
de abertura democrática. Essa, infelizmente negociada, foi gradual, foi tolerante, ainda
que mobilizações populares tenham impulsionado esse afrouxamento. Foi exatamente
essa forma chamada gradual e “dialogada” que permitiu manter no acobertamento e nos
porões de várias instituições do Estado, modelos e resquícios arbitrários. Por exemplo, o
Brasil manteve a Justiça Militar, foi garantida anistia a todos inclusive aos responsáveis
por crimes e atos arbitrários e violentos durante o regime ditatorial e ainda proibiu-se
o acesso aos arquivos da ditadura, colocando-os legalmente como sigilosos para tempo
indeterminado. Além disso, foi decretado o esquecimento ao se permitir a destruição de
provas e informações sobre as práticas de tortura e sobre os torturadores.
A geração passada propositadamente decidiu esquecer e negou à atual geração saber a verdade. Durante 20 anos, oficialmente, o Estado brasileiro violou direitos, praticou tortura como método, causou a morte de ativistas políticos e desapareceu com quem
se opunha ao regime militar. E foi isso que se optou por esquecer.
Essa decisão marcou o país e o povo brasileiro – ainda que boa parte da população
não tenha se dado conta ou nem mesmo tenha tido conhecimento dessa marca – e o
resultado deste caminho é um país que, na atualidade, se vê tendo que denunciar ou
explicar práticas autoritárias, tortura, extermínio, execuções sumárias, inclusive em instâncias internacionais de Direitos Humanos. Crimes que, na prática, têm participação
ou omissão do Estado.
Esse caminho político de abertura gradual, negociada, concedida, pelo qual trilhou
o Estado brasileiro, produziu fundamentalmente um silêncio obsequioso, explicações
fantasiosas e falsas presentes em documentos oficiais e em livros didáticos, mas também
levou a se constituir um Estado Democrático de Direito que ainda encobre a impunidade.
Tudo isso é fácil de ser constatado quando se analisa as legislações criadas a este
respeito. São legislações tardias e fracas como: a Lei de anistia (nº 6.683/1979), Lei de
arquivos (nº 8.159/1991), Lei que reconhece a morte de desaparecidos políticos (nº
9.140/1995), Decreto que regulamenta a política dos arquivos (nº 4.073/2002), a Lei de
acesso aos arquivos (nº 11.111/2006) e, claro, as mais recentes: a Lei que criou a comissão
da verdade (nº 12.528/2011) e a Lei de acesso à informação pública (Lei nº 12.527/2011).
Entre essas legislações, a Lei de anistia, a que reconhece a morte e o desaparecimento político, podem ser consideradas as mais danosas porque foram elaboradas para as vítimas,
mas possibilitando somente a reparação financeira, sem se perguntar pelos responsáveis,
ou seja, sem de fato passar a limpo esse período. Além disso, essas mesmas leis, consideram o pagamento e a indenização às vítimas e aos parentes dos perseguidos políticos,
como medidas suficientes.
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Vale destacar ainda a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que não reconheceu e não autorizou uma revisão, uma nova interpretação, da Lei de anistia para
que se processassem criminalmente pessoas que no passado torturaram e mataram
quem fazia oposição ao regime militar. Essa decisão representa e demonstra a posição
do poder judiciário brasileiro, que também trilhou o caminho do esconder, mais do
que esquecer.
Já o poder executivo se restringiu e se rendeu às legislações frágeis e às decisões da
justiça e nunca produziu efetivamente uma política pública pelo direito à memória e à
verdade. Somente implementou a Comissão de Anistia e os pagamentos de indenizações. Em segundo lugar constituiu, a duras penas, uma Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos, mas poucos corpos foram encontrados e restituídos às suas famílias,
que ainda esperam fazer um funeral decente para seus parentes.
Por outro lado, é latente que o tecido social brasileiro carrega o peso desse esquecimento. Na sociedade é comum perceber uma cultura de violência, de querer respostas
arbitrárias quando diante de fatos que afetam o direito à segurança, por exemplo, em relação a homicídios, latrocínios, adolescentes em conflito com a lei, entre outras situações
sociais. A população pede e exige ações violentas (pena de morte, aceita tortura como
corretivo para bandido, quer rebaixar a idade penal) e rechaçam os direitos humanos
como um inimigo e jamais os enxergam como um símbolo de luta com significado social
e político. Essa compreensão está entranhada nas pessoas, sejam de classe média, ou dos
meios populares.
Os Direitos Humanos foram e ainda são vistos marginalmente, como coisa de
quem está fora da lei e da ordem pública e, definitivamente, esse é um resquício de uma
nação que optou por esconder verdades e maquiar fatos históricos de forma ideológica.
Esse foi o caminho da negociação, da concessão, do entendimento.
Por tudo isso, hoje quando se insiste em investigar os casos dos mortos e desaparecidos pela repressão política no regime militar, e se exige o julgamento dos responsáveis
por estes crimes, há acusações públicas, até mesmo de autoridades, de revanchismo e
vingança. E essas falas ecoam junto à população e encontram concordâncias.
É dento deste contexto que se compreende o direito à memória. Um contexto que
gerou e abafou a violência. Ainda que boa parte da população sequer saiba o que foram os
horrores da ditadura ou deles saiba apenas o que era conveniente saber, há um reclame
de quem vivenciou, de quem foi vítima e das famílias que esperam velar seus parentes.
Esse reclame ecoa também, mesmo que quase como sussurro, em grupos pequenos.
Ademais, há uma relação inconforme: há fatos presentes que têm a ver com o
passado e teimam por se consolidar. Entre eles: arbitrariedade policial, justiça de dois
pesos e duas medidas, torturas, execuções sumárias, grupos de extermínio, crime
organizado, pistolagem, milícias, crimes de mando, aliados quase sempre à baixíssima
presença do Estado Democrático. Há uma falta de democracia, de participação, de
justiça e de Direitos Humanos.
229
Esse é o resultado de um passado deixado em aberto, mal resolvido. Torna-se um
peso no presente e um impeditivo para construir uma nova perspectiva de futuro. O
regime militar guarda um passado de violência que se reflete na atualidade em práticas
autoritárias, seja no sistema de segurança, seja na aplicação da justiça ou mesmo nos
conflitos interpessoais. Ou seja, é preciso fazer a memória desta história de violência
para não mais se repetir. Definindo melhor, é necessária uma presentificação riobaldiana, como fez Guimarães Rosa em seu Grande Sertão Veredas, através da qual o passado
é invocado para elucidar e colaborar com a construção do presente, para impulsionar
ações presentes e o futuro.
Vale destacar que é perceptível uma memória ou um rastro de presentificação ainda que fragmentado e encarnado nas vítimas. E, por outro lado, se percebe um presente
marcado por práticas arcaicas e violadoras dos Direitos Humanos. Esses dois lados reclamam e teimam por revelar a história passada. Caso a memória não seja respeitada
como direito, ela, por si mesma, se impõe de forma negativa ou positiva. Significa dizer
que, de alguma forma, a memória reina porque os fatos do passado se presentificam nas
pessoas e nas ações.
Então, para garantir a efetivação radical do direito à memória seria necessário
romper com os acordos firmados para esquecer o que foi o regime militar e, assim, instaurar uma nova pactuação que abra uma perspectiva diferente. Não uma pactuação
contratual, legal, e sim, antes, um reconhecimento, um assumir o que foi o passado e um
comprometimento feito de ações, com responsabilidades e atitudes presentes.
Porque cobrar a verdade sobre o regime militar? Porque é preciso reconhecer que
houve um rasgo na democracia, se não for judicial, que seja pelo menos ético. Porque
o Brasil vivia na década de 1960 um momento significativo, onde um pequeno foco de
luz democrática começava a iluminar a sociedade e essa luz foi barbaramente apagada,
colocando novamente o país na escuridão. Para construir a memória coletiva, como
povo, para não deixar que a democracia seja golpeada novamente, para estabelecer uma
nova postura diante de ações violentas, para reescrever e revisar a justiça, para afirmar e
desejar os Direitos Humanos. E a verdade somente virá à tona se houver uma ampla investigação sobre os órgãos e as ações de repressão durante a ditadura. E somente servirá
como verdade se houver uma mobilização social que possibilite à população ver, ouvir,
refletir e se posicionar sobre esta verdade.
O direito humano à memória, enquanto presentificação, é concreto e factível, um
ato e uma decisão política. A memória como direito humano afirma a dignidade da
pessoa humana para que um ser humano não degrade o outro nunca mais. A memória
como direito humano é comprometimento cerrado em não mais repetir atrocidades
e para que, ao ver algo similar, sempre haja pessoas aptas ao combate. Finalmente, a
memória como direito humano é uma luta constante e sistemática para instaurar novas
relações de poder, seja na sociedade civil, seja no Estado.
230
2. O movimento organizado e o direito à memória, à verdade e à justiça
Houve no Brasil muitos movimentos e formas de resistência à ditadura militar
que se estenderam por grupos, partidos clandestinos de esquerda, e pelas organizações
populares, de segmentos profissionais e de estudantes. Contudo, no final da década de
1970, por um lado, o regime dava sinais de esgotamento e já não conseguia responder
aos inúmeros problemas sociais que se avolumavam no país. Mas por outro lado, havia
uma mobilização social que buscava se organizar em torno das denúncias dos principais
problemas nacionais como: 1) carestia; 2) a situação vexatória de trabalhadores urbanos
sem seus direitos; 3) milhares de trabalhadores rurais sem terra; 4) desrespeitos aos direitos das mulheres; e 5) graves violações aos direitos humanos. Esses problemas levaram grupos e movimentos a se estruturarem em todo o país e a pressionar as autoridades
competentes por mudanças.
Em 1978, familiares, categorias profissionais e estudantes passaram a se articular
em torno do Movimento pela anistia, para fazer pressão explicitamente contra o regime
militar. Esta articulação se organizou nacionalmente com o intuito específico de fazer
retornar ao país as pessoas que foram obrigadas a sair para o exílio; também tencionava
o fim da ditadura. Apesar de ter se constituído na mais ampla frente contra o regime e
que logrou êxito, pois aprovou uma Lei e trouxe de volta os exilados políticos, esse movimento tem em sua formatação alguns equívocos. A começar pelo termo anistia, que
etimologicamente se entende como esquecer, ou mesmo perdoar, desculpar.
Mas quem aceitou a anistia se desculpou, esqueceu o que foi a ditadura? Depois,
ao qualificar o termo anistia como ampla, geral e irrestrita o movimento o fez também
dentro de um sentido que abriu controvérsias presentes até hoje: a anistia concedida em
1979 acabou por esquecer e desculpar a todos, vítimas e algozes. Será? Para os que viveram esses enfrentamentos, “a anistia ampla, geral e irrestrita” não se constituiu com essa
significação.1 Mas, o fato é que, na prática e no processo histórico, revela-se que se deu
sim um perdão e um colocar uma pedra em cima dos fatos e dos horrores da ditadura. A
ideia que prevaleceu foi a do esquecimento e do perdão a todos. Na atualidade, os vários
1
Conforme Greco (2003) no Programa Mínimo de Ação aprovado pelo I Congresso Nacional pela Anistia, em 5 de
novembro de 1978, lê-se: “Fim radical e absoluto das torturas. […] Denunciar à execração pública os torturadores e
lutar pela responsabilização judicial dos agentes de repressão e do sistema a que eles servem (grifo nosso), fazendo
que essa luta seja assumida não apenas individualmente, mas coletivamente, pelos movimentos de anistia e pelas entidades profissionais a que se acham vinculadas as vítimas”. Dois meses antes dele (ou seja, em Setembro de 1978), ocorreu em Salvador um encontro preparatório, o Encontro Nacional de Movimentos pela Anistia, cuja carta final deixa
claro o sentido da anistia que se queria: “1. A ANISTIA PELA QUAL LUTAMOS: As entidades que hoje pugnam
pela ANISTIA AMPLA, GERAL E IRRESTRITA para todos os presos e perseguidos políticos, vêm conclamar os brasileiros de todos os quadrantes e de todas as origens sociais para se incorporarem a essa luta. Lutamos por ANISTIA
AMPLA, GERAL E IRRESTRITA por entendermos ser esta a única forma consequente de Anistia, pois atende aos
interesses de todos os setores e camadas sociais na luta por liberdades democráticas. A colocação destes adjetivos é
fundamental, uma vez que, cada um deles tem um significado específico. A Anistia deve ser AMPLA – para todos os
atos de manifestação de oposição ao regime; GERAL – para todas as vítimas dos atos de exceção e IRRESTRITA – sem
discriminações e exceções” (GRECO, 2003).
231
argumentos para não investigar torturadores, têm a ver com essa concepção de anistia
plantada politicamente em 1979. Esse seria um viés que revela a debilidade do movimento organizado e que, de alguma forma, os ganhos e avanços da época da anistia têm
hoje uma consequência complexa e, querendo ou não, a forma negociada com que se
deu o fim do regime militar tem seus rebatimentos nessa estratégia tomada. Ou seja, os
herdeiros do regime militar souberam bem utilizar a anistia, melhor do que o chamado
campo democrático e popular.
Porém, o regime militar enfraqueceu e, no início da década de 1980, os movimentos sociais estavam mais organizados. Entre eles: o Movimento Nacional de Direitos
Humanos, a Central Única dos Trabalhadores, várias articulações de grupos e movimentos de mulheres e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Mas, na lista de
articulações nacionais, consta um mais antigo: o Movimento Negro Unificado, que é de
1978. Além dessas organizações vale citar aquelas ligadas às igrejas: Comunidades Eclesiais de Base, Cáritas, Coordenadoria Ecumênica de Serviço, entre outras, com atuações
mais específicas e localizadas.
Foi um tempo de grande efervescência política em relação ao espaço da sociedade
civil, que se empoderou, fez grandes mobilizações como as “Diretas já”, forçou a criação de diversas instituições democráticas e, posteriormente, realizou fortes pressões na
elaboração da nova Constituição Federal. Os avanços democráticos no Brasil se devem
principalmente ao esforço nacional dos movimentos em torno da Constituinte.
Mas, nas décadas de 1980 e de 1990 não se falava claramente e nem de forma articulada sobre o que foi a ditadura militar. Apenas de forma eufórica se comemorava o
restabelecimento da democracia e o fim das arbitrariedades. Apenas uma legislação um
pouco mais forte marcou os anos 1990, a Lei que reconhece os mortos e os desaparecidos
políticos e que resultou do esforço dos familiares e de algumas vítimas que fizeram frente
ao regime militar.
Note-se que no período de forte atuação da sociedade civil, o tema da memória
e da verdade em relação aos anos de chumbo não foi pauta, ninguém comenta isso
como algo relevante, as iniciativas institucionais acontecem por iniciativa dos grupos
de familiares e vítimas da ditadura militar, ou seja, essa pauta não mobilizava e as
pessoas evitavam o assunto. Assim, ela ficou restrita às vítimas. Essa constatação leva a
alguns questionamentos: 1) por que a sociedade civil da época não tocava claramente
no assunto? 2) E, por que as vítimas deixaram isso acontecer? Talvez porque não
havia memória, talvez porque a geração de fato possuidora dessas informações não
as retransmitiu, talvez fosse um incômodo, talvez porque revelaria as fragilidades do
que foi a retomada da democracia e talvez, ainda, porque colocava a todos diante da
necessidade de tomar novas decisões.
Contudo, é fato que a questão foi mal resolvida e não há mesmo memória porque
a verdade não foi dita e nem transmitida, pois “um povo não pode lembrar o que a ele
não foi dito”.
232
Aqueles que lutaram contra o regime militar ou que de alguma maneira foram
perseguidos por suas posições, e seus familiares, seguiram firmes no propósito de fazer
o Estado brasileiro ao menos reconhecer e reparar os danos causados. Por isso, atuaram
firmemente na constituição das Comissões da anistia e na de mortos e desaparecidos
políticos. A primeira, criada em 2001, e a segunda, criada em 1995. Elas se tornaram
os espaços específicos por onde passou a discussão sobre as consequências do regime
militar. No entanto, o debate ficou restrito à questão financeira e aos benefícios similares, que tomaram boa parte da discussão política. A reparação econômica é necessária,
mas o que ficou latente e visível foram as controvérsias econômicas. Já as buscas pelos
desaparecidos caminharam muito pouco e os corpos identificados podem ser contados
nos dedos da mão.2
É bem verdade que foi junto a essas Comissões que os familiares de mortos e
desaparecidos políticos, e as vítimas sobreviventes, melhor se organizaram e conseguiram politizar, ainda que de forma localizada, o debate sobre a anistia e a ditadura
militar. Os grupos de anistiados e antistiandos se estruturaram e se multiplicaram em
vários Estados e, estrategicamente, construíram uma aliança política com a Comissão
de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM). Assim, foram
cobrando suas reparações e construindo um espaço anual de debate: o Seminário Nacional e Latinoamericano de Anistia. Os fóruns e comitês de familiares de mortos, de
desaparecidos e de ex presos políticos também passaram a atuar como protagonistas
visíveis, intervindo nacionalmente, seja nas Comissões de Anistia e de Mortos e Desaparecidos, seja constituindo casos exemplares para identificação e responsabilização
dos algozes da ditadura. Com isso houve a denúncia dos fatos históricos nacional e
internacionalmente. De outro lado, os recentes Grupos Tortura Nunca Mais que, focados no combate à tortura e na busca por responsabilização de torturadores da época
da ditadura militar, se proliferaram e começaram a multiplicar debates e eventos da
temática do regime militar.
2
O artigo 13 da Lei da Anistia previu que em 30 dias a partir da sua entrada em vigor, o presidente da República baixaria um decreto regulamentando os detalhes da lei. Contudo, somente em 2002 o Congresso Nacional converteu uma
medida provisória que tratava do regime do anistiado político na Lei 10.559/02. A partir de então, foi dado o direito
aos anistiados ou às suas famílias (no caso dos mortos) à reparação econômica a título de indenização, paga pelo
Tesouro Nacional, em parcela única, ou mensal. Além disso, os anistiados que tiveram de se afastar do desempenho
das funções profissionais por motivos políticos puderam ter esse tempo, em que não prestaram serviço, contado para
o recebimento de benefícios, sem que se exigisse recolhimento previdenciário. Abriu-se, também, a possibilidade de
aquelas pessoas que se graduaram durante o período que estiveram no exterior terem seus diplomas reconhecidos no
Brasil. Por outro lado, quem parou de estudar por conta das perseguições ocorridas durante o militarismo, teve a garantia de retornar às escolas e universidades públicas com prioridade, ou receberam bolsas de estudo no caso de cursos em escolas privadas. Fonte: Centro de Documentação Eremias Delizoicov (CEDED) foi organizado pelo Instituto
de Estudos sobre a Violência do Estado (IEVE) a partir do vasto acervo documental coletado durante vários anos pela
Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil na busca por informações, esclarecimentos e
justiça. A criação deste centro foi proposta pelos familiares de Eremias, vítima da ditadura militar. “Indenizados” com
base na Lei 9.140/95, que estabelece as condições para a reparação moral das pessoas mortas por motivos políticos,
bem como a indenização financeira dos seus familiares, os pais optaram por fazer uso público da maior parte da verba
recebida pelo Estado, que reconheceu e assumiu a sua responsabilidade pela morte, troca de identidade e desaparecimento dos restos mortais de Eremias.
233
No caso do MNDH, mesmo que o tema tenha sido um dos eixos centrais para sua
fundação em 1982, suas frentes de lutas visíveis não tinham essa prioridade. Iniciou sua
atuação com o combate à violência, à impunidade, às arbitrariedades, à tortura, sem, contudo, estabelecer uma ligação com os horrores do que foi a ditadura militar. Seu olhar sempre
foi o presente, a denúncia, com olhos no futuro. Neste sentido, o MNDH também tem sua
parcela de responsabilidade pelos equívocos políticos cometidos no campo da sociedade
civil. O tema só veio a ganhar força estratégica e a compor o conjunto de sua agenda no
Encontro Nacional de 2006, que aprovou como indicativo a questão, para ser alvo de ações
e projetos concretos. Assim, em 2007, o Movimento realizou o Seminário Nacional pelo
Direito à Memória e à Verdade, em parceria com o NEP/UnB e a CESE, publicando uma
cartilha popular intitulada Uma história por contar... pelo direito humano à memória e à verdade no Brasil, na qual propôs o tema de uma Comissão da Verdade.3 Na ocasião também
elaborou materiais para uma Campanha Nacional. No ano seguinte, em 2008, o movimento
realizou 09 oficinas regionais para preparar e orientar a militância para o Encontro Nacional de Vitória, ES. A partir dele é que se seguiu a estratégia de levar o debate para dentro
das Conferências Estaduais de Direitos Humanos que levariam à Conferência Nacional. A
discussão se ampliou e várias outras organizações apostaram na temática. Assim, o direito à
memória e à verdade passou a ser um dos eixos estruturantes da 11ª Conferência Nacional
de Direitos Humanos, realizada em dezembro de 2008, sendo que um representante do
MNDH atuou como relator e, por conseguinte, este passou a ser um dos eixos do terceiro
Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), publicado em dezembro de 2009.
Uma aliança importante foi construída entre os fóruns de familiares de mortos e desaparecidos e ex presos políticos, o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, e uma ONG
internacional, o CEJIL, junto ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos a Guerrilha
do Araguaia, na denúncia reclamou-se pelos corpos dos militantes que nela atuaram e não
foram encontrados. Essa reclamação internacional repercutiu no Brasil e na comunidade
internacional, o Estado Brasileiro passou a ser cobrado por uma resposta concreta.4
3 Comissão da Verdade. Desde 1974, foram criadas mais de 20 comissões da verdade em vários países. As experiências mais
significativas na América Latina foram: na Argentina (1983-1985), no Chile (1990), em El Salvador (1992), na Guatemala
(1999), no Peru (2000). Uma Comissão de Verdade é um órgão de caráter ético, histórico, e não jurisdicional, que possui
a função de revelar uma verdade negada ou não reconhecida. Também é objetivo da Comissão da Verdade dignificar
as vítimas e permitir-lhes dar a conhecer suas histórias. Atua sobre um período histórico delimitado ou um episódio.
São atribuições de uma Comissão da Verdade, em geral: 1) realizar análise de casos; 2) sistematizar o relato de fatos; 3)
recomendar formas de reparação e medidas de prevenção para não repetição dos fatos identificados como violações. A
Composição de uma Comissão de Verdade é feita de pessoas nas quais a sociedade acredita. Funda-se em alta credibilidade pública. Para cumprir bem suas atribuições, deve garantir a participação dos vários agentes envolvidos nos fatos que lhe
cabe apurar. Isto porque, a participação social é importante em todo processo de revelação e reconhecimento da verdade.
As comissões da verdade tratam o passado como elemento para um novo começo (André Du Toit) (MNDH, 2007).
4 Em agosto de 1995, o Centro de Estudos para a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e a Human Rights Watch/
América (HRWA), em nome de um grupo de familiares, apresentaram petição à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH), denunciando o desaparecimento de integrantes da “Guerrilha do Araguaia”. Em 31 de outubro de
2008, a CIDH expediu o Relatório de Mérito nº 91/08, onde fez recomendações ao Estado brasileiro. Em 26 de março
de 2009, a CIDH submeteu o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, requerendo declaração de responsabilidade do Estado brasileiro sobre violações de Direitos Humanos ocorridas durante as operações de repressão àquele
movimento (BRASIL, PNDH-3, 2009).
234
A denúncia no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, junto à Organização
dos Estados Americanos (OEA), somente foi possível porque familiares das vítimas da
Guerrilha do Araguaia denunciaram formalmente os fatos à Justiça brasileira em 1982.
Por não terem obtido retorno, houve a possibilidade de fazer apelo à jurisdição internacional dos Direitos Humanos. Graças à decisão favorável da Corte Interamericana de
Direitos Humanos da OEA, em 2008, o Processo nº 820024682-5, que iniciou em 1982
na 1ª. Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal conseguiu tramitar e houve sentença
favorável aos familiares em 2011. Essas duas decisões, da Corte de Direitos Humanos
da OEA, e da Justiça brasileira foram imprescindíveis para que o tema tomasse parte do
PNDH-3, mas também possibilitou a criação de um grupo de trabalho para procurar os
corpos dos mortos na Guerrilha do Araguaia, bem como engrossou o debate no Poder
Legislativo, nos meios acadêmicos e em segmentos específicos.
Também há que reconhecer que os fatos ocorridos nos países vizinhos deram uma
sacudida aqui no Brasil. Países como Argentina, Uruguai e Chile caminharam mais no
tocante à questão da memória, verdade e justiça do que o Brasil. A sociedade civil nestes
países tem conseguido construir estratégias muito mais eficazes do que a sociedade civil
brasileira. O tema memória, verdade e justiça tornou-se amplo, uma agenda que mobiliza.
No entanto, mesmo diante de importantes feitos e ganhos institucionais impulsionados pela sociedade civil organizada, a temática não ganhou a amplitude desejada, ela ainda
é algo de grupos, está refém de uma imprensa que joga sorrateiramente com a questão.
Ou seja, a sociedade sequer sabe do que se trata. Por isso, é perceptível a forma negociada,
cheia de concessões e cuidados com que o governo lida e encaminha uma das principais
ações do Direito à Memória e à Verdade: a Comissão da verdade. E, por que aqui o tema
não passou das opiniões controvertidas da imprensa, e de debates pontuais, fragmentados
em algumas organizações? Como então fazer a temática chegar à população ou ao menos
ampliar-se junto aos formadores de opinião? Esses são pontos sintomáticos e que ao mesmo
tempo têm ligação direta com o passado mal resolvido. O questionamento se apresenta ainda como um grande desafio na atualidade para o chamado campo democrático e popular.
3. A Comissão da Verdade
A Comissão da Verdade agora é concreta, pelo menos se tornou uma Lei. Mas o que
será afinal essa Comissão da Verdade? Alguns especialistas e formadores de opinião a designam como espaço de construção da verdade sobre o período da ditadura militar brasileira. Por outro lado também é considerada como oportunidade para desconstruir algumas
inverdades muito repetidas. Há quem afirme que este será um espaço de disputa de ideias e
de interpretações do que foi a ditadura militar, e que este poderá se constituir numa oportunidade de mobilização social para criar políticas públicas e ações voltadas para o tema.
235
Mas é também evidente que pelas concessões e acordos produzidos para aprovação
da Lei, muitos limites e recuos podem ocorrer. Daí a necessidade da sociedade civil procurar se aglutinar e, mais que isso, procurar construir consensos, propostas e estratégias
comuns aptas a fazer frente à disputa que se instalará na Comissão da Verdade que virá.
Há inúmeros questionamentos e discordâncias no que diz respeito ao texto da Lei
que criou a Comissão da Verdade. Mas o que ela de fato será é o processo e a mobilização
social que determinará. Não importa se ela será de dois anos ou se serão apenas sete membros. Inclusive seu defeito principal, que não prevê a possibilidade de Justiça, pode ser revertido e abrir novas perspectivas de luta, porque a verdade tem uma força reconstrutora,
uma força de ruptura. No entanto, para isso é preciso aglutinação do campo democrático
popular, fazer pressão organizada na sociedade para construir uma disputa transparente
e ao mesmo tempo fiscalizar, acompanhar e demarcar esta disputa dentro da Comissão.
No caso da Argentina, a Comissão Nacional de Desaparecidos Políticos (CONADEP) desde sua criação, em 1984, foi alvo de divergências e produziu posições contrárias
no âmbito das organizações de Direitos Humanos. Um grupo de entidades decidiu por
integrar a CONADEP ou mesmo colaborar ainda que diante de um governo com posições ambíguas, fazendo disputas por dentro; já outras, como as Mães da Praça de Maio,
formaram questionamentos e saíram para mobilizações.
Apesar disso, e das incompatíveis posições nesse campo, havia um clima aglutinador
massivo, uma força encabeçada por personalidades, igrejas, estudantes, intelectuais e vítimas.
Havia um sentimento simbólico que mobilizava. Foi justamente esse caráter mobilizador que
levou aos poucos as vítimas a procurarem a CONADEP e as posições contrárias também aos
poucos começaram a ser vencidas porque era preciso que a sociedade civil dialogasse.
As posições acerca da verdade e a reclamação por justiça, permaneceram e se fortaleceram. As posições contrárias e toda pluralidade dos Movimentos Sociais também
permaneceu. Porém, no processo foi se construindo uma ideia comum, a de um inimigo comum, os grupos dominantes. De sorte que a diversidade dos movimentos sociais
possibilitou avançar em várias frentes distintas e, na atualidade, a Argentina vive seu
momento de Justiça. Ou seja, no caso brasileiro parece que o campo diverso e plural da
sociedade civil terá que buscar e encontrar seu papel e sua especialidade, onde mesmo
cada organização tem condições, acúmulo e força pra colaborar na mobilização social
tão necessária nesta etapa da Comissão da Verdade.
É preciso agora avançar, dar novos passos e ir à busca de responder a várias perguntas
ainda sem resposta: 1) quem estava desconforme com a fagulha de democracia que parecia surgir no Brasil? 2) E por que aquela fagulha de democracia assombrou tanto, a ponto
de caçar um governo legitimamente eleito? 3) E quem caçou esse governo porque achava
estar salvando o país? 4) Quem pode dizer o que é bom e mau para um país? 5) Quem e
onde estão os que rasgaram a democracia? 6) Onde foram parar os arquivos da ditadura
que rasgou a democracia? 7) Eles foram destruídos? 8) Se foram, por que foram destruídos? 9) Quem estava com a guarda desses documentos? 10) Será que conseguimos mesmo
construir um Estado Democrático, como tão bem delineou a Constituição de 1988?
236
Para concluir, sem encerrar
É preciso querer a verdade ainda que neste momento não haja no horizonte uma
ponta de alcance da Justiça. Contudo, querer a verdade, e atuar para que ela de fato se
estabeleça, é o grande desafio posto. Não lutar por isso é um grande risco de recuos, de
mais uma vez os militares e todos os setores conservadores saírem justificados e perdoados. Uma Comissão da Verdade requererá seu controle externo para garantir que
contribua com a construção de uma nova consciência pública, para que ela tenha de fato
um caráter ético e histórico e cumpra sua tarefa de restabelecer a verdade negada ou não
reconhecida.
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cfm?blog_id=1&post_id=825>. Acesso em: 04 dez. 2011.
237
LIBERDADE DE EXPRESSÃO, CULTO E RELIGIÃO
Rafael Soares de Oliveira*
Jorge Atilio Silva Lulianelli**
Proêmio
O povo brasileiro tem, conforme Sérgio Buarque de Holanda, a cordialidade como característica, além de ser detentor de uma democracia racial, nas palavras de Gilberto Freyre.
Em que pesem as distorções na compreensão dessas interpretações, o fato básico é que serviram à construção da ideologia da harmoniosa sociedade brasileira, encobrindo o conjunto
de violações de direitos e violência que atravessa a história do Brasil. Um capítulo significativamente esquecido dessa história é o da intolerância religiosa. Somente com a instauração
do regime republicano é que o Brasil teve a liberdade religiosa legalmente reconhecida.
No final do século XIX, isso incluía apenas o reconhecimento da existência das
diferentes versões do Cristianismo. Foram questões como o direito ao acesso aos cemitérios, aos casamentos civis e à escolarização que criaram a necessidade de revisão
do regime imperial do padroado. Todo o processo de colonização teve a hegemonia da
Igreja Católica Apostólica Romana.
Como esta instituição fez parte do processo colonizador, participou das ações de dizimação das religiões e culturas indígenas. A escravidão trouxe de forma compulsória diferentes tradições culturais e religiosas africanas. Elas, também, não foram respeitadas em
sua dignidade, e estiveram banidas da cidadania, assumidas como religiões minoritárias.
* Secretário Executivo de KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço, doutor em Antropologia.
** Coordenador de Programas Socioeducativos em KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço, Doutor em Filosofia,
Professor do PPGF da Universidade Gama Filho, RJ.
239
A partir do regime republicano, com o processo migratório, a presença de diferentes
povos, culturas e religiões tornou a questão do pluralismo religioso ainda mais concreto
no cotidiano. Porém, a hegemonia religiosa da Igreja Apostólica Católica Romana permanecia. Durante esse século da República manteve-se a perseguição policial às religiões de
matriz africana, a tutela estatal das populações indígenas a partir da década de 1940, o desrespeito às demais igrejas cristãs (que tiveram vários direitos negados, desde a arquitetura
templária até as isenções fiscais). Após a ditadura militar, que durou de 1964 à 1985, com
os processos de redemocratização e a elaboração da Constituição Federal de 1988, é que a
diversidade religiosa passou a ser tratada legalmente como um valor da nação brasileira.
Conquanto o Brasil seja signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
de 1948, que em seu artigo 18 consagra o direito à liberdade de pensamento e de crença, e o direito de mudar de religião, apenas a Constituição Federal de 1988 reconhece
a obrigação do Estado brasileiro em relação aos tratados e pactos internacionais. Com
relação ao direito de liberdade de expressão e de crença, no Art. 5º da Constituição Federal de 1988, se reconhece o direito à liberdade de consciência e de crença, a garantia
de prestação de serviços religiosos em entidades civis e militares de internação coletiva,
bem como a garantia a não discriminação baseada em crenças religiosas.
Além disso, o Art. 19 veda aos Estados, Municípios e União o estabelecimento de
cultos religiosos ou igrejas, assegurando a plena laicidade do Estado. O Art. 150 assegura
a isenção fiscal para as religiões, o Art. 210 afirma a normatização do ensino religioso
como matéria facultativa nos estabelecimentos escolares; e o art. 226 reconhece o efeito
civil de casamentos religiosos.
No entanto, apesar das previsões constitucionais, os casos de intolerância religiosa
não têm diminuído. A ação do Estado brasileiro ainda é tímida em relação ao fenômeno,
que consiste em violência física e simbólica fundamentada em intolerância religiosa.
As principais vítimas têm sido as pessoas praticantes das religiões de matriz africana, e
os principais atores de violações são agentes do Estado, praticantes de religiões cristãs,
em especial os neopentecostais. Trata-se de fenômeno recorrente, que já foi objeto de
iniciativas do Estado e da Sociedade Civil para a reparação de violação de direitos, sem,
no entanto, ter alcançado, ainda, os fins desejados.
O processo de modernização conservadora, que aprofundou a desigualdade social,
também consagrou: 1) as culturas de apartação cultural, dentre as quais a da intolerância
religiosa; 2) o fortalecimento de uma determinada agremiação religiosa em relação às
demais; e 3) diferentes mecanismos por meio dos quais não têm prevalecido nem a laicidade do Estado, nem a igual consideração legal do pluralismo religioso.
É ainda um desafio para a sociedade brasileira construir uma cultura do diálogo interreligioso no plano das interações religiosas. A cultura da tolerância religiosa, no plano
das relações do Estado e da sociedade secular com os atores do pluralismo religioso também está por se construir. Essa cultura política é uma necessidade para a consolidação
do Estado democrático de direito.
240
1. Diagnóstico
Conforme a relatoria do direito humano à educação, em 2010, houve um aumento
da violência relacionada à intolerância religiosa nos estabelecimentos de ensino. Naquele ano a Sociedade Civil brasileira, por meio do relatório paralelo sobre os Dhesca, também informou a violação ao direito da liberdade religiosa, em especial no sistema público de ensino. Como recomendação, tendo em vista a laicidade do Estado, propunha-se
a revogação do ensino religioso na Constituição Federal. Propunha ainda um Plano Nacional de Combate à Intolerância Religiosa e a implantação de comissões estaduais que
lidassem com o tema. Em relação ao sistema educacional, especificamente, dentre outras
medidas, recomendava a criação de um protocolo de denúncia. Em relação ao ensino
religioso na rede pública oferecia uma série de recomendações para a exclusão dessa
disciplina e revogação do Acordo entre o Estado Brasileiro e a Santa Sé, que entre outras
reciprocidades incluía a manutenção de ensino religioso como obrigação do Estado.
Contata-se que há maior reconhecimento da diversidade religiosa no Brasil. O censo de 2010, realizado e divulgado pelo IBGE, mostrou a redução do número de pessoas
que se afirmam católicas (2000, 73,8%; 2010, 70%), um ligeiro aumento daquelas que se
afirmam pentecostais e um aumento daquelas que se afirmam sem religião (para ambos
1% de crescimento entre 2000 e 2010). Neste quadro, pareceria bastante razoável admitir uma melhor convivência entre as diferentes religiões, tendo em vista que o projeto
colonizador encerrou-se há muito tempo, e que os projetos políticos, de certa forma,
independem da convicção religiosa dos cidadãos.
Porém, a sociabilidade necessita do solo das comunidades religiosas como elemento de integração, constituição da identidade pessoal (personalidade) e significação para
a existência. Neste sentido, como bem percebeu Pierre Bourdieu, o campo religioso se
configura como um espaço de disputa de sentidos, no qual o mercado religioso é um dos
elementos constituintes da disputa por significados na vida social.
Com efeito, o período entre 2009 e 2011 permite notar diferentes casos de violação
de direitos relativos à diversidade religiosa. Este fenômeno passou a ser observado publicamente, pela sociedade civil. A criação do dia nacional de luta contra a intolerância religiosa, durante o último mandato do presidente Lula (Lei nº 11.065/2007), demonstra esta
percepção. Esse dia se referenda num caso exemplar de intolerância ente a Igreja Universal
do Reino de Deus e uma sacerdotisa de religião de matriz africana. O caso emblemático da
Yalorixá Gilda, do terreiro Yle Axé Abassá de Ogum, morta por infarto após uso indevido
de sua imagem pelo veículo de comunicação da Igreja Universal do Reino de Deus, indica
essa tensão e nova perspectiva inaugurada, também, pelo Estado brasileiro.
Entretanto, o Estado permaneceu como agente violador do direito de liberdade e de
crença religiosa, apesar de ter avançado em acordos que, ao menos, levantam questionamentos sobre a laicidade do Estado.
241
O Estado criou, também, em nível federal, no ano de 2011, o Comitê da Diversidade
Religiosa, vinculado à Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Esta foi uma iniciativa do
governo federal para pensar o tema da superação da intolerância religiosa no âmbito próprio, a saber, no campo dos direitos humanos. A consciência social em relação à intolerância religiosa tem crescido na sociedade brasileira. Em especial, se destaca uma maior cobertura da mídia, que mostra a discriminação religiosa dirigida às religiões de matriz africana.
Consuma-se o racismo à brasileira, fortalecendo os mecanismos de discriminação
racial impregnados em nossa cultura e tradições. Não obstante, essa violação de direito
ocorre contra diferentes religiões, são alvos comuns Testemunhas de Jeová, Ciganos,
além das religiões de matriz africana. Há, também, tensões entre grupos cristãos, em
especial entre os grupos tradicionais e os neopentecostais, permanecendo, em geral, nos
limites das agressões verbais.
Uma catalogação de casos de violência baseada em intolerância religiosa pode ser
acompanhada por meio do dossiê intolerância religiosa, elaborado por KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço. Há outras catalogações realizadas pelo movimento Eu tenho
fé, sobretudo no Rio de Janeiro, e o Mapa da Intolerância Religiosa, também disponíveis
na Internet. Essa interface midiática é um reflexo das mobilizações sociais que cresceram
a partir de 2005, fazendo com que o tema da diversidade religiosa e da intolerância religiosa seja percebido como direito humano e violação de direito, respectivamente.
Nos últimos três anos ocorreram várias ações de violações do direito de liberdade
de consciência e de crença, como pode ser verificado nos seguintes exemplos:
2. Ações de violação de direito perpetradas por agentes do Estado
a) Prefeita de São Gonçalo (RJ) se recusa a desapropriar locação do primeiro templo de Umbanda do estado do Rio de Janeiro, no bairro de Neves (KOINONIA, 2011);
b) No Sergipe, município de N.S. do Socorro, terreiro é judicialmente fechado sob
acusação de incomodar morador por excesso de barulho (KOINONIA, 2011);
c) Em Salvador, Babalorixá é agredido por guardas municipais que o desrespeitaram como sacerdote e o agrediram homofobicamente (KOINONIA, 2011);
d) No Rio de Janeiro, professora expulsa aluno de sala de aula com acusação de
possessão demoníaca, por ter usado um cordão típico de adeptos de religiões de matriz
africana (KOINONIA, 2009);
e) No Estado de Alagoas, houve a permissão de transfusão de sangue a uma jovem
Testemunha de Jeová, que estava em coma, independentemente do consentimento dos
familiares; (KOINONIA, 2009);
f) Em Maceió, polícia militar invade terreiros, interrompe ações sagradas e ameaça
confiscar instrumentos sagrados (KOINONIA, 2009);
242
f) No Rio de Janeiro, aluno é reprovado devido à discriminação fundada em intolerância religiosa, pela professora de português, que o chamou de filho do diabo por usar
colar típico de adeptos das religiões de matriz africana (KOINONIA, 2008).
3. Ações de violação de direito perpetradas por agentes do mercado
a) No Mato Grosso do Sul, ex testemunha de Jeová é excluída de contratação numa
ótica, vindo a ser indenizada por isso (GLOBO.COM, 2011);
b) No Rio de Janeiro, trabalhador é agredido verbalmente pela chefia imediata, por
ser candomblecista, (EU TENHO FÉ, 2011);
c) No Rio de Janeiro, empregada doméstica é demitida após ter reconhecida sua
adesão às religiões de matriz africana, (KOINONIA, 2009).
4. Ações de violação perpetradas entre cidadãos religiosos
a) Em São Paulo, uma mulher destruiu uma imagem da igreja católica e rasgou o
manto da santa com os dentes (KOINONIA, 2011);
b) No Rio Grande do Sul, dois jovens são espancados após fazer ato religioso com
oferendas a Iemanjá, quatro homens os insultaram e os espancaram (KOINONIA, 2011);
c) Em São Paulo, grupos neonazistas fazem propaganda contra judeus, homossexuais e nordestinos (KOINONIA, 2009).
5. Questões problemáticas
No Brasil, a intolerância religiosa se expressa por meio da violência física e psicológica, chegando a alguns casos de homicídio. Em várias cidades do país, em especial em
Salvador e no Rio de Janeiro, há denúncias de haver traficantes, convertidos às igrejas
neopentecostais, que impõem a remoção de espaços religiosos das religiões de matriz
africana (terreiros). Com efeito, o principal alvo da intolerância são as religiões de matriz
africana. Porém, o islamismo, as religiões orientais, os ciganos e as religiões indígenas
são também objetos do ódio. O universo religioso brasileiro possui diferentes níveis de
agressividade e de intolerância por parte da mídia e constitui as formas de sociabilidade.
243
Há, também, resquícios do regime de Padroado, como é o caso do Acordo firmado
entre o governo brasileiro e a Santa Sé, em 2008. No marco deste acordo se afirma que
o ensino religioso seria católico e confessional. O que está em claro desacordo com o
espírito da Constituição Federal de 1988, bem como com o Art. 23 da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação (Lei nº 9.394/1996). Além disso, muito embora se tenha avançado em
relação ao reconhecimento da diversidade religiosa em estabelecimentos de internação,
civis e militares, públicos e privados, a regulamentação ainda é precária e a discriminação, sobretudo aos adeptos de religião de matriz africana, muito elevada.
6. Medidas governamentais
Após a Constituição Federal de 1988, que assegura o direito à liberdade de consciência e de religião, o poder legislativo tem buscado regulamentar esse direito. Dentre
a legislação produzida destaca-se a Lei nº 7.716/19889, com as modificações da Lei nº
9.459/1997, que traz sanções para atos de discriminação e preconceito de raça, cor, etnia,
religião ou procedência nacional. Ademais há outras medidas tomadas pela União, Estados e Municípios buscando fazer valer esse direito. No entanto, como observamos pelas
informações supracitadas, essa ação governamental ainda é parcial e tímida.
No ano de 2001, em preparação à Conferência de Durban, sobre o combate ao racismo e outras formas de intolerância e de discriminação, o governo brasileiro elaborou
um relatório sobre o tema, no qual dedicava reflexão sobre as diversas formas de intolerância religiosa persistentes na cultura e nas práticas sociais brasileiras (OLIVEIRA
SILVA, 2011). E uma comissão especial sobre liberdade religiosa elaborou uma proposta,
um plano nacional de combate ao racismo e à intolerância (SEDH, 2001).
Em 2004, a SEDH publicou a Cartilha da diversidade religiosa. Foi uma iniciativa
que contou, dentre outros apoios, com a participação do Conselho Nacional de Igrejas
Cristãs. Na ótica do combate ao racismo foi assumida uma das proposições da Carta do
Rio (SEDH, 2001) que incentivava a inclusão do tema da história e da tradição africana
no currículo escolar (Lei 10639/03). Tanto o Ensino Religioso, como o serviço de capelania contam com regulamentação legal. Porém, como vimos acima, as práticas de ensino
religioso e de capelania consumam a discriminação e o preconceito, mais que favorecem
a integração sócio religiosa e superação da intolerância.
Entre os anos de 2004 e 2006 houve um conjunto de ações no âmbito da Secretaria Especial de Direitos Humanos para fortalecer iniciativas com vistas à superação da
intolerância religiosa. Foram elaborados fóruns da diversidade religiosa, sempre promovidos pela SEDH. Em 2007, isso culminou com a proposta de uma Frente Parlamentar
pela Liberdade Religiosa. Como já mencionamos acima, houve o decreto presidencial,
em 2007, que promulgou o dia nacional contra a intolerância religiosa. Em 21 de janeiro
244
de 2008, o Brasil celebrou pela primeira vez este dia, que coincide com o dia mundial da
religião. Em 2010, no âmbito da SEDH/PR, é criado o Centro de Referência de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos para a Diversidade Religiosa, coordenado pela ONG
União Planetária.
Na construção do terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (Dec. nº 7037/2009)
foi dedicada, ainda que minimamente, atenção ao tema da diversidade religiosa e superação da intolerância religiosa. No terceiro eixo, cuida de universalizar direitos em um contexto de desigualdade, e no décimo eixo, aborda a questão da diversidade religiosa, como
objetivo estratégico. Nele se propõe a criação de condições do livre exercício das práticas
religiosas, da promoção de campanhas sobre a diversidade religiosa para disseminar a
cultura de paz, da efetivação do ensino sobre as tradições culturais e religiosas, e da aplicação de censos que incluam a diversidade religiosa, com identificação de praticantes e não
praticantes. No ano de 2011, o governo federal instalou o Comitê da Diversidade Religiosa,
aos 30/11/2011, no âmbito da Secretaria Nacional de Direitos Humanos.
No âmbito dos estados tem se configurado comitês de combate à intolerância religiosa, como no estado do Rio de Janeiro. Vários estados têm estabelecido, em diálogo
com suas secretarias de direitos humanos, fóruns que tratam da diversidade religiosa,
bem como entre outras secretarias, como no caso do estado de São Paulo, que estabeleceu tal fórum na secretaria de saúde. Há também iniciativas no âmbito das forças armadas de criação de capelanias, também, para as religiões de matriz africana, seguindo uma
tendência inaugurada pela Polícia Militar da Bahia. A maioria dessas iniciativas ocorreu
a partir de 2010. Cabe notar que, não obstante as iniciativas governamentais em curso,
não houve uma diminuição da intolerância religiosa praticada na sociedade brasileira.
Ao contrário, pesquisas indicam que passamos de 42 processos baseados em intolerância religiosa, para milhares de processos a partir de 1996.
7. Recomendações
Em termos gerais, devemos reconhecer que há um duplo avanço. Por parte da Sociedade Civil, há maior reconhecimento da diversidade religiosa no Brasil. Isto tem provocado maior sensibilidade, contrária às práticas de intolerância religiosa, que passam a
ser observadas como contrárias aos direitos humanos. Em relação ao Estado brasileiro
há maior abertura para modificar a prática cultural que tende ao regime de padroado,
bem como a ter maior reconhecimento do papel do Estado laico na garantia do direito
à liberdade de pensamento e crença. Com isso promove-se o reconhecimento da
diversidade religiosa e inibi-se as práticas que violam este direito. Para aperfeiçoar
essas iniciativas, recomendamos que sejam tomadas as seguintes providências:
245
a) Implementação do PNDH-3, em toda a sua extensão, em especial no que se
refere às questões relativas à promoção do conhecimento da diversidade religiosa, e contenção das práticas de intolerância religiosa;
b) Implementação das medidas contidas no Estatuto da Igualdade Racial, com o
fito de eliminar as formas de discriminação e preconceito contra as populações afrodescendentes;
c) Criação de protocolo para a apresentação de denúncias contra práticas de intolerância religiosa nos diferentes âmbitos, em especial nas unidades escolares;
d) Formação de gestores educacionais, agentes policiais, operadores do direito para
práticas respeitosas com relação à diversidade religiosa e o combate efetivo contra as
práticas de intolerância religiosa;
e) Revisão do Acordo firmado entre o Brasil e a Santa Sé, com especial foco na revogação de itens contra o espírito da CF 1988;
f) Promoção da criação, no âmbito dos estados, dos Centros de Referência da Promoção e da Defesa dos Direitos Humanos para a Diversidade Religiosa, bem como de
Comissões de Combate à Intolerância Religiosa, que devem ser paritárias, com participação das secretarias de estado, organizações religiosas e ONGs afins;
g) Divulgação da Cartilha e do Vídeo sobre a Diversidade Religiosa, em especial
nas unidades escolares.
Referências bibliográficas
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246
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OLIVEIRA SILVA, Tássia Fernanda de. Questões étnico-raciais e currículo: uma
abordagem reflexiva. In: Gepiadde, Itabaiana, v. 5, n. 9, jan./jun. 2011. Disponível em:
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INTOLERÂNCIA RELIGIOSA: <http://intoleranciareligiosadossie.blogspot.com/>.
MAPA DA INTOLER:ANCIA: <www.mapadaintolerancia.com.br/>.
EU TENHO FÉ: <www.eutenhofe.org.br/>.
247
DIREITOS SEXUAIS E DIREITOS REPRODUTIVOS NO BRASIL
Maria Luísa Pereira de Oliveira*
O presente documento busca caracterizar o contexto referente aos direitos sexuais
e direitos reprodutivos das mulheres brasileiras durante o período de tempo compreendido entre os anos de 2006-2011. Trata-se de contribuição obtida através da pesquisa de
documentos e estudos realizados por diferentes instâncias do movimento de mulheres
e feminista e publicações acadêmicas desse campo de direitos. A sistematização foi elaborada pela Rede Feminista de Saúde, especialmente para este relatório periódico, considerando reforçar os princípios da indivisibilidade, integralidadede e interdependencia
entre os direitos humanos, já firmados na Conferência Mundial de Direitos Humanos,
Viena, 1993 e reafirmando que a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos é imprescindível para garantir o necessário e efetivo cumprimento de todos os direitos preconizados
nos diferentes tratados internacionais e na legislação brasileira.
O texto procura enfocar os principais aspectos da saúde sexual e reprodutiva que impactam a vida e a saúde das mulheres. O fenômeno da violência contra as mulheres também
foi abordado em função de sua interface direta com a saúde sexual e reprodutiva através da
estreita relação com a violência sexual e com os efeitos causados pela violência na saúde.
O final da década de 2000 caracterizou-se por uma conjuntura nacional, e também regional, a nível de América Latina, de grave ameaça de retrocesso nos avanços
conquistados quanto à saúde sexual e reprodutiva das mulheres e de um incremento de
práticas discriminatórias com base no pertencimento racial que afetam negativamente
*
Psicóloga e mestra em Saúde Coletiva, secretária adjunta da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos.
249
e sobremaneira a saúde e a vida das mulheres brasileiras. Tal situação se instalou apesar
de os direitos humanos das mulheres estarem afirmados desde a inauguração do ciclo de
conferências da ONU, da década de 1990, e os direitos sexuais e reprodutivos reconhecidos na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), Cairo,
em 94, que distinguiu o aborto inseguro como grave problema de saúde pública, e
na Conferência Mundial sobre a Mulher, Beijing em 95, que confirmou e ampliou as
decisões de Cairo, ao recomendar aos países a revisão das legislações punitivas à prática
do aborto e a adoção de mecanismos para reduzi-la. Após a realização das Conferências,
processos de monitoramento se seguiram para avaliação e acompanhamento de seus
planos de ação. O Estado Brasileiro ratificou os principais tratados internacionais de direitos humanos no âmbito das Nações Unidas e do Sistema Interamericano de Proteção
dos Direitos Humanos que podem ser aplicados para o contexto dos direitos das mulheres. Entre eles, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a
Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, a
Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, a Convenção sobre a Tortura, a Convenção Americana de Direitos Humanos, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, a Convenção
Interamericana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais – Protocolo San Salvador. (ARAUJO; SIMONETTI, 2010).
O cenário de ameaça à direitos já conquistados se opõe ao contexto nacional imediatamente anterior quando vinham sendo construídas, com a participação propositiva e de
protagonismo das mulheres organizadas, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde
da Mulher (2004) e a Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (2005).
O lançamento dessas políticas representou a coroação de um processo iniciado com a luta
pela implementação do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher, verdadeiro marco
histórico que rompeu com a perspectiva reducionista que caracterizava as políticas de saúde
para as mulheres limitadas ao período gravídico-puerperal, desconsiderando a maior parte
da vida das mulheres. O Estado brasileiro já identificou, através da Área Técnica de Saúde
da Mulher do Ministério da Saúde, a necessidade de articulação com outras áreas e da proposição de novas ações como atenção às mulheres rurais, com deficiência, mulheres negras,
indígenas, presidiárias e lésbicas e a participação nas discussões e atividades sobre saúde da
mulher e meio ambiente.
Direitos reprodutivos ainda um desafio a ser conquistado
Os direitos reprodutivos referem-se a diferentes questões relacionadas aos direitos
e à saúde das mulheres. Neste tópico, serão enfocados apenas aspectos referentes à urgente necessidade de revisão da legislação punitiva do aborto que determina sua realização em condições inseguras e a morte materna dele decorrente. É preciso não perder de
250
vista que tudo que envolve a saúde sexual e reprodutiva possui inter-relação com o tema
da interrupção voluntária da gestação e é fundamental para a integralidade dos direitos.
A Relatoria do Direito à Saúde Sexual e Reprodutiva, da Plataforma DhESCA Brasil, em seu documento Direitos Humanos Gênero e Raça (2010) aponta que o aborto inseguro é um grave problema de saúde pública nos países com menores índices de desenvolvimento econômico e maiores desigualdades nas oportunidades de educação, saúde,
acesso aos bens culturais e materiais, onde não se usufrue dos direitos humanos básicos,
requisitos essenciais para o exercício da cidadania. O aborto inseguro está estreitamente
associada ao predomínio de legislações mais restritivas às liberdades individuais em geral e, particularmente, à autonomia das mulheres e às liberdades sexuais e reprodutivas.
A maioria das mortes maternas por aborto ocorre em países onde a interrupção
da gestão é totalmente restrita e, por ser ilegal, representa um alto risco à vida e à saúde
física e mental das mulheres. Nos países onde o aborto é legal e serviços seguros estão
disponíveis, as mortes maternas diminuíram. Após a reforma da legislação sobre aborto
em algumas regiões sul-africanas, houve diminuição das mortes maternas num percentual de 90% (GALLI; HESSINE, 2006). No Brasil, constitui-se na 4a causa de mortes
maternas. Atinge desigualmente as regiões e as mulheres segundo grupos sociais, culturais e étnico-raciais, penaliza principalmente as mulheres jovens, negras e de pouca escolaridade, residentes nas regiões mais pobres do país (BRASIL, 2007). O Ministério da
Saúde aponta as curetagens pós-aborto como o segundo procedimento obstétrico mais
praticado nas unidades de internação do SUS, superadas apenas pelos partos normais.
Atualmente, o crescimento da economia brasileira, os avanços alcançados na redução dos índices de pobreza e os esforços para consolidar-se aos olhos do mundo como
país democrático, situam o Brasil entre as maiores economias mundiais. No entanto,
no que se refere aos indicadores de promoção da justiça e da cidadania das mulheres,
confunde-se com as nações mais pobres do mundo, alinhando-se com países que consideram crime a interrupção da gestação em quaisquer circunstâncias ou só permitem
em situações excepcionais. O Código Penal Brasileiro, que data de 1940, estabelece que
a interrupção voluntária da gravidez é crime, sendo possível apenas quando há risco de
morte da gestante e quando a gravidez resulta de estupro. Conforme Araujo e Simonetti
(2010) um aspecto revelador do caráter perverso da própria legislação é que “mesmo nas
duas situações em que não é punível, o aborto legal foi inacessível na rede pública até 1989,
assim transcorrido um período de mais de meio século entre o estabelecimento do direito e
a possibilidade de ser exercido em unidades de saúde pública”.
Além disso, a criminalização também dificulta o conhecimento do problema e da
sua dimensão, já que as mulheres estariam confessando um crime, ao revelarem ter provocado um aborto, expondo-se à criminalização e a atitudes preconceituosas e julgamentos morais. As autoras assinalam que o governo federal brasileiro vem tomando
medidas para redução da prática do aborto e das complicações e mortes decorrentes de
atos inseguros. Destacam-se a Política de Atenção Integral à Saúde da Mulher (2004), a
251
Política Nacional de Direitos Sexuais e Reprodutivos (2005), o Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal (2004) e as Normas Técnicas para a realização
do aborto nos casos de violência sexual e para atenção humanizada ao abortamento.
Reforçando e somando-se a estas iniciativas, as duas Conferências Nacionais de Políticas
para as Mulheres (2004, 2007) aprovaram a descriminalização e legalização do aborto e
recomendaram a criação pelo Governo Federal de uma Comissão Tripartite (Executivo,
Legislativo e Sociedade Civil) para revisar a legislação do aborto no país e propor as
bases para uma nova lei, mas o projeto de lei foi rejeitado e arquivado em 2008. A Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, em novembro de 2011, ratificou o que já
havia sido aprovado nas duas anteriores quanto à legalização da prática.
Recente pesquisa da Universidade de Brasília (UNB), em parceria com o Instituto
de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (ANIS), e financiada pelo Fundo Nacional de
Saúde, realizada em todos os Estados, revelou que a mulher que interrompe a gravidez é
casada, tem filhos, religião e pertence a todas as classes sociais. O estudo apura que uma
em cada sete brasileiras entre 18 e 39 anos já realizou ao menos um aborto na vida, o
equivalente a uma multidão de 5 milhões de mulheres. Conforme a pesquisa, entre 35 e
39 anos a proporção é ainda maior: uma em cada cinco mulheres já fez um aborto. Os
resultados referem-se a mulheres que fizeram aborto, e não a abortos, porque uma mesma mulher pode abortar mais de uma vez. As conclusões gerais mostram também que
a religião não é um fator importante para a diferenciação das mulheres no que se refere
à realização do aborto. Refletindo a composição religiosa do país, a maioria dos abortos
foi feita por católicas, seguidas de protestantes e evangélicas e, finalmente, por mulheres
de outras religiões ou sem religião. O uso de medicamentos para a indução do último
aborto ocorreu em metade dos casos estando a outra metade das mulheres expostas a
condições precárias de saúde. Não surpreende que os níveis de internação pós-aborto
contabilizados pela Pesquisa Nacional do Aborto sejam elevados, ocorrendo em quase
50% dos casos. Em fim, a pesquisa demonstra que, inegavelmente, a proibição da prática
não inibe a sua realização e desafia a sociedade brasileira a assumir posição mais avançada quanto aos direitos reprodutivos das mulheres.
Mortalidade materna: aproximando um foco
A complexidade do fenômeno da mortalidade materna no contexto brasileiro exige
que a variável raça/cor seja profundamente analisada. Os óbitos maternos, acontecendo
em sua maioria, em mulheres de classes sociais mais baixas, com baixa escolaridade e
baixos salários, incide de modo peculiar sobre mulheres negras. Utilizando dados de
óbitos maternos ocorridos nas capitais brasileiras, no Município de São Paulo, em três
municípios da Bahia (Alagoinhas, Feira de Santana e Salvador) e no Estado do Paraná,
252
Martins (2006) destaca que as taxas de mortalidade materna entre mulheres pretas, foram
cerca de sete vezes maiores (275/100 mil nascidos vivos) do que entre mulheres brancas (43/100 mil nascidos vivos) ou entre mulheres pardas (46/ 100 mil nascidos vivos).
Situação que permanece atual, como evidenciam registros do sistema de informações
sobre saúde do Ministério da Saúde, demonstrando que a diferença da Razão de Mortalidade Materna de 72,94 e 54,86/100.000 nascidos vivos, respectivamente para a região
Nordeste e Sul, e a diferença da Razão de Mortalidade Materna para as diferentes raça/
cor: mulheres brancas 49,66 , mulheres negras (pretas + pardas) com 75,14 , sendo que
as mulheres pretas atingem 438,31/100.000 nascidos vivos (DATASUS em 30/09/2011).
Considerando-se as diferenças regionais de que o maior percentual de população
negra no Brasil concentra-se nas regiões norte e nordeste é evidente que tais regiões necessitam de mais atenção para reduzir a mortalidade materna. O caso da afro-brasileira
Alyne da Silva Pimentel, devidamente apreciado pelo Comitê para a Eliminação de todas
as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), da Organização das nações
Unidas (ONU), demonstra a realidade brasileira no que se refere à falta de atendimento
adequado na hora do parto e insta o Estado brasileiro a rever a política e os programas
de atenção à saúde das mulheres, especialmente no aperfeiçoamento da gestão, na capacitação de pessoal, considerando a dimensão racial.Exige também a implementação de
mecanismos como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, aprovada
em 2006, que reconhece e admite a existência do racismo institucional nos serviços de
saúde, que gera doenças e agravos e diminui anos de vida da população negra em geral e
das mulheres negras em particular.
Planejamento reprodutivo e métodos contraceptivos
Diferentes estudos acadêmicos demonstram que a utilização de métodos contraceptivos no Brasil ainda está fortemente associada com o nível de escolaridade, ciclo de
vida, comportamento sexual e fatores de risco associados, tais como uso de álcool, drogas e variação de parceiros/ras (FAÉ, 2011; PRADO; SANTOS, 2011). De acordo com
a Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS, 2008),
considerando todos os métodos contraceptivos, o percentual de uso cresce com a idade
até os 35-39 anos, diminuindo ligeiramente a seguir, sendo que mais de 90% das mulheres vivendo em união já praticaram algum tipo de anticoncepção, especialmente com
métodos modernos de alta eficácia. O percentual de mulheres que fizeram esterilização
feminina é bem baixo nas primeiras idades, mas cresce a partir dos 25 anos, sendo que
cerca de 40% das mulheres de 35-39 anos e 51% das de 45-49 anos encontram-se esterilizadas. Observa-se que a prevalência da esterilização cresce de forma acentuada com o
número de filhos vivos, havendo relativa homogeneidade nos níveis de prevalência entre
253
diferentes regiões do país. Entretanto, o percentual de mulheres esterilizadas no grupo
sem instrução é mais do que o dobro do percentual registrado no grupo de mulheres
com nove e mais anos de estudo, o mesmo ocorrendo nas regiões Norte e Nordeste em
relação ao Sul e ao Sudeste. Nas áreas rurais, e entre mulheres negras, a participação da
esterilização é também muito maior do que a que se verifica nas áreas urbanas e entre
mulheres brancas. A pesquisa destaca ainda que a prevalência de uso da esterilização
masculina e da camisinha masculina cresce acentuadamente com o aumento da escolaridade, indicando certa tendência para um aumento da participação masculina na prática anticoncepcional.
Conforme Figueiredo (2004), o Contraceptivo de Emergência, até o ano de 2004,
não era distribuído a todos os municípios brasileiros, devido a alguns entraves, tais como
o atraso na entrega do produto e mudanças na gestão, ocasionando a priorização de fornecimento dos Contraceptivos de Emergência aos serviços de atendimento a mulheres
vítimas de violência. Realidade ainda atual que demonstra o quanto a política nacional
de inclusão da contracepção de emergência ainda é incipiente no Brasil, não havendo
o adequado fornecimento e divulgação para o público, em especial para as mulheres.
Assim, é preciso divulgar o método para toda a população e estabelecer rotinas de distribuição dos contraceptivos de emergência para todos os serviços públicos de saúde do
país, bem como qualificar os profissionais de saúde para sua distribuição, pois somente
assim se pode garantir o acesso das mulheres a mais este método contraceptivo. Pesquisa
já realizada pelo Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (CEMICAMP),
a fim de avaliar a distribuição descentralizada de métodos anticoncepcionais reversíveis
pelo Ministério da Saúde e verificar se os anticoncepcionais enviados aos municípios estavam disponíveis nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) confirmou que a atenção ao
planejamento familiar no Brasil continua a ser marcada pela indisponibilidade de métodos anticoncepcionais nos serviços públicos de saúde e pela capacitação desigual e
insuficiente dos profissionais para atuarem nessa área. Com freqüência, lançam mão de
receita sugerindo a compra em farmácias comerciais, o mesmo ocorrendo quando as
mulheres desejam iniciar o uso de um método que não estava disponível naquela UBS
ou equipe de saúde da família. O que está confirmado pela Pesquisa Nacional sobre
Demografia e Saúde (2008) que verificou que as farmácias continuam sendo a fonte
mais importante de obtenção dos métodos hormonais (pílula e injeções) e da camisinha
masculina, enquanto os serviços de saúde do SUS são os grandes responsáveis pelo provimento da esterilização e do dispositivo intra-uterino (DIU), sendo que os serviços de
saúde privados surgem como o local predominante para esterilização masculina.
Além das dificuldades na distribuição, estudos enfatizam que ainda que o Ministério da Saúde consiga enviar os insumos contraceptivos aos municípios com regularidade
e em quantidades adequadas, isso não garantirá que a atenção ao planejamento familiar
alcance a qualidade e a eficácia desejadas para permitir às cidadãs e cidadãos brasileiros
exercerem o direito de decidir quando e quantos filhos querem ter. É necessário que mu254
nicípios tratem essas ações como parte da atenção básica, sendo preciso que o processo
de humanização da atenção também alcance o planejamento familiar no que se refere à
incorporação de princípios relativos aos direitos humanos e à bioética na atenção brindada à população (OSIS et al., 2006). O que ainda se coloca como meta a ser atingida
pelas políticas públicas de saúde para que se possa concretizar a possibilidade do planejamento reprodutivo para as mulheres brasileiras.
Violência contra as mulheres e algumas interfaces
A política brasileira de enfrentamento às violências contra mulheres está formulada em dois documentos principais: I e II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
(2003 e 2007) e no Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres
(2007). No ano de 2006 foi sancionada a Lei nº 11.340 - a conhecida Lei Maria da Penha
que reconhece a violência contra as mulheres como uma violação dos Direitos Humanos, no marco da Convenção de Belém do Pará, conceitua diferentes formas de violência
e cria mecanismos para o seu enfrentamento, com medidas de proteção, assistência e
prevenção (Relatório da Campanha Ponto Final, 2012). O documento assinala que o
quadro de violência contra as mulheres, a nível nacional, assume proporções gravíssimas: o telefone 180 (disque-denúncia nacional da Secretaria de Políticas para Mulheres)
registrou em 2010 mais de 100 mil pedidos de ajuda, demonstrando que a violência
contra as mulheres é um grave problema e que as políticas públicas não acolhem a
demanda nem reduzem os elevados índices. Importante vitória na legitimação de uma
política como a Lei Maria da Penha foi obtida com o julgamento da Ação Declaratória de
Constitucionalidade, no Supremo Tribunal Federal, defendida pela Advocacia Geral da
União (AGU), quando a Suprema Corte decidiu, por unanimidade, que a lei não fere a
constituição por proteger exclusivamente as mulheres e nem ofende o princípio da igualdade por esse direcionamento. No entanto, também observa-se que o Pacto Nacional
de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, elaborado como uma ferramenta de
gestão para ampliação e fortalecimento da rede de atendimento às mulheres através de financiamento aos estados e municípios para criação de serviços, ainda não foi adotado em
sua integralidade, impedindo assim, a qualificação dessa rede de serviços em todo o país.
Os alarmantes índices de homicídios em que as vítimas são mulheres colocam o
Brasil na 7ª posição entre os 84 países do mundo dos quais se consegue dados a partir
de estatísticas da Organização Mundial da Saúde (OMS), segundo o Mapa da Violência
2012. A taxa de 4,4 homicídios para cada 100 mil mulheres caracteriza o Brasil como
um dos países de elevados níveis de feminicídio, vocábulo que denomina os assassinatos
de mulheres motivados pelas discriminações de gênero, permeadas de formas de dominação, exercício de poder e controle sobre as mulheres. O Mapa da Violência também
255
conclui que em 68,8% dos atendimentos a mulheres vítimas de violência, a agressão
aconteceu na residência da vítima, confirmando a tendência mundial de que os feminicídios geralmente acontecem na esfera doméstica. No país, foi possível verificar que
42,5% do total de agressões contra a mulher enquadram-se nessa situação. Mais ainda, se
tomada a faixa dos 20 aos 49 anos, na qual acima de 65% das agressões tiveram autoria
do parceiro ou do ex-parceiro.
Outro aspecto confirmado pelos dados brasileiros é o de que altos níveis de feminicídio são acompanhados de elevados níveis de tolerância com a violência contra as mulheres e, em alguns casos, são o resultado de dita tolerância. Compartilhando muitas das
características das agressões contra as mulheres encontradas em outros países, o contexto
brasileiro apresenta diversos sinais que evidenciam a complexidade do problema nacional:
No ano seguinte à promulgação da lei Maria da Penha – em setembro de 2006 –
tanto o número quanto as taxas de homicídio de mulheres apresentaram uma visível
queda, já a partir de 2008 a espiral de violência retoma os patamares anteriores, indicando nitidamente que as políticas ainda são insuficientes para reverter a situação;
O impacto do racismo também pode ser verificado na produção de violência contra
as mulheres negras relacionada a causas externas como homicídios e suicídios, analisadas
num estudo que descreve dados epidemiológicos do DATASUS sobre a situação da violência fatal das mulheres segundo raça/cor em todas as unidades da federação brasileira
em uma série histórica de 6 anos (2003-2005/2006-2008). O estudo evidenciou maiores
coeficientes de violência fatal comparando-se mulheres negras (74,1%, no primeiro triênio e 77,8% no segundo) com mulheres brancas. (BAIRROS; OLIVEIRA, 2011).
A feminização da epidemia do HIV também apresenta relação com a violência.
Pesquisa coordenada por Gestos Soropositividade, Comunicação e Gênero demonstra
que o crescimento da epidemia de HIV e AIDS entre mulheres e mulheres jovens vem
sendo verificado pelos organismos sanitários brasileiros. O Ministério da Saúde registra
que de 1980 até junho de 2011, o Brasil teve 608.230 casos registrados de AIDS. Em 2010,
foram notificados 34.218 casos da doença e a taxa de incidência de AIDS no Brasil – que
mede os casos novos de determinada doença na população, refletindo a dinâmica com
que os casos aparecem nos grupos, foi de 17,9 casos por 100 mil pessoas. Embora os homens ainda sejam a maioria entre os doentes, essa diferença vem diminuindo ao longo
dos anos pois em 1989 haviam 6 casos de AIDS no sexo masculino para 1 caso no sexo
feminino. Já no ano de 2010, chega-se a 1,7 caso em homens para cada 1 caso em mulheres. O estudo também manifesta que entre jovens de 13 a 19 anos o número de casos
de AIDS é maior entre as mulheres, confirmando a denomina feminização da epidemia
do HIV e da AIDS no Brasil. Os próprios organismos sanitários admitem que as relações
desiguais de gênero e as vulnerabilidades específicas das mulheres e das mulheres jovens
em particular, influenciam fortemente este perfil epidemiológico, evidenciando que a
violência de gênero e o HIV se articulam impondo às mulheres fortes discriminações. As
relações de poder ainda estabelecidas entre homens e mulheres impedem as últimas de
negociar a realização de práticas sexuais seguras e exigir o uso de preservativos.
256
A dimensão de raça ainda não está presente na maioria dos estudos sobre o HIV AIDS
e mas o uso de raça/cor como categoria analítica indica caminhos para melhor compreender como as interações sociais, na intersecção gênero e condições socioeconômicas, produzem e reproduzem desvantagens na exposição das mulheres negras aos riscos à sua saúde,
assim como impõem restrições quanto ao uso de recursos adequados para o seu cuidado
(LOPES et al., 2012). Aspectos subjetivos também determinam processos de vulnerabilização como a qualidade do aconselhamento anterior e posterior ao teste, a piora da vida sexual após o diagnóstico e a dificuldade em falar sobre o assunto com os profissionais mais diretamente envolvidos no cuidado, como é o caso dos médicos infectologista e ginecologista.
Outro problema, articulado com todos os anteriores, e a ser enfrentado é inexistência de estatísticas oficiais que correlacionem HIV e violência contra mulheres e a
necessária visibilidade dessa intersecção, apontando a violência como fator de risco para
o HIV. A pesquisa coordenada por Gestos (2010) revela que apesar de haver serviços
relacionados ao HIV que trabalham com redução de danos, atendimento a violência,
prevenção de transmissão vertical, tratamento, cuidado e apoio a AIDS, estes atuam de
forma isolada e com pouca interação. O que se vê na prática são serviços que, embora
promovam o atendimento das pessoas vivendo com HIV, não contemplam o agravo da
epidemia e sua relação com a violência.
Concluindo as observações sobre o panorama dos direitos sexuais e reprodutivos
das mulheres brasileiras, avalia-se que nos últimos anos o governo brasileiro, através de
programas e políticas que resultaram do tensionamento dos diferentes movimentos de
mulheres e feministas, desenvolveu estratégias para melhoria da saúde sexual e reprodutiva . Tal tensionamento, no entanto, não resultou em processos efetivos de consulta
e participação das mulheres nas políticas. As estratégias tem se concentrado nas áreas
da melhoria da atenção obstétrica e na redução dos índices de mortalidade materna. A
área da violência doméstica contra as mulheres também tem recebido aportes do ponto
de vista da legislação através dos Planos Nacionais de Políticas para Mulheres e do Pacto
Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, bem como a feminização
da epidemia do HIV AIDS com o lançamento do Plano Nacional. Contudo, o que se
verifica concretamente é que ainda não se percebem resultados significativos dessas iniciativas na vida das mulheres, capazes de influenciar positivamente os indicadores de
melhoria da qualidade de vida e de avanços na conquista dos direitos sexuais e reprodutivos. Ainda que essas iniciativas tenham sido importantes, especificamente para as
mulheres negras, ainda não existem ações de enfrentamento ao racismo institucional e
nem a definição de metas específicas para mulheres negras e indígenas capazes de produzir impactos efetivos sobre a saúde dessas mulheres (AMNB, 2012).
Este cenário confirma, mais uma vez, a imperiosa necessidade da implementação
de ações que garantam a incorporação efetiva das dimensões de gênero e raça nas políticas públicas para mulheres, com o reconheciemnto de que são estruturantes de todas as
relações sociais. As políticas públicas somente serão efetivas mediante a garantia da participação de todas as mulheres nos processos de formulação, monitoramento e avaliação.
257
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259
DIREITO HUMANO À SAÚDE NO BRASIL
Valdevir Both*
Analisar o direito humano à saúde no Brasil é complexo. Atendendo aos objetivos
deste Relatório, partiremos de um estudo estrutural que ao final nos leve aos impactos
da realidade, sobre as diferentes dimensões e indicadores do direito em questão. Essa
análise levará em conta o marco normativo constitucional e sua relação com o modelo
de desenvolvimento brasileiro.
Mesmo que a Constituição nunca encerre a amplitude dos direitos, fazer a relação
do compromisso constitucional assumido na saúde em 1988, com o modelo de desenvolvimento em curso, parece muito oportuno se considerarmos que em 2011 o Brasil
passou a figurar como a sexta maior economia mundial (CEBR, 2011). Não consegui
recuperar a fonte.
Amartya Sen (1999) chama atenção para o fato do conceito de desenvolvimento
não se limitar ao crescimento econômico e industrial de um país. Deveria ser muito mais
abrangente, propiciando a construção das capacidades e liberdades de todas as pessoas.
Um desenvolvimento nesta direção, exige entre outros, que as sociedades sejam menos
desiguais e que os Estados construam políticas públicas sociais aptas a garantir e efetivar
direitos humanos. Dentre estas, a saúde figura como política pública essencial.1
*
Doutorando em Filosofia Política na Unisinos, professor do Instituto Superior de Filosofia Berthier (IFIBE) e coordenador executivo do Centro de Educação e Assessoramento Popular (CEAP), Passo Fundo, RS.
1 Para essa reflexão teve importante contribuição a I Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento de Sistemas Universais de Seguridade Social, realizada no Brasil em 2010, e que contou com representações de mais de 80 países.
I Conferência Mundial sobre Desenvolvimento de Sistemas Universais de Seguridade Social. Relatório final. 2010.
Disponível em: www.conselho.saude.gov.br/cm/INDEX.html. Acesso em: 10 de julho de 2012.
261
A sequência da análise do direito à saúde terá em conta o tema do financiamento da
saúde, de modo especial, da saúde pública. Ter em conta os dados do financiamento é revelador para os direitos humanos, uma vez que ajuda a indicar o compromisso efetivo do Estado com os mesmos. Não menos importante, será a abordagem desde o olhar da chamada
relação público privada, num país em que os interesses privados se misturam com o público de forma muitas vezes perversa, gerando desigualdades e violando o direito à saúde.
Por fim, contemplamos recortes específicos do direito à saúde, abordando indicadores e políticas que ajudam a mostrar como o direito à saúde está sendo realizado
no Brasil. Faremos referência à mortalidade infantil, à saúde da mulher e à saúde da
população negra, buscando refletir sobre a estrutura do direito humano à saúde, que
consideramos fundamental na conjuntura atual.
1. A saúde no marco das garantias constitucionais e do modelo
de desenvolvimento brasileiro
Tratar do direito humano à saúde no Brasil, implica uma necessária referência à
Constituição (Art. 196) e ao processo de sua construção2 . Quando o Brasil define a saúde
como direito de todos e dever do Estado, compreendida dentro de um conceito mais
amplo de proteção social, assume um compromisso nacional e internacional contrário
a lógica neoliberal, que nesse período buscava limitar os direitos sociais nos diferentes
países. No país, seus fervorosos defensores, sintetizados pela figura política de José Sarney, usavam dos mesmos argumentos antes mesmo da promulgação da Constituição de
1988, buscando alertar a população da explosão dos gastos públicos e da consequente
ingovernabilidade que a nova Constituição traria ao país (GAZETA MERCANTIL apud
FAGNANI, 2010, p. 32). Já na década de 1990, Roberto Campos retoma suas críticas à
Constituição, especialmente por contemplar os direitos sociais, como um “hino à preguiça” e uma “coleção de anedotas” (CAMPOS apud FAGNANI, 2010, p. 32). Maílson da
Nóbrega, em 2005, foi mais enfático nas críticas, ao afirmar que
Os constituintes erigiram uma obra arcaica e sem originalidade. Buscaram distribuir uma
riqueza que não existia. Não perceberam as transformações que havia tornado obsoletas
as normas com as quais pretendiam forjar uma nova sociedade. Avançaram no restabelecimento de direitos individuais e das instituições democráticas, mas introduziram privilégios corporativistas, moveram-se por preconceitos anticapitalistas e adotaram visões de
mundo equivocadas. A Constituição de 1988 nasceu velha e se tornou um obstáculo ao
desenvolvimento. Podemos consumir duas gerações buscando eliminar seus graves defeitos (NOBREGA apud FAGNANI, 2010, p. 33).
2
Mesmo que a referência seja repetitiva, contribui estruturalmente para entendermos as raízes históricas do atual contexto do direito humano à saúde no Brasil.
262
Atentando-se às críticas acima, parece não restar dúvidas do preconceito em relação
aos direitos sociais, assumido e disseminado por setores dirigentes do Brasil, que continua
vivo até hoje. Por consequência, não é difícil compreender os entraves criados por estes
setores para que o Estado não cumprisse com o seu papel de implementar um sistema de
proteção social, que incluísse a saúde pública como elemento fundamental. O resultado
foi a adoção de políticas frágeis e fragmentadas, que se sustentam com poucos recursos.
Para além de um simples preconceito em relação aos direitos sociais, as compreensões acima traduzem uma equivocada relação entre os direitos sociais e o desenvolvimento no Brasil, numa espécie de “equação excludente”. Ou seja, se a maior conquista da
Constituição de 1988 foi a conquista de direitos de modo geral, e dos direitos sociais de
forma particular, e se ela (a Constituição) é um “obstáculo ao desenvolvimento”, infere-se necessariamente que os direitos representam um obstáculo ao desenvolvimento, ou
melhor, ao desenvolvimento compreendido puramente como crescimento do PIB, altamente concentrado em um pequeno grupo.
O desafio está em criar uma nova equação na qual o desenvolvimento tenha como
foco a realização de direitos, e que estes sejam um impulso ao desenvolvimento. Isso significa que garantir e realizar o direito à saúde para todos, com qualidade, é um componente estrutural do desenvolvimento do país, inclusive contribuindo para o crescimento
econômico. Caso contrário, restará a velha concepção (construída ideologicamente) de
que a saúde é um gasto social, obstáculo ao desenvolvimento.
Nos últimos dez anos, o Brasil passou por grandes mudanças em algumas áreas,
especialmente pela indução, por parte do governo federal, que reconhece de forma mais
explícita a importância dos direitos humanos e, especificamente, dos direitos sociais no
marco do desenvolvimento do país.
No entanto, mesmo que haja um comprometimento público importante3 do governo federal, dos estados e dos municípios, a saúde pública ainda não figura como
agenda estratégica. Isso fica demonstrado, por exemplo, se analisarmos os dados dos
investimentos financeiros do Estado brasileiro em suas três esferas. E isso é ainda mais
importante num contexto de reconhecimento do esforço brasileiro em diminuir as desigualdades sociais.
Mesmo que o país esteja caminhando para uma redução das desigualdades, fruto
da adoção e combinação de inúmeras políticas públicas nos últimos anos, as políticas
públicas de saúde ainda não são vistas por muitos setores dos governos federal, estaduais
e municipais, e a própria sociedade, como estratégias claras e potentes para a diminuição
3
Destaca-se nesse sentido, o discurso da presidente da república que, em 01 de janeiro de 2011, fez a seguinte referência
à saúde pública: “Consolidar o Sistema Único de Saúde será outra grande prioridade do meu governo. Para isso, vou
acompanhar pessoalmente o desenvolvimento desse setor tão essencial para o povo brasileiro. Quero ser a presidente
que consolidou o SUS, tornando-o um dos maiores e melhores sistemas de saúde pública do mundo. O SUS deve
ter como meta a solução real do problema que atinge a pessoa que o procura, com uso de todos os instrumentos de
diagnóstico e tratamento disponíveis, tornando os medicamentos acessíveis a todos, além de fortalecer as políticas
de prevenção e promoção da saúde. Vou usar a força do governo federal para acompanhar a qualidade do serviço
prestado e o respeito ao usuário” (ROUSSEFF, 2012).
263
das desigualdades e melhoria na distribuição de renda.4 Disso se conclui, que a saúde
pública, mesmo que tenha avançado muito desde a construção SUS, demanda maior
atenção e investimento para figurar como estratégia de desenvolvimento orientada desde os direitos humanos.
Essa análise mais geral, que julgamos importante por localizar o direito à saúde no
marco do modelo de desenvolvimento brasileiro, será seguida por uma reflexão mais
expecífica sobre a saúde no país, considerando temas transversais que contribuem para
um compreensão do tema nos últimos anos.
2. Financiamento da saúde
Os dados sobre os investimentos em saúde pública são importantes para uma avaliação da saúde. Tanto o quantitativo dos recursos investidos como a qualidade dos gastos feitos no setor, incidem diretamente na capacidade de resposta da política pública.
Conforme os dados da Organização Pan Americana da Saúde de 2008, o Brasil
investiu naquele ano, 3,6% do PIB em saúde pública. Dados recentes (2010), e que permanecem estabilizados, dão conta de que o país gastou 4% do PIB com saúde. Por outro
lado, os gastos do setor privado (que integram os gastos com planos de saúde e desembolso particular direto), chega aos 4,4%. Se considerado o gasto total, público e privado,
chegamos a 8,4%, o que é um valor considerado baixo se comparado com outros países
que têm um PIB igual ou mesmo inferior ao Brasil.
No entanto, mesmo que o percentual de 8,4% do PIB gasto com saúde seja insuficiente, o problema maior está no baixo investimento público dado a construção de um
sistema público universal de saúde, o SUS, em 1988. Ao gastar 4% em saúde pública,
inferior aos 4,4% privado, o Estado gasta menos com saúde do que os cidadãos. Esse
percentual investido pelo Estado é crucial para entender o limite da saúde pública no
Brasil, pois em muitos países que possuem sistemas públicos universais, o gasto estatal
gira entre 60% a 70%, chegando aos 80% em países como a França e Inglaterra.
Outro componente importante no financiamento é o mau gasto com saúde. O Brasil
ainda tem problemas sérios na qualidade e eficiência dos gastos. Referimo-nos aos investimentos que nem sempre respondem às necessidades reais da saúde da população (e
sim às demandas de grupos privados da saúde) e aos atos de corrupção com o dinheiro
da saúde, envolvendo muitas vezes agentes públicos5. Conforme dados divulgados por
4
Segundo o informativo recente da Oxfam, que analisa a desigualdade no mundo e as estratégias do seus enfrentamento a partir das experiências concretas em países, sugere a adoção de um conjunto de políticas públicas como a saúde.
Nestas inclui-se o “investimento em acesso universal a saúde e educação” (OXFAM, 2012, p. 4).
5 É ilustrativa a operação “Sanguessuga”, da Polícia Federal, que em 2006 desarticulou um esquema de fraude em licitações de ambulâncias. Segundo a própria polícia, foram desviados mais de 110 milhões de reais da saúde. A fraude
envolvia deputados que conseguiam liberar recursos do Ministério da Saúde através de Emendas.
264
O Globo, de 2002 a 2011, segundo constatação de Tomadas de Contas Especiais (TCES)
encaminhadas ao Tribunal de Contas da União (TCU), foram desviados do setor saúde
do governo federal 2,3 bilhões de reais.
Se o desvio total, considerando 24 ministérios, foi de 6,89 bilhões, a saúde responde
por 32,38% (MALTCHIK, 2011). Na mesma perspectiva, Auditorias feitas pela AGU, no
período de 2003 e 2005, numa amostra de 500 municípios com menos de 500 mil habitantes, mostraram que 69% apresentaram alguma forma de corrupção, entendida como
obtenção de privilégios pessoais, associada ao uso dos recursos federais de saúde transferidos aos municípios (MEDICI, 2011, p. 59). Se for considerado que a saúde é uma das
áreas que mais tem acumulado no processo de controle social dos recursos públicos no
país, especialmente pela existência dos Conselhos de Saúde na esfera federal, na totalidade dos estados e dos municípios, os percentuais acima são extremamente elevados. O
que remete a uma reflexão sobre a eficiência dos Conselhos da Saúde. Mas, no caso das
auditorias, a própria pesquisa já deu indícios no sentido de responder a questão, apontando que a corrupção é maior onde a representação dos usuários é baixa. Para além de
apontarmos uma possível dúvida sobre a eficiência dos Conselhos de Saúde no processo
de controle social dos recursos da saúde, cabe apontar a fragilidade dos instrumentos do
próprio Estado em evitar atos de corrupção.
O baixo investimento em saúde pública aliado ao investimento nem sempre centrado na necessidade do cidadão e aos atos de corrupção, contribuem para que o direito
à saúde seja violado no Brasil. Uma das consequências é a procura do poder judiciário
pelas pessoas, como meio de exigir o seu direito, a chamada “judicialização da saúde”.
Muito criticada por gestores e especialistas, por transformar o judiciário numa espécie
de gestor do sistema, e isso limita o investimento de recursos em ações planejadas6 , é
muitas vezes o último recurso para o cidadão requerer o direito garantido na Constituição e não realizado pelo Estado.
No entanto, um sistema de saúde que tem alto índice de judicialização pode significar uma grande dificudade de realizar o direito à saúde para todos. Mesmo que de um
lado indique maior consciência dos direitos por parte dos cidadãos, e uma sensibilidade
do poder judiciário, de outro lado mostra que há sob certo aspecto, uma insuficiência
estrutural que é administrada pelos gestores priorizando aqueles que demandam certos
serviços não disponíveis a todos pela via judicial, podendo interpretar-se que o sistema
tem dificuldade de realizar o princípio da universalidade.
Isso pode ser ainda mais grave considerando-se o dado de que as pessoas com
maior vulnerabilidade social acessam menos à justiça. No caso dos medicamentos:
6
A “judicialização da saúde” vem sendo questionada por inúmeras vozes que apontam a perda da capacidade de gestão
em função das ações judiciais requererem alto gasto e nem sempre responderem a critérios técnicos, possibilitando
inclusive atendimentos especiais fora do país, quebrando o princípio do tratamento igualitário. De outro lado, o
judiciário argumenta ser o último recurso de milhares de cidadãos que sofrem as consequências de um sistema que
não garante o acesso universal e com qualidade às pessoas, fruto da ineficiência da política pública da saúde no Brasil.
265
[...] pesquisa realizada por Ana Luiza Chieffi e Rita Barradas Barata (2009), com base no
Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS) da Fundação SEADE, mostra que em
2006 somente 13% das ações judiciais contra o SUS, para aquisição de medicamentos no
município de São Paulo, foram solicitadas por pessoas que vivem em áreas de vulnerabilidade social alta e muito alta. Por outro lado, 16% das ações judiciais contempladas para a
aquisição de medicamentos foram impetradas por pessoas que vivem em áreas onde não há
nenhuma vulnerabilidade social e 31% por pessoas que vivem em áreas de vulnerabilidade
social muito baixa (MEDICI, 2011, p. 62).
Para efeito da análise pretendida neste trabalho, não entraremos na discussão sobre
o mérito dessas demandas, em que se deveria fazer referência ao uso de procedimentos e
medicamentos não disponíveis no país e que respondem muitas vezes mais a interesses de
grandes empresas do que ao interesse público. O que se pretende é mostrar primeiro, que a
alta judicialização explicita um limite do sistema que muitas vezes opera defensivamente e;
segundo, compromete a universalidade e integralidade exatamente por muitas pessoas não
demandarem judicialmente, especialmente de camadas mais pobres da sociedade, que têm
maior dificuldade de acesso à justiça. Isso não significa a necessidade de inversão no sentido
de a política pública priorizar somente as camadas sociais mais vulneráveis, como defende
o neoliberalismo. O desafio exigido pelos direitos humanos é suprir a demanda de todos.
Diante desse cenário de subfinanciamento da saúde no Brasil, a sociedade lutou por
mais de dez anos para a regulamentação da Emenda Constitucional nº 29, que tinha em seu
texto original a qualificação do gasto e o aumento dos recursos para a saúde. A proposta
fixava um valor mínimo das receitas a serem investidas em saúde: para os municípios de
15%, para os estados de 12%, e para a União de 10%. Aprovada em novembro de 2011, a
proposta frustou os defensores da saúde pública do Brasil, pois para os Estados e Municípios o percentual ficou em 15% e 12% respectivamente, mas para a União, o percentual foi
fixado por fórmula específica a partir do crescimento do PIB e não da sua receita. A luta
pela regulamentação da EC-29 marcou a ação da sociedade brasileira nos últimos dez anos.
No entanto, o resultado da proposta, e a votação final, foi negativo para a saúde pública.7
3. Relação público privado e desigualdade na saúde
Outro tema que incide estruturalmente na realização do direito humano à saúde é
a relação público privado, que tem como principal consequência a desigualdade entre as
pessoas, o que é uma afronta ao conteúdo dos direitos humanos. O tema mereceria um capítulo mais detalhado, no entanto, para nossa finalidade, limitamo-nos a uma análise geral.
7
Não bastasse a frustração com a EC-29, no início de 2012, mais precisamente no dia 15 de fevereiro, a sociedade brasileira foi surpreendida com o anúncio do corte de recursos do orçamento federal, e que na saúde representou um total
de 5,4 bilhões de reais. O corte gerou diversas críticas, destacando-se aqui, a Carta Aberta à presidente da República,
elaborada pelo Conselho Nacional da Saúde, em sua 48ª Reunião Extraordinária. Disponível em: http://conselho.
saude.gov.br/informativo/2012/informe03.pdf. Acesso em: 10 de julho de 2012.
266
No processo de discussão e aprovação da Constituição de 1988, e da Lei Orgânica
da Saúde, dado o processo adiantado de implantação do setor privado (incluído o filantrópico) na área da saúde, inclusive com aporte de recursos públicos, a pergunta era
como construir um sistema público universal a partir da relação com o setor privado.
Imperou o entendimento de que o SUS seria implementado prioritariamente a partir da
estrutura pública, que seria complementada pelo setor privado, a ser contratado pelo
Estado, e que deveria se orientar pelo intesse público e pelas regras do SUS.
Esse processo teve problemas desde o início, contribuindo para dificultar a implementação do SUS e violar o direito à saúde. Como o Brasil não fortaleceu a estrutura pública, está
cada vez mais dependente do setor privado, que a cada dia se fortalece misturando seus interesses com o uso dos serviços e da estrutura do SUS. Procedimentos caros são jogados para
o SUS pelos planos de saúde, que por sua vez, crescem a cada dia as custas de subsídios públicos (através do Imposto de Renda) e do não ressarcimento pelo uso dos serviços do SUS.8
Nos últimos anos, com o crescimento dos indicadores econômicos e melhoria da
renda por milhões de brasileiros, a saúde privada tem crescido de forma rápida. Dados
de 2011, mostram lucros expressivos de empresas no setor,9 tendo como principal fator
o aumento dos planos de saúde corporativos de pequenas e médias empresas. Quanto
mais o setor privado cresce,10 mais dificuldades são encontradas para qualificar a saúde
pública. Esse processo vai gerando desigualdades sérias entre os que podem pagar pelos
serviços e os que não podem, violando o direito á saúde desses cidadãos. Marco Antônio
Andreazzi, num estudo do IBGE de 2010, afirma que
Há diferenças marcantes quando se compara a qualidade dos equipamentos e profissionais
entre as classes sociais e o setor público e privado. O país tem dois Brasis se considerarmos os
tipos de serviços prestados. Há um excesso de equipamentos sofisticados nos planos privados
[que se concentram nas regiões mais ricas] e locais em que faltam equipamentos básicos.11
Essa divisão do Brasil em dois Brasis a partir da qualidade dos serviços, é corroborada por outro estudo do IBGE (2009). O mesmo é elucidativo por mostrar que o
problema do Brasil não está no número total de equipamentos disponíveis, senão na má
distribuição na saúde pública e privada. Por exemplo, no iten raio X, para densitometria
óssea, em 2005, no caso do SUS, a carência foi detectada em todos os equipamentos.12
8
Dados da Agência Nacional da Saúde de 2010, mostram que os Planos de Saúde deviam ao SUS mais de 400 milhões
de reais (AGÊNCIA BRASIL; ABDALA, 2010).
9 Conforme matéria publicada no Jornal DCI, a operadora Bradesco Saúde teve um faturamento em 2009 de 5,9 bilhões
de reais. Por sua vez, a SulAmérica teve lucro líquido de 614 milhões de reais (Saúde privada quer atender 50% do
país e investir em tecnologia. Jornal Diário Indústria, Comércio e Serviços. Disponível em: www.dci.com.br/. Acesso
em 23 de setembro de 2011).
10 A mesma matéria citada, dá conta de que o setor privado pretende atender 50% da população num futuro próximo no Brasil.
11 IBGE diz que saúde no Brasil divide pobres e ricos. Disponível em: http://noticias.r7.com. Acesso: 19 de novembro de 2011.
12 Segundo o mesmo estudo citado: “A partir de dados da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico) de 2006, considerando-se equipamentos de tomografia computadorizada, observa-se que, se, no total, o
Brasil, com 4,9 unidades por 1 milhão de habitantes, encontra-se abaixo da média dos países analisados (13,8 equipamentos), a oferta privada (30,8 por 1 milhão de habitantes em 2005) é semelhante à dos Estados Unidos (32,2 por 1
milhão de habitantes). No caso da ressonância magnética, a oferta total (1 equipamento por 1 milhão de habitantes)
está mais abaixo da média (6,6), mas a oferta privada (10,7 por 1 milhão) também está acima daquela encontrada na
maioria dos países analisados” (IBGE, 2009).
267
No caso da ressonância magnética, se a oferta privada dispõe de 10,7 equipamentos (não
disponíveis ao SUS), o SUS dispõe somente de um para o mesmo número de pessoas. O
mesmo se repete em equipamentos de ultrassom, em que no privado a oferta chega a
246,8 equipamentos (não disponíveis ao SUS), no SUS a oferta é de 31,3 equipamentos
para o mesmo número de pessoas.
Esses dados ajudam a entender porque as Classes C e D estão optando por adquirir
um plano privado. A opção não é porque esta oferece um serviço amplo e qualificado,
antes pelo contrário, se atentarmos para o alto número de reclamações de usúarios pelo
mau atendimento prestado, mas a grande insuficiência do SUS em algumas áreas e serviços que precisa qualificar. Isso ainda é mais grave e preocupante quando empresas públicas como a Caixa Econômica Federal financiam a criação de novas empresas privadas da
saúde, como no caso da criação da Caixa Seguros, em que participa com 75% do capital.
O fato foi denunciado recentemente pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES),
que em seu blog divulgou nota criticando a iniciativa. Entre outras, a nota diz que
Se a saúde é, de fato, prioridade do Governo, esta prioridade deve se expressar, também,
nas medidas do conjunto das instituições estatais. Não bastasse o fato de os funcionários
públicos e funcionários das estatais contarem com planos de saúde privados, agora a Caixa, agindo como um banco privado, busca ampliar seus lucros com a comercialização da
saúde. Como uma instituição estatal a Caixa Econômica Federal deveria ouvir o que dizem
os gestores, trabalhadores e usuários defensores do SUS e contribuir para a consolidação
de um sistema de saúde universal, igualitário, de qualidade, financiado com recursos do
tesouro do Estado para todos os brasileiros, conforme prevê a Constituição Federal, e não
tratar a saúde como uma mercadoria sobre a qual se aufere lucros (CEBES, 2012).
Essa opção pela saúde privada desmobiliza a luta social em prol da implementação
do SUS como estratégia de realização do direito humano à saúde, gerando grandes inequidades conforme demonstrado acima.
4. A saúde à luz de indicadores específicos
Fazer uma análise da saúde no Brasil à luz dos direitos humanos implica termos em
conta alguns indicadores e reflexões com recorte específico. Não temos condições de fazer
aqui uma análise mais ampla, como talvez o título sugira. Nessa perspectiva, faremos uma
análise a partir de dois indicadores da saúde, a dizer, a mortalidade infantil e a mortalidade materna, e uma análise sobre as condições da saúde da população negra no Brasil.
268
4.1. Mortalidade infantil
Os dados sobre a mortalidade infantil no Brasil indicam uma redução importante na
última década. Em 2010, conforme dados do IBGE (2010), a mortalidade infantil foi de
19,88 a cada mil nascidos vivos. Levando-se em conta a última década, o Brasil teve uma
redução de 28,03% neste índice, o que representa um importante passo na saúde no Brasil.
Se a mortalidade infantil está em queda no Brasil, indicando que em 2015 chegaríamos a um patamar de 15 óbitos para cada mil nascidos vivos, esse percentual ainda é
alto se comparado a um conjunto de países “em desenvolvimento”.13 Se considerarmos
que a maior parte dos óbitos são evitáveis, o país ainda precisa dar uma resposta mais
consistente no setor saúde, especialmente na ampliação do acesso e qualificação do serviço público.
Mas a preocupação maior em relação a mortalidade infantil, analisado sob a ótica
dos direitos humanos, está no recorte racial. Conforme dados do Sistema de Informação
de Nascidos vivos (NINASC), e Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), de 2009,
a mortalidade infantil entre brancos era de 13,24%, enquanto entre pretos era de 21,24%,
e indígenas de 41,16%. Esses dados são taxativos no sentido de indicar que, além de
termos uma mortalidade total alta,, ela se agrava entre pretos e indígenas em números
inaceitáveis. O que representa uma violação grave ao direito à saúde no Brasil.
4.2. Saúde da mulher
O direito à saúde da mulher é outro indicador importante para uma análise do
direito humano à saúde. Nesse quesito, o Brasil tem tido iniciativas importantes nos
últimos anos, embora seja questionável sua capacidade de incidência nas condições de
saúde das mulheres.
Em 2004, o governo brasileiro adotou a Política de Atenção Integral à Saúde da
Mulher (PNAISM). Representou um passo importante, especialmente por incorporar
a perspectiva de raça, gênero, etnia e diversidade para além da perspectiva da saúde
reprodutiva. Se a iniciativa foi importante, sua implantação e eficácia para promover a
saúde da mulher tem sido lenta e insuficiente. A mortalidade materna em 2010, conforme dados do Ministério da Saúde, foi de 1.617 (mortes notificadas), o que representa
68 mortes a cada 100 mil nascidos vivos (AGÊNCIA BRASIL; PIMENTEL, 2011). As
regiões Nordeste e Sudeste concentram sozinhas 1.106 mortes, mostrando uma
13 A mortalidade em alguns países em desenvolvimento: Chile (6,48), Cuba (5,25), China (15,4), México (16,5), Colômbia (15,3) e Argentina (12,8). BBC Brasil. Mortalidade infantil no Brasil cai 61% em 20 anos, diz estudo. Disponível
em: <www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/05/100524_mortalidadeinfantil_ba.shtml>. Acesso em: 23 fev. 2012.
269
desigualdade grande no país. Do total de mortes, tem-se um percentual ainda muito
grande em decorrência dos abortos inseguros. Segundo denúncia da ONU, o número
de mortes em função de abortos inseguros é extremamente alto,14 o que rendeu ao país
sérias críticas na 51ª Sessão do Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as
Mulheres em fevereiro de 2012 em Genebra. O alto índice de mortalidade materna
mostra que o tema do aborto deve ser tratado como problema de saúde pública, mesmo
diante da complexidade do tema e pelas diferentes concepções envolvidas.
Se considerado indicador de câncer de mama, mais uma vez pode-se concluir o
limite da saúde pública no país, num contexto de implementação do PNAISM. Segundo
dados divulgados pelo Correio Braziliense, em 2012, o Brasil irá registrar mais de 50
mil novos casos de câncer de mama.15 O problema, é que metade dos casos é descoberto
em estágio avançado. Esse indicador mostra a deficiência do SUS quanto ao acesso das
mulheres e a qualidade de resolução do Sistema.
Mas a situação se agrava se analisado o acesso das mulheres negras às ações preventivas ao câncer de mama. Dados do IBGE de 2008, mostram um percentual de 38,9% das
mulheres brancas sem mamografia. Para as mulheres de cor preta, o percentual sem mamografia sobe para 49,9% e para as mulheres pardas, para 53,8% (MARINHO et. al., 2011).
Parece não restar dúvidas sobre a urgência do Estado Brasileiro em assumir de
forma mais consistente, mesmo que tenha proposto políticas específicas nessa direção,
a saúde da mulher. O princípio da universalidade dos direitos humanos só se realiza ao
considerarmos as demandas específicas. No caso da saúde das mulheres, ainda estamos
longe de fazê-lo.
4.3 Saúde da população negra
Conforme demonstrado anteriormente, ao tratarmos tanto da mortalidade infantil quanto da mortalidade materna, salta aos olhos a persistente desigualdade existente
entre brancos e negros. Nesta perspectiva, entendemos ser importante uma pequena
análise de como o estado tem enfrentado o tema desde a área específica da saúde, de
modo especial nos últimos anos.
O primeiro marco importante a ser considerado, foi a criação, em 2003, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), que mostrou a sensibilidade
14
15
Dados divulgados pelo Jornal O Estado de São Paulo, em 18 de fevereiro de 2012, sobre a 51ª Sessão do Comitê para
a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres, dão conta de que no Brasil, conforme a ONU, morrem por ano
200 mil mulheres em decorrência de abortos inseguros. Em resposta, o Ministro da Saúde, Sr. Alexandre Padilha,
questionou os dados, ao afirmar que houve confusão pois esse é número anual de curetagens no sistema público de
saúde, o que é diferente de mortes.
Metade dos casos de câncer de mama diagnosticados está em estágio avançado. Correio Braziliense. Disponível em:
<www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/ciencia-e-saude>. Acesso em: 15 fev. 2012.
270
do governo do ex presidente Lula com o tema em questão, e contribuiu no debate da
saúde. Em 2006, depois de insistente luta de setores do movimento negro, o Conselho
Nacional de Saúde aprovou a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra. Dois anos mais tarde, sua implementação é acordada na Tripartite,16 e, em seguida, referendada por portaria em 2009. Essa política, mesmo que aprovada com muito
atraso na história do Brasil, finalmente reconheceu o racismo como determinante social
de saúde: “Falar de saúde da população [negra] é inserir o racismo no campo da dimensão sociocultural do processo saúde doença, é ter o racismo como categoria analítica das
condições do nascer, viver e morrer, é ter o racismo como um dos determinantes sociais
de saúde” (BARBOSA, 2011).
Essa política pode se transformar num instrumento importante no sentido de impulsionar o Estado brasileiro a assumir de forma mais consistente o tema do racismo.
Mesmo que o país já tenha dados suficientes para indicar a existência do racismo desde a
área específica da saúde, o ritmo do Estado brasileiro para enfrentar o problema é muito
lento. Isso fica comprovado pela denúncia feita por Jurema Werneck, ao analisar os dados do próprio Ministério da Saúde:
Da verba destinada ao programa Brasil Quilombola, de R$ 1 milhão, e das ações de “promoção da equidade em saúde de populações em condições de vulnerabilidade”, de R$
4,7 milhões, nem um tostão foi aplicado. Dos quase R$ 257 mil destinados a pacientes
portadores de hemoglobinopatias, apenas 27,9% foram utilizados; nas políticas de atenção
à saúde da mulher (cerca de R$ 8,7 milhões), 95,4% não foram condições de vulnerabilidade”, de R$ 4,7 milhões, nem um tostão foi aplicado. Dos quase R$ 257 mil destinados a
pacientes portadores de hemoglobinopatias, apenas 27,9% foram utilizados; nas políticas
de atenção à saúde da mulher (cerca de R$ 8,7 milhões), 95,4% não foram executados
(WERNECK, 2009).
Para além dos dados sobre os gastos com o tema, é possível apontar uma grande
morosidade entre diversos gestores estaduais e municipais em assumirem a implantação
da Política Nacional em seus respectivos estados e municípios. Esse fato pode levar a
concluir que, para além do desconhecimento da política pública, há também uma resistência em implantá-la, fruto do não reconhecimento da existência do racismo nas suas
respectivas regiões e serviços públicos.
16
Instância que reúne as três esferas de governo: União (através do Ministério da Saúde), Estados (através do Conselho
Nacional de Secretários de Saúde-Conass) e, Municípios (através do Conselho Nacional de Secretarias Municipais
de Saúde-Conasems).
271
Considerações finais
É inegável que o Brasil deu passos significativos em relação à garantia e à realização do direito humano à saúde desde a nova Constituição. Já dizíamos no início da
reflexão que o conteúdo constitucional não pode encerrar o direito à saúde. No entanto, a criação do SUS, consagrado na Constituição, é para o país um marco estrutural,
pois a sua criação permitiu que a saúde fosse compreendida a partir dos princípios da
universalidade, integralidade, equidade e da democracia. Criar o SUS num contexto
internacional de implantação do neoliberalismo, que é adverso aos direitos humanos,
especialmente dos direitos sociais, foi uma conquista importante e que precisa ser
qualificada. Nessa perspectiva, mesmo diante de todas as críticas, o país está se convencendo, e os dados mostram isso,17 de que o SUS melhorou o acesso e as condições
sanitárias do país.
Esses avanços inegáveis, não podem limitar a capacidade de crítica da sociedade
diante dos limites e dificuldades da política pública da saúde. Se o caminho para a
garantia do direito à saúde foi a construção do SUS, a sua implantação está sofrendo
inúmeros obstáculos. A começar pela dificuldade de figurá-lo como prioridade no
desenvolvimento do país, passando pelo limite no financiamento e sua relação complicada com a saúde privada, é possível afirmar que ainda estamos muito distantes de
garantir o direito à saúde para todos e todas. Os indicadores levantados nesse texto
corroboram essa afirmação. A superação desses obstáculos é urgente para que todas as
brasileiras e brasileiros tenham uma saúde de qualidade. À sociedade, cabe um papel
insubstituível de propor com mais força esta agenda para seguirmos na radicalização
da democracia brasileira.
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SUS e serão inscritos na dívida ativa. 16 de julho de 2012. Disponível em:
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17
Uma pesquisa do IPEA mostrou que 80,7% da população que recebeu atendimento no programa Saúde da Família, o
avaliou como bom ou muito bom. “A pesquisa indica ainda que ‘avanços proporcionados pela criação e implantação
do SUS estão sendo percebidos pelos entrevistados como valores sociais relevantes”. A gratuidade da rede foi o ponto
positivo mais citado (52,7%), seguido por atendimento sem nenhum preconceito (48%) e distribuição gratuita de
medicamentos (32%)” (IPEA, 2011).
272
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274
DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO À TERRA:
direito da sociedade e dever constitucional do Estado
Fernando G. V. Prioste*
Tchenna Fernandes Maso**
Se país rico é país sem miséria, não se pode buscar erradicar a pobreza extrema sem
perseguir a desconcentração fundiária. Nunca na história desse país se pode observar a
estruturação de uma política pública séria de democratização do acesso a terra. Coube
aos movimentos sociais historicamente o papel de lutar por este direito, mas apesar dos
avanços conquistados ainda não foi possível estruturar o Estado para que realmente enfrente o problema agrário.
O Brasil apresenta um dos maiores índices de desigualdade social do mundo. Hoje
é a 7ª maior economia do globo e o 84º país no ranking de desenvolvimento humano.
Não por acaso, também possui um alto índice de concentração de terras: “um por cento
dos proprietários rurais controla 45% de todas as terras cultiváveis da nação, ao passo
que 37% dos proprietários rurais possuem apenas 1% da mesma área” (CARTER, 2010).
Segundo o Censo Agropecuário de 2006, do IBGE, à concentração fundiária brasileira
corresponde um índice de Gini de 0,872, ocupando a segunda posição mundial neste
aspecto, perdendo apenas para o Paraguai1, com índice de Gini de 0,94 (BANCO MUNDIAL,
2007). O índice de concentração fundiária de 2006 se mostrou estável ante aos apurados nos
censos de 1985 (0,857) e 1995 (0,856), confirmando uma concentração fundiária inaceitável
no Brasil.
* Assessor jurídico da Organização de direitos humanos Terra de Direitos.
** Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná.
1 Destaque para o fato de que a concentração de terras no Paraguai advém da grande participação brasileira no agronegócio do país.
275
A profunda desigualdade social na sociedade brasileira está diretamente relacionada com a histórica negação de acesso aos meios de produção à população, começando
pelo acesso a terra. A democratização do acesso a terra é uma política necessária ao
Brasil para garantir justiça social, erradicação da pobreza extrema e diminuição das desigualdades sociais.
Contudo, historicamente as políticas fundiárias do Estado brasileiro não estiveram comprometidas com a democratização do acesso a terra, em que pese os importantes avanços na criação de novos projetos de assentamentos de reforma agrária,
criação de unidades de conservação, demarcação de terras indígenas e titulação de
territórios quilombolas.
Nesse contexto, vale destacar que a concentração de terras permanece, ainda que o
processo de reforma agrária tenha obtido avanço significativo. Até o ano de 1985 existiam 67 projetos de assentamentos de reforma agrária, com 117 mil famílias assentadas,
totalizando 9,8 milhões hectares de terras incorporadas ao processo de reforma agrária.
Hoje existe 8.792 projetos de assentamento, com 921 mil famílias assentadas, totalizando
85 milhões de hectares2 de terra incorporados à reforma agrária. Assim, mesmo com a
expansão significativa de assentamentos no período posterior à Constituição Federal de
1988, a concentração fundiária aumentou.
Neste período foram criadas unidades de conservação federais que hoje totalizam 75.458.800 hectares, além de 50.945.700 hectares em unidades de conservação estaduais (MEDEIROS; YOUNG, 2011), demarcadas terras indígenas que hoje totalizam
109.741.229 hectares (FUNAI)3 e titulados territórios quilombolas que chegam a 987.935
hectares (INCRA).4 Contudo, o avanço conseguido pelos movimentos de luta pela terra
não foi suficiente para efetivamente democratizar o acesso a terra no Brasil.
Com tais dados observa-se que as medidas a serem adotadas na busca pela democratização do acesso a terra devem ser muito mais amplas do que as efetivadas até o
momento. Também é possível concluir que existe uma forte tendência de concentração
fundiária no Brasil uma vez que, mesmo disponibilizando mais de 10% das terras do
país para políticas de desconcentração, o índice de Gini se manteve estável nos últimos
trinta anos.
Sabe-se que a criação de assentamentos de reforma agrária, demarcação de terras
indígenas, titulação de territórios quilombolas e a criação de unidades de conservação
de uso sustentável só ocorreram diante das lutas dos movimentos sociais. Não fosse a
atuação destes a concentração fundiária teria aumentado em índices alarmantes, com
maior aumento da pobreza e da desigualdade social. Porém, os movimentos sociais brasileiros não estão isolados na estratégia de reduzir desigualdades sociais através da garantia de realização do direito a terra.
2
3
4
Equivale a aproximadamente 10% do território nacional.
Fonte: FUNAI www.funai.gov.br
Fonte: INCRA www.incra.gov.br
276
No plano internacional a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) editou, no ano de 2011, diretrizes voluntárias com o objetivo de assegurar a governança da terra, entendendo que a democratização do acesso a terra é
fundamental para superar desigualdades sociais. Neste sentido, apontou a FAO (2011):
El alivio del hambre y la pobreza y el uso sostenible del ambiente dependen en gran medida
de la forma en que las personas, las comunidades y otros grupos consiguen acceder a la tierra,
la pesca y los bosques. Los medios de vida de muchos individuos, en especial la población rural pobre, están determinados por el acceso seguro y equitativo y el control de unos recursos
que son fuente de alimentos y refugio; constituyen el fundamento de las prácticas sociales,
culturales y religiosas, y representan un elemento primordial del crecimiento económico.
Da mesma forma, em 2010, o Relator Especial da ONU para o Direito à Alimentação também reconheceu explicitamente a necessidade de democratizar o acesso a terra
como medida indispensável para buscar reduzir desigualdades sociais. Neste sentido:
Acesso a terra e a segurança da posse são essenciais para garantir o gozo do direito à alimentação, mas também outros direitos humanos, incluindo o direito ao trabalho (para agricultores
sem terra) e o direito à moradia. Este fato levou o ex-Relator Especial do Direito à Moradia adequada a concluir que o Conselho de Direitos humanos da ONU deveria “garantir o reconhecimento do direito a terra como um direito humano na legislação internacional sobre direitos
humanos”. O presente relatório também confirma tal conclusão, tendo o direito à alimentação
como ponto de partida. Este relatório descreve uma crescente pressão sobre a terra. Assim, discute sobre o direito dos agricultores garantirem a posse da terra e o acesso a recursos naturais.
Também argumenta em favor de uma distribuição mais equitativa da terra (SHUTTER, 2010).
Estas considerações reforçam aquilo que o plano nacional dos movimentos sociais
tem pautado há anos: o modelo de produção agrícola do agronegócio brasileiro gera
concentração da riqueza e da terra, contribuindo para o aumento da desigualdade social. A principal alternativa é fomentar o desenvolvimento da agricultura familiar, o que
inclui políticas de acesso a terra, bem como de manutenção na mesma.
Contudo, infelizmente, o Estado brasileiro tem fomentado o modelo de desenvolvimento do agronegócio, em detrimento do fomento à produção da agricultura familiar.
Essa disparidade no acesso a políticas públicas entre o agronegócio e a agricultura familiar não se justifica, ainda que no plano puramente econômico.
Os dados do Censo agropecuário de 2006 mostraram que a agricultura familiar
representa 84% do número de estabelecimentos rurais, ocupando apenas 24,03% das
áreas cultivadas no Brasil, assim operando com renda 10 vezes menor que 16% dos estabelecimentos da agricultura não familiar. Ainda assim, a agricultura familiar produz a
maior parte dos alimentos consumidos no mercado interno (cerca de 60%) e gera mais
empregos por hectare que o agronegócio.5
5
Segundo estudo produzido pela CPT (2011): “Cruzando as ocupações com o tamanho da terra, a classe de área de
menos de 50 ha gera uma ocupação a cada 6,7 ha, enquanto a classe de área acima de 1000 hectares gera uma ocupação a cada 411,56 ha”.
277
Mesmo quando se trata de utilizar eficientemente as verbas públicas para produção,
a agricultura familiar tem mostrado melhor desempenho. No Estado do Mato Grosso do
Sul (berço do agronegócio) quando se trata da produção de soja (maior commoditie do
agronegócio) a agricultura familiar é quase dez vezes mais eficiente6 no uso de créditos
que a agricultura praticada nos latifúndios.
A justificativa para o abismo de desigualdade entre latifundiários e camponeses, no
acesso ao crédito e outras políticas públicas, estaria vinculada a uma suposta grande contribuição que o agronegócio traria para a balança comercial brasileira através da elevação
do PIB. Contudo, vale destacar que a contribuição do agronegócio para o PIB Brasileiro,
segundo pesquisa elaborada pelo IPEA, está superestimada7 em aproximadamente 33%.
Diante desse cenário de participação do agronegócio no PIB brasileiro, e da sua suposta contribuição para o superávit da balança comercial, é imprescindível destacar que:
[...] se, de um lado, o modelo de desenvolvimento agropecuário é competitivo no mercado
globalizado, de outro, essa posição não é resultado apenas dos ganhos de produtividade
e eficiência do setor. Historicamente, o Brasil destinou, e continua destinando, grandes
somas de recursos públicos financiando pesquisa, assistência técnica, disponibilizando recursos fartos e baratos para o crédito rural, etc., para sustentar este modelo baseado na
monocultura extensiva e na concentração de renda e terra. Esta opção de desenvolvimento,
além dos impactos ambientais e sociais, se traduz em custo público, portanto, financiado
pelo conjunto da sociedade brasileira (SAUER, 2010).
Sabe-se que durante o governo Lula houve um aumento do financiamento da agricultura familiar. A disponibilidade de crédito no Pronaf saltou de 2,376 bilhões em 2002
para 10,791 bilhões em 2010. Junto a esse aumento é importante reconhecer que políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) tiveram significativo
impacto favorável à agricultura familiar. Porém, como já afirmado, as ações de Estado
ainda estão longe de alcançar a demanda apresentada pela agricultura familiar ou de diminuir a desigualdade de acesso a políticas públicas entre o latifúndio e os camponeses.
Essa desigualdade continua a tencionar pela concentração fundiária.
Buscando compreender o movimento do Estado brasileiro no último período, tendo como enfoque uma ação de médio e longo prazo para o desenvolvimento da agricultura familiar, é possível dizer que a prioridade continua sendo o agronegócio em relação
à agricultura familiar. A avaliação pode ser confirmada quando se trata de analisar algumas importantes mudanças estruturantes que estão sendo desenvolvidas no país.
6
Segundo estudo produzido pela CPT (2011): “A pequena unidade (menos 50 ha) é quase dez vezes mais eficiente do
que a grande unidade, porque acessou R$ 45.606.000 (2,45%) de recursos públicos e respondeu por R$ 434.460.000
(12,19%) do valor de produção agropecuária. Enquanto que a grande unidade que acessou R$ 1.472.448.000,00
(78,97%) respondeu por 1.823.344.000,00 (51,17%). É mais um dado do IBGE a confirmar a eficiência da pequena
unidade de produção”.
7 Seguindo a crítica presente em estudo do IPEA (2011) calcula-se o tamanho da contribuição do agronegócio ao produto nacional e a sua participação relativa no PIB, pela simples agregação ao agronegócio de todo o valor adicionado
das atividades a ele relacionadas, acabando por superestimar a importância do PIB do agronegócio no PIB do Brasil.
278
Ao menos quatro temas chamam a atenção nos últimos quatro ou cinco anos: 1) Alterações no Código Florestal; 2) Alterações na legislação que trata da compra de terras por
estrangeiros; 3) Implementação do programa Terra Legal na Amazônia; e 4) Implementação
da política de pagamentos por serviços ambientais. Avalia-se que o implemento dessas medidas contribui para a expansão do modelo do agronegócio e dificulta o desenvolvimento
da agricultura familiar, contribuindo assim para uma maior concentração de terras.
As propostas de mudanças do Código Florestal consolidam extensas áreas irregularmente ocupadas pelo agronegócio, trazendo maior “segurança jurídica” para o investimento privado que avança sobre áreas que deveriam estar preservadas, aumentando
ainda a área de produção do agronegócio. Também concede aos latifundiários permissivos de manejo de Área de Preservação Permanente (APP) e Reserva Legal (RL) que
antes só eram permitidos à agricultura familiar.
Praticamente desobrigam o cumprimento da função socioambiental da propriedade, uma vez que pretende transferir toda a responsabilidade de preservação para o
Estado. A RL e a APP são medidas administrativas de intervenção do interesse público
e social, através do Estado, na propriedade privada. Sem o dever de respeitar o mínimo
florestal por propriedade de forma a garantir as funções ecológicas dos biomas, desconstitui-se, em grande medida, a possibilidade de desapropriação da propriedade por não
cumprir com sua função ambiental ou socioambiental, dever constitucional previsto no
art. 186, II, da Constituição Federal.
Essas mudanças propostas beneficiarão mais o agronegócio do que a agricultura
familiar. As dificuldades da agricultura familiar com a produção em áreas de APP e RL
podem ser resolvidas sem mudanças legislativas através da adoção de políticas públicas
que fomentem a utilização dessas áreas na forma sustentável que a agricultura familiar já
maneja, mas carece de autorização formal dos órgãos responsáveis para ser regularizada.
No mesmo sentido, a flexibilização do Código florestal não trará à agricultura familiar
o acesso à terra de que tanto necessita. O setor ruralista tem propagado que as alterações
na RL e na APP favoreceriam o acesso a terra para a agricultura familiar, como se fosse
uma saída para o problema de falta de terras. Contudo, estudo do IPEA é elucidador no tema:
No Brasil, os minifúndios somam 3,4 milhões de imóveis e detêm uma área de 48,3 milhões de hectares. Para tirá-los dessa condição, ou seja, garantir que esses imóveis tenham,
no mínimo, um módulo fiscal e dar acesso pleno a terra a seus proprietários, seriam necessários 76 milhões de hectares adicionais. A liberação das áreas de RL para esses imóveis
adicionaria somente 17 milhões de hectares. Dos mais de 5,5 mil municípios brasileiros,
somente 232 conseguiriam superar a condição de minifúndios de seus imóveis com a liberação da RL. Portanto, não seria a flexibilização do Código Florestal que resolveria a
situação dos minifúndios no Brasil (IPEA, 2011).
Neste sentido pode-se afirmar que a revisão das normas sobre aquisição de terras
por estrangeiros não trará praticamente nenhum benefício à agricultura familiar. Uma
maior permissividade à compra de terras por estrangeiros apenas aumentará a pressão
279
sobre as terras da agricultura familiar, aumentando a especulação imobiliária e o preço
dos imóveis. Apenas os setores da agricultura dependentes de grandes financiamentos
internacionais para produção serão beneficiados com essa mudança normativa.
Já o programa Terra Legal é simbólico, pois retira o foco da necessidade de realização da reforma agrária através da fiscalização do cumprimento da função social da
propriedade. Mostra-se, ainda, como política que pode ter grandes reflexos na legalização da grilagem de terras. Por fim, há de se reconhecer que no plano formal a política
de regularização fundiária do Terra Legal foi arquitetada de forma a tentar impedir uma
burocracia elevada nos processos administrativos, o que explicita a disparidade de tratamento ante aos excessivamente burocráticos processos administrativos de regularização
fundiária de povos e comunidades tradicionais, por exemplo.
Por sua vez, a agenda da “economia verde” não prevê significativa mudança dos
padrões de produção, pois atribui preço à biodiversidade privatizando os bens comuns
como se fosse um modelo de preservação ambiental. Essa agenda traz consigo ajustes na
estrutura das políticas públicas ambientais que alteram o próprio conceito de soberania
do Estado, e dos povos e comunidades, sobre o território e os recursos naturais.
Para que as políticas de pagamentos por serviços ambientais possam formar o mercado nacional da biodiversidade, é indispensável que os títulos de crédito representativos da preservação ambiental possam ser fiscalizados quanto à sua existência. Ou seja,
para que se faça o pagamento é necessário ter certo grau de certeza quanto à preservação ambiental em determinada porção de terra representada no título. Dessa forma,
consubstancia-se o fato de que o agricultor familiar que vender seus serviços ambientais terá sua terra fiscalizada por particulares que lhes restringirão o acesso e o manejo
fundando-se nos contratos de pagamentos por serviços ambientais.
Dessa forma, as terras da agricultura familiar passariam a ser gravadas com o ônus
de realizar compensações ambientais massivas em favor da manutenção do insustentável padrão de produção do agronegócio. Assim, não poderão ser utilizadas, ainda que
de forma sustentável e tradicional, pela agricultura familiar. Tal política, ao invés de
fomentar as práticas agrícolas típicas da agricultura familiar fará dos agricultores vigias
florestais de suas próprias terras.8
Diante desse cenário não é difícil constatar que essas ações estruturantes no campo
da agricultura não contribuem para fortalecer a agricultura familiar e a democratização
do acesso a terra. Para além dos quatro temas apontados é necessário registrar as dificuldades enfrentadas para efetivar políticas públicas relacionadas com a democratização
do acesso a terra. Nesse sentido, é necessário apontar que o INCRA, órgão oficialmente
responsável pela realização das principais políticas públicas de acesso a terra, necessita
de grande apoio institucional do Estado para cumprir de modo eficaz sua missão.
8 Sobre o tema dos pagamentos por serviços ambientais recomenda-se a leitura de: PACKER, Larissa. Pagamento por
serviços ambientais e flexibilização do Código Florestal para um capitalismo “verde”. Terra de Direitos, 2001. Disponível em: <http://terradedireitos.org.br/biblioteca/pagamento-por-servicos-ambientais-e-flexibilizacao-do-codigo-florestal
-para-um-capitalismo-verde/>. Acesso em: 17 de julho de 2012.
280
Dentre as atribuições do INCRA está a de fiscalizar o cumprimento da função social da propriedade rural e realizar a reforma agrária, titular terras de comunidades quilombolas, fazer desintrusão em áreas indígenas e em unidades de conservação federais,
reassentar famílias atingidas por barragens, além de certificar todos os imóveis rurais e
de organizar a malha fundiária do país.
Hoje o INCRA tem um estoque de 1076 processos administrativos de titulação de
territórios quilombolas, uma demanda de assentamento de 186 mil famílias acampadas,
demanda para desintrusão de 7.167 famílias não índios e de posseiros em unidades de
conservação, reassentamento de 10.402 famílias atingidas por barragens, contando ainda com o fato de que apenas 13,5% da área total cadastrada no INCRA esta certificada,
comprometendo o seu controle e confiabilidade.
Constata-se que a missão do INCRA é de grande relevância para o futuro do país,
mas, infelizmente, sabe-se que o órgão não dispõe da estrutura e do apoio político necessário para realizar sua complexa missão institucional.
Para um bom funcionamento do INCRA seria indispensável redesenhar a sua matriz organizativa e potencializar a formação do quadro profissional permitindo maior
diálogo com os movimentos sociais. Ao mesmo tempo, se mostra necessário investir
na contratação de funcionários, uma vez que já existe grande defasagem e aproximadamente 25% dos atuais funcionários já estão em condições de aposentadoria. Além disso,
a autarquia necessita de mais recursos, já que tem hoje cerca de 1,2 bilhão de recursos
inscritos em restos a pagar sem o correspondente recurso financeiro.
Para o cumprimento de sua missão o INCRA também necessita de instrumentos
ágeis e seguros de fiscalização da função social da propriedade rural, de modo a viabilizar a desapropriação para fins de reforma agrária. Potencializar as possibilidades de
desapropriação de propriedades com violações à legislação ambiental e trabalhista, somada à indispensável necessidade de atualização dos índices de produtividade, estas são
ações políticas fundamentais para o INCRA realizar sua missão institucional.
A situação apresentada evidencia que o Estado brasileiro não está considerando, no
plano das ações institucionais, a democratização do acesso a terra como medida imprescindível para a redução das desigualdades sociais. Essa opção política dos governos brasileiros
é adotada independente dos dados e estudos, nacionais e internacionais, que recomendam
uma postura política diametralmente oposta. Prefere o Estado brasileiro não enfrentar a
elite agrária e financeira que se enriquece às custas da geração de desigualdade social.
Nota-se que os movimentos sociais têm um protagonismo histórico fundamental
na manutenção política da agenda da democratização do acesso a terra, sendo os reais
responsáveis por impedir um aumento concreto na concentração de terra. Isto, num
cenário em que o Estado brasileiro não adota políticas públicas que alteram a correlação
de forças, contribuindo para a manutenção da estrutura desigual do acesso a terra. Nesse
sentido, caberá à sociedade brasileira impor ao Estado uma mudança de postura política
no enfrentamento da questão agrária.
281
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282
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283
ACESSO À JUSTIÇA COMO SINÔNIMO DE PAZ:
um desafio à realização dos direitos humanos no Brasil
Léia Tatiana Foscarini*
Falar de acesso à justiça implica, além de outras questões, adentrar na complexidade do que se entende por justiça. Neste contexto o termo é frequentemente tratado como
sinônimo de poder judiciário, como se acessar este poder fosse a configuração do efetivo acesso à justiça. Muito embora a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XXXV
mencione que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito”, ousamos pensar além, lançando olhares sobre alguns enfoques demandados a
partir desse tema amplo, instigante e profundo.
1. Uma definição de acesso e de justiça
Considerando que a abordagem sobre o acesso à justiça se dá dentro do contexto
brasileiro, compreendendo tal acesso como um efetivo direito, mas também com olhar
voltado para a garantia de outros direitos humanos decorrentes desse acesso, pode-se dizer
que justiça deve ser sinônimo de paz, compreendida como finalidade, busca constante e
incessante do direito, conforme inspiração de Ihering, quando afirma que: “a ideia do direito encerra uma antítese que se origina nesta ideia, da qual jamais se pode, absolutamente, separar: a luta e a paz; a paz é o termo do direito, a luta é o meio de obtê-lo” (2000, p. 22).
*
Advogada militante em Direitos Humanos. Integrante do Projeto Intervenções exemplares em casos de violações de
Direitos Humanos, desenvolvido pela ANCED através do Instituto de Acesso à Justiça, em Porto Alegre, RS. Mestre
em Ciências Criminais pela PUCRS. Professora de Direito Penal e Direito Processual Penal na Universidade de Passo
Fundo (RS).
285
Assim, embora a justiça deva ser lida como o fim a que se destina o direito, há nesse
acesso à paz – aqui traduzida como justiça – a implicação da necessária luta. Tal circunstância, porém, não deveria significar empecilho, dificuldade, problema ou sofrimento, mas
sim empenho de todos – inclusive dos poderes e dos poderosos – para que o alcance da justiça efetiva não reste vazio, perdendo-se na letra fria das leis e decisões judiciais, não raras
vezes sem sentido, presente nos infindáveis processos empilhados nos cartórios judiciais.
Desse modo, justiça deve ser o mesmo que paz, compreendida como algo pleno de realização. Não se trata de falar em acomodação e isolamento. Ao contrário: Justiça é coisa viva,
que pulsa. É elemento que integra a possibilidade de estar, de ser e se manter vivo com plenitude e dignidade. Acessar é o mesmo que alcançar, tomar nas mãos, dispor efetivamente.
2. O abismo entre o horizonte e a poeira do dia a dia: injustiças
cotidianas e desafios político-institucionais
Assim, tendo os olhos lançados no horizonte onde paira o desejo desse acesso, os
pés e as mãos não o alcançam, dado que no cotidiano das relações se deparam com milhares de brasileiros e de brasileiras: 1) sem moradia digna, e alimentação de qualidade,
que tampouco ascendem aos postos de trabalho mais bem remunerados ou aos cargos
que requerem maior qualificação profissional; 2) que são presos diuturnamente, ou que
morrem nas filas de atendimento em busca de “saúde”; e 3) mulheres que são assassinadas enquanto aguardam o deferimento de alguma “medida protetiva” ou de alguma
outra medida capaz de cessar a dor e a violência, muitas vezes silenciada por séculos de
submissão decorrente de uma cultura machista ainda vigente.1
Os pés caminham ao lado dos que aguardam pelo medicamento não fornecido
pelo Estado e que por isso foi necessário pedir na “justiça”. Há ainda, aos bandos, brasileirinhos e brasileirinhas – crianças e adolescentes2 – sendo prostituídos, explorados, espancados, mortos, além dos já crescidos, que morrem um pouco a cada dia respirando a
fumaça espessa das descargas dos caminhões que cortam as estradas enquanto esperam,
pacientemente, que a “justiça” lhes conceda uma terra para habitar e viver, simplesmente. São agricultores sem terra, indígenas e sem teto espalhados pelas margens de sul a
norte deste imenso Brasil.
1
Dados relacionados às violências e aos direitos da mulher podem ser obtidos nos seguintes endereços: www.sepm.gov.
br/nucleo/dados; www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/pesquisas-de-opiniao-publica/pesquisas-realizadas/pesquisa-mulheres-brasileiras-nos-es; www.institutoavon.org.br/wp-content/themes/institutoavon/pdf/iavon_0109_pesq_
portuga_vd2010_03_vl_bx.pdf; www.observe.ufba.br/dados; www.sangari.com/mapadaviolencia/#mulheres.
2 Sobre o tema, importante referir o Mapeamento dos Pontos Vulneráveis à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas Rodovias Federais Brasileiras, disponível em: www.childhood.org.br/Mapeamento%202009_2010.pdf.
Acesso em: 16 de julho de 2012, bem como o Mapa da Violência, produzido e publicado pelo Instituto Sangari, disponível em www.sangari.com/mapadaviolencia/. Acesso em: 16 jul. 2012.
286
Justiça é a efetividade do direito garantido. Entretanto, a complexidade se intensifica
e a dificuldade do acesso à justiça no Brasil ganha forma quando se vislumbra que na
prática o direito de uns não é o direito de outros. Lei e direito, justiça e paz nem sempre
são lidos sob uma mesma lupa. Assim, acessar o sistema de justiça brasileiro nem sempre
significará acesso ao direito, quiçá à justiça.
Contudo, não se desconhece a importância do direito de ter as demandas e violações sofridas apreciadas pelo poder judiciário, conforme assegurado constitucionalmente. Ocorre que, embora haja tal previsão, para que isso aconteça se faz necessário o
exercício da capacidade postulatória, privativa da advocacia, que demanda pagamento
aos profissionais pelo trabalho desenvolvido. Ademais, ultrapassada essa barreira inicial,
ainda que se alcance a tutela jurisdicional, o teor das decisões e o tratamento destinado
aos feitos não segue a isonomia constitucional.
Desse modo, lamentável e perigosamente pode-se dizer que mais uma vez o acesso
à esfera formal de apreciação do direito se relaciona de maneira perversa com as disparidades socioeconômicas da população, implicando na reprodução das desigualdades
e das injustiças operadas no cotidiano. Dessa forma, as próprias instituições brasileiras
vão operando seleções:
[...] diuturnamente recorte de classe, gênero, raça e outros tantos mais na prestação de
serviços e na realização de direitos. O tipo de tratamento obtido no Judiciário por um/a
empresário/a que pode pagar um ótimo escritório de advocacia é totalmente diferente daquele obtido pelo trabalhador que contra ele luta [...] (ANCED, 2010, p. 96).
Assim, considerando que a maioria da população não ostenta condições financeiras
para arcar com custas processuais e honorários advocatícios vultuosos, tem-se que a insuficiência e/ou a inexistência de defensores e defensoras públicas – que ocorre em diversas
localidades brasileiras – bem como da destinação de recursos e condições adequadas
para o atendimento das maiorias pobres e carecedoras de direitos, faz com que reste
prejudicado e muitas vezes inatingível o acesso ao poder judiciário como instância onde
se deposita a última esperança de acesso à justiça.
3. A construção de alternativas e a revisão de paradigmas como desafios
ao enfrentamento do modelo seletivo e estigmatizante
No Brasil vê-se frequentemente que uma parcela da população – a dos empobrecidos, sem teto, sem terra, sem emprego, sem acesso à educação, etc. – acaba por conhecer
o sistema de justiça pelas vias do direito penal, quando então o Estado lhes alcança, a
partir de uma tendência a criminalizar e punir problemas sociais. É o que acontece com
287
as políticas agrícolas, de educação, habitação, reforma agrária, incentivo a cultura dentre
outras. Em tese, a afirmação de um Estado Democrático de Direito no Brasil ampara
suas bases em princípios assegurados constitucionalmente, onde o direito se constitui
no principal instrumento de expressão do poder do Estado.
Contudo, as condições de vida dos cidadãos em relação aos direitos e garantias constitucionais como a liberdade e a igualdade, são concretizadas apenas formalmente, já que seu
exercício depende não somente da vontade individual, mas também das condições socioeconômicas, políticas e culturais de que dispõem as pessoas, além das relações estabelecidas
socialmente. Assim, a inexistência de uma igualdade material compromete a efetivação de
uma convivência livre de conflitos das mais variadas formas. “[...] O próprio enunciado do
princípio – ‘todos são iguais perante a lei’ – nos dá conta de sua inconsistência, visto que a lei é
uma abstração, ao passo que as relações sociais são reais” (GRAU, 1996, p. 118). Essa igualdade
formal positivada se apresenta ainda na figura do sistema penal que é apresentada pelo Estado.
O sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de
suas condutas, quando na verdade seu funcionamento é seletivo, atingindo apenas determinadas
pessoas, integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas. [...] o sistema
penal é também apresentado como justo, na medida em que buscaria prevenir o delito, restringindo sua intervenção aos limites da necessidade, [...] quando de fato seu desempenho é repressivo, seja pela frustração de suas linhas preventivas, seja pela incapacidade de regular a intensidade
das respostas penais, legais ou ilegais. Por fim o sistema penal se apresenta comprometido com
a dignidade humana [...] quando na verdade é estigmatizante, promovendo uma degradação
na figura social de sua clientela. [...] Seletividade, repressividade e estigmatização são algumas
características centrais de sistemas penais como o brasileiro (BATISTA, 2001, p. 24).
O ordenamento constitucional brasileiro, apesar do seu espírito igualitário, não
consegue reverter o contexto de iniquidade social, tampouco criar as condições políticas
para a inclusão de grupos expressivos da população nos quadros de cidadania formalmente regulada (CAMPILONGO, 2000, p. 56). Proteções, direitos, garantias do cidadão
previstas na Constituição são violados sob muitos pretextos, podendo ser a garantia da
ordem pública, o clamor social (quase sempre “traduzido” pelos meios de comunicação), dentre outros, o que se quer é indicar culpados e mostrar serviço exibindo mãos
algemadas e rostos envergonhados, e mais, que esses rostos satisfaçam a expectativa dos
expectadores, confirmando o estereótipo de criminoso pré concebido por estes. Importa
dizer que alguém é culpado, não importando em que condições isso se dá, mesmo com o
desrespeito aos direitos mais básicos da pessoa. Assim, não cabe falar em impunidade no
Brasil. Cabe sim, falar em quem fica impune e quem entra no filtro seletivo do sistema.
Os esforços do Governo Federal, especialmente, após séculos de abandono, começam a aparecer no sentido de repensar e reestruturar o sistema carcerário brasileiro. Trata-se de questão urgente, merecedora de prioridade absoluta, sob pena de continuarmos
caminhando para a barbárie e para a negação absoluta dos princípios que fundamentam
os direitos da humanidade, bem como daqueles orientadores de uma política democrática e cidadã como a que preceitua o regime assumido pelo modelo de Estado brasileiro.
288
4. Um outro lado da moeda: o direito de proteção às vítimas sob ameaça
Outro aspecto do acesso à justiça que merece atenção está na proteção às vítimas,
especialmente aquelas em situação de ameaça. Não se afirma aqui que a proteção e o
reconhecimento da justiça devem estar tão somente a serviço das vítimas, ao contrário,
devem estar a disposição e ao alcance de todas as pessoas. Porém, a justiça e o direito
quando violados fazem vítimas de um e de outro lado do litígio processual. A pessoa que
teve seu direito violado inicialmente, por quem quer que seja, deve receber por parte do
Estado uma maior atenção para evitar que volte a sofrer violências, principalmente em
decorrência da agressão já experimentada. O Estado tem o dever de agir no sentido de
garantir a necessária proteção às vítimas.
Nesse sentido, há no Brasil legislações e programas voltados para a atenção às vítimas, especialmente as ameaçadas, como é o caso, por exemplo, da Lei nº 9.807/1999, do
Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM), do
PROTEGE, do PROVITA, dentre outros. Tais instrumentos têm sido extremamente importantes e têm conseguido minimizar a problemática que envolve as ameaças e a vida
das vítimas. E, quando conseguem assegurar a efetiva e adequada proteção, garantem
uma forma de acesso à justiça.
Entretanto, os instrumentos que estão em vigor não conseguem responder de forma ampla e irrestrita a todas as situações que implicam violações de direitos e ameaças
às vítimas, especialmente quando envolvem vitimização decorrente da criminalidade e
do abuso de poder.
Entende-se, assim, que um grande desafio ao Estado brasileiro é a incorporação da
Declaração dos princípios fundamentais de justiça relativos às vítimas da criminalidade
e de abuso de poder,3 de maneira concreta e efetiva, no sentido de respeitar e atender aos
princípios legais e constitucionais brasileiros, bem como aos ditames internacionais de
Direitos Humanos, aperfeiçoando assim os instrumentos de proteção à vítima, no país.
3 Segundo a referida Declaração, são vítimas da criminalidade: Art. 1º: “Entendem-se por “vítimas” as pessoas que, individual ou colectivamente, tenham sofrido um prejuízo, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental,
um sofrimento de ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus direitos fundamentais, como consequência de actos ou de omissões violadores das leis penais em vigor num Estado membro, incluindo as que proíbem
o abuso de poder”. Art. 2º “Uma pessoa pode ser considerada como “vítima”, no quadro da presente Declaração, quer
o autor seja ou não identificado, preso, processado ou declarado culpado, e quaisquer que sejam os laços de parentesco
deste com a vítima. O termo “vítima” inclui também, conforme o caso, a família próxima ou as pessoas a cargo da vítima
directa e as pessoas que tenham sofrido um prejuízo ao intervirem para prestar assistência às vítimas em situação de
carência ou para impedir a vitimização.” São vítimas de abuso de poder: Art. 18: “Entendem-se por “vítimas” as pessoas
que, individual ou colectivamente, tenham sofrido prejuízos, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou
mental, um sofrimento de ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus direitos fundamentais,
como consequência de actos ou de omissões que, não constituindo ainda uma violação da legislação penal nacional, representam violações das normas internacionalmente reconhecidas em matéria de direitos do homem.” Declaração dos
princípios fundamentais de justiça relativos às vítimas da criminalidade e de abuso de poder. Disponível no site: www.
lgdh.org/Declaracao%20dos%20Principios%20Basicos%20de%20Justica%20relativos%20as%20Vitimas%20da%20
Criminalidade%20e%20de%20Abuso%20do%20Poder.htm. Acesso em 16 de julho de 2012.
289
Tal Declaração, também conhecida como Declaração das Vítimas, é um importante instrumento na garantia e construção dos direitos humanos. Foi adotada pela Assembleia
Geral das Nações Unidas na sua resolução 40/34, de 29 de novembro de 1985. Entretanto, em razão de não ser um Tratado assumido e assinado pelos Estados Membros, não
tem sido efetivamente implementada. De outro lado, é importante referir que tal Declaração consiste no único documento internacional a oferecer orientações aos Estados
Membros em relação às vítimas da criminalidade e abuso de poder.4
5. Direitos cidadãos e violência institucional
Retomando a ideia de acesso à justiça como a possibilidade concreta de desfrutar da paz – garantida e assegurada pelo direito, sem que necessariamente tenha que
ser exigida e perseguida pelas vias processuais – volta-se à discussão que circunda as
esferas material e formal dos direitos. Estar na lei, na constituição, nos tratados, nos
compromissos assumidos e não raras vezes tornados motivos de aplausos, premiações e
inclusive resultados vitoriosos em eleições, não basta. De outro lado, a formalidade não
materializada implica naquilo que se pode chamar de violência institucional, “uma vez
que esta é provocada justamente por quem deveria garantir direitos, porém, muitas vezes, desrespeita-os por omissão ou ação, resultando em um desgaste das bases de um tímido Estado Democrático de Direito” (MEDEIROS; ATHAYDE; KOELER, 2010, p. 59).
Desse modo, o aceso à justiça – o alcance palpável ao direito concreto – é barrado pelo próprio agente responsável por garantir esse acesso. Tremenda contradição! O
Estado assume a configuração de violador e a violência passa a ser institucionalizada,
exatamente por decorrer das falhas de suas instituições e organizações internas. Nesse
sentido, refere Figueiredo:
O Estado (ocidental, brasileiro) não viola direitos humanos por ter um soberano dotado de
poderes divinos ou superiores, mas por falha nas próprias instituições jurídicas em tornar a lei
real. Somado a isto, vive-se em uma sociedade complexa e multifacetada, na qual conquistas
históricas de direitos humanos que pareciam consolidadas são postas à prova diuturnamente.
Assim, a insurgência pode não ser em relação à norma, mas a políticas que, fingindo concretizá-la, desrespeita-a ou a debates públicos que desconsideram dados para reforçar uma visão
prejudicial da infância e da juventude brasileiras, a setores sociais reacionários que pretendem
fazer ruir direitos construídos por meio de séculos de enfrentamento (2010, p. 34-35).
De outro lado, esse mesmo modelo de Estado que não consegue responder efetivamente à garantia de direitos e passa a ser o violador dos próprios fundamentos, o
faz em nome da “garantia do acesso à justiça” (processual), em atenção a um modelo
4
Informação obtida junto ao site www.dhnet.org.br. Acesso em: 14 set. 2011.
290
jurídico-processual-penal punitivo. Desse modo, frequentemente opera a revitimização
daquelas já nominadas vítimas, “utilizando-as” tão somente como fonte de informação
dentro de um processo criminal (ROSENO, 2007, p. 179), e esquecendo a sua condição
de pessoas humana, merecedora e carecedora de respostas como ressarcimento, atendimento, reparação, compensação.5
6. Justiça: um direito difícil para as maiorias excluídas
Diante desse cenário o direito de acesso à justiça no Brasil demanda ainda um longo processo de transformações e construções, mais ainda considerando-se que:
Todo direito no mundo foi adquirido pela luta; esses princípios de direito que estão hoje
em vigor foi indispensável impô-los pela luta àqueles que não os aceitavam; assim, todo o
direito, tanto o de um povo, como o de um indivíduo, pressupõe que estão o indivíduo e o
povo dispostos a defendê-lo (IHERING, 2000, p. 22).
Isto não nega a luta pelo acesso à justiça, muito pelo contrário. Ainda que existam
grandes limitações, especialmente aquelas que se apresentam desproporcionalmente,
ora entre quem busca o acesso à justiça e o poder de onde tal direito “emana”, ora entre
a própria possibilidade de defesa das partes de um litígio, onde “[...] a isonomia processual vem quebrada desde o planejamento de sua criminalização, esse povo pressionado,
acuado e sofrido, teima em resistir” (ALFONSIN, 2009, p. 29).
A resistência tem sido a luta dessa maioria excluída – maioria sim, não minoria
como se diz frequentemente, pois se somados, cada grupo excluído do acesso aos direitos humanos fundamentais, um só que fosse, teríamos certamente uma maioria composta por minorias. Basta enumerar alguns, como mulheres, pobres, negros, indígenas,
egressos do sistema carcerário, sem terra, sem teto, moradores de rua. Juntos são o rosto
do Brasil. Grupos vivos, capazes de manter acesa a chama que persegue a luta pelo fim
último do direito: a Justiça. Nas palavras de Alfonsin:
5
Sobre esse aspecto, destaca-se a discussão relacionada às vítimas crianças e adolescentes, “tendo por base o campo
de atuação dos centros de defesa, entendemos por responsabilidade civil a garantia que assegura os direitos humanos
infanto-juvenis por meio do ressarcimento, da reparação ou da compensação, por meio da articulação e integração
de instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, independentemente se a violação se deu pela infringência
de um dever jurídico, por um comportamento doloso ou culposo ou pela prática de conduta apontada pelo legislador
como atividade de risco, seja ele criado ou inerente à própria atividade ou coisa” (MEDEIROS; ATHAYDE; KOELER.
2010, p. 59). Entretanto, para além do atendimento adequado a crianças e adolescentes, trata-se, pois, de buscar a todas as pessoas, em qualquer situação, mas especialmente quando ameaçadas, “a defesa integral da vítima amenizando-se o processo de vitimização a que está sujeita, bem como resguardando a proteção cidadã que lhe está reservada
constitucionalmente” (MEDEIROS; ATHAYDE; KOELER. 2010, p. 77).
291
Mais do que mártires, essas pessoas estão vivas na fé que esse povo renova a cada agressão
que sofre. Ele não celebra cadáveres, portanto. Celebra o heroísmo e a resistência de quem
não se deixou dobrar pela aplicação das leis que, embora na letra até lhes reconheça direitos, são traídas por uma interpretação que no seu “espírito”, desconhece a diferença entre o
“legal” frio dos Códigos e o legítimo quente da vida digna que a ele é de-vida (2009, p. 29).
Em forma de luta e organização, a resistência é sinal vivo de que há possibilidade
de tomar nas mãos o direito garantido e firmar os pés onde os olhos, por ora, ainda fitam
o horizonte longínquo. A construção dos direitos humanos em sua integralidade passa
pela garantia do acesso à justiça a todas as pessoas, disto não se pode duvidar.
Referências bibliográficas
ALFONSIN, Jaques Távora. Da lei de proteção aos animais à lei que sacrifica os pobres
(em memória de Eltom Brum da Silva). In: Rio Grande do Sul. Assembleia Legislativa.
Comissão de Cidadania e Direitos Humanos. Relatório Azul 2009: garantias e violações
de direitos humanos. Porto Alegre: Corag, 2009.
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Estado Democrático de
Direito. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
FIGUEIREDO, Ivanilda. Da dinâmica institucional das violações a uma abordagem
crítica do Direito. In: ANCED. Repensando a Proteção Jurídico-Social: intervenções
exemplares em casos de violação de direitos humanos de crianças e adolescentes.
São Paulo: Anced, 2010.
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros
Editores, 1996.
IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. Trad. João Vasconcelos. 19. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2000.
MEDEIROS, Bruno Guimarães; ATHAYDE, Eliana; KOELER, Juliana. Responsabilização
civil. In: ANCED. Repensando a proteção jurídico-social: intervenções exemplares em casos de violação de Direitos Humanos de crianças e adolescentes. São Paulo: Anced, 2010.
ROSENO, Renato. O direito ao atendimento especializado da criança vítima de violência sexual: apontamentos sobre o papel das entidades de defesa jurídico-social.
In: FERNADES, Nair C B.; OLIVEIRA, Antônio Carlos. Violências contra crianças e
adolescentes: redes de proteção e responsabilização. Rio de Janeiro: Nova Pesquisa e
Assessoria em Educação, 2007.
292
Sites consultados
ALTO COMISSARIADO DIREITOS HUMANOS DA ONU: <www.ohchr.org/SP/PublicationsResources/Pages/Publications.aspx>.
PALÁCIO DO PLANALTO – LEGISLAÇÃO: <www4.planalto.gov.br/legislacao>.
FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO: <www.fpabramo.org.br>.
INSTITUTO AVON: <www.institutoavon.org.br>.
OBSERVATÓRIO UFBA: <www.observe.ufba.br/dados>.
INSTITUTO SANGARI: <www.sangari.com>.
CHILDHOOD: <www.childhood.org.br>.
293
DA SEGURANÇA PÚBLICA À SEGURANÇA CIDADÃ:
elementos para uma reflexão
Luis Emmanuel Barbosa da Cunha*
Rodrigo Deodato de Souza Silva**
Valdênia Brito Monteiro***
Nos grandes centros urbanos brasileiros e latino-americanos, em especial, durante
as últimas décadas, percebe-se o crescimento dos índices de violência. Os dados estatísticos em parceria com os alertas, por vezes excessivamente exploratórios, da grande
mídia, têm contribuído para que a temática da violência assuma o posto de uma das
maiores preocupações da sociedade de uma forma geral.
O aumento constante dos padrões de violência e do sentimento de insegurança
se apresenta como um empecilho grave ao processo de consolidação democrática para
os países que saíram a pouco tempo de tormentosas ditaduras cívico-militares, dentre
eles o Brasil.
O sentimento de temor expresso pela opinião pública, juntamente com as recorrentes ações ineficazes dos governos, nas mais diversas esferas, buscando reverter essa
realidade, têm fomentado gravosos processos de esgarçamento do tecido social, se tornando um obstáculo para a universalização da cidadania plena e ativa, além de alimentar o padrão de inefetividade dos Direitos Humanos. Tudo isto simplesmente mina a
confiança da população tanto na autoridade governamental quanto nas demais instituições que compõem o Sistema de Justiça e policiamento.
*
Coordenador do Programa Direitos Humanos Internacionais (DHI) do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP).
** Assessor Jurídico em Direitos Humanos Internacionais do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares
(GAJOP).
*** Coordenadora do Projeto Justiça Cidadã (NUIDH) do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares
(GAJOP).
295
Visando ampliar e reconfigurar o paradigma de segurança falido que pelo tempo
foi estabelecido, a proposta de uma segurança cidadã tem se apresentado como uma
saída à manutenção de um padrão cíclico e crescente de violência, objetivando por assim dizer a construção de uma cultura de respeito, reconhecimento e valorização dos
Direitos Humanos.
1. Segurança pública
A pesquisa “Retratos da Sociedade Brasileira: Segurança Pública”, realizada em outubro/2011 pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), em parceria com o IBOPE,
mostra uma tendência da opinião pública a considerar a saúde (52%) e a segurança
pública (33%) como dois dos maiores problemas enfrentados pela população brasileira.
Dentre os entrevistados, 51% consideram a situação da segurança pública no Brasil
“ruim” ou “péssima”, enquanto 36% a consideram “regular”. Apenas 12% a avaliaram
como “ótima” ou “boa”. O percentual dos que avaliaram a situação da segurança pública
como “ruim” ou “péssima” chega a 58% entre os entrevistados residentes na Região Nordeste e 57% entre os residentes nas periferias das capitais brasileiras. 45% da população
aumentaram os cuidados com a segurança nos últimos três anos. 80% dos entrevistados
mudaram seus hábitos devido à violência. A mudança mais frequente é evitar andar com
dinheiro. A violência vem restringindo a circulação da população pela cidade.
Os dados apresentados sobre a segurança são representativos para mostrar que
o tema tem sido o calcanhar de Aquiles a ser enfrentado pelo governo brasileiro, como
também por países com déficit de cidadania e vivência democrática. E por quê? Onde se
aumenta a vigilância através da polícia põe-se em xeque o Estado Democrático de Direito.
Conforme Rolim (2007), as polícias em todo o mundo raramente são, de fato, controladas. Elas possuem, pelo menos em muitas das experiências nacionais, uma autonomia perturbadora dentro do Estado Democrático de Direito e atuam, em regra, como
se não devessem prestar contas de seus atos cotidianos a uma autoridade. Esse mesmo
espaço de autonomia será também aquele que abrigará boa parte das distorções operantes no trabalho policial, além das práticas violentas e criminosas que comprometem a
própria imagem das polícias em todo o mundo.
Para Soares (2006), as polícias brasileiras:
De um modo geral, são ineficientes na prevenção e na repressão qualificada, na investigação
e na conquista da indispensável confiança da população. Problemas ligados à corrupção
e à brutalidade ultrapassam qualquer patamar aceitável. São refratárias à gestão racional,
não avaliam a própria performance, nem se abrem ao controle e monitoramento externos.
Não se organizam com base em diagnósticos sobre os problemas a enfrentar, o modo de
fazê-lo, as prioridades a definir e as metas a identificar. Não planejam sua prática, a partir
296
de diagnósticos, fundados em dados consistentes, nem corrigem seus erros, analisando os
resultados de suas iniciativas – os quais, simplesmente, ignoram. São máquinas reativas,
inerciais e fragmentárias, inscritas num ambiente institucional desarticulado e inorgânico,
regido por marcos legais rígidos e inadequados. Os profissionais não são apropriadamente
qualificados e valorizados e as informações não são ordenadas de acordo com orientação
uniforme, que viabilize a cooperação.
O termo segurança significa ausência de riscos ou perigos, efetivação de garantias,
tranquilidade de ânimos. A garantia da segurança pressupõe proteção do cidadão contra
qualquer ameaça tanto a sua integridade, como também ao patrimônio, organização
social, sistema político. Enfim, é um conceito que tem vínculo com o interesse coletivo.
Percebe-se que a segurança, enquanto política pública se constituiu como uma atividade de repressão a condutas consideradas delituosas, ou melhor, ao controle do crime, buscando a preservação da ordem pública contra a criminalidade. Rolim expõe que
no “Brasil, as convicções que consolidam o trabalho policial estão, também, informadas
por uma marcante tradição anti-humanista, pela qual a violência é “naturalizada” sempre que oferecida àqueles que habitam as margens das sociedades modernas, nomeados
na subcultura policial como ’vagabundos’” (ROLIM, 2007, p. 35).
A concepção de política pública de segurança sempre foi pautada por uma intervenção reativa ou repressiva, em detrimento da prevenção sobre os efeitos e não sobre as
causas da violência criminal. Ou seja, sobre os comportamentos expressivos dos conflitos e não sobre os próprios conflitos. Evidentemente que este modelo está consolidado
na repressão de uma classe social mais vulnerável. Este sistema está preparado para enxergar uma minoria de pessoas socialmente rotuladas, pertencentes aos baixos estratos
sociais, intervindo sobre indivíduos e não, sobre situações.
Em regimes democráticos, o conceito de segurança pública tende a fazer referência
principalmente à garantia dos direitos dos cidadãos, particularmente à vida, à liberdade, e à igualdade de todos perante a lei, elementos fundamentais do “Estado de direito”
(MESQUITA NETO, 2011, p. 33). Neste sentido, começa-se um debate sobre a segurança cidadã no Brasil e em outros países da América Latina (anos 1990) a partir da
concepção de que os órgãos responsáveis pela segurança passariam a proteger, priorizar
os cidadãos sem necessariamente excluir a proteção do Estado ou governo.
O fracasso da segurança se relaciona ao fato de que os dirigentes, na sua grande
maioria, não conseguem enxergar que o problema da criminalidade transcende a polícia, embora esta seja um ator importante do contexto. A pergunta que se tem a fazer é
se o aprofundamento da segurança pública não tem sido feito pelas bordas. É possível
mudar o quadro endêmico da violência sem aprofundar a questão da corrupção, troca
de favores, apuração dos fatos, concentração de renda entre outros?
A segurança “pelas bordas”, ou seja, através de “pseudo-soluções” que apenas driblam
o problema, reforçam ações sutis que tão-somente violam direitos fundamentais. Repetir
erros do passado com medidas paliativas e de vã eficácia não parece a ação esperada de um
governo que pretende resolver o problema da criminalidade, tão anunciada nos jornais.
297
2. A contribuição do sistema internacional de direitos humanos
O perfil da segurança pública trabalhada no Brasil é de uma segurança calcada especial e principalmente na ordem e na força como tradução do monopólio da violência
legalmente tolerada pelo Estado. Isso implica o uso reiterado e até abusivo de armas de
fogo, de baixo e de grosso calibre e de blindados, ou seja, armas e veículos típicos de
áreas de conflitos bélicos.
Segurança Pública
Ordem
Força
Tal contexto se materializa em uma atuação quase que exclusivamente policial.
Confunde-se segurança pública com polícia. Por conta disso, prioriza-se uma parte do
todo. Na verdade e em sentido amplo, investe-se muito mal na polícia no Brasil.
Esse perfil basicamente instrumental se mostra esgotado pela ineficácia como mostrado na pesquisa citada. É necessário um novo parâmetro de segurança com um novo
padrão axiológico, que traga consigo: objetivos, metas, estratégias de atuação, planejamento de longo, médio e curto prazo, política de pessoal (seleção, formação, reciclagem, carreira e acompanhamento psicossocial), inteligência, infraestrutura física (prédio, veículos,
mobiliário) e, sobretudo, institucional, interligar todo o complexo sistema de segurança
e Justiça: polícias; Ministério Público; sistema prisional; sistema socioeducativo e Poder
Judiciário. Ademais, em paralelo a isso, a fiscalização interna e o monitoramento externo.
No Brasil, algumas iniciativas em formato de programas e de ações começam a
tomar forma, tais como: o PRONASCI, o Pacto pela Vida em Pernambuco e as UPP’s
(Unidades de Polícia Pacificadora) no Rio de Janeiro. Porém, são iniciativas, cuja atuação concreta não conseguiu se “libertar” ainda desse perfil definitivamente.
Nessa linha proposta de um novo perfil para a segurança pública no Brasil, inicialmente, parte-se para a construção do novo padrão axiológico, livre dos legados arbitrários dos dois períodos de exceção vividos no Brasil no século XX e, ao mesmo tempo,
reafirmador do contexto constitucional vigente.
Para tanto, a contribuição do sistema internacional de Direitos Humanos, ou melhor, dos sistemas global (ONU – Organização das Nações Unidas) e regional (OEA –
Organização dos Estados Americanos) de Direitos Humanos que o Estado brasileiro é
signatário, seja por via de recomendações ou pela via de tratados.
Esses instrumentos (recomendações e tratados) são hoje as principais fontes de Direitos Humanos Internacionais. A normativa internacional é exteriorizada através deles
e, como tal, vincula os Estados signatários na medida de sua cogência.
298
Uma declaração da OEA de junho de 2011 e três recomendações em especial da
ONU se mostram importantes pontos de partida jurídico-instrumental para o novo perfil em segurança para o Brasil. A essa altura, outro adjetivo será agregado ao substantivo
segurança para forjar uma nova expressão em substituição à segurança pública.
Trata-se da Declaração de São Salvador sobre Segurança Cidadã nas Américas, resultado do 41º período ordinário de sessão da OEA. A declaração foi aprovada no dia 7
de junho de 2011 pela Assembleia Geral.
Na parte preambular da Declaração, há, de forma clara e taxativa, um reconhecimento da existência de uma relação entre segurança e desigualdade social. A falta daquela é
condição para a existência desta e vice-versa. A violência, a criminalidade e a insegurança
são resultados da ausência de uma política preventiva que promova o desenvolvimento
sócio-econômico-cultural: “reconhecendo que as condições de segurança pública melhoram mediante o pleno respeito aos direitos humanos, às liberdades fundamentais,
bem como mediante a promoção da educação, da saúde e do desenvolvimento econômico e social” (OEA, 2011).
Com efeito, a premissa fixada nas condições sociais necessárias à existência de
segurança no contexto social tem relação direta com a visão sobre indivisibilidade e
interdependência dos Direitos Humanos, ou seja, a combinação de esforços na tutela
simultânea de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais; salvaguardar a
integridade individual da pessoa humana, bem como, todos os direitos básicos inerentes
ao exercício de sua dignidade. Frise-se que a parte preambular é de suma importância à
interpretação da parte dispositiva de qualquer tratado ou ato internacional.
Dessa forma, a parte dispositiva é influenciada. E como norma propriamente dita, a
Declaração regulamenta o exercício da segurança cidadã pela participação comunitária
e de vários atores sociais, independentemente de ter personalidade jurídica, o que afasta
possíveis obstáculos positivistas para o exercício desse múnus público (artigo 5º).
Que as políticas públicas de segurança requerem a participação e cooperação de múltiplos
atores, como o indivíduo, os governos em todos os níveis, a sociedade civil, as comunidades, os meios de comunicação, os setores privado e acadêmico, a fim de fortalecer a promoção de uma cultura de paz e não-violência e responder, de maneira eficaz e participativa, às
necessidades da sociedade em seu conjunto (OEA, 2011).
Além disso, regulamenta que o foco central da segurança cidadã é a proteção da
pessoa humana, com atenção especial para os grupos submetidos regularmente a espécies de violência: a doméstica, a prisional e aquela fruto da falta de acesso à justiça. E a
atuação deve recair sobre as causas da criminalidade, da violência e da insegurança, ou
seja, as políticas públicas devem ser pautadas pela adequação das ações, pela transparência e pela eficácia com fins em uma transformação cultural.
299
Em um quadro sintético, tem-se o seguinte:
Inclusão
social
Transparência
na atuação
Segurança
cidadã
Proteção da pessoa humana
e dos grupos sociais
Essa estrutura normativa da OEA dialoga com as percepções do sistema ONU sobre a segurança no Brasil como se ambas resultassem de uma grande força tarefa internacional para a questão de segurança. Necessariamente não ocorre dessa forma.
O perfil de segurança pública existente no Brasil é excludente e, claramente, pauta-se
no direito penal do inimigo (JAKOBS; CANCIO MELIÁ, 2007). Assim são eleitos como
inimigos: os defensores de direitos humanos, o movimento social e alguns grupos sociais, que passam a ser vítimas de processos de criminalização.
O Relator Especial da ONU sobre as formas contemporâneas de Racismo, Discriminação Racial e Xenofobia concluiu que o racismo e a discriminação racial no Brasil
têm raízes históricas em um contexto sócio econômico excludente:
No final de seu estudo, o Relator Especial observa que o racismo e a discriminação racial
no Brasil não são fáceis de ser definidos. Estes fenômenos estão sujeitos a serem reproduzidos nos documentos oficiais. Eles também são camuflados, ao ponto de serem invisíveis, pela miscigenação biológica e cultural. Tem sido necessário insistir com perspicácia
para se conseguir que um grande número de interlocutores oficiais reconhecessem que
existe uma relação de causa e efeito entre as condições econômicas e sociais, a marginalização e a pobreza dos índios, mestiços e negros e as circunstâncias históricas que
fundamentam as origens do Brasil, em particular a escravidão e a colonização. Apenas
uma vontade política que se baseie em uma análise lúcida e corajosa da realidade pode
quebrar o círculo vicioso de discriminação racial por meio da negação da discriminação
racial para converter o Brasil na grande nação que ele aspira ser no século XXI (ONU,
GLÈLÈ-AHANHANZO, 1996).
300
Já o Relator Especial da ONU sobre Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais, em 2007, apontou a desarticulação das ações policiais em relação aos objetivos
inicialmente declarados, além de se mostrar perplexo com a falta de transparências das
ações, o que, para tanto, recomendou o uso de equipamentos de áudio e vídeo para monitorar o uso de veículos blindados.
78. O Governo do Estado do Rio de Janeiro deve se abster de usar as “mega” operações
ou aquelas de grande porte favorecendo um progresso sistemático e planejado para restabelecer uma presença policial sustentada assim como do poder governamental nas áreas
controladas pelas facções. As políticas atuais são uma grande quantidade de pessoas, alienando as pessoas cujo apoio é necessário para lograr êxito, gastando recursos preciosos
e fracassando na busca dos objetivos declarados. Estabelecer estratégias de policiamento
apenas considerando objetivos eleitorais é um desserviço à polícia, às comunidades afetadas e à sociedade como um todo.
79. O uso dos veículos blindados deve ser monitorado, provendo-os com equipamento de
gravação de áudio e vídeo. Os resultados devem ser regularmente monitorados em cooperação com grupos comunitários (ONU, ALSTON, 2008).
Tem-se então uma interação entre o mundo ontológico e o deontológico. Os relatórios das relatorias especiais da ONU em Direitos Humanos, direta ou indiretamente,
percebem a relação entre violência, insegurança e desigualdade sócio-econômica. Por
sua vez, o instrumento da OEA reitera em seu preâmbulo a necessidade de evitar o
tratamento da segurança pública como um fenômeno isolado de outros fatores sociais.
Assim a expressão segurança cidadã aparece nos sistemas internacionais de Direitos Humanos para superar desigualdades e reafirmar o Estado Democrático de Direito.
3. Um novo paradigma: a segurança cidadã
Os regimes autoritários e as ditaduras cívico-militares que por algumas décadas
atuaram na América Latina, intencionalmente, não levando em consideração os compromissos internacionais voluntariamente assumidos pelos próprios Estados em matéria de Direitos Humanos, deixaram de herança para a sociedade um padrão cíclico e
permanente de reprodução da violência.
A partir dessa recente e viva história latino-americana, pode-se perceber que boa
parte das instituições que dão sustentação ao sistema de justiça e polícia, na maioria dos
Estados, em especial no Brasil, não passaram por transformações e reformas eficazes, o que
caracteriza uma transição para a democracia ainda muito lenta e formal. No caso brasileiro, apesar da Constituição Federal de 1988 e da ratificação da maioria dos mais importantes tratados internacionais de Direitos Humanos, a estruturas e os órgãos ligados aos
301
aparatos de segurança ainda reiteram e replicam um arsenal de práticas e mecanismos
autoritários, repressivos e intransigentes, sob a alegação de que os mesmos são necessários
para assegurar e manter a ordem e a paz nas relações cotidianas, sem falar nas dificuldades
de transparência e prestação de contas das ações dessas instituições.
De uma forma geral, as instituições ligadas ao Poder Judiciário, bem com as polícias em seus mais diversos níveis de atuação, não têm conseguido, de forma eficaz,
ofertar as respostas cabíveis, em tom preventivo e repressivo qualificado, no combate ao
crime e a violência. É assim que na atual conjuntura milícias se estabelecem em organizações criminais de larga extensão, mantidas pela impunidade e pelo regime de corrupção, constroem amplas estruturas paralelas de poder.
Tal realidade desenvolve um fenômeno interessante, vivenciado massivamente em
várias partes do mundo, a insegurança. Sentimento gerado pela profusão da criminalidade e da violência que tem se apresentado como uma grave problemática onde a efetividade e a plena vigência dos Direitos Humanos, por vezes é colocada em segundo plano,
como fórmula para um panorama menos ameaçador. Um total e claro contrassenso!
Em contrapartida ao modelo de segurança pautado na repressão desmedida e autoritária, visualiza-se, de modo largo, a construção de um modelo de segurança pautado na
figura do cidadão e da cidadã. Tal ideal é composto por políticas sociais de caráter preventivo, envolvendo e englobando os mais diversos setores da sociedade e do Estado, proporcionando uma articulação de “planificação emancipatória no campo da segurança, enfatizando a mediação de conflitos e a pacificação da sociedade contemporânea” (SANTOS, 2001).
O conceito de segurança cidadã tem por objeto ofertar respostas à agudização da
criminalidade e da violência, em especial nas grandes cidades, mas também nas zonas
interioranas. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, em 1998, afirmou entender a proposta de segurança cidadã como: “[…] o não temer uma agressão
violenta, saber respeitar a integridade física e, sobretudo, poder disfrutar da privacidade
do lugar sem medo de ser assaltado, e circular tranquilamente pelas ruas sem temer um
roubo ou uma agressão” (PNUD, 1998).
Por meio deste paradigma diferenciado é possível identificar duas dimensões distintas do conceito apresentado: 1) a primeira é objetiva, representada pelo acirramento
ou diminuição dos delitos; e 2) a segunda é subjetiva, expressa pelo sentimento de segurança percebido pelos cidadãos, ou seja, pela sensação vivenciada pela população com
relação à probabilidade de ser vítima de um crime.
Por assim dizer, a segurança cidadã nasce em um bojo amplo onde a ideia de segurança não somente alcança o Estado, mas também os indivíduos, relacionando-se não
apenas com assuntos derivados da criminalidade ou do narcotráfico, mas, em especial,
com temas referentes ao esgarçamento dos laços sociais, ao desemprego, à dificuldade de
acesso aos serviços básicos de saúde e saneamento, a água potável, a educação, a moradia
adequada, etc. Desta maneira fica clara a amplitude do conceito de segurança cidadã,
constituindo-se o mesmo em um plano tanto político quanto socioeconômico.
302
Por meio de uma política bem orientada de segurança cidadã pode-se assegurar
o livre exercício dos direitos individuais e coletivos de todos os indivíduos membros
da sociedade. Trata-se de efetivar um direito coletivo, pautado no interesse comum. A
grande questão aparece quando o próprio Estado assume a sua debilidade no sentido
de resguardar os interesses da sociedade. Pois tal fato tem por consequência direta o
crescimento da autodefesa, concedendo-se por vezes o grau de licitude e legitimidade a
condutas que pareçam minimamente garantir ao indivíduo sua segurança. A partir disto
aparece o ciclo da violência, onde por meio da autodefesa, juntamente com a debilidade
estatal, um novo nível de insegurança se estabelece.
Infelizmente, buscando compreender a segurança como um direito individual, corre-se o risco de se promover atitudes de caráter individual de autodefesa, além de fortalecer políticas que proponham a geração de planos e medidas dirigidas a atuar de forma
rápida e eficaz para que se evite os fatos ilícitos dentro da sociedade, ou seja, fomentando
o aspecto repressivo e autoritário já apresentado anteriormente.
Com toda a certeza, as medidas de autodefesa recairão negativamente sobre o sentimento de insegurança de toda a população, por quanto a visão ou a imagem de lugares
comuns a exemplo de casas, bairros inteiros, condomínios, etc., como se fortificados fossem – uma espécie de medievalização das moradias, indicará que tal lugar é tão inseguro
e propenso a ataques que se encontra fortificado para evitar os possíveis perigos reais e
iminentes – com isso aparece o fenômeno intitulado “arquitetura do medo”.
Este modo de enfrentamento da problemática da insegurança, ao contrário de oferecer solução, introduz um novo fator de preocupação: a desigualdade. Pela lógica clara, a
partir de ações de autodefesa, exemplificadas pela arquitetura do medo, pode-se entender
que quem tem mais, pode e deve proteger-se mais. Além disso, é válido compreender que
por trás destas ações de segurança, interesses econômicos gravitam de muito perto, logo
a manutenção do sentimento de insegurança pode ser muito rentável para aqueles que
possuem mais bens, pois possibilita o fortalecimento da segurança como um direito individual, que pode e deve ser distribuído de forma desigual nos distintos estratos sociais,
o que explica ações contundentes das forças policiais apenas em determinadas regiões
periféricas das grandes cidades e até mesmo o fenômeno da rotulação dos grupos sociais.
Decorre dessa realidade a necessidade de ações coletivas e integrativas em torno da
segurança, sob a perspectiva da cidade, que significa desenvolver um processo civilizador
de superação dos padrões estabelecidos de violência e de exercício pleno dessa cidadania.
Válido é ressaltar que as principais políticas sobre segurança cidadã devem ser sempre analisadas e avaliadas à luz do respeito e da efetividade dos Direitos Humanos. Assim
tanto o Estado como a Sociedade envolvidos nesse processo de renovação do paradigma
de segurança arcaico, para um emancipatório e colaborador, precisam cumprir com o
seu dever e exercer os seus direitos. Nesse ponto a proposta de monitoramento das ações
do Estado se apresenta como a eficiente ferramenta de acompanhamento e exigência do
cumprimento dos compromissos assumidos pelo Estado, tanto em matéria de segurança, quanto nas mais diversas matérias que compõem o panorama dos Direitos Humanos.
303
Em um período onde a perspectiva do diálogo e da mediação é aplicada e incentivada como meio mais adequado para a resolução e pacificação dos conflitos sociais,
a disseminação das mais diversos matizes de violências também vêm incentivando a
reflexão para que se encontrem novas saídas, para além do desencanto, outras formas de
relações de sociabilidade e controle social, com o objetivo maior de construir uma sociedade firmada na cultura da pacificação, respeitando o leque de diferenças, minorando
as injustiças, reconhecendo a dignidade humana e o exercício da cidadania de todos e
todas indistintamente.
Considerações finais
É notório que nos mais diversos contextos onde a democracia se estabelece torna-se indispensável a participação ativa da sociedade no âmbito da reflexão e construção
de políticas públicas. Contudo, tal participação apresenta variações em seus níveis de
comprometimento social.
Quanto maior for a participação da sociedade no desenvolvimento e acompanhamento das políticas públicas de segurança, em especial, também crescerão as chances de
sucesso significativo dessas políticas. Compreendendo que com a participação social,
dentro desse novo modelo cidadão de segurança, todos e todas têm a possibilidade de
auxiliar no processo de fiscalização, bem como minimizar os danos passíveis de ocorrer
pelos interesses mais diversos.
Entretanto, não se pode afirmar que o processo de democratização propiciado pela
atuação dos agentes estatais conforme o conceito de segurança cidadã garante o resultado total dessas políticas. Acima de tudo é imprescindível compreender que conquistas
relevantes neste sentido podem ser alcançadas através da organização e mobilização da
sociedade.
De qualquer maneira, se está diante de uma realidade onde um passo novo é dado,
e uma nova e longa caminhada se inicia, com firmes convicções de que somente por
meio de ações pautadas nos Direitos Humanos poder-se-á quebrar as práticas violentas
tão presentes nos mais variados espaços da sociedade.
Referências bibliográficas
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2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
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304
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extrajudiciais, 2008. Versão traduzida. Disponível em: <http://monitoramentodhi.org/
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contemporâneas de racismo, discriminação racial e xenofobia, 1996. Versão traduzida.
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SOARES, Luiz Eduardo. Segurança pública: presente e futuro. Estudos avançados. v. 20,
n. 56, 2006.
305
MERCADO DE TRABALHO
NO SEGUNDO MANDATO DO PRESIDENTE LULA
Sérgio E. A. Mendonça*
Os indicadores do mercado de trabalho brasileiro na primeira década do século XXI foram significativamente diferentes daqueles observados na década de
1990. Enquanto anteriormente o ritmo de criação de novas ocupações (empregos
com carteira de trabalho assinada e outras formas de ocupação) foi relativamente
mais baixo que o da década seguinte, o desemprego cresceu e os rendimentos reais
caíram, na última década aconteceu o inverso: elevou-se o ritmo de criação de novas ocupações, caiu o desemprego e mais recentemente os rendimentos e salários
reais voltaram a crescer.
Consolidando essa inversão de tendências, na última década, além de um ritmo
mais intenso de criação de vagas, aproximadamente 9 em cada 10 novas ocupações
criadas correspondem a empregos com carteira de trabalho assinada, em sentido
muito diferente ao verificado na década anterior, quando aproximadamente 4 em
cada 10 novas vagas (criadas em menor intensidade) pertenciam ao mercado formal de trabalho.
*
Economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócioeconômicos (DIEESE).
307
Ano
Ocupados
Empregos formais
(PNAD)
(RAIS)
1992
61.229.427
22.272.843
2001
72.323.336
27.189.614
2009
86.744.608
41.207.546
Variação (2001-1992)
11.093.909
4.916.771
Variação (2009-2001)
14.421.272
14.017.932
Tabela 1: Número de Ocupados e de Empregos Formais – Brasil – 1992-2009
Fontes: IPEADATA e RAIS OBS: PNAD: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (IBGE) e
RAIS: Relação Anual de Informações Sociais; TEM: Ministério do Trabalho e Emprego
A causa principal dessas mudanças é bastante conhecida. A economia brasileira voltou
a crescer num patamar muito superior ao do período anterior, especialmente a partir de
2004. Inicialmente, a retomada do crescimento se deu pela expansão do mercado externo,
liderado pelas exportações. A partir de 2006 o crescimento foi impulsionado pelo mercado
interno com resultados favoráveis para a geração de empregos e expansão da massa de salários. O crédito, em especial o crédito consignado, também foi um componente importante
da política macroeconômica que impulsionou a demanda doméstica no período em análise.
Esse novo padrão de crescimento resultou na geração de empregos em todos os
grandes ramos econômicos: indústria, comércio, serviços, construção civil e agricultura.
O ciclo recente de crescimento tem apresentado uma elevada elasticidade produto-emprego. Para cada ponto de expansão do PIB, tal como verificado nos últimos anos,
houve crescimento de mais da metade dessa taxa no nível geral de emprego. Dito de outro
modo, com o PIB crescendo 5% em média, o nível de emprego tem crescido em torno de
2,5%, taxa superior ao crescimento da oferta de trabalho como será analisado adiante.
Esse artigo pretende explicar os resultados do mercado de trabalho no quadriênio
2007-2010, período do segundo mandato do Presidente Lula, a partir de uma reflexão
mais longa do ocorrido nas duas últimas décadas. Se esse objetivo for atingido, ficará
mais clara a dinâmica recente e as perspectivas para os próximos anos.
1. Mudanças estruturais na demografia e na oferta de trabalho no brasil
Os principais indicadores do mercado de trabalho são afetados pela interação entre
oferta e demanda de trabalho. Pelo lado da oferta, tanto a potencial (PIA) como a efetiva
(PEA)1 dependem da evolução da população e de sua estrutura etária.
1
A População em Idade Ativa (PIA) é o indicador que mede a oferta potencial de trabalho. A População Economicamente Ativa (PEA) é o indicador da oferta efetiva de trabalho.
308
Nessas duas últimas décadas ocorreram importantes transformações na estrutura
etária da população brasileira, que está se modificando com forte impacto no mercado
de trabalho. A taxa de crescimento populacional vem diminuindo em função da redução
da taxa de fecundidade (número de filhos por mulher). Menor crescimento da população condicionará, nos anos seguintes, a oferta potencial e efetiva de trabalho.
Um primeiro ponto a ser destacado é que os jovens ingressos no mercado de trabalho no início do século XXI nasceram a partir da metade dos anos 1980, período
em que já se observava uma queda da taxa de crescimento populacional. Em outras
palavras, ao longo da primeira década do século XXI e das próximas décadas vimos e
continuaremos a ver a diminuição relativa da oferta pelo ingresso de jovens no mercado de trabalho. A pressão para criar novas vagas para jovens diminuirá relativamente
nos próximos anos.
Na primeira década do século XXI e nas próximas duas décadas o país passou e
continuará a passar pelo período conhecido na literatura especializada por bônus demográfico ou janela de oportunidade demográfica, fenômeno que se caracteriza por
uma menor razão de dependência.2
A tabela 2 sintetiza os dados sobre população total, PIA e PEA nas últimas duas
décadas.
Ano
População total
PIA
PEA
1992
2001
2009
Var. (2001-1992)
Var. (2009-2001)
146.917.459
169.590.693
190.755.799
15,4%
12,5%
113.295.184
138.962.241
160.438.234
22,7%
15,5%
65.977.197
80.400.976
95.380.939
21,9%
18,6%
Tabela 2: População Total, População em Idade Ativa (PIA), População Economicamente Ativa (PEA)
anos selecionados
Os dados da tabela 2 apresentam as taxas de crescimento da população total, da
PIA e da PEA nas duas últimas décadas. Pode-se observar que as taxas de crescimento
caem para as três variáveis na última década quando comparadas às taxas da década de
1990. Isso significa que a pressão da oferta de trabalho nos próximos anos será menor.
2
A razão de dependência relaciona os segmentos mais jovens (0 a 14 anos) e os mais idosos (65 anos e mais) com a
população em idade ativa (15 a 64 anos). Quanto menor essa razão maior o potencial produtivo de um país, ou seja,
uma parcela potencialmente maior da população poderá realizar atividades produtivas em comparação com os segmentos etários que dela dependem.
309
2. Duas décadas muito diferentes
A análise das principais mudanças no mercado de trabalho no Brasil nos últimos
20 anos pode ser dividida em dois momentos, de forma simplificada, nas duas últimas
décadas.
2.1. Anos noventa: a década da desestruturação
A globalização foi o principal acontecimento econômico dos anos 1990. A queda
do muro de Berlim e o fim da União Soviética significaram, para muitos autores, o período de supremacia absoluta do capitalismo e das forças de mercado.
Nesse novo contexto internacional, a opção do governo Collor, recém-eleito, foi
adotar a política de abertura da economia a partir de 1990. O fim do modelo de substituição de importações teve forte impacto na economia brasileira e, como não poderia
deixar de ser, no mercado de trabalho. As empresas nacionais e multinacionais aqui
sediadas promoveram, provavelmente, o maior movimento de reestruturação em suas
histórias. Concluído esse processo de reestruturação, o resultado foi uma perda expressiva de empregos.
Cabe lembrar que na década de 1990 houve uma combinação de mudanças estruturais na economia brasileira: abertura ao exterior, plano de estabilização monetária
(plano Real) e privatização de grandes empresas estatais. Este último com forte impacto
em importantes setores econômicos, e reflexos na qualidade e na quantidade de empregos gerados nos mesmos. Destacam-se, entre os principais setores afetados pelo processo de privatização, a siderurgia, as telecomunicações e o setor financeiro.
O ajuste da década resultou em perda de empregos de melhor qualidade na estrutura de ocupações dos setores afetados. Foi assim nos bancos, nas empresas siderúrgicas
e nas empresas de telecomunicações. Ademais, a reestruturação das empresas, sobretudo
no setor industrial, nessa etapa de maior abertura ao exterior e competição externa, foi
de natureza defensiva. As empresas enxugaram ao máximo seus quadros de pessoal,
reduziram os salários dos novos ocupantes de nível médio e da alta gerência e terceirizaram uma parcela expressiva de vagas para reduzir custos.
Esse movimento de abertura e reestruturação, combinado com um período de
taxas muito baixas de crescimento (cerca de 2% ao ano), afetaram negativamente os
principais indicadores do mercado de trabalho. O desemprego dobrou de patamar e se
intensificou a “precarização” do mercado com a criação de ocupações desprotegidas e de
baixo rendimento.
310
2.2. Anos 2000: o início da recuperação
A maior parte do ajuste realizado pelas empresas no ambiente econômico dos anos
1990 estava concluída ao final da década. No começo do século XXI e especialmente a
partir de 2004, ano em que a taxa de crescimento da economia brasileira elevou-se significativamente, começaram a se alterar as tendências do mercado de trabalho.
Portanto, é necessário compreender as principais causas desse novo ciclo de crescimento e a possibilidade de sua sustentação nos próximos anos para explicar o que
aconteceu no mercado de trabalho no quadriênio 2007-2010 e as tendências para os
próximos anos.
Vale registrar que em 1999 a moeda brasileira sofreu uma expressiva desvalorização após o fracasso da política de câmbio fixo do período entre 1994 e 1998. O país
entrou no século XXI com outra política econômica: equilíbrio fiscal, câmbio flutuante
e metas de inflação. No plano internacional, as políticas preconizadas pelo Consenso de
Washington foram perdendo força na medida em que os resultados de melhoria de bem
estar das populações nos países emergentes não se concretizaram. E entra em cena um
novo ator econômico de peso, a China.
No Brasil, a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2002
leva a uma mudança significativa na política social. Ainda que o novo governo não modifique o tripé de política econômica herdado do governo anterior, seus compromissos com
outras forças políticas, ligadas ao movimento sindical de trabalhadores e ao movimento
social alteraram o escopo da política social buscando incluir uma maior parcela da população que esteve à margem no período anterior. A economia brasileira, sobretudo a partir
de 2003, “engatou” no ciclo econômico mundial de crescimento com forte expansão das
exportações e efeitos positivos sobre o mercado interno e o mercado de trabalho.
Para entender essa nova etapa, não se pode ignorar a inserção econômica internacional do Brasil que aproveitou as oportunidades do ciclo de crescimento da economia
mundial e o papel destacado da China nesse cenário. Frise-se que antes do início do
primeiro mandato do Presidente Lula (2002) houve nova desvalorização cambial, em
parte pelo receio de uma mudança brusca na política econômica do governo anterior,
fator que estimulou a “onda” exportadora no Brasil.
Mas a retomada sustentada do crescimento brasileiro só se consolidou com a combinação das políticas econômica e social voltadas para o mercado interno. Destaquem-se
as políticas de inclusão como o Bolsa Família, as políticas de assistência social em geral,
o apoio à agricultura familiar e o PROUNI, entre outras. No campo econômico, o crédito
consignado, a queda da taxa básica de juros, o Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC), a elevação do investimento das estatais na área de energia (em particular Petrobrás e Eletrobrás). E, provavelmente a mais importante de todas, a política de recuperação do poder aquisitivo do salário mínimo. Entre abril de 2002 e janeiro de 2011, o valor
real do salário mínimo subiu 54,3%, segundo o DIEESE.
311
Nesse novo ciclo de crescimento da economia brasileira, os impactos sobre o mercado de trabalho têm sido muito positivos. Os dados das tabelas 3 e 4 sintetizam importantes indicadores do mercado de trabalho metropolitano no período entre 2006 e 2010.
A Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), realizada em parceria entre o DIEESE, a
Fundação SEADE-SP e diversos parceiros regionais, e a Pesquisa Mensal de Emprego
(PME) do IBGE apontam as mesmas tendências.
As mudanças demográficas reduziram as taxas de crescimento da PIA e da PEA
para taxas abaixo de 2% ao ano. Apenas a título de comparação, registre-se que nos anos
1990 essas taxas eram superiores a 2%. As taxas de crescimento da ocupação (geração
de vagas no mercado de trabalho) nas duas pesquisas estão acima de 2,5%, chegando a
mias de 3% na PED. Essa combinação favorável foi responsável por uma queda significativa do desemprego. E, confirmando a tendência de melhora do mercado de trabalho,
a maior parte das vagas criadas foi de empregos formais com proteção, seja no setor
privado (CLT) seja no setor público (CLT e estatutários).
Indicador
PIA
PEA
Ocupados
Desempregados
Inativos
2006 (em mil) 2010 (em mil) 2010-2006 (%) Taxa média (%)
31.143
18.903
15.732
3.171
12.240
33.367
20.292
17.837
2.455
13.075
7,14
7,35
13,38
-22,58
6,82
1,74
1,79
3,19
-5,22
1,66
Tabela 3: Mercado de Trabalho Metropolitano – 2006-2010 – PED
Fonte: Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) (Convênio DIEESE/SEADE, MTE/FAT e parceiros
regionais: São Paulo, Porto Alegre, Distrito Federal, Belo Horizonte, Salvador e Recife).
Indicador
PIA
PEA
Ocupados
Desempregados
Inativos
2006 (em mil) 2010 (em mil) 2010-2006 (%) Taxa média (%)
38.945
22.139
19.926
2.213
16.806
41.364
23.611
22.019
1.591
17.753
6,21
6,65
10,50
-28,11
5,64
1,52
1,62
2,53
-6,39
1,38
Tabela 4: Mercado de Trabalho Metropolitano – 2006-2010 – PME
Fonte: Pesquisa Mensal de Emprego (PME) – IBGE (Regiões: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte,
Porto Alegre, Salvador e Recife)
312
As quedas na oferta potencial (PIA) e efetiva (PEA) de força de trabalho e a aceleração do crescimento econômico contribuíram para a redução do desemprego, embora
este ainda continue em patamar alto, fruto de um passivo muito grande acumulado nos
anos de baixo crescimento.
Como, em sua maioria, os empregos gerados foram empregos com carteira de trabalho assinada, cresceu o grau de formalização das ocupações no mercado de trabalho
brasileiro, com a consequente diminuição do mercado informal. De acordo com o IPEA,
baseado nos dados da PNAD, o grau de informalidade3 elevou-se de 51,9 em 1992 para
52,5 em 2001 e recuou para 46,4 em 2009, menor taxa dos últimos 20 anos.
3. Desafios para os próximos anos
A imagem de um copo pela metade é uma boa síntese dos desafios para sustentar o
atual ritmo de geração de emprego, trabalho e renda no Brasil nos próximos anos.
Para o país aproveitar a janela de oportunidade demográfica é necessário consolidar
esse novo patamar de crescimento, especialmente as taxas de crescimento a partir de 2004.
Nos próximos 20 anos, embora a pressão da entrada de jovens no mercado de trabalho diminua, é fundamental que a economia brasileira possa criar oportunidades de
empregos de qualidade, incluindo a população jovem que vai amadurecendo para idades
mais adultas e também garantindo os empregos da população adulta.
Além do crescimento, o enfrentamento da desigualdade de renda surge como o
principal desafio à frente. É decisivo que a entrada de novos trabalhadores se dê em empregos de qualidade, com proteção social, alta produtividade e salários mais altos. Essa
combinação virtuosa vai depender das opções sobre que trajetória de desenvolvimento
que o governo do país pretende trilhar daqui para frente.
Ainda que os indicadores recentes, sobretudo da última década, sejam bem melhores que os da década anterior, estamos muito distantes de um mercado de trabalho
que gera boas oportunidades de emprego, trabalho e renda. Muitas ocupações criadas,
apesar da formalidade, são de baixos salários em setores de baixa produtividade.
Pelo lado da oferta de trabalho esse enfrentamento dependerá de uma decisiva e
definitiva opção da nação por investir em educação de qualidade, sobretudo para as
famílias de baixa renda.
Pelo lado da demanda de trabalho, dependerá da estrutura produtiva criar empregos de qualidade, em setores econômicos de alto valor adicionado, que possam pagar
salários mais elevados. O que, por sua vez, dependerá da capacidade de inovação das
empresas e do setor público.
3
Grau de informalidade medido pela relação entre os ocupados sem carteira e trabalhadores por conta própria no
numerador e os trabalhadores com carteira, os sem carteira, os trabalhadores por conta própria e os empregadores
no denominador.
313
As políticas públicas e a política econômica também terão papel estratégico nesse enfrentamento para melhorar a atual distribuição de renda. É importante preservar e ampliar
as políticas públicas que protejam a parcela da população mais vulnerável (assistenciais,
seguro desemprego, entre outras) e as políticas mais estruturais de educação e de saúde.
Na dimensão econômica, os investimentos diretos do setor público também serão
fundamentais. Não só a elevação de recursos do orçamento público, mas a regulação que
envolve a expansão dos setores apoiados com recursos públicos. Um exemplo concreto
é o conjunto de investimentos na construção civil. Parcela expressiva desses recursos é
pública. Programas como o Minha Casa Minha Vida, ou a construção de usinas hidrelétricas, devem sofrer forte regulação na área do trabalho, obrigando os empreendedores a
respeitar as leis trabalhistas, contratando com carteira de trabalho assinada, melhorando
os pisos salariais e protegendo a saúde dos trabalhadores.
Na política econômica, ao menos dois desafios merecem reflexão. Baixar as taxas de
juros básicas e as taxas na ponta do crédito, além da alteração no sistema tributário. Essas
duas áreas da economia brasileira são diretamente responsáveis pela péssima distribuição
de renda no Brasil. Contribuem para concentrar a renda pelo lado do “rentismo” que só
beneficia os endinheirados e pune a produção, e pelo arranjo social e político que obriga os
mais pobres a pagarem mais impostos proporcionalmente aos mais ricos. O Brasil é um dos
países mais injustos na tributação. Nossa carga tributária, baseada em impostos indiretos, é
transferida para os preços dos bens e serviços. Nesse sistema, os trabalhadores e famílias de
menor renda pagam mais imposto do que os de renda mais alta. Um Robin Hood às avessas!
Vencer a batalha da desigualdade de renda é uma tarefa de longo prazo. Na última década o país avançou, mas ainda não o suficiente. Nos próximos anos a sociedade brasileira pode,
ou não, escolher uma trajetória de desenvolvimento que assegure oportunidades concretas
para melhorar o padrão de vida de sua população. Os eventos esportivos (Copa e Olimpíadas), o programa de aceleração do crescimento (PAC), o pré-sal e a destinação de recursos
para educação, ciência e tecnologia são possibilidades concretas, não fantasias ou ilusões.
E a permanência de um cenário de crescimento com um padrão econômico, social
e ambiental sustentável não é um sonho. Vai depender de nossas opções para enfrentar a
desigualdade, erradicar a miséria e “encher” a metade vazia do copo.
Referências bibliográficas
BRASIL. IBGE. PNAD – Pesquisa nacional de amostra por domicílio. Disponível em:
<www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1708>.
Acesso em: 18 jul. 2012.
DIEESE/SEADE; MTE/FAT. PED – Pesquisa de emprego e desemprego. Disponível em:
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314
CAPÍTULO IV: SUJEITOS
OS DIREITOS HUMANOS
DOS TRABALHADORES E TRABALHADORAS DO BRASIL
Eduardo Paludette*
Apesar de todo o esforço de muitas organizações da sociedade civil, instituições e
pessoas, infelizmente, não há motivos para festejar a situação dos direitos humanos dos
trabalhadores e das trabalhadoras no Brasil. Percebemos várias agressões a estes direitos
que, em muitos casos, podem ser generalizadas. Há muitas situações em que tais violações se tornaram tão naturais que passam despercebidas.
Percebemos uma diminuição no nível de desemprego, embora seu fim seja possível
apenas mediante outra forma de organização do trabalho. Por outro lado, há um aumento exponencial do trabalho precário: 1) redução do salário médio; 2) intensificação do
trabalho seja no ritmo de produção seja nas horas efetivamente trabalhadas; 3) desrespeito às regras de segurança e saúde no trabalho.
Nunca na história da humanidade se trabalhou tanto como agora. Se por um lado
tivemos um relativo aumento do salário mínimo (embora este ainda esteja em 1/4 do valor previsto pela Constituição Federal de 1988, segundo o DIEESE), os trabalhadores não
tiveram seus salários reajustados conforme o aumento da produtividade. Tomemos como
exemplo a indústria automobilística. Esta indústria recebeu incentivos (benefícios) governamentais como poucas, com isso foi possível aprimorar sua produção. Essa mesma indústria produzia quatro vezes menos carros com três vezes mais trabalhadores, há quinze anos.
Em comparação, se no passado 200 trabalhadores produziam 200 carros, hoje 70
trabalhadores produzem 400 carros. Ou seja, se ontem cada trabalhador produzia meio
carro, hoje ele produz aproximadamente seis carros. Os preços dos automóveis só caem
quando há nova isenção de imposto. Os salários dos trabalhadores, comparativamente,
não aumentaram 12 vezes. Esta diferença é o lucro das matrizes das multinacionais.
*
Coordenador nacional da Pastoral Operária.
317
Para completar, os ataques aos direitos trabalhistas nunca cessaram. Todo ano a
classe trabalhadora se vê apurada por uma nova proposta de mudança da legislação. A
velha e arcaica ideia de que direitos trabalhistas atrasam o crescimento e a competitividade do país sempre volta à tona. Direitos conquistados a base de muito suor e sangue
são postos em cheque ano após ano. Como ainda não é possível uma mudança no atacado, as mudanças seguem no varejo, sem que os trabalhadores se deem conta. Podemos
citar dois exemplos disso:
1 Há várias portarias do INSS que dificultam o acesso dos trabalhadores aos seus
direitos. É cada vez mais difícil provar que sua condição de saúde não lhe permite trabalhar. Há muitos casos de pessoas que não conseguem os documentos necessários, mesmo estando com a saúde prejudicada.
2 A mudança na lei de falências alterou a ordem de pagamento dos créditos trabalhistas do segundo lugar para o último. Antes a previsão legal era de pagamento dos
valores do INSS em primeiro lugar, o pagamento atrasado dos trabalhadores vinha em
segundo lugar e, em seguida, vinham os outros credores. Hoje os credores (em boa parte
bancos) estão colocados em primeiro lugar, depois vem o INSS e, por fim, o Trabalhador.
Por outro lado as centrais sindicais de maior envergadura estão fazendo o jogo do
governo. O dia 1º de maio, que sempre foi um momento forte de denúncia e organização
da classe trabalhadora, hoje se tornou apenas momento de mega shows patrocinados
por empresas e bancos. Somente as pequenas centrais sindicais ainda não foram cooptadas, mas não têm expressividade na sociedade. A nova forma de organização do trabalho dificulta a organização dos trabalhadores em defesa de seus direitos. A terceirização
contribuiu em muito com a fragmentação da classe. Uma empresa pode ter dezenas de
sindicatos. Assim, quando há uma greve, o sindicato não consegue parar a fábrica. Os
efetivos são da categoria, mas os terceirizados são de outra.
A parceria governo/empresários/mídia passa a impressão de que a situação está
boa. O velho efeito Ricupero (esconder as coisas ruins e mostrar as boas), continua sendo muito utilizado. Assim mostramos o crescimento econômico, mas não a degradação
ambiental e social proveniente deste crescimento. Isto dá a falsa sensação de que está
tudo bem. E se está tudo bem, por que lutar para mudar? Como esta mesma mídia não
comunica os ataques aos direitos trabalhistas e os sindicatos também não fazem a sua
parte, a classe trabalhadora fica sem saber dos riscos que corre. Assim não se mobiliza.
Devido à intensidade do trabalho, há um aumento significativo das doenças de trabalho, em especial as LER-DORT. Também já se percebe em várias categorias problemas
psíquicos que afetam a vida dos trabalhadores. Assim os direitos ao trabalho digno e à
saúde são violados tão comumente que parece natural. Vamos pegar como exemplo os
bancários. Por lei, os caixas dos bancos têm direito a 15 minutos de descanso a cada hora
digitada. Você viu algum banco cumprir esta lei? Nem eu, resultado: segundo a PNAD
(Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) 69 mil trabalhadores do ramo financeiro
ficaram com tendinite em 2008.
318
Ainda comentando sobre as questões trabalhistas, percebemos outra naturalização
do desrespeito aos direitos humanos. Temos hoje no Brasil trabalhadores de primeira e
de segunda categoria. Embora os direitos humanos garantam através do artigo XXIII que
trabalhos iguais têm remuneração igual, na prática isto não acontece. Primeiro, porque
temos salários diferentes para cada região do país. Vamos pegar os salários dos professores sem as gratificações (estas não são incorporadas nos direitos de INSS e rescisão) para
40 horas aula, comparando com as redes estaduais. Os dados são da CNTE, de setembro
de 2009. O melhor salário é do Distrito Federal (R$ 3.360,00) e o pior é de Pernambuco
(R$ 982,00). O mesmo trabalho tem uma diferença salarial quase três vezes e meia maior.
Segundo, porque com o processo de terceirização dentro das empresas, esta remuneração
se tornou desigual. A prática da terceirização, além de dividir ainda mais a classe trabalhadora, paga iguais de forma desigual. Para aqueles que são contratados diretamente
pela empresa, os salários são maiores, as cestas básicas são mais recheadas, o PLR é maior.
Para o terceirizado é sempre menor, quando o tem. Esta prática que é aceita como natural, vai retirando os direitos trabalhistas e colocando trabalhador contra trabalhador.
Outra categoria que está colocada em segundo plano pela legislação brasileira, é
a categoria das trabalhadoras domésticas. Direitos como o FGTS e as horas extras são
sumariamente colocados de lado. Ainda que as horas extras estejam previstas em lei, não
há a sua efetividade. Já o FGTS não esta nem na lei. Isto cria uma situação desigual para
esta categoria que abrange 26 milhões de trabalhadores.
Outra forma de desrespeito a este direito é a discriminação racial. Embora se diga
que não há racismo no Brasil, na prática os trabalhadores negros ganham menos que os
brancos e as mulheres menos que os homens. Assim se você for uma negra, estará discriminada 2 vezes. Esta é outra forma de desrespeito aos direitos humanos, naturalizada,
a ponto de o movimento negro ter que gritar para ser ouvido. Segundo o Ministério
do Trabalho, através de levantamento realizado pela RAIS de 2010, os negros recebem
46,4% menos que os brancos no Brasil.
No Brasil, a liberdade de expressão ainda não é plena. As perseguições, difamações
e até assassinatos à classe trabalhadora é uma prática cotidiana. A repressão à organização dos trabalhadores continua. Demissões injustas, opiniões nas redes sociais virtuais,
assédio moral, são algumas das formas encontradas pelo empresariado brasileiro para
cercear a organização e a expressão da classe trabalhadora. Caso isto não funcione, entra
em cena a grande mídia. Esta tem sua liberdade de expressão cerceada pelo poder econômico. Assim em todas as matérias, ela toma lado. E nunca é o da classe trabalhadora.
O poder econômico determina o que pode e o que não pode ser dito. Raramente a opinião da classe trabalhadora tem espaço.
Esta situação cria uma ação maquiavélica, onde a opinião pública fica desinformada e acaba por atacar lutas justas. Um grande exemplo disso são os bancários. Estes
querem aumento de salário e de pessoas para trabalhar, para assim poder oferecer um
melhor atendimento. Como os banqueiros estão batendo recordes de lucros, nada mais
319
justo. Porém, a mídia não fornece estas informações, apenas mostra as dificuldades das
pessoas em receber e pagar contas e assim se manipula a opinião do grande público, pela
falta de acesso às informações dos trabalhadores. O direito a liberdade de expressão é
assim sumariamente desrespeitado o que mostra a necessidade de avanço urgente na
discussão sobre a liberdade de imprensa no Brasil.
Uma questão grave no Brasil são os assassinatos de lideranças populares. Para defender seus interesses econômicos e políticos, uma parte do empresariado brasileiro
ameaça de morte os trabalhadores. Isto acontece com mais força nas regiões dominadas
pelo agronegócio. Na região norte e centro-oeste do país a lei que impera ainda é a da
bala. As ameaças de morte são contadas em centenas, e as vias de fato (assassinatos) são
contadas às dezenas. A população fica subjugada e oprimida por milícias, ligadas ao
poder público (polícias, vereadores, prefeitos, juízes, etc.).
Isto gera uma situação de pânico e terror. Podemos chegar a afirmar que nestes
locais ainda vivemos situações análogas ao período da ditadura militar. Mesmo em regiões consideradas centrais do país como o Estado do Rio de Janeiro, esta é uma prática
comum. Todo este aparato pouco é comentado na grande mídia, quando o é. A título
de exemplo, no estado do Pará, temos atualmente pelo menos 3 bispos, 26 padres e 226
leigos ameaçados de morte pelo poder econômico local.
Devido a esta impunidade e conluio com o poder político local, o trabalho escravo ainda é uma chaga no país. O Brasil, que está próximo de ser a 5º maior economia
do mundo, se seguirmos o cálculo pelo PIB, ainda tem que escravizar seus filhos para
poder gerar mais lucros. Isto acontece nos rincões do país, nas grandes fazendas, mas
também acontece nos grandes centros urbanos como São Paulo. Se lá nos rincões são
escravizados os filhos da terra, através de ameaças e enganações, nos grandes centros,
são os estrangeiros as maiores vitimas. Considerados por vezes como não documentados, estes são obrigados a trabalhar em condições análogas a de escravos, ou ameaçados
de denúncia ao poder público pelo empresário que o “contratou”. Com esta denúncia o
trabalhador estrangeiro será deportado ao seu país de origem. A necessidade de sobrevivência coloca este trabalhador debaixo do sapato do empresário.
Outra situação que se repete com naturalidade é o problema da aposentadoria. Nunca
na história deste país tivemos tantas pessoas contribuindo com a previdência. Como pode
então ela estar em déficit. Simples, com a Desvinculação das Receitas da União (DRU) o
governo retira até 20% dos recursos dos aposentados e pensionistas para pagar agiotas e
banqueiros. Isto leva a duas questões que afetam diretamente a vida dos trabalhadores:
1 O direito a ter um nível de vida melhor simplesmente lhe é negado por falta de
recursos;
2 Todo ano vem a história de reforma da previdência. Isto gera uma insegurança
que afeta a vida e a saúde dos trabalhadores, sejam eles aposentados ou em vias de aposentarem.
320
Porém, nem tudo é desgraça, percebemos que a luta continua. A criatividade e resistência da classe trabalhadora criam novas formas de luta e de organização social. Verificamos a volta das greves por aumento de salário e defesa de direitos. Manifestações,
abaixo assinados e ações de pressão continuam existindo. Até mesmo para as obras da
Copa do Mundo há resistências. Aos poucos os direitos humanos vão se tornando mais
conhecidos, embora ainda não seja disciplina do currículo escolar. Os assassinatos de
lideranças começam a ter ecos na sociedade. A busca por defesa dos direitos trabalhistas
continua acontecendo e aos poucos vão se fortalecendo. Há muito a ser feito, mas há
muitos querendo fazê-lo.
321
DIREITOS HUMANOS
DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES NO BRASIL
Maria das Graças F. Cruz*
Os graves indicadores sociais sobre a situação da infância brasileira motivam a luta
dos diversos atores sociais que se preocupam com a defesa dos direitos humanos das
crianças e dos adolescentes.
O indicador, que mede a concentração de renda no Brasil (quanto mais perto de
um maior a desigualdade), caiu de 0,6068 no ano de 1996 para 0,5448 em 2009. Apesar
da queda, o índice brasileiro é superior ao de países como os Estados Unidos (em torno
de 0,400) e da Índia (0,300); e está próximo ao de nações mais pobres da América Latina,
do Caribe e da África Subsaariana: “saímos do pódio, mas ainda estamos entre os mais
desiguais”, aponta Marcelo Côrtes Neri, economista chefe do Centro de Políticas Sociais
vinculado à Fundação Getulio Vargas (FGV).
Esta concentração de renda faz do Brasil um país iníquo e desigual o que contribui
com a situação ainda degradante das crianças, adolescentes e suas famílias, apesar dos
programas e projetos hoje desenvolvidos. Não se pode negar o avanço, o alcance e o
valor que estes projetos têm, entretanto se esta questão não for superada, de certa forma
continuaremos apenas a “enxugar a água que está no chão, sem fechar a torneira”.
Esta desigualdade se manifesta por região, etnia/raça e gênero, entre outras. Enquanto região o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2010), revela que a
dimensão territorial da pobreza no Brasil se expressa nas diferenças entre regiões e entre
as zonas urbanas e rurais. Na região Nordeste, mesmo com a redução do percentual de
pessoas abaixo da linha da pobreza, de quase a metade em 1990 para um décimo em
2008, foi observado um percentual superior a cinco vezes o do Sul e mais do que o dobro
da média nacional.
*
Coordenadora Nacional da Pastoral do Menor
323
Por outro lado, apesar do percentual de pobres nas zonas rurais ter caído de 51,3%
em 1990 para 12,5% em 2008, a pobreza rural permanece mais do que três vezes maior
em relação à urbana.
Reduzir as desigualdades e a violência pressupõe políticas públicas eficazes que
melhorem as condições de vida da maioria da população brasileira, excluída dos direitos
sociais mais básicos, especialmente as crianças.
1. Situação atual
A situação das crianças e dos adolescentes ainda merece muita atenção como revelam alguns dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD, 2010) e de
outras fontes citadas no próprio documento.
1.1. Desnutrição infantil
Dados do Ministério da Saúde (BRASIL, 2009) atestam que a desnutrição de crianças com menos de um ano de idade passou de 10,1% para 1,5% entre 1999 e 2008, com
diferenças significativas segundo a classe de rendimento das famílias.
Conforme o IPEA (2010), a desnutrição infantil espelha com clareza as desigualdades regionais: para uma média nacional de apenas 1,8% das crianças com menos de
5 anos desnutridas, há 6,6% das crianças do Semiárido, 5,2% da região Norte e 5,9%
provenientes de comunidades quilombolas.
Ainda segundo esse relatório, nos últimos 20 anos, o aumento de renda das famílias, a expansão dos serviços de saúde e de vigilância nutricional, a elevação do nível
educacional das mães, a melhoria das condições de saneamento e articulação entre os
setores de programas sociais têm sido importantes para a segurança alimentar da população. No entanto, o IPEA estima ser necessário mais dez anos de esforços para que a
desnutrição deixe de ser um problema de saúde pública no Brasil.
Conforme estimativas da ONU, para que o Brasil cumpra a meta, é preciso reduzir
a taxa anual de mortalidade infantil atual de 4,8%, entre 1970 e 2010, e para 4,4%, entre
1990 e 2015.
Em 1970 a mortalidade infantil no Brasil era de 120,7 a cada mil nascimentos vivos e
este número caiu para 19,88 em 2010. O valor ainda é muito superior se comparado ao de
países com o menor índice de mortalidade: Islândia (2,6), Suécia (2,7) e em Chipre (2,8).
324
1.2. Em relação à educação
A maior parte das crianças e dos adolescentes brasileiros frequenta a escola. A cada
ano, a quantidade de matrículas de estudantes com idade entre 4 e 17 anos aumenta. Porém, 3.630.000 brasileiros ainda não estão matriculados nas escolas do país. Para cumprir a lei que determinou a ampliação da obrigatoriedade de ensino para toda essa faixa
etária, os sistemas educacionais precisarão de esforço bem maior do que o atual. Estes
dados são da Pesquisa por Amostra de Domicílios realizada pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) apontando que o maior gargalo ainda está entre a população de 15 a 17 anos. Dos atuais 10,3 milhões de brasileiros nessa faixa etária, 85,2% se
matricularam nas escolas em 2009.
No entanto, 1.479.000 ainda estão fora da escola. A taxa de escolarização (comparação entre a população e os estudantes) cresceu pouco de 2008 para 2009: 1,1%. Ainda,
segundo a PNAD um em cada cinco brasileiros, com 15 anos ou mais, tem menos de
quatro anos de estudo.
Na faixa etária entre 4 e 5 anos o maior aumento de escolarização ocorreu entre o
período de 2008 a 2009. A taxa subiu de 2%, de 72,8% para 74,8%. O número de estudantes
nessa faixa etária passou de 4.197.000 para 4.225.000. Isso significa, porém, que ainda
1,4 milhões de crianças aguardam uma vaga nas escolas. Todo esse contingente precisa
ser integrado à rede até 2016, de acordo com a Emenda Constitucional nº 59. Até o ano
passado, a oferta de ensino público era obrigatória apenas para os estudantes entre 6 e
14 anos. No fim de 2009, a lei foi modificada para que o acesso à escola fosse garantido
a mais crianças e adolescentes.
Entretanto, mesmo entre a faixa etária em que todos já deveriam estar matriculados na rede escolar, há crianças que ficaram de fora. De acordo com os dados da PNAD
2009, a taxa de escolarização das crianças de 6 a 14 anos de idade chegou a 97,6%. Porém, em um país com tantos habitantes, os números revelam que mais de 731 mil crianças e adolescentes não frequentam a rede escolar brasileira. Hoje, a população com essa
faixa etária que estuda nas escolas do Brasil chega a 29,5 milhões.
Estudos do Unicef no Brasil alertam que 6 a 8 milhões entre 12 e 18 anos vivem
em famílias com baixa renda (menos de meio salário mínimo per capita) e baixa escolaridade (cerca de 5 anos de defasagem escolar) ficando sujeitos ao fracasso escolar e
profissional.
1.3. Trabalho infantil
Conforme pesquisa do PNAD 2010 o número de crianças e adolescentes que trabalham no país vem caindo nos últimos anos. Em 2009 havia 4,2 milhões de trabalhadores
brasileiros com idade entre 05 e 17 anos, o que significa nível de ocupação de 9,8% do total das pessoas na faixa etária. Em 2008, esse número era de 4,4 milhões (10,2% do total).
325
Mesmo com a redução em ritmo acelerado, o país ainda contabilizava, no último
ano, 123 mil crianças de 05 a 09 anos trabalhando, sendo 69% delas do sexo masculino.
Entre 10 e 13 anos, esse número é de 785 mil, enquanto 3,3 milhões de trabalhadores
tinham entre 14 e 17 anos. O número absoluto de crianças que trabalham, bem como de
adolescentes que trabalham em condições ilegais (sem respeito à condição de aprendiz
ou às condições de proteção definidas em lei) ainda é muito alto.
De acordo com a secretária executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), a diminuição não é satisfatória: “o dado confirma
uma tendência de queda lenta e que, portanto, não vai garantir que o Brasil cumpra até
2016 com a meta de eliminar as piores formas de trabalho infantil”.
Ainda segundo a pesquisa podemos, mais uma vez, constatar a diferença considerável entre as regiões no que diz respeito ao trabalho infantil. O Nordeste concentrava
437 dos 908 mil trabalhadores entre 5 e 13 anos (48% do total). Já o Sudeste, com uma
população 60% maior, tinha 182 mil. Entretanto, apesar da diferença, o Nordeste foi a
região que apresentou maior redução entre 2008 e 2009 nessa faixa etária, com a erradicação de 98 mil postos de trabalho infantil. A média de rendimento das crianças e adolescentes trabalhadores era de R$ 278,00 sendo que 30% deles não recebiam nenhuma
contrapartida pelo trabalho oferecido.
O texto básico da pesquisa nos mostra também que a população ocupada de 5 a
13 anos de idade estava mais concentrada em pequenos empreendimentos familiares,
sobretudo em atividade agrícola (57,5%). Aproximadamente 70,8% estava alocada em
trabalho sem contrapartida monetária (não remunerados e trabalhadores para o próprio
consumo ou na construção para o próprio uso).
1.4. Exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes
De acordo com dados do Disque Denúncia (Disque 100), do Governo Federal, no
período de 2005 a 2010, foram registradas 25.175 denúncias de exploração sexual contra
crianças e adolescentes. Para realização do estudo, foram consideradas as denúncias de
prostituição, pornografia, tráfico para fins sexuais e exploração no contexto do turismo. Foram registrados 12.487 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes
somente em 2010. Os dados também apontam que a maioria das vítimas é do sexo feminino: 78%; 80% referem-se à exploração sexual (sexo feminino); 67% referem-se ao
tráfico de crianças e adolescentes; 77% referem-se ao abuso sexual; 69% referem-se à
pornografia. Estes dados dizem respeito a uma faixa etária predominante entre 7 e 14
anos com viés racial da violência sexual e de gênero.
326
A Matriz (2010) aponta a existência de denúncias de ESCA em 2.798 municípios brasileiros, sendo que a Região Nordeste apresenta o maior número de municípios (34%),
seguida pela região Sudeste (30%), Região Sul (18%), Centro Oeste (10%) e Norte (8%). No
ranking das denúncias, a região NE lidera com 38% das denúncias, seguida por Sudeste (28%),
Sul (14%), Centro Oeste (10), Norte (9%).
O Mapeamento dos pontos vulneráveis à exploração sexual ao longo das rodovias
brasileiras realizado pela Polícia Rodoviária Nacional com apoio da Childhood Brasil,
da Secretaria Especial de Direitos Humanos e da Organização Internacional do Trabalho (2010) identificou mais de 1.800 pontos de vulnerabilidade à exploração sexual de
crianças e adolescentes. A pesquisa diferencia o ponto de risco do ponto de exploração.
O primeiro apresenta fatores de risco, não necessariamente a prática de exploração sexual. A região Nordeste apresenta o maior número de pontos de risco da exploração sexual de crianças e de adolescentes. Os cinco estados com maior índice de exploração nas estradas são justamente os que detêm as maiores malhas viárias. Juntos,
esses estados possuem 45,7% dos pontos, sendo Bahia e Paraná detentores de 24,9%
do total de pontos críticos.
Quanto ao tráfico para finalidade de exploração sexual, este envolve majoritariamente mulheres, com elevado percentual de adolescentes negras, segundo a Pesquisa
nacional sobre o tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração
sexual – Pestraf (CECRIA, 2002). A pesquisa identificou 110 rotas de tráfico intermunicipal e interestadual, com número de adolescentes expressivo em 45,6% delas. Entre
as rotas internacionais, 120 lidam com o tráfico de mulheres e 50% delas transportam
adolescentes.
1.5. Adolescentes autores de ato infracional
O mais recente Levantamento Nacional do Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a Lei, da Secretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do
Adolescente, da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República aponta
que existem hoje no Brasil 12.041 adolescentes cumprindo medida de internação (o que
representa um crescimento de 4,50%), seguidos de 3.934 em internação provisória e
1.728 em cumprimento de semiliberdade. O levantamento aponta ainda que em 2010
houve uma quebra da tendência de queda no número de internações que vinha ocorrendo desde 2007. Isto demonstra que a cultura da internação ainda não foi erradicada
e que as Medidas Socioeducativas em Meio Aberto ainda não merecem, tanto por parte
do judiciário, quanto dos órgãos públicos em geral, a prioridade que deveria merecer,
conforme dispõem o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE).
327
2006 para 2007 = 7,18%
2007 para 2008 = 2,01%
2008 para 2009 = 0,43%
2009 para 2010 = 4,50%
Estima-se que só no estado de São Paulo, localidade que concentra 42% dos
adolescentes em cumprimento de regimes em meio fechado no País, existam ao
redor de 1.787 jovens que não deveriam estar em medida socioeducativa de internação, pois seus casos contradizem ou não preenchem os requisitos constantes
do artigo 122 do ECA.
Como se não bastasse o aumento do número de internações, apesar dos avanços
registrados nas últimas décadas, o Brasil ainda convive com graves violações de direitos nas unidades de internação socioeducativa conforme aponta o Levantamento do
Conselho Nacional de Justiça em suas visitas aos Centros Socioeducativos, em 2010. O
levantamento aponta a ocorrência de graves violações de direitos nas unidades de atendimento, como ameaça à integridade física, violência psicológica, maus tratos e tortura,
além de negligência com a saúde dos adolescentes. A situação de violação dos direitos se
torna ainda mais degradante quando há denúncias de jovens privados de liberdade em
locais inadequados, como delegacias, presídios e cadeias.
Portanto, a estrutura das unidades continua sendo questão relevante. A rede física
atual, segundo o levantamento da SDH/PR, está composta por 435 unidades, sendo 305
para atendimento exclusivo de programas. A situação de precariedade é séria em muitas
instalações, sendo mais evidente na região Nordeste onde os estados do Ceará, Paraíba
e Pernambuco apresentam superlotação com taxas acima da capacidade em 67,81%,
38,21% e 64,17%, respectivamente.
Outro ponto também ligado à precariedade da estrutura das unidades, o que agrava também a situação e merece atenção, é o da superlotação. Segundo Relatório Final da
Pesquisa da ANCED “Homicídios de adolescentes em cumprimento da MSE de Internação/2011” das unidades que foram avaliadas como “muito insatisfatórias” nas condições
de vida que oferecem aos adolescentes, possuem, em sua maioria o fator da superlotação
presente no ano de 2010.
Dos oito Estados em que foi possível realizar a pesquisa, segundo o relatório, há
65,15% de adolescentes internados a mais do que as vagas existentes comportam. O
Relatório evidencia ainda que a superlotação é um problema apontado ao longo dos
últimos seis anos em diferentes relatórios da sociedade civil organizada e do Estado
brasileiro.
Uma violação aos direitos de adolescentes que apareceu em relatórios de entidades distintas: SEDH (2004, 2008 e 2009), OAB e CFP (2006), RENADE (2009). Esta
situação parece não ter se alterado de modo significativo entre a publicação destes relatórios e a coleta de dados da presente pesquisa, já que os homicídios aqui registrados
ocorreram entre os anos de 2007 e 2010, período contemplado por pelo menos um
destes documentos.
328
Outra situação gravíssima nos Centros Socioeducativos é a ocorrência de homicídios de adolescentes internados. Fenômeno tão significativo quanto pouco conhecido,
conforme demonstra o Relatório Final da Pesquisa da ANCED: “Homicídios de adolescentes em cumprimento da MSE de Internação/2011”. Segundo este documento, apesar
das denúncias na mídia ou dos processos judiciais instaurados, ainda não há estudos de
âmbito nacional que sistematizem as informações e permitam ações de enfrentamento
diretas e efetivas. Não é possível nem mesmo avaliar qual o grau de participação destes
homicídios nas estatísticas de mortes de jovens no Brasil.
Dos 11 Estados selecionados para a pesquisa, em 08 (DF, RJ, SP, MG, PE, CE, PA
RO) foi possível entrevistar e coletar dados para a pesquisa. Foram registrados 23 casos documentados que são todos aqueles encontrados nos questionários preenchidos
com dados específicos do adolescente, cujas mortes ocorreram entre janeiro de 2007
e janeiro de 2010.
Os casos não documentados em número de 43 constituem o grupo cujas informações específicas são esparsas e insuficientes para qualquer esclarecimento quanto a quem
era este adolescente e como se deu a sua morte no interior da unidade de internação. Entre estes se encontram três casos que ocorreram fora do período recortado pela pesquisa,
nos anos de 2005 e 2006.
Mais uma vez pode-se constatar como a precariedade da situação física e outros
fatores interferem no atendimento adequado ao adolescente que se encontra em regime de internação, quando o relatório mostra a fragilidade das condições estruturais e
de funcionamento das unidades para atender às suas funções. Esta fragilidade pode se
tornar mortífera, na medida em que aumenta a probabilidade de se deflagrarem crises
de violência entre grupos de adolescentes, entre grupos e um outro adolescente, ou entre
os funcionários e os adolescentes. Alguns dos principais elementos que podem se somar
para resultar em tais crises são:
• a superlotação das unidades;
• as condições inadequadas de higiene e ventilação;
• o atendimento em saúde ser ainda em sua maioria “insatisfatório”;
• os conflitos não trabalhados tanto entre os próprios adolescentes quanto entre
os funcionários e os adolescentes;
• o contexto das redes criminosas às quais os adolescentes internados estejam ligados;
• a demora nos encaminhamentos jurídicos que dizem respeito a seus processos;
• o distanciamento entre os adolescentes e a diretoria da unidade de internação;
• a fragilização das possibilidades de convivência familiar e comunitária.
É fundamental avançar na definição de uma política de atendimento que garanta
estrutura, procedimentos, recursos humanos e orçamentários adequados em todas as
fases do processo, desde a prevenção, a captura, o julgamento e a ressocialização.
1.6. Homicídios
Em relação aos adolescentes, a constatação do estudo do Laboratório de Análise
da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) com a Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência e a ONG Observatório de Favelas e o Unicef, braço da
ONU para a infância no Brasil, é de que os homicídios respondem por 46% das mortes
de adolescentes no país e são a principal causa de óbitos nessa faixa etária, à frente das
causas naturais (25%) e dos acidentes (23%).
329
A pesquisa criou um novo indicador, o IHA (Índice de Homicídios na Adolescência). Ele mostra que, de cada mil adolescentes brasileiros, dois deverão morrer antes
dos 19 anos. Foram estimados 33 mil assassinatos de adolescentes entre 2006 e 2012 se
mantidas as condições atuais, o que equivale a 13 homicídios por dia. O trabalho utiliza
informações do Ministério da Saúde relativas a jovens entre 12 e 18 anos nas 267 cidades
brasileiras com mais de 100 mil habitantes. Os dados são de 2006.
1.7. Ameaçados de morte
Entre 2003 e 2007 havia 1.814 pessoas protegidas, das quais 737 são crianças e
adolescentes e 1.077, familiares (Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte – PPCAM, 2003-2004). Os motivos das ameaças mais registrados são o
envolvimento com o narcotráfico e disputas entre grupos rivais.
Perfil dos protegidos:
76% eram do sexo masculino e 24% feminino;
69% eram negros (pardos ou pretos) e 31%, brancos;
95% Idade entre 14 e 17 anos e 5%, menos de nove anos.
Escolaridade:
60% estudaram até a 5ª ou 8ª série incompleta do ensino fundamental;
22% de 1ª a 4ª série incompleta do ensino fundamental;
9% possuem a 4ª série completa do ensino fundamental;
4% o ensino médio incompleto;
2% possuem o ensino fundamental completo;
3% são analfabetos.
As famílias são extremamente pobres, com 56% das pessoas possuindo renda familiar mensal de até um salário mínimo. Vários encaminhamentos têm sido feitos, mas
este é o desafio a ser enfrentado.
2. Mudanças ocorridas nos últimos três anos
As mudanças que vêm ocorrendo são decorrentes em grande parte da mobilização
e controle da sociedade civil, do Ministério Público, da atuação do CONANDA e também pela consciência e cumprimento do dever constitucional por parte do estado.
A cada ano, é possível notar os avanços no sentido de maior conhecimento dos
direitos, de efetivação de políticas públicas, de denúncias contra a exploração e o abuso sexual de crianças e adolescentes, de participação e controle do orçamento.
Podemos afirmar que está se configurando uma nova realidade em relação aos
direitos da população infanto juvenil. Como destaque, mencionamos a formação e
participação de crianças e adolescentes no contexto das discussões relacionadas aos
seus direitos.
330
Entretanto, mesmo com as considerações feitas é preciso destacar que ainda há
muito por fazer e em algumas áreas os avanços ainda estão a passos lentos como na
situação do adolescente autor de ato infracional em que ainda predomina a cultura da
internação e não efetivação das Medidas Socioeducativas. Estados e Municípios ainda
não colocaram este tema como prioridade. Os responsáveis pelas Políticas de Cultura,
Esporte e Lazer não se conscientizaram sobre a importância destas Políticas para a
criança e o adolescente, portanto, podemos dizer que nestas áreas praticamente não
houve avanço.
3. Perspectivas e recomendações
A realidade da criança e do adolescente no país exige urgentemente que medidas
sérias sejam tomadas para que de fato se efetive a determinação legal do Estatuto da
Criança e do Adolescente e também para que esta população seja de fato prioridade
absoluta conforme determina a Constituição Federal.
Para tal, algumas recomendações são destacadas, que envolvem tanto o Estado na
sua responsabilidade de proporcionar a seu povo, principalmente às crianças e aos adolescentes, o direito a uma vida digna, quanto à Sociedade no seu papel de participar e
fazer o controle social.
• Reduzir as desigualdades sociais e regionais, respeitando as peculiaridades inerentes às questões de raça, etnia, gênero;
• Enfrentar as situações de extrema pobreza, especialmente das crianças no meio
rural, indígenas e quilombolas;
• Fortalecer articulações regionais e locais e, principalmente, os Conselhos Gestores que, embora criados em praticamente todo país não conseguem desempenhar suas funções de discutir e deliberar sobre a política;
• Fortalecer a organização da sociedade civil constituída pelos Fóruns que se
encontram com baixa mobilização e organização frágil;
• Enfrentar as fragilidades da rede de promoção dos direitos básicos, ampliando
programas com escola de tempo integral, centros de referência da Juventude,
universalização da educação infantil;
• Estabelecer uma política abrangente, coordenada e integrada que evidencie a
responsabilidade de todos os gestores na resolução dos graves problemas de
violação dos direitos humanos de crianças e adolescentes uma vez que as atuações são isoladas sem grande efetividade;
• Aprovar o Projeto de Lei do SINASE que se encontra em tramitação na Câmara para
que o atendimento ao adolescente autor de ato infracional se faça de modo efetivo;
• Definir cronograma para que os Municípios elaborem seus programas e executem as Medidas Socioeducativas em Meio Aberto;
• Criar e/ou fortalecer mecanismos e espaços para a participação e a contribuição de crianças e adolescentes e suas famílias;
• Estruturar trabalho articulado em rede que proteja as vítimas de violência sexual, fortaleça as famílias e responsabilize os violadores de direitos.
331
Criar capital social, principalmente numa sociedade marcada pela exclusão, por
desníveis sociais graves e antigos e pela falta de participação política genuína dos seus
cidadãos, não é tarefa fácil, mas será fundamental para fazer a democracia funcionar
(GOHN, Maria da Glória. O Papel dos Conselhos Gestores na Gestão Urbana).
Referências bibliográficas
ANCED. Relatório final. 2009–2020. Disponível em: www.anced.org.br/cyberteca/
atividades-realizadas/seminario-de-apresentacao-da-pesquisa-homicidios-de-adolescentes-em-cumprimento-de-medidas-socioeducativas-de-internacao/apresentacao-seminario.pdf/view. Acesso em: 07 de setembro de 2012.
BRASIL. IBGE. Pesquisa nacional por mostra de domicílio. Síntese de indicadores 2009.
Disponível em: www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/
pnad2009/pnad_sintese_2009.pdf. Acesso em: 08 de setembro de 2012.
IPEA. Relatório nacional de acompanhamento. Brasília: IPEA, 2010.
FNPETI. Eliminar o trabalho infantil em defesa dos direitos humanos e da defesa social.
Disponível em: www.oit.org.br/sites/default/files/topic/gender/doc/fnpeti%20
dia%2012%20de%20junho%202012%202010%20vf_854.pdf. Acesso em: 08 de setembro de 2012.
LEAL, Maria Lúcia; LEAL, Maria de Fátima (Orgs.). Pesquisa sobre tráfico de mulheres,
crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial – PESTRAF. Relatório
Nacional. Brasília: CECRIA, 2002.
332
LGBT E DIREITOS HUMANOS NO BRASIL
Léo Mendes*
Odílio Torres**
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Todos os direitos
humanos são universais, interdependentes, indivisíveis e inter-relacionados. A orientação
sexual1 e a identidade de gênero2 são essenciais para a dignidade e humanidade
de cada pessoa e não devem ser motivo de discriminação ou abuso.
Yogyakarta, Indonésia, 9 de novembro de 20063
Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.
Constituição Federal de 1988
*
**
1
2
3
Jornalista, bacharel em Direito, consultor em Direitos Humanos, diretor executivo da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT).
Estudante de Direção e Arte na UFG, coordenador da Articulação Brasileira de Gays (ARTGAY) na região Centro-Oeste.
Compreendemos orientação sexual como uma referência à capacidade que cada pessoa tem de sentir uma profunda
atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero,
assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas.
Compreendemos identidade de gênero como uma experiência profundamente sentida interna e individual do gênero
de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo
(que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou
outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos.
Princípios de Yogyakarta sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação
sexual e identidade de gênero.
333
1. Situação atual da questão no Brasil
Grande parte do movimento LGBT brasileiro trabalha com os dados do relatório
Kinsey, onde se afirmava, na década de 1950, que 10% da população dos EUA tinha
orientação sexual homossexual. Na falta de coletas de dados pelo Instituto Brasileiro
Geográfico e Econômico (IBGE) sobre a orientação sexual da população, o movimento
LGBT deduz que de 190.732.694 habitantes (dados do IBGE, Censo 2010), 19 milhões e
733 mil pessoas no Brasil são Homossexuais assumidas. É com base nesta estimativa que
passamos a tratar da situação LGBT atual no país.
Do ponto de vista da Saúde Pública, a maior preocupação dos movimentos, reconhecida pelo governo, é com o aumento explosivo dos casos de AIDS entre os jovens
gays e travestis. A prevalência da AIDS no Brasil se mantém estável, mas o aumento
dos casos neste grupo específico é motivo de preocupação, como mostram os dados do
Boletim Epidemiológico DST/AIDS 2011, divulgado em 28/11/2011 pelo Ministério da
Saúde. Essas populações deveriam ser enfatizadas na campanha que o governo lançou
no Dia Mundial de Luta Contra a AIDS, e no carnaval de 2012.
No ano de 1990, 25,2% dos jovens entre 15 e 24 anos infectados pelo vírus da AIDS
eram homens que fazem sexo com outros homens. Em 2010, essa proporção aumentou para 46,4%. Entre os jovens gays de 18 a 24 anos, a prevalência da doença é de 4,3%.
Quando comparados com os jovens em geral, a chance de um jovem gay estar infectado
pelo HIV é 13 vezes maior.
Entre os jovens homossexuais, os casos de infecção pelo vírus passaram de 24,3 por
100 mil habitantes, para 26,9 casos. A prevalência da doença entre os jovens gays de 18 a
24 anos, hoje, é de 4,3%. Segundo a pesquisa, a chance de um rapaz homossexual estar infectado pelo HIV é 13 vezes maior em relação aos jovens em geral. Conforme Alexandre
Padilha, ministro da saúde: “o maior aumento [em termos de vulnerabilidade] foi entre
jovens gays, jovens travestis e mulheres de 13 a 19 anos; isso chama muito a atenção”.
No ano de 2001, foi realizada uma Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações
Unidas, denominada Ungass, que teve como tema a AIDS. O Brasil assumiu com outros
198 países do mundo, o compromisso de cumprir com as metas da Ungass. No parágrafo 47
da Declaração está o compromisso de até 2010, reduzir em 25% a prevalência do HIV entre
jovens de ambos os sexos com idades entre 15-24. No parágrafo 53 da Declaração está o compromisso de “até 2010, garantir que pelo menos 95% dos jovens de ambos os sexos, com idade
entre 15 e 24 anos, tenham acesso à informação, à educação [...]” (ONU, Special Session on
HIV, 2001). Chama a atenção que até 2011 o Brasil não tenha conseguido alcançar tais metas.
Apesar das tentativas do Departamento Nacional de AIDS existem vários motivos
para que isso tenha acontecido. Desde 2003, o Brasil fez a descentralização dos recursos
federais para ações de prevenção à Aids no Brasil, transferindo as responsabilidades para
os governos estaduais e municipais, que na sua grande maioria, não aplicaram sequer 3%
da área de Prevenção do Plano de Ações e Metas (PAM) para apoiar projetos de ONGs
334
de LGBT que objetivavam prevenir a AIDS junto aos jovens gays e travestis, além de outras demandas importantes para vencer a homofobia, responsável vulneravilidade deste
grupo social em relação ao HIV/AIDS. Outro problema é a falta de campanhas educativas preventivas para jovens gays e travestis nos meios de comunicação de massa, tvs
e jornais, não realizados pelo governo federal e pelas secretarias estaduais e municipais
de saúde, assim como a falta de apoio para realização de eventos de empoderamento de
jovens gays e travestis para lutar contra a AIDS.
Por fim, a recusa do MEC e das secretarias de educação em incluir ações de prevenção nas escolas, sobretudo máquinas dispensadoras de preservativos e interdisciplinariedade de educação em saúde para prevenção da AIDS também contribui para o
quadro exposto acima. Os governos federal e estaduais optaram por priorizar a testagem
rápida do HIV junto aos gays e travestis em paradas, locais de frequência LGBT, ao invés
de priorizar a prevenção deste público. O resultado está nos dados epidemiológicos do
próprio Ministério da Saúde. Todos os dias 8 gays e travestis morrem de AIDS no Brasil.
Ainda na área da saúde, não menos graves são os problemas enfrentados pelas
mulheres lésbicas e bissexuais com o atendimento de qualidade na rede pública. A Lesbofobia é o maior empecilho para que as lésbicas e bissexuais tenham acesso igualitário
ao atendimento específico e de qualidade, especialmente aos testes de DST, sobretudo
o HPV. Além disso, sofrem com o atendimento nas Unidades Básicas de Saúde, tanto
quando assumem que são usuárias lésbicas, como quando são profissionais de saúde
com orientação sexual homossexual. A reprodução assistida pela rede Pública ainda é
uma realidade muito distante em centenas de municípios brasileiros para as pessoas que
se assumem homossexuais.
As e os transexuais, no Brasil, apesar de determinação Ministerial, aguardam em filas intermináveis para iniciar o acompanhamento e realizar as operações de readequação
sexual. Apenas quatro Hospitais de Clínicas do país fazem as operações de readequação
sexual, obrigando as transexuais a se deslocarem durante dois anos para outros estados.
Na área de segurança pública, houve um grande retrocesso. Durante o governo
Lula, foi criado, a partir da exigência do Decreto do programa Brasil sem homofobia,
ainda em vigor, o Grupo de Trabalho de Segurança Pública para LGBT, no âmbito do
Ministério da Justiça. Foram realizados dois seminários nacionais de segurança pública
para LGBT, ainda no Governo do ex-presidente. Durante o governo Dilma, o Ministério
da Justiça fechou o Grupo de Trabalho de Segurança Pública para LGBT.
De acordo com dados do Grupo gay da Bahia, os assassinatos de LGBT no Brasil
subiram de 1 a cada 3 dias durante o governo Lula, para 1 em a cada dia, durante o governo Dilma. Uma tímida campanha de televisão, pouco vista pela maioria da população,
foi feita pela Secretaria de Direitos Humanos, Unesco e Rede Globo, para tentar amenizar o problema. Foi ainda lançado pela Secretaria especial de Direitos Humanos um selo
denominado “Brasil território sem homofobia” e ampliado o atendimento do fone 100
para casos de homofobia.
335
Centros de referencia ao atendimento psicossocial e jurídico foram fechados em
vários estados do Brasil durante o governo Dilma. As televisões passaram a anunciar,
quase que diariamente, o aumento escandaloso dos casos de violência contra gays e travestis nas ruas e praças do Brasil. O III Seminário nacional de Segurança Pública para
LGBT, que deveria ocorrer no início de 2012, não aconteceu.
O Ministério da Cultura passou a não lançar mais editais ou premiar organizações
da sociedade civil que realizassem ações de combate à homofobia: paradas, shows, filmes; como acontecia no governo do presidente Lula. O GT de Cultura LGBT está paralisado desde o início do Governo Dilma.
Na área de Educação, todas as pesquisas: IPEA, Unesco, Reprolatina, Fundação
Perseu Abramo, detectaram que existe homofobia nas escolas brasileiras e que ela é responsável pela exclusão escolar de travestis, além de haver um rodízio permanente de
gays, lésbicas e transexuais das escolas. A pesquisa “Perfil dos Professores Brasileiros”, realizada pela Unesco, entre abril e maio de 2002, em todas as unidades da federação brasileira, contém a entrevista de 5 mil professores da rede pública e privada. Esta pesquisa
revelou, entre outras coisas, que para 59,7% deles é inadmissível que uma pessoa tenha
relações homossexuais e que 21,2% deles tampouco gostariam de ter vizinhos homossexuais (CASTRO; ABRAMOVAY; SILVA, 2004, p. 144; 146). As travestis são as mais
excluídas das escolas, quase sempre impedidas de usar banheiro feminino, uniforme
feminino e somente agora estão conseguindo aprovar portarias estaduais que garantam
o seu nome social nas chamadas, evitando mais constrangimento.
Um questionário socioeconômico que alunos responderam no Brasil para se inscrever no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2004 a 2008 mostrou um crescimento de 150% do número de pessoas que se declaram vítimas de homofobia no Brasil neste
período. De acordo com o levantamento, Santa Catarina registrou o maior aumento
de casos de discriminação contra homossexuais, 211% entre 2004 e 2008. Outros quatro
estados brasileiros apresentaram um alto índice de crescimento da homofobia, são eles:
Paraná (175%), Rio Grande do Norte (162,5%), Alagoas (164,7%) e São Paulo (160%).
Foram analisadas as respostas de 6,4 milhões de estudantes concluintes do ensino
médio, com idades entre 16 e 25 anos, que prestaram o Enem entre 2004 e 2008. Após esse
ano, as questões relativas à homofobia foram retiradas dos questionários. Governos federal,
estaduais e municipais têm obrigação de inserir este debate no âmbito das políticas, mas
por conta de pressões de cunho religioso fundamentalista e conservador, o Ministério da
Educação e as secretarias estaduais e municipais se recusam a convidar especialistas para
elaborar planos de educação sustentáveis no combate à homofobia na escola. O veto da
presidente da República Dilma Rousseff a materiais didáticos que poderiam dar o pontapé
inicial nesta luta contra a homofobia fez com que o assunto ficasse arquivado nas escolas.
No mundo do trabalho o que vemos é uma grande dificuldade para que travestis
e transexuais consigam vagas no mercado formal, tendo em vista o alto grau de transfobia neste meio. Esta questão se relaciona o grave problema no Brasil da expulsão de
336
adolescentes lésbicas, gays, travestis e transexuais de casa, devido à orientação sexual ou
identidade de gênero, e no caso das travestis, a sua exclusão escolar, o que leva os LGBT
adolescentes para a prostituição na adolescência. Via de regra, travestis e transexuais
adultas, só conseguem emprego em salões de beleza. Gays afeminados e lésbicas masculinizadas têm maior chance de não serem aceitos no mercado de trabalho. Não existe
nenhuma campanha do Ministério do Trabalho para mudar este quadro. Há alguns anos
o Ministério do Trabalho vem discutindo com o movimento das travestis a possibilidade
de criar cotas para que as mesmas possam se requalificar nos Planos nacionais de qualificação do trabalho (Planteq).
Na área de Assistência Social é comum a reclamação de travestis e transexuais
adolescentes que são impedidas de usar o banheiro e quartos femininos. Nos programas de combate à pobreza, de inclusão social (como bolsa família, minha casa minha
vida), na garantia da lei orgânica da assistência social (LOAS) e nos direitos dos benefícios da seguridade social, lésbicas, gays, travestis e transexuais têm pouco ou quase
nenhum acesso.
Foi preciso criar centros de referência para atendimento psico social exclusivo para
LGBT no Brasil, diante da distância entre os Centros de Referência de Assistência Social
(CRAS) e Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS) na busca
ativa da comunidade LGBT.
Falta estabelecer, especialmente para crianças e jovens, programas sociais de apoio
para o enfrentamento à vulnerabilidade oriunda da falta de moradia, da exclusão social,
da violência doméstica e outras formas de violência em razão da orientação sexual e
identidade de gênero, e implementar planos de apoio e segurança em redes sociais que
fortaleçam a participação das organizações LGBT como protagonistas, abrindo espaços
para debates sobre políticas urbanas e rurais que incorporem o recorte de orientação
sexual e identidade de gênero, dando ênfase às políticas voltadas para a transformação
da realidade das travestis.
O Ministério do Turismo havia se comprometido a, até 2011, implementar o programa Viaja Mais Diversidade e garantir que as políticas relacionadas ao turismo LGBT
tenham como preocupação a empregabilidade e a geração de oportunidades para a população LGBT. Em pleno período de vésperas de Copa do Mundo e Olimpíadas observa-se que estas ações não saíram do papel.
O Ministério do meio ambiente não implementou a Política Nacional de Educação
Ambiental ( Lei nº. 9.795) na perspectiva da complexidade e da diversidade de orientação sexual e de identidade de gênero. Muito menos de assegurar a implantação e a
implementação da Agenda 21 Brasileira, questões que inter relacionem a diversidade
afetivo sexual com a diversidade sócio ambiental.
337
2. Atuação e posicionamento do estado brasileiro
Durante a revisão do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) – Plano de
Ação 2002 – surgem as primeiras referências à população GLBT, contendo menções generalistas à garantia do direito de livre orientação sexual, além da previsão de incentivo
às campanhas de informação sobre DST e HIV/AIDS, cujo teor conscientiza a população sobre comportamentos que facilitem ou dificultem a sua transmissão.
O quesito orientação sexual foi inserido no texto do PNDH dentro das propostas
de ações governamentais, na garantia do direito à liberdade e na garantia do direito à
igualdade. Dentre as propostas, se destaca a recomendação de emenda à Constituição
Federal proibindo a discriminação por orientação sexual; a regulamentação da parceria
civil registrada entre pessoas do mesmo sexo; a regulamentação da lei de redesignação
de sexo e mudança no registro civil para transexuais; a exclusão do termo “pederastia”
do Código Penal Militar; a inclusão nos censos demográficos de possíveis indicadores
que permitam evidenciar aspectos da situação social e de vida da população GLBT; o
apoio a políticas de ação afirmativa como forma de combate à violência e desigualdade
e, ainda, a inclusão nos currículos escolares de informações sobre o problema da discriminação na sociedade brasileira, e sobre o direito de todos os grupos e indivíduos a um
tratamento igualitário perante a lei.
Entidades dedicadas ao combate e ao estudo da estigmatização e da discriminação
dos indivíduos e grupos com identidades ou comportamentos sexuais que não correspondem aos preceitos da heteronormatividade dominante – lésbicas, gays, bissexuais,
travestis e transexuais (LGBT) conseguiram no primeiro ano do governo Lula, criar o
Programa Brasil Sem Homofobia cujas ações possibilitaram a implantação de Centros
de Referência em Direitos Humanos e Combate à Homofobia em todas as unidades da
Federação, além de financiar Núcleos de Pesquisa e Promoção da Cidadania LGBT e
projetos de capacitação em Direitos Humanos para o combate à homofobia. Foi a primeira política Pública do Executivo Federal para esta comunidade. O programa prevê a
execução de 54 ações em diversos ministérios do governo federal, como formar e reduzir
a violência, discriminação, preconceito e a homofobia no Brasil. Por meio do Decreto
Presidencial de 28 de novembro de 2007, foi convocada a I Conferência Nacional GLBT,
que representou um marco histórico na luta pela Cidadania e Direitos Humanos desta
população LGBT, tendo a grande responsabilidade de discutir e propor, de forma coordenada e com a garantia de participação popular, as políticas que norteiam as ações dos
Poderes Públicos.
Entre os dias 05 e 08 de junho de 2008 aconteceu na cidade de Brasília a I Conferência Nacional GLBT. O evento foi coordenado pela Subsecretaria de Promoção e
Defesa dos Direitos Humanos, da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) da
Presidência da República.
338
O evento constituiu um marco positivo para discussão de problemáticas de gays,
lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais através do tema “Direitos Humanos e Políticas Públicas: O caminho para garantir a cidadania de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (GLBT)”.
Esse evento merece destaque na medida em que é uma iniciativa histórica para a
população GLBT, por ser ouvida e questionada em suas demandas políticas a partir de
mobilizações de diversas instituições do governo e sociedade civil. Foi o primeiro evento
dessa natureza no Brasil convocado a partir de Decreto presidencial, em 28 de novembro
de 2007, tornando possível a realização dessa discussão pública que articulou diversos
segmentos da sociedade brasileira.
Antecipando a Conferência Nacional, estados e municípios do país convocaram
suas conferências nas quais foram escolhidos os delegados que participaram da etapa
nacional e discutidas as principais demandas políticas de GLBT. Culminando esse processo, cerca de 1000 pessoas participaram da Conferência Nacional sendo mais de 300
observadores de 14 países.
A realização desse evento permitiu uma maior visibilidade de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil. Mobilizou a imprensa, governos estaduais, Ministério Público, representantes dos poderes legislativo e judiciário, e a sociedade civil
organizada, mostrando uma sensibilidade maior para elaboração de propostas de políticas públicas para o segmento.
Diversos temas foram discutidos nesse evento, como trabalho, justiça e segurança
pública, previdência social, esportes e educação para GLBT. Alguns dos quais merecem
um destaque especial, eles incidem na elaboração do Plano Nacional de Promoção da
Cidadania e Direitos Humanos de GLBT, e fazem parte das estratégias para fortalecer
o Brasil sem Homofobia – Programa de combate à violência e à discriminação contra
GLBT e de promoção da cidadania homossexual.
Em relação às políticas públicas de saúde, no dia 05 de junho de 2008, o ministro
da Saúde, José Gomes Temporão, anunciou que assinará uma portaria apta a permitir
a realização de cirurgia de mudança de sexo pelo Sistema Único de Saúde atendendo
às demandas de transexuais. Ainda segundo o ministro, algumas unidades hospitalares
ligadas aos grandes centros e universidades, como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas
Gerais, serão credenciadas a realizar o procedimento cirúrgico.
Na conferência foram ainda discutidas demandas específicas de cada segmento que
compõem a população GLBT, em relação às políticas públicas de saúde, destacando-se
as demandas por reconhecimento das identidades de gênero das travestis e transexuais,
onde as travestis buscam o direito de serem identificadas pelo nome social (escolhidos
por elas no processo de transformação de identidade de gênero), e não o nome civil, nos
serviços de saúde e pleiteiam também assistência médica para uma modelação segura do
corpo com silicone. Além disso, os transexuais reivindicam que o SUS passe a oferecer
as cirurgias para mudança de sexo.
339
Durante o evento grupos de lésbicas e ativistas se mobilizaram para mudar a nomenclatura usada para o movimento, passando de GLBT para LGBT, essa nomenclatura
já é usada por alguns segmentos do movimento social no Brasil e é reconhecida internacionalmente, contudo é necessário certo cuidado na análise dessa mudança, pois ela é o
correlato das reivindicações das mulheres lésbicas e sob ela se processam disputas mais
amplas de reconhecimento e políticas de identidade no Brasil.
A conferência sinalizou a aprovação do Primeiro Plano Nacional de Políticas Públicas para LGBT que deverá, a partir das propostas aprovadas na Conferência, ser desenhado - a posteriori – com equipe composta pelo poder público e sociedade civil.
Também foi reivindicada a aprovação dos Projetos de Lei que criminalizem a homofobia (PLC nº 122/2006); que garantam o direito de União Civil entre casais do mesmo sexo (PL nº 1.151/1995), que autorizem a mudança de nome para as travestis (PL
nº 2.976/2008) e o que autoriza a mudança de nome para as pessoas transexuais (PLC
nº 72/2007), além do estabelecimento de um Grupo de Trabalho formado por representantes do Ministério da Justiça, Judiciário, Legislativo, Ministério Público, Defensoria
Pública e representantes das organizações de LGBT para encaminhar à presidente da
República uma minuta de Projeto de Lei de Estatuto da Cidadania LGBT que garanta os
demais direitos civis, sociais, econômicos e políticos para a população.
Também durante o evento se reivindicou a criação de uma Subsecretaria LGBT
junto a SEDH – Secretaria Especial dos Direitos Humanos, a conferência foi marcada
por discussões das mais diversas ordens, no geral, ela aponta para uma mudança fundamental, o reconhecimento de que as populações GLBT necessitam de políticas públicas
específicas que incidam na promoção de cidadania.
O evento culminou com a aprovação da Carta de Brasília no dia 08 de junho de
20084 e com uma manifestação em frente ao Centro de Eventos Brasil 21, onde aconteceu
a 1ª Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (GLBT),
nesse local foi estendida uma grande bandeira do arco íris, símbolo do movimento, com
73 cruzes representando as mortes de homossexuais, travestis e transexuais noticiadas na
imprensa brasileira neste ano, esse dado provém de coleta realizada pelo GGB (Grupo
Gay da Bahia). As cruzes foram divididas entre 50 gays, 20 travestis e três lésbicas.5
A partir da Conferência foi criado o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e
Direitos Humanos de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais trazendo as diretrizes para a elaboração de políticas voltadas ao segmento LGBT, mobilizando tanto os
poderes públicos quanto a sociedade civil organizada e com o objetivo geral de orientar
a construção de políticas públicas de inclusão social e de combate às desigualdades para
a população LGBT, primando pela intersetorialidade e a transversalidade na proposição
e implementação dessas políticas. Dezenas de ações deveriam ter sido implementadas
pelos Ministérios da Saúde, Educação, Cultura, Trabalho, Direitos Humanos, Turismo,
entre outros, para melhorar a qualidade de vida de 20 milhões de brasileiros LGBT.
4
5
A carta na sua versão integral encontra-se como BOX no final do texto.
Fonte Mix Brasil
340
Posteriormente, o ex-presidente Lula publicou no Diário oficial o Decreto de 04 de
junho de 2010 que institui o dia 17 de maio como a data de combate à Homofobia no
Brasil.6 Em 09 de dezembro de 2011, o ex-presidente Lula publica o Decreto nº 7.388,
de 09 de dezembro de 2010 no Diário Oficial da União criando o Conselho Nacional de
Combate à Discriminação, voltado ao segmento LGBT. O colegiado está vinculado à Secretaria Especial dos Direitos Humanos e tem a função de “formular e propor diretrizes
de ação governamental, em âmbito nacional, voltadas para o combate à discriminação e
para a promoção e defesa dos direitos LGBT” (BRASIL, 2011).
Após a primeira vitória de uma mulher para a presidência do Brasil, Dilma Rousseff, de um partido socialista, PT, o movimento social LGBT criou várias expectativas
em torno dos avanços que poderiam acontecer a partir da nova administração federal.
Porém, o segundo turno eleitoral no Brasil, em Outubro de 2010, quando setores fundamentalistas religiosos, especialmente evangélicos, obrigaram a candidata Dilma a se
comprometer com os princípios gerais de defesa da “Família” e contra o aborto, deram a
tônica do novo jeito político de administrar da Presidenta Dilma.
Em 05 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, declarou ser constitucional o direito de casais do mesmo sexo registrar suas uniões estáveis
no Brasil, não havendo distinção entre heterossexuais e homossexuais. Posteriormente
o juiz goiano, Jerônimo Villas Boas, que também é pastor da Igreja Assembleia de Deus
de Goiânia, GO, resolveu descumprir esta decisão e anular a primeira união estável no
Brasil, realizada em 09 de maio de 2011, em Goiânia, GO, pelo casal Léo Mendes e Odílio Torres. Esta homofobia institucional foi divulgada durante uma semana em todos os
veículos de comunicação no país, até a revogação da decisão pelo Tribunal de Justiça de
Goiás. Imediatamente o Deputado Federal, Nazareno Fonteles (PT/PI), da ala carismática da Igreja Católica, atendendo aos pedidos da bancada religiosa do Congresso, apresentou um projeto de lei que limita o poder do STF no Brasil. O Argumento do deputado
católico do PT é que o Judiciário estaria legislando ao interpretar a Constituição federal.
No dia 18 de maio de 2011, a presidenta Dilma publicou um Decreto convocando
a II Conferência Nacional LGBT, realizada de 15 a 18 de dezembro de 2011, em Brasília,
DF. Diferente da I Conferência que contou com a presença do ex-presidente Lula e de
mais 10 Ministros, na II Conferência a presidente Dilma se recusou a aparecer e apenas
três Ministros se fizeram presentes.
Logo após a decisão do STF, o ministro chefe da Casa Civil, Antônio Palocci, assustado com a ameaça de convocação feita na noite de 24 de maio de 2011 no plenário do Congresso Nacional, caso o governo não retirasse de circulação o chamado “kit
anti homofobia”, a presidenta Dilma decidiu receber as bancadas religiosas no Planalto
e anunciar a suspensão de divulgação de qualquer material sobre o tema. Essas decisões
foram anunciadas no dia 25 de maio de 2011 pelo ministro chefe da Secretaria Geral da
6
O Decreto em questão pode ser consultado pelo site da Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/Dnn/Dnn12635.htm>. Acesso em: 31 jul. 2012.
341
Presidência, Gilberto Carvalho, logo depois do encerramento de uma conversa com parlamentares das bancadas evangélica, católica e de defesa da família. Gilberto Carvalho
anunciou que a presidente Dilma Rousseff determinou o veto da produção de vídeos e
cartilhas contra a homofobia e mandou suspender a divulgação do que já havia sido distribuído. Os ministros da Educação, Fernando Haddad e, da Saúde, Alexandre Padilha,
foram chamados ao Planalto para conversar sobre o caso.
No final de 2011, o Ministro da Saúde, diante do quadro alarmante de crescimento
da AIDS entre jovens gays do Brasil (11% de infecção x 0,6% da população em geral 0,6),
durante a 14ª Conferência Nacional de Saúde, assinou o Decreto de criação da Política
Integral da Saúde LGBT. Por outro lado o Ministro da Saúde do Brasil lançou um selo
comemorativo dos correios para prevenção da AIDS, que não faz nenhuma alusão a Homoafetividade e lançou uma campanha de televisão de primeiro de dezembro de 2011
contra o preconceito, mas que não falou abertamente sobre a prevenção para Gays.
No Início de 2012, a Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde resolveu vetar, censurar, uma campanha de televisão aberta para a prevenção da AIDS
ligada aos jovens gays no Brasil, que havia sido feita pelo departamento nacional de
DST/HIV/AIDS e colocou no lugar uma propaganda com dados epidemiológicos sobre
o crescimento da AIDS em jovens heterossexuais e jovens gays, finalizando com a informação de que AIDS não tem cura e que se deve usar camisinha.
O Congresso Nacional, desde 2001, discute o Projeto de Lei (PLC) nº 122, de
autoria inicial da ex-deputada Iara Bernardes (PT/SP) e posteriormente da ex-senadora
Fátima Cleide (PT/RO). No Senado Federal, a bancada religiosa tem feito manifestações
contínuas contra a aprovação do projeto de lei, sob o argumento de que a criminalização
da homofobia no Brasil, seria um privilégio para os homossexuais e que feriria o direito
à liberdade religiosa das igrejas poderem falar contra a homossexualidade. Vários parlamentares do Brasil, ligados às bancadas evangélicas e católicas, apresentam projetos que
proíbem a distribuição de material pedagógico de combate à homofobia nas escolas,
criando o dia dos Heterossexuais, permitindo aos psicólogos o direito de curar homossexuais, entre outras.
3. Atuação da sociedade civil organizada no âmbito da questão
O movimento nacional LGBT é plural e diverso e se organiza e mobiliza de diferentes
formas. Há um grupo de ativistas independentes. Na educação, estudantes e demais pessoas
das universidades, especialmente públicas, se organizam a partir do Encontro Nacional da
Diversidade Sexual (Enuds). Existe a ala de sindicalistas da Central Única dos Trabalhadores
que são LGBT. Outro segmento é dos LGBT da Central dos Movimentos Populares. Também
há a Associação Brasileira de Homocultura (ABEH), formadas por membros da academia.
342
E, por outro lado, as várias redes nacionais de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis
e Transexuais (LGBT): entre as Lésbicas: Articulação Brasileira de Lésbicas (ABL), Liga
Brasileira de Lésbicas (LBL), Coletivo Nacional de Negras Lésbicas (Candace) e Rede
Sapata; entre os gays: Articulação Brasileira de Gays (Artgay) e Associação Brasileira
de Gays (Abragay); entre as Travestis e Transexuais: Articulação Nacional de Travestis
e Transexuais (Antra) e Rede Nacional de Trangêneros (Rede Trans ); entre os Jovens:
E-Jovens e a Articulação Brasileira de Jovens Gays (Artgay-Jovens). Ainda há a Rede
Nacional de Negros e de Negras LGBT e, por fim, a Associação Brasileira de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT).
Estas redes organizam encontros, seminários e congressos, além de se encontrarem
durante as conferências nacionais LGBT. Em 29 de janeiro é comemorado o dia nacional de visibilidade das travestis e transexuais. Nesta ocasião, este segmento social realiza
diversos eventos que vão desde a busca da melhoria da auto estima da comunidade até
manifestações públicas de reivindicação de direitos.
No dia 17 de maio é realizada em Brasília, DF, e em algumas capitais, a marcha nacional contra a Homofobia. O Evento costuma exigir do Poder Executivo e Legislativo a
garantia do Estado laico, aprovação de projetos de lei de interesse da comunidade, além
de execução de ações para o combate da homofobia no âmbito dos Governos Federal,
estadual e Prefeituras.
Durante todo o ano, especialmente aos domingos, no período vespertino, em todos
os Estados e no Distrito Federal são realizadas as paradas do orgulho LGBT, com o objetivo de comemorar o dia do Orgulho da comunidade (28 de junho) e reivindicar direitos
iguais, entre a população homossexual e heterossexual no Brasil.
No dia 29 de agosto, é comemorado o dia nacional da visibilidade das lésbicas.
Diversas ações entre marchas, seminários, debates, mostras e outras manifestações são
desenvolvidas em todo o país para lembrar da violência sofrida pelas mulheres lésbicas
no país e ampliar a visibilidade das mesmas na área pública.
No dia 1 de dezembro, dia nacional de luta contra a AIDS, é comum o envolvimento, especialmente da comunidade de travestis e gays nos eventos, tendo em vista serem
estes os grupos mais vulneráveis à doença no Brasil.
Muitos ativistas LGBT migraram para a área governamental, iniciando um ciclo de
participação direta da execução de políticas públicas para LGBT no país. Há de se destacar o trabalho eficiente desenvolvido por algumas lideranças como Cláudio Nascimento, na Superintendência dos Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, Carlos
Tufvesson, na Coordenadoria LGBT da cidade do Rio de Janeiro, Carlos Magno, no
Centro de Referência LGBT de Belo Horizonte, Germano Marino, no Centro de Referência do Acre, além da presença de várias outras pessoas em coordenações municipais de AIDS do Brasil.
343
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MINISTÉRIO DA SAÚDE: <www.aids.gov.br/noticia/2011/definida_politica_de_
saude_integral_de_lgbt>.
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CARTA DE BRASÍLIA
Nós delegadas e delegados, participantes da Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT), reunidos em Brasília, entre os dias 5 e 8
de junho de 2008, com o intuito de avaliar e propor estratégias de promoção da cidadania e de combate à violência e a discriminação contra a população LGBT, manifestamos
nossa esperança e confiança de conquistarmos um Brasil e um mundo sem nenhum tipo
de preconceito e segregação;
Consideramos que o processo de mobilização social e a consolidação de políticas
públicas em todas as esferas do Estado são fatores determinantes para a construção de
uma sociedade plenamente democrática, justa, libertária e inclusiva;
Para tanto, assumimos o compromisso de nos empenharmos cada vez mais na luta
pela erradicação da homofobia, transfobia, lesbofobia, machismo e racismo do cotidiano
de nossas instituições e sociedade, e por um Estado laico de fato;
A humanidade conhece os horrores causados pelas diferentes formas e manifestações de intolerância, preconceito e discriminações praticadas contra idosos, crianças, pessoas com deficiência, bem como por motivações de gênero, raça, etnia, religião,
orientação sexual e identidade de gênero;
Contra o segmento LGBT tem recaído, durante séculos, uma das maiores cargas de
preconceito e discriminações. Na idade média foram queimados em fogueiras. Durante
o reino da barbárie nazista foram marcados com o triângulo rosa e assassinados em
campos de concentração e fornos crematórios, juntamente com Judeus, Ciganos e Testemunhas de Jeová. Também nos países ditos do “socialismo real”, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais foram vitimas de discriminações, preconceito, e condenações,
o que mostra que a intolerância e a discriminação extrapolam as barreiras ideológicas e
os regimes políticos;
Assim, como os preconceitos foram gerados e alimentados por determinadas condições históricas, é chegado o momento de introduzir no âmago dos valores essenciais da
sociedade: a consciência, o respeito e o reconhecimento da dignidade da pessoa humana,
em sua absoluta integridade, em superação a comportamentos, atitudes e ações impeditivas ao avanço de conquistas civilizatórias, às quais dedicamos nossos melhores esforços;
No mundo de hoje ainda existem países onde uma pessoa pode ser presa, condenada e morta por sua orientação sexual e identidade de gênero. A ONU reconhece a
condição de refugiado político às pessoas que estejam ameaçadas em sua segurança ou
integridade em virtude de sua raça, religião, nacionalidade, opinião política ou identificação com certos grupos sociais – onde se incide a orientação sexual e a identidade de
gênero, quando expostas a situações de ameaça, discriminação ou violência – circunstâncias características de grave violação de direitos humanos;
345
Cumpre ao Poder Público (Executivo, Legislativo e Judiciário), o dever do diálogo, entre seus órgãos, e com a sociedade civil, com vista à convalidação de direitos e
à promoção da cidadania LGBT; seja pela ampliação, transversalidade e capilaridade
de políticas públicas; pelo aprimoramento legislativo e pelo avanço jurisprudencial que
reconheça, no ordenamento constitucional, a legitimidade de direitos e garantias legais
reivindicadas pelo público LGBT em suas especificidades;
Nem menos, nem mais: direitos iguais!
É oportuno que o governo brasileiro busque apoio na comunidade internacional
para a retomada, junto ao conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações
Unidas (ONU), das discussões para a aprovação de uma nova resolução dedicada aos
Direitos Humanos e a Orientação Sexual e Identidade de Gênero, a exemplo da Resolução já aprovada na OEA, também apresentada pelo Brasil.
A prática afetivosexual consentida entre pessoas do mesmo sexo integra os direitos
fundamentais à privacidade e à liberdade. Por isso, o avanço da cidadania LGBT requer
o reconhecimento das relações homoafetivas como geradoras de direitos, sem discriminação quanto àqueles observados nos vínculos heterossexuais;
Repudiamos toda e qualquer associação entre a promoção de direitos da população
LGBT com a criminosa prática da pedofilia e da violência sexual presentes na sociedade
brasileira, que devem ser tratadas, rigorosamente na forma de lei. Consideramos que
a luta pelo direito à livre orientação sexual e identidade de gênero constitui legítima
reivindicação para o avanço dos direitos humanos em nossa sociedade e para o aprimoramento do Estado Democrático de Direito;
Para tanto, solicitamos urgência na criação do Plano Nacional de Direitos Humanos e Cidadania LGBT; o cumprimento dos objetivos do Programa Brasil sem Homofobia e a aprovação dos projetos de lei que criminalizam a homofobia; que reconhecem
a união civil de pessoas do mesmo sexo e que autorizam a mudança do nome civil das
travestis e transexuais pelo seu nome social;
Por isso, nós, participantes da Conferência Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais reivindicamos ao Poder Público (nos três níveis) que se aprofundem esforços, reflexões e ações em prol da consolidação de direitos de toda a comunidade LGBT, a fim de que as futuras gerações possam viver num mundo onde toda
modalidade de preconceito e discriminação, motivadas por questões raciais, religiosas,
políticas e de orientação sexual e identidade de gênero, estejam definitivamente suprimida do convívio humano.
Brasília, 08 de junho de 2008.
346
AFRODESCENDENTES E DIREITOS HUMANOS NO BRASIL
Maurício Paixão*
1. Quilombos: conceitos e denominações
A formação social brasileira resultou num peculiar modelo de sociedade multirracial e pluriétnica. O legado da presença estimada de cinco milhões de indígenas que habitavam o país no período inicial do colonialismo, o tráfico de africanos nos três séculos
e meio em que perdurou o escravismo e a grande imigração européia e asiática ao longo
dos séculos XIX e XX, fizeram do Brasil um mosaico de diversidades, portador de uma
rica geografia de identidades étnicas, culturais, religiosas, éticas e estéticas.
O Brasil recebeu da África algo em torno “de 18 milhões de escravos”, segundo
Artur Ramos. Historiadores afirmam que nas caravelas da Martin Afonso de Souza vieram os primeiros. O carregamento que inaugura o tráfico negreiro é realizado em 1538
sob o comando de Jorge Lopes Bixorda (CCN; SMDH, 1998, p. 43). Este sistema de tráfico continuará por exatos três séculos, sendo cessado oficialmente após a lei Eusébio de
Queiroz, que aumentava as medidas repressivas em 1850. O Brasil foi o último país do
mundo a promover a abolição da escravatura, num momento em que sua população era
composta seguramente por metade de homens e mulheres negros.
No decorrer do século XIX o governo brasileiro passa a promover medidas que tendem a extinguir lenta e gradativamente, a escravidão formal (CCN; SMDH, 1998, p.43).
Naquele contexto, “Quilombo”, segundo resposta do Rei de Portugal à consulta do Conselho Ultramarino datada de 02.12.1740, corresponderia a “toda habitação de negros
*
Membro do Centro de Cultura Negra do Maranhão.
347
fugidos que passem de 05 (cinco), em parte despovoada, ainda que não tenha ranchos
levantados nem se achem pilões neles” (MOURA apud CCN; SMDH, 1998, p. 49).
Esses sítios de fuga e de defesa eram chamados geralmente quilombos, palavra oriunda
da língua dos negros que neles predominavam – os bantos, e que significa exatamente,
de acordo com a opinião da maioria das autoridades, habitação (Kilombo em língua Kibundo angolonense) (BRANDÃO, apud CCN; SMDH, 1998, p. 40).
Segundo a classificação do colonizador, no Brasil prolifera um incontável número de quilombos. A repressão se manifesta mais contundentemente contra os
maiores e mais organizados. Embora os registros sejam feitos do prisma dos dominantes, são eles que têm permitido reconstituir as formas de como se organizaram
os quilombos.
Em toda documentação referente a tais comunidades, ao longo do século XVII, aparece
para designá-las exclusivamente a palavra mocambo, que ao que se diz, é aportuguesamento do quibundo mutambo, significativo de telheiro ou cumeeira da casa (FREITAS,
1978 apud CCN; SMDH, 1998, p. 40).
No inicio do século XVII, começa a aparecer o termo “quilombo”, também ao que
se diz aportuguesamento do termo quibundo Kilombu, indicativo de arraial ou acampamento (FREITAS, 1982 apud CCN; SMDH, 1998, p. 40-41).
Em fidelidade às denominações mais usuais e em resguardo às situações localizadas, seria pertinente estabelecermos uma sinonímia entre os chamados mocambos
e quilombos, sem perder de vista, a relativização que a opção exige, ressaltando-se que
foi encontrado ofício do Juiz de Paz de Cururupu ao Presidente da Província do Maranhão, datado de 1983, dando conta de quilombos gerais e parciais, e da combinação
e solidariedade entre os mesmos (CCN; SMDH, 1996, p. 32).
A abolição formal da escravatura alcançou muitos quilombos organizados. Com
os desdobramentos históricos e as novas instituições, os senhores de engenho foram
lentamente se transformando em latifundiários, enquanto os quilombolas se tornaram
camponeses pobres dos povoados rurais (CCN; SMDH, 2002, p. 101).
Os quilombos se constituíram em instrumentos de desgaste e defesa no regime
escravista, os povoados rurais oriundos desse processo de acampamento são também
hoje um importante aliado na afirmação dos direitos territoriais. A identidade social,
os laços de parentescos constituídos, a organização, a afirmação e resistência cultural,
reprodução física às normas de uso comum dos recursos naturais impede, por parte
dos quilombolas, a repartição das terras, inviabilizando novas terras como mercadoria
sujeita aos atos de compra e venda.
348
2. Direitos constitucionais e entraves nas titulações
Faz um pouco mais de 20 anos que os direitos territoriais das comunidades quilombolas foram assegurados pela Constituição. A titulação e a proteção dos territórios
quilombolas são fundamentais, pois representam não apenas a sua sobrevivência, mas a
segurança de sua continuidade enquanto grupo étnico. Porém, a luta pela concretização
desse direito ainda permanece como desafio. Até hoje, o número de títulos expedido no
Brasil é muito limitado, apenas 120, um número restrito se considerarmos que existem
mais de 2.000 comunidades quilombolas em todo o país.
As terras quilombolas são disputadas acirradamente por grandes fazendeiros, madeireiros, mineradores e grandes projetos de hidrelétrica, plantio de Soja, Eucalipto e
bases espaciais. São constantes também, os conflitos entre quilombolas e grileiros que
querem expulsar de seus territórios os verdadeiros donos. Além das disputas, a falta da
implementação das políticas públicas nas comunidades quilombolas de forma efetiva
e que respeite as suas especificidades cria uma situação de insustentabilidade nos territórios quilombolas e a consequência disso é a saída principalmente dos jovens o que
ameaça a população quilombola de forma geral.
Os territórios conquistados secularmente precisam ser entendidos como espaços
de construção coletiva, objetivando o fortalecimento, crescimento e resistência de luta,
e não podem ser inseridos numa política afunilada pelas ficções jurídicas dos blocos do
poder, vinculadas aos interesses do latifúndio. A função social da propriedade só poderá
ser atendida na medida em que não elimine os direitos desses grupos.
Em novembro de 1995, por pressão dos movimentos que atuam no campo e comunidades quilombolas, ocorreu a primeira iniciativa para normatização dos procedimentos de regularização das terras de quilombos no Brasil, a institucionalização da
portaria 307 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, que determinava
a demarcação e titulação das áreas quilombolas. Essa regulamentação vigorou até outubro de 1999 quando a primeira reedição da Medida Provisória nº 1.911 delegou a
Competência ao Ministério da Cultura para titular as terras quilombolas. Essa mudança foi entendida pelo Movimento Negro e demais instituições que atuam no campo da
garantia de direitos territoriais dos quilombolas, como sinal de que o Governo Fernando
Henrique Cardoso não se dispunha a realizar a desapropriação para assegurar a titulação
dos territórios quilombolas.
Em 2000 a Fundação Cultural Palmares, agência do Ministério da Cultura, então
responsável pela titulação, editou um pacote de “titulações” sem a devida anulação dos
títulos de terceiros e a retirada dos não quilombolas das áreas. Nesse sentido dez das
doze comunidades quilombolas “beneficiadas” com essa titulação até hoje sofrem com o
conflito, tendo impossibilidade também nos acessos aos recursos naturais de suas terras.
349
Posteriormente, quando cessado o governo FHC, retornou para o INCRA a função de
titulação de quilombos. O INCRA abriu novos procedimentos para regularizar tal situação com vista a proceder às devidas desapropriações e reassentamento das famílias não
quilombolas.
Em 2001, com a edição do Decreto nº 3.912, que ao regulamentar o procedimento
para titulação dos territórios quilombolas, restringiu o alcance do artigo 68 do ADCT,
determinando que apenas fossem contempladas pelo artigo 68 as “terras que foram ocupadas por quilombos no ano de 1888” e as que estavam “ocupadas pelos quilombolas
em 5 de outubro de 1988”. A classificação temporal restringia os potenciais benefícios do
artigo. Com essa investida do governo, os quilombolas foram os principais alvos, pois
poderia acontecer que na data da promulgação da Constituição, pelos conflitos existentes, não se encontrassem na posse de seus territórios. Esse decreto resultou na completa
paralisação das titulações territoriais de quilombo pelo governo federal.
Com base na pressão feita pelo movimento quilombola, o governo edita em 2003 o
Decreto nº 4.887/2003, onde se criam condições para retomada das titulações, adotando
uma conceituação de comunidade e terra com a adoção do critério de auto identificação,
instituiu a possibilidade de desapropriação de propriedades incidentes em terras de quilombos e atribuiu a competência ao INCRA.
Em 2008, vigorou a Instrução Normativa nº 49, publicada em outubro, que
regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Com base nessa IN 49, diversas mudanças comprometem
seriamente a possibilidade de concretização das titulações. Nessa nova Instrução Normativa, tanto o movimento quilombola quanto entidades parceiras protocolaram comunicação junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT) (denunciando que
a iniciativa desrespeita a Convenção 169 da OIT. Hoje a IN 49 foi republicada como
Instrução Normariva nº 57 de 20 de outubro de 2009.
A IN 57 é a quinta normativa do INCRA e a cada nova norma são adicionados
novos empecilhos burocráticos ao processo destinado a identificar e titular as terras
quilombolas.
3. Política ameaçada
Em junho de 2004, o Partido da Frente Liberal (PFL) ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN nº 3229) contra o Decreto 4.887/2003 no Supremo
Tribunal Federal, pedindo a impugnação do Decreto, questionando os critérios adotados para a identificação da condição quilombola e para a delimitação do território bem
como o uso do instrumento da desapropriação.
350
Em 2007, o Decreto nº 4.887/2003, foi alvo de campanha massiva “anti-quilombola” que incluiu divulgação de 68 matérias em telejornais, revistas e jornais questionando os direitos das comunidades quilombolas, acusando o governo de reconhecer essas
comunidades sem critérios claros e extrapolar os direitos assegurados pelo artigo 68 do
ADCT (KOINONIA, 2007).
A Fundação Cultural Palmares, em novembro de 2007, edita nova regulamentação
para o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos (Portaria nº
98), sem abrir qualquer discussão pública, torna o processo de inclusão mais burocrático, além de possibilitar a revisão das certidões já emitidas. Até então o procedimento
de titulação não tinha vinculo com a certificação da Fundação Cultural Palmares, documento com mero caráter de registro.
A partir de agora as titulações somente acontecem com a certidão de registro no
Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidades de Quilombos. Além de se tornar
obrigatória, a certidão passou a ser mais difícil de ser obtida, pois de acordo com o artigo
3º da Portaria, passou a exigir “relato sintético da trajetória comum do grupo” além de
prever a realização de eventual “visita técnica à comunidade para obter informações e
esclarecer possíveis dúvidas”. Considerando essa ação consta uma duplicidade de procedimentos e estudos, pois se a primeira etapa do processo do INCRA e produção do
relatório que deve apresentar, entre outras questões, o histórico do grupo, porque a Fundação Cultural Palmares busca produzir a trajetória do grupo ou realizar visita técnica?
Pois seria racional e econômico se fossem utilizados os relatórios técnicos do INCRA
para alimentar seu cadastro, evitando perda de tempo e dinheiro público.
O sítio da Comissão Pro Índio de São Paulo/CPI nos traz uma série de elementos
referentes aos entraves à titulação das terras quilombolas dando conta de que 89% dos
610 processos abertos no INCRA aguardam pelo Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação (RTID). As novas ações pouco acrescentam ao objetivo do RTID, que é
fornecer elementos para a identificação do território como à exigência de se apresentar:
1) uma caracterização do município e região com sua denominação; 2) sua localização
e informações censitárias com dados demográficos, sócio econômicos e fundiários do
município; 3) dados sobre as taxas de natalidade e mortalidade da comunidade quilombola nos últimos anos, com indicação das causas, na hipótese de identificação de fatores
de desequilíbrio de tais taxas, e projeção relativa ao crescimento populacional do grupo;
4) mapeamento e análise das redes de reciprocidade intra e extraterritoriais e societários
dos membros do grupo em questão; e, descrição das formas de representação política
da comunidade.
Tais informações poderiam ser de relevância para uma pesquisa mais aprofundada
cientificamente, de longo prazo, pois não se justificam como quesitos obrigatórios para
a identificação do território quilombola. As consequências dessa mudança demandam
mais gastos públicos.
351
A IN 49/2008 é clara em relação à contratação de antropólogos de fora dos quadros
do INCRA. Com a nova norma a contratação somente poderá se dar em caráter excepcional “em hipótese devidamente reconhecida de impossibilidade material” (artigo 10,
§2º). Essa norma ignora as evidentes limitações do órgão em atender as demandas de relatórios antropológicos, pois além de burocratizar o relatório de identificação (introduzindo inúmeros e desnecessários quesitos) inviabiliza a contratação de especialistas para
a sua realização. Sobre as contestações podem consumir até nove meses, considerando
que a Instrução Normativa nº 49/2008 concede um prazo de 90 dias para apresentação
das contestações e mais 180 dias para o INCRA julgá-las. A Instrução Normativa nº
49/2008 determina que as contestações sejam recebidas em efeito suspensivo (artigo 13,
parágrafo único), condição que não consta do Decreto nº 4.887/2003. Se as contestações
não tiverem sido julgadas, o procedimento de titulação deve ficar oficialmente suspenso.
Como o prazo para julgamento é de até 180 dias, tal disposição significa que o processo
do INCRA pode ficar paralisado por até seis meses somente nessa etapa.
Diante desse cenário adverso, o governo federal infelizmente não adotou uma posição firme de defesa dos direitos territoriais dos quilombolas. Ao contrário, procurando
contemporizar com os interesses contrários de grupos econômicos e de parlamentares
da base aliada, vem introduzindo mudanças nas normas sobre a matéria. Assim, o governo fez alteração da Instrução Normativa do INCRA que disciplina os procedimentos
para a titulação das terras quilombolas. Outro fato importante diz respeito à insuficiência de especialistas para elaboração dos Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação, assim como os possíveis convênios com universidades que poderiam ser importante
estratégia para a superação dessa deficiência.
A mudança planejada tornará o processo da titulação muito mais burocrático, moroso e difícil de ser concretizado. O movimento quilombola e organizações da sociedade
civil vêm manifestando sua oposição às mudanças bem como protestando diante da
postura antidemocrática do Governo Federal nesse processo. Nesse sentido, podemos
observar que o governo brasileiro se mostra disposto a ceder às pressões de setores conservadores, patrocinando assim o retrocesso na garantia de direitos por meio da mudança na norma do INCRA, e pela não priorização de políticas que agilizem a titulação dos
territórios quilombolas.
4. Vínculos internacionais
4.1. Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
A Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT), aprovada em 1989, durante sua 76ª Conferência, é o instrumento que trata dos direitos dos povos indígenas e tribais. A OIT vem
acumulando experiências na implementação dos direitos reconhecidos a esses povos
352
sobre as mais diversas matérias, com o direito de autonomia e controle de suas próprias
instituições, formas de vida e desenvolvimento econômico, propriedade da terra e de
recursos naturais, tratamento penal e assédio sexual (Consulta livre, prévia e informada
na Convenção 169 da OIT, 2009, p. 1).
A experiência da OIT demonstra a importância das instâncias internacionais para
discutir o alcance e o conteúdo dos direitos em sua aplicação concreta. Essa instituição integrante do Sistema das Nações Unidas criou mecanismos próprios de acompanhamento e
assessoria e tem acumulado experiência sobre os problemas da implementação de normas
com base em sua Convenção. A OIT, pela sua composição tripartite e longa experiência,
tem um ágil sistema de monitoramento e controle de suas Convenções e Recomendações,
ferramentas na luta pela implementação dos direitos dos povos indígenas, como tem sido
demonstrado no Paraguai, Colômbia, Bolívia, Peru e Equador, onde a pressão exercida
pelo órgão, ao lado dos movimentos nacionais, tem obtido conquistas na aplicação tanto
dos dispositivos da Convenção quanto de normas nacionais de natureza constitucional
(Consulta livre, prévia e informada na Convenção 169 da OIT, 2009, p. 2).
Em 25 de julho de 2002, o Brasil ratificou a Convenção 169, em Genebra, mediante
o Decreto Legislativo 143, de 20 de junho de 2002, entrando em vigor em julho de
2003. A Convenção 169 é equiparada à lei ordinária com hierarquia intermediária entre
a Constituição Federal e as leis ordinárias comuns no sistema jurídico brasileiro (Consulta livre, prévia e informada na Convenção 169 da OIT). Segundo o Supremo Tribunal
Federal (STF In: Consulta livre, prévia e informada na Convenção 169 da OIT, Convenção no Brasil), os tratados internacionais, mesmo aqueles que abordam matéria relativa a direitos humanos, são incorporados ao direito brasileiro como norma ordinária,
sendo adicionalmente, fonte que auxilia a interpretação do texto constitucional. Sobre
o valor dos tratados da OIT no sistema jurídico brasileiro ver a seguinte jurisprudência:
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1.675 – Medida Cautelar (MC). Ministro
Relator: Sepúlveda Pertence. Julgado 24.09.97, publicado no Diário da Justiça do dia
19.09.2003; ADI 1.480 MC Ministro Relator: Celso de Mello, julgado em 04.09.1997,
publicado no Diário da Justiça o dia 18.05.2001; e o (Habeas Corpus) HC-88.420. Ministro Relator: Ricardo Lewandowski Julgado 17.04.2007, publicado no Diário da Justiça
do dia: 08.06.2007.
O Brasil, além de Estado membro da OIT, é um dos dez países com assento permanente no seu Conselho de Administração, órgão executivo que decide sobre as políticas
da OIT (Consulta livre, prévia e informada na Convenção 169 da OIT, Convenção no
Brasil). Em matéria de direitos indígenas, o Brasil abandonou o paradigma assimilacionista a partir da Constituição Federal de 1988 (Consulta livre, prévia e informada na
Convenção 169 da OIT, Convenção no Brasil). No entanto, ainda não conseguiu aprovar
a legislação infraconstitucional que regula os dispositivos constitucionais sobre a matéria. Por exemplo, o projeto de lei do Estatuto dos Povos indígenas espera por aprovação
há mais de 13 anos no Congresso Nacional.
353
Por essa razão, a OIT 169, introduzida no Brasil como lei, tem especial valor para o
País: passou a ser um marco regulatório mais harmonioso com a Constituição, tendo a
vantagem de contar com o reforço do Sistema Internacional para exigir aplicação (Consulta livre, prévia e informada na Convenção 169 da OIT, Convenção no Brasil).
O direito de consulta prévia, estabelecido na Convenção 169, constitui inovação
para a legislação brasileira e representa uma oportunidade para a construção conjunta
de novas regras de entendimento entre povos indígenas e tribais e o Estado. Por outro
lado, sua implementação pode implicar perigos oriundos da sua manipulação em detrimento dos direitos de povos indígenas e tribais (Consulta livre, prévia e informada na
Convenção 169 da OIT).
A referida convenção se aplica: 1) aos povos tribais em países independentes, cujas
condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade
nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou
tradições ou por legislação especial; 2) aos povos em países independentes, considerados
indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região
geográfica pertencente ao país, na época da conquista ou da colonização, ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou
parte delas; 3) a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada
como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições
da presente Convenção; 4) a utilização do termo “povos” na presente Convenção não
deverá ser interpretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos
que possam ser conferidos a esse termo no direito internacional (Consulta livre, prévia
e informada na Convenção 169 da OIT, Convenção no Brasil).
A Convenção 169 define três critérios fundamentais para determinar os grupos
aos quais ela se aplica: 1) a existência de condições sociais, culturais e econômicas
diferentes de outros setores da sociedade nacional; 2) a presença de uma organização
social regida total ou parcialmente por regras e tradições próprias; e 3) a auto identificação, entendida como a consciência que tem o grupo social de sua identidade tribal.
Este último critério é fundamental na identificação e reconhecimento dos grupos tribais que fazem parte de um país (Consulta livre, prévia e informada na Convenção 169
da OIT, Convenção no Brasil).
4.2. Conferência de Durban
O Brasil é um dos países com maior grau de desigualdade no mundo, persistindo o
racismo e todo o tipo de discriminação. A população negra brasileira é a segunda maior do
mundo, após a Nigéria, e o Brasil foi o último país ocidental a abolir a escravidão. A imensa
desigualdade racial tem sua origem no processo de colonização (MENDONÇA, 2009).
354
Vale anotar que o Brasil possui mais de 8,5 milhões de km2 de área (território) e
uma população de 160 milhões de habitantes, distribuídos por 26 estados, um distrito
federal e mais de 5.000 municípios.
Dados estatísticos oficiais dão conta da existência de desigualdades básicas (taxa
de natalidade, expectativa de vida, escolaridade, qualificação profissional, condições de
moradia, de saúde e acesso à terra) entre as populações negra e branca. Sugerem, assim,
a insuficiência de políticas sociais universais que desconsideram os efeitos perversos
do racismo e da discriminação racial. Merece registro o ato de que os indicadores sócio
econômicos das comunidades remanescentes de quilombos são ainda inferiores aos do
conjunto da população negra e merecem atenção especial na definição de políticas públicas e de resgate e inclusão social.
Portanto, não basta só o governo brasileiro ratificar tratados e convenções, ou criar
leis, é necessário que o governo tenha políticas de ações afirmativas implementadas em
todas as áreas.
O Maranhão fez-se presente na III Conferência Mundial Contra o Racismo, realizada na Cidade de Durban na África do Sul, no período de 31 de agosto a 08 de setembro
de 2001. Na Conferência participaram 16 mil pessoas de 138 países, durante 10 dias,
no Centro de Convenção de Durban, somente os chefes de Estados e 02 representantes
de organização não governamental, tinham acesso às questões que seriam votadas na
conferência.
A Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), presente em
Durban, conseguiu incluir sua proposta no Plano de Ação da Conferência Mundial
Contra o Racismo, que diz:
Os Estados devem resolver os problemas da propriedade e das terras habitadas desde
as épocas ancestrais por afrodescendentes, com a adaptação de seu respectivo ordenamento jurídico interno, e promover a utilização produtiva da terra e o desenvolvimento
integral dessas comunidades, respeitando sua cultura e suas formas particulares de
processo de decisão.
Essa resolução é particularmente importante nesse momento, pois o governo brasileiro está sob a investigação da Organização dos Estados Americanos (OEA) pelo deslocamento de dezenas de comunidades negras rurais quilombola de Alcântara, estado do
Maranhão. Essas comunidades tradicionais estão sendo expulsas de suas terras devido à
instalação de uma base de lançamento de foguetes, cobiçada pelo governo norte-americano. Atualmente, a Alcântara Syclone Space, empresa Binacional, tenta fechar acordos
com o Brasil e comunidades quilombolas de Alcântara para a utilização da base, o que
poderia causar a aceleração dos processos de expropriação das terras dos quilombos.
Em Durban, as Organizações do Movimento Negro do Brasil e do Mundo, fizeram
várias denúncias através de passeatas, atos públicos e manifestos em português e inglês,
sobre o massacre étnico que estavam passando as 500 famílias deslocadas das Comunidades Negras Quilombolas de Alcântara/Maranhão com a implantação da base espacial.
355
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, que garantiu o direito à
terra de remanescentes de quilombos, somente cerca de 5% dessas áreas foram tituladas,
pelo governo brasileiro.
As organizações do Movimento Negro brasileiro têm observado com grande
preocupação que, a despeito dos esforços da comunidade internacional, os principais
objetivos das três décadas de combate ao racismo e à discriminação racial não foram
alcançados e que um número incontável de seres humanos continuam, até o presente
momento, a serem vítimas de várias formas de racismo, discriminação racial, xenofobia
e intolerância correlata (CCN, 2002, p. 3).
Elas também reconhecem que a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, juntamente com a Década Internacional dos Povos Indígenas do Mundo, apresenta uma oportunidade única de se considerar
as inestimáveis contribuições dos povos indígenas e africanos, para o desenvolvimento
político, econômico, social, cultural e espiritual das nossas sociedades em todo o mundo, assim como, os desafios enfrentados por nós, incluindo o racismo e a discriminação
racial. As organizações do Movimento Negro brasileiro vêm lutando pelo resgate da
dignidade da população negra oprimida e denunciando a discriminação e o racismo,
discutindo políticas voltadas para os afrodescendentes, e levantando a bandeira da cidadania e igualdade de oportunidade na vida, na educação e no emprego para todos, independente de sexo, raça, idade, orientação sexual ou religião (CCN, 2002, p. 6).
5. Os processos mobilizadores dos quilombos para a permanencia em
suas terras
O Centro de Cultura Negra do Maranhão, o Centro de Estudos e Defesa do Negro
do Pará (CEDENPA), com o apoio do Movimento Negro do Rio de Janeiro, inclusive da
Associação AfroBrasileira do Rio de Janeiro, articularam-se e, na 1ª Convenção Nacional de Negro pela Constituinte em 1986, convocada pelo Movimento Negro Unificado
(MNU), apresentaram a proposta de norma que garantisse os direitos territoriais dos
quilombolas, encaminhada à Deputada Federal Benedita da Silva, que a apresentou ao
Congresso Nacional, dando origem ao artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias da Constituição Federal, em outubro de 1988.
Para a afirmação dos direitos territoriais foram realizados diversos encontros estaduais da região nordeste ao sul do Brasil proporcionando articulações em diversos setores e segmentos em volta da luta política quilombola, desses se estabeleceu a realização do
I e II, III e IV Encontros Nacionais de Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Brasil,
realizados respectivamente em Brasília, Salvador, Pernambuco e no Rio de Janeiro.
356
Outro aspecto significativo diz respeito ao processo de luta política e organizativa
que as comunidades negras rurais têm desenvolvido secularmente. Buscam a garantia da
permanência em suas terras, não possuindo ainda a posse definitiva das mesmas, apesar
desse direito estar estabelecido na Constituição Federal de 1988, da ratificação desse direito contido no Plano de Ação por ocasião da Conferência Mundial Contra o Racismo,
em DURBAN, África do Sul, que diz:
[...] os Estados devem resolver os problemas da propriedade e das terras habitadas desde
as épocas ancestrais por afrodescendente, com a adaptação de seu respectivo ordenamento jurídico interno, e promover a utilização produtiva da terra e o desenvolvimento
integral dessas comunidades, respeitando sua cultura e suas formas particulares de
processos de decisão.
A mesma informação se encontra na Convenção 169 da Organização Internacional
do Trabalho, sobre Povos Indígenas e Tribais. Esse contexto de realidade social, bastante
marcado pela desigualdade, tem nos impulsionado a lutar incessantemente pela garantia
dos direitos e valorização da cultura desse povo. Isto precisa ser enfrentado pela sociedade brasileira, cabendo ao governo o estabelecimento de ações concretas de políticas
públicas que visem à eliminação dessas desigualdades, na construção de um novo tipo
de sociedade, onde as diferenças raciais e culturais não sejam condições para privilégios
ou desigualdades.
6. Mais elementos da situação
No Brasil, mais recentemente, um número expressivo de povoados com grande quantidade ou exclusivamente composto de trabalhadores rurais negros começou a
despertar a atenção de setores expressivos da sociedade. Tal emergência tem suas origens fincadas na crescente organização dos trabalhadores do campo e na ascensão do
Movimento Negro, enquanto movimento político catalisador de suas reivindicações,
afirmadora de uma identidade étnica inserida no conjunto das lutas dos trabalhadores
pela posse da terra.
As comunidades quilombolas hoje passaram a ser objeto de estudo para pesquisadores, universidades e grupos organizados e apontaram o caminho dos seus legítimos
interesses, irredutíveis às suas manifestações culturais, não obstante seu importante papel como recriadores de laços de afinidades e preservadoras da história desses grupos.
Tal luta expressa essa imensa dívida do Estado brasileiro para com a população
negra, que sofre opressão dupla enquanto camponeses e minorias com baixo acesso às
políticas públicas do Estado nacional. Contudo, o país é constituído por uma essência
357
pluriétnica e, ao mesmo tempo, é desigual, com a grande maioria do seu povo reduzida
à pobreza e à miséria. Isto vem representado nos dados estatísticos sobre a situação fundiária do país, onde a grilagem dos territórios quilombolas torna-se algo cada vez mais
constate, sem que os órgãos fundiários responsáveis por essa política tenha um nível de
intervenção que venha a coibir essa prática no país.
Os quilombolas tratados comumente pelos órgãos oficiais sob a ótica de uma política fundiária, que desconhece em profundidade tais situações, têm suas práticas compreendidas como formas atrasadas de agricultura, fatalisticamente fadadas à extinção.
A atuação prática no sentido da articulação entre os vários grupos, propiciando
meios de organização que resultaram na Comissão Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, deverá ser acompanhada de um aprofundamento
sistemático dos estudos sobre os territórios, assim como também a sistematização da
documentação histórica coletada ao longo desses anos.
Presentemente se configura a necessidade de ações conjuntas e sistemáticas que
facilitem a troca de informações, assim como também uma atualização das informações
no campo da legislação brasileira. Para isso a perspectiva futura é realizar processo de
formação política, contando agora com uma aproximação maior com relação às diversas
situações que constituem o recorte étnico. Porém, o contato continuado com as comunidades quilombolas através das situações sociais, através de seus representantes e lideranças, permite considerar a possibilidade de avanços significativos na afirmação dos
direitos territoriais contidos na Carta Magna de 1988.
É preciso refletir e ampliar o debate com os órgãos governamentais sobre a violação
dos direitos das comunidades quilombolas, pois envolve um direito secular fundamental
dos povos tradicionais, em relação aos quais esses governos têm se preocupado muito
pouco. Apesar da regulamentação do artigo 68 do ADCT, poucas comunidades foram
tituladas nesses 23 anos da Constituição, sem falar nas grandes ameaças que a população
quilombola vem enfrentando.
Enquanto isso, o Governo Federal, através da Fundação Cultural Palmares, certificou 533 comunidades quilombolas. Atualmente existem 31 decretos com vista à titulação de quilombo no Brasil, publicados em 2009, referentes aos Estados do PA, PI, BA,
RJ, SP, SE, RS, MA, MT, MS, PB, RN, ES, AL, TO, DFE, todos com prazo para novembro
de 2011. Esses decretos envolvem 350.814.8800 hectares de terras para 3.896 famílias.
Em 2010 foram publicados mais 11 decretos envolvendo 116.226,0703 hectares de terras para 1.115 famílias. Do acumulado de 2009 a 2010 poderiam ser beneficiados 5.011
famílias se o governo brasileiro entender a importância histórica dessas comunidades e
a enorme dívida para com os afrodescentes desse país. Não são somente as populações
quilombolas que estão sofrendo as consequências dessa política de reforma agrária.
358
O seguinte gráfico demonstra um grande recuo no processo de reforma agrária de
2006 para 2010, abrangendo as famílias e os pequenos agricultores.
Para que as comunidades quilombolas sejam tituladas e o Brasil cresça e se desenvolva os poderes constituintes do Estado brasileiro precisam entender que um grande
gargalo da política fundiária no Brasil se dá pela forte concentração de terras. O Censo
Agropecuário 2005-2006 e o INESC apresentam um conjunto de informações que contribuem para a demonstração da pouca importância que o Governo Federal vem dando
a reforma agrária. O gráfico nos revela que a alta concentração fundiária no Brasil permanece a mesma desde a década de 60 (PAIXÃO, 2011).
359
Além da lentidão do INCRA nos processos administrativos, chamam a atenção
os processos judiais que envolvem lideranças quilombolas em função da disputa destes
territórios que foram ajuizadas pelos supostos proprietários.
O número de conflitos e de violências no campo teve uma queda acentuada no
Brasil em 2008. Mas há sinais de persistência do aumento da violência no país porque
28 pessoas foram assassinadas no campo. Em 2007, por exemplo, houve uma morte para
cada 54 conflitos, enquanto houve uma morte para cada 42 conflitos no ano passado
(MACHADO, 2011).
Os dados mostram, ainda, que 72% dos assassinatos em conflitos no campo aconteceram na Amazônia e que mais da metade dos conflitos atingem diretamente as populações tradicionais. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), esse fato evidencia o interesse do capital sobre os territórios ocupados pelas populações tradicionais
(MACHADO, 2011).
A luta dos posseiros e dos quilombolas contra os latifundiários acontece desde
a formação das primeiras propriedades agrícolas, mas é bom lembrar que houve uma
“reinvenção” modernizada do latifúndio com a “Lei de Terras” decretada pelo governo
Sarney, em 1969, quando as terras públicas do Estado foram leiloadas e entregues aos
amigos e sócios da família (CPT, 2011).
No Maranhão, por exemplo, uma das questões relacionadas à grande concentração
de terras, está intimamente relacionada com a máfia dos cartórios. A Corregedoria do
Tribunal de Justiça do Estado e a Polícia Federal (PF) investigam vários cartórios do
Estado. Algumas dessas investigações já resultaram em afastamento de titulares desses
cartórios, como no caso do Cartório do 1° Ofício da Comarca. Esperamos que o Tribunal e a PF possam aprofundar esses trabalhos e tornar pública a corrupção extremada
que ocorre nesses ofícios.
Lideranças quilombolas do Brasil chamam a atenção a essa problemática, revelando em seus relatos que em muitos casos existem documentos registrados em cartórios
em que o suposto vendedor da área teria feito a venda após sua morte. Ou seja, o registro
foi feito após o falecido.
O que nos faz refletir sobre essas ações contrárias a realização da reforma agrária, é
que mesmo com todos esses vícios a justiça ainda é muito lenta. Mas, se analisarmos as
disposições orçamentárias do governo, podemos questionar a emissão de tantas rubricas
sem eficiência.
De acordo com a ONG Contas Abertas (2011), dos R$ 55,7 milhões destinados ao
programa Brasil Quilombola, apenas R$ 13,9 milhões foi desembolsado. De 2005 até
2011 foram destinados aos quilombolas quase R$ 100 milhões. No programa “Brasil
quilombola”, o orçamento previsto esteve em R$ 14,2 milhões. Mas, ao final de 2010,
foram gastos R$ 7,6 milhões, equivalentes a 54% do volume autorizado para assegurar às
comunidades remanescentes de quilombos as propriedades de suas terras e o desenvolvimento econômico sustentável, além da infraestrutura adequada para suas atividades
360
e melhoria das condições de vida. De acordo com o INESC, a obtenção de terras para a
reforma agrária no Brasil teve um aumento entre 2005 e 2007 e vem diminuindo o seu
orçamento.
Segundo Verdum, assessor de políticas do INESC, em Terras e Territórios Quilombolas no Orçamento Federal (2011), chama atenção para o Plano Plurianual (PPA 2012 2015) envolvendo políticas para quilombos no Brasil, essas políticas estão divididas em 65
programas temáticos, com 491 objetivos e 2.503 iniciativas. Para sua execução, o Governo
federal prevê um investimento global de aproximadamente R$ 5,4 trilhões. Lamentavelmente, no novo PPA, as comunidades quilombolas não mais contam com um programa
específico; na transição para o novo PPA não mais existe o programa Brasil Quilombola.
É possível dizer que há um programa temático de referência para os próximos quatro anos, que se intitula: Enfrentamento ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial,
cuja responsabilidade é da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Para
esse programa existe a proposta de um orçamento no valor de R$ 73.125 milhões para o
ano de 2012, e para os três anos seguintes, de mais R$ 239.498 milhões, totalizando no
período de 2012-2015 cerca de R$ 312.623 milhões. Entre os objetivos desse programa
está a realização de uma regularização fundiária das terras de comunidades quilombolas, a cargo do Ministério do Desenvolvimento Agrário (VERDUM, 2011).
Para o ano de 2012, o Projeto de Lei Orçamentário (PLOA) encaminhado ao
Congresso Nacional no final de agosto passado, o Poder Executivo propõe para a ação
de Indenização das Benfeitorias e de Terras aos Ocupantes de Imóveis em Áreas Reconhecidas para as Comunidades Quilombolas um orçamento de R$ 50 milhões; e para a ação
de Reconhecimento, Delimitação, Desintrusão e Titulação de Terras Quilombolas, outros
361
R$ 6 milhões. Se aprovado pelo Congresso Nacional, o orçamento proposto para 2012
pelo Executivo, para executar a ação de reconhecimento e titulação, será menor do que
em 2010 e 2011 (VERDUM, 2011).
Vale ressaltar que em 19 de outubro do corrente, em Brasília, foi assinado um Acordo de Cooperação Técnica (ACT) entre o Instituto de Colonização e Reforma Agrária
e a Associação Brasileira de Antropologia com o objetivo de fortalecer os trabalhos de
regularização fundiária dos territórios quilombolas, desenvolvidos pelo INCRA. A atuação conjunta entre o INCRA e a ABA visa aumentar a efetividade dos trabalhos de
regularização fundiária de territórios quilombolas de forma a contribuir para o alcance
do disposto no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal.
É bastante provável que o ano de 2011 seja lembrado pelas entidades e organizações
da sociedade civil, pelos camponeses, pelos indígenas, pelos sem-terra, pelos quilombolas e demais povos tradicionais do Brasil como um dos anos mais trágicos para a política
agrária brasileira. Depois de corte orçamentário de 50,1 bilhões de reais, anunciado pelo
Governo Federal no início deste ano, pode-se afirmar que a já deficiente política agrária
brasileira agora está internada na UTI (ALMEIDA, 2011).
Ao analisarmos todas as ações do governo federal destinada ou “ações forçadas
pelos movimentos sociais” às comunidades quilombolas, elas sempre dependem de
outros instrumentos que façam com que as políticas públicas não sejam implementadas ainda porque existe uma total desarticulação e falta de entrosamento entre os
órgãos governamentais.
O número de terras de quilombos tituladas no país é muito pouco em relação à demanda existente. São inúmeras as áreas quilombolas aguardando titulação, é um exemplo típico de como o governo brasileiro não tem se empenhado para a resolução desta
problemática, não levando em consideração as reivindicações justas pela aplicação dos
direitos humanos de primeira e segunda geração.
É necessário acrescentar os territórios sociais, de uso tradicional e coletivo, fundados em tradições culturais, com fortes processos de resistência e estruturas sociais que
remetem a demandas pela implementação de políticas sociais que assegure sua permanência em seus territórios seculares.
A luta pela terra deve ganhar grande importância nas discussões no cenário nacional e internacional, com a retomada mais efervescente sobre reforma agrária, com
sua capacidade de organização, planejamento e produção, não devemos sustentar inoperância operacional do estado brasileiro na não titulação dos territórios quilombolas
e nem deixar de canalizar esforços quanto às outras dimensões dessa mesma luta. Essas
dimensões devem abrir outros modelos de acesso a terra, exigindo uma ampla discussão
sobre os possíveis modelos de regularização e titulação de terras quilombolas.
É possível romper com certas divisões temáticas que não contribuem para o processo de regularização dos territórios quilombolas. Algumas ações feitas por contrários
362
à regularização dos territórios quilombolas, que tentam descaracterizar a legitimidade
de direitos desse grupo étnico.
Os quilombolas que não param de se multiplicar, na afirmação de seus direitos e
fortalecimento de sua identidade, aproveitando-se das lacunas abertas em nosso ordenamento jurídico e que lutam não só por “pedaço de terra” ou pela reparação de erros do
passado, mas também pela defesa de seus modos de vida e organização social presentes,
suas formas religiosas, rituais e de manuseio da natureza. Grupos que lutam politicamente por uma nova perspectiva de futuro, em que sejam considerados, dentro das próprias peculiaridades, como atores no momento de formulação e execução das políticas
públicas, não só as relativas à terra ou ao crédito rural mas a todas aquelas que tendem a
ampliar o alcance da cidadania
Hoje o desafio é articular as lutas em prol da afirmação de direitos, mas entendendo
o direito às diferenças, direito a preservação da identidade dos grupos participantes do
processo civilizatório nacional, dos afrosdescendentes que vivem no território brasileiro desde o início do processo de formação da própria sociedade nacional, aos quais o
Estado brasileiro deve uma reparação eficiente, cujo começo passa pelo cumprimento
da Constituição Federal/1988, na garantia dos direitos dos territórios das comunidades
quilombolas do Brasil.
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366
DIREITOS HUMANOS DOS/DAS MIGRANTES
Serviço Pastoral dos Migrantes
Atualmente a imigração para o Brasil se dá principalmente devido aos problemas
econômicos, diferentemente do período das ditaduras militares que em toda América
latina foi um momento de deslocamentos devido à perseguição política. Hoje a imigração para o Brasil é predominantemente formada por latino americanos, mas com crescente número de africanos e, de forma localizada, de haitianos (em Manaus, no Amazonas). A entrada de pessoas para o Brasil resultou na constituição de inúmeras redes
de comunidades de imigrantes, que resistem à rígida lei e às estruturas burocráticas,
herdeiras do passado repressivo militar.
O imigrante segue resistindo à xenofobia e à criminalização, frente às burocracias de controle, sobretudo nas fronteiras, no controle ao crime organizado. Esta luta por cidadania do
imigrante está situada no contexto mundial de globalização, que força a liberalização dos
mercados e faz cerco sistemático aos imigrantes, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos.
As fronteiras do mundo todo se escancaram cada vez mais ao capital financeiro e às
mercadorias, à tecnologia de ponta e aos serviços em geral, convertendo o planeta numa
aldeia. Por outro lado, a política migratória com suas leis restritivas e controles rígidos
endurece cada vez mais em relação aos sonhos e aos projetos dos trabalhadores.
A contradição é flagrante, para não dizer criminosa: são incentivadas as as relações
entre as coisas e o dinheiro, ao mesmo tempo em que se cerram as portas aos intercâmbios
humanos. Os “sem papéis” o são frente a quem e a quê? O que os torna “clandestinos, ilegais ou extracomunitários”? No fundo não passam de pessoas jovens e cheias de energia,
cujo objetivo é viver com dignidade de pessoa humana. Com seus exíguos apetrechos, trazem no coração e na alma a força vital de mover não somente a si mesmos, mas de pôr em
marcha a família, a sociedade e a própria história. Onde está o crime? Por que prendê-los e
deportá-los? Por que criminalizar o ato de migrar? (GONÇALVES, 2008).
367
1. Mobilizações do sujeito e conquistas dos imigrantes
Nestes últimos anos, constatamos algumas conquistas que, embora insuficientes,
ajudaram a dar alguns passos em direção à cidadania do imigrante no Brasil. Lembramos que esta luta por cidadania, inclui os cerca de 4 milhões de brasileiros que vivem em
outros países, sendo que muitos deles enfrentaram e enfrentam inúmeras dificuldades
com o retorno forçado devido às sucessivas crises.
1.1. Mercosul
No âmbito do Mercosul uma das mais expressivas conquistas foi o Acordo de Livre Trânsito e Residência para Nacionais – Decreto nº 6.964, de 29 de setembro de
2009, publicado no Diário Oficial da União de 30 de outubro de 2009, que promulga
o Acordo sobre Residência para nacionais dos Estados Parte do Mercosul (Argentina,
Brasil, Uruguai e Paraguai), Bolívia e Chile. A promulgação do acordo se deu com o Decreto n. 6975/2009, de 7 de outubro de 2009, publicado no Diário Oficial da União, em
08 de outubro de 2009. A publicação deste Decreto conclui, por parte do Brasil, os atos
necessários para a vigência do citado acordo, possibilitando que argentinos, bolivianos,
chilenos, paraguaios e uruguaios possam residir e trabalhar no Brasil.1
1.2. Anistia de 2009
Outra conquista importante foi a Lei nº 11.961/2009, Lei de Anistia Migratória,
que permitiu a residência provisória para aqueles que estavam em situação irregular em
território brasileiro com validade de 2 (dois) anos. Em decorrência da regularização da
situação migratória concedida pelos acordos bilaterais e pela anistia de 2009, aproximadamente 50 mil imigrantes conquistaram a possibilidade de acesso ao documento.
A regularização ajudou na redução do trabalho degradante ou escravo, uma vez que o
imigrante documentado pode acionar com maior facilidade o poder público.
1
Em 15 de dezembro de 2009, foi publicada a Portaria nº 4.271, regulamentando a transformação do visto provisório
deste acordo para permanente com a exigência de que estes se adéquem às exigências previstas pelo Acordo de Livre
Residência para os Nacionais dos Estados partes do Mercosul, mais Bolívia e Chile.
368
2. Mobilizações comprometendo instituições
Nestes últimos anos as mobilizações em torno dos direitos dos imigrantes levaram algumas instituições a avançar em suas ações. O Conselho Nacional de Imigração
(CNIg), por exemplo, em sua VI reunião plenária de 2008, aprovou a “Moção de Repúdio” à Diretiva da União Européia, sobre o tratamento a migrantes. Em texto do relatório
final, o CNIg afirmou:
Tendo conhecimento da edição de nova norma migratória pela União Européia que prevê
o endurecimento do tratamento dos trabalhadores migrantes que vivem naqueles países,
estabelecendo inclusive a detenção por tempo prolongado de pessoas e crianças, aprova,
por unanimidade, repúdio a essa normativa européia que viola os direitos fundamentais
dos migrantes enquanto pessoa humana e trabalhador, constituindo-se em medida discriminatória que está, claramente, em contradição à histórica receptividade do Brasil a
imigrantes procedentes do continente europeu (18.08.2008).
Outro exemplo é o do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em defesa dos
trabalhadores migrantes, através do “Pacto Contra a Precarização e pelo Emprego e
Trabalho Descentes – Cadeia Produtiva das Confecções”,2 instrumento de controle das
relações de trabalho envolvendo imigrantes, que comprometeu mais de 200 empresas
a cortar relações comerciais com fornecedores que utilizam mão-de-obra escrava nos
diversos setores da economia; a Seção de Fiscalização do Trabalho3 estreita relações com
o Departamento de Polícia Federal de São Paulo (DPF;SP) com o objetivo de investigar
juntos, cada qual dentro de suas competências, os casos de trabalho escravo (envolvendo imigrantes) denunciados e flagrados até o momento.4 Empresas como a C&A e a
poderosa rede Zara já sofreram pesadas multas por explorar o trabalho terceirizado dos
imigrantes indocumentados.
O Centro de Apoio ao (I)Migrante (CAMI), do Serviço Pastoral dos Migrantes
(SPM), é hoje, com o Comitê Interinstitucional de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CIPETP) observador, nas detenções, junto à 49ª Delegacia, em São Paulo,
para averiguar como são encaminhadas as vítimas e ajudando na tradução (no espanhol
e inglês) para melhor comunicação e encaminhamento.
2
3
4
Este comprometimento foi fruto da CPI da Câmara Municipal, em 2005, desencadeado pela Pastoral dos Migrantes
(CPM – Centro Pastoral dos Migrantes), em São Paulo.
Os procuradores do trabalho são acionados e vão até estas oficinas juntamente com a Polícia Federal. Além de
possibilidade de multa, o dono é intimado a registrar seus empregados, pagar salário em dia, limitar a jornada de
trabalho para oito horas, no máximo dez, recolher FGTS e, especialmente, a regularização das condições de trabalho.
A maioria das oficinas, porém, não são registradas e então são fechadas.
A CLT, no art. 581, § 2º dispõe que se entende por atividade-fim a que caracterizar a unidade do produto, operação
ou objetivo final, para cuja obtenção todas as demais atividades tenham convergência, exclusivamente em regime de
conexão funcional.
369
Mas as dificuldades na abertura de denúncias persistem: em geral, os imigrantes
só denunciam quando sofrem agressões físicas ou abuso sexual. Há situações diante das
quais os imigrantes silenciam devido às ameaças e ao medo relacionadas com o crime
organizado.
3. Lacunas da ação do Estado: governo e propostas
3.1. Lei dos estrangeiros
A atual Lei dos Estrangeiros, Lei nº 6.815, de 19.08.1980, e regulamentada pela Lei
nº 6.964, de 09.12.1981, e está baseada na chamada Doutrina de Segurança Nacional, que
vê no imigrante uma potencial ameaça à ordem interna. Trinta anos se passaram sem
que o Legislativo ou mesmo o Executivo fizessem algo de expressivo em relação a esta
questão, ou seja, tudo é feito para atrasar a mudança, muito embora já tenham surgido
vozes lembrando que a atual lei está em descompasso com a Constituição de 1988 e com
o mundo atual. Atualmente tramita o Projeto de Lei do Estrangeiro (PL nº 5655/2009)
na Comissão de Turismo e Desporto da Câmara Federal, aguardando seu parecer.
Segundo grande parte das entidades que durante anos enviaram suas propostas
para uma “Lei do Imigrante”, o texto deste projeto é tímido, e não propõe mudanças expressivas em seu conteúdo, a não ser em termos de favorecer a entrada da mão de obra
especializada, à luz das prioridades do mercado.
Diante das lacunas exige-se:
- Assegurar, na nova Lei, um novo trato da questão migratória, orientada sob o
paradigma dos direitos humanos e da cidadania universal. Não se reduzir à “mão
de obra especializada”, mas visar princípios de complementaridade e integração
cultural, buscando a regularização dos trabalhadores indocumentados;
- Isenção da multa para crianças menores de 14 anos, quando os genitores solicitarem o pedido de permanência;
- Concessão de cédula de identidade para os temporários e para aqueles que requisitam a permanência, pois muitos, nas relações públicas, não entendem que o
protocolo é um documento;
- Cédula de identidade permanente para estrangeiros que obtém permanência definitiva no Brasil e não, como ocorre atualmente, por tempo limitado;
- Reconhecimento dos estudos sobre a origem dos imigrantes realizados no país;
- Escola para todas as crianças e adolescentes estrangeiros independentemente da
situação jurídica de seus pais – aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA);
370
- Liberdade condicional para os presos estrangeiros nas mesmas condições em que pode
ser concedida aos brasileiros (Conforme a Lei de Execução Penal e Artigo 5º da CF);
- Agilizar e desburocratizar o procedimento dos órgãos públicos em relação aos
processos de permanência, prorrogação de prazo, naturalização e outros da instância administrativa. Agilidade nos processos no Ministério da Justiça;
- Fornecer carteira de identidade para os provisórios, pois muitas vezes o protocolo
não é reconhecido e aceito como documento, causando uma série de inconvenientes, como não poder abrir conta em banco, alugar uma casa, entre outros.
3.2. Convenção internacional sobre os direitos humanos dos trabalhadores
migrantes e suas famílias
Que o Estado Brasileiro ratifique e ponha em prática o instrumento da ONU que
defende os trabalhadores migrantes e seus familiares.
3.2.1. Direito ao voto
O imigrante, mesmo permanente, segue sem direito ao voto, sequer municipal.5 No
Continente, o Brasil segue liderando esta recusa ao direito político de votar e ser votado.
No país e no exterior, a nacionalidade foi por muito tempo pré-requisito indispensável para o exercício do direito de voto. Porém, essa exigência vem sendo questionada,
não só pelos movimentos sociais, mas também no próprio Congresso Nacional, onde
se encontram três propostas de emenda à Constituição (PECs) que concedem direitos
políticos ao estrangeiro domiciliado no Brasil.6
3.2.2. Burocracia
A anistia de 2009 exigiu o retorno das pessoas em 2011 para iniciar o processo de
permanência. O atendimento e a prestação de informações por parte da Polícia Federal
não têm sido uniforme, o que resulta em confusões e mal entendidos.
5
6
Durante a IV Marcha dos Imigrantes na Cidade de São Paulo, em dezembro de 2009, foi dado o início a uma Campanha Nacional pelo Direito ao Voto dos Imigrantes com visto permanente no Brasil.
A PEC 7/02, cujo primeiro signatário é o senador Álvaro Dias (PSDB-PR), faculta a participação do estrangeiro
residente no país em eleições municipais. Anexada a ela, a PEC 33/02, do senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR),
permite o voto sem especificar em que grau e, ainda, a PEC 401/05, que tramita na Câmara, de autoria do deputado
Orlando Fantazzini, à época do PT-SP, modifica o artigo 14 da Constituição Federal para incluir os estrangeiros
legalmente regularizados entre os cidadãos que podem ser eleitores. Essa última encontra-se na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Sendo aprovada passará ainda por uma comissão especial antes de ir a Plenário.
371
Para a Polícia Federal, o comprovante de endereço deve estar no nome da própria
pessoa. Porém, é sabido que muitos imigrantes moram em casas alugadas, e por muitas
vezes as correspondências exigidas para se comprovar o endereço estão no nome de outra pessoa, como, por exemplo, no do proprietário do imóvel.
Após carta aberta das entidades denunciando os entraves burocráticos no processo
da anistia, logrou-se a Portaria nº 1700, de 28 de julho de 2011, ampliando formas de
comprovação de profissão, emprego lícito e renda. Mesmo assim, os imigrantes eram
instados a trazer mais comprovantes do que os devidos. Como exemplo pode-se referir
o caso de São Paulo, com a exigência de apresentação dos últimos seis holerites.
3.2.2. Trabalho escravo ou análogo e condições de trabalho
A lei referente ao tráfico de pessoas e trabalho escravo existe, porém há uma insuficiência institucional que não garante o cumprimento destas leis para coibir, tampouco
há estruturas eficazes de fiscalização para combate e prevenção. Tampouco a vítima, que
ainda não tem o respaldo suficiente para deixar este esquema de submissão no trabalho,
haja vista que muitos tentam manter a lealdade com seus patrões que “pagaram a passagem, deram trabalho e comida” segundo alguns.
As vítimas, embora já tenham algumas compensações, como o seguro desemprego
por três meses, etc, seguem sofrendo coerção e abrindo mão de direitos e benefícios
compensatórios para não perderem o emprego ou o trabalho, mesmo que fiquem em
condições análogas ao escravismo.
Os Imigrantes reivindicam a regularização das próprias oficinas de costura, o que
implica superar a complexa burocracia, pagamento de impostos e direitos trabalhistas.
As condições das oficinas de costura já são um caso de saúde pública, pois prejudicam a
saúde do trabalhador, sendo regularizado ou não.
As condições de trabalho destes imigrantes são bem precárias: 1) ambientes mal
ventilados, onde se respira o pó dos tecidos; 2) fios elétricos pendurados; 3) temperatura
acima do comum; 4) as pessoas chegam a ficar até 18 horas trabalhando, com risco de
terem problemas de coluna, tuberculose e outras doenças.
Para muitos, o mesmo ambiente de trabalho fica sendo o lugar de moradia, vivendo, às vezes, uma família inteira em colchões que são jogados pelo chão, com banheiro
para ser dividido com outros e água fria para o banho. Não raro estas pessoas imigrantes
sofrem coerção por parte dos patrões, que retém passaportes, documentos e pressionam
por produção. Alguns são submetidos à servidão por dívida, com descontos nos salários
sobre viagem, estadia e alimentação.
Com medo da deportação os imigrantes, em maior parte da Bolívia, não recorrem
ao poder público. Muitos preferem continuar a viver assim, a não ter trabalho e ficar na
rua, num país estranho.
372
3.2.3. Refugiados haitianos em Manaus
Até junho/2011, mais de 1.100 haitianos estavam em Manaus. Eles entraram pela
fronteira, sem documentação. O número dos que aguardavam legalização por parte do
governo chegava a cerca de 900 haitianos. Embora não os considere perseguidos políticos, o governo brasileiro já concedeu vistos a 230 haitianos, até julho deste ano.
A Operação Sentinela que faz fiscalização das fronteiras do Brasil vem barrando
imigrantes haitianos, mas também de outras nacionalidades.
Conclusão
Nenhum ser humano é ilegal. Migrar é um direito humano e não um crime. Por
isso reafirmamos que crimes são as causas que provocam migrações ou limitam a dignidade humana. Nossa luta objetiva sempre a construção de um mundo sem fronteiras,
com respeito aos direitos humanos, promovendo a integração solidária dos povos e a
consolidação de uma verdadeira Cidadania Universal.
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373
MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS NA VIDA DAS MULHERES
Silvia Camurça*
Este texto é um extrato do balanço das políticas públicas no período 2003-2010
realizado pela Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) e publicado no início deste
ano.1 Nele se avalia a situação das mulheres brasileiras no presente e o que mudou em suas
condições de vida.
O balanço se fez de forma participativa em uma série de seminários, oficinas e encontros nacionais. Ao longo de 11 meses de discussões participaram dos debates pouco mais de
800 integrantes da AMB de todo o país. A estas discussões se credita a qualidade das conclusões aqui expostas. Quanto às lacunas e imprecisões, certamente se devem principalmente
à seleção dos trechos eleitos por mim para compor este extrato e aos comentários que
enxertei aqui e ali.
O texto está organizado em torno de alguns aspectos centrais do projeto libertário feminista: 1) a conquista da autonomia econômica pelas mulheres; 2) o fim da violência como
instrumento da dominação masculina sobre as mulheres; 3) o exercício do poder pelas mulheres na política; e 4) a conquista do direito das mulheres à autodeterminação reprodutiva.
1. O direito das mulheres a ter direitos está politicamente instalado, mas
a cultura patriarcal, que impede e discrimina, ainda está bem viva
Logo que o governo Lula iniciou seu primeiro mandato, deu sinais de que a superação das desigualdades vividas pelas mulheres seria assumida como um desafio. Não deixaram dúvidas a esse respeito três ações importantes: 1) a criação da Secretaria Especial de
*
1
Articulação de Mulheres Brasileiras.
Para conhecer o documento completo contatar:
[email protected].
375
Políticas para as Mulheres (SPM), com status de Ministério; 2) a convocação da I
Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, com a responsabilidade de definir
as diretrizes nacionais e estabelecer as prioridades para uma Política Nacional para
Mulheres; e 3) a criação do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.
Ademais, o governo decidiu manter o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
(CNDM) como espaço de participação e controle social, reformulando positivamente a
sua forma de composição, não mais definida pela presidência da República, mas pelos
movimentos e organizações da sociedade civil em votação direta. Sem dúvida estes são
indicativos de reconhecimento público do problema da desigualdade de Gênero, e reconhecimento das mulheres como sujeito de direitos.
Contudo, crescem os ataques dos setores ultraconservadores aos direitos (civis, sexuais e reprodutivos) das mulheres, assim como cresce a mercantilização e exploração
da mulher na midia, nas propagandas, na medicina estética e na indústria do sexo, todas
focadas na exploração estereotipada da imagem e do corpo das mulheres. Estes setores
associados a grupos religiosos fundamentalistas ainda isistem em afirmar as mulheres
como intelectualmente incapazes, moralmente inferiores e biologicamente determinadas. O fazem por diferentes formas e meios, de músicas populares à produção escrita, na
internet ou programas de TVs.
2. A violência dos homens contra as mulheres, em especial a violência
sexual, permanece e cresceu em alguns contextos, como no caso da
violência contra as muleres negras
A política de enfrentamento da violência contra as mulheres conseguiu, um ano
antes de encerrar o II Plano de Políticas para Mulheres, superar as metas traçadas para
o quadriênio 2008-2011. Mesmo com dificuldades, a Lei Maria da Penha (LMP) foi sancionada, o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra a Mulher vem sendo implementado. Apesar disso, cresce o número de mulheres assassinadas, é grande o
número de mulheres espancadas, se mantém alto o número de meninas e adolescentes
abusadas sexualmente, muitas pelos homens da própria família.
No contexto da atual política desenvolvimentista cresce a violência em torno
dos canteiros de obras dos grandes projetos. Nestes territórios contingentes de 5, 10, 30
mil homens, que chegam todos os dias a pequenas localidades, há uma enorme massa
de população masculina apartada de suas famílias, transferidas provisoriamente para
lugares remotos ou periferias metropolitanas, territórios nos quais podem atuar à margem do controle social das comunidades, e muitas vezes sem qualquer respeito pelas
populações tradicionais destas comunidades. Nestes contextos cresce a violência contra
as mulheres, meninas e adolescentes, em especial a violência sexual.
376
3. As mulheres trabalham mais, ganham menos e ocupam os postos
mais precários de trabalho
As mulheres ocupam 22 horas/semanais com trabalho doméstico enquanto os homens ocupam apenas 9,5 horas/semanais. Apesar disso, as mulheres são a maioria da
classe assalariada com alto número de horas extras. E mesmo assim seguem recebendo
menos que os homens. Hoje o salário médio das mulheres é 70% do salário médio dos
homens (IBGE, 2010). Esta situação se demonstra ainda mais injusta se considerarmos
o fato das mulheres ocupadas (com trabalho remunerado) terem pelo menos um ano a
mais de escolaridade que os homens (PNAD-IBEG 2008).
A queda do desemprego feminino é algo a ser comemorado – emprego é um fator
importante para as mulheres romperem com a dependência econômica, fundamental
para a manutenção da dominação patriarcal. Em 2010, registrou-se o menor desemprego desde 2003 e a maior equidade nos níveis salariais do trabalho formal. O Brasil ficou
em terceiro lugar no ranking latinoamericano sobre paridade econômica e laboral entre
homens e mulheres, elaborado pela Articulación Feminista MarcoSur.
Mas de 2003 a 2008, a taxa de atividade das mulheres foi incrementada em apenas
2,95%. Em 2003, o índice era de 50,7% e até 2006 esse percentual veio crescendo, chegando a 52,6%. A partir daí, entretanto, a tendência de queda se impôs. Considerado o
período de 2006 a 2008, a tendência foi de queda, quando houve redução de 0,4% na taxa
de atividade feminina.
A inversão da tendência se relaciona às opções feitas na política pública na área
econômica do governo para o enfrentamento da crise financeira internacional. Os incentivos fiscais para geração de emprego favoreceram setores da indústria intensivos em
mão de obra quase que exclusivamente masculina. Em situações de crise econômica,
investimentos em serviços públicos e infraestrutura social geram tantos novos postos
de trabalho quanto a construção civil ou a indústria metalúrgica são capazes de gerar.
Apesar do aumento da formalização do trabalho, nos últimos oito anos, as mulheres permanecem sendo a maioria das pessoas em ocupações precárias (IBGE. PNAD
2009). São maioria na população informal e na população sem proteção social. Entre
a categoria de trabalhadoras domésticas, a maior categoria profissional de mulheres no
país, 73% não possui carteira de trabalho assinada.
O racismo agrava a situação para as mulheres negras: enquanto 44% das brancas
estão no trabalho informal, 54,1% das pretas estão nessas ocupações. A maioria das mulheres, quando têm previdência social, tem pouca capacidade contributiva, e por isso
fica com os menores valores de benefícios, resultado das regras de cálculos e da lógica
contributiva do sistema brasileiro.
377
4. Direito à vida, à saúde e à autodeterminação reprodutiva, direitos a
serem conquistados
No ano 2000, haviam sido registradas as mortes de 1.677 mulheres em decorrência
de complicações na gravidez, parto ou puerpério. Noventa e dois por cento delas poderiam ter sido evitadas se o atendimento médico fosse adequado. Entretanto, passados 10
anos, em 2009, ainda foram registradas 1.513 mortes maternas, 10% delas decorrentes
de aborto realizado em condições inseguras.
O relatório brasileiro de 2010, sobre as Metas de Desenvolvimento do Milênio, publicado pelo IPEA, indicava inclusive a possibilidade de um pequeno aumento, ao invés
de redução da taxa de mortalidade materna. Projetou-se uma taxa entre 69 até 77 óbitos
por 100 mil nascidos vivos entre 2008 e 2010. Os números oficiais para os três anos anteriores foram 72,1; 73,4; e 75,0 (IPEA, 2010).
Para reduzir a mortalidade materna seria necessário enfrentar, em caráter prioritário e urgente, pelo menos três outras questões: 1) a insuficiência do orçamento da saúde;
2) os problemas de gestão; e 3) a criminalização do aborto.
A morte materna é o resultado de uma série de problemas enfrentados pelo Sistema
Único de Saúde (SUS), e que aflige uma enorme parcela da sociedade brasileira, como
a exiguidade de profissionais de saúde para o atendimento à população, o treinamento
precário dos profissionais disponíveis, a degradação dos hospitais, a falta de equipamentos, a insuficiência de leitos hospitalares, entre tantos outros.
A possibilidade de exercer a autodeterminação sobre sua vida reprodutiva ainda permanece distante do cotidiano das mulheres. Ou seja, o poder de decidir ter ou não filhos,
adotivos ou biológicos, sem sofrer preconceito ou discriminação, poder decidir engravidar
ou não e manter ou não uma gravidez indesejada, se faz ainda no ambiente hostil, e cresce
a criminalização das mulheres pela prática do aborto, ao mesmo tempo em que forças patriarcais, antidireito das mulheres, estão fortalecidas no parlamento e nos serviços públicos.
Muitos projetos de lei tramitam no Congresso sustentados por uma visão criminalizadora das mulheres e, ao mesmo tempo, supervalorizadora da função da gestação,
seja ela desejada ou não. Mulheres grávidas de fetos anencéfalos são obrigadas a manter
a gravidez, ficando expostas à extrema violência. Mulheres, meninas e jovens, com gravidez resultante de estupro, e que decidem abortar, enfrentam todo tipo de obstáculos ao
cumprimento da lei que lhes assegura este direito. Mulheres com aborto espontâneo são
discriminadas e tratadas sob suspeição.
A mídia, religiosa e comercial, fortalece a ideologia da maternidade como um
acontecimento que confere sentido maior à vida das mulheres. Mas os maus tratos,
o abandono nos serviços públicos, a recusa de atendimento médico e a negação ao direito de receber tratamento humanitário são constantes na vida da maioria das mulheres
brasileiras, seja por aborto ou parto.
378
5. Por mais mulheres com poder na política
Nós mulheres estamos na política desde sempre, nas lutas sociais do passado e do
presente, avançamos em participação nos partidos, nos sindicatos, nas corporações, mas
somos poucas com real poder na política.
A subrepresentação das mulheres está instalada como problema da democracia
brasileira e sabe-se agora que muitas são as barreiras erguidas no poder legislativo contra o aumento da participação das mulheres nos espaços de poder.
O Centro Feminista de Estudos e Assessoria, o CFEMEA, realizou pesquisa junto
aos parlamentares da legislatura 2007-2010 sobre os direitos das mulheres e 60% dos
parlamentares entrevistados não concordaram em estabelecer punições aos partidos que
não cumprissem as cotas de mulheres nas chapas proporcionais. 72% discordavam em
adotar lista fechada com alternância de sexo.
Na Argentina, as mulheres conquistaram avanços significativos se comparados aos
do Brasil. Desde a década de 1990 aprovaram a Lei de Cotas, que obriga os partidos políticos (sob pena de severas punições) a ordenarem a lista com mulheres pelo menos nas
posições terceira, quinta e sétima. Antes da vigência desta lei, a proporção de mulheres
na Câmara de Deputados da Argentina era apenas de 7%. Na primeira eleição, já sob a
nova lei saltou para 21%. Hoje a presença da mulher no parlamento é superior 40%.
Em 2010 houve um aumento de 22% no número de mulheres candidatas a deputadas estaduais e distritais, e esta proporção, no âmbito federal, ficou em 20%. Mas as mulheres foram eleitas em muito menor proporção: apenas 8,8% das cadeiras na Câmara
Federal estão ocupadas por mulheres e 13% no legislativo estadual (TSE, 2010).
No debate da reforma política setores conservadores deste país se organizam em
torno de duas posições, entre aqueles que já estão se esforçando para que a reforma se
inviabilize não avançando um milímetro, e outros que enxergam como uma oportunidade para fazer uma contra reforma conservadora, tentando restringir ou suprimir o
sistema proporcional.
6. O horizonte aponta para muitos desafios
A eleição de Dilma representa uma ruptura importante com a visão tradicional de poder
e com a visão das mulheres rebaixadas nos espaços de poder, imposta pela estrutura e ideologia
patriarcal. Num Estado patriarcal em uma sociedade machista e homofóbica, uma mulher na
Presidência é sempre uma mulher “fora de seu lugar”. Isso faz toda diferença para a luta das
mulheres feministas.
Nos meses de campanha, a disputa eleitoral expôs à luz do dia as forças retrógradas e conservadoras e suas armas de luta: difamação, calúnias e disseminação de preconceitos. Pela mobilização da militância e desejo da maioria da população, conquistou-se uma vitória eleitoral.
379
Entretanto, as forças conservadoras derrotadas nas eleições saíram fortalecidas do
processo pelo recuo que impuseram a muitas posições da então candidata Dilma e pelo
recuo que conquistaram em outras candidaturas. Sem dúvida, a luta feminista enfrentará essas forças de forma constante nos próximos anos.
Há uma ruptura simbólica, mas as estruturas que mantêm as mulheres com menos
participação na política permanecem. Os grandes projetos têm colocado em situações
de conflitos socioambientais as regiões de Belo Monte, Carajás, São Francisco, Espírito
Santo e várias áreas da Amazônia. A indução do crescimento e desenvolvimento aprofunda a lógica capitalista de exploração da natureza e das pessoas. Para as mulheres, o
que têm ficado é a falência das possibilidades de trabalho, a prostituição, a privatização
da água, a concentração de terras nas mãos de poucos, a sobrevivência mediante programas emergenciais de transferência de renda que mantêm as mulheres dependentes da
assistência social ao invés de abrir caminhos para a sua autonomia econômica.
Seguimos reconhecendo a importância da transferência de renda como medida de
emergência para a redução da pobreza extrema do país, mas reafirmamos que sua superação não se dará pelos esforços, braços e tempo das mulheres pobres. O fim da pobreza
somente será possível: 1) com a ampliação de políticas de trabalho com proteção social,
que favoreçam a autonomia econômica das mulheres; 2) com a ampliação das ações
do Estado na infraestrutura para a reprodução social, por meio de creches, escolas em
tempo integral, instituições para o cuidado com os idosos e serviços de saúde pública
universais; e 3) com a redistribuição da riqueza socialmente produzida e privadamente
apropriada.
Portanto, além de garantir as condições para que seus filhos e suas filhas não continuem nessa situação futuramente, é preciso garantir as condições para que as mulheres,
elas mesmas, mães ou não, superem a situação de pobreza no tempo presente.
Referências bibliográficas
IBGE. Censo 2010. Disponível em: <www.censo2010.ibge.gov.br/>. Acesso em: 08 set. 2012.
______. PNAD. Síntese de Indicadores 2008. Disponível em: <www.ibge.gov.br/home/
estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2008/sintesepnad2008.pdf>. Acesso
em: 08 set.2012.
______. Síntese de Indicadores 2009. Disponível em: <www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2009/>. Acesso em: 08 set.2012.
IPEA. ODM 2010. Disponível em: <http://desafios2.ipea.gov.br/sites/000/17/edicoes/59/pdfs/rd59sec07.pdf>. Acesso em: 08 set. 2012.
380
ANOTAÇÕES SOBRE A SITUAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL
NO PERÍODO DE 2007-2010
Denise da Veiga Alves*
Adelar Cupsinski **
Cleber Buzatto***
Os índios continuam sendo vistos como enorme obstáculo ao “desenvolvimento”.
Cada ato jurídico, administrativo ou judicial, de concretização de direitos territoriais
conquistados, continua acarretando, para cada comunidade indígena,
enormes e quase insuportáveis custos, em forma de sacrifícios de vidas humanas
de prisões ou de constrangimentos à liberdade de seus líderes,
de pressões psicológicas, de humilhações
e perseguições desumanas das mais diversas.
LACERDA, 2009.
A sobrevivência dos povos indígenas necessita, na prática, da efetivação dos direitos que lhes são constitucionalmente garantidos nos artigos nº 231 e 232, os quais
englobam aspectos que conferem dignidade à sua vida e continuidade de vida para as
gerações futuras: o reconhecimento de suas formas próprias de organização social, de
seus costumes, línguas, crenças e tradições, bem como o direito à utilização, no sistema
educacional, de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.
Também e, sobretudo os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam devem ser reconhecidos e protegidos pela União: terras estas a serem demarcadas pela União Federal, e que são definidas como aquelas que ocupam em caráter permanente, utilizam para suas atividades produtivas, necessitam de modo imprescindível
para a preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e para a sua
reprodução física e cultural - segundo seus usos, costumes e tradições.
* Advogada e Assessora Jurídica do CIMI.
** Advogado e Assessor Jurídico do CIMI.
*** Secretário Executivo do CIMI.
381
É através da garantia dos direitos fundamentais dos povos indígenas – considerados como tais seus direitos territoriais e culturais – que o princípio do respeito à dignidade da pessoa humana será realizado para estes grupos da sociedade brasileira. É
importante ter clareza de que estes direitos só foram inscritos na Constituição em função
de esforços gigantescos levados a cabo pelos povos indígenas e seus aliados durante a
Assembleia Constituinte de 1987/1988, rompendo com a ideologia da “aculturação” dos
povos indígenas - anteriormente prevista na legislação brasileira.
A Constituição de 1988 garantiu aos povos indígenas o direito à diferença, pondo
por terra a ideologia que pretendia incorporá-los cultural e economicamente à sociedade nacional.
Entretanto, os povos indígenas encontram-se frequentemente ameaçados e em situação de extrema vulnerabilidade, diante do avanço de um modelo econômico predatório e concentrador, incidindo sobre as suas condições de vida digna e, mesmo, da
continuidade de sua existência enquanto grupos sociais diferenciados integrantes da
sociedade brasileira.
1. Terras indígenas como garantia de direitos para os povos indígenas
A demarcação e a homologação das terras indígenas é o pressuposto para a garantia de todos os direitos das comunidades indígenas, cuja responsabilidade é do Estado
brasileiro e assim como o é a proteção dos bens indígenas – a começar pelo bem da vida.
Entretanto, a propalada “enorme e histórica dívida do Estado brasileiro para com os
povos indígenas” ainda é protelada, apesar de ser uma obrigação objeto de reivindicação
intensa do movimento indígena de todo o país.
A “eficiência demarcatória” dos sucessivos governos federais está expressa nos dados
abaixo, obviamente parciais no que se refere ao desempenho do atual mandato da presidente Dilma Rousseff:
Fonte: Setor de Documentação do Conselho Indigenista Missionário, 2011.
382
É importante frisar, para compreensão dos dados, que apesar do maior número de
atos declaratórios e homologatórios efetuados pelo governo FHC, grande parte das terras
a que estes atos se referem foram apenas parcialmente demarcadas, restando parcelas de
terras a demandar retificação de seus limites. Isso explica, numa certa medida, o prolongamento de conflitos entre não índios e indígenas nas regiões limítrofes de terras indígenas
formalizadas que poderiam ter sido solucionados quando da realização dos procedimentos demarcatórios, além da necessidade da realização de novos estudos complementares para
que essas situações correspondam às corretas definições de limites e sua efetiva proteção.
De forma geral, entretanto, os dados do CIMI dão conta de que apenas 34,89 % das
terras indígenas – perfazendo o número de 365 – encontram-se atualmente perfeitamente
regularizadas, isto é, foram objeto de decreto presidencial de homologação, estão registradas no Serviço do Patrimônio da União, na forma do Decreto nº 1.775/1996.1
De um total de 1.046 terras indígenas para as quais há demanda de demarcação – direito garantido pela Constituição – 508 estão sem providências, ou aguardando a finalização das pesquisas a serem realizadas por grupos técnicos multidisciplinares de identificação e delimitação. Ou seja: quase a metade das terras indígenas no Brasil (48,55%) não está
sendo objeto de nenhum procedimento demarcatório. Conforme os dados compilados
pelo CIMI, o procedimento demarcatório de 11,74% das terras indígenas – ou seja, 123
áreas reivindicadas – se arrastam há vários anos. Veja tabela abaixo:
Fonte: Setor de Documentação do Conselho Indigenista Missionário, 2011.
1
O Decreto nº 1.775/1996 regulamenta o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, expresso
no art. 231 da Constituição Federal.
383
2. Cotidiano de violência contra os povos indígenas
Enquanto a demarcação das terras indígenas no Brasil não é concluída,2 a violência
contra os povos indígenas intensifica-se e ganha proporções alarmantes. Algumas etnias
vêm sofrendo violações de direitos e agressões – diretas e indiretas – de forma mais intensa em determinados momentos. Violência essa que não arrefece em nenhum rincão
do país, conforme registram (parcialmente) os relatórios de violência contra os povos
indígenas publicados pelo CIMI, ano após ano. Violências cometidas pelos detratores
dos indígenas, mas também violência institucional por falta de assistência e omissão dos
órgãos governamentais.
Os dados são assustadores: em 2010, 60 indígenas foram assassinados – dado que
se repete pelo 3º ano consecutivo – e outros 152 receberam ameaças de morte. Mais da
metade dos assassinatos de indígenas ocorreu no Mato Grosso do Sul. Foram registrados
33 casos de invasões e exploração ilegal de recursos naturais em terras indígenas por não
índios, o que é vedado.
Os índices de mortalidade infantil de 2010 aumentaram 513% (92 vítimas) se comparados a 2009, quando foram registradas quinze vítimas fatais. Dados revelam que nos
últimos onze anos, 210 crianças menores de 10 anos morreram no Vale do Javari (AM),
numa proporção de mais de 100 mortes para cada mil nascidos vivos - índice cinco vezes
maior que a média nacional, que não chega a 23. O atendimento à saúde dos indígenas
saiu da responsabilidade da Funasa em outubro de 2010, passando para a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) que vem desde então patinando no cumprimento de
suas obrigações, deixando as comunidades desassistidas em nível nacional.
Nos estados do Sul do Brasil3 há populações indígenas vivendo em beira de rodovias há pelo menos dez anos (algumas há mais de 30 anos), sem que haja qualquer
providência por parte das autoridades constituídas que repercuta na melhoria das condições de vida desses povos. A não ser, infelizmente, ações judiciais de particulares ou
do próprio Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) para que
as comunidades sejam desalojadas do exíguo espaço entre cercas e asfalto, numa mensagem crua: não há lugar para os indígenas nem na situação mais exposta e vulnerável que
algum ser vivo possa estar. Agricultores e agentes da segurança estatal pressionam estas
comunidades, causando conflitos que desembocam em suicídios, assassinatos e prisões
de indígenas.
2
3
Art. 67 ADCT. A União concluirá a demarcação das terás indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação
da Constituição.
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
384
SITUAÇÃO NO MATO GROSSO DO SUL
Têm sido particularmente graves no Mato Grosso do Sul os conflitos relativos à posse
e demarcação de terras indígenas, onde a população indígena foi confinada em minúsculas
reservas ao longo da primeira metade do século 20 devido ao avanço das chamadas “fronteiras
agrícolas”. Estas comunidades, entretanto, têm resistido e lutado para recuperar os seus locais
de origem, sendo confrontadas pelas ofensivas cada vez maiores e mais ousadas do agronegócio, que as exclui ou as elimina.
Nos últimos oito anos, mais de 250 indígenas foram assassinados no Mato Grosso do Sul.
Para o Cimi, a morosidade do Governo Federal em demarcar as terras tradicionais dos povos
indígenas e a não identificação e punição dos seus agressores e assassinos constituem-se em
verdadeira anuência e incentivo ao processo de terror e genocídio imposto aos Guarani Kaiowá
no Mato Grosso do Sul. O elevado número de violências contra as comunidades indígenas no
estado – mais fortemente contra os Guarani Kaiowá, mas também contra os Terena - é o fiel
retrato desse contexto.
São recorrentes atentados contra as comunidades indígenas, através da ação de pistolagem armada com munição calibre 12 anti-tumulto, “balas de borracha” e bombas, a fim de
amedrontar e expulsá-las de seus precários acampamentos, nos quais se abrigam à espera da
conclusão do processo de demarcação de seus tekohá (solo sagrado onde os Guarani podem
viver segundo sua própria cultura). Disparos de bala, ameaças, vigilância por “seguranças armados” fazem parte integrante da paisagem que confronta os indígenas no Mato Grosso do Sul,
enquanto não se vislumbram ações eficazes para coibir a violência, a utilização de armamento
e mesmo a investigação e punição dos agressores. Nos anos mais recentes as comunidades Kurusu Ambá, Ypo’í, Nhanderú Laranjeira, Passo Piraju, M’barakay, Guaiviry, Buriti, Nhanderú
Marangatu, Taquara, Carumbé, Itayka’aguyrusu, Yvy Katu, Apykai, Jaguapiré e Guirá Kambi’y,
entre outras, foram alvos de atentados mais graves, alguns com vítimas fatais.
Assustador também é o fato de que três destas comunidades Guarani Kaiowá - Kurusu
Ambá, Ypo’í e Nhanderú Laranjeira, apesar de a situação de extrema vulnerabilidade é vivenciada pelo conjunto das comunidades indígenas no Mato Grosso do Sul – estão inclusas no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República, após várias de suas lideranças terem sido assassinadas. Em Kurusu
Ambá cinco lideranças, entre rezadores e professores, foram assassinadas e várias criminalizadas. No Ypoí’, houve o assassinato de dois indígenas e o desaparecimento de um terceiro desde
2009 em ataques armados contra a comunidade.
A comunidade Terena da terra indígena Cachoeirinha, também inclusa no PPDDH/
SDH/PR, vem sofrendo ameaças e em 2011 um ônibus escolar foi incendiando, ocasionando
ferimentos graves em vários indígenas e a morte de uma mulher, mãe de cinco filhos. A área
- já identificada pela Funai e em litígio no STF pelo ex-governador Pedro Paulo Pedrossian
(BRASIL, STF, Ação cautelar 2556) - havia sido retomada em outubro de 2009 pelos Terena.
Em maio de 2010, a comunidade foi expulsa da terra demarcada por setenta homens da Polícia
Federal e sessenta da Polícia Militar, utilizando cães, bombas de gás e balas de borracha contra
800 pessoas, em sua maioria mulheres, crianças e idosos, em cumprimento de liminar concedida
385
pelo Ministro Gilmar Mendes. Os Terena demandaram em juízo um prazo para colher as plantações de mandioca, milho e feijão, o que lhes foi negado pelo Judiciário.
O incitamento ao ódio contra os indígenas é não apenas tolerado pelas autoridades, mas
também tem sido endossado por membros do Legislativo e do Executivo sul-matogrossensse
que fazem declarações discriminatórias e racistas contra estes povos, comumente veiculadas
pelas mídias no estado, afrontando inclusive autoridades federais ciosas do respeito aos direitos
dos indígenas e do meio ambiente.
O POVO TUPINAMBÁ NO SUL DA BAHIA
A partir da publicação do relatório de identificação e delimitação da terra indígena
Tupinambá de Olivença recrudesceram na região as agressões contra os indígenas, há falsas
denúncias contra estes e o chamado processo de criminalização de suas lideranças.
A Polícia Federal, à revelia de orientação do Ministério da Justiça, houve por bem cumprir um mandado inválido na Aldeia da Serra do Padeiro em outubro de 2008, utilizando-se
de forte aparato humano e bélico, que incluiu dois helicópteros e arma calibre ponto 50 contra os indígenas. No momento do ataque aéreo e terrestre, estudavam na aldeia 130 crianças
que se refugiaram na mata, à mercê das balas de borracha, bombas de gás lacrimogênio, munição ponto 50, insultos, incêndio das roças de cacau (altamente inflamáveis) e destruição de
veículos de transporte escolar, salas de aula e equipamentos, merenda escolar, portas e janelas
das casas. Noutra ação da PF numa área de retomada, cinco Tupinambá foram torturados
com choque elétrico em 2009.
Em 2010, o cacique Babau – Rosivaldo Ferreira da Silva – foi preso em sua casa de madrugada, por agentes da PF sem identificação, que obtiveram a sua rendição ao apontar uma
arma de fogo contra a cabeça de seu filho, então com três anos de idade. Seu irmão Givaldo
Jesus da Silva foi preso alguns dias mais tarde, e ambos foram transferidos – à revelia da Lei
Nº 6.001/1973 – ao presídio de segurança máxima de Mossoró RN, há mais de 2.000 km de
distância da aldeia onde permaneceram dois meses, totalizando quase seis meses de cárcere.
Sua irmã Glicéria Jesus da Silva foi presa em junho de 2010, com seu bebê de dois meses
de idade, após voltar de uma reunião em Brasília da Comissão Nacional de Política Indigenista onde denunciou as práticas de criminalização contra seu povo ao presidente Lula.
Toda essa violência, e outras mais cometidas contra outros caciques, se deram após
os Tupinambá reagirem a agressões praticadas por fazendeiros que ocupam o território Tupinambá. A partir daí, as lideranças são acusadas recorrentemente de esbulho possessório
e formação de quadrilha, tipos penais incabíveis para a luta social de retomada de terras
tradicionais por comunidade indígenas em luta política pelo cumprimento do normativo
constitucional.
O caso das agressões cometidas contra os Tupinambá foi levado pelo CIMI e Justiça
Global ao Relator Especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos povos indígenas, Sr. James Anaya, e à OEA. Uma Comissão especial foi formada no âmbito do CDDPH/SDH/PR – Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana da
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República para averiguação das denúncia
386
reiteradamente levadas pelas lideranças e pelo CIMI àquele Conselho, cujo relatório final
estará disponível em dezembro de 2011, retratando documentadamente a atuação dos interesses econômicos e políticos contrários aos direitos do povo Tupinambá de Olivença.
Muito embora Babau (e o filho), Glicéria (e o filho) e Givaldo estejam sob a proteção
do PPDDH, a demanda desta comunidade requer seja a proteção estendida a todos os seus
membros.
A impunidade em todos os casos é recorrente, o que fomenta a prática de mais e
mais violências contra as comunidades indígenas, em todo o território nacional.
3. Agressões aos bens de usofruto exclusivo dos povos indígenas
O desmatamento ambiental ilegal realizado por não índios em terras indígenas
não vem sendo coibido como deveria pelos órgãos de fiscalização competentes. Ademais, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(IBAMA), responsável pela fiscalização, foi mesmo obrigado a cortar na própria carne
recentemente, exonerando grande parte de seus fiscais por corrupção.
À falta de fiscalização pelos órgãos governamentais, os indígenas se tornam reféns e vítimas da sanha predadora e da violência de madeireiros. Um trágico exemplo
está no Maranhão, onde as únicas áreas de florestas estão em terras indígenas. Grupos
de Awá-Guajá, não contatados pela sociedade nacional, são encurralados por indivíduos e empresas que prosseguem desmatando as florestas, não estando ausente a possibilidade de extermínio deste povo, que é nômade e vive em isolamento voluntário. A
desintrusão da terra Awá-Guajá foi determinada pela Justiça Federal do Maranhão no
ano de 2010, mas os terceiros interessados entraram com recursos de apelação no TRF
da 1ª Região. Os recursos foram julgados e negados pelo Tribunal no dia 09/12/2011,
porém os não índios ainda podem entrar com novos recursos judiciais.
4. Grandes obras do PAC incidindo em terras indígenas
A maioria das grandes obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)
dentre as quais as muitas hidrelétricas planejadas ou em construção – está sendo realizada pelo governo federal “a toque de caixa”, ao arrepio da Constituição Federal, que é clara
a respeito da utilização de recursos naturais em terras indígenas:
387
Art. 231, § 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados
com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes
assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
O Decreto Legislativo nº 143, de 20/6/2002, que introduziu a Convenção 169 da
OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, também vem sendo violado pela União, na medida
em que as consultas prévias, informadas e de boa-fé, que devem ser feitas junto aos povos indígenas – que sequer foram regulamentadas ainda no Brasil – não têm sido feitas.
Judicialmente, entretanto, os órgãos federais argumentam que as “audiências públicas”
normatizadas pela legislação ambiental, de competência do Ministério do Meio Ambiente, cumpririam tanto o papel da oitiva das comunidades pelo Congresso Nacional
como as consultas estipuladas pela Convenção 169:
Artigo 6o 1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;
b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os
níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de
outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;
c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim.
2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa
fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e
conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.
Ademais, a própria definição de projetos de desenvolvimento em relação com os
povos indígenas, resguardado seu direito à diferença que é determinado pelo respeito
aos seus usos, costumes e tradições – com respaldo constitucional – deveria, por força da
Convenção 169, respeitar o direito de escolha de suas próprias prioridades:
Artigo 7o . 1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete
as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam
ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da
formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e
regional suscetíveis de afetá-los diretamente.
Numerosos são os casos de desrespeito pelo Estado brasileiro à legislação mencionada, muito embora os tribunais ou tenham concordado em parte com a argumentação
governamental, dando ensejo para a interposição de recursos que retardam as já morosas
388
decisões judiciais, ou tenham protelado, até se chegar a um estado de adiantamento das
obras no qual qualquer decisão de mérito contrária se torne, de fato, inútil. A não ser para
atestar a “teoria do fato consumado”, retirando na prática os direitos dos povos indígenas.
No caso da chamada “Transposição do Rio São Francisco” a população ribeirinha e
os povos indígenas afetados viram-se diante do tal “fato consumado”, na medida em que
o poder Judiciário não responde à provocação na celeridade necessária para resguardar
os direitos populares. A construção de dois grandes canais com mais de 600 km de extensão - ao custo de R$ 6,6 bilhões - teve início em 2007 e está em curso sem que o Supremo
Tribunal Federal tenha se manifestado em algumas ações questionando a sua execução.4
Estas obras avançam apesar das manifestações populares contrárias, ao mesmo
tempo em que tiram a posse dos ribeirinhos, afetam terras indígenas cuja demarcação
se fazia esperar pelo órgão indigenista governamental, submergindo-as, e causando danos ecológicos sem que haja contrapartida de investimentos, em favor de empresários
da construção civil, da irrigação, da exportação de frutas, da carcinicultura,5 do polo
siderúrgico-portuário do Pecém (Fortaleza, CE) e das monoculturas para a produção de
biocombustíveis.
No mesmo diapasão infeliz seguem as obras da UHE Belo Monte, repudiada desde
o governo militar pelo povo brasileiro e mais especialmente pelos povos indígenas do
Pará e Mato Grosso. Principal obra de infraestrutura do governo brasileiro na Amazônia
está sendo construída em corredeiras do Rio Xingu, sem ter havido verdadeiro diálogo
com os indígenas desde 1989.
O projeto foi ressuscitado pelo ex-presidente Lula em 2002, tendo sido aprovado
o projeto autorizador da implantação da usina em 2005. Em 2007 o Supremo Tribunal
Federal autorizou o licenciamento ambiental, e, em 2010, o Ministério do Meio Ambiente liberou Belo Monte. Em 2011, após a demissão do presidente do órgão e de técnicos
contrários à obra, o IBAMA finalmente concedeu a licença de instalação. As obras começaram em março de 2011 sob fortes protestos nas principais capitais do país e na região.
O estudo de impacto ambiental realizado pelo consórcio empreendedor foi contestado por 38 cientistas de diversas universidades, alertando para o desaparecimento de
espécies que só podem ser encontradas naquela região e para as incertezas sobre as áreas
a serem alagadas. Devido ao regime dos rios, a média anual de energia gerada será de
apenas 40% da capacidade da obra. O custo estimado de sua construção, inicialmente
orçado em R$ 19 bilhões, está beirando os R$ 26 bilhões, sendo que 80% advém de dinheiro público, via Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Existem doze ações civis públicas do Ministério Público Federal, uma do CIMI e
uma da ONG Amigos da Terra contra a União Federal acerca das variadas ilegalidades
relacionadas à UHE Belo Monte. Em recente decisão em segundo grau de jurisdição no
4
5
Há pelo menos três ações para as quais a Campanha Opará, reunindo diversas organizações populares, fez uma
campanha de abaixo assinados junto ao STF, que não decide desde 2006 em nenhuma das ações (ACO 876, ACO
996 e ADI nº 4113/DF).
Produção de camarão.
389
TRF da 1ª Região, entendeu-se – por maioria de votos – que a consulta aos indígenas
não precisa ser prévia à autorização legislativa ou mesmo à sua construção, mas apenas anterior à implantação do empreendimento, solapando a Convenção 169 da OIT.
Aguarda-se decisão a respeito em terceira instância.
5. Dois casos emblemáticos na mais alta corte de justiça brasileira
Em 2008, o movimento indígena e seus aliados voltaram suas atenções para o Supremo Tribunal Federal, por conta dos julgamentos da PET 3388, referente à terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, e ACO 312, relacionada à terra indígena Caramuru – Catarina Paraguassu, no sul da Bahia. Ambas as ações acompanhavam cerca
de três décadas de lutas de vários povos indígenas em ocupação tradicional das áreas,
encontrando fortes resistências por parte dos ocupantes não índios, suas milícias, seus
aliados políticos e econômicos. Também foi bastante mencionada, no interior do STF,
mas também pela mídia nacional, a suposta ameaça que representaria a presença de povos indígenas nas fronteiras nacionais para a soberania e segurança do Brasil.
A mídia comercial, em mãos de políticos tradicionais, não poupou a população
brasileira de ser desinformada, através da veiculação de falas desqualificando a identidade indígena e a ocupação tradicional. Os âncoras dos telejornais das diferentes emissoras
de televisão, como a mídia impressa, faziam – como fazem – incessantemente indevidas
comparações entre a área das terras indígenas com sua equivalência em termos de “campos de futebol” ou “área do município de São Paulo”, reforçando o estereótipo de que
“há muita terra para pouco índio”, ao mesmo tempo que os atentados cometidos pelos
ocupantes contra os índios não ocupavam espaço algum nas manchetes.
O julgamento da PET 3388 foi concluído em março de 2009, com a determinação
pelo STF da sua total desintrusão, garantindo-se assim o usufruto exclusivo do território
pelos povos Macuxi, Taurepang, Patamona, Wapishana e Ingaricó.
Foi também iniciado o julgamento da ACO 312 em setembro de 2008 no STF, em
favor dos cinco povos que se abrigam sob o nome genérico de Pataxó HãHãHãe-Baenã,
Kamakã, Kariri-Sapuyá, Pataxó e Tupinambá. A ação tramita desde 1982 e durante todo
o período há ocorrência de atentados contra os indígenas, em especial pela utilização de
pistolagem.
Após o brilhante voto do Ministro Eros Grau, reconhecendo a nulidade de todos os títulos de propriedade incidentes sobre a terra indígena Caramuru/Catarina
Paraguassu, o Ministro Menezes Direito pediu vistas para analisar melhor o caso,
da mesma forma que fizera com a Pet 3388. O julgamento foi agendado duas vezes
em 2011, porém a pedido da parte ré – o estado da Bahia – foi retirado da pauta
de julgamento. A movimentação contra e a favor da garantia da terra Caramuru/
390
Paraguassu aos Pataxó HãHãHãe está em curso, opondo novamente a argumentação
constitucional aos preconceitos e estereótipos contrários à efetivação dos direitos
indígenas. A cacique Ilsa Rodrigues e duas outras lideranças estão sob a proteção do
PPDDH devido às ameaças que vêm sofrendo.
6. Violações levadas aos órgãos internacionais
Apesar de a Comissão de Especialistas na Aplicação de Convênios e Recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT) ter solicitado ao governo brasileiro esclarecimentos sobre a ausência de consulta aos povos indígenas e quilombolas em
relação às leis e obras que os impactam, entre elas a da chamada Transposição do rio São
Francisco, nenhuma resposta foi fornecida às comunicações enviadas.
O caso Belo Monte chegou à CIDH/OEA (MC 382/10 – Comunidades Indígenas
da Bacia do Rio Xingu, Pará, Brasil) pelo esforço de várias entidades da sociedade civil.
Em abril de 2011, a CIDH determinou: 1) que o Estado brasileiro suspendesse as obras
de Belo Monte; 2) realizasse “processos de consulta, em cumprimento das obrigações
internacionais do Brasil, no sentido de que a consulta seja prévia, livre, informativa, de
boa fé, culturalmente adequada, e com o objetivo de chegar a um acordo, em relação a
cada uma das comunidades indígenas afetadas, beneficiárias das presentes medidas cautelares”; 3) garantisse “previamente a realização dos citados processos de consulta, para
que a consulta seja informativa, que as comunidades indígenas beneficiárias tenham
acesso a um Estudo de Impacto Social e Ambiental do projeto, em um formato acessível, incluindo a tradução aos idiomas indígenas respectivos”; e 4) que adotasse medidas
urgentes para proteger a vida e a integridade pessoal dos membros das comunidades
tradicionais e povos indígenas da bacia do rio Xingu: Arara da Volta Grande do Xingu,
Juruna de Paquiçamba, Juruna do “Kilómetro 17”, Xikrin de Trincheira Bacajá, Asurini
de Koatinemo, Kararaô e Kayapó da terra indígena Kararaô, Parakanã de Apyterewa,
Araweté do Igarapé Ipixuna, Arara da terra indígena Arara, Arara de Cachoeira Seca, e
as comunidades indígenas em isolamento voluntário da bacia do Xingu.
Além de descumprir as medidas internacionais e conceder a Licença de Instalação
do empreendimento UHE Belo Monte, o governo brasileiro adotou uma postura de desrespeito e deslegitimação do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos.
Não participou da audiência designada para discutir o caso em Washington e ameaçou
suspender o pagamento da contribuição à OEA, retirando a candidatura do ex-Ministro
de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, à CIDH.
391
7. Perspectivas e recomendações
Muito embora tenha havido um esforço governamental no triênio 2007-2010 em se
dialogar com os povos indígenas no âmbito da Comissão Nacional de Política Indigenista (a CNPI), a ausência reiterada de representantes dos múltiplos Ministérios mais estratégicos em debates de importância cabal passou a inviabilizar qualquer diálogo. A falta
de encaminhamentos enérgicos das problemáticas trazidas ao debate também terminou
por desgastar a participação indígena, que foi hostilizada por algumas comunidades em
suas regiões de origem por conta da desinformação ocorrida quando da edição do decreto que pretendia a reestruturação da FUNAI. Tampouco avançou a construção do
Conselho Nacional de Política Indigenista (o CNPI), que deveria ser um dos objetivos
dos debates da Comissão, pendente também de projeto de lei no Congresso Nacional.
O novo marco legal que virá a substituir o defasado Estatuto do Índio (Lei nº
6.001/1973) tampouco avançou no Congresso, através do Projeto de Lei nº 2.057/1991, tendo
sido discutido tanto na CNPI como em seminários regionais com os povos indígenas.
A construção de uma política indigenista de qualidade e de políticas específicas
e diferenciadas em saúde, educação, auto sustentação das comunidades, centradas nos
desejos destas é necessária.
O diálogo respeitoso e atencioso é necessário, assim como oitivas pelo Congresso
Nacional e consultas na forma da Convenção 169 – baseadas na boa fé, prévias e informadas – ao invés de o Estado brasileiro fazer “ouvidos moucos” às manifestações dos
índios e as decisões governamentais serem “enfiadas goela abaixo” de forma autoritária,
violando os direitos dos indígenas em relação à sua vida presente e futura, “cada vez que
sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente” (OIT, Convenção 169).
Fiscalizar de forma eficiente as pressões de grandes grupos econômicos nacionais e
transnacionais pela posse das terras indígenas e de suas riquezas naturais, e mesmo pela
utilização da mão-de-obra indígena é uma forma de infringir abusos e agressões aos povos indígenas. Combater as violências e punir seus responsáveis é o necessário caminho
para se fortalecer os direitos dos indígenas.
Trabalhar o respeito às culturas indígenas, aos seus modos de existência e ao seu
protagonismo é imperativo tanto no âmbito dos meios de comunicação como no sistema
educacional em todos os níveis, combatendo assim os preconceitos e a discriminação
que são a base para as manifestações de ódio contra os povos indígenas.
A inoperância da FUNAI, sucateada pelos sucessivos governos, era de compreensão clara. Porém sua efetiva reestruturação não ocorreu, seja pela não contratação dos
servidores concursados, seja pela ineficiência do concurso genérico realizado, seja pelo
contingenciamento de recursos financeiros para a execução de sua missão institucional,
o fato é que a FUNAI continua trabalhando muito aquém das necessidades de atendimento e assessoria que os povos indígenas apresentam como demandas.
392
A ineficiência na demarcação das terras indígenas é a prova das dificuldades da
FUNAI em cumprir com sua obrigação enquanto órgão indigenista, postergando assim
a resolução dos conflitos fundiários e expondo os indígenas à desnecessária violência de
terceiros e à desassistência dos serviços públicos.
Da mesma forma ineficaz deu-se a transferência do atendimento à saúde das comunidades indígenas do âmbito da Funasa para a Sesai que, mais de um ano depois do fato,
não tem condições objetivas de prestar o atendimento.
Os direitos indígenas estão inscritos exemplarmente na Constituição brasileira,
mas apenas lhes será conferida eficácia a partir das lutas do movimento indígena e dos
esforços competentes do Estado para coibir sua violação, em todos os níveis.
Referências bibliográficas
BRASIL. Presidência da República. Decreto Lei nº 1775, de 08 de janeiro de 1996. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D1775.htm>. Acesso em: 08 set. 2012.
______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <www.
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 08 set. 2012.
______. Decreto Lei nº 143, de 20 de junho de 2002. Disponível em: <www6.senado.
gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=234865>. Acesso em: 08 set. 2012.
______. STF. Ação Cautelar 2556. Disponível em: <www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/14310065/acao-cautelar-ac-2556-ms-stf>. Acesso em: 08 set.2012.
______. Petição 3388. Disponível em: <www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=3388&classe=Pet&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 08 set.2012.
______. Acórdão 876. Disponível em: <www.stf.jus.br/imprensa/pdf/ACO876.pdf>.
Acesso em: 08 set.2012.
______. ADI 4113 do Distrito Federal. Disponível em: <www.aatr.org.br/site/uploads/
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set.2012.
LACERDA, Rosane F. Povos Indígenas: a longa marcha pelo reconhecimento da humanidade roubada. In: Direitos humanos no Brasil. São Paulo: Rede Social de Justiça e
Direitos Humanos, 2009.
393
MONITORAMENTO DOS DIREITOS DAS PESSOAS
COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL
Vida Brasil*
O processo de construção de uma sociedade inclusiva com participação das pessoas com deficiência está em curso. Mas o segmento ainda permanece como um
dos mais discriminados no exercício da sua cidadania. Se houveram avanços em
diversos campos, as violações de direitos persistem para a maioria das pessoas com
deficiência. É o que revela a análise sobre a evolução recente dos direitos humanos das
pessoas com deficiência. O trabalho é fruto de um processo participativo coordenado
pela Associação Vida Brasil-Salvador, envolveu 14 organizações da área1 e permitiu
traçar um balanço nos cinco últimos anos do exercício dos direitos econômicos,
sociais e culturais mais significativos para as pessoas com deficiência: 1) direito à
educação; 2) direito à cultura e ao esporte; 3) direito à seguridade social; 4) direito à
saúde; 5) direito ao trabalho; 6) direito à moradia; 7) direito à cidade; e 8) direito à
acessibilidade.
*
Texto elaborado por Damien Hazard, com a colaboração de Bruna Hercog, Edmundo Xavier, Heron Cordeiro,
Islândia Costa, Rosana Lago, Wilson Cruz.
1 São elas: Associação das Pessoas com Albinismo na Bahia (Apalba), Associação Baiana de Pessoas com deficiência Física (Abadef), Associação de Atletas com Necessidades Especiais da Bahia (Aabane), Associação Baiana de
Cegos (ABC), Associação de Pessoas com Deficiência e Amigos de Valença (Adav),Associação de Deficientes
de Simões Filho (Adesf), Associação Educacional Sons do Silêncio (Aesos), Associação de Familiares e Amigos
da Gente Autista (Afaga), Associação Santoantoniense de Deficientes Visuais (Asdev), Acesso e Reintegração a
Comunicação Cultura e Arte (Arcca), Fraternidade Cristã de Pessoas com Deficiência da Bahia (FCD), Gapdica,
Perspectivas em Movimento.
395
1. Participação política e quebra da invisibilidade
A situação dos direitos humanos das pessoas com deficiência no mundo é marcada nos últimos anos pelo surgimento de um novo instrumento legal: a Convenção
Internacional sobre os direitos das Pessoas com Deficiência. O Brasil, em julho de 2008,
foi o 50º país a ratificá-la, depois de uma ampla articulação dos movimentos da área da
deficiência. O processo de construção desta Convenção foi muito participativo e o lema
que acompanhou sua discussão tornou-se bandeira de luta dos movimentos de pessoas
com deficiência em todo o mundo: “Nada sobre nós sem nós!”.
Essa busca por participação política de pessoas com deficiência, e das suas organizações representativas, é um dos principais destaques dos últimos anos, inclusive no
Brasil. As pessoas com deficiência ocupam cada vez mais os espaços institucionalizados
de controle social, principalmente aqueles que tratam diretamente de políticas para o
segmento. Sob sua influência foram criados ou reestruturados conselhos de direitos das
pessoas com deficiência em diversos estados e cidades, inclusive do interior dos estados.
Os dois ciclos de conferências sobre os direitos das pessoas com deficiência (em 20052006 e 2008) também permitiram tanto articulações, até então inéditas, de atores da área
da deficiência nos âmbitos municipais, estaduais, regionais e nacional, como a elaboração de planos de ações. As pessoas com deficiência passaram, ainda, a ocupar espaços
voltados para outras políticas setoriais: para mulheres, de saúde, de assistência social, de
desenvolvimento urbano, entre outras.
A maior presença e visibilidade no cenário político não seria compreendida se não
estivesse relacionada com a afirmação de novas identidades coletivas de pessoas com deficiência (pessoas com albinismo, pessoas com visão monocular, com doenças crônicas
renais, com síndrome de Rett, com anemia falciforme, entre outros) e, consequentemente, o surgimento de novas organizações e lideranças no cenário nacional ou local. Só em
Salvador, foram criadas na década passada diversas associações que alcançaram maior
projeção nos últimos anos: Associação de Pessoas com Albinismo da Bahia (Apalba),
Associação de Pessoas com Síndrome de Rett (Arrett), Associação Metamorfose Ambulante, de pessoas usuárias do sistema de saúde mental (Amea), Associação Baiana das
Pessoas com Doença Falciforme (Abadfal), Associação de Amigos do Autista da Bahia
(Ama), Associação Baiana de Dança em Cadeira de Rodas (ABDCR).
O aparecimento dessas novas organizações é reflexo do grande número de pessoas
com deficiência existentes no Brasil: os primeiros resultados do censo de 2010 realizado
pelo IBGE indicam um total de 45 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, ou
seja, 23,9% da população brasileira (IBGE, 2010). Essa proporção revela-se alta, quando
comparada à estimativa a Organização Mundial da Saúde (OMS) para quem 10% da
população mundial tem algum tipo de deficiência. O recenseamento das pessoas com
deficiência é recente e as metodologias e definições dadas à própria deficiência diferem
de um país para outro.
396
Mas no Brasil cada vez mais pessoas “enxergam-se” como deficientes, chegando
a aproximadamente um quarto da população (IBGE, 2010). Esses números cresceram
fortemente em relação aos 24,5 milhões (14,5%) apontados pelo censo de 2000 (IBGE,
2000). Os resultados completos do censo 2010 deverão trazer elementos de resposta sobre essa diferença e confirmar ainda as tendências observadas no censo anterior: a questão da deficiência está relacionada com a problemática da pobreza e atinge, em maior
proporção, as populações negras e indígenas, as mulheres, as regiões Norte e Nordeste.
A existência das pessoas com deficiência já não pode mais ser ignorada. A invisibilidade da pessoa com deficiência na sociedade começou a ser quebrada há três décadas,
na ocasião do Ano (1981) e da Década internacional das Pessoas com Deficiência. Desde então as pessoas com deficiência vêm gradativamente se afirmando nos espaços da
sociedade, de educação, do trabalho e do lazer. Nos últimos anos, múltiplas campanhas
sobre acessibilidade e direitos das pessoas com deficiência foram lançadas pelo Brasil.
Até na televisão, personagens com deficiência apareceram com mais frequência nas novelas, sendo às vezes (mas ainda raramente) interpretados por atores com deficiência. O
imaginário coletivo brasileiro continua impregnado de preconceitos em relação à pessoa
com deficiência, todavia a população começou a ter acesso a novas fontes de informação
e a um outro discurso, que apresenta a pessoa com deficiência como sujeito de direitos.
2. Situação dos DhESC’S mais significativos para as pessoas com
deficiência
No que diz respeito ao direito à educação, avanços foram registrados, começando
pelo debate intensificado sobre a inclusão de pessoas com deficiência no ensino regular
e a mobilização de diversos atores sobre a questão: poderes públicos, sistema de ensino,
sociedade civil, mídia. O número de pessoas com deficiência matriculadas no ensino regular e superior aumentou. As estatísticas das secretarias municipal e estaduais de educação de Salvador e da Bahia revelam que havia em 2007, 18.622 alunos com deficiência
matriculados na rede pública do estado.
Em 2009, o censo aponta um crescimento de 78%, ou seja, 33.686 matrículas. As
secretarias de educação em diversos estados também iniciaram a qualificação dos professores para trabalhar com este público e oferecem cursos de língua brasileira de sinais-(Libras) a professores e intérpretes. Salas de Recursos Multifuncionais (SRM) estão
sendo implantadas em escolas públicas, a exemplo da Bahia, onde em três anos – 2007 a
2010 - o número de salas aumentou de 40 para 557.
Os esforços na inclusão escolar são observados na criação de pontos de atendimento educacional especializado no ensino regular para pessoas com Transtorno Global de
Desenvolvimento (TGD), tais como as pessoas com autismo.
397
No entanto, o processo de inclusão escolar está apenas começando e encontra muitos limites. O número de pessoas com deficiência sem acesso à escola permanece muito
alto: o Ministério da Educação (MEC) calculou em 2008 que 70,64% da população brasileira de 0 a 18 anos que está fora da escola são compostos por crianças, adolescentes
e jovens com deficiência. E a própria qualidade da inclusão escolar na rede pública de
ensino deve ser questionada. A capacitação dos profissionais é descontinuada, funciona
mais como uma sensibilização, mas não garante a instrumentalização das equipes pedagógicas. É comum encontrar escolas que divulgam a proposta de educação inclusiva,
mas não contam com a presença de intérpretes de libras nas salas de aula e nas salas de
apoio. Por todas essas razões, muitos alunos com deficiência costumam ficar alheios na
sala enquanto a aula é ministrada. O direito à educação ainda é frequentemente violado
com a negação pelas escolas da matrícula de pessoas com TGD.
Outro grande problema reside na falta de acessibilidade física das escolas e na insuficiência dos incentivos para garanti-la. Apesar da legislação em vigor, a maior parte das
escolas que está passando por reforma, não contempla nas suas instalações as exigências de rampas, banheiros, circulação. Uma pesquisa realizada em 2010 pelo Grupo de
Trabalho da Rede Inter setorial da Defensoria Pública do estado da Bahia – que contou
com a participação de organizações da área da deficiência e direitos humanos – revelou
que as escolas da rede municipal de Salvador, indicadas como acessíveis pelo próprio
poder público, não contemplam os requisitos básicos de acessibilidade (VIDA BRASIL
SALVADOR, 2010).
O direito a participar da vida cultural e esportiva registrou algumas melhorias
no período dos cinco últimos anos. As organizações de pessoas com deficiência que lidam com esporte e cultura multiplicaram-se pelo Brasil e parte delas conseguiu ampliar
sua visibilidade e se fortalecer. O esporte paraolímpico consolidou-se, mais em alguns
estados do que em outros, a exemplo do Rio de Janeiro e de Pernambuco. As artes e a
cultura inclusivas, por sua vez, passaram a ser reconhecidas de forma mais oficial, com
o Prêmio Albertina Brasil, uma iniciativa do Ministério da Cultura (MinC), lançado
em 2011. Outro aspecto destacado foi a disseminação das práticas de áudio descrição
e legenda eletrônica para pessoas com deficiência visual em filmes, festivais culturais,
programas de televisão...
No entanto, diversas barreiras restringem o acesso à cultura e ao esporte. A maior
parte das reformas dos espaços culturais não contempla a acessibilidade. É inexpressiva
a quantidade de espaços e equipamentos culturais para o expectador com deficiência:
nos teatros, quando consegue entrar, a pessoa de cadeira de rodas fica geralmente afastada dos seus familiares em um canto isolado. Para o artista com deficiência a situação é
pior: é inexistente a acessibilidade no espaço cênico (palco, cena, camarins).
O apoio para entidades esportivas e culturais é insignificante. De forma geral, as
secretarias municipais e estaduais oferecem pouco apoio para iniciativas desportivas já
existentes com para atletas, que carecem de material apropriado. Os órgãos públicos não
398
incentivam a criação de outras modalidades que possam atingir todas as deficiências.
Essa situação agrava-se com a falta de capacitação de profissionais para atuar na área do
para desporto.
No campo do direito à saúde e à seguridade social, vale ressaltar que alguns programas sociais mudaram seus critérios e conseguiram ampliar sua cobertura para as
pessoas com deficiência de famílias mais pobres. É o caso do Benefício de Prestação
Continuada (BPC), um importante programa que beneficia 1,4 milhões de pessoas com
deficiência de baixa renda. O benefício foi ampliado em abril de 2007 com a criação
do BPC na escola, para incentivar o acesso e permanência no sistema educacional das
crianças e jovens com deficiência na faixa de 0 a 18 anos.
Outra importante mudança nas regras do BPC, em setembro de 2011, foi permitir
que as pessoas beneficiadas pelo programa possam suspendê-lo temporariamente
enquanto estiverem trabalhando e retomá-lo quando estiverem desempregadas. Esse
direito não era assegurado e pessoas com deficiência aptas a trabalhar preferiam não
assumir vínculo empregatício sob ameaça de perder definitivamente o BPC, perpetuando assim sua situação de assistido. A ampliação do programa Bolsa Família de 3 para 5
filhos por família cadastrada em setembro de 2011 também beneficiou famílias numerosas das classes mais pobres que diversas vezes incluem pessoas com deficiência.
Muitos entraves permanecem para que o direito à saúde e à seguridade social seja
garantido para todas as pessoas com deficiência e, principalmente, para as mais pobres,
aquelas que mais precisam. A grande parte da população com deficiência, principalmente do meio rural, desconhece seus direitos. É no meio urbano que se encontra a maior
parte dos beneficiados do BPC.
No campo da reabilitação, o sistema centralizado de atendimento está em xeque,
como mostram sua baixa cobertura assistencial e baixa resolutividade: não pode e nunca
poderá de forma atual atender a demanda no Brasil e, principalmente, as pessoas mais
isoladas e mais vulneráveis distantes das capitais.
Outro problema diz respeito às pessoas com autismo. Alguns governos estaduais
adotaram de forma precipitada leis para esse público, sem o devido diálogo com a sociedade civil e sem o aprofundamento necessário sobre o assunto: sob esta perspectiva,
a Lei nº10.553 do estado da Bahia pode ser considerada um retrocesso e uma má influência para outros estados, por favorecer a institucionalização das pessoas autistas e
alimentar desta forma a sua segregação em estabelecimentos separados, contrariando os
valores e práticas da inclusão.
Enfim, a falta de acessibilidade, que caracteriza a maior parte dos postos de saúde
existentes nos bairros de muitas cidades, continua se configurando como uma das maiores barreiras para o exercício do direito à saúde.
Um avanço no acesso ao direito ao trabalho foi a nova modalidade de exame para
concursos públicos, que confere um tempo maior para as pessoas com deficiência, em
conformidade com o princípio da equidade. Mas, as dificuldades continuam fortes para
garantir a inclusão no mercado de trabalho das pessoas com deficiência.
399
A lei de cotas para médias e grandes empresas2 fez crescer a contratação deste público, porém, permanece descumprida pela maior parte do empresariado. Pessoas com
certos tipos de deficiência, como as pessoas com deficiência visual, intelectual e os cadeirantes, encontram maiores barreiras, sendo penalizados pela falta de acessibilidade nos
espaços de trabalho, pela existência de preconceitos nas empresas, pela inadequação das
vagas oferecidas com o perfil das pessoas com deficiência (principalmente em termos do
grau de instrução).
As pessoas com deficiência também enfrentam problemas adicionais para garantir
sua inclusão no mercado de trabalho. Para participar nos concursos públicos, é obrigatório o envio do laudo médico por quem possui uma deficiência, onerando desta forma
seu processo de inscrição. Para ter acesso à qualificação profissional, vale ressaltar que
diversos cursos de capacitação ministrados por órgãos paraestatais (SENAI, SENAC)
não oferecem opções que possam atender e respeitar as especificidades das pessoas com
deficiência, além de serem pagos em algumas localidades, como é o caso das cidades
baianas Alagoinhas e Catú.
O direito à moradia, por sua vez, saiu fortalecido pelo fato de o programa do governo federal Minha Casa Minha Vida, voltado para habitação popular, estar obrigando a
partir de 2009, a deixar acessíveis 3% das moradias. No entanto, vale ressaltar que esse
avanço é mais simbólico do que realmente impactante, já que a legislação sobre acessibilidade está sendo descumprida e não devidamente fiscalizada e aplicada pelos órgãos
competentes na execução de empreendimentos imobiliários em muitas cidades do Brasil.
Não se pode negar a existência de diversas experiências de referência em acessibilidade no país: o transporte urbano em Curitiba e Porto Alegre, o parque de diversão e
esporte em Socorro (SP), o bairro de Copacabana no Rio de Janeiro. Pode-se observar,
paralelamente, uma inclusão mais frequente de itens de acessibilidade em espaços, edifícios e equipamentos urbanos nas capitais de estado. Mas são exemplos isolados, que ainda inviabilizam a perspectiva de pensar no planejamento e no desenvolvimento urbano
de uma cidade que possa ser inclusiva e integrada.
A falta de acessibilidade e a violação do direito à cidade e à mobilidade são constantes para as pessoas com deficiência. Muitos imóveis públicos reformados nos últimos
anos não cumprem as normas de acessibilidade. A maior parte das cidades do interior
dos estados não promove a acessibilidade dos espaços públicos. Mesmo em obras ditas
com acessibilidade em capitais como Salvador, a norma brasileira de referência raramente é cumprida: travessias das vias sem acessibilidade, passarelas com inclinação fora
das normas, ausência de rampas, falta de pistas táteis e sinaleiras sonoras. Sem contar a
ausência de manutenção das vias de pedestre e equipamentos públicos pelo poder executivo municipal, em diversas cidades pelo país.
2
Lei nº 8.213/1991, regulamentada pelo Decreto nº 3.298/1999.
400
A questão do transporte é particularmente significativa. A ausência de transporte
acessível já havia sido apontada como a principal fonte de violação de direitos para as
pessoas com deficiência, segundo pesquisa realizada pela Associação Vida Brasil (2004).
Passados os anos, a situação continua crítica e no foco das atenções. A adequação de frota de ônibus não será atingida em 2014 na maioria das cidades, como exige a lei (Decreto
nº 5.296/2004). Passe livre para as pessoas com deficiência de baixa renda, transporte
intermunicipal acessível e gratuito são exemplos de conflitos que opõem os movimentos
da área da deficiência às empresas de transporte em muitas cidades, sem que os governos
locais tomem atitudes para resolver a situação.
De forma geral, a legislação no Brasil, referente aos direitos das pessoas com deficiência, se revela uma das mais adiantadas no continente americano. E a Convenção
Internacional não deve impor, como em outros países, uma profunda reforma das leis
existentes. O problema no Brasil é que a legislação dificilmente é respeitada, e os poderes
públicos integram o problema porque costumam ignorar tais leis.
Vejamos um exemplo de violação de direitos no transporte urbano de Salvador,
particularmente significativo deste descaso. No dia 30 de novembro de 2009, um casal
de cadeirantes (Luciano Oliveira Alfredo e Rosineide das Neves Monteiro Oliveira) quis
pegar um ônibus, mas foi impedido pelo cobrador e pelo motorista, que só aceitaram
levar apenas uma pessoa com deficiência, a não ser que um dos dois entrasse pela frente
e ocupasse uma poltrona fora da sua cadeira de rodas.
O casal entrou, mas não atendeu ao pedido, julgado arbitrário. Os dois “profissionais” desligaram o ônibus, mandaram os outros passageiros descerem para pegar outro
ônibus, recolheram o elevador e trancaram o casal dentro do ônibus. Foram tratados
de aleijados, vagabundos e desocupados. A mulher ficou apavorada, passou mal e teve
que ser atendida posteriormente com cuidados médicos. O casal chamou a polícia que,
quando chegou, acabou dando razão ao motorista. O casal teve que pegar outro ônibus
para voltar para casa. Foram humilhados, desrespeitados e vítimas de abuso de poder.
Processaram a empresa e os dois profissionais e depois de diversas audiências,
a Promotoria do Juizado de Pequenas Causas acabou dando seu veredicto: uma cesta
básica dividida entre o cobrador e o motorista a ser paga para uma entidade filantrópica.
Essa história é uma dentre muitas outras, mas é emblemática, porque coloca em xeque
todo aparelho de Estado para defesa e promoção dos direitos das pessoas com deficiência
em relação à empresa de ônibus, aos profissionais, passando pela promotoria e pela polícia.
Quanto vale a dignidade de um casal de pessoas com deficiência, que passou por
uma verdadeira tortura psicológica? Uma cesta básica? Com certeza, justiça não foi feita.
Dois anos depois, a empresa de ônibus e seus profissionais continuam com as mesmas
práticas discriminatórias.
401
3. Desafios para a inclusão das pessoas com deficiência
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402
Os desafios para a construção de uma sociedade inclusiva no Brasil, com participação das pessoas com deficiência, são de diversas ordens.
No campo da educação:
Garantir a acessibilidade ao espaço físico e à comunicação nas escolas do ensino regular e nas universidades;
Implantar salas de recursos multifuncionais em todas as escolas públicas;
Promover a capacitação continuada dos profissionais da educação pública;
Elaborar e estruturar treinamentos para formação de profissionais, ouvindo
sempre a sociedade civil;
Contratação, por concurso, de profissionais de apoio para acompanhamento
dos educandos com deficiência nas salas regulares;
Adaptar os currículos e a metodologia de formação às necessidades das pessoas com deficiência;
Implementar contra turnos nas escolas para profissionalização das pessoas
com deficiência;
Criar centros profissionalizantes para pessoas com TGD (transtorno global de
desenvolvimento);
Incentivar a pesquisa de tecnologia inclusiva;
Garantir salas bilíngues para surdos na rede pública de ensino;
Garantir intérpretes de libras nas escolas públicas e particulares, nos espaços
culturais e de uso público;
Fortalecer as escolas existentes para pessoas surdas;
Implementar outros modelos de escolas inclusivas, por exemplo, onde a língua
principal seja Libras, mas possa incluir educandos “ouvintes” desde que alfabetizados em língua de sinais.
No campo da educação e do esporte:
Incentivar o ingresso da pessoa com deficiência no meio do para desporto com
para olimpíadas escolares, considerando o esporte como um meio de inclusão
social, qualidade de vida e lazer;
Fomentar essa cultura do para desporto aproveitando a oportunidade trazida
pelos megaeventos esportivos (Copa 2014 e Olimpíadas 2016);
Criar núcleos de diversas modalidades para desportivas com apoio do poder
público, incentivando a atuação das organizações da área;
Qualificar instrutores de educação física na área do para desporto;
No campo do planejamento urbano e do direito à cidade:
Os municípios devem readequar seus instrumentos de controle e fiscalização
para construção de empreendimentos habitacionais acessíveis;
Obrigar os condomínios e unidades de programas habitacionais, incluindo o
Programa Minha Casa Minha Vida, a serem construídas com acessibilidade
universal;
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No campo do direito ao trabalho:
Incentivar uma cultura de inclusão de pessoas com deficiência no mercado de
trabalho;
Alocar as pessoas com deficiência no dia da prova em locais que não fiquem
longe de sua residência, facilitando seu acesso;
As instituições que fazem concursos devem criar um banco de dados para
identificar as pessoas com deficiência, buscando evitar custos excedentes para
as pessoas com deficiência (emissão de atestados, envios pelo correio etc.);
No campo da saúde e da seguridade social:
Rever no BPC o critério econômico (da renda mínima familiar) para concessão
do mesmo;
Garantir um BPC para cada pessoa com deficiência na família;
Disponibilizar um salário para os curadores de pessoas com deficiência que já
possuem o BPC (benefício de prestação continuada);
Implantar residências terapêuticas para pessoas com TGD e DI, que perderam
os laços familiares;
Capacitar profissionais do programa de saúde familiar nas questões da deficiência numa perspectiva de Reabilitação Baseada na Comunidade (RBC);
Incentivar estratégias de RBC numa perspectiva descentralização da reabilitação;
Implantar os Centros de Apoio Psicossocial (CAPs) como determina a legislação vigente;
Adequar os mobiliários médicos para pessoa com deficiência (aparelho de mamografia, ginecologia, cadeira para exame oftalmológico, etc.);
Informar a população com deficiência sobre seus direitos na saúde;
Ampliar o programa de distribuição de medicamentos de alto custo.
Referências bibliográficas
BRASIL. IBGE. Censo de 2000. Disponível em: <www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/>. Acesso em: 14 out. 2012.
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Acesso em: 14 out. 2012.
403
A GESTÃO DAS PRISÕES NO BRASIL
Rodolfo de Almeida Valente*
Por toda parte existem homens ruins; mas entre os ruins sempre há bons. Provavelmente estes
homens aqui não são piores do que os outros que existem do lado de fora do presídio”. Mal o
pensamento me veio, logo meneei a cabeça, como a enxotá-lo – e, contudo, ó meu Deus, se eu
tivesse ao menos percebido quão verdadeiro e certo era esse pensamento!
DOSTOIEVSKI, 2010.
Com a quarta maior população carcerária do mundo (atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia) e com uma taxa de crescimento ingente dessa população, o Brasil se
coloca entre aqueles países que adotam a política de encarceramento em massa.
Tal política está imersa em um contexto de marginalização da pobreza e é conjugada com a manutenção de um sistema carcerário superlotado e insalubre. O presente
artigo objetiva mostrar os principais aspectos dessa política a fim de submetê-los à crítica e propor alternativas.
1. Moinho de gastar gente
Darcy Ribeiro cunhou a expressão “moinho de gastar gente” para conotar o copioso número de pessoas marginalizadas que, ao longo do processo de formação socioeconômica de nosso país, foram exploradas e eliminadas em nome do progresso de poucos
privilegiados.
A prática da exploração e do extermínio dos povos marginalizados está no DNA
brasileiro: são muitos os “moinhos de gastar gente” que atravessaram a nossa história.
*
Advogado e Coordenador Jurídico da Pastoral Carcerária de São Paulo (CNBB/Sul 1).
405
Desde a eliminação dos povos indígenas originários (à época da invasão portuguesa,
eram 6 milhões de índios; hoje, eles não chegam a poucas centenas de milhares),
passando pela escravatura dos negros (e por sua abolição formal), até a atual precarização do trabalho e a marginalização dos que não se inserem no mercado de
consumo. Há uma sucessão de “moinhos de gastar gente” que se conformaram aos
ciclos econômicos correspondentes.
Atualmente, o Sistema Carcerário cumpre a rigor esse papel. Como se divisará mais
à frente, o Sistema Carcerário funciona como verdadeiro mecanismo de administração
daqueles que, segundo Batista (2006): “não devem frequentar o shopping, o templo da
cidadania do consumo”. Eleitos como inimigos da sociedade, os povos marginalizados
são vítimas preferenciais do extermínio policial ou, quando a sorte lhes é um pouco menos severa, do implacável “moinho de gastar gente”, implicado em um sistema carcerário
repleto de discursos mendazes e de práticas escatológicas.
1.1. Encarceramento em massa
Entre 1995 e 2010, o percentual da população carcerária brasileira variou de aproximadamente 148 mil para aproximadamente 496 mil pessoas presas: recrudescimento
de 235%. No mesmo intervalo de tempo, a população brasileira cresceu 21%. Por que
tamanha disparidade? O número de crimes cometidos aumentou ou a polícia se tornou
mais eficaz? Nenhuma das alternativas!
Como se sabe, a década de 1990 foi marcada pela adoção do neoliberalismo no Brasil. Trata-se de modelo econômico composto, de um lado, pelo Estado Social mínimo,
que não intervém na economia e não garante direitos sociais fundamentais, e, de outro
lado, pelo Estado Policial máximo, que, em um ambiente de precarização do trabalho
e de desemprego, criminaliza e pune os que não conseguem se inserir no mercado de
trabalho (e de consumo).
De modo que não se pode dizer que o crescimento vertiginoso da população carcerária deriva do aumento da eficácia policial ou mesmo do aumento do cometimento
de crimes. Tal crescimento, em verdade, é fruto de uma opção política do Poder Público
que, no lugar de intervir na economia para aplacar a sangria capitalista e efetivar direitos
sociais, prefere intervir na liberdade daqueles que estão às margens da sociedade de consumo. Para tanto, criminaliza e combate com vigor as vias informais de que se servem os
marginalizados para sobreviverem no atroz neoliberalismo.
Note-se: não se quer dizer aqui que o cometimento de crimes está ligado à pobreza.
Afirma-se, na realidade, que, na toada das políticas neoliberais, são perseguidas as condutas diretamente ligadas à luta contra a pobreza e pela sobrevivência, ao passo que o
combate a condutas criminosas ligadas a outros fatores (como a ganância capitalista, por
exemplo) ou não é realizado ou se realiza pontualmente. Como veremos mais à frente, a
seleção das condutas criminalizadas que serão combatidas está relacionada à conjuntura
social e econômica que se apresenta.
406
1.2. Superlotação e desrespeito a direitos fundamentais
A mencionada expressão “moinho de gastar gente” é tanto mais adequada para qualificar o sistema carcerário brasileiro quanto mais se revela a realidade atrás de seus muros.
A princípio, o aspecto de maior destaque é a superlotação que afeta as unidades
prisionais: o Brasil tem a terceira taxa de ocupação prisional da América Latina (165%),
abaixo apenas da Bolívia (185,1%) e do Peru (171,4%) (LONDON. International Center
for Prision Studies).
Não é necessário profundo conhecimento da realidade das unidades prisionais brasileiras para se inferir que o terreno da superpopulação carcerária, além de promover
manifesto agravamento da pena, é extremamente fecundo para o desencadeamento de
diversas outras ofensas a direitos fundamentais, como, por exemplo, o direito à educação, o direito à saúde e o direito à integridade física.
1.2.1. Direito à educação
De acordo com os dados levantados no “Relatório Nacional para o Direito Humano à Educação: Educação nas Prisões” (2009), a despeito de 70% da população prisional
não possuir o ensino fundamental completo e de 60% ser formada por jovens com idade
entre 18 e 30 anos, apenas 18% das pessoas privadas de liberdade têm acesso a alguma
atividade educativa.
Os índices de acesso ao ensino pela população carcerária são vergonhosos, especialmente quando se considera que essas pessoas, em regra, já chegaram ao cárcere com
um histórico de negação ao direito à educação.
O mesmo relatório contém algumas constatações que bem denotam a dimensão do
problema. Dentre elas, algumas são esclarecedoras:
• a educação para pessoas encarceradas ainda é vista como um “privilégio” pelo
sistema prisional;
• há um conflito cotidiano entre a garantia do direito à educação e o modelo
vigente de prisão, marcado pela superlotação, por violações múltiplas e cotidianas de direitos, e pelo superdimensionamento da segurança e de medidas
disciplinares;
• [o atendimento] é muito inferior à demanda pelo acesso à educação, geralmente atingindo de 10% a 20% da população encarcerada nas unidades pesquisadas. As visitas às unidades e os depoimentos coletados apontam a existência de
listas de espera extensas e de um grande interesse pelo acesso à educação por
parte das pessoas encarceradas;
407
•
quando existente [o atendimento], em sua maior parte, sofre de graves problemas de qualidade apresentando jornadas reduzidas, falta de projeto pedagógico, materiais e infraestrutura inadequados e falta de profissionais de educação
capazes de responder às necessidades educacionais dos encarcerados;
• o acesso aos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
Básica e Valorização dos Profissionais de Educação (Fundeb) para a educação
prisional ainda é pequeno. Muitos gestores do sistema prisional e de educação
prisional nas secretarias de educação desconheciam a possibilidade de acesso
por meio dos sistemas de ensino municipal e estadual;
• grande parte dos educadores e educadoras que atuam no sistema prisional são
testemunhas, cotidianamente, de violações de direitos cometidas contra presos
e presas. O drama vivido pode ser sintetizado em duas falas de professores que
deram depoimentos a esta Relatoria: “Eu não quero ser omissa, mas eu tenho
medo e não sei o que fazer. Isso me atormenta”; “Se nós denunciássemos tudo
o que vemos na prisão, daria uma CPI por dia”.
No entanto, não se pode negar que importantes passos foram dados de 2010 para
cá. Naquele ano houve a aprovação das “Diretrizes Nacionais para a oferta de educação
para jovens e adultos em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos penais”
pelo Conselho Nacional de Educação. Entre as diretrizes, destaca-se, sobretudo, aquela
que determina que a política educacional nas prisões é “atribuição do órgão responsável
pela educação nos Estados e no Distrito Federal (Secretaria de Educação ou órgão equivalente)” e também aquela que estabelece que a oferta de educação para jovens e adultos
em estabelecimentos penais:
será financiada com as fontes de recursos públicos vinculados à manutenção e desenvolvimento do ensino, entre as quais o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), destinados
à modalidade de Educação de Jovens e Adultos e, de forma complementar, com outras
fontes estaduais e federais.
Em maio deste ano, diversas entidades da sociedade civil organizada1 protocolaram
representação junto à Procuradoria Geral da República, requerendo a instauração de
procedimento investigativo nacional com o fito de acompanhar a implementação e o
cumprimento das diretrizes em todos os estados.
Outro importante passo para a valorização do ensino nos presídios foi a aprovação
da Lei de remição por estudos (Lei nº 12.433/2011), que alterou a Lei de Execução Penal,
para estabelecer a remição de um dia de pena para cada 12 horas de estudo.
1
Assinaram a representação: Ação Educativa, Alfabetização Solidária, Conectas Direitos Humanos, Associação Juízes para a Democracia, Ministério Público Democrático, Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Instituto Terra,
Trabalho e Cidadania, Pastoral Carcerária e Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação - Plataforma
DhESCA Brasil.
408
São passos importantíssimos para a formação e a efetivação de uma verdadeira política pública de educação no sistema carcerário brasileiro. Todavia, as condições
precárias de ensino que assolam as unidades prisionais do país requerem investimentos
contínuos para que sejam revertidas. O caminho, como se vê, é longo e reclama enorme
esforço político para ser trilhado.
1.2.2. Direito à Saúde
A superlotação do sistema prisional já é, em si, fator de vulnerabilidade da saúde
física e psíquica da população carcerária (e também dos agentes penitenciários).
Como bem se afirma no documento produzido pelo Ministério da Saúde (2010): “a insalubridade e a superlotação são estruturais desse sistema, transformando as unidades
prisionais em espaços de confinamento especialmente propícios à difusão de doenças
infecto contagiosas”.
Com a finalidade de enfrentar essa questão, foi instituído, em 2003, o “Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário” (Portaria Interministerial nº 1777 de 09 de
setembro de 2003), que prevê a inclusão da população carcerária no Sistema Único de
Saúde (SUS). Nele, foi criado o “Incentivo para Atenção à Saúde no Sistema Penitenciário”, financiado pelo Ministério da Saúde (70%) e pelo Ministério da justiça (30%); financiamento que é condicionado à criação de uma “equipe técnica mínima” em unidades
prisionais com mais de 100 presos, para a atenção de até 500 pessoas presas.
A “equipe técnica mínima” deve ser formada pelos seguintes profissionais, com
jornada semanal de 20 horas: médico; enfermeiro; dentista; psicólogo; assistente social;
auxiliar de enfermagem; e auxiliar de consultório dentário.
Fossem as “equipes mínimas” efetivamente implementadas, decerto teríamos muito menos mazelas relacionadas à saúde no sistema carcerário. No entanto, apesar de
todos os estados terem aderido ao Plano Nacional, o fato é que a efetiva implementação
das “equipes mínimas” ainda é demasiado tímida (até 2009, apenas 215 equipes foram
formadas em todo o Brasil, com aproveitamento de somente 2% dos recursos federais
disponíveis).
1.3. Tortura
A prática da tortura remonta ao início da história do Brasil e, desafortunadamente,
persiste até os dias atuais. Não perdura à toa: em toda nossa história, jamais houve efetiva verificação e responsabilização pelos crimes de tortura perpetrados. A influência mais
409
próxima, sem dúvidas, foi o próprio regime militar, cujos agentes torturaram e mataram
presos políticos sem jamais serem responsabilizados por isso. A despeito de a Corte Interamericana ter decidido pela invalidade da Lei de Anistia, o Brasil segue inerte.
Como consectário lógico da supressão da verdade e da não responsabilização dos
agentes públicos, a subcultura da tortura segue a permear a atuação de muitos dos agentes policiais e penitenciários, que contam com a complacência do Ministério Público
e do Judiciário, para se livrarem impunes (vide, a propósito, “Relatório Sobre Tortura;
uma experiência de monitoramento dos locais de detenção para prevenção da tortura”,
da Pastoral Carcerária).
Para além da devida responsabilização dos agentes públicos (de hoje e de ontem),
importa também que o Brasil cumpra com o previsto no Protocolo Facultativo à Convenção da ONU contra a Tortura (ratificado em 2007) e crie o Mecanismo Nacional
de Prevenção à Tortura, com a garantia da autonomia e do processo de seleção público
e participativo.
É bom assinalar aqui que a já mencionada superlotação não apenas potencializa o
ambiente de pressão propício à prática da tortura, como também se consubstancia, ela
própria, em mecanismo da tortura, na medida em que denota violência causadora de
intenso sofrimento mental.
2. Gestão diferencial das ilegalidades
2.1. A clientela do sistema carcerário brasileiro
Os números do sistema carcerário chancelam o que se afirmou anteriormente: de um
lado, no entremeio de centenas de tipos penais que compõem a legislação brasileira, cerca
de 65% da população carcerária está presa por crime contra o patrimônio ou por crime de
tráfico de entorpecentes; de outro lado, a população carcerária é formada por uma maioria
esmagadora de pessoas pobres, jovens e negras (em continuidade à exclusão histórica de
que são vitimas no Brasil).
Esses números apontam para um sistema altamente seletivo, no qual os crimes cometidos pelas camadas sociais mais abastadas são ignorados, ao passo que aqueles mais
diretamente ligados às camadas menos abastadas são perseguidos com rigor.
Deve-se isso ao fato, constatado por Michael Foucault, de que o sistema penal é
instrumentalizado para a gestão diferencial da criminalidade e não para a supressão da
410
criminalidade. O combate prioritário aos crimes contra o patrimônio e ao tráfico de drogas
está endereçado justamente àqueles que não conseguem exercer a “cidadania do consumo”.
O mesmo Foucault apontou precisamente: “a justiça está a serviço da polícia”. No
Brasil, a assertiva serve como uma luva: são centenas e centenas de acusações por tráfico
de drogas lastreadas exclusivamente na palavra dos policiais; são centenas e centenas de
casos de cometimento de crime contra a ordem econômica que sequer tangenciam o
aparato policial. Nosso sistema penal tem a mira voltada para as periferias.
2.2. A ditadura das prisões cautelares
Outro aspecto digno de ser pontuado é a ditadura das prisões cautelares no Brasil:
são 215.229 pessoas presas cautelarmente, o que corresponde a 44% de toda a população
carcerária! Em alguns estados a situação é ainda mais estarrecedora: Piauí tem 74% de
sua população carcerária constituída por presos cautelares; em Minas Gerais, esse número corresponde a 65%.
A julgar pelos resultados dos mutirões carcerários promovidos pelo Conselho Nacional de Justiça, pode-se afirmar que boa parte dessas prisões são ilegais. Nesse sentido, é
de se conferir trecho do relatório divulgado em novembro de 2010: “à guisa de ilustração,
o mutirão já identificou processos com quatorze anos sem julgamento em primeiro grau
de jurisdição e outros com três anos sem denúncia do Ministério Público” (DMF, 2010).
Frente ao princípio constitucional da presunção de inocência, inevitável abominar
essa primazia das prisões cautelares, que deveriam ser excepcionais (a rigor, sequer deveriam existir), mas acabam campeando as unidades prisionais e agravando a superlotação.
A utilização desmedida das prisões cautelares está calcada em um ordenamento
jurídico que ainda permite prender cautelarmente alguém com fundamento na “ordem
pública” ou na “ordem econômica”.
Zaffaroni (2007) caracteriza essas prisões cautelares utilizadas arbitrariamente
como ”puros confinamentos de contenção, prolongados ou indefinidos”. No âmbito de
um sistema penal extremamente seletivo, faz-se da prisão cautelar a panaceia para combater os pobres (não a pobreza).
A promulgação da Lei nº 12.403/2011 foi uma ótima conquista, vez que diversificou o número de medidas cautelares, e relegou a prisão ao lugar que sempre deveria
ter ocupado: como última opção do sistema penal. No entanto, ainda subsistem os argumentos da ordem pública e da ordem econômica acompanhados da mentalidade
atrasada que deles se fartam para aprisionar milhares de pessoas ainda não sentenciadas.
411
3. Caminhos possíveis para um brasil sem cárceres
3.1. Minimalismo penal
De acordo com Ferrajoli (2010), direito penal mínimo é aquele “condicionado e
limitado ao máximo” e que “corresponde não apenas ao grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade
e de certeza”. A adoção do direito penal mínimo, portanto, implica em estabelecer um
caminho bastante estreito para o sistema penal, de maneira tal que ele não transborde
as limitações constitucionais e legais cuja observância poderia lhe emprestar alguma
legitimidade (ainda que relativa).
Esse caminho pode ser desdobrado, resumidamente, em três áreas: direito penal,
processo penal e execução penal. No âmbito de cada área, possível indicar rapidamente
algumas propostas de modificação legal conducentes a um direito penal mínimo:
Em relação ao direito penal, é necessário uma reforma que se oponha à inflação
legislativa atual. Crimes de menor potencial ofensivo, crimes punidos com detenção,
crimes de ação penal de iniciativa privada, crimes de perigo abstrato e boa parte dos
crimes desprovidos de violência ou grave ameaça deveriam ser abolidos. Igualmente
importante seria afastar os tipos penais abertos (como, por exemplo, o crime de apologia, artigo 287; o crime de desobediência, artigo 330; e o crime de desacato, artigo 331),
permissivos que são de toda sorte de arbítrio policial e judicial. Ademais, deveriam ser
ampliadas as hipóteses de imposição de penas restritivas de direitos e reduzidos os limites máximos das penas privativas de liberdade.
Ainda no âmbito do Direito Penal, é mais do que imperativa a revisão da atual
política de combate às drogas (bélica, encarceradora e, consequentemente, onerosa),
pautando-se cada vez mais no debate sobre a descriminalização. No modelo atual, não
apenas se malogra no objetivo de combater a utilização dos entorpecentes, como também se agrava o problema, na medida em que as pessoas presas por acusação de tráfico,
em regra, são aquelas que estão na base da hierarquia do comércio de entorpecentes: os
pobres, residentes na periferia, que não raras vezes traficam para sustentar o próprio vício.
Com relação ao Processo Penal, importa aperfeiçoar o Projeto de Lei do Senado
(PLS) nº 156/2009 (anteprojeto do novo Código de Processo Penal) para o fim de fortalecer o princípio acusatório e de restringir a prisão preventiva. O princípio acusatório
deve ser materializado com a exclusão de qualquer dispositivo que impute ao juiz a iniciativa probatória. A restrição da prisão preventiva, por sua vez, deve ser concretizada:
a) pela exclusão das hipóteses de sua decretação “como garantia da ordem pública ou da
ordem econômica”, “em face da extrema gravidade do fato” e “diante da prática reiterada
de crimes pelo mesmo autor” (as duas últimas hipóteses são retrocessos inclusos no PLS
nº 156/2009); b) pela ampliação dos casos em que sua decretação é vedada. Além disso, é
412
fundamental que o prazo da prisão preventiva seja substancialmente reduzido (no atual
anteprojeto, a prisão preventiva poderá perdurar por até 720 dias).
Por sua vez, a Lei de Execução Penal também reclama reforma, especialmente para
conformá-la à Constituição da República. Nesse sentido, alguns aspectos deveriam ser
considerados: a) jurisdicionalização de todos os procedimentos relativos ao cumprimento de pena; b) regulamentação da revista de visitas, com vedação expressa às chamadas “revistas vexatórias”; c) ampliação das hipóteses de aplicação de prisão domiciliar,
tornando-a instrumento de combate ao desrespeito aos direitos das pessoas presas; d)
revogação do regime disciplinar diferenciado; e) redução dos lapsos temporais; f) exclusão do (arbitrário) requisito subjetivo (“bom comportamento carcerário”) para a
progressão de regime e para a concessão do livramento condicional; e g) fortalecimento
do poder judicial de interdição de unidades prisionais.
Obviamente, as sugestões acima são apenas algumas entre diversas outras imprescindíveis a um sistema penal efetivamente pautado pelo direito penal mínimo e tendente
a se extirpar. O tema mereceria aprofundamento registrado em muito mais páginas do
que comporta o presente artigo. É fundamental, todavia, anotar: não precisamos de mais
unidades prisionais; precisamos esvaziar as que existem por meio da redução do Direito
Penal e do respeito estrito aos direitos das pessoas encarceradas.
3.2. Em busca de outros meios de resolução de conflitos: a justiça restaurativa
O minimalismo penal deve ser considerado como o caminho a ser percorrido
rumo a um Brasil sem cárceres. Por essa razão, não se esgota em si e reclama a proposição de alternativas outras que não a Justiça Retributiva inexorável ao atual sistema penal.
Cuida-se, basicamente, de superar a ideologia do castigo.
Segundo Queiroz (2008), o direito penal, “longe de resolver conflitos, atuando de
modo contraproducente, acaba por agravá-los e criar outros novos, pois disponibiliza
uma resposta que não interessa a ninguém: vítima, sociedade e réu”. A premissa para
superar os caminhos do direito penal (e do cárcere) é justamente a superação da sua hegemonia, que encerra, segundo o próprio autor, “uma resposta maquinal a um problema
demasiado humano”.
Assim, em conjugação com a redução do direito penal, interessa construir alternativas que sejam realmente eficazes à resolução de conflitos.
A principal alternativa que hoje se apresenta ao modelo retributivo é a chamada
“Justiça Restaurativa”, que trabalha na perspectiva de humanizar os conflitos no lugar de
reificá-los. Inspirada na filosofia de populações autóctones que primam pelo interesse
coletivo e pela coesão social, a Justiça Restaurativa se assenta na ideia de “reapropriação
dos conflitos em favor das partes envolvidas” (expressão de Nils Christie) e tem, segundo
Joffily (2011), quatro características básicas: 1) alto grau de inclusão dos interessados na
413
resolução do conflito; 2) expansão das metas para além da simples reparação do dano
específico, buscando também a reintegração dos infratores de volta à comunidade, abordando problemas estruturais e desigualdades sociais que causam exemplos de dominação e a eclosão de conflitos, ou visando restituir o poder à própria comunidade, para
aumentar sua capacidade de gerenciamento do conflito e construção da paz; 3) práticas
restaurativas baseadas nas comunidades, em que a responsabilidade, os recursos e o controle dos serviços são investidos na comunidade local e em seus cidadãos; 4) práticas
restaurativas norteadas pelas noções de “diálogo respeitoso” e de “não dominação”.
A Justiça Restaurativa parte do pressuposto de que não há uma única resposta a
todos os conflitos e de que a resposta a cada um deles deve ser construída pelos seus efetivos protagonistas, buscando o ressarcimento da vítima e a restauração da paz jurídica.
Há algumas experiências exitosas de aplicação da Justiça Restaurativa no campo da
Justiça da Infância e Juventude, com destaque para as experiências de Porto Alegre, RS
e de São Caetano do Sul, SP. O desafio, agora, é ter a ousadia de ampliar o seu campo de
aplicação para as condutas taxadas como crime, substituindo, gradativamente, a Justiça
Retributiva, a qual, como se notou ao longo do presente artigo, apenas faz multiplicar
a violência, não resolve os conflitos e, pior, castiga apenas as pessoas mais vulneráveis.
3.3. Democratização do sistema judicial brasileiro
Os caminhos sugeridos serão insuficientes se não forem ladeados por uma mudança radical na mentalidade conservadora que ainda chafurda o Poder Judiciário. A tal fim,
indispensável promover a democratização da Justiça brasileira.
A reforma do Judiciário, consubstanciada na Emenda Constitucional nº 45/04, cravou a primeira cunha para iniciar a democratização do Sistema Judicial brasileiro, principalmente com a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que, conforme edição nº.
3 do Caderno “Direitos Humanos, Justiça e Participação Social” (da Organização de Direitos Humanos “Terra de Direitos”), “tem a função constitucional de governar e administrar
uma importante política pública pouco notada na sociedade: a política pública de justiça”.
Mas é preciso avançar muito ainda. A escolha dos Conselheiros do CNJ é realizada
exclusivamente pela Presidência da República e pelo Congresso Nacional, tal como ocorre
na escolha dos Ministros dos Tribunais Superiores e do Procurador Geral da República.
Conscientes da necessidade de democratizar o Judiciário, algumas entidades de direitos humanos (Ação Educativa, Conectas, Justiça Global, entre outras) vêm trabalhando
propostas para que os órgãos citados incorporem mecanismos de participação social no
processo de seleção de seus membros, com o estabelecimento do compromisso com os
direitos humanos como critério objetivo e qualitativo de escolha e a necessidade de realização de consultas e audiências públicas prévias à escolha. A participação popular é primordial para que os membros escolhidos tenham real vinculação com os anseios sociais.
414
Para além de efetivar a participação popular na escolha de Conselheiros do CNJ, de
Ministros dos Tribunais Superiores, do Procurador Geral da República, a própria gestão do Judiciário deve ser objeto de interação regular com a sociedade. Exemplos dessa
interação são encontrados na Defensoria Pública de São Paulo, que conta com uma Ouvidoria externa (com membros externos aos quadros da carreira) e promove, a cada dois
anos, sua Conferência Estadual, por meio da qual a da sociedade civil propõem e votam
nas diretrizes que comporão o Plano de Atuação da instituição.
A criação de ouvidorias externas para todos os órgãos públicos que compõem o
Poder Judiciário (e também para o sistema penitenciário, claro) já seria um grande avanço no aludido processo de democratização. A experiência de São Paulo demonstra que
a Ouvidoria, capitaneada por membro externo à instituição, deixa de ser simples órgão
protocolar de recebimento de reclamações para se converter em importante mecanismo
de efetiva interlocução entre a sociedade e a instituição e de proposição de políticas institucionais com intensa participação popular.
Em tempos de retomada dos espaços públicos ao redor do mundo (vide as Revoluções Árabes, o “Ocupar Wall Street”, o “Acampa Sampa”, etc.), o anseio pela participação
popular direta é cada vez mais manifesto. No âmbito do sistema penal, é certo que a
crescente participação popular será essencial para frear a política de encarceramento em
massa e o seletivismo que criminaliza a pobreza.
Conclusão
O tema aqui proposto dialoga e se alinha com todas as demais lutas sociais, na medida em que, como se asseverou, o sistema carcerário tem servido de mecanismo de gestão
justamente daquelas pessoas que mais têm seus direitos fundamentais violados.
O recrudescimento frenético da população carcerária expõe uma política de encarceramento em massa endereçada, como frisado, àquelas pessoas que não alcançam a
“cidadania do consumo” e que, vítimas históricas da marginalização e dos “moinhos de
gastar gente”, acabam lançadas a celas superlotadas e sem qualquer perspectiva de acessar
direitos básicos, como educação e saúde.
É preciso repetir: não precisamos de mais unidades prisionais; precisamos esvaziar
as que existem por meio da redução do Direito Penal e do respeito estrito aos direitos das
pessoas encarceradas.
Mudanças legislativas que reduzam o direito penal (em consonância com o princípio da
intervenção mínima) e o conforme com a Constituição da República, combinadas com a pulverização da Justiça Restaurativa, tendem a alterar esse quadro, mas requerem o cumprimento
de uma etapa fundamental: a democratização do Sistema Judiciário brasileiro. O cumprimento
dessa etapa, com a construção de mecanismos de efetiva participação popular, nos conduzirá a
um Judiciário a serviço do povo (e não da polícia). Quiçá aí, finalmente, possamos nos livrar de
vez dos diversos “moinhos de gastar gente” que permearam a nossa história.
415
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Sites consultados:
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA: <www.cnj.jus.br>. Acesso em: 25 out. 2011
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA: <www.mj.gov.br>. Acesso em: 25 out. 2011.
PRISION STUDIES: <www.prisonstudies.org>. Acesso em: 25 out. 2011.
MINISTÉRIO DA SAÚDE: <www.saude.gov.br>. Acesso em: 25 out. 2011.
YOUTUBE: <www.youtube.com/watch?v=NqKLzFELxIU&feature=share>. Acesso em:
25 out. 2011.
416
DIREITOS HUMANOS
E POVOS TRADICIONAIS DO BRASIL
Carlos Alberto Dayrell*
João Batista de Almeida Costa**
Aderval Costa Filho***
Este artigo se refere ao monitoramento da situação dos direitos humanos enfatizando as populações tradicionais do Brasil. Um enfoque importante neste momento
em que o Brasil se apresenta ao mundo menos subordinado aos ditames oriundos do
denominado primeiro mundo.
Entretanto, a lógica que subjaz a política econômica e os programas desenvolvimentistas brasileiros estão assentadas e subordinadas a um modelo no qual o crescimento econômico e suas dinâmicas vêm tensionando e colocando em xeque modos de vida
de milhares de comunidades de povos tradicionais.
O conceito de populações tradicionais é relativamente recente, tanto na esfera governamental, quanto na esfera acadêmica ou social. Segundo Costa Filho (MDS, s/d), a
expressão
comunidades ou populações tradicionais surgiu no seio da problemática ambiental, no
contexto da criação das unidades de conservação (UCs) [áreas protegidas pelo Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama)], para dar conta
da questão das comunidades tradicionalmente residentes nestas áreas: Povos Indígenas,
Comunidades Remanescentes de Quilombos, Extrativistas, Pescadores, dentre outras.
A discussão do conceito sociológico populações tradicionais requer uma série de
reflexões, o que não será tratado neste artigo. No entanto, para orientar o levantamento
da situação dos direitos humanos das populações tradicionais e os casos a serem aqui
tratados, faremos alguns breves apontamentos.
* Agrônomo, técnico de campo e pesquisador do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAANM).
** Antropólogo, professor e pesquisador da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).
*** Antropólogo, professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
417
Segundo Barreto Filho (2001), a emergência do conceito populações tradicionais
está vinculada ao aparecimento de comunidades diferenciadas como sujeitos políticos
no campo do conservacionismo, categoria cunhada com o objetivo de demarcar a existência de grupos sociais detentores de características positivas para a conservação da
natureza. De outra forma, Little (2005) enfatiza as reivindicações territoriais de grupos
sociais fundiariamente diferenciados frente ao Estado brasileiro, porque detentores de
territórios coletivos articulados com a apropriação familiar.1
Estes dois antropólogos discutem por um lado a diversidade sociocultural do Brasil
que se expressa, entre outros aspectos, através da pluralidade de formas de uso e apropriação do ambiente ou de territorialidades específicas que tendem a ser reunidas sob a
denominação de povos tradicionais.
No âmbito deste relatório utilizaremos, no lugar de Populações, o termo Povos Tradicionais. Entre especialistas que vêm refletindo sobre o assunto, um relativo consenso
foi estabelecido na construção de políticas específicas que passaram a ser construídas a
partir de então:
Em verdade o termo “populações”, denotando certo agastamento, foi substituído por “comunidades”, que aparece revestido de uma conotação política inspirada nas ações partidárias e de entidades confessionais, referidas à noção de “base”, e de uma dinâmica de mobilização, aproximando-se por este viés da categoria “povos” (ALMEIDA, 2008).
Uma alteridade que se coloca no momento em que o Brasil, com a Constituição de
1988, passa a reconhecer a diversidade cultural e civilizacional brasileira como constituinte e constitutiva da nossa nacionalidade.
1. Avançando na noção dos direitos dos povos tradicionais
Povos tradicionais são comunidades em grande parte rurais, e historicamente ocuparam áreas economicamente marginais e/ou construíram para si mesmas um “isolamento” em grau variável, inscrevendo no espaço onde habitam suas especificidades
culturais, sociais, políticas e econômicas, transformando as terras habitadas em um
território coletivo.
No estudo de uma comunidade há que considerar, no escopo da antropologia, algumas questões imbricadas entre si que propiciam fazer uma varredura em suas vidas
sociais. Em primeiro lugar, o foco deve ser colocado na questão da autodefinição identitária de cada um desses grupos. Em termos identitários todo agrupamento humano
1
Historicamente essa característica fundiária foi tratada nas Ciências Sociais como sistema de posse comunal, conforme discutido por Almeida (1987).
418
é definido a partir de si mesmo, mas, também, em contraposição a outros segmentos e
grupos sociais, utilizando termos para se referirem ao seu próprio grupo e aos outros
grupos com quem mantenham relações. Assim, a identidade coletiva é caracterizada
por grupos circunvizinhos a partir de aspectos culturais demarcadores de diferenças
intergrupais.
Uma segunda questão é aquela vinculada à organização estruturante da vida social
de cada uma dessas comunidades. Ela se alicerça na família, que é a base da organização
comunitária que tem sido compreendida e afirmada como uma coligação de famílias.
Cada uma delas, como unidade doméstica, organiza as relações sociais que viabilizam a
historicidade da comunidade ou do grupo social.
Outra questão, bastante complexa, diz respeito ao espaço construído e que dá sentido a estes povos. A reprodução social não está desvinculada do território coletivo que é
uma construção nos moldes da tradição de cada grupo social ou comunidade. É a partir
daí que emerge uma dimensão simbólica, em que os acontecimentos, ou fatos históricos,
propiciam manter viva a memória do grupo e demarcar os limites físicos do espaço social de reprodução de cada população tradicional.
O espaço físico ao ser transformado em um território porque os grupos nele inscrevem acontecimentos e significações sociais, é apreendido e vivenciado a partir dos
sistemas e conhecimentos que cada grupo específico constrói em sua historicidade. E
as singularidades são intimamente conectadas ao lugar ou a um ecossistema específico:
Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga, Pantanal e etc. Conexão que define as formas como
o espaço é apropriado e como se pode realizar a construção do mesmo como território.
Essas formas de apropriação e de construção são conformadas para garantir a reprodução material e social de cada grupo social.
Nos processos de apropriação do espaço e em sua construção como território, diversas condutas propiciam a atualização dos vínculos sociais, da noção de pertencimento e da reprodução material e social de cada grupo2, sejam formas de demarcação e de
defesa3 , sejam critérios de exclusão e de inclusão no grupo.4 Tais constituem o que vem
sendo considerado, na teoria social, como estratégias de territorialidade.
Para o entendimento das comunidades rurais como povos tradicionais, outra questão crucial é aquela vinculada aos sistemas produtivos construídos e dinamizados por
cada uma delas. Este é construído a partir do princípio de reciprocidade, a partir do qual
sua finalidade prioritária, a reprodução familiar, é consolidada. No interior do grupo o
trabalho e a produção circulam por meio de trocas e, secundariamente, dependendo do
grupo social, uma maior ou menor comercialização dos excedentes para o exterior. O
sistema de produção é um veículo que permite articular a coesão social entre os diversos
membros do grupo.
2
3
4
Nesse sentido vide Fernandes (2006) estudando as populações rurais do município de Montes Claros.
Nesse sentido vide Luz de Oliveira (2005) estudando os vazanteiros do rio São Francisco no norte de Minas.
Nesse sentido vide Oliveira (2004) estudando os Xakriabá e a organização política da etnicidade.
419
Estruturado a partir de conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos, o
sistema de produção é organizado por meio de estratégias de uso e manejo dos recursos
naturais. Ao mesmo tempo em que a produção é sistêmica e organizada pelo imbricamento de múltiplos espaços produtivos diferenciados e pela existência de múltiplas
atividades produtivas, tais como a agricultura policultora, a pecuária, o extrativismo, a
caça, a pesca.
As comunidades consideradas como povos tradicionais geralmente fazem uso de
tecnologias de baixo impacto ambiental, expressando a existência de relação de interdependência de seus membros com a natureza, ao mesmo tempo em que são estabelecidos
vínculos territoriais, e propiciada a reprodução material e social do grupo ou comunidade.
São comunidades ou grupos sociais que detêm o domínio sobre o processo de produção e comercialização dos produtos beneficiados pela família e, na maioria das vezes,
com a colaboração dos membros da comunidade.
O trabalho produtivo é desenvolvido sob reduzida divisão técnica e social do trabalho. Ao mesmo tempo em que são organizadas estratégias diferenciadas, temporalmente,
em decorrência de processos internos a cada família, como a sua reprodução material e
social, bem como de processos externos, vinculados a outras famílias ou ao grupo social,
como um todo. Nesta perspectiva inclui-se a realização de festas coletivas em que a família se coloca no processo como a responsável pela produção e realização das festividades.
Como ser festeiro é parte de uma complexa disputa ritual, a família responsável por uma
festa coletiva constrói estratégias de produção que viabilizem o máximo de produtos
necessários à alimentação dos membros do grupo ou da comunidade.
A economia dessas populações é construída pela sobreposição dos calendários religioso e agrícola, ao mesmo tempo em que simbologias, mitos e rituais se articulam a
saberes e estratégias tradicionais como a caça, a pesca e as atividades agroextrativistas.
Possuindo racionalidade própria, considerada uma economia de reciprocidade, ela
possui como princípio, lógica, ritmo e finalidade última a produção do homem e o estabelecimento de vínculos sociais.5
Uma questão a ser considerada são as manifestações culturais. Estas são transmitidas oralmente a partir dos conhecimentos sociais, econômicos, religiosos, políticos e
ambientais construídos na historicidade de cada comunidade específica. Estes se expressam por meio de linguagem que as comunidades de outros grupos que os circundem, ao
mesmo tempo em que as festas, as rezas, as comidas, o modo de fazer as casas, as roupas
e etc, demarcam as diferenças com outros grupos sociais ou comunidades.
Em 2007, através do Decreto n. 6040, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, a noção do que sejam
ficou assim formulada:
5
Para maior compreensão sobre economia da reciprocidade vide Mauss (1974), Godbout (1999) e Godelier (2001) e
sobre racionalidades econômicas diferenciadas vide Bourdieu (2004).
420
Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas
próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como
condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
Em resumo, os aspectos que referenciam os povos tradicionais são cinco questões
que se imbricam, onde também estão assentados os direitos que lhes são inerentes: Identidade, Organização Social, Território, Sistema de Produção ou Economia e Cultura. É
em torno destes eixos referenciais, relacionados com suas tradições culturais, que devemos verificar o contexto dos direitos humanos dos povos tradicionais no Brasil, ou seja,
em que medida os direitos culturais destes povos subsistirem estão sendo negados, estão
sendo violados.
2. Contexto atual dos povos e comunidades tradicionais
No Brasil, desde a Amazônia, passando pelas extensas áreas de Cerrado, Pantanal,
Caatinga, Matas Secas, Campos Ruprestes, Mata Atlântica, até os Pampas Gaúchos e por
toda costa brasileira, há territórios em disputa. De um lado pela expansão de um modelo de sociedade urbana / agrária / agrícola nos moldes empresariais e monoculturais,
cujo impacto sócio ambiental pode ser observado não só no acentuado êxodo, com suas
sequelas de perda de diversidade cultural e, ainda, de uma extrema concentração fundiária e de riqueza como também pela degradação de suas condições ecológicas. De outro
lado pela emergência de lutas que colocam em cena na paisagem brasileira populações
que expressam uma imensa diversidade sociocultural e ambiental, passando a se colocar
como sujeitos de direitos (PORTO GONÇALVES, 2008).6
Há uma dimensão identitária indissociável da base territorial, a noção de pertencimento a um lugar, condutas de territorialidade relacionadas aos critérios de inclusão
e exclusão (os de dentro e os de fora), à defesa e regularização, a identificação com um
ecossistema ou bioma específico (Cerrado; Mata Atlântica; Caatinga; Pantanal; etc.).
Também temos que considerar os povos e comunidades cujos territórios foram expropriados e se refugiaram no plano da memória coletiva.
Há também os povos nômades e transumantes, cuja territorialidade está associada
a rotas migratórias e espaços sazonalmente ocupados, sejam rurais ou urbanos. Além
das comunidades que foram envolvidas pela cidade e sofrem com a especulação imobiliária dos seus territórios tradicionais.
6
Ver relato da trajetória dos atuais Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil, uma longa historicidade de dominação, descaso e exclusão, mas também, de busca e de afirmação da condição humana pela (re)conquista da liberdade,
da autonomia e da humanidade própria pelo reconhecimento, em sim, de cada singularidade e identidade coletivas
(COSTA, 2010).
421
Segundo estimativas do antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, os povos
e comunidades tradicionais somam aproximadamente 25 milhões de pessoas e ocupam
aproximadamente ¼ do território nacional, não obstante parte considerável desse montante corresponda a terras ainda não regularizadas, muitas invadidas e degradadas parcial ou integralmente. Estamos lidando, portanto, com um contingente populacional e
uma dimensão territorial que são extremamente significativas.
Esses territórios tradicionalmente ocupados e essa parcela da população brasileira
historicamente excluída e negligenciada pelas políticas de Estado, comumente refletem
indicadores sociais que não permitem avanços. Temos aí verdadeiros bolsões de excluídos, onde se insere o recorte racial e étnico, geralmente em municípios com alto grau
de vulnerabilidade, com baixo IDH, altas taxas de morbidade e mortalidade infantil e
analfabetismo.
3. A emergência da responsabilidade: uma primeira aproximação
Embora tão antigo quanto a formação da nação brasileira, foi apenas em 1988, com
a Promulgação da Constituição Federal, que o Brasil passou a reconhecer a diversidade
cultural e civilizatória brasileira como constituinte e constitutiva da nossa nacionalidade. Os artigos 215 e 216 da Constituição resguardam o direito de manutenção de sua
própria cultura, cabendo ao Estado a proteção das “manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (Artigo 215 da Constituição Federal do Brasil). Constituição que em seu
artigo 216 define o que constitui o patrimônio cultural brasileiro: os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência
à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, quais sejam:
I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas,
artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor
histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (Artigo 216 da Constituição Federal do Brasil).
Onde a responsabilidade pela proteção do patrimônio cultural brasileiro cabe ao
poder público, em colaboração com a comunidade, por meio de inventários, registros,
vigilância, tombamento, desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação (§ 1º do Artigo 216 da Constituição Federal do Brasil). Onde, no mesmo artigo,
em seu parágrafo 5º, já deixa tombados todos os documentos e os sítios detentores de
reminiscências históricas dos antigos quilombos (§ 5º do Artigo 216 da Constituição
Federal do Brasil, grifo nosso).
422
No entanto, foi apenas em junho de 2002, evidenciando a força das reivindicações
dos movimentos sociais e ressaltando o caráter aplicativo do conceito de “terras tradicionalmente ocupadas”, que o governo brasileiro ratificou a Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) por meio do Decreto Legislativo nº 143, assinado pelo
presidente do Senado Federal. O Governo brasileiro assinou esta convenção em 25 de
julho de 2003, e o Presidente da República ordenou o seu cumprimento por meio do Decreto 5.051, de 19 de abril de 2004. Esta Convenção, de junho de 1989, reconhece como
critério fundamental os elementos de auto identificação, reforçando, em certa medida, a
lógica de atuação dos movimentos sociais orientados principalmente por fatores étnicos
e pelo advento de novas identidades coletivas.
Nela emergem todos os sujeitos de direitos que são constituintes e constitutivos
de nossa sociedade. Outras humanidades puderam perceber-se como legitimadas na
ordem social brasileira e passaram a ser vistas como partícipes na construção de nossa
nacionalidade (COSTA, 2011).
Em 2005, dá-se início à primeira tentativa de responder com ações públicas, a longa trajetória de invisibilidade e de negação com que foi mantida a imensa diversidade
cultural formadora da nacionalidade brasileira. Finalmente, em 2007, foi instituído pelo
Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT). Na opinião dos agentes
governamentais envolvidos neste processo, a criação da Política Nacional cria as condições de estabelecimento, pelo Estado, de um pacto com a diversidade social brasileira:
Fundamental não somente por propiciar a inclusão política e social dos povos e comunidades tradicionais, como também por estabelecer um pacto entre o poder público e esses
grupos, que inclui obrigações de parte a parte e um comprometimento maior do Estado ao
assumir a diversidade no trato com a realidade social brasileira (MMA, 2011).
No entanto, se as condições do estabelecimento do pacto foram criadas, e se avançou no marco legal que reconhece e prioriza políticas específicas de inclusão a eles destinadas, na contramão das políticas inclusivas, o que vem impactando a vida das populações
tradicionais e que pode também ser referido como verdadeiras políticas de desinclusão,
são exatamente os programas e políticas governamentais que estimulam o crescimento
econômico e abrem portas para que dinâmicas econômicas promovidas pelos grandes
empreendimentos penetrem e desestruturem, em territórios tradicionais, sistemas produtivos e dinâmicas econômicas nativas.
Empreendimentos que possuem CNPJ, endereço fixo e que são contemplados com
recursos públicos e com financiamentos nacionais e também internacionais. Como a querer varrer, de vez e pela força e intensidade de interesses que estão por traz, os remanescentes culturais que em todos os recantos do Brasil resistem ao avanço do capital. Violando
direitos de milhares de comunidades que são portadoras de uma cultura própria, uma
maneira diferenciada de ver e agir no mundo. Que possuem uma economia que considera
outros valores que não o lucro ou a exploração do trabalho, um jeito diferente de usar
e de manejar os ambientes cujo lastro é o conhecimento construído na ancestralidade.
423
4. Afinal, onde está o conflito e quem são os principais atingidos?
Os dados mostram que as violações dos direitos humanos dos Povos Tradicionais
têm seus principais vetores nas políticas que viabilizam os grandes projetos de infraestrutura (hidrelétricas, portos, ferrovias, hidrovias, entre outros), agropecuários, florestais
e de mineração, criação de parques e de outras modalidades de unidades de conservação de proteção integral. Projetos que caminham juntos tentando açambarcar territórios
ainda não dominados pelo capital (ALMEIDA, 2008; PORTO GONÇALVES, 2008).
Ocupando muitas vezes áreas aparentemente vazias, de baixa densidade demográfica, estes projetos se inserem em territórios que na verdade são densamente ocupados
por uma diversidade de povos que, ao serem submetidos historicamente pela invisibilidade social, passam a sofrer os impactos socioambientais que dificilmente aparecem
na grande mídia, ou sequer são contabilizados. Quantos são? O que sabemos é que um
número muito aquém da realidade é registrado. E podemos dizer ainda mais: os casos
que aparecem escondem uma realidade de violação em escala muito mais ampliada e
que permanecem, em sua maioria, invisibilizados.
São sofrimentos que não aparecem para a sociedade e, quando surgem, a mídia
dificilmente consegue transmitir a densidade da tragédia a que são acometidos. Muitos casos poderiam ser citados. Como um dos exemplos emblemáticos, pode-se referir o caso
do genocídio que vem sendo perpetrado contra índios da etnia Guarani Kaiowá em Mato
Grosso do Sul. Segundo Claudemir Mazucheli, uma gente que está sofrendo todo tipo de
discriminação e violência onde “as crianças morrem de desnutrição e os adultos, por não
vislumbrar saídas acabam se entregando à bebida ou se suicidam” (MAZUCHELI, 2011).
Figura 1: Índios Guarani-kaiowa e desenho de criança indígena da mesma etnia (MT).
Fotografia de Mazucheli - 2011
Ou o etnocídio perpetrado contra as comunidades tradicionais veredeiras que
vivem nos planaltos da margem esquerda do rio São Francisco que foram e continuam sendo deslocadas em função da criação de parques (um deles o PARNA GRANDE
424
SERTÃO VEREDAS), pela degradação de seus territórios tradicionais (como, por exemplo, os provocados pelas empresas do Grupo PLANTAR) ou pela política ambiental
que transformou seus territórios tradicionais como áreas de preservação permanente
(COSTA, 2011). Neste caso, massacres que são cometidos no território nacional, que
sequer são registrados pela grande mídia.
Para uma primeira aproximação desta realidade vamos tomar como referencia o
Mapa da Injustiça Ambiental e da Saúde no Brasil e a publicação da CPT Conflitos no Campo que há 26 anos coleta informações sobre os conflitos que ocorrem no campo brasileiro.
O Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil é resultado de um projeto desenvolvido em conjunto pela Fiocruz e pela Fase, com o apoio do
Departamento de Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde.
Publicação de grande importância, o Mapa nos apresenta uma amostra de 297 casos
distribuídos por todo o país que foram georreferenciados e analisados a partir de sua
relevância socioambiental e sanitária, seriedade e consistência das informações apresentadas (TLIS/ICICT/Fiocruz, 2011).
Tânia Pacheco, coordenadora executiva do Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no
Brasil, apresenta uma análise destes casos. Segundo ela, tomando por referencia a modalidade dos conflitos analisados, 227 casos são relacionados com Terra e Território, o que
corresponde a 76,5% dos casos, sendo que muitos dos demais envolvem também questões
ligadas a terra e território nas suas origens (PACHECO, 2011). E sua distribuição está em
praticamente todos os estados brasileiros, como pode ser visto na figura a seguir.
Figura 2: Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil - Fonte: Pacheco, 2011.
425
Com relação à identidade dos atingidos pelos conflitos, olhando o gráfico a seguir, vemos
que a liderança está relacionada com o direito indígena. Além dos povos indígenas, temos:
[...] entre os “mais votados”, os agricultores familiares, com 17%; os quilombolas, com 12%;
os pescadores artesanais, com 8%; os ribeirinhos, com 7%; e os caiçaras, com 2%. Na faixa
do 1%, temos as quebradeiras de coco babaçu, marisqueiras, catadores de caranguejos,
extrativistas, faxinalenses, geraizeiros, seringueiros, entre outros (PACHECO, 2011).
Ou seja, aproximadamente 48% dos conflitos estão relacionados diretamente com
povos e comunidades tradicionais. Se considerarmos que entre os denominados agricultores familiares pode haver (e com certeza há) comunidades tradicionais camponesas,
nos aproximamos então de 60% dos casos.
Figura 3: Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil Fonte: Pacheco, 2011.
Além disso, a liderança dos 18% de conflitos envolvendo povos indígenas se torna
muitíssimo mais expressiva se considerarmos que, segundo a FUNAI, há apenas cerca
de 660 mil índios no país, dos quais somente 460 mil vivem em aldeias (PACHECO,
2011). Ou seja, um quadro de extrema gravidade paira sobre os direitos humanos dos
povos tradicionais responsáveis pela formação da nação brasileira.
Finalmente, agora analisando que atividades vêm provocando os conflitos, Tânia
Pacheco nos informa quem são os responsáveis pela maioria dos conflitos como pode
ser visto no gráfico a seguir:
426
Figura 4: Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil - Fonte: Pacheco, 2011.
“Monoculturas”, responsáveis por 14% dos conflitos; a “Mineração, garimpo e siderurgia”,
com 7%; as “Madeireiras” e as “Barragens e hidrelétricas”, ambas com 6%; a “Indústria
química e de petróleo/gás”, 5%; a “Pesca industrial e carcinicultura”, 4%; e, todas com 3%, a
“Pecuária”, as “Hidrovias, rodovias e gasodutos” e os “Agrotóxicos.
Dos 12% dos conflitos classificados como “outros”, vale citar os principais: a “Indústria do
turismo”, com um total de 19% desses 12% dos casos; o “Setor imobiliário”, com 15%; as
“Carvoarias”, com 10%; os “Aterros sanitários e depósitos de resíduos, 8%”; e a “Infraestrutura portuária”, a grande ‘novidade’ atual, presente em 6%.
Se enveredarmos por outro caminho nessa estatística sem vencedores dignos, o dado que
mais choca é o fato de o primeiro lugar na lista dos “responsáveis” ser ocupado pela omissão e/ou conivência que as populações identificam nas “Ações das autoridades governamentais”, em 22% dos conflitos. Se a esse número somássemos os 8% das “Políticas
públicas e legislação ambiental” e os 4% de responsabilidade que as comunidades atribuem
à “Atuação do Judiciário e do Ministério Público”, teríamos um total de 34% dos casos
(PACHECO, 2011).
O que confirma as análises de Alfredo Wagner de Almeida e de Carlos Walter Porto
Gonçalves acerca dos principais vetores das violações dos direitos humanos dos povos
tradicionais assentados na ação dos grandes empreendimentos que se viabilizam pelas
políticas desenvolvimentistas (aproximadamente 39% dos casos) ou na omissão de proteção que envolvem os poderes executivo, legislativo e judiciário (34% dos casos).
427
Não é sem razão que o documento final do III Congresso Nacional da CPT realizado em Montes Claros, em maio de 2010, registra com emoção os relatos que até eles
chegaram, deste povo miúdo, cujas vozes raramente são ouvidas:
Estas experiências, cheias de vida e de esperança, se misturam com o clamor diante do
poder estarrecedor dos grandes projetos que, em nome de um equivocado crescimento,
assassinam lideranças, expulsam povos tradicionais de seus territórios e degradam o meio
ambiente com suas hidrelétricas, mineradoras, ferrovias, transposição de águas, irrigação
intensiva, monocultivos, desmatamentos. São projetos impostos com arrogância, de cima
para baixo, ludibriando a legislação agrária e ambiental. Revestem-se de um legalismo hipócrita com controle e direcionamento de audiências públicas (CPT, 2010).7
A Comissão Pastoral da Terra é uma das poucas organizações da sociedade brasileira que desde 1985, portanto há 26 anos, vem promovendo um esforço de coletar
informações sobre os conflitos que ocorrem cotidianamente no campo. Os casos são
registrados e anualmente são divulgados com a edição do Caderno de Conflitos no Campo. A última edição de 2010 nos apresenta, além dos dados, análises que podem consubstanciar o quadro da violação dos direitos a que os povos tradicionais do Brasil são
submetidos, ano após ano, sem que os seus clamores tenham sido ouvidos. Os números
dos conflitos da última década, de assassinatos, pessoas envolvidas e a área abrangida
podem ser vistos no quadro abaixo.
Ano
2002
925
2003
1.690
2004
1.801
2005
1.881
Assassinatos 29
532.772
Pessoas
Envolvidas
2.214.930
Hectares
43
73
39
38
451.277
1.190.578
975.987
1.021.355
3.066.436
3.831.405
5.069.399
11.487.072
Ano
2007
1.538
2008
1.170
2009
1.184
2010
1.186
28
28
26
34
795.341
502.390
628.009
559.401
8.420.083
6.568.755
15.116.590
13.312.343
Total nº de
Conflitos
Total nº de
Conflitos
2001
880
2006
1.657
Assassinatos 39
783.801
Pessoas
Envolvidas
5.051.348
Hectares
Tabela 1: Brasil: Quadro dos Conflitos no Campo - 2010 - Fonte: CPT 2011.
7
Documento Final do III Congresso Nacional da CPT “No clamor dos povos da terra, a memória e a resistência em
defesa da vida” Montes Claros, 21 de maio de 2010.
428
Gráfico 1: Brasil: Quadro dos Conflitos pela Terra (2001 a 2010) Fonte: CPT 2011.
O gráfico a seguir apresenta os números relacionados com os Conflitos de Terra no
mesmo período. A análise que Ariovaldo Umbelino de Oliveira nos mostra, quando se
adota o critério por região, ele nos informa que, na Amazônia Legal, o percentual de
concentração dos conflitos pela terra no Brasil se eleva para 65%, sendo que três estados
dessa região - Maranhão, Pará e Tocantins - concentram 46,2% do número dos conflitos.
Exatamente nas regiões que hoje concentram grandes projetos de infraestrutura e de desenvolvimento. Analisando mais adiante os sujeitos envolvidos nos conflitos, ele constata:
Entre os 638 conflitos de terra existentes em 2010, um total de 235 (36,8%) deles envolveram camponeses posseiros em suas diferentes denominações regionais: posseiros, ribeirinhos, fecho e fundo de pastos, seringueiros, castanheiros, vazanteiros, geraizeiros e pescadores. Em segundo lugar, ficaram os Sem-Terra com 185 conflitos (29%), e, a seguir, vieram
os assentados com 65 casos (10,2%). Os três principais e diferentes tipos de camponeses
comandaram a luta pela terra no ano de 2010. Depois deles, vêm os quilombolas com 79
conflitos (12,4%) e os índios com 33 (5,2%). Esses representam a luta pelo território. Ou
seja, duas dimensões diferentes têm os conflitos no campo em 2010: a luta pela terra dos
camponeses e a luta pelo território dos quilombolas e indígenas (OLIVEIRA, 2011).
Sem entrar no mérito da categorização elaborada,8 se considerarmos a lógica que
comanda a luta da maioria destes camponeses como sendo também pelo território, juntamente com os quilombolas e indígenas, temos um total de 54,4% dos conflitos relacionados com a luta dos povos tradicionais na proteção de seus territórios. Carlos Walter
Porto Gonçalves alerta:
8
A re-emergência da luta camponesa nos mostra que da mesma maneira que os quilombolas e indígenas, os ribeirinhos,
fundo de pastos, seringueiros, geraizeiros, entre outros são os grupos sociais que igualmente vem lutando, seja para
retomada, seja para proteção frente às ameaças e cobiças que pairam sobre seus territórios tradicionais (COSTA, 2011).
429
Nas 604 ocorrências em que foi possível identificar as categorias sociais que foram vítimas
das ações violentas, em 346 dos casos estiveram envolvidas populações que fazem uso tradicional das condições naturais de existência (terra, mar, lagos, rios, florestas, mangues e
campos) que, assim, podem ser agrupadas na categoria de Populações Tradicionais. Nessa
categoria, esclareça-se, reunimos um conjunto de práticas sociais em que a posse e usufruto
têm um forte componente comunitário e, de fato, está ausente o direito formal, ainda que a
legislação teoricamente reconheça seus direitos através de distintos estatutos que, todavia,
estão longe de serem levados à prática (PORTO GONÇALVES, 2011, p.111).
Analisando agora o número e origem das famílias envolvidas nos conflitos, Oliveira
(2011) nos mostra dados igualmente extremamente preocupantes (veja no Gráfico 2)
onde a curva do crescimento do número de famílias denominadas de posseiros (em sua
maioria comunidades tradicionais) e quilombolas estão em curva ascendente.
Gráfico 2: Brasil: Número de famílias em conflitos pela terra ou território - Fonte CPT 2011.
Onde os principais sujeitos que estão por trás, encurralando ou ameaçando são
grileiros, empresas monocultoras (soja, eucalipto, cana), empresas transnacionais de alimentos e energia, programas e projetos governamentais de infraestrutura ou, ainda, instituições que pregam a proteção da natureza com seus projetos de criação de unidades
de proteção integral (parques nacionais ou estaduais).
430
5. A emergência da desinvisibilidade: uma segunda aproximação
Faremos um esforço de aproximação da realidade dos Direitos Humanos dos Povos
Tradicionais, agora em uma escala maior. Vamos considerar os conflitos identificados na
região Norte de Minas Gerais, na microrregião do Alto Rio Pardo, tanto pelo Mapa da
Injustiça Ambiental quanto pelos Conflitos no Campo 2011.
Figura 5: Região do Alto Rio Pardo - Norte de Minas Gerais.
O Mapa da Injustiça Ambiental registra dois casos de conflitos envolvendo comunidades geraizeiras na região do Alto Rio Pardo, uma no município de Berizal, com
as obras da Barragem de Berizal;9 e outra no município de Rio Pardo de Minas onde
comunidades rurais sofrem com a violência oriunda da desestruturação dos sistemas
produtivos tradicionais e a desagregação social e cultural causadas por empresas que
praticam a monocultura do eucalipto.
Por outro lado, a publicação Conflitos no Campo 2011, da CPT, registra nesta mesma região, no ano de 2010, três casos de conflitos pela terra. Um envolvendo a
comunidade geraizeira de Raiz, outro caso de conflitos de Sem Terra ocorrido em uma
comunidade vizinha, a Fazenda Capão Muniz, e um terceiro caso, nos municípios de
Montezuma, Rio Pardo de Minas e Vargem Grande do Rio Pardo, onde comunidades
9
A construção desta barragem teve início mesmo o licenciamento ambiental ameaçando alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território. Disponível em: <www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.
php?pag=ficha&cod=214>. Acesso em: 29 de out. 2012.
431
geraizeiras lutam pela implantação de uma RESEX como estratégia de proteger uma área
de cerrados com cerca de 47 mil ha e onde vivem mais de 500 famílias agroextrativistas
(CPT, 2011, p. 36 e 37).
Entre as ações de resistência, foi realizada no dia 04 de maio de 2010, no auditório
da Casa de Cultura do município de Rio Pardo de Minas, pela Assembléia Legislativa
de Minas Gerais, uma audiência pública para ouvir in loco as seguidas denúncias que
chegavam até os ouvidos dos deputados mineiros de seguidas e continuadas tentativas
de grilagem de terra envolvendo interesses de empresas de reflorestamento de eucalipto.
O Deputado Padre João (PT), autor do requerimento, publicou no site10 uma nota relatando os resultados da Audiência Pública onde se discutiu a regularização e alienação de
terras devolutas em Rio Pardo.
Esta convocatória foi fruto de um longo processo de mobilização das comunidades tradicionais geraizeiras que vêm denunciando de forma sistemática o processo de
encurralamento e degradação ambiental que estão sofrendo desde os anos 1980. Foi
quando os seus territórios tradicionais foram arrendados pelo Governo do Estado de
Minas Gerais a grandes empresas siderúrgicas ou de reflorestamento para o plantio de
extensas monoculturas de eucalipto. Pois, nas três horas de duração desta audiência um
total de 15 casos envolvendo 1.189 famílias em 6 municípios da região foram relatados.
Os casos relatados estão em anexo.
Municípios envolvidos
5
Conflitos ambientais
Conflitos territoriais
3
11
Conflitos de luta pela terra
1
15
Total de casos denunciados
No total de famílias
1.189
Tabela 2: Rio Pardo de Minas:
Conflitos denunciados na
Audiência da Comissão de
Agropecuária e Agroindustrial
ALMG (maio de 2010).
Fonte: STR de RPM.
Os autores dos conflitos citados nesta audiência eram empresas reflorestadoras
e siderúrgicas como FLORESTAMINAS, SIDERSA, ITALMAGNESIO, REPLASA,
COOPERSAR, empresários diversos, fazendeiros ligados à família Costa, além de duas
instituições do Governo do Estado de Minas – a RURALMINAS e o ITER. Estes foram
os casos que puderam ser relatados na audiência pública. Segundo o presidente do STR
de Rio Pardo de Minas, o Sr. Elmy Soares, geraizeiro da Comunidade de Vereda Funda,
os casos possuem uma abrangência muito maior. Com cerca de 60% das terras tomadas
pelas reflorestadoras nas décadas de 1980 e 1990, atualmente, o STR de Rio Pardo vem
acompanhando conflitos provocados pelo setor siderúrgico florestal em 23 comunidades.
10
432
Comissão de Política Agropecuária e Agroindustrial da ALMG. Disponível em: <www.almg.gov.br/acompanhe/
noticias/arquivos/2010/05/Not_795272.html>. Acesso em: 29 de out. 2012.
As comunidades esperaram pacientemente de 23 a 25 anos em média para iniciarem
uma luta visando a retomada de seus territórios tradicionais. João Roberto Correia, pesquisador da EMBRAPA Cerrados registra depoimentos das lideranças geraizeiras em
sua tese de doutorado, da seguinte forma:
Nos últimos 30 anos, essas terras foram alugadas por essas empresas através de contratos
de comodato e agora nesses anos de 2001, 2002 e 2003, esses contratos das empresas com
o Estado estão vencendo. E hoje, por causa do aumento da população, tanto na cidade
quanto na zona rural, essas famílias estão requerendo, exigindo esse espaço para elas continuarem no campo, trabalhando na roça. A população aumentou e as terras diminuíram
com a implantação de eucalipto (os moradores utilizam a área de chapada para criar gado
e extrair frutos do Cerrado). A gente espera que estas terras hoje não sejam reocupadas
com eucalipto e que sobre este espaço para as populações continuarem sobrevivendo, plantando, criando, que este é o espaço que elas tinham antigamente. O maior prejuízo com a
chegada do eucalipto na região é a degradação de um modo geral. Degradação do meio
ambiente, degradação do próprio ser humano, degradação da terra e exploração da mão
de obra dos trabalhadores que moram nessa região. Então os prejuízos são esses: secaram
as águas, com diminuição dos recursos hídricos, destruição da vegetação nativa que existia
e o prejuízo da exploração da mão de obra (Agricultor, citado por CORREIA, 2005 p.40).
Os casos relatados pelas organizações e entidades que hoje fazem monitoramento
dos conflitos no campo, não abrangem o amplo processo de violação de direitos sendo
que, apenas no município de Rio Pardo de Minas, há um total de 23 comunidades e
cerca de 920 famílias. O município possui cerca de 3.600 estabelecimentos de agricultura familiar, onde existe uma situação de conflito envolvendo 25% das unidades
produtivas familiares.
Contexto que vem se agravando impulsionado agora pelos interesses de empresas
mineradoras que dão os primeiros passos na região. Um ano e meio após a audiência
pública, no dia 20 de setembro de 2011, em uma ação da polícia federal batizada de
Operação Grilo, nove pessoas foram presas acusadas de integrar uma organização criminosa envolvidas em grilagem de terras públicas em Minas Gerais. A operação resultou
também no afastamento da cúpula do Instituto de Terras do Estado de Minas (Iter-MG),
na apreensão de dez carros e no bloqueio de R$ 35 milhões em contas e aplicações bancárias. Os mandados foram expedidos pelos juízes das Comarcas de São João do Paraíso
e de Salinas, no Norte de Minas Gerais:
O esquema contava com a participação de servidores públicos vinculados ao Iter-MG que
legitimavam a “posse” de terras devolutas por “laranjas”, que jamais tinham sido proprietários ou possuidores de terras na região. A seguir, ainda de acordo com a Polícia Federal,
numa outra operação fraudulenta, o agora proprietário vendia o referido título a pessoas
físicas ou jurídicas intermediárias que, ao final, negociavam a terra com grandes mineradoras a preços astronômicos.11
11
Disponível em www.paraisofest.com.br/titulo/policia-descobre-fraude-em-venda-de-terras-publicas-no-nortede-minas. Acessado em 19 de novembro de 2011.
433
A mineradora citada neste esquema é nada menos que a Vale do Rio Doce, multinacional que vem sendo seguidamente acusada em praticamente todos os países onde
tem seus negócios minerários.
6. A pluralidade étnica brasileira e seus principais desafios
Apesar da globalização da economia, cada vez mais o caráter local se insere na totalidade e dá suas caras e, principalmente, a partir da atuação das diversas organizações e
movimentos que se deslocaram até Brasília durante o processo constituinte que finalizou
em 1988. Fruto da presença cidadã da população brasileira no processo constituinte,
a partir de 1988 a sociedade brasileira deixa de ser vista como una e é definida como
diversa, em todos os aspectos da vida social e cultural da nação. Desde então, vem se
formando um cenário propício, nacional e internacionalmente, para que as diversidades
culturais, étnicas, de sistemas produtivos não capitalistas se tornem visíveis e, com suas
emergências por politizarem suas identidades, passem a ser consideradas como as gentes
que imprimem ao retrato do Brasil a sua verdadeira face.
É quando surge a necessidade de balizar a intervenção governamental junto aos mesmos. Assim, em dezembro de 2004 foi instituída, no âmbito do Governo Federal, a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais, presidida pelo
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, e secretariada pelo Ministério do
Meio Ambiente, posteriormente reeditada e reconformada (julho de 2006).12 Foi também
construída e decretada a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007).
Estas iniciativas representam um novo posicionamento na medida em que tanto se
inscreve nos textos formais como se propõe à formulação de ações diferenciadas, dirigidas a tais segmentos da sociedade nacional. Isto denota um comprometimento maior
do Estado ao assumir a diversidade no trato com a realidade social brasileira. Segundo
Aderval Costa Filho (2007), num país tão diverso em sua composição étnica, racial e
cultural,
é um grande desafio estabelecer e implementar políticas públicas para promoção do bem-estar social da população, sobretudo das comunidades tradicionais. Sabemos que boa parte
dessas comunidades se encontra ainda na invisibilidade, silenciadas por pressões econômicas, fundiárias, processos discriminatórios e excluídas socialmente (COSTA FILHO, 2007).
12
434
Conforme o Decreto n° 10.408, de 27 de dezembro de 2004. O Decreto de 13 de julho de 2006 altera a denominação,
competência e composição da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais, agora
denominada Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, passando a ser
paritária, integrando 15 representações da sociedade civil organizada, em sua maioria, redes sociais.
Em termos de políticas públicas, o maior desafio, no que diz respeito aos segmentos sociais tradicionais que integram a sociedade brasileira, é assegurar universalização
dos direitos e a implementação de recortes diferenciados, adequados às suas realidades
e processos históricos e conjunturais. A ordem da tradição, conjugada com as inovações
introduzidas pelas frentes econômicas e pelo próprio Estado, configuram uma dinâmica
e ritmos próprios, nem sempre levados em consideração pelas políticas governamentais.
Com o lançamento pelo Governo Federal do Decreto 6.040 estabeleceram-se as
bases institucionais para ações diferenciadas junto a estes segmentos sociais tradicionais, abrangendo quatro eixos, a saber: 1) o acesso aos territórios tradicionais e aos
recursos naturais, abrangendo a garantia e efetivação do acesso de povos e comunidades
tradicionais aos seus territórios e aos recursos naturais, bem como a interação entre
territórios tradicionais e o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza;
2) a infraestrutura, abrangendo tanto a infraestrutura básica como a implementação de
projetos com impactos diretos e/ou indiretos em territórios tradicionais; 3) a inclusão
social, envolvendo tanto as políticas públicas de inclusão social, quanto a educação diferenciada, a atenção diferenciada à saúde, a segurança pública e os direitos humanos, e o
reconhecimento, fortalecimento e formalização da cidadania; 4) e o Fomento e Produção Sustentável, incluindo a proteção e valorização das práticas e conhecimentos tradicionais, o fomento e implementação de projetos de produção sustentáveis, bem como o
reconhecimento e fortalecimento das instituições e formas de organização social.
Em 2009-2010, como previsto pelo Decreto 6.040, foi elaborado e dado inicio a
execução do Plano Prioritário de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Pactuado com os demais entes federativos e negociado com as
diversas pastas governamentais envolvidas na CNPCT, foram estabelecidas ações e
programas visando
[...] equacionar um pouco da disparidade que existe entre os guardiões da sociobiodiversidade no Brasil e os demais cidadãos brasileiros, notadamente no Plano Plurianual do
Governo Federal 2012-2015, onde pela primeira vez encontramos ordenados programas e
ações universais e específicos votados também ou exclusivamente para Povos e Comunidades Tradicionais (COSTA FILHO, s/d).
Entretanto, é preciso ressaltar que qualquer ação governamental deve ter como
pressuposto a garantia do acesso ao território e aos recursos que tais povos e comunidades utilizam para a sua reprodução social, econômica, ancestral e religiosa. O território
implica dimensões simbólicas nem sempre explícitas no plano da subsistência ou produção. Nele estão impressos os acontecimentos ou fatos históricos que mantêm viva a
memória do grupo; nele estão enterrados os ancestrais e se encontram os sítios sagrados;
ele determina o modo de vida e a visão de homem e de mundo; e o território é também
apreendido e vivenciado a partir dos sistemas de conhecimento locais.
435
Segundo Costa Filho, há um momento em que o modelo universal de políticas públicas se depara com impositivos de ordem social e cultural imprescindíveis à garantia dos
direitos sociais, sobretudo num país como o Brasil, marcado pela sociodiversidade e pela
riqueza de formas sociais e políticas. Aprimorar e adaptar programas e ações constitui o
segundo passo no estado democrático de direitos, assegurando justiça e equidade social.
A criação da Comissão Nacional e o lançamento da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais serviram para dar maior
visibilidade aos segmentos sociais tradicionais e às categorias identitárias, abrindo maiores possibilidades de diálogo da sociedade civil com o poder público e promovendo
maior justiça e equidade étnicoracial. Entretanto, os avanços mais significativos vêm
ocorrendo apenas no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Social, do Ministério
do Meio Ambiente, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
e do Ministério da Cultura.
Embora o Ministério do Desenvolvimento Agrário tenha criado, através da Resolução de Nº 83 de 19 de maio de 2011, o Comitê Permanente de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais junto ao CONDRAF13 o mesmo
sequer cita, entre suas atribuições, o que é colocado como objetivo geral da Política
Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, que
é a garantia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais,
com respeito e valorização à sua identidade, suas formas de organização e suas instituições (Decreto nº 6040, 2007, grifo nosso).
Assim, reconhecendo os avanços institucionais, há que se reconhecer uma série
de dificuldades, das quais se pode destacar a quase que completa omissão nos ministérios que são estruturantes na política de desenvolvimento no país e responsáveis
por uma série de violações dos direitos dos povos tradicionais em função dos projetos
e programas por eles viabilizados, quais sejam: a Casa Civil, o Planejamento, Fazenda,
Minas e Energia, Cidades, Integração Nacional, Justiça e MDA, destacando neste caso a
falta de uma política agrária do INCRA direcionada aos povos tradicionais, a lentidão
da FUNAI com os processos de regularização das terras indígenas e, finalmente, a ação
do BNDES com o financiamento público dos megaprojetos de infraestrutura e das obras
previstas pelo PAC.14
Comentando sobre os impactos do PAC na vida das comunidades, Emanuel Meirelles destaca o que vem acontecendo na Amazônia:
O que se observa é a repetição de velhas práticas das elites políticas e econômicas: o deslocamento de pessoas e comunidades inteiras, violação de direitos étnicos e territoriais, a
precarização do trabalho e dos trabalhadores, desmatamento de grandes áreas de florestas, extração ilegal de madeira, especulação imobiliária. Somada a toda esta destruição,
13
14
436
Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável ligado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) lançado em 2007 pelo Governo Federal ancorado principalmente
nos investimentos em obras de infraestrutura, transportes e construção de hidrelétricas.
observa-se uma estratégia sistemática e permanente de criminalização os movimentos
sociais e de defensores de direitos humanos, além do desmonte da legislação ambiental
(MEIRELLES, 2009).
Já em outro âmbito, é fundamental reconhecer que a institucionalidade das organizações dos povos tradicionais é diferenciada, exigindo arranjos institucionais específicos
e muitas vezes de caráter local, acionando gestores públicos, entidades religiosas e outras
organizações regionais e locais. Onde, na maioria dos casos, os entes da federação – estados e municípios, sequer possuem políticas de reconhecimento social das identidades
culturais que as compõem.
A aplicação automática do Pacto Federativo ao atendimento das necessidades dos
povos e comunidades tradicionais é um problema concreto. Na medida em que o Governo Federal delega aos Estados e Municípios a atribuição direta pelas ações voltadas
aos referidos grupos, fica latente o fato de que a maior parte daqueles entes federados
não tem capacitação e sensibilidade para lidar com um público culturalmente diferenciado. Sobretudo em função de conflitos fundiários e dos interesses dos grupos políticos e econômicos locais sobre os recursos naturais existentes nas áreas ocupadas pelos
povos tradicionais. O fortalecimento de instituições como FUNAI, INCRA e Fundação
Cultural Palmares/MinC, por exemplo, para que pudessem prestar um apoio mais direto
aos povos tradicionais, enquanto instâncias federais voltadas a realidades específicas e
historicamente vulnerabilizadas.
Entraves burocráticos e legais dificultam que associações e outras organizações representativas dos povos e comunidades tradicionais possam receber recursos públicos
para o desenvolvimento de ações e projetos de iniciativa comunitária. Um exemplo é o
programa Geração Quilombola, fruto de parceria entre o MDS e a Fundação Banco do
Brasil, e que objetivava o desenvolvimento de ações de inclusão produtiva para quilombolas, a serem executadas diretamente pelas associações comunitárias. As dificuldades
para que tais entidades pudessem cumprir todas as exigências fizeram com que a quantidade de projetos apoiados fosse muito menor do que o esperado.
Quanto à Comissão Nacional e à implementação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, os recursos, programas
e ações capitaneados até o momento, com a intermediação da Casa Civil, são modestos,
considerando a dimensão, a diversidade e a complexidade da categoria “povos e comunidades tradicionais”. Até o presente momento a Comissão Nacional esteve empenhada
em garantir visibilidade social e espaço institucional, sobretudo nos órgãos governamentais e nos Planos Plurianuais.
437
7. Núcleos de resistência à violação dos direitos humanos
Em um contexto de violação de direitos dos povos tradicionais que vai se generalizando na mesma medida em que tomamos consciência de sua existência, seja pela
ameaça ao direito à alimentação, à subsistência, principalmente pela expulsão ou encurralamento em seus territórios originários, seja não reconhecendo identidades e
tradições culturais, deixando-os à mercê das forças do mercado, ou pela alteração em
escala ampliada dos condicionantes ambientais em que se encontram inseridos, tomam
feições novos movimentos que colocam em cena suas demandas territoriais e culturais,
que se apresentam como espaços sociais não capitalistas e não brancos, como espaços de
reafirmação de suas autonomias (COSTA, 2011).
Movimentos que colocam em cena a gravidade da questão agrária nacional e, também, a necessidade de que as políticas a elas direcionadas demandam a incorporação de
novas perspectivas societárias. Assim como os indígenas, primeiros habitantes oriundos
de diversas tradições culturais, ocupando, conhecendo e promovendo seus ecossistemas,
os povos que se formaram a seguir, Quilombolas, Ribeirinhos, Camponeses de Fecho
ou Fundo de Pasto, Vazanteiros, Pescadores, Seringueiros, Geraizeiros, Castanheiros
entre dezenas de outras configurações identitárias, provocam, no dizer de Carlos Walter Porto Gonçalves, o repensar de toda a questão (da reforma) agrária, por envolver
outras questões, outros protagonistas até então não contemplados na luta pela reforma
agrária, quando muito considerados de forma marginal ou sequer subsidiária (PORTO
GONÇALVES, 2011). Na esteira das movimentações dos Sem Terra, dos Assentados, e
dos Atingidos por Barragens, setores que tradicionalmente protagonizaram a luta por
reforma agrária, os povos tradicionais, ao mesmo tempo em que lutam pela retomada de
seus territórios tradicionais, propõem um modelo diferenciado de ocupação das terras
considerando os usos e manejos dos ambientes desenvolvidos secularmente.
Uma movimentação onde entram em cena populações vivendo em comunidades
que reivindicam não apenas a terra, mas o direito de ser reconhecida como detentoras de uma cultura própria, uma maneira diferenciada de ver e agir no mundo. Que
possuem uma economia que considera outros valores que não o lucro ou a exploração
do trabalho, um jeito diferente de usar e de manejar os ambientes cujo lastro é o conhecimento construído na ancestralidade. Iniciativas que têm como marcos a busca
da solidariedade e apoio de organizações da sociedade civil, nacional e internacional,
entidades sindicais, pastorais, ONGs, que acionam instâncias de comunicação com
a sociedade em geral denunciando violações de direitos humanos, acionando ações
jurídicas ou através de interlocuções com setores de governos municipais, estadual e
federal, ou até mesmo instâncias internacionais como a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH/OEA).
438
Movimentações que vêm mobilizando a sociedade como as que se verificam na defesa
dos extrativistas da Amazônia, dos indígenas e demais povos tradicionais do Xingú
com seus direitos violados pela insistência do governo federal em manter a construção
da hidrelétrica de Belo Monte, dos povos dos cerrados e, em particular, das comunidades geraizeiras impactadas pelos grandes empreendimentos do complexo mineral
siderúrgico, pelo avanço das monoculturas de soja, cana e eucalipto sobre os seus territórios tradicionais, das comunidades quilombolas que lutam pela efetivação do processo de regularização fundiária da grande maioria dos territórios quilombolas, acesso
à água potável, saneamento básico, educação e saúde. Além da grave questão que atinge
os índios da etnia Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul onde pistolagem, homicídio, suicídio, desnutrição, alcoolismo, racismo, narcotráfico, desmatamento e falta de
terra limitam em 45 anos a expectativa de vida do maior grupo indígena do Brasil.
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Goiânia: CPT, 2011.
SANTOS, Ana Flávia Moreira. Do terreno dos caboclos do Sr. São João à terra indígena
Xakriabá: as circunstâncias da formação de um povo. Um estudo sobre a construção
social de fronteiras. Brasília, Unb: 1997. (Dissertação de mestrado).
441
ENVELHECIMENTO DIGNO:
um direito a ser conquistado
Áurea Eleotério Soares Barroso*
Idenéia Silveira dos Santos**
Se uma pessoa perfeita do planeta Marte descesse e soubesse que as pessoas na terra se cansavam
e envelheciam, teria pena e espanto. Sem entender jamais o que havia de bom em ser gente, em
sentir-se cansada, em diariamente falir; só os iniciados compreenderiam essa nuance de vício e
esse refinamento de vida.
Clarice Lispector
O envelhecimento é uma questão complexa que exige uma análise aprofundada e
dialogada com várias áreas do conhecimento; assim, o nosso propósito neste texto é de
partilhar inquietações que nos acompanham há alguns anos, com pessoas que pensam
e buscam caminhos para chegar a um envelhecimento digno no Brasil. Questões sobre
envelhecimento populacional, realidade vivenciada pela população idosa, posição e ação
do Estado brasileiro em relação aos idosos e à atuação da sociedade civil organizada, notadamente no âmbito da luta dos idosos na direção da ampliação e efetivação de direitos,
perpassam a nossa reflexão.
*
Pedagoga, mestre em Gerontologia, doutora em Políticas Sociais: Serviço Social pela PUC-SP, assessora da Coordenação Nacional da Pastoral da Pessoa Idosa.
** Pedagoga, mestre em Administração de Sistemas Educacionais pela FGV-RJ, mestre em Gerontologia Social pela
Universidade Autônoma de Madrid, especialista em Gerontologia Social pela UPF-RS (Univ.de Passo Fundo), assessora da Coordenação Nacional da Pastoral da Pessoa Idosa.
443
1. Envelhecimento populacional: ganhos e desafios
Estamos vivendo um momento singular na história da humanidade. O envelhecimento populacional é um processo em curso em todos os países, levando em consideração as realidades de cada lugar. Em 2050, o mundo terá mais de 2 bilhões de idosos,1 e
80% deles estarão nos países em desenvolvimento. Na maioria dos países, o número de
pessoas acima dos 80 anos deverá quadruplicar. Apenas na África prevê-se que a maioria
da população continue relativamente jovem daqui a 50 anos, com apenas 10% de sua
população tendo mais de 60 anos (ONU, 2007).
O envelhecimento tem acontecido de modo mais acelerado nos países em desenvolvimento. No período de 1970 a 2000, segundo a ONU, o crescimento atingiu 123%
nos países em desenvolvimento, enquanto nos países desenvolvidos esse crescimento foi
de 54%. Na França, por exemplo, foram precisos 115 anos para a população dobrar de
7% para 14%. Na América Latina, entre 1980 e 2000, a população teve um acréscimo de
120% como um todo, enquanto o aumento da população com mais de 65 anos de idade
foi de 236% (PAPALEO NETTO; CARVALHO FILHO, 2000).
Desde 1940, o grupo etário composto por idosos é o que mais cresce proporcionalmente na população brasileira. De 1980 ao ano 2000, o grupo de idosos cresceu 107%,
enquanto o grupo de menores de 15 anos cresceu apenas 14%, conforme pontuam Kalache, Ramos e Veras (1987). Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2025
o Brasil abrigará a sexta maior população de idosos do planeta.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD, 2010), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrou que a população brasileira
cresceu 1% e totalizou 191,8 milhões de pessoas em 2009. A pesquisa demonstrou
também que a população mais velha continua em ascensão. A faixa etária acima de 60
anos aumentou em 697 mil pessoas de 2008 para 2009, alta de 3,3%. Essa parcela da população já soma 21,7 milhões de pessoas, o equivalente a 11,3% do total. Em 2004, essa
proporção era de 9,7%.
Nos países desenvolvidos, o envelhecimento populacional ocorreu em um cenário
socioeconômico favorável, o que permitiu a expansão dos seus sistemas de garantia de
proteção social, embora, atualmente, esses sistemas se deparem com restrições de várias
ordens para a sua sustentabilidade financeira no longo prazo, conforme pontuam Camarano e Pasinato (2011). E, como sabemos, nos países em desenvolvimento há diversos
problemas sociais que ainda não foram solucionados, como a pobreza, por exemplo.
Nesse cenário, os idosos colocam suas demandas que se somam a outras. No entanto, as
respostas dos gestores públicos ainda são tímidas, não há políticas públicas com cobertura e abrangência para atender a esse grupo etário da população.2
1
2
A Organização Mundial de Saúde (OMS) convencionou para países em desenvolvimento o corte de 60 anos de idade
e 65 anos para países desenvolvidos como delimitador da velhice (WHO, 1984).
Estima-se que 80% da população mundial não esteja coberta por algum tipo de seguro social. Sem uma mudança
nas políticas sociais, 1,2 bilhão de pessoas podem passar por sérias dificuldades financeiras em 2050 (ONU, 2007).
444
Em um seminário promovido pela Associação Reciclázaro, com apoio do SESC/
SP,3 ocorrido em abril de 2009, do qual participaram entidades brasileiras como a Pastoral da Pessoa Idosa e alguns países vizinhos ao nosso, entre os quais México, Bolívia,
Cuba e Peru, a situação anteriormente descrita foi evidenciada e percebemos o quanto
os adultos mayores residentes nessas localidades estão desprotegidos, sem a cobertura
dos direitos sociais.4 Foi possível observar o empenho das entidades presentes em promover um envelhecimento digno às pessoas idosas, notadamente aos menos favorecidos
economicamente.
No decorrer do século XX, a sociedade viu a média de vida alcançar patamares inimagináveis até mesmo por demógrafos. Nos países desenvolvidos da Europa, no começo
do século XX, a expectativa de vida ao nascer girava em torno de 40 anos, e no decorrer
do século a média de vida praticamente dobrou nesses países.
No Brasil, a esperança de vida que era em torno de 33,7 anos, em 1950, chegou a
50,9 anos em 1990. De 69,66 anos em 1998, passou para 72,86 anos em 2008. A esperança de vida ao nascer apresentou ganhos de cerca de 30 anos entre 1940 e 1996. Os ganhos
foram para ambos os sexos, porém são mais expressivos entre as mulheres, de acordo
com dados do IBGE.
Porém, a longevidade não ocorreu por acaso. A humanidade fez inúmeros investimentos para torná-la possível. Pesquisas na área da saúde e progressos tecnológicos
proporcionaram diagnósticos mais precisos e intervenções mais eficazes em doenças,
incluindo a cura de algumas delas. Com o advento do antibiótico na década de 1940,
houve uma redução considerável de mortes, principalmente nos primeiros anos de vida,
em razão de enfermidades infectocontagiosas. No Brasil, foram realizadas campanhas
de vacinação com abrangência nacional, o número de atendimentos a pré-natais e o
acompanhamento de recém-nascidos aumentou. A rede de saneamento público e de
serviços nas áreas sociais, educacionais, culturais, de esporte e de lazer aumentou. Essas
e outras iniciativas contribuíram para o aumento da esperança de vida.
É importante pontuar que, somado ao aumento da esperança de vida ao nascer,
houve um declínio da taxa de fecundidade, definida como o número médio de filhos por
mulher em idade produtiva. A taxa de fecundidade passou de 5,8 na década de 1970,
para 2,3 em 2000, e chegou a 1,8 filho por mulher, em 2006 (IBGE, 2007). A combinação
desses dois fatores resultou no aumento absoluto e relativo da população idosa.
Se por um lado há muito a comemorar, pois viver mais sempre fez parte do sonho
da humanidade, por outro lado, o fenômeno da longevidade chegou antes que o Brasil
3
4
A Associação Reciclázaro desenvolve ações voltadas para populações de rua na cidade de São Paulo. Site oficial:
<www.reciclazaro.org.br>. Em 1963, o Serviço Social do Comércio (SESC) de São Paulo começou a desenvolver
atividades direcionadas aos idosos nas áreas socioeducativa, cultural, de lazer e de convívio. Desde então, o SESC-SP vem promovendo ações inovadoras, atualmente trabalhando na perspectiva da convivência intergeracional. Site
oficial: <www.sescsp.org.br>.
Direitos sociais, segundo Evaldo Vieira, referem-se ao direito do indivíduo de “desfrutar do mínimo de segurança, de
conforto socioeconômico, do legado sociocultural” (1992, p. 72).
445
tivesse encontrado soluções para resolver seus graves problemas sociais, gerados durante
anos, em razão de modelos de desenvolvimento econômico adotado.5
Paralelamente às transformações demográficas, ocorreram mudanças na incidência e prevalência das doenças e também das principais causas de morte, ou seja, a transição epidemiológica.
Observa-se uma redução da mortalidade por doenças infecciosas agudas mais incidentes na população infantil e um aumento das doenças crônico-degenerativas que
acometem indivíduos na fase adulta, principalmente, os idosos.6 Doenças do aparelho
circulatório, câncer e depressão estão se tornando as principais causas de morte e incapacidade, como diz Lebrão (2009).
A epidemiologia do envelhecimento demonstra que populações envelhecidas têm
uma alta prevalência de doenças crônicas, menos de 10% das pessoas com 65 anos ou
mais estão livres de algum agravo crônico, e mais de 10% apresentam pelo menos cinco
doenças concomitantes, conforme nos lembra Ramos (2009).
A existência de doenças crônicas traz implicações à independência e à autonomia
do indivíduo, exigindo cuidados de familiares e a utilização frequente de serviços de
saúde como: assistência domiciliar, internação hospitalar, institucionalização (levando-se em consideração os diferentes graus de incapacidades), entre outros. Portanto, gerando custos com cuidados relacionados à saúde e à perda da qualidade de vida.
Alguns autores afirmam que um importante indicador de saúde não é mais a presença ou não de doença, mas o grau de capacidade funcional do indivíduo, compreendida como a capacidade de preservar habilidades físicas e mentais necessárias à manutenção de uma vida independente e autônoma, ainda que convivendo com limitações. É
o grau de perda da capacidade funcional que irá indicar quem terá um envelhecimento
saudável ou não. Segundo Ramos (2009), “é o grau de capacidade funcional que permitirá identificar a população de risco para hospitalização, institucionalização e morte”.
Dessa forma, é de suma importância que as políticas públicas de saúde contemplem
iniciativas voltadas para a manutenção da capacidade funcional da população idosa. Se
por um lado a longevidade humana deve ser comemorada, por outro, ela promoveu uma
mudança no perfil de morbi-mortalidade, levando ao aumento das doenças crônicas
com as quais as pessoas terão que conviver durante muitos anos, necessitando de atendimentos de serviços de saúde. Essa situação se agrava em razão dos reduzidos investi5
6
Desde o início, a sociedade brasileira esteve dividida entre uma ínfima parcela de incluídos e uma imensa de excluídos. No entanto, nos últimos anos, esforços têm sido empreendidos pelo governo brasileiro no sentido de assegurar o
direito a uma renda mínima para uma parcela significativa da população. O Plano Brasil Sem Miséria, lançado recentemente pela Presidenta Dilma Rousseff, é mais um passo na direção da inclusão social. Esse plano é direcionado aos
brasileiros que vivem em lares cuja renda familiar é de até R$ 70 por pessoa. De acordo com o Censo 2010 do IBGE,
estão nesta situação 16,2 milhões de brasileiros. O Plano agrega transferência de renda, acesso a serviços públicos nas
áreas de educação, saúde, assistência social, saneamento, energia elétrica e inclusão produtiva, conforme consta no
site do Plano: <http://www.brasilsemmiseria.gov.br/conheca-o-plano>.
A transição epidemiológica não ocorre de modo uniforme no Brasil. No Norte e Nordeste, as doenças infecto-parasitárias apresentam um peso maior do que nas regiões Sul e Sudeste, em razão de desigualdades socioeconômicas e
do difícil acesso aos serviços de saúde.
446
mentos públicos destinados para esta faixa etária da população. Assim, são necessários
pesados investimentos na rede de atenção básica de saúde e hospitalar a fim de atender
às necessidades da população brasileira que envelhece rapidamente.
A partir das reflexões delineadas no transcorrer do texto, evidencia-se a necessidade de ações consistentes do Estado brasileiro em relação aos idosos bem como da
atuação da sociedade civil organizada, notadamente dos idosos, no sentido da ampliação
e efetivação de direitos, visando o envelhecimento digno. A seguir, aprofundaremos um
pouco mais essas questões.
2. Contextualizando a velhice no brasil: breve leitura no tempo
Nas décadas anteriores à de 1960, pouco se debateu sobre o envelhecimento. As
questões das pessoas idosas eram discutidas no âmbito da família e aquelas com poucos
ou sem recursos financeiros, abandonadas por seus familiares, recebiam atenção do asilamento7 e de entidades filantrópicas, algumas religiosas.
Em 1961, foi criada a Sociedade Brasileira de Geriatria por médicos de vários estados, interessados em pesquisar e estudar sobre a saúde da população idosa. Com o passar dos anos, essa entidade passou a contar com profissionais da Gerontologia e mudou
o seu nome para Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG).8 A entidade
desenvolve estudos sobre o envelhecimento e divulga o conhecimento produzido por
seus associados através de revistas e congressos da área.
Em 1963, o SESC-SP começou a desenvolver atividades com comerciários aposentados, na perspectiva de promover um aumento da convivência. Iniciou-se então uma
série de atividades socioeducativas, culturais e de lazer voltadas para pessoas idosas, com
o propósito de dar um significado mais positivo ao envelhecimento. Naquele momento,
a velhice era invisível, os idosos viviam circunscritos nos espaços da casa ou dos asilos.
Hoje, o SESC-SP continua desenvolvendo atividades com esse grupo etário, trabalhando
na perspectiva da convivência intergeracional, e também realizando seminários, pesquisas, e publicações sobre o envelhecimento.
7
8
A história dos asilos no Brasil começa por volta de 1790, ano em que foi criada a primeira instituição para idosos:
Casa dos Inválidos, no Rio de Janeiro, RJ. Em 1890, surge o Asilo São Luiz para Velhice Desamparada e, em 1909, é
aberto um pavilhão nesta instituição para idosos não desamparados, separando-os do grupo dos empobrecidos. Ver
mais em ROSSI, Edison. O modelo de atendimento do Lar dos Velhinhos de Campinas e a qualidade de vida de seus
usuários: Estudos selecionados. Dissertação de Mestrado. Unicamp, Campinas, 2001.
A Gerontologia tem por objetivo o estudo das pessoas idosas, o processo do envelhecimento e de seus determinantes
biopsicossociais, culturais e espirituais; portanto, sua atuação acontece na perspectiva da interdisciplinaridade. Geriatria refere-se aos aspectos curativos e preventivos de atenção à saúde e pode ser considerada como uma parte da
Gerontologia.
447
Na década de 1970, começaram a surgir legislações específicas para o público idoso, entre elas, a Lei nº 6.179/1974, que instituiu a Renda Mensal Vitalícia (RMV), concedendo para maiores de 70 anos de idade, que não exerciam atividade remunerada, e
não tinham meios de prover ao próprio sustento, 50% do salário mínimo vigente no
país. Merece lembrar que a esperança de vida no Brasil, na década de 1970, era de 60
anos, assim, esse benefício não contributivo alcançava uma parcela muito pequena da
população.
Em 1976, pela primeira vez, as questões vivenciadas pelos idosos foram pensadas e
debatidas no plano nacional. O Ministério da Previdência e Assistência Social promoveu
seminários em São Paulo, Minas Gerais, Ceará e um nacional em Brasília, com a colaboração do SESC-SP. As discussões e proposições que surgiram nesses encontros foram
registradas, mas não correspondem à prática.9
Em 1985, um grupo de assistentes sociais criou a Associação Brasileira de Gerontologia (ANG), com representação em quase todos os estados da federação. A entidade tem se
constituído num espaço privilegiado de reflexão sobre o envelhecimento, de proposição de
políticas públicas e de apoio aos idosos em lutas por melhores condições de vida.
Na década de 1980, algumas universidades de Medicina do Rio Grande do Sul e de
São Paulo iniciaram atividades acadêmicas com o propósito de formar profissionais para
trabalhar com a saúde dos idosos. Foram então criadas as Universidades Abertas para
Terceira Idade, denominadas de UATIs, em várias cidades brasileiras. As UATIs são frequentadas por pessoas a partir dos 40 anos de idade, que procuram esses espaços porque
desejam ampliar sua rede de contatos e adquirir novos conhecimentos.10
Em 1988, um grupo de professores coordenado por Suzana Medeiros, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, fundou o Núcleo de Estudos e Pesquisa do Envelhecimento (Nepe). Os estudos e as pesquisas desenvolvidas pelo Nepe apontaram para a
necessidade de criação de um curso de pós-graduação em Gerontologia na universidade, o que aconteceu em 1997.
Um marco fundamental nesse período, na questão do envelhecimento, foi a inclusão na Constituição Federal de 1988 de direitos específicos aos idosos, o que foi possível
porque os idosos se mobilizaram em diversas regiões do país, com apoio de profissionais
envolvidos com a questão da velhice. A Constituição afirma que é de responsabilidade
da família, sociedade e Estado assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, o exercício
de seus direitos fundamentais.
9
Em 1977 foi criada a primeira Associação de Idosos no Brasil em Fortaleza, CE, por iniciativa da advogada e assistente social Maria José Barroso.
10 Em 1973 foi criada a primeira UATI em Toullose, na França, com propósitos muito parecidos com aqueles das UATIs brasileiras. No Brasil, as UATIs receberam influência das Escolas Abertas criadas pelo SESC-SP, que na década
de 1970 mantinha estreito diálogo com pesquisadores franceses, entre eles Joffre Dumazedier, sociólogo, estudioso
do lazer e do tempo livre enquanto qualidade de vida.
448
Com a Constituição Federal de 1988, a Assistência Social11 passou a ser compreendida como política pública concretizadora dos direitos sociais de crianças, idosos, portadores de deficiência, famílias e pessoas em situação de vulnerabilidade.
Na década de 1980, o recenseamento do IBGE (1980), mostrou um aumento significativo do número de idosos, 6,4% em relação à população total. Segundo Nara Rodrigues (2005), esse dado chamou a atenção, houve um despertar, uma tomada de consciência no Brasil. Centenas de pessoas, gestores públicos, idosos e estudantes refletiram
sobre “a situação do velho brasileiro”. Diversos Estados da federação iniciaram programas de atenção aos idosos nas áreas da saúde e assistência social.
Na década de 1990 e começo dos anos 2000, surgiram leis fundantes: a Política
Nacional do Idoso (PNI), o Estatuto do Idoso e a Política Nacional de Saúde da Pessoa
Idosa (PNSPI).12
A PNI define princípios e diretrizes que asseguram os direitos sociais dos idosos e
as condições para promover sua autonomia, integração e participação na sociedade.
O Estatuto do Idoso coloca a proteção à velhice como um direito fundamental, regulamenta uma série de direitos da pessoa idosa, entre eles, o direito à vida, à saúde, à
educação, à cultura, ao esporte e ao lazer, à assistência e previdência social, à habitação
e ao transporte. A PNSPI tem como finalidade a recuperação, manutenção e promoção
da autonomia e independência da pessoa idosa, direcionando medidas coletivas e individuais de saúde para esse fim. Faz parte das diretrizes dessa política a promoção do
envelhecimento ativo e saudável, de acordo com as recomendações da Organização das
Nações Unidas, em 2002.13
A seguir, mencionaremos algumas ações desencadeadas pela ONU, e que têm contribuído para o amadurecimento do debate sobre os direitos das pessoas idosas nas últimas décadas, no plano internacional.14
Em 1982, a ONU realizou a primeira Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento,
e suas formulações foram absorvidas em 1991, nos Princípios das Nações Unidas em
favor dos idosos, nos quais constam orientações referentes à independência, à participação, aos cuidados, à realização pessoal e à dignidade. Em 1995, a OMS alterou o nome
do seu “Programa de Saúde do Idoso” para “Envelhecimento e Saúde”, indicando uma
mudança em sua orientação: em vez de refletir sobre as questões dos idosos de modo
segmentado, o Programa ressaltou a perspectiva do curso da vida. Nessa ocasião, a OMS
11
12
13
14
Lei nº 8.742/1993 (LOAS), que dispõe sobre a organização da assistência social.
Lei nº 8.842/1994 (PNI), dispõe sobre a política nacional do idoso. Regulamentada pelo Decreto nº 1.948/1996. Lei
nº 10.741/2003, dispõe sobre o Estatuto do Idoso. Portaria nº 2.528/2006, do Ministério da Saúde, aprova a Política
Nacional de Saúde da Pessoa Idosa, atualizando a antiga Portaria (nº 1935/1994).
Envelhecimento ativo, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), refere-se “ao processo de otimização das
oportunidades de saúde, participação e segurança, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida à medida que as
pessoas ficam mais velhas”.
Em 1956, o envelhecimento populacional foi tema de estudos da ONU, mas passou a receber maior atenção das
Nações Unidas a partir de 1982, quando da primeira Assembleia Mundial. A segunda Assembleia, realizada em
2002, reuniu representantes de mais de 100 países; aproximadamente 700 instituições não governamentais estiveram presentes.
449
informou que a melhor forma de garantir uma boa saúde para os futuros grupos de pessoas idosas é por meio da prevenção de doenças e promoção da saúde durante a vida.
No Ano Internacional dos Idosos, celebrado em 1999, a OMS declarou, em diversos momentos, a importância de se preservar a saúde e a qualidade de vida ao longo dos anos. O
tema do Ano Internacional era “Uma sociedade para todas as idades”. Em 2002, o nome
do Programa da OMS mudou mais uma vez para “Envelhecimento e Curso da Vida”,
reafirmando que a reflexão sobre o envelhecimento deve ser feita englobando o curso
da vida. Vale lembrar que em 2002, foi aprovado o Plano de Ação Internacional sobre o
Envelhecimento, na segunda Assembleia Mundial sobre Envelhecimento.
O objetivo do Plano de Ação de 2002 consistia em garantir que, em todas as partes,
a população possa envelhecer com segurança e dignidade e que os idosos possam continuar participando em suas respectivas sociedades como cidadãos plenos de direitos,
sem deixar de reconhecer que as bases de uma velhice sadia e enriquecedora são lançadas em uma etapa inicial da vida.
Retomando a reflexão sobre a velhice, no âmbito do Brasil, é possível afirmar que
iniciativas vêm sendo empreendidas por gestores públicos nas diferentes unidades da
federação, fundamentadas em determinações contidas na Constituição Federal de 1998,
na PNI, no Estatuto do Idoso, na PNSPI e em orientações internacionais, entre elas, o
Plano de Madri de 2002, documento originário da II Assembleia Mundial para o Envelhecimento da ONU, nas áreas da assistência social, cultura, esporte, educação, transporte e saúde, como se pode ver no exemplo a seguir.
A caderneta de saúde da pessoa idosa é uma iniciativa que merece ser destacada.
Com a utilização dessa ferramenta, o profissional tem a possibilidade de planejar e organizar ações de prevenção, promoção e recuperação com o objetivo de preservar a capacidade funcional das pessoas atendidas na rede de saúde. Segundo dados do Ministério da
Saúde, já foram distribuídas treze milhões de cadernetas e espera-se que até 2011 todos
os idosos, usuários do SUS, recebam a caderneta.
No decorrer das últimas décadas, governos no âmbito federal, dos estados e municípios têm desenvolvido ações na área da assistência social, saúde, cultura, esporte e
lazer, entre outras direcionadas à população idosa; porém, essas iniciativas ainda não
se constituíram em uma política pública com cobertura e abrangência para atender ao
segmento do idoso.
Vale ressaltar que, no ano de 2003, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB) lançou a Campanha da Fraternidade com o tema: Fraternidade e as Pessoas
Idosas, e o lema: “Vida, Dignidade e Esperança”. As campanhas da Fraternidade sempre
têm grande cobertura da mídia. Um dos méritos da Campanha de 2003 foi colocar
a velhice desamparada, fragilizada e empobrecida no centro do debate. Isso porque
essas questões eram abordadas pela mídia sensacionalista, vinculando-as a maus tratos e
abandono dos familiares, e não como uma questão social e, por esta razão, precisava ser
discutida na perspectiva de direitos de cidadania e de dignidade humana.
450
No ano seguinte, em 05 de novembro de 2004, foi criada a Pastoral da Pessoa Idosa
(PPI), que tem como missão a promoção e a valorização da pessoa idosa, notadamente,
dos idosos fragilizados, em situação de pobreza e abandono. No próximo item, discorreremos sobre os serviços prestados pela PPI.
Enfim, ganhos são observados. As questões relacionadas aos idosos alcançaram
visibilidade nas últimas décadas. A temática do envelhecimento ganhou densidade e
adentrou em diversos espaços: universidades, conselhos de idosos e ONGs; também
surgiram leis voltadas para o segmento idoso. Mas, há muito a ser conquistado até que
o direito a um envelhecimento digno seja integralmente assegurado à população brasileira. Na sequência, refletiremos sobre os esforços empreendidos pela sociedade civil
organizada em favor dos idosos, na direção da ampliação e efetivação de direitos.
3. Atuação da sociedade civil organizada e dos idosos em defesa de um
envelhecimento digno
A Constituição Federal (CF) promulgada em 1988 aprimorou o regime democrático brasileiro. Isso foi possível porque havia uma sociedade mobilizada pressionando o
Congresso Constituinte a incorporar os seus anseios no texto constitucional. Regimento
democrático, segundo Bobbio (1986), é um conjunto de regras que prescreve quem está
autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos.
Com a Constituição de 1988, a democracia no Brasil deixou de ser apenas representativa – quando um corpo restrito de representantes eleitos pelo povo decide o que
é melhor para nação – e passou a ser também participativa. A partir dessa mudança, os
cidadãos ganharam o direito de participar diretamente (e não apenas por meio de representantes eleitos) da produção de leis, via mecanismos institucionais e complementares
à função legislativa, como referendo, plebiscito e a iniciativa popular.15
A Constituição de 1988 também criou instrumentos institucionais para participação
dos atores sociais nos processos de decisão, implementação, monitoramento e fiscalização
das políticas públicas, em resposta às novas demandas de descentralização e democratização do Estado brasileiro. Entre os mecanismos que instituem essa forma de participação
15
O referendo versa sobre atos normais, no âmbito do Legislativo ou de ordem constitucional, aprovados. Portanto,
confirma ou rejeita o ato já aprovado. O plebiscito, ao contrário, autoriza a formulação do ato após a aprovação
popular. Iniciativa popular refere-se ao processo de participação para elaboração de projetos de leis, englobando
várias etapas deste processo, desde o momento da coleta de assinatura. Apenas para situar, em outros momentos
da história política do Brasil existiram os referidos mecanismos. Por exemplo, em 1963 realizou-se o plebiscito
nacional, quando o eleitor foi chamado a manifestar-se a favor ou contra a manutenção do parlamentarismo, que
havia sido instituído por emenda constitucional e o “não” venceu, tendo como consequência a volta do sistema
presidencialista.
451
estão os conselhos de direito, entre eles, do idoso16 e de políticas sociais. Nesses espaços,
atores sociais dialogam e articulam com gestores públicos, com o propósito de assegurar
direitos para os grupos que representam. O que é fundamental, pois, como afirma Vieira:
“não tem havido política social desligada dos reclamos populares. Em geral, o Estado acaba
assumindo alguns destes reclamos, ao longo de sua existência histórica” (1992, p. 232).
Nesses espaços legalmente constituídos, sociedade civil e Estado partilham responsabilidades, opinam e decidem, em conjunto, sobre ações e programas que dizem respeito a um determinado segmento. Como declara Paz, esses espaços “imprimem uma nova
dinâmica na forma de fazer política e na gerência da coisa pública” (2002, p. 24).
O fato é que novas estratégias de atuação estão sendo construídas e novos aprendizados desenvolvidos para que os cidadãos possam participar da definição e do monitoramento de políticas públicas. Estudos mostram que há muito a aprender sobre idosos e
gestores públicos. Assim, deve ser feito um esforço conjunto entre Conselhos e Estados
no sentido de oferecer formação permanente aos conselheiros representantes da sociedade civil e do governo.
Há diferentes possibilidades de participação social. Alternativas têm sido buscadas pela
sociedade civil com o propósito de promover melhores condições de vida às pessoas idosas.
A seguir destacamos uma das alternativas, encontrada pela Pastoral da Pessoa Idosa.
A Pastoral da Pessoa Idosa (PPI),17 organismo vinculado à Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB), foi criada em 2004 pela médica Zilda Arns Neumann,
falecida no terremoto do Haiti (2010), e é atualmente coordenada pela Irmã Terezinha
Tortelli, uma das idealizadoras e fundadoras da PPI, juntamente com a Dra. Zilda Arns
Neumann. A Presidência do Conselho Diretor da Pastoral da Pessoa Idosa é exercida
por Dom José Antônio Peruzzo, Bispo de Palmas e de Francisco Beltrão, PR, teólogo
com grande conhecimento da Bíblia.
A PPI desempenha um papel fundamental nesta causa, por estar atenta principalmente às pessoas idosas mais fragilizadas. Com sua mística de fé e vida, a Pastoral
da Pessoa Idosa atua concretamente, indo ao encontro dessas pessoas, de casa em casa,
todos os meses, com seus mais de 22.800 líderes comunitários voluntários.
Esses líderes sabem descrever a crua realidade em que se encontram milhares de
pessoas idosas que vivem em situações desfavoráveis em todos os sentidos: física (saúde), social (abandono, maus tratos, solidão) e espiritual.
A PPI desenvolve ações para que as próprias pessoas idosas sejam protagonistas da
conquista de seus direitos.
Buscando orientar constantemente as pessoas idosas e suas famílias, a Pastoral da
Pessoa Idosa produz um programa de rádio intitulado “Envelhecer de Bem com a Vida”.
Esse programa é semanal e tem 15 minutos de duração. Sua distribuição é gratuita.
16
17
452
Em 1.974 municípios brasileiros existem Conselhos de Direitos do Idoso; 1.590 Conselhos foram realizadaos nos
últimos 12 meses, segundo a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic) de 2009 do IBGE. O Brasil possui
5.56 municípios.
Site da PPI:<www.pastoraldapessoaidosa.org.br>. E-mail: <
[email protected]>
É a voz da Pastoral da Pessoa Idosa que chega às comunidades com dicas e informações
sobre saúde, educação, nutrição, cidadania, espiritualidade e direitos das pessoas idosas.
Durante a realização da VII Assembleia Geral da Pastoral da Pessoa Idosa, que
aconteceu entre os dias 15 a 18 de março de 2011, foram definidas metas e recomendações que contemplam a ampliação do número de voluntários, com o objetivo de expandir a Pastoral da Pessoa Idosa. Uma das metas dessa assembleia se refere à participação
da Pastoral da Pessoa Idosa nos Conselhos de Direitos dos Idosos, de Saúde e de Assistência, pois estes são os espaços de discussão e definição das Políticas Públicas.
A seguir, apontaremos alguns resultados do acompanhamento da Pastoral no 3o
trimestre de 2010, com o percentual de crescimento, comparando-o com o 3o trimestre
de 2009, em 26 Estados brasileiros: 195.178 pessoas idosas acompanhadas (crescimento
de 12,2%); 22.856 líderes comunitários (crescimento de 16,4%); 155.002 famílias acompanhadas (crescimento de 11%); 5.601 comunidades (crescimento de 11,4%); 904 municípios (crescimento de 9,3%).
Merece destaque o tema central da 3ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa
Idosa só (CNDPI)18 que é “O compromisso de todos por um envelhecimento digno no
Brasil”. Todos, conforme consta no texto elaborado pelos organizadores da 3a CNDPI
refere-se aos idosos, conselheiros, gestores das políticas, e à sociedade, estes estão sendo
chamados a assumir um compromisso efetivo em prol da conquista de um futuro digno
para a população brasileira. Trata-se de uma convocação formulada de maneira correta,
pois o envelhecimento populacional é um fenômeno do nosso tempo, portanto, diz respeito a cada um de nós. A atuação da Pastoral da Pessoa Idosa é uma resposta a esse chamado.
Por último, vale também mencionar a atuação dos idosos no âmbito cultural. Estudos mostram que as pessoas idosas, em particular as mulheres, estão ajudando a desconstruir a imagem negativa da velhice elaborada pela nossa sociedade.19 Em grupos,
entre os seus pares, os idosos se sentem fortalecidos emocionalmente, levam mais em
consideração os seus anseios e a transparência do seu eu verdadeiro. Eles estão certíssimos, pois, como nos ensina Dom Helder Câmara,20 “Feliz de quem atravessa a vida
inteira tendo mil razões para viver”.
18
19
20
A III Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa será realizada em Brasília, Distrito Federal, no período de
23 a 25 de novembro de 2011, sob a coordenação da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Os trabalhos serão desenvolvidos em 4 eixos: Envelhecimento e políticas de Estado: pactuar caminhos intersetoriais;
Pessoa idosa: protagonista da conquista e efetivação dos seus direitos; Fortalecimento e integração dos conselhos:
existir, participar, estar ao alcance, comprometer-se com a defesa dos direitos dos idosos; Diretrizes orçamentárias,
plano integrado e orçamento público da União, Estados, Distrito Federal e Municípios: conhecer para exigir, exigir
para incluir e fiscalizar.
Elisabeth Frohlich Mercadante tem refletido a esse respeito e nos diz: “Mesmo que neguemos esse modelo geral
de velho, mesmo que não concordemos, sabemos que esse modelo é o modelo cultural de velho que temos e que
sempre implica em perdas. Perdas tanto biológicas quanto sociais. É o momento do declínio [...]. Portanto, nossa
tarefa como pesquisadores é questionar e criticar essa representação geral de velho, porque as pessoas singulares que
encontramos não são assim” (MERCADANTE, 2004, p. 197-198)
Arcebispo emérito de Olinda e Recife. Foi um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), grande defensor dos direitos humanos, viveu entre 1909 e 1999.
453
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UM OLHAR SOBRE A POPULAÇÃO
EM SITUAÇÃO DE RUA E DIREITOS HUMANOS NO BRASIL
Várias Pastorais*
Todos os centros urbanos do país estão sofrendo intervenções de (re)urbanização
que dificultam ou impossibilitam a sobrevivência de quem possui pouca ou nenhuma
renda. A produção e a reprodução do espaço se dão exclusivamente sob a égide da acumulação capitalista, transformando o espaço urbano em mercadoria rara. Sendo assim,
nas cidades existem pessoas que não acessam os bens e serviços produzidos socialmente.
Um contingente populacional que convive com essa realidade de exculusão é a população em situaçao de rua (PSR). Define-se por população em situação de rua:
Grupo heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza
os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de
forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite
temporário ou como moradia provisória (Definição do Decreto Presidencial nº 7.053, de
23 de dezembro de 2009).
Marcada pela exclusão social, essa população luta para ser reconhecida em sua
identidade e pela garantia de direitos. O protagonismo da PSR é elemento fundamental
para conquista e reconhecimento da sua condição de cidadãos. O presente artigo pretende discutir a situação dessa população no Brasil, no que tange aos Direitos Humanos.
O texto abordará a seguir a realidade vivida pela PSR, sua relação com o Estado e com a
sociedade civil. Em sua última parte, o texto pretende trazer algumas considerações finais a guisa de perspectivas e recomendações a partir dos avanços e desafios percebidos.
*
Elaborado por: Pastoral Nacional do Povo da Rua; Pastoral de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte; Centro
Nacional de Defesa dos DH da PSR e Catadores de Materiais Recicláveis; Fórum Mineiro de Direitos Humanos.
457
1. A realidade da população em situação de rua
A população em situação de rua no Brasil configura-se como um grupo desprovido
dos direitos naturais, ainda que tais direitos sejam reconhecidos na legislação vigente.
Pode-se dizer que ela está no âmbito dos “sem direitos”, uma vez que aqueles direitos
reconhecidos legalmente vêm sendo violados de maneira constante e cada vez de forma
mais contundente.
Assim, a PSR se tornou um grupo vulnerável, com sua cidadania extremamente
fragilizada, sendo incapaz de decidir livremente, ou de manifestar suas decisões. Tal
situação leva à diminuição ou perda total da liberdade individual. A luta cotidiana desta
população tem sido pela sobrevivência.
O processo de negação ou violação dos direitos humanos da PSR se dá em razão
de uma série de ações ou omissões das famílias, da sociedade e do poder público que
resultam no rompimento de parte dos vínculos sociais.
Viver nas ruas tem sido sinônimo de conviver com a violência diária que se dá de
diversas formas: a) violência física e psicológica impostas pela exclusão social; b) intervenções policiais ou de fiscalização violentas; c) remoções arbitrárias ou recolhimento
de pertences; d) negligência no tratamento e no atendimento; e) ausência de políticas
públicas. São vítimas de descaso, discriminação, preconceito e desprezo que resultam, em
muitos casos, em tentativas de homicídio, homicídio e chacinas. O número de casos que
são divulgados pela imprensa brasileira e as denúncias junto ao Disque Direitos Humanos1 e ao Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de
Rua e Catadores de Materiais Recicláveis (CNDDH)2 são cada vez maiores. O quadro 01
apresenta as violações ocorridas com a PSR, no período de março a setembro de 2011:
QUADRO
Violações dos Direitos Humanos da população em situação de rua
Março-Setembro 2011
Tipo de violência
Nº de casos
Violência física (lesão corporal e outras)
79
Recolhimento de roupas, documentos, remédios, instrumentos de
50
trabalho, etc
Omissão do Estado (negligência no atendimento ou ausência de
48
políticas públicas)
1
2
O Disque Direitos Humanos para a PSR foi implantado em 23 de dezembro de 2010 pela Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República. Trata-se do nº 5 do disque 100, que também atende outros públicos.
O CNDDH, inaugurado em sete de abril de 2011, é um serviço incluso na Política Nacional para a PSR e é uma parceria entre a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República com o Movimento da PSR e dos catadores,
tendo como entidades executoras o Ministério Público de MG e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB.
458
Violência moral e/ou psicológica
Abuso de poder
Homicídios
Dificuldade de acesso à justiça
Tentativas de homicídio
Discriminação e preconceito
Ameaça, calúnia, injúria, racismo
Violência sexual
Privação do direito de ir e vir
Tortura
43
34
34
17
17
20
12
04
03
01
Fonte: Registros do CNDDH
O acesso dessa população a estes espaços de escuta e encaminhamento de denúncias tem aumentado. Entretanto, dada a heterogeneidade dessa população, e também a
ainda pouca informação acerca desses instrumentos, sabe-se que muitas violações ainda
não são informadas ou apuradas. Muitos casos de homicídios não têm a identificação
das vítimas e, menos ainda, dos agressores.
2. População em situação de rua e o estado
As violações acima registradas não acontecem ao acaso. Consequência de um processo histórico (desde o período colonial), por um lado conferiu ao povo brasileiro sua
projeção como nação, por outro, deixou marcas na estratificação brasileira e na sua relação com o Estado. Conforme Ribeiro: “Nunca houve um conceito de povo, englobando
todos os trabalhadores, e atribuindo-lhes direitos” (2008, p. 404). A ordenação social
foi estruturada contra os interesses da população e historicamente foi submetida aos
desígnios de uma minoria dominante, “sobrando uma massa de trabalhadores explorada, humilhada e ofendida [..,] nunca há, nunca houve, aqui, um povo livre regendo seu
destino na busca de sua prosperidade” (RIBEIRO, 2008, p 404).
Soma-se a este lamentável desenho histórico, o fato de que o fenômeno PSR é a
síntese de múltiplas determinações que são resultado de “processos inerentes à acumulação do capital, particularmente à formação de uma superpopulação relativa ou exército
industrial de reserva, com especificidades de épocas históricas” (SILVA, 2009, p. 103). A
autora descreve a população em situação de rua como “uma expressão radical da questão
social na contemporaneidade” (SILVA, 2009, p. 106).
459
Neste contexto, a população em situação de rua, receptora desta dívida social, é talvez quem mais sofra, representando o lado mais perverso desta relação. O governo Lula
mesmo mantendo as diretrizes do sistema econômico vigente até hoje, deu ao Estado um
caráter “provedor”, que tenta minimizar a situação, sobretudo a partir da redistribuição
de renda. Visando implementar um Brasil sem fome, inicia um processo de concessões,
e de programas de caráter assistencialista e provisório.
Por outro lado, nas últimas décadas, a população em situação de rua vem lutando
por seus direitos e se organizando em movimento social. Esse processo de mobilização e
de organização teve seu início no trabalho de promoção social e reconhecimento de seu
protagonismo iniciado pela Pastoral do Povo da Rua na década de 1980, que recebeu a
contribuição de outras entidades parceiras ao longo dos anos.
Vale ressaltar, ainda, que o mesmo nasceu sob a égide das comunidades eclesiais de
base e foi ancorado na Constituição de 1988. Acima de tudo, é uma busca pelo empoderamento da população em situação de rua que rompe com práticas assistencialistas e
coloca o direito como primazia para todos os brasileiros.
O processo de reivindicação por direitos eclode em 2004, quando sete moradores
de rua são assassinados na Praça da Sé, em São Paulo. Reunidas em Belo Horizonte, no
Festival Lixo e Cidadania,3 lideranças da PSR demandaram objetivamente do Estado, na
pessoa do Ministro Patrus Ananias, políticas de atenção e promoção a esse segmento.
Após encontros e reuniões sucessivas, o presidente assina, em 25 de outubro de 2005, um
decreto instituindo um Grupo de Trabalho Interministerial para elaboração de Política
Nacional que responda, sem criação de guetos, às especificidades da população, reconhecendo seu protagonismo e sua organização.
A Pastoral Nacional do Povo da Rua4 participa desse processo, além de representantes da PSR de São Paulo e Minas Gerais e sete ministérios. Em 23 de dezembro de
2009, através do Decreto Presidencial nº 7053, foram instituídos princípios, diretrizes
e objetivos da Política Nacional para a População em Situação de Rua, bem como um
Comitê Interministerial, paritário entre governo e sociedade civil, para acompanhar e
monitorar a implantação da Política Nacional.
3. População em situação de rua e a sociedade civil
A população em situação de rua constitui um grupo social que apresenta uma série
de dificuldades em estabelecer vínculos de solidariedade externa, com outros grupos, e
com a sociedade em geral. Como dito anteriormente, integra os grupos sociais considerados desnecessários economicamente, incômodos politicamente, perigosos socialmente, e sofrem com uma cultura de expulsão, sendo passível de extermínio, de genocídio.
3
4
Evento cultural que se realiza, há 10 anos, em Belo Horizonte visando dar visibilidade às questões apontadas pelos
catadores e PSR, reunindo parceiros nacionais e internacionais.
Entidade vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB.
460
São homens e mulheres que, por “cheirar mal”, incomodam quem por eles passa, causa
sentimento de repulsa ou de indiferença em muitas pessoas.5 Nesse contexto, são comuns os casos de preconceito, discriminação e violência contra a PSR.
A transformação de uma realidade se dá a partir do envolvimento de vários atores
sociais. Ressalta-se que o elemento principal é o reconhecimento deste protagonismo
das pessoas que vivenciam cotidianamente a situação de morador de rua, conferindo a
estes a condição de cidadãos.
Não obstante a situação de vulnerabilidade social e de vínculos familiares extremamente fragilizados ou interrompidos, a permanência nas ruas favorece a criação
de diferentes vínculos. Eles se dão entre si e com a sociedade. É comum os grupos de
moradores de rua estabelecerem vínculos com a vizinhança, comércio, centros de saúde,
com grupos e entidade assistenciais que fornecem doação.6 Esses vínculos possibilitam
a construção de uma rotina de sobrevivência e a fixação em espaços, como local de provisão do sustento.
O principal e primeiro elemento norteador da relação da PSR com a sociedade
civil é a organização dessas pessoas em movimento social, o Movimento Nacional da
População de Rua (MNPR).7 Além disso, destaca-se a atuação nacional através da participação em Conselhos8 e se, por um lado, a atuação em nível nacional ainda é tímida e
não representa todo o território brasileiro, por outro, acredita-se que, como disse Paulo
Freire (2011, p. 54) “quanto mais as massas populares desvelam a realidade objetiva e desafiadora sobre a qual elas devem incidir sua ação transformadora, tanto mais se inserem
nela criticamente”. Estão dados os primeiros passos para o reconhecimento dos diretos
da população em situação de rua.
Importante assinalar neste texto, significativos espaços de debate, que são comitês para
discussão da política nacional. Um de caráter nacional e três de caráter municipal9 existentes,
que se reúnem periodicamente e se delibera sobre a Política Nacional e local respectivamente. Outro espaço de destaque são os Fóruns da População em Situação de Rua10. A dinâmica
dos Fóruns apresenta metodologia específica que está presente em vários municípios e se
torna o berço da constituição dos comitês municipais de discussão da Política.
É um espaço aberto, com reuniões, em geral mensais, e que tem a representação de
diversas entidades da sociedade civil (tais como ONGs e universidades), poder público
e moradores de rua. Estes Fóruns, acessíveis a todos, permitem o encontro dos diferentes
atores, desenvolvendo-se a escuta e encaminhamento de diferentes iniciativas. Os Fóruns
vêm se constituindo como espaço privilegiado de participação democrática: “crer no povo
é a condição prévia, indispensável, à mudança revolucionária” (FREIRE, 2011, p. 66).
5
Vale ressaltar que, da sociedade civil, os comerciantes e residentes de áreas nobres são os principais violadores dos
direitos humanos da PSR.
6 Geralmente de roupas, de alimentação e medicamentos que garantem a sobrevivência.
7 Teve início a partir da articulação de algumas lideranças dessa população nos estados de Minas e São Paulo no ano
de 2004
8 Conselho Nacional de Assistência Social, Conselho Estadual de Assistência Social de Minas Gerais e vários conselhos
municipais.
9 Os comitês municipais estão nas cidades de Belo Horizonte, Maceió e Distrito Federal.
10 Existem Fóruns nas cidades do Rio de Janeiro, Salvador, Fortaleza, Belo Horizonte, Contagem, Juiz de Fora, São
Paulo e Curitiba, além do Distrito Federal.
461
Acrescenta-se que esta interação está permitindo, não somente a prática da liberdade, como o respeito à diferença e a construção de um novo debate, em que os sujeitos, até então não vistos como cidadãos, passam a ser reconhecidos e respeitados na
sua dignidade.
Além disso, tem havido participação em orçamentos participativos, conferências,
audiências públicas e outros espaços de participação popular. A PSR tem procurado
ocupar espaços no sentido de reverter a situação de eternos necessitados à condição de
sujeitos de direito. Ao longo dos últimos anos, a partir de ações diferenciadas de grupos,
cresce o número de moradores e moradoras de rua que vem se organizando e lutando
pela conquista de direitos.
Considerações finais: avanços e desafios
A realidade inicial de total negação de direitos já foi superada a partir de vários
avanços ocorridos nas últimas décadas. É fato que a percepção e a relação da cidade para
com essa população vêm mudando. Há pouco mais de dois anos a mídia, por exemplo,
tem adotado o termo “população em situação de rua” em substituição às denominações
pejorativas, tais como: “mendigos” ou “andarilhos”. Ao mesmo tempo a imprensa vem
dando uma atenção especial a fatos acontecidos com a PSR, com comentários e edições
de caráter inclusivo.
Consequentemente essa população, antes invisível aos olhos da sociedade, começa a
ganhar visibilidade. Isto é fundamental para que possa ser considerada na formulação das
políticas e dos orçamentos públicos, pontos de partida para transformação desse quadro.
O reconhecimento de pessoas em situação de rua como sujeitos de direito é cada
vez mais presente nas cidades. Esta população configura-se hoje como ator social e vem
sendo conhecida e reconhecida pelas suas lutas e resistência. Ressalta-se o reconhecimento e a legitimação do MNPR por parte de Estado, a criação da Política Nacional e do
Comitê de Acompanhamento e Monitoramento da mesma. Este avanço permitiu a criação do CNDDH e do Disque Direitos Humanos e, ao mesmo tempo, a Política autoriza
e legitima o debate e a implementação de outros programas de governo.
Mas são enormes os desafios a serem superados no que diz respeito à violação
de direitos das pessoas em situação de rua e seu reconhecimento e investimento que
ajudem a superar a dívida social sofrida por esta população. É urgente a efetiva implementação da Política Nacional nos entes federados, em especial as de moradia, segurança pública, proteção social, saúde e trabalho. A falta de investimento em políticas
estruturais no plano nacional chega a paralisar assuntos pautados e, consequentemente, não adquirem concretude.
462
No nível local é necessário investir no que diz respeito à segurança pública dessa
população. É urgente rever estes conceitos violadores de direitos, pois, as ações de caráter higienizador e violento fazem parte das pautas dos “mantenedores da ordem” das
cidades e a violência é usada, em geral, como forma de coibir a presença dos moradores
de rua. Recentemente no Rio de Janeiro, assim com em outras cidades do país, operações de choque de ordem levaram para detenção mais de 1.000 moradores de rua sem
mandado judicial, e após três dias de investigação foram soltos. Estas atitudes podem se
agravar em vista dos mega eventos programados para o país.
Ainda são comuns os programas de atenção a PSR num caráter meramente assistencialista e segregacional. As ruas das cidades ainda são repletas de preconceito e discriminação. Muitas organizações sociais, com intuito de minimizar a dor e o sofrimento
da PSR, não investem seus esforços na luta por direito e cidadania, priorizando apenas
o caráter emergencial e provisório nas suas ações. Por outro lado, parte da sociedade
civil, levada por atitudes racistas e preconceituosas, tem violentado moradores de rua,
espancado, havendo casos de homicídio. Superar estas ações e apurar os crimes, até hoje
impunes, é desafio que merece atenção e apoio, até mesmo internacional, para refrear
estes comportamentos.
Além disso, é importante o investimento constante no protagonismo da PSR, capacitando e ampliando sua capacidade de articulação, para que, de fato, o MNPR possa
estender sua ação em todas as cidades do país.
A superação da situação de rua se dá a partir da inclusão e acesso a serviços e programas garantidos pelas diversas políticas públicas, bem como pela relação de respeito,
reconhecimento e valorização das pessoas, assim como pela descoberta e desenvolvimento do potencial criativo e de resistência desses homens e mulheres. A realidade da
população em situação de rua é uma questão social, que deve envolver toda sociedade, a
comunidade acadêmica, as diferentes Igrejas, e principalmente, os governantes em todos
os níveis nacional, regional e local, no seu reconhecimento, enquanto pessoas, que têm
os seus direitos de cidadãos negados.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 50. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
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