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Atuamos na Magistratura há mais de dezessete anos, desses, onze anos em Vara Criminal onde ao longo do tempo muitos casos de estupros de não-vulnerável e vulneráveis já nos deparamos, contudo um caso concreto ocorrido há uns quatro ou cinco anos atrás deu ensejo a uma pesquisa aprofundada sobre o tipo penal do art. 213 do Código Penal e sua natureza tipológica após a Lei n. 12.015/2009, uma vez que o Ministério Público fazia uma sustentação que ia de encontro ao nosso posicionamento inicial. Com a pesquisa nos deparamos com uma carência na doutrina penal pátria de abordagens mais aprofundadas sobre a classificação dos tipos penais quanto à ação do agente, notadamente, sobre os tipos penais compostos ou de conteúdo variável. Fez-se então, necessário, no caso concreto, se fazer distinção entre os tipos compostos existentes para um correto e justo deslinde do caso concreto. Dessa pesquisa, quando ainda cursava o programa de Mestrado em Direito, saiu um artigo cientifico intitulado DELITO DE ESTUPRO: UMA (RE) LEITURA TIPOLÓGICA que foi publicado na importante Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, à época de Qualis B1 e nos dias atuais Qualis A1, dando ensejo posterior a apresentação do tema em congresso e palestras em universidades, tendo, por último, sido convidado pela editora a transformar o citado ensaio em livro. De início, ficamos meio receosos em face da aparente limitação do tema, contudo com a recente Súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça e um caso concreto decidido contrariamente ao enunciado que envolvia o estupro de vulnerável do art. 217-A do Código Penal, entendemos ter elementos que pudessem enriquecer a pesquisa de forma a dar-lhe consistência digna de publicação e leitura dos interessados no tema. Abordamos então os aspectos históricos e evolutivos do crime de estupro, o bem jurídico-penal tutelado nos não-vulneráveis, vulneráveis e posições da doutrina, sendo que mudamos o nosso posicionamento sobre àqueles referentes aos vulneráveis em face das novas pesquisas desenvolvidas. Tratamos da violência e/ou grave ameaça e sua presunção antes e pós a Lei n. 12.015/2009, até porque há doutrina que sustenta que houve mudança de foco para a vulnerabilidade da vítima nos casos do art. 217-A do Código Penal. Necessariamente, com a ampliação da pesquisa, tratamos dos tipos penais de forma ampla, fazendo uma reflexão, ao final, sobre os que denominamos de tipos mistos sui generis, sem deixar de enfrentar necessariamente aqueles inerentes a ambos os delitos de estupro em questão, seus reflexos na aplicação da pena e na dignidade humana para finalizar sobre a necessidade da (re) leitura tipológica desse delito. Longe de querer esgotar o tema, temos apenas a pretensão de levar o leitor a uma reflexão mais aprofundada sobre os fundamentos desenvolvidos acerca de pontos polêmicos que procuramos abordar sob um senso jurídico crítico por meio de uma epistemologia jurídica, na esperança que possamos estar contribuindo para o estudo desse crime e o aprimoramento democrático das instituições sociais, fortalecendo a justiça como sua virtude primeira.

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BEM JURÍDICO-PENAL TUTELADO........................................................14 1.1. Da liberdade sexual.......................................................................17 1.2. Da Dignidade sexual......................................................................24 CAPÍTULO II PRESUNÇÃO: VULNERABILIDADE X VIOLÊNCIA E/OU GRAVE AMEAÇA.......................................................................................................31 2. SÚMULA Nº 593 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.....................36 2.1. Elementar do tipo e a súmula..................................................................42 CAPÍTULO III TIPOS PENAIS..............................................................................................49 3. CLASSIFICAÇÃO.......................................................................................52  ͷ 3.1. Quanto à estrutura.........................................................................52 3.2. Quanto ao bem jurídico tutelado....................................................53 3.3. Quanto à unidade ou pluralidade de bens jurídicos tutelados.........................................................................................................54 3.4. Quanto ao seu conteúdo................................................................54 3.5. Quanto à ação................................................................................54 3.5.1. Tipos simples ou unitários..................................................55 3.5.2. Tipos mistos, compostos ou de conteúdo variável............55 3.5.3. Tipos penais mistos sui generis.........................................57 CAPÍTULO IV TIPO LEGAL DO ESTUPRO DO NÃO-VULNERÁVEL NA LEI Nº 12.015/2009...................................................................................................61 4. O TIPO PENAL NA DOUTRINA.................................................................61 5. O TIPO PENAL NA JURISPRUDÊNCIA....................................................65 6. REFLEXOS: APLICAÇÃO DA PENA E DIREITOS FUNDAMENTAIS......68 7. UMA (RE) LEITURA DO TIPO PENAL......................................................71 7.1. Do estupro de não-vulnerável........................................................71 7.2. Do estupro de vulnerável...............................................................74 REFERÊNCIAS..............................................................................................77  ͸ APRESENTAÇÃO Atuamos na Magistratura há mais de dezessete anos, desses, onze anos em Vara Criminal onde ao longo do tempo muitos casos de estupros de não-vulnerável e vulneráveis já nos deparamos, contudo um caso concreto ocorrido há uns quatro ou cinco anos atrás deu ensejo a uma pesquisa aprofundada sobre o tipo penal do art. 213 do Código Penal e sua natureza tipológica após a Lei n. 12.015/2009, uma vez que o Ministério Público fazia uma sustentação que ia de encontro ao nosso posicionamento inicial. Com a pesquisa nos deparamos com uma carência na doutrina penal pátria de abordagens mais aprofundadas sobre a classificação dos tipos penais quanto à ação do agente, notadamente, sobre os tipos penais compostos ou de conteúdo variável. Fez-se então, necessário, no caso concreto, se fazer distinção entre os tipos compostos existentes para um correto e justo deslinde do caso concreto. Dessa pesquisa, quando ainda cursava o programa de Mestrado em Direito, saiu um artigo cientifico intitulado DELITO DE ESTUPRO: UMA (RE) LEITURA TIPOLÓGICA que foi publicado na importante Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, à época de Qualis B1 e nos dias atuais Qualis A1, dando ensejo posterior a apresentação do tema em congresso e palestras em universidades, tendo, por último, sido convidado pela editora a transformar o citado ensaio em livro.  ͹ De início, ficamos meio receosos em face da aparente limitação do tema, contudo com a recente Súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça e um caso concreto decidido contrariamente ao enunciado que envolvia o estupro de vulnerável do art. 217-A do Código Penal, entendemos ter elementos que pudessem enriquecer a pesquisa de forma a dar-lhe consistência digna de publicação e leitura dos interessados no tema. Abordamos então os aspectos históricos e evolutivos do crime de estupro, o bem jurídico-penal tutelado nos não-vulneráveis, vulneráveis e posições da doutrina, sendo que mudamos o nosso posicionamento sobre àqueles referentes aos vulneráveis em face das novas pesquisas desenvolvidas. Tratamos da violência e/ou grave ameaça e sua presunção antes e pós a Lei n. 12.015/2009, até porque há doutrina que sustenta que houve mudança de foco para a vulnerabilidade da vítima nos casos do art. 217-A do Código Penal. Necessariamente, com a ampliação da pesquisa, tratamos dos tipos penais de forma ampla, fazendo uma reflexão, ao final, sobre os que denominamos de tipos mistos sui generis, sem deixar de enfrentar necessariamente aqueles inerentes a ambos os delitos de estupro em questão, seus reflexos na aplicação da pena e na dignidade humana para finalizar sobre a necessidade da (re) leitura tipológica desse delito. Longe de querer esgotar o tema, temos apenas a pretensão de levar o leitor a uma reflexão mais aprofundada sobre os fundamentos desenvolvidos acerca de pontos polêmicos que procuramos abordar sob um senso jurídico crítico por meio de uma epistemologia jurídica, na esperança que possamos estar contribuindo para o estudo desse crime e o aprimoramento democrático das instituições sociais, fortalecendo a justiça como sua virtude primeira. 20 de dezembro de 2017  ͺ ABREVIATURAS CP Código Penal CPB Código Penal Brasileiro d.C. Depois de Cristo LGBTT Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros ONU Organização das Nações Unidas STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça TJMG Tribunal de Justiça de Minas Gerais TJSP Tribunal de Justiça de São Paulo  ͻ INTRODUÇÃO Os delitos de atentado violento ao pudor (CP; art. 214) e estupro (CP; art. 213), com a alteração promovida no Código Penal pela Lei n. 12.015/2009, foram unificados no artigo 213 (“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”), o que tem gerado grande controvérsia judicial, pouco recomendável, sobre a viabilidade ou não do concurso de crimes na eventual prática cumulativa num mesmo contexto fático de conjunção carnal e outros atos libidinosos, bem como posições doutrinárias sobre essa classificação do tipo penal que aglutinou num único dispositivo as duas figuras que outrora eram separadas (atentado violento ao pudor e estupro). É certo que atos libidinosos são o gênero e, no caso, conjunção carnal é a espécie, assim como que é viável que aqueles antecedam ou não este num mesmo contexto fático, daí a importância de se enfrentar essa questão com a unificação ao delito de estupro do antigo atentado violento ao pudor, viabilizando uma exegese mais adequada. Dentro desse contexto, faz-se necessário enfrentar a problemática da classificação do tipo com relação à conduta que necessita ser aclarada de forma a evitar decisões judiciais que venham a macular a dignidade da pessoa humana, princípios penais constitucionais, direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal.  ͳͲ CAPÍTULO I ASPECTOS INTRODUTÓRIOS DO DELITO DE ESTUPRO De origem latina a palavra stuprum, em sentido próprio é desonra, vergonha, daí atentado ao pudor; estupro, desonra resultante do estupro, relações ilícitas, adultério1, consignando HELENO CLÁUDIO FRAGOSO2 que essa palavra “no antigo direito romano, significava qualquer impudicícia praticada com homem ou mulher, casado ou não”, que gerava a pena de morte. Em 18 d.C., após a Lex Julia de adulteris, do direito romano, tentou-se distinguir o adultério do estupro, referindo-se o primeiro à relação sexual com mulher casada, e o segundo a união ilícita com viúva.3 Na idade média, se seguiu penalizando o estupro violento com a pena de morte, assim como nossas Ordenações Filipinas que se aplicava a todo homem que forçosamente dormisse com qualquer mulher4, sendo que só a partir do Código Criminal de 1830 passou-se a aplicar a pena de prisão.  1 Dicionário Escolar Latino-Português. PONTES VIEIRA, Maria Amélia et al. FARIA, Ernesto (Org.). Ministério da Educação e Cultura. Departamento Nacional de Cultura. Campanha Nacional de Material de Ensino. 3. ed., 1962, p. 949. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me001612.pdf>. Acesso em 27 nov. 2017. 2 Lições de Direito Penal: Parte Especial. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 3, v. II. 3 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial 4: dos crimes contra a dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. 8. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 46. 4 FRAGOSO, Heleno. Lições de Direito Penal: Parte Especial. 4. ed., Forense: Rio de Janeiro, 1984, p. 3. ͳͳ  SEBASTIAN SOLER, ao tratar do Direito Penal Argentino, doutrina que o estupro é o “acceso carnal por explotación de la inexperiencia sexual”5, enfatizando: Al referirse la ley a “acceso carnal” clara y castizamente descarta que se puedan considerar como violación los actos de molície, los torpes desahogos, mientras no importen unión sexual, conjunción, penetración normal o abnorme. Este es el sentido tracional de la expresión em la doctrina. No se requiere un acceso carnal completo o perfecto, bastando que haya penetración; pero ésta es necesaria, pues la ley vigente ha sustituido los términos vagos “aproximación carnal”, del P. Tejedor o “aproximación sexual” del P. Villegas-Ugarriza-García, por la frase que ahora emplea. No es necesaria la desfloración; pero no es bastante el coitus inter femora.6 No Direito Penal Brasileiro igualmente até 2009 só a conjunção carnal sem consentimento, ainda que incompleta, configurava o delito de estupro, contudo, a clássica divisão que ocorria entre atos libidinosos no direito penal brasileiro, se fez superada pela Lei n. 12.015/2009. Se antes, quando ainda em vigor a redação de 1940 do Código Penal Brasileiro, conjunção carnal que é espécie de atos libidinosos, poderia configurar apenas o delito de estupro, na redação atual dos arts. 213 de 217, com a revogação do art. 214, todos do Código Penal, este que tratava especificamente dos atos libidinosos diversos da conjunção carnal, o legislador entendeu por bem aglutinar num só tipo penal todas essas ações sob a única denominação de estupro, o que gerou, em especial, na jurisprudência julgados com entendimentos diversos sobre a natureza do tipo penal com a reforma. Com isso, se antes, o estupro era um crime próprio em que só a mulher poderia ser vítima, na atualidade o referido delito se tornou comum, podendo  5 6  Derecho Penal Argentino. Buenos Aires: Editora Argentina, 1970, p. 281, vol. III. SOLER, 1970, p. 282, vol. III. ͳʹ ser praticado contra qualquer pessoa, indiferente se há ou não opção sexual própria, uma vez que qualquer tipo de ato libidinoso praticado contra a vontade da vítima configura o delito de estupro. Para uma melhor compreensão da evolução da sociedade e do direito que a deve acompanhar, constata-se que na exposição de motivos da Parte Especial do Código Penal Brasileiro de 1940, ainda em vigor, o Ministro Francisco Campos ao tratar do Capítulo Dos Crimes Contra os Costumes, salientou: Sob esta epígrafe, cuida o projeto dos crimes que, de modo geral, podem ser também denominados sexuais. São os mesmos crimes que a lei vigente conhece sob a extensa rubrica "Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor". Figuramnos com cinco subclasses, assim intitulados: "Dos crimes contra a liberdade sexual", "Da sedução e da corrupção de menores", "Do rapto", "Do lenocínio e do tráfico de mulheres" e "Do ultraje público ao pudor".7 Portanto, à época os crimes contra a liberdade sexual eram tidos como uma subclasse, contudo, com o tempo houve a perda dos alicerces dos delitos contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor, de tal forma que com a Lei n. 12.015/2009, se tendo a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito após a Constituição Federal de 1988, o legislador infraconstitucional entendeu por bem renomear o referido capítulo para, mantendo os crimes contra a liberdade sexual como capítulo do Título Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual, refutar a clássica e ultrapassada divisão de classes constante da exposição de motivos do Código Penal de 1940. De qualquer forma, o que caracteriza a prática do delito de estupro de vulnerável ou não-vulnerável é a necessária presença implícita da elementar  7 Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal (Decreto-lei nº 2.848 de 07/12/1940. Disponível em: <https://www.diariodasleis.com.br/busca/exibelink.php?numlink=1-9615-1940-12-07-2848-CP>. Acesso em 30 nov 2017. ͳ͵  típica do dissenso da vítima na relação sexual que, constrangida, mediante violência ou grave ameaça real ou ficta, cede à vontade do autor, sendo, por óbvio, que se há consenso para a prática sexual, não há crime, sendo atípica a conduta do agente. 1. BEM JURÍDICO-PENAL TUTELADO O bem jurídico tutelado tradicionalmente tem sido a liberdade sexual, ou seja, “a livre disponibilidade do próprio corpo em matéria sexual”8, sendo que com o advento da Lei n. 12.015/2009 essa tutela jurídico-penal passou a ser tanto do homem como da mulher9, no que aqui podemos incluir o transexual e o travesti, estes que atualmente integram a denominação LGBTT, mas que apresentam diferenças próprias10. A todos, essa liberdade faculta escolher “livremente seus parceiros sexuais, podendo inclusive o próprio cônjuge, se assim o desejarem”.11 Essa liberdade sexual, para CEZAR BITENCOURT, referindo-se a mulher, significa: O reconhecimento do direito de dispor livremente de suas necessidades sexuais ou voluptuárias, ou seja, a faculdade de comportar-se, no plano sexual, segundo suas aspirações carnais, sexuais ou eróticas, governada somente por sua vontade consciente, tanto sobre a relação em si como em relação a escolha de parceiros. Contudo, como salientado acima e não mais se restringindo à conjunção carnal, essa liberdade há de se estender a todos, incluindo os transgêneros (LGBTT), por isso pode se afirmar que a lei reconhece o exercício do direito a todos de  8 FRAGOSO, 1984, p. 3. BITENCOURT, 2014, p. 47. 10 Disponível em: < https://acidblacknerd.wordpress.com/2013/09/08/qual-a-diferenca-entretransexual-e-travesti-o-que-e-transgenero-qual-a-diferenca-entre-um-transformista-e-uma-draggueen/>. Acesso em 28 nov. 2017. 11 BITENCOURT, 2014, p. 48. ͳͶ 9  negarem-se a se submeter à prática de atos lascivos ou voluptuosos, sexuais ou eróticos, que não queiram realizar, pondo-se a qualquer possível constrangimento contra quem quer que seja, inclusive contra o próprio cônjuge, namorado (a) ou companheiro (a) (união estável); no exercício dessa liberdade podem, inclusive, escolher o momento, a parceria, o lugar, ou seja, onde, quando, como e com quem lhe interessa compartilhar seus desejos e necessidades sexuais. Em síntese, protegese, acima de tudo, a dignidade sexual individual.12 Sobre o aspecto da dignidade sexual, saindo do estupro de nãovulnerável (art. 213 do CP) para ingressarmos no de vulnerável (art. 217-A do CP), defende CEZAR BITENCOURT que essa é a tutela penal imediata, não se podendo falar nesse campo em liberdade sexual como bem jurídico protegido, na ausência de disponibilidade do exercício dessa liberdade pelo vulnerável13. Para outros autores, a tutela penal nos vulneráveis recai tanto sobre “a liberdade sexual quanto a dignidade sexual”, mas inclui também o “desenvolvimento sexual bem juridicamente tutelado pelo tipo penal em estudo”14, ou mesmo está dentro do contexto de resguardo da dignidade sexual, voltando-se a proteção penal à liberdade sexual e ao pleno e livre desenvolvimento das vítimas vulneráveis15. PAULO BUSATO, sobre esse aspecto é enfático: O bem jurídico, aqui, de modo algum pode ser considerado a liberdade sexual. Fosse assim, haveria uma grave contradição, já que existe presunção absoluta de que o vulnerável não pode proteger-se sozinho do ataque contra ele projetado, o que significa que não possui tal liberdade.  12 BITENCOURT, 2014, p. 48. Id., ibid., p. 98. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Especial. 11. ed., rev., ampl. e atual., Niterói, RJ: Impetus, 2014, p. 546, v. III. 15 ESTEFAM, André. Direito Penal: Parte Especial (arts. 184 a 285). São Paulo: Saraiva, 2011, p. 170, vol.3. ͳͷ 13 14  É necessário reconhecer aqui, como bem jurídico, o direito ao desenvolvimento sexual normal, dados os efeitos certamente deletérios com relação ao caráter e ao equilíbrio psicológico relacionados à atividade sexual, que resultam da prática desse crime sobre as vítimas especiais que possuem a característica da vulnerabilidade.16 (grifo nosso) Entendemos que o problema do vulnerável resida na sua capacidade ou não de oferecer resistência à ação nociva do autor, não propriamente que lhe falte absoluta liberdade para consentir, mas sim possível eventual consciência da sua existência. Reconhecemos que há, na prática, possibilidades de se graduar a liberdade com autonomia da vítima para consentir com o ato quanto mais ou menos vulnerável ela for, principalmente com o desenvolvimento da sociedade em que há de se ter bom senso diante do caso concreto numa visão pós-positivista, em que a liberdade sexual ou não da vítima há de depender de sua maturidade que a liberdade com autonomia lhe proporcionará, coisa que o positivismo cego do art. 217-A do Código Penal não proporciona ao utilizar o critério biológico como censor e divisor da liberdade sexual com dignidade. A dignidade sexual, que não deixa de abarcar o direito ao desenvolvimento sexual normal17, está umbilicalmente ligada à liberdade sexual que é espécie da liberdade com autonomia, aspectos inatos à pessoa humana que dizem respeito à personalidade de cada um. Portanto não há como mensurar o que é dignidade sexual para uns e para outros com o Direito, até porque esse direito subjetivo, como tal, é próprio, salvo se quisermos moralmente disciplinar o que é certo para uns e não para outros  16 17  BUSATO, Paulo César. Direito Penal: Parte Especial 1. São Paulo: Atlas, 2014, p. 834. Id., ibid., loc. cit. ͳ͸ em sociedade, o que nos desenha uma pretensão por demais tirana numa sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. 1.1. Da liberdade sexual A liberdade sexual é uma das espécies da liberdade convencionada no pacto social, liberdade com autonomia, sendo esta direito fundamental de primeira dimensão ou geração, como alguns constitucionalistas preferem, que impõe ao Estado o dever de se abster de o violar numa relação vertical, assim como os nossos semelhantes na esfera horizontal nas relações interpessoais que dela decorrem em sociedade, salvo se violado o contrato social por parte de um ou alguns dos governados, no caso, no âmbito penal, autorizando então, o Estado a intervir para restringi-la em prol do bem comum que, no caso, repousa na tutela dos bens jurídicos-penais essenciais. De qualquer modo, podemos reconhecer que um dos pilares do Estado constitucional e democrático de direito consiste em reconhecer a cada indivíduo um âmbito de liberdade que lhe é inerente por pertencer ao gênero humano, por ser digno, e que está protegido contra as intervenções provenientes do Estado e das demais pessoas. É nesse sentido que a Constituição Política destaca em seu preâmbulo a liberdade como um fim para cuja garantia se estabelece o Estado.18 Assim, falar de liberdade na esfera constitucional é admitir que se trata de um direito humano fundamental complexo que inclui a autonomia da vontade e igualdade, direitos estes que dão sustentação ao exercício da liberdade, visto que são os medidores da liberdade do indivíduo em uma democracia, afinal a “liberdade é o conceito-chave para explicar o princípio  18 PULIDO, Carlos Bernal, O direito dos direitos: escritos sobre a aplicação dos direitos fundamentais. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa (Trad.). São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 232. ͳ͹  de autonomia. A liberdade da vontade é autonomia ou, em outras palavras, uma vontade livre é equivalente a uma vontade autônoma”.19 Sob esse aspecto e o direito, consigna Vicente de Paulo Barreto: O direito pretende, assim, limitar a liberdade pessoal irrestrita de cada indivíduo, própria da natureza humana no estado de natureza. Nesse contexto é que Kant desenvolve a teoria da liberdade, ideia angular em todo o sistema do pensamento ético-filosófico e político kantiano. Para Kant, o conceito de liberdade explica-se através de dois elementos, que se articulam e complementam um ao outro: a) Liberdade como coexistência, que consiste na limitação recíproca da vontade de cada e tem como limite a esfera individual do outro; esse aspecto da liberdade torna-se possível na medida em que a liberdade é considerada também como obediência; b) Liberdade como autonomia, que é a propriedade da vontade graças à qual está é para si mesma a sua lei, somente sendo livre aquele que se torna, através da vontade própria, fonte das suas próprias leis, ou seja, autônomo. Kant reconsidera então o conflito entre a possível contradição entre a liberdade como autonomia e a liberdade como coexistência. De forma imediata, o direito restringe a autonomia, obrigando o indivíduo a curvarse diante de uma vontade que não lhe é própria. Esse possível conflito será solucionado por Kant com o uso da ideia do contrato social. Através do contrato social as autonomias individuais irão refletir-se na vontade geral, que assegura a manifestação da autonomia e da coexistência de forma complementar. Dessa vontade geral, todos participam na sua elaboração e na submissão aos seus ditames.20 Em sendo assim, têm-se que em se tratando de vítimas vulneráveis21, há de se reconhecer que o Direito Penal limita a liberdade com autonomia em graus diversos, tutelando-as. O Estado utiliza, na essência, um critério biológico e não psicológico. Aquele permite objetivar na prática a fronteira da vulnerabilidade na idade, mas que certamente não é o mais justo em virtude da irracionalidade do próprio critério encerra quando sob um aspecto susta a  19 WEBER, Thadeu, Ética e Filosofia do Direito: Autonomia e dignidade da pessoa humana. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p. 35. 20 BARRETO, Vicente de Paula. O Fetiche dos Direitos Humanos e outros Temas. 2. ed. rev. e ampl., Porto Alegre: Livraria Do Advogado, 2013, p. 60. 21 Menor de quatorze anos, ou com alguém que, por enfermidade ou deficiente mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência . ͳͺ  vulnerabilidade, do dia para noite com o advento dos catorze anos completos, desprezando por completo a situação fática e a eventual maturidade da vítima para consentir com consciência para o ato sexual. Sob outro aspecto não, notadamente da vítima que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato sexual, ou seja, para a idade se adota um critério rígido e para estes casos um critério flexível, contudo ambos contêm sérios reflexos criminais. Se só o exame pericial poderá dizer se ao tempo dos fatos a vítima com enfermidade ou doença mental tinha ou não capacidade de discernir sobre a prática do ato, então, por que não, de lege ferenda, se estender o exame do expert àquela com quatorze anos incompletos? CEZAR BITENCOURT é contrário a se falar em liberdade sexual para menores de 14 (catorze) anos incompletos, acentua, lastreado na doutrina de Muñoz Conde e Luciane Potter: Na realidade, na hipótese de crime sexual contra vulnerável não se pode falar em liberdade sexual como bem jurídico protegido, pois se reconhece que não há a plena disponibilidade do exercício dessa liberdade, que é exatamente o que caracteriza a vulnerabilidade. Na verdade, mais que protege a liberdade sexual do menor de quatorze anos ou incapaz (que, sabidamente, não existe nessa hipótese), a criminalização da conduta descrita no art. 217-A procura assegurar a evolução e o desenvolvimento normal de sua personalidade, para que, na fase adulta, possa decidir livremente, e sem traumas psicológicos, seu comportamento sexual; para que tenha, em outros termos, serenidade e base psicossocial não desvirtuada por eventual trauma sofrido na adolescência, podendo deliberar livremente sobre sua sexualidade futura, inclusive quanto à sua opção sexual. A evolução da nossa sociedade, com a tecnologia crescente dos meios de comunicação reclama uma nova postura dos atores legislativos e jurídicos ainda tão apegados ao positivismo que o próprio sistema ainda nos impõe, não podendo a moral social se sobrepor e se servir do direito penal como meio de intervir em sociedade para atendê-la seletivamente.  ͳͻ O modo como se relacionam o Direito e a Moral se tornou uma questão de difícil definição, mas “tão difícil que Rudolf Von Ihering a chamou de ‘Cabo Horn’22 da Filosofia Jurídica. VICENTE BARRETO e FERNANDA BRAGATO, ao tratarem da questão apontam: Não obstante o termo “Direito” possa assumir significados diversos de acordo com o contexto em que é aplicado, ele apresenta, nas suas diversas acepções, elementos comuns e interdependentes. Logo, o objeto definível e estudado pela filosofia jurídica, em sua dimensão ontológica, é o direito em suas três acepções concomitantemente. Pressupor, que o “Direito em sentido próprio e primário” (HERVADA, 2008, p. 136) – e, portanto, o objeto a ser definido pela filosofia – seja aquele, revelado em apenas uma de suas acepções é incorrer em reducionismo. O estudo da etimologia da palavra corrobora a ideia de que, enquanto objeto de estudo da filosofia, o direito não é nem somente o ordenamento normativo (lei), nem somente a pretensão acionável (o direito subjetivo), muito menos somente o justo (ou o devido), mas um fenômeno constituído pela interdependência e interconexão destas três dimensões.23 Num pós-positivismo não podemos deixar de olhar o direito como “um fenômeno constituído pela interdependência e interconexão destas três dimensões”24. Nessa linha, não podemos afirmar que não existe liberdade sexual ao adolescente menor de catorze anos de idade, mas sim, que ela existe, ainda que de forma mitigada e monitorada pela acepção normativa do Direito, ou até mesmo que desconhecida da vítima em face da sua perceptível vulnerabilidade em decorrência, por exemplo, de sua tenra idade. Entretanto, há de se perguntar que trauma na sua dignidade sexual pode ter uma adolescente  com catorze anos incompletos que 22 BARRETO, Vicente de Paulo; BRAGATO, Fernanda Frizzo. Leituras de Filosofia do Direito. Curitiba: Juruá, 2013, p. 136. “Cabo Horn foi a metáfora utilizada para comparar a relação entre moral e Direito àquela região em torno da Ilha de Hornos, situada no ponto mais ao sul da América do Sul. Nesse local as embarcações que iam do Atlântico para o Pacífico enfrentavam tormentas e mares difíceis de serem navegados”. 23 BARRETO; BRAGATO, 2013, p. 136. 24 Id., Ibid., loc. cit. ʹͲ  conscientemente, por vontade própria, se relaciona sexualmente com outrem? Se há dissenso, sim, trauma poderá haver e crime de estupro ocorrerá, ainda que a violência ou grave ameaça seja ficta, mas daí a tornar absoluta a presunção do constrangimento que comprovadamente possa ter inexistido, é tirania, é obstar o exercício do direito fundamental a ter direitos, no caso, de se relacionar sexualmente, ainda que adolescente com catorze anos incompletos. Melhor seria, de lege ferenda, a unificação da adoção do critério de distinção entre criança e adolescente adotado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente25, inserindo-o no art. 217-A, do CP. Assim, se poderia aventar da defendida ocorrência da presunção iuris et de iure se quando a prática sexual fosse contra menor com 12 (doze) anos incompletos (criança), mas não permanecer essa presunção para com adolescentes que ainda não tenham 14 (catorze) anos completos, uma vez que em sua maioria, nos dias atuais, já sabem o que querem ou não com relação às práticas sexuais, portanto, com capacidade consciente de consentir para o ato, como a prática forense do dia-a-dia nos tem apresentado rotineiramente. Negar a uma adolescente que demonstra maturidade e capacidade plena de consentir com consciência o direito de se relacionar sexualmente, comprovadas por meio de laudo psicossocial e declarações em juízo, é querer normatizar crenças religiosas, negar a sua liberdade com autonomia frente à com coexistência, enfim, é negar democraticamente que possa fazer suas próprias escolhas de condução de sua dignidade sexual que está umbilicalmente conectada à liberdade sexual, uma vez que não há dignidade sem liberdade.  25 Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. ʹͳ  Portanto, condenar alguém que alcança a maioridade penal com pena de reclusão mínima de 8 (oito) anos por ter se relacionado sexualmente com uma adolescente de 14 (catorze) anos incompletos, que possa ter comprovadamente consentido de livre e espontânea vontade para o ato, por amor ou não, é fechar os olhos para a realidade e agir como um autômato positivista. É agir com tirania ao negar o direito a ter direitos que é inerente à cidadania, princípio fundamental do nosso Estado Democrático de Direito. O direito a ter direitos, expressão de cidadania para Hanna Arendt, não se resume à prerrogativa de exercer os direitos vigentes, mas de lutar por direitos que ainda não existem, não se limitando essa concepção “a conquistas legais ou ao acesso a direitos previamente definidos, ou à implementação efetiva de direitos abstratos e formais, e inclui fortemente a invenção/criação de novos direitos, que emergem de lutas específicas e da sua prática concreta”.26 A ideia de cidadania, que não se pode abordar por um viés reducionista para se tratar como um “conjunto de direitos e obrigações sob o ângulo exclusivamente jurídico”27, está interligada aos direitos humanos fundamentais, por essa razão MARCELO NEVES aclara que: A noção de direitos do homem ou direitos humanos, quando surgiu no âmbito das revoluções liberais, distinguiu-se do conceito de cidadania. Enquanto a primeira referia-se a direitos de toda e qualquer pessoa humana, o segundo dizia respeito aos direitos dos membros de uma determinada coletividade política e, mais precisamente, de um Estado. Porém a ideia de direitos humanos importava também o direito de toda e qualquer pessoa de ter cidadania (“um direito a ter direitos”). Essa situação passou a ter uma certa relevância na semântica mais recente dos direitos humanos, conforme a qual esses direitos implicam direitos  26 DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. In: DAGNINO, Evelina (Org.). Anos 90. Política e Sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 108. 27 BARRETO, 2013, p. 179. ʹʹ  civis (“liberdades negativas”), políticos (“liberdades positivas”), sociais (“direitos a prestação em sentido estrito” ou “droits-créances”).28 Dessa forma, numa democracia fundada nesses princípios fundamentais não há espaço para uma cidadania liberal, mas sim para uma cidadania moderna ou plena em que se concretizem, por meio de instrumentos ou mecanismos próprios, os direitos civis do século XVIII, os políticos do século XIX e os sociais do século XX29, sob pena de não passar da denominada cidadania institucionalizada que não deixa de ser um viés acentuado da cidadania tutelada que inibe o controle social do poder político.30 Sobre esse aspecto, CALMON DE PASSOS, ao tratar da cidadania plena, consigna: Em nosso século, algo foi acrescido a esse binômio – direitos civis, direitos políticos: os denominados direitos sociais. Se antes os direitos políticos de participação objetivavam a compartilhada definição dos interesses tutelados e a institucionalização do direito de resistir às ingerências do poder na esfera da autonomia privada – dever de abstenção – a dimensão nova dos direitos sociais amplia o âmbito do poder político, que se mantendo como direito à participação, abrange, agora, também, o direito de exigir do Estado prestações asseguradoras de condições sociais que propiciem a igualdade substancial entre os cidadãos, somada àquela igualdade formal antes já proclamada e assegurada.31 A abstenção estatal perante os direitos fundamentais de primeira dimensão tem o condão de fazer com que os mesmos não sejam violados, no que para isso, precisam ser tutelados por quem tem o objetivo fundamental de construir uma sociedade livre, justa e solidária, bem como promover o bem de todos sem preconceitos (CF; art. 3º), sob pena do manto  28 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 249-250. MARSHALL, T. H. Cidadania e classe social. In: ______. Cidadania, classe social e status. CADELHA, Meton Porto (Trad.). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. Cap. 3, p. 66. 30 PASSOS, J. J. Calmon de. Cidadania Tutelada. In: FERREIRA, Luis Alexandre (Org.). Hermenêutica, Cidadania e Direito. Campinas: Millennium, 2005, p. 40-41. 31 PASSOS, 2005, p. 13. ʹ͵ 29  do totalitarismo fazer sombra à democracia de forma a negar o direito à liberdade com autonomia e o exercício pleno da cidadania que se expressa no direito a ter direitos, primeiro direito humano.32 No que tange ao respeito à igualdade que só se conquista com liberdade, registra CELSO LAFER: Na esfera do público, que diz respeito ao mundo que compartilhamos com os outros e que, portanto, não é propriedade privada de indivíduos e/ou do poder estatal, deve prevalecer, para se alcançar a democracia, o princípio da igualdade. Este não é dado pois as pessoas não nascem iguais e não são iguais nas suas vidas. A igualdade resulta da organização humana. Ela é um meio de se igualizar as diferenças através das instituições. É o caso da polis, que torna os homens iguais por meio da lei – nomos. Por isso, perder o acesso à esfera do público significa perder o acesso à igualdade. Aquele que se vê destituído da cidadania, ao ver-se limitado à esfera do privado fica privado de direitos, pois estes só existem em função da pluralidade dos homens, ou seja, da garantia tácita de que os membros de uma comunidade dão-se uns aos outros.33 Concretizar a cidadania plena é permitir a igualdade substancial num exercício pleno de liberdade nas dimensões política (participação), civil (autodeterminação) e social (prestações públicas positivas), sob pena de não se passar de uma cidadania tutelada que se expressa por aquela concedida formalmente, mas sem os mecanismos ou instrumentos que permitam a sua materialização, por isso esse aspecto há de se enfrentado sob o viés da interdisciplinaridade. 1.2. Da Dignidade sexual A dignidade da pessoa humana que tem como subespécie a dignidade sexual, é direito inato ao ser humano e “valor unificador de todos os direitos  32 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 154. 33 LAFER, Celso, 1988, p. 152. ʹͶ  fundamentais”34, não se podendo negar que todo aquele que tem negado o direito de autodeterminar a sua própria vida e como deseja conscientemente viver, tem negado o seu sagrado direito à liberdade com autonomia em detrimento da com coexistência, bem como ao livre desenvolvimento de sua personalidade, portanto o direito a ter uma existência digna, o que não se coaduna com qualquer democracia a negação ao direito de autodeterminação dos cidadãos. A dignidade sexual, bem jurídico-penal tutelado das vítimas vulneráveis, conforme parte da doutrina penal defende, reclama o seu enfrentamento para se tentar aquilatar até que ponto é legítima a intervenção estatal em certos casos de aparente violação à dignidade sexual, na medida em que essa questão interage com a liberdade negativa ou com autonomia e o exercício da cidadania, outro princípio fundamental35 à nossa cara democracia. Sobre a dignidade da pessoa humana, assinala LUIS ROBERTO BARROSO: A dignidade da pessoa humana tornou-se, nas últimas décadas, um dos grandes consensos éticos do mundo ocidental. Ela é mencionada em incontáveis documentos internacionais, em Constituições, leis e decisões judiciais. No plano abstrato, poucas ideias se equiparam a ela na capacidade de seduzir o espírito e ganhar adesão unânime. Tal fato, todavia, não minimiza – antes agrava – as dificuldades na sua utilização como um instrumento relevante na interpretação jurídica. Com freqüência, ela funciona como um mero espelho, no qual cada um projeta sua própria imagem de dignidade. Não por acaso, pelo mundo afora, ela tem sido invocada pelos dois lados em disputa, em temas como interrupção da gestação, eutanásia, suicídio assistido, uniões homoafetivas, hate speech, negação do Holocausto, clonagem, engenharia genética, inseminação artificial post mortem, cirurgias de mudança de sexo,  34 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Humanos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional, 11. ed. rev., atual. e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 95. 35 Art. 1º, II, da Constituição Federal de 1988. ʹͷ  prostituição, descriminalização de drogas, abate de aviões sequestrados, proteção contra a autoincriminação, pena de morte, prisão perpétua, uso de detector de mentiras, greve de fome, exigibilidade de direitos sociais. A lista é longa.36 A dignidade da pessoa humana, inerente ao homem, precede à previsão constitucional como um dos princípios fundamentais do nosso Estado Democrático e Social de Direito, demonstrando esta que o Estado existe em função da pessoa humana, pela pessoa humana e para a pessoa humana, indiferente de sua nacionalidade, idade ou origem, ou seja, o legislador constituinte “reconheceu expressamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal”37; vale dizer, o governo, conglomerado de representantes eleitos direta ou indiretamente pelo povo, tem na servidão aos governados a sua razão de existir, devendo atuar sempre na busca atender a vontade geral que repousa no bem comum, com respeito aos direitos humanos e sociais previstos na Constituição. Falar de dignidade da pessoa humana é necessariamente reconhecer estarem presentes a liberdade, igualdade e autonomia da vontade, uma vez que não há o direito à liberdade sem os demais direitos assegurados que expressam a noção de dignidade, o que o art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU em 1948, já prevê como marco da reconstrução dos direitos humanos no pós-guerra de 1945. Nesse ponto consigna INGO WOLGANG SARLET que  36 BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público. Mimeografado, dez. de 2010, p. 3. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wpcontent/themes/LRB/pdf/a_dignidade_da_pessoa_humana_no_direito_constitucional.pdf>. Acesso em: 24 dez. 2014. 37 SARLET, 2012, p. 98. ʹ͸  o Tribunal Constitucional da Espanha, inspirado igualmente na Declaração Universal, manifestou-se – em decisão proferida em 1985 – no sentido de que “a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais”.38 Sem embargo, podemos afirmar que a dignidade da pessoa humana engloba os direitos à personalidade que diz respeito, dentre outros, à vida, liberdade e igualdade; vale dizer, “é princípio que unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial prioridade. A dignidade humana simboliza, desse modo, verdadeiro super-princípio constitucional, a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo”39, para nós, na esteira dos ensinamentos de Humberto Ávila, um verdadeiro postulado. A personalidade é atributo inerente ao ser humano, sendo adquirida ao nascimento com vida e deve ser tutelada nas esferas pública e privada, por isso mesmo os direitos da personalidade estão ligados de forma perpétua e permanente à pessoa humana, “não se podendo mesmo conceder um indivíduo que não tenha direito à vida, à liberdade física ou intelectual, ao seu nome, ao seu corpo, à sua imagem e àquilo que ele crê ser sua honra”40, até porque “a personalidade não se identifica com os direitos e com as obrigações jurídicas, constitui a precondição deles, ou seja, o seu fundamento e pressuposto”.41 O Código Civil de 2002 quando trata dos direitos da personalidade no seu art.11 e ss., se harmoniza com a Constituição de 1988 que nos trouxe um Estado Democrático e Social de Direito, dando um status constitucional  38 SARLET, 2012, p. 101. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 31. 40 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – Parte Geral. 25. ed., atual., São Paulo: Saraiva, 1995, v. 1. 41 CUPIS, Adriano de. Tradução de Afonso Celso Furtado Rezende. Os direitos da personalidade. São Paulo: Quorum, 2008, p. 21. ʹ͹ 39  aos direitos da personalidade que estão disciplinados no catálogo dos direitos e garantias fundamentais, que, para PABLO STOZE GAGLIANO e RODOLFO PAMPLONA FILHO, são “aqueles que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si e em suas projeções sociais.”42 O reconhecimento desses direitos no campo do direito público conduz à necessidade de seu reconhecimento no campo do direito privado; neste caso, encaram-se as relações entre particulares e o jurista se propõe a propiciar meios para defender esses direitos não patrimoniais não mais contra a ação do poder público, mas contra as ameaças e agressões advindas de outros homens.43 Os direitos da personalidade com foco no direito público integram os “direitos humanos fundamentais, portanto, colocam-se como uma das previsões absolutamente necessárias a toda as Constituições, no sentido de consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a limitação de poder e visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana”44. A dignidade da pessoa humana, e como não poderia deixar de ser a sua espécie dignidade sexual, se apresenta, portanto, como elemento axiológico exponencial do direito, em torno do qual gravitam os demais valores e direitos humanos fundamentais. A dignidade como autonomia envolve, em primeiro lugar, a capacidade de autodeterminação, o direito de decidir os rumos da própria vida e de desenvolver livremente a própria personalidade. Significa o poder de realizar as escolhas morais relevantes, assumindo a responsabilidade pelas decisões tomadas.[...]. O segundo aspecto destacado diz respeito às condições para o exercício da autodeterminação. Não basta garantir a possibilidade de escolhas livres, mas é indispensável prover meios adequados para que a liberdade seja real, e não apenas retórica. Para tanto, integra a ideia de dignidade o denominado mínimo existencial, a  42 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Parte Geral (contém análise comparativa dos códigos de 1916 e 2002). 7. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 152. 43 RODRIGUES, Silvio, 1995, p. 82. 44 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 9. ed., São Paulo: Atlas, 2001, p. 2. ʹͺ  dimensão material da dignidade, instrumental ao desempenho da autonomia. Para que um ser humano possa traçar e concretizar seus planos de vida, por eles assumindo responsabilidades, é necessário que estejam asseguradas mínimas condições econômicas, educacionais e psicofísicas. O terceiro e quarto aspectos da dignidade como autonomia – universalidade e inerência – costumam andar lado a lado. O cunho ontológico da dignidade, isto é, seu caráter inerente e intrínseco a todo ser humano, impõe que ela seja respeitada e promovida de modo universal.45 Lado outro, a dignidade humana como heteronomia ou coexistência se “traduz uma visão da dignidade ligada a valores compartilhados pela comunidade, antes que a escolhas individuais. Nela se abrigam conceitos jurídicos indeterminados como bem comum, interesse público, moralidade, ou a busca do bem do próprio indivíduo”46, ou seja, nela há interferência do meio em que o ser humano vive, o que interage com a liberdade sob o aspecto da coexistência e limita a sua liberdade como autonomia. A concepção da dignidade como autonomia valoriza o indivíduo, sua liberdade e seus direitos fundamentais. A dignidade como heteronomia, por sua vez, funciona como uma limitação à liberdade individual, pela imposição de valores sociais e pelo cerceamento de condutas próprias que possam comprometer a dignidade do indivíduo.47 Em sendo assim, na vítima vulnerável de estupro que seja adolescente com até catorze anos incompletos, na acepção normativa do Direito, se sobrepõe a liberdade sexual como heteronomia à como autonomia, embora, como regra geral, esta deva sempre prevalecer.48 Entretanto, embora se trate a dignidade sexual - algo inato a todos - de bem jurídico-penal essencial, tutelado pelo legislador por meio do art. 217-A do Código Penal, há de se enfrentar a tormentosa questão da presunção absoluta que grande parte da doutrina penal vem agasalhando como a  45 BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. In: GOZZO, Débora e LIGIERA, Wilson Ricardo (Orgs). Bioética e Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 39-40. 46 BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho, op. cit., p. 38-39. 47 Id., ibid., p. 59. 48 BARROSO, Luis Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho, op. cit., p. 50-51. ʹͻ  adotada pelo legislador com a revogação do art. 224, “a”, do Código Penal pela Lei n. 12.015/2009, ou seja, se assim sendo, afinal, essa presunção reside na vulnerabilidade e/ou na violência ou grave ameaça? A melhor exegese deve tê-la como absoluta?  ͵Ͳ CAPÍTULO II PRESUNÇÃO: VULNERABILIDADE X VIOLÊNCIA E/OU GRAVE AMEAÇA O art. 217-A do Código Penal tem como afeto à vulnerabilidade da vítima o fato de ela ter catorze anos incompletos, ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tenha o necessário discernimento para a prática do ato, ou por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência, ou seja, para delimitar a vulnerabilidade, o legislador se utilizou para um caso o critério objetivo e biológico (catorze anos incompletos, ser enfermo), para outro o critério subjetivo e psicológico (falta de capacidade de discernir para a prática do ato sexual, ou por qualquer outra causa não possa oferecer resistência). Para o primeiro, apenas a certidão de nascimento comprova a condição da vítima, para as demais hipóteses se faz necessária a perícia técnica. No art. 218-B do CP49, o legislador insere no conceito de vulnerabilidade a vítima maior de 14 anos e menor de 18 anos, ou seja, como bem salienta CEZAR BITENCOURT, nos apresenta uma ampliação desse conceito, se tendo como absoluta para as vítimas adolescentes de catorze anos incompletos e, relativa, para as adolescentes maiores de catorze e menores que dezoito anos, ou seja, podemos afirmar que, partindo  49 Favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável. ͵ͳ  da premissa que adolescente para a Lei n. 8.069/199050 é quem está na faixa dos 12 (doze) anos completos aos 18 (dezoito) incompletos, o legislador penal fez distinção aleatória e sem lógica entre adolescentes em se tratando do crime de estupro, diferentemente se a distinção fosse entre criança e adolescente como define o Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja, legislou ao arrepio do princípio da igualdade com base numa política criminal que não se mostra dentro do programa do Estado de combater a criminalidade, uma vez que com esse atuar demonstra que não seguiu todas as fases de implementação com o ciclo de políticas públicas. Isso demonstra que o legislador, nesses casos, não trabalhou com qualquer argumento sólido que possa dar sustentação a uma persuasão racional que justifique a diferença de tratamento dado a iguais, no caso, adolescentes, o que reclama uma interpretação doutrinaria e judicial que não siga nesse rumo sem lógica, principalmente em se tratando de crime de estupro contra adolescente com 14 anos incompletos. Sobre a vulnerabilidade do art. 217-A do Código Penal, em questão, como bem leciona CEZAR BITENCOURT, “em outros termos, o legislador consagra uma vulnerabilidade real e outra equiparada”51, finalizando que, em resumo, “pode-se afirmar, há três modalidades de vulnerabilidade: a) real (do menor de 14 anos); b) equiparada (do enfermo ou deficiente mental); c) por interpretação analógica (quem, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência)”.52 As denominadas, equiparada e por interpretação analógica, não reclamam maiores delongas e atenção de nossa parte em face da proposta  50 51 52  Estatuto da Criança e do Adolescente. BITENCOURT, 2014, p. 101. Id., ibid., loc. cit. ͵ʹ do nosso trabalho e do fato de que em ambas se faz necessária perícia técnica para se determinar se a vítima tinha ou não o necessário discernimento para a prática do ato, ou por qualquer outra causa, não podia oferecer resistência quando dos fatos, como no caso do exemplo clássico de que a vítima é dopada em sua bebida com a droga “boa noite cinderela” para o fim de ser abusada sexualmente. A incidência predominante na prática é daquela tida como real (do adolescente de 14 anos incompletos), questão que tem suscitado intensos debates na jurisprudência com posições diversas e, em consequência, efeitos mais ou menos nocivos aos autores. Na Argentina, até a Lei 25.087/1999, o artigo 119 do seu Código Penal Argentino preceituava que praticava o delito de estupro quem mantinha conjunção carnal com menor entre 12 (doze) anos e 15 (quinze) anos de idade53, mas com a reforma penal esse patamar passou a ser de 13 (treze) anos a 16 (dezesseis) anos de idade54, noticiando-se que, agora, se deve provar a imaturidade sexual da vítima para a condenação do autor55, o que tem gerado intensos debates entre psicólogos, sexólogos e juristas. O parâmetro biológico, sem o psicológico e social do amadurecimento sexual56 da vítima, por si só, despreza, empiricamente, se houve ou não o  53 Desapareció la figura penal del estupro. Disponível em: <http://www.lanacion.com.ar/572372desaparecio-la-figura-penal-del-estupro>. Acesso em 30 nov. 2017. 54 Codigo Penal de La Nacion Argentina. Ley 11.179 (T.O. 1984 atualizado). Disponível em: <http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/15000-19999/16546/texact.htm#17>. Acesso em 30 nov. 2017. 55 Desapareció la figura penal del estupro. Disponível em: <http://www.lanacion.com.ar/572372desaparecio-la-figura-penal-del-estupro>. Acesso em 30 nov. 2017. 56 O desenvolvimento sexual feminino precoce e a Puberdade Feminina Precoce são duas situações diferentes do desenvolvimento. A Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de S. Paulo define puberdade precoce (no sexo feminino) como o desenvolvimento de um ou mais dos caracteres sexuais secundários antes dos 8 anos de idade ou o aparecimento da menstruação antes dos 9 anos. Entretanto, do ponto de vista psiquiátrico interessa considerar também o amadurecimento sexual em torno dos 10 anos, que não caracteriza a Puberdade ͵͵  seu dissenso para o ato, elementar implícita do tipo penal do estupro de vulnerável. Essa é a intepretação que judicialmente muito se tem dado em face da nova redação do art. 217-A do Código Penal Brasileiro, se presumindo iuris et de iure a sua ocorrência apenas com o ato sexual com adolescente com idade inferior à 14 (catorze) anos completos, não se dando voz à vítima que possa conscientemente ter consentido para o ato. Passa a suposta ofendida a ter que viver o constrangimento do fenômeno, no caso negativo, da revitimização, já que não se sente, na verdade, vítima de qualquer crime contra a sua liberdade sexual que julga já desfrutar por se sentir com maturidade suficiente para decidir, dentro da liberdade com autonomia que democraticamente lhe é assegurada, a vida sexual que deseja levar, salvo alguns elogiosos julgados mais atentos à evolução da sociedade. Na impossibilidade de análise, ainda que conjunta de algum desses parâmetros complementares – psicológico e social -, de lege ferenda, seria providencial que o legislador brasileiro vinculasse então à vulnerabilidade nos crimes de estupro a idade de 12 anos incompletos, marco definitório de criança utilizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente57, estendendo, como deveria de ser, a sua doutrina da proteção integral à vertente penal, justificando, de certa forma, ainda que possa ser discutível, a mudança do anunciado parâmetro de presunção relativa para absoluta quando praticado o delito contra criança.  Feminina Precoce, mas tem sido cada vez mais freqüente. Disponível em: <http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=315>. Acesso em: 30 dez 2017. 57 Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. ͵Ͷ  De qualquer forma, após a Lei n. 12.015/2009, a vulnerabilidade da vítima de estupro não é e nem pode ser estanque, até mesmo em respeito ao princípio da igualdade. Em se tratando da aplicação da pena, também a desproporcionalidade pode se fazer presente ao se utilizar apenas de um critério para análise da culpabilidade, ou seja, a vulnerabilidade como inerente ao tipo, indiferente da idade da vítima. Essa avaliação não deve ser cega em respeito ao princípio penal constitucional da individualização da pena. Deve ser feita com prudência e bom senso pelo julgador quando da análise da primeira circunstância judicial (culpabilidade) do art. 59 do Código Penal Brasileiro para a aplicação da pena-base, afinal é nessa circunstância que se gradua uma maior ou menor reprovabilidade da conduta do agente na prática do estupro, levando-se em consideração os atos praticados e, no caso, qual a real idade da vítima e sua capacidade de dissentir e/ou resistir, ainda que estes aspectos circulem no campo da discricionariedade que se mais se limita e objetiva com a oitiva da vítima em juízo e laudo psicossocial. Se há ou deve haver correspondência direta entre a vulnerabilidade da vítima – em regra diz respeito à sua idade quando do fato - e a reprovabilidade da conduta do agente – atos praticados - para se aferir com discricionariedade judicial prudente a sua culpabilidade quando do início da aplicação da pena, se deve também aferir antes, quando de sua oitiva no curso do devido processo legal, o aspecto correspondente à sua maturidade sexual para consentimento ou não do ato por parte da vítima. Este aspecto avaliativo se obtém também, como já dito, por meio de laudo psicossocial que normalmente já é feito para os vulneráveis. Como esses delitos são normalmente cometidos à clandestinidade, a palavra da vítima é considerada pelo Poder Judiciário de suma importância  ͵ͷ de forma a ganhar relevância, mas não deve o sê-lo apenas para se averiguar se houve ou não o ato sexual que a lei veda que se pratique, mas também para se aquilatar a sua consciência ou não sobre possível consentimento voluntário que tenha dado para a realização do ato, o que viabilizará uma análise mais segura de sua maturidade para usufruir da liberdade que a lei pensa não ter, dado esse que aliado ao laudo psicossocial pode ou não, no campo probatório, justificar uma absolvição. Até que ponto se pode ter vulnerabilidade digna de tutela penal de uma vítima adolescente, virgem ou não, que declara espontaneamente em juízo que se relacionou sexualmente com o autor de livre e espontânea vontade, que inclusive se harmoniza com o laudo psicossocial? A dignidade sexual de uma vítima adolescente vulnerável que se relaciona sexualmente por vontade própria, restaria maculada? Qual parâmetro a ser utilizado para essa medição, moral? Quem teria real capacidade e autoridade para aquilatar quem tem ou não dignidade sexual para com liberdade praticar voluntariamente sexo com outrem? 2. SÚMULA Nº 593 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Recentemente, em 25/10/2017, face as divergências judiciais sobre a presunção absoluta ou relativa nos estupros de vulneráveis com a nova redação dada ao art. 217-A do Código Penal Brasileiro pela Lei n. 12.015/2009, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça publicou no DJe de 06/11/2017, o enunciado da Súmula 59358 que consagra uma posição jurisprudencial mais ortodoxa dessa instância superior do Poder Judiciário Nacional.  58 O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente. ͵͸  Como se pode, com base apenas num parâmetro biológico (adolescente com idade de 14 anos incompletos), em pleno século XXI, se ter como irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente, ou seja, se ter como absoluta a presunção de violência ou grave ameaça, o que já no século passado era relativa. Afinal, a alegada presunção da vítima reside na falta de consciência para ter capacidade de consentir com o ato sexual (vulnerabilidade), ou na violência ou grave ameaça que possa sofrer para ceder à prática do ato? Se o parâmetro é apenas biológico, e a jurisprudência entende que se trata da vulnerabilidade da vítima, como se pode presumir de forma absoluta que a vítima, em todos os casos, não tem capacidade de discernir e consentir a prática do ato? Houve mudança de parâmetro da presunção pelo legislador, ou essa mudança decorre de uma interpretação não muito recomendada da norma? Embora revogado pela Lei n. 12.015/2009, o art. 224, “a”, do Código Penal Brasileiro assim preceituava: Art. 224. Presume-se a violência, se a vítima: a) não é maior de 14 (catorze) anos; b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; c) não pode, por qualquer outra causa oferecer resistência. (grifo nosso) Dessa forma, para o legislador, na essência, nada mudou, a não ser que agora não consta mais expressamente que essa presunção é de violência com a redação do art. 217-A do Código Penal Brasileiro, mas isso não a transfere para a vulnerabilidade que sempre esteve presente, só que antes era implícita e agora é explícita, como antes era a violência.  ͵͹ Assim, fica claro para nós que a presunção de outrora ou atual está vinculada à violência ou grave ameaça e não à vulnerabilidade ou à capacidade de consentir por parte de um adolescente com 14 (catorze) anos incompletos, o que é compreensível, uma vez que o novo art. 217-A do Código Penal Brasileiro59 nada trata explicitamente dessa questão, ao contrário da redação atual do art. 213 do Código Penal Brasileiro60 dada pela Lei n. 12.015/2009. O legislador, com essa reforma pontual, não nos trouxe nenhum elemento que permita uma interpretação que faça reconhecer que houve mudança de foco da presunção, ou seja, da violência ou grave ameaça para a vulnerabilidade, uma vez que a idade (14 anos incompletos) que demonstra a sua condição se manteve íntegra na nova redação. Sobre o revogado art. 224, “a”, do Código Penal Brasileiro, registra historicamente ROGÉRIO GRECO, com propriedade: A partir da década de 1980, nossos Tribunais, principalmente os Superiores, começaram a questionar a presunção de violência constante do revogado art. 224, a, do Código Penal, passando a entendê-la, em muitos casos, como relativa, ao argumento de que a sociedade do final do século XX e início do século XXI havia modificado significativamente, e que os menores de 14 anos não exigiam a mesma proteção que aqueles que viveram quando da edição do Código Penal, em 1940.61 O que pode ter mudado desde então que justifique um verdadeiro retrocesso com o endurecimento da norma penal, em especial, agora, em pleno século XXI, com o enunciado 593 do Superior Tribunal de Justiça que firma a posição de uma presunção absoluta para os estupros de vulneráveis?  59 Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. 61 Código Penal Comentado. 10 ed., rev., ampl. e atual. Niterói/RJ: Impetus, 2016, p. 777. ͵ͺ 60  JOSÉ HENRIQUE PIERANGELI62 enunciava, já à época, ao tratar do revogado art. 224 do CP: Nélson Hungria, com a sua autoridade de membro da Comissão Revisora, além de uma cultura penalística invejável, desde logo assinalou ter o Código se inclinado pela tese da presunção relativa ao abolir, do projeto original (Projeto Alcântara Machado), a expressão “não se admitindo prova em contrário” (art. 293). [...]. Resumindo os argumentos em favor da tese da presunção relativa, expostos principalmente por Magalhães Noronha e Nélson Hungria, Mirabete, que também segue essa orientação, assim escreve: “A maioria dos doutrinadores, porém, inclina-se pela existência de presunção relativa (juris tantum). A favor da primeira opinião há os argumentos de que o consentimento da menor é sempre inválido, embora possa ter desenvolvimento físico e psíquico superior a sua idade, e de que a idade da vítima (menor de catorze anos) faz parte do tipo. Além disso, a lei indica que as outras duas situações mencionadas no dispositivo configuram casos de presunção relativa, o que não ocorre na letra a. Alinham-se a favor da tese de que a presunção é relativa os seguintes fundamentos: as duas outras alíneas b e c tratam de presunções relativas, e não seria de se excluir a alínea a; a prevalecer a opinião oposta, a menor seria mais protegida até que o insano mental, que não tem nenhuma possibilidade de consciência; não há menção expressa sobra a natureza da presunção”. Efetivamente, a grande maioria da doutrina opta pela solução da presunção relativa, com o que se põe a salvo do Código Penal da adoção da concepção da responsabilidade penal objetiva, que o Direito Penal procura de todas as maneiras impedir, e de regras – para muitos princípios – da verdade real e do livre convencimento do juiz, em oposição ao sistema de prova legal e da teoria da carga probatória, defendida com maestria por Carnelutti e Chiovenda, e de grande valia para o processo civil, mas que não pode ter aplicação no processo penal, como já tivemos oportunidade de escrever. (grifo nosso) Acreditamos, juntamente com a doutrina processual penal mais contemporânea, que não há que se falar em verdade real, mas tão-somente em verdade processual porque são nos autos do processo que ela se apresenta e revela a forma como se encontra, assim como, registramos que vemos com reservas o princípio da livre convencimento do juiz, salvo quando devidamente fundamentado com base nas provas constantes dos autos. Nessa linha, em face das considerações doutrinárias acima trazidas por JOSÉ HENRIQUE PIERANGELI, há de se concluir “que as presunções  62 Escritos Jurídicos-Penais. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 168-169.  ͵ͻ legais ou jurídicas absolutas devem ser abolidas ou pelo menos limitadas, no Direito Processual de todo Estado de Direito”63, uma vez que essas presunções são tidas como aquelas que “não admitem prova em contrário”64, no que melhor “será, sempre, a adoção da presunção legal relativa, com o que se evita terríveis injustiças”.65 Lado outro, é sabido, desde o Contrato Social de Jean Jacques Rousseau, que a lei decorre da vontade geral do povo, que se associa para que as leis civis possam permitir desfrutar de uma liberdade convencionada em sociedade, sendo que esta se desenvolve por meio de uma construção evolutiva da moral social, mas como se fala, “o direito penal não é e nem pode ser guardião da moral perdida”.66 RAÚL CERVINI67 ao tratar da descriminalização de fatos que se situam exclusivamente na ordem moral, aponta: O criminólogo americano Gibbens (In: Associación Internacional de Derecho Penal, 1975) mostra que existe uma série de condutas qualificadas como delituosas, em relação às quais ocorre uma progressiva descriminalização de fato ou de jure em diferentes sociedades. Pode-se observar essa situação mediante uma mudança na reação social frente a alguns delitos contra a honestidade (costumes) e a moralidade sexual. A tendência, assinala o mesmo autor, é de descriminalizar aqueles comportamentos que somente aparecem como imorais, como por exemplo o adultério, a bigamia, a homossexualidade consentida entre adultos, a prostituição, a sodomia ou comercialização da pornografia, algumas formas de obscenidade e a idade de consentimento juridicamente relevante para as relações heterossexuais. De acordo com esta concepção moderna, reiteramos que os fatos situados exclusivamente na ordem moral devem ficar fora do sistema penal, posto que a  63 PIERANGELI, 1999, p. 166. Id., ibid., p. 163. 65 Id., ibid., p. 166. 66 OLIVEIRA, Leandro Correa de; SILVA FILHO, Edson Vieira. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2013-jan-07/direito-penal-nao-nem-guardiao-moralperdida>. Acesso em 01 nov 2017. 67 Os Processos de Descriminalização. 2. ed. rev. GOMES, Luiz Flávio (Trad.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 198-199. ͶͲ 64  intervenção punitiva somente se legitima na medida em que assegura uma ordem externa. A preservação da norma moral, como tal, não é missão do Direito Penal e o Direito Penal sexual, especificamente, deve limitar-se à proteção da juventude, a evitar coações ou que alguém se veja prejudicado ou importunado em sua intimidade. (grifo nosso) Em sendo assim, não é crível que estejamos, em pleno século XXI, diante de um retrocesso jurídico-penal que autorize se reconhecer estarmos num processo de involução social e moral em face da redação da parte final da Súmula 593 do STJ que preconiza implicitamente a adoção da presunção absoluta nos estupros de vulneráveis, já que tem como irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente, ou seja, cegamente e objetivamente condena aquele que pratica qualquer ato libidinoso com vítima adolescente de 14 anos incompletos, por meio de um positivismo reacionário. Embora a vulnerabilidade da vítima possa, em tese, ser graduada subjetivamente conforme a idade, laudo psicossocial e como se declara em juízo de forma a se permitir uma correlação com a sua maior, menor ou mesmo ausência da maturidade para consentir com a prática do ato sexual, não se pode ter uma presunção absoluta de que esta capacidade está ausente para todas as vítimas adolescentes com 14 anos incompletos, ou mesmo que é absoluta de forma ficta a presunção de violência ou grave ameaça. O bom senso e a boa dogmática penal, em qualquer hipótese, deve refutar que uma presunção absoluta, seja qual for, autorize qualquer decreto judicial condenatório, ainda mais quando se é sabido que no Direito sequer existem verdades absolutas.  Ͷͳ 2.1. Elementar do tipo e a súmula O tipo penal do estupro tem como elementar implícita do tipo o dissenso da vítima, seja não-vulnerável (art. 213 do CP) ou vulnerável (art. 217-A do CP), sendo razoável que, em se tratando de vítima adolescente com idade inferior à 14 anos, se presuma de forma relativa a violência ou grave ameaça do agente para neutralizar o dissenso da vítima, mas não de forma absoluta, uma vez que o critério biológico adotado pelo código penal, ao não tratar os iguais na medida de suas desigualdades, não satisfaz, na essência, a necessidade de se concretizar a justiça como virtude primeira do Poder Judiciário em uma democracia. Nessa linha, o que autoriza o reconhecimento da prática dos delitos de estupro de vulnerável e não-vulnerável é a prática do ato com violência ou grave ameaça (meio utilizado) fictícia ou real, respectivamente, para constranger (elementar explícita do tipo do art. 213 e implícita do art. 217-A) a vítima há ceder à lascívia do agente, devendo ser, assim, real o meio utilizado em se tratando de não-vulnerável e fictício ou presumido relativamente no caso dos vulneráveis, afinal só o dissenso da vítima decorrente do constrangimento autoriza o reconhecimento de que os atos sexuais configuram crime, uma vez que fazer sexo ou praticar atos libidinosos diversos da conjunção carnal, de livre e espontânea vontade, não é crime quando se tem maturidade suficiente para a correta compreensão do ato. Dessa forma, não há equidade a imposição de uma condenação a um agente com, por exemplo, à época dos fatos 18 (dezoito) anos de idade uma pena de reclusão de no mínimo 08 (oito) anos de reclusão -, por ter se relacionado sexualmente com vítima adolescente de 13 (treze) anos de idade e aparência de mais idade, que consentiu livremente com o ato e que era ou  Ͷʹ não mais virgem. Que se relacionou sexualmente com o autor de livre e espontânea vontade, seja por amor ou não, ou que convive em união estável ou não, mas que deseja continuar a conviver amorosamente com o mesmo, consciente dos atos praticados. Negar essa real possiblidade, é negar o exercício da liberdade com autonomia da vítima adolescente, é querer moldar a dignidade sexual da vítima que é lhe é inata e integra o seu direito de personalidade, é negar à adolescente madura e consciente de seus atos o direito a ter direitos como expressão da cidadania, princípio fundamental do nosso Estado Democrático de Direito. Para os adolescentes entre 14 (catorze) anos completos e 18 (dezoito) anos incompletos há presunção relativa68, mas nada justifica juridicamente o porquê para o adolescente de até 14 (catorze) anos incompletos essa presunção deva ser absoluta, o que não seria a mesma coisa se a vítima fosse uma criança com 12 (doze) anos incompletos, isso levando em consideração as definições contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente, que se levado em consideração, de lege ferenda, unificaria importante definição para a solidificação da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente.  68 Art. 218-B. Submeter, induzir ou atrair á prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone. Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos. ... §2º Incorre nas mesmas penas: I – quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na situação descrita no caput deste artigo. Ͷ͵  Sobre essa distinção que os arts. 217-A e 218-B, do Código Penal Brasileiro fazem com relação à vulnerabilidade, CEZAR BITENCOURT69 registra: À evidência, como destacamos ao examinarmos o estupro de vulnerável, nessas hipóteses, é presumida, implicitamente, a violência. No entanto, agora, já no art. 218-B deparamo-nos, novamente, com a adjetivação de vulnerável para outra faixa etária, qual seja, menor de dezoito anos, aparentemente, sem qualquer justificativa razoável. Essa opção políticocriminal do legislador gera, no mínimo, alguma perplexidade, afora a dificuldade de se encontrar, com segurança, a sua interpretação mais adequada, sem afrontar o princípio da reserva legal. Devemos partir, necessariamente, do entendimento segundo o qual, na ótica do legislador, devem existir duas espécies ou modalidades de vulnerabilidade, ou seja, uma vulnerabilidade absoluta e outra relativa; aquela refere-se ao menor de quatorze anos, configuradora da hipóteses de estupro de vulnerável (art. 217-A); esta, refere-se ao menor de dezoito anos [...]. Inegavelmente, o legislador ampliou o conceito de vulnerabilidade – que define satisfatoriamente a condição do menor de quatorze anos – para alcançar, incompreensivelmente, o menor de dezoito anos (art. 218-B). Os aplausos quanto ao acerto legislativo em relação à primeira hipótese, não se repetem relativamente à segunda, especialmente considerando-se a evolução da moral sexual na sociedade contemporânea, a maioridade civil aos dezoito anos, a juventude se casando a partir dos dezesseis anos, vivendo juntos, votando aos dezesseis anos, além da independência e da maturidade que adquiriu neste início de milênio. Com efeito, esses atributos todos demonstram a absoluta desnecessidade de presunções e ficções jurídicas para criminalizar comportamentos morais com pesadas sanções penais privativas de liberdade. (grifo nosso) Uma política criminal legislativa que gere perplexidade não pode ter esse efeito naquele a quem cabe interpretar e aplicar a lei, cabendo ao julgador atuar com razoabilidade e proporcionalidade quando da análise do caso concreto, atento aos princípios penais que deontologicamente, na esteira dos ensinamentos de Ronald Dworkin, Jünger Habermas e Klaus Günther, fazem com que, como normas, sigam o binômio validade x invalidade.  69  BITENCOURT, 2014, p. 136-7. ͶͶ Não é coerente que se tenha, sem qualquer fundamento ou justificativa, uma presunção relativa para um adolescente de certa faixa de idade e para outra ela seja absoluta, fere o princípio da razoabilidade e igualdade e, em consequência, da liberdade com autonomia. A norma mais favorável, no caso que gera a presunção relativa da violência ou grave ameaça, deve valer para todos os adolescentes, estes compreendidos entre os 12 (doze) anos completos e 18 (dezoito) anos incompletos, conforme marco legal regulatório dos direitos humanos das crianças e adolescentes, adotado pela Lei n. 8.069/1990 em respeito a normativas internacionais70, sendo essa a melhor interpretação que se deve fazer dessa dicotomia de vulnerabilidades que o legislador nos apresenta. Atos sexuais ocorridos entre autor maior de idade e vítima adolescente com catorze anos incompletos, que se deram de forma voluntária por meio de um consciente consentimento mútuo em virtude, por exemplo, de relacionamento amoroso, não pode dar azo a uma condenação criminal por se presumir de forma absoluta que houve por parte do autor violência ou grave ameaça que automaticamente reconhece um inexistente dissenso da vítima por constrangimento, quando entre adolescentes menores de 18 (dezoito) anos e maiores de 14 (catorze) anos de idade essa presunção é relativa.71  70 Declaração Universal dos Direitos das Crianças de 1959. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comitebrasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-externa/DeclDirCrian.html>. Acesso em 25 dez 2017. Regras mínimas das Nações Unidas para administração da Justiça da Infância e Juventude (Regras de Beijing) – Resolução 40/33 da Assembléia Geral da ONU, em 29 de novembro de 1985. Disponível em: <http://acnudh.org/wp-content/uploads/2012/08/Regras-M%C3%ADnimasdas-Na%C3%A7%C3%B5es-Unidas-para-a-Administra%C3%A7%C3%A3o-daJusti%C3%A7a-daInf%C3%A2ncia-e-da-Juventude-Regra-de-Beijing.pdf>. Acesso em 25 dez 2017. 71 Art. 218-B, caput, c/c §2º, I, do Código Penal. Ͷͷ  Assim, em casos excepcionais pode ser relativizada a presunção para se reconhecer, na prática, que a vítima tem a capacidade de discernir e consentir com o ato sexual praticado, em não havendo nenhum elemento probatório no curso do devido processo penal que autorize a presunção real ou ficta da prática de violência, coação ou grave ameaça e, em consequência, que a vítima tenha sido constrangida a praticar os atos sexuais com o agente, condição sine qua non para a configuração do delito do art. 217-A do CPB, no que, na falta de provas concretas do dissenso da vítima, há de se considerar como atípica a conduta do agente. Neste sentido, autorizados e recentes julgados de tribunais de justiça brasileiros: TJSP: Apelação. Estupro de vulnerável. Absolvição. Necessidade. Vítima que conta com 12 anos completos. Vulnerabilidade relativa. Necessidade de homogeneizar o sistema penal, utilizando o critério etário adotado pelo ECA. Inexistência de violência presumida. Ausência de qualquer coação física ou moral. Acusado e vítima que iniciaram breve relacionamento. Inexistência de ofensa ao bem jurídico liberdade sexual. (…). A alteração introduzida pela lei 12.015/2009 não eliminou a controvérsia doutrinária e jurisprudencial quanto a ser relativa ou absoluta a presunção de violência prescrita no antigo art. 224 do Código Penal. O debate, agora, cinge-se à relativização, ou não, da vulnerabilidade da vítima. Conforme tenho defendido, não caminhou bem o legislador ao deixar de homogeneizar a definição de criança e adolescente, ora protegendo o menor de 12 anos (Estatuto da Criança e do Adolescente), ora resguardando o menor de 14 anos (Código Penal). Entendo, portanto, ser absoluta a presunção de vulnerabilidade tão somente em relação às crianças, ou seja, aos menores de 12 anos. Sendo, ao contrário, possível discutir-se a relativização da vulnerabilidade em se tratando de adolescentes (maiores de 12 anos). No caso em tela a ofendida contava mais de 12 anos completos e, embora não possuísse experiências sexuais anteriores, é certo não ter havido qualquer forma de coação física ou moral por parte do réu. Não se verifica, portanto, hipótese de abuso da situação de vulnerabilidade da menor, inexistindo ofensa ao bem jurídico liberdade sexual. Desta feita, a absolvição é a melhor medida. (...)." Apelo provido. (TJSP - APL: 00028786520138260575 SP 0002878-65.2013.8.26.0575. Rel. Des. Guilherme de Souza Nucci, j. 28.07.2015, 16ª Câmara de Direito Criminal, pub. 06.08.2015).  Ͷ͸ TJMG: APELAÇÃO CRIMINAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. ABSOLVIÇÃO. ERRO DE TIPO. IMPOSSIBILIDADE. RÉU QUE TINHA CIÊNCIA DA IDADE DA VÍTIMA. ABSOLVIÇÃO EX OFFICIO. AUSÊNCIA DE VIOLÊNCIA OU COAÇÃO. CONJUNÇÃO CARNAL CONSENTIDA. RELAÇÃO AMOROSA ENTRE VÍTIMA E RÉU DEMONSTRADA NOS AUTOS. RECURSO PROVIDO. - A vulnerabilidade é relativa, podendo ser afastada caso se demonstre que a vítima era uma adolescente precoce, com comportamento não condizente com sua idade, e que a conjunção carnal foi praticada com seu expresso consentimento, mormente se se encontravam em relação amorosa. - Recurso provido. (ACrim nº 1.0313.12.002420-0/001. Rel. Des. Doorgal Andrada, j. 26.07.2017, pub. 02.08.2017). TJMG: APELAÇÃO CRIMINAL - RECURSO MINISTERIAL - ESTUPRO DE VULNERÁVEL - CONSENTIMENTO AO ATO SEXUAL PRESUNÇÃO RELATIVA - CONDENAÇÃO - IMPOSSIBILIDADE. RECURSO NÃO PROVIDO. - Com base na relativização da presunção de violência prevista no art. 217-A do CP, o consentimento expresso da vítima, que mantinha um relacionamento amoroso com o acusado, tem o condão de descaracterizar o delito de estupro no caso concreto, a ensejar a manutenção da absolvição do apelado. (ACrim nº 1.0521.14.0071130/001. Rel. Des. Furtado de Mendonça, j. 27.09.2016, pub. 07.10.2017). TJMG: APELAÇÃO CRIMINAL - ESTUPRO DE VULNERÁVEL - MENOR DE 14 ANOS - CONSENTIMENTO DA VÍTIMA - VIOLÊNCIA PRESUNÇÃO RELATIVA - ABSOLVIÇÃO MANTIDA - TRÁFICO DE DROGAS E AMEAÇA - AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS - CONDENAÇÕES MANTIDAS - CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS ANALISADAS COM EXCESSIVO RIGOR - PENAS - DIMINUIÇÃO APLICAÇÃO DA CAUSA ESPECIAL DE DIMINUIÇÃO DE PENAS REINCIDÊNCIA - IMPOSSIBILIDADE - ISENÇÃO DO PAGAMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS - PREJUDICIALIDADE. Havendo comprovação de que a vítima, embora menor de quatorze anos, consentiu nas relações sexuais mantidas com o acusado, sem que tenha havido qualquer ameaça ou violência, não resta configurado o crime de estupro de vulnerável, haja vista tratar-se de vítima com vida sexual ativa, o que afasta a sua vulnerabilidade. (…). (ACrim nº 1.0521.14.001439-5/001. Rel. Des. Antônio Carlos Cruvinel, j. 27.01.2015, pub. 06.02.2015). Em sendo assim, entendemos mais racional e equânime se manter relativizada implicitamente a presunção de violência ou grave ameaça do art. 217-A do CPB (Lei n. 12.015/2009), esta que já foi explícita quando em vigor ainda o art. 224, “a”, do Código Penal Brasileiro de 1940, sob pena de se fomentar um retrocesso jurídico-penal que não se condiz com a evolução da sociedade  no século XXI, promovendo Ͷ͹ uma desigualdade penal antidemocrática ao não tratar os iguais na medida de suas desigualdades em face de uma moral social seletiva com a qual o âmbito criminal não deve cuidar.  Ͷͺ CAPÍTULO III TIPOS PENAIS As normas penais criam os tipos incriminadores que descrevem ações que quando realizadas se tornam ilícitas e culpáveis, mas podem também criar normas permissivas ou não incriminadoras. Todo delito decorre de uma norma incriminadora abstrata que necessariamente para se concretizar, em regra, depende de uma ação ilícita e culpável. LUIZ LUISI72 leciona ao trazer o pensamento de Graf zu Dohna que: Subsumindo o tipo penal obrigatoriamente uma ação, e sendo esta uma concreção da vontade, ele, pode apresentar um aspecto objetivo e outro subjetivo. Ao tipo objetivo “pertencem todas aquelas características do delito que se realizam no mundo exterior”. Ao tipo subjetivo concernem “todos aqueles elementos que estão no interior do agente”. O tipo concreto, isto é, a ação adequada ao tipo, é, por sua vez, objeto do juízo de antijuridicidade e culpabilidade. A palavra tipo penal não era usada pela lei penal brasileira até a Reforma da Parte-Geral de 1984 do Código Penal, como bem assinala JOSÉ CIRILO DE VARGAS, sendo que “constitui tradução livre do vocábulo ‘Tatbestand’, empregado no texto do art. 59 do Código Penal alemão de 1871, e provindo da expressão latina corpus delicti”.73  72 O tipo penal, a teoria finalista e a nova legislação penal. Porto Alegre: Fabris, 1987, p. 2930. Do Tipo Penal. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 22. Ͷͻ 73  Contudo, como bem assinala o saudoso mestre da Vestuta Casa de Afonso Pena74, “Tatbestand” não tem uma tradução pacífica na doutrina75, sendo que foi em 1906 com Ernst Beling que houve uma revisão profunda do conceito dessa palavra que “deixa de ser o delito para ser, apenas, um dos aspectos do mesmo. Uma parte em relação ao todo”.76 CEZAR BITENCOURT77 ao abordar o tema leciona: Tipo é o conjunto dos elementos do fato punível descrito na lei penal. O tipo exerce uma função limitadora e individualizadora das condutas humanas penalmente relevantes. É uma construção que surge da imaginação do legislador, que descreve legalmente as ações que considera, em tese, delitivas. Tipo é um modelo abstrato que descreve um comportamento proibido. Cada tipo possui características e elementos próprios que os distinguem uns dos outros, tornando-os todos especiais, no sentido de serem inconfundíveis, inadmitindo-se a adequação de uma conduta que não lhes corresponda perfeitamente. Cada tipo desempenha uma função particular, e a falta de correspondência entre uma conduta e um tipo não pode ser suprida por analogia ou interpretação extensiva. Os tipos penais são compostos por elementos estruturais que fundamentam o injusto, na descrição típica está implícito um juízo de valor. Assim, o tipo penal, contrariamente ao que imaginou Beling em sua concepção inicial, não se compõe somente de elementos puramente objetivos, mas é integrado, por vezes, também de elementos normativos e subjetivos.78 Assim, os tipos penais podem possuir os seguintes elementos estruturais: 1) elemento objetivo ou descritivo, como o próprio nome indica, é aquele em que descreve objetivamente a conduta na norma. 2) elemento subjetivo geral é o dolo que se faz presente quando se apresenta a conjugação do aspectos intelectivos e volitivos do agente na sua conduta, ou seja, quando há uma atuação consciente e com vontade própria do autor.  74 Nome dado carinhosamente à Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, por ter sido Afonso Pena o seu fundador e primeiro diretor. 75 CIRILO DE VARGAS. 2014, p. 22. 76 LUIZ LUISI, 1987, p. 14-15. 77 BITENCOURT, 2013, p. 344. 78 Id., ibid., p. 349. ͷͲ  3) elemento subjetivo especial, também conhecido como elemento subjetivo do tipo ou especial do injusto se apresenta quando a norma reclama a presença de um fim específico na atuação do agente. Pode expressamente ou não assim dispor a norma penal, entretanto, este especial fim de agir não integra o dolo (elemento subjetivo geral) que se perfaz com a consciência e vontade de praticar a conduta nuclear do tipo. 4) elemento normativo é todo aquele que reclama um juízo valorativo da sua presença ou não na norma que utiliza expressões que reclamam esse procedimento, como, exemplo, mulher honesta, coisa alheia móvel etc. Como exemplo, apontamos o delito de Furto79 (Subtrair coisa alheia móvel, para si ou para outrem). Neste tipo penal constatamos a presença de todos os elementos que compõem a estrutura do tipo. O dolo (elemento subjetivo geral) reside na consciência e vontade de subtrair algo que não lhe pertence, que é a conduta nuclear do tipo representada pelo verbo (elemento objetivo). O elemento normativo está no juízo de valoração do que venha a ser coisa alheia móvel, e o elemento subjetivo do tipo no para si ou para outrem, ou seja, no fim específico que motiva o agente a praticar a conduta delituosa de subtrair coisa alheia móvel. Há de se ressaltar que todo tipo penal apresenta um elemento objetivo ou descritivo, mas não necessariamente os demais elementos. Se o delito for culposo, não há dolo, portanto se afasta a presença do elemento subjetivo geral. Se a ação do agente não tem nenhuma finalidade específica, não há que se falar na presença do elemento subjetivo do tipo, assim como não há elemento normativo se a norma penal não apresenta expressão que reclama um juízo de valoração. Exemplo: O homicídio80 (Matar alguém). É um tipo  79 80  Art. 155 do Código Penal Brasileiro. Art. 121 do Código Penal Brasileiro. ͷͳ penal que apresenta um elemento objetivo ou descritivo de uma conduta e a presença do elemento subjetivo geral (dolo), não havendo que se fazer qualquer juízo de valoração sobre qualquer expressão utilizada (elemento normativo) e o agente não atua com um fim específico (elemento subjetivo especial), se o faz, a norma não exige para a configuração do homicídio simples. Lado outro, finalizando, assim como há o injusto doloso, há o injusto culposo, sendo o conteúdo estrutural daquele diferente deste. Enquanto naquele “é punida a conduta dirigida a um fim ilícito”81, neste – injusto culposo – “pune-se a conduta mal dirigida, normalmente destinada a um fim penalmente irrelevante, quase sempre lícito”.82 3. CLASSIFICAÇÃO 3.1. Quanto à estrutura Os tipos penais se classificam quanto à sua estrutura em básicos ou fundamentais e derivados. O tipo básico é aquele que descreve a ação incriminadora no caput da norma penal, essencial à configuração do delito. O tipo derivado, como o próprio nome indica, são aqueles que derivam do básico ou fundamental, são os denominados crimes qualificados que podem dar-se pela conduta ou pelo resultado mais gravoso. Não se pode confundir majorante ou causa de aumento com o tipo derivado, porque este constitui um plus incriminador, um desdobramento autônomo da conduta ou do seu resultado decorrente do tipo básico,  81 82  BITENCOURT, 2013, p. 371. Id., ibid., loc. cit. ͷʹ enquanto a majorante são apenas causas circunstanciais que se vinculam ao tipo básico agravando a conduta do agente descrita no caput da norma penal. Todo tipo derivado tem pena autônoma mínima e máxima autônoma e mais gravosa que o tipo básico ou fundamental, enquanto as causas de aumento agravam em percentuais as penas previstas no tipo básico. Ex.: No roubo83, se a ação básica ou fundamental é praticada mediante o emprego de arma ou concurso de duas ou mais pessoas84, há incidência dessas causas de aumento que agravam a conduta do agente descrita no tipo básico, passando a pena nele prevista a ter um agravamento percentual a ser considerado pelo julgador na terceira fase da aplicação da pena, mas se dessa ação violenta descrita no caput do artigo 157 do Código Penal há lesão corporal de natureza grave ou morte85, estamos diante de um crime qualificado pelo resultado ou tipo penal derivado que apresenta preceito secundário autônomo e mais grave que o básico ou fundamental, com uma nova pena mínima e máxima privativa de liberdade. 3.2. Quanto ao bem jurídico tutelado A doutrina penal dominante sustenta que o Direito Penal se destina a tutelar bem jurídicos essenciais e não à assegurar a vigência da norma,  83 Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência. 84 Art. 157 - ... Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa. ... §2º - A pena aumenta-se de um terço até a metade: I – se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma. II – se há concurso de duas ou mais pessoas. 85 Art. 157 - ... ... §3º Se da violência resulta lesão corporal grave, a pena é de reclusão, de sete a quinze anos, além da multa; se resulta morte, a reclusão é de vinte a trinta anos, sem prejuízo da multa. ͷ͵  como defende Günther Jakobs e seus seguidores, razão pela qual o legislador não cria tipos penais sem uma finalidade específica de tutelar o dano ou perigo, sendo que JOSÉ CIRILO VARGAS leciona que para “se distinguir se um tipo é de dano ou de perigo, deve-se considerar o instante em que, segundo a descrição típica, a conduta se torna perfeita”.86 3.3. Quanto à unidade ou pluralidade de bens jurídicos tutelados. Os tipos penais podem se restringir a tutelar um único bem jurídico, como a vida no homicídio, ou uma pluralidade de bens jurídicos, como no roubo em que se tutela o patrimônio, a integridade física da vítima e a liberdade, estes tidos como tipos complexos. 3.4. Quanto ao seu conteúdo Os tipos penais podem ser formais que também são chamados de mera conduta, em que há consumação antecipada do delito que não depende do resultado naturalístico que os tipos materiais reclamam para a sua existência. Podemos dizer que mesmo nos tipos formais há consumação, só que não naturalística, mas sim normativa. 3.5. Quanto à ação Neste nosso limitado espaço pretendemos apenas abordar o aspecto classificatório dos tipos penais quanto à ação, local em que reside a problemática a ser enfrentada perante o delito de estupro, considerando posição de parte da doutrinária e jurisprudência que vem sendo adotada no enfrentamento desse tipo penal e seus graves reflexos que podem ocorrer em face de uma exegese menos acurada que o senso comum jurídico fomenta diante de um regime capitalista de produção e de uma opinião  86  Op. cit., p. 150. ͷͶ pública que se lastreia numa mídia sensacionalista movida pelo sentimento punitivista, sem deixar de lado a pouca atenção que a doutrina penalista tem dado ao longo do tempo a essa classificação e diferenciação que tem reclamado, diante desse quadro atual, uma atenção especial. Assim, os tipos penais, quanto a sua ação, podem ser simples ou mistos. 3.5.1. Tipos simples ou unitários São aqueles que têm apenas um núcleo do tipo que se expressa por meio de um único verbo que informa a conduta reitora ou nuclear da ação que viola o bem jurídico tutelado pela norma penal. Expressam uma única ação desenvolvida por meio de apenas um verbo e, em consequência, o fato-crime em espécie. Ex.: No homicídio simples (matar alguém), o único verbo existente e, no caso, reitor da conduta incriminada, é matar. 3.5.2. Tipos mistos, compostos ou de conteúdo variável. Os tipos penais mistos - compostos para JOSÉ CIRILO VARGAS87 -, se dividem em alternativos e por acumulação. Parte da doutrina penal tem dado pouco ou nenhum enfoque a essa distinção, ou quando o faz, em regra, não se utiliza da profundidade necessária88, contudo consignamos que HELENO CLÁUDIO FRAGOSO89 com propriedade e profundidade abordou o tema à época.  87 Op. cit., p. 146. André Estefan, Cleber Masson, Cezar Roberto Bitencourt, Francisco de Assis Toledo, Damásio E. Jesus, Jorge Figueiredo Dias, Francisco Muñoz Conde, Santiago Mir Puig e João Mestieri. 89 FRAGOSO, 1985, p. 161-162. ͷͷ 88  Para este penalista, os tipos penais mistos alternativos são aqueles em que o núcleo do tipo se apresenta em mais de um verbo, sendo indiferente se a conduta do agente se realiza mediante uma ação que se amolde apenas um deles ou não, já que há fungibilidade e a unidade delituosa não se altera, violando-se sempre um mesmo bem ou interesse tutelado. Já os tipos penais mistos por acumulação, não cumulativos como consigna por ser algo diverso90, igualmente são aqueles em que há no núcleo do tipo mais de um verbo a identificar a conduta do agente, contudo diversamente dos alternativos, elas são infungíveis entre si, havendo a possibilidade real e concreta da ocorrência de concurso de crimes quando praticadas as condutas dentro do mesmo contexto fático. Na mesma trilha se encontra CLEBER MASSON91 para quem no tipo misto alternativo há descrição de mais de uma conduta como hipóteses de realização do mesmo delito, não alterando a unidade a prática de mais um núcleo do tipo, enquanto no misto, que chama de cumulativo, há realização de uma conduta leva ao concurso material, como se dá no abandono material do art. 244 do CP. De forma bem didática, temos a conceituação que LUIZ RÉGIS PRADO92 apresenta ao tratar dessa classificação, sendo que no tipo misto alternativo “há uma fungibilidade (conteúdo variável) entre as condutas, sendo indiferente que se realizem uma ou mais, pois a unidade delitiva  90 FRAGOSO, 1985, p. 162: “Isto não ocorre com os chamados tipos cumulativos. Esta designação é evidentemente imprópria: não há tipos cumulativos. Há disposições legais que contêm, independentemente, mais de uma figura típica de delito, ou seja, nas quais há tipos acumulados. Nestes casos, haverá sempre concurso, em caso de realização de mais de um tipo. São exemplos de leis mistas cumulativas os arts. 135, 180, 208, 242, 244, 248, 326 etc.” 91 Direito Penal Esquematizado – Parte Geral (arts. 1º ao 120). 6. ed. rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012a, p. 162, vol.1. 92 Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral – Arts. 1.º a 120. 10. ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 330-331, vol. 1. ͷ͸  permanece inalterada”, enquanto no tipo misto por acumulação, que igualmente a Masson denomina de cumulativo, “não há fungibilidade entre as condutas, o que implica, em caso de se realizar mais de uma, a aplicação da regra cumulativa – concurso material”. Comumente acontece na prática, para finalizarmos e demonstrarmos a importância desse estudo, um entendimento equivocado sobre a tipificação a ser feita quando da prática do delito do art. 1ª da Lei n. 8.137/1990, que diz respeito aos crimes contra a ordem tributária. Esse tipo penal, no caput, apresenta como condutas reitoras ou nucleares os verbos suprimir ou reduzir tributo (tipo misto alternativo), ou contribuição social e qualquer acessório, sendo que os seus cinco incisos da norma apenas descrevem o meio pelo qual essas ações reitoras podem se dar, enumerando as condutas-meio possíveis de serem realizadas, sendo eventualmente confundidas, na prática de mais de uma delas, como crimes autônomos contra ordem tributária para se pleitear, equivocadamente, o concurso de crimes, o que, em se aceitando, acarreta tamanha injustiça ao ferir o princípio ne bis in idem. 3.5.3. Tipos penais mistos sui generis Fora os tipos penais mistos alternativos e por acumulação, entendemos que existem tipos penais mistos que embora por acumulação, são também alternativos, residindo estes numa parte da própria norma penal que quando conjugada com a outra parte passam a ser mistos por acumulação, ou seja, tipos compostos que às vezes podem se apresentar só alternativos. A ação do agente pode se concretizar por uma ou mais condutas alternativas presentes em parte da norma de forma a aperfeiçoar o delito imputado, sem que necessariamente tenha que realizar conduta prevista em  ͷ͹ outra parte do mesmo dispositivo que, se dada de forma acumulada, num mesmo contexto fático, pode configurar o denominado tipo misto por acumulação, por alterar a unidade do delito com condutas infungíveis entre si, permitindo a incidência do concurso de crimes. O delito de receptação é um exemplo, descrevendo em seu preceito primário: Art. 180 - Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte. (grifo nosso) Esse delito tem como condutas nucleares na sua primeira parte, os verbos adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, enquanto a sua segunda parte apresenta apenas o verbo influir como conduta nuclear, sendo os demais verbos (adquira, receba ou oculte) apenas indicativos do resultado da conduta antecedente de influenciar realizada pelo agente. Assim, constatamos que a norma penal acima é dividida em duas partes. A primeira reside na ação do agente que adquiri, recebe, transporta, conduz ou oculta, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime. A segunda parte que tem como marco divisório, no caso, a conjunção alternativa ou, ocorre quando o autor influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte. O agente pode realizar num mesmo contexto fático uma ou mais condutas da primeira parte que o tipo penal de receptação se aperfeiçoará com a unidade do delito não se alterando, uma vez que as condutas nucleares previstas nesta parte são fungíveis entre si, caracterizando o denominado tipo misto alternativo. Assim, nessa hipótese, mesmo que pratique mais de uma conduta nuclear no mesmo contexto fático, responderá apenas por um delito de receptação.  ͷͺ Entretanto, se realizar na mesma situação fática qualquer uma das condutas previstas na primeira parte e concomitante a descrita na segunda parte (influir terceiro de boa fé para adquirir, receber ou ocultar) do mesmo dispositivo penal, há de se reconhecer que se passa a estar diante de um tipo misto por acumulação por serem infungíveis entre si as condutas nucleares praticadas em ambas as partes. Nesse caso, a unidade do delito se altera e a incidência do concurso de crimes se faz presente, nada obstando, noutro giro, que o agente possa isoladamente apenas praticar a conduta descrita nesta citada segunda parte que responderá por um delito de receptação, sendo esta última parte do delito um tipo simples ou unitário que, como se sabe, possui um único verbo (influir). Para HELENO CLÁUDIO FRAGOSO93, assim como outros que aponta, o delito de receptação é um tipo penal misto por acumulação, o que está correto, contudo não se pode ignorar que só será assim caracterizado se realizada, como dito acima, uma das condutas – adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar - da primeira parte do tipo penal concomitantemente com aquela prevista na segunda parte – influir - numa mesma situação fática. Do contrário, se praticada apenas alguma daquelas da primeira parte, se estará diante de um tipo misto alternativo, e se realizada apenas a conduta descrita na segunda parte da norma penal em questão, estaremos diante de um tipo simples ou unitário e da prática igualmente de um só crime de receptação, mas não de um tipo misto por acumulação.  93  FRAGOSO, 1985, p. 162. ͷͻ A percepção dessa distinção é de suma importância diante do caso concreto, sob pena de se cometer injustiças fazendo incidir o concurso de crimes quando não se devia, ou mesmo não o considerando como presente quando se deveria no caso concreto, ou seja, pode ter sérias consequências na aplicação da pena e no que se possa entender por justiça. Assim, resumindo, podemos afirmar que nada obsta que num mesmo contexto fático um agente adquira e influencie terceiro de boa-fé para que oculte o bem até momento posterior. Ex.: “A” vai de carona com “B” adquirir um veículo que sabe ser produto de crime. Tão logo fecha o negócio com “C”, pede a “B” que nada sabia da ilicitude da conduta de “A”, que guarde na garagem de sua casa o citado veículo por sete dias até conseguir vaga para guarda-lo, ou seja, “B”, terceiro de boa-fé, influenciado por “A”, oculta o bem ilícito sem que saiba dessa ocorrência ilegal. Diante dessa hipótese, estaria configurado o tipo misto por acumulação que faz incidir concurso de crimes, uma vez que a unidade do delito se alterou, praticando o agente duas condutas distintas do mesmo crime, dentro do mesmo contexto fático, ou seja, dois crimes de receptação. Então, assim, estaríamos diante de um tipo penal de misto sui generis por conter num mesmo tipo ações que podem ou não ser fungíveis entre si, sem que num caso ou noutro haja a descaracterização do delito imputado, por isso mesmo entendemos que deva ser objeto de atenta observação por todos os atores jurídicos que atuam nos processos criminais.  ͸Ͳ CAPÍTULO IV TIPO LEGAL DO ESTUPRO DO NÃO-VULNERÁVEL NA LEI Nº 12.015/2009 Dispõe, ipsis litteris, a atual redação do art. 213 do Código Penal Brasileiro: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Destarte, para enfrentarmos a problemática a que nos dispomos, restanos fazer uma (re) leitura do dispositivo que nos permita apurar se estamos diante de que tipo penal, simples ou composto, se este, alternativo ou por acumulação ? 4. O TIPO PENAL NA DOUTRINA O delito de estupro (CPB; art. 213), com a nova redação dada pela Lei n. 12.015/2009 passou a aglutinar no seu elemento descritivo o revogado crime de atentado violento ao pudor (CPB; art. 214), o que causou muitas interpretações judiciais equivocadas. A conjunção carnal sempre foi espécie do gênero atos libidinosos, como continua a ser, embora integrando na atualidade ambas as denominações no mesmo tipo legal (estupro), não sendo, portanto, de espécies diferentes antes ou depois da Lei n. 12.015/2009, o que sempre demonstrou a duvidosa admissibilidade de reconhecimento de crime  ͸ͳ continuado, concurso material ou formal de crimes quando praticado numa mesma situação fática, objeto de inúmeras controvérsias judiciais, inclusive no STJ e STF. Nessa linha, com a nova redação do art. 213 do CP (“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”), constata-se que por uma questão de política criminal, o legislador infraconstitucional entendeu por bem fundir em um único tipo legal a conjunção carnal e outro ato libidinoso, não fazendo diferença se o agente no mesmo contexto fático realizou ou não ambas, uma vez que estaremos diante de uma única ação que caracteriza o delito de estupro e, em consequência - para os que assim sustentam a sua possível ocorrência - a unidade do delito de estupro não se irá alterar por serem fungíveis entre si essas ‘condutas’. Sobre esse aspecto, leciona CEZAR BITENCOURT94: O constrangimento ilegal objetiva a prática de atos de libidinagem (qualquer das duas modalidades, ou ambas, isoladas, conjuntas ou simultaneamente). A violência aliada ao dissenso da vítima – duas elementares típicas, uma expressa (violência), e outra implícita (dissenso) – devem ser longamente demonstradas, nas duas figuras típicas. Por outro lado, tratando-se de crime de ação múltipla (ou de conteúdo variado) não há que se falar em concurso de crimes, material ou formal, quando praticados no mesmo contexto. Supera-se, assim, aquela enorme dificuldade da jurisprudência majoritária que insistia interpretar, no mesmo contexto, a configuração de concurso material de crimes, ainda que se tratasse de meros atos preliminares ou até vestibulares. No entanto, quando tais fatos – conjunção carnal e atos libidinosos diversos – forem praticados em contextos distintos, não há como não admitir o concurso de crimes, a nosso juízo, em continuidade delitiva ou em concurso material, dependendo das circunstâncias, seja pela extrema gravidade, seja por desígnios autônomos ou simplesmente por política criminal para desencorajar a prática de atos tão repugnantes. (grifo do autor)  94  BITENCOURT, 2014, p. 53. ͸ʹ GULHERME NUCCI95 é enfático ao assinalar, numa visão garantista, sobre a alteração produzida no dispositivo em comento pela Lei nº 12.015/2009 que: Hoje, tem-se o estupro, congregando todos os atos libidinosos (dos quais a conjunção carnal é apenas uma espécie) no tipo penal do art. 213. Esse modelo foi construído de forma alternativa, o que também não deve causar nenhum choque, pois o que havia antes, provocando o concurso material, fazia parte de um excesso punitivo não encontrado em outros cenários de tutela penal a bens jurídicos igualmente relevantes. A dignidade da pessoa humana está acima da dignidade sexual, pois esta é apenas uma espécie da primeira, que constitui o bem maior (art. 1º, III, CF). Logo, pretender alavancar a dignidade sexual acima de todo e qualquer outro bem jurídico significa desprestigiar o valor autêntico da pessoa humana, que ficaria circunscrita à sua existência sexual, portanto, deve ter todos os direitos respeitados, tal como o autor de qualquer outro delito grave. Particularmente, não se podem olvidar os princípios-garantia, constitucionalmente previstos, em nome de um subjetivismo individualista e, por vezes, conservador, para a interpretação do novo art. 213. Visualizar dois ou mais crimes, em concurso material, extraídos das condutas alternativas do crime de estupro, cometido contra a mesma vítima, na mesma hora, em idêntico cenário, significa afrontar o princípio da legalidade (a lei define o crime) e o princípio da proporcionalidade, vez que se permite dobrar, triplicar, quadruplicar etc., tantas vezes quantos atos libidinosos forem detectados na execução de um único estupro. [...] Essa é a visão do art. 213, que não deve comportar tergiversação. [...] A nova redação do art. 213 adotou a conhecida fórmula do tipo misto alternativo, que, em nome da legalidade e em respeito à proporcionalidade, garantias constitucionais fundamentais, deve ser respeitado. A submissão à lei é justamente o escudo protetor do indivíduo, caracterizando o Estado Democrático de Direito, cuja principal missão é tutelar a dignidade da pessoa humana. (grifo do autor) PAULO BUSATO ao tratar do tema, ressalta num momento inicial que “o tipo penal possui como núcleo a expressão constranger”96, acrescentando que “se explica o modus operandi do constrangimento, abrindo a  95 Código Penal Comentado. 11. ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 940-941. Direito Penal: Parte Especial 1. São Paulo: Atlas, 2014, p. 795. ͸͵ 96  possibilidade de que ele se realize mediante violência ou grave ameaça”97, ou seja, reconhece corretamente que há apenas uma conduta nuclear, o que constrói implicitamente se tratar de um tipo simples ou unitário, entretanto logo à frente assinala que existe importante discussão sobre se o tipo penal é misto alternativo ou misto cumulativo. Pois bem: embora a orientação dos Tribunais Superiores tenha sido no sentido da adoção do modelo de um tipo misto cumulativo, a circunstância analisada demonstra justamente o contrário.98 Refuta acertadamente, adiante, que se trate de um tipo penal misto por acumulação, e nada trata expressamente se então estamos diante de um tipo misto alternativo ou simples, mas é enfático em afirmar corretamente que “caso exista a prática de atos libidinosos diversos e também da conjunção carnal, o crime será único, sempre e quando o contexto de constrangimento seja também um só. Conquanto haja opiniões diversas, especialmente na jurisprudência, essa parece a solução mais lógica para o caso”.99 Diante desse contexto, podemos afirmar que no tipo penal misto alternativo a ação é única que se pode dar por mais de uma conduta nuclear, por isso há fungibilidade entre elas e a unidade do delito não se altera com a prática ocasional de mais de uma delas. Já no tipo misto por acumulação há viabilidade da prática, no mesmo contexto ou não, de mais de uma ação dentro do mesmo tipo legal, ainda que mediante mais de uma conduta, violando sempre, em ambos os tipos penais, o mesmo bem jurídico, contudo neste100 as ações são infungíveis entre si que, em regra, estão separadas  97 BUSATO, 2014, p. 795. Id., ibid., p. 799. 99 Id., ibid., p. 800. 100 Tipo misto por acumulação. 98  ͸Ͷ gramaticalmente por ponto e vírgula, podendo ser também pela conjunção alternativa ou, levando em consideração que toda ação humana dolosa, que não seja instintiva, decorre da necessária presença subjetiva dos elementos volitivos e intelectivos, sem que necessariamente se faça presente o elemento subjetivo especial ou do tipo. Temos como exemplo de tipo misto alternativo, de ação múltipla ou conteúdo variável, dentre outros, o “Tráfico de Drogas” (art. 33 da Lei n. 11.343/2006), bem como do tipo misto por acumulação o delito de “Parto Suposto. Supressão ou alteração de direito inerente ao estado civil de recém-nascido” (CPB; art. 242). Dessa forma, entendem parte desses doutrinadores que se trata o atual artigo 213 do CP de um tipo misto alternativo em que as condutas referentes à ação delituosa101 estão separadas pela conjunção alternativa ou, mas não um tipo misto por acumulação, uma vez que não há fatos ou ações distintas que integram o mesmo tipo legal, mas apenas a possibilidade de haver uma pluralidade de atos por parte do agente em uma única ação (estupro) que se desenvolva dentro do mesmo contexto 102 Contrariamente a este posicionamento, CLEBER MASSON fático. crítica por entender se tratar o delito de estupro de um tipo penal simples, o que vai ao encontro da posição implícita de PAULO BUSATO acima citada quando reconhece existir apenas uma conduta nuclear incriminada. 5. O TIPO PENAL NA JURISPRUDÊNCIA Na atualidade, após as modificações introduzidas pela Lei n. 12.015/2009, para configurar o tipo penal do estupro de não-vulnerável  101 Estupro. Direito Penal Esquematizado – Parte Especial (arts. 213 a 359-H). 2. ed., rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012b, p. 17-18. ͸ͷ 102  (CPB; art. 213) ou de vulnerável (CPB; art. 217-A), tanto faz se há conjunção carnal ou ato libidinoso diverso, requisito necessário que o Superior Tribunal de Justiça, mutatis mutandis, já pacificou com relação ao estupro de vulnerável diante da clareza descritiva do tipo legal: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PRÁTICA DE CONJUNÇÃO CARNAL OU DE ATO LIBIDINOSO DIVERSO CONTRA MENOR. PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA. NATUREZA ABSOLUTA. ART. 217-A DO CP. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. Para a consumação do crime de estupro de vulnerável, não é necessária a conjunção carnal propriamente dita, mas qualquer prática de ato libidinoso contra menor. Jurisprudência do STJ. 2. Agravo regimental improvido.103 Entretanto, no que diz respeito à natureza do tipo penal do crime de estupro, o Superior Tribunal de Justiça se encontra dividido, notadamente quando há a prática de conjunção carnal seguida de atos libidinosos, ou viceversa, no mesmo contexto fático. À unanimidade, a 6ª Turma do STJ entende que a nova redação do art. 213 do CP, dada pela Lei n. 12.015/2009, fundiu em um único tipo legal o atentado violento ao pudor e o estupro104, o que o caracteriza como tipo misto alternativo, enquanto a sua 5ª Turma, igualmente à unanimidade, entende que as referidas condutas foram reunidas num único tipo legal (CP; art. 213), viabilizando, neste caso, o concurso de crimes quando praticados  103 BRASIL. STJ. AgRg no REsp 1244672/MG. 5ª Turma. Rel. Min. CAMPOS MARQUES (Desembargador Convocado do TJ/PR). j. 21/05/2013. DJe 27/05/2013. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=estupro+e+tipo+penal&&b=ACOR&p=tru e&t=&l=10&i=16>. Acesso em: 08 jun. 2013. 104 BRASIL. STJ. HC 156323/SP. 6ª Turma. Rel. Min. Og Fernandes. j. 27/11/2012. DJe 18/12/2012. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=estupro+e+tipo+penal&&b=ACOR&p=tru e&t=&l=10&i=16>. Acesso em: 8 jun 2013. ͸͸  num mesmo contexto fático105, entendendo, portanto, se tratar de um tipo misto por acumulação. Igualmente, neste último sentido, encontramos precedentes do Supremo Tribunal Federal por meio dos Informativos nº 577, 578 e 595.106 Por sua vez, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais também se encontra dividido sobre o tema, aliando-se uma parte ao entendimento do STF e da 5ª Turma do STJ107, enquanto outra, não menos qualificada, comunga do posicionamento da 6ª Turma do STJ e de grande parte da doutrina108, como recentemente se posicionou a sua 3ª Câmara Criminal do TJMG ao negar provimento à apelação do Ministério Público que pretendia ver reformada sentença singular para ser reconhecido o concurso de crimes dentro do mesmo contexto fático de um delito de estupro (CPB; art. 213), com base na tese de que se tratava de um tipo misto por acumulação.109 Contudo, recentemente a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça que congrega a 5ª e 6ª Turma, pacificou o entendimento que se trata de crime único por ser um tipo misto alternativo, se praticadas as condutas descritas  105 BRASIL. STJ. HC 105533/PR. 5ª Turma. Rel.(a) Min.(a) Laurita Vaz. j. 16/12/2010. DJe 07/02/2011. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=estupro+e+tipo+e+alternativo&&b=ACOR &p=true&t=&l=10&i=1>. Acesso em: 8 jun 2013. 106 BRASIL. STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/informativo/pesquisarInformativo.asp>. Acesso em: 8 jun 2013. 107 BRASIL. TJMG. AgExec. 1.043.08.262252-6/001. Rel. Des. Alexandre Victor de Carvalho, j. 13/11/2012, pub. 21/11/2012. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/informativo/pesquisarInformativo.asp>. Acesso em: 8 jun 2013. 108 BRASIL. TJMG. AgExec. 1.0079.04.142772-9/001. Rel. Des. Antônio Armando dos Anjos, j. 30/10/2012, pub. 08/11/2012. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/informativo/pesquisarInformativo.asp>. Acesso em: 8 jun. 2013. 109 BRASIL. TJMG. ACrim 0702.11.040014-1. 3ª CCriminal. Rel. Des. Paulo Cezar Dias. j. 02/04/2013. pub. 07/05/2013. Disponível em: < http://www4.tjmg.jus.br/juridico/sf/proc_complemento2.jsp?listaProcessos=10702110400141001>. Acesso em: 8 jun 2013. ͸͹  no delito num mesmo contexto110, o que em nada afeta a aplicação da pena se o entendimento fosse de que se tratava, como entendemos, de um tipo penal simples ou unitário o delito de estupro (CPB; art. 213) com a nova redação da Lei n. 12.015/2009. 6. REFLEXOS: APLICAÇÃO DA PENA E DIREITOS FUNDAMENTAIS Na aplicação da pena, a incidência de concurso de crimes no mesmo contexto fático, com base no entendimento de que o atual delito de estupro é um tipo misto por acumulação, nos levará à absurda e desproporcional possibilidade de se apenar com maior gravidade o estupro de não-vulnerável (CPB; art. 213) que o de vulnerável (CPB; art. 217-A), uma vez que este é flagrantemente um tipo penal misto alternativo111, o que reclama uma interpretação mais racional, equânime e sistemática do disposto no atual artigo 213 do Código Penal Brasileiro. Nessa linha, considerar o delito de estupro do art. 213 do CP um tipo misto por acumulação quando da aplicação da pena, viola o princípio constitucional da individualização da pena, da humanidade das penas e também o princípio do ne bis in idem, já que o agente estará sendo apenado de forma cruel duas ou mais vezes pelo mesmo fato, ou até mesmo de forma mais ousada, é afirmar que se está adotando, pura e simplesmente, a teoria das essências de Platão112 sob o fundamento simplório de que a nova redação do delito de estupro contém também a figura do revogado crime de  110 BRASIL.STJ.HC 24367/SP, 6ª Turma. Rel. (a) Assusete Magalhães. J. 12/11/2013, DJe 13/11/2013. Disponível em: <htpp://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudência/toc.jsp?tipo_visualizacao=estupro+e+tipo+misto&b=A COR&thesaurus=JURIDICO>. Acesso em 01 out 2014. 111 Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (quatorze) anos. 112 OMMATI, José Emílio Medauar. Heidegger, Gadamer e Dworkin: a teoria do direito como integridade e sua aproximação com o giro hermenêutico na filosofia. In: Filosofia do Direito Novos Rumos. PEDRA, Adriano Sant’Ana. Et al. KROLING, Aloísio, FERREIRA, Dirce Nazaré de Andrade (coord.). Curitiba: Juruá, 2012, p. 69-70. ͸ͺ  atentado violento ao pudor, por isso se trata de um tipo misto por acumulação, quando se essa fosse a mens legis, bastaria permanecer vivo o revogado art. 214 do CP com a edição da Lei n. 12.015/2009. Assim, para nós, a decisão judicial que reconhece se tratar de tipo misto por acumulação para considerar eventual ocorrência de concurso de crimes, viabiliza uma intervenção estatal além da necessária, extrapolando os limites do ius puniendi ao permitir um agravamento desproporcional e abusivo da pena quando da sua fixação, o que vai de encontro ao moderno direito penal garantista e, a nosso sentir, macula o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (vetor dos demais direitos fundamentais) que lastreia um Estado Democrático e Social de Direito, sendo a melhor solução aquela “de tomar a norma penal como instrumento de delimitação entre o poder de intervenção do Estado e a liberdade individual”.113 Como sabido, e acima já citado, a dignidade da pessoa humana é princípio fundamental do nosso Estado Democrático de Direito (CF; art. 1º, III) e é direito individual fundamental, por isso falar da dignidade da pessoa humana é falar de direitos humanos e não de coisas ou objetos, razão pela qual todo e qualquer autor do fato em um processo criminal, por pior que tenha sido o crime praticado, há de ter assegurado os seus direitos como todo e qualquer ser humano, notadamente, no caso, de ser tratado com dignidade de forma a não ter maculada a sua liberdade de forma desarrazoada e a sua integridade física e moral de maneira desproporcional já que por seus atos se encontra sendo julgado com possibilidades de sofrer as sanções legais pertinentes à sua liberdade.  113  Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 158. ͸ͻ Nesse viés, é razoável que sofra, no caso de condenação pela prática do referido delito de estupro, uma pena proporcional à sua culpabilidade, dentro dos limites legais, mas não que venha a sofrer qualquer sanção desmedida com base numa exegese decorrente de um movimento punitivista que enfatiza o efeito simbólico do Direito Penal para gerar a falsa sensação de segurança à sociedade. O direito é uma ciência da regulação que nos conduz com facilidade ao senso comum jurídico, perigoso terreno movediço por onde tramitam os profissionais do direito por poder nos levar a cometer injustiças na falta de exercício de um senso jurídico crítico que leve o nosso conhecimento a estar em crise, viabilizando, assim, dar a cada um, o que é seu por direito de forma mais equânime e racional que afaste as injustiças. FÁBIO KONDER COMPARATO114 se posiciona com acerto quando afirma que a compreensão da dignidade suprema da pessoa humana e de seus direitos, no curso da História, tem sido, em grande parte, o fruto da dor física e do sofrimento moral. A cada grande surto de violência, os homens recuam, horrorizados, à vista da ignomínia que afinal se abre claramente diante de seus olhos; e o remorso pelas torturas, pelas mutilações aviltantes faz nascer nas consciências, agora purificadas, a exigência de novas regras de uma vida mais digna para todos. O princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento do nosso Estado Democrático e Social de Direito (CF; art. 1º, III), “constitui o valor unificador de todos os direitos fundamentais, que, na verdade, são uma concretização daquele princípio”, não se podendo negar que todo aquele que sofre qualquer restrição de sua liberdade de forma desmedida ou ilegal, tem maculada a sua dignidade humana que tem nesse direito fundamental de  114  A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 8. ed., São Paulo Saraiva, 2013, p. 50. ͹Ͳ primeira dimensão (liberdade) a sua direta correspondência mais 115 elementar. 7. UMA (RE) LEITURA DO TIPO PENAL 7.1. Do estupro de não-vulnerável O que dá origem a um fato-crime é a pratica de uma ação típica, ilícita e culpável, sendo que ela pode se desenvolver por uma ou mais condutas que possam estar descritas no tipo penal. Nessa esteira, se sabe que são os verbos que constituem os núcleos dos tipos e informam as condutas nucleares ou reitoras, mas há tipos penais que possuem vários verbos, embora apenas alguns possam ser tidos como núcleos do tipo, fazendo-se necessária uma leitura acurada com base na classificação dos tipos penais quanto às ações para uma correta e racional identificação das condutas reitoras que são tidas pela norma penal como incriminadoras. No caso, o delito do estupro de não-vulnerável do art. 213 do CP, na sua redação atual, como já anunciado, assim preceitua em seu tipo fundamental: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. (grifo nosso) Nessa toada, podemos afirmar sem medo de errar que temos descrito no referido tipo penal os verbos constranger, praticar e permitir, o que tem levado, com o devido respeito, a interpretações equivocadas sobre a  115 A Eficácia dos Direitos Humanos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed., rev. e atual., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 95. ͹ͳ  classificação do delito de estupro quanto à ação, afinal só um deles se apresenta como conduta verbal reitora. Com efeito, a conduta nuclear desse delito se expressa no verbo constranger, sendo que este se dá por meio de violência ou grave ameaça, para que alguém tenha com o (a) autor (a) conjunção carnal, ou que seja, assinalo, constrangido da mesma forma a praticar ou permitir com ele se pratique outro ato libidinoso, como bem pontuam CLEBER MASSON116 e PAULO BUSATO117, pois afinal, com consentimento não há constrangimento, este que ocorre com o dissenso da vítima. Ora, em sendo assim, inegavelmente, repita-se, a conduta reitora ou nuclear se expressa por meio do verbo constranger que é o núcleo do tipo, sendo os verbos praticar e permitir apenas informadores das formas possíveis de se dar a violência sexual, porque tanto para a conjunção carnal como para os outros atos libidinosos, há de estar presente o dissenso da vítima que ocorre por meio da conduta de constranger, no caso, mediante violência ou grave ameaça, pois praticar conjunção carnal ou permitir que se pratique consigo atos libidinosos diversos, por si só, sem o dissenso de uma das partes, ou seja, com o consenso, não é proibido. Dessa forma, reiteramos nosso entendimento de que o delito de estupro de não-vulnerável na atualidade, numa releitura do dispositivo, se trata de um tipo penal simples ou unitário, o que inviabiliza - assim como para parte da doutrina e jurisprudência que entende se tratar de um tipo misto alternativo - que se dê a ocorrência de concurso de crimes quando num mesmo contexto fático forem praticadas a conjunção carnal e outro (s) ato (s) libidinoso (s) diverso.  116 117  MASSON, 2012b, p. 18. Direito Penal: Parte Especial 1. São Paulo: Atlas, 2014, p. 795. ͹ʹ Portanto, se sustentando se tratar o estupro de não-vulnerável de um tipo penal misto alternativo ou um tipo penal simples ou unitário, na essência, não acarretará qualquer alteração quando da aplicação da pena, residindo a questão no melhor apuramento técnico jurídico-penal. Entendimento em contrário afirma equivocadamente que o delito de estupro do não-vulnerável após a Lei n. 12.015/2009 se trata de um tipo misto por acumulação. É certo que nada obsta, muito pelo contrário, antes recomenda, que na hipótese da prática concomitante e/ou simultânea desses atos libidinosos acima citados, sejam considerados quando da análise da primeira circunstância judicial da culpabilidade prevista no art. 59 do CP para a fixação da pena-base na sentença. Neste momento em que se inicia a individualização da pena na esfera judicial é que se leva em consideração esse fato para formular um juízo de censurabilidade ou reprovabilidade da conduta do agente na prática do referido delito, afinal a gravidade de sua ação é maior se além da conjunção carnal houve coito anal, vestibular e/ou sexo oral etc., bem como se a violência real extrapolar àquela que pode ser tida como inerente ao tipo para constranger. Portanto, considerando-se que a conjunção carnal é espécie do gênero atos libidinosos, e que o dispositivo acima visa tutelar o bem imediato (liberdade sexual) e mediato (dignidade sexual), é razoável, justo e equânime desenvolver uma exegese que dê racionalidade à referida norma penal de forma que consideremos como uma única ação de estupro, todo agente que constrange a vítima, mediante violência ou grave ameaça, a praticar conjunção carnal ou permitir que com ela se pratique atos libidinosos  ͹͵ diversos, ainda que num mesmo contexto fático haja uma pluralidade de atos sexuais. Como crime único, que sustentamos, tecnicamente se reconheça se tratar de um tipo simples ou unitário, alternativamente, para os que sustentam a sua existência, que seja misto alternativo, mas não misto por acumulação. 7.2. Do estupro de vulnerável No que tange ao delito de estupro de vulnerável do art. 217-A do CP118, com o aprofundamento da pesquisa alteramos primeiramente nosso posicionamento sobre o ponto em que deve recair a presunção, e num segundo momento firmamos aquele que esta presunção deve ser relativa e não absoluta, como sustentado ao longo deste escrito. O fato dessa presunção expressamente ser prevista no revogado art. 224, “a”, do Código Penal pela Lei n. 12.01/2009, referindo-se a violência ou grave ameaça que for empregada sobre a vítima vulnerável, adolescente de até 14 (catorze) anos incompletos e outros vulneráveis que aponta, não transfere essa presunção para a condição de vulnerável com a nova redação do art. 217-A do CP, apesar deste silenciar sobre a violência ou grave ameaça, até porque a vulnerabilidade das vítimas sempre esteve presente nesse crime, desde o nascedouro do Código Penal em 1940. Nessa linha, se a presunção que persiste é da violência ou da grave ameaça exercida sobre a vítima vulnerável, ainda que ficta, necessariamente persiste a necessidade de ser constrangida implicitamente, no caso, a ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com o autor, não se  118  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. ͹Ͷ podendo para o disposto no art. 217-A, assim como para o art. 213, ambos do CPB, desconsiderar que nesses delitos se encontra presente a elementar implícita do dissenso da vítima, embora em graduações e talvez formas diversas conforme a vulnerabilidade ou não do (a) ofendido (a). O fato do bem jurídico-penal tutelado repousar primeiramente na dignidade sexual da vítima, não tira desta a necessidade da norma penal também tutelar, ainda que, no caso, secundariamente, a sua liberdade sexual, uma vez que não existe aquela sem esta, ainda que se encontre em potência em face da tenra idade da vítima. Assim, com razoabilidade e proporcionalidade se devem analisar os casos concretos que nem sempre serão iguais, até porque o princípio da igualdade reclama tratar os iguais na medida de suas desigualdades. Nesse sentido, não se pode, no caso concreto, se desprezar a livre vontade consciente da vítima adolescente de 14 (catorze) anos incompletos, de consentir com a prática do ato sexual para se ter como sempre praticado o delito de estupro pelo agente, se assim o legislador não procedeu para as vítimas também adolescentes com 14 (catorze) anos completos e 18 (dezoito) anos incompletos que, segundo o marco etário divisório do Estatuto da Criança e do Adolescente, adolescente está na faixa dos 12 (doze) anos completos e 18 (dezoito) anos incompletos, dentro da doutrina da proteção integral. A vítima adolescente que apresente em juízo maturidade para consentir, que demonstre ter consciência de sua capacidade de anuir para o ato sexual, seja por amor ou prazer, isto apurado, como já dito, após sua oitiva judicial e laudo psicossocial, não pode ser ignorada, sob pena de se estar desconsiderando que já possui discernimento para querer ter direito a  ͹ͷ conquistar novos direitos, expressão máxima de cidadania que, sem liberdade, macula, por consequência, a dignidade da pessoa humana, no caso, na vertente da dignidade sexual e os princípios fundamentais do nosso Estado Democrático de Direito que se destina a assegurar o exercício dos direitos individuais e da liberdade, dentre outros, mas também a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.119 Como já fundamentado em capítulo próprio, entendemos ser recomendável que, de lege ferenda, que haja uma unificação legal da definição de criança e adolescente, trazendo para o Direito Penal esse marco divisório que a Lei nº 8.069/90120 nos apresenta para solidificar a doutrina da proteção integral adotada em face de normatização internacional, evitandose assim essa antinomia de tratamento que o Código Penal Brasileiro nos apresenta quando dos estupros que envolvem adolescentes.  119 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 25 dez 2017. 120 Estatuto da Criança e do Adolescente. ͹͸  < REFERÊNCIAS BARRETO, Vicente de Paulo; BRAGATO, Fernanda Frizzo. Leituras de Filosofia do Direito. Curitiba: Juruá, 2013. ______. O Fetiche dos Direitos Humanos e outros Temas. 2. ed. rev. e ampl., Porto Alegre: Livraria Do Advogado, 2013. BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público. Mimeografado, dez. de 2010, p. 3. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wpcontent/themes/LRB/pdf/a_dignidade_da_pessoa_humana_no_direito_consti tucional.pdf>. Acesso em: 24 dez. 2014. ______. MARTEL, Letícia de Campos Velho. In: GOZZO, Débora e LIGIERA, Wilson Ricardo (Orgs). Bioética e Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012. BITENCOURT, Cezar Roberto. 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