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Historia portugal

História de Portugal Coordenação Editorial Irmã Jacinta Turolo Garcia Presidente do Conselho Curador Antonio Manoel dos Santos Silva Assessoria Administrativa Irmã Teresa Ana Sofiatti Diretor-Presidente José Castilho Marques Neto Assessoria Comercial Irmã Áurea de Almeida Nascimento Assessor-Editorial Jézio Hernani Bomfim Gutierre Coordenação da Coleção História Luiz Eugênio Véscio Conselho Editorial Acadêmico Aguinaldo José Gonçalves Álvaro Oscar Campana Antonio Celso Wagner Zanin Carlos Erivany Fantinati Fausto Foresti José Aluysio Reis de Andrade Marco Aurélio Nogueira Maria Sueli Parreira de Arruda Roberto Kraenkel Rosa Maria Feiteiro Cavalari Assistente de Produção Gráfica Luzia Aparecida Bianchi Editor-Executivo Tulio Y. Kawata Editora Assistente Maria Dolores Prades História de Portugal José Tengarrinha (Org.) José Mattoso Maria Helena da Cruz Coelho Humberto Baquero Moreno Antônio Borges Coelho Antônio Augusto Marques de Almeida Antônio Manuel Hespanha Maria do Rosário Themudo Barata Nuno Gonçalo Freitas Monteiro Francisco Calazans Falcon José Jobson de Andrade Arruda Miriam Halpern Pereira Jaime Reis Amadeu Carvalho Homem A. H. de Oliveira Marques João Medina Luís Reis Torgal José Medeiros Ferreira Revisão técnica Maria Helena Martins Cunha Copyright © 2000 EDUSC Direitos de pu blicação reservados à: Editora da Un iversidade do Sagrado Coração (EDUSC) Ru a Irm ã Arm in da, 10-50 17044-160 – Bau ru – SP Tel.: (0xx14) 235-7111 Fax: (0xx14) 235-7219 Hom e page: www.u sc.br E-m ail: edu sc@u sc.br Fu n dação Editora da UNESP Praça da Sé, 108 01001-900 – São Pau lo – SP Tel.: (0xx11) 232-7171 Fax: (0xx11) 232-7172 Hom e page: www.editora.u n esp.br E-m ail: feu @editora.u n esp.br Dados In tern acion ais de Catalogação n a Pu blicação (CIP) (Câm ara Brasileira do Livro, SP, Brasil) H67399 História de Portu gal / José Mattoso… [et al]; José Ten garrin h a, organ izador. -Bau ru , SP : EDUSC ; São Pau lo, SP : UNESP; Portu gal, PO : In stitu to Cam ões, 2000. 371p.; 23cm . -- (Coleção História) > ISBN UNESP 85-7139-278-0 ISBN EDUSC 85-7460-010-5 1. Portu gal - História. I. Mattoso, José. II. Ten garrin h a, José. III. Títu lo. IV. Série. CDD 946.9 SUMÁRIO 7 Cap ítu lo 1 A form ação da n acion alidade José Mattoso 19 Cap ítu lo 2 O fin al da Idade Média Maria Helena da Cruz Coelho 45 Cap ítu lo 3 O prin cípio da Época Modern a Humberto Baquero Moreno 57 Cap ítu lo 4 Os argon au tas portu gu eses e o seu velo de ou ro (sécu los XV-XVI) Antônio Borges Coelho 77 Cap ítu lo 5 Saberes e práticas de ciên cia n o Portu gal dos Descobrim en tos Antônio Augusto Marques de Almeida 87 Cap ítu lo 6 Os ben s eclesiásticos n a Época Modern a. Ben efícios, padroados e com en das Antônio Manuel Hespanha Cap ítu lo 7 105 Portu gal e a Eu ropa n a Época Modern a Maria do Rosário Themudo Barata Cap ítu lo 8 127 A con solidação da din astia de Bragan ça e o apogeu do Portu gal barroco: cen tros de poder e trajetórias sociais (1668-1750) Nuno Gonçalo Freitas Monteiro 149 Cap ítu lo 9 Pom bal e o Brasil Francisco Calazans Falcon 167 Cap ítu lo 10 O sentido da Colônia. Revisitando a crise do antigo sistema colonial no Brasil (1780-1830) José Jobson de Andrade Arruda 187 Cap ítu lo 11 Contestação rural e revolução liberal em Portugal José Tengarrinha 217 Cap ítu lo 12 Diversidade e crescim en to in du strial Miriam Halpern Pereira 241 Cap ítu lo 13 Cau sas h istóricas do atraso econ ôm ico portu gu ês Jaime Reis 263 Cap ítu lo 14 Jacobinos, liberais e democratas na edificação do Portugal contemporâneo Amadeu Carvalho Homem 283 Cap ítu lo 15 Da Monarquia para a república A. H. de Oliveira Marques 297 Cap ítu lo 16 A dem ocracia frágil: A Prim eira Repú blica Portu gu esa (1910-1926) João Medina 313 Cap ítu lo 17 O Estado Novo. Facism o, Salazarism o e Eu ropa Luís Reis Torgal 339 Cap ítu lo 18 Após o 25 de Abril José Medeiros Ferreira 369 Autores 6 capítu lo 1 A FORMA Çà O D A N A CION A LID A D E José Mattoso* A N TECED EN TES Ao con trário do qu e ten taram dem on strar as dou trin as n acion alistas dos an os 30 a 60, baseadas, de resto, em con ceitos positivistas e rom ân ticos m u ito an teriores, n ão é possível en con trar vestígios coeren tes de u m a n acion alidade portu gu esa an tes da fu n dação do Estado. Aqu ilo qu e o precedeu e qu e tem algu m a coisa a ver com o fen ôm en o n acion al redu z-se a u m a persisten te eclosão de pequ en as form ações políticas ten den cialm en te au ton ôm icas n a faixa ociden tal da Pen ín su la Ibérica (em paralelo, de resto, com form ações an álogas n ou tras regiões pen in su lares), qu e se verificaram desde a pré-h istória até o sécu lo XII, m as qu e se caracterizam tam bém pelo seu caráter descon tín u o e efêm ero. As dim en sões dos respectivos territórios eram n orm alm en te redu zidas, pois n ão ch egavam n u n ca a abran ger áreas equ ivalen tes a n en h u m a das an tigas provín cias rom an as. An tes da dom in ação rom an a, o pan oram a predom in an te é o da gran de fragm en tação territorial, ocasion alm en te com pen sada por coligações con ju n tu rais; du ran te ela, a organ ização adm in istrativa (qu e se deve con siderar de tipo colon ial) n ão ch egou a absorver por com pleto as divisões étn icas, qu e reapareceram sob a form a de pequ en os poten tados locais desde qu e se esboroou o con trole m u n icipal, m ilitar e fiscal exercido pelos seu s órgãos até o fim do Im pério. Com o é eviden te, as su cessivas cam adas de povos germ ân icos qu e depois ocu param o ociden te da Pen ín su la tam bém n ão ch egaram a u n ificar o território por eles dom in ado; lim itaram -se a fazer reverter para seu ben efício as im posições m ilitares e fiscais qu e an teriorm en te eram exigidas pelas au toridades rom an as. Pode-se dizer aproxim adam en te o m esm o da ocu pação m u çu lm an a, qu e, de resto, foi m u ito efêm era a n orte do Dou ro, e qu e foi con stan tem en te en trecortada por revoltas region ais e locais, algu m as das qu ais m an tiveram certos territórios com o in depen den tes du ran te dezen as de an os. A su a expressão con creta m ais eviden te foram os rein os taifas do Ociden te qu e m an tiveram a su a au ton om ia du ran te a m aior parte do sécu lo XI. En tretan to, a n orte do Mon dego, en tre os sécu los VIII e XI, a ocu pação astu rian a e depois leon esa tam bém estava lon ge de con segu ir a in teira fidelidade n ão só dos poten tados locais com o tam - 7 José Mattoso bém dos próprios represen tan tes da m on arqu ia; todos eles se com portavam freqü en tem en te com o sen h ores in depen den tes. O território portu gu ês pôde, portan to, com parar-se a u m puzzle con stitu ído por u m n ú m ero con siderável de peças qu e se foram associan do en tre si de várias m an eiras, sem qu e os poderes su periores qu e aí exerciam a au toridade tivessem sobre elas gran de in flu ên cia. A su a prin cipal estratégia con sistia em m an ter a dom in ação, pactu an do de form as variáveis com os poderes region ais e locais, exploran do as su as divisões, ou qu an do era possível, exterm in an do revoltas dem asiado osten sivas. A esta estratégia opõe-se, eviden tem en te, a dos poderes in feriores qu e ora exploram a via da revolta aberta, ora a do pacto con dicion ado com os poderes régios; ora se aliam com os parceiros do m esm o n ível, ora os com batem , recorren do para isso, se n ecessário, ao apoio dos delegados régios, n u m jogo in stável, ditado por circu n stân cias ocasion ais. O prim eiro fato qu e se pode relacion ar com a fu tu ra n acion alidade portu gu esa é, por isso m esm o, aqu ele em qu e se verifica a associação de dois an tigos con dados perten cen tes cada u m deles a u m a provín cia rom an a diferen te: o con dado de Portu cale, situ ado n a an tiga provín cia da Galécia, e o de Coim bra, n a an tiga provín cia da Lu sitân ia. Form aram o qu e en tão se ch am ou o “Con dado Portu calen se” (o qu e pressu pu n h a a h egem on ia do con dado do Norte sobre o do Su l), en tregu e pelo rei Afon so VI de Leão e Castela ao con de Hen riqu e de Borgon h a, com o dote de casam en to de su a filh a ilegítim a D. Teresa n o an o de 1096. CON D IÇÕES PA RA O SUCESSO POLÍTICO D A PRIMEIRA FORMA Çà O N A CION A L Uma grande parte do sucesso político deste acontecimento resulta de um antecedente regional: a formação de poderes senhoriais de âmbito local. De fato, durante o século XI certas linhagens – concretamente as da Maia, Sousa, Ribadouro, Bragança, Baião e outras menos conhecidas – tiraram partido da sua capacidade militar para alargarem o âmbito dos seus territórios, desvincularem-se da autoridade dos condes de Portucale (descendentes de Vímara Peres), ligarem-se aos soberanos castelhano-leoneses da dinastia navarra (entre 1037 e 1091) e transmitirem os seus poderes numa linha única dentro da mesma família. Foram essas linhagens que prestavam fidelidade à coroa castelhano-leonesa e, depois, a transferiram para o seu representante, o conde D. Henrique. Foram elas que asseguraram, portanto, um suporte social à autoridade semi-independente do conde. Nada disso, porém , teria sido su ficien te para origin ar u m processo de efetiva au ton om ia política se n ão se tivesse pou co tem po depois dado 8 A FORMAÇÃO DA NACIONALIDADE u m m ovim en to m ais am plo qu e criou con dições favoráveis à eclosão de verdadeiros rein os de âm bito in ferior ao rein o castelh an o-leon ês, igu alm en te apoiados por gru pos aristocráticos region ais. Ten do eles adqu irido m aior força e in depen dên cia, em virtu de do am bien te de crise da m on arqu ia e da recepção de n ovos m odelos m on árqu icos vin dos de além -Piren eu s (qu e se verificou desde a m orte de Afon so VI em 1108 até à coroação de Afon so VII em 1126), o seu apoio aos n ovos rein os foi essen cial para a su a con solidação. De fato, as alterações provocadas n os rein os cristãos, depois da gran de expan são territorial da segu n da m etade do sécu lo XI à cu sta do território islâm ico, levaram a gran des rem odelações in tern as. Os elem en tos da aristocracia, qu e tin h am podido m an ter as su as lin h agen s por via su cessória ú n ica, ao can alizarem para a gu erra fron teiriça todos os filh os qu e n ão su cediam n a ch efia, com eçaram a organ izar-se em tron cos verticais à im agem da casa real, o qu e perm itia às m ais poderosas fam ílias m an terem in tactos através de várias gerações os seu s poderes locais solidam en te apoiados em dom ín ios fu n diários. Mas os filh os segu n dos qu e en riqu eciam n a gu erra e os cavaleiros fran cos ou de ou tras regiões qu e acu diam à fron teira preten diam tam bém alcan çar poderes próprios, com pran do terras de pequ en os proprietários ou ten tan do criar, por su a vez, u m a au toridade sen h orial apoiada em forças m ilitares. Esses m ovim en tos associam -se en tão a agru pam en tos region ais. Em torn o de D. Urraca, su cessora de Afon so VI, reú n em -se en tre si e opõem se u n s aos ou tros os n obres castelh an os, leon eses, aragon eses e galegos, qu e se apóiam altern adam en te n os m em bros da fam ília real desavin dos en tre si. A aristocracia n obre, resolvidos os seu s problem as in tern os, ao absorver ou assim ilar as forças extern as de origem fran ca, sai reforçada da crise in tern a da m on arqu ia. Em coligações qu e já podem os ch am ar n acion ais (de Castelh an os, Leon eses, Aragon eses ou Galegos), a n obreza en saia form as de solidariedade e organ iza a su a estru tu ra in tern a; esboça form as de relacion am en to com os cavaleiros, qu er pela con cessão ou recon h ecim en to de poderes qu er pela vassalagem . Mas aqu eles con ju n tos de n obres qu e, depois de se terem reorgan izado socialm en te, prossegu em a lu ta con tra o Islã é qu e assegu ram ao seu “fu tu ro país” (ch am em os-lh e assim ) u m a trajetória m ais segu ra. Assim , a Galiza n ão ch ega a destacar-se de Leão, porqu e a su a n obreza só participa n a gu erra extern a qu an do se associa à portu gu esa ou à castelh an a; Leão vai perden do terren o face a Castela, m an ten do com ela u m a u n ião precária, qu e viria a desfazer-se en tre 1157 e 1230, m as jogan do sem pre u m papel secu n dário n a lu ta an tiislâm ica; Portu gal, Castela e Aragão, pelo con trário, m an ten do u m protagon ism o con stan te n a m esm a gu erra, n ão cessam de se desen volver com o m on arqu ias in depen den tes. 9 José Mattoso A situ ação de gu erra assegu ra, portan to, u m papel fu n dam en tal tan to à n obreza, qu e ten dia a m on opolizar as fu n ções m ilitares, com o às m on arqu ias sob as qu ais ela se agru pa region alm en te e qu e assu m em sem pre a ch efia e a coorden ação das gran des operações gu erreiras. Con stitu em -se assim blocos fron teiriços qu e assegu ram a eficácia das operações. A associação en tre u m a classe social com fortes apoios fu n diários, com poderes próprios e in teressada n a gu erra, e os reis qu e a apoiam assegu ra aos diversos rein os pen in su lares u m trajeto político du radou ro. P ORTUGA L E A GA LIZA Até 1128 verifica-se u m a série de acon tecim en tos políticos qu e parecem ligar os destin os de Portu gal aos da Galiza. O prin cipal é a form ação de u m rein o in depen den te com Garcia I (1065-1071), qu e apesar da su a posterior apropriação pelo rei de Leão e Castela se m an teve n om in alm en te separado destes en qu an to o m esm o rei Garcia esteve preso, até à su a m orte em 1091, e qu e con tin u ou sob a form a de u m con dado en tregu e a Raim u n do até 1096. A participação de algu n s m em bros da aristocracia galega n o com bate ao Islã e a su a fixação em território portu gu ês reforçam esta aproxim ação. A separação de Portu gal e Galiza, con cretizada sob a form a de dois con dados in depen den tes u m do ou tro, com a redu ção da au toridade de Raim u n do apen as à Galiza e a con cessão de Portu gal a Hen riqu e, vem criar u m h iato n esta política. Este h iato, porém , estava já laten te, n o plan o eclesiástico, por cau sa da rivalidade en tre as sés de Braga e de Com postela, desde a restau ração da prim eira em 1070. Verifica-se, assim , u m a situ ação caracterizada pela presen ça de dois m ovim en tos con traditórios, u m qu e ten de a m an ter a u n ião com a Galiza, ou tro qu e apon ta já para a separação. Note-se qu e o prim eiro adm itia du as solu ções, con form e se viesse a resolver por m eio da h egem on ia da Galiza ou da h egem on ia de Portu gal. Note-se tam bém qu e Hen riqu e com bateu pela segu n da destas solu ções, pois esperava restau rar em seu favor o an tigo rein o da Galiza e de Portu gal, com o con sta do acordo assin ado com seu paren te Raim u n do, con h ecido sob o n om e de “pacto su cessório”. A m orte de Raim u n do em 1107 só podia ter acen tu ado tais objetivos. É provável qu e a “rain h a” D. Teresa tivesse m an tido a m esm a idéia depois da m orte de Hen riqu e (1112), e qu e isso expliqu e as su as ligações a Pedro Froilaz de Trava e aos seu s filh os, dado o papel daqu ele com o tu tor do h erdeiro do tron o, Afon so Raim u n des (fu tu ro Afon so VII). Este propósito, porém , veio a fracassar em virtu de da con ju gação de du as séries de acon tecim en tos con vergen tes: por u m lado, o fato de tan to D. Urraca com o seu filh o Afon so VII terem lu tado den odadam en te pela m an u ten ção da u n idade da m on arqu ia castelh an o-leon esa, com o persis- 10 A FORMAÇÃO DA NACIONALIDADE ten te apoio de Diego Gelm írez, arcebispo de Com postela, qu e via n essa solu ção o m elh or apoio para as su as am bições de prelado da ú n ica sé apostólica do Ociden te além da de Rom a, e qu e preten dia ser a m aior au toridade espiritu al de toda a Pen ín su la; por ou tro lado, pelo fato de os barões portu calen ses e o arcebispo de Braga terem percebido qu e a u n ião de Portu gal e da Galiza sob a h egem on ia galega os m an teria fatalm en te n u m a situ ação de in ferioridade e de depen dên cia; para estes, portan to, era preferível m an ter Portu gal com o u m con dado su jeito diretam en te ao rei de Leão e Castela do qu e restau rar o rein o da Galiza e Portu gal, ain da qu e sob a au toridade de D. Teresa (sobretu do se ela ficasse a dever a su a realeza efetiva aos Travas). Foi essa a solu ção qu e de fato se torn ou possível a partir da batalh a de S. Mam ede (1128), por m eio da qu al os barões portu calen ses, com o apoio do arcebispo de Braga, depois de terem obtido o apoio ativo de Afon so Hen riqu es, expu lsaram do con dado Fern ão Peres de Trava e a rain h a D. Teresa. Con tu do, dada a im portân cia da gu erra extern a n o processo de form ação das u n idades territoriais n acion ais da Pen ín su la, o qu e provavelm en te assegu rou a efetiva du rabilidade da au ton om ia portu gu esa, reivin dicada em S. Mam ede, n ão foi tan to a opção qu e a n obreza portu calen se tom ou em favor de Afon so Hen riqu es, ou m elh or, con tra o dom ín io qu er de Gelm írez, qu er dos Travas, m as o fato de a essa opção se ter segu ido, n u m a seqü ên cia irreversível, a n ecessidade de assu m irem o prin cipal papel da gu erra an tiislâm ica, relegan do para segu n do plan o a atu ação da aristocracia galega. É verdade, porém , qu e n ão o fizeram diretam en te, sob a direção e com u m a participação in ten sa das lin h agen s n orten h as, m as sob a direção de Afon so Hen riqu es, a partir do m om en to em qu e ele, apen as três an os depois de S. Mam ede, se fixou em Coim bra e passou a tom ar u m papel extrem am en te ativo n a Recon qu ista. O ESPA ÇO VITA L Preen ch ida a con dição qu e perm itiu a u m gru po social – os barões portu calen ses e o m ais im portan te dos bispos – desem pen h ar u m papel ativo de prim eiro plan o n a política pen in su lar, m an tido o seu protagon ism o devida à gu erra extern a, n em por isso se podia con siderar garan tida a in depen dên cia de Portu gu al. É provavel qu e ela n ão se tivesse podido m an ter se n ão se apoiasse n u m território dotado de recu rsos econ ôm icos su ficien tes para a su portar. O qu e, portan to, a assegu rou n a fase segu in te foi a apropriação de n ovos espaços cu jos recu rsos eram com plem en tares dos do n ú cleo in icial, e qu e este teve capacidade para dom in ar por in term édio de u m qu adro h u m an o su jeito aos seu s in teresses. Ou seja, con cretam en te, o qu e, n u m a segu n da fase, con solidou a capacidade au ton ôm ica de 11 José Mattoso Portu gu al foi a con qu ista de Lisboa e de San tarém e a posse dos seu s respectivos alfozes. Este fato trou xe con sigo a possibilidade de colocar n a vigilân cia e adm in istração dos n ovos territórios paren tes da n obreza n orten h a qu e eram afastados da partilh a h ereditária n as terras de origem para n ão am eaçarem a base m aterial do poder fam iliar, ou su bordin ados seu s qu e n ão podiam prosperar den tro dos seu s dom ín ios sen h oriais. Assim se perm itia e propiciava a expan são da classe dom in an te sem qu e ela fosse afetada por u m a crise de crescim en to, dada a exigu idade do território em qu e ela exercia os seu s poderes – o En tre-Dou ro-e-Min h o. Essa possibilidade, qu e assegu rava u m a certa u n idade ao con ju n to, sob a orien tação política de u m gran de ch efe m ilitar, n a pessoa de Afon so Hen riqu es, perm itia tam bém en con trar a form a de absorver ou tros exceden tes dem ográficos de En tre-Dou ro-e-Min h o, qu e du ran te os sécu los XI e XII n ão cessaram de au m en tar. Os cam pon eses dali, dem asiado apertados n u m a área fertil m as redu zida, procu ravam n ovas terras para poderem su bsistir. A atração das cidades m u çu lm an as en volvidas por u m a au ra de prosperidade e de riqu eza fabu losa orien tou boa parte destes exceden tes, prim eiro para as expedições de com bate, depois para a fixação n as cidades, logo a segu ir para a ocu pação do hinterland estrem en h o, qu e a an terior situ ação de gu erra tin h a m an tido até en tão bastan te despovoado. O aflu xo ao litoral portu gu ês e às cidades próxim as dele de u m a popu lação qu e em boa parte reprodu zia as estru tu ras im plan tadas n o En treDou ro-e-Min h o, e qu e, portan to, ao m esm o tem po, expan dia e fortalecia o n ú cleo in icial, garan tia-lh e, assim , a viabilidade de su bsistên cia e de au ton om ia. Ocu pava as cidades do Ociden te atlân tico e, com elas, o dom ín io das vastas áreas econ ôm icas qu e elas con trolavam . Organ izava o seu con ju n to (Porto, Gu im arães, Braga, Coim bra, Lisboa, San tarém , Évora) n u m a rede de trocas com plem en tares cu jas poten cialidades exerciam sobre os seu s diversos elem en tos u m papel de estím u lo, tan to pelas possibilidades de escoam en to da produ ção, com o pela capacidade de abastecim en to. As cidades, por su a vez, ao con cen trarem a popu lação, levavam ao desen volvim en to das áreas circu n dan tes, an teriorm en te preju dicadas pela gu erra qu ase con tín u a, para poderem assegu rar o seu próprio abastecim en to em produ tos alim en tares e em m atérias prim as. Por ou tro lado, a m esm a con cen tração popu lacion al obrigava a desen volver a produ ção artesan al, para com ela se poderem pagar os produ tos vin dos do cam po. Um a parte do artesan ato destin a-se ao apoio das atividades m ilitares, visto qu e as cidades da lin h a do Tejo e a de Évora con tin u aram am eaçadas pelas in cu rsões m u çu lm an as até 1217. A con tin u ação da gu erra para su l e sobretu do a con qu ista de Badajoz pelos leon eses em 1229 ou 1230 (depois da fru strada in vestida de Afon so Hen riqu es em 1169), qu e destru iu o prin cipal cen tro m ilitar alm ôada da fron teira ociden tal, tiveram com o resu ltado a segu ran ça das cidades do litoral atlân tico. Um a vez con segu ida esta e ocu pado 12 A FORMAÇÃO DA NACIONALIDADE tam bém o Alen tejo e o Algarve (1249), com a con seqü en te pacificação dos m ares devido à destru ição dos prin cipais pólos da pirataria sarracen a, ficava aberto o com ércio in tern acion al direto, por via m arítim a, sem ter de se recorrer à m ediação castelh an a. Certos au tores (sobretu do Torqu ato Soares) ch am aram a aten ção para o fato de assim se ter recon stitu ído u m con ju n to qu e coin cidia aproxim adam en te com três an tigos “con ven tos” ju rídicos da época rom an a (Bracara, Scalabis e Pax Ju lia – Braga, San tarém e Beja). A diferen ça prin cipal con sistia em qu e eles estavam su bordin ados a provín cias diferen tes e qu e só sob adm in istração portu gu esa é qu e os seu s territórios passaram a form ar u m con ju n to qu e n ão estava su bordin ado a n en h u m pólo político n em econ ôm ico extern o. A CEN TRA LIZA Çà O POLÍTICA Com o é eviden te, esse con ju n to de fatos n ão explica por si só a in depen dên cia n acion al. Esta n ão existiria sem u m poder político qu e coorden asse os in teresses de u m determ in ado gru po region al com o poten cial econ ôm ico de u m a região su ficien tem en te diversificada, com o a qu e acabei de descrever. Já vim os os an teden tes da solu ção política qu e acabou por con solidar a separação en tre o Con dado Portu calen se e a Galiza. Alu dim os tam bém ao fato de em 1131 Afon so Hen riqu es se ter fixado em Coim bra e ter assu m ido o com an do ativo da gu erra extern a, com o apoio, em bora n ão n ecessariam en te com a participação ativa direta, dos ch efes das lin h agen s n orten h as. As n ecessidades da gu erra levaram , porém , Afon so Hen riqu es a en cabeçar tam bém ou tras forças, as dos con celh os, qu e con stitu íam , por assim dizer, a fon te abastecedora dos efetivos de m assa e a m elh or garan tia da defesa fon teiriça em caso de in vasão. Essas com u n idades n ão n obres, m as com verdadeira au ton om ia local, qu e tin h am criado as su as estru tu ras pecu liares n u m a espécie de “terra de n in gu ém ” en tre as du as fron teiras, a cristã e a m u çu lm an a, alian do-se ora com u m lado ora com ou tro, qu e tin h am feito da pilh agem m odo de vida, aceitaram a au toridade régia com o form a de garan tir u m a parte da su a au ton om ia face à crescen te in vasão sen h orial dos barões de En tre-Dou ro-e-Min h o. Ceden do u m a parte das su as prerrogativas ao rei n as áreas m ilitar, da ju stiça e do fisco, evitavam a su bm issão aos poderes sen h oriais dos n obres e da Igreja. Podiam n egociar com o rei o recon h ecim en to de im portan tes privilégios e prom etiam a colaboração dos seu s exércitos n a lu ta an tiislâm ica. A ch efia m ilitar do rei trou xe con sigo, portan to, a associação dos con celh os e da n obreza sen h orial. Essas com u n idades, ten den cialm en te opostas u m as às ou tras, podiam assim m an ter as su as posições sob a proteção do rei e evitar lu tas estéreis en tre si. A form ação de u m a 13 José Mattoso u n idade política possibilitou tam bém a in tegração das cidades organ izadas em con celh os n o espaço n acion al, sem os su jeitar aos sen h orios particu lares (excetu an do, até o sécu lo XIV, as cidades do Porto e de Braga) e, desde Afon so III (1248-1279), a su a su bordin ação à política econ ôm ica orien tada pela coroa. Até 1211 pode-se dizer qu e o rei n ão im pediu a con solidação dos poderes sen h oriais n o Norte, n em sequ er a su a expan são n o Cen tro e Su l do País (sobretu do de sen h orios eclesiásticos), e qu e tam bém n ão in terveio n a adm in istração in tern a dos con celh os. Lim itou -se a dirigir as operações m ilitares com os recu rsos qu e os con celh os e os sen h ores lh e forn eciam e sobretu do com as tropas qu e podia recru tar com os ren dim en tos dos dom ín ios régios. Ele próprio se con siderava com o u m “sen h or”. Só algu n s m em bros da cú ria régia, im bu ídos das idéias ju rídicas in spiradas n o Direito Rom an o, atribu íam -lh e, desde a década de 1190, au toridade de verdadeiro rei, e n ão apen as de primus inter pares. Para isso con tribu iu , por u m lado, a con cepção, já an tiga, da realeza com o au toridade respon sável pela m an u ten ção da ju stiça e da paz, acim a da qu e os sen h ores e os con celh os podiam assegu rar, e o verdadeiro carism a de gu erreiro qu e os eclesiásticos recon h eciam em Afon so Hen riqu es, e qu e seu filh o San ch o I procu rou tam bém m erecer. Apesar disso, n ão se pode dizer qu e h ou vesse verdadeiram en te u m Estado portu gu ês até a m orte de San ch o I. O seu verdadeiro fu n dador, com o organ ism o político capaz de assegu rar u m a adm in istração im pessoal e u m a au toridade a qu e m esm o os poderes sen h oriais tin h am de se su jeitar, in depen den tem en te de com prom issos recíprocos de vassalidade, foi Afon so II (1211-1223). Este, ten tan do, certam en te, pôr em prática as idéias do ch an celer Ju lião, qu e in iciara as su as fu n ções já em tem po de Afon so Hen riqu es, e qu e criara u m a verdadeira plêiade de ju ristas com o seu s au xiliares, e, por ou tro lado, in flu en ciado pelo próprio processo da cen tralização da cú ria rom an a, qu e tam bém in spirou Frederico II n o govern o da Sicília, com eçou o seu rein ado pela prom u lgação de u m corpo de leis. Depois ocu pou -se em m on tar u m a verdadeira adm in istração política do território e em organ izar as fin an ças da coroa com base n a econ om ia citadin a. De form a ru dim en tar, sem dú vida, m as qu e tin h a já em em brião, as fu n ções estatais, adian tava-se, assim , à m aioria das m on arqu ias feu dais do Ociden te eu ropeu . Apesar das violen tas oposições qu e tal política su scitou da parte da n obreza sen h orial, e de vários m em bros do alto clero, m as con tan do com u m pequ en o gru po de vassalos fiéis, Afon so II m an teve a m esm a orien tação até ao fim da vida. As cisões qu e se segu iram n o seio da n obreza con du ziram , depois, du ran te o rein ado de San ch o II (1223-1248), cu ja fraqu eza e in decisão con trastam fortem en te com a firm eza da seu pai, a u m a verdadeira an arqu ia social agravada pela crise da própria n obreza. Esta, 14 A FORMAÇÃO DA NACIONALIDADE su jeita a u m rápido crescim en to n u m érico, dificilm en te podia assegu rar a todos os seu s m em bros, m esm o de con dição in ferior, o exercício dos direitos sen h oriais; a h esitação en tre a partilh a h ereditária e a in feriorização su cessória dos filh os segu n dos provocava o exacerbam en to e a violên cia dos m en os favorecidos, a con stitu ição de ban dos e o assalto aos in defesos. À con ten são da expan são sen h orial en tre 1211 e 1223, segu iu -se o seu desen freado crescim en to en tre 1223 e 1245, e ao m esm o tem po a pertu rbação social e a an arqu ia, sobretu do n as regiões de regim e sen h orial (o Norte), acaban do por a segu ran ça do clero e dos seu s ben s. Assim se decidiu u m a coligação de bispos e de n obres para solicitar ao papa In ocên cio IV a su bstitu ição de San ch o II por seu irm ão Afon so III. Depois de u m a gu erra civil bastan te violen ta, Afon so III acabou por triu n far. O seu an tecessor m orreu n o exílio em 1248. Depois do ensaio singularmente precoce de Afonso II, foi, de fato, a persistência e a habilidade política de Afonso III (1248-1279) o que garantiu a efetiva supremacia e a independência da realeza, assim como a montagem empírica, mas conseqüente, dos orgãos estatais. Passou a administrar rigorosamente os domínios da coroa, criou um corpo legislativo, constituiu uma nobreza de corte fiel e submissa, enfraqueceu a nobreza senhorial, montou um aparelho judicial capaz de assegurar a justiça sob o controle dos meirinhos-mores, mesmo contra os senhores (nobres ou eclesiásticos), acumulou rendimentos suficientes para garantir a sua independência econômica face a outros poderes, cerceou os excessivos privilégios do clero e conseguiu influenciar a escolha dos bispos. A sua obra foi depois continuada por seu filho Dinis (1279-1325), que criou os corregedores para aperfeiçoarem o sistema judicial, organizou o notariado, formou um corpo de escrivães régios junto dos concelhos, controlou as eleições dos magistrados municipais, recrutou um corpo regular de besteiros fornecidos pelos concelhos, cerceou os privilégios senhoriais, impôs a noção de uma justiça régia capaz de perseguir os crimes mesmo nos territórios imunes etc. Assim , a m on tagem de u m aparelh o estatal capaz de exercer u m a in flu ên cia efetiva e verdadeiram en te u n ificadora sobre todo o País, tiran do o an teceden te efêm ero de Afon so II, data efetivam en ta da segu n da m etade do sécu lo XIII. Até essa altu ra, h avia relações en tre as diversas com u n idades qu e se su jeitavam à au toridade do m esm o rei, h avia tam bém m ovim en tos de tropas e de popu lações qu e abarcavam todo o território n acion al, m as o País era con stitu ído por u m con ju n to de u n idades com u m a con siderável dose de in depen dên cia, ligadas en tre si por vín cu los tên u es, e, com o con ju n to, destitu ído de laços verdadeiram en te coeren tes. 15 José Mattoso CON SCIÊN CIA N A CION A L A delimitação política e econômica é um elemento objetivo que distingue de todas as outras a comunidade humana nela inserida. Para esta comunidade constituir uma Nação é ainda preciso que os seus membros adquiram a consciência de formar uma coletividade tal que daí resultem direitos e deveres iguais para todos, e cujos caracteres eles assumam como expressão da sua própria identidade. Esta consciência forma-se por um processo lento, que não envolve simultaneamente todos os sujeitos. Começa por eclodir em minorias capazes de conceber intelectualmente em que consiste propriamente a Nação; depois esta idéia vai se propagando lentamente a outros grupos, até atingir a maioria dos habitantes do País. Em Portugal nota-se primeiro nos membros da chancelaria condal e régia, depois nos clérigos do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, a seguir noutros membros da corte e em funcionários da administração que se apresentam como delegados do rei em todos os pontos do País, mais tarde nos restantes membros do clero e das ordens militares e nas oligarquias dos concelhos. As guerras com Castela e a Revolução de 1383-1385, ao trazerem tropas estrangeiras a Portugal, evidenciam a diferença entre os Portugueses e os outros, isto é, aqueles que falavam outra língua, tinham outros costumes e se comportavam como inimigos. Cem anos depois, a expansão ultramarina coloca muitos portugueses em face de gente ainda mais estranha perante a qual eles se apresentam como irmanados pela vassalagem a um mesmo rei, sejam minhotos, alentejanos ou beirões. A sujeição à Espanha, no século seguinte, faz refletir sobre o que é ser português e o que é estar sujeito a uma administração não portuguesa, pela mesma época em que se pode ler nos Os lusíadas a epopéia mitificada de um povo capaz de chegar aos confins do mundo. E assim sucessivamente, até às exaltadas manifestações populares contra a Inglaterra por ocasião do Ultimatum de 1890, às comemorações nacionais dos vários centenários que fazem refletir nos feitos heróicos de outrora, às revoluções cuja vitória se atribui à participação popular, à propaganda ideológica nacionalista dos anos 30 a 60. Tudo isso vai consolidando e difundindo o conceito de Nação. É preciso não esquecer, porém, que só os cidadãos capazes de ler podiam conhecer Os lusíadas, e que só os que tinham feito o ensino primário podiam compreender o que era a história pátria e saber os direitos dos cidadãos. Ora a população analfabeta só em pleno século XX deixa de constituir mais da metade do povo português. É preciso, portanto, esperar até uma época bem recente para poder admitir uma efetiva difusão da consciência nacional em todas as camadas da população, e em todos os pontos do seu território. 16 A FORMAÇÃO DA NACIONALIDADE B IBLIOGRA FIA DAVID, P. Études historiques sur la Galice et le Portugal du VIe au XIIe siècle. Lisboa: Bertran d, 1947. ERDMANN, C. O papado e Portugal no primeiro século da história portuguesa. Coim bra, 1935. FEIGE, P. Die Anfänge des portugiesischen Königtum und seiner Landeskirche. Spanischen Forschungen der Görresgeselschaft. 1978. v.29, p.85-436. HERCULANO, A. História de Portugal desde o começo da monarquia até ao fim do reinado de Afonso III. Pref. e n otas críticas de J. Mattoso. Lisboa: Bertran d, 1980-1981. 4v. LIVERMORE, H. The Origins of Spain and Portugal. Lon don : G. Allen , 1971. LÓPEZ ALSINA, F. La ciudad de Santiago de Compostela en la Alta Edad Media. San tiago de Com postela: Ayu n tam ien to, 1988. MATTOSO, J. Ricos-homens, infanções e cavaleiros. A nobreza medieval portuguesa nos séculos XI e XII. 2.ed. Lisboa: Gu im arães, 1985. ___. Identificação de um País. Ensaio sobre as origens de Portugal (1096-1325). 5. ed. Lisboa: Estam pa, 1996. ___. 1096-1325. In : ___. (Dir.) História de Portugal. Lisboa: Estam pa, 1997. v. II, p.13-259. SOARES, T. de S. Reflexões sobre a origem e a formação de Portugal. Coim bra: Facu ldade de Letras, 1962. ___. Contribuição para o estudo das origens do povo português. Sá da Ban deira, 1970. VONES, L. Die “Historia Compostelana” und die Kirchenpolitik des Nordwesthispanischen Raumes, 1070-1130. Vien a: Böh lau Verlag, 1980. 17 capítu lo 2 O FIN A L D A ID A D E MÉD IA Maria Helen a da Cru z Coelh o* O fu tu ro D. João II con h ecia o govern o. Porqu e fora regen te em 1463, qu an do seu pai segu ira n a cam pan h a de Marrocos, em 1475, qu an do o m on arca dem an dara Castela, e ain da em 1476-1477, qu an do esforçadam en te Afon so V ru m ara à Fran ça n a bu sca de apoios extern os. O fu tu ro D. João II con h ecia o país. Porqu e com o prín cipe e regen te vira crescer o poderio dos gran des sen h ores qu e seu pai acu m u lara de ben esses em terras, direitos e ju risdições. Porqu e ou vira as vozes qu e se ergu iam em Cortes. Qu er as da aristocracia da m ercan cia, qu e clam avam liberdades de com ércio e fiscais e a n ão-con corrên cia de estran geiros, qu er as da terraten ên cia qu e pu gn avam por m ão-de-obra, salários baixos e defesas das cu ltu ras, ou ain da as da criação de gado qu e rogavam por fartas pastagen s e bon s m ercados. Para, todas elas, em u n ísson o, ou vir reclam ar con tra os poderes e opressões dos gran des, 1 con tra o desregram en to da corte, con tra os abu sos e prepotên cias dos oficiais régios qu e qu eriam im por o seu poder n a localidade, livre de peias, e in terven ien te n os vários aspectos do tecido socioecon ôm ico. E seria m ais aten tado n o qu e via, e n ão pelo qu e escu tava, qu e o prin cípe con h eceria as qu eixas do povo laborioso qu e am an h ava a terra, qu e in tern am en te com erciava ou produ zia artefatos. O fu tu ro D. João II con h ecia, en fim , a política extern a. Percorrida por equ ilíbrios vários, por en tre m ares e con tin en tes. Con scien te estava da correlação de forças castelh an as, ten do m esm o acorrido ao seu pai em Toro, e sabia qu e o n osso fortalecim en to n o Atlân tico era a pedra de toqu e do xadrez in tern acion al, fosse n a política de ocu pação m arroqu in a – e n a con qu ista de Arzila acom pan h ara o seu progen itor – fosse n a exploração da costa african a, cu ja direção assu m ira desde 1474, lideran do, exclu sivam en te, os tratos african os. Qu an do, em 28 de agosto de 1481, sobe ao tron o, tin h a u m projeto político, tin h a von tade de colocá-lo em prática e sabia com o agir. Pron tam en te e pragm aticam en te. De im ediato ao “saim en to” do sen h or seu pai, n o m osteiro da Batalh a, con vocou Cortes para Évora. Qu e abrem a 12 de n ovem bro, com toda a pom pa e solen idade da en tron ização do poder real, oferecida em espetácu lo.2 Com n ovo e detalh ado cerim on ial distribu em -se os lu gares 19 Maria Helena da Cruz Coelho do rei e da corte régia, do clero, da n obreza e dos procu radores dos con celh os, qu e sim bolizavam as h ierarqu ias, n a su a dign idade e h on ra, de u m a sociedade h ierarqu izada, n u m corpo h arm on ioso, dirigido por u m cabeça, qu e o govern ava, e con stitu ído por u m tron co e pés qu e o su sten tavam . A palavra, em discu rso oficial, dá form a in telectiva ao qu e se vê e sen te. Para logo em segu ida se passar ao sim bólico e de discu rsivo à ação. De u m poder m ediatizado pela represen tação, qu e a vista e o ou vido percebem , a u m poder em exercício qu e atin ge a von tade e o coração. Ao seu rei e sen h or a fam ília real e os gran des têm de prestar m en agem e ju rar obediên cia pelas graças e ben s dele recebidos e os procu radores das cidades e vilas ju rar lealdade e serviço.3 Ato h abitu al de ju ram en to de fidelidade ao n ovo m on arca se n ão fora o n ovo ritu al de palavras e gestos. Qu e n ão agradou aos sen h ores. Em especial, e por todos, com o o m ais poderoso, ao du qu e de Bragan ça.4 Talvez n ão assim aos procu radores dos con celh os qu e, con h ecen do por certo já o perfil do n ovo m on arca, e aproveitan do-se da con ju n tu ra favorável do in ício de u m ou tro rein ado, pediram , m etódica e program adam en te, reform as n a ju stiça, n a fazen da e n a defesa. Qu eriam ver dim in u ídos os poderes ju risdicion ais dos sen h ores e elim in adas as opressões qu e in fligiam aos povos, com o n ão m en os preten diam órgãos régios com fu n ções rigorosam en te defin idas e oficiais com peten tes e zelosos, n u n ca n ão-cu m pridores ou abu sadores. Desejavam ver m oderação n a con cessão de ten ças, m oradias e assen tam en tos aos vassalos, criados e m oradores n a corte, deven do estes ser socialm en te com patíveis com essa m esm a corte e n ela servir con ven ien tem en te. Esperavam ver a defesa eficazm en te assu m ida pelos qu e tin h am especificam en te tal m issão, por ela receben do ben efícios. Mas pelo con trário, n ão qu eriam recru tadores m ilitares qu e sobrecarregassem os povos. Alm ejavam n a persecu ção dos seu s in teresses, qu e eram os dos m aiores en tre o povo, liberdades com erciais, afastam en to de con corren tes estran geiros ou ju deu s, dom ín io dos m esteirais, boas oportu n idades n a agricu ltu ra e criação de gado. De tu do isso se agravam n u m lon go rol de 172 capítu los gerais, obten do em 46,5% deles resposta favorável do m on arca.5 Mas a lista acresceu -se ain da de m ais 140 capítu los especiais, visan do sobrem an eira os problem as da adm in istração, política e econ om ia locais, qu e lograram alcan çar do m on arca u m a percen tagem de 53,6% de respostas afirm ativas.6 Decorridos u n s escassos 7 m eses7 e já os povos estavam de n ovo sen do ch am ados a Cortes, agora para San tarém .8 Desta vez, a fim de con tribu írem para a rem issão das dívidas de seu pai, deven do ser cobrado u m pedido de 50 m ilh ões. Não parecem ter com parecido às m esm as o clero e a n obreza, con h ecen do-se apen as a presen ça de doze con celh os. No en tan to só de on ze possu ím os capítu los especiais, abran gen do o país de n orte a su l, com o se eviden cia pelo m apa, e n en h u n s gerais. 20 O FINAL DA IDADE MÉDIA 1 CORTES D E ÉVORA D E 1490 CON CELHOS COM CA PÍTULOS ESPECIA IS Barcelos (2) Bragança (7) Braga (1) Guimarães (1) Miranda do Douro (2) Lamego (3) Aveiro (6) Guarda (2) Coimbra (6) Torres Vedras (5) Coruche (1) Elvas (4) Estremoz (3) Olivença (4) Setúbal (2) Silves (3) Lagos (8) 0 50 km 21 Maria Helena da Cruz Coelho Do Entre Douro e Minho tiveram assento Ponte de Lima e Guimarães. Da Beira, Pinhel e Viseu. Do Alentejo, Monforte, Olivença, Vila Viçosa e Serpa. Do Algarve, Loulé, Faro e Silves. Ao todo são apresentados trinta agravos, conhecendo-se a resposta apenas para 22.9 Quem mais pediu foram, respectivamente, Vila Viçosa com oito capítulos, e Loulé com sete. As principais queixas visam ao econômico. Depois certos estratos sociais, com destaque maior para os senhores, e em seguida a administração central e muito escassamente a local, o que o gráfico permite visualizar.10 2 CORTES D E SA N TA RÉM D E 1482 CA PÍTULOS ESPECIA IS Natureza dos requerimentos Total % Administração central 7 23,3 Administração local 2 6,7 Social 9 30,0 Econômico 12 40,0 Total geral 30 100,0 A m aior parte dos con celh os h avia estado n as Cortes qu e h á pou co tin h am ch egado ao fim .11 Aí, em capítu los gerais e especiais, tin h am sido postos os m ais prem en tes problem as qu e sem pre, aproveitan do a con ju n tu ra n ova da abertu ra de u m rein ado, se apresen tam ou retom am . Para resolver, agora, tão-só algu m as qu estões bem m ais específicas. Ain da e sem pre u m a crítica aos oficiais régios. Fosse o alcaide das sacas qu e, através dos requ eredores e escrivães qu e colocava para escreverem o ou ro e a prata trazidos pelos m ercadores estran geiros, os afastava dos n ossos portos, com o referem Faro (1) e Silves (1). Fosse o con tador, qu e em Lou lé (5) n ão qu eria deixar os vizin h os trazerem ben s de m ou ros, e em Pon te de Lim a (1) preten dia dispor de u m a casa para se aposen tar. Mais gen ericam en te, Lou lé (2) qu eixava-se do gran de n ú m ero de h om en s da escrita qu e h avia n a correição, tan tas vezes para favorecer criados dos sen h ores. Por su a vez Pin h el (1) e Viseu (1), em agravos exatamen te igu ais, on de se ou via com n itidez a voz das aristocracias locais, in vectivaram con tra o corregedor qu e obrigava os fidalgos, cavaleiros e escu deiros de lin h agem e os vassalos e cidadãos h on rados a irem até a forca ou pelou rin h o, on de a ju stiça se h avia de fazer, ch am ados por pregão, igu alan do-os “em todo com h o dito com u m ” e n ão lh es gu ardan do os privilégios. 22 O FINAL DA IDADE MÉDIA Esgrim iam estes n obres e grados com o argu m en to de qu e “pois diferem ciadam en te h am de servir vossa sen h oria n as gu erras n o qu e a elles pertem cee em seu s graos razoada cou sa seria serem diferem ciados dos m en ores”. E porqu e a D. João II n ão in teressa u m a sociedade su bvertida, m as ordeiram en te h ierarqu izada, de pron to, defere tal pedido. Seria, tam bém , esta m esm a elite qu e estava m u ito aten ta aos desm an dos sen h oriais, desejan do vê-los corrigidos. Qu eixas con tra a fidalgu ia se ergu em pela voz sobretu do de Lou lé, m as tam bém de Pon te de Lim a, Gu im arães e Serpa. Lou lé (1), em expressivo e desassom brado artigo, acu sa D. Afon so V de tê-los lan çado em cativeiro, porqu e dera a vila em sen h orio. E m ais esclarece qu e se an tes eram do du qu e de Bragan ça, agora já os seu s fidalgos diziam qu e a vila era de su a h eran ça “o qu e, sen h or, m u ito sen tim os serm os de sen h or e agora serm os dos servidores”. Pron tos estariam para ou tra terra régia em qu e vivessem , se n ão esperassem ser libertos da su jeição por D. João, a qu em ch am am “n osso Messias”. Mas a esperan ça teria sido algo fru strada, qu an do o m on arca adia a resposta para as cartas. Mais especificam en te, acu sava ain da esta vila Nu n o Barreto, a qu em Afon so V dera as dízim as do pescado do Porto de Farrobilh as, bem com o u m alvará qu e lh e ou torgava poderes de dar terras e ch ãos a qu em aí qu isesse fazer casas, sobrepon do-se assim à costu m eira alçada dos ju ízes com o sesm eiros, o qu e cau sava ódios. Ain da, e de n ovo, o rei adia a resposta para obter in form ações do con tador. E é tam bém este con celh o (1), coin cidin do n o seu qu erer com o de Gu im arães (1), qu e apela para o cu m prim en to do estipu lado n as Cortes de 1481-1482, reclam an do qu e os corregedores e ou vidores dos sen h ores só estivessem n os cargos por 3 an os. E aqu i o assen tim en to régio é claro, precisan do m esm o o qu e deixara exposto n os capítu los gerais, já qu e, à sem elh an ça dos seu s corregedores, tam bém estes deviam estar n o cargo apen as por u m triên io, e orden an do qu e tal se assen tasse n os capítu los gerais. Por su a vez Pon te de Lim a qu eria ver corroborada u m a sen ten ça do corregedor, a qu al, cu m prin do u m a ordem régia qu e deferia u m pedido con celh io, m an dara devassar todos os cou tos, u m a vez qu e n o tem po dado aos seu s possiden tes, estes n ão h aviam m ostrado o respectivo privilégio. Aceita-se D. João, ain da qu e ressalve a possibilidade da apresen tação de razões por qu em se sen tisse lesado. Serpa, por su a vez, especifica qu e os fidalgos têm terras defesas, sob determ in adas pen as, on de apascen ta o gado. Logo, se esse m esm o gado en trasse n as terras defesas do con celh o, deveria pagar idên ticas pen as. D. João II, n a su a resposta, parece ir m ais lon ge. Apelan do para capítu los já determ in ados em Cortes, in terdita aos qu e tin h am cou tadas a pastagem n as terras con celh ias, especifican do ain da qu e estas eram cou tadas do m esm o m odo qu e as deles. 23 Maria Helena da Cruz Coelho Mas além da con flitu osidade com os sen h ores, h avia a con flitu osidade com ou tros protagon istas dos poderes con celh ios. Vila Viçosa (5 e 6), qu e se diz sobrecarregada de h om en s privilegiados, qu eria qu e os cristãos n ovos n ão fossem isen tos de servir du ran te 20 an os, com o o m an arca m an dara, in sin u an do até qu e m u itos, falsam en te, h aviam -se con vertido. Da m esm a m an eira, espin gardeiros e besteiros ou ou tros privilegiados, qu an do eram citados pelos ju ízes, por crim es ou dívidas, exim iam -se de respon der, alegan do qu e só o deviam fazer peran te o an adel-m or, espin gardeiro-m or ou m on teiro-m or, o qu e os deixava im pu n es, já qu e era trabalh oso ch egar a tão distan tes ju lgadores. Descon h ecen do-se as respostas aos pedidos deste con celh o, n ada sabem os sobre as determ in ações joan in as. Con h ecem o-las, porém , para Oliven ça. E cu riosam en te a voz qu e pu gn a por este con celh o, tal com o a qu e represen tou o an terior de Vila Viçosa, n ão parece ser dem asiado afeita às elites govern ativas. Assim , m u ito sin tom aticam en te, Oliven ça afirm a ter com o m aior riqu eza as su as vin h as e olivais. Mas n esses ben s sofrem dan os dos gados, porqu e os alcaides, gran de e pequ en o, e os qu e an dam n os pelou ros ou detêm os ofícios, têm parte n as carn içarias da vila, qu er de cristãos qu er de ju deu s. E, com o dizem , fazem im pu n em en te todo o m al, tan to por serem prin cipais, com o pela pressão qu e advém do cargo e ofício qu e desem pen h am . Roga, en tão, por u m a ordem régia in terditan do a tais h om en s a carn içaria, pois, m esm o as m u ltas já decretadas pelo con de de Oliven ça 12 com esse fim n ão eram respeitadas. Aspectos a salien tar. Estes lavradores das vin h as e oliviais pareciam ter o apoio do seu sen h or, con tra as exorbitân cias das elites dirigen tes. E tiveram tam bém o ben eplácito régio, qu e pu n ia os prevaricadores com 20 cru zados, à sem elh an ça do qu e se passava em Estrem oz. Os dem ais artigos apresen tados visam a aspectos da adm in istração local ou da econ om ia con celh ia. Faro (1 e 2) qu er ter alcaide de seu foro e alm otacaria n o pescado, segu n do os seu s u sos, o qu e o m on arca con firm a. Mon forte (1) e Vila Viçosa (3) lu tam pelo respeito do seu privilégio de isen ção de portagem . Lou lé (2) está m u ito preocu pada com o in vestim en to qu e fez n o Porto de Farrobilh as, pois seu s m oradores, apesar de se abastecerem n a vila, o qu e até faz su bir os preços, n ão lh e trazem n en h u m pescado, an tes o exportam todo para Castela, o qu e n ão parece ju sto, fican do decidido qu e u m a parte ru m asse a Lou lé. Igu alm en te tem iam (3) – por ou vir dizer – qu e o soberan o desse u m esteiro do porto, on de arrecadavam os n avios, para se con stru írem azen h as, o qu e D. João II m an da averigu ar. Se a defesa do m ar é a preocu pação dos algarvios, a defesa da terra ocu pa Oliven ça e Vila Viçosa. A prim eira terra fron teiriça, tem acrescido problem as. O abastecim en to de len h a e m adeira ao con celh o esta- 24 O FINAL DA IDADE MÉDIA va depen den te de Castela, qu e assim ditava as leis e con dições qu e lh e eram m ais favoráveis. Mas com o tem po, por in im izades e feridas das gu erras passadas, deixaram de en viar, pelo qu e o con celh o rogava o privilégio de se poder abastecer em Ju rom en h a, Alan droal e Teren a, e poder trazer len h a e m adeira pelos portos de Odian a, sem pagar portagem . D. João II com preen de a situ ação e defere o pedido. Mas, com o é seu tim bre, dou trin a. Pon do a tôn ica – qu e já esboçara n o deferim en to a Pon te de Lim a sobre os cou tos – n a bilateralidade. Assim Oliven ça servir-se-ia das m atas e ch arn ecas pú blicas com o os m oradores daqu eles lu gares, os qu ais, reciprocam en te, vizin h aram aos espaços pú blicos de Oliven ça, n o qu e tivessem n ecessidade. Por su a vez n as terras privadas com prariam a len h a e m adeira, de acordo com a von tade dos seu s don os. Porém , com o tam bém é seu u so, põe a decisão à experiên cia, e assim ela será válida por 3 an os. Ain da Oliven ça, dividida en tre os proven tos das vin h as e olivais e os do gado, faz de n ovo ou vir a voz dos lavradores. Qu e reclam avam con tra as qu eim adas qu e os ovelh eiros faziam n aqu eles ben s, pedin do o açoitam en to por tal crim e. O crim e m erece castigo, sabe-o D. João II. Mas n ão aqu ele, n a assu n ção do n orm ativo da ju stiça régia. Os réu s seriam presos e pagariam de cadeia 4.000 reais, m etade para as obras do m u ro e m etade para qu em os acu sasse. Mas, para qu e n in gu ém pecasse por ign orân cia, esta ordem devia ser apregoada n o con celh o. Rem ata, n o en tan to, deixan do m argem a qu e im perasse além desta, segu n do o direito ou orden ações, algu m a ou tra pen a qu e n ão fosse de din h eiro. Já vim os qu e em Vila Viçosa igu alm en te se digladiavam terraten en tes e criadores de gado. Mas este con celh o de tu do se qu eixa. Não qu er qu e en tre vin h o de fora n o con celh o, con corren cian do o dos vizin h os (8); n ão qu er pagar cu stos tão elevados n a barca de Ju rom en h a (7); deseja acabar com o tribu to con celh io da sisa velh a para in cen tivar o com ércio (4); n ão qu e ser obrigado a plan tar am oreiras (2). E tu do isto, para além dos agravos a qu e já alu dim os. Pressen te-se u m a econ om ia con celh ia dividida en tre os lu cros das tradicion ais cu ltu ras m editerrân icas da vin h a e oliveira e os da criação do gado, on de, além disso, as tran sações com erciais se preten dem ver din am izadas. Expostos esses assu n tos locais n as Cortes de San tarém de 1482, qu e obtiveram , n o seu con ju n to, u m total de 56,7% de respostas favoráveis do soberan o, com o o gráfico o dem on stra, os povos assistiram , com o espectadores, ao agir do seu rei. Viram ou sou beram do en forcam en to do 3º. Du qu e de Bragan ça em ju n h o de 1483.13 Mais teriam sabido qu e, n o an o segu in te, o próprio m on arca m atara o du qu e de Viseu e m an dara execu tar m u itos dos seu s sequ azes. E qu e, ain da em 1485, gran des m em bros da fidalgu ia eram presos, m ortos ou se exilavam . Toda a su cessão das n otícias, m ais ou m en os 25 Maria Helena da Cruz Coelho 3 TIPOS D E RESPOSTA S CORTES DE SANTARÉM DE 1482 – CAPÍTULOS ESPECIAIS reais sobre con spirações, im pression ariam o povo. E n ão m en os o deixariam tem en te ao seu rei e sen h or, estas atu ações firm es e decididas de D. João II. Qu e tam bém lh es con viriam . Atacan do o poder sen h orial, estava o m on arca fazen do dim in u ir as pressões com qu e os sen h ores, por via de regra, sobrecarregavam os povos. E estes cada vez m ais con fiariam n u m soberan o qu e se im pu n h a e ou sava fazer fren te a qu em n ão lh e obedecesse ou ju rasse fidelidade, por m ais poderoso qu e fosse. Cada vez m ais os povos reforçariam a im agem do “Messias”, qu e Lou lé já propalara em 1482. À su a proteção se en com en davam e do seu poder e m an do n ão du vidavam . Na lin gu agem das form as rever-se-iam n essa sim bolização do m on arca n u m pelican o, a cu jas asas sabiam poder acolh er-se com o filh os. Não m en os en ten deriam a su a von tade, expressa por palavras, n a divisa qu e para si tom aria “por su a ley e por su a grey”. A projeção dos feitos de além -m ar au reolavam sem pre e m ais a su a pessoa. En tre 1481-1482 con stru ía-se a fortaleza de São Jorge da Min a qu e dava cobertu ra ao com ércio african o, assim vigiado e protegido m ilitarm en te. As viagen s de Diogo Cão em 1482 e 1484 faziam avan çar o dom ín io portu gu ês, qu e orgu lh osam en te se assin alava com padrões, até ao Zaire e Serra Parda. Em 1488 Bartolom eu Dias, dobran do o con tin en te african o, o Cabo da Boa Esperan ça, oferecia ao m on arca a certeza de qu e o cam in h o para a Ín dia n ão era u m a qu im era m as u m a realidade. Os sú ditos ou viriam , doravan te, o seu sen h or in titu lar-se rei de Portu gal e dos Algarves, d’aqu ém e d’além m ar em África e sen h or de Gu in é. E n esse dom ín io de África, D. João II reiterava ain da n u m a política m arroqu in a, reforçan do o povoam en to das su as praças, e gan h an do a obediên cia dos m ou ros de Azam or, em bora m en os bem -su cedidas fossem as expedições a An afé em 1487-1489, visan do à con stru ção da fortaleza da Graciosa, m u ito se in vestiu e pou co se con segu iu . 26 O FINAL DA IDADE MÉDIA Certo é qu e, qu an do se abrem Cortes em Évora, n o m ês de m arço de 1490, n a seqü ên cia das n egociações abertas em 1488 para o casam en to do in fan te h erdeiro, D. João II era u m rei obedecido in tern am en te e prestigiado n o exterior. Por isso acalen tou o son h o de, através do m atrim ôn io do seu filh o Afon so com Isabel, filh a dos Reis Católicos, u n ir n u m a paz du radou ra os rein os de Portu gal e Castela. É u m m on arca repleto de esperan ça pelos fru tos qu e a política u ltram arin a lh e prom etia e pelo casam en to projetado para o seu filh o com qu e vão lidar os povos n as Cortes de Évora de 1490.14 E o soberan o pedelh es qu e se associem ao seu qu erer, su sten tan to as festas de casam en to do seu prin cípe, com o qu e en ten dessem , pela su a gen erosidade e com preen são. Sem exigir, an tes con fian do, o soberan o recebe dos procu radores das cidades e vilas o com prom etim en to de con tribu írem com 100.000 cru zados. Um clim a de abertu ra ao diálogo se in stalara. E assim vem os D. João II deferir total, parcial ou con dicion alm en te qu ase 60% dos agravos gerais qu e lh e foram apresen tados, para só in deferir cerca de 30% , o qu e o gráfico dem on stra.15 4 TIPOS D E RESPOSTA S CORTES D E ÉVORA D E 1490 – CA PÍTULOS GERA IS O m aior n ú m ero de pedidos destin a-se a precisar a eleição e as com petên cias ou a m origerar abu sos dos oficiais régios, sejam da ju stiça – desem bargadores, corregedores, m eirin h os da correição, oficiais da correição, ju ízes de fora, ju ízes dos resídu os e órfãos16 –, m ilitares – an adel dos besteiros17 – fiscais – siseiros das carn es, alm otacé-m or, alcaides das sacas e portageiros18 –, ou da escrita – escrivães e tabeliães.19 E, cu riosam en te, todo os pedidos foram con tem plados com deferim en tos totais ou em parte e algu n s sob con dições.20 Certas qu estões de ín dole ju rídica ou ju dicial se lh e ju n taram , procu ran do os povos aliviar os gravam es da com plexidade ju dicial, m ostran do-se o m on arca aqu i m ais reservado, n ão qu eren do in ovar,21 in deferin do 22 ou sen do evasivo.23 27 Maria Helena da Cruz Coelho A segu n da m aior fatia de pedidos diz respeito ao social. Mas é de assin alar qu e se calaram qu ase por com pleto as vozes con tra as opressões da fidalgu ia. Mu ito provavelm en te porqu e, su prim idos os gran des sen h ores, a n obreza qu e ficara n ão tin h a a m esm a capacidade gen eralizada de su bju gar os h om en s, para além das atitu des régias recom en darem a con ten ção. E com u m a n obreza assim con trolada o m on arca podia de n ovo agraciá-la. De n otar, qu e n ão cedeu aos pedidos do Terceiro Estado n o sen tido de serem lim itados os dotes de casam en tos e arras da fidalgu ia (21),24 n em tam pou co à in terdição da su a pou sada em vilas e lu gares qu e n ão lh es perten cessem (24). Mais firm e se m ostra con tra as preten sões das elites locais qu e qu eriam dom in ar h om en s, afastar con corren tes e govern ar sem in terferên cias. Ou , se qu iserm os colocar a qu estão sob ou tro ân gu lo, D. João II arvora-se em defen sor dos qu e realm en te trabalh am e aspiram a m elh ores con dições de vida. Não perm ite qu e se obrigu em os filh os dos lavradores a segu irem as profissões dos pais, in terditan do-lh es ou tro m odo de vida, com o, por exem plo, o artesan ato (29).25 Adia a decisão do afastam en to dos m esteirais da câm ara de Lisboa ou a restrição de os colocar apen as com o colh eiros e sem voz (12). Não proibe o ofício de alfeloeiro (37).26 Em con trapartida n ega o privilégio de cavaleiros, cidadãos, n obres h om en s e escu deiros, com m ais de 50 an os, poderem an dar em bestas m u ares a vigiarem as su as fazen das e a tratarem dos seu s n egócios (42). E m esm o os pedidos sobre os ju deu s, qu e iam n o sen tido de lh es restrin gir as su as liberdades, in terditan do-lh es ofícios e arren dam en tos (16),27 obrigan do-os a citar os cristãos peran te os ju ízes ordin ários (32) e con ceden do plen a liberdade aos seu s escravos (46) con vertidos ao cristian ism o,28 recebem tão-só deferim en tos parciais ou con dicion ais. Tam bém é parco n as regalias con cedidas a adm in istração local, logo às au ton om ias dos espaços con celh ios em qu e esta aristocracia se m ovia. Atitu de aliás con sen tân ea com toda a su a atu ação cen tralizadora, em especial n a fase fin al do seu govern o.29 Só parcialm en te defere a in terven ção dos con celh os da n om eação dos m am posteiros dos cativos (9) ou n a eleição dos cou déis e ju ízes dos órfãos (35). E recu sa, por com pleto, o pedido a fim de qu e o m on arca n ão passasse cartas régias de recom en dação para oficiais dos con celh os (25) 30 ou de qu e o erário con celh io n ão su portasse as despesas das obras n as prisões (26). Com o, n o qu e ao fisco diz respeito, n ão an u i à abolição das dízim as das sen ten ças (44), n ão aceita m odificações n os con tribu in tes dos 10 reais de Ceu ta (34) e só sob certas con dições con sen te qu e a terça seja u tilizada para as obras dos m u ros (36). E se a este con ju n to de preten sões sociais e adm in istrativas fru stradas por parte da gen te n obre da govern an ça ju n tarm os algu n s ou - 28 O FINAL DA IDADE MÉDIA tros in deferim en tos em n ível econ ôm ico, com pleta-se o sen tido do qu erer de u m m on arca qu e desejava ter todos os poderes e poderosos su jeitos ao seu con trole e qu e os pequ en os o vissem com o seu defen sor e protetor.31 Ten taram os criadores de gado fu gir à fiscalização das au toridades régias, o qu e lh es perm itiria u m com ércio lícito ou ilícito de an im ais m ais ren tável. Foi-lh es n egado.32 Ten taram os com ercian tes elim in ar os m on opólios das exportações, m orm en te de cortiça (18).33 Receberam u m a evasiva. Qu iseram ain da retorn ar aos pesos e m edidas an tigas (33). O pedido foi in deferido. O sim régio era dado com critérios. Nu n ca a con descen dên cia devia in terferir n os plan os gerais do rei ou do rein o. Dessas m esm as Cortes possu ím os u m total de 60 capítu los especiais proven ien tes dos in teresses de 17 con celh os.34 Portan to o dobro dos agravos especiais apresen tados n as an teriores Cortes de 1482. O lon go espaçam en to desta reu n ião, em relação à an terior, assim o ju stificaria. Com gran de gen erosidade o m on arca defere totalm en te 66,7% dos pedidos, o qu e, ju n tan do-lh es aqu eles a qu e an u i ain da qu e em parte ou sob con dições, perfaz o su bstan cial m on tan te de 86,6% , com o o gráfico o atesta. In defere expressam en te apen as 4 capítu los e adia ou tros tan tos. Alcan çada a paz in tern a, acrescen tan do o prestígio e o proveito de u m Portu gal qu e crescia em África e son h ada a con certação ibérica, D. João II via-se in clin ado a favorecer os povos. 5 TIPOS D E RESPOSTA S CORTES D E ÉVORA D E 1490 – CA PÍTULOS ESPECIA IS Os capítu los qu e visam aos problem as econ ôm icos dos con celh os predom in am , para depois se lh es segu irem os qu e dizem respeito à adm in istração cen tral e ao social e, por fim , se apresen tarem os relativos ao fisco e adm in istração local, o qu e o qu adro m elh or especifica. A crítica aos oficiais régios n ão apresen ta n ovidades em relação ao qu e sem pre se reclam ava em Cortes – u m a atu ação das au toridades den - 29 Maria Helena da Cruz Coelho 6 CORTES D E ÉVORA D E 1490 CA PÍTULOS ESPECIA IS Natureza dos requerimentos Total % Administração central 13 21,7 Administração local 7 11,7 Social 12 20,0 Econômico 19 31,7 Fiscal 8 13,3 Militar 1 1,6 Total geral 60 100,0 tro das su as m argen s de com petên cias. Todavia verifica-se qu e se os execu tores da ju stiça – corregedores35 e ju ízes das sisas36 – con tin u avam a ser visados, agora são-n os m axim am en te os oficiais do fisco, em especial os alm oxarifes. Este, em Lagos (3), fazia casas n a ribeira e n ão deixava espaço para os da vila carregarem m ercadorias, bem com o fretava todas as caravelas para irem bu scar trigo em Açores e levá-lo para a África, deixan do os vizin h os sem n en h u m a para, em seu proveito, se abastecerem de trigo (5); en qu an to em Aveiro (1) tirava a cadeia para alfân dega,37 e em Silves (2) vivia fora da sede do alm oxarifado, o qu e o devia fazer perder o cargo. Tam bém os oficiais dos pan os delgados qu eriam sisar os aveiren ses (5), m esm o n os pan os qu e retiravam para u so de su as casas.38 E os oficiais régios de Setú bal (2) faziam estran h os con lu ios. Depois de aos alm ocreves terem sido con tadas as sardin h as e pescados pelos oficiais da ribeira, e carregados os an im ais, qu an do iam pagar a sisa, certos oficiais, a pedido dos ren deiros ju deu s, qu eriam qu e eles declarassem , com ju ram en to sobre os Evan gelh os, o n ú m ero de m ilh eiros de sardin h as qu e levavam . Ora eles n ão sabiam o qu e levavam , salvo o qu e lh es fora dito pelos con tadores, n em lh es parecia ju sto fazer ju ram en to, estan do os Evan gelh os n as m ãos dos in fiéis, pedin do portan to o respeito pelo costu m e. Um a rede bu rocrática m ais atu an te sobre a cobran ça de direitos régios, m orm en te a qu e provin h a das tran sações com erciais, deixava m en os liberdade de m an obra aos com ercian tes ou até os pression ava. Apertava-se o cerco da fiscalidade estatal. E a fazen da n ão qu eria ver escapar os proven tos de qu alqu er atividade. Assim se qu eixava Coim bra (2) de qu e o m on teiro da m ata do Botão n ão os deixava aí m atar pom bos, ex- 30 O FINAL DA IDADE MÉDIA pon do Lagos (4) qu e os oficiais régios qu eriam pen alizar os qu e traziam sesm arias por aproveitar, ju stifican do-se os povos com as gu erras, fom es e pestes para o n ão ter feito, ju stificação aceita pelo m on arca. Além das au toridades delegadas do rei, ou tro poder extern o am eaçava pon tu alm en te certas cidades, vilas e lu gares, o dos sen h ores. Em capítu los especiais, sin tom aticam en te, as qu eixas con tra a fidalgu ia au m en tam face aos gerais. Depois das m ortes e persegu ições dos gran des estabilizara-se o qu adro da n obreza.39 Algu n s filh os segu n dos das fam ílias tradicion ais receberam cargos e ben efícios de D. João II,40 ou tros de u m a n obreza m édia e baixa sedim en taram as su as posições n a clien telagem e fidelidade ao n ovo m on arca.41 A n atu ral ten dên cia para os n obres esten derem abu sivam en te os seu s ten tácu los de poder e in flu ên cia em n ível local ten de a m an ifestar-se. Ain da qu e, diga-se, exageradam en te. A m em ória dos atos do du qu e de Bragan ça ain da perdu rava. Bragan ça (5) expu n h a qu e o du qu e m an dara tom ar o din h eiro dos órfãos, com prom eten do-se o m on arca a devolvê-lo, se ele os h avia sacado com alvará régio. Lagos (1) acu sava Álvaro de Ataíde, qu e em doação régia recebera a casa do sal por 12.000 reais, de n ão a abastecer de sal. Com o au m en to da pesca, m u itos iam bu scar sal em Castela, o qu e ficava m u ito caro, pedin do o con celh o para o explorarem a partir de m arin h as da zon a, o qu e, sob certas con dições, lh e será con cedido.42 Reclam ava ain da (7) con tra o privilégio real con cedido ao com en dador de Aljezu r de aposen tadoria n a vila, para ele e su a com itiva, por 3 m eses ao an o, pedin do qu e ele alu gasse as casas e pagasse as rou pas e com ida. Todavia D. João II in defere o pedido, reiteran do o privilégio por 3 an os, talvez o tem po do ben efício. Já n o caso de Torres Vedras (4), vila de rain h as, qu e se dizia lesada pelas obras do m osteiro do Varatojo e pela estadia de vários m em bros da fam ília real, rogan do qu e as aposen tadorias fossem pagas, D. João com prom ete-se a n ão dar alvarás de aposen tadoria para a vila du ran te 5 an os. Agravo m ais gen érico expõe ain da Lagos (2) con tra a m an obra de algu n s m oradores se fazerem vizin h os da vila do In fan te, bu scan do, assim o crem os, a proteção dos h erdeiros desta casa, por este m eio se isen tan do dos en cargos con celh ios, m as tam bém dos régios. E aqu i o con celh o alu de expressam en te à ordem de D. João II para cada u m fazer qu atro alqu eires de biscoito para abastecer a arm ada qu e segu iu para a África n a m issão de con stru ir a fortaleza da Graciosa, ten do-se aqu eles escu sado, bem com o se n egaram a con tribu ir para a taxa con celh ia qu e iria su bsidiar os trabalh os de vin da de águ a doce à vila e a con stru ção de u m a gafaria, poço e postigos. Mu ito claram en te o soberan o afirm a qu e só adm ite privilegiados a qu em ele ten h a agraciado, a tu do com pelin do os referidos. Ain da u m a acu sação expressa faz Silves (3) con tra Diogo Nu n es qu e devia ter o proven to das dízim as reais e oprim ia n a su a cobran ça, de 31 Maria Helena da Cruz Coelho tal m odo qu e os povos diziam ser isto pior qu e pagar as sisas em dobro. Por su a vez Lam ego (3) verbera con tra o con de de Marialva 43 qu e tin h a os direitos reais da cidade e n ão respeitava as n orm as foraleiras da arrecadação da portagem , apelan do D. João II ao cu m prim en to do direito con su etu din ário. Arrecadar o m áxim o, qu an do os direitos reais lh es eram doados, torn ava-se u m im perativo dos sen h ores, o qu e explicava todos estes abu sos. Nu m qu adro m ais geral, Barcelos (1) dá con ta de ban dos de fidalgos qu e erravam pela vila fazen do arru aça e aterrorizan do as pessoas. Precisa D. João II qu e os fidalgos m oradores n a vila e term o n ão se podem lan çar fora, m as aos dem ais restrin ge a estadia n a vila a 5 dias. Qu an do a fidalgu ia desem pen h ava altos cargos, com o em Estrem oz (3), n a pessoa do seu alcaide-m or qu e era con de,44 en tão os perigos tradu zem -se em in terferên cia n a adm in istração con celh ia. Assim , qu an do h avia fu gas da prisão, o ju iz – por certo ju iz de fora 45 –, por ordem do alcaide, m an dava os vereadores tom ar a ch ave da cadeia e gu ardar os presos. Logo os h om en s bon s, vexados e obrigados, n egavam -se ao exercício de tais cargos. Era tam bém u m abu so sobre a prisão do con celh o, a afron ta qu e a Gu arda (2) adu zia con tra o seu bispo, qu e a u tilizava em vez da su a própria, ú n ico agravo con tra a clerezia n estas Cortes.46 A vida in tern a dos con celh os, do seu aparelh o govern ativo às su as fin an ças, m edidas econ ôm icas ou problem as sociais, em erge tam bém em vários agravos. O con celh o de Silves (1) requ er a liberdade de eleger em câm ara corretores, os qu ais lh e garan tiam u m m elh or con trole de com pra e ven da de m ercadorias, o qu e o soberan o con sen te até ao n ú m ero de qu atro. Em Extrem oz (2) será a voz da elite govern ativa qu e se ergu e para con den ar o m odo de atu ar de dois aposen tadores eleitos pelo povo qu e “atroam ” toda a terra, pedin do logo qu e se escolh esse, por eleição, u m do povo e ou tro escu deiro, talvez assim se am oldan do m elh or o cargo às clivagen s sociais existen tes. Mais alto se ergu em as m esm a vozes (1) con tra a “sayoria” de serem 12 h om en s dos m esteres a receberem as terças para os m u ros e as coim as dos gados. Nu m a qu alqu er con ju n tu ra favorável, h aviam os m esteres con segu ido estas cobran ças, qu e perpetu avam , fazen dose eleger em su as casas e rodan do en tre si sapateiros, tecelões e ou tros ofícios, n o qu e, com o bem sabem os, reprodu ziam as estratégias de poder das elites. São ain da acu sados de n ão desem pen h arem os seu s m esteres depois de serem eleitos, além de, h á 18 an os, n ão darem con ta do din h eiro arrecadado, n em terem feito obras. Mas o seu “rein ado” parece estar ch egan do ao fim . O m on arca acede ao pedido dos govern an tes de Extrem oz. Determ in a qu e os cobradores fossem apen as dois, eleitos em câm ara pelos ju ízes e oficiais, e só deviam correr a terra por m an dado dos oficiais e estan do presen te u m tabelião qu e tu do an otasse. É provável qu e h ou vesse 32 O FINAL DA IDADE MÉDIA de fato u m abu so. Mas o m aior seria, sem dú vida, os m ecân icos terem con segu ido lu gares n o aparelh o govern ativo, e sobrem an eira de cobran ça, n u m a época em qu e por todas as Cortes se atravessavam as vozes das elites dirigen tes con tra a in trom issão dos m esteres n a govern an ça. Ou tros gru pos sociais in terferiam com a adm in istração con celh ia. Assim , em Torres Vedras (1), u n s qu an tos qu e se qu eriam privilegiados – besteiros da câm ara e do con to, m oedeiros e ain da ju gadeiros e caseiros do clero ou fidalgu ia – escu savam -se dos en cargos con celh ios, n o qu e o m on arca n ão con sen te. Aqu i advogava-se com privilégios. Nou tros casos com distân cia. Os h om en s do term o, qu e viam n os oficiais da su a sede apen as dom in ân cias e n ão esperavam h aver por eles defen didos os seu s in teresses n as m ais altas in stân cias, n egavam -se a con tribu ir para as fin tas qu e os con celh os lan çavam a fim de cu stearem os procu radores às Cortes. Assim o declarava Braga (1), en u m eran do os term os qu e desejava ver com pelidos, e Lam ego (1), qu e preten dia esten der este en cargo m esm o a todo o alm oxarifado, ou , pelo m en os, aos con celh os du as légu as em redor, dos qu ais se sen tia cabeça. E daqu i ressaltam claram en te as prepon derân cias de algu n s con celh os m ais poderosos em face de ou tros qu e gravitavam n a su a órbita, com o o jogo de in flu ên cias e pressões dos h om en s da cidade sobre os do term o. E peran te esta real situ ação vivida, por vezes h á acordos, ou tras vezes en gan os. Com os h om en s do term o o con celh o de Bragan ça h avia feito u m pacto (3) – n ão serviam n os en cargos con celh ios, rem in do essa obrigação com o pagam en to de 4 alqu eires de cen teio an u ais. Mas eram tam bém esses m esm os h om en s (6), talvez com u m certo poder econ ôm ico, qu e se con lu iavam com algu n s am igos e n as su as casas citadin as ven diam as m ercadorias para n ão pagar sisa, isen ção de qu e só deviam desfru tar os qu e tin h am casa própria n a cidade. Todos qu eriam fru ir das liberdades con celh ias, pou cos desejavam , todavia, su portar as obras com u n s e as fin an ças locais, bu scan do escu sas, com o já vim os n o caso particu lar das despesas extraordin árias dos procu radores às Cortes. Além de qu e a in terseção en tre fin an ças in tern as e fiscalização estava sem pre presen te. Justamente o concelho de Bragança (3), que recebia dos homens do termo os quatro alqueires de centeio, que os isentava dos encargos, acusava o juiz dos resíduos de lhe querer levar a terça desse pão para as obras, o que não lhe parecia justo – e o monarca assim o corrobora – porque não se tratava de uma renda permanente de concelho. Também Guimarães (1), com a escassa renda de 4.000 reais, que, como dizia, gastava toda na festa do Corpo de Deus, pusera um imposto de 1 ceitil por canada, no vinho atabernado da vila e termo, rogando ao monarca que, dos 10.000 ou 12.000 reais que estimavam poder arrecadar, não pagasse o terço, pois já tinha de dar 2.000 reais para o relego, no que também D. João II concorda. 33 Maria Helena da Cruz Coelho A terça era pesado tribu to a solver à coroa. Não pou cas vezes se ergu e, en tão, a voz dos con celh os para rogar ao soberan o qu e a m esm a fiqu e n o con celh o para servir às obras com u n s. Nestas Cortes pediram -n o Aveiro (4), Coru ch e (1), Setú bal (1) e Torres Vedras (2). D. João II defere caso a caso, talvez com con h ecim en to das situ ações con cretas. Con cede isen ção por 5 an os a Aveiro e Coru ch e e n ega-a aos ou tros dois con celh os. Igu alm en te du ra para os vizin h os era a con tribu ição para os pedidos, sobretu do porqu e a su a cobran ça dava m otivo m u itas vezes a excessos. Logo o con celh o de Bragan ça (7) qu er ser declarado com o pago dos 8.000 reais da su a parte n o pedido dos 50 m ilh ões. Por su a vez Aveiro (6) diz h aver u m saldo, n a an terior percepção do pedido de 40 m ilh ões qu e agora desejava ver descon tado n a cobran ça deste. Um govern o con celh io aten to devia zelar pelo qu e se arrecadava e se pagava. Igu alm en te devia ser din âm ico n a defesa dos in teresses econ ôm icos próprios, pen h or da riqu eza local. Con form e os con textos, ou vim os en tão pedidos qu e ten tam valorizar o com ércio, a criação de gado ou a agricu ltu ra. No qu e às tran sações diz respeito n ão se qu eriam perder, em prim eiro lu gar, as liberdades foraleiras e depois os tribu tos legais qu e sobre as m esm as im pen diam e algu n s, frau du len tam en te, procu ravam lu dibriar. Fosse ven den do fora da cidade com o fazia u n s qu an tos qu e com erciavam sal e pescado pelos term os de Aveiro (2), fosse trazen do os ben s para a sede do con celh o, a fim de se aproveitar das isen ções aí praticadas, com o agiam os de Bragan ça. Desejavam os con celh os ter lu gares de ven da cativos e privilegiados. Barcelos (2) qu eria u m m ercado m en sal, on de os do term o fossem obrigados a ir com erciar. Lam ego (2) pedia a isen ção da sisa por 15 dias para a su a feira. A am bos os pedidos acede o m on arca. E para qu e o com ércio in tern o fosse u m a realidade, era preciso h aver produ tos. Qu e deviam ser im portados qu an do faltavam . Qu e se qu eriam defen didos com prioridades de ven da. Por isso Lagos (6) deseja alcan çar – e con segu e-o – a liberdade de ir bu scar trigo ao Norte da África, a Mazagão e à Casa do Cavaleiro, on de ele é barato, pois, com o argu m en ta, se os catelh an os assim o faziam , m ais lh e parecia razoável qu e tam bém eles o pu dessem ir bu scar. Com o n ão qu eriam qu e os pescadores da vila ven dessem toda a sardin h a aos castelh an os (8), o qu e estes faziam até a u m preço m ais barato,47 m as an tes exigiam qu e a trou xessem à vila por esse m esm o preço, para depois servir de m oeda de troca com os alm ocreves qu e até aí acarretavam o trigo. Prioridade de ven da, sem con corrên cia, se requ eria para o vin h o qu e devia abu n dar e, n ão sen do de boa qu alidade, podia azedar an tes de dar qu aisqu er lu cros. Coim bra (1) preten de qu e lh e respeitem os 4 m eses – m aio, ju n h o, ju lh o e agosto – em qu e os vizin h os tin h am direito à ven da. E tam bém este con celh o, de u m a artificiosa m an eira, pede a defesa do 34 O FINAL DA IDADE MÉDIA com ércio do azeite, a su a ou tra riqu eza. Qu eria m an ter as su as m edidas próprias, m aiores qu e as dos dem ais con celh os, o qu e n ão in cen tivava os vizin h os a com prá-lo n o exterior. Ou tros con celh os acu savam a con corrên cia do vin h o de fora, qu e essen cialm en te era com prado pelos estalajadeiros, tan to em Bragan ça (4), com o n a Gu arda (1), qu e se viram severam en te acu sados. Mas a defesa da agricu ltu ra tin h a ou tras fren tes, sen do a prin cipal o con flito com a caça e criação de gado. Coim bra (3) pede assim a in terdição da caça às codorn as, n os m ilh os. Bragan ça (2), porqu e é terra de lavras, preten de ter u m a área cou tada on de, sem dan os, possa criar os bois, porqu e n a in dissolu bilidade do bin ôm io an im al-terra, de n en h u m pode prescin dir. Mas a rivalidade gado-agricu ltu ra é por vezes difícil de gerir. Assim em Elvas, qu e apresen ta qu atro capítu los a fim de m origerar os abu sos qu e os an im ais faziam n as vin h as e olivais, sen tin do-se o peso dos criadores, m ais ricos e poderosos, em face dos agricu ltores. Ou , sejam os cau telosos, estava o discu rso a ser proferido por lavradores qu e en egreciam o qu adro? A seu lado se coloca, porém , o m on arca, deferin do todos os pedidos. E eram precisam en te esses criadores qu e n ão desejavam ver an u alm en te o seu gado arrolado pelo alcaide das sacas, com o o clam ava Miran da do Dou ro (2). Expu n h a qu e, em tal circu n stân cia, n ão se en trava em lin h a de con ta com aqu ele qu e m orria ou o lobo com ia, m as n ão escon dia qu e tam bém podia ser ven dido a passadores, em bora para tal pedisse pen as. Não foi o m on arca sen sível aos argu m en tos e in deferiu o pedido. Castela era, para as terras fron teiriças, ora u m a am eaça, ora u m a oportu n idade. Nada m elh or, n estes lu gares afron tados, do qu e a bilateralidade n o agir. Logo expõe Oliven ça (2) qu e os castelh an os deviam poder levar para a su a terra m etade do trigo qu e aqu i cu ltivavam , já qu e o m esm o era facu ltado aos portu gu eses qu e trabalh avam , em Castela, o qu e D. João II perm ite por 3 an os. Fin alm en te, em dois capítu los, os con celh os fazem eco das su as preocu pações com a saú de pú blica. Coim bra (4) qu eria ver todos os seu s h ospitais n u m só, até para evitar qu e às cu stas dele m ais se su portassem os provedores qu e os pobres. Tal pedido estava em perfeita con son ân cia com a política régia, pron tifican do-se D. João II a escrever ao bispo para qu e se cu m prisse. Oliven ça (4) tin h a ou tro problem a – u m ju deu gafo, qu e era siseiro, an dava por en tre os cristãos cobran do a sisa. Qu ase poderíam os dizer – dois m ales n u m só h om em . Mas é para a difu são da doen ça, pelo con tágio, qu e o con celh o apela para o afastar. E o soberan o corrobora-o, n u m a resposta lím pida e direta – “se h e gafo n om h á por qu e an de n em estee n a villa com versan do com os saaos, a qu e esta en firm edade h e ou dyosa”. 35 Maria Helena da Cruz Coelho No jogo do pedir e do dar, já é lu gar com u m afirm ar-se qu e pesam os argu m en tos. Expostas ficaram já m u itas das razões qu e in vocaram os povos ou das fu n dam en tações qu e alicerçaram a resposta régia. Mas vale a pen a ain da realçar algu n s porm en ores. Pon do em evidên cia, n o pedir, Coim bra, aqu ele con celh o qu e esgrim e m ais sistem aticam en te com u m filosofia argu m en tativa. Se pu gn a por ver respeitada u m a su a liberdade expõe qu e “as m ercees feitas sem o feito n am aproveitam ”.48 Se qu er acesso à caça n u m a m ata, lem bra qu e “cada an n o (ela) pasa e vem pera soportam en to e m an tym en to da dicta cydade e com arca”; todavia se a deseja im pedir em terras de lavou ra, logo adu z qu e “as n ovidades e fru itos per qu e se toda a gen te govern a e m an tem , a prin cypall h e a do pam qu e h e de con servar e n am de destru ir”.49 E, fin alm en te, se alm ejava ver respeitadas as su as m edidas de azeite, recordava qu e “as cidades e villas de vosos reyn os d’am tygam en te u sarom an tre sy fazer postu ras e vereaaçom e m edidas segu n do sen tyam qu e era m ais proveito da terra e bem com m u m a seu viver”.50 Um a boa argu m en tação n ão deixaria por certo in sen sível o ju lgador. Coim bra tu do viu deferido, até m esm o o can den te problem a das m edidas, ain da qu e as requ eridas n ão fossem de pão ou vin h o, sobre as qu ais o m on arca já legislara em capítu los gerais. A destacar, por fim , u m argu m en to de crítica in tern a, por parte do con celh o de Miran da do Dou ro. Crítica a u m a elite dirigen te ou , m ais gen ericam en te, a expressão de u m a cu lpabilidade coletiva. Assim , qu an do refere qu e o corregedor n ão respeita os h om iziados, pren den do-os, diz qu e ele assim age, por u m lado porqu e eles são pobres e n ão en ten dem n em sabem requ erer o seu direito, m as por ou tro por “o con celh o ser froxo e doer lh e pou co o m all alh eo pera escu sar estes yn n ocen tes”.51 Pedirá e obterá u m cou to de h om iziados privilegiados, com o o de Freixo de Espada à Cin ta, para a terra m elh or se povoar. D. João II, com o dissem os, deferiu qu ase 90% dos capítu los especiais da Cortes de 1490. Mas sobrem an eira n orteou -se por u m a política n as su as decisões. Dá provas eviden tes de qu e segu e u m program a govern ativo. As Cortes servem -lh e para o dar a con h ecer aos povos em discu rso e em ato. Sem perder a oportu n idade de, n este con tato direto com o Terceiro Estado, poder ser tam bém o sen h or da graça, do privilégio, favorecen do u m a parte qu alqu er qu e, pela razão ou coração, lh e parecesse m erecer o ben efício. Na gen eralidade as su as respostas são u m espelh o de clareza, objetividade e sen satez. Exige o respeito pelas orden ações do rein o e pelos capítu los gerais já resolvidos em Cortes. Em algu n s casos defere tem porariam en te, com o qu e pon do à prova, tan to a su a decisão com o o com portam en to dos povos. A experiên cia parece já ser a “m adre de todas as cou sas”. Ch ega, em algu n s casos, a dar m ais do qu e o pedido. 36 O FINAL DA IDADE MÉDIA Pon tu alizem os. Merece-lh e a fiscalidade u m a particu lar aten ção deliberativa, côn scio de qu e n ão pode lesar o erário régio n em tão pou co agravar dem asiado os seu s sú ditos. Vejam os o caso específico das terças. Torres Vedras diz ser u m con celh o de pou ca ren da, pedin do en tão a terça para fazer peran te seu s en cargos. Não o pode o m on arca aceitar – porqu e a terça “se n am deve dar a n yn gu em por ser cou sa de bem com m u m ”. Mas, sen h or da graça e cabeça qu e dirige o corpo social do rein o, acrescen ta – se h ou ver algu m a ou tra ren da com qu e possa aju dar, pron tificar-se-á a fazê-lo, e porven tu ra o con celh o abrisse as várzeas poderia daí colh er ren das, qu e desde já se com prom etia a n ão on erar com a terça. Parece-n os, de todo, com pleta esta resposta – em n om e de u m a lei geral, n ega; a bem do local, prom ete e in cen tiva, m as de u m a form a m u ito precisa, garan te de u m a con cretização. Sabe qu e D. João II n ecessita dos pedidos. Mas n ão descon h ece qu e essas rem essas são fardo qu e agrava o já difícil cotidian o dos povos. Assim , n u m a pon derada decisão, con sen te qu e Aveiro n ão se lan çasse em obras n o an o de 1490, com o lh e h avia orden ado o corregedor, para se refazer do con tribu to qu e à coroa tin h a de versar. Tal com o já o pressen tim os para os capítu los gerais, tam bém n estes especiais parece estar ao lado dos estratos sociais qu e m ais n ecessitam de apoio. Agora, sobrem an eira, os lavradores dian te dos criadores de gado, com o referim os. E para su sten tar u m Portu gal m odern o, aberto a vian dan tes e m ercadores, sabia qu e eram im prescin díveis as estalagen s, pelas qu ais sem pre pu gn aram os m ais esclarecidos govern an tes, a saber o regen te D. Pedro. Logo, qu an do os con celh os se ergu em em clam ores con tra os estalajadeiros, D. João II afirm a qu e “n ão são de vedar as estalagen s”, m as apen as os abu sos dos estalajadeiros, en u m eran do-os u m a u m para os con den ar.52 De n ovo o sen tido do particu lar n ão o faz perder a visão am pla do bem geral. Não qu er ver com etidos erros por ign orân cia ou a coberto da ign orân cia. Qu eixan do-se Bragan ça dos exageros dos requ eredores de Ceu tas, m an da qu e se cu m pra o regim en to an tigo e qu e os oficiais o leiam para n ão poderem ser en gan ados, exigin do das partes plen a con sciên cia dos fatos.53 As cobran ças são para se cu m prirem , m as n ão para se u ltrapassarem , tan tas vezes em proveito dos próprios cobradores. Fin alm en te ch ega a con ceder m ais qu e o requ erido. Gu im arães qu eria isen ção da terça para certo im posto con celh io qu e estava lan çan do n ovam en te. Essa graça é dada a ele e ain da a ren da do verde e ou tras sem elh an tes, se as h ou vesse. D. João II n ão terá desilu dido os seu s con celh os. Se a política joan in a se delin eou sem com prom issos sociais,54 segu n do u m plan o pessoal do m on arca, ela serviu os in teresses do Terceiro Estado. 37 Maria Helena da Cruz Coelho A pressão da fidalgu ia sobre os povos aliviou -se. A gu erra en tre Portu gal e Castela acabara, abran dan do o ju go férreo dos pedidos. A m an u ten ção das praças m arroqu in as e a expan são pela costa african a exigiam sacrifícios de pessoas e de din h eiro, m as ofereciam m ais postos de abastecim en to e au m en tavam os locais e produ tos para o com ércio. A bu rgu esia con h ecia n ovos e prom issores n egócios. O ren ovado din am ism o econ ôm ico de Portu gal prom etia m elh ores con dições de vida. Todos a bu scariam . Assim os m esteirais ou filh os de lavradores, a qu em o m on arca n ão n ega essa ascen são. D. João II recu sava-se ao livre arbítrio e ao favorecim en to de u n s qu an tos. A lei e a grei por qu e se pau tava serviam os in teresses do Terceiro Estado. Após o du ro período de govern o do African o, os con celh os esperavam o Messias. Crem os poder afirm ar qu e, pelo m en os du ran te algu m tem po do rein ado de D. João II, os con celh os acreditaram qu e o Messias, a u m tem po poderoso e protetor, h avia ch egado. 38 O FINAL DA IDADE MÉDIA N OTA S 1. Leia-se, sobre este tem a, a sín tese de COELHO, M. H. da C. O peso dos privilegiados em Portu gal. In : CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA, “EL TRATADO DE TORDESILLAS Y SU ÉPOCA”, I, 1995, Madrid. p.291-314. 2. Estas Cortes foram já largam en te estu dadas, pelo qu e para algu n s estu dos m ais atu alizados rem etem os o leitor, n eles se en con tran do, aliás, referên cia à bibliografia an terior. Assim , e segu in do u m a ordem cron ológica, veja-se a prim eira parte, da respon sabilidade da prim eira au tora, do artigo de GOMES, A. A. A., COSTA, R. As Cortes de 1481-1482: u m a abordagem prelim in ar. Estudos Medievais Porto, 1983-1984, p.151-79, em qu e se aborda o con teú do dos capítu los gerais e as respectivas deliberações régias. Con su lte-se depois a obra m ais com pleta sobre capítu los gerais de Cortes de SOUSA, A. de, 1990. 2v., qu e n o prim eiro volu m e, en tre as págin as 420-6, refere-se aos aspectos form ais das m esm as, para n o segu n do volu m e, en tre as págin as 445-87, dar-n os o resu m o dos seu s 172 capítu los e o teor das respostas do m on arca. Fin alm en te tam bém MENDONÇA, M. D. João II: um percurso humano e político nas origens da modernidade em Portugal. Lisboa: Estam pa, 1991. p.195-249, estu da as prelim in ares da con vocação e abertu ra destas Cortes, bem com o an alisa os assu n tos dos capítu los gerais e respostas do m on arca. O n osso estu do in dicará, basicam en te, sobre os capítu los especiais das Cortes de 1482, ú n icos qu e n os ch egaram , e até agora n ão estu dados, e as Cortes da Évora 1490, qu er n os seu s capítu los gerais, qu er n os especiais, estes ú ltim os tam bém n ão an alisados até o m om en to. 3. Veja-se em CHAVES, Á. L. de. Livro de Apontamentos (1438-1489). Códice 443 da Colecção Pom balin a da B. N. L., in trodu ção e tran scrição de SALGADO, A. M., SALGADO, A. J. Lisboa: Im pren sa Nacion al, Casa da Moeda, 1984; o discu rso de LUCENA, V. F. de. A form a das m en agen s, a plan ta das Cortes e o in stru m en to das Cortes, n as folh as 10 v., 40v.-51. 4. PINA, R. de Ch ron ica d’el-rei Dom João II. In :___. Crônicas de Rui de Pina. Porto: Lello & Irm ão-Editores, 1977. cap.V. (In trodu ção e revisão de Alm eida, M. L. de). 5. Estes valores foram calcu lados a partir da obra de Arm in do de Sou sa. 6. O estu do desen volvido do con teú do destes capítu los especiais, dos gru pos sociais e pessoas n eles visados, bem com o das respostas régias com preen de a Segu n da parte, da respon sabilidade da segu n da au tora, do artigo citado de ANDRADE, A. A., GOMES, R. C. As Cortes de 1481-1482: u m a abordagem prelim in ar. p.181-212. 7. Cortes com eçadas em n ovem bro e term in adas an tes do Natal desse m esm o an o de 1482 (Arm in do de Sou sa, op. cit., p.426-29). 8. SOUSA, A. de, op. cit., p.426-29, refere-se aos aspectos form ais de reu n ião destas Cortes, bem com o o faz MENDONÇA, M., op. cit., p.249-53, m as n en h u m dos referidos au tores se debru ça sobre a an álise dos capítu los especiais. 9. Discrim in an do, são: 3 capítu los de Faro (TT – Odian a, liv. 2, f. 270); 1 de Gu im arães (TTAlém Dou ro, liv. 4, f. 241); 7 de Lou lé (TT – Ch an c. D. João II, liv. 23, f. 106-7; Odian a, liv. 2, f. 50-50v); 1 de Mon forte (TT – Ch an c. D. João II, liv. 23, f. 20); 4 de Oliven ça (TT – Odian a, liv. 2, f. 192-4); 1 de Pin h el (TT – Beira, liv. 1, f. 158v-159); 2 de Pon te de LIMA (tt – Além Dou ro, liv. 3, f. 140v-141); 1 de Serpa (TT – Odian a, liv. 2, f. 192); 1 de Silves (TT – Odian a, liv. 2, f. 297v-298); 8 de Vila Viçosa, de qu e n ão se con h ecem as respostas régias (TT – Corpo Cron ológico, parte II, m . 1, doc. 40); 1 de Viseu (TT – Ch an c. D. João II, liv. 25, f. 38v). Doravan te dispen sar-n os-em os de citar as cotas dos docu m en tos, m as iden tificarem os os artigos pelo con celh o e seu n ú m ero de ordem . 10. Ten h a-se em con ta qu e u tilizan do n os trabalh os de ou tros au tores para as Cortes de Evora de 1481-1482 e para os capítu los gerais das de Évora de 1490 pode h aver algu m defasam en to n a an álise da n atu reza dos artigos, bem com o n a classificação das respostas régias, en tre a classificação aí apresen tada e a n ossa. 11. Só n ão estiveram Mon forte, Oliven ça, Pin h el, Serpa e Vila Viçosa. 39 Maria Helena da Cruz Coelho 12. Por certo Rodrigo Afon so de Melo, casado com D. Isabel de Men eses, con de de Oliven ça desde 1476 e falecido em 1487 (FREIRE, A. B. Brasões da Sala de Sintra. 2.ed. Coim bra: Im pren sa da Un iversidade, 1930. liv. III, p.324-25). 13. Sobre a form ação da Casa de Bragan ça e a dim en são do seu real poder em terras, direitos, ju risdições e h om en s, leia-se o estu do de CUNHA, M. S. da Linhagem, Parentesco e Poder. A casa de Bragan ça (1384-1483). Lisboa: Fu n dação da Casa de Bragan ça, 1990. 14. SOUSA, A. de, op. cit., v.I, p.429-30, resu m e os aspectos form ais da con vocação destas Cortes, para n o volu m e segu n do, a págin as 488-99, n os forn ece o resu m o dos seu s capítu los gerais e respostas régias, por aqu i ten do n ós qu an tificado estas, n a elaboração do gráfico. No en tan to, para u m a an álise qu alitativa m ais porm en orizada, con su ltam os com o fon te, ain da qu e secu n dária, os códices 694 e 696 dos Man u scritos de João Pedro Ribeiro, qu e se en con tram n a Secção de Man u scritos da Biblioteca Geral da Un iversidade de Coim bra. Os m esm os capítu los gerais destas Cortes foram estu dados por MENDONÇA, M., op. cit ., p.412-35, n as su as tem áticas e respostas régias, bem com o n as con tin u idades ou diferen ças em relação às de 1481-1482. 15. O n ú m ero exato de deferim en tos (totais, parciais ou con dicion ais) é de 59,6% , de in deferim en tos 29,80 % e de evasivas, adiam en tos ou n ão in ovações é de 10,6% . 16. Sobre estes ver agravos 4, 7, 10, 23, 30, 31, n u m eração do volu m e segu n do a obra citada obra de Arm in do de Sou sa. 17. Agravo 8. 18. Agravos 2,11,27,39. 19. Agravos 15 e 47. 20. É apen as evasivo n o capítu lo 30 sobre a m an u ten ção dos desem bargadores e su as obrigações. 21. Assim n o caso da alçada do direito de asilo das igrejas (17). 22. In defere u m pedido de habeas corpus, en qu an to du rassem as in qu irições devassas (45). 23. Resposta evasiva recebe a preten são de se pu n irem os alm oxarifes e ren deiros do rei pela ven da dos ben s desses ren deiros abaixo do seu valor, e n ão os com pradores dos m esm os. 24. Expu n h am os povos qu e, por essa razão, os fidalgos tin h am as su as filh as “com h om em n om seu igu al” ou colocá-las com o freiras. Pedem qu e os dotes fossem 1.000 cru zados de ou ro e as arras 1/ 3 e qu em o n ão fizessem perdesse tu do para ou tros filh os, irm ãos ou paren tes m ais ch egados qu e assim casasse, segu n do se fazia em Floren ça, Sien a e por toda a Itália. Mas D. João II respon de “qu e lh es agradece a boa von tade com qu e se m overom a esto apon tar peroo qu e n om h e cou sa em qu e possa dar determ in açom ” (BGUC – Col. De Man u scritos de João Pedro Ribeiro, cód. 696, p.148-249). 25. Pediam isto para os lavradores, sob pen a de açoites e degredo para as ilh as, e perda dos ben s dos oficiais m ecân icos qu e os en sin assem . A resposta régia é, porém , do segu in te teor: “n om pedem beem , pois o officio da lavoira h e dign o de favorizar e n om pera agravar vista a n ecessidade delles n o regn o, e com o se n om pode tolh er a cada h u u m de trabalh ar por m ais valler e de trabalh ar por isso”. Logo, o m on arca desejava lavradores qu e gostassem do seu trabalh o, e qu e n ão se sen tissem m an ietados qu an to aos seu s filh os (BGUC – Col. De Man u scritos de João Pedro Ribeiro, cód. 696, p.259-61). 26. De fato, as Ordenações Afonsinas liv. 5, tít. 101, in terditavam tal profissão aos h om en s, sob pen a de prisão e açoites em pú blico. Aqu i os povos alegavam qu e eles faziam o m el caro, e qu e, ao vê-los, os m en in os ch oravam , pression an do os pais à com pra de alféloa, além de qu e ain da en sin avam m au s vícios de cartas e dados. O m on arca n ão proíbe a profissão m as exige qu e “n om jogu em dados” (BGUC – Col. De Man u scritos João Pedro Ribeiro, cód. 696, p. 270-1). 27. D. João II perm ite qu e sejam ren deiros das sisas, a qu al tirada por cristãos ain da seria pior, in terditan do-lh es, todavia, serem ren deiros dos m estrados ou igrejas, e de desem pen h arem ofícios ou serem feitores (BGUC – Col. De Man u scritos de João Pedro Ribeiro, cód. 696, p.242-4). 40 O FINAL DA IDADE MÉDIA 28. Mas, n este caso, os ju deu s tin h am o con lu io de algu n s cristãos qu e lh es com pravam os escravos con vertidos. Ora D. João II in terdita aos ju deu s a com pra de m ou ros e m ou ras da Gu in é, m as deixa-os possu ir escravos bran cos. E se algu m escravo se fizesse cristão ficava forro, e n en h u m cristão poderia dizer qu e era seu (BGUC – Col. De Man u scritos de João Pedro Ribeiro, cód. 696, p.279-81). 29. Assim qu is con trolar a eleição para os oficiais con celh ios, desejan do ver e in terferir n a pau ta dos elegíveis, sobretu do n as prin cipais cidades, com o Lisboa e Évora (MENDONÇA, M., op. cit., p.314-18). Não abdicou de n om ear dezessete ju ízes de fora e de dar corregedores às com arcas do rein o (op. cit., p.365-73). E além disso deu provim en to a u m n ú m ero assaz con siderável de ou tros oficiais de ju stiça – ju ízes e escrivães das sisas e ju ízes e escrivães dos órfãos –, da fazen da – em especial oficiais da alfân dega (alm oxarife, escrivão, ju ízes, porteiros, requ eredores, m edidores, h om en s) –, ou da adm in istração local – sobrem an eira tabeliães, procu radores do n ú m ero, escrivães da câm ara, da alm otaçaria e de alcaidaria, cou déis e seu s escrivães (op. cit., p.319-65). 30. É, aliás, m u ito esclarecedora, a resposta de D. João II: “elle escreve aos con celh os por os offícios sobre boas pessoas e qu e en ten de qu e som pera elles perten cen tes, e qu e h e beem do povoo, e n om per ou tro respeito; e qu e qu an do virem qu e as pessoas por qu e escrepveu n om som taes qu e pera ello sejam perten cen tes qu e lh o escrepvam , e qu e terá sobre isso a m an eira qu e seja razom ; porqu e dos seu s povoos e Regn o elle teem o m aior cu idado” (BGUC – Col. De Man u scritos de João Pedro Ribeiro, cód. 696, p.254-55). 31. Mas tam bém estes deviam agir den tro da legalidade. E por isso aceita o pedido de qu e o m oleiro deve receber o grão e dar a farin h a a peso (38). 32. Não qu eriam qu e os gados fossem cou tados pelos alcaides das sacas e gu ardas fiscais do con traban do para Castela (19); n ão qu eriam in form ar os ren deiros das sisas das deslocações para pastagen s, n em pagar a portagem (20). O m on arca respon de em sín tese: “n om pedem bem , porqu e se assy n om se fizese averia m aior m in goa de carn es n o regn o do qu e h á” e prom ete m esm o fazer orden ações “m aes apertadas aceerca dello” (BGUC – Col. De Man u scrito João Pedro Ribeiro, cód. 696, p.246-8). Não lh es é ain da con sen tido criar gado m u ar n o En tre Dou ro e Min h o, u tilizan do égu as galegas (43). O m on arca apen as con sen te qu e n ão levem din h eiro das bestas qu e vão a Castela bu scar carga (22). 33. Pedira o m on arca o m on opólio da exportação, por 5 an os para carregar cobre de Fran ça, Flan dres e In glaterra. E porqu e “rogo do rey m an dado h e”, aceitou -o o povo. Acabados os 5 an os, o m on arca dera o trau to a Du arte Bran dão, con tra o qu e agora os con celh os se in su rgiam . Mas respon de o m on arca: “con sirada esta cau sa beem h e m aes dam pn o qu e proveyto de seu povoo an dar solta e fora de h ú a m ãao porqu e h u u n s tolh em o proveito dos ou tros” (BUGC Col. De Man u scritos de João Pedro Ribeiro, cód. 696, p.245-6), alegan do qu e o desequ ilíbrio de riqu eza en tre os m ercadores con du ziria, in evitavelm en te ao m on opólio de u n s qu an tos. 34. São eles 6 capítu los especiais de Aveiro (TT – Ch an c. D. João II, liv. 16, fl. 16v-19); 2 de Barcelos (TT – Ch an c. D. Man u el, liv. 9, fl. 33); 1 de Braga (TT – Ch an c. D. João II, liv. 13, fl. 118; Além Dou ro, liv. 3, fls. 93v-94); 7 de Bragan ça (TT – Ch an c. D. João II, liv. 16, fls. 131-132); 6 de Coim bra (TT – Ch an c. D. João II, liv. 13, fl. 127-127v); 1 de Coru ch e (TT – Ch an c. D. João II, liv. 9, fl. 50; Odian a, liv. 2, fl. 53); 4 de Elvas (AM – Perg. 66); 3 de Estrem oz (TT – Odian a, liv. 2, fl. 59-59v); 2 da Gu arda (TT – Ch an c. D. João II, liv. 16, fls. 26v-27); 1 de Gu im arães (TT – Ch an c. D. João II, liv. 11, fl. 24-24v; Além Dou ro, liv. 3, fl. 85-85v); 8 de Lagos (TT – Odian a, liv. 2, fls. 60-62); 3 de Lam ego (TT – Ch an c. D. João II, liv. 16, fl. 22-22v); 2 de Miran da do Dou ro (TT – Ch an c. D. João II, liv. 16, fl. 23; Além Dou ro, liv. 3, fls. 96v-97); 4 de Oliven ça (TT – Ch an c. De D. João II, liv. 16, fl. 69-69v); 2 de Setú bal (TT – Ch an c. De D. João II, liv. 9, fl. 117-117v; Odian a, liv. 2, fl. 55-55v); 3 de Silves (TT – Ch an c. D. João II, liv. 9, fls. 39v-40); 5 de Torres Vedras (TT – Ch an c. D. João II, liv. 13, fl. 144-144v). Em relação aos con celh os qu e apresen taram capítu los especiais n estas Cortes de 1490, in ven tariados por Arm in do de Sou sa, ob. cit., vol. III, p. 13, diga-se qu e qu an to ao Cartaxo (TT – Ch an c. De D. João II, liv. 21, fl. 172) se trata de u m a carta de D. João II, respon den do a agravos qu e o con celh o de San tarém fazia ao Cartaxo, m as datada 41 Maria Helena da Cruz Coelho de San tarém , 28 de ju n h o de 1487, portan to n ão destas Cortes. Igu alm en te o Porto (AHM – Livro Gran de, fl. 196) apresen ta u m a carta de privilégios, datada da Évora de 1 de ju n h o de 1490, qu e, em bora seja da época das Cortes, m ais parece, pelo seu form u lário, obtida fora delas. (Aqu i deixam os u m agradecim en to recon h ecido ao Diretor do Arqu ivo Histórico, Dr. Man u el Real, qu e n os en viou , com o pedim os, a reprodu ção deste docu m en to). Não en tram os em lin h a de con ta com Tavira, pois ten do n ós requ erido ao Arqu ivo Mu n icipal a folh a 97, do códice Reform a dos Tom os, n ão obtivem os resposta, n ão se n os oferecen do a possibilidade de aí n os deslocarm os para an alisar essa fon te, fican do este caso em aberto. 35. Aveiro (3) qu eixa-se qu e o corregedor m an dara fazer u m a n ova casa de au diên cias e relação, bem com o ch afariz e calçadas. O con celh o pede tem po para fazer as obras e o rei con cede-lh e prazo de u m an o. Em Miran da (1) o corregedor pren dia os h om iziados do con celh o e colocava-se n a prisão, n ão respeitan do o cou to da vila. 36. Acu sa Torres Vedras (5) o en tão ju iz das sisas de pou co saber, e de com eter m u itos erros, pedin do ou tro m ais idôn eo. O m on arca exige qu e se qu eixassem dele por carta e depois ele fosse ou vido. 37. Sobre este pedido o m on arca adia a resposta, pedin do in form ações. 38. Oliven ça (1) qu eria ain da qu e o alcaide das sisas fosse de fora e provido de 3 em 3 an os. 39. E, segu n do o parecer de MARQUES, A. H. de O. História de Portugal. Das origens ao Renascimento. 9.ed. Lisboa: Palas Editores, 1982. v.I, p.363-4: “a política de D. João II con sistiu em bu scar o apoio, n ão da classe popu lar, m as an tes das fileiras in feriores da n obreza. Ao m esm o tem po, prom oveu m u itos legistas e fu n cion ários pú blicos a cargos de relevo até aí reservados às cam adas altas da aristocracia”. 40. Para os cargos de ju iz de fora, corregedor, tabelião e ch an celer da provín cia e com arca, D. João II n om eou h om en s da su a con fian ça, sain do algu n s da corte, m as perten cen do a u m escalão social baixo, com destaqu e para os escu deiros, qu e tan to seriam oriu n dos da n obreza com o do povo, com o o atesta o trabalh o de Man u ela Men don ça, “Os h om en s de D. João II”, sep. de Estudos em Homenagem a Jorge Borges de Macedo, Lisboa, INICT, 1994, p.173-5. 41. Aten te-se qu e D. João II privilegiou com isen ções, m ais de cem ben eficiados da n obreza m édia e in ferior – cavaleiros, escu deiros, vassalos e h om en s fidalgos. Eram algu n s deles filh os segu n do de gran des fam ílias, even tu alm en te bastardos, portan to dos seu s ram os m en os favorecidos. Eram ou tros cavaleiros e escu deiros em form ação e algu n s qu an tos h om en s do povo. Gen te qu e tu do esperava do m on arca, dan do-lh e em troca a su a in teira lealdade (MENDONÇA, M., op. cit., p.176-85). 42. O m on arca m an dara a Álvaro de Ataíde prover a casa de sal. Em caso n egativo os vizin h os poderiam explorar as m arin h as, pagan do-lh e os 12.000 reais. 43. Deverá ser D. Fran cisco Cou tin h o, 4º. Con de de Marialva. Era filh o de Gon çalo Cou tin h o, 2º. Con de de Marialva e su cedeu n o títu lo, por m orte de seu irm ão, D. João Cou tin h o, 3º. Con de de Marialva. (Veja-se FREIRE, A. B. Brasões da Sala de Sintra. 2.ed., livro. III, p.310.) 44. Por certo D. San ch o de Noron h a, 3º. Con de de Odem ira. Era sobrin h o do rei e filh o do con de de Faro, títu lo qu e tam bém u sou , e n eto do 1º. Con de de Odem ira. Obteve a con firm ação da alcaidaria-m or de Estrem oz, a 23 de m aio de 1509 (FREIRE, A. B., op. cit., liv. III, p.345). 45. Mça M., op. cit., 1991, p.367, afirm a qu e em 1487 fora n om eado u m ju iz de fora para Estrem oz. 46. Na realidade a qu eixa qu ase se poderia voltar con tra o m on arca. D. João II dera ao bispo da Gu arda o privilégio de gu ardar os seu s presos n as prisões do con celh o. Mas o con celh o, talvez torn ean do a m elin drosa qu estão, apen as acu sa o bispo por ter requ erido tal privilégio, qu e n en h u m ou tro prelado possu ía, ten do-o feito apen as para su bju gar a cidade, u m a vez qu e o alju be e cadeias episcopais eram bem m elh ores qu e as con celh ias. Em tão delicada con ten da o m on arca sen ten cia salom on icam en te. Por u m an o gu arda-se o alvará, decorrido este deixa-se de gu ardar. 47. Refere-se qu e ven diam aos castelh an os a 10, 15 ou 20 reais e a eles a 80 e 100 reais. 42 O FINAL DA IDADE MÉDIA 48. Capítu lo especial de Coim bra (1) às Cortes de 1490. 49. Capítu los especiais de Coim bra (2 e 3) às m esm as Cortes. 50. Nas referidas Cortes, cap. 5. 51. Capítu lo especial de Miran da (1) às Cortes de 1490. 52. Com o exem plos, os capítu los especiais de Bragan ça (4) e da Gu arda (1) às Cortes de 1490. 53. Capítu lo especial de Bragan ça (1) às Cortes de 1490. 54. Esta parece ser a opin ião de MAGALHÃES, J. R. Os régios protagon istas do poder. D. João II. In : MATTOSO, J. (Dir.) História de Portugal. v. III, No alvorecer da Modernidade, (Coord.). Joaqu im Rom ero Magalh ães Lisboa: Estam pa, 1993, p.318, qu e afirm a “em D. João II n ão en con tram os u m a dem on stração de bu sca de apoios em gru pos sociais con tra ou tros ou o desejo de m u dar ou su bverter a h ierarqu ia social preexisten te”, m as apen as o desejo de obediên cia e acatam en to da au toridade régia. 43 Maria Helena da Cruz Coelho B IBLIOGRA FIA ANDRADE, A. A., GOMES, R. C. As Cortes de 1481-1482: u m a abordagem prelim in ar. Estudos Medievais (Porto), 1983-1984. COELHO, M. H. da C. O peso dos privilegiados em Portu gal. In : CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA, “EL TRATADO DE TORDESILLAS Y SU ÉPOCA”, I. Madrid, 1995. CUNHA, M. S. da Linhagem, parentesco e poder. A casa de Bragan ça (13841483). Lisboa: Fu n dação da Casa de Bragan ça, 1990. MATTOSO, J. (Dir.). História de Portugal. v.III, No alvorecer da Modernidade, coord. de Joaqu im Rom ero Magalh ães. Lisboa: Editorial Estam pa, 1993. (ver observação n a ú ltim a n ota) MARQUES, A. H. de O. História de Portugal. Das origen s ao Ren ascim en to. 13.ed. Lisboa: Editorial Presen ça, 1997. v.I. MENDONÇA, M. D. João II: u m percu rso h u m an o e político n as origen s da m odern idade em Portu gal. Lisboa: Estam pa, 1991. SOUSA, A. de As Cortes medievais portuguesas (1385-1490). Porto: INIC, 1990. 2.v. 44 capítu lo 3 O PRINCÍPIO DA ÉPOCA MODERNA Hu m berto Baqu ero Moren o* A aclamação de D. João I nas cortes de Coimbra de 1385 em lugar de reduzir a autoridade da coroa, veio pelo contrário aumentar o seu prestígio. Assim, a interrupção da continuidade dinástica pela via legítima não impediu que por falecimento do monarca a coroa fosse transmitida ao filho varão primogênito, ou, na sua falta, ao mais próximo parente por linha colateral legítima. Foi aliás o que aconteceu por falecimento de D. João II, em que a transmissão do poder se realizou em benefício de seu cunhado e primo direito, o duque de Viseu D. Manuel, filho do infante D. Fernando e neto do rei D. Duarte. A doutrina tradicional sustentada por diversos juristas estabelecia o princípio de que o mestre de Avis tinha sido eleito rei de Portugal nas mencionadas cortes, partindo do princípio que ao povo pertencia esse direito de escolha quando o trono se encontrasse vago por qualquer motivo de força maior. Coube pela primeira vez a Alfredo Pimenta, sustentar a teoria que as cortes de Coimbra não elegeram D. João I, mas antes pelo contrário terse-iam limitado a confirmar um direito sucessório.1 Esta questão, contudo, não se apresenta tão líquida. Contrariamente a esta posição temos que o auto de aclamação fala expressamente na eleição, tendo os representantes concelhios declarado que o trono se encontrava vago. Por seu turno sabe-se que D. João I considerava que não recebera a coroa iure successiones, mas fora designado ex-novo.2 Em conformidade com o pensamento político medieval a monarquia era uma instituição de direito divino, embora os teóricos se dividissem quanto ao modo como os reis recebiam o poder. Segundo uns os monarcas adquiriam a potestade diretamente de Deus. Outros como Álvaro Pais, no de Planctus Ecclesie opinam a doutrina da mediação do povo. Ainda existem defensores de que o papa transmite o poder temporal aos reis, o que se traduzia no conceito de supremacia do poder espiritual sobre o temporal.3 A autoridade outorgada aos monarcas assentava em símbolos cuja aplicação remontava ao estado visigótico desde o governo de Leovigildo. Estas insígnias que na sua maioria eram de origem imperial romana haviam adquirido um caráter religioso. Consistiam esses símbolos na coroa, na espada, no cetro, no manto de púrpura e no trono. A cerimônia de consagra- 47 Humberto Baquero Moreno ção e coroação dos reis castelhano-leoneses efetuava-se publicamente em alguma catedral duma cidade importante. Era um bispo quem ungia e coroava o monarca, embora Afonso XI se tenha coroado a si mesmo, coroando de imediato a rainha. A unção e a coroação não tinham caráter obrigatório, tendo sido João I o derradeiro monarca castelhano que se coroou com toda a solenidade em1379. A partir de então o monarca passou a ser aclamado ao grito de “Castilla, Castilla por el Rey”. Ao mesmo tempo levantava-se o pendão real.4 Não existe qualquer notícia de que no reino de Aragão os reis tivessem sido ungidos e coroados anteriormente ao século XIII. Foi Pedro II quem em Roma no ano de 1304 foi coroado pelo papa Inocêncio III. Nessa cerimônia o rei aragonês prestou homenagem ao chefe supremo da igreja e obteve a sua autorização para que no futuro os reis de Aragão passassem a ser coroados em Zaragoza. Sucedeu que Pedro III se coroou pelas suas próprias mãos nessa cidade, iniciando uma prática que passou a ser habitual em todos os reinados.5 Em Portugal não se praticava a coroação, que consistia na unção pelos prelados, com bênção ritual e entrega solene dos atributos da realeza em cerimônia litúrgica. Tanto quanto se sabe, o que nos leva a deixar de lado outras hipóteses, a primeira tentativa no sentido de introduzir a prática da coroação, ficou se devendo ao infante D. Pedro, o qual solicitou ao papa o direito à unção e colocação da coroa a favor dos monarcas portugueses. Para esse efeito, o papa Martinho V pela bula Uenit ad presentiam nostram , concedeu essa graça em 16 de maio de 1428. Contudo a referida mercê nunca chegou a ser utilizada. A prática que sempre foi utilizada consistia na aclamação ou proclamação pública do monarca, que após a homenagem que lhe era prestada pelos súditos assistia a um ato religioso revestido de insígnias. Nesse cerimonial o rei jurava sobre os Evangelhos respeitar os direitos do povo e os privilégios de que usufruíam os súditos do reino. Esta atitude implicava da sua parte a aceitação da lei moral e religiosa e a observância dos usos e costumes tradicionais.6 Na seqüência do pedido formulado pelo infante D. Pedro ao papa, seu irmão, o rei D. Duarte insistiu no propósito. Encarregou os seus embaixadores Doutor Vasco Fernandes de Lucena e Diogo Afonso Mangancha para que no Concílio da Basiléia requeressem ao papa o privilégio da unção e da coroação. As dificuldades surgidas na curia levaram o papa Eugênio IV, pela bula Sedes Apostólica de 23 de outubro de 1436, a não conceder aos reis de Portugal o direito à coroação em termos semelhantes aos que se praticavam na corte inglesa. Assim, os reis de Portugal nunca foram coroados.7 No cerim on ial portu gu ês observava-se apen as o levan tam en to, con form e se depreen de do rito de elevação do rei D. João II. Ju n to da cadeira real en con trava-se u m a cadeira pequ en a coberta de seda e com u m a alm ofada do m esm o tecido, em qu e estava colocado u m m issal. Caberia ao 48 O PRINCÍPIO DA ÉPOCA MODERNA n ovo rei ju rar sobre esse livro, on de apu n h a as su as m ãos, o qu al procedia de im ediato ao ju ram en to, prom eten do “com a graça de Deos vos reger e govern ar bem e diretam en te e vos m in istrar in teiram en te ju stiça qu an to a h u m an a fraqu eza perm ite, e de vos gu ardar vossos privilegios, graças e m erçes, liberdades e fraqu ezas qu e vos forão dadas e ou torgu adas por ElRej m eu sen h or e padre cu ja alm a Deu s aja e por ou tros Reis passados seu s predecessores”.8 Após o juramento efetuado pelos fidalgos presentes à cerimônia, pertencia ao alferes desfraldar a bandeira e proclamar “real, real, per o muito alto e muito poderoso El-Rej Dom João, nosso senhor”. Outro dos juramentos seria efetuado pelos procuradores de Lisboa em representação de todos os outros delegados dos concelhos do reino. Ao retirar-se para a sua câmara o rei vestia um manto e usava um capelo preto de luto, que decorridos 6 meses passava a ser substituído por uma “loba frizada”, conforme fizera o rei D. Duarte depois do falecimento de D. João I.9 Em Portugal os reis usufruíam duma autoridade incontestada que se pautava por uma extrema firmeza. Por mais duma vez o rei D. Pedro I emprega a expressão, no protocolo de algumas das suas cartas, “de nossa certa ciência e poder absoluto”. Seu filho D. Fernando utiliza por vezes, em suas cartas, a fórmula “o estado real que temos por Deus nos é dado para reger os nossos reinos”. A escolha de D. João I pela vontade popular não obsta a que este monarca de acordo com a tradição dos seus antecessores, utilize “de nossa própria autoridade e livre vontade e de nosso poder absoluto”, expressão que irá ser igualmente utilizada pelos seus sucessores. Em conformidade com o seu poder absoluto o rei era a representação da lei viva. Uma carta de D. Dinis de 1317 reserva para a coroa o exercício das funções de “justiça maior”, o que aliás virá a ser de novo reafirmado pelo rei D. Fernando nas cortes de Leiria de 1372. Sabe-se porém que o papel do monarca não se limita de acordo com a doutrina consignada pelo livro das Sete Partidas de Afonso X, o Sábio, que tanta influência teve entre nós, ao poder judicial. De igual modo lhe pertencia o poder executivo, conjuntamente com a chefia do exército e a cunhagem da moeda.10 Sabe-se que pelo menos desde o século XIII ninguém põe em causa a autoridade absoluta do monarca, a qual tinha como modelo remoto o direito imperial romano. Deste modo não existia qualquer restrição que limitasse o poder do rei, o qual se exercia através dos mecanismos adequados. Um dos primeiros instrumentos relativos ao desembargo régio ficou-se devendo ao rei D. Pedro I e remonta a 1361. No desempenho do seu governo, o monarca era auxiliado por um concelho consultivo que a partir do século XIV passou a ter a designação de concelho de el-rei.11 São múltiplas as dificuldades que obstam a uma correta articulação entre o Estado e os seus dependentes. Em muitos aspectos o caráter abso- 49 Humberto Baquero Moreno luto da monarquia afigura-se mais propriamente teórico do que real. Podese mesmo considerar ter havido uma disfunção no que respeita a uma efetiva centralização. Este fato deve-se sobretudo ao deficiente estabelecimento dos canais de circulação existentes entre as esferas do poder e os setores da sociedade que dependiam da sua autoridade. Esta carência permite afirmar que a existência do absolutismo não corresponde ao centralismo, o que se deve a um conjunto de fatores restritivos que condicionam este sistema. Entre eles cumpre destacar uma série de inconvenientes resultantes duma deficiente rede vial que dificultava o acesso do monarca e do corregedor da corte e certas áreas do território, sobretudo em determinadas épocas do ano em que a circulação se tornava impraticável. A acrescentar às limitações que incidem sobre as áreas de intervenção direta do monarca, deparamos com a realidade que o funcionalismo ao serviço da coroa se apresenta extremamente reduzido na medida em que a coroa não dispunha das verbas indispensáveis à manutenção desses órgãos do executivo. Daqui se depreende que o nosso sistema político funciona apenas reduzido a um mínimo de funcionários que se situam em duas categorias fundamentais: juízes e exatores fiscais. À exceção destes funcionários encarregados da cobrança de impostos e de missões de vigilância, tudo o resto depende dos órgãos locais que gozam duma apreciável autonomia. Um conflito latente deverá ser devidamente assinalado. A pressão senhorial, na generalidade das vezes contrária aos interesses de coroa, produz os seus efeitos sobre os municípios, os quais procuram a todo o transe conservarem o seu estatuto de realengos, ficando desobrigados da pertença a um senhorio nobre ou sob a jurisdição direta de algum fidalgo.12 A manifesta carência de órgãos intermédios obriga a coroa a uma cuidadosa regulamentação da vida judicial, materializando nas Ordenações do reino as obrigações e os deveres que recaíam sobre os juízes ordinários e sobre os corregedores. Estes funcionários, cujo primeiro regimento remonta a 1332, no reinado de D. Afonso IV, têm um papel muito importante na administração local e na regularização das suas relações com o poder senhorial, cumprindo-lhes a observância na aplicação das normas legais e no bom “vereamento” dos concelhos. O rei D. Pedro I procede à atualização do regimento dos corregedores, incumbindo-os de designar os homens elegíveis para o desempenho das funções de juízes das terras. Acentua-se em particular uma interferência do poder central sobre o poder local, que atinge o seu paroxismo quando em plena crise o rei D. Fernando, no desentendimento que mantém com os seus súditos, nomeia, à revelia das normas em vigor, regedores ou vereadores por el-rei.13 Na generalidade a nobreza identificava-se com os servidores de armas, que com os seus pequenos exércitos se encontravam ao serviço da co- 50 O PRINCÍPIO DA ÉPOCA MODERNA roa. Apenas com a constituição das grandes casas senhoriais no decurso do século XV, é que se formam os grandes exércitos particulares. Uma estimativa que nos foi possível estabelecer aponta para que a casa do infante D. Pedro possuía ao seu serviço 1.200 cavaleiros e 2.300 peões, enquanto a de seu meio-irmão, D. Afonso, dispunha de 1.700 cavaleiros e 2.000 peões. Sem contar com a cavalaria, as forças militares de que dispunha o rico-homem Nuno Martins da Silveira, cifravam-se em 250 escudeiros e 400 besteiros e homens que combatiam a pé.14 Como regra todo o nobre possuía um patrimônio fundiário, sobre o qual possuía jurisdição e cobrava rendas e impostos. Dependiam da sua autoridade um número variável de cavaleiros, escudeiros, besteiros e peões, estando-lhe subordinados por vínculos pessoais os criados, os quais haviam sido educados e preparados para o uso das armas nas suas casas. As tentativas para a instituição de vassalos, que esporadicamente surgem nos primórdios do reinado de D. João I, serão energicamente combatidas pela realeza que apenas admitia a existência de vassalos da coroa. Não se pode, portanto, falar em vassalos de fidalgos, mas apenas do rei.15 Em relação ao patrimônio da nobreza deve-se sublinhar que uma parte pertencia à herança familiar ou a compra, mas a outra pertencia à coroa que lhe fizera concessão de juro e herdade, com ressalva da correição e das alçadas, com transmissão aos seus herdeiros, mas implicando confirmação sempre que se iniciava um novo reinado. Outra parte desses bens pertencentes à coroa encontrava-se em regime de préstamo, com caráter precário, embora sua modalidade se tornasse menos freqüente nos derradeiros séculos medievais. Havia nobres que não possuíam quaisquer bens fundiários, correspondendo na sua inserção a grupos destituídos dos mais elementares recursos materiais.16 A designação dos nobres como alcaides dos castelos não pressupunha que os mesmos lhes passassem a pertencer. Como detentores desse benefício cumpria-lhes exercer o cargo mediante um juramento que consistia numa homenagem de obediência e de vassalagem ao monarca ou noutras circunstâncias ao mestre da ordem militar em que se situassem esses castelos, cuja dependência mesmo assim obedecia em última instância à própria coroa.17 Rompendo com uma tradição que permitia aos senhores a aplicação de justiça sem qualquer restrição, o rei D. Dinis, através da já mencionada lei de 1317, fazia doutrina ao determinar que pertencia ao monarca tomar conhecimento e julgar todas as apelações que lhe fossem dirigidas. Todos os fidalgos que praticassem obstrução à justiça régia poderiam ser sancionados com a privação da jurisdição. Paulatinamente a concessão do direito apenas se aplicava às questões cíveis, reservando à coroa a apreciação dos casos de crime e a conseqüente intervenção com ressalva da correição e das alçadas.18 51 Humberto Baquero Moreno A lei de 1372 apenas consignava aos nobres o acesso à jurisdição cível, sendo da competência dos juízes da coroa o exame dos processos-crime. Em última instância haveria sempre a possibilidade de recorrerem para a justiça do rei na sua qualidade de órgão supremo de jurisdição e avaliação dos pleitos em julgado.19 Com a crise de 1383-1385 assiste-se a um avultado número de doações levadas a efeito pelo Mestre de Avis, que ao confiscar os haveres dos que haviam seguido essencialmente o partido de Castela quis assim recompensá-los pela dedicação à sua causa. A situação apenas retomou a sua normalidade a partir de 1388, altura em que o número de doações se coloca no mesmo nível dos anos anteriores à revolução.20 Naturalmente que ultrapassada a primeira fase revolucionária do seu governo, em que o rei teve de realizar inúmeras doações passou-se seguidamente, a um conjunto de medidas de cunho restritivo que visava em particular reaver o maior número possível de bens, acautelando-se deste modo os interesses da coroa. Essa medida aparece claramente consignada numa doação feita em 15 de maio de 1393 a favor de Diogo Lopes Pacheco. O fundamento dessa doutrina exprime-se no princípio de que os bens da coroa são inalienáveis e que a sua doação pressupunha determinados condicionalismos no respeitante à sua transmissão.21 Três normas aparecem consignadas nesta doutrina. A indivisibilidade tendente a evitar a divisão do patrimônio adquirido da coroa pelos diversos filhos. A primogenitura em que os bens doados apenas podem ser transmitidos ao filho mais velho legítimo e à masculinidade, em que são exlcuídas as filhas, exceto em caso de mercê especial. Paulo de Merêa diz-nos que o princípio de exclusão das mulheres apenas surge consignado numa carta de 8 de junho de 1417, mas tal normativa já se encontra expressa numa carta de 27 de julho de 1398 concedida em benefício de Diogo Lopes de Sousa.22 Numa doação de 24 de janeiro de 1429 D. João I excetua um fidalgo da aplicação da Lei Mental utilizando as palavras “posto que nos tenhamos feita e hordenada uma lei em nossa vontade”, medida que apenas viria a ser concretizada por seu filho D. Duarte em 30 de junho de 1434. Ao ser promulgada muitos foram os que reagiram quanto à sua aplicabilidade, mas depararam com a obstinada resistência do Infante D. Pedro que apenas abriu mão em 1442 relativamente ao cavaleiro da sua casa Fernão Gomes de Gois. D. Duarte dera aliás o exemplo ao excetuar, por carta de 10 de setembro de 1434, a sua aplicação à casa de Bragança.23 Com a derrota do in fan te D. Pedro em Alfarrobeira, D. Afon so V cedeu em face da n obreza em relação a esta m atéria. Tan to qu an to m e foi possível apu rar verificam -se qu in ze casos de exceção ao cu m prim en to da Lei Men tal. Su cede com D. Fran cisco Cou tin h o, D. San ch o de Noron h a, D. Hen riqu e de Men eses, com o in fan te D. Fern an do, seu irm ão, em be- 52 O PRINCÍPIO DA ÉPOCA MODERNA n efício de seu s filh os D. Du arte e D. Man u el (fu tu ro rei de Portu gal) e com Pero de Gois. Abran gidos são ain da os cavaleiros fidalgos João Rodrigu es de Sou sa, Ru i de Sou sa, Ru i Pereira, João Alvares da Cu n h a, Diogo Lopes de Azevedo, Diogo Lopes Lobo, João Rodrigu es de Sá, Leon el de Lim a e Diogo de Sam paio. Em relação aos quadros superiores da nobreza observa-se que os ricoshomens, além da linhagem de que eram detentores, distinguiam-se pelos avultados bens que possuiam e pelos importantes cargos que detinham na administração pública. O monarca podia “fazer” ricos-homens, o que já não acontecia com os infanções, grau da nobreza inferior ao dos ricos-homens, mas superior no respeitante à linhagem. No decorrer do século XIV o rico-homem já não aparece associado ao exercício de um cargo público. Se examinarmos a documentação do século XIV, com destaque para a Pragmática de 1340 e para as cortes de Santarém de 1331,24 aparece-nos com profusão esta categoria social, a qual domina a hierarquia nobiliárquica da época. Sintomático, contudo, é que já na legislação de 1374 desaparece por completo surgindo como correlativo o termo de vassalo da coroa, outras vezes designado por vassalo maior.25 Com efeito, o rico-homem transforma-se no século XV num vassalo do rei que recebe da coroa uma “contia”, a qual se encontra registrada no livro das moradias, e fica obrigado a servir à coroa mediante um certo número de lanças. Este vassalo podia não ser fidalgo, alcançando a categoria em recompensa dos seus serviços ou mesmo por simples compra. Por essa via entravam na nobreza homens possuidores de riqueza que se dedicavam ao comércio e constituíam a burguesia e mesmo, às vezes, simples artífices, o que originava o protesto dos representantes dos concelhos nas cortes, tal como sucedeu com enorme veemência na queixa apresentada ao rei D. Afonso V, nas cortes de Lisboa de 1455.26 Embora a qu estão da su bversão das categorias sociais se tivesse verificado n o rein ado de D. João I com a elevação de simples peões a cavaleiros, após a revolu ção de 1383, o problema avolu mou -se sobretu do a partir de Alfarrobeira, em 1449, facilitado pela permissividade do mon arca e pela premen te n ecessidade de alargar os qu adros da n obreza qu e se destin avam às fu tu ras campan h as marroqu in as. Daí o clamor popu lar, ou particu larmen te das oligarqu ias u rban as, qu an do se in su rgiam, de acordo com as su as palavras, con tra o fato de “pou co tempo acca vosa alteza a rogu o e requ erimen to dalgu mas pessoas a vos acçeptos” ter feito “de pequ en as con tas assy como alfaiates e çapateiros e barbeiros, lau radores e ou tras pessoas qu e eram obrigadas a pagar pedidos, ju gadas, oytau os e per os preu ilegios, escu sam os dictos emcarregos e aalem de per ello seerem releu ados sam taaes pessoas qu e fazem vergomça aos n osos u assalos qu e o sam per lin h agem perlomgada, criaçom n osa de n osso jrmãao e tijos”. De modo a combater este estado de coisas solicitavam ao rei 53 Humberto Baquero Moreno “qu e pon h a tall h orden amça qu e taaes pessoas n om filh e por u asalos salu o per lin h agem for ou ser filh o ou n eto de u asallo segu mdo já per ElRey u osso padre … em seu tempo foy orden ado”.27 Por seu turno os infanções eram possuidores de linhagem, não ultrapassando em meados do século XIV a centena de estirpes, sendo uma nobreza arraigada às áreas rurais, onde apesar de ocuparem cargos inferiores aos dos vassalos e serem proprietários de latinfúndios de menor amplitude, desfrutavam de grande influência local. Muitos deles chegaram a ocupar funções de maior importância. Problema, contudo, ainda mal esclarecido na nossa historiografia, consiste em saber se a maior parte destas estirpes se teriam extinguido em meados do século XIV, o que em caso conclusivo se deverá atribuir a uma decadência biológica relacionada com fatores endogâmicos, resultantes de cruzamentos observados entre elementos pertencentes à mesma família. Desta situação verificar-se-ia uma diminuição da natalidade e simultaneamente uma elavada taxa de mortalidade infantil e juvenil, tal como se observa no reino de Castela. Este estado de coisas tanto afetou os infanções, que desaparecem por completo dando origem aos cavaleiros-fidalgos, como igualmente aos ricos-homens, o que certamente contribuiu para a constituição de uma nova nobreza.28 A cavalaria como grau da nobreza representava uma categoria transitória. O monarca podia armar cavaleiros, mas não podia fazer fidalgos. Apenas se atingia a categoria de cavaleiro-fidalgo ao fim de três gerações. Muitos dos cavaleiros que nos aparecem a partir da segunda metade do século XIV eram provenientes da cavalaria-vilã, conhecidos genericamente pela designação de herdadores. Eram possuidores de bens fundiários nas zonas rurais, não se conhecendo na maioria dos casos como funcionava os mecanismos desta transição.29 Em consonância com a tradição o cavaleiro era armado nessa categoria pelo monarca, podendo contudo este ato reduzir-se a um simples formulário administrativo. Em conformidade com as leis do reino um cavaleiro era obrigado a possuir cavalo, perdendo essa condição no caso de não ter meios para proceder à reposição da montada, cabendo-lhe a obrigação de participar na guerra acompanhado por um determinado número de “lanças” recrutados nas suas terras e combatendo sobre as suas ordens diretas.30 A legislação em vigor estatuía “que pera cavalleiros fossem escolheitos hom ẽs de boa linhagem, que se guardassem de fazer cousa, perque podessem cair em vergonça, e que estes fossem escolheitos de boos lugares” o que significava “gentileza”. Ora “esta gentileza vem em tres maneiras; a hua per linhagem; a segunda per saber; a terceira per bondade e custumes e manhas, e como quer que estes, que a ganham per sabedoria, ou bondade, som per direito chamados nobres e gentys, muito mais ho sam aquelles, que ham per linhagem antigamente, e fazem boa vida, porque lhes vem de longe assy como per herança...”.31 Ainda dentro da nobreza cabe mencionar uma categoria de acesso à cavalaria constituída pelos escudeiros. Este grupo social a partir do século 54 O PRINCÍPIO DA ÉPOCA MODERNA XIV acusa uma acentuada tendência no sentido da sua própria cristalização. Anteriormente os escudeiros representavam uma categoria transitória de acesso à cavalaria, mas a partir da crise da segunda metade do século XIV constituem um estamento pertencente à nobreza inferior. Na maioria dos casos está vedado a eles o acesso ao grau da nobreza fidalga. Os homens que integram esta estrutura situam-se na base da nobreza e a circunstância de se inserirem nesta categoria não significa necessariamente que alguma vez ascendam ao estatuto de fidalguia.32 Conforme observa Oliveira Marques, os escudeiros formavam um grupo de homens muito numeroso nos inícios do século XV. A ordenação do exército estabelecida no reinado de D. João I fixava em 2.360 o número máximo de escudeiros de uma lança, o que na prática deveria corresponder a um quantitativo significativamente superior.33 Para finalizar esta tentativa de globalização da sociedade portuguesa em “ordens” ou em “categorias sociais”, cumpre fazer uma breve referência ao clero. Este tal como a nobreza formava uma estrutura privilegiada da sociedade, embora o grau de heterogeneidade em relação ao seu estatuto econômico fosse acentuadamente diferenciado. Dum modo genérico o clero dividia-se em duas categorias principais: o clero secular e o regular. Encontravam-se ambos subordinados à hierarquia. Enquanto o clero secular era formado por bispos, cônegos, párocos, abades e clérigos, o regular também se encontrava subordinado a uma hierarquia própria. Mas sobretudo no que toca a privilégios devemos distinguir o alto clero constituído pelos abades, bispos, cônegos e outras categorias afins, os quais eram possuidores de foro privativo, isenção de impostos e de serviço militar, embora voluntariamente pudessem participar na guerra, direito de asilo e outras regalias. Nitidamente inferiores eram as condições em que se encontrava o clero rural, o qual estava subordinado aos patronos das igrejas possuidores de comendas e à autoridade episcopal, vivendo das rendas que aqueles lhes deixavam, pelo que será de presumir com inúmeras dificuldades para sobreviver no dia-a-dia. Tema abrangente pela sua natureza apenas pudemos optar por algumas linhas cujos contornos nos permitem apresentar um esboço sumário das grandes catergorias da sociedade, a qual a par duma aparente unidade apresentava fraturas e antinomias cujo equilíbrio se apresentava instável e gerador de assimetrias. 55 Humberto Baquero Moreno N OTA S 1. Idade Média. Problemas e Soluções. Lisboa: p.265 ss. 2. Sobre esta matéria veja-se CAETANO, M. As cortes de 1385. Revista Portuguesa de História (Coimbra), tomo V, v.II, p.5 ss., 1951. Merecem ponderação as considerações formuladas a este respeito por ALBUQUERQUE, M. de. O poder político no renascimento português. Lisboa, 1968. p.23-4. 3. Vejam-se a propósito destas questões as pertinentes considerações de VALDEAVELLANO, L., em Histórias de las instituciones españolas. Madrid, 1970. p.417. 4. Ibidem , p.430-1. 5. MARTIN, B. P. La coronacion de los reyes de Aragon, (1204-1410). Valencia, 1975. p.21 ss. 6. BRÁSIO, A. O problema da sagração dos monarcas portugueses. (separatas) Anais da Academia Portuguesa da História. v.12, 2ª. série, Lisboa, 1962. 7. Ibidem , p.34. 8. Pombalina. Biblioteca Nacional de Lisboa (B. N. L.), cod. 443. Publicado por Martim Albuquerque, op. cit ., p.405-8. 9. Ibidem. 10. Afonso X, o Sábio, 2ª. partida, com glosas em castelhano de Alonso Diaz de Montalvo, Sevilha, s.n., 1491. 11. D. Pedro I. Chancelarias Régias. Lisboa: INIC, 1984. doc. 574, p.260-2. 12. Abordei esta questão à volta das pretensões nobiliárquicas sobre a posse das localidades realengas no meu Estado. O poder real e as autarquias locais no trânsito da Idade Média para a Idade Moderna. Revista da Universidade de Coimbra. Coimbra, v.30, p.369 ss., 1983. 13. MORENO, H. B. A batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e Significado Histórico. Lourenço Marques, 1973. p.349, 420 e 964. 14. BARROS, H. G. História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII a XV. Lisboa, 1945. v.II, p.377. 15. MARQUES, A. H. de O. Portugal na crise dos séculos XIV e XV. Lisboa, 1986. p.237-8. 16. Sobre esta questão veja-se o meu artigo Alcaidarias dos castelos durante a regência do infante D. Pedro. Revista de História, p.282 ss., 1982. 17. Livro de Leis e Posturas, Lisboa, 1971, p.187-8. 18. HESPANHA, A. M. História das Instituições. Épocas Medieval e Moderna. Coimbra, 1982. p.282 ss. 19. VIEGAS, V.1383 e os documentos joaninos. Lisboa, 1989. v.III. 20. MERÊA, P. de Genêse da Lei Mental. Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra, v. X, p.7-8, 1910. 21. MORENO, H. B. Tensões sociais em Portugal na Idade Média. Porto, 1975. p.159. 22. Monumenta Henricina. Coimbra, 1963. doc.24, v.V, p.54-65. 23. Elementos colhidos no meu livro sobre A Batalha de Alfarrobeira. 24. Cortes Portuguesas. Reinado de D. Afonso IV (1325-1357). Lisboa: INIC, 1982. p.125 ss. A mencionada Pragmática de 1340 aparece publicada neste livro à p.101 ss. 25. Ordenaçoens do Senhor Rey D. Affonso V. Coimbra, 1972. livro IV, título XXVI, p.116 e s. 26. A. N./T. T., Maço 2, de Cortes, n.14, fls. 14v-15. 27. Ibidem. 28. Ibidem. 29. Em relação à cavalaria veja-se o artigo de MARQUES A. H. de O. Cavalaria. In: Dicionário de História de Portugal. Lisboa: 1963. v.I, p.540-2. 56 O PRINCÍPIO DA ÉPOCA MODERNA 30. Ordenaçõens do Senhor Rey D. Affonso V, livro 1, título LXIII, p.360 ss. 31. Ibidem, p.363-4. 32. BARROS, H. da G. História da administração pública em Portugal nos séculos XII a XV. Lisboa: s. d. p.374 ss. 33. MARQUES, A. H. de O, op .cit., v.II, p.249. 57 capítu lo 4 OS A RGON A UTA S PORTUGUESES E O SEU VELO D E OURO (SÉCULOS XV-XVI) An tôn io Borges Coelh o* N AVEGA Çà O, COMÉRCIO E CON QUISTA No discu rso h istórico, aqu ilo qu e design am os e explicam os com o acon tecido escapa-se pelas m alh as da teia explicativa, escon de-se por trás de cada palavra, a da época, qu e n ão com porta exatam en te os sign ificados de h oje, e as de h oje, ain da qu e com o m esm o som , qu e som am n ovos con teú dos aos con teú dos de ou trora. Para n os aproxim arm os dos velh os con ceitos tem os qu e ilu m in ar e ven cer a resistên cia das palavras, vividas em tem pos diferen tes, e com palavras an tigas e n ovas lan çar de n ovo a teia qu e pren da as relações dos acon tecim en tos. Em su bstân cia, o passado é apreen dido com con ceitos qu e h oje recu peram os e n ovam en te fabricam os. Estes n ovos con ceitos perm item ligar logicam en te o passado ao presen te e a su a legitim idade provém da localização in evitável n o atu al do falan te ou escreven te. Só qu e este n ão pode retirar da m esa de jogo do discu rso as cartas legadas pelo passado com as su as figu ras e sen tido. Vem esta fala a propósito do m ovim en to social, protagon izado pelos eu ropeu s, in iciado n o sécu lo XV pelos portu gu eses, segu idos pelos ou tros ibéricos, e voltado para a exploração dos vários con tin en tes. Este m ovim en to tem recebido diferen tes design ações. Assim , en qu an to o rei D. Man u el de Portu gal, com o é sabido, se in titu lava “rei de Portu gal e dos Algarves daqu ém e dalém m ar em África, sen h or da Gu in é, da n avegação, com ércio e con qu ista de Etiópia, Arábia, Pérsia e Ín dia”, os vocábu los qu e n este sécu lo passaram a design ar esse prodigioso m ovim en to coletivo foram descobrim en tos, expan são, evan gelização, im pério, en con tro de civilizações, dialética do ou tro e do m esm o, civilizar, esclavagism o, colon ialism o, con stru ção de n ovas n ações e países, tem po da descoberta do n u e das vergon h as, passagem do particu lar ao u n iversal, qu e sei eu , ou , ten do em con ta o objeto, além -m ar, u ltram ar, n osso m ar, colôn ias ou , colocan don os n o n ível dos im pu lsos, espírito de cru zada, fom e do ou ro e das riqu ezas, estratégia plan etária an tim u çu lm an a e an titu rca, m orrer pela fé. 59 Antônio Borges Coelho A palavra in vasão, u sada corren tem en te a propósito da expan são dos povos asiáticos – in vasão dos bárbaros, dos árabes, dos m on góis e dos tu rcos ou en tão in vasões fran cesas–, n u n ca foi u sada n a prim eira expan são eu ropéia. E se n os sécu los XV e sobretu do XVI n ão faltaram in vasões n o sen tido de en tradas violen tas com ocu pação de território, n a verdade, o estabelecim en to dos portu gu eses n o Orien te n ão en volveu a ocu pação em m assa de territórios e das su as gen tes. A lista dos vocábu los n ão está fech ada. E n a su a escolh a, perfilam se os rostos da diferen ça, a espada e o pu n h al do com bate ideológico. Por exem plo, os evan gelizadores estrem ecem qu an do ou vem falar n a fom e do ou ro e das riqu ezas ou porven tu ra n a descoberta do n u e das vergon h as. Pelo seu lado, o colon izador e o colon izado en treolh am -se descon fiados por trás das palavras. O colon izador n ão se revê, em geral, n o colon ialism o e faz orelh as m ou cas ao esclavagism o e o ex-colon izado tem aversão ao term o descobrim en tos. Escon ju ram -se as con tradições sociais, m as en altece-se a dialética do ou tro e do m esm o. O term o civilizar é u m resto à m ercê do caixote do lixo da História m as qu e algu n s gostariam de ver recu perado. A expressão en con tro de cu ltu ras, en con tro real, perm ite aplacar as con sciên cias sen síveis, m as o en con tro en volveu sem pre con fron to e tam bém destru ição de cu ltu ras. Du ran te algu n s sécu los, os territórios extra-eu ropeu s dom in ados pelos portu gu eses foram design ados com o Con qu istas. João de Barros u sou freqü en tem en te a expressão Descobrim en tos e Con qu istas. Os títu los do rei D. Man u el, atrás evocados, in dicam a in ten ção e u m a prática política, com ercial e m ilitar em bora a realidade u ltrapasse o ditado das ban deiras. A in ten ção aparece de rosto descoberto m as os escreven tes ju stificam -n a desde logo pela m issão divin a de dilatar a fé, m esm o qu an do ela é recu sada de arm as n a m ão. An tes da segu n da viagem de Vasco da Gam a, h ou ve pareceres de m u ita dú vida sobre se seria proveitosa u m a con qu ista tão rem ota e de tan tos perigos. E aos qu e adu ziam o argu m en to ideológico de propagação da fé, respon diam os con traven tores: com o se podia esperar qu e os povos asiáticos aceitassem “a n ossa dou trin a, ain da qu e católica fosse, por ser com m ão arm ada e n ão por boca de apóstolos, m as de h om en s su jeitos m ais a seu s particu lares proveitos qu e à salvação daqu ele povo gen tio?”1 Na expan são portu gu esa h ou ve de tu do u m pou co: descobrim en tos, em absolu to, e n ão apen as para os eu ropeu s, de n ovas terras, n ovos m ares, n ovas estrelas, com o diria Pedro Nu n es, e viagen s de descobrim en to; evan gelização com m ão arm ada e tam bém com m artírio e n ovos m étodos lin gü ísticos; tran sfega e troca de riqu ezas, de idéias, de técn icas, de an im ais e de plan tas; gu erra e paz arm ada com violên cia extrem a de todas as partes; fom e de h on ra; coragem para além do qu e pode a força 60 OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SÉCULOS XV-XVI) h u m an a; altru ísm o, sacrifício; an tropofagia n o lim ite e recu sa dela; troca de idéias, de cerim ôn ias, de vocábu los; con fron to de cu ltu ras. En qu an to a Eu ropa m ergu lh ava em in term in áveis gu erras de poder sob ban deiras religiosas, o qu e fazia correr en tão os portu gu eses? A fom e do ou ro e das riqu ezas, o ch eiro da can ela, a fam a, o m edo com as su as correias de obediên cia, a ân sia de poder, a fé em Deu s, essen cial para escon ju rar os dem ôn ios e a m orte e para o perdão dos h orrorosos pecados, o espírito de aven tu ra, o desejo de ir m ais além , o apelo do descon h ecido. Tu do isso e m u ito m ais im pu lsion ou a corrida. Mas se qu iserm os tom ar o velo de oiro dos n ovos argon au tas terem os qu e dou rar a talh a, adoçar o açú car, ilu m in ar o dorso dos escravos ou a beleza das escravas, espirrar com a pim en ta e as especiarias, fazer cin tilar as pedras preciosas. As cren ças, a coragem e o m edo con stitu íam o ser, a própria arm adu ra dos su jeitos m as eviden tem en te cercavam e pen etravam as coisas, con den avam e absolviam as ações. Não é possível desatar os n ós, todos os fios estão ligados. Mas sem as estradas qu e o com ércio e o din h eiro abriam , sem as descobertas n a con stru ção n aval e n a arte de n avegar, sem a riqu eza acu m u lada para pagar os n avios, as m ercadorias, as arm as, os m an tim en tos, o soldo, qu e faria o desejo e a von tade? Fazia-se ao m ar m as n ão n avegava e a fé sossobrava n as prim eiras braçadas. Tom ei o ditado: Navegação, Com ércio e Con qu ista. É a ban deira m an u elin a. Hou ve n avegação, fan tástica, gu iada pelos in stru m en tos qu e m ediam o Sol e as estrelas. Hou ve com ércio, desigu al, com m on opólios e su cu len tas presas. Hou ve con qu istas, n u n ca con clu ídas, de cidades, de territórios. Por qu e n ão escolh er o term o Descobrim en tos? Para n ão tom ar a parte pelo todo. E a palavra Expan são? É operacion al, u m vocábu lo con tin en te, vaso, u ten sílio qu e pode tran sportar sem afetar sign ificativam en te os diferen tes con teú dos. CA RAVELA S E FA LCÕES A expan são portu gu esa dos sécu los XV a XVIII, a tal do com ércio e das con qu istas, com descoberta de cam in h os m arítim os, desce da terra para o m ar e olh a depois do m ar para a terra. Um olh ar espan tado e in ocen te: “n em estim am n en h u m a cou sa cobrir n em m ostrar as vergon h as” e têm “n isto tan ta in ocên cia com o têm em m ostrar o rosto”, escrevia Pero Vaz de Cam in h a. Um olh ar de m ilh afre: “Sen h or, os velu dos de Meca e águ as rosadas dos caixões, qu e aqu i te trazem , – dizia u m m agn ate de Ben gala – rou bam os portu gu eses pelo m ar, tom an do os peregrin os qu e vão para a san ta casa de Meca; e são ladrões m u i su btis, qu e en tram n as terras 61 Antônio Borges Coelho com m ercadorias a ven der e com prar, e dádivas de am izades, an dam espian do as terras e gen tes, e depois com gen te arm ada as vão tom ar, m atan do e qu eim an do, e fazen do tais m ales qu e ficam sen h ores das terras”.2 A expan são grega teve u m su porte m arítim o e de algu m m odo a rom an a. Marítim a é a expan são dos n orm an dos. Mas n a expan são eu ropéia, in iciada com os portu gu eses n o sécu lo XV, a qu e abre os m ares do u n iverso, os n avios são o veícu lo, a casa, a fortaleza, o tem plo, a oficin a, a ten da e o arm azém das m ercadorias e da pólvora, o tron co dos escravos, o porta-n avios, o caixão. Os portu gu eses n ão se deslocam com o h orda n em se organ izam com o legião. No desfraldar das velas, os seu s n avios lem bram aves de rapin a prestes a cair sobre a presa. Qu an do os azen egu es viram os prim eiros n avios portu gu eses, ju lgaram , n o dizer de Cadam osto, qu e eram en orm es pássaros de asas bran cas; ou tros diziam qu e eram fan tasm as qu e pela n oite n avegavam 100 m ilh as e m ais. Os olh os pin tados n a proa eram verdadeiros, viam e gu iavam os n avios n a n oite e n o dia do Ocean o. A expan são portu gu esa en volveu m ilh ares de n avios de com ércio e de gu erra. Saíram da Ribeira de Lisboa, da Ou tra Ban da, do Porto, do Algarve, de Coch im , de Goa, de Malaca, do Salvador. A su a con stitu ição e form as desigu ais ficaram assin aladas n a galeria dos n om es: barca, barin el, batel, bergan tim , caravela, caravelão, carraca, catu r, esqu ife, fu sta, galé, galeaça, galeão, galeota, ju n co, n au , patach o, taforeia, u rca, zavra… A caravela, n avio de vela latin a e pequ en o calado, con stitu iu a em barcação por excelên cia da exploração e descoberta do Atlân tico. E tam bém o n avio rápido próprio para levar e trazer in form ações. En qu an to u m a n au da carreira da Ín dia dem orava cerca de 6 m eses n a viagem de ida, em 1516 a caravela de Diogo de Un h os gastou m en os de 6 m eses n a ida e n o regresso. A caravela serviu tam bém com o n avio de gu erra. Com boiava as pesadas n au s da Ín dia e da Am érica n a fase fin al da viagem ru m o à costa portu gu esa. Um a caravela da Ín dia, n a prim eira m etade do sécu lo XVI, podia dispor de 21 tripu lan tes, assim distribu ídos segu n do a ordem dos ven cim en tos: o capitão, o bom bardeiro, o m estre e piloto, o carpin teiro, o calafate, o escrivão, o barbeiro, o tan oeiro e os dois h om en s do capitão, os qu atro m arin h eiros e os sete gru m etes. O bom bardeiro u ltrapassava o ven cim en to do piloto m arcan do bem o papel essen cial da artilh aria. 3 A n au , n avio de carga arm ado, passou dos 120 ton éis da n au S. Gabriel de Vasco da Gam a para 450 e até m il ton éis do fin al do sécu lo XVI. No seu bojo carregaram os portu gu eses para Ociden te m u itas riqu ezas da Ín dia. O valor da carga podia atin gir os 3 m ilh ões de cru zados ou ro. A n au Flor de la Mar em qu e D. Fran cisco de Alm eida com bateu n a batalh a de Diu h averia de m orrer sepu ltan do con sigo n as águ as de Sam atra as gu losas riqu ezas colh idas por Afon so de Albu qu erqu e n a tom ada de Malaca. 62 OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SÉCULOS XV-XVI) O galeão era u m vaso de gu erra tam bém u sado em tran sporte com o o galeão gran de S. João qu e n au fragou próxim o do Cabo da Boa Esperan ça. Mais com prido, de m en or calado e portan to m ais veloz qu e a n au , dispu n h a de u m tem ível poder de fogo. Por exem plo, o galeão S. Din is, de trezen tos ton éis, con stru ído n a Ín dia pelo govern ador Diogo Lopes Sequ eira (1518-1521), com portava 71 peças de artilh aria, a saber 21 cam elos debaixo da pon te, 12 por ban da, 2 por popa, 4 n a tolda, 2 sobre o perpau e 4 n a pon te e ain da 9 falções e 20 berços, en qu an to em 1525 Coch im dispu n h a de 286 peças de artilh aria, Goa de 188, Malaca de 1666.4 A expan são m arítim a dos portu gu eses e eu ropeu s prom oveu em todos os m ares com bates e ferozes gu erras m arítim as. Os seu s n avios levaram aos pon tos m ais distan tes do globo o espan toso ribom bar da artilh aria. Esta tom ava form as várias, adaptadas aos diferen tes fin s. Os pedreiros lan çavam balas de pedra para bater obstácu los a cu rtas distân cias; em batalh as n avais ou de sítio, os can h ões atiravam balas de ferro fu n dido de in ten so poder perfu ran te; e as colu brin as, de tu bo com prido, batiam objetivos a m aiores distân cias. Peças de arte em bron ze, sem eadoras da m orte, receberam n om es estran h os com o se os n om es au m en tassem a carga da pólvora e do medo: selvagem, camelo, camelete (pedreiros); águ ia, serpe, espera, m eia-espera (can h ões); aspre, sagre, m oiran a, falcão, falcon ete, esm eril; e berços ou falcões m ais pequ en os.5 O S N AVEGA N TES O grosso da popu lação das n au s da Carreira da Ín dia era con stitu ída por m arean tes e m ilitares e tam bém por pequ en os n ú cleos de m ercadores profission ais e de religiosos. Os m ilitares podiam virar m arin h eiros e os m arin h eiros soldados bem com o os m ercadores e os clérigos. Nos n avios de m en or ton elagem qu e cru zavam o Atlân tico eram pou cos os m ilitares, m ais os passageiros. Não faltaram m en in os n a apren dizagem da vida com o An tôn io Correia, filh o do feitor Aires Correia, assassin ado em Calecu t. São raras as m u lh eres. Na terceira viagem de Vasco da Gam a em barcaram algu m as às escon didas. Lu ís de Cam ões, n u m a das su as cartas, con vida as m u lh eres de vida fácil a ten tarem n a Ín dia a su a sorte. E h avia sem pre as órfãs delrei exportadas para os vários pon tos do im pério. Nas viagen s de regresso n ão faltavam as escravas. Sen h oras, pou cas m as algu m as. D. Leon or, m u lh er de Man u el de Sou sa Sepú lveda, n au fraga n o Cabo da Boa Esperan ça. E qu an do os n egros lh e tiraram a rou pa por força, cobriu -se com os lon gos cabelos e a areia da cova qu e abriu para en terrar viva a n u dez. 63 Antônio Borges Coelho O capitão do n avio assu m ia o com an do su prem o da com u n idade n avegan te e do corpo m ilitar. Mas o respon sável pela n avegação era o piloto, assessorado pelo m estre n a direção da equ ipagem . O piloto era n ão só o respon sável m áxim o pela segu ran ça do n avio, o técn ico qu e m edia, n u m a m an obra com plexa, o seu avan ço diário, com o o in vestigador em pírico con tin u am en te registan do os aciden tes e acon tecim en tos qu e fu giam à n orm a. As su as observações podiam ser discu tidas em terra por cien tistas com o Pedro Nu n es. Ou tras vezes eram os cien tistas qu e se faziam ao m ar com o José Vizin h o, Du arte Pach eco ou o fu tu ro vice-rei D. João de Castro. O corpo militar atuava no mar e na terra mas a sua base e retaguarda estava no mar. As espadas e lanças dos capitães e escudeiros continuavam a rasgar as carnes e a aparar os golpes mas, na milícia marítima e de desembarque, incorporavam-se em ritmo crescente corpos especializados no manuseio das armas de fogo. Os besteiros, numerosos nos primeiros anos, são ultrapassados pelos espingardeiros e o pequeno corpo de bombardeiros. Os ferreiros, os calafates, os tanoeiros constituíam tropas auxiliares que a todo o momento podiam integrar a primeira linha de combate. Na arm ada qu e em 1525 patru lh ou a costa do Malabar teriam en trado 2.181 h om en s assim distribu ídos: h om en s do m ar 451; h om en s de arm as 1.254; trom betas 18; ferreiros portu gu eses 30; carpin teiros portu gu eses da Ribeira 23; calafates portu gu eses 36; tan oeiros 15; espin gardeiros de n ú m ero 204; bom bardeiros 150.6 Pou co depois, em 1531, n a ilh a de Bom baim , o govern ador Nu n o da Cu n h a fez alarde da arm ada qu e se dirigia a Baçaim e a Diu , a m aior qu e se ju n tou n a Ín dia. Con taram -se 400 velas, en tre elas 5 ju n cos, 8 n au s do rein o, 14 galeões, 2 galeaças, 12 galés reais, 16 galeotas e m ais 228 em barcações a vela e rem o bergan tin s, fu stas e catu res, sem con tar as n au s, zam bu cos e cotias de tabern eiros da gen te da terra. Os com baten tes som avam m ais de 3.560 h om en s de arm as portu gu eses a qu e se ju n tavam 2 m il com baten tes m alabares e can arin s de Goa e 8 m il escravos de peleja. Os espin gardeiros su biam a m ais de 3 m il. Aos com baten tes ju n tavam -se os h om en s do m ar, avaliados em m ais de 1.450 portu gu eses com pilotos e m estres e 4 m il m arin h eiros da terra rem eiros, fora os m arean tes dos ju n cos qu e passavam de 800. Som an do as m u lh eres casadas e solteiras e a gen te qu e ia com su as m ercadorias e m an tim en tos a ven der passavam de 30 m il alm as.7 Ao lado dos homens de espada e lança, protegidos por armadura de malha e aço, com as armas transportadas por escravos guerreiros, perfilavam-se os homens da artilharia, espingardeiros e bombardeiros. Os espingardeiros ganhavam importância crescente. Por outro lado, milhares de combatentes malabares morriam lutando sob a bandeira do rei de Portugal. E também os escravos. 64 OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SÉCULOS XV-XVI) Na batalh a de Diu , D. Fran cisco de Alm eida esforçou os “valen tes escravos qu e aju dam seu s sen h ores pelejan do”. E prom eteu -lh es qu e se m orressem n o com bate seriam pagos a seu s don os a 50 cru zados; se ficassem vivos e obtivessem n esse an o a alforria, obteriam as liberdades de escu deiros; se ficassem aleijados e n ão pu dessem servir, seriam pagos com o os m ortos; se ain da pu dessem servir, valeriam 20 cru zados para os seu s don os. 8 Tam bém n a arm ada, atrás referida, para Baçaim e Diu , o govern ador Nu n o da Cu n h a orden ou aos capitães qu e, qu an do desem barcassem para o com bate, qu em tivesse escravo h om em qu e o levasse con sigo, para desem barcá-lo e aju dá-lo a levar su as arm as e seu alm oço, e para qu e, se o ferissem , o aju dassem a levá-lo e a cu rá-lo.9 A m orte era u m a visita diária. Man u el de Lim a escrevia em 1533 ao rei qu e já lh e tin h am m orrido qu in ze criados de seu pai. Gen te com e sem n om e ia ao en con tro da fortu n a e com a salvação e perdição das alm as e em todo o lado en con trava a m orte: o bispo Pero Sardin h a m orto e devorado pelos ín dios ju n to do rio Cu ru ripe; D. Fran cisco de Alm eida n o Cabo da Boa Esperan ça; o m arech al Fern an do Cou tin h o n o palácio do Sam orim ; Jerôn im o de Lim a n a segu n da con qu ista de Goa. Jerôn im o m orreu esvaído em san gu e en costado a u m m u ro da cidade. E in citava o irm ão João de Lim a qu e viera em seu socorro: “Adian te, sen h or irm ão, n ão é tem po de deter qu e eu em m eu lu gar fico”.10 B A SES E FORTA LEZA S Os n avios dos argon au tas portu gu eses n ecessitavam de bases, an seavam por terra. Para tratar das feridas, para satisfazer a fom e física e sexu al, para ren ovar os n avios e os abastecim en tos, para firm ar os pés e reclin ar a cabeça sem o balan ço das on das e a am eaça de corte pelas espadas in im igas, para ligar o pon to de ch egada ao pon to de partida. A expan são portu gu esa avan çava m arcan do n o espaço as bases e as fortalezas: Ceu ta, Alcácer, Tân ger, Arzila, Madeira, Açores, Can árias, Argu im , Cabo Verde n o Mediterrân eo Atlân tico; Axém , S. Jorge da Min a, S. Tom é, Lu an da, Fern an do de Noron h a, Pern am bu co, Salvador n o Atlân tico Cen tral e Su l; Moçam biqu e, Qu íloa, Socotorá, Coch im , Goa, Can an or, Ch aú l, Orm u z, Baçaim , Diu , Ceilão, Malaca, Tern ate, Macau e tan tas ou tras n os m ares orien tais. Se ilu m in arm os o espaço pela coorden ada tem po, n u m prim eiro m om en to, n o design ado período h en riqu in o, assistim os à con qu ista do qu e Pierre Ch au n u ch am ou Mediterrân eo Atlân tico balizado pelos seu s arqu ipélagos. Nu m segu n do período, qu e se dilata até o fin al do sécu lo 65 Antônio Borges Coelho XV, as caravelas e ou tros n avios prossegu em a con qu ista do Atlân tico Cen tral e Su l, con qu ista do m ar qu e a terra era só lu gar do trato e do salto dos escravos, atin gem a face am erican a do Atlân tico e su lcam as prim eiras águ as do Ín dico. Na prim eira m etade do sécu lo XVI, lan çam os prim eiros fu n dam en tos do Brasil, su lcam trovejan do as águ as do Ín dico, alargam -se aos m ares da Ásia e da Ocean ia. Algu m as destas bases, as das ilh as atlân ticas, a im en sidão do Brasil torn am -se terras de colon ização, de liberdade e refú gio para os eu ropeu s qu e as dem an davam e pu rgatório de m u latos e in fern o de n egros, u san do as palavras de Fran cisco Man u el de Melo. Qu an to ao im pério asiático, é u m colar de cidades da beira-m ar, com terra firm e só em Baçaim , Goa e du ran te algu m tem po boa parte de Ceilão. Mu itas das fortalezas estão ain da h oje m arcadas n o terren o. Em Ceu ta, Tân ger, Arzila, n a espan tosa Mazagão. Safim era rodeada por 75 torres pelo sertão e m ais oito pelo m ar. Em S. Jorge da Min a, levaram -se as pedras aparelh adas de Lisboa. Foi só m on tar a fortaleza ao abrigo das espin gardas. Na fortaleza de Malaca, Fran cisco de Albu qu erqu e u sou pedras de can taria retiradas da m esqu ita gran de e das m esqu itas pequ en as e as pedras tu m u lares dos m u çu lm an os. Os alicerces da torre de m en agem tin h am vin te pés de largo e os alicerces da fortaleza, assen te n a roch a viva, doze pés. Nos can tos, ergu eram -se torres qu adradas qu e corriam n o an dar do m u ro. A torre de m en agem m edia, até o prim eiro sobrado, vin te pés, até o segu n do, qu in ze, até o terceiro, doze e até o ú ltim o sobrado, oito pés. Assen te n as pedras das cren ças m u çu lm an as, a torre de m en agem ficava sobre a praia e podia varejar com a artilh aria o ou teiro qu e lh e ficava defron te.11 FUN D A MEN TOS E MOD ELOS Desde cedo, pescadores e m arin h eiros dos n avios m ercan tes portu gu eses dom in aram a su a plataform a m arítim a. E a prim eira in iciativa n o Atlân tico em direção ao su l su rgiu em 1340 com a expedição lu so-castelh an a-italian a às Can árias de qu e o escritor Boccaccio n os deixou u m im pressivo testem u n h o. Mas o arran qu e da expan são portu gu esa ocorre com a con qu ista de Ceu ta em 1415. Aparen tem en te o im pu lso é ain da o da Recon qu ista m as as diferen ças estão à vista. A con qu ista de Ceu ta en volve a m obilização de u m a frota eu ropéia e, para lá do exército dos n obres, o en tu siasm o de u m exército dos con celh os, em particu lar do de Lisboa e do Porto e a participação, à su a cu sta, de algu n s m ercadores italian os e in gleses. 66 OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SÉCULOS XV-XVI) Depois, a m an u ten ção da praça e a n ecessidade de prover a su a defesa prom overam desde logo a criação de u m a direção político-m ilitar em solo n acion al, voltada para o m ar e qu e a todo o m om en to m obilizava os recu rsos m arítim os. Com o passar do tem po, esta direção con solida-se com o a cabeça organ izadora e cen tralizadora de fru tu osas operações corsárias n o Estreito de Gibraltar e tam bém da redescoberta das ilh as atlân ticas e do seu povoam en to, de n ovas con qu istas em Marrocos e de viagen s de corso e descobrim en to n a costa african a para lá do Cabo Bojador. En tretan to, ao lon go do sécu lo XV, foram -se defin in do os m odelos qu e a expan são portu gu esa iria desen volver n os sécu los XVI e XVII. O prim eiro m odelo en con trou n a con qu ista e con servação de Ceu ta e das ou tras praças m arroqu in as as lin h as defin idoras. À prim eira vista parece in serir-se, com o dissem os, n os velh os passos da Recon qu ista: con qu ista de terras, de h om en s e de riqu ezas. Mas a n ovidade está n o papel crescen te do território m arítim o. O socorro e a proteção das praças con qu istadas estão n o m ar. E o m ar é defen dido pelas fortalezas. A ten tativa de con qu ista das Can árias e as prim eiras viagen s de assalto às costas para lá do Bojador são ain da operações de gu erra, de con qu ista e de saqu e. O segu n do cam in h o rasga-se com a colon ização da Madeira e dos Açores. In icialm en te esta colon ização assen tou em terra livre com o só en cargo da dízim a a Deu s e organ izada n a pequ en a exploração cam pon esa ou n a m édia com trabalh o assalariado dos braceiros e a in trodu ção do trabalh o escravo. O terceiro cam in h o defin iu -se com o estabelecim en to da feitoria e castelo de Argu im e da feitoria e castelo de S. Jorge da Min a. Protegidas por fortalezas, ergu idas em ilh as ou cabos facilm en te defen sáveis por qu em dom in ava o m ar, as feitorias assu m iam o exclu sivo do trato. Mais tarde n a Ín dia este m odelo dará lu gar a u m a rede de alfân degas, protegidas por cidades e fortalezas, qu e san gram u m a parte sign ificativa do com ércio m arítim o asiático. R ESERVA D O MUN D O A “D ESCOBRIR” Do pon to de vista diplom ático e político, o prin cipal acon tecim en to do sécu lo XV, n o qu e se refere à expan são portu gu esa, é o estabelecim en to da prim eira reserva do m u n do descoberto e por descobrir, reserva afeta em exclu sivo aos portu gu eses pela bu la Romanus Pontifex, de 8 de jan eiro de 1455, e alargada aos ibéricos pelo Tratado de Tordesilh as de 1494. Na citada bu la, o papa Nicolau V fu n dam en ta a atribu ição aos portu gu eses da reserva da n avegação para lá dos Cabos Não e Bojador, protegen do-a com os raios eclesiásticos, alegan do os gran des trabalh os, pre- 67 Antônio Borges Coelho ju ízos e despesas do In fan te D. Hen riqu e e do rei de Portu gal. Havia 25 an os qu e en viavam n avios ligeiros, a qu e ch am am caravelas, com gen tes desses rein os e provín cias m arítim as a dem an dar as ban das m eridion ais e o polo an tártico. Mu itos gu in éu s e ou tros n egros, tom ados por força e algu n s tam bém por troca de m ercadorias n ão–proibidas, foram levados para os ditos rein os on de em gran de n ú m ero foram con vertidos à fé católica. A reserva de n avegar, con qu istar, com erciar é in stitu ída em regim e de m on opólio h en riqu in o-régio. Tal exclu sivo n ão sign ificava qu e só os n avios do in fan te ou do rei pu dessem n avegar e com erciar n essas paragen s. No essen cial, o m on opólio garan tia a cobran ça do qu in to das m ercadorias pela Ordem de Cristo, de qu e o in fan te era o govern ador, e reservava a n avegação e o com ércio para essa área do globo para aqu eles a qu em , m edian te con trapartidas m ateriais, fosse dada licen ça, em prim eiro lu gar aos escu deiros e m ercadores ligados à casa sen h orial h en riqu in a. No fin al da vida, em 26 de dezem bro de 1457, o In fan te D. Hen riqu e reú n e em Tom ar o cabido da Ordem de Cristo e faz o balan ço, escrito n a prim eira pessoa, dos prim órdios da expan são m arítim a: Os trabalhos dos homens principalmente devem ser por serviço de Nosso Senhor Deus e assim de seu Senhor porque hajam de receber galardão de glória (e) em este mundo honra e estado. Quem estabelece o que é serviço do Senhor são os senhores deste mundo e são eles que neste mundo distribuem glória, honra e estado. E prossegu e: E sendo certo como, desde a memória dos homens, se não havia alguma notícia na Cristandade dos mares, terras e gentes que eram além do Cabo de Não contra o meio dia, me fundei de inquirir e saber parte, de muitos anos passados para cá, do que era desde o dito Cabo Não em diante, não sem grandes meus trabalhos e infindas despesas, especialmente dos direitos e rendas cuja governança assim tenho, mandando per os ditos anos muitos navios e caravelas com meus criados e servidores, os quais, por graça de Deus, passando o dito Cabo de Não avante e fazendo grandes guerras, alguns recebendo morte e outros postos em grandes perigos, prouve a Nosso Senhor me dar certa informação e sabedoria daquelas partes desde o dito Cabo de Não até passante toda a terra de Berberia e Núbio e assim mesmo per terra de Guinea bem trezentas léguas, de onde até agora, assim no começo por guerra como depois por maneira de trauto de mercadoria e resgates, é vindo à Cristandade mui gram número de infiéis cativos, do qual, dando grandes louvores a Nosso Senhor, a mor parte são tornados à sua santa fé. E está bem aparelhado para muitos mais virem e serem feitos cristãos, além das mercadorias, ouro 68 OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SÉCULOS XV-XVI) e outras muitas coisas que de lá vêm e se cada dia descobrem muito proveitosas a estes reinos e a toda a Cristandade.12 O In fan te D. Hen riqu e van gloria-se de ser o prim eiro com in fin dos trabalh os e despesas a in dagar dos m ares, terras e gen tes qu e viviam além do Cabo Não. Mas o seu pon to de referên cia é o da Cristan dade ociden tal. A Cristan dade n ão tin h a n otícia das n ovas terras e agora tirava proveito das ricas m ercadorias. Com m orte e perigo dos seu s servidores, as caravelas portu gu esas, por gu erra e depois tam bém por trato de m ercadorias, avan çara bem 300 légu as por terras de Gu in é, con firm an do o avan ço dos n avios portu gu eses até a Serra Leoa. O prin cipal ren dim en to da gu erra e do trato provin h a dos escravos, equ iparados ao ou ro e ou tras m ercadorias proveitosas. Os “in fiéis” ficavam com os corpos cativos m as os seu s don os tratavam -lh es da alm a. O S REIS EMPRESÁ RIOS Os 40 an os dos govern os dos reis D. João II e D. Man u el (14811521) cobrem m om en tos extrem am en te fecu n dos n a h istória da Hu m an idade. É o tem po das gran des viagen s e descobertas m arítim as: a de Bartolom eu Dias qu e, n a tábu a das n au s, sem com bate com os h om en s m as tão só com os elem en tos, verificou a ligação do Atlân tico e do Ín dico; a viagem de Cristóvão Colom bo qu e ligou perm an en tem en te a Eu ropa, ávida de ou ro e prata, a u m n ovo con tin en te, a Am érica; a de Vasco da Gam a qu e du radou ram en te u n iu pelos ocean os e pelas n au s da pim en ta o Ociden te ao Orien te; a viagem de Pedro Álvares Cabral qu e ligou Lisboa e a Eu ropa ao Atlân tico Su l; a viagem de Fern ão de Magalh ães qu e, pela prim eira vez, circu n avegou a Terra. As descobertas m arítim as, o devassar das estradas líqu idas dos m ares e dos rios torn avam a Terra fin ita, destapavam -lh e o corpo todo, revelavam aos eu ropeu s n ovos povos, n ovos clim as, n ovos cu ltos, n ovas técn icas, n ovas plan tas, n ovos an im ais, n ovas estrelas e m u ito ou ro, prata, pedras preciosas, pim en ta e can ela, têxteis, porcelan as da Ch in a. Em 1472, os m on opólios estabelecidos n a costa ociden tal african a eram os do resgate do castelo de Argu im , o das pescarias do Cabo Bran co, o da costa african a fron teira à ilh a de San tiago, o do resgate do ou ro e dos escravos em S. Jorge da Min a e ain da o arren dam en to do com ércio da m alagu eta. As Casas qu e cen tralizavam esse com ércio, a de Argu im e da Min a, in icialm en te sediadas em Lagos, são tran sferidas por D. João II para Lisboa qu e se torn a a din am izadora prin cipal das n avegações, com ércio e con qu istas. É o tem po do prim eiro ciclo do ou ro e dos escravos, 69 Antônio Borges Coelho n a expressão do h istoriador Lú cio de Azevedo. A caça ao escravo fará desaparecer com o a popu lação das Ilh as Can árias. Os ch oros e gritos dos escravos n egros e m ou ros, separados das m u lh eres e dos filh os n o partir dos lotes, eram abafados pela fé qu e se ju stificava com a salvação das alm as. Mas com a abertu ra da Rota do Cabo am plia-se extraordin ariam en te a tran sfega de riqu ezas e m ercadorias m edian te o com ércio desigu al e a oportu n idade das presas. D. João II fora o rei da m oeda dos “ju stos” de ou ro, m as D. Man u el é o rei da pim en ta e dos “portu gu eses” de ou ro en qu an to D. João III, n o dizer do poeta Lu ís de Cam ões, “tu do pôde e tu do teve”. Com as n avegações, crescem as receitas do Estado e as dos particu lares e desen volvem -se as forças produ tivas. Os cereais torn am -se u m dos m aiores n egócios do sécu lo. E radica-se u m a agricu ltu ra especializada da vin h a, do azeite, voltada para m ercados crescen tes; su rgem ou tros produ tos agrícolas, algu n s deles proven ien tes das n ovas explorações assen tes n o trabalh o escravo. É o caso do açú car. In ten sifica-se o m ovim en to plan etário das plan tas e dos an im ais. O ou ro da costa ociden tal african a ch ega a Lisboa pelas caravelas qu e ligam esta cidade ao castelo de S. Jorge da Min a. O açú car da Madeira e de S. Tom é circu la n os m ercados eu ropeu s. Riqu ezas con sideráveis, proven ien tes, du ran te a gu erra com ercial m arítim a, do assalto a cidades com o Qu íloa, Mom baça, Goa, Malaca, e a con tin u idade do com ércio da pim en ta e das drogas en ton tecem os dirigen tes portu gu eses. Segu n do João de Barros, n a Rota do Cabo, os lu cros com erciais atin giam cin co, vin te, cin qü en ta vezes o valor do capital in vestido. Uma nau da Índia custava em 1506 com a carga cerca de 8 contos de réis. Quando chegava ao Malabar, esses 8 contos passavam milagrosamente a 20. Mas esta mesma nau, quando regressava a Lisboa, tinha a sua carga avaliada em 100 contos de réis. Em termos nominais, uma nau da Índia valia m ais n o regresso qu e as receitas do Estado n o tem po de D. Afonso V. Também a alfândega de Lisboa que, no início do século XVI, rendia à volta de 9 contos, nos anos 1680, o seu rendimento subia para 115. A expan são portu gu esa tem fom e de cobre, u sado n a artilh aria, n as m oedas e n os sin os das n ovas e velh as igrejas; de ferro para as ferram en tas e as arm as; de estopa, de breu , de pregadu ra, de corda. Desen volvem se n ovas tecn ologias e ferram en tas especializadas. E se u m a retagu arda eu ropéia forn ece trigo, produ tos in du striais, capitais, registam -se avan ços sign ificativos n a produ ção in tern a portu gu esa, particu larm en te em setores de pon ta. A in dú stria têxtil desen volve-se n a Beira in terior, n o Alto Alen tejo e n a periferia de Lisboa em bora fiqu e m u ito aqu ém do m elh or da in dú stria têxtil eu ropéia e asiática. Mas o prin cipal avan ço registra-se n a con stru ção n aval, n a produ ção in du strial do biscoito e n o fabrico das arm as. Portu gal con stru ía n avios e fabricava arm as em solo n acion al e 70 OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SÉCULOS XV-XVI) n os prin cipais pon tos do globo on de se estabelecia. São con h ecidas as con seqü ên cias políticas e m ilitares, provocadas pelos portu gu eses, ao in trodu zirem n o Japão as espin gardas e ou tras arm as de fogo. A m u ltiplicação da produ ção in tern a n u m a prim eira fase da expan são pode sen tir-se n a leitu ra dos forais m an u elin os. Mas se tivéssem os dú vidas sobre o desen volvim en to das forças produ tivas, pelo m en os em algu n s setores de pon ta, bastaria lem brar as form idáveis esqu adras, con stru ídas em Portu gal, qu e dem an daram os m ares depois da abertu ra da Rota do Cabo. Só n os prim eiros 5 an os decorridos sobre a prim eira viagem de Vasco da Gam a, ru m aram a Orien te m ais de sessen ta n avios poderosam en te equ ipados e artilh ados. Nos prim eiros an os do sécu lo XVI, os portu gu eses ven ceram n o m ar a gu erra com ercial m arítim a con tra os m ou ros, h á sécu los in stalados n o terren o, e in stau raram n o Ín dico u m a paz arm ada, periodicam en te violada. Essa gu erra n ão desalojou os m u çu lm an os n em tam pou co destron ou os reis orien tais, com a exceção m aior do rei de Malaca. Abriu foi o m ar aos seu s n avios, aos seu s n egócios e ao seu poder. Qu e o Estado da Ín dia com a su a capital política e cu ltu ral em Goa e a capital da pim en ta em Coch im assen tava essen cialm en te n u m a rede de alfân degas qu e se alim en tavam do com ércio do Ín dico e do com ércio qu e dem an dava o estreito de Malaca. Ao lon go de 20.000 km de costa, de Lisboa ao Extrem o Orien te, passan do pela Am érica do Su l, esten diam -se as cidades, as feitorias, as fortalezas. É u m Im pério qu e n ão avan ça pela terra aden tro, a n ão ser n a breve ten tativa de con qu ista de Ceilão e n a im en sa colon ização do con tin en te brasileiro. Com o cabeça deste im pério m arítim o, Lisboa tran sform ava-se n u m a das gran des m etrópoles do plan eta, son ora e m u lticolor, reu n in do gen tes de todos os con tin en tes e atrain do, pelas excelen tes oportu n idades de m u ltiplicar a riqu eza, algu n s dos prin cipais m ercadores eu ropeu s. O seu poder assen tava n a rede de cidades atlân ticas, am erican as, african as e asiáticas, a qu e se ligava pelo lon go m ar, n as forças m ilitares m arítim as de in terven ção, n a artilh aria e n as n au s. Para su sten tar todo este esforço m ilitar ao serviço da n avegação, da con qu ista e do com ércio, Lisboa m obilizava os h om en s e os produ tos do país in terior e in tegrava n o seu m u n do largos m ilh ares de h om en s de África, da Am érica e sobretu do da Ásia. Não faltaram capitais eu ropeu s, italian os e alem ães com o n ão faltaram capitais portu gu eses, em boa parte cristãos-n ovos, e capitais dos m oradores de Goa e de Coch im . Tam bém algu n s fidalgos in vestiram . Desde as prim eiras viagen s. Afon so de Albu qu erqu e e seu prim o Fran cisco de Albu qu erqu e arm aram cada u m a su a n au n a qu in ta viagem para a Ín dia. Mas o rei era o m aior em presário, o m aior em pregador, o m aior in vestidor e o distribu idor das riqu ezas do im pério. Na Rota do Cabo, é o Estado qu e arrisca e su porta os cu stos. Se se perdem n avios e a carga da 71 Antônio Borges Coelho pim en ta, a perda prin cipal é do rei pois os m ercadores eu ropeu s e portu gu eses têm os seu s lotes assegu rados n a Casa da Ín dia. Se h ou ver pou ca pim en ta, os preços sobem e com a su bida o gan h o; se h ou ver m u ita, os preços descem m as m an têm u m a m argem de lu cro. E é o Estado qu e su porta o gasto com as fortalezas, as gu erras, os fu n cion ários e os soldados. Por ou tro lado, con stitu ía u m forn ecedor e u m clien te previlegiado dos m ercadores e ban qu eiros. No Brasil, os particu lares desem pen h aram u m papel decisivo. Du arte Coelh o in vestiu em Pern am bu co capitais adqu iridos n a zon a de Malaca e n os m ares da Ch in a. Fern an do de Noron h a e ou tros cristãosn ovos m u ltiplicaram o seu capital com o com ércio em exclu sivo do pau brasil e a exportação em gran de escala de escravos n egros para a Am érica Espan h ola e o Brasil. João de Barros e o tesou reiro-m or Fern ão Álvares de An drade organ izaram , arrastados em boa m edida pela febre do ou ro am erican o, a m aior esqu adra privada algu m a vez levan tada em Portu gal e qu e sossobrou n as águ as do Maran h ão. Mas o Estado portu gu ês, ain da m u ito preso ao serviço e a ban deiras ideológicas, n ão está preparado e respon de m al às n ovas tarefas. O rei é m ercador m as n ão tem as m an h as do m ercador. Escolh e os altos fu n cion ários da fazen da pela lim peza de san gu e, pelas letras can ôn icas e teológicas e n ão favorece os m ercadores profission ais ligados ao com ércio in tern acion al. A Casa da Ín dia era u m a en orm e em presa estatal de im portação e exportação m as, segu n do o m ercador ban qu eiro Du arte Gom es Solis, n ão tin h a sequ er u m livro de caixa. O rei pagava os serviços em salários m as tam bém com qu in taladas, a atribu ição de capitan ias e de m ercês à boca das alfân degas. O n ú m ero das capitan ias era lim itado e em 1533, por exem plo, algu n s capitães agradecem desden h osam en te ao rei a prom essa de ocu parem capitan ias dali a 10 ou 15 an os. E capitães e fu n cion ários rou bavam os povos e o rei e rou bavam com pran do os soldos dos soldados. An tôn io da Silveira, qu e en riqu ecera n a capitan ia de Orm u z, pedia ao rei m ais u m an o porqu e precisava de se desen dividar.13 A Ín dia era u m a vin h a qu e se vin dim ava de 3 em 3 an os, escrevia ou tro correspon den te do rei em 1533. Na verdade, o capitão de Orm u z, por exem plo, recebia de orden ado 600.000 réis an u ais. Mas, ao cabo de 3 an os, se fosse de “sã con sciên cia”, poderia retirar forros 20.000 000 ou 24.000.000 de réis, m ais de dez vezes o respectivo orden ado. E se qu isesse “alargar a con sciên cia”, tin h a m u itas e gran des ocasiões para retirar m u ito m aior qu an tidade de din h eiro.14 Os h om en s am avam o din h eiro qu ase sobre todas as coisas m as o Estado m ercador m an tin h a de qu aren ten a os m ercadores profission ais, diariam en te am eaçados n a vida e n a fazen da. Por ou tro lado, as ban dei- 72 OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SÉCULOS XV-XVI) ras ibéricas, qu e on du lavam por u m a m on arqu ia u n iversal católica, con su m iam boa parte da riqu eza. E vejam só. No sécu lo XVI veio m ais prata e ou ro das Am éricas do qu e a qu e tiveram todos os reis de Espan h a desde o tem po do rei Pelágio. Apesar disso, Carlos V qu ebrou em 1554, Filipe II em 1560, 1575, 1596 até qu e se acabou o crédito e n ão h á m em ória de u m cerro tão rico em prata com o o de Potosi. Em su m a, o crédito e as forças da con tratação sobrepu n h am -se ao poder das arm as.15 A MEN TE MOVE-SE A expan são eu ropéia repercu tiu -se profu n dam en te n as m en talidades e n a ideologia. Mu davam -se os tem pos e as von tades, atropelavam -se os códigos da m oral, m u davam -se as idéias, m u dava-se a própria m u dan ça. Os livros im pressos con stitu em u m a boa am ostragem da “propagan da” e do u n iverso m en tal das elites. No sécu lo XVI pu blicaram -se em Portu gal cerca de 1.904 títu los. Os livros de dou trin a e relativos à organ ização da Igreja som avam 651. Ju n tan do-lh es os livros de m oral e os qu e serviam de m aterial para as au las, m ajoritariam en te de Direito Can ôn ico, o n ú m ero su bia a 1.099. As pu blicações relacion adas com os serviços do Estado e as de dou trin a civil ron davam os 278. A literatu ra som ava 139 títu los, as biografias, h agiografias e orações fú n ebres 98, os livros de filosofia-teologia ficavam pelos 38, os de astron om ia, m atem ática com o repositório dos tem pos 31, os relatórios de viagen s 23, os livros de qu estões m édicas 18 e os relativos às artes e técn icas 14.16 O peso da Igreja n o m u n do do livro é esm agador e con trasta com a escassez das obras n o terren o cien tífico e técn ico. Na aridez dou trin ária sobressaem n a literatu ra as obras m aiores de Cam ões e Gil Vicen te e u m tratado cien tífico de en orm e relevân cia teórica, os Colóquios dos Simples e das Drogas de Garcia da Orta, pu blicados pela im pren sa de Goa. A febre da riqu eza con som ia largos estratos da sociedade. Todos os dias arriscavam a vida n ão só pela sobrevivên cia m as pela bu sca de riqu ezas; todos os dias se exercitavam os diferen tes m odos da arte de fu rtar. O din h eiro m edrava sobre o serviço, com o escrevia ao rei D. João III, em 1533, o vigário-geral da Ín dia: os qu e an dam a gan h ar din h eiro têm -n o e levam m u ito boa vida e depois pedem as m ercês; e os qu e servem são pobres e pobres vivem . Tu do se com prava e ven dia até os cargos pú blicos, as viagen s, os soldos, os corpos. A Igreja está m u ito preocu pada com a ortodoxia e com a riqu eza e o poder dos m ercadores portu gu eses. No seu Tratado do Câmbio, o jesu íta Fern ão Rebelo defen de qu e “n ada se receba, por pou co qu e seja, à con ta 73 Antônio Borges Coelho de em préstim o ou de dem ora em pagar”, pois im plica o pecado m ortal da u su ra. O pecado m an ch ava a prática diária dos m ercadores e ban qu eiros de qu e o rei era o prim eiro clien te. O alto clero e os fidalgos preten diam reservar para si a direção da sociedade e m esm o os qu e provin h am da esfera do din h eiro tin h am de vestir o h ábito de Cristo ou adqu irir as h on ras de fidalgo. No en tan to, os poderosos do din h eiro ridicu larizavam a fidalgu ia dizen do qu e para obtêla bastava u m a assin atu ra do rei. Algu n s com paravam van tajosam en te o seu poder com o dos ou tros Estados. Os h om en s qu e escreveram da n obreza em qu atro partes a repartiram . Os m ais ch egados à pessoa e casa real. Os qu e m ilitam n a gu erra. Os h om en s letrados e m ais cien tes. E os h om en s ricos. E se h ou verem de dizer a verdade, todas as três qu alidades de h om en s, com o n ão sejam ricos em seu s n egócios, n ão são estados segu ros n em letras segu ras; e pior com fian ças. E os m ercadores ricos em todas as partes do m u n do são estim ados porqu e são os m ais ú teis para a repú blica.17 Milh ares de portu gu eses em barcados n as n au s corriam por su a con ta com o corsários os m ares orien tais e desertavam colocan do-se ao serviço de reis m ou ros, in du s e ou tros orien tais, assu m in do cren ças qu e n egavam a águ a do batism o sem a secar da m en te. Por ou tro lado, pelas portas de Goa, Coch im , Diu , Orm u z, Ceilão, Malaca, o Orien te en trava n o vestu ário, n a cozin h a, n as idéias, n o espetácu lo dos poder. In sin u ava-se m esm o n o m ais profu n do do território eu ropeu . Gil Vicen te apelava ao com bate con tra a osten tação. Mas, n a Ín dia e em Lisboa, os qu e se tin h am em boa con ta já n ão qu eriam an dar a pé. Fran cisco de Alm eida e Afon so de Albu qu erqu e n ão h esitavam em m eter m ãos à con stru ção das fortalezas ou a rem en dar o taboado dos n avios. Mas olh em os o govern ador Nu n o da Cu n h a a desem barcar em Baçaim n o an o de 1531. Neste ritu al de poder, ju n tam -se a Eu ropa e a Ásia. O govern ador ia arm ado em u m cossolete bran co dou rado por partes, e seu gorjal de m alh a, e fralda, e em cim a u m a coira de cetim crem esim com m u itos cortes, e n a cin ta u m a rica espada, e n a cabeça u m gran de ch apéu de gu edelh a verm elh a, e n ele u m a gran de m edalh a de ou ro e pedraria m u i rica, e n ela u m a plu m a bran ca com argen taria de ou ro, e u m rico colar de om bros de rocais esm altado, e calças in teiras, cortadas, forradas de crem esim , e sapatos fran ceses crem esin s com fitas en carn adas e grossas pon tas de ou ro, e u m bastão de pau dou rado n a m ão esqu erda, posto n o qu adril, qu e com tu do parecia form oso capitão; e a cavalo em u m a faca bran ca, com gu arn ição de velu do preto fran jada de ou ro; e ju n to dele dois pagen s bem arm ados, qu e lh e levavam su a lan ça, adarga, ca- 74 OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SÉCULOS XV-XVI) pacete, com o cu m pria; e dian te dele su a ban deira real de dam asco bran co e cru z de Cristo atrocelada de ou ro. 18 Nos prim eiros tem pos, o espírito da cavalaria perpassa em diferen tes episódios e relatos. Na con qu ista fracassada de Adem , Garcia de Sou sa escala a u m alto cu belo da m u ralh a e acaba por ficar cercado. Afon so de Albu qu erqu e grita-lh e qu e desça e se salve pelas cordas qu e estavam su spen sas do m u ro. Garcia de Sou sa respon deu : “Sen h or, n ão sou eu h om em para descer sen ão com o su bi. E pois m e n ão podeis valer se n ão com u m a corda, valh a-m e Deu s com seu favor qu e em lu gar estou para isso”.19 Mas a n ova m en talidade explode n a Peregrinação de Fern ão Men des Pin to e n ou tros passos n arrados pelos cron istas. Con su m ada a con qu ista de Baçaim , Nu n o da Cu n h a sen tou -se sob u m a alpen drada dos m ou ros receben do os lou vores da vitória. Algu n s com baten tes pediram lh e qu e os arm asse cavaleiros. E logo a m u rm u ração e a zom baria se espalh aram pelo arraial. Aqu eles pediam cavalaria n ão pela excelên cia e o perigo dos atos praticados m as para acrescen tam en to das m oradias. E ch am avam -lh es cavaleiros de cru zado porqu e davam u m cru zado às trom betas e ch aram elas qu e n o ato lh es tan giam .20 Um a ú ltim a n ota. A Reform a avan çava n o cen tro e n orte da Eu ropa m as em Portu gal n ão teve base popu lar de apoio. A religião ju daica tin h a raízes m u ito fu n das. E depois da con versão forçada, a “in fidelidade h ebraica” lavrava em su rdin a e atin gia m esm o cam adas de cristãos-velh os. E se algu m as idéias dos reform ados com o a recu sa do cu lto dos san tos e das im agen s, a n egação da con fissão con cordavam com as cren ças ju daicas, os ju deu s de coração ou os qu e assu m iram as velh as cren ças n as terras de exílio con tin u aram fiéis ao Deu s ú n ico. Por ou tro lado, para com preen der o n ão alastram en to em Portu gal da Reform a, tem os tam bém de ter em con ta a su a posição periférica e a alian ça en tre o Papado e as m on arqu ias ibéricas. As bu las pon tifícias garan tiam e sacralizavam a partilh a en tre os h ispân icos do m u n do recém descoberto. E en qu an to algu n s teólogos, en tre eles o cristão-n ovo Diogo Paiva de An drade, redefin iam a dou trin a da Igreja n o Con cílio de Tren to, ou tros, com o João de Barros, assu m iam a idéia ju daica de povo eleito, en carn ada agora n o povo portu gu ês. Deu s, “em cu jo poder estão todos os rein os e estados da terra ... tem olh o n aqu eles qu e vertem seu san gu e por con fissão da su a fé”. A partir de 1630, a In qu isição vigiava e reprim ia as idéias con sideradas h eréticas en qu an to a Un iversidade e os teólogos defin iam o qu e era para ter e crer. O espetácu lo católico da fé alim en tava-se em boa m edida com os restos das cren ças e o din h eiro dos cristãos-n ovos. E o viver com u m pé n as cren ças e cerim ôn ias católicas e ou tro n o en con tro das idéias 75 Antônio Borges Coelho e dos ritos ju daicos, arrastou algu n s cristãos-n ovos para o ceticism o e o ateísm o en qu an to Uriel da Costa proclam ava qu e o m elh or de todas as religiões estava n a lei n atu ral. O seu Exemplo de Vida Humana m ostra-n os com o abria cam in h o o deísm o m odern o. 76 OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SÉCULOS XV-XVI) N OTA S 1. JOÃO DE BARROS. Ásia. Década I. Lisboa: Im pren sa Nacion al, Casa da Moeda, 1974. p.214. 2. CORREIA, G. Lendas da Índia. Porto: Lello & Irm ão, 1975. v.III, p.479. 3. FELNER, L. Subsídios para a História da Índia Portuguesa. Lisboa: Im pren sa Nacion al, 1868. p.9. 4. Ibidem , p.26. 5. VARELA RUBIM, N. Artilh aria Naval dos Descobrim en tos. In : Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa: Círcu lo de Leitores, 1994. v.I, p.92. 6. FELNER, L., op. cit., p.9. 7. CORREIA, G., op. cit., v.III, p.392. 8. Ibidem , v.I, p.936. 9. Ibidem , v.III, p.394. 10. JOÃO DE BARROS, Década II, p.232. 11. CORREIA, G., op. cit., v.II, p.251. 12. MARQUES, S. Descobrimentos Portugueses. Lisboa: Ju n ta de In vestigações Cien tíficas do Ultram ar, 1944. v.I, p.544. 13. AS GAVETAS DA TORRE DO TOMBO, Lisboa: Ju n ta de In vestigações Cien tíficas do Ultram ar, 1974. v.X, p.180. 14. LIVRO DAS FORTALEZAS. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1960. p.33. 15. GOMES SOLIS, D. Alegacion en favor de la Compañia de la India Oriental. Lisboa, 1955. p.58. 16. MACEDO, J. B. de Os lusíadas e a História. Lisboa: Editorial Verbo, 1979. p. 50. 17. SOLIS, D. G. Discursos sobre los comercios de las dos Indias. Lisboa, 1943. p.100. 18. CORREIA, G., op. cit., v.III, p.468. 19. JOÃO DE BARROS. Década II. p.351. 20. CORREIA, G., op. cit., v.III, p.472 . 77 capítu lo 5 SA BERES E PRÁ TICA S D E CIÊN CIA N O PORTUGA L D OS D ESCOBRIMEN TOS An tôn io Au gu sto Marqu es de Alm eida* A origem e o desen volvim en to das idéias cien tíficas qu e circu lavam em Portu gal n o tem po dos Descobrim en tos têm alim en tado págin as m u ito in teressan tes de h istoriografia e revelado excelen tes abordagen s qu e n ão raram en te resvalaram para a polêm ica. O qu e n ão adm ira, porqu e esta discu ssão trava-se n u m território com arm adilh as, on de a an acron ia se im plan ta com arm as e bagagen s. Por este tem po a form ação dos con ceitos é dem asiado frágil e a su a capacidade sem ân tica perm an ece ain da pou co esclarecida. Em prim eiro lu gar a atitu de cien tífica ain da n ão existe, e a própria palavra ciên cia, existin do, n ão tin h a o sen tido qu e h oje lh e atribu ím os. Depois, perm an ece com o ten tação, qu an tas vezes assu m ida pelos h istoriadores, a idéia de qu e a progressão n o Atlân tico e n a costa african a resu ltou de u m ou vários plan os estratégicos, o m ais célebre dos qu ais seria o plan o das Ín dias atribu ído ao In fan te D. Hen riqu e. Natu ralm en te com o reação a estas leitu ras existe n a h istoriografia portu gu esa u m a tradição qu e n ega os n ovos saberes cien tíficos organ izados sob a form a de projeto, o qu e levou já Vitorin o Magalh ães Godin h o a lem brar qu e os h om en s do Qu atrocen tos, e o m esm o se diria dos do sécu lo segu in te, n ão foram cien tistas; n em tam pou co os Descobrim en tos foram , pelo m en os n este dom ín io, objeto de in vestigação ou sistem atização cien tífica, tal qu al h oje as podem os con ceber. Para Lu ís de Albu qu erqu e sem elh an te afirm ação con stitu iria u m an acron ism o absu rdo e por isso a com bateu ten azm en te, em bora as teses qu e defen dem a existên cia da Escola de Sagres se en con trem de tal m an eira en raizadas qu e ain da n ão foram ban idas, apesar de serem – isso m esm o – absu rdas e an acrôn icas. E no entanto, a sociedade portuguesa da segunda metade de Quatrocentos em diante passava por profundas transformações culturais, cujos resultados não tardariam a provocar frutos. Em particular, de finais do século XV em diante, a criação do conhecimento novo transforma-se em síntese inovadora, só possível pelo surgimento histórico de uma nova mentalidade. Moderna, sem dúvida, e que só emergiu por força das transformações operadas nas estruturas sociais e pela emersão de grupos que repartem entre si a melhor parte do aparelho produtivo em acelerado crescimento. 79 Antônio Augusto Marques de Almeida A in ovação dos saberes n u m a sociedade com este perfil n ão foi do dom ín io da epistème. Foi em prim eiro lu gar pon to de ch egada das qu estões do cotidian o qu e h á m u ito se en con travam sem resposta e, talvez por isso, se acan ton ou em torn o do con h ecim en to em pírico. A in ovação ocorreu por etapas su cessivas dos saberes, e são form as de con h ecim en to pré-cien tífico, sobretu do qu an do se tem presen te (e com o seria possível ign orá-la?) qu e a form ação da ciên cia m odern a foi in iciada n o berço de ou ro do sécu lo XVII eu ropeu , e qu e, por esta altu ra, ain da n ão se en con travam dispon íveis os u ten sílios m en tais qu e torn ariam possível a su a eclosão. Este estádio pré-científico assume primacial importância porque, con stitu in do-se com o sín tese crítica de legados tradicion ais, eviden cia o alargam en to da com preen são do m u n do real e prepara o h om em eu ropeu para as descobertas cien tíficas adven ien tes. Por razões h istóricas qu e caracaterizam a sociedade portu gu esa desta época, a con stru ção da ciên cia em Portu gal apega-se à lição tradicion al, de tal m an eira forte e vin cu lativa, qu e obscu rece a in ovação m esm o con tra toda a evidên cia. São tem pos de con h ecim en to pré-cien tífico qu e prean u n ciam o alargam en to dos h orizon tes da com preen são do m u n do real, m as sem u ltrapassar os qu adros im postos pela form u lação do olh ar em pírico. Por isso m esm o, Lu ís de Albu qu erqu e salien tava qu e só a experiên cia do m ar fora origem do con h ecim en to dos portu gu eses. An tes dele, dissera-o já Alberto Veiga-Sim ões n os an os trin ta e, desde en tão, a h istoriografia n ão parou de o repetir. E, de fato, o m ar com o espaço de origin alidade da cu ltu ra cien tífica portu gu esa é algo de sign ificativo da form ação da con sciên cia social da com u n idade e do seu Leben welt. Um a tékhnè adm iravelm en te u sada com o u ten sílio para a passagem do dado ao resu ltado, n u m tem po em qu e a descoberta de n ovas terras im plicou u m esforço desm edido de com preen são fen om en ológica e a reorgan ização do espaço geográfico exigiu profu n das m u dan ças n as estru tu ras m en tais dos eu ropeu s. O cálcu lo das dim en sões terrestres, con soan te a tradição ptolom aica, é progressivam en te su bstitu ído por propostas aju stadas às n ovas con cepções do real; os arcaísm os e os erros são corrigidos, n ão sem qu e, por u m a razão ou por ou tra, o espan to se su ceda à in credu lidade. O progresso dos saberes e, m ais tarde, a tran sform ação da in form ação em con h ecim en to, ficou a dever-se ao êxito do saber procu rar e aju star a solu ção. Provavelm en te, m ais a isso do qu e à in form ação recepcion ada m as, eviden tem en te, tam bém a ela... A origem do conhecimento científico que serviu de pano de fundo aos Descobrimentos provém de uma fonte comum a quase toda a cultura européia. De fato, é à Escola de Tradutores de Toledo que, entre meados do século XII e todo o século seguinte, se deve a formulação de algumas das sínteses do conhecimento antigo e indo-árabe de que os portugueses se ser- 80 SABERES E PRÁTICAS DE CIÊNCIA NO PORTUGAL DOS DESCOBRIMENTOS viram. Assegurando a tradução dos textos árabes para latim e a sua consequente difusão, realizou, de uma maneira única na história da cultura européia, a passagem transcultural dos discursos científicos da Antiguidade. Esta fu n ção de pon te en tre cu ltu ras aproxim ou Ptolom eu , Aristóteles, Eu clides, Boécio, en tre ou tros e de tão diferen tes origen s cu ltu rais com o se vê, da cu ltu ra cristã, e perm itiu qu e n ela ocu passem por m u ito tem po papel determ in an te. A par da difu são levada a cabo pelos tradu tores de Toledo, ain da se n ão con h ece bem , em bora se adivin h e de prim eira im portân cia, o papel das com u n idades sefarditas n a difu são da in form ação cien tífica da An tigu idade e in do-árabe. Mas, apesar de tu do, já sabem os m ais sobre a ação exercida por elas n as tran sferên cias cu ltu rais da Escola de Tradu tores de Toledo. Mas n ão só; até fin ais do sécu lo XV cabe-lh es parte sign ificativa n o processo de difu são e m esm o de criação do saber em Portu gal em torn o da n áu tica e da cartografia e, por isso m esm o, papel de relevo n a form ação das n ovas atitu des face ao con h ecim en to. José Vizin h o, Zacu to, Jácom e de Maiorca, Cresqu es são estrelas de u m céu im perecível. O sécu lo XV portu gu ês foi tribu tário de todas estas fon tes, pois con h eceu in ten sa circu lação das su as idéias, m as deve ter-se presen te qu e este sécu lo é u m tem po m u ito especial n a con solidação da com u n idade portu gu esa, qu er do pon to de vista da vida m aterial, qu er n os aspectos das form ações m en tais e das m atrizes cu ltu rais qu e viriam a iden tificar a cu ltu ra en tão em gestação. Sem dú vida o aparecim en to da tipografia veio acelerar de m ú ltiplas m an eiras essa circu lação, irritan tem en te restritiva, n o tem po em qu e o su porte da in form ação era m an u scrito. O u so crescen te das lin gu agen s romance veio alargar, por seu lado, o u n iverso da recepção, acen tu an do a im plan tação das idéias cien tíficas n a tessitu ra social, e pon do o con h ecim en to cien tífico ao serviço dos gru pos sociais dom in an tes. No período pré-gu tem bergu ian o, circu lavam n a Pen ín su la, e n atu ralm en te em Portu gal, versões latin as e até m esm o em vu lgar de Estrabão, Plín io, Dioscórides, Pom pôn io Mela, Eu clides, Boécio, Avicen a, Galen o, Regiom on tan o, Sacrobosco e Abrãao Zacu to, a par dos textos h ebraicos e árabes de Ibn Ezra, Azarqu iel, Ibn Safar, Alfragan o (Ru dim en ta Astron om ica) e Messah ala. A Im ago Mu n di do Cardeal Pierre D'Ailly (c.-1410) circu lou em m an u scrito até ser editada em Lovain a en tre 1480 e 1483. m as são pou co segu ras as provas de ter sido con h ecida em Portu gal, em bora seja elevada a probabilidade de ter circu lado en tre n ós. Já h á m ais certezas qu an to à versão latin a do Tratado da Esfera de Sacrobosco, qu e corria a Eu ropa desde a segu n da m etade do sécu lo XIII e qu e circu lou n o Portu gal qu atrocen tista, con form e opin ião de Lu ís de Albu qu erqu e. Tam bém os estu dos de A. Moreira de Sá, segu n do in form ação do m esm o au tor, com provam a circu lação de várias obras de m atem ática 81 Antônio Augusto Marques de Almeida e de astron om ia, em época an terior à fu n dação do Estu do Geral de Lisboa. Um a Sphera Mundij de au tor n ão m en cion ado, aparece rastreado n o testam en to de Mestre Gil, de Leiria, com data de 1257. Gu y Beau jou an in ven tariou n o acervo qu e perten ceu à livraria do Colégio Viejo de San Bartolom eo, de Salam an ca, en tre ou tros, o Tratado da Esfera de Sacrobosco e u m com en tário redigido por Roberto An glês; o Tratado do Quadrante deste ú ltim o; o Tratado do Astrolábio de Massah ala e ain da o Tratado do Quadrante Novo de Profatio. O u so dos textos da Escola de Toledo e a circu lação das várias cópias de Eu clides, Alfragan o, a Theorica planetarum , os Libros del Saber de Astronomia, as Tabuas alfonsies, baseadas fu n dam en talm en te n as de Azarqu iel, a par da im portân cia de Afon so X, foram esteios im portan tes da criação de u m a prática de saberes do sécu lo XV e n a con solidação da cu ltu ra cien tífica portu gu esa. No qu e à prática da m atem ática con cern e, o clim a m en tal era acan h ado, n ão obstan te o esforço exigido pelas tarefas da n avegação e pelo au m en to da com plexidade do trato com ercial. Adm itia-se, pois, o estu do das qu estões ú teis à n avegação e, n este capítu lo, o m ais im portan te eram os con h ecim en tos de Cosm ografia, em qu e dom in avam a Teoria dos Plan etas de Pu erbáqu io, a par dos Elem en tos de Eu clides e da tradição de Sacrobosco. Além disso, a h eran ça de Boécio e a astrologia ju diciária predom in avam . Parece até ter sido esta ú ltim a a razão m ais forte qu e terá levado o In fan te D. Hen riqu e a in teressar-se pela difu são dos estu dos de Aritm ética, in clu in do, com o se sabe, o estu do do Qu adriviu m n a Un iversidade de Lisboa. As dificu ldades de recepção qu e m u itas vezes desvirtu aram as idéias qu e restrin giram a su a circu lação e an u laram a su a eficácia in ovadora, con stitu em apen as u m a das faces, e talvez n em se trate da m ais im portan te, das ten tativas dos gru pos sociais fazerem reverter a seu favor o poder social qu e a in ovação cien tífica sem pre com porta. E a partir dos estu dos de Joaqu im Barradas de Carvalh o sabem os com qu e êxito esse desiderato foi prossegu ido pelos estam en tos su periores da sociedade portu gu esa.1 Por volta de 1330, com o u so da n u m eração árabe, com eçara em Portu gal u m a len ta revolu ção, ch am ada de aritm etização do real, qu e viria a ter im portan tes reflexos n o desen volvim en to das m en talidades protom odern as. Tratan do-se de estru tu ras m en tais m arcadam en te an alíticas assu m iram , desde o in ício, u m protagon ism o qu e n ão deixou pedra sobre pedra o qu e restava das h eran ças m edievais; estes saberes passaram do estádio de pou co m ais ou m en os, a u m a ou tra situ ação de saber, con h ecida com o sen do o da precisão, com o lem brava Lu cien Febvre. Fin alm en te, o rigor e a precisão organ izaram os n ovos olh ares sobre o Mu n do, en qu an to a recepção desta in form ação se estru tu rava à volta dos m odelos paradigm áticos, os m ais im portan tes dos qu ais, e do pon to de 82 SABERES E PRÁTICAS DE CIÊNCIA NO PORTUGAL DOS DESCOBRIMENTOS vista da su a aplicabilidade n a cu ltu ra portu gu esa qu atrocen tista, são o aristotélico, o eu clidian o, o ptolom aico e o boecian o. En tre os sécu los XI e XII segu ir-se-ia o paradigm a árabe e de m eados do sécu lo XIII em dian te, e caldeado com este ú ltim o, viria acrescen tar-lh e o m editerrân ico. Os qu atro prim eiros paradigm as com portam -se com o agen tes de tradição e de con tin u idade cien tífica, in capazes de correspon der às solicitações im postas pelos n ovos din am ism os econ ôm icos e sociais; en qu an to os dois ú ltim os (o árabe e o m editerrân ico) assu m em a fu n ção in ovadora, qu an tas vezes à beira de u m a ru ptu ra qu e foi sen do adiada até eclodir a partir de fin ais do sécu lo XV. Estes n ovos paradigm as m atizam as n ovas idéias e vão firm arse com o agen tes im prescin díveis das tran sform ações qu e estão em vias de ocorrer n a cu ltu ra portu gu esa. Mas tu do, ou qu ase tu do, se joga n o progressivo en fraqu ecim en to do paradigm a aristotélico, fato qu e arrastou os ou tros paradigm as de resistên cia e facilitou a im plan tação dos n ovos m odelos in terpretativos. Com o avan ço para o sécu lo XVI, e às portas da Época Modern a, toda a m edievalidade se afu n da, in exoravelm en te; a visão de Nicolau de Cu sa já n ão é in teiram en te con sen tân ea com a organ ização aristotélica. Freqü en tem en te a força da in ovação rom peu barreiras, com o n o caso dos escritos de Du arte Pach eco Pereira dos qu ais h á n otícia de qu e em fin s de qu in h en tos u m a cópia teria circu lado por Espan h a. Algo de sem elh an te, m as em m ais larga escala, ocorreu n a segu n da m etade do sécu lo XVI com os Colóquios de Garcia de Orta qu e foram , ain da qu e em circu n stân cias pou co favoráveis, tradu zidos para latim e vertidos para italian o, fran cês e in glês, ten do tam bém con h ecido vasta circu lação em Espan h a. Mas toda a in ovação é feita de restos, e a prática da ciên cia in ova com os restos qu e sobraram de ou tros saberes e de ou tras práticas. Os h om en s tam bém n ão podem rejeitar as su as raízes, as su as leitu ras, esqu ecer o qu e em tem pos das su as vidas apren deram . Copérn ico perm an ece m u ito m ais agarrado à m edievalidade do qu e ao pen sam en to m odern o qu e, sem dú vida, aju dou a con stru ir. Por isso foram precisos Keppler e Galileu para qu e a m odern idade da su a obra viesse ao de cim a e desem pen h asse o papel cim eiro de agen te tran sform ador das visões do m u n do. O len to processo da m odern ização estava, pois, em m arch a e o jogo din âm ico da oposição-in ovação ia recru descer n o vórtice dos paradigm as baseados em Copérn ico, Kepler e Galileu , os qu ais, com m aior ou m en or eficácia, serviriam de pean h a à m on u m en talidade cartesian a e n ewton ian a qu e se lh es segu iria. Não é por acaso qu e, pelo m en os n a aritm etização de u m a certa realidade, o papel in ovador foi con du zido pelos paradigm as árabico e m editerrân ico, pois foram os m atem áticos árabes, desde o sécu lo XII, e os m a- 83 Antônio Augusto Marques de Almeida tem áticos italian os, desde o trecen to e du ran te as du as cen tú rias segu in tes, qu e in ovaram a aritm ética. E sabem os com o isso foi im portan te pelas fu n das con seqü ên cias qu e as leitu ras dos seu s trabalh os viriam a ter n a form ação das m en talidades do h om em m odern o. Não foi in diferen te ao desen volvim en to deste processo a espan tosa capacidade qu e a aritm ética con tém em si própria, com o u ten silagem de leitu ra de m u ltivariadas in ter-relações qu e povoavam o cotidian o dos in divídu os, dos gru pos sociais, desde tem pos im em oriais do viver em sociedade. E ain da m ais: se tiverm os em lin h a de con ta o au m en to da com plexidade provocada pela teia destas n u m erosas in ter-relações, n o m om en to da irru pção do capitalism o m ercan til, en con tram os talvez, o prin cípio da explicação do papel fu n dam en tal desem pen h ado pela aritm ética n o processo básico da m odern idade qu e é a aritm etização do real. A Aritm ética assu m iu -se com o u m a u ten silagem de leitu ra da realidade e correspon deu , de form a cabal, às n ecessidades e às sen sibilidades em ergen tes das n ovas m en talidades, tam bém elas a despon tar, m ergu lh an do raízes n a con ta, peso e m edida.2 Nestas circu n stân cias n ão é de estran h ar qu e viesse a tran sform ar-se n u m u ten sílio de dom ín io e n u m in stru m en to de poder, ao serviço de gru pos profission ais ou con frarias de in teresses com o os estu dos de Joaqu im Barradas de Carvalh o com provam para o Portu gal qu atrocen tista e a h istória das com u n as italian as tão exem plarm en te docu m en ta para a gen eralidade da Eu ropa do Su l. E, todavia, este processo é bem fam iliar aos h istoriadores: em toda a h istória do pen sam en to cien tífico n ão se con h ece u m ú n ico caso de n ascim en to espon tân eo da in ovação e os seu s legados, com o idéias sociais qu e são, difu n dem -se sob a form a de paradigm as, tran sform an do-se em h eran ças, cu ja recepção sofre aju stam en tos cu ltu rais, m odelados pelas n ecessidades práticas. Em bora a velocidade de circu lação das idéias cien tíficas seja desigu al de época para época, e até den tro da m esm a con ju n tu ra sofra desvios acen tu ados, torn a-se m u ito difícil segu ir a su a trajetória e saber, a cada m om en to, de on de e para on de elas vão. Tem sido afirm ado, vezes sem con ta, qu e a form ação do m u n do m odern o foi m arcada pela descon tin u idade, com h iatos e ru ptu ras, algu m as até de difícil en ten dim en to. Sem dú vida a h istória da circu lação das idéias cien tíficas apresen ta u m desen volvim en to descon tín u o qu e n ão su rpreen de o h istoriador por dem ais afeito às assim etrias do desevolvim en to dos discu rsos cien tíficos e sobretu do aos u sos qu e deles se fizeram . Mas im porta ter presen te qu e o sécu lo XV assistiu a algu m as das m ais im portan tes tran sform ações das m en talidades e, de en tre estas, a passagem do con h ecim en to im ediato ao m ediato n ão foi, certam en te, a m en or. Qu ais fossem essas idéias cien tíficas e os din am ism os qu e as tran sform aram , ign oram o-los em gran de parte. Todavia, as n ovas atitu des an u n ciam m u dan ças profu n das face à apreen são da realidade. "Eu n ão te- 84 SABERES E PRÁTICAS DE CIÊNCIA NO PORTUGAL DOS DESCOBRIMENTOS n h o ódio sen ão aos errores; n em ten h o am or sen ão à verdade" — proclam a Orta qu e, em ou tro passo dos Colóquios afirm a: "Eu trabalh ei de o saber e sou be-o. Errar é dizer o qu e n ão é". Nou tra passagem : "Não m e con tradigam textos de au tores aqu ilo qu e eu vi com os m eu s olh os". Nesta atitu de radica-se u m a n ova visão do m u n do, e por ela, qu e an tes de m ais n ada tradu z u m a m u dan ça de m en talidade, passa a in ovação, se n ão toda, pelo m en os apreciável parte dela. É tem po de regressarm os ao Mar, e ao con vívio de Veiga Sim ões e de Lu ís de Albu qu erqu e. Ao Mar qu e foi, segu n do su as vozes, o espaço de on de tu do partiu e a fon te prim eva do n osso con h ecim en to e da n ossa agregação com u n itária. Este tipo de con h ecim en to, qu e con du ziu do con h ecim en to em pírico, desen volveu -se n a prática das n avegações. No dealbar dos descobrim en tos o con h ecim en to tradicion al é form ado por u m a con flu ên cia de saberes, m u itas vezes an tagôn icos, con traditórios sem pre, m as qu e form am u m a h istória in telectu al, feita de idéias e de sen sibilidades coletivas qu e defin em u m a visão do m u n do. Visão essa qu e gan h a sen tido en qu an to estru tu ra m en tal socialm en te aceita, n o seio da qu al se form am as represen tações do m u n do n atu ral e do m u n do das relações dos h om en s. Mais do qu e a visão, a con sciên cia dessa m esm a visão qu e, sen do in delevelm en te m arcada pelo tem po, dá h istoricidade à con sciên cia, pois a n oção de h istoricidade im plica a con sciên cia h istórica da h istória. E é à volta da con sciên cia h istórica qu e se organ izam os con ju n tos m ú ltiplos da visão do m u n do. E foi n o âm bito deste Leben welt qu e se criaram as form as de pen sar e de im agin ar o Mu n do, tão características da cu ltu ra portu gu esa n a au rora dos tem pos m odern os. E este estar n o Mu n do e pen sar n ele foi o receptácu lo de idéias, de livros, de escritas, de textos qu e vieram de fora e qu e foram lidos, refletidos, acim a de tu do experien ciados por esta cu ltu ra ú n ica do Mar e dos lon ges vistos dos cestos das gáveas. Um a ú ltim a palavra para a form ação da lin gu agem cien tífica é u m a ou tra qu estão in teressan te, e n ela tiveram papel de relevo os textos de au tores estran geiros qu e en tre n ós circu laram . Estes textos estiveram n a origem do léxico cien tífico da lín gu a portu gu esa. Difícil com eço pois, com o se sabe, estes discu rsos n ão prim avam pela objetividade sem ân tica. Em prim eiro lu gar u m a exigên cia deste tipo era n u la, e depois a con ceptu alização dos term os ain da n ão se tin h a im posto com o u ten silagem n ecessária à estru tu ração da discu rsividade cien tífica. E todavia estam os n u m m om en to de viragem em qu e as lín gu as vern ácu las, aju dadas pela im pren sa tipográfica, com eçam a veicu lar a in form ação dos saberes e, por toda a parte, vão rasgan do o casu lo do latim . Mas, com o todos os elem en tos de resistên cia in eren tes ao processo de tran sform ação, tam bém ele se acan ton a e persiste com o form a privilegiada de tran sm issão dos saberes n as esfe- 85 Antônio Augusto Marques de Almeida ras cu ltas da sociedade, particu larm en te n os dom ín ios in stitu cion ais, qu er da Igreja qu er do Estado, este ú ltim o acabado de su rgir n a cen a in ter-relacion al dos h om en s.3 O aparecimento de traduções das obras que corriam impressas em latim ou em línguas estrangeiras para a língua portuguesa teria sido da maior utilidade, e em muito teriam ajudado à formação da linguagem científica; mas por razões bem conhecidas, tal não aconteceu. E não há dúvida que os escritos importantes desde a dobragem do milênio, e depois os textos dos tradutores de Toledo corriam, como vimos, em Portugal. Esta circulação é bem conhecida. Veja-se um caso exemplar, na primeira metade do século XVI: a versão latina de Sacrobosco, já conhecida no último quartel de quatrocentos, e que prestou excelentes serviços pelos variados comentários que suscitou e pelas inúmeras leituras que se adivinham. Esta versão era, portanto, anterior à edição dos Guias náuticos quinhentistas, até que em 1537 Pedro Nunes publicou o seu Tratado da Esfera.4 Deve-se também ao seu labor a tradução na mesma altura da Teórica do Sol e da Lua, de Puerbáquio e do livro primeiro da Geografia de Ptolomeu. Igual sorte não teve um outro texto importante, os Elementos de Euclides, apesar de terem exercido influência hegemônica durante todo este período, pois a versão portuguesa só viria a ser publicada em 1768, para uso dos alunos do Colégio dos Nobres e em tradução de Giovani Angelo Bruneli.5 Mesm o n o plan o da form ação das lin gu agen s m ais h erm éticas, ou tidas com o tal, caso da Aritm ética ou da Matem ática, m u ito distan te ain da das propostas con ven cion adas de Vieta, as in dicações algorítm icas eram descritas, o qu e torn ava os sistem as operatórios fran cam en te in operan tes. Não adm ira pois qu e o léxico u sado por Gaspar Nicolás siga m u ito de perto o de Paccioli, sen do in desm en tível a leitu ra qu e fez da obra do fran ciscan o. A Summa de Arithmetica era con h ecida em Portu gal e m u ito divu lgada como atestam, ain da h oje, os exemplares dispon íveis da edição de 1494, existen tes n as bibliotecas portu gu esas. Também aqui, na fixação de um quadro semântico, Pedro Nunes desempenhou papel de relevo, não só pela sua tradução de textos antigos – na verdade em grande parte tratava-se até de uma reescrita desses textos – mas igualmente pelo esforço de atribuição semântica, pelo menos no domínio da matemática. Pedro Nunes conhecia – porque os lera – Luca Paccioli, Tartaglia e Cardano. Cita-os e comenta-os mas não era o único, pois já antes dele o frade italiano merecera leitura atenta a um outro autor, Gaspar Nicolás, que publicara em Lisboa e em 1519 uma Practica darismetica que contém abundantes referências a Paccioli. Mas as leituras de Pedro Nunes são mais extensas e profundas. Nada do que era importante no discurso do frade italiano foi desprezado, particularmente o uso da “regla da cosa”, ou seja, das propostas algébricas. A seu tempo, e a propósito dos atrasos veri- 86 SABERES E PRÁTICAS DE CIÊNCIA NO PORTUGAL DOS DESCOBRIMENTOS ficados nos estudos de álgebra em Portugal, face ao uso persistente das soluções aritméticas para a solução dos problemas, Pedro Nunes seria inclemente na formulação do seu juízo, atribuindo a Paccioli, justamente pela sua grande difusão, a responsabilidade desse fato. Mas não me parece assistir-lhe razão; o atraso existia, mas devia-se a outros fatores, e diferentes eram as razões que contribuíram para que tal atraso se verificasse. E digase que tal situação nem era específica de Portugal, pois por toda a Europa a situação tinha algo de semelhante. Talvez a chave da explicação possa encontrar-se nas dificuldades surgidas no plano da recepção dos textos italianos e, conseqüentemente, na formação do léxico científico quinhentista, esse sim, considerável, mas ainda não irremediavelmente atrasado. Para os h om en s do qu atrocen tos fin issecu lar o m u n do estava a m u dar com u m a evidên cia n u n ca vista e ao m esm o tem po a au toridade dos An tigos com eçava a ser posta em cau sa com o an tes n u n ca acon tecera. E n o en tan to, o h orizon te con tin u ava cerrado; a Terra já n ão era ptolom aica m as ain da n ão era ou tra coisa e o Céu escon dia, por detrás do véu da astrologia ju diciária, m u itos dos seu s segredos. Qu an do se põem os pés n u m a terra qu e, afin al, n en h u m m apa n em n en h u m saber con sagrado au torizava estar ali, a perplexidade (su pon h o ser esta a palavra exata) torn ase com pan h eira de todos os dias. Não foi preciso m u ito para o copo da in qu ietação tran sbordar. O h om em qu e in terroga o m u n do e ten ta in terpretá-lo, n u m tem po an terior à galáxia cartesian a, con fin ado com o estava à m atriz da su a própria experiên cia, con stitu i-se prision eiro de si próprio. A libertação das an tigas servidões, qu e su jeitaram os saberes e os agrilh oaram à au toridade dos An tigos, foi dolorosa e a resposta aos desafios do viver cotidian o foi con solidada com o con h ecim en to em pírico. A circu lação do livro im presso viera, en tretan to, acelerar a tran sferên cia dos n ovos saberes qu e, in felizm en te, n u n ca se elevaram , en tre n ós, ao dom ín io da form u lação teórica. E poderia ter sido de ou tra m an eira? A essa altu ra, o m u n do já se alterara decisivam en te; literalm en te, já era ou tro. Os paradigm as qu e fizeram a m edievalidade resistiam ain da n o casu lo do m ágico-an im ism o qu e viria a caracterizar algu m as das fases do Ren ascim en to. Mas os seu s dias estavam con tados. Os róseos dedos da Razão clareavam já a n oite m edieval. 87 Antônio Augusto Marques de Almeida N OTA S 1. Cf. CARVALHO, J. B. de. A m en talidade, o tem po e os gru pos sociais. (Um exem plo portu gu ês da época das Descobertas: Gom es Ean es de Zu rara e Valen tim Fern an des). Revista de História, São Pau lo, an o IV, p.37-68, ju l.-set., 1953. 2. MARQUES DE ALMEIDA, A. A. Aritmética como descrição do real (1519-1679). Con tribu tos para a form ação da m en talidade m odern a em Portu gal. Lisboa: Im pren sa Nacion al – Casa da Moeda, 1994. 3. Sobre este assu n to, leia-se CARVALHO, R. de O u so da lín gu a latin a n a redação dos textos cien tíficos portu gu eses. In : Memórias da Academia das Ciências de Lisboa (Classe de Letras). Lisboa: Academ ia das Ciên cias de Lisboa, 1988. t.XXIX, p.309-37. 4. ALBUQUERQUE, L. de Sobre u m m an u scrito qu atrocen tista do Tratado da Esfera de Sacrobosco. Revista da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra. Coim bra, t.XXVIII, p.142-76, 1959. 5. Segu iu -se logo ou tra edição em 1774. Este texto foi tradu zido desde o sécu lo XVI para as lín gu as eu ropéias: italian a em 1543; alem ã em 1562; fran cesa em 1564; e a versão in glesa em 1570. 88 capítu lo 6 OS BEN S ECLESIÁ STICOS N A ÉPOCA MOD ERN A . BEN EFÍCIOS, PA D ROA D OS E COMEN D A S An tôn io Man u el Hespan h a* Nen h u m h istoriador ign ora a im portân cia qu e tin h am , n a sociedade m odern a, os ben s eclesiásticos, in clu in do aqu i tan to os ben s im óveis, com o coisas m ais im ateriais com o ben efícios e preben das. Não apen as por se tratar de u m a m ole im en sa de recu rsos, com o pelo fato de se en con trarem distribu ídos, sob m ú ltiplas form as, por toda a sociedade. Mesm o n a época, o regim e dos ben s eclesiásticos era m u ito com plicado. Isso explica – tan to qu an to a apetên cia por eles e os con flitos qu e isso provocava – a qu an tidade de litígios existen tes acerca deles e, portan to, a abu n dân cia e com plexidade da dou trin a ju rídica sobre o assu n to. O regim e dos ben efícios, dos padroados e das com en das era dos m ais discu tidos n o foro, pois dizia respeito a in stitu ições cen trais de redistribu ição dos ren dim en tos da Igreja. No texto qu e se segu e, procu rarei sistem atizar e esclarecer esse regim e, ilu stran do-o com algu n s casos extraídos de coleções de ju rispru dên cia da época. B EN EFÍCIOS, PA D ROA D OS E COMEN D A S. REGIME IN STITUCION A L De acordo com a tradição qu e corre n a época m odern a, o sistem a ben eficial teria sido in trodu zido n a alta Idade Média. Nos tem pos prim itivos, os eclesiásticos (tal com o os pobres) teriam sido su sten tados diretam en te pelos fiéis. No sécu lo V, o Papa S. Sim plício (an o 467) teria dividido os ben s eclesiásticos em qu atro m assas: u m a destin ada aos bispos, ou tra aos clérigos, ou tra aos pobres e ou tra, fin alm en te, às despesas de cu lto (“fábrica da Igreja”). A partir daí, os clérigos com eçam a ser su sten tados pela atribu ição, em prin cípio pelos bispos, de ben s da Igreja, de cu jos ren dim en tos possam viver decen tem en te. Esta atribu ição teria sido feita ou qu ase cotidian am en te de alim en tos, à m edida das n ecessidades con cretas do clérigo ( annonnae, praebendae, de praebeo, apresen tar; esta design ação era atribu ída aos alim en tos dados aos soldados1), ou por con cessões precárias de ben s, a qu e se passou a ch am ar benefício.2 89 Antônio Manuel Hespanha A origem do m odelo do ben efício está n o direito rom an o tardio, qu e u tilizava a design ação para referir a atribu ição de ben s àqu elas qu e se distin gu iam n a gu erra, qu er com o prêm io qu er com o in cen tivo para feitos fu tu ros (cf. C. 11, 59). In teressan te é, n este m om en to, destacar o caráter gratu ito e ben evolen te do ben efício, o qu e o distin gu ia de qu alqu er pagam en to m ercen ário ( beneficium est benevola actio gaudium vel honorem tribuens capienti, Sen eca, De benef., 1).3 Isto fazia com qu e o ben eficiado ficasse ligado ao con ceden te por u m a relação de gratidão e fidelidade qu e lh e vedava, n om eadam en te, a prática de atos qu e en volvessem desrespeito, com o con trariar a palavra ju rada do con ceden te ou depor con tra ele (Am aral, 1610, “Ben eficiu m ”, n . 54). Mas, apesar desta com pon en te de precariedade e liberalidade da con cessão, a ten dên cia teria sido a de en ten der progressivam en te esta atribu ição de ren dim en tos com o u m direito patrim on ial do tipo do u su fru to, doravan te in tegrado perpetu am en te n o patrim ôn io do ben eficiado e, assim , por ele dispon ível com o coisa patrim on ial. Nos fin ais da época m odern a, qu an do já é m u ito forte a reação da opin ião pú blica con tra esta progressiva patrim on ialização das ren das dos eclesiásticos, a dou trin a in sistirá n o caráter por assim dizer pú blico da obrigação de su sten tar os clérigos. Su sten tação essa qu e, n ão poden do já com petir diretam en te à com u n idade, com o n os tem pos prim itivos, deveria estar a cargo do soberan o.4 Seja com o for, an tes de o ilu m in ism o e, m ais tarde, o liberalism o terem re-im agin ado u m sistem a n ovo de retribu ição dos eclesiásticos, o su sten to destes estava baseado n esta con cessão qu ase patrim on ial de ren das, a qu e se ch am ou ben efício. De acordo com u m a defin ição com u m , o ben efício é u m direito perpétu o, atribu ído por u m a au toridade eclesiástica, de receber fru tos de certos ben s da Igreja, em virtu de de u m m in istério (ou ofício) sagrado, ao qu al foram con sign ados ou an exados. A perpetu idade do ben efício reside n o fato de, tan to a con cessão dos ofício com o a dos ben efícios ser feita sem qu alqu er lim itação tem poral e de form a firm e, n ão poden do ser retirada arbitrariam en te. Por isso é qu e as con cessões tem porárias ( v.g., en qu an to n ão se der o provim en to defin itivo com o n as vigararias, qu e são adm in istrações tem porais de ben efícios, ou en qu an to o ofício carecer de certa proteção, com o n as comendas) n ão são, rigorosam en te, ben efícios. Com o n ão o são os ofícios livrem en te reassu m íveis pelos con ceden tes (com o os ofícios dos regu lares de orden s m on ásticas, tam bém ch am ados manuais ou obedenciais, ju stam en te porqu e está n a m ão do con ceden te dá-los ou tirá-los livrem en te, ou os ofícios m eram en te delegados, com o os dos legados papais).5 A dou trin a da época apresen tava dos ben efícios diversas classificações, algu m as delas pren h es de con seqü ên cias in stitu cion ais. 90 OS BENS ECLESIÁSTICOS NA ÉPOCA MODERNA. BENEFÍCIOS, PADROADOS E COMENDAS Os ben efícios podiam ser eletivos, providos por eleição can ôn ica, ou colativos, providos por sim ples doação ou colação. Maiores (com o os de papa, arcebispos, bispos, abades) ou m en ores (os restan tes). Cu rados, se in clu íam a cu ra de alm as (adm in istrar sacram en tos e difu n dir a palavra de Deu s, exercer a ju risdição espiritu al), ou n ão cu rados, se n ão a in clu íam (o qu e se presu m ia). Regu lares, atribu ídos a m em bros de u m a ordem ou regra m on ástica, obrigan do a u m a m ais estrita obediên cia ao su perior e livrem en te depen den tes, qu an to às fu n ções e qu an to ao período de con cessão, do arbítrio deste,6 secu lares, se atribu ídos a clérigos regu lares, n ão su jeitos a regra e m ilitan do n o sécu lo (o qu e se presu m ia). Fam iliares, se o seu provim en to tem qu e se verificar n o seio de certa fam ília, ou n ão fam iliares, n o caso con trário.7 O provim en to dos ben efícios era levado a cabo, n as m ais im portan tes dign idades eclesiásticas ( ecclesiae viduae: bispos e abades de orden s), por eleição can ôn ica, i.e., respeitadas as n orm as do direito can ôn ico, n om eadam en te qu an to à form a de efetu ar a eleição e qu an to aos requ isitos do eleito 8), a efetu ar den tro dos três m eses segu in tes à vacatu ra. A eleição podia ser su bstitu ída por u m a escolh a ( compromissum ) por u m gru po m ais restrito de eleitores (com prom issários) ou pela n om eação pelo titu lar do poder secu lar, com o acon tecia, para os bispos, em Portu gal. Devia ser con firm ada pelo titu lar do direito de n om ear o ofício. Nos restan tes ofícios, o provim en to era feito por n om eação (ou colação), por via de regra, episcopal. Apesar de o Papa ser, com o vigário de Cristo, o titu lar n atu ral do provim en to dos ofícios da Igreja, os bispos teriam adqu irido, com o decu rso do tem po, u m a expectativa ju rídica ( fundata intentio) de os poder con ceder, em bora isto n ão preju dicasse os direitos papais (Fragoso, 1642, II, 655, n . 2/ 5). Daí qu e, em bora ordin ariam en te cou besse aos bispos a con cessão dos ofícios, este direito estava lim itado pelos direitos cu m u lativos de colação qu e com petiam ao Papa. Assim , este era titu lar de u m a reserva geral qu e lh e perm itia prover os ben efícios qu e vagassem em certos m eses (m eses ím pares) ou qu e vagassem n a cú ria.9 Para além de even tu ais reservas especiais, n o caso de certos ben efícios (Gm ein eiri, X., X., 1835, II, § 127).10 Além de qu e o papa, com o vigário de Cristo e u san do de seu poder absolu to, podia prover qu alqu er ben efício, em qu alqu er circu n stân cia e m ês, com o tam bém podia privar dele o ben eficiado.11 Por ou tro lado, o direito de provim en to dos bispos podia estar ain da lim itado por direitos de apresen tação ( i.e., de proposta de n om es) qu e com petissem aos even tu ais patron os do ben efício, n os term os do direito de padroado (v. infra). O direito de padroado 12 – qu e com petia a qu em tivesse fu n dado ou dotado su bstan cialm en te u m a igreja ( jus patronatus est jus honorificum, onerosum, & utile, alicui competens in ecclesia, pro eo, quo de diocesani consensu eccle- 91 Antônio Manuel Hespanha siam contraxit, fundavit vel donavit, Am aral, 1610, n . 1) – in clu ía, en tre ou tras coisas o direito de apresen tar pessoa idôn ea para u m ben efício vago. Em bora a prática an terior fosse diferen te e m ais perm issiva, o Con cílio de Tren to procu rou restrin gir o direito de padroado, lim itan do a su a con cessão aos casos de fu n dação ou dotação su bstan cial de u m a igreja ou capela. Em todo o caso, con tin u a a adm itir-se, em bora relu tan tem en te, qu e o papa, u san do do seu poder absolu to ( i.e., su perior ao direito), pu desse con ceder padroados ( de vi potestatis de camera) a qu em n ão tivesse fu n dado igrejas (Gm ein eiri, X., 1835, p.139). Sim u ltan eam en te, estabelecem -se con dições m ais rigorosas para a prova do direito de padroado, exigin do docu m en to au tên tico ou posse im em orial, com ú n ica ressalva dos padroados im periais ou régios, para os qu ais se con tin u avam a adm itir todas as provas adm itidas em direito.13 Além do direito de apresen tação, o direito de padroado in clu ía, desde logo, o direito de pedir alim en tos, por força das ren das do ben efício, n o caso de pobreza; m as a avaliação da su a pobreza depen dia da “qu alidade” do patron o. Em bora o Con cílio de Tren to (sécu lo XXII, de reform at., cap. u lt.) ten h a – n a seqü ên cia de determ in ações can ôn icas an teriores (cf. Decr. Greg. IX, cap. extirpandae, III, 5, 30) – proibido term in an tem en te os patron os de se in trom eteram n a percepção dos fru tos do ben efício, a dou trin a segu e adm itin do, m esm o n os fin ais do sécu lo XVIII, qu e os patron os podem receber censos nos limites da igreja fundada (cf. Gmeineiri, X., 1835, II, p.138, § 160). No plan o sim bólico, os patron os têm direito a lu gares de destaqu e n a igreja, n o coro e n as procissões (ibidem .). Estes direitos obrigam o patron o à cu ra, in speção e defesa da igreja, para qu e esta n ão seja preju dicada n os seu s direitos. Em sín tese, costu m ava recitar-se o segu in te brocardo: Patronos debetur honos, onus, utilitasque; Praesentet, praesit, defendat, alatur egenus (Deve-se ao patron o a h on ra, o ôn u s e a u tilidade; Apresen te, presida, defen da e seja alim en tado n a m iséria). Neste brocardo, destacam-se as características fundamentais do sistema de direitos e deveres incluídos no padroado. Ou seja, o seu caráter honorífico, oneroso e utilitário. Honorífico, pois encerra certas honras, como a de apresentar o titular do benefício (normalmente o reitor ou capelão da Igreja), a de ter a precedência nos atos de culto (como as procissões, os ofícios, a benção etc.), a de ter direito a preces, a cadeira especial na Igreja ou no coro, a ter sepultura em lugar de destaque, etc. (Osório, 1736, res. I, n. 7-11). Oneroso, porque sobre o patrono recai o ônus de defender a igreja ou capela do seu padroado e de impedir que os seus bens se dilapidem (n. 12). Utilitário, pois o patrono, sua mulher e família têm direito a ser socorridos pelos rendimentos da Igreja se caírem na miséria (n. 14). Os padroados podiam com petir a m u itas en tidades. Desde com u n idades paroqu iais ou poderosos locais a en tidades eclesiásticas (com o sés ou 92 OS BENS ECLESIÁSTICOS NA ÉPOCA MODERNA. BENEFÍCIOS, PADROADOS E COMENDAS cabidos). A distin ção en tre padroados leigos e eclesiásticos era a m ais im portan te, decorren do da origem dos ren dim en tos com os qu ais se tin h a con stru ído ou dotado da igreja ou da von tade do in stitu idor leigo n o sen tido de ser padroeiro o próprio abade da igreja (Cabedo, 1602, n . 11) e era relevan te de diversos pon tos de vista. Não apen as qu an do aos prazos de apresen tação (6 m eses n os eclesiásticos; 4 m eses n os leigos; em am bos os casos, sob pen a de devolu ção ao su perior, se n ão exercido a tem po), m as tam bém n o m odo de fazer a apresen tação. Nos eclesiásticos, o con cu rso en tre os con corren tes era de regra, estan do dispen sado n os leigos. Estes ú ltim os, por su a vez, tin h am regras m en os estritas qu an to à idon eidade do apresen tado (n ão tin h am qu e abrir con cu rso, bastava escolh er dign o, m as n ão o m ais dign o) e qu an to à su a design ação con creta, pois, an tes da con firm ação do apresen tado, podiam m u dar a escolh a ( Decr. Greg. IX, III, 38, 24 e 29; Gm ein eiri, X., 1835, II, p.140, § 163). Os padroados tran sm itiam -se, desde logo, por su cessão. Neste plan o, n ão se afastam do direito su cessório n orm al, n ão exigin do, design adam en te, m ascu lin idade ou progen itu ra. São in clu sivam en te divisíveis, qu an to aos direitos de percepção de ren das. Natu ralm en te qu e a apresen tação, em si m esm a, é in divisível. Mas, sen do vários os h erdeiros titu lares do direito de padroado, eles podiam com bin ar en tre si u m a form a de gerir o direito de apresen tar (por exem plo, por eleição en tre os co-titu lares ou , o qu e era m ais freqü en te, pelo exercício altern ado) (Gm ein eiri, X., 1835, II, p.145, § 177). Algu n s, podem ser gen tilícios ou fam iliares, n ão poden do sair de certa fam ília (Am aral, 1610, n ota p.695 col. 1). O patron o pode doar o padroado à igreja de qu e é patron o qu e, assim , fica padroeira de si m esm a (Am aral, 1610, n . 30). Para os que consideravam que o padroado era algo de meramente temporal, este podia mesmo ser vendido, sem perigo de simonia.14 Outros exigiam que o patronato estivesse anexo a uma universalidade de bens de natureza temporal, para poder ser assim transacionado; porque em si mesmo, considerado como prerrogativa de apresentar ofício eclesiástico ou de obter honras numa igreja, seria um direito espiritual (Amaral, 1610, n. 5). No sen tido de m an ter os ofícios e ben efícios livres para serem con cedidos, n o m om en to da vacatu ra, estava proibida a prom essa de con cessão de ofícios n ão vagos ( cartas de expectativas). O Con cílio de Tren to (sess. 24, de reform ., cap. 19) ain da su blin h ou esta proibição, n o âm bito de u m a política de am pliação da liberdade de colação qu e in clu ía tam bém a in trodu ção de restrições aos direitos de padroado (v. infra). O sistem a ben eficial baseava-se, com o se viu , n a con ju n ção en tre u m ofício ou fu n ção eclesiástica, com a correspon den te atribu ição de poderes ou ju risdições, e u m ben efício ou ren da. No plan o dos poderes con feridos pelos ben efícios, por vezes eles correspon diam a u m a certa prim azia ou preem in ên cia ju risdicion al, n o- 93 Antônio Manuel Hespanha m eadam en te n os atos litú rgicos ou capitu lares ("n o coro ou n o capítu lo"); falava-se, n estes casos, de u m a dignidade. Em con trapartida, se esta prim azia era m eram en te h on orífica, n ão com portan do qu alqu er ju risdição ( i.e., n ão se u n in do a qu alqu er ofício, com o u m lu gar h on orífico n o coro, procissões ou su frágios), falava-se de u m a sim ples pessoa ( personatus). No caso de esta prim azia se lim itar à percepção de u m ren dim en to, falava-se de u m a prebenda ou conezia.15 Fin alm en te, se os poderes con feridos fossem de m era adm in istração, sem ju risdição ou dign idade, com o n o caso dos sacristães ou porteiros, cu stódios, tratava-se de u m mero ofício. Neste m odelo adm in istrativo, ao desem pen h o de u m a fu n ção correspon dia sem pre a percepção de u m a ren da, de u m "ben efício". Na verdade, os ofícios eclesiásticos n u n ca são con feridos sem ren das (sem titulum [ou cau sa de possu ir]). A razão seria tan to a ju stiça (“é ju sto qu e qu em vive para o altar, viva também do altar”, Vallensis, 1632, l. 3, tít. 5, § 1, n. 5) com o a n ecessidade de evitar qu e su rjam “clérigos vagos e acéfalos” (Teles, 1693, p.116, n . 13).16 Apesar de paradoxal com a lógica in icial do in stitu to, a situ ação in versa de existirem ben efícios sem a correspon den te fu n ção podia verificar-se, n om eadam en te por se ter en tretan to extin to, perm an ecen do a titu laridade dos ren dim en tos. Assim , ofício e benefício passam a con stitu ir sin ôn im os, design an do a m esm a coisa, em bora sob perspectivas diferen tes. Mas, n o m u n do sem ân tico da adm in istração eclesiástica, a design ação de ben efício (qu e rem ete para u m a perspectiva patrim on ial) su plan ta fran cam en te a de ofício (qu e rem ete para u m a perspectiva fu n cion al ou m in isterial), em bora a lógica in stitu cion al h esite en tre u m a e ou tra visão. Por u m lado, a ligação essen cial do ben efício a u m a fu n ção su bjacen te, a u m ministerium , de n atu reza espiritu al, tin h a com o con seqü ên cia a obrigatoriedade da residên cia n o lu gar do ben efício, a fim de poder desem pen h ar presen cialm en te as in eren tes fu n ções, n om eadam en te as qu e revestissem u m caráter de u rgên cia, com o a adm in istração da con fissão ou da extrem a u n ção.17 Daí qu e n in gu ém pu desse ter m ais do qu e u m ben efício, pelo m en os se estes fossem en tre si in com patíveis.18 Por ou tro lado, o fato de algu m as das fu n ções su bjacen tes serem essen cialm en te espiritu ais levava à in capacidade dos leigos para serem titu lares de certos ben efícios an exos a este tipo de fu n ções (Gm ein eiri, X., 1835, II, 92, § 66).19 Ain da n esta perspectiva, os ren dim en tos do ben efício deviam servir sem pre a fu n ção su bjacen te. Assim , en ten dia-se os ben eficiados aplicar ao seu m ú n u s os fru tos do ben efício; e qu e, m esm o os ren dim en tos su pérflu os, deveriam ser con su m idos em gastos piedosos (Gm ein eiri, X., 1835, II, p.164). Tam bém os réditos dos ben efícios vagos deveriam perm an ecer con sign ados ao ben efício, sen do en tregu es ao su cessor ou gastos em ben efício deste; de m odo a qu e os bispos n ão se pu dessem apropriar deles 94 OS BENS ECLESIÁSTICOS NA ÉPOCA MODERNA. BENEFÍCIOS, PADROADOS E COMENDAS para gastos gerais da Igreja (Gm ein eiri, X., 1835, II, p.174). Em bora esta perspectiva in teressasse tam bém , m esm o de u m a óptica pu ram en te patrim on ial aos fu tu ros ben eficiados. Mas a conseqüência talvez mais notável da lógica ministerial diz respeito aos critérios de seleção dos beneficiados. Aqui, é muito presente a idéia de que o beneficiado não é um mero arrecadador de rendas, mas uma pessoa que, tendo que desempenhar um ministério, tem que ter as qualidades requeridas para tal. Essas qualidades (morais, intelectuais, físicas e de idade 20) estavam fixadas pelo direito canónico e enfaticamente sublinhadas pelo Concílio de Trento (sess. 24, c. 12) (cf. Amaral, 1610, v. “Beneficium”, n. 9). Mas, para além do cumprimento de requisitos absolutos, havia ainda que ponderar os méritos relativos dos potenciais candidatos. Nos ofícios eclesiásticos mais importantes – como os bispos e superiores de ordens religiosas – isto obriga a que o provimento se faça mediante concurso, constando de um exame formal, devendo ser aprovado o melhor ( dignior). No plano dos princípios, isto impediria – segundo alguns, mas não todos – a concessão de benefícios por preferências pessoais, clientelares ou familiares.21 Nos benefícios inferiores exigência era menor, havendo quem – embora contra a letra dos decretos de Trento (sess. 24, c. 18) – dispensasse o concurso formal, nomeadamente nos benefícios que fossem apresentados por patronos laicos,22 mas, de qualquer modo, exigia-se que o apresentado fosse digno (embora não o mais digno), em termos de virtude (mais do que em termos de nascimento.23 Em todo o caso, o princípio de que o ofício eclesiástico tinha uma natureza espiritual, devendo ser exercido pelo mais digno e meritório, e de que a concessão do correspondente benefício era um ato gratuito e liberal faia com que qualquer motivação interesseira ou qualquer pacto acerca da concessão fossem arguíveis de simonia ( i.e., o pecado que consistia na venda de função espiritual). Pelo que os critérios objetivos do mérito sempre foram muito mais exigidos na colação dos benefícios eclesiásticos do que na concessão dos ofícios ou mercês da república. Em con trapartida, u m a visão patrim on ialista do ben efício ten de a con siderá-lo com o u m a m era ren da, sem elh an te a tan tas ou tras, gravan do sobre certos ben s, existen tes n o m u n do m edieval e m odern o. E, daí, qu e se con cebesse a existên cia de ben efícios sem ofício su bjacen te (preben das ou con ezias) ou a ven da de ben efícios (en ten didos com o m eros réditos tem porais, Vallen sis, 1632, l. 3, tít. 5, § 1, n . 5) sem perigo de sim on ia. Adm itida a ven da (ou a troca), aceitava-se tam bém a ren ú n cia a favor de ou trem , em bora au torizada pelo colator. En ten den do-se m esm o qu e este n ão podia con ceder o ben efício a ou trem (Am aral, 1610, v. “Ben eficiu m ”, n . 46). Tais ren ú n cias eram m u itos vu lgares. Nu m a lógica pu ram en te patrim on ial, tam bém se en ten dia qu e o con ceden te do ben efício pu desse reservar para si u m a porção do ren di- 95 Antônio Manuel Hespanha m en to, a títu lo de pen são. Isto foi frequ en te até ao Con cílio de Tren to, o qu al, segu in do a lógica espiritu alista, proibiu estas pen sões, a n ão ser qu e ficassem votadas a fin s tam bém espiritu ais (com o, v.g., a reparação da igreja do padroado) (Gm ein eiri, X., X., 1835, II, 172 s.). Mas, m esm o depois, n ão só se adm ite qu e o fu n dador de u m a igreja reserve u m a pen são sobre os ben s doados (Am aral, 1610, “Pen sio”, n . 6), com o se m an tém -se a prática de, em certos ben efícios, se exigir, n o m om en to da con firm ação, o pagam en to de u m a som a equ ivalen te à m etade do ren dim en to an u al ( meia anata). Daí qu e, peran te a gen eralidade da prática, a dou trin a prefira fixar lim ites às pen sões, estabelecen do a regra de qu e estas n ão deviam ser de tal m odo graves qu e o ben eficiário n ão se pu desse su sten tar com odam en te, observan do os preceitos de u m a vida h on esta e da h ospitalidade; em geral, a pen são n ão deveria exceder a terça parte dos fru tos do ben efício (Am aral, 1610, “Pen sio”, n . 8-9). Um a form a especial de atribu ição de ben efícios era a com en da. Em rigor, n ão se tratava de u m a con cessão de ben efício, m as apen as da su a “en com en dação” (ou en trega com o qu e em depósito) 24 tem porária a algu ém , qu e o deve proteger e cu rar, en tregan do-o, qu an do isso lh e for pedido, ao con ceden te, e pon do os fru tos à disposição do ben efício (Vallen sis, 1632, p.462). O alem ão Ju stu s Hen n in g Boeh m er 25 descreve assim a origem da in stitu ição: “Nos tem pos prim itivos n ão era possível pôr logo à fren te das igrejas u m pastor idôn eo; en tretan to, para evitar todos os in côm odos qu e n orm alm en te n ascem da an arqu ia, costu m ava-se en com en dar e com eter a igreja vaga a algu ém probo qu e, com o tu tor ou procu rador, se en carregasse de boa-fé dos atos a ela relativos. Este n ão era pastor da igreja e só era n om eado por certo tem po” (sec. 8, cap. 2, n . 25). E prossegu e, dan do con ta das críticas qu e os protestan tes dirigiam a todas estas form as de tran sferên cia para leigos das fu n ções e ren das da Igreja, “pou co a pou co, esta in stitu ição degen erou em rapin a, verifican do-se u m a reação con tra ela … obrigan do-se os bispos a, n o prazo de u m an o, proverem as igrejas ou a su bstitu ir o com en dador … Mas h oje estas com en das (ou beneficia commendatae) ju stificam -se m ais pelos réditos qu e dão do qu e pelo bem da cu ra de alm as” (sec. 8, cap. 2, n . 25-27). Solorzan o Pereira,26 qu e trata lon gam en te da in stitu ição da encomienda, pela qu al se distribu íram aos colon izadores as terras das Am éricas, defin e ain da a com en da com o o recebim en to de “algu m a coisa em gu arda ou depósito, am paro e proteção” (Pereira, 1972, III, 1,1). Mas tam bém já lh e acrescen ta a ou tra dim en são patrim on ial, m ais próxim a da realidade prática da época, ao defin i-la com o o “direito de perceber os tribu tos dos ín dios, con ferido por m ercê” (III, 3, 2 ss.). Na verdade, com o refere, estas n om eações “n ão davam n em con feriam títu lo algu m ao qu e servia o ben efício, só o con stitu in do com o seu depositário, gu ardador ou adm in istra- 96 OS BENS ECLESIÁSTICOS NA ÉPOCA MODERNA. BENEFÍCIOS, PADROADOS E COMENDAS dor por certo tem po e por cau sa de eviden te u tilidade da Igreja; m as com a facu ldade de qu e pu desse gozar e dispor dos fru tos, com o se fosse u m ben eficiado” (Gm ein eiri, IV, cap. 15, 5 ss.). Em Portu gal,27 a com en da é defin ida com o u m “ben efício de coisa im óvel, retida a propriedade n o con ceden te, de m odo a qu e o u su fru to passe para o aceitan te em virtu de da fidelidade deste” (Carvalh o, 1693, II, p.10, n . 7). Discu tia-se a su a n atu reza ben eficial, sen do dom in an te a opin ião de qu e n ão se tratava de ben efícios eclesiásticos, já qu e o m ú n u s qu e estava su bjacen te à percepção de fru tos n ada tin h a de espiritu al, con sistin do n a obrigação de fazer a gu erra aos in fiéis (Carvalh o, 1693, I, en . 2, n . 18 ss.). Era aos párocos das igrejas da com en da qu e com petiam todas as fu n ções espiritu ais, para o qu e lh es era atribu ída u m a certa pen são (ou “cota”) extraída dos fru tos e ren dim en tos da com en da, de qu e os com en dadores eram m eros adm in istradores (Ibidem , n . 22). Estavam atribu ídos em com en das os ben efícios, ju risdições e ren das das orden s m ilitares. Com a in tegração dos m estrados das Orden s n a Coroa, esta torn a-se padroeira destas com en das.28 O rei, com o m estre, apresen ta a com en da (qu e n ão é u m ben efício) e o com en dador apresen ta u m vigário perpétu o ou reitor qu e provê os ben efícios.29 Aí, os com en dadores repartiam com os cu ras (ou vigários perpétu os) os réditos eclesiásticos, de acordo com os disposto n a carta de con cessão (Osório, 1736, p.90, n . 2). Freqü en tem en te, os com en dadores tin h am os fru tos das igrejas e os vigários as su as porções (Am aral, 1610, v. “Ben eficiu m ”, n . 11). Em Espan h a, foi este, além disso, o sistem a de distribu ição das terras das Am éricas pelos colon os. O com en dador foi origin ariam en te u m en carregado tem porário da adm in istração de u m território, com a percepção dos respectivos tribu tos e as ju risdições espiritu al e secu lar correspon den tes, en qu an to esta n ão se provessem defin itivam en te os respectivos ofícios. Mas esta idéia de precariedade foi se obliteran do progressivam en te. O CA SO D O CURATO D E SA N TA MA RIA D E VOUZELA , D A ORD EM D E MA LTA O ben efício cu rado de San ta Maria de Vou zela vagou por m orte em ou tu bro de 1663 [m ês do papa]. Matias de Araú jo Bah ia, obteve-o por con cu rso do Ordin ário. No en tan to, o Bailio de Leça, da Ordem de S. João de Jeru salém , qu e tin h a direito de padroado n o m esm o ben efício, apresen tou Man u el de Sou sa. Este foi ch am ado a ju ízo [pelo Procu rador da Mitra] para apresen tar as cartas apostólicas [ i.e., de n om eação pon tifícia], ten do o ju iz [delegado do Tribu n al da Nu n ciatu ra] revogado a su a posse do ofício, já in icada [por faltarem ao possu idor as cartas pon tifícias de n om eação, assu m in do, portan to, a com petên cia papal para a n om eação]. O 97 Antônio Manuel Hespanha Sen ado da Relação [de Braga], por via de recu rso a ele dirigido pela Mesa da Ordem [por n ão recon h ecer a existên cia de u m a reserva pon tifícia n este ofício], declarou in ju stas as sen ten ças do dito ju iz [dan do razão ao recu rso do apresen tado pelo Bailio].30 Toda a qu estão está em saber se a apresen tação deste ben efício está reservada à San ta Sé, n os seu s m eses, ou se esta reserva n u n ca vale, por se tratar de u m ben efício de Ordem Militar (Ibidem , n . 32). Esta qu estão liga-se à n atu reza do ofício con exo com o ben efício, pois era claro qu e os ofícios regu lares, m an u ais31 ou am ovíveis n ão estavam reservados (n . 32). Discu tível era, porém , se isto valia tam bém para os ofícios perpétu os da Ordem . Segu n do u m a opin ião, a Ordem podia apresen tar, sem reserva pon tifícia, ben efícios m an u ais, relacion ados com o m ú n u s específico da Ordem , e am ovíveis ad nutum . Mas já n ão gozava dessa isen ção n o qu e respeita aos ben efícios perpétu os (n . 35-6). A opin ião de Pegas é, con tu do, diferen te e oposta (cf. n . 156, p.210).32 A sen ten ça fin al do ju iz n o recu rso para ela in terposto da sen ten ça da Relação Arqu iepiscopal de Braga foi a segu in te: "O ben efício da Igreja de San ta Maria de Sou zelas vagou em ou tu bro, qu e é u m dos m eses reservados [à San ta Sé]; o provim en to dele perten ce à Sé Apostólica, pela regra oitava da Ch an celaria [Apostólica]. Qu an to m ais qu e desde o an o de 1566, está a Mitra daqu ele Arcebispado de posse de pôr em con cu rso o dito ben efício, sem em bargo dos privilégios qu e por parte daqu ela religião [de Malta] se alegam , pois [estes] falam n os ben efícios regu lares e m an u ais, com o são as preceptorias e vigararias u n idas às com en das, n as qu ais a Religião tem dízim os e ren das e se costu m am dar aos clérigos de h ábito dela … . Nada do qu e tem [do qu e ocorre] n o ben efício da con ten da, pois se n ão m ostra qu e em tem po algu m fosse servido por clérigos regu lares, an tes por secu lares do h ábito de S. Pedro, n em m en os ser u n ido às com en das, n em qu e a Religião ten h a n ele fru tos … . Nem obstam as cláu su las, e derrogações dos ditos privilégios [ i.e., dos privilégios de In ocên cia VIII relativos aos ben efícios das Orden s], pois a dita regra oitava tira e su spen de com exu beran tíssim as cláu su las e derrogações os efeitos de todos e qu aisqu er privilégios, de sorte qu e n ão ten h am lu gar, n em vigor con tra a reserva geral dos ben efícios [a favor da cú ria] n os oito m eses reservados … . Ju lgam os e declaram os o títu lo qu e o apresen tado pela Ven eran do Bailio tem n o dito ben efício por ilegítim o e n ão can ôn ico, e n ão perten cer por esta razão à Religião o direito de apresen tar n o dito ben efício, e m an dam os qu e sejam con servados em su a posse a San ta Sé Apostólica, e o Sen h or Arcebispo de o proverem por con cu rso n a form a da dita regra oitava e do Sagrado Con cílio Triden tin o …, Lisboa, 27.02.1677." (Ibidem , n . 29). A tese qu e faz ven cim en to é, portan to, a de qu e o ben efício cu rado da Igreja era do padroado com preen dido n u m a com en da da Ordem de 98 OS BENS ECLESIÁSTICOS NA ÉPOCA MODERNA. BENEFÍCIOS, PADROADOS E COMENDAS Malta, mas funcionalmente autônomo dela, já que visava à cura de almas e não a missão de proteção e administração que competia ao comendador. E não, conseqüentemente, um ofício regular ou manual, parte integrante da mesma comenda, relativo às funções que o comendador devia desempenhar. Em todo o caso, a opin ião dom in an te era a de qu e, depois da u n ião das Orden s à Coroa, os reis de Portu gal ficaram com o direito de, com o patron os, apresen tar os ben efícios e as com en das qu e se com preen dem n as coisas eclesiásticas das orden s (priorados, com en das, ben efícios e capelan ias), (Ibidem , n . 71). Pelo qu e, em virtu de deste padroado régio, estes ben efícios ficariam isen tos de reserva pon tifícia (Ibidem , n . 72, 125-30, 151). Tan to m ais qu e os ben s qu e são u n idos à coroa (com o os m estrados das orden s), gan h ariam a n atu reza de ben s da coroa, pois esta seria m ais forte do qu e a su a an terior n atu reza (n . 118, p.203).33 O caso d a Co m e n d a d e San ta Maria d e Pe re iro Em bargos de Diogo Soares [n eto de Diogo Soares] e João Alvares Soares e Migu el Soares e Vascon celos a u m alvará de D. Afon so VI qu e dava a com en da de San ta Maria de Pereiro ao Marqu ês de Cascais. “Mostra-se pelos em bargan tes con tra o em bargado ter El Rei de Espan h a, ain da qu e católico, in ju sto possu idor deste Rein o, n o tem po qu e o govern ava, feito m ercê a Diogo Soares da Com en da de San ta Maria de Pereiro em 4 vidas m ais, efectivas e de livre n om eação, além da su a [alv. 14.11.1636] … . Defen de-se o em bargado [Marqu ês de Cascais, gen ro do Marqu ês de Marialva], dizen do qu e o Marqu ês de Marialva fora com en dador da sobredita com en da, por m ercê do Sen h or Rei D. Afon so VI, o qu al lh e con cedeu em du as vidas m ais, e dan do-a depois em dote ao em bargado, qu e por m ercê do dito Sen h or fora su b-rogado n a m esm a vida do Marqu ês seu sogro …”.34 Descrição do caso. Diogo Soares, Secretário do Con celh o de Portu gal em Madrid, con stitu i u m morgado com os ben s qu e tem da Coroa e Orden s, in clu in do a comen da de San ta Maria de Pereiro (cf. p.134, n . 270). Nomeia n as qu atro vidas qu e tem n esta comen da Lu cas Soares, qu e in stitu íra como admin istrador do morgado e seu s su cessores de acordo com o pacto de in stitu ição do mesmo morgado e, depois das qu atro vidas, os su cessores destes segu n do a Lei Men tal (p.134, n . 270). Depois da Restau ração, Diogo Soares fica em Espan h a. A comen da é dada, por D. Afon so VI, ao Marqu ês de Marialva, qu e a dá de dote a seu gen ro, o Marqu ês de Cascais. Depois da paz de 1668, cu jas con dições estipu lavam o retorn o dos ben s con fiscados ou perdidos por cau sa da gu erra aos seu s an teriores titu lares, os h erdeiros de Diogo Soares – qu e, n o en tan to, se dispu tam en tre si acerca de qu em tem o melh or títu lo de h erdeiro – reclamam do Marqu ês de Cascais a comen da de San ta Maria. A prim eira decisão (Dou tor Jerôn im o Vaz Vieira, Ju iz dos Cavaleiros [?], 8.7.1680, p.119) é favorável a Diogo Soares, cu ja posição é patrocin ada por Pegas. 99 Antônio Manuel Hespanha As qu estões in ciden tais qu e se levan tam são: (a) A da legitimidade da concessão feita a Diogo Soares por um rei tirano. (b) A do alcan ce da rein tegração dos ben s n os seu s origin ários titu lares estabelecida pelo Tratado de Paz de 1668. (c) A da legitim idade da con stitu ição de u m m orgado com ben s da coroa ou das orden s. As qu estões qu e aqu i se levan tavam eram : (i) a da com patibilização do caráter vin cu lado (n a descen dên cia do in stitu idor) dos ben s do m orgado com o caráter precário da con cessão dos ben s da coroa e (ii) a da even tu al con tradição en tre as regras de su cessão de ben s da coroa estabelecida pela Lei Men tal e as con tidas n o títu lo de in stitu ição do m orgado. Qu an to à prim eira qu estão, a saída era exigir a au torização de con stitu ição de m orgado por parte do rei ou m estre, qu e valeria com o con firm ação prévia das su cessões fu tu ras e dispen sa das n orm as su cessórias da Lei Men tal (p.147, n . 332).35 Mas a qu estão prin cipal, pelo m en os do pon to de vista qu e aqu i m ais in teressa é a de saber se u m a com en da pode ser con cedida por m ais do qu e u m a vida, já qu e isso equ ivaleria à con cessão de cartas de expectativa, proibidas n os ofícios e ben efícios eclesiásticos (m as n ão n os ofícios secu lares, de qu e se davam alvarás de lem bran ça) (cf. p.131, n . 292-312). Se triu n fasse este pon to de vista, logo a prim eira vida a m ais seria ilegítim a, fican do a com en da vaga e poden do ser con cedida de n ovo a ou trem . Se n ão triu n fasse, a su cessão das n om eações feita por Diogo Soares seria válida, de m odo qu e a com en da n ão estaria vaga n o m om en to da su a con cessão ao Marqu ês de Marialva. E, com o a con cessão de ben efícios n ão vagos é n u la, n u la seria esta ú ltim a doação. A posição qu e faz ven cim en to é a de qu e as com en das n ão são ben efícios eclesiásticos, pelo qu e n ão se lh es aplica a regra da proibição de expectativas, qu e aliás era corren te con ceder em Portugal, justamente sob esta forma de concessão em vidas (n. 294-312). A ju stificação avan çada para o caráter n ão-ben eficial das com en das é a de qu e os com en dadores se lim itam a perceber fru tos separados do ben efício, n ão sen do por isso ben eficiados, m as adm in istradores ou depositários do ben efício (“os com en dadores só gozam dos fru tos tem porais, qu e se separam dos ben efícios n elas in clu ídas, os qu ais são govern ados por clérigos, a qu em som en te com pete o títu lo espiritu al”, n . 295).36 A sen ten ça defin itiva é dada a favor do Marqu ês de Cascais (p.146), com o fu n dam en to de qu e “os Sen h ores Reis destes Rein os com o Mestres das Orden s n ão podem validam en te dar vidas n as Com en das, n em expectativas a elas, por se regu larem n a opin ião de direito por ben efícios eclesiásticos, n os qu ais são proibidas e reprovadas as expectativas e fu tu ras su cessões pelos Sagrados Cân on es, em qu e o Mestre n ão pode dispen sar por ser Prelado in ferior ao Su m o Pon tífice” (p.146, n . 331). 100 OS BENS ECLESIÁSTICOS NA ÉPOCA MODERNA. BENEFÍCIOS, PADROADOS E COMENDAS O CA SO D A COMEN D A D E SOUSA , D A ORD EM D E SA N TIA GO 37 Com o se refere n o privilégio papal [o padroado da Igreja de Sou sa] era do Mosteiro de S. Migu el, da Ordem de S. Ben to, e em vida do dito João de Sou sa, foi tran sform ada em com en da de S. Tiago, de m odo qu e depois da morte deste voltasse à Ordem de S. Bento e ao dito mosteiro … . E depois disto, por con stitu ição de Xisto IV, foi determ in ado qu e, depois da m orte de D. João de Sou sa, D. Afon so V obtivesse a dita preceptoria ou com en da [agora perpetu am en te in corporada n a Ordem de San tiago], sen do con cedido a este rei qu e ficasse aos seu s su cessores e dos ou tros reis apresen tar para a dita com en da pessoa idôn ea 38 ... E assim , [an tes qu e a com en da fosse in corporada n os ben s da coroa], o rei doou este padroado e direito de apresen tação para a dita com en da ao dito João de Sou sa e seu s h erdeiros em perpétu o,39 doação con firm ada por In ocên cio VIII, o qu al, por cau tela, reservou perpetu am en te para o Mestre o direito de padroado e apresen tação de pessoa idôn ea para a dita preceptoria,40 (n . 5).41A Com en da de Sou sa era, portan to, u m a Com en da da Ordem de San tiago, em direito de propriedade, por privilégio dos Papas, com a terra e toda a ju risdição tem poral e algu n s ou tros ben s (n . 4).42 Os reis de Portu gal tin h am o padroado da com en da, poden do apresen tar com en dador, o qu al, en qu an to patron o da Igreja de Sou sa, apresen taria os seu s ben efícios, salva reserva cu m u lativa do Mestre de San tiago. Um a vez doada a com en da a D. João de Sou sa, este ficou su b-rogado n os direitos do rei doador. Com a in corporação do Mestrado de San tiago n a Coroa, o rei passa a gozar da reserva cu m u lativa qu e com petia ao Mestre. Há, portan to, qu e distin gu ir aqu i: (i) o direito de apresen tação do com en dador, qu e com pete a João de Sou sa e seu s su cessores; (ii) o direito em in en te do Mestre (rei) de n om ear com en dador n a falta ou dilação da apresen tação; (iii) o direito de apresen tação dos ben efícios da Igreja de Sou sa, de qu e era titu lar o com en dador.43 A prim eira qu estão qu e su rge refere-se à devolu ção su cessória. En qu an to u n s dos litigan tes preten diam qu e a devolu ção se fazia por lin h a prim ogen itu ral, com o n os ben s da coroa, ou tros defen diam a devolu ção su cessória com u m , com o n os padroados e, ou tros, fin alm en te, a in existên cia de devolu ção su cessória, com o n os ben efícios. Tu do depen dia, en tão, da n atu reza qu e prevalecesse n o objeto da con cessão (bem da coroa, padroado, ben efício). Ora n este caso, existem três dign idades distin tas: a de patron o da com en da, n a titu laridade da fam ília dos Sou sas, em qu e se su cede por via su cessória; a dign idade de com en dador, em qu e se é in vestido por apresen tação do patron o, con firm ada pelo Mestre (rei); os ben efícios do padroado da com en da, em qu e se é provido por apresen tação do 101 Antônio Manuel Hespanha com en dador. De qu alqu er m odo, com o a com en da foi doada a João de Sou sa an tes da su a in corporação n os ben s da coroa (n este caso, n o padroado real), tran sferia-se por direito h ereditário com u m e n ão por prim ogen itu ra, com o os ben s da coroa, deven do m an ter-se n os h erdeiros até qu e estes faltassem de todo ou dela fossem privados por delito; só en tão retorn an do à Ordem (Ibidem , n . 2-3).44 Eis u m a das opin iões: Neste processo [sobre a Com en da de Sou sa] n ão se litiga sobre ben s da coroa, n em de tal qu alidade qu e se h aja de su ceder n eles, e devolver-se a su cessão ... com o em ben s vin cu lados, m as trata-se de u m a com en da, qu e se deve repu tar por ben efício eclesiástico, e n a qu al se n ão pode en trar sem os legítim os e can ôn icos títu los de apresen tação do padroeiro, e con firm ação do m estre da Ordem , a qu e a dita com en da perten ce … do qu e se con ven ce in evitavelm en te n ão poder en trar n esta com en da qu em n ão for apresen tado pelos su cessores de João de Sou sa o Rom an isco, e con firm ado pelo m estre da Ordem , porqu e isto im porta ao direito de padroado e o declaram expressam en te as palavras da con cessão. Mostra-se qu e n esta form a se foram su ceden do os com en dadores qu e h ou ve depois do dito João de Sou sa, com o se vê de seis n om eações, e apresen tações: a prim eira de An dré Freire [com en dador], n om eado por seu pai João Freire [patron o da com en da], e con firm ado por El Rei com o Mestre; a segu n da de João de Sou sa [com en dador], apresen tado por falecim en to de Man u el Freire [com en dador an terior] por D. Mécia de Sou sa, e D. Gu iom ar de Sou sa, padroeiras [da com en da] …; a terceira, de Man u el Freire [com en dador], apresen tado por D. Fran cisca de Sou sa [padroeira] …; a qu arta, de João Freire [com en dador], coadju tor de seu pai Man u el Freire [com en dador an terior], con firm ada pelo Su m o Pon tífice, 45 a qu in ta por Man u el de Sou sa [com en dador], apresen tado por D. Fran cisca, D. Cecília, filh as e h erdeiras de João de Sou sa [padroeiras] … . O au tor, Alexan dre de Sou sa [com en dador], apresen tado por D. Fran cisca e D. Ursu la, religiosas do m osteiro de Jesu s de Aveiro, com o padroeiras e descen den tes do prim eiro dito adqu iren te João de Sou sa, e m ais próxim as u m grau n o paren tesco com o ú ltim o possu idor Diogo Freire [do direito de padroado sobre a com en da] qu e o opoen te Con de de Miran da ... As religiosas n ão são ilegítim as e, con form e o direito, capazes de apresen tar, sem qu e lh e obste a disposição da Lei Men tal, qu e dispõem qu e os padroados da coroa an dem em u m a só pessoa, e n o filh o varão m ascu lin o, porqu e com o fica con siderado este padroado n ão é da coroa, e foi dado an tes de se in corporar n ela, e ficou sen do h ereditário, e podem su ceder n ele as fêm eas, e se divide o direito de apresen tação por todos os paren tes, qu e estão em igu al grau 46 ... O qu e visto com o m ais qu e dos au tos con sta, om itin do ou tros fu n dam en tos m en os su bstan ciais, revogam a sen ten ça em bargada, e ju lgam a apresen tação feita n a pessoa do au tor Alexan dre de Sou sa por legítim a e bem feita, e qu e se lh e deve a con firm ação da com en da de qu e se trata, e su as perten ças ... Lisboa, 19.08.1653. 102 OS BENS ECLESIÁSTICOS NA ÉPOCA MODERNA. BENEFÍCIOS, PADROADOS E COMENDAS N OTA S 1. Em sen tido estrito, a praebenda ou canonica portio é aqu ela parte qu e se tom a da m assa dos ben s e proven tos dos eclesiásticos e se dá a cada u m com o arte su a (Vallen sis, 1632, p.442, n . 1); m as qu e, em bora se preste pelos ben s da Igreja, n ão se presta em razão do ofício divin o, m as em razão de trabalh o tem poral. 2. A primeira referência no C. I. C. reporta-se ao Concílio de Mogúncia (813) ( Decr. Greg., III, 48, 1). 3. TELES, M. G. De praeben dis et dign itatibu s. In : Commentaria perpetua in singulos textus quinque librorum decretalium. Lu gdu n i, 1693. v.III, tít. V, n . 12. 4. GMEINEIRI, X., 1835. II, 90, § 62 ss. 5. GMEINEIRI, X., 1835, II, 92, § 66; VALLENSIS, 1632, III, 5, 1, n . 7. 6. De fato, os ofícios m on acais (ou m an u ais) são dados e revogados ad nutum (à discrição); o con teú do das su as atribu ições tam bém depen de em absolu to do con ceden te (Fragoso, 1641, 1652. II, 854, § 12). 7. Sobre este tem a, v., v.g., BARBOSA, 1632, cap. IV; VALLENSIS, 1632, III, 5, 2, p.444; m ais recen tes, GMEINEIRI, X., X., X., 1835, II, 93, §§ 69 ss.; Carn eiro, 1869, 121 ss. 8. Sobre as eleições e os requisitos dos eleitos, v. GMEINEIRI, X., X., X., 1835, II, 104, § 88 ss. 9. Dado qu e esta reserva preju dicava os direitos dos patron os, h avia qu em restrin gisse fortem en te o âm bito da reserva pon tifícia, n ão a adm itin do n os ben efícios em padroado leigo, n os obtidos on erosam en te, n os ben efícios das orden s m ilitares(cf. Pegas, 1669, XI, ad 2,35, c. 117, 149 ss.). Além qu e a reserva pon tíficia n ão existia n os ben efícios regu lares ou m an u ais das orden s (cf. Pegas, 1669, XI, ad 2,35, c. 117, n . 35-6). 10. Nos ben efícios de padroado eclesiástico, a San ta Sé gozava de 8 m eses de reserva, fican do aos padroeiros apen as os m eses de m arço, ju n h o, setem bro e dezem bro (Con c. Triden tin i, sess. 24, cap. 18). 11. VALLENSIS, 1632, III, 7, § 2, p.451 ss. 12. Decretu m , II p., C. XVI, Q. VII, c. 33: “O m osteiro ou oratório in stitu ído can on icam en te n ão deve ser tirado do dom ín io do in stitu idor con tra a su a von tade, deven do-se perm itir-lh e qu e o en com en de ao presbítero qu e qu iser para a celebração dos ofícios sagrados, com o con sen tim en to do bispo da diocese”. Cf. tam bém Decretais, III, 38 (“De iu re patron atu s”). Sobre o padroado, ver Osório, 1736; AMARAL, 1740, ver. “Ju s patron atu s”; Cabedo, 1603; FRAGOSO, 1642, II, 689, § 7; VALLENSIS, 1632, ad III, 38; Gm ein eiri, 1835, II, 136 ss. 13. Concílio de Trento, "Padroado", sess. 25, cap. 9: "Assim com o n ão é ju sto preju dicar os legítim os direitos de padroado e violar as pias von tades dos fiéis qu an to à su a in stitu ição, tam bém n ão é de perm itir qu e, debaixo desta aparên cia, se coloqu em os ben efícios da Igreja em servidão, o qu e m u itos fazem de form a im pú dica. Assim , para qu e se observe em tu do u m equ ilíbrio devido, o San to Sín odo recon h ece com o títu lo do padroado a fu n dação ou a doação qu e se dem on stre provada por docu m en to au tên tico e ou tras provas requ iridas por direito; ou tam bém por m ú ltiplas apresen tações por tem po an tiqu íssim o qu e exceda a m em ória dos h om en s ou de ou tro m odo equ ivalen te, segu n do a disposição do direito. No en tan to, n aqu elas pessoas, com u n idades ou u n iversidades n as qu ais aqu ele direito as m ais das vezes costu m a ser obtido sobretu do por u su rpação, exige-se u m a prova m ais plen a e exata com o títu lo verdadeiro. Nem a posse im em orial lh es valerá sen ão qu an do, além de ou tras coisas n ecessárias, se provarem apresen tações, con tin u adas, e pelo espaço n ão in ferior a cin qü en ta an os, e sortidas de efeito. Todos os restan tes padroados n os ben efícios, tan to secu lares, com o regu lares, ou paroqu iais, ou dign idades, ou qu aisqu er ou tros ben efícios, em catedral, ou igreja colegiada, ou privilégios con cedidos, tan to com efeito de padroado com o qu alqu er ou tro direito de n om ear, eleger ou apresen tar para qu an do vagu em , são totalm en te revogados, sen do tida com o n u la qu alqu er posse deles, exceto os padroados sobre igrejas, catredrais e ou tros qu e perten çam ao im perador ou aos reis ou possu idores de rein os, bem com o ou tras en tidades su blim es e prín cipes su prem os qu e ten h am n os seu s dom ín ios direitos im periais; 103 Antônio Manuel Hespanha assim com o os con cedidos em favor de estu dos gerais. Assim , os ben efícios são con cedidos com o livres pelos seu s colatores, ten do as provisões destes plen o efeito”. 14. Tal é a opin ião de Gm ein eiri, X., 1835, II, p.144, § 173. 15. Falava-se de pen são ou porção a respeito de u m a prestação periódica im posta sobre o ren dim en to de certo ben efício pelo titu lar da su a colação ( i.e., por aqu ele a qu em com pete prover esse ben efício) a favor de u m a pessoa eclesiástica ou leiga (cf. Lobão, 1825, 21 ss.). As pen sões podiam ser im postas pelo papa, pelos bispos, pelos grão-m estres das orden s m ilitares e pelos reis (com o grão-m estres ou padroeiros). V. AMARAL, 1740, ver “Pen sio”, n . 2 ss. 16. Se o bispo orden ar clérigos sem titu lu m tem qu e lh es prestar alim en tos dos seu s ben s, Teles, 1693, p.118. 17. AMARAL, 1740, v. “Ben eficiu m ”, n . 9. Este é u m dos gran de tem as do Con cílio de Tren to em m atéria ben eficial: cortar os abu sos de ben eficiados au sen tes (cf. obrigações do ben eficiado: residên cia assídu a, Gm ein eiri, X., X., 1835, II, 156 § 200; Tren to: sess. 23, cap.1). No en tan to, a prática con tin u ou a ser bastan te perm issiva, adm itin do, n om eadam en te, a falta de residên cia n os ben efícios sem cu ra de alm as (AMARAL, 1740, “Ben eficiu m ”, n . 63). 18. AMARAL, 1740, ver “Ben ficiu m ”, n . 17. 19. Já n o caso das sim ples preben das (v. supra), n ão m ilita esta razão, pelo qu e podem ser au feridas por leigos. 20. O ben efício cu rado exige 25 an os e ordem clerical; os ou tros exigem pelo m en os 14 an os (Tren to, sess., 23, c. 6 de reform at). Sobre os requ isitos pessoais para ter ben efícios, v. FRAGOSO, 1642, II, p.663, § 2, n . 4 ss. 21. Cf. AMARAL, 1740, ver “Ben eficiu m ”, n . 8. Em con trapartida, Baptista Fragoso (FRAGOSO, 1642, II, p.663, § 2, n . 4-5.) defen de qu e o bispo pode con ceder oficios a seu s con san gü ín eos idôn eos, desde qu e o n ão faça com escân dalo; apen as n ão lh es pode con ceder os ofícios ren u n ciados em su as m ãos por ou trem , n . 2. 22. No padroado real portu gu ês, a apresen tação precedia exam e e in form ação, n orm alm en te tirada pelo deão da capela real (Cabedo, 1602, c. 19, p.69, n . 1. 23. Discu te a qu estão de se n os ofícios secu lares ou eclesiásticos são de preferir os n obres, Teles, 1693, p.167, n . 4 (n ão são de preferir os n obres pois n ão é a n obreza do n ascim en to m as das virtu des e da vida h on esta qu e torn am o servidor grato e idôn eo para Deu s; para o govern o da Igreja devem ser eleitos n ão os n obres pela carn e m as os h u m ildes e pobres, n . 4).; apoia-se em S. Tom ás, De regim. principum ., lib. 4, cap.15. 24. Commendare é depositar, l. com m en dare, D. 50, 16. 25. Ius parochiale ad fundamenta genuina ius ecclesiasticum protestantium , Hallae, 1721. 26. PEREIRA, J. S. Politica indiana. Madrid: Bib. de au tores españ oles, 1972. 27. Sobre o regim e das com en das, em Portu gal, ver Carvalh o, 1693. 28. Ver lista das com en das de Cristo do padroado da coroa (“as cin qü en ta com en das do padroado”), em Cabedo, 1602, cap.18, p.66, n . 1. 29. Cabedo, 1602, cap.18, n . 2-5; Ben to Cardoso Osório diz qu e “os reitores das igrejas do padroado real, n as qu ais foram con stitu ídas com en das, con tin u am a apresen tar os cu ras e dem ais ben efícios, com o an tes” (Osório, 1736, p.91, n . 1; p.106, n . 4). Ver diplom a sobre a repartição das apresen tações dos ben efícios das com en das e seu s ren dim en tos en tre com en dadores e reitores em Osório, 1736, p.93. l 30. PEGAS, M. Á. Commentaria ad Ordinationes, XI, ad 2,35, c. 117, n . 31. 31. A manualitas con siste n a obediên cia devida pelos regu lares (n . 34). 32. Para u m ou tro con flito deste tipo en tre a Ordem de Avis e o Arcebispo de Évora, cf. ibidem , n . 102. 33. Em todo o caso, existe, n ou tros con textos, a opin ião exatam en te con trária, de qu e os ben s da coroa, qu an do doados à Igreja, perderiam a su a prim eira n atu reza. 104 OS BENS ECLESIÁSTICOS NA ÉPOCA MODERNA. BENEFÍCIOS, PADROADOS E COMENDAS 34. PEGAS, M. A. Tractatus de exclusione, inclusione, successione & erectione maioratus. Ulyssipon e, 1685. v.I, p.116 ss. 35. “Nos ben s da coroa, se o Prín cipe os con cede para u m m orgado, ficam vin cu lados e regu lam -se pelas vocações do m orgado” (cf. IV, ad I, 50, gl. 1, p.192, n . 12 ss.). Ou se a doação foi feita a algu ém e seu s filh os, fora da lei m en tal em perpétu o, pode fazer-se u m vín cu lo de tais ben s”, PEGAS, ibidem , p.151. 36. A qu estão da n atu reza ben eficial ou não das comendas é objeto de larga controvérsia nos finais do século XVII, conforme se pode ver em Carvalho, 1693, enucl. 2 e 5. O autor inclinava-se para a opinião negativa, fundado principalmente (i) no fato de que os comendadores não tinham qualquer múnus espiritual e (ii) na existêncis de um costume inveterado de atribuir expectativas das comendas (ver exs. em Carvalho, 1693, I, p.357 ss.). Mas, em contrapartida, existiam também determinações explícitas em contrário, quer em diplomas papais, quer em decisões da Mesa da Consciência e Ordens ( v.g., em 8.9.1574: “nula toda a promessa de comenda, ainda que seja com a declaração, que haverá efeito, sendo hábil a pessoa a quem se prometeu, e assim é nula a tença em defeito de comenda” (Carvalho, 1693, en. 2, n. 4.) 37. PEGAS, M. Á., 1669-1703. XI, ad 2,35, c. 117, n . 1 ss. 38. Ou seja, o rei e su cessores ficaram com o direito de padroado, com direito a apresen tar o com en dador. 39. Qu e, assim , ficaram patron os da com en da. 40. Trata-se de u m a reserva cu m u lativa e n ão privativa, poden do o Mestre de San tiago prover a com en da n a falta ou dilação da apresen tação do patron o (cf. n . 5). 41. “… con sta qu e sen do com en dador do Mosteiro e Igreja de Sou sa, João de Sou sa, a qu e ch am arão o Rom an isco, em su a vida som en te, a fez o Su m m o Pon tífice com en da in perptu u m e con cedeu o direito de padorado dela ao sen h or rei D. Afon so V, para ele e para seu s su cessores, e o m esm o sen h or, an tes qu e este padroado se in corporasse n a Coroa, o tran sferio e fez doação dele ao dito João de Sou sa, para ele e seu s h erdeiros e su cessores, ju re h ereditário, assim com o pelo Papa lh e fora con cedido, orden an do qu e os Sen h ores Reis seu s su cessores lh e n am pu zessem a isso dú vida, porqu an to dem itia de si an tes de ser patrim ôn io real, e se in corporar n a Coroa”. 42. “Na qu al n ão só h á dízim os, qu e foram da Igreja, m as ben s próprios, e aqu ella villa, e ju risdição, qu e os Sen h ores Reis deste Rein o de seu patrim ôn io secu lar, e da Coroa lh e doaram ", p.211, col 1. 43. Note-se qu e, n as comen das, o papa não goza da reserva pontifícia. De fato, “as comendas e benefícios das Ordens não costumam devolver-se ao ordinário, nem ao Papa, mesmo que os benefícios vaguem na Cúria; existe uma bula e privilégio de Inocêncio VIII, segundo o qual não se aceitam provisões apostólicas para o provimento das comendas, pelo que a sua provisão nunca fica reservada ao Pontífice, mas sim ao Mestre e patrono”, PEGAS, ibidem, n.21. 44. Segundo uma outra opinião, constante do processo, "estes bens, por uma vez que foram doados à Igreja, perderão a natureza de bens da Coroa, e não ficam sujeitos à Lei Mental", n. 160, p.212, col 1. 45. Trata-se, aparen tem en te, de u m a colação abu siva e con flitu al com a an terior, pois n ão se verifica a apresen tação pelo patron o, além de qu e o papa n ão dispu n h a de reserva n os ben efícios das Orden s Militares. 46. Usan do dele ou por votos, ou por tu rn o. 105 Antônio Manuel Hespanha B IBLIOGRA FIA . AMARAL, A. C. do. Liber utilissimus judicibus et advocatis. Con im bricae, 1740. 2 v. BERNHARD, J. et al. L'époqu e de la réform e et du con cile de Tren te. In : GAUDEMET, J., LE BRAS, G. Histoire du droit et des institutions de l' Eglise en Occident. Paris: Cu jas, 1990. t.XIV, p.346-77. CABEDO, J. de. De patronatibus ecclesiarum regiae coronae Lusitaniae. Ulyssipon e, 1603. CARVALHO, L. P. de. Enucleationes ordinum militarium. Ulyssipone, 1693. FRAGOSO, B. Regimen reipublicae christianae. Collon ia Allobrogu m , 16411652. 3 v. GMEINEIRI, X., X., X. Institutiones iuris ecclesiastici. Con im bricae, 1835. MENDO, A. De ordinibus militaribus, disquisitiones canonicae. Lu gdu n i. 1668. NORONHA, C. de. Allegação de direito em favor da exempção das Ordens militares, e cavalleiros dellas. Lisboa, 1641. OSÓRIO, B. C. Praxis de patronatu regio, & saeculari. Ulysipon e, 1726. PEGAS, M. A. Commentaria ad Ordinationes Regni Portugalliae. Ulyssipon e, 1669-1703. t.12 + 2. TELES, M. G. De praeben dis et dign itatibu s. In : ___. Commentaria perpetua in singulos textus quinque librorum decretalium . Lu gdu n i, 1693. v.III, tít.V, p.115 ss. VALLENSIS, A. (del Vau lx, An drea) Paratitla sive summaria et methodica explicatio decretalium . Lovaii, 1632 (m axim e, l. 3, tít. 5, § 1 [“De praeben dis et dign itatibu s”]). 106 capítu lo 7 PORTUGA L E A EUROPA N A ÉPOCA MOD ERN A Maria do Rosário Th em u do Barata* Para se desen volver este tem a dever-se-á aten der, n ecessariam en te, pela própria evolu ção h istórica portu gu esa e pela em ergên cia con com itan te da gran de n ação brasileira, a u m terceiro term o: o m u n do u ltram arin o. Desta relação, n ão a dois m as a três, irá se tratar a segu ir, con scien tes de toda a respon sabilidade de u m passado e de toda a expectativa de u m presen te n o qu al, descon h ecidos pela m aior parte dos círcu los de opin ião os verdadeiros con torn os do Tratado de Mastrich t, sobre as m ú tu as relações Portu gal – Brasil perpassa o receio da secu n darização dos laços qu e in trín seca e in dissociavelm en te os ligam . Ecos de m al fu n dadas in terpretações, de fu gazes deslu m bram en tos por realidades com as qu ais, con trariam en te ao qu e possa parecer, Portu gal n u n ca deixou de estar fam iliarizado, escolh en do m u ito em bora vias altern ativas; seqü elas de u m en ten dim en to direcion ado da História para o terceiro m ilên io, privilegian do u m a ten dên cia política m ajoritária e com o tal apresen tada com o triu n fan te; in terrogação n acion al sobre o destin o h istórico após u m a revolu ção política qu e preten deu resolver ao m esm o tem po u m a qu estão de regim e e u m a presen ça h istórica em n ível m u n dial: todos estes elem en tos in flu em n a in terpretação h istórica dos tem pos passados e, m u ito n itidam en te, n o cam po do estu do das relações extern as, in tern acion ais e diplom áticas. Ju lgam -se estas, tam bém , em paralelo com os ju lgam en tos eu ropeu s da política in tern acion al desde a Gu erra de 1939-1945, e essa avaliação vai, por vezes, n o paralelo qu e estabelece, dem asiado lon ge, procu ran do sim ilitu des on de elas n ão existem , n ovidades on de h á a con stân cia e, freqü en tem en te, n ão aceitan do o en riqu ecim en to de perspectivas con ju n tas e in terdisciplin ares qu e n ão falseiem n em obliterem os fatos h istóricos. Com paixão ou sem ela volta-se à História, m as m u itas vezes à h istória-tribu n al, tão desacon selh ada pelos n om es qu e se im põem en tre os h istoriadores, com o Marc Bloch ou Lu cien Febvre. Mais se eviden cia qu e, com todo o rigor m etodológico dos n ovos recu rsos in terdisciplin ares postos ao serviço da in terpretação h istórica, o con h ecim en to dos fatos h istóricos é e será in dispen sável e in su bstitu ível. E isto n ão é pu ro h istoricism o, a m en os qu e seja a perm an ên cia do cern e de verdade qu e o h istoricism o en cerra. E volta a ser preciso en carar a História de Portu gal n o con ju n to das coorden adas políticas, cu ltu rais, religiosas e n ão esqu ecer as geográficas. 107 Maria do Rosário Themudo Barata No an o (1997) em qu e a cu ltu ra portu gu esa deixa de con tar en tre os vivos com Orlan do Ribeiro, pertin en te con tin u a a su a reflexão m etodológica sobre as relações de Portu gal com o Mediterrân eo e com o Atlân tico, desde sem pre e n ão só desde o delin ear da expan são u ltram arin a qu atrocen tista. E com esta reflexão do ilu stre m estre, ou tra de ou tro m estre n ão m en os ilu stre Jorge Borges de Macedo, falecido em 1996, se vem en tretecer: a do con dicion alism o geográfico, estratégico, cu ltu ral portu gu ês de du as fron teiras igu alm en te presen tes n a História de Portu gal, a terra e o m ar, a Hispân ia e o Atlân tico 1. Creio qu e am bas as posições são a ch ave da explicação das relações de Portu gal com a Eu ropa n os tem pos m odern os, com o procu rarei explicitar de segu ida. Estas observações são motivadas pelo que a opinião comum transmite de interrogações e a que, de uma forma ou de outra, a historiografia portuguesa tem vindo a responder, numa produção historiográfica variada e questionadora do sentido global da história portuguesa. Tal preocupação é patente nas obras sobre o século XX, as Repúblicas, Salazar, Marcelo Caetano, a participação de Portugal nos conflitos internacionais, o processo de emancipação dos territórios sob soberania de Portugal, as campanhas militares nos territórios do Ultramar, a Revolução de 25 de abril de 1974, mas tal atitude também explica terem surgido novas Histórias de Portugal, em que se citam as de Joaquim Veríssimo Serrão, João Medina, Joel Serrão e Oliveira Marques, José Mattoso. Tempo de dúvidas e de mudanças para Portugal este último quartel do século XX, a perspectiva histórica traz a segurança de uma seqüência de vida para uma nação e um estado e a esperança inconformista num futuro não previamente decidido. Em term os do estu do das relações in tern acion ais, h á h oje a n ecessidade de reavaliar o in teresse sem pre m an tido por Portu gal qu an to às relações in tern acion ais, evidên cia qu e n ão deve ser su bstitu ída pela afirm ação de isolacion ism o com qu e se qu er cen su rar o regim e con tra o qu al se pron u n ciou a Revolu ção do 25 de abril de 1974. E n essa rein serção do tem a das relações in tern acion ais de Portu gal, n ão só m as tam bém com a Eu ropa, h á qu e recolocar a dicotom ia qu e caracterizou a h istória portu gu esa n os tem pos m odern os, ou seja, a presen ça con stan te de atlan tism o e de eu ropeísm o, n ão con traditórias, e qu e, n o decorrer da h istória, a política extern a portu gu esa avaliou e in tegrou n u m a con tin u idade de ação de estado soberan o. Tu do são m otivos qu e explicam o in teresse e a n ecessidade de se debater a realidade docu m en tada pela História, qu an to aos tem as das relações in tern acion ais de Portu gal. Tem a tratado com o particu lar pelas obras e au tores qu e referim os, o seu tratam en to global teve a servi-las, em obras especializadas, a aten ção de diplom atas e professores u n iversitários de m érito. Cou be a precedên cia a Edu ardo Brazão, gran de sen h or da diplom acia 108 PORTUGAL E A EUROPA NA ÉPOCA MODERNA portu gu esa qu e põs a su a excepcion al experiên cia n este cam po ao serviço da h istória das relações diplom áticas de Portu gal n a época m odern a, com ên fase para as gran des cortes da Eu ropa on de avu lta a San ta Sé. Diplom ata e Professor, escreven do para en sin o u n iversitário e para a form ação de especialistas, José Calvet de Magalh ães, por su a vez, in sistiu n a n ecessidade de esclarecer, diferen cialm en te, relações extern as e h istória diplom ática e verificar a m etodologia específica da ú ltim a. Professor de Direito, Pedro Su arez Martin ez deu -n os u m a visão de seqü ên cia n a su a História Diplom ática de Portu gal. Professor de História de in igu alável procu ra teórica e expositiva n o dom ín io da h istória diplom ática com o cam po de relação das n ecessidades do m eio, das forças econ ôm icas e sociais e das opções políticas e cu ltu rais n u m a avaliação estratégica, Jorge Borges de Macedo apresen tou , após o seu en sin o u n iversitário e n os in stitu tos de altos estu dos m ilitares e diplom áticos, a su a História diplomática portuguesa. Constantes e linhas de força. Estudo de geopolítica. Para a época con tem porân ea, An tôn io José Telo tem tratado, com acu idade, por seu lado, a caracterização de u m cam po de atu ações m al con h ecidas e freqü en tem en te m al exploradas. A par da tem ática geral, o in teresse pelo Atlân tico Su l e pelo desen volvim en to do Brasil é, m an ifestam en te, u m dos gran des tem as do m agistério de Joaqu im Veríssim o Serrão, de Lu ís Ferran d de Alm eida e de Eu gên io Fran cisco dos San tos.2 Desde os prim órdios do tem po m odern o, Portu gal m an ifestou -se com o u m a das n ações qu e m ais cedo deu form a a u m Estado, sín tese de u m rei e de u m rein o, com in stitu ições, território, cu ltu ra e au ton om ia econ ôm ica, perfilan do-se n o areópago das n ações cristãs com o con stan te aliada do papado, recon h ecen do a m atriz cristã e latin a da su a tradição h istórica, caldeada com as várias cu ltu ras e etn ias qu e en riqu eceram o seu con vívio em tem pos m edievais (su eva, goda, h ebraica, m u çu lm an a). Experim en tan do e extrain do da experiên cia u m a atitu de política de acau telam en to peran te a existên cia estru tu ral de du as fron teiras de equ ivalen te im portân cia, a terrestre e a m arítim a, o fim dos tem pos m edievais em Portu gal e o in ício das diretrizes m odern as afirm am -se n a 2ª. din astia, de D. João I a D. João II, com eçan do, n esta m esm a altu ra, aqu ilo a qu e Jorge Borges de Macedo ch am ou de “exportação de estado”, ou seja, a exportação, para áreas civilizacion ais extra-eu ropéias, dos m odelos de organ ização política, social, econ ôm ica, cu ltu ral e religiosa já experim en tados n a Eu ropa, n o sen tido de con tribu ir para u m a relação global dos vários con textos evolu tivos à escala m u n dial(3).3 Tal m ovim en to coexistiu com a afirmação da mais an tiga alian ça portu gu esa com a In glaterra n o Tratado de Win dsor de 1386 e n o casam en to do rei de Portu gal com a filh a do Du qu e de Len castre, com o estreitam en to dos vín cu los fam iliares e de cooperação cu ltu ral e econ ôm ica com o Grão Du cado da Borgon h a, com o casa- 109 Maria do Rosário Themudo Barata m en to da In fan ta D. Isabel, filh a de D João I e de D. Filipa de Lan castre, com o Du qu e Filipe o Bom , sen do os pais de Carlos, o Tem erário, com as alian ças fam iliares e relações políticas de ou tros prín cipes de Avis com a realeza e a gran de n obreza de Aragão e Hu n gria, a qu e se vêm ju n tar laços com as cortes italian as e m ais tarde com o próprio Im pério Alem ão (casam en to de D. Leon or irm ã de D. Afon so V com o Im perador Frederico III), en qu an to, con com itan tem en te, se verificava o casam en to de várias in fan tas portu gu esas com os reis de Castela. Mas já ou tra direção de desen volvim en to tom ava a vida portu gu esa: com Ceu ta, em 1415, com eçava a con qu ista de terras african as, com Gon çalves Zarco, em 1419, e com Tristão Vaz Teixeira e Bartolom eu Perestrelo, com Porto San to e Madeira, com eçava o povoam en to das Ilh as do Atlân tico. A Ordem de Cristo, sob a direção do In fan te D. Hen riqu e, tom ava a diretriz da expan são portu gu esa, liderada pela coroa a partir de D. João II. A costa african a era recon h ecida e freqü en tada, perm itin do, após dobrar o Cabo Adam astor por Bartolom eu Dias n o com eço do an o de 1488, o su cesso da viagem de Vasco da Gam a até a Ín dia em 1498. Dois an os depois era a oficialização do con h ecim en to das Terras de Vera Cru z, o Brasil. Fatos qu e pressu põem a afirm ação de u m Estado para serem possíveis e para serem aceitos já em n ível in tern acion al, dada a con corrên cia de idên tico m ovim en to, de Castela para as Can árias e de Castela e Aragão n o Norte de África, e do con com itan te in teresse de viajan tes italian os e do Norte da Eu ropa, eles coexistem com a presen ça portu gu esa n os assu n tos eu ropeu s. Pois são con com itan tes o fortalecim en to dos laços econ ôm icos e cu ltu rais com a Flan dres e com o Norte e Cen tro da Eu ropa, através das feitorias de Bru ges e An tu érpia, bem com o a presen ça n o Mediterrân eo em con ju n to com os m ercadores aragon eses, catalães e italian os, o jogo político de equ ilíbrio das potên cias italian as da Paz de Loddi e as ten tativas políticas de afirm ação do Papado de Nicolau V e de Pio II, com o apelo à cru zada e à liga con tra o Tu rco, a qu e D. Afon so V preten de respon der. O rei de Portu gal, gorada a cru zada, in vestirá n as cam pan h as african as, m as fica registrada a su a atitu de n o debate dos tem as qu e in teressavam os vários rein os eu ropeu s. Con h ece-se, da m esm a form a, a im portân cia qu e assu m iu a presen ça dos legados portu gu eses n os con cílios do sécu lo XV, bem com o n as u n iversidades eu ropéias. Com o provas sign ificativas desta avaliação podem apon tar-se, para a segu n da m etade do sécu lo XV, dois tratados fu n dam en tais: o de Alcáçovas-Toledo (1479/ 80) e o de Tordesilh as (1494). Negociados n o âm bito pen in su lar, para resolver, o prim eiro deles, o con ten cioso en tre as casas rein an tes de Portu gal e Castela, sobre os problem as dos acordos de pescas, da posse das Can árias e de u m a dem arcação de áreas de expan são m arítim a 110 PORTUGAL E A EUROPA NA ÉPOCA MODERNA pelos paralelos, dem on stran do a m aior preocu pação pelos territórios african os e m editerrân icos; celebrado, o segu n do, com o o cu lm in ar da m ú tu a avaliação en tre D. João II e os Reis Católicos Fern an do e Isabel, de Aragão e Castela, e propon do a divisão do globo terrestre em dois h em isférios dem arcados por u m m eridian o a 370 légu as das ilh as de Cabo Verde para a parte do Poen te. Este tratado provava a im portân cia de qu e o Atlân tico se revestia para os poderes pen in su lares n o fin al do sécu lo XV, talvez m ais do qu e u m a visão m u n dial, qu e poderá su rgir com o forçada se se aten der à preocu pação fu n dam en tal expressa n os próprios tratados qu an to à vigilân cia do acesso aos portos pen in su lares e a Lisboa, prim eiro porto de en trada n as viagen s de regresso e se se lem brar o debate qu e m an ifesta as dú vidas qu an to à form a de dem arcar o m eridian o n as áreas do Pacífico. Mas a form u lação das próprias dú vidas tem a van tagem de datar, de m u ito cedo, o in teresse pelo con h ecim en to geográfico da Terra, qu e acom pan h a toda a fase das n avegações portu gu esas m edievais e m odern as. Em com paração, a atitu de dos ou tros Estados eu ropeu s em term os de relações extern as n a Eu ropa eviden cia ou tras direções e ou tras precedên cias, se bem qu e con tem porân eos. Com eçava, em 1498, o avan ço do rei de Fran ça à con qu ista do rein o de Nápoles, prim eiro passo para as Gu erras de Itália, qu e ocu pam as várias potên cias eu ropéias, em várias fases e com vários protagonistas, que só se solucionarão no tempo de Filipe II de Espan h a, provada a in eficácia da Liga Perpétu a dos Estados Italian os 30 an os an tes, com a aceitação da Fran ça de Hen riqu e II, n a ten tativa de debelar o avan ço do Tu rco Otom an o e de con segu ir a su a con ten ção n o Mediterrân eo Orien tal e qu an do am bos os reis coin cidiam n a von tade de su ster o avan ço da reform a protestan te. Peran te estes in teresses gerais da Eu ropa, a aten ção pelo Atlân tico tin h a, n o fin al do sécu lo XV e n o prin cípio do sécu lo XVI, em Portu gal e em Espan h a os prim eiros defen sores, o qu e n ão qu er dizer qu e h ou vesse desin teresse pelo qu e se passava n a Eu ropa. E a prova m ais clara é o debate con ju n to dos tem as do ren ascim en to cu ltu ral e artístico e dos tem as da expan são, a qu e a produ ção da im pren sa se dedica con com itan tem en te. Mas retom em os as con siderações acerca dos acordos in tern acion ais n o com eço da Modern idade, ou seja, n o tem po de D. João II e dos Reis Católicos. A este tem po segu e-se o rein ado de D. Man u el I. É o tem po da vice-realeza da Ín dia, dos prim eiros bispados u ltram arin os, do prestígio da Casa da Ín dia e da Feitoria de An tu érpia. É o tem po das relações de Portu gal com o Im pério de Maxim ilian o, das em baixadas de au scu ltação e aproxim ação dos dois im périos, con tin en tal e m arítim o, propon en tes am bos de u m a icon ologia de triu n fo político, u m o Sacro Im pério Rom an o Germ ân ico, o ou tro o do sen h orio da con qu ista, n avegação e com ércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Ín dia. Expoen tes cu ltu rais de dim en são eu ro- 111 Maria do Rosário Themudo Barata péia, Dam ião de Góis, Erasm o,Tom ás Moru s e Albrech t Du rer são prova da con vergên cia dos seu s in teresses. Tal posição a n ível extern o n a Eu ropa é acom pan h ada por u m processo de in stitu cion alização e desen volvim en to in tern o em Portu gal, qu e h averá in teresse em recordar em traços m u ito gerais. Defin ido o esqu em a cen tral das in stitu ições e a orden ação dos gru pos sociais n as Ordenações, dele decorre ou com ele se relacion a a orgân ica das ou tras in stitu ições e das relações dos gru pos sociais. Corte e poder cen tral, os Gran des Tribu n ais, a Fazen da, as n ovas leis da gu erra, a reform a dos forais, a Casa da Ín dia, a Mesa da Con sciên cia, a In qu isição, os diversos Regim en tos qu e acom pan h am a expan são u ltram arin a, o m ecen ato artístico e a expressão de u m estilo porven tu ra portu gu ês design ado por Man u elin o, u m a cu ltu ra h u m an ística e de experiên cia, eis u m con ju n to de fatores qu e n ão se com padece com qu alqu er avaliação desvalorizan te em relação à Eu ropa. No en tan to, h á u m a perda de poder efetivo n o fin al da Din astia de Avis, u m a qu estão in stitu cion al de regim e absolu to de m on arqu ia h ereditária e de situ ação estratégica. Portu gal vai perder a capacidade de optar peran te a diversidade do jogo de alian ças n a Eu ropa, vai perder a m an u ten ção da vigilân cia política e diplom ática e até, segu n do Jorge Borges de Macedo, vai perder a posição de sign ificado especial peran te a San ta Sé. Para isso con tribu irá o fato de am bas as fron teiras, terrestre e m arítim a, serem dom in adas pelo m esm o poder, o de Espan h a. Tu do isto foi tradu zido e levou à perda da In depen dên cia em 1580. A partir daqu i, tam bém , o in terlocu tor dos in teresses m ajoritários da expan são u ltram arin a peran te a Eu ropa passava a ser o rei de Espan h a. Como se explica este sentido de evolução após o reinado de D. Manuel I? Tin h am su cedido diversos tem pos e diversos protagon istas. Por m orte dos Reis Católicos e do Im perador Alem ão, tom ara corpo o Im pério de Carlos V, con tin en tal e m arítim o. Com o n ovo poten tado o rein o de Portu gal celebrara o Tratado de Saragoça de 1529 qu e teve por fim esclarecer a dem arcação do m eridian o orien tal e a qu estão das Molu cas, n u m a altu ra em qu e o Im perador tom ava parte n as gu erras de Itália e os seu s exércitos saqu eavam Rom a. No en tan to, Carlos V será coroado pelo Papa, sen do o ú ltim o im perador a sê-lo. Em relação ao equ ilíbrio pen in su lar, os casam en tos de Carlos V com D. Isabel irm ã do rei portu gu ês e o casam en to de D. João III com a irm ã m ais n ova do Im perador, D. Catarin a de Áu stria, reforçavam as possibilidades de u m dia se verificar a u n ião de poderes, a u n ião n a Pen ín su la Ibérica peran te a Eu ropa, qu e arrastaria, con seqü en tem en te, a u n ificação da in flu ên cia expan sion ista n os territórios de além -m ar. Mas, peran te os problem as su rgidos n os vários territórios de seu dom ín io, aberta a gu erra com os protestan tes, reacesa a lu ta con tra o Tu rco, m an tidas as divergên cias políticas com a Fran ça, n ão h á, ao tem - 112 PORTUGAL E A EUROPA NA ÉPOCA MODERNA po, celebração de u m acordo in tern acion al qu e vin cu le, n a Eu ropa, a apreciação política de am bas as dim en sões, a dim en são con tin en tal e a dim en são m arítim a. En qu an to os assu n tos da expan são eram debatidos en tre Portu gal e Espan h a, n a política eu ropéia in tern a o equ ilíbrio era procu rado por u m a política de alian ças e diplom acia fam iliar pelo im perador, qu e, n ão obstan te, con siderará ter de abdicar e dividir o seu vasto Im pério, divisão qu e leva a efeito em 1555 e em 1556 e qu e afasta os territórios alem ães dos territórios da expan são, con fiados a seu filh o Filipe II de Espan h a, ju n tam en te com Nápoles, Milão, o Fran co Con dado e os Países Baixos. A diversidade de in teresses pela expan são u ltram arin a, por parte dos vários rein os eu ropeu s, con trapu n h a-se à posição m ajoritária de Filipe II e o prim eiro e m ais im portan te con flito exprim e-se n a revolta das Provín cias Flam en gas. Man ifestan do a oposição qu e se gen eralizava n a Eu ropa à h egem on ia de Filipe II de Espan h a, 3 an os depois da partilh a do Im pério, em 1559, Isabel I de In glaterra e a Fran ça apoiarão os Países Baixos. Hen riqu e IV recon h ecerá, em 1609, a separação das Provín cias Un idas n a Un ião de Utrequ e. E em breve se desen h a o su rto da expan são u ltram arin a h olan desa. Para trás ficavam os con flitos da coroa portu gu esa com algu n s rein os eu ropeu s n o qu e respeitava a expan são atlân tica, casu ística de qu e foi expressão o Tribu n al de Presas de Bayon n e, prim eiro tribu n al in tern acion al para qu estões de direito m arítim o en tre gran des Estados n a época m odern a n a Eu ropa, in stitu ído en tre as coroas de D. João III e de Fran cisco I de Fran ça, e qu e veio a en cerrar com u m passivo de volu m osos processos solvidos en tre as du as cortes só com o decorrer dos tem pos. A con testação eu ropéia ao “m are clau su m ” pen in su lar esboçava-se para n ão m ais se calar, in sistin do a In glaterra n a n ecessidade de dem on stração do exercício efetivo de dom ín io para o recon h ecim en to in tern acion al da posse.4 Entretanto, os interesses europeus e os interesses ultramarinos serão representados conjuntamente, pela primeira vez, em sentido amplo, no Tratado de Cateau-Cambrésis, de 3 de abril de1559. Tratado internacional que pôs termo ao conjunto de interesses em luta nas chamadas Guerras de Itália, Cambrésis marcou uma etapa na definição do equilíbrio europeu no começo da segunda metade do século XVI. Nele se tratou da partilha de influências na Itália e na Flandres, nas rotas que ligavam a Europa Ocidental à Itália e ao Mediterrâneo. Aí a Espanha conseguiu, da França, o corte da ajuda ao Turco Otomano e o mesmo empenho na luta contra os protestantes. No tratado esteve representada a maioria das potências européias, daí que as coroas peninsulares pretendessem obter, concomitantemente, a aceitação, pelos vários reinos europeus, dos termos da partilha dos territórios da expansão ultramarina feita entre Portugal e Espanha, para que se afastassem os motivos de luta marítima, ao mesmo tempo que se solucio- 113 Maria do Rosário Themudo Barata nava o conflito continental na Europa. Tema de prestígio para o rei de Espanha Filipe II e a Casa de Sabóia, num tempo em que a representação portuguesa enfraquecia politicamente porque se estava em regência na menoridade de D. Sebastião (D. João III morrera em 1557 deixando um rei de 3 anos apenas), as negociações foram conduzidas pela diplomacia espanhola e com o trunfo do fato da vitória espanhola na Batalha de S. Quentino com a presença do próprio rei. Apesar de os representantes da corte portuguesa, ou seus mandatários, estarem presentes nas conversações, os interesses espanhóis na rápida obtenção da paz na Europa ditaram, como explicou Filipe II à regente de Portugal, sua tia D. Catarina de Áustria, que não se insistisse na inclusão do assunto da capitulação sobre os territórios da expansão e sobre o exclusivo da sua freqüentação no articulado do tratado, para não prejudicar, com isso, a negociação dos termos da paz geral. No entanto, teria sido reconhecido, verbalmente, o direito de Portugal e de Espanha, tendo a França tomado o compromisso de não se dirigir aos territórios de descobrimento e ocupação pelos peninsulares, desenhando-se, na seqüência, para a França, uma reserva para a própria expansão, nos territórios de latitude norte no continente americano.5 No aspecto m arítim o, a vitória qu e se celebrará, pou cos an os depois, é a da arm ada cristã com an dada por D. João de Áu stria, em Lepan to em 1571. Era, n o en tan to, u m a vitória n o Mediterrân eo. Relações in diretas com a Eu ropa, n o pon to de vista da represen tação política portu gu esa? Se h á certo recu o n a m en oridade de D. Sebastião qu e correspon de aos prim eiros an os de govern o de Filipe II, este preju ízo será com pen sado pelo reatar de laços diplom áticos diretos com as várias potên cias eu ropéias por D. Sebastião, qu an do tom a posse efetiva do poder em 1568. A ele se deve n ova política n o Atlân tico Su l, a abertu ra do percu rso m arítim o do Atlân tico à livre in iciativa dos seu s vassalos, o in teresse por An gola, pela Min a, pelas Ilh as e pelo Brasil, o in cen tivo à evan gelização, agora con fiada prioritariam en te à Com pan h ia de Jesu s. É n o seu tem po recon qu istado o Rio de Jan eiro e os fran ceses são afastados da Baía de Gu an abara; con tin u am -se as relações com o Im pério Alem ão, cu jos com ercian tes en caram o com ércio com o Orien te por rota portu gu esa em n ovos term os. Ren ovam -se as relações diplom áticas diretas com a In glaterra, en qu an to a corte portu gu esa qu ereria aproxim ar as cortes de Lisboa e de Paris, propon do-se, para isso, o casam en to de D. Sebastião com a filh a de Catarin a de Médicis. As relações de Portu gal e da San ta Sé, n o tem po do pon tificado de Pio V, eram au spiciosas. Alcácer Qu ibir em 1578 e a crise din ástica qu e se m an ifestou com a m orte do rei e de gran de parte da n obreza, o im passe criado ao fu n cion am en to das in stitu ições du ran te o breve rein ado do Cardeal-Rei, a su a m orte, o avan ço de u m partido a favor de Filipe II de Espan h a, a reserva da Casa de Bragan ça e a derrota m ilitar e política do Prior do Crato explicam 114 PORTUGAL E A EUROPA NA ÉPOCA MODERNA a solu ção por u m a m on arqu ia du al aceita n as Cortes de Tom ar qu e, se declarava garan tir a separação in stitu cion al do rein o de Portu gal, n ão garan tia a posse e exercício dos poderes soberan os da realeza em separado, pois qu er de Espan h a qu er de Portu gal eles seriam exercidos por Filipe II. Acordo qu e pareceria van tajoso n o dom ín io u ltram arin o por ser u m a form a de lu tar con tra a pirataria n os m ares, acordo qu e fortaleceria a m on arqu ia católica e qu e parecia u m a garan tia peran te a Eu ropa dividida pela gu erra religiosa, a falên cia de tais objetivos torn a-se u m fato à m edida qu e os con flitos con tra Filipe II se acen tu am e se desen rola a Gu erra do Trin ta An os. Iden tificados pelos estran geiros os in teresses de Portu gal com os de Espan h a, os portu gu eses têm de procu rar estabelecer, n o dom ín io privado, a teia de relações econ ôm icas, sociais e cu ltu rais tradicion ais com o Norte da Eu ropa, ao m esm o tem po qu e lu tam con tra ou tros eu ropeu s con corren tes n as regiões portu gu esas do dom ín io u ltram arin o. O dom ín io filipin o coin cide com a form ação das Com pan h ias das Ín dias h olan desa e in glesa, com a su a posição con corren cial n o Ín dico, com problem as em An gola, com a fixação h olan desa n o Brasil. En du recida a política in tern a espan h ola n os rein ados de Filipe III e Filipe IV, torn a-se cada vez m ais con scien te a von tade de restabelecer a in depen dên cia política e o fu n cion am en to portu gu ês das in stitu ições do rein o de Portu gal. A Restau ração da In depen dên cia de Portu gal e o m ovim en to do 1º. de dezem bro de 1640 têm , assim , u m du plo e in dissociável sen tido: o do restabelecim en to do fu n cion am en to das in stitu ições do rein o de Portu gal de form a própria e in depen den te e o da garan tia do recon h ecim en to e da participação de Portu gal n a política in tern acion al com o rein o soberan o. Am bos os sen tidos estão in dissociados do destin o dos territórios portu gu eses de além -m ar. 6 Estes são os objetivos fu n dam en tais para a política portu gu esa n os sécu los XVII e XVIII, n u m a Eu ropa em qu e declin a o poder de Espan h a, e qu e se m an ifesta o prestígio da m on arqu ia fran cesa de Lu ís XIV e se prepara a h egem on ia m arítim a da In glaterra. Mas tam bém se torn ava eviden te a com petição pelo Atlân tico en tre a Fran ça, a Holan da e a In glaterra, qu e dita o acau telam en to, por parte de Portu gal, da situ ação n os seu s territórios atlân ticos, o esforço pela libertação do Brasil e de An gola e o com bate peran te o ataqu e dos h olan deses e in gleses n o Ín dico. É o tem po da organ ização dos “com bóios” de acom pan h am en to às frotas m ercan tes, da discu ssão das van tagen s e in con ven ien tes das com pan h ias de com ércio, da gen eralização da discu ssão em torn o das m edidas m ercan tilistas para lu tar con tra a con corrên cia estran geira. É bem certo qu e o sécu lo XVII é o da atlan tização das aten ções, com o vin cou Jorge Borges de Macedo. No plano interno, na Europa, a par dos complexos problemas que se exprimiram em revoltas ou revoluções, assistia-se à profissionalização da guerra, à renovação do armamento, ao aumento do poder de tiro, ao au- 115 Maria do Rosário Themudo Barata mento do número de contingentes militares e da sua disciplina, à importância das fortificações, enquanto, a Leste, continuava o combate contra os Turcos, em que a Áustria consegue resultados importantes que vincam a sua preeminência na política européia. Mais a Norte, novo debate político e militar se desenhava, para o controle do Báltico. E nos fins do século XVII parecia vitoriosa a tentativa da União Bourbon por parte da potência mais continental (a França) com a potência mais marítima (a Espanha) no “coroamento” das expectativas de Luís XIV desde a Paz dos Pireneus. Creio qu e seria ch egada a altu ra de relem brar as posições cien tíficas in vocadas ao prin cípio, para esboçar u m a in terpretação de con ju n to da ação diplom ática de Portu gal n os sécu los clássicos do ancien-régime: as teses de Orlan do Ribeiro e Jorge Borges de Macedo con firm am -se pelo qu e é dado com preen der da atitu de dos respon sáveis portu gu eses n a su a defin ição de n eu tralidade n a época m odern a. A n eu tralidade n ão é m ais do qu e a lú cida observação de qu e a Portu gal in teressa n ão h ostilizar a Espan h a, e as su as aliadas con tin en tais, ao m esm o tem po qu e se aproxim a da In glaterra, qu e n ão pode ter com o in im iga n as qu estões u ltram arin as. As relações de Portu gal com a Fran ça, com as zon as flam en gas e h olan desas, do Mar do Norte e Báltico, do Im pério Alem ão, do Im pério Ru sso e com os sen h orios italian os serão avaliadas de acordo com a bipolarização dos in teresses fu n dam en tais. Im pon derável estará sem pre a aproxim ação à San ta Sé. Su bjacen tes, às vezes con traditórias, as opções cu ltu rais. Mas com o fio con du tor ou in terpretação m ais geral, creio qu e o sen tido das opções seria o esboçado: o sen tido problem ático em qu e as opções foram tom adas, a razão de atitu des pon deradas qu e n ão se devem apresen tar com o m eras h esitações ou com o pu ro resu ltado dos jogos de in flu ên cia. Assim poderíam os recon stitu ir a realidade dos debates de qu e tem os con h ecim en to e descrever a política com o o resu ltado do acaso, da n ecessidade e da argú cia. A partir de 1640 Portu gal recu pera a In depen dên cia n o dom ín io in tern o e n o dom ín io extern o. Poderem os dizer qu e, se as in stitu ições in tern as da m on arqu ia se reforçam n o rein ado de D. João IV, em se tratan do da corte, tribu n ais su periores, levan tam en to dos gru pos m ilitares para a gu erra con tin en tal e para a in depen dên cia dos territórios u ltram arin os com a criação do Con celh o de Gu erra e do Con celh o Ultram arin o, com pan h ias de com ércio, vitalização da lín gu a e da cu ltu ra, reafirm ação do papel das u n iversidade e das gran des in stitu ições religiosas, bem com o dos cam in h os de u m a arte n acion al, n ão rejeitan do a m odern ização qu e poderia ter in trodu zido o govern o filipin o, a recu peração da represen tação extern a do Estado soberan o foi m ais difícil. A Espan h a protestou peran te as potên cias eu ropéias o caráter de rebelião con tra o rei qu e, n a su a perspectiva, represen tava a Restau ração de 1640, levan do ao n ão recon h ecim en to do rei de Portu gal pelo próprio papa. A posição espan h ola 116 PORTUGAL E A EUROPA NA ÉPOCA MODERNA explica qu e, n os Tratados de Westefália de 1648, em qu e se tratou de n egociar e acordar a situ ação eu ropéia após a Gu erra dos Trin ta An os, se debateu o destin o do Im pério Alem ão, se vin cou o su cesso das estratégias su eca e fran cesa, e em qu e tom aram parte todas as potên cias eu ropéias salvo a In glaterra, o Tsar e o Tu rco, Portu gal n ão tivesse possibilidade de creditar agen tes à reu n ião das potên cias católicas, em Mu n ster, ten do-lh e apen as sido facu ltado figu rar n o séqu ito da Fran ça em Mu n ster e ten do a Su écia viabilizado o acesso à reu n ião protestan te em Osn abru ck. Portu gal con segu iu acordos com a Fran ça e com a Holan da em 1641. Mas os agen tes diplom áticos portu gu eses eram persegu idos e atacados, sen do m u itas as dificu ldades postas à su a ação. No en tan to, a Holan da acordava a paz com a Espan h a em 1648. Portu gal e a Espan h a só acordarão a paz 20 an os depois, n o Tratado de Madri, após a paz celebrada en tre a Fran ça e a Espan h a, n os Piren eu s, em 1659. Pelo qu e Portu gal voltava-se, de n ovo, para a In glaterra, n o tem po de Crom well e, depois, com o restau rado rei Carlos II Stu art. A alian ça de Portu gal com a In glaterra fortalecia-se com o casam en to da filh a do rei restau rador, D. Catarin a de Bragan ça, com o rei in glês. Com o cau ção ou dote iam du as praças m arítim as qu e vão ter especial im portân cia n o Im pério m arítim o britân ico: Tân ger e Bom baím . Mas tem de se lem brar qu e foi a In glaterra, e n ão a Fran ça, a m ediadora do Tratado de Paz en tre Espan h a e Portu gal.7 O reforço do regime, a estabilização do regime interno continuava o seu curso, após a morte de D. João IV, na regência de D. Luísa de Gusmão, no trágico reinado de D. Afonso VI, sustido pelo escrivão da puridade Conde de Castelo Melhor, perante as crises de corte, a guerra com Espanha e o não reconhecimento da monarquia portuguesa pela Santa Sé, talvez, segundo Joaquim Veríssimo Serrão, o mais difícil caso a resolver nas relações internacionais, pelas graves conseqüências que acarretava a sua não-solução tanto em nível interno como externo, com a excomunhão da pessoa do rei e o não-provimento de cargos eclesiásticos nos territórios portugueses na Europa e no Ultramar. Na corte portuguesa de D. Pedro II exprimiam-se opiniões divergentes, favoráveis umas à aproximação com a Inglaterra, outras ao estreitamento das relações com a França. Mas o certo é que, feita a paz, conselheiros, elementos do clero e do povo teriam instado D. Pedro a não tomar parte nas guerras européias. Reforçava-se o desejo de neutralidade e concomitantemente refaziam-se laços políticos com as potências européias. Após o casamento do rei com D. Maria Francisca Isabel de Sabóia, polarizadora da aproximação com a França de Luís XIV, D. Pedro, viúvo e sem filho varão, realizava o seu segundo casamento no Império Alemão. Em relação ao papado, só após a paz de 1668, entre Portugal e Espanha, o papa Clemente IX promulga um breve prometendo resolver a questão portuguesa que só será normalizada a partir de 1670.8 117 Maria do Rosário Themudo Barata Poderem os apresen tar u m a visão de sín tese de u m sécu lo qu e foi design ado, por u m gran de especialista do sécu lo XVII, com o o tem po do Atlân tico e do Brasil: refiro-m e a Frédéric Mau ro e à su a periodização 1570-1670. Não é de estran h ar qu e, n a gu erra do fin al do sécu lo XVII, e após u m a aproxim ação da Fran ça, Portu gal irá se aliar à Áu stria e às potên cias m arítim as, à In glaterra e à Holan da, a vários prin cipados alem ães, à Din am arca e à Sabóia. Tem os de in sistir em qu e, em term os de con tin en talidade, a relação de Portu gal com o Im pério n ão era n ovidade n em deixará de ser u m a lin h a con stan te pois qu e, ao casam en to de D. Pedro com D. Maria Sofia de Neu bu rgo, filh a do Con de Palatin o do Ren o, segu e-se o de seu filh o, D. João V, com D. Maria An a de Áu stria, irm ã do Arqu idu qu e Carlos preten den te ao tron o espan h ol e qu e será o Im perador Carlos III. Estas relações com o Im pério terão u m am plo sign ificado político, cu ltu ral e econ ôm ico: basta lem brar, com o exem plo, o qu e represen tou a experiên cia da corte au stríaca para Sebastião José de Carvalh o e Melo, o fu tu ro Marqu ês de Pom bal, o célebre m in istro de D. José I. A im portân cia das relações de Portu gal com o Im pério Alem ão m an tém se apesar de e até porqu e, ten do o can didato au stríaco sido ch am ado a su ceder n o tron o im perial, foi o can didato Bou rbon qu em veio, fin alm en te, a ocu par o tron o de Espan h a. En tretan to, ficara provado qu e a gu erra n ão se podia fazer, in distin tam en te, n a Eu ropa, sem con seqü ên cias n os territórios da expan são. Os tratados de Ryswick, qu e de certa form a tin h am sido o corolário da oposição da Eu ropa à h egem on ia da Fran ça, já o tin h am dem on strado, in serin do n o seu articu lado cláu su las respeitan tes a zon as de in flu ên cia n o Ultram ar. Passa-se o m esm o com os tratados fin ais da Gu erra da Su cessão de Espan h a: os tratados de Utrech t (1713) e de Rastadt (1715) redefin em a situ ação in tern acion al, n a Eu ropa, n a Ásia e n a Am érica. No Ultram ar, on de os con flitos se tin h am esten dido à Costa da Acádia, à zon a do Rio de Jan eiro, a Holan da perdia os direitos qu e detivera n os territórios da Baía de Hu dson ; Lon dres ficava com os con tratos de provim en to de escravos a Espan h a, gan h ava a Acádia, qu e vai ser ch am ada Nova Escócia, os territórios de Port Royal e An ápolis, Hu dson , Terra Nova, S. Cristóvão n as An tilh as. Gan h ava, tam bém , Gibraltar e Min orca n o Mediterrân eo. A In glaterra exigia qu e a Fran ça destru ísse a fortificação de Du n qu erqu e e in den izava a Fran ça à cu sta da Holan da, dan do-lh e a an tiga Ilh a Mau rícia, rebatizada Ile de Fran ce. E acordos do m esm o sen tido eram n egociados n o Ín dico. Na Eu ropa, a Áu stria reobtin h a territórios n os Países Baixos e n a Itália, territórios qu e tin h am perten cido ao Im perador Carlos V ( e obtém n os à cu sta da Holan da e da Espan h a), voltan do a su rgir, qu er n o Atlân tico qu er n o Mediterrân eo, com o potên cia m arítim a. Sabóia obtin h a para 118 PORTUGAL E A EUROPA NA ÉPOCA MODERNA seu Du qu e o títu lo de Rei do Piem on te e da Sicília. E o Bran debu rgo obtin h a, igu alm en te, o títu lo de rei, con stitu in do-se, assim , o em brião do Rein o da Prú ssia. Portu gal vin cara, en tretan to, os laços políticos e n ão só econ ôm icos com a In glaterra n o Tratado de Meth u en de 1703 e acordava, n o Brasil (em qu e a Fran ça m an tin h a in teresses n o Maran h ão) o aju stam en to da fron teira com a Gu ian a Fran cesa, n o território da foz do Am azon as, bem com o com a Espan h a n o Rio da Prata. A colaboração de Portu gal n a política da Gran de Alian ça, posta de lado a h ipótese de apoio ao partido Bou rbon , defen dida, n ão obstan te, com o altern ativa, n a corte de D. Pedro II, m otivava a aproxim ação dos in teresses de Portu gal com os in teresses in gleses, au stríacos e h olan deses. E n esta opção de alian ça tin h a pesado, n ão só a von tade de afastam en to da alian ça Fran ça-Espan h a, m as tam bém a procu ra de garan tia para os in teresses u ltram arin os. Esta é a leitu ra do sen tido das n egociações, n a con ju n tu ra da Gu erra da Su cessão de Espan h a, em qu e Jorge Borges de Macedo in clu i a in terpretação do Tratado de Meth u en . Nele tin h a-se prom etido a Portu gal a cedên cia de algu m as praças espan h olas, com o Badajoz, Albu qu erqu e, Valên cia de Alcân tara, e Tu i, La Gu ardia, Baion a da Galiza e Vigo, além da Colôn ia do Sacram en to. Os portu gu eses tin h am avan çado em 1706 tomando várias praças espanholas. Mas nesse mesmo ano morria D. Pedro II de Portu gal, m orria o Im perador e o can didato Habsbu rgo ao tron o espan h ol regressava às terras alem ãs e receberia o Im pério. Nos Tratados de Utrech t e Rastadt Portu gal pediu a con stitu ição de u m a zon a de fron teira com praças de garan tia en tre Portu gal e Espan h a. Seria a “Barreira” sem elh an te à qu e fora pedida pela Holan da em relação à Fran ça. Mas n ão o con segu iu . Obteve, isso sim , a Colôn ia do Sacram en to. In tern acion alm en te, os acordos de Utrech t e Rastadt sign ificavam , tam bém , a adm issão de n ovos prin cípios n o direito in tern acion al: a In glaterra fazia aceitar a n ova su cessão n a coroa in glesa da Din astia Han over, con firm ada n a Declaração dos Direitos de 1689, segu n do a qu al o n ovo rei n ão o era por direito divin o, m as por ju ram en to peran te o parlam en to. Qu ase qu e con com itan tem en te, n o Im pério, o Im perador Carlos VI regu lava a su cessão dos territórios au stríacos por su cessão católica, n a su a filh a m ais velh a, Maria Teresa, pela Pragm ática San ção de 1713. O Direito In tern o ren ovava-se, com o con seqü ên cia, tam bém , dos con flitos in tern acion ais. E an u n ciava-se o con flito u ltram arin o do sécu lo XVIII: a rivalidade en tre a Fran ça e a In glaterra, en qu an to prossegu iam as pen dên cias en tre Portu gal e a Espan h a sobre a região Platin a e os lim ites m eridion ais do Brasil, qu e prossegu em m esm o depois do Tratado de Madri de 1750. En tretan to, o reforço das relações de Portu gal com Rom a e a plen a afirm ação do absolu tism o, n a su a feição patern alista, coin cide com o rein ado de D. João V, o Magn ífico. Con siderada com o época áu rea do absolu tism o em Portu gal, teria correspon dido a u m a visão im perial qu e pôs ao 119 Maria do Rosário Themudo Barata serviço da ação m ecen ática n as artes e n a cu ltu ra os in gressos das riqu ezas u ltram arin as em qu e largam en te con tribu iu o ou ro do Brasil, a partir de 1697. O rei de Portu gal desen volve u m a política de prestígio in tern acion al possibilitada pelo fortalecim en to in stitu cion al e cu ltu ral e pelo apoio m aterial. As em baixadas portu gu esas ju n to da corte rom an a retomam importância semelhante à que revestira as do tempo de D. Manuel I: a com prová-lo o fato de o Papa Ben to XIV, solvidas as dificu ldades das relações com a coroa portu gu esa n a 4ª. din astia, ter con ferido a D. João V o títu lo de Fidelíssim o, em 1748. Era, segu n do Jorge Borges de Macedo, a Paridade Diplom ática en fim recon qu istada. No dom ín io in tern o, a cidade de Lisboa progredia com o m ercado de in teresse in tern acion al: o tráfico u ltram arin o, as m an u fatu ras, as con stru ções u rban as, as academ ias, o esplen dor artístico do barroco joan in o referen ciam u m rein ado lon go e próspero qu e só en trará em declín io com a doen ça do rei. O an o de 1750 será o in ício de u m a n ova época. O an o de 1750 será, também, u m n ovo marco n as relações in tern acionais, potencializando tendências que eram anteriores. A neutralidade reassumida no reinado do Magnífico como a melhor defesa balançada das duas constantes da política portuguesa (a política continental e a marítima) surgira num novo contexto porque correspondera a um poder realmente assumido, com capacidades e recursos tanto interna como externamente. Compreende-se, assim, que a França tivesse evidenciado desconfiança em relação à neutralidade portuguesa, opondo-se a que Portugal estivesse presente nas negociações entre a França e a Espanha que decorreram no Congresso de Cambrai de 1721 a 1722, considerando Portugal, sobretudo, como aliado da Inglaterra, cuja hegemonia marítima temia. Era o tempo do jogo diplomático da França no reinado de Luís XV. Mas a França, pelo temor da Inglaterra, aproxima-se desta, afastando-se da Espanha, recusando o casamento de Luís XV com D. Maria Ana Vitória, e preferindo o casamento do seu rei com a filha do rei da Polônia. Voltará, mais tarde, a reaproximar-se da Espanha. Na altura, porfiava em lutar contra a Áustria e contra os seus interesses continentais, levantando problemas à sucessão no Império de Maria Teresa, acabando, no entanto, por reconhecer que os interesses continentais a levariam a aliar-se à Áustria para vencer a Inglaterra que, por seu lado, contava no continente com outra aliada, a Prússia. Du ran te o seu rein ado, D. João V dem on strou , m ais u m a vez, a von tade de m an ter a n eu tralidade n as qu estões eu ropéias, rebaten do Lu ís Ferran d de Alm eida as in terpretações qu e con sidera apressadas do Con de de Carn axide, segu n do o qu al D. João V voltara costas à Eu ropa. Haveria, sim , a m arcada preferên cia do rei pela dim en são atlân tica e u ltram arin a, e n ão con tin en tal, sen do Ferran d de Alm eida e Jorge Borges 120 PORTUGAL E A EUROPA NA ÉPOCA MODERNA de Macedo con cordes em su blin h ar o crescen te papel estratégico e econ ôm ico do Ocean o e das terras am erican as n o sécu lo XVIII. Ou tro aspecto em qu e tam bém in siste Ferran d de Alm eida: D. João V qu ereria con ciliar esta política de n eu tralidade com a fidelidade à In glaterra, torn an do este ú ltim o pon to u m a con dição in dispen sável para o tratado de n eu tralidade com a Espan h a. Nesta estratégia, a am izada fran cesa equ ilibraria o excesso de in flu ên cia in glesa. In tern acion alm en te, n a Eu ropa, afirm ava-se o m ovim en to con tin en tal de defesa con tra a In glaterra, qu e vai levar à alian ça en tre a Áu stria e a Fran ça e à ação an tibritân ica. O ch an celer au stríaco Kau n itz im pu lsion a a alian ça com a Fran ça para com bater a Prú ssia. Em Espan h a, o m in istro Carvajal am bicion a aproxim ar-se de Portu gal e da In glaterra, ten tan do recu perar Gibraltar. A Espan h a tin h a a con vicção qu e cedera peran te Portu gal n o Tratado de Madri de 1750, qu an to aos lim ites do Brasil e esperava, com a aproxim ação, u m gesto de boa von tade da parte in glesa, com o diz Borges de Macedo. Peran te esta política desen h ava-se ou tra con trária, n a corte de Madri, expressa, en tre ou tros m in istros, por La En señ ada, qu e preferia claram en te a alian ça com a Fran ça. E dava-se o caso de tan to a Fran ça com o a Espan h a qu ererem captar as relações de Portu gal para fortalecer as respectivas posições m arítim as. Ao m esm o tem po, n a Fran ça, tan to qu an to n a Áu stria, n a Espan h a e em Portu gal, n os an os 50 do sécu lo XVIII, debatia-se a n ecessidade de reform u lar o regim e. E n esta problem ática se in sere a qu estão essen cial da im portân cia das reform as de estado n os regim es absolu tos eu ropeu s dos m eados do sécu lo XVIII, realizadas n a Áu stria e em Portu gal e qu e n ão terão sido con segu idas em Fran ça, aceleran do-se aí os an teceden tes e as m otivações da Revolu ção Fran cesa. Dá-se, en tão, o qu e a h istoriografia con sagrou com o a Revolu ção Diplom ática do sécu lo XVIII, n o con ju n to de revolu ções setecen tistas a qu e perten ce a Revolu ção In du strial e a acim a referida: o Tratado de Versailles de 1756 con sagra a alian ça en tre a Fran ça e a Áu stria (as du as potên cias con tin en tais tradicion ais opositoras n a época m odern a) a qu e se ju n tam , n o segu n do Tratado de Versailles, a Rú ssia e a Su écia. Peran te estas potên cias u n em -se a In glaterra e a Prú ssia, n os Tratados de Westm in ster. Era o com eço da Gu erra dos Sete An os, con tra o Im pério Ultram arin o in glês. Nesta con ju n tu ra tem a m áxim a im portân cia o ch am am en to de Portu gal. A n eu tralidade, n o tem po de D. João V, sign ificara in depen dên cia e garan tia do Atlân tico. Mas tin h a-se efetu ado o casam en to de D. José, fu tu ro rei de Portu gal com D. Maria An a Vitória in fan ta de Espan h a, bem com o o da in fan ta portu gu esa D. Bárbara com o fu tu ro rei de Espan h a Fern an do VI. Desses casam en tos esperava-se, en tre ou tras, a garan tia da 121 Maria do Rosário Themudo Barata gran deza do Brasil, recon h ecida n o Tratado de Madri de 1750. Os in gleses atacavam os barcos fran ceses n as costas portu gu esas e a Fran ça pedia satisfações. A política espan h ola regressava à alian ça com a Fran ça. Form ava-se o Pacto de Fam ília, em 1761, e Carlos III de Espan h a era-lh e claram en te favorável. Tal fato con tin h a a obrigação de declarar a gu erra à In glaterra. A Espan h a pression a Portu gal a en trar n o Pacto, am eaçan do com u m a in vasão qu e se dá, efetivam en te, ao tem po em qu e está em Portu gal o gran de estratega m ilitar Con de de Lippe. Tal ataqu e só será su spen so porqu e a gu erra geral term in a pelo Tratado de Paris de 3 de fevereiro de 1763. Na n egociação do tratado está presen te u m delegado portu gu ês, Martin h o de Melo e Castro. Torn a-se claro qu e Portu gal está n o cen tro de todas as gu erras pelos in teresses estratégicos n a Eu ropa e n o Ultram ar. O poder de Estado, em Portugal, fortalecia-se ao encontro das necessidades de defesa, no tempo de D. José I e do Marquês de Pombal. Ameaçadas as relações com a Santa Sé pela luta interna contra o poder da Igreja, as relações são cortadas em 1760, pelas razões do poder iluminista. Mas anos depois, na seqüência do apelo das monarquias iluminadas contra o Papado, o Papa extingue a Companhia de Jesus, em 1773. Perante a derrota da Inglaterra que significa a Revolução Americana (mais uma revolução a juntar à tipologia das revoluções do século XVIII, modelo de revolução atlântica?), com a vitória dos americanos em Saratoga em 1777 e o Tratado com a França em 1778, perfila-se a Neutralidade Armada, em 1782, posição de reserva da Rússia, Suécia, Dinamarca e a que adere Portugal. No ano seguinte, em 1783, no Tratado de Versailles, dá-se o reconhecimento internacional da Independência dos Estados Unidos da América. Mais u m a vez se ren ovam as pressões sobre Portu gal n o qu e diz respeito à en trada n a política do Pacto de Fam ília e aos territórios u ltram arin os, con texto em qu e os Tratados de San to Ildefon so de 1777 e do Pardo de 1778, en tre Portu gal e a Espan h a, con stitu em dim in u ição dos territórios do Brasil. No diferen do en tre a In glaterra e a Am érica, Portu gal qu er m an ter a n eu tralidade, com o m an ifestou em 1780, resistin do à pressão espan h ola e fran cesa, n ão se declaran do con tra a su a tradicion al aliada. Na opin ião pú blica portu gu esa o caráter revolu cion ário da Revolu ção Fran cesa ficava clarificado. Portu gal procu ra estabelecer u m a u n idade de ação com a Espan h a e oferece-se, por essa razão, com o m ediador en tre a Espan h a e a In glaterra. Portu gal defen de a h ipótese de u m a alian ça en tre a In glaterra, a Espan h a e Portu gal: u m a proposta de an tecipação segu n do a leitu ra política da con ju n tu ra e qu e preten dia en globar, n u m plan o estratégico com u m , as du as potên cias qu e Portu gal n ão podia ign orar e qu e in teressava m over, n u m a coligação con tra a Revolu ção Fran cesa. Era a form a de acau telar, con com itan tem en te, os in teresses con tin en tais e 122 PORTUGAL E A EUROPA NA ÉPOCA MODERNA os in teresses m arítim os. Mas este projeto foi im possibilitado pela adesão da Espan h a aos ideais da Revolu ção Fran cesa e à lu ta con tra a In glaterra. As potên cias con tin en tais, a breve trech o, declaram o Bloqu eio Con tin en tal à In glaterra. A in vasão de Portu gal ficava, desde en tão, em in en te. Nesta seqü ên cia, a opção de D. João, prín cipe regen te em n om e de su a m ãe a rain h a D. Maria I, de em barcar com toda a corte e ru m ar em direção ao Brasil, efetivan do u m plan o apresen tado e discu tido peran te as dificu ldades políticas portu gu esas desde, pelo m en os, a Restau ração de 1640, teve o plen o sen tido da defesa da soberan ia, correspon deu a u m a opção respon sável preparada com an terioridade e prova, u m a vez m ais, a im portân cia qu e o rein o de Portu gal atribu iu à dim en são m arítim a do seu viver coletivo, n a Idade Modern a, dim en são m arítim a qu e se desen volveu oferecen do n ovas form as de viabilizar u m a von tade de in depen dên cia e de m an ter a capacidade de escolh a do próprio regim e in tern o, peran te a pressão con tin en tal. Eis, em sín tese, o qu e se pode con clu ir da avaliação do m odo com o Portu gal se relacion ou com a Eu ropa n a Idade Modern a. 123 Maria do Rosário Themudo Barata N OTA S 1. RIBEIRO, O., 1967. MACEDO, J. B. de, s.d. CORTESÃO, J., 1940. 2. Esta referên cia aos professores qu e, n as Un iversidades de Lisboa, Coim bra e do Porto, h á m u ito, se têm em pen h ado n o desen volvim en to dos estu dos h istóricos sobre o Brasil, vem ao en con tro da preocu pação de José Ten garrin h a de procu rar com preen der, n o h orizon te tem poral de seqü ên cia, a política portu gu esa, in clu in do as relações extern as. Ver. TENGARRINHA, J. La historiografía portuguesa en los últimos veinte años. TENGARRINHA, J.; DE LA TORRE, H.; INDJIÉ, T.; VOLOSIUK, O.; ALMODÓVAR, C., 1997. 3. MACEDO, J. B. de Th e Portu gu ese m odel of State Exportation . BLOCKMANS, W., MACEDO, J. B. de, GENET, J. P., 1996 . 4. BARATA, M. do R. T., 1971, p.122-31. ALBUQUERQUE, R. de, 1972. 5. ALBUQUERQUE, R, de. As regências na menoridade de D. Sebastião. Elem en tos para u m a h istória estru tu ral, v. I-II,Tem as Portu gu eses, Im pren sa n acion al Casa da Moeda, 1992. v.I, p.221 e ss. Neste tratado, en tre Filipe II de Espan h a e Hen riqu e II de Fran ça, são m en cion adas com o en tidades n ele com preen didas a In glaterra, qu e estabelecera tratados prévios, o Im pério, os sen h orios flam en gos, borgon h eses, Sabóia (com particu lar relevân cia) e os sen h orios italian os. MOUSNIER, R., 1967. p.432.; ZELLER, G., 1963. p.38-9. 6. É o tem po da ação de João Fern an des Vieira, em Pern am bu co, das du as batalh as dos Gu ararapes, de 1648 e 1649, da Restau ração de An gola, com Salvador Correia de Sá, em 1648, da capitu lação dos h olan deses em 1654. SERRÃO, J. V., 1994. 7. Aqu i lem braríam os as opin iões de Edu ardo Brazão sobre a perm an ên cia do in teresse da alian ça en tre Portu gal e a In glaterra, apesar da aproxim ação da Fran ça, da Restau ração de 1640 até à Paz dos Pirin eu s, qu e sign ifica já o aban don o desta ten dên cia. Westefália represen ta o in teresse das n egociações para os pequ en os Estados, segu n do Jorge Borges de Macedo: é a n egociação, m ais do qu e a gu erra o qu e in teressa a Portu gal. MACEDO, J. B. de, s.d. 8. A este respeito dever-se-á lem brar a ação do dom in ican o, bispo e secretário de Estado de D. Pedro II, D. Fr. Man u el Pereira, Provin cial da Ordem , o 1º Bispo n om eado para o Rio de Jan eiro, para on de n ão ch egou a partir ten do-lh e sido pedida a con tin u ação dos serviços n a corte, on de foi o secretário de Estado de el-rei de 1680 atè su a m orte ocorrida em 1688. VALLE, T. L. M. do, 1994. 124 PORTUGAL E A EUROPA NA ÉPOCA MODERNA B IBLIOGRA FIA ALBUQUERQUE, R. de. As Represálias. Estu do de História do Direito Portu gu ês (sécu los XV e XVI). Coim bra: Atlân tida, 1972. v.I. ALMEIDA, L. F. de. A Colônia do Sacramento na Época da Sucessão de Espanha. Coim bra, 1973. ___. Alexandre de Gusmão, o Brasil e o Tratado de Madrid (1735-1750). In : (AUTOR?) 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Paris, 1955. 128 capítu lo 8 A CON SOLID A Çà O D A D IN A STIA D E BRA GA N ÇA E O A POGEU D O PORTUGA L BA RROCO: CEN TROS D E POD ER E TRA JETÓRIA S SOCIA IS (1668-1750) Nu n o Gon çalo Freitas Mon teiro* A S LEITURA S RECEN TES D O PORTUGA L RESTA URA D O Em detrim en to de u m a leitu ra n acion alista do fen ôm en o, a h istoriografia recen te, sobretu do An tôn io Hespan h a, 1 em certa m edida, in spirado em Fern an do Bou za, 2 tem acen tu ado n as su as in terpretações da Restau ração de 1640, n om eadam en te qu an to aos seu s m óbeis e às su as etapas in iciais, a dim en são de restau ração con stitu cion al. Defen de-se, assim , a idéia de qu e n o seu despoletar pesou prim acialm en te a in ten ção de defen der as in stitu ições tradicion ais do rein o, atacadas pelo reform ism o da política do Con de-Du qu e de Olivares (rein ado de Filipe III de Portu gal (IV de Espan h a), 1621-1640) qu e pôs em cau sa o estatu to do rein o recon h ecido n as Cortes de Tom ar de 1581. Cu riosam en te, redescobriu u m a orien tação já an tes apon tada por au tores de in spiração in tegralista, em particu lar por Gastão de Melo Matos, qu e n os prim eiros m om en tos da Restau ração situ avam u m ressu rgim en to do pen sam en to político tradicion al an ti-absolu tista. 3 A in discu tível revitalização das in stitu ições tradicion ais n aqu ele con texto, bem in diciada pela freqü ên cia com qu e en tão se reu n iram Cortes (1641, 1642, 1646 e 1653), n ão pode fazer esqu ecer, n o en tan to, a len ta evolu ção das form as políticas n u m sen tido aparen tem en te con traposto. De fato, passada a con ju n tu ra de gu erra e de in ten sa dispu ta política faccion al, associada a episódios tão em blem áticos com o o da ascen são e qu eda do valido Castelo Melh or, os m odelos políticos qu e vão triu n far parecem afastar-se n otoriam en te do plu ralism o corporativo aparen tem en te prevalecen te n os an os im ediatam en te posteriores à en tron ização dos Bragan ça. Con tra u m a im agem de con tin u idade, procu ra-se aqu i su gerir qu e a Restau ração represen tou u m a efetiva viragem . Na verdade, os seu s efeitos a m édio e lon go prazo, design adam en te qu an do a n ova din astia se estabilizou em 1668 (paz defin itiva com Espan h a), foram relevan tes, corres- 129 Nuno Gonçalo Freitas Monteiro pon den do a u m a n ova con figu ração dos cen tros de poder, qu e se tradu ziu em diversos m ecan ism os de estru tu ração das elites sociais. A prim eira in ten ção deste texto será, precisam en te, dar con ta dessas m u tações. Sim u ltan eam en te, procu rar-se-á iden tificar a evolu ção das con ju n tu ras e das form as de exercício do poder n o cen tro político da m on arqu ia, articu lan do-as com as dim en sões an tes referidas. A an álise política m ais detalh ada abran gerá a etapa com preen dida en tre 1668 e o adven to do pom balism o em m eados de 1700. A propósito do período con siderado (grosso m odo o qu e term in a com a m orte de D. João V), tem -se falado do Portu gal Barroco. Neste particu lar, im porta recordar, apesar das m u itas reservas qu e se lh e podem colocar, o qu adro particu larm en te en fático da “organ ização social e estilo de vida” do Portu gal Barroco traçado por Jaim e Cortesão,4 on de o casticism o e a cristalização social são tôn icas dom in an tes. D . PED RO II REGEN TE E REI (1668-1706): A CON SOLID A Çà O D A D IN A STIA D E BRA GA N ÇA 5 O período em an álise foi atravessado por profu n das descon tin u idades políticas. De fato, sem en trar sequ er em lin h a de con ta com as Cortes qu e se reu n iram ain da qu atro vezes (1668, 1673, 1679 e 1697), a regên cia e rein ado de D. Pedro II caracterizar-se-ão por u m m odelo de fu n cion am en to da adm in istração cen tral qu e se prolon gará ain da pelos prim eiros an os do rein ado de D. João V, m as qu e con trasta radicalm en te com o qu e foi adotado desde, pelo m en os, 1720, qu an do o rei passou a despach ar com os seu s su cessivos secretários de Estado, em larga m edida à m argem dos con celh os, ou m elh or, do Con celh o de Estado, qu e parece ter con stitu ído o órgão cen tral da adm in istração em todo o período an terior. Ao con trário dos ciclos políticos an teceden tes, a regên cia e o rein ado de D. Pedro II (1648-1706) n ão foram objeto de in vestigação h istoriográfica recen te. Deste período ain da relativam en te obscu ro, apesar da profu são de fon tes n arrativas de excepcion al qu alidade legadas pela própria época, 6 a posteridade reteve, sobretu do, a deposição do irm ão do regen te e o u lterior casam en to deste com a cu n h ada (1668) D. Maria Fran cisca Isabel de Sabóia (1646-1683), depois de u m escan daloso processo de an u lação do m atrim ôn io, baseado em testem u n h os sobre a su a n ão con su m ação. 7 Já n este sécu lo, veio a valorizar-se a atu ação em m atéria de proteção à in dú stria do 3º. Con de da Ericeira (1632-1690), vedor da Fazen da en tre 1675 e 1690. Im agen s difu sas, portan to, as qu ais n ão parecem su ficien tes para esboçar u m a caracterização política do ú ltim o 130 A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO terço do Portu gal seiscen tista. Existem , n o en tan to, algu m as vias cu ja exploração poderá perm itir u m a leitu ra política m ais in tegrada de u m período a vários títu los relevan te. Um a delas é a iden tificação da esfera do político n o con texto con siderado. Tem-se destacado, em algumas contribuições recentes, que a atu ação da adm in istração cen tral n o An tigo Regim e se en con trava lim itada a esferas bem restritas, e, além disso, im pregn ada por u m a cu ltu ra política voltada sobretu do para con servação. Mesm o em m atérias de graça as decisões seriam dom in adas pelo paradigm a ju risdicion alista,8 de acordo com o qu al o fim ú ltim o do “bom govern o” é a “ju stiça”, en ten dida com o dar a cada u m o seu lu gar. No en tan to, as fon tes n arrativas da época perm item iden tificar com clareza a existên cia de u m a esfera bem defin ida da política, da dispu ta política e da decisão política. De form a abreviada, essa esfera pode resu m ir-se aos segu in tes tópicos: n om eação de pessoas para os cargos e ofícios su periores, rem u n eração de serviços (m ercês), decisão fin al sobre con ten das ju diciais especialm en te relevan tes, política tribu tária e alin h am en tos políticos extern os (in clu in do a gu erra), para além , n a con ju n tu ra estu dada, do problem a específico dos cristãos-n ovos. A todas estas dim en sões dever-se ia acrescen tar m ais u m a: a form a e o qu adro in stitu cion al on de tin h am lu gar os despach os régios. Fora das áreas referidas, n ão h avia lu gar para “políticas” sistem áticas e con tin u adas. Era u m a esfera lim itada, m as qu e correspon dia aos restritos recu rsos, dim en são e com petên cias da adm in istração cen tral. Na perspectiva referida, o ciclo político in iciado com os episódios tu m u ltu osos do afastam en to do valido Castelo Melh or (1667) e da deposição de D. Afon so VI possu i algu m as características de con ju n to qu e claram en te o diferen ciam . Em prim eiro lu gar, abre-se u m a con ju n tu ra de acalm ia bélica, com o estabelecim en to da paz defin itiva com Espan h a (1668), qu e viria a ser in terrom pida precisam en te pou cos an os an tes da m orte de D. Pedro (1703). De resto, é n esta altu ra qu e se estabilizam os alin h am en tos políticos extern os da din astia. Em segu ida, a dispu ta política, em bora sem pre presen te, deixa de revestir a dim en são fortem en te polarizada qu e assu m ira n a fase an terior. Não só a lu ta faccion al parece m ais aten u ada, exclu in do agora a elim in ação daqu eles qu e a perdem , com o o papel arbitral da figu ra real su rge com u m a preem in ên cia in dispu tada. Decisiva é a con solidação da din astia, con segu ida n ão apen as através da paz extern a e da reposição do dom ín io sobre as su as possessões colon iais,9 m as tam bém por via dos várias disposições qu e assegu ram a defin ição dos m ecan ism os de su cessão à coroa, qu e adian te se referirão. Por fim a política de m ercês sofre u m a in flexão de extrem a im portân cia, bem in diciada pelo fato de o n ú m ero de títu los criados en tre 1670 e 1700 correspon der a m en os da m etade dos con cedidos n os 30 an os an teriores. O qu e sign ifica, com o adian - 131 Nuno Gonçalo Freitas Monteiro te se verá, qu e a elite aristocrática do regim e brigatin o, bem com o m u itas das prin cipais com pon en te da sociedade de Corte, se cristalizam precisam en te du ran te a regên cia e rein ado de D. Pedro II. Em sín tese, abre-se u m ciclo qu e é, a diversos n íveis, de estabilidade política in tern a e extern a. Um a estabilidade qu e n em as dificu ldades fin an ceiras, só defin itivam en te debeladas com o au ge do Brasil n o in ício do sécu lo XVIII, n em as pertu rbações geradas pela atu ação do San to Ofício, con segu irão pertu rbar. De resto, esta n ova con ju n tu ra coin cide n a adm in istração cen tral com o retorn o a u m m odelo bem defin ido de tom ada das decisões políticas. É esta a segu n da ch ave qu e se pode propor para a com preen são deste período. Sobre essa m atéria, foi precisam en te o discu rso oficial pom balin o, em pen h ado en tre ou tras coisas em reabilitar Castelo Melh or, a produ zir u m a das raras im agen s fortes da con ju n tu ra aqu i estu dada, em bora pou cas vezes com en tada. Na celebérrim a Dedução cronológica e analítica, diz-se a propósito da atu ação dos jesu ítas n a deposição de D. Afon so VI e n a regên cia e rein ado de D. Pedro II (1667-1706): “... depois de h averem acabado de destru ir a Mon arqu ia, passaram logo a su prim ir a Dem ocracia, e a redu zir todo o Govern o de Portu gal, e seu s Dom in ios a h u m a aparen te Aristocracia; a qu al n ão ten do ou tra Ju rispru dên cia, e ou tra Moral, qu e n ão fossem as dos m esm os Regu lares ... veio a redu zir-se em su m a ao dispotism o do absolu to Sinédrio Jesuítico”.10 Mas tam bém n a con su lta do Desem bargo do Paço qu e precedeu o Alvará de 5 de ou tu bro de 1768 con tra as casas pu ritan as, acu sadas de exclu írem as ou tras das su as alian ças m atrim on iais por as con siderarem con tam in adas por san gu e in fecto: “Assim arru in aram os ditos Pu ritan os o tron o desta Mon arqu ia; assim levan taram sobre as Ru ín as dela a façan h osa Aristocracia qu e du rou todo o Reyn ado de Sen h or Dom Pedro II; e ain da por m u itos an os do Govern o do Sen h or Rey Dom João V com ou tros estragos dos Cabedais, das forças, e da Repu tação desta Coroa, e dos Vassalos dela, qu e ain da se estão fazen do presen tes aos olh os dos qu e h oje vivem os”.11 Em sín tese, retom an do as categorias de políticas do pen sam en to clássico, o discu rso pom balin o iden tificava a regên cia e o rein ado de D. Pedro II e parte do de D. João V com o u m período de govern o aristocrático. As fon tes da h istória política do período parecem , em geral, corroborar essas im agen s. Depois do afastam en to do govern o do valido Castelo Melh or, rein stau ra-se o “govern o dos con celh os” (tribu n ais) cu jo cen tro é o Con celh o de Estado on de se preparam todas as decisões sobre m atérias politicam en te im portan tes, “tan to as dom ésticas, com o as relativas ao estran geiro”,12 pois “n ão existe prim eiro m in istro em Portu gal: é aos Con selh eiros de Estado qu e se ch am a m in istros”.13 Essa cen tralidade política m an teve-se até ao rein ado joan in o (a ú ltim a n om eação de con se- 132 A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO lh eiros parece ter sido em 1704 14). No Con celh o de Estado, n este rein ado,15com o n os an teceden tes,16 qu ase só têm lu gar os Gran des e filh os eclesiásticos de Gran des. De resto, m on opolizan do as presidên cia dos tribu n ais, a prin cipal aristocracia do regim e terá tido n este período u m papel de lideran ça política direta praticam en te in dispu tado.17 Aliás, apesar do estatu to social de Castelo Melh or, o afastam en to do valido su scitou em Portu gal, tal com o em Espan h a pela m esm a altu ra,18 a adesão de larga m aioria dos m em bros da prim eira n obreza: “saiu de su a casa o In fan te, com tu do qu an to h avia de títu los e sen h ores n a Corte … e en trou n o Paço, on de n esta ocasião se en con travam 1.400 h om en s, a flor da n obreza da Corte”.19 An os depois, a Gu erra da Su cessão de Espan h a (17031713) represen taria para Portu gal, de acordo com todas as fon tes con h ecidas, a expressão paradigm ática e, provavelm en te, derradeira, de u m a Gu erra aristocrática, on de os fidalgos levan tavam h om en s e os Gran des dispu tavam m ais ou m en os tu m u ltu osam en te todos os com an dos m ilitares e, tam bém , as m ercês correspon den tes. Os con flitos en tre facções da Corte n este período, com o de resto n o sécu lo su bseqü en te, parecem ter sido determ in ados, em larga m edida, pela prioridade con ferida aos alin h am en tos políticos extern os. Den tro desses parâm etros, Castelo Melh or represen taria o “partido in glês” e o seu afastam en to o m om en tân eo triu n fo do “partido fran cês”. Ao con trário do qu e algu m as vezes se tem su gerido e do qu e in sin u avam os correspon den tes diplom áticos fran ceses, n ão existiria propriam en te u m gru po estável defen sor da in tegração em Espan h a, iden tificado com os sequ azes do valido de D. Afon so VI, n em u m a correspon dên cia perm an en te en tre m odelos de regim e político e alin h am en tos extern os.20 De resto, o “partido fran cês”, apesar dos seu s sólidos apoios, seria su cessivam en te derrotado em 1668, com o estabelecim en to da paz, qu e procu rou adiar, e em 1687, qu an do D. Pedro II se casou pela segu n da vez com a prin cesa Maria Sofia de Neu bou rg, filh a do eleitor palatin o do Ren o, e n ão com u m a prin cesa fran cesa. Apesar das pressões con trapostas, pode se dizer qu e de form a con sisten te prevaleceu até a Gu erra da Su cessão de Espan h a u m a prioridade atlân tica, apoiada n a estabilidade das relações com a In glaterra, e u m relativo distan ciam en to em relação aos con flitos n a Eu ropa, on de o rein o obtivera já o seu plen o recon h ecim en to.21 É de fato para o Atlân tico e para o Brasil qu e se dirigem , de form a prioritária as aten ções da política portu gu esa n este período. As ten tativas de m in orar os efeitos dos tratados com erciais pós-Restau ração dar-se-ão in icialm en te n u m a con ju n tu ra m arcada ain da pela qu ebra n a econ om ia açu careira. Som en te em m eados de 1690, n a derradeira década do rein ado, a descoberta do ou ro brasileiro se com bin ará com u m a rápida expan são econ ôm ica da colôn ia, qu e atin girá as su as expressões m ais espectacu - 133 Nuno Gonçalo Freitas Monteiro lares já du ran te o lon go rein ado joan in o. O exito da Restau ração n a gran de colôn ia da Am érica do Su l e o seu u lterior in crem en to con stitu irão u m a base fu n dam en tal para a con solidação da din astia brigan tin a.22 Num período caracterizado pelo restabelecimento de antigas formas de governo e pela escassa produção legislativa e inovação tributária, pode parecer surpreendente que tenha surgido uma das primeiras tentativas de fomento industrial, protagonizada pelo 3º. Conde de Ericeira e teorizada, ao que parece, por Duarte Ribeiro de Macedo. Trata-se, de fato, de uma iniciativa tipicamente mercantilista, que responde a uma conjuntura de desequilíbrio da balança comercial e das finanças da monarquia e que se esgota quando essa conjuntura é ultrapassada. Leis anti-sumptuárias, pragmáticas, lançamento de fábricas e importação de mão-de-obra qualificada são, afinal, os ingredientes característicos desse tipo de intervenções. Em todo o caso, a fundação de fábricas de tecidos no Fundão, na Covilhã, e em Portalegre lançariam sementes de uma implantação industrial duradoura.23 Mas os ritm os da vida política seriam , em larga m edida, balizados pelo problem a sem pre decisivo de garan tir a con tin u idade da coroa do rein o, até porqu e as opções sobre a m atéria con dicion avam as alian ças extern as. As cortes de 1668 foram con vocadas para a deposição de D. Afon so, repu tado in capaz, acaban do o In fan te D. Pedro por se proclam ar regen te, e n ão rei, com o algu n s preten deram . As de 1673-1674 para ju rar com o presu n tiva h erdeira a filh a n ascida do seu casam en to com a cu n h ada, D. Isabel Lu ísa. As de 1679 para derrogar as ch am adas atas das Cortes de Lam ego qu e coibiam o casam en to da jovem su cessora com u m prín cipe estran geiro. As de 1697-1698, u m a vez m ais, para derrogar aqu ela qu e era repu tada a “lei fu n dam en tal do rein o”, perm itin do a su cessão de u m filh o de irm ão de rei sem n ecessidade de con vocar n ovas Cortes. Con sagravam , assim , a su cessão do Prín cipe D. João, prim ogên ito do segu n do casam en to de D. Pedro II, n elas, aclam ado, de resto, com o h erdeiro. As Cortes reu n iam -se, desta form a, para n ão terem de ser de fu tu ro con vocadas. Com efeito, as retificações con stitu cion ais qu e in trodu ziram vieram a dispen sar, du ran te m ais de u m sécu lo, a su a reu n ião. Pelo que se conhece, até as últimas Cortes convocadas não deixou de se exercer o direito de petição.24 De resto, questões como as do perdão aos cristãos-novos transformaram algumas destas reuniões, como as de 16731674, em momentos de turbulência política, tanto mais que até a sua morte (1683) se sucederam as conspirações (1672) ou os simples rumores favoráveis ao retorno de D. Afonso VI. No entanto, a verdade é que o pluralismo da iniciativa política dos diversos corpos se foi restringindo cada vez mais. O fim do século distingue-se já fortemente, nessa matéria, da relativa efervescência, por exemplo, das Cortes de 1641. Gradualmente, vão sendo cada vez menos as instituições que se exprimem publicamente. 134 A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO De fato, poder-se ia afirm ar, com algu m arrojo, qu e ao n ível da legitim ação da realeza, a Corte ten de a su bstitu ir-se às Cortes. Nu m a an álise detalh ada do cerim on ial, fácil é apreen der com o au tos de aclam ação se con fu n dem já com as ú ltim as Cortes. As Cortes de 1697-1698 foram , sobretu do, o ju ram en to do prín cipe su cessor, e o seu ritu al con fu n dia-se com o qu e teve lu gar, u m a década depois, aqu an do do “levan tam en to, e ju ram en to” do próprio com o rei, bem com o com os dos su bseqü en tes m on arcas portu gu eses. Em todos esses atos, pon tificava a “prim eira n obreza” e os prin cipais dign itários civis e eclesiásticos da m on arqu ia.25 O REIN A D O D E D . JOà O V (1706-1750): O A POGEU D O PORTUGA L BA RROCO Em con traste com o preceden te, o rein ado de D. João V, ain da m ais lon go do qu e o de seu pai, ficou registrado em ton alidades fortes e carregadas por su cessivas gerações de h istoriadores, escritores e pu blicistas qu e sobre ele recorren tem en te escreveram . Os efeitos do Tratado de Meth u en (1703), o ou ro de Brasil, Mafra, as cam pan h as pela elevação ju n to de San ta Sé, e, en fim , a própria im agem do rei “beato” e “lú brico”, n as palavras m ordazes de Oliveira Martin s, são apen as algu n s dos tópicos em torn o dos qu ais se con stru íram as im agen s póstu m as do período joan in o. Já n o sécu lo XX, discu rsos políticos divergen tes viriam a con trapor polêm ica e reiteradam en te a im agem de D. João V (1689-1750) e da su a época à do Marqu ês de Pom bal e do seu con su lado. O rein ado do ou ro prin cipiou sob o sign o da Gu erra e da escassez. A participação de Portu gal n a Gu erra da Su cessão de Espan h a ficou assin alada por u m a oscilação in icial, qu e fez com se qu e se passasse do apoio ao preten den te fran cês para a alian ça com o can didato au stríaco, apoiado pela In glaterra. É n o qu adro deste n ovo alin h am en to qu e é assin ado o Tratado de Meth u en com a In glaterra (1703) e qu e, depois da aclam ação form al do jovem m on arca (1707), se celebra o seu casam en to com u m a prin cesa au stríaca, D. Marian a de Áu stria (1708). Qu alqu er qu e seja o balan ço fin al qu e se faça dos tratados de Utrequ e (1713) e de Rastadt (1714), o rescaldo do en volvim en to de Portu gal n este gran de con flito eu ropeu parece ter sido a con solidação da opção atlân tica e da alian ça com a In glaterra, a potên cia m arítim a dom in an te. Na verdade, os m ais espetacu lares in vestim en tos diplom áticos do rein ado, desde logo pelo fau sto das en tradas dos en viados diplom áticos, tiveram lu gar n o cen ário con tin en tal da Eu ropa, apesar das pertu rbações qu e freqü en tem en te assin alaram as relações de Portu gal com essas potên cias. Com a Fran ça, on de se en viaram fau stosas em baixadas, as relações 135 Nuno Gonçalo Freitas Monteiro diplom áticas estiveram in terrom pidas en tre 1722 e 1730. Com a Espan h a, apesar dos casam en tos cru zados de 1728 do Prín cipe D. José com D. Maria An a Vitória e de D. Fern an do de Espan h a com a in fan ta portu gu esa D. Maria Bárbara, ch egou a ser declarado o estado de gu erra em 1735-36 e a ser solicitado o au xílio britân ico, só se con sagran do a paz defin itivam en te em 1737. De resto, as relações com o poderoso vizin h o ibérico, sem pre m arcadas pelo tem or da in tegração, foram em larga m edida determ in adas du ran te este período pelos problem as decorren tes das possessões colon iais da Am érica do Su l, adian te referidos. No en tan to, n a Eu ropa o gran de in vestim en to joan in o em m atéria diplom ática foi a con qu ista da paridade de tratam en to com as ou tras gran des potên cias católicas n o seu relacion am en to com a San ta Sé, à sem elh an ça do qu e ocorria an tes de 1580. Um processo caro, m oroso e arrastado n o tem po, qu e n ão exclu iu , sequ er, a ru ptu ra das relações diplom áticas en tre 1728 e 1732, e qu e certam en te sobrestim ava a cen tralidade política do Papado. Mas qu e, em term os gerais, alcan çou os objetivos visados. Se o padroado n o Orien te n ão foi plen am en te recon qu istado, a atribu ição da dign idade de igreja e basílica patriarcal em qu e se em pen h ou com êxito o Marqu ês de Fon tes (1716) e, m ais tarde, a atribu ição da dign idade cardin alícia ao Patriarca de Lisboa Ociden tal (1737), o recon h ecim en to do direito de apresen tação dos bispos pelo m on arca portu gu ês (1740) e a atribu ição a este do títu lo de Rei Fidelíssim o (1748) con sagraram o triu n fo de u m dos m ais sistem áticos in vestim en tos diplom áticos da h istória portu gu esa.26 A gran de prioridade, porém , foi sem pre o Brasil, a defesa das su as rotas e a defin ição e proteção das su as fron teiras. Em bora os feitos portu gu eses n o Orien te fossem celebrados com in u ltrapassáveis en côm ios e para lá se en cam in h assem com o vice-reis algu n s dos m ais destacados fidalgos do rein o já n a década 1740 (Marqu eses do Lou riçal, de Castelo Novo/ Alorn a e de Távora), a verdade é qu e desde 1736 (vice-rein ado do 1º Con de de San dom il) qu e a presen ça portu gu esa n a Ín dia en trara n u m a fase de irreversível declín io. O Brasil, pelo con trário, registrava u m m om en to de gran de prosperidade econ ôm ica e de apreciável crescim en to dem ográfico, n ele se an coran do, em larga m edida, o equ ilíbrio fin an ceiro da m on arqu ia. Com o afirm ava o velh o Du qu e de Cadaval em 1715, “do Brazil depen de h oje absolu tam en te m u ita parte da con servação de Portu gal”.27 As relações com a Espan h a foram , de resto, sem pre con dicion adas pelo problem a da defin ição das fron teiras do Brasil, sobretu do com a região do atu al Uru gu ai. O Tratado de Madri de 1750, ao qu al se costu m a associar o n om e do seu prin cipal n egociador portu gu ês Alexan dre Gu sm ão,28 forn eceu u m a solu ção provisória à qu estão, pois qu edava por solu cion ar o problem a dos territórios sob a tu tela da Com pan h ia de Jesu s. A solu ção fin al só se viria a con h ecer já n o período pom balin o. 136 A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO Um a ou tra dim en são essen cial do lon go rein ado joan in o foi a cen tralidade qu e veio a assu m ir a Corte e as relações n o seu in terior. Se, com o adian te se su blin h ará, a defin itiva fixação de toda a alta n obreza n a Corte/ Lisboa é u m dos resu ltados visíveis da Restau ração, qu e tão fortem en te con trastam com o in ício do sécu lo XVII, se a cristalização da elite do regim e se detecta claram en te já n o rein ado de D. Pedro II, cou be ao período joan in o reform u lar os ritu ais da Corte, redefin ir a su a h ierarqu ia de precedên cias e afirm á-la com u m a visibilidade sem preceden tes próxim os. Algu n s dos prin cipais con flitos qu e têm lu gar n o prim eira fase do rein ado decorrem den tro do u n iverso cu rial e resu ltam precisam en te da m odificação dos estatu tos n o seu in terior, e n ão da su a com posição. Resu ltado direto da elevação da capela real a patriarcal (1716), a qu estão de precedên cias en tre os côn egos da Patriarcal e os Con des é apen as o m ais con h ecido dos n u m erosos en fren tam en tos qu e en tão se registram , e qu e ch egaram a in clu ir u m a ação con ju gada das dam as do paço. A célebre lei dos tratam en tos de 1739 testem u n h a de form a con clu den te o esforço de reclassificação desse u n iverso fortem en te h ierarqu izado qu e en tão tem lu gar. Mas os vários episódios de con fron to en tre os m agistrados reais e os Gran des, dos qu ais resu ltaram vários degredos de aristocratas, o m ais con h ecido dos qu ais teve lu gar em 1728, m as qu e teve ain da vários su cedân eos até o in ício do rein ado de D. José,29 m ostram com o esse claro esforço de im posição da disciplin a n a vida da Corte se n ão pode dissociar da afirm ação da su prem acia régia. E, n o en tan to, a n om eação dos prin cipais ofícios e a política de m ercês, cada vez m ais con fin adas a esse u n iverso social, in stitu cion al e sim bolicam en te restrito, n ão deixaram de con tin u ar a revestir u m a apreciável m argem de n egociação.30 Aspecto essen cial da Corte joan in a foi a afirm ação da su a in dispu tada cen tralidade cu ltu ral. Expressão em blem ática deste período, Mafra foi apen as a tradu ção m ais visível du m con tín u o in vestim en to cu ltu ral e artístico,31 qu e se con su bstan ciou n a im portação sistem ática de n u m erosos artistas e m ú sicos italian os, bem com o n a en com en da direta de trabalh os. 32 O au ge da cu ltu ra barroca em Portu gal expressar-se-á tam bém , n ão só n as diversas academ ias literárias, cu ja expan são vem de trás, m as ain da n a fu n dação da Real Academ ia da História, em 1722. A im pressão, periódica e ou tra, con h ecerá tam bém du ran te o período joan in o u m a apreciável expan são, geralm en te su bestim ada. A dim en são de represen tação espetacu lar do poder real tem sido m u itas vezes destacada com o u m a das m arcas sin gu lares do período joan in o.33 Mas n ão deve fazer esqu ecer o olh ar freqü en tem en te crítico expresso, n ão só por viajan tes do Norte qu e visitavam a Pen ín su la católica, m as ain da em escritos de portu gu eses. Regressado das cortes fran cesa e espan h ola, o jovem 4º Con de de Assu m ar n ão deixava de se ch ocar com a parcim ôn ia da corte portu gu esa já n o fin al do rein ado joa- 137 Nuno Gonçalo Freitas Monteiro n in o: “n ão h á divertim en tos n em sociedade”; “depois de ter con h ecido Elrei de Fran ça e o de Castela assim o qu e presen tem en te rein a com o o an teceden te de qu em recebi m il h on ras coisa n en h u m a m e fez tan ta espécie n a n ossa terra com o a au steridade do(s) n ossos Prín cipes, m as isso atribu o eu à pequ en ez do rein o”.34 De fato, algu m as das expressões m ais n otórias de crítica à sociedade portu gu esa joan in a foram produ zidas por m em bros da elite política com experiên cia de ou tros cen ários in tern acion ais, aos qu ais a posteridade veio a dar, algu m as vezes, a design ação polêm ica de “estran geirados”.35 No en tan to, será difícil en con trar u m pen sam en to articu lado e sistem ático ou parâm etros con ceptu ais com u n s em person agen s com o o célebre diplom ata D. Lu ís da Cu n h a 36 ou o Alexan dre Gu sm ão. Além disso, parece im possível dem on strar qu e estes au tores, dos qu ais se con h ecem escassos e dispersos escritos, form assem u m a corren te de opin ião com expressão política faccion al. A in discu tível m odern ização cu ltu ral deste período n os dom ín ios artístico e arqu itetôn ico, só m u ito lim itadam en te existiu n ou tros terren os, em obras com o da Martin h o de Men don ça de Pin a Proen ça e Lu ís An tôn io Vern ey. De resto, as propostas de in ovação têm qu ase sem pre lu gar n o in terior da restrita elite política, com o se disse, e recorren do às form as de expressão características deste período. Em nível de administração central, com efeito, o reinado de D. João V represen tou u m a gran de m u tação silen ciosa.37 Até cerca de 1723, a idéia de reu n ir as Cortes parece ain da sobreviver, m as depois vai cain do gradu alm en te n o esqu ecim en to. O Con celh o de Estado, an tes o cen tro da decisão política, parece ter deixado de se reu n ir desde os an os vin te.38 Assistido pelo Secretário de Estado Diogo de Men don ça Corte Real, o rei despach a geralm en te depois de con vocar ju n tas com u m a com posição variável. Na seqü ên cia da m orte de Diogo de Men don ça (1736), tem lu gar a reform a das Secretarias de Estado, sen do por in erên cia os três secretários m em bros do Con celh o de Estado.39 No en tan to, está-se ain da lon ge da con stitu ição de au tên ticas secretarias (os fu tu ros m in istérios), processo qu e só terá lu gar m u ito m ais tarde. Até su a m orte (1747), o rei despach a frequ en tem en te com o Secretário de Estado do Rein o, Cardeal da Mota, em bora n em m esm o isso con stitu a regra in variável. Sem qu e n en h u m deles tivesse o títu lo de m in istro assisten te ao despach o, ou tros person agen s, com o o Cardeal e In qu isidor-Mor D. Nu n o da Cu n h a, Frei Gaspar da En carn ação ou o sim ples secretário particu lar Alexan dre Gu sm ão podiam assistir o m on arca n as su as decisões. E, de fato, a docu m en tação con h ecida su gere qu e, qu an do n ão estava en ferm o, o m on arca se em pen h ava pessoalm en te de qu ase todos os assu n tos qu e su biam a despach o, con h ecen do-os com su rpreen den te porm en or.40 De resto, h á ten sões n o in terior da elite política e religiosa da época qu e m arcam a ú ltim a fase do rein ado joa- 138 A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO n in o, design adam en te as su scitadas pelo problem a do m ovim en to religioso dos ch am ados jacobeu s,41 cu jas im plicações políticas ain da são m al con h ecidas. Este in equ ívoco declín io do “govern o dos con celh os e tribu n ais” com bin ou -se, tam bém , com u m in discu tível reforço da adm in istração periférica da coroa.42 No en tan to, esses n ovos in stru m en tos n ão são ain da poten ciados. A produ ção legislativa do rein ado foi redu zida e m u ito localizada n o tem po. A n om eação de ofícios e a rem u n eração dos serviços, para além da política exterior, con tin u aram a absorver a m aior parcela das aten ções do cen tro político do rein o. As reform as sistem áticas estavam ain da para vir. De resto, n os ú ltim os an os do rein ado, a m orte do cardeal da Mota e a doen ça do m on arca parecem ter paralisado, em larga m edida, a adm in istração cen tral e reacen dido a lu ta de facções, peran te o apagam en to da figu ra do m on arca. A CORTE, A RESID ÊN CIA D A PRIN CIPA L N OBREZA E A CON CEN TRA Çà O D A S HON RA S E D ISTIN ÇÕES Não vam os aqu i discu tir todas as possíveis dim en sões da corte,43 m as apen as u m a. Trata-se de u m a qu estão qu e perm ite estabelecer u m a distin ção clara e in equ ívoca, n ão apen as en tre a con figu ração social da sociedade de corte joan in a e o m odelo plu ral im ediatam en te an teceden te, m as tam bém en tre aqu ela e todas as con figu rações cu rais preceden tes. Para a discu ssão deste tem a, h á qu e recu ar n o tem po. Tem os assim de rem on tar até o in ício do sécu lo XVII. Um tem po a qu e corren tem en te se associa, porven tu ra com con siderável exagero, u m a im agem qu e se vai pedir literalm en te em prestada ao títu lo de u m dos textos m ais fam osos qu e en tão viu a lu z: “Corte n a Aldeia” de Fran cisco Rodrigu es Lobo.44 Fato in discu tível é qu e a m aior parte dos próxim os an tecessores das casas dos Gran des brigan tin os n ão residiam regu larm en te em Lisboa n o alvorecer de seiscen tos.45 No in ício do sécu lo XVII o padrão de residên cia dos titu lares e sen h ores de terras/ fu tu ros titu lares portu gu eses pau tava-se pela dispersão: algu n s residiam em Lisboa, ou tros em Évora, m u itos n as sedes dos seu s “estados”. Nos ú ltim os tem pos da m on arqu ia du al, a política deliberada de Madri con segu iu atrair para aqu ela cidade parte sign ificativa da prim eira n obreza do rein o, qu e por altu ras de 1640 aí residia.46 Ao todo cerca de m etade dos titu lares e gran de n ú m ero de sen h ores de terras e com en dadores en con travam -se en tão fora de Portu gal, em Madri ou em ou tros territórios ao serviço dos Áu strias.47 Mas, se recu arm os para períodos an teriores a 1580, qu an do h avia “rei n atu ral”, o pan oram a n ão seria radicalm en te diferen te: basta recordar qu e o prin cipal sen h or do rein o (e u m dos m ais 139 Nuno Gonçalo Freitas Monteiro importantes da península, pelas suas rendas, jurisdições e apresentação de ofícios), o Duque de Bragança, nunca residiu permanentemente em Lisboa, mas sim em Vila Viçosa, de onde só se deslocava em momentos bem determinados. De fato, durante todo o período das dinastias de Avis e dos Áustrias, a casa de Bragança manteve sempre a sua própria Corte e uma dimensão territorial notável. Como detalhadamente foi estudado em recente trabalho,48 não só preservou essa corte alentejana com um ritual e espaços de representação próprios, como então se dizia, “à maneira da casa real”, mas centenas de criados, incluindo muitas dezenas de fidalgos (alguns feitos pela própria casa), aos quais distribuía mais de quatro dezenas de comendas, uma administração significativamente organizada, e uma imensa rede provincial de clientes, pois confirmava pouco menos de um quinto das câmaras do país e apresentava mais de 3 mil oficiais, entre civis e eclesiásticos. A casa de Bragança, só por si, permite afirmar que em Portugal até 1640 existiu sempre um “sistema de cortes” e não o monopólio curial da realeza. A gradual “construção da capital” e o progressivo reconhecimento de Lisboa como “cabeça do reino” ao longo do século XVI,49 não nos pode fazer esquecer aquilo que sempre esteve fora. Ora, n o fim do terceiro qu artel de seiscen tos a m u dan ça é absolu tam en te radical: todos os titu lares, bem com o a m aioria dos sen h ores de terras e com en dadores, deviam residir em Lisboa. Qu an do tal n ão acon tecia, o fato era registrado com estran h eza: ao 2º. Con de de Un h ão, qu e tin h a prolon gado a su a residên cia n os Ch avões (San tarém ), viven do “retirado da Corte”, ch am aram -lh e “El Prin cipe de los Mon tes”.50 A partir do m om en to em qu e se con solidou a elite aristocrática da n ova din astia, por altu ras da regên cia pedrista, os Gran des (con des, m arqu eses e du qu es) passaram ser design ados por expressões com o “a prim eira gran deza da Corte”, cabeça do gru po m ais vasto con stitu ído pela “prim eira n obreza da Corte”, e essa iden tificação fu n dam en tal m an teve-se até o fin al do An tigo Regim e. De resto, pelo m en os desde a segu n da m etade do sécu lo XVII qu e se foi desen h an do u m a fron teira social in equ ívoca en tre a n obreza de Corte e a fidalgu ia da provín cia. Nesta ú ltim a se com preen diam , por vezes, casas qu e se repu tavam m u ito an tigas e em tem pos aliadas com as qu e vieram a ser elevadas à Gran deza n o sécu lo XVII, m as qu e, pelo fato de se n ão h averem in tegrado n a Corte, tin h am m ergu lh ado n a relativa obscu ridade da vida provin cial. O divórcio social en tre u m as e ou tras foi-se cavan do cada vez m ais ao lon go dos sécu los XVII e XVIII. Fech adíssim as oligarqu ias locais, acan ton adas n as vereações cam arárias, com o a de Braga 51 n ão con segu iam levar o zelo com qu e defen diam os seu s predicados con tra os in tru sos locais até ao pon to de se con segu irem aliar com os Gran des do rein o. A en dogam ia m atrim on ial con stitu ía, aliás, u m a das m arcas fu n dam en tais da prim eira n obreza da corte.52 140 A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO A m u tação an tes descrita teve efeitos decisivos n a con figu ração das elites sociais e n o bloqu eam en to das vias de acesso às diversas distin ções su periores, ofícios e ren das con cedidas pela m on arqu ia.53 Um a breve im agem de con ju n to do acesso a algu m as das prin cipais doações régias (títu los e com en das) perm ite-n os situ ar com precisão os m arcos prin cipais da evolu ção verificada. A qu al, recorde-se bem , se reporta ao topo da h ierarqu ia in stitu cion al e social, e n ão à su a base, on de a evolu ção poderá ter sido diferen te.54 Com ecem os pela titu lação. O m om en to fu n dam en tal da con stitu ição defin itiva da elite titu lar da época m odern a situ a-se n as ú ltim as décadas da m on arqu ia du al (1580-1640), ao lon go das qu ais se criaram cerca de qu atro dezen as de casas titu lares. O n ú m ero total de casas en tão atin gido, passan do de cerca de du as dezen as para m ais de m eia cen ten a, m an ter-se-á praticam en te estável até a ú ltim a década do sécu lo XVIII, apesar de cerca de 40% das casas portu gu esas terem desaparecido com a Restau ração. De fato, foram rapidam en te su bstitu ídas, e a freqü ên cia da con cessão an u al de títu los en tão alcan çada só voltou a ser u ltrapassada (largam en te) du ran te a regên cia do prín cipe D. João (1792-1816) e seu posterior rein ado. A n otável estabilidade alcan çada n os cerca de 130 an os posteriores ao fim da Gu erra da Restau ração (1668) n ão tem paralelo em n en h u m ou tro período da h istória portu gu esa, e raras vezes terá sido igu alada por ou tras aristocracias eu ropéias. Du ran te m ais de u m sécu lo criaram se e extin gu iram -se pou qu íssim as casas. Acresce qu e o n ú cleo cen tral do gru po se m an teve extrem am en te estável. No pon to m áxim o da su a cristalização, em 1750 (an o da m orte de D. João V e da en trada de Pom bal para o govern o), das 50 casas titu lares existen tes em Portu gal, 34 tin h am sido elevadas h á m ais de 100 an os e 7 vin h am desde o sécu lo XV. Passado u m período de m u dan ça de din astia, de gu erra e de agitação política, delim itara-se a elite aristocrática do n ovo regim e. As vias para o acesso à Gran deza foram -se torn an do cada vez m ais estreitas. E as doações régias foram se con cen tran do cada vez m ais n essa elite restrita.55 Um bom in dicador da evolu ção verificada n os é forn ecido pelas com en das das três orden s m ilitares in corporadas n a Coroa (Avis, Cristo e San tiago). Neste caso, é possível con fron tar du as situ ações in tervaladas de qu ase sécu lo e m eio (1611 e 1755), qu e perm item detectar m ais claram en te as m u dan ças operadas. Apesar de as fon tes con su ltadas para o efeito apresen tarem im en sas lacu n as, as gran des lin h as de evolu ção ficam claram en te esboçadas. Nos prim órdios do sécu lo XVII os com en dadores das orden s m ilitares eram u m a categoria social n u m erosa, qu e abran gia m ais de qu atro cen ten as de in divídu os e casas, em bora os pou cos titu lares absorvessem já u m a avu ltada parcela do ren dim en to agregado das com en das com adm in istrador. Sécu lo e m eio m ais tarde (1755) o n ú m ero de com en dadores viu -se redu zido a bem m en os de m etade, e as 50 casas titu lares existen tes absorviam já cerca de dois terços do ren dim en to con ju n to. A 141 Nuno Gonçalo Freitas Monteiro distribu ição dos ren dim en tos das com en das forn ece-n os, assim , u m retrato im pression an te da evolu ção do topo da pirâm ide n obiliárqu ica: desde o in ício do sécu lo XVII, o gru po sofre u m a espetacu lar dim in u ição da su a dim en são, passan do as casas titu lares an tigas (qu ase todas com Gran deza) a absorver a m aior parte desses ren dim en tos. No lon go período de en cerram en to de m ais de u m sécu lo qu e se segu iu à abertu ra da prim eira m etade de seiscen tos, os vice-rein ados n a Ín dia ou n o Brasil con stitu íram u m a das raras vias de acesso à Gran deza, pois n a fase m ais restritiva (1671-1760), da qu al aqu i n os ocu pam os, cerca de m etade dos títu los foram criados em rem u n eração daqu eles serviços. Sim plesm en te, com o a totalidade dos n om eados n aqu ele período eram Gran des ou n ascidos n a prim eira n obreza, a abertu ra restrin giu -se a esse círcu lo bem restrito. De fato, os vice-rein ados n a Ín dia con figu ram -se até o período pom balin o com o o ofício de m aior preem in ên cia sim bólica e m ais estreitam en te iden tificado com a Gran deza, m an ten do até en tão u m a au ra de h eroicidade m ilitar ú n ica, decorren te, n ão apen as da m em ória dos feitos passados, m as ain da da atu alidade bélica qu e rodeava o seu exercício, celebrada aliás com en côm ios sem preceden tes em m eados de setecen tos. No en tan to, ao con trário do qu e se verificou n o sécu lo XVI, qu an do a m aioria dos vice-reis tin h a lon ga experiên cia n a Ín dia, apen as 4 dos 21 n om eados en tre 1651 e 1765, tin h am estado an tes n o Orien te. O vice-rein ado in dian o já n ão servia de cu m e a u m a carreira ascen sion al n as várias praças in dian as, aberta a “soldados da fortu n a”, m as sobretu do de tradu ção do valim en to n a corte dos seu s deten tores, m u itos dos qu ais n em sequ er possu íam qu alqu er experiên cia colon ial.56 Na verdade, eviden cian do a crescen te aristocratização do cargo, a m aior parte dos vice-reis era primogênitos e, como se disse, praticamente todos nascidos em casas da “prim eira n obreza” do rein o. O pen oso exercício do cargo serviu sobretu do para acrescen tar as casas com as rem u n erações a qu e dava direito, m u itas vezes du ram en te n egociadas an tes da partida. A con cen tração de ofícios n as casas da “prim eira n obreza” esten dia-se tam bém aos eclesiásticos, design adam en te, às carreiras qu e forn eciam às in stitu ições as su as prin cipais figu ras eclesiásticas: bispos das dioceses m ais im portan tes, cardeais, “m in istros assisten tes ao despach o”, en fim , qu ase todas as m ais preem in en tes dign idades eclesiásticas e ofícios secu lares desem pen h ados por eclesiásticos. Na verdade, até ao seu irreversível declín io n a segu n da m etade de setecen tos,57 as carreiras eclesiásticas dos filh os dos Gran des n ão passaram majoritariamen te pelo in gresso n u ma ordem regu lar, característica qu e se acen tu ou n a passagem do sécu lo XVII para o XVIII. A elevação da Sé de Lisboa a Patriarcal (1716) e a m agn ífica dotação qu e recebeu de D. João V con tribu íram para qu e, ao lon go do sécu lo, a m aioria dos eclesiásticos aí term in asse os seu s dias. Era o destin o 142 A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO n orm al e desejável, por on de passaram qu ase todos os secu lares, m esm o aqu eles qu e faleceram n o exercício de u m a dign idade eclesiástica m ais elevada, ou os qu e an tes fizeram u m vasto périplo por ou tras dign idades eclesiásticas (arcediagos de algu m a paróqu ia, Su m ilh eres da Cortin a, D. Prior da Colegiada de Gu im arães etc.). De fato, a m aior parte dos Prin cipais da Patriarcal n os fin ais do rein ado joan in o eram filh os ou irm ãos de Gran des e n o con ju n to da qu ase cen ten a de dign itários, os secu n dogên itos da prim eira n obreza estavam em m aioria. A Ordem de Malta foi sem pre u m a opção m in oritária (m as su ficien te para h aver dois grão-m estres portu gu eses precisam en te n o período estu dado), e m u ito especial (era a ú n ica ordem efetivam en te religiosa-m ilitar 58). Qu an to ao topo da h ierarqu ia eclesiástica, a an álise do estatu to de n ascim en to dos bispos e arcebispos portu gu eses en tre 1500 e 1820, perm ite avaliar os n íveis de prom oção social abertos pelas respectivas carreiras. Reportar-n os-em os apen as às dioceses e arqu idioceses do Con tin en te portu gu ês, distin gu in do en tre as m ais prestigiadas (Lisboa, Braga, Évora, Porto e Coim bra) e as restan tes. Su blin h e-se, de resto, qu e a coroa portu gu esa teve, desde o in ício de Qu in h en tos, u m a sign ificativa in terven ção n a escolh a dos prelados, em bora n em sem pre da m esm a form a.59 Nas dioceses prin cipais, a m aioria dos bispos era, desde h á m u ito, recru tada n a prin cipal n obreza do rein o (bastardos reais, filh os de Gran des ou de sen h ores de terras), m as essa dim en são foi se acen tu an do cada vez m ais até ao in tervalo 1700-1760, qu an do a qu ase totalidade dos bispos a ela perten cia, sen do a m aioria filh os de Gran des do rein o. Som en te n o período segu in te (1761-1820) se verifica u m a espetacu lar in versão dessa ten dên cia, en con tran do-se os bispos n ascidos fora da prin cipal n obreza do rein o, pela prim eira vez, em m aioria. Nas dioceses de m en or preem in ên cia, a percen tagem das referidas categorias é m en os im portan te do qu e n as an teriores, m as ten de a su bir sem pre até 1700. A qu ebra n este caso dá-se m ais cedo, pois é já visível n o período 1701-1760. Para além dos gran des ren dim en tos de qu e se ben eficiavam , e qu e freqü en tem en te deram lu gar a avu ltadas h eran ças em ben s patrim on iais a favor dos seu s paren tes, os bispos portu gu eses tin h am ain da u m a ou tra form a de capitalizar em favor do acrescen tam en to daqu eles o desem pen h o dos seu s ofícios: a doação dos seu s serviços, depois rem u n erados pela m on arqu ia em ren das e distin ções. No en tan to, o pou co qu e sabem os sobre este m ecan ism o su gere qu e serviu sobretu do e de form a sistem ática para acu m u lar cada vez m ais h on ras e proven tos n as gran des casas aristocráticas, ou seja, para as acrescen tar. Foi por esse m eio, por exem plo, qu e a casa dos Con des de Avin tes ascen deu ao Marqu esado de Lavradio, a dos Con des de Vale de Reis ao Marqu esado de Lou lé, e qu e a dos Du qu es de Lafões acrescen tou m ais três com en das ao seu vasto patrim ôn io.60 Pelo 143 Nuno Gonçalo Freitas Monteiro con trário, são pou co n u m erosos os casos con h ecidos de rápida m obilidade social assim desen cadeada. Os in dicadores apon tados refletem , de form a m u ito próxim a, as etapas de recon figu ração, cristalização e crepú scu lo da aristocracia de corte da din astia brigan tin a. Origin ada n u m processo de in ten sa com petição e decorren te seleção en tre as casas fidalgas fu n dadas m ajoritariam en te n os sécu los XV e XVI, a aristocracia cu rial lu sitan a ten de a cristalizar-se algu m as décadas depois da Restau ração de 1640. No período su bseqü en te, m on opoliza virtu alm en te as prin cipais doações da coroa e os m ais destacados ofícios da m on arqu ia, n estes se in clu in do os m ais apetecidos ben efícios eclesiásticos para os seu s secu n dogên itos. Com o an tes se disse, esta cristalização aristocrática dos ofícios su periores da m on arqu ia tin h a u m a expressão paradigm ática n os órgãos cen trais da adm in istração, design adam en te, n os diversos con celh os e tribunais, quase sempre presididos por Grandes, e, em particular, nos Con celh os de estado. Na n om eação de 1704 com o em todo o período an teceden te, o Con celh o de Estado era con stitu ído qu ase só por Gran des leigos e por Gran des eclesiásticos, seu s irm ãos ou tios. O seu u lterior esvaziam en to sign ificou , assim , o trân sito do cen tro de decisão política para ou tros atores. No en tan to, a verdade é qu e n en h u m dos prin cipais m in istros e con selh eiros joan in os fu n dou u m a casa aristocrática ou se ligou por alian ças à prim eira aristocracia, apesar de algu n s terem recebido com en das. O pacto con stitu cion al da din astia, qu e pressu pu n h a a preservação con tra ven tos e m arés das casas aristocráticas qu e tin h am con tribu ído para a su a con solidação, n ão foi, assim violado. De fato, n o in terior da con figu ração social an tes defin ida, a posição das velh as casas dos Gran des n ão era assegu rada apen as pela relação in stitu ída en tre serviços e m ercês, m as tam bém pelo lu gar con stitu cion al qu e se recon h ecia às casas an tigas da n obreza e à n ecessidade de as preservar. Neste, com o em ou tros terren os, o Portu gal Barroco pode ser apresen tado com o u m período de excepcion al cristalização social em torn o da Corte e das elites aristocráticas qu e n ela pon tificavam desde m eados de seiscen tos. Esta característica do Portu gal Restau rado veio, afin al, acen tu ar os efeitos de u m a das h eran ças h istóricas m ais im portan tes da m on arqu ia portu gu esa m odern a qu e era a escassa im portân cia dos corpos políticos in term édios e da su a qu ase n u la expressão territorial. Não se trata apen as da in existên cia de in stân cias au tárqu icas region ais o qu e m arca a sin gu laridade portu gu esa. É possível esten der essa caracterização ao con ju n to dos “corpos in term édios”, qu er dizer, à totalidade dos corpos qu e à escala do rein o se situ avam en tre o cen tro e a escala (m icro) local.61 Con stru in do-se através da recon qu ista e n ão por via da u n ião din ástica, Portu gal n ão con stitu ía u m a “m on arqu ia com pósita”, n em in tegrava com u n idades político- 144 A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO in stitu cion ais preexisten tes. Não existiam qu aisqu er direitos region ais, n em in stitu ições próprias de provín cias (cristalizadas, por exem plo, an tes da su a u n ião), n em sequ er com u n idades lin gü ísticas acen tu adam en te diversificadas. Nas próprias ilh as atlân ticas a m u n cipalização do espaço político local coarctou o su rgim en to de in stân cias au tôn om as region ais. Depois da Restau ração, pois an tes o rein o de Portu gal era de certa form a u m corpo den tro da m on arqu ia du al, a coroa portu gu esa n u n ca teve de se defron tar com corpos dotados de forte en tidade e com expressão territorial, ao con trário de ou tras m on arqu ias eu ropéias. As in stitu ições com iden tidade in stitu cion al relevan te (a com eçar pelos tribu n ais cen trais) n ão só se localizavam qu ase todas em Lisboa, com o eram abran gidas em larga m edida pelas teias da sociedade de Corte, diagn óstico qu e se aplica até a in stitu ições qu e tiveram algu m protagon ism o político, com o a câm ara da capital ou o respectivo “ju iz do povo”.62 O con trapon to do cen tro eram os poderes locais e sobretu do m u n icipais. Aspecto qu e divergia fortem en te do qu e se passava em Fran ça, em Espan h a e n a gen eralidade das m on arqu ias eu ropéias da época. Passada a con ju n tu ra im ediatam en te u lterior à Restau ração, o plu ralism o político e in stitu cion al parece dim in u ir claram en te n o Portu gal Barroco. A polarização en tre a Corte e as provín cias adqu ire, em todos os terren os, u m a dim en são sem preceden tes. 145 Nuno Gonçalo Freitas Monteiro N OTA S 1. Cf., en tre ou tros, HESPANHA., 1989. Cf. tam bém A "Restau ração" portu gu esa n os capítu los das cortes de 1641. Penélope. Fazer e desfazer a História, n .9-10, 1993; tam bém o texto clássico de TORGAL, L. R. Ideologia política e teoria do Estado na Restauração. Coim bra, 1981-1982. 2.v. 2. BOUZAS ALVAREZ, F., 1987., cf. tam bém SCHAUB, J.-F., 1994. p.223 ss. 3. Cf., en tre m u itos ou tros texto, G. M. Matos, “O sign ificado político da Restau ração”, 4º. CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA PARA O PROGRESSO DAS CIÊNCIAS. Porto, 1943, p.355-63. 4. Cf. CORTESÃO, J., 1984. parte I, t.I. 5. Cf. as du as alín eas qu e se segu em tiveram com o pon to de partida a reelaboração de capítu los origin alm en te redigidos para a edição de 1998 de HESPANHA, A. M., 1998. 6. E em boa parte im pressas, com o As Mon stru osidades…, A Catástrofe... e a An ticatástrofe, a Gazeta em form a de Carta de João Soares da Silva, e, m ais recen tem en te, as fabu losas "Mem órias Históricas" do 1º. Con de de Povolide, en tre m u itas ou tras. Sem falar das m an u scritas (cf. sobre o assu n to, MATOS, G. de M . Notícia de alguns memorialistas portugueses do princípio do século XVIII. Nação Portuguesa, 1929. v.I, 1936 v.X. 7. Cf. BAIÃO, A. Causas de nulidade do matrimónio entre a rainha D. Maria Francisca Isabel de Saboya e o rei D. Afonso VI. Coim bra, 1925 8. Sobre o assu n to cf. diversos trabalh os de HESPANHA, A., 1988, e ain da SUBTIL, J., 1998. 9. Cf. en tre ou tros, BOXER, C. Salvador de Sá and the Stugle for Brazil and Angola, 1602-1686. Lon dres, 1952. e CABRAL DE MELO, E. Olinda Restaurada: Gu erra e Açú car n o Nordeste, 1630-1654. São Pau lo, 1975. 10. II vol., p.461. 11. Biblioteca Nacion al de Lisboa, FG, 6937, fl. 8-14, ou 649, 3º. 12 . Tradu ção do relatório pu blicado em SERRÃO, J. V. Uma relação do reino de Portugal em 1684. Coim bra, 1960. p.31, qu e con stitu i u m a m agn ífica fon te de in form ação. 13. Ibidem , p.25. 14. Cf. CONDE DE TOVAR., 1961. 15. Cf., en tre ou tros, SERRÃO, J. V., op. cit., p.31, e SILVA, J. S. da, Gazeta em forma de carta (1701-1716). Lisboa, 1933. p.86. 16. Cf. PRESTAGE, E., 1919. p.17 (de en tre os 33 n om eados n o rein ado joan in o, 22 eram Gran des leigos). 17. Veja-se a esse respeito as con su ltas do todo poderoso 1º. Du qu e de Cadaval n o in ício do sécu lo XVIII, Biblioteca Nacion al de Lisboa, F. G. 749. 18. Apesar das diferen ças, o paralelism o com Espan h a, n a seqü ên cia do afastam en to de Valen zu ela, é óbvio; cf., sobre o assu n to, Valien te, F. T. Los validos em la m on arqu ía españ ola del siglo XVII. Madrid, 1982, e, sobretu do, ALVÁREZ-OSSORIO, A. El favor real: liberalidad del prín cipe y jerarqu ia de la repú blica (1665-1700). In : CONTININSIO, C., MOZZARELLI C. (Ed.). Repubblica e virtù . Pen siero politico Mon arqu ia Cattolica. Rom a, 1995. 19. SILVA, J. S. da Monstruosidades do tempo e da fortuna (1662-166). Porto, 1938. p.36. v.I. 20. Cf. as teses, bem docu m en tadas, de Matos, G. de M., 1940. v.VII, e 1944. v.VIII. 21. Sobre o con ju n to destes tem as, cf. MACEDO, J. B. de, s.d.(a). p.193-9 e p.211-20. 22. É dem asiado vasta a bibliografia sobre o assu n to para se poder aqu i citar; cf. sín teses recen tes de MAURO, F. O Império luso-brasileiro (1620-1750) de, SERRÃO, J.; OLIVEIRA MARQUES, A. H. Nova História da Expansão Portuguesa. Lisboa, 1991. v.VII. e BETHENCOURT, F., CHAUDURI, K. (Dir.) História da Expansão Portuguesa. Lisboa, 1998. v.2 e 3. 146 A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO 23. Cf. MACEDO, J. B de, 1982, p.22. s. e, apesar das lim itações e deficien te tradu ção, HANSON, C., 1986, p.161 ss. 24. Cf., sobre o con ju n to destes tem as, CARDIM, P. O qu adro con stitu cion al (…). As Cortes. In : HESPANHA, A. (Dir.) O Antigo Regime (1620-1870). p.132 s, e tam bém CARDIM, P., 1998. 25. Cf. Cortes de Lisboa dos annos de 1697 e 1698. Congresso da Nobreza, Lisboa, 1824, e Auto do levantamento, e juramento, que os Grandes, Titulos Seculares, Ecclesiasticos, e mais pessoas, que se acharäo presentes, fizerão ao muito alto, e muito poderoso senhor El Rey D. João V... Lisboa, 1750. Um a su gestão clara n o sen tido proposto se pode depreen der con fron tan do as ch am adas “m em órias h istóricas” ( Portugal, Lisboa e a Corte no reinado de D. Pedro II e D. João V – Memórias Históricas de Tristão da Cunha de Ataíde 1º. Conde de Povolide (in t. de A. V. Saldan h a – in t. – e Carm en M. Radu let), Lisboa, 1990, p.136-7) com as im propriam en te ditas “m em órias ín tim as” ( A.N.T.T., – Casa de Povolide, 19-A, tom . I, fl.113) do 1º. Con de de Povolide. 26. Cf., en tre ou tros, BRAZÃO, E., 1938. 27. Citado em SERRÃO, J. V., 1982, p.247. 28. Cf. CORTESÃO, J., 1984. 29. Cf. A ultima condessa de Atouguia. Memorias autobiograficas. Pon tevedra, 1916. p.10. 30. Cf. a n otável correspon dên cia de D. João V pu blicada em BAIÃO, A., 1945. 31. Cf. PIMENTEL, A. F., 1992. 32. O tem a tem sido objeto de u m a vastíssim a bibliografia recen te. Cf., en tre m u itos ou tros títu los, CARVALHO, A. de, D. João V e a Arte do seu tempo. Mafera, 1962; 2v. PEREIRA, J. F. (Dir.) Dicionário da Arte Barroca em Portugal. Lisboa, 1989, e MAGNIFICO J. V. A Pintura em Portugal no tempo de D. João V, 1706-1750. Lisboa, IPPAR, 1994. 33. Cf. BEBIANO, R., 1987. 34. A. N. T. T., Casa Fron teira e Alorn a, m aços n º.s 118 e 122. A correspon dên cia do jovem Con de de Assu m ar en con tra-se em vias de pu blicação. 35. Cf. u m a crítica en fática do con ceito em MACEDO, J. B. de, s.d.(a) 36. Cf. CLUNY , I., 1996. 37. Sobre o con ju n to destas m atérias, cf. o texto fu n dam en tal de ALMEIDA, L. F, 1995. 38. Cf. Portugal, Lisboa e a Corte …, p.372. 39. Cf. MERÊA, P., 1965. 40. Cf. BAIÃO, A., op. cit. 41. Cf. SILVA, A. P. da A questão do sigilismo em Portugal no século XVIII. Braga, 1964. 42. Cf. MONTEIRO, N. G. Con celh os e com u n idades. In : MATTOSO, J. (Dir.) História de Portugal. Lisboa, 1998. v.IV. 43. Cf. HESPANHA, A. M. La Corte. In : La gracia del derecho. Econ om ia de la cu ltu ra en la Edad Modern a. Madri: 1993. p.93. 44. Cf. Corte na aldeia e noites de Inverno (1616), Lisboa, 1945. 45. Cf. Biblioteca Nacional de Lisboa. Fu n do Geral, códice 7641, fl. 52 ss. Na m edida em qu e se m en cion am os Con des de Ficalh o (castelh an os), títu lo de 1599, m as n ão os posteriores, a dita relação terá sido elaborada por volta de 1600. 46. Cf., en tre ou tros, OLIVEIRA, A. de Poder e oposição política em Portugal no período filipino (1580-1640). Lisboa, 1990. Sobretu do p.234-5, e BOUZA ÁLVAREZ, F. La n obleza portu gu esa y la corte m adrileñ a h acia 1630-1640. Nobles y lu ch a política en el Portu gal de Olivares, Colóqu io: LA RUPTURE LUSO-CASTILLANE DE 1640, Maio de 1992, Paris: Cen tre d’Etu des Portu gaises (EHESS). (exem plar policopiado) 47. Cf. DÓRIA, A. A. (n ota D) In : CONDE DE ERICEIRA. História de Portugal Restaurado. Porto: n ova ed., s.d. p.488-9. 48. Cf. SOARES DA CUNHA, M. As redes clientelares da Casa de Bragança (1560-1640). Évora, 1997. Dissertação (Dou torado) (Mim eógr.). 147 Nuno Gonçalo Freitas Monteiro 49. Cf. Magalh ães J. R. No alvorecer da m odern idade (1480-1640). In : MATTOSO J. de (Dir.) História de Portugal. Lisboa, 1993. p.50-9. v.3. 50. Cf. SAMPAIO, L. T. de Estudos Históricos. Lisboa, 1984. p.74. (com base n as Monstruosidades...) 51. CAPELA, J. V. O Município de Braga de 1750 a 1834. O govern o e a adm in istração econ ôm ica e fin an ceira. Braga, 1991. 52. Cf. MONTEIRO, N. G. Casam en to, celibato e reprodu ção social: a aristocracia portu gu esa n os sécu los XVII e XVIII. Análise Social, v.XXVIII, n .123-124, p.921-50,1993. 53. De resto, com exceção dos sen h orios eclesiásticos, já n ão h á du ran te a din astia de Bragan ça in stitu ições sen h oriais dotadas de gran de au ton om ia; a casa do In fan tado acabou por n ão se con stitu ir com o tal, apesar dos seu s propósitos in iciais (cf. LOURENÇO, M. P. A Casa e o Estado do Infantado, 1654-1706. Lisboa: JNICT, 1995. p.25ss.). 54. Cf., por exem plo, MONTEIRO, N. G. Elites locais e m obilidade social em Portu gal n os fin ais do An tigo Regim e. Análise Social, n .141, p.335-68, 1997. 55. Cf., sobre o con ju n to destes tem as, MONTEIRO, N. G., 1998. Parte I, cap.3. Sobre as casas qu e perm an eceram do ou tro lado do con flito, cf. BOUZA ÁLVAREZ, F., 1994. 56. No sécu lo XVIII, u m Gran de do rein o ou su cessor de casa da “prim eira n obreza” só podia partir para o Orien te com o govern ador ou vice-rei, n u n ca n u m a arm ada ou para com an dar u m a sim ples praça; cf. Mafalda Soares da Cu n h a e Nu n o G. Mon teiro, “Vice-reis, govern adores e con selh eiros de govern o do Estado da Ín dia (1505-1834). Recru tam en to e caracterização social”. Penélope. Fazer e desfazer a história, n .15, p.91-120, 1995. 57. Cf. MONTEIRO, N. G., op. cit. 58. Não restem dú vidas qu e a Ordem de Malta era a ú n ica em qu e “o estado dos seu s professos h e o de verdadeiro Religioso”. MELLO FREIRE, P. J. de Dissertação historico-juridica sobre os direitos e jurisdicção do Grão-Prior do Crato... Lisboa, 1829. p.6. 59. As in form ações sobre o bispos foram obtidas recorren do a u m a m u ltiplicidade de fon tes, n o âm bito do projeto – Optim a Pares (ICS-PRAXIS XXI), estan do a execu ção a cargo de Lu ísa Fran ça Lu zio. 60. Cf. MONTEIRO, N. G., op. cit. 61. Cf., sobre este tem a, MONTEIRO, N. G. Poder local e corpos in term édios: especificidades do Portu gal m odern o n u m a perspectiva h istórica com parada. In : ESPINHA DA SILVEIRA, L. (coord .) Poder Central, Poder Regional, Poder Local. Uma perspectiva histórica. Lisboa: Cosm os, 1997. p.47-61. 62. Cf. a recen tes sín tese BERNSTEIN, H. The lord mayor of Lisbon. The Portuguese Tribune of the People and His 24 Guilds. Boston , 1989. 148 A CONSOLIDAÇÃO DA DINASTIA DE BRAGANÇA E O APOGEU DO PORTUGAL BARROCO B IBLIOGRA FIA ALMEIDA, L. F. de Páginas dispersas. Estu dos de h istória m odern a de Portu gal. Coim bra, 1995. BAIÃO, A. D. João V. Su bsídios para h istória do seu rein ado. Porto, 1945. BEBIANO, R. D. João V, poder e espetáculo. 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Anais da Academia Portuguesa de História, 2ª série, v.II, 1961. 150 capítu lo 9 POMBA L E O BRA SIL Fran cisco Calazan s Falcon * O tema deste ensaio um tanto breve, como convém ao gênero, tem como pano de fundo uma “época” da história luso-brasileira particularmente trabalhada pela historiografia. Entre a idéia de uma “realidade” histórica inerente à própria “época” e a do seu caráter historiograficamente construído, situam-se as hesitações do historiador as quais são também suas opções teórico-metodológicas. Com efeito, se não podemos mais acreditar numa reconstituição “positivista’ da “época pombalina” em relação à seqüência cronológica dos acontecimentos que a identificam, tampouco poderíamos pretender perspectivá-la como “época” no sentido “historista”, isto é, única e incomparável. Convém portanto esclarecer que nossa referência a uma “Época Pombalina” representa apenas uma espécie de expediente a fim de justificar um certo recorte cronológico no interior de cujos limites se tenta identificar algumas manifestações mais ou menos específicas do ponto de vista do que elas significam efetivamente, em termos de continuidade ou ruptura, quer em relação ao que antecede a “data-limite” de 1750, quer ao que se passa após 1777. Foi de acordo com tais premissas que tentamos, muitos anos atrás,1 escrever uma história da “Época Pombalina”, a partir de sua representação como “mercantilista” e “ilustrada”; inscrevendo-a no contexto geral da modernidade européia e, em particular, da ibérica 2. As circunstâncias de então não permitiram abranger, no nosso texto, a outra face dessa época – a “brasileira”. De lá para cá temos tentado, em ocasiões e de modos diversos, realizar o estudo dessa “face brasileira” do reformismo ilustrado. A par das conhecidas e inevitáveis dificuldades inerentes à própria pesquisa, defrontamo-mos com problemas de caráter historiográfico bastante reais, pois, o nosso objeto de análise é também o objeto construído por toda uma historiografia que cristalizou uma tradição acerca dos modos de “ver” e interpretar tal objeto. Ao analisarmos a “face brasileira” das reformas pombalina temos em vista, preliminarmente, o diálogo com uma historiografia que, de uma maneira geral, e salvo, é claro, as honrosas exceções de sempre, possui como características: 1 – o “inventário” descritivo-narrativo, mais ou menos pormenorizado, dos textos legais e regimentais produzidos em Lisboa, nos 151 Francisco Calazans Falcon quais se consubstanciam as reformas a serem aplicadas à Colônia; 2 – a interpretação do sentido de tais práticas reformistas segundo o ponto de vista da retórica das autoridades da Metrópole presente nos respectivos discursos; 3 – o freqüente desprezo pelas especificifidades da colônia, a “situação” colonial, a pluralidade dos “espaços” e a diversidade dos “tempos”; 4 – O silêncio, quase total e insistente, a respeito da “recepção” das reformas no ambiente colonial, isto é, suas “leituras”e as práticas daí decorrentes, quer dos próprios agentes da administração lusitana, quer dos grupos, ou segmentos sociais, que, na falta de um termo mais preciso, denominamos “as elites coloniais”.3 A COLÔN IA , SEUS ESPA ÇOS E TEMPOS O “Império Português”, no século XVIII, compreende os territórios metropolitanos e os domínios ultramarinos, uma “área semi-periférica que constitui um dos vários “subsistemas” do “Sistema Mundial Moderno”, capitalista e europeu 4. No interior desse subsistema destaca-se o espaço lusoatlântico, por sua riqueza e dinamismo econômicos, envolvendo as relações de Portugal com a América portuguesa e as feitorias situadas no litoral africano. As articulações das diversas áreas desse espaço constituem o essencial da estrutura e dinâmica do “Antigo Sistema Colonial”.5 O primeiro dado a ser levado em conta neste caso é a própria “condição colonial” e tudo que significa concretamente em termos da necessária distinção entre “colonizadores”, “colonos” e “colonizados”, categorias estas que podem assim ser descritas: colonizadores – “todos aqueles elementos ligados à esfera administrativa (leigos e eclesiásticos) e também, e sobretudo, os comerciantes, “negociantes de grosso-trato, ou homens de negócio; colonos (resultantes do desdobramento do colonizador em colono) – “ os proprietários coloniais – da mão-de-obra, da terra, dos meios de trabalho; colonizados – todos os demais segmentos da população – índios, negros, brancos pobres, mestiços.6 Como iremos ver mais adiante, as “elites coloniais” correspondem a subdivisões da categoria “colonos”, daí ser possível distinguir-se entre elites proprietárias, mercantis e “letradas”.7 É a partir destas categorias e das especifidades existenciais do “viver em colônia” que propomos a análise das reformas “ilustradas” do período pombalino. Espaços e tempos coloniais em contínua mutação é o que se percebe por exemplo , entre a “História da América Portuguesa”, de Rocha Pita 8 e a “Corografia Brasílica”, do Pe. Aires de Casal9 ou, ainda, entre Antonil10 e Azeredo Coutinho.11 Contornos geopolíticos, bases demográficas, atividades econômicas, composição social, referenciais político-administrativos, educação, cultura, tudo praticamente muda entre os momentos que aquelas obras buscam apreender. 152 POMBAL E O BRASIL Com ecem os pelo espaço, ou espaços. O espaço de Pita é uma América lusa constituída por dois “Estados” – o do Brasil e o do Maranhão e Grão-Pará. O “Brasil” de Antonil, apesar de mais amplo, concentra-se de fato nas plantações e engenhos de açúcar e nas “catas” auríferas e diamantíferas das “Minas Gerais”. O espaço, em Azeredo Coutinho, é o de um Vice-Reino que tenta dar conta dos múltiplos problemas de correntes da própria dialética da totalidade, entrevista da metrópole, e da diversidade, imposta pelas múltiplas realidades regionais que se encontram na raiz da pluralização do “Brasil” em “Brasis”. Mesmo Aires de Casal, cujo “Brasil” é, já então, o do Reino Unido, não consegue evitar a presença do peso das diversidades de toda ordem que relativizam a cada passo uma “unidade” desejada mas problemática. Se admitirmos que as variações terminológicas denotam oscilações nas próprias maneiras de apreender o espaço colonial como um todo, talvez seja possível compreender também a importância que podem ter, para a análise do “reformismo ilustrado”, as estruturas administrativas coloniais e a chamada “dupla-mutação” colonial, na primeira metade de Setecentos. As estruturas administrativas, compreendendo-se aí instituições e pessoas, subdividiam-se em dois subsistemas, em função de dois critérios: o funcional e o geopolítico. O critério funcional fixava esferas ou setores distintos: governo civil e militar, justiça, fazenda e religião. O critério espacial reconhecia três instâncias hierarquizadas: “geral”, ou superior; regional, ou intermediária; local ou inferior, ou seja, o “Governo Geral”, as capitanias, e as cidades e vilas. Apesar da Coroa tender a prestigiar em cada nível o governo civil e militar, os agentes pertencentes às diferentes funções entendiam-se, com freqüência, apenas com os seus “iguais” do mesmo setor, na Colônia e/ou na Metrópole, ignorando, não raro, as autoridades civis e militares de sua própria instância. Divergências e disputas entre órgãos e agentes coloniais a propósito de questões administrativas, muitas vezes com características pessoais, constituem assim, não por acaso, fenômeno “normal” do cotidiano da Colônia.12 A denominada “dupla mutação”13 indica duas séries de transformações que transformaram radicalmente a fisionomia da Colônia: a mutação espacial e a econômica e demográfica. Resultou a primeira da rápida e gigantesca expansão do território colonial, sobretudo no centro-sul e centrooeste; a segunda mutação tem a ver com descobrimento e rápida expansão das áreas de mineração de ouro e diamantes e o intenso deslocamento de populações, de dentro e de fora da Colônia, para estas áreas. A “mutação espacial” exigiu gastos cada vez maiores da Coroa com a defesa e o povoamento dos novos territórios, sobretudo nas regiões próximas a territórios castelhanos, além, é claro, de complicadas negociações diplomáticas e conflitos bélicos que irão estender-se por todo o Setecentos. 153 Francisco Calazans Falcon A “mutação econômica e demográfica”, além de promover o deslocamento do eixo econômico e administrativo da Colônia das áreas nordestinas para as do sudeste, exigiu providências rápidas e dispendiosas. Fez-se necessário estabelecer, a “toque de caixa”, órgãos e agentes da Coroa junto aos novos núcleos de povoamento e extração mineral, a começar pela criação de diversas vilas, a fim de estabelecer a lei e a ordem, condição indispensável à fiscalização da produção extrativa, do comércio e do acesso a minas – de homens, animais e mercadorias. Somente assim seria possível garantir-se a cobrança e arrecadação dos “quintos” devidos à Coroa e dos direitos sobre operações mercantis e “passagens” para as minas – direitos de “entrada” e de saída. Acima de tudo isto estava a intenção de coibir as saídas ilegais do ouro.14 Em face das múltiplas demandas resultantes dessas duas mutações, como que “imprensada” entre as sucessivas ordens e instruções da Metrópole, e a crônica insuficiência de meios materiais e humanos, os agentes da administração colonial empenharam-se, quando muito, em realizar o que lhes parecia ser o possível. Esta contradição tradicional, inerente à administração colonial – escassez de meios em comparação com a ambição dos fins – será um elemento decisivo na avaliação das “reformas pombalinas” do ponto de vista de sua efetiva implementação no (s) espaço (s) colonial (is). Passem os agora, aos tem pos. A referên cia aos tem pos (plu ral) é u m a form a qu e aqu i u tilizam os para su blin h ar du as orden s de qu estões: as diferen ças en tre os “tem pos da Metrópole” e os da Colôn ia; a n ão-h om ologia, n a Colôn ia, en tre o “tem po da econ om ia” e o “tem po político-adm in istrativo”. Com relação à Metrópole, a tradição historiográfica por muito tempo habituou-se ao recorte dinástico que distingue os “tempos joaninos” dos “josefinos” e estes dos “marianos”. Absolutizados em termos de “épocas”, estes “tempos” conferem uma espécie de realidade à parte ao período pombalino, cortando-lhe as possíveis amarras com a história que o antecede – cria uma certa visão caricatural do reinado de D. João V –, e a que se lhe segue – por intermédio da construção mítica de um “Viradeira” improvável. A partir de Jorge de Macedo,15 procedeu-se à demolição de tais rupturas, conforme se evidenciaram duas coisas: as muitas continuidades existentes, em termos políticos e administrativos, com relação ao “antes-1750” e ao “pós-1777”; a “resistência” do movimento conjuntural da economia em enquadrar-se na camisa-de-força da cronologia política tradicional,16 especialmente com referência ao “período pombalino” encarado como um “bloco”. Quanto à Colônia, também nos encontramos em face de duas temporalizações, conforme se trate de ritmos administrativos ou econômicos. Os ritmos político-administrativos seriam assim descritos: uma reação centralizadora, típica do início do reinado de D. João V, de 1707 a 1720, como 154 POMBAL E O BRASIL contraponto à política pouco eficaz da Coroa, em temos da sua presença na colônia, nas décadas finais do século XVII; um progressivo enfraquecimento da autoridade régia na Colônia, entre 1720 e 1750, que propicia o fortalecimento de poderes locais em várias regiões coloniais, a tal ponto que suas resistências forçam os agentes da Coroa a retrocessos e compromissos, ampliando-se assim a participação, por delegação de poderes, dos “colonos” nas administrações locais; a seguir, entre 1750 e 1777, sobre esse quadro de “descentralização” projeta-se a “vontade férrea” de Pombal no sentido da “centralização” a qual novamente se enfraquece e perde consistência após a queda do poderoso “ministro”. Voltaremos a essa questão ao abordarmos a administração pombalina. Neste passo, no entanto, interessa-nos sublinhar o fato de que os ritmos econômicos marcam tempos algo distintos dos que acabamos de descrever. Na primeira metade do Setecentos, o setor agromercantil da economia colonial experimenta freqüentes oscilações entre períodos mais longos de estagnação e “crise”, em conexão com as variações da demanda e dos preços do açúcar no mercado internacional, e períodos mais curtos, de relativa prosperidade, sendo certo que, bem antes de 1750, o setor encontrava-se mais uma vez em crise. Contrastando com as dificuldades agroexportadoras, o setor minerador expandiu-se rapidamente até a década de 1730, quando se observam os primeiros sinais do provável esgotamento das minas, se bem que se tratasse ainda de um futuro mais ou menos distante na opinião dos contemporâneos. Ao que tudo indica, é nas regiões de mineração, durante este período, que as autoridades coloniais parecem algumas vezes hesitar entre a imposição rígida e violenta do poder régio e a prudência que as aconselha à moderação e cooptação dos poderosos locais, através de variados tipos de compromisso tendentes a garantir o mais essencial: a cobrança e arrecadação dos “direitos” da Coroa. À lenta recuperação do setor afromercantil na década de 1750 e em parte da de 1760, sucede novo período de crise, apenas interrompido pela “Guerra da América”, isto é, a luta das colônias inglesas da América do Norte contra a metrópole. O setor minerador, após uma breve recuperação, nos anos de 1750, mergulha em profunda crise, sobretudo nos anos de 17601770. A queda da arrecadação proveniente da cobrança do “quinto” abala as finanças do Estado e compromete a balança comercial de Portugal com a Inglaterra e outros países. Os apertos da nova conjuntura, agravados pela guerra com a Espanha, imprimem novos rumos ao “reformismo ilustrado”, na metrópole e na Colônia.17 A partir de 1780-1790, com a rápida expansão e diversificação do setor agroexportador,18 configura-se o clima de “euforia”19 típico da fase final do período colonial, durante a qual, em face da “crise do sistema”,20 os bu- 155 Francisco Calazans Falcon rocratas de Queluz e os intelectuais (muitos também burocratas) da Academia Real das Ciências, de Lisboa, empenham-se em diagnosticar seus fatores e sugerir medidas práticas para reformar e ao mesmo tempo conservar o próprio “sistema”.21 Concluindo esta parte, desejamos sublinhar a multiplicidade de espaços e tempos. De espaços: o espaço do “sistema colonial”, o espaço geopolítico, os espaços socioeconômicos e político administrativos e, ainda, os espaços de sociabilidade, como iremos ver adiante. De tempos: o tempo dos príncipes, os tempos das conjunturas econômicas, os tempos político-administrativos e o tempo das “idéias ilustradas”, este também ainda por abordar. O REFORMISMO ILUSTRA D O D A GOVERN A Çà O POMBA LIN A N O BRA SIL-COLÔN IA A fim de não estendermos em demasia este trabalho, vamos aqui enfocar apenas três tópicos do reformismo: o econômico, o político-administrativo, e o cultural-pedagógico. AS REFORMAS ECONÔMICAS POMBALINAS As reformas econômicas pombalinas são provavelmente as mais conhecidas destes três tópicos, motivo porque iremos apenas sintetizá-las. Admitido o caráter mercantilista das práticas econômicas pombalinas, interessam-nos aqui aquelas relacionadas, direta ou indiretamente, com o Brasil. Note-se, no entanto, que tais práticas não se apresentam de forma sincrônica. São as variações conjunturais que, em boa parte, determinam suas oscilações, inclusive suas vigências concretas. A presença do “sistema colonial” constitui um pressuposto geral, comum a todas essas práticas, o que significa que, ao lado das questões “econômicas”, é preciso situar as preocupações fiscais já que, na realidade, o “reformismo pombalino” foi sempre mercantilista e fiscalista. Exemplos disto foram as providências tomadas, já em 1751, para solucionar os impasses que dificultavam as exportações de açúcar e tabaco, a começar pela criação das “Casas de Inspeção do Tabaco e do Açúcar”. Um capítulo à parte corresponde, nesse contexto reformista, à “Junta do Comércio”22, criada em 1755, órgão ao qual competia controlar a “saída das frotas”, fazer cumprir a proibição dos “comissários volantes” irem aos portos do Brasil, combater os descaminhos e contrabandos, fiscalizar o peso e qualidade dos rolos do tabaco e das caixas de açúcar. Assim, todo o tráfico ultramarino estava sob a sua alçada: a organização, controle e fomento do comércio colonial, inclusive a construção de navios, no Reino e no Brasil, com madeiras da Colônia. 156 POMBAL E O BRASIL O primeiro campo das práticas mercantilistas pombalinas é o do fomento, à produção metropolitana. Nesta rubrica, a inserção do Brasil-Colônia é dupla, embora indireta: 1º. – em conseqüência dos privilégios conferidos à Cia. Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro(1756), como o Alvará de 6 de agosto de 1776 ordenando que o Rio de Janeiro e as províncias do Sul ficassem abertos ao comércio exclusivo de vinhos, aguardentes e vinagres da Companhia; 2º. – a política de incentivo as manufaturas, a começar pelos Estatutos da Fábrica das Sedas (1757), encara sempre o mercado colonial como “exclusivo”, daí terem sido autorizadas no Brasil apenas algumas poucas “fábricas” que, na verdade, eram usinas de beneficiamento de certos produtos primários destinados à exportação: arroz, lonas, enxárcias, madeiras, solas, atanados.23 Como segundo campo das práticas mercantilistas – a política comercial e colonial – temos o monopólio de exportação, a balança comercial e o pacto colonial. O instrumento então utilizado para maximizar os objetivos do monopólio do comércio colonial – defesa contra os concorrentes e fomento à produção no ultramar – foram as companhias de comércio. Tratava-se aí de resolver três questões: o controle monopolístico da circulação, o incentivo às produções coloniais de interesse comercial e o tráfico de escravos. Para o espaço colonial brasileiro foram criadas duas companhias: a Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão (1755) e a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba (1759). A historiografia destas companhias24 é uma das mais ricas dentre as dos temas clássicos das práticas pombalinas. Seu principal objetivo era o monopólio mercantil em proveito de seus acionistas metropolitanos, se bem que, nos discursos oficiais, sua criação seja justificada em função do abandono e atraso (Pará e Maranhão), e das dificuldades econômicas (Pernambuco e Paraíba) das suas respectivas regiões de atuação. Já bastante conhecidas quanto às suas estruturas e operações, tais companhias, apesar da alegação oficial de atendimento “à solicitação dos respectivos povos”, provocaram muitas reações dos “colonos” sendo esta provavelmente a face relativamente menos conhecida da sua atuação. O monopólio das companhias de comércio excluía comerciantes locais e estrangeiros. Estes últimos, aliás, constituem uma constante preocupação, dado o empenho da Metrópole em impedir-lhes, ou a seus agentes, o comércio direto com a Colônia. Fazem parte desta política a reiteração, em 1760, das medidas “contra as fraudes que se vinham verificando com relação à proibição de passarem ao Brasil os comissários volantes”, assim como as sucessivas reedições das proibições que vedavam o acesso de navios estrangeiros aos portos do Brasil. O terceiro campo das práticas reformistas (mercantilistas) compreende a política monetária e o fiscalismo. A questão monetária abrangia duas ordens diferentes de problemas: a arrecadação dos quintos, nas minas do Brasil, 157 Francisco Calazans Falcon em conexão com providências contra as fraudes e contrabandos, e o comércio deficitário com a Inglaterra, especialmente a partir de 1760, quando o declínio do afluxo do ouro, conseqüência da queda vertiginosa no rendimento das minas, fez escassear o metal reequilibrador da balança comercial.25 Capítulo à parte, a extração e o comércio dos diamantes das Minas Gerais constituem uma das faces mais persistentes e curiosas das idéias e práticas pombalinas.26 No âmbito do fiscalismo, a principal medida consistiu na criação do Real Erário, ou Erário Régio (1761), que abordaremos mais adiante.27 Em resumo, parece razoável afirmar que as “reformas econômicas” associaram às práticas mercantilistas, antigas mas permanentes, as preocupações fiscalistas ditadas, sobretudo, pelas urgências das finanças do Estado. Do ponto de vista da Colônia, aliás, foram provavelmente as medidas fiscalistas as mais diretamente percebidas pelos colonos. Não deve causar espanto, em conseqüência, o fato de ser a visão de tais “reformas ilustradas”, a partir das “elites” coloniais, muito diferente daquilo que nos dizem as histórias produzidas em função dos discursos metropolitanos. AS REFORMAS POMBALINAS NO ÂMBITO CULTURAL E O SISTEMA EDUCACIONAL DA COLÔNIA A história cultural do Brasil-Colônia está associada, na segunda metade do século XVIII, à componente “ilustrada” do reformismo pombalino. Dentre os muitos elementos constitutivos das reformas “esclarecidas” do Estado absolutista, avulta o das relações entre o poder civil e o eclesiástico as quais, à época de Pombal, cristalizaram-se em torno dos padres da Companhia de Jesus, culminando na sua expulsão de “Portugal e seus domínios” (1759). Não cabem aqui, evidentemente, a análise da “questão jesuítica” e a história particular dos efeitos da expulsão dos inacianos naqueles setores da vida colonial onde sua atuação era mais ou menos decisiva, a começar pelo educacional.28 Por outro lado, a constelação dos tópicos compreendidos no impacto das “reformas ilustradas” de natureza cultural sobre a Colônia excede em muito os efeitos daquela expulsão. Mesmo em se tratando do campo especificamente religioso, é fundamental a presença atuante da Congregação do Oratório e de outras ordens, como franciscanos e beneditinos, no ambiente colonial.29 Tampouco podem ser esquecidas as repercussões, na Colônia, das reformas empreendidas na esfera jurídica,30 além do que significaram, para os “letrados” da Colônia, os efeitos da Ilustração no plano flilosófico, a começar pela ruptura com a tradição da “Segunda Escolástica” em nome de uma “ciência moderna” voltada para a experiência e observação e visando inves- 158 POMBAL E O BRASIL tigar/conhecer uma “natureza” – a colonial – de acordo com um certo finalismo pragmático ou utilitarista.31 Outro campo, imenso por sinal, da cultura colonial que tem a ver com as “reformas ilustradas” é o da produção literária e artística, já bastante investigado e analisado e que continua a atrair o interesse dos pesquisadores.32 A “governação” pombalina tentou constantemente, inclusive a pretexto de patrociná-la, controlar essa produção. Paralelamente, a censura oficial empenhou-se em cercear a circulação de obras, especialmente estrangeiras, sobretudo as de natureza “sediciosa”, isto é, hostis ao absolutismo ou aos princípios éticos e sociais do Antigo Regime.33 Do ponto de vista historiográfico, as reformas pedagógicas estão para a história cultural da Colônia assim como as companhias de comércio estão para sua história econômica. A partir da dominância exercida pelos padres da Companhia de Jesus sobre o sistema educacional da Colônia, até 1759, a historiografia tende a fixar um marco divisório, um “antes” e um “após”, em torno do qual se alinham os críticos e os defensores das reformas. Segundo Laerte Ramos de Carvalho 34 o processo de transformação pedagógica, que teve seu momento decisivo na expulsão dos jesuítas, insere-se no bojo do universo de práticas reformistas tendentes à secularização do ensino e do próprio Estado absolutista. A “reforma dos estudos”, como uma das dimensões do regalismo, visava laicizar os quadros docentes, reformular a estrutura organizacional do sistema e o seu funcionamento, tendo como principal objetivo transformar os currículos e métodos pedagógicos de acordo com os valores modernos ou ilustrados.35 A reforma dos Estudos Menores, lançada em 1759, aboliu as escolas jesuíticas e estabeleceu nas “Aulas e Estudos das Letras uma Geral Reforma”.36 As dificuldades e insucessos desta primeira tentativa conduziram ao relançamento da reforma pela Lei de 6 de novembro de 1772 37, já agora sob a direção da Real Mesa Censória e contando com os recursos a serem arrecadados através do “Subsídio Literário”. Conhece-se o processo de Implantação da Reforma na Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco e Minas Gerais através de vários trabalhos, sobretudo os de Andrade e Carrato,38 nos quais se percebe as muitas disputas e problemas que acompanharam a implementação das mudanças: a “querela das gramáticas” e dos textos recomendados, a parca remuneração dos mestres, a disciplina autoritária e repressiva, a arrecadação deficiente do “Subsídio Literário” e o desvio dos seus recursos, a falta de livros, o difícil recrutamento dos quadros docentes, agravado por muitas delongas e complicações burocráticas, a marginalização das zonas rurais, sobretudo, no caso brasileiro, devido às enormes distâncias entre os núcleos povoados. Para concluir este tópico, conviria ter presentes não só as inevitáveis diferenças entre as reformas aqui consideradas, conforme se trate de Portugal ou do Brasil, como, principalmente, os problemas interpretativos resul- 159 Francisco Calazans Falcon tantes da transposição acrítica das propostas “ilustradas” às especificidades da “condição colonial”. Referimo-nos, neste caso, à compreensão de como se deu, no Brasil Colônia, a recepção da propostas “ilustradas” – idéias e práticas. A pergunta, no meu entender, continua a ser: as alusões, freqüentes na historiografia, à presença/existência/influência de “idéias ilustradas na Colônia” referem-se, afinal, a quais idéias? 39 POR ÚLTIMO, AS REFORMAS POLÍTICO-ADMINISTRATIVAS Também neste caso, algumas das reformas consistiram na extensão à Colônia das ramificações de mudanças operadas na Metrópole. A historiografia atem-se em geral a certas medidas mais ou menos pontuais, como: transferência da sede do Governo Geral do Estado do Brasil, de Salvador para o Rio de Janeiro (1763); a extinção do Estado do Grão-Pará e Maranhão e sua incorporação, como capitania-geral, ao do Brasil (1772); em aquisição, pela Coroa, das capitanias privadas, paralela à criação de novas “capitanias reais”, como S. José do Rio Negro (1717), Piauí (1759) e Rio Grande de S. Pedro (1760). Mais significativas, na verdade, são as tendências político-burocráticas pois revelam o empenho em “modernizar” a administração, do pontode-vista do funcionamento dos órgãos existentes e dos comportamentos dos agentes da Coroa. Nem sempre, porém, as práticas político-administrativas correspondem à letra dos textos legais e normativos. Veja-se, por exemplo, o título de Vice-Rei conferido, a partir de 1763, ao GovernadorGeneral do Mar e Terra do Estado do Brasil. Em tese, o Vice-Rei era a autoridade suprema da Colônia; na prática, nem a Metrópole, nem as demais autoridade coloniais, permitiram o exercício de tal supremacia. Lisboa jamais deixou de fazer ver ao Vice-Rei a necessidade de agir com cautela em face dos poderes regionais e dos interesses locais. A correspondência direta entre Pombal e os capitães-generais da capitanias-gerais e mesmo, em alguns casos, com capitães-mores, evidencia que o Vice-Rei tinha sua autoridade praticamente restrita à Capitania-Geral do Rio de Janeiro e capitanias subordinadas (Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande de S. Pedro). Em 1751, foi instalado o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro a fim de desafogar o antigo Tribunal da Relação da Bahia. Com a instituição do Real Erário, em Lisboa (1761), foram organizadas as Juntas da Fazenda em cada uma das capitanias-gerais. Também a organização militar passou por grandes reformas, ao passo que na esfera da justiça e dos governos municipais não se registram mudanças significativas. O empenho maior da Metrópole eram a racionalidade e a eficiência administrativas, baseadas no princípio de secularização e aprimoramento dos quadros burocráticos. Pretendia-se “modernizar” a burocracia através 160 POMBAL E O BRASIL de seus agentes: processos e métodos de formação intelectual e profissional, recrutamento, limitação do nepotismo e do caráter prebendário e vitalício dos “ofícios” e “serventias”.40 A simples descrição das providências tomadas pelo “reformismo pombalismo” pode revelar-nos certas tendências mas pouco nos esclarece acerca de seus objetivos gerais e dos resultados reais das próprias práticas. Uma primeira dificuldade é a da interpretação dos objetivos. Entre os discursos metropolitanos, que anunciam e justificam as reformas, e as práticas reais, na Colônia, há com freqüência uma considerável distância. Se os discursos correspondem sempre a uma retórica “ilustrada”, no cotidiano da Colônia a prática reformista coloca para o historiador dois tipos de “distanciamento”: dos agentes político-burocráticos e dos objetivos reformistas. Por último, emerge uma indagação talvez a mais decisiva: como se deu a recepção de tais reformas pelas “elites” coloniais? Em primeiro lugar, os “distanciamentos” Admitem os historiadores que os principais objetivos das “reformas Ilustradas”, na Colônia, eram a centralização político-administrativa, a afirmação e o fortalecimento do poder real, a racionalização do aparelho administrativo, e a supressão dos abusos praticados pelos oficiais da Coroa. Ora, para cada um destes objetivos a historiografia recente vem expondo seus limites e distorções, dada a força das permanências e a eficácia das resistências – dos agentes burocráticos e das “elites”. A centralização, por exemplo, deve ser repensada. Opera-se, na realidade, uma centralização a partir de Lisboa e uma descentralização na Colônia, ou seja, enquanto se aperta o controle da Metrópole sobre órgãos e agentes da administração colonial, favorece-se a relativa autonomia das autoridades coloniais entre si, de tal forma que a centralização ocorre, quando muito, no interior de cada capitania.41 Fortalecer e afirmar o poder real, racionalizar o aparelho administrativo em busca de sua maior eficiência, suprimir os abusos, pressupunha o respeito às hierarquias e uma estrita obediência às ordens régias. Todavia, na prática, certas, contradições impunham limites reais a esses objetivos. Das contradições, uma das mais importantes é a da tradição versus inovação. A tradicional política metropolitana de manter seus agentes na Colônia em estado de insegurança quase permanente quanto a seus poderes e atribuições, receiosos de desagradarem aos seus superiores, hesitantes diante de situações imprevistas ou mal definidas nas suas “instruções”, assegurou sempre à Coroa a posição de mediadora e suprema instância. O “equilíbrio do desassossego” entre os agentes da Coroa constituía a própria essência da tradição a que nos referimos.42 É provável que, em face dessa tradição, as reformas pombalinas tenham representado uma relativa mudança, se bem que em termos um tanto contraditórios: uma vigilância mais rigorosa sobre órgãos e agentes da 161 Francisco Calazans Falcon administração colonial, materializada em incessantes recomendações, advertências e punições; um esforço para a racionalização dos procedimentos administrativos e modernização dos quadros burocráticos. No seu conjunto, os resultados ficaram muito aquém dos objetivos. A justiça régia continuou a ser escassa, demorada e mesmo ausente em vastos espaços. Poucos juízes-ouvidores, sobrecarregados de tarefas, mal remunerados e sujeitos a pressões as mais diversas. Arbitrariedade e venalidade caracterizam, por outro lado, os comportamentos de alguns desses juízes.43 No setor fazendário, modernizaram-se os procedimentos contábeis das receitas e despesas,mas não se conseguiu avançar muito na racionalização das fontes de receita. Os “apertos” financeiros, crônicos na Colônia, agravaram-se em decorrência de freqüentes “despesas extraordinárias” impostas por contingências bélicas e calamidades públicas. Para os colonos, o que houve de concreto foi um aumento sensível da carga tributária conseqüente intensificação das pressões fiscais. Apesar das muitas críticas de então, o sistema dos “contratos reais” foi mantido; continuou precária a remuneração dos agentes da administração pagos pela Coroa, persistindo os tradicionais abusos quando tal remuneração competia aos usuários – caso dos “ofícios” vitalícios.44 Concluindo, pode-se perceber a distância considerável existente entre o desenho das reformas pombalinas nos discursos oficiais e as realidades da sua implementação. A idéia, muito difundida, de um absolutismo só plenamente concretizado, em clave “iluminista”, graças a Pombal, não passa de um mito. Finalmente, duas perguntas que somente a própria pesquisa histórica poderá vir a responder: em que sentido, ou até que ponto, as reformas “ilustradas” foram como tais percebidas pelos “colonos”? em que medida muitas dessas reformas representaram apenas, para os “colonos”, mais exploração e “tirania”? Não gostaríamos de terminar este trabalho sem uma rápida referência a uma questão fundamental por nós já tratada em outros textos45: as atitudes das “elites coloniais” diante do “reformismo ilustrado”. A par dos problemas atinentes à caracterização dessas “elites” do ponto de vista socioeconômico e cultural, importa-nos aqui sobretudo a análise das relações entre elas e os agentes político-administrativos. Pensamos que tal análise deverá colocar em evidência a dialética do conflito versus acomodação/cooperação no âmbito de tais relações.46 Com efeito, a partir de três tópicos ou temáticas a historiografia recente vem evidenciando que a hipótese do “conflito” precisa ser devidamente relativizada. 1 – através do conhecimento mais preciso da “burocracia colonial” – sua estrutura, composição socioprofissional, caráter de suas funções, inserção dos agentes no meio social da Colônia; 2 – reavaliação da importância da “cidade colonial” como espaço de sociabilidade, de interação de “colonizadores” e “colonos”; 3 – o processo de “interpenetração” de “elites” e agentes da Coroa, a partir de for- 162 POMBAL E O BRASIL mas muito variadas de sociabilidade pautadas, em geral, por considerações de prestígio, interesse e favor. Havia assim, à época do “reformismo ilustrado”, uma longa e complexa tradição a presidir as relações entre “elites” e agentes de Coroa. A recepção das reformas pelas elites projeta-se sobre o pano de fundo dessa tradição incorporando experiências e expectativas geradoras de leituras diferentes, quer dos discursos “ilustrados”, quer das práticas reformistas na Colônia. Neste último caso, também faz sentido tentar perceber melhor as leituras e comportamentos dos próprios agentes da Coroa. Trata-se, em resumo, de leituras e atitudes que variam no tempo e de um segmento social a outro. Por ora, parece-me arriscado apostar numa espécie de adesão em bloco às reformas, quer das elites, quer dos agentes da administração. Nem sempre as elites coloniais terão reconhecido como “positivas” muitas das práticas supostamente “esclarecidas”; é possível que o inverso seja mais exato. Tampouco há evidências que demonstrem a adesão incondicional do aparelho administrativo a idéias e práticas reformistas. Fica assim, uma derradeira pergunta: as reações das elites coloniais ao “reformismo ilustrado” tenderam a uma espécie de compromisso com as diretrizes da Metrópole ou apressaram o processo de ruptura com a Coroa? 163 Francisco Calazans Falcon N OTA S 1. FALCON, F. J. C. A Época Pombalina. Política Econômica e Monarquia Ilustrada. São Paulo: Ática, 1982. 2. Idem. Descobrimentos e Modernidade Ibérica; In: AZEVEDO, Francisca L. N. de & Monteiro, John M. (Orgs) Raízes da América Latina. São Paulo: Expressão e Cultura/EDUSP, 1996, p.105-29. 3. Tentamos avaliar essa historiografia ao final do capítulo Portugal y Brasil en el siglo XVIII – las reformas del absolutismo ilustrado y la sociedad colonial, Sección b, Capítulo 10, da História General de América Latina, v. IV, a ser brevemente publicado pela UNESCO. 4. WALLERSTEIN, I, 1980, The Modern World System . II – Mercantilism and the consulidation of the european world economy. N. York, Academic Press. 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Idem, op. cit., p. 480-1; Mendonça, Marcos C. de, O erário régio no Brasil. Rio de Janeiro, Min. da Justiça. 1968. 28. FALCON, F. J. C. 1982, op. cit., p. 378-82. Idem, 1992, As reformas pombalinas e a educação no Brasil, In: Estudos Ibero-Americanos. PUC-RS. XVIII, n. 2, p.16-20, 23-4. 29. FALCON, F. J. C. 1992, op. cit. p.8; OGGERO, U. de, 1986, As origens do pensamento filosófico no Brasil. In: Convivium , 1, Rio de Janeiro, p.72 ss. 30. FALCON, F. J. C., 1996. As práticas do reformismo ilustrado pombalino no campo jurídico. In: Revista de História das Idéias, 18, Coimbra. 31. PAIM, A. 1986. A Filosofia no Brasil. In: Convivium XXV (29) São Paulo; COSTA, J. Cruz, 1956, Contribuição à história das idéias no Brasil, Rio de Janeiro, J. Olympio. 32. CÂNDIDO, A. 1975. Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Itatiaia-EDUSP, 5. ed. 1v.; Azevedo, F. de, 1943, A Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: IBGE, 3v. 33. FALCON, F. J. C. 1989. 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REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL (1780-1830) José Jobson de An drade Arru da* A on da descolon izadora qu e varre os países african os e asiáticos n o pós-Segu n da Gu erra Mu n dial, som en te en con tra paralelo, em term os do seu im pacto h istórico, n a prim eira escalada do m ovim en to em an cipacion ista das colôn ias da época m odern a, in scritas n o an tigo sistem a colon ial, e qu e redirecion am o front dos acon tecim en tos, n a passagem do sécu lo XVIII para o XIX. De fato, a em an cipação das an tigas colôn ias ibéricas, in spiradas n a precedên cia das 13 colôn ias in glesas, con stitu em -se n o fato h istórico de m aior relevân cia n esse m om en to e, cu jas repercu ssões u ltrapassariam de m u ito os estreitos lim ites cron ológicos de su a in cidên cia. A ru ptu ra dos liam es en tre a m etrópole portu gu esa e a colôn ia brasileira tem sign ificado diverso n a tradição h istórica en cetada, a partir de en tão, pelos dois Im périos. A n atu reza m esm a dessa ru ptu ra, seu sign ificado h istórico específico, com porta visões diferen ciadas con soan te o ân gu lo do observador. As razões de su a eclosão, igu alm en te, percorrem u m vasto lequ e de en con tros e desen con tros. Com eçar por estas qu estões talvez aju de a com preen der o fu lcro de n ossa an álise. Pen sa-se u m a colôn ia específica, localizada n a terra brasilis, su a form a particu lar de in serção h istórica, o sistem a colon ial da época m odern a e, privilegiadam en te, o m om en to cru cial da ru ptu ra en tre a m etrópole e a colôn ia, isto é, a crise do Im pério Lu so-Brasileiro, e n ão a crise da Am érica Portu gu esa. Para tan to, torn a-se in dispen sável a rem em oração das lin h as m estras do regim e colon ial aqu i im plan tado, sem o qu e, os fatos con tin gen tes da tran sform ação seriam in in teligíveis, reforçan do a perspectiva aciden tal da h istória. Não se trata de qu alqu er colôn ia. Não é u m a colôn ia de povoam en to à sem elh an ça das colôn ias in glesas da Am érica do Norte.1 Não é, prim acialm en te, o espaço de realização da política de fom en to do Im pério portu gu ês. Trata-se, isso sim , de u m a colôn ia de exploração, u n iverso h istórico privilegiado n a produ ção de su perlu cros destin ados a alim en tar o crescim en to e o desen volvim en to da m etrópole eu ropéia, por m eio da tríade latifú n dio-m on ocu ltu ra-escravidão ou do regim e de exclu sivo aplicado 169 José Jobson de Andrade Arruda aos n ú cleos m in eradores. Ser de povoamento ou de exploração n ão sign ifica, contudo, excludência absoluta. Na colônia de povoamento a exploração se fazia presente: na de exploração, a presença populacional era inescapável. A diferença se explicita na ênfase, no elemento que detém a primazia no estabelecimento da explicação e que integra, certamente, outras dimensões. A Caio Prado Júnior e, sobretudo, Fernando Antônio Novais, deve-se a fixação dos paradigmas referenciais que conduziram à conceituação de um determinado sistema colonial da época moderna.2 A relação entre a colônia (Brasil) e a metrópole (Portugal) realizava-se sob a égide da noção de exclusivo comercial, ou seja, o monopólio do fluxo mercantil reservado unicamente para a metrópole, cuja efetividade tornava imprescindível a adoção de uma forte política protecionista que exigia, por seu turno, ações de natureza fiscal e militar para sua plena consecução. A função precípua da colônia era, portanto, a de acelerar a acumulação primitiva de capitais, produzir excedentes por meio da comercialização dos produtos coloniais nos mercados europeus, lucros estes que beneficiaram diretamente a burguesia mercantil do Reino e a elite aristocrática, incrustada no aparelho de Estado. Eram lucros de monopólio. Não quaisquer lucros. Expressavam a exclusividade da compra dos produtos coloniais a preços rebaixados e a certeza de altos-lucros na revenda. O abastecimento das necessidades coloniais com produtos produzidos na metrópole ou adquiridos nos mercados continentais, igualmente garantidores de vantagens excepcionais, completavam o circuito. O m on opólio é a ch ave para a com preen são desse fen ôm en o h istórico. Sem ele, provavelm en te, n en h u m Im pério se teria form ado n os an os an teriores a 1800, pois sign ificava “o direito exclu sivo sobre u m determ in ado produ to, ou sobre o com ércio com u m determ in ado país; sen do qu e este direito exclu sivo poderia ser con cedido a pessoas ou com pan h ias”.3 No espaço colon ial, o capital m ercan til, an corado n o m on opólio, u ltrapassou os lim ites da circu lação, aden tran do sin gu larm en te os dom ín ios da produ ção, garan tin do a realização m on etária da produ ção n o m ercado m u n dial. Con cretizava-se, por esse m eio, a su bordin ação do processo produ tivo ao capital m ercan til, através da rein stau ração do trabalh o com pu lsório, especialm en te escravo, projetan do o tráfico à con dição de elem en to propu lsor do sistem a, pois a acu m u lação, em fu n ção das lim itações in tern as para a reprodu ção local da m ão-de-obra, im pu n h a su a reposição por via do tráfico, sobrelevan do seu papel n a reprodu ção das relações sociais.4 A qu estão de fu n do n esse con texto é a própria n atu reza do capital m ercan til. Nesta fase h istórica do capitalism o, o capital fixo jogava u m papel relativam en te dim in u to n o processo de reprodu ção. Com exceção da terra, u m a parcela pon derável da riqu eza con sistia em capital circu lan te, o qu e dem an dava pagam en tos qu ase im ediatos, ao m esm o tem po qu e gera- 170 O SENTIDO DA COLÔNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL va en orm es dispon ibilidades de capitais para in vestim en tos ren táveis, capazes de aten der à exigên cia de realização rápida dos in vestim en tos m ercan tis. Isto explica porqu e os em presários descon h eciam a especialização, característica dom in an te en tre os pequ en os n egocian tes, m estres, logistas. Os gran des n egocian tes atu avam sob os im pu lsos do m om en to, poden do ser su cessiva ou con com itan tem en te m ercadores, arm adores, fin an cistas, segu radores, ban qu eiros e, n o lim ite, em presários agrícolas ou in du striais. Um a volu bilidade in trín seca presidia o m ovim en to do capital m ercan til: perdas com a pim en ta eram com pen sadas n o com ércio da coch on ilh a; perdas n os fin an ciam en tos para os Estados eram recu peradas n os em préstim os aos pequ en os agricu ltores; perdas n os fretes das cargas eram com pen sadas com a elevação do segu ro das m ercadorias; perdas n a arm azen agem poderiam sign ificar avan ço n a con stru ção n aval. O capital m ercan til se preservava crian do altern ativas para fu gas rápidas, com pen satórias. Por isso, Brau del afirm ava qu e n ão h avia u m ram o da atividade econ ôm ica su ficien tem en te rem u n erador, capaz de absorver toda poten cialidade do capital m ercan til. Daí su a m aleabilidade, qu e poderia levá-lo até m esm o a in vestim en tos em terras, m en os por su a ren tabilidade poten cial e m u ito m ais por su a capacidade agregadora em term os de prestígio social. O extrem o lim ite seriam os deslocam en tos ru m o às atividades de m in eração e in du striais.5 Agilização do circu ito do capital era a expressão de com an do do capital m ercan til. Fossem m atérias-prim as, m ercadorias, arm azén s, equ ipam en tos, n avios, m oedas. Mas tam bém poderia ser crédito para clien tes e agen tes, serviços de câm bio, operações ban cárias e secu ritárias. Bu scavase estreitar o circu ito m on etário, elevan do-se os lu cros pela plu ralização das ch an ces de in vestim en tos, o qu e o levava a resistir em aden trar a produ ção e su bm etê-la diretam en te ao seu con trole, preferin do as form as de su bordin ação in direta, m esm o qu e isso viesse a sign ificar qu e a m aior parcela do capital circu lan te represen tasse gastos com o trabalh o in corporados n a m ercadoria. Em com pen sação, aproxim avam -se os dois pólos extrem os do circu ito do capital, pois n ão h avia im obilização em fatores de produ ção, garan tin do-lh e plen a liberdade para tran sladar-se rapidam en te às m elh ores opções do m ercado. Isto explica porqu e o capital m ercan til en globa tan to o trabalh o in depen den te do artesão eu ropeu , qu an to o trabalh o com pu lsório dos escravos n as plan tações tropicais, represen tan do am bos cu stos elevados para o capital circu lan te, m as qu e deixavam para seu s con troladores im ediatos o ôn u s de m an u ten ção e reposição do estoqu e. Assim se explica a n atu reza con servadora do capital m ercan til, e o fato de qu e som en te n o m om en to em qu e as ch an ces de lu cro rápido pelo giro m ercan til se con traíram , o capital m ercan til ten deu a pen etrar a produ ção, am plian do a parcela de ca- 171 José Jobson de Andrade Arruda pital fixo im obilizado, com con seqü en te perda de versatilidade, qu e sem pre fora su a m arca expressiva. Neste con texto, projeta-se o papel do tráfico à con dição de elem en to m otor da acu m u lação n o espaço colon ial. Portanto, o essencial é reter a subordinação completa do movimento histórico da economia colonial à preponderância do capital mercantil que, na fase de expansão das economias centrais européias, subordina a produção na sua forma artesanal e manufatureira, determina o padrão e os limites do processo de acumulação e comanda o ritmo das economias coloniais.6 Estabelece-se uma relação de cumplicidade entre a metrópole e a colônia, articulação vital entre capitalismo e colonização, cristalizada na função colonial. Daí a inevitabilidade da subordinação da economia e da sociedade colonial. Afinal, a produção colonial não se autodetermina, isto é, o circuito do capital somente se completa fora da colônia, quando as mercadorias de novo se transformam em dinheiro, o dinheiro se transforma em fatores de produção, especialmente na aquisição de escravos no mercado externo, não havendo reprodução, na colônia, dessa força de trabalho. A mais, a parcela do excedente que se transforma em lucro realiza-se no plano externo, nas mão da burguesia mercantil. As decisões políticas essenciais se dão, igualmente, no espaço da metrópole, e não da colônia. Destarte, a com preen são global desse processo h istórico particu lar, en volve a captação dessa in teração dialética en tre a con dição colon ial articu lada à m etrópole e a form ação social escravista da colôn ia, in teração esta n a qu al o com an do en con tra-se fora do espaço colon ial, pois a reprodu ção das relações sociais n ão se realiza en dogen am en te. Essa ên fase n o com an do extern o da con dição colon ial n ão sign ifica, con tu do, a exclu são perm an en te e defin itiva da ação dos h om en s colon iais n a bu sca de su a au todeterm in ação. Ao se delin ear as lin h as-m estras dessa relação, n ão se exclu i a gradativa in teriorização da colôn ia. A ên fase n o setor exportador da econ om ia colon ial n ão sign ifica descon siderar a im portân cia da produ ção de su bsistên cia ou do abastecim en to. Os estu diosos, qu e cen tram su a aten ção n o setor exportador, o fizeram por várias razões. Prim eiro porqu e era, efetivam en te, aqu ele qu e garan tia a própria con dição colon ial. Segu n do, porqu e a docu m en tação m ais abu n dan te e acessível era exatam en te aqu ela referen te ao m ercado extern o, com o as Balan ças de Com ércio, por exem plo, ten do em vista su a im portân cia estratégica n a sobrevivên cia política da colôn ia, razão pela qu al a docu m en tação sobre a produ ção in tern a, especificam en te a de su bsistên cia, era rarefeita e precisava ser rastreada em repertórios docu m en tais qu e a ela se referem de m odo oblíqu o. Nestes term os, esgotados os docu m en tos relativos ao setor exportador viria, n ecessariam en te, a fase dos estu dos referen tes à produ ção destin ada ao m ercado in tern o. Isto seria qu ase n atu ral. O equ ívoco, está n a form u lação de paradigm as n egativos, qu an do se bu sca ju stificar os n ovos es- 172 O SENTIDO DA COLÔNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL tu dos, procu ran do reverter a ên fase, isto é, deslocar a relação prepon deran te do exterior da colôn ia para seu in terior. Isto, para n ão se falar da sistem ática desqu alificação dos in terlocu tores qu e delin earam o qu adro m ais geral das explicações. Daí, a ten dên cia à radicalização dos escritos dos “adversários”, atribu in do aos m esm os afirm ações qu e n ão fizeram , isto é, n egar qu alqu er sign ificado à produ ção in tern a n o processo de con stitu ição h istórica da colôn ia. A busca inaudita de originalidade levou pesquisadores sérios a formulações incautas, a exemplo desta síntese, do que possivelmente significaria o sentido da colonização outorgada aos autores ditos tradicionais: “a economia colonial não presenciaria a constituição de um mercado interno suprido por produções locais, a possibilidade de gerar acumulações endógenas e muito menos teria condições de possuir ritmos econômicos próprios, desvinculados do mercado internacional e das economias aí dominantes”.7 Pelo con trário, au tores com o Fern an do Novais, ao explicar a crise do sistem a colon ial e a cam in h ada ru m o à in depen dên cia, afirm a qu e a razão da ru ptu ra estava n o fato de qu e “n ão é possível explorar a colôn ia sem desen volvê-la”.8 Mais explícito im possível. Diz ser im pen sável a exploração econ ôm ica das colôn ias sem a criação de con dições m ín im as, ou seja, a im plan tação da m áqu in a bu rocrático-adm in istrativa, a criação da in fra-estru tu ra portu ária, das vias de circu lação, do aparato de defesa in tern a e extern a, da produ ção com plem en tar ao setor exportador, represen tado pela su bsistên cia. Em su m a, é flagran te a im possibilidade de explorar as riqu ezas colon iais sem desen volver, progressiva e con cretam en te, a colôn ia, sem am pliar su as m assas popu lacion ais e, por decorrên cia, agravar as ten sões, os con flitos e as resistên cias. A diversificação da produ ção colon ial n a Am érica Lu so-Espan h ola é u m atestado dessa assertiva. Na Am érica Hispân ica, n as zon as con sideradas cen trais, por volta de 1600, a popu lação era den sa, com igrejas, m on astérios, com ércio in ten so, h orticu ltu ra e atividades in du striais especializadas. Nas zon as ditas in term ediárias, cu ltivavam -se produ tos destin ados à exportação e ao con su m o in tern o, h aven do in dú strias especializadas em m atérias-prim as locais. Nas regiões periféricas o com ércio era ain da m ais rú stico, assen tado n a criação de m u ares e cavalares.9 No Brasil, a m aior ou m en or u tilização dos escravos n a produ ção destin ada ao con su m o estava estreitam en te vin cu lada às flu tu ações do setor exportador, m as con stitu íam atividades n ada desprezíveis n o côm pu to global dos valores de u so realizados n a colôn ia.10 Esta con statação n ão perm ite, con tu do, in verter a roda da h istória. Pen sar a econ om ia colon ial, isto é, sécu los XVI, XVII e prim eira m etade do sécu lo XVIII, su bstan ciam en te, com o defin ida pelo tripé: acu m u lação en dógen a, m ercado in tern o e capital m ercan til colon ial residen te, tríade esta qu e articu la u m n ovo “sen tido” para a colon ização, expressa n a “relativa 173 José Jobson de Andrade Arruda au ton om ia do processo de reprodu ção da econ om ia... dian te das flu tu ações do m ercado in tern acion al”; n os “processos de acu m u lação en dógen a e a reten ção da parcela do sobretrabalh o gerado pela agroexportação n o in terior do espaço colon ial”; e, fin alm en te, con sideran do-se qu e “esse capital é residen te, para além do exceden te apropriado pelo produ tor”,11 é com eter o pecado do an acron ism o, isto é, tran sferir para o n ú cleo du ro da colôn ia as características qu e com eçam a se form ar n as su as bordas, fin al do sécu lo XVIII e prim eiras décadas do sécu lo XIX, m om en to n o qu al, con sen su alm en te, as estru tu ras colon iais en con tram -se em tran sform ação. Sobretu do, n ão se pode tom ar as feições adqu iridas pela n atu reza da acu m u lação m ercan til, já n os m eados do sécu lo XIX, n a órbita de gran des m ercados u rban os com o o Rio de Jan eiro, para realidades essen cialm en te diversas postas n o sécu lo in iciais da colon ização. Neste con texto, a em an cipação política da colôn ia n ada sign ificou ? Em texto recente e com a propriedade usual, Fernando Novais retomou esta questão, explicando aos seus incuriais intérpretes que, ao falar de exploração colonial pensava nos mecanismos de conjunto que enlaçavam o mundo metropolitano e colonial e, que a ênfase na “acumulação para fora, externa, refere-se à tendência dominante no processo de acumulação, não evidentemente à sua exclusividade”. Em decorrência, “é claro que alguma porção do excedente devia permanecer (“capital residente”) na Colônia, do contrário não haveria reprodução do sistema”. O uso da expressão capital residente alude à quem se destina a réplica e, sem ser tautológico, mas precisando ser pedagógico, reverbera: “Não se trata, desde logo, de uma formação social capitalista que se elabora sem acumulação originária; mas com um nível baixo dessa acumulação”. Nível baixo não significa estagnado, mas sim crescente, na medida em que o processo se punha em movimento. O reproche à leitura forçada que fizeram de seus escritos, se expressa enfaticamente nessa formulação: “Não cabe, portanto, a increpação de obsessão com relações externas (porque não estamos falando de nada externo ao sistema), nem de desprezo pelas articulações internas, pois estas não são incompatíveis com aquelas; trata-se, simplesmente, de enfatizar um ou outro lado, de acordo com os objetivos da análise. Nesta mesma linha, os trabalhos recentes e de grande mérito sobre o mercado interno no fim do período colonial não refutam (como seus autores se inclinam a acreditar) de maneira nenhuma aquele esquema que gostam de apodar de “tradicional”; o crescimento do mercado interno é, pelo contrário, uma decorrência do funcionamento do sistema, ou, se quiserem, a sua dialética negadora estrutural”.12 Mais explícito impossível. Se as proposições destarte realçadas identificam o “tradicional”, e se isto é sinônimo de passadiço, de superado, adiro ao “tradicional” contra o “moderno”, mas certamente nada eterno.13 174 O SENTIDO DA COLÔNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL A grande maioria destas questões não passou desapercebida para o competente brasilianista Stuart B. Schartz em seu estudo crítico Somebodies and Nobodies em the Body Politic: Mentalities and Social Structures in Colonial Brazil, publicado na Latin American Research Review (vol. 31, nº 1, p. 113-33). Sua grande inovação é argumentar que o mercado interno passou a conduzir a economia como um todo, sobrelevando a natureza interna do processo de formação do capital, o que tornaria a dependência externa menos crucial na formação social do Brasil, gerando uma tensão permanente em sua argumentação que, permanentemente, reconhece a inextricável articulação entre a economia interna e o comércio exterior. Exemplo notável desta relação é o incremento da produção de alimentos no mercado interno, estimulada pelas exportações crescentes no vácuo da produção antilhana desarticulada pela revolta de São Domingos em 1792, aliada à peculiar conjuntura internacional gestada pelas guerras da Revolução Francesa e do Império Napoleônico. A importação crescente de mão-deobra escrava e o salto demográfico explosivo da população no Rio de Janeiro, que cresceu 160% entre 1799 e 1821, atestam os liames entre o crescimento do mercado interno e a dinâmica do setor externo, demonstrando ser um exercício de contorcionismo ineficaz a tentativa de colocar a ênfase no mercado interno, seguramente, fruto de uma conjuntura cronológica mais limitada. In serido n o elen co daqu eles qu e estu daram prioritariam en te o setor exportador,14 acabam os por revelar, n o fu n do, u m a sign ificativa diversificação do m ercado in tern o colon ial, especialm en te n a segu n da m etade do sécu lo XVIII, on de se con stata a am pliação da produ ção agropecu ária, qu e passa de 33 para 126 produ tos, den tre os qu ais o ou ro e o açú car perdem a h egem on ia qu e sem pre tiveram . O açú car represen ta, n o fin al do sécu lo, n ão m ais do qu e 35% do total da exportação, respon den do o restan te da produ ção por u m a sign ificativa din am ização da vida econ ôm ica in tern a da colôn ia, com acen tu ada ten dên cia à in tern alização do flu xo de ren da e, até m esm o, o estím u lo ao desen volvim en to da pequ en a in dú stria ligada à tran sform ação de produ tos agropecu ários. Gradativam en te, a colôn ia desgarrava-se da rigidez do pacto colon ial, apresen tan do variedade region al n as relações de trabalh o, n o tipo de exploração econ ôm ica, n as form as de propriedade, n os ín dices de ren da per capita, n o n ível dos preços, revelan do in ten sa e crescen te diferen ciação in tern a.15 O aceleram en to das m u dan ças n a colôn ia acen tu avam a ten dên cia ao deslocam en to das diretrizes do m on opólio m etropolitan o, apon tan do para a crise do sistem a colon ial e a con seqü en te em an cipação política. Tais m u dan ças, con tu do, n ão se fazem ao arbítrio da colôn ia, e sim n a su a in tersecção com o m u n do m etropolitan o. De fato, foi n a segu n da m etade do sécu lo XVIII qu e, sob a égide das reform as pom balin as, a política colon ial 175 José Jobson de Andrade Arruda portu gu esa, especialm en te aqu ela direcion ada ao Brasil, passou por alterações sen síveis, m esm o preservan do as lin h as m estras da política m ercan tilista. Sob o im pacto da crise qu e se abatia sobre o Im pério Portu gu ês, diretam en te relacion ado à retração da produ ção au rífera brasileira, im prim e-se u m a n ova diretriz in flu en ciada pela ilu stração, en qu adrada n o qu e se con ven cion ou ch am ar o “m ercan tilism o ilu strado portu gu ês”, cu ja m eta fu n dam en tal era a realização de abertu ras den tro do sistem a colon ial m ercan tilista, visan do à am en ização do exclu sivo m etropolitan o, estim u lan do-se a produ ção da colôn ia pela bu sca de in tegração m ais forte en tre o m u n do da m etrópole e o da colôn ia. O dilem a dos estadistas portu gu eses era atroz, n a form u lação de Fern an do Novais. “No plan o econ ôm ico, para con segu ir aproveitar os estím u los da exploração de su a gran de colôn ia, Portu gal precisava desen volver-se; m as a exploração da colôn ia era con dição para seu desen volvim en to. Im agin ar u m a ‘in tegração’ era qu an to se con segu ia propor para su perar esse dilem a in solú vel. Mesm o assim , para con segu ir ‘in tegrar’, tin h a de m odern izar-se, m as, agora n o n ível in tern o, isso levava a u m n ovo dilem a: m obilizar o pen sam en to crítico para em preen der as reform as, e con tê-lo para qu e n ão revelasse a su a face revolu cion ária. O ecletism o teórico e o reform ism o prático n ão con segu iram , pois, su perar as agu das con tradições por on de se m an ifestava a crise”.16 Nou tros term os, a m an ifestação do reform ism o ilu strado n a política colon ial som en te adqu iriria total in teligibilidade, desde qu e fosse in serida n o qu adro m ais geral da crise do sistem a. E esta crise resu ltava de su a própria estru tu ra e fu n cion am en to n a m edida em qu e, ao acelerar a acu m u lação de capitais, acelerava-se o processo de acu m u lação m ercan til e a su a m etam orfose em capitalism o in du strial, especialm en te n a In glaterra, an corada n o cen tro do sistem a. Aqu i, a tran sform ação vital represen tada pela passagem da m an u fatu ra à produ ção baseada n a m áqu in a-ferram en ta, resu ltava do im pacto do m ercado m u n dial e, sobretu do, do m ercado colon ial. Por essa via, peças fu n dam en tais do an tigo sistem a colon ial, tais com o m on opólio e escravism o, torn avam -se gradativam en te obstácu los in tran spon íveis ao desen volvim en to do capital em escala m u n dial, colocan do em ch equ e a própria exploração colon ial assen te n as determ in ações m ais gerais do capital m ercan til.17 As m u dan ças estru tu rais n o âm ago do sistem a são, por certo, as con dições m ais am plas n a explicação da crise do sistem a colon ial. Desdobram en tos qu ase n atu rais dessa assertiva é relem brar a con tradição m aior qu e a exploração colon ial en gen drava: o crescim en to e o desen volvim en to da colôn ia. No plan o m ais im ediato, o papel das circu n stân cias con ju n tu rais precisa ser rem etido às tran sform ações estru tu rais, especialm en te, as relações en tre Fran ça e In glaterra. As m u dan ças n a con ju n tu ra política eu ropéia 176 O SENTIDO DA COLÔNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL n ão podem , de per se, serem respon sabilizadas pela crise do sistem a colon ial. Atribu ir toda cu lpa aos bloqu eios e con tra-bloqu eios, aos bloqu eios terrestres e aos con tra-bloqu eios m arítim os, é tom ar a n u vem por Ju n o. É desprezar o papel desem pen h ado pela colôn ia, pelos h om en s qu e aí viviam . Jorge Pedreira, em seu estu do sobre a Estrutura Industrial e Mercado Colonial, afirm a qu e as vibrações con ju n tu rais em an adas das gu erras qu e se segu iram às revolu ções am erican a e fran cesa “con correram para u m a vasta reorden ação da econ om ia in tern acion al e facu ltaram as con dições para a in depen dên cia das colôn ias qu e as m on arqu ias ibéricas possu íam n a Am érica”.18 Não n egligen cia, certam en te, as relações en tre os m ovim en tos estru tu rais, as oscilações con ju n tu rais e as alterações político-m ilitares. Mas, coloca n o ostracism o absolu to qu alqu er m an ifestação con creta da colôn ia n as m u dan ças qu e en tão se operavam , espectadora im passível de seu próprio destin o. A idéia de u m a certa in ércia colon ial tran sparece, igu alm en te, n os escritos de Valen tim Alexan dre. A com u n idade de lín gu a, h ábitos e religião seriam respon sáveis por u m a certa solidariedade en tre brasileiros e portu gu eses qu e, apesar de rom pida pon tu alm en te com o n o caso dos em boabas, era, n o geral, reforçada pela n ecessidade de m an ter a dom in ação sobre a im en sa m assa escrava. Em decorrên cia, o “Estado lu so-brasileiro fu n cion ava ain da sem ten sões excessivas, tan to n o dom ín io econ ôm ico qu an to n o político ... Nu m am bien te de prosperidade m ercan til gen eralizada, as pressões n acion alistas n o Brasil, ain da in cipien tes, n ão criam n u n ca qu alqu er am eaça real de ru ptu ra”.19 Se assim era, a ru ptu ra do pacto colon ial teria qu e ser explicada, forçosam en te, de fora para den tro, a partir de alteração n o qu adro de forças defin ido pelas relações políticas e diplom áticas en tre as n ações eu ropéias h egem ôn icas, especialm en te, a Fran ça e a In glaterra, porqu an to, a Portu gal, ficava reservado u m papel igu alm en te passivo, con torcen do-se en tre os pólos rivais, esgu eiran do-se sistem aticam en te n a bu sca de u m a n eu tralidade im possível, m as oportu n am en te proveitosa, en qu an to du rasse. É n otável a m in im ização do papel da Colôn ia n a bu sca de seu próprio destin o. Reifica-se a visão in cru en ta da trajetória h istórica da Colôn ia. Su blim a-se o papel das n u m erosas m an ifestações de resistên cia qu e se agu dizam n a segu n da m etade do sécu lo XVIII, especialm en te o papel da In con fidên cia Min eira, m an ifestação con creta e sin tetizadora dos descon ten tam en tos da popu lação colon ial em relação à m etrópole portu gu esa.20 Um raro paradigm a in diciário. A recu peração h istórica do papel da Colôn ia n a su peração do an tigo sistem a colon ial, im põe a retom ada de su a trajetória n o ú ltim o terço do sécu lo XVIII. Não se pode falar em decadên cia de Portu gal n esse período. Nada qu e lem brasse a retração m ercan til da prim eira m etade do sécu lo 177 José Jobson de Andrade Arruda XVII, qu an do en tão se delin eia a gran de crise daqu ele sécu lo. Pelo con trário, apesar das dificu ldades políticas, especialm en te n o qu adro das relações diplom áticas, a política exterior portu gu esa aproveitava ao m áxim o as possibilidades in scritas n o prin cípio da n eu tralidade. O au ge da produ ção au rífera n o Brasil correspon dera a persisten tes déficits n a balan ça com ercial portu gu esa em relação à In glaterra. Paradoxalm en te, o colapso n a exploração de m etais, equ ivale ao período em qu e a balan ça se equ ilibra e, n os fin ais do sécu lo, torn a-se m esm o su peravitária em relação aos in gleses. Um feito h istórico. Com isso tin h a sido possível? Um a n ova articu lação n as relações m etrópole-colôn ia. A con tin u idade da política pom balin a, o seu caráter in tegrado, n o qu al in dú stria, agricu ltu ra e com ércio são objetos da ação govern am en tal, defin in do-se u m am plo espaço de ação das políticas pú blicas com elevado grau de u n idade. Con sideran do as m in as riqu ezas fictícias, Pom bal fez do estím u lo à agricu ltu ra o epicen tro de su a ação política. Seu s efeitos n ão tardaram , expressan do-se n a diversificação agrícola do espaço colon ial brasileiro, geran do produ tos para a reexportação do Rein o, alim en tos para a popu lação m etropolitan a e m atérias-prim as para as m an u fatu ras, en laçan do in dú stria e agricu ltu ra, tran sform an do a cam in h ada ru m o à in du strialização u m a possibilidade con creta. A criação das com pan h ias de com ércio, cu ja fin alidade era exatam en te u n ir os espaços agrícola e in du strial, separados pelo ocean o, fech ava o circu ito da perspectiva econ ôm ica qu e en tão se delin eava para o Im pério Lu so-Brasileiro. Nestes term os, a política in du strialista portu gu esa n ão foi o fru to passageiro de u m a crise com ercial, com o ocorrera n o sécu lo XVII. Tem u m caráter estru tu ral e en orm e poten cial tran sform ador, seja n a m etrópole, seja n a colôn ia. Esta form u lação, bem o sabem os, con fron ta as explicações do m estre Victorin o Magalh ães Godin h o, para qu em “os m ovim en tos in du strialistas se deram n o segu im en to de crises com erciais profu n das e, portan to de baixa prolon gada de preços”, o m esm o acon tecen do com “a política pom balin a do terceiro qu artel do sécu lo XVIII”.21 Godin h o h om ologiza o discu rso, repon do para o sécu lo XVIII a m esm a explicação dada ao sécu lo XVII, n o atin en te às ten tativas falh as de in du strialização, n o qu e é im propriam en te acom pan h ado pelos qu e vêem n a essên cia da política colon ial portu gu esa o arcaism o por projeto, elevado à con dição de n ervo explicativo da con dição colon ial,22 com o se colôn ia e m etrópole fossem sin ôn im os u n idos por u m m esm o sin al explicativo, in fen so à diferen ciação qu e o processo h istórico in stau ra. Isto explica a aproxim ação en tre os revision istas portu gu eses e seu s segu idores n o Brasil n a árdu a tarefa de ressem an tização h istórica da Colôn ia, da n atu reza m esm a de su a existên cia, das con dições específicas de su a em an cipação. Um privilegiam en to n ada recôn dito da con tin u idade em detrim en to da ru ptu ra, on de tu do são con ju n tu ras, n ada é estru tu ral. 178 O SENTIDO DA COLÔNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL Com o en ten der o arcaism o com o projeto dian te do pertu bador crescim en to econ ôm ico, expressão do n ovo e com plexo relacion am en to m etrópole-colôn ia. Nele, as colôn ias torn am -se m ercados con su m idores das m ercadorias in du strializadas produ zidas n a m etrópole e forn ecedores de alim en tos e m atérias-prim as, declin an do gradativam en te a im portân cia dos produ tos tropicais. É n otável a distân cia en tre este relacion am en to e aqu ele qu e se delin eara n a fase de m on tagem do sistem a colon ial, e m esm o de su a m atu ridade, isto é, n os sécu los XVI e XVII. O n ovo m odelo n ão rom pe visceralm en te com o an terior. Reforça os liam es en tre a m etrópole e a colôn ia e, de certa form a, an tecipa as ten dên cias qu e seriam dom in an tes n a segu n da m etade do sécu lo XIX, n o qu adro do n eocolon ialism o. É pion eiro e precoce. Em erge do âm ago do an tigo sistem a colon ial, o qu e talvez expliqu e os en traves estru tu rais à su a rápida e plen a realização. Defron tam o-n os com u m a tran sform ação vital. Se a m etrópole avan ça crian do fábricas, a colôn ia diversifica su a produ ção, seu s m ercados se in tegram in tern a e extern am en te. Se as ren das geradas pelo setor exportador são m en ores, tan to n o Brasil qu an to em Portu gal, com parativam en te ao au ge da produ ção au rífera, com pen sam pela su a distribu ição m ais plu ral, refletida n os ín dices de ren da per capita. A con ju n tu ra econ ôm ica era de prosperidade. Não se pode falar em depressão, em decadên cia. E, em tais circu n stân cias, en gen dra-se u m en orm e poten cial tran sform ador. Os prim eiros sin ais den otadores da em ergên cia de u m a n ova con figu ração n as relações n o âm bito do sistem a colon ial aparecem n a segu n da m etade do sécu lo XVII, con secu tivo à crise geral.23 Rom pe-se o m on opólio da produ ção açu careira, acirra-se a com petição en tre as m etrópoles, in tern acion aliza-se o capital m ercan til, am plia-se o con su m o pela baixa de preços, ao m esm o tem po qu e cresce o m ercado con su m idor colon ial para produ tos m an u fatu rados vin dos das m etrópoles. A m axim ização dos lu cros pela otim ização dos fatores de produ ção, estritam en te regidos pelas leis da econ om ia de m ercado, su gerem a em ergên cia de u m segu n do sistem a Atlân tico, n a den om in ação Peter Em m er.24 Porém , apesar de seu elevado grau de especialização, a essên cia desse sistem a produ tivo assen tava-se n o tripé m on ocu ltu ra, latifú n dio e escravidão. A diferen ça essen cial do n ovo padrão de colon ização, criado pelos portu gu eses, estava exatam en te n o en lace colôn ia-m etrópole sob a égide da in du strialização, u m n ovo arran jo pelo qu al, sem abrir m ão do m on opólio, firm ava-se u m n ovo tipo de relacion am en to bilateral. Equ ívoco falar-se, portan to, em decadên cia ou crise n o sen tido restritivo. Trata-se de u m a crise de crescimento qu e, em Portu gal, tran sform a-se gradativam en te em crise de retração, qu e algu n s au tores preferem den om in ar “colapso”,25 reforçan do a sen sação de u m tem po perdido qu e con du z a reificação n ostálgica do m ito da decadên cia. No Brasil, igu alm en te, a produ ção h istoriográfica dos an os 60 acabou por con solidar a idéia de 179 José Jobson de Andrade Arruda qu e u m a “profu n da prostração” se abatia sobre a colôn ia, n os an os qu e an tecederam a in depen dên cia. Celso Fu rtado refere-se à falsa eu foria do fim da época colon ial. Virgílio Noya Pin to assim en ten de o período em seu estu do sobre a con ju n tu ra econ ôm ica n a época da In depen dên cia 26. Essas in terpretações são bem o exem plo de com o as con dições h istóricas presen tes, viven ciadas pelos h istoriadores, podem in flu ir em su a percepção do passado. De fato, n o m om en to em qu e esses escritos eram produ zidos, deparavam o-n os, n o país, com o im pacto de u m a forte crise do capitalism o periférico, crise esta qu e, mutatis mutandis, gu ardava u m a certa sem elh an ça com a crise dos prim órdios dos an os oitocen tos. A in telectu alidade brasileira, qu e vivia in ten sa e agu dam en te este período, an te-sala dos an os de exceção qu e se segu iriam , precon izava du as saídas possíveis para a crise: o colapso fin al do capitalism o periférico brasileiro e a con seqü en te im plan tação do regim e socialista; ou , a cam in h ada in exorável da sociedade brasileira ru m o a estagn ação econ ôm ica in evitável. A aproxim ação im agin ária en tre estes dois m om en tos críticos da História do Brasil, in du ziu à iden tificação sim bólica en tre o an tigo sistem a colon ial e o capitalism o periférico; a altern ativa revolu cion ária com a ru ptu ra do pacto colon ial e o m ovim en to da In depen dên cia; a estagn ação irrem ediável com a situ ação econ ôm ica e política de Portu gal após a tran sm igração da fam ília real para o Brasil. Três décadas se passaram . Os acon tecim en tos h istóricos vieram a dem on strar qu e h avia u m a terceira possibilidade in scrita n a in terpretação da crise do capitalism o periférico, e qu e se tran sform ara em pon to de referên cia in con scien te para o equ acion am en to da crise do an tigo sistem a colon ial, isto é, a possibilidade de qu e o capitalism o con tin u asse a su a trajetória, am en izado em su as tran sgressões sociais por reform as dem ocráticas ou dem ocratizan tes, reais ou , sim plesm en te, alardeadas.27 Im pen sável m esm o, n aqu eles an os, era o desaparecim en to total da opção socialista, pela crise arrasadora qu e sobre ela se abateu n os an os 80/ 90. Por tu do isso, as pesqu isas qu e apon tavam para o crescim en to econ ôm ico da colôn ia e, portan to, seu desen volvim en to n o in terior das m alh as do sistem a colon ial, n ão foram devidam en te con tem pladas n as an álises.28 Partin do-se do pressu posto de qu e h avia crescim en to e desen volvim en to real da Colôn ia, com o en ten der a ru ptu ra, o resu ltado ocasion al de con tin gên cias h istóricas fortu itas e in apeláveis? A trajetória n atu ral con du cen te à globalização atu al propiciada pelos descobrim en tos qu an do colôn ias foram criadas e fu tu ras n ações in depen den tes an u n ciadas? O discu rso político da elite colon ial era sobretu do an ticolon ial e an tim etropolitan o, o qu e se explica pela n ecessidade fu n dam en tal de preservar a liberdade de com ércio e a au ton om ia con qu istada com a qu ebra do m on opólio, n o con texto da abertu ra dos portos.29 Mas esta m obilização crítica do 180 O SENTIDO DA COLÔNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL pen sam en to n ão poderia se con stitu ir de u m m om en to para ou tro, de qu e se depreen de qu e, se falava m ais alto a lin gu agem do m ercado, da liberdade dos m ercados, ela teria qu e ser o fru to da con sciên cia de qu e as m igalh as esparsas do m ercado colon ial, aos pou cos, n o processo colon izador, con stitu íram u m a rede de m alh as irregu lares, m as cu jos laços se apertam n o decu rso do sécu lo XVIII, sobretu do em seu ú ltim o terço, qu an do os m ercados region ais com eçam a se defin ir. O sertão foi esqu artejado n as picadas dos com boios de an im ais, n o trân sito de h om en s sequ iosos por pedras preciosas, por m etais. Os n ú cleos m in eradores arrastaram os h om en s, o im agin ário, a h istória. A distân cia dos agru pam en tos u rban os aliviava o con trole e propiciava a revolta. Econ om ias m edíocres, qu ase au to-su ficien tes, com o a dos pau listas, davam vazão às explosões de violên cia, m as atrelam -se ao m ercado das Min as Gerais, via abastecimento oriundo dos campos dos goitacases. Os próprios qu ilom bos, os redu tos de sicários, in tegram -se aos m ercados próxim os origin an do atividades tem porárias ou perm an en tes. Portan to, laços tên u es, cotidian am en te repetidos, form an do u m a teia relacion al de lon go cu rso. Nos pólos n evrálgicos do sistem a, aqu eles articu lados fortem en te às econ om ias exportadoras, vicejavam os com ercian tes, tão ricos e poderosos qu e deles se dizia, n o sécu lo XVIII, qu e a “Espan h a era u m a colôn ia de su as colôn ias”. Por aí se en ten de a recorrên cia da presen ça de m ercadores colon iais n os m ovim en tos de resistên cia, em con flito perm an en te com seu s com petidores m etropolitan os.30 No m om en to da crise do sistem a a colôn ia brasileira revela u m a econ om ia ativa, defin ida pela plu ralidade de relações de trabalh o em su as várias regiões, pela disparidade dos preços da produ ção in tern a de produ tos sim ilares, pela forte ação do con traban do n os portos brasileiros n os an os an teriores a 1808 qu e, pela m an u ten ção dos ín dices de exportação e declín io das im portações portu gu esas, expõe o escan caram en to dos portos m esm o an tes da abertu ra oficial, revelan do a in exorável destru ição do regim e de exclu sivo, qu e som en te se torn ou exeqü ível graças à con vivên cia dos colon os qu e, assim , forjavam seu próprio cam in h o das m alh as do sistem a colon ial.31 A in ten sificação do con traban do n esse período cru cial torn a-se em blem ática.32 Sim boliza, de u m lado, a resistên cia colon ial e, de ou tro, a con cretização da pressão in glesa qu e forçava n o sen tido da abertu ra dos portos do Brasil.33 Os testem u n h os do con tador Mau rício José Teixeira de Moraes são eloqü en tes do desespero qu e se abate sobre as au toridades portu gu esas. Em 1802, n o prólogo da Balan ça de Com ércio, afirm ava: “qu eira a sorte qu e n ão su ceda o m esm o n os an os fu tu ros pela abu n dân cia de con traban do qu e se in trodu z n a Am érica”. Em 1805, voltaria a lam en tar-se: “dim in u tas exportações procedem in du bitavelm en te do m u ito con traban do, cu ja en trada está fran qu eada n aqu eles portos...; e, se pelo con trário, as 181 José Jobson de Andrade Arruda im portações n este Rein o n ão tem dim in u ído, segu e-se qu e o referido con traban do é todo ven dido a troca de m oeda corren te”. Um a ação tão agressiva teria qu e con tar, certam en te, com o respaldo dos h abitan tes da colôn ia e, até m esm o, dos com ercian tes portu gu eses aqu i in stalados. É o qu e se depreen de dos escritos de 1806: “a estagn ação do com ércio provém do ru in oso prin cípio da in trodu ção clan destin a das m ercadorias proibidas n este e n aqu ele con tin en te, pela falta de patriotism o de algu n s n egocian tes qu e, esqu ecidos das leis qu e n os regem , procu ram tão som en te os seu s in teresses”. A con su m ação da tragédia an u n ciada an os an tes se dá em 1807, qu an do diz: “ten h o m u ito pou co a pon derar do estado do n osso com ércio n o an o passado de 1807, qu e n ão seja u m a repetição do qu e disse n os an os de 1805 e 1806, por ele cam in h ar para su a decadên cia e abatim en to”.34 Mesm o qu e se afirm e qu e os respon sáveis pela coibição dos descam in h os, com o era o caso do con tador Mau rício José, via de regra exageram em su as avaliações som brias, n ão se pode n egligen ciar a con clu são óbvia de qu e as exportações portu gu esas para a Colôn ia ten deram a zero e qu e, efetivam en te, os portos brasileiros abriam -se an tes de 1807, tran sform an do o docu m en to de abertu ra dos portos de 1808 n u m a m era form alização sobre práticas con cretas. O período de 1780-1830 é vital para que se possa compreender a trajetória brasileira. Nublado pela experiência vitoriosa do ouro e do café, remetem a segundo plano a produção de subsistência, a história do abastecimento, a dinâmica da economia mercantil de subsistência, a força da diversificação econômica, que é a marca indelével do período e, a partir da qual, pode-se entender a emergência de um patamar mínimo de integração do Brasil no mercado mundial, ou seja, um mínimo de articulação interna entre as diferentes regiões e zonas produtivas brasileiras; a existência de diferentes relações de produção e variados padrões de acumulação nas regiões brasileiras; a emergência de um centro dinâmico capaz de integrar o conjunto e mesmo se auto-reproduzir, como é o caso de Minas Gerais. O con trapon to com esta experiên cia in tegradora an corada em Min as Gerais, e qu e sobreleva o seu sign ificado h istórico, é o exem plo das colôn ias espan h olas da Am érica qu e realizam u m a trajetória in versa, pois o rom pim en to com a m etrópole an u la o ú n ico vín cu lo de u n idade existen te, expon do e reforçan do a plu ralidade dispersiva da region alização econ ôm ica. Revela-se, portan to, n a in tegração de vários m ercados region ais brasileiros em torn o de u m cen tro articu lador, o su rgim en to de u m esboço do m ercado n acion al, em fu n ção do qu al arregim en tam -se in teresses sociais específicos, capazes de m obilizar a ação política coletiva ru m o à ru ptu ra e à con stitu ição do Estado Nacion al. A crise do sistem a colon ial produ z-se n o in terior do processo colon izador, on de se en gen dra a n ação e se gesta a n oção de perten cim en to, reforçada pela lin gu agem do in teresse com u m do m ercado. 182 O SENTIDO DA COLÔNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL N OTA S 1. De toda evidên cia, trata-se de u m a colôn ia de exploração, de acordo com a tipologia clássica de LEROY-BEAULIEU, P. De la colonisation chez les peuples modernes. Paris, 1902. t.II, p.563 ss, assu m ida por Fern an do An tôn io Novais em seu en saio Con siderações sobre o sen tido da Colon ização, Revista de Estudos Brasileiros (São Pau lo), v.6, p.55,1969. Fora de cogitação, portan to, en ten dê-la com o “u m a colôn ia de povoam en to”, com o o faz ALEXANDRE, V., 1993. p.810. Não se percebe a distin ção fu n dam en tal, n este caso, en tre explorar econ om icam en te para fixar a popu lação (colôn ia de povoam en to) e povoar para garan tir a exploração econ ôm ica (colôn ia de exploração). Em dois livros diferen tes: PRADO JÚNIOR C. 1961a . e PRADO JÚNIOR, C., 1961 já ensinava que: “Para os fins mercantis que tinha em vista ... era preciso … criar u m povoam en to capaz de abastecer e m an ter as feitorias qu e se fu n dassem , e organ izar a produ ção dos gên eros qu e in teressavam seu com ércio”. A idéia de povoar surge daí e só daí. (grifo n osso). 2. Cf. PRADO JÚNIOR, C., 1961, especialm en te o capítu lo Sen tido da Colon ização, p.13-26. NOVAIS, F. A. 1979, especialm en te A Colon ização com o sistem a, p.57-72. 3. HAMILTON, E. J. Th e Role of Mon opoly in th e Overseas Expan sion an d Colon ial Trade of Eu rope Before 1800. The American Economic Review , 1948, v.38, n .2, p.53. 4. NOVAIS, F. A. O Brasil n os Qu adros do An tigo Sistem a Colon ial. In : MOTA C. G. (Org.) Brasil em Perspectiva. São Pau lo: Difel, 1969. p.47-62. 5. Para Fern an d BRAUDEL, “O processo de produ ção é u m a espécie de m otor de dois tem pos, os capitais circu lan tes são destru ídos im ediatam en te para serem reprodu zidos ou m esm o au m en tados”, já, “a deterioração do capital fixo é u m a doen ça econ ôm ica pern iciosa qu e n u n ca se in terrom pe”. Assim sen do, “é a estru tu ra econ ôm ica e técn ica qu e con den a certos setores – particu larm en te a produ ção ‘in du strial’ e agrícola – a u m a pequ en a form ação de capital. Sen do assim , n ão é de adm irar qu e o capitalism o do passado ten h a sido m ercan til, qu e ten h a reservado o m elh or do seu esforço e dos seu s in vestim en tos à esfera da circu lação”. O resu ltado é u m a con tradição flagran te, pois “em países su bdesen volvidos o capital líqu ido, facilm en te acu m u lado n os setores preservados e privilegiados da econ om ia, seja por vezes su perabu n dan te e in capaz de ser in vestido de m odo ú til em su a totalidade. In stala-se sem pre u m vigoroso en tesou ram en to. O din h eiro ‘estagn a’, ‘apodrece’; o capital é su bem pregado”. Em certos m om en tos, “u ltrapassa a qu an tidade de ben s capitais e de din h eiro qu e su a econ om ia poderia con su m ir. En tão ch ega a h ora das com pras de terras pou co ren táveis, a h ora das m agn íficas casas de cam po con stru ídas n essa época, do desen volvim en to m on u m en tal, das explosões cu ltu rais”. Essas econ om ias produ ziam u m a “qu an tidade n otável de capital bru to, mas em certos setores esse capital bru to derretia como n eve ao sol”. BRAUDEL, F.,1996, p.210-5. Sobre a n atu reza do capital m ercan til, n os term os em qu e aqu i foi delin eado, Cf. ARRUDA, J. J. de A. Exploração Colon ial e Capital Mercan til. In : SZMRECSÁNYI T. (Org.) História Econômica do Período Colonial. São Pau lo: Hu citec,1996. p.217-23. 6. Cf. MELLO, J. M. C. de, 1982. p.89. 7. FRAGOSO, J. L. R. 1992. p.20. 8. NOVAIS, F. A., 1972. p.23. 9. VAN BATH, S. Econ om ic Diversification in Span ish Am erica Arou n d 1600: Cen tres In term ediate, Zon es an d Periph eries. In : Jahrbuch für Geschichte von Staat, Wirtschaft und Gesellschaft, 1979. p.78. 10. Sobre este tem a ver CARDOSO, C. F. A brech a Cam pon esa n o Sistem a Escravista. In : Agricultura, Escravidão e Capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979. 11. FRAGOSO, J. L. R., op. cit., p.21. 12. Estas reflexões, absolu tam en te n ecessárias, NOVAIS, F., 1997, relegou a u m a n ota de pé de págin a de seu referido capítu lo. 183 José Jobson de Andrade Arruda 13. Desdobram en to n atu ral dessas proposições são as in qu ietações qu e assom am Fern an do Novais, ao refletir sobre o “n ovo sen tido” da econ om ia colon ial, qu e lh e provocam in ú m eras in terrogações: “Um a qu estão qu e sem pre m e ocorre dian te desses argu m en tos é esta: se n ão são estas as características (extroversão, extern alidade da acu m u lação etc.) fu n dam en tais e defin idoras de u m a econ om ia colon ial, o qu e, en tão, as defin e? Ou será qu e n ão se defin em ? Será qu e n ada de essen cial as distin gu e das dem ais form ações econ ôm icas? Não creio qu e seja esse o objetivo dos revision istas”. Ibid. 14. Cf. ARRUDA, J. J. de A., 1980. Passados 25 an os desde qu e esta obra foi escrita, su as con clu sões fu n dam en tais perm an ecem de pé. Especialm en te n o qu e tan ge à im portân cia decisiva da perda do m ercado brasileiro n a explicação da crise da in dú stria portu gu esa. As reavaliações qu an titativas feitas por Valen tim Alexan dre são m u ito im portan tes por aden sarem os dados. Mas as con clu sões decisivas m an têm -se: a idéia da diversificação, o déficit de Portu gal peran te a Colôn ia, a in ten sidade do con traban do. Certam en te, o avan ço da pesqu isa, perm itiu a relativização dessas con clu sões, m as n ão su a in validação. Cf. ALEXANDRE, V.,1993, especialm en te, p.25-89. 15. Note-se qu e a idéia de diversificação do m ercado colon ial, da in ten sificação do processo de acu m u lação in tern a fora por n ós apon tado claram en te em 1972, an o de redação de O Brasil no Comércio Colonial, e retom ado en faticam en te em 1985 n o artigo: A Prática Econ ôm ica Setecen tista n o seu Dim en sion am en to Region al. Revista Brasileira de História, v.10, p.123-46, 1985. 16. NOVAIS, F. A., 1979, p.301. 17. Ibidem . 18. PEDREIRA, J., 1994, p.516. 19. ALEXANDRE, V., op. cit., p.811. 20. De toda evidên cia trata-se de u m a visão extern a, m etropolitan a, da h istória colon ial. In crível é qu e h aja epígon os qu e a assu m em e reprodu zem em escritos descaracterizadores de n ossas trajetória h istórica, forçan do n o sen tido de m in im izar a im portân cia dos m ovim en tos de resistên cia ocorridos n a Colôn ia. Exem plo típico dessa postu ra revision ista con servadora é a afirm ação de Gu ilh erm e Pereira das Neves: “parece pou co provável qu e os m ovim en tos con testatórios do período ten h am a dim en são qu e lh es em prestou u m a h istoriografia n acion alista, sequ iosa de en con trar os an teceden tes da In depen dên cia de 1822 e de estabelecer os m itos fu n dadores da n ova n ação”. Se esta in terpretação é atribu ída a u m a h istoriografia n acion alista, com o qu alificar a descon stru ção do articu lista? Se n ão h á relação en tre a In depen dên cia e esses m ovim en tos an teriores, o qu e foi a In depen dên cia? Um a dádiva? Um aborto? Cf. NEVES, G. P. das Do Im pério Lu so-Brasileiro ao Im pério do Brasil. Ler História, v.27-28, p.91,1995. 21. Cf. GODINHO, V. M., 1955, p.208, retom an do-se o tem a n as págin as 279 ss. Para n ossa argu m en tação em torn o do tem a, Cf. ARRUDA, J. J. de A. Decadên cia ou crise do Im pério Lu so-Brasileiro: o n ovo padrão de colon ização do sécu lo XVIII. In : ACTAS DOS 4º. s CURSOS INTERNACIONAIS DE CASCAIS, 1997. 22. “O arcaism o é, isto sim , u m verdadeiro projeto social”, o qu e explicaria porqu e as ten tativas de in du strialização, “ocorridas n os sécu lo XVII e XVIII, som en te em m eio a con ju n tu ras n as qu ais a reprodu ção deste tipo de projeto se via am eaçado; u m a vez qu e passado o período arcaico retom ou com força total”. Cf. FRAGOSO J., FLORENTINO, M., 1993. p.27. 23. Cf. HOBSBAWM, E. Th e Crisis of th e Seven teen th Cen tu ry. In : ASTON, T. (Ed.) Crisis in Europe 1560-1660. Lon don : Rou tledge e Kegan Pau l, 1965. p.51. 24. Cf. EMMER, P. C. Th e Du tch an d th e Makin g of th e Secon d Atlan tic System . In : SOLOW B. (Ed.) Slavery and the Rise of the Atlantic System. Cam bridge: Cam bridge Un iversity Press, 1991. p.75-96. 25. Cf. ALEXANDRE, V., op cit.; PEDREIRA, J., op. cit. 184 O SENTIDO DA COLÔNIA. REVISITANDO A CRISE DO ANTIGO SISTEMA COLONIAL NO BRASIL 26. Cf. FURTADO, C., 1963, p.112.; PINTO, V. N. Balan ço das Tran sform ações Econ ôm icas n o Sécu lo XIX. In : Brasil em Perspectiva. São Pau lo: DIFEL, 1969. p.125-46. 27. GOERTZEL, T. apon ta Fern an do Hen riqu e CARDOSO com o u m dos raros in telectu ais capazes de pren u n ciar estas possibilidades. Cf. O Modelo Político Brasileiro e Outros Ensaios. São Pau lo: DIFEL, 1972. p.66. 28. Cf. MAURO, F. A Con ju n tu ra Atlân tica e a In depen dên cia do Brasil. In : MOTA, C. G. (Org.) 1822 Dimensões. São Pau lo: Perspectiva, 1972. p.38-47; MATTOSO, K. de Q. Os Preços n a Bah ia de 1750 a 1930. In : L’Histoire Quantitative du Brésil de 1800 a 1930. Paris: CNRS, 1973. p.167-82; JOHNSON, H. B. Mon ey an d Prices in Rio de Jan eiro (1720-1860). In : MAURO, F. (Org.), op. cit., p.39-47. 29. Cf. COSTA, E. V. da, 1969, p.63-124. 30. Cf. BRAUDEL, F., 1996. p.373. v.3. 31. Cf. ARRUDA, J. J. de A Mercado Nacion al e Mu n dial en tre o Estado e a Nação: Brasil, da Colôn ia ao Im pério. In : Estados e Sociedades Ibéricas. Realizações e Conflitos (Século XVIII-XX), Actas dos 3ºs Cu rsos In tern acion ais de Cascais, v.III, p.195-206, Cascais, 1996. 32. “However, in m om en ts of crisis, th e aggressive pen etration of forein g com m erce in to th e colon y cou ld lead to a desin tegration of th e system or th e loss (in depen den ce) of th e colon y”. ARRUDA, J. J. de A. 1991. p.397. 33. Cf. MAXWELL, K. Th e Atlan tic in th e Eigh teen th Cen tu ry: A Sou th ern Perspective on th e Need to Retu rn to th e “Big Pictu re”. Transactions of the Royal Historical Society (Lon don ), 6th series, v.3, p.230, 1993. 34. Prólogo das BALANÇAS de 1802, 1805, 1806 e 1807. MORAES, M. J. T. de Balança Geral do Commercio do Reyno de Portugal com seus Domínios. Lisboa: In stitu to Nacion al de Estatística, 1807. Texto atu alizado. Em estu do recen te, Ern st Pijn in g an alisa de form a den sa e pen etran te a relação en tre con traban do e sistem a colon ial. Parte da con statação de qu e o fen ôm en o do con traban do era parte visceralm en te con stitu tiva do tecido da sociedade colon ial e m esm o de su a m en talidade. Con stata, a partir da an álise das apreen sões realizadas pelo poder pú blico n o fin al do sécu lo XVIII, n o Rio de Jan eiro, a in ten sificação do com ércio ilegal, pois os altos e baixos das apreen sões m ostram a cau tela qu e se segu e às ações restritivas. De qu alqu er form a, o an o de 1798 é expressivam en te distin gu ido pelo salto espetacu lar das apreen sões, defin in do u m m om en to específico do fortalecim en to da prática do con traban do n o Brasil colon ial. Cf. PIJNING, Ern st, Controlling Contraband: Mentality, Economy and Society in Eighteenth-Century Rio de Janeiro. Tese de dou torado, Joh n s Hopkin s Un iversity, Baltim ore, Marylan d, 1997, p. 17. 185 José Jobson de Andrade Arruda B IBLIOGRA FIA ALEXANDRE, V. Os sentidos do Império. Qu estão n acion al e qu estão colon ial n a crise do an tigo regim e portu gu ês. Lisboa: Edições Afrotam en to, 1993. ARRUDA, J. J. de A. Colon ies as Mercan tile In vestim en ts. In : TRACY J. D. (Ed.) The Political Economy of Merchant Empires. Cam bridge: Cam bridge Un iversity Press, 1991. p.360-420. ___. O Brasil no Comércio Colonial. São Pau lo: Ática, 1980. BRAUDEL, F. Os Jogos da Troca. In: ___. Civilização material, economia e capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 1996. v. 2. Tradução portuguesa. CARDOSO, C. F. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979. COSTA, E. V. Introdução ao estudo da emancipação política do Brasil. In: MOTA C. G. (Org.) Brasil em Perspectiva. 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Vol. 31, n. 1, 1966, p. 113-33. 187 capítu lo 11 CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL José Ten garrin h a* O A GRICULTOR E A CON TESTA Çà O RURA L – ESSES GRA N D ES A USEN TES D A HISTORIOGRA FIA PORTUGUESA . Continuaram a ser predominantes as generalizações e as redutoras abstrações da historiografia oitocentista, que se limitara a salientar ou a passividade e apatia das populações rurais ou o seu apoio ao regime absoluto e ao miguelismo. No primeiro caso, chegava a admitir-se que essa massa amorfa e submissa só se alterava, de muito em muito longe, em explosões desesperadas; mas, reduzidas estas a meras reações reflexas de estímulos conjunturais, não se lhes reconhecia qualquer projeto ou alcance nos acontecimentos políticos nem sequer alguma articulação dinâmica com o conjunto da sociedade. No segundo caso, imprimia-se um sentido político único à movimentação rural em Portugal no final do Antigo Regime e primeiros anos do regime liberal; o que era, obviamente, absurdo. Assim se ju stificava a m argin alização do m u n do ru ral e o silên cio sobre ele. Tais omissões e distorções, respeitando a um domínio que em espaços, em gentes e em produção ocupava uma grande parte da realidade nacional, não deixariam de afetar a compreensão da trajetória do País, no seu conjunto. Foram, todos esses, incentivos para a investigação que conduzi durante cerca de quinze anos, especialmente dirigida sobre o final do Antigo Regime e os inícios do regime liberal.1 Neste artigo refletiremos sobre o período que imediatamente antecedeu a Revolução de 1820, analisando alguns aspectos do protagonismo que aí tiveram as classes rurais, no seu conjunto. N OVA S D IN  MICA S SOCIA IS A PÓS A S IN VA SÕES Após as Invasões Francesas, a movimentação das massas rurais em Portugal apresentará três novas principais características, que a projetam para um plano qualitativamente superior, designadamente quanto à contestação anti-senhorial: o sentido e amplitude da intervenção, a sua inser- 189 José Tengarrinha ção num quadro legal reformista e as alianças que se estabelecem entre diversos grupos sociais inferiores e médios no âmbito das administrações locais. Antes de tudo, as convulsões que abalaram os campos quando das Invasões – com um triplo conteúdo de revolta social, guerra religiosa e luta nacional – permitiram que as populações rurais adquirissem, como nunca, consciência do seu poder; e que tais ações se revestissem, também, de um sentido social superior, na medida em que a intervenção rebelde, o ato amotinador passa a ser não apenas socialmente justificável mas até dignificante. É uma verdadeira inversão de valores psicológicos e morais da sociedade. Outra diferença fundamental relativamente às movimentações agrárias anteriores – para além das motivações e do alargamento quantitativo da intervenção popular – reside na substancial alteração das categorias sociais envolvidas, aparecendo agora as camadas médias ou médias inferiores com uma participação na rebeldia social como não se vira até aí, pelo menos com essa dimensão. Acabarão elas por ser, nesta fase, os principais motores da movimentação, na sua globalidade. E este fato – de grande importância na história social portuguesa contemporânea – irá provocar motivações políticas que se estenderão, em ondas reflexas, por toda a sociedade. Não mais se poderá dizer que é o “povo miúdo”, de um lado, e a “gente grada”, do outro, em posições irredutíveis, nem que a agitação social resulta de atos irresponsáveis de “gente rude e ignorante”. O tecido social que se envolve na contestação apresenta, agora, maior heterogeneidade. É visível, além disso, um maior inconformismo das populações rurais, mesmo relativamente a situações que no passado haviam aceito. As próprias autoridades o reconheciam, com freqüência. Por exemplo, o provedor da comarca de Coimbra, ao intervir no conflito sobre os direitos banais em Penela (1816), admitia que a rebeldia dos agricultores tomara maiores proporções por influência “das modernas opiniões e doutrinas dos pretendidos defensores dos direitos dos povos”.2 Ou o prior de Vila Nova de Monsarros ao testemunhar, em 1814, que os habitantes, tendo começado por contestar os excessos cometidos na cobrança dos encargos do foral, acabaram colocando em causa os direitos senhoriais na sua totalidade, tanto assim que o senhorio, cabido da Sé de Coimbra, “pouco tem arrecadado”.3 Emergem, assim, atitudes gerais de contestação que põem em causa, mais frontalmente, relações de dependência e hierarquias tradicionais. Tal favorece que o sentido político passe a impregnar mais a contestação social (tornando menos nítidas as fronteiras entre eles), o que abre uma nova dimensão no relacionamento entre o social e o político. O eco das lutas da segunda metade do século XVIII, solitárias e desesperadas, contra a opressão senhorial e a apropriação individual da terra, está presente. Mas é esta nova qualidade da contestação, então emergente, que se projeta na dimensão nacional, política e militar dos abalos anteriores e posteriores à Revolução de 1820. 190 CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL LIN HA S GERA IS D A CON TESTA Çà O Nos 2 anos seguintes às Invasões era a preocupação de sobrevivência que dominava o comportamento das camadas sociais mais baixas nos campos. Encontravam-se, também, muito perturbados os mecanismos de cobrança das tributações, em especial nas regiões mais duramente atingidas pelas Invasões. Já quando da primeira invasão, as remessas das contribuições para o governo francês não eram feitas em muito elevado número de casos, instalando situações de incumprimento que, naturalmente, tinham a tendência para se prolongar, mesmo passada a situação de guerra. Quanto às rendas de particulares, para além das naturais dificuldades de haver quem se dispusesse a contratar o seu recebimento em tempos tão instáveis, levantavam-se muitas dúvidas na determinação das bases jurídicas dos direitos e das delimitações de terras, por terem sido numerosos os títulos e tombos queimados nos incêndios dos cartórios. Finda a guerra, foram incontáveis os casos de foreiros, enfiteutas, arrendatários, contratadores da Coroa e de diversas casas (como a de Bragança) que pediram remissão das dívidas ou isenção do pagamento. Perante os rigores das cobranças por muitos enfiteutas e contratadores de rendas (impondo encargos antigos ou procedendo a novas louvações, como se viu amiúde), os povos lamentavam-se ou protestavam com vivacidade. A Coroa tomou a decisão de isentar do pagamento os que provassem terem sido saqueados pelos franceses. Não foram poucas, também, as instituições religiosas que perdoaram os dízimos até 1812.4 Eram golpes profundos na exação da renda senhorial, que ainda mais a debilitava, e cuja recuperação se tornava particularmente difícil em virtude da quase generalizada situação de absenteísmo dos senhorios laicos, muitos dos quais acompanhando a Corte no outro lado do Atlântico. Tais condições, favoráveis à isenção ou fuga ao pagamento de rendas e foros, fizeram naturalmente diminuir a necessidade da contestação frontal nos anos imediatamente seguintes à guerra. Além disso, uma conjuntura tão desfavorável, agravada com as destruições de bens, não deixaria de ter efeitos na retração da contestação rural e no caráter defensivo que, em tais condições, esta normalmente assume. Por outro lado, o aparelho administrativo-judicial, mesmo nas instâncias superiores, só muito lentamente se recompõe, permitindo assim que a conflitualidade passe, ainda mais do que habitualmente, à margem dos registros judiciais. Desta maneira, não surpreenderá que, relativamente aos períodos imediatamente anteriores, as instâncias judiciais superiores registrem menor número de conflitos no quadro rural nos anos imediatamente seguintes às 191 José Tengarrinha Invasões. Só a partir de 1813, coincidindo com o início da recuperação agrícola e de uma baixa de preços de longa duração, se reanima a movimentação rural, tendo registrado, a partir daí até à Revolução de 1820, trinta movimentos com maior significado e envergadura. A TERRA Quanto aos conflitos sobre a terra, não surpreenderá o relevo que tomam neste decênio se tivermos em conta que a grande falta de gados que se seguiu às Invasões provocou acentuado aumento nos preços da carne e da lã; e que era dominante preocupação do Governo, coincidindo com os interesses de agricultores ricos das províncias, aproveitar mais intensivamente as terras até aí abertas para aumentar a produção agrícola. A pressão sobre a terra fez-se sentir, assim, no duplo aspecto dos pastos e da expansão do individualismo agrário. Localizam-se tais conflitos, predominantemente, como sempre, na região de Castelo Branco, e também Guarda e Viseu. Grandes criadores de gado – sobretudo lanígero, nesses três distritos da Beira interior – apossavam-se de melhores pastos, quer porque podiam arrematá-los por quantias mais elevadas quer pela influência que exerciam sobre os vereadores; tal poder sobre as governanças locais permitia, também, que estes criadores, e ainda os de gado vacum, usassem a seu favor os odiados “rendeiros do verde”5 e assim pudessem cometer abusos com os rebanhos mesmo em terras cultivadas. Além disso, proprietários abastados vedavam terras suas até aí usadas como pastos comuns, sendo certo que, sem eles, os pequenos agricultores não poderiam manter os seus gados de lavoura e arranjar estrumes; tais vedações, levantadas com a justificação de abandonar o regime de longos pousios para agricultar mais intensivamente a terra, também muitas vezes se destinavam a pastos para uso dos gados próprios ou para aluguel. Protestos dos povos surgiram, também, na seqüência de aforamentos de terras baldias de que se serviam. De pouco valera a Portaria de 13.2.1815 recomendar, expressamente, que no exame dos baldios e terras incultas se tomasse em conta o “interesse que se pode tirar da sua cultura e porções indispensáveis para logradouros dos povos”. Os interesses destes, de fato, não foram em muitos casos devidamente precavidos, pelo que a linha de tensão permanece, muito viva, no mundo rural: de um lado, lavradores ricos, geralmente apoiados por corregedores e provedores, do outro, pequenos agricultores, freqüentemente com o apoio das câmaras, que deixavam assim de beneficiar com o aluguel, para pastos, dessas terras quando livres de culturas. Ao ponto de, em 1818 (Alvará 6-7), o Governo, mais 192 CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL do que nunca receoso de agitações sociais, define que deviam considerarse baldias as courelas não só enquanto os possuidores as não tapassem completamente, mas enquanto não possuíssem legítimo título para as tapar. Eram evidentes, neste domínio, as grandes hesitações dos governantes. Houve locais em que os agricultores ricos tiveram influência suficiente para impor as vedações (sobretudo, na Beira Baixa). Admitiam que, dessa maneira, as rendas dos concelhos algo diminuíam e também, com isso, a “terça real”; mas defendiam que, resultando dos tapumes “utilidade particular e pública com o aumento da agricultura”, a fazenda real acabava por ser beneficiada com a maior tributação resultante do aumento da riqueza produzida. Em maior número de locais, porém, as tentativas de apropriações individuais e vedações de terras comuns desencadearam tais oposições que não puderam ser concretizadas. Então, como mesmo depois em regime liberal, a desesperada luta dos agricultores pobres em defesa dos seus baldios irá levantar obstáculos ao avanço do individualismo agrário. Mesmo em período revolucionário, os legisladores vintistas recuarão perante o problema, sendo este um dos mais expressivos aspectos da sua incapacidade para desenvolver um projeto capitalista nos campos. PROTECIONISMOS AGRÍCOLAS A difícil conjuntura comercial que atravessa Portugal e a Europa nesse segundo decênio do século XIX teve enormes repercussões nos nossos campos, sobretudo pelas dificuldades no escoamento do vinho nacional para os mercados externos e pela entrada torrencial de grãos estrangeiros. Traduziram-se em grandes movimentos de protesto em várias partes do Reino que obrigaram o Governo a tomar medidas. Na verdade, a exportação do vinho – fundamental para a prosperidade do mais amplo setor comercial da agricultura portuguesa, para obter benefícios alfandegários e para diminuir o desequilíbrio da balança comercial – atravessava grandes dificuldades. Às que se prendiam com a adversa conjuntura internacional, somavam-se as resultantes da abertura dos portos do Brasil aos vinhos de todas as nações, com destaque para os franceses e espanhóis e, igualmente, açorianos; e também do aumento da entrada dos vinhos espanhóis em Inglaterra e dos favores desta à importação dos do Cabo da Boa Esperança, o que fez diminuir tendencialmente o consumo dos vinhos portugueses no nosso principal importador. Em 1811, a situação era particularmente grave, com a descida da exportação geral para um quarto em relação a de 1798 (84.386 pipas em 1798, contra apenas 21.972 em 1811); em 1812, tem a mesma gravidade (ligeira, a subida para 28.168 pipas). Nestes 2 anos, a exportação para o Brasil e domínios ainda relativa- 193 José Tengarrinha mente mais se reduziu (10,4% e 12,7% do total), atingindo os mais baixos valores (2.279 e 3.590 pipas).6 Em conseqüência, a produção do vinho de embarque da colheita de 1812, que teria sido de 50.000 pipas, estava em parte considerável por vender, enquanto a do ramo, de 18 a 20.000 pipas, fora comprada pela Companhia de Agricultura das Vinhas do Alto Douro, mas apenas pequena parte tinha sido embarcada.7 A crise tomou dimensões gravíssimas com os aumentos que se verificaram das produções: em 1814, a colheita foi de boa qualidade e excessiva quantidade e a do ano seguinte, embora menor que a anterior, era ainda muito abundante e de boa qualidade. A conseqüência imediata foi o barateamento do vinho no mercado interno, com grandes prejuízos para a lavoura e o comércio nacionais e “só favorável aos ingleses”. Os “stocks” aumentavam: no início de 1816, os lavradores tinham ainda por vender grande parte da produção anterior, em setembro 70.000 pipas estavam paradas nos armazens do Porto, muito grandes quantidades acumulavam-se, também, nos depósitos britânicos – estimavam os governadores do Reino.8 A partir de 1813 há sinais de tendência oscilante para a recuperação. Deve-se este fato, fundamentalmente, à retomada do mercado brasileiro, ao passo que o das nações estrangeiras mostrava constante tendência para diminuir. Com efeito, enquanto o Brasil absorvera apenas 10,4% do vinho exportado pela Metrópole em 1811, em 1819 sobe para quase metade (49,5% ). Perante a concorrência crescente que encontrava no tradicional mercado britânico e o reduzido efeito do tratado de comércio com a Rússia (firmado em dezembro de 1798 e sucessivamente prorrogado em junho de 1812 e junho de 1815), era ainda no Brasil, apesar das dificuldades resultantes da abertura dos portos, que o vinho português encontrava perspectivas mais favoráveis. Ora tal melhoria da situação do mercado brasileiro explica-se por legislação favorável que foi exarada na seqüência de muito amplos movimentos de protesto dos viticultores. Tal movimentação, em crescendo após 1814, partiu de algumas das mais importantes regiões vitícolas do Reino, com destaque para o Alto Douro, e teve o apoio da Companhia Geral da Agricultura. Punha como exigência principal a proibição da entrada dos vinhos estrangeiros no Brasil, pois só assim se poderia garantir um escoamento certo para o nosso vinho, não ficando dependente da “legislação ou do capricho dos países para onde atualmente se transportam” – como se lia na exposição enviada ao Trono. A exigência era de difícil atendimento, pois colidia com a decisão tomada em 1808 de abrir os portos do Brasil a todas as nações estrangeiras. Mas a pressão dos viticultores foi tão forte que, vencendo as resistências do governo do Rio de Janeiro, levou à adoção de medidas favoráveis, a culminar aquele que foi um dos pontos de dissídio mais ásperos entre os governos dos dois lados do Atlântico.9 Quanto aos cereais, abertas as comportas à torrente quando a escassez da produção levantava o espectro da fome, difícil era depois estancá-la, 194 CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL pelos interesses comerciais que a ela se ligavam. Os preços baratos dos estrangeiros fizeram parar a venda dos trigos e milhos nacionais. Comparando as entradas no Terreiro Público em 1790 e 1812, verifica-se que a de grão nacional, naquele primeiro ano, foi de 27.748 moios e, no segundo, de 8.184, em vez da evolução da entrada do grão estrangeiro que, em 1796, foi de 66.738 moios e, em 1812, de 268.846.10 Em produto de vendas, vêse que, no mesmo Terreiro, e nos anos de 1810 a 1812, as dos grãos estrangeiros passaram de 73,5 milhões de cruzados, ao passo que as dos nacionais não chegaram a 6 milhões. Se àquele primeiro produto se juntar o das quantidades de grãos vendidos fora do Terreiro sem pagar a devida comissão e das que entraram e se venderam em diversos pontos do Reino nesses anos, poderá avaliar-se a importância total da venda dos grãos estrangeiros neste período em 112 milhões de cruzados; em grande contraste, pois, com os anos de 1808 e 1809, em que a importância dos grãos estrangeiros entrados e vendidos no Terreiro alcançou apenas 8 milhões de cruzados e a dos nacionais passou de 7 milhões.11 Ao longo de todo o decênio, assiste-se à incapacidade do trigo nacional competir com a barateza do estrangeiro, apesar das providências dadas pelo Governo para sustentar-lhe o preço. Os protestos dos produtores de cereais subiram de tom perante a extraordinária importação de grãos estrangeiros nos últimos meses de 1818, continuada no ano seguinte. Ainda em vésperas da Revolução, no último relatório para o Rio de Janeiro, os governadores do Reino alertavam estar “a agricultura arruinada pelo baixo preço do grão estrangeiro que tem inundado o Reino, de que resulta o abandono da cultura que o lavrador não pode continuar sem perda e o conseqüente abatimento de todas as rendas que consistem em frutos”.12 Do Ribatejo e Alentejo, sobretudo, levantaram-se os clamores para que se proibisse a entrada dos grãos ou, ao menos, fossem os comerciantes obrigados a incluir nas compras uma parte dos nacionais ou outra qualquer providência que facilitasse a venda destes. Foi um movimento de protesto de grande amplitude que obrigou o Governo de Lisboa, com alguma precipitação, perante o silêncio do Rio de Janeiro, a promulgar medidas protecionistas.13 PREÇOS E SALÁRIOS Perante uma tão agressiva concorrência externa e as dificuldades de coordenação do espaço econômico nacional, iriam acentuar-se desequilíbrios regionais, ações comerciais especulativas, desajustes entre preços e salários, gerando tensões de diversas naturezas que eclodiram, por vezes, em conflitos de considerável envergadura. Assim, rivalidades entre regiões próximas com os mesmos produtos não raro provocavam confrontos, o que era mais freqüente quando se tra- 195 José Tengarrinha tava do vinho, dadas as maiores dificuldades que então encontrava nos mercados exteriores; em conseqüência, aqui e além, levantaram-se barreiras protecionistas concelhias que, em vez de favorecer a formação do mercado nacional, agravavam particularismos locais. Mas também o comércio local na base de pequenos agricultores e mercadores sofria limitações, devido a imposições antigas que algumas câmaras retomaram, sem ter em conta as novas necessidades de maior fluidez das trocas.14 Era o quadro favorável para as especulações dos “monopolistas”: açambarcando cereais e feijão logo a partir do produtor, provocavam elevações pontuais e localizadas de preços, sob protestos por vezes muito vivos das populações.15 Questão que dizia respeito, no fundo, à própria estrutura das sociedades de Antigo Regime, onde obstáculos de várias naturezas (interesses locais descontrolados, proteções administrativas), gerando condições propícias à formação de monopólios, dificultavam a liberdade de circulação interna e a fluidez e unificação do mercado. Estando alteradas, desta maneira, as regras do mercado livre, deixava-se maior margem para imposições administrativas reguladoras da relação entre preços e salários. As velhas Ordenações do Reino já o previam (L.1, tt. 66, § 32), mas, para evitar desequilíbrios, não admitiam que se baixassem os salários sem que também o fossem os preços. Desta vez, porém, vê-se a iniciativa camarária procurar descer apenas os salários, por pressão de poderosos lavradores. É na região do vinho do Ribatejo que esta medida vai provocar maiores conflitos, com destaque para o levantamento e amotinação dos jornaleiros que, em meados de fevereiro de 1814, chegaram a entrar em Santarém armados e a confrontar-se com forças militares.16 A PRESSÃO FISCAL A situação nacional é fortemente condicionada pelas grandes dificuldades financeiras do Tesouro. Nos relatórios enviados pelos governantes de Lisboa para a Corte no Rio de Janeiro em maio de 1809 mostrava-se que todas as rendas do Estado não chegavam, então, a satisfazer sequer as despesas militares.17 As receitas das tributações ordinárias mostravam um acentuado decréscimo em todas as rubricas, entre 1801 e 1811.18 Múltiplas causas estavam na origem da insuficiência das receitas. Umas, diretas resultantes das Invasões: dificuldades de cobrança das rendas régias em virtude da desorganização do aparelho de sucção fiscal e quebra geral das atividades econômicas que, conjugada com a escassez de numerário, se refletia em forte diminuição das trocas internas; outras, ligadas às trocas externas, que provocavam considerável quebra nos importantes rendimentos das alfândegas: diminuição do comércio devido à abertura dos 196 CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL portos do Brasil aos mercadores estrangeiros, agressiva concorrência internacional e recessão geral européia. Ambas, provocando forte diminuição dos impostos indiretos, que forneciam então cerca de 60% das receitas fiscais. Outras, ainda, em conseqüência da fixação da Corte no Rio de Janeiro: deixaram de pertencer a Portugal os rendimentos régios do Brasil, Ilhas e domínios na Ásia e África, escoavam-se para o Brasil os capitais e as rendas da família real e dos nobres, altos funcionários e capitalistas que a acompanharam. E, ainda, as que vinham da falta de confiança no Estado, que se refletia no abaixamento dos valores ou mesmo não arrematação de contratos régios. Viam-se os maiores capitalistas e negociantes passar para fora grande parte dos seus capitais, colocando-os em operações comerciais e bancos no estrangeiro (em especial da Inglaterra e Irlanda), apesar de auferirem assim quase metade dos juros que lhes ofereciam os empréstimos públicos abertos em Portugal (6% ).19 A que se somava a contínua diminuição, desde o terceiro quartel de setecentos, do envio de remessas de metais preciosos do Brasil: o produto do quinto do ouro brasileiro, em 1819, não ia além de 270.000 cruzados quanto ao de Minas Gerais e não ultrapassava os 90.000 cruzados o das restantes capitanias. Se tivermos em conta este conjunto tão poderoso de causas, num Reino exausto e com um aparelho fiscal menos eficaz, deveremos admitir que, apesar da quebra no rendimento global, as recolhas feitas mostram, como em Espanha, uma pressão tributária crescente. Traduzia-se em mais apertada cobrança das rendas da Coroa, tanto as de natureza senhorial como as de caráter fiscal, quer feita pelos almoxarifados quer pelos contratadores. De 1812 a 1817 assiste-se, mesmo, a uma inversão na tendência, com uma considerável subida na receita efetiva do Estado.20 A partir de 1816, porém, eram visíveis os sinais de novo agravamento, a receita volta a cair bruscamente, o endividamento do Estado cresce em ritmo ainda mais preocupante, entra-se na rampa final para a Revolução de 1820. Em Portugal, como noutros países europeus, a Fazenda surge como um dos mais poderosos inimigos da monarquia absoluta. Essa maior pressão fiscal não poderia deixar de desencadear tensões e conflitos no mundo rural. A questão das sisas assume particular relevo, sendo então a fuga ao seu pagamento motivo freqüente de queixas das autoridades, que a apontavam como uma razão importante na diminuição das receitas do Erário. Entre os movimentos mais significativos neste domínio, assinale-se, logo em 1812, no termo de Lisboa, a amotinação de lavradores e criadores contra o rendeiro principal das sisas dos gados, que lhes lançara penhoras e procedimentos judiciais por não manifestarem nem pagarem sisa das vacas de criação e lavoura.21 Ou o forte movimento de protesto dos moradores da vila do Sabugal, em 1815, contra injustiças do juiz de fora de Castelo Branco no encabeçamento das sisas, lançando importância superior à do património real.22 197 José Tengarrinha A quebra nos rendimentos alfandegários era motivo de especial preocupação, dada a importância dominante que tinham no conjunto das receitas do Estado.23 Sendo em razão, sobretudo, das razões atrás expostas (em que avultavam a conjuntura internacional e a abertura dos portos do Brasil ao comércio de todas as nações em 1808), não deixava de sofrer também o efeito dos contrabandos, que proliferavam nesses tempos perturbados e de debilitação dos meios de vigilância do Estado. Entre os vários conflitos que se deram, nomeadamente na fronteira com a Espanha, atingiu especial gravidade, em 1814, o que opôs os funcionários régios ao povo de Quadrazais (concelho de Sabugal), que, armado e em grande número, não só os dominou como enfrentou a força armada enviada para o submeter.24 A cobrança do subsídio literário mereceu também a maior atenção do Tesouro, dada a grande diminuição que sofrera.25 Quer por ter sido retomada quer feita com maior rigor, levantou também movimentos de protesto com considerável amplitude, como, em 1814, dos vitivinicultores da região de Chaves, contra violências e extorsões praticadas na cobrança.26 Não apenas sobre as rendas de caráter fiscal, mas também sobre as de natureza senhorial da Coroa se faziam sentir nos meios rurais as maiores pressões da cobrança. Em torno das jugadas e dos direitos banais detectamos as mais fortes linhas de tensão. Entre os conflitos mais significativos assinala-se, em 1813, a amotinação dos lavradores de Soure contra o almoxarifado de Montemor-o-Velho, por este querer considerar jugadeira uma terra que as populações e as autoridades locais consideravam sob sua jurisdição e não da Coroa.27 E, em 1816, o conflito no reguengo de Penela sobre a cobrança de direitos banais, porque os lavradores – numa atitude considerada pelas autoridades de “grave rebeldia” – se recusaram a levar as suas azeitonas aos lagares do reguengo, preferindo moê-las em particulares.28 R EFORMISMO E LUTA A N TI-SEN HORIA L As agudas dificuldades financeiras que o Reino atravessava, e que levaram o Governo a tomar urgentes medidas, entre as quais a venda dos bens da Coroa,29 constituíam apenas um dos aspectos da grande crise de dimensão nacional. Era geral o abatimento na agricultura, no comércio externo, no comércio interno, na indústria, na falta de capitais. Mas, não menor, a crise política e moral, resultante da ausência da Corte no Brasil e da descrença nos destinos nacionais, com grande incidência nos meios rurais.30 A agitação revolucionária em Espanha, as Cortes de Cádis e a promulgação da Constituição de 1812 vinham agravar os receios dos governantes portugueses de que, a não serem tomadas medidas urgentes, se caminharia inevitavelmente para a ruína da monarquia absoluta. 198 CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL Assumem grande significado, assim, as propostas reformistas que vêm do Rio de Janeiro. Elas não têm, porém, nesta conjuntura, qualquer conteúdo liberal: apoiadas, ou pelo menos não impedidas, por convictos antiliberais, visavam introduzir apenas as alterações necessárias para que a monarquia tradicional conseguisse sobreviver.31 Encontram, porém, forte oposição de alguns dos senhorios mais conservadores que se haviam mantido na Metrópole: eclesiásticos (como os mosteiros de Alcobaça, Lorvão, Santa Cruz e outros) e laicos (como, entre outros, o marquês de Marialva), que influenciavam o Governo de Lisboa. O conflito entre este e o governo do Rio de Janeiro é um dos acontecimentos políticos mais significativos da década que antecedeu a Revolução liberal. Sem razão se insiste na ausência de quaisquer conseqüências em Portugal desta legislação reformista, que não teria passado de um enunciado de boas intenções, em parte destinada a tentar cobrir os protestos levantados pelo lesivo tratado do comércio com a Grã-Bretanha de 1810. Em circunstâncias mais tranqüilas da vida nacional, porventura assim teria sido. Mas não quando tais reformas se projetam sobre um quadro rural algo tenso, como atrás referimos, em especial após as Invasões. A partir dessas reformas, em grande parte, se irá desenrolar o confronto entre aspirações libertadoras da opressão senhorial e senhorios mais conservadores. As primeiras grandes medidas reformistas emanadas do Rio de Janeiro são as Instruções para os governadores do Reino de 2.1.1809 e a Carta Régia de 7.3.1810. Perante o estado das finanças públicas e o abatimento econômico do País, sugeriam as Instruções a extinção das jugadas, terços e quartos, substituindo-os por outras imposições menos pesadas e suprimindo-se algumas medidas de trigo e centeio impostas por certos forais nas províncias do Norte. No seguimento, a Carta Régia de 1810 apontava, no respeitante à agricultura, ainda que fugazmente, dois princípios programáticos fundamentais: um, o de que as condições de exploração da terra deviam alterarse de tal modo que fossem rendíveis os capitais nela aplicados e, assim, novos pudessem ser atraídos; outro, o de que a prosperidade da agricultura arrastaria o desenvolvimento da indústria, no que tinha decerto em conta a exemplar experiência britânica. Para tal, admitia não apenas atenuar, mas mesmo suprimir os forais, por serem “em algumas partes do Reino de um peso intolerável”; bulir pela primeira vez nos dízimos, tentando fixá-los, “a fim de que as terras não sofram um gravame intolerável”; “minorar ou alterar o sistema das jugadas, quartos e terços, com que se poderão fazer resgatáveis os foros”. A esta formulação não era estranha a corrente reformista dos fins do século XVIII, com destaque para os “fisiocratas” da Academia Real das Ciências de Lisboa. Mas não poderá deixar de compreender-se, também, na seqüência das pressões anti-senhoriais que os agricultores tinham vindo a 199 José Tengarrinha exercer, sobretudo, desde finais do terceiro quartel do século XVIII, e da explosão social de 1808. Era a moderada réplica aos ataques frontais ao regime senhorial que percorriam a Europa napoleônica e ao programa de mudanças revolucionárias que em Espanha fora formulado no convulsionamento antifrancês das lutas das Invasões. As conseqüências do pequeno “programa” de intenções que era a Carta Régia de 1810 repercutem-se em diversas direções. Por um lado, promove o debate político-jurídico, nela procurando apoio algumas posições mais avançadas,32 por outro, são tomadas na sua seqüência algumas medidas legislativas que, concretamente, limitam certos direitos senhoriais; e ainda, como se disse, estimula a contestação dos encargos senhoriais. Peran te os riscos qu e daí vin h am , o Govern o de Lisboa levan ta dificu ldades à aplicação das reform as. Apesar da m aior abertu ra do prin cipal Sou sa, predom in am as in flu ên cias con servadoras. São m u ito sign ificativas algu m as das objeções qu e os govern an tes levan tam , em especial con tra m odificações n as im posições dos forais: dificu ldades de u m a tal operação, tan to qu an to às averigu ações n ecessárias com o à avaliação das com pen sações aos sen h orios; “os in con ven ien tes das in ovações”; dificu ldade de estabelecer u m a im posição direta qu e su bstitu ísse as extin tas, alegan do qu e os povos receberiam m al n ovas im posições, “acostu m ados com o estavam às ju gadas, terços e qu artos”; em bora recon h ecen do qu e a extin ção dos direitos dos forais pou co efeito tin h a n o Erário (com o os liberais iriam com provar ao discu tir esta m atéria n as Cortes de 1821-1822), m u ito afetariam “algu m as com en das, corporações eclesiásticas e in divídu os a qu em perten cem ”, qu e assim “se in disporiam con tra o Govern o”; além de provocar “o risco im in en te de u m a su blevação dos povos qu e ou por ign orân cia ou por m alícia recu sariam pagar n ão só os direitos su prim idos m as todos os dos forais”.33 Assim, a recuada posição do Governo de Lisboa está ainda longe, mesmo, das propostas da Comissão nomeada para o efeito.34 Apenas admite que, além dos pequenos encargos dos forais – cujo rendimento era as mais das vezes absorvido pelas despesas da cobrança – , deviam ser prontamente extintos os direitos banais, que na prática já não eram em geral respeitados, e os serviços pessoais, mas apenas os que não estivessem convertidos em dinheiro; que só parcialmente se tocasse noutro direito pessoal, as lutuosas, que a referida Comissão considerava, com aqueles, o “único resto que ainda ficaria de feudalismo”; e aconselhando a que não se alterasse o direito enfitêutico, fonte permanente de litígios.35 Razão tinha o Governo, ao recear que a supressão de alguns direitos acabaria por arrastar à contestação de outros. Com efeito, o simples fato de superiormente se admitirem reformas estimulava as atitudes gerais de rebeldia. Tal concorreu para que, entre os diversos movimentos de protesto que percorreram os campos portugueses nesse decênio anterior à Revolu- 200 CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL ção liberal, tivessem sido os relacionados com os direitos senhoriais os que assumiram maior envergadura. Em causa estiveram, sobretudo, direitos banais e jugadas. E ainda, com especial significado, os dízimos, que não sendo em rigor um direito senhorial, se insere na lógica do regime. Estes não haviam sido, no passado, motivo de relevante contestação, em grande parte pelo efeito da argumentação dos membros do clero de que tal matéria era do direito divino e estava fora do alcance do poder temporal. Agora, porém, os dízimos começaram a ser fortemente postos em causa, para o que contribuiu a Carta Régia de 1810 ordenando aos governadores que se ocupassem dos meios de os fixar. Logo muitos, ingênua ou malevolamente, interpretaram como estando extintos, levantando-se daí numerosas contestações que pontilharam o quadro rural português, embora não tendo chegado às mais altas instâncias judiciais. Mas a medida que iria desencadear maior controvérsia nos meios rurais seria o Alvará de 11.4.1815. Com o fim de incentivar o cultivo das vastas áreas de terras não arroteadas, os que o fizessem ficavam isentos de direitos, imposições e dízimos entre 10 e 30 anos (segundo a natureza da terra e as dificuldades e as despesas necessárias). Significava, de fato, uma reforma parcial dos forais, com a sua abolição nas numerosas terras incultas existentes nos domínios senhoriais. No texto introdutório desse alvará relacionam-se mesmo tais isenções com a decisão de mandar rever os forais; mas, apaziguador, chama à colação o parecer de outubro de 1814 em que o Desembargo do Paço defendia que um dos meios de promover a agricultura seria o cultivo de vários pauis (e não a diminuição dos encargos dos forais) e o parecer do Governo sugerindo, em janeiro de 1815, algumas isenções para tais desbravamentos.36 Mais audaciosa do que aqueles pareceres foi esta, na prática, a medida mais avançada que se tomou na linha reformadora anterior à Revolução de 1820. Os agricultores viam-se, assim, libertos dos pesados encargos, a que sempre se haviam oposto, tanto em terras nunca exploradas como nas recentemente abandonadas. E esta libertação animava-os, ainda, a tentar alargar a isenção de direitos senhoriais a terras de cultivo normal. A reação senhorial foi, nalguns pontos, áspera: acusando agricultores de terem deixado de cultivar terras dos seus domínios apenas para depois as cultivarem livres de encargos, defendiam que só deveriam ser isentas as que nunca houvessem sido cultivadas. O Trono decidiu pelos agricultores: a isenção abrangia todos os terrenos que, por qualquer razão, estivessem então incultos (Prov. 12.2.1817). As relações agrárias tradicionais eram, assim, nesse decênio anterior à Revolução de 1820, algo abaladas. A movimentação anti-senhorial, nem sempre se limitando a questões pontuais, ganhava, aqui e além, uma dimensão mais global. 201 José Tengarrinha Entre outros casos, vejamos, por exemplo, o movimento dos moradores de Martim Anes (concelho da Guarda), que em 1815 se recusaram generalizadamente a satisfazer direitos senhoriais impostos pelo mosteiro de Arouca e seu enfiteuta,37 o dos povos de Santo André de Poiares (concelho de Poiares) e de Penacova que, partindo de um protesto contra os excessos na cobrança de imposições senhoriais pela poderosa casa de Cadaval, em 1815, acabaram por abranger a totalidade dos direitos,38 o dos agricultores de S. Silvestre (concelho de Coimbra) que desenvolveram desde princípios de 1820 uma ação de resistência contra abusos e excessos na cobrança de direitos senhoriais, sem que fossem apresentados títulos justificativos, o que punha em causa a legitimidade dos direitos no seu conjunto.39 Mas a movimentação mais ampla e de maiores repercussões foi a que se desenrolou nos coutos do mosteiro de Alcobaça.40 Iniciada em 1815, desenvolveu-se até a Revolução de 1820 e os seus ecos estenderam-se a todo o País, inclusive às Cortes liberais quando se discutia a reforma dos forais e dos direitos senhoriais. O movimento desencadeou-se a partir do referido Alvará Régio de 11.4.1815, que isentava de encargos do foral as terras improdutivas que se quisesse cultivar. Os agricultores de vários lugares daqueles coutos passaram logo nesse ano a pressionar para a execução da medida. Alegavam ser possuidores de várias terras de que era senhorio o mosteiro de Alcobaça e que estavam incultas, abandonadas e desamparadas por falta de braços e de meios e por serem oneradas com o pagamento de encargos ao mosteiro. Quiseram, pois, passar a cultivá-las com o benefício da nova isenção, mas foram impedidos pelos religiosos, que interferiram decididamente. Em face disso, fizeram os agricultores uma exposição ao Trono, em 19 de janeiro de 1816, pedindo que se procedesse a averiguação dos terrenos incultos que poderiam ser abrangidos pela isenção. Mais de um ano depois (referida Provisão Régia de 12 de fevereiro de 1817) avançava-se que na referida isenção deveriam também ser compreendidas as terras dos donatários que, tendo sido em outro tempo amanhadas, estivessem abandonadas. E, em novembro desse ano, em vários locais da comarca de Alcobaça, foram afixados editais avisando os agricultores de que deviam apresentar até final do ano as suas alegações para ficarem isentos do pagamento. Imediatamente eles requereram que o juiz ordinário procedesse a diligências nesse sentido, mas pela segunda vez o mosteiro impediu-as, intimidando e ameaçando os que as haviam solicitado. Crescia o número de agricultores que se negavam ao pagamento de dízimos, quartos e oitavos, assumindo o movimento a expressão de uma contestação global das prestações exigidas no foral. Em vésperas da Revolução de 1820, a confrontação subia de tom, de parte a parte, ganhando especial significado por se desenrolar nos imensos domínios pertencentes a um dos maiores, ou porventura o maior senhorio eclesiástico do Reino. 202 CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL Nestas circunstâncias, pode parecer não muito nítida a orientação do Poder em face do regime senhorial. Sem dúvida, ela não é tão linear como vimos nos conflitos do século XVIII. Por um lado, o poder central quer confirmar a legitimidade dos direitos de grandes senhorios, abalada após as Invasões. Por outro, começa a admitir, pela primeira vez, o abandono de alguns tributos e encargos senhoriais: foram os referidos casos, muito significativos, de jugadas, certos encargos dos forais e direitos banais. Poder-se-á falar, sem dúvida, numa ação reformista do Trono, a partir do Rio de Janeiro, no domínio dos direitos senhoriais. Encontrou grandes obstáculos tanto no Governo de Lisboa, sujeito às pressões dos senhorios mais conservadores do Reino, como até nos funcionários régios intermédios, corregedores e provedores. Mas era uma ação muito tímida, que tinha na origem não só a consciência da necessidade de alterações no regime senhorial para que a agricultura se desenvolvesse como o propósito de apaziguar tensões sociais que em 1808 se haviam tão fortemente manifestado. O espectro da Espanha revolucionária e liberal está sempre presente. E são esses receios, sobretudo, que permitirão compreender como, em contraste com tempos não muito longínquos, foram tomadas diversas medidas que têm visivelmente a finalidade de evitar que certos conflitos redundassem em abalos desestabilizadores da sociedade. Tal é o caso, por exemplo, da questão tão controversa da prestação de trabalho gratuito em obras, as chamadas jeiras (que geralmente serviam os senhorios e poderosos locais), que motivam a Providência Régia de 31.1.1817 atenuando esta obrigação, que será definitivamente abolida pela legislação liberal (Decr. 20.3.1821); ou a intervenção governativa a favor dos jornaleiros na amotinação nos campos de Santarém, condenando a taxação dos salários; ou em tantos outros casos de injustiças flagrantes e perturbadoras, da responsabilidade de autoridades e poderosos locais. A LIA N ÇA S EN TRE “N OTÁ VEIS LOCA IS” E A GRICULTORES POBRES A análise das componentes sociais que intervieram nos movimentos rurais deste decênio e do complexo jogo das suas solidariedades e hostilidades dão-nos alguns indicativos sobre o processo de mudanças que tinha vindo a verificar-se nos campos portugueses. No domínio da fiscalidade estadual, sabe-se que o seu peso, proporcionalmente ao conjunto dos encargos que pesavam sobre os agricultores, era em Portugal muito inferior ao da generalidade dos países europeus do Ocidente no final do Antigo Regime. O endurecimento das exações desencadeiam alguns conflitos, como vimos. Mas, além de não terem atingido a 203 José Tengarrinha virulência dos do século XVII, ao contrário destes não mostram extensa solidariedade vertical, desde os nobres aos camponeses pobres. O agravamento pesa em especial sobre as camadas baixas, não apenas porque a sua predominante agricultura de subsistência não registrara aumento de produtividade e até denunciara generalizado decaimento (e assim era puncionada uma riqueza em decréscimo) como também porque acabavam por ser elas as principais prejudicadas com as isenções dos privilegiados (no sistema de encabeçamentos, as isenções de uns agravavam outros). Assim, nos protestos das camadas rurais inferiores contra tributações da Coroa, vislumbra-se, como no primeiro vintênio da segunda metade do século XVIII, o duplo sentido de uma contestação anti-senhorial e contra uma pequena nobreza e notáveis locais que, legitimamente ou não, gozavam de tais isenções. Nos conflitos sobre pastos, os pequenos agricultores e criadores tiveram de enfrentar a pressão crescente dos criadores de gado que pretendiam expandir os seus domínios. Aqueles tinham, porém, meios limitados e frágeis para se opor à força destes, pouco mais lhes restando do que o protesto e o apelo ao monarca. Tanto mais que, como se disse, os ricos proprietários e criadores gozavam freqüentemente dos favores das autoridades locais, que lhes cobriam, até, ações arbitrárias e abusivas. Outras situações em que era visível o conluio entre gentes da governança e poderosos locais eram as especulações sobre preços, que às câmaras cabia evitar em primeiro lugar, e as taxações de salários. Como numerosas vezes ocorreu no passado, vimos, por exemplo, a Câmara de Coimbra, em 1814, ceder ao poder dos “monopolistas”, não tomando medidas para impedir que estes ocultassem os gêneros de primeira necessidade a fim de provocar escassez e encarecimento deles; e, no mesmo ano, em Santarém, a Câmara atuar ao sabor da vontade dos lavradores de vinhas para que os salários fossem taxados a partir de fevereiro; entre muitas outras situações com menor repercussão. Assim, o poder administrativo local e o poder de uma burguesia rural com força econômica considerável em muitos casos se encontravam estreitamente entrelaçados, ao ponto de serem até representados pelas mesmas pessoas. Diferente, porém, era a posição das administrações locais perante as vedações de terras, mesmo quando executadas por poderosos e influentes proprietários. Nestes casos, com freqüência, viam-se as câmaras lesadas – por lhes serem retirados espaços que até aí arrendavam – juntarem-se aos pequenos agricultores nas mesmas ações de protesto. Desempenhou o quadro institucional aqui, pois, algum papel mediador. Todas estas linhas conflituais mantêm as características qualitativas essenciais do século anterior (variando apenas a intensidade), o que já não acontece com as de natureza anti-senhorial, que apresentam diferenças consideráveis. Naquelas, predominara a solidariedade horizontal das camadas sociais mais baixas contra as mais abastadas. Tratava-se de lutas contra a expansão do 204 CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL individualismo agrário e no interior de setores capitalistas com algum avanço no domínio agropecuário, quer de pequenos contra grandes agricultores e criadores de gado quer de assalariados contra lavradores de vinho e pão. As lutas anti-senhoriais, ao contrário, desenrolam-se no interior do próprio sistema dominante. Na segunda metade do século XVIII, em Portugal, vimos essas lutas terem como principais ou mesmo exclusivos protagonistas os detentores de pequenas explorações (abaixo dos 3 a 4 hectares), que possuíam a terra em diversos graus, sem serem dela proprietários (a chamada, então, “propriedade imperfeita”). Constituíam aqueles que é costume designar por “camponeses”. Era a expressão da crise generalizada que atingia os que trabalhavam terras sujeitas a mais pesadas imposições senhoriais e que se agravou após a década de 1760-1770.41 São idênticas razões estruturais, de resto, que desenham uma cronologia não muito distante em outras regiões da Europa. Em várias partes da França, como na Borgonha, assinalam-se conflitos anti-senhoriais dispersos e pontuais na primeira metade do século XVIII, que se animam a partir de 1750 e se desencadeiam após 1780;42 na Aquitânia, no fim do século XVIII, os rendimentos estagnam, bloqueado como estava o desenvolvimento agrícola pela falta de inovação nos sistemas de cultura, nas técnicas e nos instrumentos, devido à escassez de investimentos, o que deixava para o agricultor mais dependente do regime senhorial uma parte menor do que no passado.43 Numa primeira fase da luta anti-senhorial não se vê, por isso, terem esses pequenos agricultores e seareiros significativos apoios acima de si. A horizontalidade da solidariedade social era, então, a característica dominante, sendo raras as exceções.44 Já ao longo do último quartel do século XVIII e primeiros anos do XIX, porém, haviamos assinalado casos de solidariedades verticais nestes conflitos. Mas é no decênio seguinte às Invasões que o fenômeno atinge maior expressão. Na origem, causas de diferentes naturezas. Antes de tudo, a influência exercida pelas referidas novas dinâmicas sociais que se seguiram às Invasões, em que as camadas inferiores não só adquiriram legitimidade social para a rebeldia como estiveram ao lado dos notáveis locais na mesma luta nacional, superando assim tradicionais barreiras psicológicas. Além disso, a aliança entre eles mostrava tendência para se estreitar com a evolução da situação material dos “poderosos” locais em face do domínio senhorial. Nestes, é freqüente encontrarmos os que, além de terem beneficiado do recebimento de terras em enfiteuse (julgo, com efeito, que seriam enfiteutas na sua maioria), possuíam explorações foreiras adquiridas aos camponeses arruinados, bem como terras próprias destes (como verificamos, extensamente, após meados do último quartel do século XVIII, em particular no Centro Litoral). Estavam, assim, ligados ao complexo senhorial pelas vantajosas concessões enfitêuticas que este lhes fizera, contra ele na qualidade de foreiros em seus domínios e mais autô- 205 José Tengarrinha nomos pelas terras próprias que tinham vindo a adquirir. Condições materiais e psicológicas favoráveis, pois, ao aumento da sua intervenção na luta anti-senhorial e à sua convergência nessa luta com os camponeses pobres que sempre a haviam mantido. Assiste-se, então, a um fenômeno de grande significado político: não apenas no Centro Litoral como noutras partes do Reino, as câmaras (onde recuara a influência dos donatários e aumentara a dos “notáveis”) passam a apoiar mais decididamente os agricultores (ricos e pobres) na sua luta contra os donatários religiosos. Tal se verificou, sobretudo, a propósito das prestações raçoeiras, nomeando louvados que se opunham aos indicados pelos senhorios ou seus contratadores de rendas para a avaliação das produções. Esta solidariedade reforçou-se quando o referido reformismo de Estado criou condições políticas favoráveis à contestação dos encargos senhoriais e em tempo e locais em que as confrontações sobre terras comuns não atingiam grande expressão. E quando, em 1813, com o início da longa tendência para a baixa dos preços, esses “notáveis” locais, produzindo para mercado, são os mais duramente atingidos, ao contrário da agricultura de subsistência. Vê-se, então, as pessoas “mais distintas” de algumas terras aliarem-se a pequenos agricultores e até assumirem a sua liderança na oposição às avaliações das produções para determinação dos quantitativos dos encargos e na luta pelas isenções estipuladas pelo Alvará Régio de 11.4.1815. É significativo que, nos documentos emanados dos agricultores, pela primeira vez os donatários apareçam pejorativamente designados como “aristocratas”, marcando nítida clivagem com todos os outros que não beneficiavam dos favores régios. Tal aliança social em regiões de mais dura conflitualidade senhorial e a utilização das câmaras como instrumento político dessa aliança no combate ao velho regime são fatos que não poderão deixar de ser tomados em conta para a compreensão das condições que favoreceram o desencadeamento do processo liberal vintista. IN QUIETA Çà O E IN SEGURA N ÇA N OS CA MPOS Será preciso ter em conta, também, que esta movimentação nos anos que imediatamente antecederam a Revolução liberal se inseria num quadro rural marcado por fortes sinais de instabilidade psicosocial. Com efeito, nos campos, o fim da guerra não afastara a insegurança, devido ao aumento da marginalidade e do banditismo. Soldados desmobilizados ou desertores, fardas esfarrapadas, alguns ainda com os fuzis, assolavam estradas e lugares. Queixavam-se os governantes de que os habitantes das terras invadidas ainda durante algum tempo andaram dispersos, desenquadrados das administrações das suas localidades, “habituados a uma vida errante e insubordinada”, não acatando leis nem autoridades.45 206 CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL Após as severas m edidas repressivas tom adas qu an to ao Alen tejo (Port. 26.12.1812), as qu adrilh as passaram a assolar a Estrem adu ra e o Algarve, com eten do sacrilégios e rou bos de toda a espécie, “violan do as igrejas e os próprios vasos sagrados, sem tem or de Deu s n em do severo castigo das leis” (Port. 6.2.1816). A partir de 1814, aumentam os sinais de inquietação do espírito público. A censura recrudesce sobre os jornais. Em 12 de março de 1817 – ainda antes, pois, de declarada a conspiração de Gomes Freire – o intendente geral da Polícia, Barbosa de Magalhães, enviou uma circular urgente aos corregedores de todas as comarcas do Reino, pedindo-lhes informações regulares sobre o estado do espírito público.46 Os relatos dos corregedores e juízes de fora mostravam preocupação política sobre o quadro rural, onde havia indícios de instabilidade psicológica coletiva, de norte a sul. As gentes das províncias viviam em sobressalto sob o efeito dos mais variados boatos: dizia-se estar iminente uma invasão de tropas espanholas e que o monarca português havia cedido o Reino à Espanha em troca de Montevidéu, falava-se na morte de 4 mil soldados portugueses em combate no Rio Grande e que, por isso, mais tropa iria de Portugal para o Brasil, asseverava-se que D. João havia sido assassinado, ao passo que outros, messianicamente, garantiam que estava prestes a chegar ao Tejo... Entre os fatos que mais forte preocupação e instabilidade provocavam nas populações rurais, avultavam os de natureza militar, que nelas tinham gravosas incidências. Enquanto se tratara de rechaçar o invasor do País, o Exército era obviamente indispensável, não sendo contestada nem a incorporação nas forças regulares nem a colaboração nas forças populares organizadas. Saído o último soldado francês do Reino, porém,já menos compreensível era a incorporação: as deserções e fugas foram em tal número que o Governo se viu na necessidade de tomar medidas muito severas. Ainda muito menos aparecia justificável quando, após a vitória definitiva sobre Napoleão, a paz voltou à Europa e nenhum perigo externo ameaçava o Reino. Assim, a formação de um corpo militar, designado Voluntários Reais do Príncipe, para prestar serviço no Brasil, e que embarcou em 1815, a nova expedição enviada no ano seguinte para intervir na guerra do Rio da Prata, de acordo com o plano de incorporação da Cisplatina no reino do Brasil, o envio de um corpo de intervenção, em 1817, contra a revolta de Pernambuco, levantaram visível descontentamento nos campos. Além das saídas de grandes somas para sustentar estas campanhas militares em defesa dos interesses do Brasil, ao mesmo tempo que se registrava maior pressão tributária em Portugal. Com efeito, a necessidade de mandar anualmente a importância de 600 contos de réis em metal para manter o corpo expedicionário português pesava tanto sobre o orçamento público que, em junho de 1820, os governadores do Reino informavam a Corte no Rio de Janeiro da impossibilidade de continuar a fazê-lo. Agravava, além disso, o 207 José Tengarrinha descontentamento no Exército, que não aceitava sofrer de vários meses de atraso nos pagamentos quando era despendida tão grossa quantia numa causa estranha à gente do Reino. Mas o maior descontentamento nas províncias rebentaria com o plano de recrutamento concebido pelo marechal inglês Beresford (membro da Junta Governativa do Reino), cuja execução foi iniciada nos primeiros meses de 1817: aumentava consideravelmente os efetivos militares portugueses (de linha e milicianos), sendo muito lesivo para as populações rurais, tanto mais que, ao contrário do habitual, não tinha em conta a falta que certos braços faziam à sustentação de explorações agrícolas. De uma atitude surda de descontentamento passa-se, em alguns meios rurais, a ações frontais. Há notícias de protestos mais vivos, por vezes emocionados, e até distúrbios, de março a princípios de julho, contra o que o povo denominava “o plano do marechal” e o envio de expedições para o Brasil: entre outras localidades, Bragança, Linhares, Vila Real, Lamego, Trancoso e ainda Vila Nova de Ourém, Montemor-o-Novo, Évora. Situavam-se, predominantemente, na parte interior do Reino e em algumas das zonas rurais que mais haviam sofrido com as Invasões. Foi este mais um fator, além dos já referidos, para provocar o aumento das deserções e as fugas ao recrutamento, de que resultou ainda maior agravamento da marginalidade e da criminalidade.47 CON CLUSÕES Indaguemos, antes de tudo, da relação entre as tensões e contestação que vimos desenvolverem-se no espaço rural português após 1810 e o desencadeamento da Revolução de 1820.48 Se adotássemos o critério, tão limitado, e de que tanto se abusou no passado, de uma simples relação de causa e efeito entre alterações de preços e mudanças sociais e políticas, poderíamos ser tentados a sobrevalorizar o fato de a Revolução liberal se inserir numa baixa de longa duração, que se inicia em princípios do segundo decênio do século XIX e só amortece cerca de 1825-1826; de que poderia sair a “explicação” da apatia das massas rurais pobres (beneficiadas com o pão barato, sem que a sua agricultura de subsistência sofresse com isso) e alguma maior agitação dos agricultores produzindo para mercado, fortemente prejudicados com a conjuntura dos preços e do comércio externo e interno. Quando estudamos os movimentos agrários a partir do seu interior – e não de simples curvas de índices econômicos – verificamos que eles se relacionam tanto com dinâmicas gerais da sociedade, de que os preços são uma das expressões, como com fatores próprios da sociedade rural, de diversas naturezas. O que nos coloca a questão de como o mundo rural se insere no conjunto da sociedade. 208 CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL O fato de a “lógica” dos campos não estar visivelmente entrelaçada em intrigas da Corte nem apresentar uma imediata relação com os fatos políticos tem conduzido na historiografia portuguesa a sistemáticas incompreensões sobre como se relacionam cidade e campo, mundo político e mundo rural. É indispensável ter em conta os ritmos próprios, as formas e simbólicas específicas da expressão e da vivência do mundo rural. A reduzida mobilidade social deste não poderá confundir-se com marginalidade e ausência política. A compreensão desse relacionamento só é possível num nível mediático mais complexo. Verificamos que as incidências do mundo rural na vida pública portuguesa se foram acentuando ao longo do século XVIII. A produção e o comércio e consumo interno e externo dos gêneros agrícolas, os distanciamentos físicos e psicológicos, as insuficiências e as virtualidades desse mundo são condicionantes das decisões políticas gerais de que os governantes mostram ter consciência cada vez mais clara. Traduz-se numa preocupação que não desperta apenas em momentos de crise mais aguda, mas que passa a ser constante. Traduz-se, também, não apenas na adoção de medidas pontuais quando escasseava o trigo no Reino ou aumentavam as dificuldades externas de colocação do vinho, mas numa tendência para ver os problemas agrários na sua globalidade, ainda que com dificuldade de inseri-los no conjunto da sociedade. A falência das inovadoras medidas do marquês de Pombal, quanto à agricultura, resultou, por um lado, de não obedecerem a um consistente projeto global e não terem levado até às últimas conseqüências algumas importantes intenções reformistas (entre as quais, uma ampla desvinculação e maior mobilidade da terra, diminuição considerável dos imensos bens das corporações religiosas, maior aproximação do cultivador à terra que trabalhava, princípio de eqüidade apoiado em Bartolo e no Direito Natural); e, por outro lado, do fato de ter governado impondo medidas administrativas, de cima, sem ter em conta as novas realidades e dinâmicas que tinham vindo a desenvolver-se no quadro rural, nomeadamente as resultantes do aumento da mercantilização da produção agrícola e das conseqüentes exigências de uma maior rentabilidade da terra. Na segunda metade do último quartel do século XVIII, o Trono de D. Maria I compreendeu que era indispensável aumentar a sua capacidade de atendimento da sociedade em geral e, em particular, do mundo rural. É uma alteração muito importante no relacionamento entre o poder régio e a sociedade.49 Não deixa de derivar da preocupação de descomprimir as tensões que se acumulavam nos campos, tanto mais preocupantes quanto se conhecia o papel que tinham tido na Revolução Francesa. Mas havia, também, a consciência da necessidade de que o Trono criasse condições favoráveis para uma comunicação mais fluida da base social para o topo da hie- 209 José Tengarrinha rarquia político-administrativa, aumentando a sua capacidade de consulta das realidades e, assim, a sua eficácia. A exemplo, aliás, do que já ocorrera e estava a ocorrer noutros pontos da Europa. Segu n do o levan tam en to do m ovim en to peticion ário pré-liberal a que procedemos quanto a algumas comarcas, registramos um acréscimo a partir de 1780-1785, decréscim o en tre 1805-1810 e estacion ário en tre 18101815. Mas o fato m ais m arcan te é a su bida espetacu lar registrada após 1815, o qu e se relacion ará com o au m en to das expectativas criadas em face das m edidas reform istas em an adas do Rio de Jan eiro. Há, assim , em vésperas da Revolu ção liberal, u m en trelaçam en to m ais estreito en tre o cam po e o Poder, m an ifestan do este m aior preocu pação de dar respostas àqu ele.50 Respostas n ecessárias e u rgen tes – todos recon h eciam – em face da gravíssim a crise econ ôm ica, fin an ceira, política e m oral qu e o Rein o atravessava. Mas, com o se viu , foram in decisas e lim itadas, resu ltan tes de u m poder cen tral bicéfalo e con traditório e de u m Estado m u ito fragilizado; e, por isso, m ais do qu e n u n ca, receoso de falta de apoio social, procu ran do n ão perder o das su as bases tradicion ais e n ão afastar o das cam adas m édias e baixas. A pressão rural irá contribuir para pôr em maior evidência a insuficiência dessas respostas e o bloqueamento do curso reformista e alimentar, com base concreta, o intenso debate teórico político-jurídico nos anos imediatamente anteriores à Revolução. Mostrava-se, assim, a inviabilidade do tímido projeto de reformas a partir de dentro, mas não a viabilidade de um projeto alternativo gerado pelo campo. Seria necessária uma formulação global, para que não tinha condições. Uma parte considerável dos estratos sociais baixos encontrava-se dividida em conflitos não só particularizados como de sentido contrário, simultaneamente contra a opressão senhorial e contra o avanço do capitalismo nos campos. É certo que nos anos imediatamente anteriores à Revolução e em zonas de mais pesada opressão senhorial, como referimos, se assiste à acutilância política de algumas câmaras, em ações anti-senhoriais instigadas ou até lideradas por “notáveis locais” (nobreza rasa, lavradores abastados, em geral enfiteutas, em parte identificados com o que se poderia designar de “burguesia rural”). A verdade, porém, é que tanto na gestão das terras concelhias como em vários outros aspectos, em boa parte do Reino, se vê a organização municipal não defender o interesse geral, mas cometer abusos a favor dos próprios vereadores e ricos proprietários e criadores – a exemplo do que acontecia em Espanha, como Joaquim Costa denunciou, designando-os como uma “plutocracia provincial”.51 Por isso, foram os juízes de fora (que presidiam às câmaras) os alvos privilegiados da ira popular em momentos de maior convulsão política (1808-1810 e 1820-1823). Desta maneira, não ti- 210 CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL nham as câmaras condições para ser um instrumento político representativo da generalidade das aspirações anti-senhoriais. Por outro lado, estas elites locais não eram agentes de ruptura com o regime senhorial, relativamente ao qual tinham, de resto, não poucos pontos de compromisso, em especial no plano das concessões enfitêuticas. Impeliam as câmaras à defesa dos interesses gerais da comunidade contra os senhorios, sobretudo, quando reconheciam serem favoráveis as condições políticas gerais: assim, em 1815-1820, sob o impulso reformista do Trono, e em 1820-1823, ainda com maior expressão, quando estavam criadas condições políticas favoráveis à reforma dos direitos senhoriais e foi alterada por via eletiva a composição de numerosos elencos camarários, de acordo com a nova legislação liberal. Tal enquadramento social e institucional imprime à pressão rural não um sentido revolucionário, mas reformista. O que se traduzirá no escasso alcance transformador da legislação vintista. Em contraste, pois – sobretudo nas zonas onde tinha sido e estava a ser mais intensa a luta antisenhorial –, com as expectativas levantadas pela Revolução liberal e os trabalhos das Cortes, que se anunciava irem acabar com os forais e os dízimos, o que não aconteceria. O mundo político liberal não é alheio a tudo isso. Vários destacados dirigentes liberais, quer por razões profissionais (corregedores, juízes ou advogados ligados a pleitos nos meios rurais), quer familiares e pessoais (filhos de agricultores ou eles próprios foreiros e enfiteutas) acompanharam muito de perto as tensões rurais que antecederam a Revolução. Não surpreende, pois, que o Governo e os deputados liberais se tenham mantido muito atentos às reações do campo, sendo falsa a idéia generalizada na historiografia portuguesa de que estiveram de costas viradas, como dois mundos que se ignoraram. Daí, se compreende o grande esforço que os liberais fizeram – sem comparação com qualquer governo do passado – para ultrapassar as seculares distâncias, incompreensões e suspeitas entre o mundo rural e o mundo urbano. Primeiro, houve que conter as impaciências, com o concelho de se aguardar a lei de reforma dos forais, que traria grandes benefícios. Ao mesmo tempo, dotavam-se os intermediários culturais (advogados, burgueses letrados e clérigos liberais espalhados pelas províncias) com instrumentos ideológicos adequados: jornais, livros, editais, folhetos, catecismos, manifestos, proclamações, circulares quer da iniciativa do Governo e das autoridades militares quer de algumas câmaras.52 Tentando usar a seu favor a influência clerical junto das populações rurais, as Cortes liberais resolveram que os arcebispos e bispos deviam divulgar pastorais incitando os seus diocesanos a aderir e obedecer ao novo governo, esclarecendo-os de que as reformas não feriam a religião tradicio- 211 José Tengarrinha nal (Res. 26.2.1821), e que os párocos esclarecessem nas homilias as vantagens do novo regime e a não conflitualidade de princípios entre a Regeneração e a religião (Decr. 28.2.1821, reforçado com a Port. 1.10.1821).53 Mas a operação de propagan da liberal m ais am pla dirigida diretam en te às popu lações dos cam pos desen volveu -se com base n a lei de reform a dos forais. Logo u m m ês após a prom u lgação desta, u m aviso da In ten dên cia Geral da Polícia (5.7.1822) m an dava qu e ela fosse lida e explicada às popu lações, em qu atro dom in gos segu idos, em todas as câm aras do Rein o.54 Este esforço de propaganda não deixaria de ter efeitos, sobretudo, na zona compreendida entre o Douro e o Tejo. A lei de reforma dos forais seria, em vários locais, o ponto de partida para uma contestação global dos direitos senhoriais, indo assim muito além das suas limitadas formulações. Provocaria um recrudescimento da rebeldia onde a opressão senhorial era mais dura, sobretudo quando baseada em pensões raçoeiras e dízimos. Seria essa a razão principal da abolição da lei em 1824 (um ano após a queda do regime constitucional) e não os efeitos lesivos que dela resultariam para os senhorios. A abolição vai provocar uma reação de vários senhorios no sentido do regresso a imposições ainda mais pesadas. Vê-se, então, em diversos locais, as populações que em 1822 e 1823 haviam contestado o limitado alcance da lei, após a queda da monarquia constitucional apoiarem-se na mesma lei para enfrentarem aqueles senhorios. Sem que isso significasse, porém, “identificação política” quer com o regime absoluto quer com o regime liberal. Diferente era a situação em outras partes do Reino, nomeadamente no Minho, região transmontana e parte da Beira Alta. Aí, nas zonas onde predominavam a enfiteuse e a subenfiteuse (sobretudo no Minho e parte de Trás-os-Montes) eram generalizados os benefícios da estabilidade da posse da terra quer para os que a trabalhavam quer para os que beneficiavam de foros enfitêuticos. Eles viam com apreensão a legislação liberal que desencadeara uma certa confusão entre bens da Coroa e bens patrimoniais, pois a contestação rural estendeu por vezes as reduções à enfiteuse particular, numa contaminação pelas pensões foraleiras que as Cortes haviam tentado a todo o custo evitar. Nestas regiões, a mobilização das populações rurais contra o regime liberal foi facilitada, pois, pelos receios sobre a segurança da propriedade. A “insegurança dos proprietários” era referida nas Cortes como um fator de desapego à ordem constitucional. Deverá ter-se em conta, também, a influência pessoal de grandes senhorios laicos que na região duriense se encontravam presentes em maior número, nos seus domínios: mantinham com as populações rurais uma relação simultaneamente de opressão e proteção (alguns tinham mesmo chefiado a luta contra os invasores e defendido os povos), numa atitude que poderíamos qualificar como de “duro paternalismo”. Além de que era aí, também, que a igreja conservadora exercia maior influência, como se viu nas lutas de 1808, que 212 CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL por isso tiveram um caráter dominante de “guerra religiosa” contra os ímpios jacobinos franceses e, agora, contra os liberais portugueses. A interpretação do comportamento do rural a partir de motivações exclusivamente ideológicas, sem ter em conta a ligação às suas condições materiais de existência nem a complexidade da relação que entre esses planos se estabelece, tem conduzido, pois, a uma visão redutora na historiografia portuguesa. A idéia de que o “projeto” do rural se limitava ao absolutismo ou ao miguelismo fazia esquecer o essencial: não se pode identificar a sua contestação social com um “modelo” ou um “projeto” político. Nem sequer a afeição de uma parte do campesinato ao miguelismo se poderá confundir com apoio ao regime absoluto e à organização senhorial da sociedade em que este assentava. Tenho defendido que tal afeição, como fenômeno coletivo bastante generalizado, encontra a sua mais forte raiz no vazio psicossocial que se gerou nas populações, sobretudo rurais, mesmo com alguns tons dramáticos, quando da ida da Corte para o Brasil em dezembro de 1807, à aproximação das tropas de Junot. E agravado com a longa permanência do outro lado do Atlântico, muito além da saída das tropas francesas do território nacional. O que fez correr, nas províncias, o rumor de que o monarca abandonara o Reino, entretanto confiado a uma Junta Governativa integrada por um general inglês, e estava mesmo disposto a entregá-lo à Espanha, em troca de territórios a sul do Brasil (região cisplatina). Outros tinham o anseio de que – tal como no passado, em momentos de crise nacional, se visionara a chegada do rei Sebastião, perdido na derrota de Alcácer-Quibir – também D. João VI estava prestes a chegar ao Tejo. Este vazio foi agravado com a morte do rei e a crise de sucessão que se seguiu, considerada afastada a investidura do primogênito D. Pedro por se ter assumido como imperador de um reino independente. O fundo da questão era que, ao transferir o centro dos sentimentos de dependência e solidariedade dos portugueses da ordem pessoal, o rei, para a ordem impessoal, a pátria, operava-se uma verdadeira revolução sentimental: porém, o valor simbólico do primeiro diminuíra (mero primeiro magistrado, que também devia obediência às decisões dos que representavam a Nação) sem que a segunda já se impusesse, pois assente num conceito de soberania nacional ainda não suficientemente estruturado, numa base muito instável e frágil de organização jurídica da democracia. Criavase, assim, um vazio de representação de poder e autoridade gerador de forte instabilidade psicossocial, que D. Miguel preencheria. Seria ele a consubstanciar, de algum modo, um projeto unificador, mas socialmente retrógrado e fora do quadro constitucional.55 O fenômeno do apoio de largas massas rurais a D. Miguel está longe de significar, pois, a sua identificação com o regime absoluto e a opressão senhorial. Tentar preservar os valores tradicionais como garantia de segu- 213 José Tengarrinha rança e estabilidade não implicava defender o sistema social que os gerava. Eram valores que, na mente do rural, existiam fora de uma organização social determinada e temporalmente circunscrita, como se fossem de todos os tempos e lugares. Estava impedida, assim, a possibilidade de o campesinato desenvolver ação e projeto autônomos no processo transformador da sociedade de Antigo Regime e desempenhar papel relevante na construção do novo regime. Não estava, porém, eliminada a influência sobre o Poder que a movimentação rural exercia, correspondente a fases do desenvolvimento desta: o âmbito local, onde predominava o isolamento das comunidades campesinas, criando dificuldades à transmissão; a ressonância dos alarmes dos agredidos nas instâncias do Poder; e as consonâncias desses alarmes com aqueles que julgavam dispor de soluções. Assim, o encaixe do protesto popular agrário nas estruturas da sociedade e do Poder vai-se alterando, criando diferentes dinâmicas que estão presentes quer nas propostas reformistas pré-liberais quer nos trabalhos das Cortes vintistas. Contribuem para radicalizar as posições de uns, no sentido não da reforma mas da abolição dos forais (o que só seria feito em 1832), e para atemorizar outros, receosos de que a abolição dos foros foraleiros arrastasse à abolição dos foros enfitêuticos, provenientes de emprazamentos particulares, de que beneficiavam. As novas dinâmicas da intervenção popular após as Invasões, na seqüência das linhas de contestação rural desde o último quartel do século XVIII, dão argumentos aos que defendem a necessidade inadiável de reformas e tornam mais nítidas as clivagens no campo liberal, após a Revolução. Mas não se poderá dizer que a extinção do Antigo Regime e o advento da sociedade liberal ocorram a culminar um processo opondo irredutivelmente “classes feudais” e “classes burguesas”. O processo será conduzido – como se deduz do que atrás ficou brevemente exposto – por um bloco social, dominado por um senhorialismo renovado, em que a burguesia tem um papel subalterno. O percurso será feito mais pela sucessão de “readaptações” do que de “descontinuidades”. 214 CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL N OTA S 1. ANTT, CF, Consultas, L. 31,f. 67. 2. Manifesto das Contendas do Cabido da Sé de Coimbra com o Prior e Moradores do Couto de Vila Nova de Monsarros (Anônimo). Lisboa: Impressão Régia, 1815. 3. Muito abundante documentação sobre este assunto consultamos em ANTT, MJ, vários maços (exº. nº. 184 e 233) e CF, Consultas, diversos livros (exº. nº. 25). 4. Os que arrendavam a cobrança das multas sobre os que punham os seus gados a pastar, irregularmente, em terras que não lhes pertenciam ou em períodos não-autorizados. 5. Balanças Gerais do Comércio do Reino de Portugal..., elaboradas por Maurício Teixeira de Morais (INE, AHMOP, e ANTT). Adrien Balbi, Essai Statistique, I, p. 152. NEVES, A. das Memória sobre os Meios de Melhorar a Indústria Portuguesa... In: Obras Completas. Porto: Afrontamento, s.d. v.4, p.125. E ALEXANDRE, V. Os Sentidos do Império. Questão Nacional e Questão Colonial na Crise do Antigo Regime Português. Porto: Afrontamento, 1993. p.787-92. 6. ANTT, MNE, Cx. 899. 7. ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 316, f. 110, conta de 7.1.1815 e f. 125v.-126, conta de 21.2.1815 e L. 317, p.50-1, conta de 16.2.1816 e p.201-5, conta de 17.9.1816. 8. ANTT, CF, Consultas, L. 25, f. 12; MR, Governadores do Reino..., L. 316, f. 110 e L. 317, p.201205, contas, respectivamente, de 7.1.1815 e 17.10.1816. 9. ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 315, f. 269-273 v., conta de 15.1.1814. 10. ANTT, MR, M. 356, n.16. 11. ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 319, p.452-65, conta de 2.6.1820. 12. ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 319, p.126-8. 13. Ver, por exemplo, ANTT, DP – Corte..., M. 612, n. 9 e M. 613, n. 1. 14. Ver, por exemplo, o movimento de protesto das populações da área de Coimbra, em julho de 1814, que teve consideráveis repercussões (ANTT, DP – Beira, M. 367, n. 27 768). 15. ANTT, MR, M. 460. 16. Nesse ano, a renda líquida do Estado foi de 5.625.541$694 réis e, só com o Exército, os gastos subiram a 5.971.334$122. Para o conhecimento da situação no Reino e das políticas de Lisboa e do Rio de Janeiro neste período foi fundamental o estudo exaustivo que fizemos da correspondência trocada entre o Governo de Lisboa e a Corte no Brasil entre 1808 e 1821: ANTT, MR, “Governadores do Reino. Registro de Cartas ao Príncipe Regente (1808 a 1821)”, LL. 314-321 e “Ordens do Príncipe Regente para os Governadores do Reino (1809 a 1820)”, LL. 380-383. 17. Globalmente, a média anual dessas receitas passou de 9.299.335$185 no triênio de 1801-1803 para 6.444.718$274 réis em 1809-1811, com base em dados de um relatório redigido em 31.5.1812 e enviado para o Rio de Janeiro (ANTT, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Cx. 894, s.n.). 18. Admitiam ter, assim, a segurança da pontualidade com que lhes pagavam os juros e sem o encargo de tributos à Fazenda. 19. Terá resultado da maior eficácia da Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda (cuja competência e expediente passaram a ser regulados pelo Decreto de 8.10.1812), bem como do período de paz e da recuperação econômica que se vive. 20. ANTT, CF, Consultas, L. 24, f. 70 v. 21. ANTT, DP - Beira, M. 209, nº. 13 637. 22. Considerando em conjunto as alfândegas e todos os mais rendimentos dos cofres de correntes, do triênio de 1801-1803 para o de 1809-1811 há um abaixamento da receita anual média de 7.290.954$759 para 5.082.232$852. 23. ANTT, DP – Beira, M. 160, nº. 11 490. 24. A receita anual média, no triênio 1801-1803, fora de 121.605$697, ao passo que no de 1809- 215 José Tengarrinha 1811 descera para 30.713$426 (ANTT, MNE, Cx. 894). 25. ANTT, CF, Consultas, L. 26, f. 6. 26. ANTT, CF, Consultas, L. 30, ff. 145 e 188. 27. ANTT, CF, Consultas, L. 31, f. 67. 28.Ver TENGARRINHA, J. Venda dos Bens da Coroa em 1810-1820: os Reflexos de uma Crise Nacional. Análise Social, v.XXVIII (122), p.607-19. 1993. (3º) 29. É o que se depreende das informações, sobre o estado do espírito público nas províncias, enviadas regularmente pelos corregedores de todas as comarcas do Reino ao intendente geral da Polícia, após circular urgente que este lhes dirigiu em 12 de março de 1817 (ANTT, MR, M. 461). 30. Não se nega a influência, porventura decisiva, que D. Rodrigo de Sousa Coutinho, conde de Linhares, então ministro dos Estrangeiros e da Guerra no Rio de Janeiro e de conhecidas tendências anglófilas, teria tido na elaboração destas medidas em 1809 e 1810. Mas a verdade é que, após a morte deste (janeiro de 1812), sairam do governo do Rio duas outras disposições mais lesivas dos direitos senhoriais, sendo então desembargador do Paço e depois ministro do Reino Tomás Antônio de Vila-Nova Portugal, colaborador das Memórias Econômicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, mas tão exacerbado antiliberal que em 1821, quando da chegada de D. João VI a Lisboa, foi impedido pelo governo liberal de desembarcar. 31. Veja-se, sobretudo, a polêmica entre Manuel Fernandes Tomás, que seria considerado o patriarca da Revolução de 1820, e o conservador Manuel de Almeida e Sousa de Lobão. 32. Relatórios secretos dos governadores do Reino para o Rio de Janeiro em 14.5.1810 e 27.3.1811 ( ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 314, f. 102 v.-103 e f. 165-170). 33. Trata-se da Comissão para Exame dos Forais e Melhoramentos de Agricultura, criada só em 1812, e de que sairam pareceres que, alguns anos depois, irão informar os deputados vintistas e também a comissão encarregada de reformar os forais, após o termo do primeiro período constitucional. Apesar dos seus escassos efeitos práticos, os resultados dos trabalhos desta comissão têm muito interesse tanto do ponto de vista teórico como para o conhecimento dos principais pontos que então opunham reformistas e conservadores ( ANTT, DP – Corte, Estremadura..., M. 1530, nº.16). 34. Relatório dos governantes de Lisboa para o Rio de Janeiro em 24.8.1813 (ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 315, f. 217-19 v.). 35. ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 316, ff. 108 v. ss. 36. ANTT, DP-Beira, M. 512, nº. 38 322. 37. ANTT, DP-Beira, M. 372, nº. 28 161 e M. 373, nº. 28 261. 38. ANTT, DP-Beira, M. 352, nº. 26758. 39. ANTT, DP-Corte..., M. 1972, nº. 116. 40. Foi um período de abastança para os que usufruíam de rendas e para os que detinham a terra em elevado grau, mas de grandes dificuldades para os que estavam sujeitos a rendas e tinham, muitas vezes, ao mesmo tempo, de trabalhar como assalariados noutras terras. Tenha-se em conta que, na segunda metade do século XVIII, a subida das jornas se atrasou muito sobre a dos preços. 41. Cf. LE ROY LADURIE E. Révoltes et contestations rurales en France de 1675 à 1788. Annales E.S.C., jan.-fev. 1974. p.11. 42. Cf. BOUTIER,J. Jacqueries en pays croquant. Les révoltes paysannes en Aquitaine (Décembre 1789-Mars 1790). Annales E.S.C., jul-ago. 1979. p.760-86. 43. Duas das exceções mais significativas dizem respeito: uma, à utilização de meios de produção fixos (“banalidades”), sobretudo as prensas em lagares de azeite e vinho que lavradores abastados e rendeiros tinham tido meios para construir, facultando-os em melhores condições do que os senhoriais; outra, às restrições ao comércio agrícola, desde as portagens e medidagens ao relego. 44. Relatório para o Rio de Janeiro em 27.3.1811 (ANTT, MR, Governadores do Reino..., L. 314, f. 165-70). 45. ANTT, MR, M. 461. 216 CONTESTAÇÃO RURAL E REVOLUÇÃO LIBERAL EM PORTUGAL 46. Informações recolhidas de um conjunto documental, até agora não estudado, constituído pelos relatos dos corregadores e juízes de fora ao intendente geral da Polícia sobre o estado do espírito público no Reino em 1817 (ANTT, MR, M. 461); além de pasquins e panfletos e informações contidas nos Livros de Secretarias da Intendência Geral da Polícia, de que utilizei uma parte na minha História da Imprensa Periódica Portuguesa, 2. ed., p.69-74 e 82-3. 47. No limitado espaço deste artigo, apenas poderíamos ficar às portas da Revolução. O estudo que fizemos das contestações e lutas agrárias que se desenvolveram em Portugal nos primeiros anos do liberalismo não cabia aqui. 48. Manifesta-se também, entre outras medidas, pela retomada das audiências régias semanais ao povo. 49. Após a Revolução liberal, abrem-se condições mais favoráveis ao impulso do movimento peticionário, que, em contraste com o caráter organizado dos “cahiers de doléances” franceses de 1789, apresenta uma predominante espontaneidade. Este movimento peticionário do primeiro triênio constitucional encontra-se na seqüência do anterior. Até o formulário usado ao dirigir-se às Cortes liberais era idêntico ao das antigas petições ao monarca instruídas pelo Desembargo do Paço: “Soberano Congresso”, “Augusto Congresso”, “Vossa Majestade”. 50. Colectivismo Agrário en España, 1.ed., 1899. 51. Ver, por exemplo, Coleção Geral e Curiosa de Todos os Documentos Oficiais e Históricos Publicados por Ocasião da Regeneração de Portugal desde 24 de agosto, Lisboa, Tip. Rollandiana, 1820; ANTT, IGP, Correspondências dos Corregedores das Comarcas; e, entre os vários livros, DULAC, A. M. Vozes dos Leais Portugueses. Lisboa: Impressão Régia, 1820. 52. Sabe-se que muitos foram os párocos que assim procederam e tiveram assinalável influência no esclarecimento das populações rurais. Porém, a maior parte do Reino teria ficado à margem da influência liberal dos clérigos, que foi em decréscimo do sul para o norte, sendo a maior resistência a do clero regular. 53. Além do Algarve (onde foram abrangidas, pelo menos, todas as câmaras a barlavento de Faro), temos notícias mais expressivas que nos chegaram de sessões efetuadas na região entre o Douro e o Tejo, onde as terras foraleiras eram em muito maior número e se haviam desenrolado as mais agrestes lutas anti-senhoriais. Algumas dessas sessões assumiram particular significado: por exemplo, em terras dominadas pela poderosa Ordem de Cristo (comarca de Tomar), nos domínios do não menos poderoso mosteiro de Alcobaça ou na região de Feira-Aveiro e da Guarda, onde se localizavam importantes e exigentes donatários eclesiásticos e laicos. Aí, foram vivamente mostrados os sentimentos anti-senhoriais das populações rurais. 54. Desenvolvimento desta idéia em TENGARRINHA, J. Da Liberdade Mitificada à Liberdade Subvertida. Uma exploração no interior da repressão à imprensa periódica de 1820 a 1828. Lisboa: Colibri, 1993. p.76-7. 218 Dela saiu o trabalho Movimentos Populares Agrários em Portugal. 1751-1825. Lisboa: Publicações Europa-América, 1994. 2v. Entre as fontes em que me apoiei, em diversos núcleos de vários arquivos, tiveram maior importância os tribunais superiores do Desembargo do Paço e do Concelho da Fazenda, a Intendência Geral da Polícia e o Ministério do Reino nos Arquivos Nacionais-Torre do Tombo. 217 capítu lo 12 D IVERSID A D E E CRESCIMEN TO IN D USTRIA L Miriam Halpern Pereira* A sociedade portu gu esa oitocen tista, en tre 1820 e 1890, assen tava n a atividade agrícola e n o com ércio extern o a ela ligada n u m a proporção m aior qu e em qu alqu er ou tro período da su a h istória, a época m edieval excetu ada. Perdida estava a prin cipal base colon ial da econ om ia portu gu esa desde o sécu lo XVII, o Brasil, as possesões orien tais eram in sign ifican tes h á m u ito, e as colôn ias african as dem orariam a adqu irir papel de relevo. En tre dois im périos, a econ om ia portu gu esa teve qu e adaptar-se à n ova divisão in tern acion al de trabalh o. Algu n s setores da produ ção agrícola, com destaqu e para a vitivin icu ltu ra, adqu iriram prim azia n o com ércio extern o, em proporção n u n ca an teriorm en te atin gida. A atividade in du strial viu o seu escoam en to regridir violen tam en te: o Brasil in depen den te com praria vin h o ou azeite portu gu ês, ao lado do espan h ol, m as n ão tecidos de lin h o, algodão, seda ou lã. Apen as ch apéu s, sapatos, ren das con tin u aram ain da, em bora em qu an tidade redu zida, a en con trar clien tela do ou tro lado do Atlân tico. A m em ória do m ercado colon ial perdido seria ain da perceptível em testem u n h os n orten h os do fin al do sécu lo, tão forte fora a su a m arca n a proto-in dú stria do n oroeste atlân tico. Ao sair do rescaldo dos an os 1808-1820, a an tiga estru tu ra in du strial en con trava-se destroçada, com o os in qu éritos dessa época o testem u n h am . Len tam en te prin cipia u m a recon versão. Revolu to o tem po das gran des m an u fatu ras reais, das qu ais pou cas sobreviveriam , vai operar-se u m a tran sform ação sem gran diosidade, tan to m ais discreta qu an to será acom pan h ada n algu m as regiões por u m fen ôm en o de ru ralização. Um a recon versão qu e apresen ta traços com u n s com a evolu ção n o n orte da Itália, estu dada por Dewerpe.1 Men or dim en são das u n idades in du striais, m aior articu lação com o ritm o da atividade agrícola, seria u m a form a de redu ção de cu stos, de m aior flexibilidade e adequ ação às flu tu ações da procu ra qu e se situ ava a u m n ível in ferior. In ferior em qu an tidade, em qu alidade. A recon versão, orien tada para o m ercado in tern o, far-se-á em fu n ção da procu ra dos estratos da popu lação com m en or poder de com pra. É o segm en to do m ercado m en os atin gido pelos artefatos estran geiros. Na região do Porto, foram os tecidos m ixtos de seda e algodão qu e aju daram a sair da crise len tam en te, n a Covilh ã foram os baetões. O cresci- 219 Miriam Halpern Pereira m en to in du strial será con dicion ado pela con figu ração do m ercado in tern o, en qu an to n ão su rgem oportu n idades de in tegração n o m ercado in tern acion al. A estru tu ra social do m ercado oferece oportu n idades desigu ais aos diferen tes setores da in dú stria. A elite abastada, o m elh or segm en to do m ercado n o m u n do an terior à "sociedade de con su m o", privilegia a produ ção de qu alidade, qu e m esm o n o setor básico da in dú stria, qu e é n esta época o têxtil, ten de a ser de origem estran geira. A m atriz das relações com erciais extern as delin eada desde o fim da prim eira década do sécu lo facilitaria esta preferên cia.2 Aprofu n dar a con figu ração qu e a estru tu ra in du strial veio a adqu irir du ran te a segu n da m etade do sécu lo XIX n este con texto, foi o n osso prin cipal objetivo n esta abordagem de algu n s aspectos do crescim en to in du strial. Desen volvim en to in du strial, crescim en to fabril e m ecan ização tem sido con siderados im plicita ou explicitam en te fen ôm en os equ ivalen tes. Aqu i qu estion a-se esta iden tificação, m ostran do qu e o crescim en to in du strial pode ter assu m ido form as diversas, tal com o a h istoriografia tem vin do a apon tar em relação a ou tros países.3 A h ipótese de qu e se partiu n esta abordagem sobre as form as do crescim en to in du strial portu gu ês oitocen tista assen ta n a idéia de u m a possível diversidade de opções n o esforço dos in du striais portu gu eses n a adaptação à n ova divisão in tern acion al do trabalh o n o sécu lo XIX-XX. Essa diversidade, em bora presen te desde o estu do pion eiro de Arm an do de Castro e n ou tros estu dos sobre a in dú stria oito e n ovecen tista, m erece ser objeto de u m a rein terpretação. P EQUENA INDÚSTRIA E FÁBRICAS: UMA REAVALIAÇÃO Os an os 70 a 80 são geralm en te con siderados com o coin ciden tes n os países in du strializados com a predom in ân cia das n ovas form as de organ ização e de tecn ologia in du strial, iden tificadas de form a su m ária com a revolu ção in du strial.4 É in teressan te averigu ar o pon to da situ ação n esse m om en to em Portu gal. Tem os a sorte de dispor para esse efeito do in qu érito de 1881. Nen h u m ou tro in qu érito à escala n acion al, reu n iu equ ivalen te m assa de in form ação sob a form a de in qu érito in direto e direto. Parece ter h avido particu lar dispon ibilidade dos in qu iridores para percorrem o país e das in stitu ições para editarem este vasto m aterial.5 O en qu adram en to tem poral será alargado, a m on tan te e a ju san te, com base em docu m en tação vária, ou tros estu dos, in qu éritos parciais e estatísticas de com ércio extern o. Privilegiam os dois setores, o algodoeiro e os lan ifícios pela su a relevân cia n a econ om ia e n o m ercado de trabalh o. Em term os region ais isso sign ificou dar particu lar relevo ao distrito do Porto, à Covilh ã 220 DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL e à região serran a da Estrela. Os dois con celh os do Porto e da Covilh ã ocu pavam u m lu gar ím par n o con texto n acion al: a popu lação ativa in du strial represen tava 42% e 43% em 1890, qu an do em Lisboa atin gia apen as 31% e n acion alm en te era ain da m en or, 19% . Um dos gran des problem as con ceptu ais com o qu al os in qu iridores de 1881 se defron taram pren de-se com a gran de variedade de form as de organ ização qu e caracterizava en tão a paisagem in du strial. A classificação em três gran des gru pos, fábricas, oficin as e in dú stria a dom icílio vai orien tar o con ju n to do in qu érito e m edian te ela pode obter-se u m a visão sistem ática do con ju n to. O problem a é qu e a aplicação desta classificação espartilh a a realidade su bjacen te à qu al n ão se aju sta, con du zin do a agru pam en tos de pou co rigor. A flu tu ação n a aplicação do con ceito de fábrica e oficin a com prova as dificu ldades de defin ição en con tradas dian te de u m m u n do in du strial diversificado. Tradu z a in existên cia real de u m a fron teira. Desde lon ga data qu e esta flu tu ação de vocabu lário existia, e n ada obrigara ain da a u m a separação de águ as, de u m pon to de vista ju rídico e fiscal.6 Não existiria n ecessariam en te gran de diferen ça de dim en são com a in trodu ção das prim eiras m áqu in as. É o qu e n o caso do Porto explicitam en te ju stificou a inclusão de fábricas de moagem a vapor na categoria de oficinas.7 Pelo contrário a oficina de fechaduras comuns do mestre Venâncio da Silva Cambra encontra-se mencionada anonimamente entre as sete oficinas de Ramalde, Bouças: ora, tratava-se de uma pequena fábrica, onde cinqüenta homens trabalhavam a braço, em seis forjas, quarenta a cinqüenta tornos de bancada, além de outros utensílios, enquadrados por uma acentuada divisão do trabalho.8 O caso de u tilização m ais in exata da design ação de fábrica, e qu e n ão foi objeto de qu alqu er crítica n a apreciação fin al do in qu érito, é o da Covilh ã e Gu arda. Todas as u n idades in du striais, in depen den tem en te da su a estru tu ra e dim en são, foram design adas por fábricas, o qu e in trodu z u m erro con siderável qu e n ão foi corrigido. Com pren der-se-á m elh or m ais adian te a dificu ldade em efetu ar tal correção.9 No caso das oficin as, a form a globalizan te com o foram descritas n as visitas locais o con ju n to das oficin as ou in dú strias em dom icílio, existen tes em cada con celh o ou localidade, ocasion ou u m a con tagem com o u n idades in du striais de con ju n tos qu e n ão tin h am n ecessariam en te articu lação en tre si. A su a desagregação perm ite a reavaliação da parte represen tada pelo trabalh o oficin al n os vários ram os in du striais.10 Fábricas e oficin as agru pavam aparen tem en te parcelas qu ase idên ticas da m ão de obra, cerca de 23% cada gru po, m as n ote-se qu e elevado n ú m ero de oficin as n ão in dicaram a m ão de obra. Con tu do, a gran de au sen te do in qu érito é 221 Miriam Halpern Pereira a in dú stria em dom icílio, só n o Porto ela foi in clu ída de form a sign ificativa. Mesm o assim os trabalh adores em dom icílio n o con ju n to do território n acion al som avam 45.095, 49,55% do total, ou seja qu ase igu alavam o total da m ão-de-obra in serida n as fábricas e oficin as. Desse total, 30 m il eram tecelões da cidade do Porto. Apon tada a dom in ân cia das pequ en as u n idades in du striais e do trabalh o m an u al, a qu estão qu e se coloca é a da su a in terpretação. Ao lado de artesãos in depen den tes, por vezes bem prósperos e n ada decaden tes, coexistiam m ú ltiplas form as de articu lação en tre produ tor e m ercado e de articu lação en tre fábrica, trabalh o oficin al e em dom icílio. São as partes do In qu érito referen tes aos distritos do Porto, Castelo Bran co – estes dois apen as cobertos pelo in qu érito direto, o m ais fidedign o – da Gu arda e algu m as zon as do Norte, qu e m elh or n os in form am a este respeito. A IN D ÚSTRIA A LGOD OEIRA Lin h o e seda foram len tam en te sen do destron ados pelo pan o de algodão, de in ício m esclado com seda. Evolu ção m ais m arcada n a Região Norte, on de as prim eiras fábricas de fiação fabril de in icativa portu en se se situ aram n ão n a cidade, m as n a região em redor do Porto, on de o cu sto da m ão-de-obra e da en ergia h idraú lica eram fatores favoráveis.11 Tin h am com o fin alidade evitar a im portação de fio in glês. Com o acon teceu n ou tros países, a m ecan ização da fiação veio ao en con tro da expan são da tecelagem m an u al, em dom icílio e em oficin as. Um crescim en to qu e im pression ou Oliveira Marreca em m eados do sécu lo: "A tecelagem do algodão em teares m ovidos pelas forças an im adas tem m ostrado n o Porto u m a progressão espan tosa". Tradu zira-se pelo au m en to da im portação de fio, só em três an os, en tre 1845 e 1848, de 638.703 para 999.706 arráteis.12 Decorridos 30 an os, o fen ôm en o repete-se. Em 1881, o crescim en to da tecelagem m an u al em relação à situ ação m eio sécu lo m ais cedo era en orm e, passara-se de 2.500 trabalh adores em dom icilio n o têxtil portu en se em 1830, para 30 m il, ou seja u m a alteração de 4,8% para 28,34% da popu lação u rban a.13 Nú m eros qu e valem com o estim ativa, em bora possam h oje parecer-n os excessivos, desabitu ados da dim en são do trabalh o m an u al, n a época n ão foram qu estion ados. No caso da in dú stria do Porto o papel desem pen h ado pelos tecelões é cen tral e in trigan te. On de se in tegravam e a qu e estru tu ra in du strial correspon diam os 30 m il tecelões em dom icílio n a cidade do Porto, qu e con stam com o u m a u n idade n os qu adros-sín tese? Não foram in clu ídos n as pequ en as in dú strias da cidade, m as n a popu lação fabril.14 Na realidade são tecelões qu e trabalh am para fabrican tes do Porto e para u m a fábrica, a fábrica de Asn eiros. Só para esta fábrica trabalh avam à tarefa 229 teares – 126 222 DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL n a cidade, 103 n os con celh os lim ítrofes – e oitocen tos tecelões com pravam fio da fábrica, ven den do-lh e depois o tecido, retribu in do parte em din h eiro, parte em fio. Asn eiros era o prin cipal destin atário da tecelagem m an u al portu en se, m as de m odo algu m o ú n ico. Um a dezen a de fabrican tes con trolavam en tre cem a oitocen tos teares, calcu lan do-se qu e a m édia ron daria os du zen tos teares; ou tros qu atrocen tos a qu in h en tos fabrican tes con trolavam u m a m édia de qu in ze a vin te teares cada u m . Todos estes fabrican tes eram an tigos operários qu e tin h am en riqu ecido, ou seu s filh os, algu n s ter-se-iam m esm o se torn ado "opu len tos". No total calcu lava-se em 10 m il o n ú m ero de teares, o qu e con tan do u m m ín im o de três pessoas por tear – além do tecelão, a m u lh er dobadora ou fian deira, o rapaz qu e en ch e as can elas – perfaz 30 m il in divídu os.15 Mais de u m qu arto da popu lação portu en se, 28,34% , trabalh ava n u m a ú n ica atividade in du strial, o qu e represen ta u m a forte especialização da popu lação desta cidade, isto sem con tar a popu lação n ela en volvida n a área ru ral en volven te. 16 A estru tu ra em presarial dos fabrican tes era m u ito variável, se algu n s n em oficin a própria possu íam , ou tros tin h am pequ en as oficin as de tecelagem , bem m en os im portan tes qu e os teares qu e trabalh avam fora por su a con ta, ou tros dispu n h am de tin tu rarias an exas, e fin alm en te h avia aqu eles qu e tin h am pequ en as fábricas em su as próprias casas, in staladas n o fu n do dos qu in tais. Estes pequ en os em presários n ão eram alh eios à tecn ologia do vapor, dois u tilizavam m otores de vapor para dobar e fiar. Esta exten sa rede têxtil, qu e produ zia baetas, cobertores, cotin s e riscados tin tos, era muito mais considerável em número que as fiações e tecelagens a vapor, afirm ava-se n o in qu érito. A ela se deve ain da ju n tar u m con ju n to de pequ en as oficin as qu e produ ziam colch as e toalh as. Situ adas n a área u rban a, eram oficin as an exas das h abitações, on de se reu n ia u m n ú m ero variável de teares, qu e podiam elevar-se a 28. Nas oficin as visitadas os teares eram todos Jacqu ard. Tal com o n as an teriores, qu an do existia u m m otor m ecân ico ele destin ava-se às dobadou ras, torcedeiras ou cardas. O fio com a grossu ra n ecessária para este tipo de tecido n ão era im portado, só era u tilizado fio n acion al.17 De tu do isto se con clu ía em 1881, n a visita às fábricas do distrito do Porto: "A m an u fatu ra do algodão aparece com o u m a irradiação ou depen dên cia da gran de in dú stria. En tre n ós a preparação do algodão n asceu capitalista e pau talm en te".18 Estava-se dian te de u m a en orm e m assa de trabalh adores em dom icílio qu e produ ziam à peça para fabrican tes ou fábricas. A organ ização da in dú stria da tecelagem do algodão, sobretu do n a área u rban a do Porto assem elh ava-se à das "fábricas coletivas".19 A exten são do trabalh o em dom icílio apresen ta-se com o u m fen ôm en o qu e n ão se deve opor às criações fabris, às qu ais pelo con trário se articu la. E a este segundo e notável crescimento da tecelagem manual correspondeu desta vez um verdadeiro boom da fiação mecânica organizada em 223 Miriam Halpern Pereira fábricas entre 1874 e1880. Na época, esta criação fabril não ofuscou contudo o significado da extensão do trabalho manual como vimos,20 mas isso curiosamente aconteceu posteriormente na historiografia. Das 44 fábricas algodoeiras existentes em 1881, dezesseis dedicavam-se à fiação, nove das quais lhe associavam a tecelagem.21 No conjunto do país, as sete fábricas de fiação e as nove que associam fiação e tecelagem concentram 66% da mão de obra do setor têxtil fabril. Metade deste tipo de fábricas situavam- se no distrito do Porto, onde se concentrava também, como já vimos, a tecelagem oficinal e doméstica. Em grau variável, todas utilizavam a energia a vapor, com a exceção de uma unidade de catorze operários em Belém.22 Destas dezesseis fábricas, dez tin h am m ais de cem operários, u m a delas u ltrapassava qu in h en tos. O con traste com as qu in ze fábricas exclu sivam en te dedicadas à tecelagem – das qu ais seis estão sediadas n o distrito do Porto – é con siderável: oito em qu in ze têm m en os de cin qü en ta operários, e ou tras qu atro en tre cin qü en ta e cem . Apen as qu atro se servem em pequ en a escala do vapor. Na tecelagem fabril a pequ en a em presa e o trabalh o m an u al coin cidiam , com o n a in dú stria a dom icílio. Situ ação diferen te era a da estam paria, con siderada o setor m ais próspero do têxtil, du ran te gran de parte do sécu lo até 1881, e con cen trada em Lisboa. Os in du striais deste ram o eram h erdeiros da an tiga fu n ção dos m ercadores de tecidos, com o eles dedicavam -se ao acabam en to de tecidos qu e n ão produ ziam : os tecidos, qu e em tem pos idos vin h am da Ín dia, eram agora de proven iên cia in glesa.23A su a m en talidade refletia essa proxim idade do m eio com ercial.24 Eram treze as u n idades de estam paria, de dim en são m édia e pequ en a, cin co com qu an tidade de operários abaixo de cin qü en ta, três en tre cin qü en ta e cem . Mas só três n ão u tilizavam a en ergia a vapor e o setor era con siderado m u ito bem apetrech ado de u m pon to de vista técn ico. Era a estam paria qu e colocava Lisboa ligeiram en te acim a do Porto n a ocu pação de m ão-de-obra fabril têxtil (39% e 32% ), qu e n o con ju n to totalizava apen as 5.517 operários. Con tu do a in clu são da m ão-de-obra trabalh an do em oficin as e em dom icílio desequ ilibraria m arcadam en te a relação en tre as du as zon as em sen tido in verso. Além dos 30 m il tecelões a dom icílio portu en ses, qu ase todas as oficin as de algodão e lin h o se situ avam n o Porto.25 A produ ção têxtil destin ada a estratos sociais m édios e popu lares en volvia além da região do Porto, diferen tes pólos de produ ção n a área ru ral dos distritos de Braga, Vian a e Aveiro, don de aflu íam cotin s e riscados para abastecer o distrito do Porto, n o fin al dos an os 80.26 Esses tecidos de baixa qu alidade eram com petitivos e capaz de ven cer a con corrên cia fabril. Em m eados do sécu lo, Oliveira Marreca apon tara-o: "Estes produ tos obscu ros do pobre cu ja produ ção se n ão regu la pela m edida do capital, privados com o o foram do au xílio dos gran des m otores, e do ben efício da bara- 224 DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL teza qu e estes con ferem a qu alqu er fabricação … com todas as con dições de in ferioridade ven deram -se, ven dem -se a u m preço m ais baixo qu e o dos produ tos, ou an álogos, ou sim ilares qu e saiem das gran des fábricas".27 Decorridos 30 an os, a con corrên cia n o m ercado in tern o da in dú stria m an u al portu en se, articu lada ou n ão à fábrica, apresen tava-se com o tem ível àqu elas fábricas do su l qu e n ão dispu n h am do seu apoio. A Com pan h ia de Torres Novas declarava qu e praticava preços feitos para esm agar essa con corrên cia, m esm o com preju ízo.28 A com petitividade deste setor in du strial provin h a em prim eiro lu gar do baixo cu sto da produ ção, desta produ ção caseira ou em pequ en as oficin as, levada a cabo por u m a popu lação operária qu e sobrevivia n u m lim iar de m iséria, qu e im pression ou os in qu iridores tan to aqu i com o n ou tras zon as da in dú stria têxtil. Dispu n h a além disso de proteção pau tal con siderada su ficien te em 1881: n ão se im portavam cotin s e riscados, su bm etidos a direitos proibitivos, os tecidos de pêlo e os alcoch oados tam pou co, pois os direitos sobre o peso desin cen tivavam -n o. Não im pedia con tu do con siderável con corrên cia do con traban do.29 A pequ en a e m édia in dú stria algodoeira vivia n u m equ ilíbrio qu e u m a proteção am pla e diversificada ao setor, solicitada pelas fábricas de fiação e tecelagem rom peria. Seria por isso desacon selh ada pelos relatores da su bcom issão de in qu érito do Porto, qu e con sideravam a fábrica m aior perigo para esta con siderável popu lação in du strial qu e a con corrên cia estran geira. No fin al da década este equ ilíbrio parecia ter-se qu ebrado com o aparecim en to de n ovos con corren tes, tecidos de algodão cardados de origem alem ã, m u ito leves, pagan do por isso m en os direitos, riscados e cotin s fran ceses, ben eficiados pelo recen te tratado, e ain da tecidos espan h óis (provavelm en te catalães), em bora n ão seja especificado se am bos setores, fabril e pequ en a in dú stria, estariam sen do afetados.30 No in ício do sécu lo XX, pelo m en os n a região de Braga, depois de u m prim eiro em bate a in dú stria m an u al se recu perara e vivia n u m "relativo desafogo", e isso se devia a "seu s produ tos de con textu ra sim ples, m as forte, próprios para o gran de con su m o das popu lações ru rais, poderem con correr em preço com os de fabricação m ecân ica". Tam bém o geren te de u m a das fábricas "m odern as" de Gu im arães in form ava qu e o setor m an u al da fábrica produ zia para o abastecim en to de "tecidos para as classes pobres".31 A segm en tação social do m ercado in tern o fazia-se a dois n íveis. A presen ça de m ercadorias estran geiras, qu e m ereciam a preferên cia da elite abastada, era estim u lada pelo m ecan ism o pau tal de direitos em virtu de do peso e n ão ad valorem – os tecidos de qu alidade eram leves, pagavam m en os qu e os tecidos grosseiros. Ou tro fator de preferên cia, m ais su til e difícil de ven cer, era o poder da m oda. Um a qu estão qu e con vin h a con h ecer era a relação en tre o setor têxtil e a in dú stria da con fecção. Esta podia 225 Miriam Halpern Pereira con tribu ir para orien tar as preferên cias da clien tela, n u m a época em qu e a pu blicidade já tin h a algu m a in cidên cia n o m ercado. Maior in cidên cia tin h a, con tu do, ou tro n ível de segm en tação do m ercado qu e derivava da própria estru tu ra da in dú stria. As ten tativas de pen etrar n o estrato elevado do m ercado in tern o por parte dos in du striais da fiação e da tecelagem esbarravam n a privilegiada situ ação da in dú stria da estam paria, qu e colocava tecidos de m elh or qu alidade n o m ercado, tecidos im portados qu e apen as estam pava. Desde qu e a in dú stria algodoeira n ão se restrin gisse a ficar con fin ada às qu alidades in feriores de tecidos, en con trava, com o u m dos prin cipais gargalos de estran gu lam en to, a proteção preferen cial da estam paria, du plam en te favorecida pela con ju gação de elevados direitos sobre os tecidos tin tos e estam pados e direitos baixos sobre os tecidos lisos, cru s e bran cos. Estes tipos de tecido con stitu íam o essen cial da im portação de tecidos: 77% en tre 1875 e 1879 e con tin u aram a represen tar a parcela m ais con siderável até ao fin al do sécu lo. Lim itava-se assim a diversificação tan to da fiação como da tecelagem.32 Um mecanismo alfandegário complexo associava a proteção da estam paria orien tada para o estrato social m ais elevado do m ercado, qu e agregava u m gru po pequ en o de in du striais, à proteção do setor m an u al da tecelagem de cotin s e riscados para as classes m en os favorecidas, proteção in direta através do peso do têxtil. Este m ecan ism o qu e pen alizava a in ovação n a tecelagem e n a fiação tin h a sen tido con servador. Tin h a tam bém a van tagem , do pon to de vista das relações com erciais extern as, de n ão ter gran de in cidên cia n as im portações: é pou co provável qu e algu m a vez se tivessem im portado tecidos grosseiros em qu an tidade sign ificativa. As alterações pau tais do fin al da década de 1880 e a su bseqü en te criação de u m m ercado preferen cial n as colôn ias african as abriram u m n ovo can al de escoam en to qu e m elh orou u m pou co a situ ação, apesar de se exportarem essen cialm en te tecidos de baixa qu alidade.33 Len tam en te, o crescim en to da in dú stria algodoeira fora-se refletin do n a com posição das en tradas de algodão, ten do au m en tado a parcela do algodão em ram a n as im portações globais de algodão e dim in u ído em proporção relativa os tecidos, qu e represen tavam 75% deste gru po em 18751879. É a partir de 1890-1894 qu e tem lu gar u m a m u dan ça qu alitativa, a qu ota-parte do algodão em ram a im portado passou a ser su perior à en trada de tecidos – 47% e 43% – in ician do-se u m a in versão qu e prossegu ia às vésperas da Prim eira Gu erra Mu n dial. A parcela de fio im portado ao lon go de 34 an os (1865-1899), m an têm -se qu an titativam en te pou co im portan te, en tre 4% -7% .34 Na origem das qu eixas dos in du striais, estaria o tipo de fio im portado e o seu preço, n ão tan to a qu an tidade. A dom in ân cia do setor têxtil vai refletir-se n a m aqu in aria in du strial im portada: en tre 1888 e 1897, 46% destin ava-se a ele, qu ase toda destin ada à fiação e à tecela- 226 DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL gem . Os 54% restan tes correspon dem a parcelas dispersas, n en h u m a represen tan do valor com parável. Mas os valores absolu tos são relativam en te baixos. E, a produ tividade m esm o n o têxtil era m u ito baixa. Com paran do com a situ ação n a In glaterra, su blin h ar-se-ia qu e en qu an to u m operário podia m an ejar en tre seis e catorze teares n aqu ele país, em Portu gal u m operário n ão con segu ia u tilizar m ais de dois ou três teares sim u ltân eam en te. Form ação técn ica in su ficien te, m as tam bém graves carên cias alim en tares, para n ão referir ou tros fatores com o o alojam en to e a situ ação san itária, estariam n a origem desta discrepân cia.35 Em 1917, m esm o n o têxtil, on de 8% das fábricas con cen travam m ais de m etade da m ão de obra, a gran de m aioria das em presas con tin u avam a ser de pequ en a e m édia dim en são: 41% tin h am dez a cin qü en ta operários, 28% m en os de dez operários.36 O recu rso ao trabalh o dom iciliar tam bém con tin u ava a ser m u ito con siderável, seria estim ado em 20 m il pessoas, e é bem provável qu e a m aioria estivesse sediada n o Porto.37 O algodão, prim eiro associado à seda, depois isolado, foi in vadin do o m ercado in tern o, su bstitu in do len tam en te o tradicion al lin h o e a seda. A in dú stria n acion al foi evolu in do: a mule-jenny su bstitu iu a roca m ais rápidam en te qu e o tear Jacqu ard, e o tear m ecân ico su bstitu iu o tear m an u al. O crescim en to tom ou diferen tes form as, criações fabris e tam bém m u ltiplicação de pequ en as u n idades. Não foi diferen te n ou tros países. Mas com periodizações e prin cipalm en te ritm os distin tos. No próprio con texto da Eu ropa m eridion al, Portu gal distan ciara-se da Espan h a e da Itália. O con su m o de algodão em ram a por h abitan te em ton eladas era em 1910 o segu in te: Portu gal 2,7, Espan h a 3,7, Itália 5, Grã-Bretan h a 21.38 A situ ação n ão fora m u ito diferen te n os 50 an os an teriores, apen as se delin eara u m a ligeira m elh oria em relação à vizin h a Espan h a. A posição relativa da in dú stria têxtil n o con texto in tern acion al n ão se m odificara, apesar do seu in discu tível crescim en to. O S LA N IFÍCIOS A in dú stria de lan ifícios teve u m a n otável expan são após os an os 40, prin cipalm en te em dois dos cen tros tradicion alm en te m ais im portan tes, a Covilh ã e os con celh os de Gou veia e Seia, n a zon a da serra da Estrela. A m aioria das em presas existen tes n a Covilh ã em 1881 tin h a qu atro décadas de existên cia, m ais de m etade tin h a alterado pelo m en os a den om in ação da em presa in icial, sin al de forte m obilidade. Apen as oito em presas tin h am sido fu n dadas an tes de1839: u m a datava de 1765, J. Gom es Barata, ou tra de 1784, J. Men des Veiga, J. Silva Ran ito de 1800, das ou tras con sta só a in dicação su m ária de "an tiga". Em 1881, detin h am a prim azia do m ercado n acion al de lan ifícios. 227 Miriam Halpern Pereira Regiões de proto-in dú stria secu lar sofrem u m a con siderável tran sform ação em 20 an os. No in qu érito de 1839/ 1840, o qu adro geral desan im ava ain da a com issão: os processos eram an tigos, apen as n u m a fábrica se in trodu zira m áqu in as de cardar, fiar e tozar, descon h ecia-se a arte da tin tu raria, o acabam en to dos tecidos era im perfeito. Tam bém em Seia o processo m ecân ico n ão se alterara, n ão se u savam m áqu in as.39 Escreven do por volta de 1860, Fradesso da Silveira n ão con tin h a a su a adm iração pelo progresso técn ico: "Qu em en tra n a Covilh ã, vin do de Coim bra pelas Pedras Lavradas, ou de Castelo Bran co por Alpedrin h a, pasm a ao ver fu n cion ar n as fábricas as m áqu in as aperfeiçoadas de Verviers. Qu e sacrifícios e esforços, para levar ali os m aqu in ism os pesados e volu m osos, qu e a in dú striae de tecidos requ er! Qu e série de tran sform ações, qu e pertin ácia de en saios e ten tativas para passar do m étodo aprovado pelo regim en to de 7 de jan eiro de 1690 para o processo m odern o!" 40. Nos 18 an os segu in tes a in dú stria dos lan ifícios da Covilh ã e da região serran a atravessaram u m dos períodos m ais au spiciosos da su a existên cia. A produ ção de tecidos da Covilh ã era em 1878, su perior a toda a im portação de tecidos de lã em Portu gal.41 O equ ipam en to das fábricas alterou -se su bstan cialm en te. O n ú m ero de fu sos su biu de 13.195 para 22.175, os teares Jacqu ard m an u ais m ais do triplicaram e os com u n s cresceram . Mas pou cos foram os teares m ecân icos in trodu zidos, as dispon ibilidades en ergéticas locais cerceavam o seu u so e os teares m ecân icos ch egavam a ficar parados por falta de en ergia. Os lim ites en ergéticos eram desde os an os 60 referidos com o a razão do redu zido u so de pisões cilín dricos, teares m ecân icos, e da preferên cia dada às m áqu in as belgas, m en os exigen tes em força m otriz. O parcial estran gu lam en to tecn ológico era u m a con seqü ên cia do próprio crescim en to. Os recu rsos h idraú licos revelavaram -se in su ficien tes para abastecim en to sim u ltân eo da agricu ltu ra e da in dú stria du ran te a estiagem , o ritm o de trabalh o in du strial dim in u ía e torn ava-se n otu rn o. O cu sto do carvão era proibitivo.42 Nos an os segu in tes, os lim ites dos recu rsos en ergéticos e a gran de dispon ibilidade de m ão-de-obra m an têm o padrão da evolu ção, m as com algu m as alterações. Crescim en to m oderado da fiação, m ecân ica, qu e au m en tou ligeiram en te, m as m elh orou em qu alidade e se diversificou com o fio retorcido – m ais do qu e triplicou o n ú m ero de fu sos das retorcedeiras – e a gran de expan são da tecelagem . Neste caso, em bora se ten h a observado a in trodu ção de m aior n ú m ero de teares m ecân icos, a base deste en orm e crescim en to da tecelagem en tre 1881 e 1890 con tin u ou a assen tar fu n dam en talm en te n a en ergia h idraú lica e n a m u ltiplicação do tear m an u al, qu e o au m en to dem ográfico viabilizou . A Covilh ã torn ou -se u m forte pólo de atração e foi a cidade portu gu esa com m ais in ten so crescim en to n este período, e u m dos con celh os com m aior pon deração da popu lação in du strial, ao lado do Porto.43 228 DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL A con figu ração da estru tu ra in du strial tin h a u m cariz específico, qu e se en caixava m al n as classificações existen tes. O con ceito de fábrica u tilizado n os in qu éritos sobre a Covilh ã abran ge todo o tipo de u n idades in du striais, in clu i oficin as e trabalh o em dom icílio. Mas en con tra-se aqu i u m a design ação específica, de fábricas com pletas e in com pletas, in existen te n o resto do país.44 Pou cas eram as fábricas com pletas, qu e praticavam por si todas as operações, desde o tratam en to in icial da lã até ao acabam en to fin al da fazen da. Em 1839 existiam apen as n a Covilh ã "qu atro fábricas de m an u fatu ras de pan os qu e pela reu n ião de diferen tes oficin as qu e tem em m ovim en to e pela regu laridade qu e n elas se observa podem ser con sideradas com o tais. Além destas porém h á m u itas oficin as particu lares com diferen tes den om in ações a qu e são destin adas".45 Era u m a paisagem in du strial qu e se pren dia com a evolu ção ocorrida n o segu n do qu artel do sécu lo XIX, qu an do o m odelo da fábrica com pleta fora aban don ada, a organ ização in du strial fragm en tara-se e ru ralizara-se, com o form a de adequ ação à con ju n tu ra econ ôm ica.46 Em 1863, regressava-se len tam en te às fábricas com pletas, o seu n ú m ero du plicara, existiam oito fábricas com pletas, três tin h am u m n ú m ero elevado de operários, de 211 a 291, ou tras três de 72 a 101, m as du as só ocu pavam cin qü en ta e 27 operários.47 Em 1881, este tipo de fábrica m ais do qu e du plica, som am dezessete as fábricas com pletas. Nalgu n s casos são oficin as qu e já existiam e qu e alargaram a su a atividade, n ou tros são m ercadores-fabrican tes qu e se torn aram proprietários de fábricas com pletas, as próprias fábricas já existen tes tam bém terão au m en tado de dim en sões.48 Con tu do, as fábricas com pletas con tin u avam a ser u m a m in oria do tecido in du strial, on de eram m u ito m ais n u m erosas as pequ en as e m édias u n idades in du striais: das 27 fábricas com m ais de dez operários, oito eram com pletas e dezen ove in com pletas, as restan tes 32 u n idades in com pletas recen seadas em 1863, eram pequ en as oficin as e de trabalh o a dom icílio. A isto h avia ain da qu e ju n tar 218 teares dispersos n a vila e em Tortozen do e Teixoso.49 O tecido in du strial con tin u ava em 1881 dom in ado em n ú m ero pela pequ en a e m édia em presa: 66 oficin as tin h am de zero a n ove operários, 45 tin h am dez a 25 (ver Qu adro 2). A pon deração das fábricas com pletas e das pequ en as e m édias u n idades in du striais diverge con soan te se olh a para o m ercado de trabalh o ou para o parqu e tecn ológico. Em 1863, as fábricas com pletas desem pen h avam u m papel decisivo n o m ercado de trabalh o, n elas trabalh avam 68% da m ão-de-obra. Mas a situ ação era diferen te n a distribu ição dos u ten sílios: apen as 43% dos fu sos estavam sediados n este tipo de em presa, e u m pou co m en os se con siderarm os só a fiação m ecân ica, já qu e das dezessete fiações m an u ais, doze eram da fábrica com pleta An tôn io Pessoa Am orim 229 Miriam Halpern Pereira & Irm ão – qu e con tin u ava a fu n cion ar n o edifício da an tiga real fábrica, de qu e fora ren deiro – on de n ão h avia fiação m ecân ica. Um traço m arcan te das m édias e pequ en as em presas de cardar e fiar – em presas com u m n ú m ero de operários en tre cin co e 39 – era o grau de m ecan ização con siderável. Todas praticavam fiação m ecân ica – detin h am 57% dos fu sos do parqu e in du strial – e apen as du as em dezesseis lh e agregavam fiação m an u al; das 28 cardas con tín u as existen tes n o con celh o, doze (ou catorze, se se ju n tar du as em presas qu e estavam a m on tá-las) situ avam -se n o seu âm bito; cin co tin h am perch eas m ecân icas, m ais qu e n as prin cipais fábricas. Na tecelagem , a situ ação era diferen te: n ão h avia teares m ecân icos e os 37 Jacqu ard eram qu ase todos propriedade das fábricas com pletas, apen as a fábrica (in com pleta) Paiva & Rogeiro de cardar e fiar qu e tam bém tecia, u tilizava qu atro teares deste tipo. Dos teares m an u ais, 39% estavam n as prin cipais oito fábricas, du as delas con cen travam cada u m a cin co dezen as, m as a m aioria dos teares m an u ais en con trava-se dispersa, poden do as oficin as reu n ir en tre três e n ove u ten sílios. A isto h á ain da qu e acrescen tar a m alcon h ecida in dú stria em dom icílio, era provavelm en te o caso dos 218 teares sediados n a Covilh ã, Tortozen do, Teixoso e ou tras fregu esias, de qu e n em se in dica o proprietário n em o n ú m ero de braços. Máqu in a a vapor só existia n a fábrica Marqu es de Paiva e servia para acion ar seis pisões cilín dricos, u ten sílio de qu e pou cos dispu n h am , sen do ain da dom in an te o u so das m aceiras de pau .50 A con cen tração era em 1881 m en or qu e em 1863 em todos os aspectos: as prin cipais on ze em presas u tilizavam 57,4% da m ão-de-obra, u m pou co m en os qu e em 1863, e apen as 29,3% dos fu sos e 42,2% dos teares m an u ais com u n s. Das 38 pequ en as em presas, 21 são oficin as de cardar e fiar qu e têm fiação m ecân ica .51No gru po in diferen ciado de 55 fábricas pequ en as de tecelagem , em bora o trabalh o seja todo m an u al, u tilizavam -se 12 jacqu ard. A m ecan ização da tecelagem len ta e m in oritária, foi sobretu do efetu ada n o âm bito das prin cipais on ze em presas, n elas se aplicavam além de 78% dos Jacqu ard m an u ais, 84% dos teares m ecân icos. A m ãode-obra fem in in a e in fan til estava presen te de form a sign ificativa n as prin cipais fábricas, e n ão só n a pequ en a in dú stria.52 Mas o que é particularmente específico no tecido industrial covilhanense é o caráter segmentado da produção, as fábricas incompletas eram oficinas que apenas desempenhavam uma ou duas fases da produção. Existiam em 1863: quinze fábricas de cardar e fiar, algumas também tinham pisões e tesouras de correr; doze estabelecimentos de pisões, alguns com tinturaria; nove tinturarias; quatro de ultimação e de acabamento; uma fábrica de papelão preparada para prensar as fazendas, um laboratório de ácido nítrico. Acrescente-se os 218 teares instalados em "edifícios exclusivamente destinados à tecelagem", e em casas de fabricantes e tecelões na Covilhã e arredores.53 A segm en tação das fases da produ ção em u n idades in du striais diferen ciadas é u m a característica do tecido in du strial qu e determ in a u m a m u l- 230 DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL tiplicidade de relações in terfabris de dois tipos: vertical, pela m ediação de m ercadores-fabrican tes ou produ zin do diretam en te para as fábricas com pletas de form a su pletiva; h orizon tal, en tre pequ en os produ tores. A relação en tre pequ en os produ tores podia ser direta ou por m eio de pequ en os fabrican tes. Dispu n h am de u m a rede diferen ciada de abastecim en to de m atéria-prim a, m edian te alm ocreves, já as em presas de m aior dim en são se abasteciam diretam en te n os prin cipais pólos de produ ção n o Alen tejo, Beiras e Espan h a.54 Um a parcela do u n iverso dos pequ en os produ tores dispõe de algu m a au ton om ia, o kauf-system coexistia com o verlagsystem , em proporções qu e se descon h ecem . Um exem plo dessa coexistên cia está paten te n o caso das fábricas com pletas de Alçada Men des e Man u el Mou zaco qu e tin h am tecelões fora trabalh an do por su a con ta a qu em forn eciam o fio, e tam bém com pravam fazen das dos pequ en os in du striais. Os prin cipais com pradores dos pequ en os produ tores eram em qu alqu er caso as gran des fábricas.55 O tecido in du strial da Covilh ã apresen tava u m a estru tu ra segm en tada qu e toda ela tem u m m esm o objetivo, a produ ção de tecidos de lã, com o u m a gran de "fábrica coletiva". A popu lação in du strial via-se a si própria com o parte de u m am plo con ju n to produ tivo. "Con sideram os a vila da Covilh ã com o u m a só fábrica dedicada ao fabrico de lan ifícios…", diriam os fabrican tes da Covilh ã em 1858.56 Esta form a de organ ização segm en tada era o traço m arcan te de u m a das m ais poderosas in dú strias têxteis da época, a da Filadélfia, com ou tras proporções. 57 Na região serran a, on de os cen tros de lan ifícios tam bém se ben eficiaram da con ju n tu ra favorável, m u ltiplicaram -se as fábricas, prin cipalm en te em Seia e em Gou veia.(ver Qu adro ). A estru tu ra in du strial assem elh ava-se à da Covilh ã, coexistin do fábricas com pletas com as in com pletas, em m aior n ú m ero, e u m a rede de trabalh o em dom icílio efetu ado com freqü ên cia pela fam ília do fabrican te. Com o n a Covilh ã, a m ecan ização abran ge os pequ en os produ tores, qu e em algu n s casos se associavam para se ben eficiar da m ecan ização em com u m . Tal com o n a Covilh ã, observase desigu aldade de apetrech am en to en tre a fiação e a tecelagem n esta região: n otável ritm o de m ecan ização n a fiação, in teiram en te m ecan izada, estavam in stalados 18.543 fu sos, 26,5% do total n acion al, ligeiram en te m ais qu e em Lisboa (16.125 fu sos) en qu an to a tecelagem m ecân ica dava os prim eiros passos com m eia dú zia de teares. Os lim ites en ergéticos afetavam esta região de form a em tu do sim ilar à Covilh ã. As deficiên cias da rede de estradas, de qu e a região da Covilh ã sofria, torn avam-se aqu i mais dramáticas, o dorso de mu ar era o ú n ico tran sporte u tilizável em diversos pon tos, e o próprio percu rso pedestre foi imperativo n a visita a u ma das localidades, ain da em 1881. A vitalidade in du strial desta região mon tan h osa distan te, con segu ida apesar destas con dições, con stitu iu u ma descoberta para os in qu iridores, cau sou -lh es su rpresa e admiração.58 231 Miriam Halpern Pereira Em qu atro décadas, a região da Covilh ã, Gou veia e Seia h aviam adqu irido u m peso determin an te n a produ ção n acion al de lan ifícios. Nos distritos de Castelo Bran co e Gu arda trabalh avam em 1881: 46% da mão-de-obra do setor, 58% dos fu sos, 58% dos teares man u ais. Era u ma estru tu ra in du strial cu jo crescimen to assen tara n a pequ en a in dú stria e n a articu lação en tre a fiação mecân ica e a tecelagem man u al. Na segu n da década do sécu lo XX, o modelo de crescimen to covilh an en se parecia ter en trado em crise: desde 1890, o escoamen to da produ ção começara a ter dificu ldade em en fren tar a con corrên cia estran geira n o mercado in tern o, o ú n ico de qu e dispu n h a esta in dú stria.59 Esta região con stitu i u m caso de crescimen to e relativa modern ização do aparelh o produ tivo com base n a pequ en a e média empresa n u ma região in terior sem estrada de ferro. A carên cia en ergética viera en travan do a ren ovação tecn ológica desde os an os 60, e a modern ização dos tran sportes an tes da resolu ção do abastecimen to de en ergia teria efeito desestru tu rador. Qu an do a estrada de ferro ch egou , em 1891, ligan do a Covilh ã a Man gu alde e à capital, parece ter viabilizado mais facilmen te a en trada de tecidos estran geiros do qu e o escoamen to da produ ção local.60 Apesar de a empresa h idroelétrica da Sen h ora do Desterro (serra da Estrela) ter sido a primeira do con tin en te, o desfasamen to en tre a ligação ferroviária e o forn ecimen to de en ergia elétrica foi dramático. Em modelo diverso se organizaram os lanifícios em Lisboa: em 1881, as oito fábricas do distrito representam por si só 30% da mão-de-obra, 23% dos fusos, 24% da tecelagem manual, 51% da tecelagem mecânica e 64% dos cavalos-vapor do setor. A grande empresa, o vapor e a mecanização da tecelagem, apontavam caminho diverso na capital. Constituía escolha minoritária, contrariamente ao que se poderia concluir de análise acrítica baseada no uso da designação de fábrica nos inquéritos sobre a Covilhã e a região serrana, que poderia sugerir elevada ponderação do trabalho fabril no setor dos lanifícios.61 Os lanifícios portugueses conseguiram ocupar um espaço crescente no mercado nacional. Num primeiro tempo, entre a década de 1840 e os anos 80, foram preenchendo as necessidades do consumo dos estratos médios e populares, em nível local e interregional, com maior difusão a norte do Mondego. Diferente seria a franja do mercado atingida pela importação de tecidos estrangeiros. Contudo, a produção nacional foi tentando a sua sorte também a esse nível.62 CON CLUSà O Na passagem para o século XX estava-se bem longe da situação vivida nos anos 1808-1820. Mas a atividade industrial conservava ainda o seu papel complementar em relação à agricultura, como se idealizara em meados do século. "Olhou(o jurado) as fábricas como continuação ou complemento do laboratório dos campos". Concebiam-se a agricultura e a indústria como os dois 232 DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL seios do Estado, parafraseando Oliveira Martins.63 O crescimento de alguns setores da agricultura na segunda metade do século teve um efeito estimulante sobre o setor industrial, e reciprocamente. Nesta conjuntura que se conserva de sentido favorável em termos genéricos até cerca de 1890, deve evocar-se também o papel dos ferroviários no aumento do mercado interno, neste período de construção da rede ferroviária.64 Os dois prin cipais setores da in dú stria portu gu esa, os tecidos de algodão e os lan ifícios desen volveram-se com base em estru tu ras in du striais diferen tes, mas em ambas, a pequ en a e média in dú stria, tiveram u ma fu n ção domin an te pelo men os até 1890. Estes setores dispu seram em gran de escala de mão-deobra, a baixo cu sto, e parte da en ergia h idráu lica de cu sto qu ase n u lo, fatores de competitividade qu e lh es permitiu ir pren ch en do segmen tos con sideráveis do mercado in tern o, n omeadamen te com men or poder de compra, e atin gir porven tu ra progressivamen te estratos mais elevados, qu er diretamen te qu er talvez median te a pen etração n o circu ito de abastecimen to da estamparia lisboeta, dedicada ao acabamen to de tecidos essen cialmen te estran geiros. A desigu al proteção n o in terior do setor algodoeiro teve u m sen tido con servador, n ão en corajou a in ovação tecn ológica n o con ju n to. No caso da Covilh ã, u m dos fatores de retardamen to tecn ológico foi o tardio in vestimen to n a en ergia h idroelétrica: as carên cias en ergéticas torn aram-se particu larmen te graves qu an do a estrada de ferro facilitou a con corrên cia extern a. A forma de crescimen to do setor têxtil n ão viabilizou a pen etração em mercados extern os. Apen as o mercado colon ial viria a permitir aos tecidos de algodão virar-se para a exportação essen cialmen te de tecidos de baixa qu alidade. A ou tras três in dú strias mais recen tes, igu almen te "labou r in ten sive", baseadas em matérias-primas n acion ais, o min ério de cobre, a cortiça e o peixe, estavam destin ada vocação diferen te: seu crescimen to esteve desde o in ício ligado à exportação para o mu n do in du strializado. No caso das du as ú ltimas, trou xeram n ovos mercados para os proprietários de mon tados e para os armadores. Mas a forma de in tegração n o mercado in tern acion al destes três n ovos ramos in du striais determin ou u m con torn o pou co propício tan to ao progresso tecn ológico como a efeitos mu ltiplicadores em ou tros setores in du striais.65 Apesar do crescimen to in du strial de 1840 em dian te, Portu gal perman eceu u m país predomin an temen te agrícola até meados do sécu lo XX. Compren de-se qu e fosse ain da possível ao Estado Novo, até à Segu n da Gu erra Mu n dial, defen der como modelo o equ ilíbrio en tre in teresses agrários e in du striais: este modelo, explicitado freqü en tes vezes, estivera su bjacen te à política econ ômica du ran te gran de parte do sécu lo XIX, embora desigu al n a aplicação. 233 Miriam Halpern Pereira 1 IN D ÚSTRIA A LGOD OEIRA EM 1881 Ramos industiais Fiação Fiação tecelagem Tecelagem Estamparia tinturaria Fábricas/total 7 9 15 13 44 Lisboa 1 2 4(a) 13 20 Porto 5 3 5 Produção/contos 612 968 424 1.381 3.385 Operários 840 2. 832 916 929 5.517 F. vapor/cv 256 1.062 73 1.152 2.543 F. hidraúlica/cv 185 335 53 Cv por unidade 63 155 8,4 82 Oficinas (b) 131 15 147 Lisboa, distrito 1 - 1 Porto, distrito 124 15 142 Operários 1.014 48 1.062 Ind. domicílio (c)9 1 Rendas Total 13 573 23 2 26 Porto 1 20 1 22 Operários 1.600 30.100 2.300 33.000 Obs. qu adro: Fon te: In q. In d.1881,qu adro n .15. Con sideraram -se fábricas todas as u n idades com m ais de 10 operários qu e n ão tivessem m en ção de oficin a ou in dú stria em dom icílio. a) Um a fábrica agrega u m a seção de tin tu raria; b) As ou tras qu atro oficin as situ avam -se em Ton dela, distrito de Viseu . Não se con h ece o n ú m ero de operários de sessen ta oficin as, n em o valor de produ ção de seten ta; c) o in qu érito in dica as localidades em qu e existe em in dú stria em dom icílio, m as n ão o n ú m ero de u n idades, n em sem pre in dica o n ú m ero de trabalh adores. Só se con h ece o n ú m ero de operários em cin co cen tros de produ ção. 234 DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL 2 IN D ÚSTRIA A LGOD OEIRA FA BRIL EM 1881. D IMEN Sà O D A S FÁ BRICA S Operários Fiação Fiação e tecelagem Tecelagem Estamparia 10-49 1 1 8 5 50-100 3 1 4 3 101-200 2 1 3 5 201-300 1 2 - - 301-500 - 3 - - 15 13 +500 1 Total 7 9 3 MECA N IZA Çà O N A TECELA GEM E N A FIA Çà O D E A LGOD à O EM 1881 Distritos Cardas ativas Cardas inativas Fusos ativos Lisboa 74 - 24..320 Porto 135 3 43.509 Fusos inativos 1.214 Teares mecânicos Teares manuais 711 68 633 11.452 Santarém 17.932 254 192 Leiria 7.806 124 14 Braga 600 - 211 Total 94.167 1.720 11.996 235 Miriam Halpern Pereira 4 LA N IFÍCIOS: PRIN CIPA IS CEN TROS EM 1881 Distritos Fábricas* Operários Fusos Teares mecânicos Teares manuais Castelo Branco 73 2.713 22.715 57 802 Guarda 44 1.385 18.543 22 309 Leiria 11 1.000 6.800 40 40 Lisboa 8 2.661 16.125 182 457 Porto 7 567 4.600 34 82 Total ** 160 8.964 70.007 356 1.911 * No quadro-síntese por tipos de unidades industriais constam 151 fábricas e nove oficinas (Inq. Ind. 1881, Resumo, p.86-7). Não sendo explicitado o critério de classificação utilizado, e dado que, como se pode ver pelos quadros anteriores, só nos distritos de Castelo Branco e no da Guarda, o número de oficinas é muito mais elevado, não se considerou esta classificação justificada e manteve-se a classificação do quadro-síntese do setor de lanifícios (ibidem, n.16). ** In clu ídas as fábricas de Aveiro, Bragan ça, Faro, Portalegre, San tarém e Viseu , qu e n ão se explicitam aqu i. 236 DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL N OTA S 1. NEVES, J. A. das. Variedades sobre os objetos relativos às artes, com ércio e m an u fatu ras. In : Obras Completas. v.III, t.I, p.239-70; PEDREIRA, J. Estrutura industrial e comércio colonial: Portu gal e Brasil, 1780-1830. cap.II, p.129, 137; NUNO, M. Mercado e privilégios na indústria portuguesa, 1850-1834, ruralização na Covilhã. p.528-532 (Mim eogr.). DEWERPE, A. L' industrie aux champs. Essai sur la proto-industrialisation en Italie du Nord (1800-1880), 1985; crítica in teressan te ao m odelo da proto-in du strialização do pon to de vista dem ográfico, salien tan do qu e n o caso do n orte de Itália se caracteriza por u m crescim en to m oderado. 2. PEREIRA, M. H. Atitu des políticas e relações econ ôm icas in tern acion ais n a 1ª. m etade do sécu lo dezan ove em Portu gal. In : Das Revoluções liberais ao Estado Novo, 1994 3. RAPHAEL S. Workshop of the world: steam power an d h an d tech n ology in m id - victorian Britain . In : History Workshop Journal. 1977. v.3, p.18. Um estu do clássico, m u ito bem docu m en tado. Con tém u m qu adro m u ito ú til da u tilização da en ergia a vapor por setor in du strial em 1870. Boa sín tese do caso in glês em BERG, M. La era de las manufacturas, e em JOYCE, P. Cambridge Social History of Great Britain. v.I. SABEL, C., ZEITLIN, J. Historical altern atives to m ass produ ction . In : Past in Present, Au gu st 1985. LEQUIN, Y. Les ouvriers de la région lyonnaise (1848-1914); COTTEREAU, A. Th e distin ctiven ess of workin g-class cu ltu res in Fran ce, 1848-1890. In : KATZNELSON, ZOLBERG. Working-class formation. SCRANTON, P. Proprietary Capitalism : th e Textile Man u factu rer at Ph iladelph ia, 1983, in ZEITLIN, J. Les voies m u ltiples de l'in du strialisation . In : Mouvement Social, 1985. p.133. DEWERPE, A. L' industrie aux champs. Essai su r la proto-in du strialisation en Italie du Nord (1800-1880), 1985. 4. Au tores acim a citados, n om eadam en te Sam u el, Joyce e Cottereau , op. cit.; LEQUIN, Y. Le m étier. In : NORIA, P. Lieux de la mémoire, e DEWERPE, A. Le monde du travail en France (18001950). 5. Nem sem pre se pu blicaram os resu ltados in tegrais dos in qu éritos, a docu m en tação do in qu érito à tecelagem do Porto de 1898 n u n ca ch egou a ser editado de form a com pleta, para n ão referir os in qu éritos an teriores a 1860. 6. Abu sava-se das palavras fábrica e fabricante n as repartições de fazen da, com o se observava n o in qu érito, a propósito do An u ario da Direção-Geral das con tribu ições diretas, In q. In d. 1881, II, III, p.57. Acerca da im precisão do con ceito de fábrica n o in ício do sécu lo, ver PEDREIRA, J, op. cit., p.178-182. 7. Relatório da su bcom issão en carregada da visita aos estabelecim en tos in du striais, In qu érito In du strial 1881, II-II, Direto. 8. In qu érito Dir. Visita, II-II, p.35-37 9. Ver n ota 45. Há ain da a con siderar as om issões de fábricas, m as em bora n ão ten h am sido in clu ídas algu m as em presas im portan tes, n o con ju n to essas lacu n as n ão alteram sign ificativam en te a pon deração das fábricas n o con ju n to. 10. In qu érito…, In trodu ção ao Resu m o, p.XXX-V: explica-se esta situ ação e in dica-se qu e esta correção n ão foi efetu ada n os qu adros-sín tese (qu adro sem correção, p.86-7) m as pu blica-se a desagregação das oficin as, o qu e m e perm itiu fazer a correção setor a setor. Feita a correção, o con ju n to das oficin as passa de 907 para 2.515 u n idades. 11. CORDEIRO, J. L. Indústria e energia na bacia do Ave 1845-1959. Braga, 1993 p.107-10. Dissertação (Mestrado, Mim eogr.). 12. Relatório Geral do Ju rado in Exposição da Indústria 1849, Sociedade Prom otora da In dú stria Nacion al, p.6 atribu ído a Oliveira Marreca, m as assin ado con ju n tam en te por José Maria Gran de, Hen riqu e Nu n es Cardoso, Fran zin i, João An drade Corvo. 13. In qu érito de 1830, Ju n ta do Com ércio, em SERRÃO, J. Temas oitocentistas. v.I p.142-5., JUSTINO, D. A formação do espaço econômico nacional. v.I, p.98. 14. In q. In du str, Dir., Parte II, L.II, relatório da Com issão Cen tral do Distrito do Porto, qu adros p. 272-5 e p. 279-80. 237 Miriam Halpern Pereira 15. Esta estim ativa n ão con diz com os dados do In qu érito In du strial de 1890, m u ito in feriores, IV, p. 486-7, 508-509, 615-619; recorde-se qu e se trata de in qu érito in dreto. Já n o Inquérito à Tecelagem do Porto, 1898, p.8-9, aceita-se a estim ativa de 10 m il teares, e eleva-se ain da m ais o cálcu lo do n ú m ero de pessoas correspon den tes, qu atro em m édia por tear, ou seja, u m total de 40 m il. No m esm o período, com pare-se com Lyon , u m cen tro de forte especialização in du strial e com organ ização da produ ção do tipo de fábrica coletiva: existiam 35 m il teares de seda, m ais do dobro qu e n o fim do An tigo Regim e, qu an do eram calcu lados em 14 m il (LEQUIN, Y. Les ouvriers de la région lyonnaise (1848-1914). v.I, p.65-66, GARDEN, M. Lyon et les lyonnais au XVIII.e siècle. p.209), parcela ain da pequ en a da expan são da segu n da m etade do sécu lo XIX, qu e fora particu larm en te im portan te n a região em redor de Lyon , on de o n ú m ero de teares passou de 60 m il a 120 m il en tre 1850 e 1872. 16. In qu érito de 1889, já referido, p.8-9. PERY, G. refere 277 pequ en as fábricas de tecelagem de algodão e três de fiação n o distrito do Porto, em Geografia e estatística geral de Portugal e colónias, 1875, p.147. 17. In qu érito In d. 1881, visita às fabricas do Porto, p.138 a 151. 18. Op. cit., p.43-44 19. Con ceito u tilizado n a época por Leplay, retom ado por Yves Lequ in para a in dú stria oitocen tista da seda em Lyon e Alain Cottereau em term os m ais gen éricos. 20. Ver n .18. 21. Nesta con tagem , in clu íram -se todas as u n idades com dez ou m ais operários, critério qu e pelo m en os tem a van tagem de ser u n iform e. O n ú m ero de fábricas é portan to su perior ao in dicado n os qu adros-sín tese do In q. 1881, qu e é de trin ta. 22. Cerca de m etade dos fu sos ativos fu n cion avam n o Porto, m as o n ú m ero de teares m ecân icos era ligeiram en te su perior em Lisboa, on de os teares m an u ais recen seados eram in sign ifican tes, o qu e já sabem os n ão ser o caso n o Porto. 23. Acerca dos m ercadores de tecidos e a in dú stria da estam paria n o in ício do sécu lo XIX, ver: PEDREIRA, J. Indústria e negócio: a estam paria da região de Lisboa, 1780-880. A.S. p.112-113, 1991; Estrutura industrial e mercado colonial (1780-1830), 1994. Acerca do con flito de in teresses en tre m ercadores e in du striais deste setor n o m esm o período, PEREIRA, M. H. Negociantes, fabricantes e artesãos entre velhas e novas instituições, 1992. 24. PEREIRA, M. H. Portugal e a partilha do mercado mundial nos séculos XIX e XX , 1976, reeditado com aditam en tos em Das Revoluções liberais ao Estado Novo, 1994. cap.IV, p.159-60. 25. Oficin as de algodão e lin h o (tecelagem , tin tu raria, fitas e passam an aria): distritos de Lisboa -1, Porto - 142, Viseu - 4, em Ton dela. No distrito do Porto, 58 oficin as localizavam -se n o con celh o do Porto, 51 n o con celh o de Pen afiel, as restan tes disperavam -se por vários con celh os. Dados extraídos do In q. In d. 1881, Resu m o, qu adro 15, e corrigidos pela leitu ra do in qu érito. 26. Inquérito à tecelagem no Porto, 1889, p.7. 27. Relat. do Ju rado, op. cit., p.12-3, situ ação qu e é atribu ida à in existên cia de ju ro, en qu an to a fábrica paga ju ro pelo crédito, ao qu e se segu e u m a apologia de u m a taxa do ju ro redu zida para a in dú stria. 28. In q. In d. 1881, I, p.82. Aban don ado o fabrico de lon as por esta Com pan h ia, em razão da direitos desfavoráveis, h aviam passado a produ zir brin s, passadeiras de ju ta, pan o de lin h o e toalh as adasm acadas. Neste dom ín io a con corrên cia estran geira n ão en trava. Mas en con travam a con corrên cia portu en se. 29. Relatório da su bcom issão do distrito do Porto, In q. In d. 1881. Dir, II, p.151-2 30. Inquérito à tecelagem do Porto, 1889, p. 8-9. 31. GIRALDES, M. M. N. Mon ografia sobre a in dú stria de lin h o n o distrito de Braga, 1913. p.106 e 102. In : CORDEIRO, J. L. Indústria e energia no vale do Ave 1845-1959. Braga, 1993. p.87-8 (Mim eogr.). 238 DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL 32. Cálcu los feitos por m im com base n as estatísticas do com ércio extern o. Acerca de toda esta com plexa situ ação pau tal, e a in existên cia de su ficen te diferen ciação de direitos, ver a excelen te m em ória sobre a in dú stria do algodão oferecida à com issão cen tral do In qu érito de 1881, pelo proprietário da fábrica de algodão torcido e tin to H. P. Taveira, Porto, In q. In d. 1881, v.I, p.110 e ss., e o depoim en to do diretor da Com pan h ia de Torres Novas, p.86-89. Ver tb. PEREIRA, M. H. Portu gal e a partilh a do m ercado m u n dial. In : Das Revoluções liberais … p.159-160. 33. Filom en a Môn ica m ostra bem os efeitos do "boom " african o e seu s lim ites m edian te a an álise da evolu ção da Real Fábrica de Tom ar, Os tecelões de algodão. In : Artesãos e operários, p.163-4. 34. Estatísticas do com ércio extern o, dados organ izados por m im ; referem -se aqu i valores, n ão qu an tidades. 35. SIMÕES, O. Escorço dalgu n s aspectos da in dú stria fabril portu gu esa. In : BTI, n .83, p.20 ss. Neste en saio Oliveira Sim ões forn ece dados acerca da situ ação com parativa da produ tividade e igu alm en te da alim en tação, salários, con dições de vida do operário e form ação técn ica em Portu gal e n ou tros países eu ropeu s, fatores qu e n o seu con ju n to explicariam a baixa produ tividade. Dados acerca da produ tividade com parada n a in dú stria portu gu esa e eu ropéia on de são relacion ados u n icam en te com a edu cação e a form ação técn ica em REIS, J. A in du strialização n u m país de desen volvim en to len to e tardio. In : O atraso econômico português: 1850-1930. Acerca da evolu ção do con su m o alim en tar, ver, PEREIRA, M. H. Níveis de con su m o e n íveis de vida em Portu gal (1874-1922). In : Das Revoluções liberais ao Estado Novo,1994 36. Dados do In qu érito In du strial de 1917 em MEDEIROS, F. A sociedade e a economia portuguesa nas origens do salazarismo, 1978. p.75-77. In felizm en te n ão foi efetu ada u m a an álise por ram os in du striais e por zon as, qu e perm ita com parar m ais aprofu n dadam en te com a in form ação de 1881 tratada acim a. 37. PERDIGÃO, J. A. A in dú stria em Portu gal. In : Arquivos da Universidade de Lisboa, 1916. v.III, p.115. 38. Cálcu los efetu ados por m im com base n as estatísticas de Mitch ell, 1978. 39. Relatório da com issão en carregada de con h ecer o estado da in dú stria agrícola, com ercial e fabril do con celh o da Covilh ã, 6 de dezem bro de 1839, idem con celh o de Ceia, 18 de Março de 1840 in Correspondência do M. Reino com a Câmara dos Pares, secção VI., Cx. 2, A.H.P. 40. SILVEIRA, F. da As fábricas da Covilhã, 1863. p.10 e 35. Acrescen taria qu e u m a fábrica, de Marqu es de Paiva tin h a seis pisões cilín dricos m ovidos a vapor. Con su lte-se tam bém PEREIRA, J. M. E. A Covilh ã e a in dú stria dos lan ifícios. Ocidente, n .699, 1897, reeditado em A indústria portuguesa, 1979; baseia-se fu n dam en talm en te em Fradesso da Silveira, m as con têm algu n s dados ú teis para a situ ação posterior. 41. In q. In d. 1881. III,p.205 42. Acerca dos recursos energéticos: em 1860, SILVEIRA, F., op. cit., p.101-2, 107, 1881,. Nos meses de verão, os meses da "vela", chegava-se a fazer 6 horas de trabalho noturno. Calculara-se em 1881 que mesmo a estrada de ferro não faria baixar o preço do carvão o suficiente, e assim aconteceu: ainda em 1933 o preço da tonelada de carvão na Covilhã era o quadruplo do custo em Inglaterra (GALVÃO, J. A. L. In: Iº CONGRESSO INDÚSTRIA PORTUGUESA, 1933. In: CORDEIRO, J. L. op. cit., p.54). Mais flagrante no caso da Covilhã, em razão do preço do carvão, os limites dos recursos hidraúlicos afetavam também alguns centros algodoeiros, como a bacia do Ave, ver CORDEIRO, J. L., op. cit., p.89 e a propósito de cada fábrica. Quiçá também tenha sido um dos limites da mecanização da tecelagem nesta região. 43. Nº de h abitan tes da cidade da Covilh ã: 1864 1878 1890 9.022 10.809 17.562 A população da Covilhã (quatro freguesias) aumentou 62,47% entre 1878 e 1890, enquanto Lisboa nesse período apenas aumenta 28,4% . Para a população industrial, recenseamentos de 1890 e 1911: concelho da Covilhã (maior que a cidade, para a qual não existe esta informação) 43% e 39% . 239 Miriam Halpern Pereira 44. Para torn ar com parável a con tagem de fábricas aqu i e n o resto do país, n ão m e pareceu correto con tar só as fábricas com pletas. No algodão tam bém existiam fábricas in com pletas, só de estam paria, de tecelagem ou de fiação. O m otivo porqu e n ão se lh es daria essa design ação pren de-se ao fato de elas n ão con stitu írem u m elo de u m a cadeia produ tiva com o aqu i. Pareceu -m e preferível m an ter a design ação de origem , qu e correspon de a u m a diferen ça de estru tu ra. 45. In qu érito de 1839/ 1840, op.cit. 46. MADUREIRA, N. Mercado e privilégios na indústria portuguesa, capítu lo sobre a Covilh ã, p.498. 47. No total de operários estão in clu ídos os m estres e os escritu rários, qu e, on de existem , raram en te passam da u n idade. 48. A oficin a de Sebastião Rato de pisoam en to, tesou ra e tin te em 1863, com três operários, tem em 1881 tam bém teares, fiação e oiten ta operários. A fábrica de José Men des Veiga, an tigo m ercador, u m a das m ais an tigas, data de 1784 passa de 92 a qu atrocen tos operários. (MADUREIRA, N. op. cit., p.484; SILVEIRA, F. In dagações…, p.112-3, n .30 ; In q. In d. 1881, p.186, n .6 e 8). Ou tras ligações parecem possíveis, m as seria n ecessário ter elem en tos com plem en tares; advin h am -se bastan tes m u dan ças de n om e, resu ltan tes de prováveis agregações de firm as an teriores. 49. SILVEIRA, F., op. cit., qu adro à p.117. 50. Ibidem , m apas 112 e ss. 51. Das restan tes oficin as, dez são tin tu rarias, u m a de apisoar, seis são de tecer. 52. 1881: Total das m u lh eres n a in dú stria: 39,4% ,(ligeiram en te m en os qu e em 1863, 41% ). Nas prin cipais on ze em presas em 1881: 41,5% . O trabalh o fem in in o n a gran de in dú stria tin h a tradição an tiga, fora u m exclu sivo da Real Fábrica. (MADUREIRA, N., op. cit., p.501). Men ores: em 1863, m ascu lin os 315, fem in in os 26; em 1890, m ascu lin os 1.202, fem in in os 272. Ver, tam bém , qu adro 1. Com o já acon tecia an teriorm en te n esta região, a u tlização de m en ores afetava sobretu do a popu lação m ascu lin a, ver MADUREIRA, N., op. cit., p.498. 53. Ibidem , p.88-92. A afirm ação de David Ju stin o de qu e a pequ en a produ ção tin h a pou ca im portân cia sobretu do por se dedicar a fases parcelares da produ ção, m ostra a su a in com pren são peran te a organ ização específica da Covilh ã. (v.I, p.102) . 54. A form a com o o forn ecim en to da prin cipal m atéria-prim a, a lã, estava organ izada era ou tro dos problem as graves da in dú stria da Covilh ã e da região serran a. A in existên cia de forn ecim en to regu lar obrigava a com pras an u ais n as gran des feiras, o qu e im plicava ou u m gran de em pate de capital ou o recu rso ao crédito com ju ro elevado. SILVEIRA, F., op. cit., p.48; In q. In d. 1881, III. Visita ao distrito da Gu arda, p.84-151. O abastecim en to de lã era efetu ado n os prin cipais pon tos de produ ção relativam en te próxim os, o Alen tejo, Beiras, Espan h a, m as para os tecidos su periores era in dispen sável com prar lã proven ien te da Alem an h a, Au strália e da Am érica. Silveira, F., op. cit., p.92. 55. Ibidem , p.90-2. 56. Resposta dos fabrican tes da Covilh ã aos qu esitos propostos pela com issão das Pau tas em 1858. Jorn al da Associação In du strial Portu en se, n .8, p.59, 24 m arço de 1860. 57. SCRANTON, P. Proprietary capitalism : th e textile m an u factu rer at Ph iladelph ia, 1983. In : ZEITLIN, J. Les voies m u ltiples de l'in du strialisation . In : Mouvement Social, 1985, p.133. 58. Con clu são do relatório de dois delegados da Com issão Cen tral de In qu érito qu e visitaram a região, 1881, In q. In d. v.III, p.172-3 e o con ju n to do relatório p.88 ss., dos m ais com pletos de todo in qu érito.Ver tam bém SILVEIRA, F., op. cit. 59. PERDIGÃO, J. A. A in dú stria em Portu gal. In : Arquivos da Universidade de Lisboa, 1916, v.III, p.117 ss. POINSARD, L. Le Portugal inconnu , 1910. p.209, con sidera a região decaden te; porven tu ra u m a visão exagerada. 60. O prin cipal m ercado n a distribu ição dos tecidos da Covilh ã, pelo m en os n os an os 60, era Man gu alde, on de os prin cipais fabrican tes da Covilh ã tin h am arm azén s e ali ven diam por grosso aos com ercian tes do Norte, n a feira do 1º dom in go do m ês. SILVEIRA, F., op. cit., p.92. 240 DIVERSIDADE E CRESCIMENTO INDUSTRIAL 61. Ver Qu adro 3: n o total das 160 fábricas, 117 situ am -se n os distritos de Castelo Bran co e da Gu arda e a m aioria eram pequ en as e m édias u n idades in du striais. 62. Dados organ izados por m im , com base n as estatísticas do com ércio extern o. 63. Relatório do Ju rado, 1850, p.29, con cepção qu e se espraia n as p.26-30. MARTINS, O. Fomento rural e emigração, p.197. 64. Teriam ch egado a 22 m il os trabalh adores n a con stru cção das lin h as do Norte e do Leste en tre 1861 e 1864, dim in u in do posteriorm en te, PINHEIRO, M. Chemins de fer, structure financiére de l' Etat et dépendance extérieure. Tese (Dou torado), p.224-5, (Mim eogr.). Acerca do papel da agricu ltu ra n a segu n da m etade do sécu lo XIX, ver o m eu livro Livre câmbio e desenvolvimento econômico: Portu gal n a segu n da m etade do sécu lo XIX 2.ed. 1971, 1983. 65. Acerca da in dú stria corticeira e con serveira e as su as relações com o m ercado in tern acion al, ver MIRANDA, S. O círculo vicioso da dependência (1890-1939),1991. Um a versão diferen te em REIS, J. A in du strialização n u m país de desen volvim en to len to e tardio: Portu gal,18701913. In : O atraso econômico português 1850-1930. 241 capítu lo 13 CA USA S HISTÓRICA S D O ATRA SO ECON ÔMICO PORTUGUÊS Jaim e Reis* O atraso econ ôm ico portu gu ês n o lon go prazo, em bora u m tem a cen tral n a atu alidade, apen as com eçou a gan h ar esse foro n a h istoriografia portu gu esa a partir de fin s da década de 1960. Para este arran qu e con tribu íram prin cipalm en te três fatores. O prim eiro e o m ais im portan te foi o com eço, por essa altu ra, de u m a ren ovação n o estu do da História Econ ôm ica em Portu gal, qu e, se pau tou , além de ou tros aspectos, pela colocação de qu estões con sideradas relevan tes para a com preen são da sociedade portu gu esa con tem porân ea. Neste con texto, as origen s h istóricas da situ ação atu al da econ om ia n acion al em com paração com ou tras sem elh an tes ou m ais avan çadas n ão podia deixar de con cen trar as aten ções. Um segu n do fator foi o progresso, en tre vários ou tros realizados em Portu gal n o con h ecim en to h istórico, ocorrido n o dom ín io da qu an tificação, sobretu do m acroecon ôm ica, e qu e, graças à con stru ção, pela prim eira vez, de séries de preços, salários, com ércio extern o, m oeda e m esm o do produ to n acion al, veio torn ar possível u m estu do sério deste tem a. Em terceiro lu gar, realce-se a explosão do in teresse em n ível m u n dial pela qu estão do crescim en to econ ôm ico n o lon go prazo, u m tem a qu e, du ran te as ú ltim as décadas, tem ocu pado n ão só h istoriadores e econ om istas m as as ciên cias sociais em geral. Se bem qu e n ovo por esta óptica, o problem a está lon ge de o ser n o debate pú blico em Portu gal. Pelo m en os desde o sécu lo XVI qu e, du m a form a ou de ou tra, pu blicistas, dou trin adores econ ôm icos, con selh eiros e m in istros da coroa ou do govern o, periodistas e parlam en tares se têm in terrogado sobre a decadên cia da Nação, a debilidade dos seu s recu rsos m ateriais, a escassez e pobreza da su a popu lação, a su a fraca capacidade produ tiva, a fragilidade de m eios para en fren tar as am eaças extern as. Com o sécu los XIX e XX, porém , tais dú vidas parecem ter-se torn ado m ais prem en tes e m ais persisten tes, ao m esm o tem po qu e form u ladas com m aior clareza an alítica e cada vez m ais focadas sobre o atraso in du strial do país. A isto n ão terá sido alh eia a percepção crescen te e, com o verem os, n ão in fu n dada, de qu e Portu gal estava efetivam en te fican do m ais e m ais para trás à m edida qu e n a Eu ropa, n a Am érica e m esm o n o resto 243 Jaime Reis do m u n do, a civilização in du strial avan çava a passos largos, geran do cada vez m ais riqu eza e m eios de a reprodu zir. O estu do atu al desta qu estão n u m a perspectiva de lon go prazo é an tes de m ais u m exercício em h istória com parada. Dado qu e o con ceito de atraso econ ôm ico é de su a n atu reza relativo, a su a aplicação apen as fará sen tido através do con fron to do caso em apreço com a experiên cia de ou tros países, su bsistin do apen as a dú vida sobre qu ais as econ om ias qu e deverão ser tom adas com o term o de aferição. Em segu n do lu gar, este estu do tem com o requ isito prim acial u m esforço sign ificativo de qu an tificação retrospectiva da atividade econ ôm ica n acion al. Sem isto torn a-se im possível traçar, com rigor, os in dispen sáveis paralelos e con trastes en tre os países em con fron to, qu e façam sobressair as diferen ças n o desem pen h o das respectivas econ om ias. Nesta caracterização, são sobretu do cen trais con ceitos com o o n ível de ren dim en to per capita e a taxa an u al de crescim en to do produ to n acion al. Por ú ltim o, salien te-se qu e a an álise do atraso econ ôm ico se tem circu n scrito, n a gen eralidade, ao âm bito cron ológico da Época Con tem porân ea. De fato, foi só du ran te os sécu los XIX e XX qu e o crescim en to teve u m caráter ú n ico n a História, tan to pela su a in ten sidade com o pela su a n atu reza su sten tada e pelo seu im pacto n as estru tu ras socioecon ôm icas, perm itin do, deste m odo e a despeito de fortes pressões dem ográficas, atin gir n íveis de bem estar e de con su m o in dividu ais in im agin áveis n ou tros tem pos. Mas a rapidez do progresso e da difu são da tecn ologia, a crescen te circu lação in tern acion al do capital e do trabalh o e a expan são das trocas com erciais, qu e estiveram n a raiz deste processo, n ão afetaram a econ om ia m u n dial de u m a form a h om ogên ea. Daqu i terem n ascido divergên cias de com portam en to cu jo efeito cu m u lativo, ao fim de decên ios, viria a redu n dar em con trastes m ais ou m en os acen tu ados en tre n ações com relação à respectiva prosperidade e din am ism o econ ôm ico. No con texto geográfico das econ om ias ociden tais a qu e perten ce, Portu gal tem ocu pado persisten tem en te u m lu gar de traseira ao lon go dos ú ltim os 150 an os. Seja a com paração feita com a In glaterra da Revolu ção In du strial, ou com os EUA, a econ om ia líder m u n dial do sécu lo XX, ou ain da com u m con ju n to m ais ou m en os alargado de “econ om ias desen volvidas”, a resposta é sem pre a m esm a. Na prim eira m etade dos oitocen tos, o país era dos m ais pobres da Eu ropa, com u m ren dim en to per capita provavelm en te 40% ou m en os do in glês e en tre 50% e 60% do n ível atin gido en tão por econ om ias periféricas do Norte da Eu ropa com o a Din am arca ou a Su écia.1 A partir daqu i e até à Prim eira Gu erra Mu n dial, a econ om ia portu gu esa cresceria de form a su sten tada, m as a u m ritm o qu e ficou bastan te aqu ém da expan são in tern acion al qu e en tretan to ocorria e o fosso, qu e já existia, foi-se cavan do cada vez m ais fu n do. Os portu gu eses aca- 244 CAUSAS HISTÓRICAS DO ATRASO ECONÔMICO PORTUGUÊS bariam por ficar certam en te m ais ricos – ao lon go destas décadas, o acréscim o n o seu ren dim en to real cifrou -se en tre os 40% e os 65% – m as, com o se figu ra, a su a posição relativa tin h a decaído acen tu adam en te. Em 1913, o produ to n acion al per capita era cerca de 30% da m édia de u m con ju n to de 19 países qu e à época se poderiam con siderar avan çados.2 Com os an os 20 deste sécu lo in iciava-se u m a in versão n esta ten dên cia e despon tava u m a n ova era. Não só m an tin h a-se o crescim en to Logaritm o natural do PNB pe r capita e m Portugal com o pe rce ntage m do logaritm o natural PNB pe r capita e m paíse s de se nvolvidos (1850-1992) 70 65 Pe rce ntage m 60 55 50 45 40 35 30 1990 1986 1982 1978 1974 1970 1966 1962 1958 1954 1950 1946 1942 1938 1934 1930 1926 1922 1918 1914 1910 1906 1902 1898 1894 1890 1886 1882 1878 1874 1870 1866 1862 1858 1850 1854 25 su sten tado da econ om ia, com o, graças a taxas agora relativam en te m ais elevadas, cessava o seu declín io relativo e, a partir da década de 1930, o país en trava n o ram o ascen den te da cu rva em U, n a figu ra, qu e tradu z a progressiva recu peração em relação às econ om ias qu e n os servem de term o de com paração.3 En tre 1930 e 1939, o produ to n acion al per capita em Portu gal su bia para 35% da m édia acim a referida; n a década de 1950, elevava-se para 37% ; e n os prin cípios dos an os 70, n a seqü ên cia dos “An os de Ou ro” do pós-gu erra e an tes do prim eiro ch oqu e petrolífero, atin gia os 54% .4 Con trariam en te à perspectiva tradicion al sobre este período e qu e ain da en con tra aderen tes, o Estado Novo, lon ge de ter sido u m tem po de estagn ação, foi u m a das épocas m ais din âm icas, em term os econ ôm icos, da h istória portu gu esa.5 Peran te com portam en tos de lon go prazo tão con trastan tes, n ão su rpreen de qu e tam bém a h istoriografia os ten h a procu rado separar n a su a bu sca de explicação para os ritm os da econ om ia portu gu esa n o con fron to com as dem ais. No caso do atraso cada vez m ais acen tu ado do sécu lo XIX, a ên fase tem sido posta n as barreiras, in tern as e extern as, qu e im pediram qu e os fatores in tern acion ais estim u ladores do crescim en to tivessem tido u m im pacto sem elh an te ao registrado n ou tras econ om ias sim ilarm en te atrasadas e qu e com eçavam tam bém en tão a crescer em bora 245 Jaime Reis de form a m ais din âm ica. Para o segu n do período, do sécu lo XX, a qu estão qu e se coloca é algo diferen te. Con siste em saber com o e até qu e pon to aqu elas barreiras terão caído e qu e im pu lsos an tigos ou n ovos terão en tretan to proporcion ado a n otável elevação n o ritm o de expan são verificado desta vez. Para u m a prim eira geração de estu diosos, n os in ícios dos an os 70, o acen to deveria ser posto em três aspectos do problem a. Um a revolu ção liberal in com pleta, du ran te as prim eiras décadas do sécu lo XIX, e u m desen volvim en to in com pleto do capitalism o, su bseqü en tem en te, terão tido com o con seqü ên cias u m a estru tu ra agrária, assen tada n u m du alism o m in ifú n dio/ latifú n dio, qu e n ão en corajava n em a eficiên cia produ tiva, n em u m a repartição de ren dim en tos m ais equ ilibrada. Por ou tro lado, circu n stân cias políticas im pu n h am ao país, a partir de 1840, u m livre-cam bism o qu e expu n h a a su a in cipien te in dú stria a u m a feroz con corrên cia extern a e o em pu rrava em sim u ltân eo para u m a especialização agrícola e de exportação de produ tos prim ários, sobretu do para a In glaterra. Em tais con dições, faltou ao setor m an u fatu reiro o im pu lso com pen satório de u m a procu ra in tern a forte qu e o fizesse crescer e, m odern isan do-se, lh e possibilitasse com petir in tern acion alm en te, pelo qu e o seu con tribu to para o crescim en to n ão cu m priu aqu ilo qu e seria de esperar dele. À agricu ltu ra estava destin ada, a prazo, a estagn ação, dada a con corrên cia cada vez m ais in ten sa n o m ercado extern o e a in abilidade estru tu ral, em n ível socioecon ôm ico e técn ico, para su perar a su a produ tividade proverbialm en te baixa.6 As dificu ldades su scitadas por esta depen dên cia extern a con ju gavam -se com u m a h eran ça sociocu ltu ral provin da do An tigo Regim e e de qu e resu ltava, por u m lado, u m a sociedade fech ada aos valores em presariais m odern os e ao espírito racion al e cien tífico e, por ou tro, a falta de u m a ordem política bu rgu esa forte e qu e abraçasse o progresso econ ôm ico acelerado.7 O debate acerca das cau sas do atraso econ ôm ico portu gu ês n o sécu lo XIX con h eceu u m n ovo im pu lso a partir da década de 1980, m ercê de u m a série de trabalh os qu e vieram levan tar dú vidas em relação às in terpretações vigen tes e propor n ovas solu ções. Um a destas objeções cen trava-se sobre a tese da depen dên cia extern a. Nu m a com paração in tern acion al, Portu gal afin al n ão só estava lon ge de ser livre-cam bista – an tes, tin h a u m a das proteções alfan degárias m ais altas da Eu ropa – com o tin h a u m a das depen dên cias extern as m ais fracas. En tre as econ om ias pequ en as e m ais atrasadas da época, a razão das su as exportações para o produ to n acion al bru to, qu e n os serve para m edir esta dim en são, era dos m ais baixos.8 Ao m esm o tem po argu m en tava-se qu e, pelo m en os n a su a dim en são latifu n diária, a estru tu ra agrária n ão seria respon sável pelo atraso técn ico do setor prim ário, an tes revelava u m a capacidade de adap- 246 CAUSAS HISTÓRICAS DO ATRASO ECONÔMICO PORTUGUÊS tação à in ovação e às con dições de m ercado perfeitam en te com parável com a de ou tras econ om ias con tem porân eas, em algu m as das qu ais, aliás, o progresso da agricu ltu ra estava lon ge de se revelar in com patível com a gran de propriedade rú stica.9 Por ú ltim o, qu estion ava-se se o m en or em pen h o da bu rgu esia portu gu esa n o processo de m odern ização resu ltaria da persistên cia da “força e [da] rigidez da dom in ação aristocrático-religiosa da sociedade de An tigo Regim e”; ou se n ão seria an tes fru to da escassez de oportu n idades de in vestim en to ren tável em setores avan çados qu e só u m a econ om ia m ais rica e din âm ica podia proporcion ar.10 A rein terpretação qu e se propu n h a assen tava em vários pon tos. Prim eiro qu e tu do, h avia qu e especificar com clareza qu al o term o de com paração para a econ om ia portu gu esa oitocen tista. Em vez da In glaterra, da Fran ça ou da Alem an h a, dem asiado desen volvidas para o efeito, defen diase com o m ais apropriado o recu rso a econ om ias sem elh an tes do pon to de vista da dim en são, do grau de desen volvim en to in icial e da depen dên cia extern a. A Escan din ávia parecia forn ecer u m padrão adequ ado n a m edida em qu e era com posta por econ om ias pequ en as e pobres à partida, de base agrária e tam bém elas com u m a acen tu ada depen dên cia em relação à In glaterra. No en tan to, tin h a con segu ido taxas de crescim en to a lon go prazo n otáveis ao lon go de toda a segu n da m etade do sécu lo XIX, su gerin do qu e o papel das exportações, m esm o de produ tos prim ários, podia ser u m fator im portan te n a din am ização de qu alqu er econ om ia periférica e logo da portu gu esa. Don de u m segu n do pon to posto à con sideração era o de saber se em vez de depen dên cia extern a excessiva, o problem a n ão teria an tes sido o da su a falta. Um exem plo con trafactu al para testar esta asserção su geria qu e o resu ltado de u m a h ipotética in du strialização pela su bstitu ição de im portações, resu ltan te de u m proibicion ism o extrem o, dificilm en te atin giria o de u m a plau sível expan são das exportações tradicion ais do país, pelo qu e a terceira qu estão torn ou -se a de saber por qu e m otivos Portu gal exportou tão pou co en tre 1850 e 1913.11 Um destes m otivos era a su a fraca dotação de recu rsos n atu rais. Por u m lado, faltavam a Portu gal os recu rsos m in erais e florestais qu e perm itissem su sten tar qu er u m a in dú stria qu er u m a exportação vigorosa n estas áreas, com o su cedeu n a Su écia. Aliás, os dois setores exportadores de m aior su cesso n o período – as con servas de peixe e a cortiça – defron tavam lim itações deste cariz qu e os im pediam de ser “m otores do desen volvim en to” n acion al. Por ou tro lado, o solo e o clim a eram tu do m en os favoráveis à in trodu ção n o setor agrícola de algu m as das in ovações técn icas m ais sign ificativas destes an os, qu e possibilitaram n o Norte da Eu ropa elevados gan h os de produ tividade e u m a forte expan são produ tiva e das su as exportações. Pelo con trário, em Portu gal a especialização agrícola possível era em cereais, vin h o e azeite, produ tos qu e n estes an os en - 247 Jaime Reis fren taram u m a procu ra in tern acion al fraca e crescen tes dificu ldades com petitivas n os m ercados extern os. O problem a estava em qu e n em o país tin h a van tagen s com parativas n a produ ção de carn e, laticín ios e ovos, qu e eram os gên eros agrícolas tem perados com ercialm en te m ais van tajosos n esta época, n em a su a agricu ltu ra era capaz de levar a cabo os m elh oram en tos precisos para lh e gran gear u m estatu to verdadeiram en te com petitivo. Con vém acrescen tar qu e a terra n ão só era m á com o era pou ca relativam en te ao n ú m ero dos qu e a cu ltivavam . Em 1900, h avia 3 h ectares de terra por ativo, en qu an to n a Fran ça e n a In glaterra h avia 5,4 e 10 h ectares respectivam en te. À escassez de recu rsos n atu rais som ava-se u m a n ão m en os m arcada deficiên cia de recu rsos h u m an os. Du ran te a segu n da m etade do sécu lo XIX, Portu gal foi u m dos países eu ropeu s m en os dotados n este aspecto, em virtu de de u m an alfabetism o em prin cípio esm agador, qu e atin gia qu atro qu in tos da popu lação e logo a vasta m aioria da força de trabalh o por volta de 1850; e de u m a taxa de escolarização baixa dem ais para ven cer esta con dição de atraso social. Em 1911, os iletrados con stitu íam ain da 75% dos portu gu eses en qu an to n a Itália esta proporção era de 46% e n a Espan h a de 53% , sin al de qu e o problem a, n a su a verten te portu gu esa, n ão era sim plesm en te explicável por fatores cu ltu rais ou religiosos.12 Em bora lon ge de ser m atéria pacífica, a relação en tre n ível cu ltu ral e edu cativo e produ tividade parece su ficien tem en te explícita, m esm o n o qu e toca ao sécu lo passado, para n ão cau sar estran h eza qu e as m ais altas taxas de crescim en to econ ôm ico n a Eu ropa se ten h am verificado, du ran te o período em con sideração, em países, com o a Din am arca e a Su écia, com u m a elevada form ação e dotação de capital h u m an o. Nesta lin h a de raciocín io e em bora carecen do ain da de u m a am pla in vestigação, as in dicações atu alm en te dispon íveis sobre Portu gal apon tam para qu e, qu er n a in dú stria qu er n a agricu ltu ra, este terá sido u m fator sign ificativo para explicar o fraco desem pen h o de am bos os setores, u m a circu n stân cia qu e, aliás, n ão passava despercebida dos em presários con tem porân eos, com o fator de atraso tecn ológico e de baixa ren tabilidade do trabalh o in du strial. A fraca qu alificação da m ão de obra a todos os n íveis do aparelh o produ tivo n ão era, n o en tan to, a ú n ica razão para qu e a produ tividade da in dú stria portu gu esa fosse geralm en te m etade ou m en os daqu ilo qu e se registrava n os países m ais avan çados. Argu m en tava-se qu e con tribu ía igu alm en te para este resu ltado a redu zida dim en são do m ercado qu e esta servia e qu e im pedia a m u itos setores de poderem gozar das econ om ias de escala qu e a tecn ologia m odern a possibilitava e a algu n s, m orm en te n a in dú stria pesada, vedava m esm o a su a im plan tação. O problem a radicava-se n u m a popu lação excessivam en te pequ en a e com u m ren dim en to pessoal de tal form a baixo qu e a procu ra agregada de ben s m an u fatu ra- 248 CAUSAS HISTÓRICAS DO ATRASO ECONÔMICO PORTUGUÊS dos n ão ch egava para su sten tar, por exem plo, a in stalação de sequ er u m con versor Bessem er para a produ ção de aço. A solu ção para con torn ar esta dificu ldade era am pliar o m ercado pela exportação, m as a baixa produ tividade com parada da in dú stria portu gu esa exclu ía eviden tem en te esta possibilidade. Por ou tro lado, a elevada proteção alfan degária de qu e ela gozava retirava-lh e o in cen tivo para m elh orar as con dições de produ ção sob o im pu lso da con corrên cia extern a, e obrigava-a a procu rar refú gio n o m ercado dom éstico som en te. Estava assim in stalado u m círcu lo vicioso de qu e parecia difícil sair, u m a vez qu e n ão era possível abater estas barreiras tarifárias sem grave lesão para o tecido in du strial existen te n o país e os in teresses a ele ligados. Man ten do-as porém o progresso tecn ológico era in adequ ado para u m crescim en to econ ôm ico m ais veloz. A década de 1990 n ão alterou fu n dam en talm en te os term os deste debate, m as acrescen tou -lh e n ovas dim en sões e perm itiu levá-lo m ais lon ge n ou tras. Um a destas ú ltim as é a qu estão da deficiên cia da fu n ção em presarial a qu e Helder Fon seca deu u m a n ova profu n didade, estu dan do as “atitu des econ ôm icas” dos gran des lavradores e proprietários do Alen tejo du ran te a segu n da m etade do sécu lo passado, u m gru po tradicion alm en te tido por refratário à m u dan ça técn ica e à m axim ização do lu cro. Segu n do este au tor, pelo con trário, a região caracterizou -se por u m a gran de adaptabilidade à evolu ção das con dições de m ercado. As in ovações foram adaptadas por estes “em presários agrícolas” com a celeridade e a exten são qu e as circu n stân cias econ ôm icas ditavam e as form as de in vestim en to e de organ ização da produ ção den otaram u m a flexibilidade m u ito distan te do “paradigm a da crôn ica falta de in iciativa e din am ism o”.13 Em bora n ão focan do diretam en te a qu estão da terra n a óptica qu e aqu i n os ocu pa, a qu an tificação cu idadosa dos valores e qu an tidades en volvidos n a ven da dos Ben s Nacion ais, n os an os após a Gu erra Civil (1835-1843), veio de n ovo pôr à con sideração o argu m en to, tam bém tradicion al, segu n do o qu al esse processo teria fru strado a oportu n idade de u m a reform a econ ôm ica ú n ica e com im portan tes con seqü ên cias para o desen volvim en to do país. É verdade, sem dú vida, com o se tem afirm ado, qu e esta ven da em n ada con tribu iu para alterar, com o poderia h ipoteticam en te ter feito, a estru tu ra agrária latifu n diária/ m in ifu n diária e assim poder-se-á dizer qu e esta reform a n ão aju dou a erradicar certas características peren es do m u n do ru ral portu gu ês. Mas os dados agora dispon íveis tam bém perm item con clu ir qu e o valor e a exten são das terras em qu estão n ão eram de ordem tal qu e, m esm o se tivessem sido estru tu radas em propriedades m édia, com u m a u tilização presu m ivelm en te m ais eficaz, o im pacto sobre o produ to n acion al pu desse ter sido m ais do qu e exígu o. Nu m a altu ra em qu e este ú ltim o seria de cerca de 200 m il con tos, os Ben s Nacion ais ren deram , em h asta pú blica, cerca de 8.500 con tos 249 Jaime Reis e o produto do seu cultivo não deveria portanto exceder os 4 mil contos por an o, u m qu an titativo qu e ain da qu e du plicado, h ipoteticam en te, pou co afetaria o estado econ ôm ico da n ação n o lon go prazo. 14 Tam bém o Estado, u m com pon en te cen tral n as in terpretações m ais recu adas qu e assen tavam n a tese da depen dên cia extern a, ressu rge n esta n ova vaga revision ista, em bora com ou tras vestes. Segu n do u m a das perspectivas abertas n a presen te década, on de o seu papel se revelou pou co propiciador do crescim en to, n ão foi n a su a in capacidade para proteger a in dú stria su ficien tem en te da con corrên cia estran geira, qu e, com o vim os, terá sido afin al u m falso problem a. An tes o qu e faltou foi a prom oção, através de tratados com erciais adequ ados, das exportações dos produ tos prim ários ou sem im an u fatu rados em qu e h avia algu m a van tagem com petitiva, m as qu e em certas in stân cias se viram em dificu ldades com erciais em con seqü ên cia de discrim in ações sofridas em m ercados qu e eram im portan tes para a su a expan são.15 Ain da n este cam po, u m segu n do aspecto in ovador deriva do estatu to do Estado com o prin cipal e m aior agen te econ ôm ico do país. Com u m a despesa pú blica de cerca de 14% do produ to n acion al e u m papel prim acial n o m ercado de capitais, de on de dren ava im portan tes recu rsos fin an ceiros, qu e de ou tro m odo poderiam ter sido orien tados para aplicações produ tivas, o seu im pacto era n ecessariam en te su bstan cial e o poten cial para retardar o crescim en to sign ificativo. No qu e toca à prim eira destas dim en sões, é agora possível argu m en tar, com base em estu do de Eu gên ia Mata, qu e u m a gran de parte dos recu rsos assim absorvidos foram realm en te “esterilizados” e logo perdidos para o crescim en to da econ om ia, n a m edida em qu e, em m édia, apen as 10% da despesa pú blica foi can alizada du ran te as décadas em apreço para objetivos “econ ôm icos” e m u ito do restan te u tilizado para su sten tar u m a bu rocracia de fraco valor n este con texto.16 Sobre a segu n da destas dim en sões, apen as possu ím os resu ltados prelim in ares qu e in dicam , n o en tan to, u m efeito n egativo sobre a econ om ia portu gu esa da segu n da m etade dos oitocen tos. A pu n ção sobre o m ercado fin an ceiro resu ltan te das n ecessidades creditícias do Estado teve efetivam en te u m efeito dissu asor sobre o in vestim en to privado, m as apen as de form a “m oderada”.17 Na su a verten te ban cária, tem m erecido tam bém algu m a aten ção o possível papel propu lsor do m ercado de crédito sobretu do em relação à in dú stria, u m con ceito de aplicação freqü en te aos países de desen volvim en to tardio, de acordo com os en sin am en tos de Gersch en kron . Du ran te todo este período, a ban ca teve u m a evolu ção excepcion alm en te rápida e parece ter can alizado u m a parte n ão despicien da dos seu s m eios para algu n s setores in du striais, o qu e à prim eira vista deveria ser favorável ao crescim en to global. O sistem a ban cário portu gu ês caracterizou -se, n o en - 250 CAUSAS HISTÓRICAS DO ATRASO ECONÔMICO PORTUGUÊS tan to, por u m a pu lverização qu e lh e retirou boa parte da possibilidade de ter econ om ias de escala, sofreu de in stabilidade ocasion ada por u m a excessiva dispersão geográfica e, talvez por a pou pan ça n acion al ser tão lim itada, n ão logrou jam ais atin gir u m a dim en são su ficien te para con segu ir desem pen h ar u m papel de relevo n a m odern ização da econ om ia. Apesar de estreito, o seu relacion am en to com a in dú stria pau tou -se sem pre por u m con servadorism o qu e pode ter tido as su as raízes n os problem as apon tados, m as qu e de qu alqu er form a poderá ter travado u m a tran sform ação m ais rápida do setor in du strial, em particu lar de setores tecn ologicam en te m ais avan çados e por isso m ais caren ciados de fin an ciam en to a lon go prazo.18 Para além destes aspectos parcelares su rgiram , du ran te a década de 1990, três n ovas abordagen s qu e, em con traste, preferiram en carar de form a global o problem a do atraso econ ôm ico portu gu ês do sécu lo XIX. Nu m a delas, O’Rou rke & William son m ostraram qu e, n o caso de Portu gal, dois fatores tin h am sido igu al e especialm en te im portan tes em determ in ar o ritm o de crescim en to atin gido en tre 1870 e 1913: a escolarização e a em igração. Esta dedu ção, baseada n u m a an álise econ om étrica das diferen ças en tre sete países da periferia eu ropéia n o qu e respeita à con vergên cia dos respectivos ren dim en tos per capita em relação aos EUA e à In glaterra, con clu ía tam bém qu e a abertu ra ao com ércio extern o, o in flu xo de capitais estran geiros e o progresso tecn ológico apen as tin h am tido u m im pacto residu al.19 Segu n do estes au tores, o m ecan ism o cau sal era sim ples. A rarefação da m ão-de-obra associada à em igração, assim com o a elevação da razão trabalh o/ capital e trabalh o/ terra, teriam en gen drado a elevação geral da produ tividade e do n ível salarial qu e caracterizaram o período e de qu e resu ltou su cessivam en te a progressão do ren dim en to per capita dos portu gu eses. O im pacto disto seria aproxim adam en te 50% do au m en to total registrado n esta ú ltim a variável du ran te estes decên ios, caben do ou tro tan to à form ação de capital h u m an o, u m efeito discu tido an teriorm en te e assim agora con firm ado e qu an tificado. Vários aspectos deste estu do m erecem realce pelo seu caráter in ovador. É a prim eira vez qu e, n o caso de Portu gal, para além de se qu an tificar o fen ôm en o do crescim en to em si se faz o m esm o para os seu s fatores explicativos, o qu e tem o m érito de, m ais do qu e sim plesm en te iden tificá-los, perm itir orden á-los con form e a im portân cia relativa. Em segu n do lu gar, em vez de se partir de u m a an álise das con dições especificam en te portu gu esas, ch ega-se a estas partin do, pelo con trário, de u m m odelo de âm bito global em qu e Portu gal é apen as u m a peça do “pu zzle”. Por ú ltim o, dá-se destaqu e a u m aspecto da realidade socioecon ôm ica oitocen tista portu gu esa cu ja im portân cia tem sido sem pre am plam en te recon h ecida, m as cu jo papel n o processo qu e ora n os ocu pa n ão tem sido até aqu i form u lado com 251 Jaime Reis a clareza de qu e agora passam os a dispor.20 Não obstan te, ficam ain da em aberto algu m as qu estões. Um a delas é o con tribu to adicion al para o ren dim en to n acion al represen tado pelo valor im en so das rem essas en viadas pelos em igran tes para a pátria e qu e carece de ser in clu ído aqu i e m elh or qu an tificado, sen do provável qu e n este caso a em igração gan h asse ain da m aior relevo com o fator explicativo. Por ou tro lado, poder-se-ia dedu zir do m odelo qu e, n ou tras circu n stân cias, favoráveis a u m a em igração ain da m aior, o crescim en to teria sido m ais rápido, perm itin do u m a recu peração do atraso econ ôm ico portu gu ês? Se a resposta for positiva, ou tra dú vida é su scitada, ou seja, ficam por saber as razões qu e im pediram a taxa em igratória de ser m ais elevada, u m a possibilidade verossím il, n a m edida em qu e, em todas as décadas con sideradas, ou tros países sofreram perdas m aiores de popu lação do qu e Portu gal por este m otivo.21 Se bem qu e focan do u m período relativam en te cu rto (1910-1926), o estu do de K. Sch wartzm an sobre a Prim eira Repú blica Portu gu esa oferece u m pon to de vista qu e é exten sível a toda a segu n da m etade do sécu lo XIX e é bastan te diverso do an terior. Para esta au tora, foram fu n dam en talm en te du as as raízes do atraso econ ôm ico portu gu ês. Ao abrigo de u m a m atriz de in spiração “wallerstein ian a”, a prim eira era o estatu to “sem iperiférico” do país, fortem en te in ibitório do desen volvim en to de econ om ias deste tipo. A segu n da, decorren te desta, era a profu n da “desarticu lação” de u m a econ om ia qu e se dividia em qu atro setores fu n dam en tais. A debilidade dos laços en tre eles era tal qu e qu an do u m deles lograva u m com portam en to din âm ico – por exem plo, o agroexportador – a repercu ssão disto sobre os dem ais era tên u e e o efeito global dim in u to.22 Em bora atraen te, existem problem as de con sistên cia com os fatos h istóricos qu e colocam algu m as reticên cias a esta in terpretação. Por u m lado, estão por con stru ir in dicadores fiáveis de salários e lu cros em n ível setorial qu e perm itam ju stificar o caráter “desarticu lado” atribu ído à econ om ia portu gu esa. Por ou tro, essa desarticu lação n ão é u m dado absolu to, m as sim in trin secam en te relativo e só faz sen tido qu an do apreciada em perspectiva com parada e n a su a evolu ção ao lon go do tem po. David Ju stin o, qu e se ocu pou exten sivam en te desta ú ltim a tarefa, forn ece-n os u m a ach ega ao con clu ir qu e já n o prin cípio do sécu lo XX estava em gran de parte con clu ído o processo de in tegração do “m ercado n acion al”, o qu e retira força ao argu m en to da “desarticu lação”, m as qu e esta con tin u ava n o en tan to in flu en cian do n egativam en te o crescim en to da econ om ia.23 Em qu e m edida e se n u m grau m aior do qu e n as restan tes pequ en as econ om ias da periferia da Eu ropa, eis o qu e con tin u a a carecer de aprofu n dam en to. A terceira destas três perspectivas globais n ovas põe em cau sa u m a aqu isição im portan te da an álise qu e se desen volveu du ran te a década de 1980. Trata-se da n oção de qu e a evolu ção das exportações portu gu esas 252 CAUSAS HISTÓRICAS DO ATRASO ECONÔMICO PORTUGUÊS ten h a sido cru cialm en te afetada qu er pela dotação de recu rsos n atu rais qu er pela con figu ração da procu ra in tern acion al, am bas an teriorm en te alegadas com o barreiras de m on ta ao crescim en to econ ôm ico. A segu n da é qu e a relação cau sal en tre exportações e produ to n acion al, se existiu , ten h a tido a direcção qu e lh e tem sido atribu ída, an tes parecen do qu e é o n ível do produ to qu e determ in a a capacidade para exportar e n ão o con trário. Em con seqü ên cia, segu n do Pedro Lain s, em Portu gal era o atraso econ ôm ico e social qu e travava a exportação, u m a situ ação qu e só podia ser su perada através de “u m processo dem orado” de len ta evolu ção qu e países com o os escan din avos tin h am já con segu ido levar a cabo an tes de m eados dos oitocen tos.24 Este en ten dim en to vai ao en con tro de u m a corren te n a literatu ra in tern acion al qu e afirm a qu e, n o lon go prazo, existem gru pos de países com ren dim en to per capita baixo m as sem elh an te e qu e ten dem a aproxim ar-se en tre si, m as raram en te dos qu e con stitu em o gru po dos países com ren dim en to m ais elevado e tam bém sem elh an te en tre si. Visto deste m odo, Portu gal perten ceria a u m “clu be de con vergên cia” eu ropeu de ren dim en to baixo e por isso aí teve de perm an ecer du ran te estas décadas sem con segu ir u ltrapassar os bloqu eios a u m crescim en to m ais rápido.25 Esta abordagem represen ta u m avan ço in discu tível m as su scita dificu ldades. A m ais salien te reside, por su a vez, n a au sên cia, de explicação adequ ada para o atraso portu gu ês n a época qu e an tecede o período em apreço, para on de é rem etida agora a ch ave do problem a. Em segu n do lu gar, a au sên cia de u m a an álise qu e elu cide por qu e m eios é qu e algu n s países con segu iram escapar à perten ça ao “clu be” dos m ais pobres e in gressar n o das econ om ias m ais din âm icas porqu e m ais ricas deixa u m a área de in certeza n a com preen são do fen ôm en o. Esta in certeza é im portan te n ão só para a com preen são do problem a do atraso econ ôm ico oitocen tista, m as tam bém para explicar a recu peração qu e, em con traste, a econ om ia portu gu esa logrou efetu ar n o decorrer do sécu lo XX. A in terrogação qu e aqu i se coloca é se, depois de u m a lon ga e len ta evolu ção n o sécu lo XIX, Portu gal terá atin gido fin alm en te, após a Prim eira Gu erra Mu n dial, o patam ar de riqu eza m in ím a para poder fazer parte do gru po das n ações avan çadas e con vergen tes. Ou , em lu gar disso, se terão su rgido fatores im pu lsion adores do crescim en to an tes au sen tes a alterar radicalm en te a situ ação passada? Metodologicam en te, su rgem com isto du as qu estões. A prim eira é a de iden tificar, com o fizem os até aqu i, u m m odelo in terpretativo qu e in tegre satisfatoriam en te a evolu ção do caso portu gu ês em si e em perspectiva com parada. A segu n da é a de assegu rar a coerên cia desse qu adro com a in terpretação qu e se preten deu dar para o atraso verificado n o decu rso do sécu lo XIX. Assim , se h ou ver circu n stân cias qu e an tes obstacu lizaram u m 253 Jaime Reis m elh or desem pen h o, estas devem ser recon sideradas para se apu rar se, n o sécu lo atu al, deixaram de existir, de atu ar, ou se por qu alqu er m otivo passaram a ter u m efeito diverso do an terior. Da m esm a form a, se n ovos fatores em ergem a im pelir m ais fortem en te o crescim en to a partir das décadas de 1920 ou 1930, a su a in existên cia n a época preceden te deve ser assin alada e explicada.26 Tal com o fizem os para o prim eiro su bperíodo aqu i con siderado, será a dim en são estru tu ral, de lon go prazo, de qu e n os vam os ocu par, e n ão a dim en são con ju n tu ral, de cu rto prazo da h istória econ ôm ica portu gu esa. O com portam en to da econ om ia n acion al n o sécu lo XX da óptica qu e estam os an alisan do tem m erecido m en os aten ção dos h istoriadores do qu e acon teceu n o caso do sécu lo XIX. As dim en sões políticas associadas à em ergên cia e lon gevidade do Estado Novo e a relevân cia deste para a m ais recen te viven cia dem ocrática do país são in du bitavelm en te razões sobejas para isto. Não obstan te, o volu m e de in vestigação já dispon ível sobre este capítu lo de h istória econ ôm ica forn ece pistas abu n dan tes e é eviden te qu e, m esm o se m u itas qu estões restam por esclarecer, as lin h as gerais de u m qu adro an alítico adequ ado às n ecessidades já se en con tram traçadas. Do pon to de vista do crescim en to, a gran de viragem para a econ om ia portu gu esa data do fim da segu n da gu erra m u n dial. No período en tre as gu erras assistiu -se à in terru pção do processo de atraso secu lar qu e tem os con siderado até aqu i (ver figu ra) e m esm o a u m a pequ en a m elh oria da posição portu gesa relativa n este dom ín io. Estru tu ralm en te, n ão se tin h am ain da verificado, porém , as gran des alterações qu e assin alaram os an os 1945-1973, qu e são aqu eles em qu e disparou a expan são da econ om ia – a u m a taxa m édia an u al de 5,6% a preços con stan tes – e teve lu gar, pela prim eira vez n a h istória do país u m a sign ificativa recu peração relativam en te às econ om ias desen volvidas. É sobre esta ú ltim a experiên cia qu e con cen tram os portan to a n ossa aten ção. O aspecto porven tu ra m ais salien te desta época é a con versão de Portu gal n u m país in du strial, cu jo setor secu n dário n ão só su perou fin alm en te o prim ário com o, com u m a taxa de crescim en to an u al de 10,7% ao an o, passou a determ in ar a evolu ção global da econ om ia.27 Um a elevação im portan te da produ tividade in du strial perm itiu qu e a exportação de m an u fatu ras dom in asse o setor extern o, com 64% das ven das n o exterior, en qu an to a agricu ltu ra, o esteio tradicion al das exportações, se lim itava agora a 10% desse flu xo. Os ram os da in dú stria previam en te m ais im portan tes – os têxteis, o calçado e a alim en tação – m an tiveram u m papel relevan te n esta evolu ção, m as perderam o seu lu gar preem in en te para u m con ju n to se setores m odern os, m ais avan çados tecn ologicam en te e m ais capital in ten sivos – o aço, a m etalu rgia, a qu ím ica, o m aterial 254 CAUSAS HISTÓRICAS DO ATRASO ECONÔMICO PORTUGUÊS elétrico e de tran sportes, o papel e o petróleo. A este fen ôm en o esteve ligado o aparecim en to de sete gran des gru pos econ ôm icos em qu e se com bin avam as atividades fin an ceiras com os in teresses colon iais e in du striais e qu e lograram ocu par posições predom in an tes n as áreas m ais din âm icas do tecido produ tivo e con dicion ar a política econ ôm ica.28 A esta n otável expan são tam bém n ão podia ser alh eio u m au m en to sign ificativo do grau de abertu ra da econ om ia, qu e se tradu ziu por três facetas prin cipais. Au m en taram as exportações e as im portações a ritm os ain da m aiores do qu e o do produ to n acion al. Recom eçou a em igração, cu jo cau dal era praticam en te n u lo desde 1930 e qu e agora, n o seu au ge (1970), atin giu u m a taxa de 21 por m il h abitan tes.29 Assistiu -se, du ran te os an os 1960, a u m in flu xo de capitais e de tecn ologia estran geira, graças à liberalização de u m a legislação an teriorm en te con trária a tais m ovim en tos e à m aior atração exercida pelas oportu n idades agora oferecidas pela econ om ia portu gu esa sobre os in vestidores in tern acion ais. Segu n do recen tes an álises baseadas n a técn ica do growth accounting, este rápido crescim en to da econ om ia portu gu esa deveu -se em gran de parte (70% ) ao au m en to dos seu s fatores produ tivos – trabalh o, capital e capital h u m an o – m as tam bém , em bora em m en or grau (30% ) a u m a sign ificativa elevação da produ tividade n a u tilização destes fatores.30 Para obterm os u m a visão adequ ada das cau sas qu e estiveram por detrás de u m e do ou tro tipo de in flu ên cia são cin co as áreas de an álise para qu e precisam os de aten tar. Um a das tran sform ações m ais im portan tes da sociedade portu gu esa, n esta óptica, foi o en orm e in vestim en to feito du ran te este sécu lo em m atéria edu cativa. Em bora largam en te criticada e criticável por n ão ter ido m ais além , n ão se pode n egar qu e foi con siderável e de gran de im pacto econ ôm ico o acréscim o n a dotação de capital h u m an o qu e daqu i resu ltou . No caso paradigm ático da alfabetização, passou -se de u m n ível de 75% de an alfabetos n a popu lação, em 1900, para 40% , em 1940, e 25% , em 1970. Se forem tom ados em con sideração ao m esm o tem po o en sin o in term ediário e o u n iversitário o progresso é ain da m ais im pression an te, se bem qu e tardio em relação à n orm a eu ropéia con tem porân ea. O ín dice de Harrison e Meyers, qu e reflete con ju n tam en te todos estas in stân cias, elevou -se de u m valor de 0,4 em 1900 para 1,3 em 1940, atin gin do 3,9 em 1960.31 Qu an to ao efeito disto, as opin iões são u n ân im es. A qu alificação crescen te da m ão-de-obra a todos os n íveis con tribu iu sobrem an eira para a elevação da produ tividade e do produ to n acion al. Um estu do de âm bito in tern acion al dem on strou , para o caso de Portu gal, qu e a taxa de retorn o sobre o dispen dido com a edu cação n o an o de 1977 foi de 10% , u m a in dicação razoável do qu e se terá podido obter n as décadas preceden tes.32 Por ou tro lado, a forte correlação detectada para o lon go 255 Jaime Reis prazo en tre a form ação de capital h u m an o e o m ovim en to do produ to n acion al tem a su a con trapartida n o resu ltado m ais recen te do growth accounting segu n do o qu al este fator foi respon sável por u m qu arto do crescim en to econ ôm ico total en tre 1951 e 1973.33 A crescen te abertu ra ao exterior du ran te estas décadas tem sido igu alm en te recon h ecida n o geral com o u m a das cau sas prin cipais do din am ism o en tão verificado. Terá sido ela o m eio pelo qu al a econ ôm ia portu gu esa foi “con tagiada” pela gran de expan são econ ôm ica in tern acion al destes an os, exportan do e im portan do cada vez m ais e su jeitan do-se a u m a m obilidade do trabalh o, do capital e da tecn ologia qu e só lh e podiam ser ben éficos. Apesar de u m regim e com u m a in clin ação de raiz para o protecion ism o e a au tarqu ia econ ôm ica, pela n ecessidade das coisas, as políticas segu idas n o pós-gu erra pelo Estado Novo foram n o sen tido oposto, da liberalização e da ligação às organ izações in tern acion ais, cu lm in an do com o tratado de adesão de Portu gal à Associação Eu ropéia de Com ércio Livre, em 1959. Em qu e m edida isso aju dou a econ om ia a crescer é algo qu e está, porém , ain da por resolver. A opin ião geral é qu e este terá u m fator cru cial de tran sform ação. Na in dú stria, os setores exportadores já referidos terão se ben eficiado, sem dú vida, com o m ais fácil acesso aos gran des m ercados eu ropeu s e com isso terão recebido u m im portan te estím u lo para sim u ltan eam en te expan dir e au m en tar su a eficiên cia. Um exam e m ais aten to su gere, n o en tan to, qu e n a su a m aior parte a econ om ia con tin u ou refu giada atrás de barreiras alfan degárias qu e, apesar de n om in alm en te em qu eda, se m an tin h am , em term os efetivos, qu ase tão altas em 1970 com o 20 ou 30 an os atrás. Os setores in du striais n ão exportadores e a m aior parte da agricu ltu ra e dos serviços n ão experim en taram o desafio da con corrên cia extern a, pelo qu e “m u itas em presas ben eficiaram con tin u am en te de n íveis de proteção elevados e pu deram sobreviver em fu n ção do m ercado in tern o”, com efeitos qu e n ão terão sido positivos para a produ tividade geral.34 A im portân cia qu e a form ação de capital fixo teve em todo este processo, tradu zida por u m con tribu to de cerca de 50% para o crescim en to global da econ om ia e n u m erosas referên cias n a literatu ra, obriga-n os a pon derar sobre as circu n stân cias qu e torn aram possível u m au m en to tão acen tu ado e in u sitado deste fator produ tivo. Não existem dados qu e proporcion em u m a com paração com épocas an teriores. Tu do leva a crer, porém , qu e n este dom ín io deva ter h avido u m a alteração profu n da n o com portam en to dos agen tes econ ôm icos graças à qu al os recu rsos fin an ceiros m obilizados para este fim cresceram em 600% en tre 1950 e 1973. O elem en to m ais im portan te n este en orm e esforço foi in du bitavelm en te a pou pan ça das fam ílias portu gu esas, qu e se elevou de u m a form a n otável ao lon go do período, até atin gir u m m áxim o de 30% do ren dim en to 256 CAUSAS HISTÓRICAS DO ATRASO ECONÔMICO PORTUGUÊS dispon ível, em 1972, partin do de u m valor de 10% n o im ediato pós-gu erra. Qu ais as razões de u m fen ôm en o tão su rpreen den te é u m tem a de m om en to praticam en te ign oto e qu e, pela su a im portân cia n a in terpretação destes “An os de Ou ro” da econ om ia portu gu esa, carece de in vestigação. A elevação progressiva do ren dim en to per capita será u m a parte óbvia da explicação para este au m en to n o esforço de pou pan ça. Ou tra de n ão m en or sign ificado será a atu ação do sistem a ban cário, cu ja expan são e tran sform ação estru tu ral du ran te estes an os lh e facu ltou u m a capacidade m u ito acrescida n ão só para captar recu rsos de tal m on ta, m as tam bém para con segu ir reciclá-los em larga m edida para o in vestim en to das em presas e dar-lh es por con segu in te u m fim produ tivo.35 Mais fácil de explicar é a segu n da fon te m ais relevan te, con stitu ída pela pou pan ça das em presas, as qu ais pela reten ção de parte dos seu s lu cros con segu iram fin an ciar u m a fração su bstan cial da su a form ação de capital fixo. Em bora u m a h ipótese ain da por testar rigorosam en te, é opin ião de vários au tores qu e as con dições de m on opólio ou de oligopólio de qu e n ão pou cas gozaram à som bra da regu lam en tação oficial terá torn ado possível lu cros su ficien tem en te elevados para isso assim com o o estím u lo para agir n esse sen tido. Em con trapartida, o papel do Estado e dos in vestidores estran geiros n a form ação de capital talvez n ão ten h a tido u m im pacto com en su rável com o in teresse de qu e tem sido alvo por algu n s au tores. No prim eiro caso, é in egável o au m en to dos in vestim en tos estatais ao lon go deste sécu lo e tam bém o fato de estes se orien tarem cada vez m ais para as in fra-estru tu ras in dispen sáveis ao crescim en to, com o os tran sportes, as com u n icações e a en ergia, para além de u m com pon en te n ão desprezível de apoio ao in vestim en to in du strial e à edu cação. E a partir de 1953, su cessivos Plan os de Fom en to govern am en tais vieram disciplin ar e even tu alm en te con ferir m aior eficiên cia a este esforço. Ao lado do privado, o in vestim en to pú blico n u n ca deixou de ter u m lu gar secu n dário – cerca de 10% a 15% do total até m eados da década de 1960, altu ra em qu e ascen deu aos 30% .36 De igu al m odo, o in vestim en to estran geiro tem recebido bastan te aten ção, m as o seu im pacto restrin giu -se essen cialm en te aos an os 60 e 70 e aos escassos, m as im portan tes setores in du striais em qu e se con cen trou . Assim , m esm o du ran te a época da liberalização por via legislativa da en trada destes capitais, o seu volu m e n u n ca excedeu os 4% do produ to n acion al, n u m m om en to em qu e o total da form ação bru ta de capital n u n ca estava abaixo dos 20% desta variável.37 Paralelam en te a ou tros m ovim en tos sem elh an tes em todo o su l da Eu ropa, o su rto em igratório recom eçado logo depois da segu n da gu erra m u n dial tem sido iden tificado com o “o fator qu e m ais decisivam en te in flu en ciou a situ ação econ ôm ica global” em Portu gal.38 Para a econ om ia foram várias as con seqü ên cias qu e advieram de u m êxodo qu e com eçou 257 Jaime Reis por ser da ordem dos 1,7 por m il h abitan tes, até 1950, e qu e n o seu au ge, por volta de 1970, correspon dia a u m a taxa de 21 por m il. Por u m lado, a estagn ação popu lacion al resu ltan te possibilitou u m processo de crescim en to m arcadam en te capital in ten sivo e absorvedor de n ova tecn ologia, u m a forte dim in u ição da m ão-de-obra agrícola sem o aparecim en to de u m desem prego in du strial pertu rbador e au m en to da produ ção qu e n ão se dissiparam por u m a base dem ográfica em rápida expan são, com o su cedeu n ou tros casos con tem porân eos de desen volvim en to econ ôm ico.39 Por ou tro, gerou -se u m con siderável e crescen te cau dal de rem essas para o país n atal, captado e can alizado m ajoritariam en te pelo setor ban cário portu gu ês e cu jo efeito foi assin alável em du as áreas cru ciais para a tran sform ação da econ om ia. A prim eira era a do com ércio extern o, em qu e a expan são das im portações de equ ipam en tos e m atérias-prim as n orm alm en te associada a processos de in du strialização rápida n ão con du ziu a u m estran gu lam en to graças às abu n dan tes divisas assim obtidas e reforçadas pelas receitas do tu rism o en tão em fu lgu ran te ascen são. A segu n da foi o con tribu to prestado por estas rem essas para o con su m o e particu larm en te para a econ om ia das fam ílias, qu e viram o seu ren dim en to au m en tar em virtu de disso, em m édia, de 3,5% du ran te os an os 1960-1965 e de 7,7% em 1966-1973, u m valor qu e con trasta fortem en te com os 2% obtidos da m esm a origem n o prin cípio do sécu lo, ou tra época de gran de em igração, m as de fraco crescim en to econ ôm ico. O qu in to e ú ltim o dos tópicos essen ciais para a h istória da recu peração da econ om ia portu gu esa após 1945 é de todos o m ais com plicado e difícil de avaliar. Trata-se da vasta e com plexa teia regu latória qu e o Estado Novo com eçou a tecer desde o seu in ício, n os an os 30 e m an teve essen cialm en te até o fim , em parte com o u m a série de respostas pragm áticas a problem as con ju n tu rais qu e iam su rgin do, e, em parte, com o resu ltado de u m a forte descon fian ça ideológica em relação aos m ecan ism os de m ercado. Em con seqü ên cia e sob a capa de u m m u ito apregoado “estado corporativo”, estabeleceram -se circu itos com erciais obrigatórios para gran de n ú m ero de produ tos, fixaram -se preços e salários n u m largo âm bito produ tivo e com ercial e regu lou -se a im portação por via adm in istrativa. No dom ín io in du strial em particu lar im plem en tou -se u m a política altam en te in terven cion ista, “o con dicion am en to in du strial”, qu e con feria às au toridades poderes discricion ários para licen ciar a criação de n ovos estabelecim en tos, a reabertu ra e a expan são dos já existen tes e até a su bstitu ição dos respectivos m aqu in ism os. Os objetivos, oficialm en te, eram diversos – corrigir os excessos de capacidade produ tiva, fom en tar econ om ias de escala, im pu lsion ar a m odern ização tecn ológica, dim in u ir a depen dên cia extern a – em bora n a prática o acen to ten h a estado em travar a con corrên cia, lim itan do a en trada de n ovos produ tores ou de processos 258 CAUSAS HISTÓRICAS DO ATRASO ECONÔMICO PORTUGUÊS n ovos n os diferen tes setores.40 Em algu n s aspectos, a in terven ção do Estado n a econ om ia poderá ter sido ben éfica. Além de en corajadora do in vestim en to ao facilitar, por m eio de práticas restritivas, com o já vim os, a realização de lu cros elevados e in cen tivar a su a aplicação produ tiva, o “con dicion am en to in du strial” foi u m in stru m en to essen cial para a im plan tação de algu n s dos setores m ais m odern os da in dú stria portu gu esa, qu e sem a garan tia de u m m on opólio ou oligopólio e a proteção do seu m ercado provavelm en te n ão teriam su rgido. Globalm en te, n o en tan to, os ju ízos são n egativos.41 As distorções qu e os m ercados de produ tos e de fatores de produ ção sofreram foram trem en dos, m u itos in teresses in stalados pu deram sobreviver sem excessivas preocu pações de con corrên cia e logo de eficiên cia, perderam se os gan h os poten ciais de u m a m aior especialização e n eu tralizaram -se in iciativas n ovas e a in trodu ção de m elh ores tecn ologias. O paradoxo desta situ ação é a coexistên cia deste vasto e n ocivo en qu adram en to regu latório com u m dos períodos m ais brilh an tes para a econ om ia portu gu esa e a qu estão qu e ela provoca é saber qu an to do poten cial de crescim en to se perdeu em virtu de de todas estas distorções e alocações m en os eficazes. Teria sido possível, com u m a organ ização econ ôm ica m ais liberal, fazer ain da m elh or do qu e o já n otável desem pen h o con segu ido du ran te a m aior parte do sécu lo XX? As in vestigações sobre este e a m aioria dos tem as restan tes qu e se rastrearam e an alisaram n este texto estão ain da em fase de todo in cipien te. Na qu estão do atraso econ ôm ico portu gu ês n o lon go prazo con tin u am a ser m ais n u m erosas as lacu n as e os pon tos obscu ros do qu e as áreas com respostas claras. No en tan to, o progresso feito du ran te os três ú ltim os decên ios tem sido con siderável e en corajador de n ovos esforços. Assim , é de esperar qu e den tro de m ais u m a década dispon h am os de u m a com preen são m u ito su perior à atu al de u m problem a qu e é cen tral n a h istória econ ôm ica portu gu esa con tem porân ea. 259 Jaime Reis N OTA S 1. REIS, J. How Poor Was th e Eu ropean Periph ery before 1850? In : XVII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE HISTÓRIA ECONÔMICA E SOCIAL, 1997, Pon ta Delgada. 2. Não existe con sen so qu an to à expressão qu an titativa exata desta evolu ção. Ver: NUNES, A. B., MATA, E., VALÉRIO, N., 1989; LAINS, P., REIS, J., 1991; LAINS, P., 1995. JUSTINO, D. A evolu ção do Produ to Nacion al Bru to em Portu gal, 1850-1919 – Algu m as Estim ativas Provisórias. Análise Social, p.451-611,1987. 3. TORTELLA, G., 1994, iden tificou com o “Mediterrân ica” esta cu rva em U represen tativa do rácio en tre o produ to n acion al per capita e u m a m édia da m esm a variável em vários países avan çados, u m a vez qu e ela esteve presen te em sim u ltân eo n ão só em Portu gal com o n a Itália e n a Espan h a. 4. Estes dados, ain da n ão pu blicados, são tirados do trabalh o de L. AMARAL Is the Theory of Convergence Useful for the Study of Growth in Portugal in the Postwar Period? Floren ça, 1997. (Mim eogr.). 5. Ver, por exem plo, BIRMINGHAM, D. A Concise History of Portugal. Cam bridge: Cam bridge Un iversity Press, 1993. 6. PEREIRA, M. H., 1983. Para u m a reafirm ação recen te destas idéias, ver, MIRANDA, S. de. Portugal: o círculo vicioso da dependência (1890-1939). Lisboa: Teorem a, 1991. 7. GODINHO, V. M., 1975. 8. Ver JUSTINO, D., 1988-1989. Ver tam bém LAINS, P. Exportações Portu gu esas, 18501913: a tese da depen dên cia revisitada. Análise Social, p.381-419, 1986. 9. Ver REIS, J. Latifú n dio e progresso técn ico: a difu são da debu lh a m ecân ica n o Alen tejo, 1860-1930. Análise Social, p.371-443, 1982. 10. Sobre este argu m en to, ver FONSECA, H. A., REIS, J. José Maria Eu gén io de Alm eida, u m capitalista da regen eração. Análise Social, p.865-904, 1987. A citação é de SERRÃO, J., MARTINS, G. Da indústria: do An tigo Regim e ao capitalism o. Lisboa: Horizon te, 1978. p.32. 11. REIS, J., 1993. 12. Ibidem . 13. FONSECA, H. A., 1996. 14. Dados obtidos por SILVA, A. M. da. Desamortização e venda dos bens nacionais em Portugal na primeira metade do século XIX . Coim bra: Facu ldade de Letras, 1989. Ver o argu m en to em REIS, J., 1992. 15. LAINS, P.,1995. 16. MATA, E., 1990. 17. ESTEVES, R. P. O Crowdin g-Ou t em Portu gal, 1879-1910. In : XVII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL, 1997, Pon ta Delgada. 18. REIS, J., 1991. 19. O’ROURKE, K., WILLIAMSON, J. G. , 1997. 20. São vários e excelen tes os estu dos sobre o tem a da em igração portu gu esa. Ver PEREIRA, M. H. A política portuguesa de emigração, 1850-1930. Lisboa: A Regra do Jogo, 1981. BAGANHA, M. Portuguese Emigration to the United States, 1820-1930. Nova York: Garlan d, 1990. LEITE, J. C. Portu gal an d Em igration , 1855-1914. Tese (Dou toram en to) – Un iversidade de Colu m bia, 1993. ALVES, J., 1994. 21. Um prin cípio de discu ssão sobre este tem a en con tra-se em HATTON, T. J., WILLIAMSON J. G. Late Com ers to Mass Em igration . Th e Latin Experien ce. In :___. Migration in the International Labour Market, 1850-1939. Lon don : Rou tledge, 1994. 22. SCHWARTZMAN, K., 1989. 260 CAUSAS HISTÓRICAS DO ATRASO ECONÔMICO PORTUGUÊS 23. A fomação do espaço econômico nacional, con clu são. 24. A economia portuguesa no século XIX . 25. LONG, J. B. de. Produ ctivity Growth , Con vergen ce an d Welfare: A Com m en t. American Economic Review , p.1138-54, 1988. 26. REIS, J., 1992. 27. A in form ação estatística é relativam en te abu n dan te para este período e pode ser con su ltada em NEVES, J. C. das, 1994. PINHEIRO, M. et a1., 1997. BATISTA, D. et al., 1998. 28. RIBEIRO, J. M. F. et al. Gran de in dú stria, ban ca e gru pos fin an ceiros. Análise Social, p.945-1018, 1987. 29. BAGANHA, M. I. B., 1994. 30. NEVES., J. C. das,1994. p.72-90; AMARAL, L., op. cit., 1997. 31. Ver REIS, J., 1992. Texto em qu e é explicitada a con stru ção deste ín dice. 32. Citado por Neves, J. C. das, 1994, p.136. 33. Ver, respectivam en te, Nu n es, A. B., Edu cation an d Econ om ic Growth in Portu gal: A Sim ple Regression Approach . Estudos de Economia, p.181-205, 1993, e AMARAL, L., op. cit., 1997. 34. CONFRARIA, J. Desenvolvimento econômico e política industrial. A economia portuguesa no processo de integração européia. Lisboa: Un iversidade Católica Portu gu esa, 1995. p.80. 35. Sobre a h istória ban cária dos an os 50 existe u m estu do valioso, m as por en qu an to pou co se sabe sobre o período segu in te. Ver SÉRGIO, A., 1995. 36. Sobre os Plan os de Fom en to, ver o artigo respectivo em ROSAS, F. & BRITO, J. M. B. de, 1996. 37. MATOS, L. S. de. Investimentos estrangeiros em Portugal. Lisboa: Seara Nova, 1973. 38. LOPES, J. S., 1996, p.236. 39. LAINS, P. O Estado e a in du strialização em Portu gal, 1945-1990. Análise Social, p.943, 1994. 40. CONFRARIA, J., 1992. 41. NEVES, J. C. das, 1994, p.66. BRITO, J. M. de, 1989; LOPES, J. S., 1996; CONFRARIA, J. Desenvolvimento econômico e política industrial. cap. IV p.21 e 185. 261 Jaime Reis B IBLIOGRA FIA ALVES, J. Os brasileiros. Em igração e retorn o n o Porto oitocen tista. Porto: s.n ., 1994. BAGANHA, M. I. B. As corren tes em igratórias portu gu esas n o sécu lo XX e o seu im pacto n a econ om ia n acion al. Análise Social, p.959-80, 1994. BATISTA, D. et al. Portugal’s National Product, 1910-1958. 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Logo qu e o exército de Ju n ot, n a prim eira in vasão, ch egou às portas de Lisboa, a fam ília real, os n obres m ais represen tativos e as altas dign idades eclesiásticas em barcaram apressadam en te para o Brasil. Sob a in stigação da In glaterra, abriram -se sem reservas os portos brasileiros ao com ércio in tern acion al, o qu e represen tou a qu ebra do sistem a do “pacto colon ial” e o correspon den te declín io da h egem on ia m etropolitan a. No plan o cu ltu ral e ideológico, a ocu pação m ilitar in crem en tou a difu são das “idéias fran cesas”, qu e já n o decu rso do rein ado de D. Maria I tin h am sido objeto de cerrada persegu ição por parte da realeza. O exército portu gu ês, com pletam en te desorgan izado, n ão poderia opor qu alqu er resistên cia ao avan ço das tropas fran cesas. Assim , foi solicitado à Grã-Bretan h a o n ecessário apoio bélico, o qu al se tradu ziu pelo en vio de con tin gen tes m ilitares e de algu n s oficiais de en qu adram en to. En tre estes, destacou -se especialm en te a figu ra de William Carr Beresford, cu jo ascen den te n a govern ação perdu rou m u ito para além do período con creto das in vasões. O aprofu n dam en to da crise econ ôm ica, com bin an do-se com a in su portável h egem on ia do estran geiro Beresford e com o desejo, u n iversalm en te partilh ado pelos portu gu eses, de ver regressar a corte, alim en tará u m u n iverso de preven ções e descon ten tam en tos, pron tos a m an ifestar-se n o m om en to m ais oportu n o. A ch am ada “con spiração” de Gom es Freire de An drade, ocorrida em 1817 e pu n ida com o en forcam en to dos im plicados, prefigu ra já o m ovim en to revolu cion ário de 24 de Agosto de 1820, qu e in icia em Portu gal o com plexo processo da afirm ação do liberalism o. A revolu ção vin tista foi preparada n o âm bito do “Sin édrio” portu en se, con clave 265 Amadeu Carvalho Homem secreto ch efiado por Man u el Fern an des Tom ás. A form ação ju rídica do ch efe do “Sin édrio” con du ziu -o a estu dar o travejam en to con stitu cion al de algu m as repú blicas da Am érica do Su l e a n u trir especial adm iração pela person alidade em blem ática de Sim ão Bolívar. Fern an des Tom ás com eçou por cooptar ou tros colegas ju ristas, com o Ferreira Borges e Silva Carvalh o, com qu em se dedicou ao estu do da decaden te situ ação in tern a do país. Logo con clu íram , porém , qu e deveriam passar de an álises acadêm icas a form as m ais decisivas de in terven ção. O “Sin édrio” abriu -se en tão a person alidades m ilitares igu alm en te descon ten tes e en cam in h ou -se decididam en te para a atividade con spiratória. Porém , n ão era com pleto o acordo en tre ju ristas e m ilitares. Aqu eles opin avam qu e a im posição do regresso da Corte ao rein o deveria ser com plem en tada com profu n das tran sform ações, de teor liberal, a serem in trodu zidas n o fu tu ro orden am en to ju rídico-con stitu cion al; para os m ilitares, con tu do, a revolu ção esgotar-se-ia com o cu m prim en to da obrigação de retorn o por parte de D. João VI e dos seu s fam iliares. Man obran do h abilm en te, Man u el Fern an des Tom ás con segu irá im prim ir à revolu ção, desen cadeada n o Porto em 24 de agosto e secu n dada em Lisboa em 15 de setem bro de 1820, u m sign ificado liberal e con stitu cion alista bem eviden te. Eleito u m Soberan o Con gresso Con stitu in te e redigidas as “bases” da fu tu ra con stitu ição, parecia estar escon ju rado, n o essen cial, o risco da m an u ten ção do An tigo Regim e. D. João VI regressou a Portu gal acom pan h ado por su a m u lh er, a rain h a D. Carlota Joaqu in a, e pelo seu filh o, o in fan te D. Migu el. Deixara n o Brasil, exercen do u m a regên cia em seu n om e, o seu ou tro filh o m ais velh o, D. Pedro. Os regressados adotarão atitu des m u ito diferen tes qu an to à im posição revolu cion ária do ju ram en to das “bases” con stitu cion ais. D. João VI, con trafeito m as tem eroso, su bm ete-se ao im perativo dos revoltosos. Pelo con trário, D. Carlota Joaqu in a e D. Migu el n egam -se a fazê-lo, con stitu in do-se ch efes de fila da reação an tiliberal e in cen tivan do algu n s expoen tes do alto clero e da n obreza a adotarem posições igu alm en te rebeldes. A en trada em vigor da Con stitu ição de 1822, a declaração u n ilateral da in depen dên cia do Brasil e o falecim en to de Fern an des Tom ás são acon tecim en tos cron ologicam en te próxim os. O legitim ism o jogará a su a cartada sediciosa por m eio dos golpes da “Vilafran cada” (1823) e da “Abrilada” (1824), am bos execu tados por D. Migu el, m as en corajados pela rain h a su a m ãe. O pron u n ciam en to de Vila Fran ca su spen de a vigên cia da Con stitu ição; por seu tu rn o, o golpe de abril obriga D. João VI a im por ao seu filh o a expu lsão do Rein o, sob o pretexto de u m a vilegiatu ra por países eu ropeu s, para alegadam en te com pletar a su a ilu stração. Com o falecim en to do m on arca rein an te in stala-se viru len tam en te a discu ssão dos direitos su cessórios. A corren te legitim ista advoga qu e o tron o seja en tregu e a D. Migu el, aten den do ao fato de os direitos de pri- 266 JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO m ogen itu ra terem cadu cado a partir do m om en to da en tron ização de D. Pedro com o im perador do Brasil; a corren te liberal bate-se pela observân cia das praxes tradicion ais da su cessão, as qu ais im plicavam a en trega da coroa ao filh o m ais velh o, su gerin do vagam en te a con federação de Portu gal e do Brasil. O perigo da gu erra civil, de cu ja im in ên cia n in gu ém du vidava, pareceu afastado qu an do D. Pedro abdicou do tron o portu gu ês a favor da su a filh a D. Maria da Glória, desde qu e D. Migu el aceitasse desposar a in fan ta su a sobrin h a, fu tu ra rain h a de Portu gal, e se pron tificasse a observar o articu lado de u m a Carta Con stitu cion al, ou torgada pelo en tão im perador do Brasil. Este arrazoado factu al perm ite-n os con textu alizar a origem con stitu cion al bicéfala do n osso liberalism o, qu e se n os an tolh a com o u m a das ch aves fu n dam en tais para a com preen são da con tem poran eidade portu gu esa. Com efeito, a Con stitu ição de 1822 irá in au gu rar u m a tradição de radicalism o, do m esm o m odo qu e a Carta Con stitu cion al de 1826 será recon h ecida com o o diplom a em qu e se irão rever os liberais con servadores. Do pon to de vista da su a gên ese, a prim eira reveste o cariz de u m a im posição revolu cion ária, u n ilateralm en te im posta ao soberan o. A segu n da, ao con trário, resu lta de u m ato de m u n ificên cia régia qu e desde logo lh e dim in u i o sign ificado tran sform ador. En qu an to a Con stitu ição con sagra abertam en te o prin cípio da soberan ia n acion al, a Carta recon h ece n a figu ra do rei o depositário e o garan te do travejam en to do Estado. O diplom a de 1822 prevê u m a divisão tripartida de poderes e, redu zin do o m on arca à su a sim ples expressão sim bólica, sin gu lariza a Câm ara dos Depu tados com o o eixo decisivo da vida política. A Carta Con stitu cion al de 1826 con fere ao poder m oderador, iden tificado com a potestade realen ga, u m a fu n ção arbitral e cen sória sobre os restan tes poderes, qu e assim lh e ficam su bm etidos. En qu an to o poder legislativo se en con tra exclu sivam en te com etido, n os term os da Con stitu ição de 1822, à represen tação dos depu tados eleitos, esse m esm o poder partilh a-se, n o caso da Carta Con stitu cion al de 1826, en tre a Câm ara dos Depu tados e a Câm ara dos Pares, sen do esta ú ltim a de n om eação régia. En qu an to, n os term os da Con stitu ição, o m on arca dispõe de u m sim ples direito de veto su spen sivo em relação às in iciativas legislativas, este veto con verte-se em absolu to n o clau su lado da Carta. Fin alm en te, a filosofia do diplom a vin tista afasta-se do su frágio cen sitário previsto n o texto con stitu cion al de 1826 e defin e u m m odelo de participação política qu e n ão se en con tra su bm etido à am plitu de do patrim ôn io dos votan tes poten ciais. Estas n otórias diferen ças situ am a Con stitu ição de 1822 n o terren o qu e perm itirá a desen volu ção do civilism o in dividu alista, o qu al se perfila n os an típodas da su bm issão dos sú ditos à soberan ia real. 267 Amadeu Carvalho Homem A CA MIN HO D A MOD ERN IZA Çà O POSSÍVEL O período qu e se escoa en tre a im posição de D. Migu el com o rei absolu to (1828) e a vitória liberal, alcan çada após u m in certo in terregn o de gu erra civil e con sagrada pela Con ven ção de Évora-Mon te (1834) n ão favoreceu a explicitação da clivagem prefigu rada n os dois textos con stitu cion ais, u m a vez qu e vin tistas e cartistas in tegravam por igu al, para os sequ azes do absolu tism o m igu elista, a pestilen ta “cáfila de pedreiros livres” qu e u rgia esm agar in distin tam en te. As discordân cias qu e se m an ifestaram n o cam po liberal du ran te as lu tas civis – en tre Palm ela e Saldan h a, por exem plo – tradu zem fu n dam en talm en te u m a dispu ta de cau dilh os em bu sca de h egem on ias pessoais e n ão são o corolário de in con ciliáveis propostas ideológico-políticas. É certo qu e o com an do m ilitar e estratégico do con tra-ataqu e liberal com petiu a D. Pedro, o “dador” da Carta Con stitu cion al, após este ter sido forçado a abdicar do tron o im perial brasileiro. Mas a u n idade das h ostes liberais n ão foi pertu rbada por esse fato, já qu e o tem or de u m a even tu al vitória absolu tista fu n cion ou com o o cim en to agregador das du as sen sibilidades, as qu ais só m ais tarde dispu tariam en tre si a prim azia. Se o triu n fo liberal sign ificou a vitória da corren te cartista, n ão é m en os certo qu e a m em ória da Con stitu ição de 1822 n ão perm itirá qu e esse cartism o se estabilize em defin itivo. Até 1851, o liberalism o radical pertu rbará, a espaços, a tôn ica con servadora do liberalism o in stalado, por m eio da eclosão de su rtos revolu cion ários periódicos. O an acron ism o das estru tu ras econ ôm icas e sociais e a literal in existên cia em Portu gal de relações capitalistas de produ ção, distribu ição e con su m o obrigavam a profu n das m odificações ju rídicas, a fim de qu e se pu dessem pu lverizar as peias qu e tipificavam o An tigo Regim e. O prin cípio da liberdade n egocial pressu pu n h a u m a isonomia ou igu aldade peran te a lei qu e n ão era con tem plada pelas form ações econ ôm icas tradicion ais. A obra legislativa de Mou zin h o da Silveira, depois aprofu n dada e prossegu ida por Joaqu im An tôn io de Agu iar, dará com bate aos m ecan ism os tradicion ais de con cen tração e im obilização da riqu eza. E com o esta residia basicam en te n a fixação e im obilização do patrim ôn io fu n diário, as m edidas de Mou zin h o visaram à libertação da terra, até aí vin cu lada a m orgadios aristocráticos ou a terraten ên cias detidas por orden s religiosas. É certo qu e esta política desam ortizadora n ão erradicou de u m a vez por todas a con cen tração fu n diária, n em extin gu iu totalm en te os dispositivos qu e lh e serviram de su porte. Os vín cu los do m orgadio, por exem plo, su bsistiram para lá da própria Con ven ção de Évora-Mon te. Mas Mou zin h o da Silveira in au gu rou u m a ten dên cia libertadora qu e atin girá o seu au ge, já depois de alcan çada a vitória liberal, com a in corporação n o dom ín io pú blico, n os “Próprios Nacion ais”, do vasto patrim ôn io aristocrático-abso- 268 JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO lu tista e clerical e com a su a su bseqü en te ven da em h asta pú blica. Esta tran sferên cia de propriedade, origin an do a criação de u m a n ova casta de terraten en tes diretam en te ben eficiados pela tran sform ação social em cu rso, garan tiu à m on arqu ia con stitu cion al a reserva de apoios qu e lh e era im prescin dível para o seu recon h ecim en to e u lterior sobrevivên cia. O prim eiro con fron to qu e ocorreu , após a vitória liberal, en tre a sen sibilidade n eovin tista de teor radicalizan te e a sen sibilidade cartista, doravan te iden tificada com os m ais diretos ben eficiários da m on arqu ia con stitu cion al in stalada, foi o da revolu ção de setem bro de 1836. Os seu s prin cipais m en tores, Man u el da Silva Passos e José da Silva Passos, su bordin avam -se a u m a eviden te in spiração de ten dên cia dem ocrática. Não obstan te o azedu m e da Corte, tradu zida n o qu alificativo com qu e aí era tratado Man u el Passos – o “rei Passos” – do qu e se tratava era de “cercar o tron o de in stitu ições repu blican as”. Mas este radicalism o revolu cion ário só vin gou episodicam en te qu an do plasm ou n a Con stitu ição de 1838 a eqü idistân cia en tre o vin tism o e o cartism o. Apesar disso, o setem brism o foi apodado de dem agógico e os seu s ch efes apon tados com o agitadores das tu rbas in scien tes. Iron icam en te, cou be a u m dem agogo de cepa, An tón io Bern ardo da Costa Cabral, a m issão de su focar, com o aplau so do Paço, a breve experiên cia dos govern os setem bristas. Mais do qu e o retorn o à con stitu cion alidade cartista, o cabralism o assu m irá o sign ificado de u m a prática ven al, m an iqu eísta e person alista n o desem pen h o do poder. As persegu ições aos adversários políticos, as grosseiras violações das praxes eleitorais, o alastram en to do favoritism o e da corru pção e a proteção descom edida dispen sada por D. Maria II ao seu valido determ in aram qu e o cabralism o tivesse perm an ecido com o u m a m em ória pou co edifican te da h istória con tem porân ea portu gu esa. Recon h eça-se, con tu do, o seu largo lequ e de in iciativas de fom en to e as realizações m ateriais qu e en tão foram levadas à prática. O excessivo rigor das pesadas cargas tribu tárias a qu e Costa Cabral teve de recorrer exacerbaram os protestos popu lares. E estes recru desceram ain da m ais qu an do a m en talidade religiosa popu lar se viu atacada por u m a legislação qu e preten dia in stitu cion alizar os en terram en tos em cem itérios, qu ebran do a tradição das in u m ações n o solo sagrado dos tem plos. Ocorrem en tão os m otin s plebeu s da Maria da Fonte (1846), con globan do n u m a vasta fren te de con testação in dividu alidades setem bristas, elem en tos do clero u ltram on tan o e de setores afeitos ao absolu tism o m igu elista. Dada a su a flu idez ideológica, parece ser im possível filiar este protesto n o veio do n eovin tism o. Porém , é já u m a van gu arda liberal, con otada com o radicalism o, qu e criará n o an o segu in te u m a rede de ju n tas políticas locais in cen tivadoras da su blevação da Patuléia. Este m ovim en to revolu cion ário virá a ser travado m edian te o pedido de au xílio de 269 Amadeu Carvalho Homem D. Maria II a potên cias estran geiras, ao qu al se segu iu u m a in terven ção m ilitar qu e fru strou defin itivam en te as in ten ções dos pata ao léu . A con figu ração social do liberalism o portu gu ês apresen ta-n os u m rem an escen te de recorrên cias h istóricas qu e ilu dem os pressu postos de m odern ização e de ru ptu ra qu e seria legítim o esperar. Pesava sobre o país u m a forma mentis e u m trilh o de h ábitos com portam en tais qu e só a in teriorização de valores bu rgu eses avan çados, solidam en te firm ados n a livre in iciativa em presarial, poderiam tran sform ar. Mas essa m odificação de con teú dos de con sciên cia e de práticas de ação n ão foi alcan çada. É certo qu e a com pra de “ben s n acion ais” pela n ova bu rgu esia ascen den te poderia teoricam en te forn ecer-lh e os m eios m ateriais adequ ados à profu n da reform u lação da realidade social. Con tu do, este n ovo estrato h egem ôn ico estabilizará o seu qu erer em con cordân cia com m odelos cadu cos. Em term os su bstan ciais, as von tades de afirm ação in dividu al n ão diferiam m u ito das qu e se h aviam expressado n a sociedade pré-liberal. A n ova bu rgu esia liberal aspirava à n obilitação, m an tin h a u m ideal de riqu eza predom in an tem en te cen trado n os ben s fu n diários, especu lava im produ tivam en te, am arrava-se o m elh or qu e podia aos n ich os da adm in istração pú blica e con servava sob su speita o valor da in iciativa in dividu al, já en tão decididam en te vitoriosa n as paragen s eu ropéias m ais desen volvidas. O qu e o liberalism o sign ificou , n o exterior, de libertação de forças produ tivas, cristalizou , em Portu gal, n o m odesto cadin h o de u m a sim ples tran sferên cia de títu lo de propriedade. Desta m an eira, a triu n fan te sociedade liberal sedim en tou -se ao redor de n obilitados bu rgu eses, n a m aior parte dos casos de fresca data, os qu ais am bicion aram para si e para os seu s descen den tes u m n ich o segu ro e garan tido n o exército dos servidores do Estado. Alh eios a qu alqu er tradição de in iciativa econ ôm ica particu lar e m olecu larm en te refratários ao risco dos n egócios, estes u su fru tu ários do con servadorism o cartista procu raram as posições m ais con fortáveis n o pequ en o m u n do da adm in istração pú blica. Fizeram -se caciqu es e “n otáveis locais” em razão de su a com provada in capacidade de se fazerem em presários capitalistas de vistas largas. Em 1851, com a revolu ção da Regen eração, in iciou -se em Portu gal a experiên cia do capitalism o possível. Mas este pou co se assem elh ará aos su rtos de desen volvim en to econ ôm ico in du strial levados a cabo pela Eu ropa tran spiren aica. A dim en são predom in an tem en te ru ralista da econ om ia portu gu esa, associada a toda a sorte de atavism os e recorrên cias m en tais, torn aram in evitável o protagon ism o estatal qu an do se tratou de im prim ir din am ism o ao m ercado in tern o. É bom qu e se diga qu e este m ercado m al se esboçava por altu ras de 1851. Por isso é qu e a revolu ção regen eradora de Rodrigo da Fon seca Magalh ães e de Saldan h a esgotará a su a eficácia n a criação de in fra-estru tu ras m ateriais, n ão se abalan çan do a ou tras ou sadias. 270 JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO O in térprete m ais qu alificado do program a da Regen eração foi Fon tes Pereira de Melo. O fon tism o tradu ziu -se, portan to, n u m a política de “m elh oram en tos m ateriais” ou de obras pú blicas. Estas foram qu ase exclu sivam en te su portadas pelos cofres oficiais, em razão da in existên cia de u m a bu rgu esia forte e em preen dedora. Mas com o o erário pú blico era an êm ico, teve qu e recorrer por sistem a ao crédito extern o. Foi com libras esterlin as pedidas de em préstim o à praça de Lon dres qu e se su priu a rarefação dos m eios creditícios n acion ais. Assim , a obra de fom en to liberal origin ou o crescim en to in con trolável da dívida pú blica e o desequ ilíbrio crôn ico da balan ça de pagam en tos. O serviço da dívida, aliado à pressão dos credores extern os, ditará os gravosos term os da política tribu tária levada a efeito pelos su cessivos govern os regen eradores. A correlação qu e forçosam en te se estabeleceu en tre o volu m e dos em préstim os e a carga in tern a dos im postos explica a próxim a eclosão de crises sociais, qu e vitim arão sobretu do os estratos popu lacion ais de ren dim en tos m ais débeis. A filosofia de tribu tação dos govern os regen eradores segu iu os trilh os da ortodoxia liberal, u m a vez qu e recorreu à gam a dos im postos in diretos, in ciden tes sobre o con su m o, e evitou on erar os ren dim en tos gerados pelos capitais privados. Ficou para a h istória o ju ízo em itido por Fon tes Pereira de Melo, qu an do o con fron taram com as reclam ações dos setores sociais m ais fragilizados pelo agravam en to tribu tário: “O povo pode e deve pagar m ais”. A partir de 1851, o Partido Regen erador açam barcou os lu gares de represen tação política e redu ziu a tradição n eovin tista e setem brista a com parsas m en ores da realidade rotativa. Nu m a prim eira fase dessa prática rotativa, a oposição ao con servadorism o cartista será debilm en te desem pen h ada pelo Partido Histórico do Marqu ês de Lou lé. Mas era u m tão fraco con traste en tre am bos qu e em 1865 foi possível organ izar u m “gabin ete de fu são”, n o qu al regen eradores e h istóricos con vivem placidam en te. A con testação ao “fu sion ism o” partirá de u m setor de partidários “h istóricos” qu e, clam an do por reform as, con sideraram espú ria e an tin atu ral a coligação “fu sion ista” qu e n asceu deste diverso m odo de ver a patru lh a partidária do Reform ism o. A revolu ção espan h ola de 1868 e o dram a san gren to da Com u n a de Paris de 1871 virão a ser os in spiradores diretos de altern ativas exteriores à lógica da m on arqu ia, m edian te a u lterior fu n dação dos partidos repu blican o e socialista. Den tro do cam po m on árqu ico, porém , foi a in egável prim azia do Partido Regen erador qu e forçou à u n ificação das forças qu e lh e eram opon en tes. O Pacto da Gran ja de 1876 u n iu os “reform istas” de D. An tón io Alves Martin s, bispo de Viseu , e os “h istóricos” ch efiados por An selm o Braam cam p, fazen do n ascer o Partido Progressista e in au gu ran do o ch am ado “segu n do rotativism o”. O com prom isso da Gran ja apresen tava as m elh ores poten cialidades para qu e o n ovo partido 271 Amadeu Carvalho Homem pu desse vir a in terpretar os an seios do liberalism o radical, u m a vez qu e o seu program a ou sava situ ar-se n a lin h a de con tin u idade h istórica qu e en carecia os n om es de u m Man u el Fern an des Tom ás, de u m Man u el Passos ou de u m Joaqu im An tôn io de Agu iar. Mas o desen can to provocado pela su a govern ação, qu an do alcan çou o poder, sin gu larizou o repu blican ism o com o a ú n ica força ideológica su scetível de recolh er o legado da tradição vin tista, setem brista e “patu léia”. B REVE N OTA SOBRE A PROPOSTA REPUBLICA N A Acan ton ado defen sivam en te n u m pequ en o n ú m ero de cen tros m ilitan tes, n u m ericam en te rarefeitos, sediados em Lisboa, n o Porto e em Coim bra, o repu blican ism o do decên io de 70 apresen ta-n os du as corren tes program áticas: a do federalism o (Teófilo Braga, Carrilh o Videira, Teixeira Bastos, Silva Lisboa etc.) e a do u n itarism o dem ocrático (José Elias Garcia, Bern ardin o Pin h eiro, Gilberto Rola etc.). En qu an to perdu raram as su gestões revolu cion árias vin das da Fran ça e sobretu do de Espan h a, o federalism o portu gu ês desen volveu a su a propagan da em efêm eros órgãos da im pren sa periódica ( O Rebate, A República Federal). Na lin h a das dou trin as de Pi y Margall, de Em ílio Castellar, de Eu gèn e Varlin e qu ejan dos, os federalistas bateram -se pela descon cen tração das riqu ezas privadas, pela ch efia colegial da fu tu ra federação repu blican a, pelo m an dato im perativo dos represen tan tes parlam en tares e pela descen tralização adm in istrativa e territorial. Com o esm agam en to da Com u n a de Paris e o alu im en to da repú blica espan h ola de 1873, o federalism o en tra em retrocesso e tran sfere a h egem on ia para a corren te u n itária. Esta prescin de da tôn ica socializan te glosada pelo federalism o, alijan do tam bém os tem as da ch efia coletiva do Estado, do m an dato im perativo e da descen tralização. O seu eixo referen cial passará a ser o da dign ificação e am pliação do su frágio, ten den cialm en te dirigido à su a u n iversalização. A par disto, preten de-se tam bém racion alizar o sistem a econ ôm ico vigen te e reforçar a cidadan ia, com a con sagração dos direitos, liberdades e garan tias in dividu ais, tidos com o falseados n a in terpretação restritiva do con stitu cion alism o m on árqu ico. A n ovidade trazida pelo repu blican ism o ao liberalism o portu gu ês oitocen tista será a de lh e aditar a n ota dem ocrática con su bstan ciada n a reclam ação do su frágio u n iversal. A ideologia repu blican a n ão preten deu m u dar a n atu reza econ ôm ica do liberalism o. Con ten tou -se em precon izar qu e a ortodoxia cen sitária do sistem a evolu ísse politicam en te n u m sen tido dem oliberal. É isto qu e explica a vocação eleitoralista da prim eira propagan da repu blican a. Os cen tros do repu blican ism o u n itário apresen tavam -se com o verdadeiras escolas de civism o eleito- 272 JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO ral, in sistin do n o aspecto pedagógico da propagan da a ser realizada. Con victos da su a expressão m in oritária e u rban a, os repu blican os desta geração preten deram en sin ar aos seu s destin atários os ru dim en tares valores e as básicas n oções da su a cren ça m atricial. Fizeram -n o cien tes da esm agadora expressão do an alfabetism o popu lar, o qu al atin gia porcen tagen s escan dalosas n os m eios ru rais. Era u m ideal dem opédico qu e se en con trava sem pre presen te n os com ícios, n as con ferên cias proferidas em associações popu lares, n os folh etos de divu lgação e até n os préstitos com em orativos – com o o qu e se realizou , por exem plo, n a festividade do tricen ten ário de Cam ões, celebrado em 1880. A in ten ção de difu n dir às m assas ign aras ru dim en tos de cu ltu ra político-social su ficien tem en te acessíveis, deu origem a broch u ras redigidas em lin gu agem in gên u a. Estão n este caso a Cartilha do Povo, de José Falcão, e o Catecismo Republicano para uso do Povo, de au toria de Carrilh o Videira e de Teixeira Bastos. Um a ou tra razão, de ín dole filosófica, con feria a este su rto propagan dístico a su a n ota de pedagogism o pacífico. Referim o-n os à relevân cia assu m ida pelo positivism o n a m en talidade dos ch efes repu blican os dos decên ios de 70 e de 80. Tan to Au gu sto Com te com o Em ílio Littré propu n h am u m a filosofia de desen volvim en to h istórico regido pela fam osa “lei dos três estados”. A h u m an idade tran sitaria de u m in icial estado m en tal teológico para u m defin itivo estado m en tal positivo ou cien tífico, por m eio da m ediação provisória de u m estado m en tal m etafísico. O term o fin al da evolu ção con fu n diase, em term os políticos, com o adven to da repú blica. Im perava assim , n o evolver h istórico, u m determ in ism o rígido, o qu al postu lava a n ecessidade in trín seca do triu n fo dem ocrático. Assim se en ten de qu e esta geração repu blican a, em balada pela can tata positivista, qu e lh e reforçava a credu lidade n a in evitabilidade do resu ltado fin al, se ten h a fixado n as fórm u las da propagan da ordeira, pacífica, pedagógica e evolu cion ista. Do qu e se tratava, afin al, era de elevar a sociedade n éscia à altu ra do esclarecim en to sociológico. Um a vez qu e esta em presa tivesse sido realizada, a Repú blica su rgiria fatalm en te, qu al fru to am adu recido e pron to a ser colh ido. O SONHO IMPOSSÍVEL DE UM NOVO BRASIL NA ÁFRICA: O ULTIMATO INGLÊS DE 1890 E OS SEUS EFEITOS A bon an ça em qu e vogava o Partido Regen erador com eçou a ser pertu rbada pelo efeito de con ten ciosos colon iais m an tidos com a Grã Bretan h a. As preten sões in glesas à ilh a de Bolam a e à baía de Lou ren ço Marqu es foram resolvidas a favor de Portu gal, respectivam en te em 1870 e 1875, por sen ten ças arbitrais proferidas pelos presiden tes Ulisses Gran t, dos Estados Un idos da Am érica, e Mac-Mah on , da Fran ça. Mas as crises 273 Amadeu Carvalho Homem de sobreprodu ção in du strial com qu e a Eu ropa desen volvida se debateu a partir de m eados do sécu lo acicataram projetos de colon ização sistem ática das plagas african as, ten do em vista a obten ção de m ercados altern ativos para o escoam en to dos stocks paralisados. A Eu ropa m ercan til prestara especial aten ção às deam bu lações realizadas por David Livigston e en tre 1840 e 1873 ao lon go do Zam beze e n as regiões do Niassa e do Tan gan ica. As descobertas das jazidas de diam an tes de Kim berley, em 1867, e das m in as de ou ro do Tran svaal, em 1885, torn aram im parável o m ovim en to de “corrida à África” e despertaram in su speitadas vocações colon ialistas. Alcan çado o protetorado da Tu n ísia, a Fran ça procu rava trazer à su a órbita de in flu ên cia o cen tro equ atorial african o. O rei Leopoldo II da Bélgica, acolitado pelo jorn alista am erican o Stan ley, procu rou in stitu cion alizar o Estado-Livre do Con go. O ch an celer alem ão Bism arck con cedeu cobertu ra a associações colon iais fin an ciadas por capitais privados, procu ran do firm ar-se n o su doeste african o, n a África orien tal, n o Togo e n os Cam arões. A In glaterra con segu ira libertar-se da parceria fran cesa n o protetorado do Egito e in stalara-se n a colôn ia do Cabo. O n egocian te e aven tu reiro Cecil Rh odes, qu e fu n cion ava com o u m verdadeiro agen te da Rain h a Vitória, pression ou a ch an celaria britân ica para a m aterialização do plan o de con stru ção de u m a via férrea qu e pu desse u n ir o Cabo ao Cairo, oferecen do ao m ercan tilism o in glês o tu tan o das riqu ezas e m atériasprim as do con tin en te n egro. Era previsível, portan to, a eclosão de con flitos in tern acion ais, gerados por preten sões colon ialistas con corren tes. No tratado lu so-britân ico de Lou ren ço Marqu es, firm ado em 1879, a In glaterra era leon in am en te favorecida por u m a paridade con dom in ial qu e jam ais ela pu dera alcan çar pela arbitragen s. A reação n acion alista aos term os do con vên io foi protagon izada em Portu gal pela opin ião repu blican a, sobretu do pela criação dos jorn ais O Século e O Trinta. Assim , os in ícios dos an os 80 acrescen tarão aos m otes con ven cion ais da argu m en tação an tim on árqu ica o tem a, torn ado proverbial, da in cú ria e da in com petên cia do govern am en talism o régio relativam en te à m an u ten ção e desen volvim en to do patrim ôn io colon ial portu gu ês. As potên cias colon iais proem in en tes procederão à defin ição de n ovos critérios de apropriação colon ialista n o decorrer da Con ferên cia de Berlim (fin s de 1884 – in ícios de 1885), realizada com o patrocín io de Bism arck. Se até en tão h avia vigorado o prin cípio da prioridade da descoberta e a vaga n oção das “zon as de in flu ên cia”, a partir de agora irá exigir-se u m a efetiva ocu pação territorial. Era u m a exigên cia in com portável para a an em ia fin an ceira do Estado portu gu ês, visto qu e a fatu ra dos “m elh oram en tos m ateriais” regen eradores se apresen tava cada vez m ais pesada. Por ou tro lado, o período qu e m ediou en tre os protestos su scitados pelo tratado de Lou ren ço Marqu es e o m om en to em qu e en cerrou a con ferên - 274 JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO cia de Berlim sin gu larizou -se por avolu m adas restrições às liberdades pú blicas fu n dam en tais. São disso exem plo as persegu ições m ovidas à im pren sa pela portaria de 12 de ou tu bro de 1881 e a féru la persecu tória protagon izada em 1884 por Lopo Vaz, au tor da “lei das rolh as”. Esta acen tu ação do au toritarism o receberá in cen tivos com o falecim en to do rei D. Lu ís e com a su bseqü en te en tron ização de D. Carlos. En qu an to o prim eiro observou cu idadosam en te os lim ites do seu papel con stitu cion al, o segu n do qu is in tervir ativam en te n a política, correspon den do ao pedido qu e lh e era dirigido por m u itas in dividu alidades sim patizan tes do cesarism o germ ân ico. No gru po in telectu al e gastron ôm ico dos Vencidos da Vida, próxim o de D. Carlos, form ado por algu m as das glórias literárias do país (Oliveira Martin s, Gu erra Ju n qu eiro, Ram alh o Ortigão, Eça de Qu eirós) e por aristocratas perten cen tes à prim eira n obreza do Rein o (Con de de Ficalh o, Con de de Sabu gosa, Bern ardo Correia de Melo, Lu ís Pin to de Soveral, Carlos Lobo de Ávila), eram freqü en tes as in vectivas con tra a situ ação rotativa e con tra o parlam en tarism o. Só u m a factível proxim idade desses pon tos de vista perm item com preen der a cobertu ra qu e D. Carlos dispen sou aos m odos de govern ação extrapartidária por on de se en veredou após o Ultim ato in glês de 1890 e a gabin etes apostados em fazer vin gar processos ditatoriais. Este agravam en to das con dições da in terven ção cívica prepara u m a profu n da in flexão n o estilo da propagan da repu blican a. A u m a geração de pedagogos dou trin ários, cren tes n as virtu alidades do evolu cion ism o político e n a eficácia dos m eios pacíficos de difu são do seu ideário, su cederá u m a ou tra, m ais jovem , m ais in sofrida e m en os iden tificada com o determ in ism o teleológico do positivism o. Peran te a legislação in tern acion al con sagrada n o Ato Fin al da Con ferên cia de Berlim , algu n s govern an tes portu gu eses, com o José Vicen te Barbosa de Bocage, Man u el Pin h eiro Ch agas e An tôn io En es, abraçaram a idéia de Portu gal poder vir a estabelecer n a zon a m eridion al african a u m eixo de expan são en tre An gola e Moçam biqu e, su scetível de brin dar o país com u m a zon a de soberan ia sem solu ção de con tin u idade. Un ir-se-ia o ociden te an golan o ao orien te m oçam bican o. Sabia-se, porém , qu e a realização do projeto portu gu ês im olava a expectativa britân ica e o son h o qu e Cecil Rh odes atiçara com os con ciliábu los servidores da Rain h a Vitória. A delim itação territorial das preten sões portu gu esas con stava de dois con vên ios n egociados em 1885 com a Fran ça e a Alem an h a. Os m apas an exos aos tratados, coloridos a rosa, pu n h am o Zam beze a correr in teiram en te em áreas de soberan ia portu gu esa. En tre 1884 e 1889, a Sociedade de Geografia patrocin ou várias explorações dirigidas às zon as sertan ejas n evrálgicas para a con su m ação do porten toso objetivo. A irritação britân ica foi su bin do de tom à m edida qu e a estratégia portu gu esa preten dia con solidar posições n a fron teira leste de Moçam biqu e, en tre o Lim popo e o 275 Amadeu Carvalho Homem Zam beze. Com efeito, a am bição portu gu esa de criar n a África u m n ovo Brasil colidia com o plan o da estrada de ferro tran safrican a qu e os in gleses alm ejavam con stru ir en tre o Cabo e o Cairo. De tu do isto resu ltou o u ltim ato qu e Salisbu ry fez en tregar ao govern o portu gu ês em 11 de jan eiro de 1890. Nele se in tim ava Portu gal a retirar im ediatam en te todas as su as forças m ilitares das regiões em litígio. A im plícita am eaça de u tilização de m eios bélicos con feriu à in tim ativa a força do in apelável. Os in térpretes do ideário dem oliberal au feriram das van tagen s con seqü en tes à gravidade deste m om en to h istórico. É qu e os su cessivos govern os, para ten tarem con trariar a vozearia an ôn im a das ru as e a m aré dos protestos, en du receram flagran tem en te os seu s m eios de ação. O recu rso a elen cos m in isteriais extrapartidários e a ditadu ras adm in istrativas foi determ in an te para a ten tativa de in stitu cion alização de agrem iações in depen den tes qu e pu dessem salvagu ardar a tradição valorativa do radicalism o liberal e restau rar o abalado prestígio da n ação. Tan to a Liga Liberal, ch efiada por Au gu sto Fu sch in i e dirigida sobretu do ao elem en to m ilitar, com o a Liga Patriótica do Norte, presidida por An tero de Qu en tal, obedeceram ao propósito de in stalar assem bléias con su ltivas de reflexão, à m argem da lógica partidária rotativa, n as qu ais se pu dessem debater solu ções de resgate fu tu ro. Foram ten tativas bem in ten cion adas, m as fin alm en te abortadas. Con tu do, a crise do u ltim ato porá em relevo u m a n ova geração repu blican a de propagan distas “ativos”, em fran ca dissidên cia com os m étodos pu ram en te eleitoralistas, verbalistas e pacíficos até en tão em voga. Su rgiu u m jorn alism o de com bate, sobretu do iden tificado com círcu los estu dan tis in vu lgarm en te au dazes. O órgão da Academ ia repu blican a lisbon en se, A Pátria, revelou os n om es de Higin o de Sou sa, Brito Cam ach o e João de Men eses; o estu dan te de m edicin a Edu ardo de Sou sa pu blicou n o Porto a folh a O Rebate; em Coim bra im prim iu -se O Ultimatum , qu e estam pou os agrestes artigos de An tón io José de Alm eida e de Afon so Costa. Mas n ão foram apen as os estu dan tes qu e se m ovim en taram . O jorn alista João Ch agas, con qu istado para a cau sa repu blican a pelo ch oqu e patriótico do u ltim ato, in cen diou as págin as dos periódicos A República e A República Portuguesa, am bos su rgidos n o Porto. O segu n do destes órgãos de im pren sa passou a exarar n u m erosos depoim en tos de m ilitares de baixa paten te, clam an do por u m a exem plar desafron ta qu e restau rasse os brios feridos do exército portu gu ês. Foi esta a an tecâm ara da revolta portu en se de 31 de jan eiro de 1891, ten tativa in gên u a e rom ân tica em qu e em barcaram em otivam en te os três oficiais a qu e se redu ziu o Estado-Maior dos su blevados (Alferes Malh eiro, Ten en te Coelh o e Capitão Leitão) e u m a pequ en a m u ltidão de praças de pré, cabos e sargen tos. Agu en taram -se 8 h oras n a con ten da, an tes de serem obrigados a capitu lar peran te as forças fiéis à m on arqu ia. A revolta fi- 276 JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO liava-se flagran tem en te n a m em ória do vin tism o. A prova m ais irrefu tável desta filiação en con tra-se n o fato de terem sido fielm en te repetidos pelos su blevados os itin erários e os cerim on iais da distan te – m as recorren te e obsidian te – revolu ção de 24 de agosto de 1820! Qu e u m tal atavism o de postu ras se desen cadeie assim , tão sim bolicam en te, a tam an h a distân cia tem poral, é bem a prova do veio em qu e m ergu lh am as raízes do repu blican ism o portu gu ês. Na su a pan óplia ideológica en con tram os a reivin dicação de u m liberalism o expu rgado da m ácu la cartista, a reclam ação de u m con stitu cion alism o defen sor dos foros da soberan ia n acion al e a exigên cia de u m parlam en tarism o sem o açaim o do veto real e do pariato. A dou trin a do “en gran decim en to do poder real” acabou por sedu zir os ch efes dos partidos m on árqu icos m ais represen tativos n u m m om en to em qu e a m orte já ceifara vu ltos com o o de An selm o Braam cam p e Fon tes Pereira de Melo, defen sores de u m cartism o m ais respeitador do con vívio plu ral. Tan to a ch efia regen eradora, en tregu e a Hin tze Ribeiro, com o a progressista, n as m ãos de José Lu cian o de Castro, se m ostraram perm eáveis a apelos e ten tações liberticidas. Esta n ota é especialm en te visível n o período qu e m edeia en tre 1893 e 1897. A ditadu ra en cetada por Hin tze Ribeiro e João Fran co em fin s de de 1893, in au gu ra u m lon go período de com pressão política e de vigilân cia social. Su prim e-se o pariato eletivo, im possibilita-se a represen tação das m in orias, fu n da-se u m Ju ízo de In stru ção Crim in al com en orm es e discricion ários poderes, pu blica-se legislação fortem en te lesiva das garan tias fu n dam en tais – com o a tristem en te fam osa lei an tian arqu ista de fevereiro de 1896, qu e os repu blican os apelidaram de “lei celerada” – e qu erela-se por razões pu eris o jorn alism o oposicion ista. No cam po dem ocrático lavrava a desorien tação. Um setor repu blican o m ais m oderado ch egou a firm ar com o Partido Progressista u m a “coligação liberal”, sob a vivíssim a discordân cia de correligion ários opositores a tal pacto. A su baltern ização a qu e ficaram con den adas as oposições, dim in u ídas por u m a legislação eleitoral cerceadora dos seu s direitos de represen tação, determ in ou o seu aban don o su m ário das u rn as n o ato eleitoral de n ovem bro de 1895, ao qu al só se apresen taram can didatos regen eradores. A Câm ara dos Depu tados viu -se redu zida a u m a situ ação m on opartidária, sen do forçada a sim u lar debates parlam en tares de pu ra circu n stân cia. Qu an do, em fevereiro de 1897, José Lu cian o de Castro arredou fin alm en te a situ ação regen eradora, os repu blican os objetores da “coligação liberal” con firm aram as su as pretéritas descon fian ças. Man tiveram -se, n o essen cial, todos os aparelh os repressivos h erdados da govern ação an terior. Por isso, o Partido Repu blican o irá persistir n a su a postu ra de absten cion ism o eleitoral, só vin do a regressar ao su frágio em fin s de 1899. Aliás, a su a desarticu lação era tão preocu pan te qu e An tón io José de Alm eida, n u m artigo su rgido em fin s de 1903 n o jorn al 277 Amadeu Carvalho Homem O Mundo, de Lisboa, falava n a n ecessidade de “fazer desde o prin cípio” a obra de organ ização. A CRISE D O ROTATIVISMO MON Á RQUICO E O A D VEN TO D A REPÚBLICA A braços com esta profu n da crise, os repu blican os n ão pu deram aproveitar-se das irreversíveis m u tações qu e irão fragm en tar o cam po m on árqu ico. Desde 1876 qu e o rotativism o en tre regen eradores e progressistas se praticava, estabilizan do o m odelo político. Mas o reverso desta estabilização con sistia n a descaracterização profu n da dos dois partidos qu e en tre si dividiam o poder. Na prática, qu ase n ada diferen ciava u m m in istério regen erador de u m m in istério progressista. Mas se ou tras form ações m on árqu icas pu dessem em ergir, a tradição rotativa teria de fazer variar o seu estilo de expressão, de m odo a con ceder algu m espaço de m an obra a n ovos com parsas. No Partido Regen erador ferm en tava u m a dissen ção, an u n ciadora de u m a ru ptu ra. Dotado de u m a person alidade en érgica e am biciosa, João Fran co con solidará, en tre 1901 e 1903, a cisão qu e se adivin h ava. Levan do atrás de si u m a pequ en a falan ge de depu tados regen eradores rebeldes, irá fu n dar o Partido Regen erador Liberal, em aberto con fron to com Hin tze Ribeiro. Com o m ote do seu fracion ism o, en fatizará o efeito perverso do rotativism o n a tran sparên cia da vida pú blica e o “lu díbrio” revezadam en te in trodu zido por regen eradores e progressistas n a con du ção adm in istrativa do rein o. Um a idên tica cisão irá ocorrer n o in terior do Partido Progressista. José de Alpoim , qu e desem pen h ara o cargo de m in istro da Ju stiça n u m gabin ete de 1904 presidido por José Lu cian o de Castro, tam bém se afasta das fileiras do seu partido de origem , viabilizan do n o an o segu in te o pequ en o agru pam en to da Dissidên cia Progressista. Os ódios in testin os qu e se geraram a partir destes atos objetivos de rebelião, con su bstan ciados em violen tos tu m u ltos n a Câm ara dos Depu tados e n a im pren sa, aceleraram o descrédito das in stitu ições com a opin ião pú blica. O episódio m ais salien te do desm an telam en to do sistem a rotativo rem on ta à alian ça estabelecida en tre José Lu cian o de Castro, líder progressista, e João Fran co, ch efe dos regen eradores-liberais, u n idos n u m a “con cen tração liberal” qu e preten dia apear do poder Hin tze Ribeiro, prim eira figu ra do Partido Regen erador. Em m aio de 1906, Hin tze sofre a afron ta de ser ren dido pelo ch efe dos regen eradores-liberais, com o ativo patrocín io de Lu cian o de Castro. Este vexam e era a retaliação dos favores eleitorais com qu e o govern o de Hin tze cu m u lara a Dissidên cia Progressista en qu an to estivera n o poder. Com o se verifica, a ocorrên cia das cisões m on árqu icas in trodu zira n o jogo político os m ais graves fatores de in stabilidade. En qu an to o Partido Regen erador se servia de Alpoim para 278 JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO desfeitear os progressistas, estes in stru m en talizavam João Fran co para irritar os regen eradores. Arriscada tavolagem era esta, em qu e os dois ch efes dos m aiores partidos se serviam de in terposições odiosas para se deprim irem m u tu am en te... Faltou aos gran des partidos m on árqu icos clarividên cia bastan te para m argin alizarem as patru lh as dissiden tes, as qu ais, caso tivessem sido aban don adas ao seu próprio valim en to, se teriam de con form ar com a su a fatal su baltern idade. A form ação do gabin ete m in isterial fran qu ista, em m aio de 1906, era com patível com as regras con stitu cion ais, u m a vez qu e a in clu são de in dividu alidades do Partido Progressista con feria ao m in istério o su porte de legitim idade qu e lh e era in dispen sável. João Fran co m an ifestara a in ten ção de “govern ar à in glesa”, ou seja, sob a vigilân cia do Parlam en to, e retratara-se pu blicam en te do seu passado político ditatorial. Porém , tu do se com plicou qu an do foi levada à discu ssão da Câm ara dos Depu tados a ch am ada “qu estão dos adian tam en tos”. Tratava-se de regu lar os débitos da Coroa para com o Erário pú blico, em ergen tes de verbas en tregu es por diversos m in istros da Fazen da à realeza, para cobertu ra de gastos excepcion ais e qu e excediam , con seqü en tem en te, as cifras con stan tes da “lista civil” qu e legalm en te eram atribu íveis à Casa Real. O debate parlam en tar desta m atéria am otin ou as oposições an tifran qu istas e forn eceu aos depu tados repu blican os (An tôn io José de Alm eida, Afon so Costa, Alexan dre Braga e João de Men eses) o desejado pretexto para a exau toração da m on arqu ia. À agitação dos setores políticos correspon deu a in tran qü ilidade de segm en tos sociais relevan tes. A partir de m arço de 1907, a Un iversidade de Coim bra con vu lsion ou -se com u m a greve acadêm ica, acaban do por ser en cerrada pelo govern o. João Fran co ten tou persu adir José Lu cian o de Castro a aprofu n dar a “con cen tração liberal”, através do recu rso a u m a rem odelação m in isterial valorizada pela en trada n o gabin ete de algu n s dos n om es m ais son an tes do progressism o. Mas o ch efe do Partido Progressista fu rtou -se a este desiderato. A “con cen tração liberal” esgotara-se. Regressar-se-ia ao rotativism o? É n esta con ju n tu ra qu e se revela com clareza o desígn io de D. Carlos. Em vez de em pu rrar João Fran co para a dem issão, o m on arca in citou o seu valido a exercer a ditadu ra. Ao decreto qu e en cerrou o parlam en to, em 10 de m aio de 1907, su cederam se ou tros diplom as lim itativos dos direitos e garan tias in dividu ais. Todas as oposições se u n ificaram in form alm en te. Era com o se de u m lado existisse a barricada com u m de João Fran co e de D. Carlos, e do ou tro su rgisse u m a vasta fren te, en globan do todo o país político. O processo en con trado para resolver a “qu estão dos adian tam en tos” levan tou larga celeu m a. Os setores críticos acu savam o govern o de ter avaliado com excessos de parcim ôn ia as dívidas reais. Abateu -se sobre Fran co u m ven daval de cen su ras, sen do este apresen tado pelo jorn al Correio da Noite, ligado aos 279 Amadeu Carvalho Homem h om en s de José Lu cian o, com o u m ven al m an datário do locu pletam en to din ástico. Talvez por isto, n ão foi con tem porizadora a en trevista qu e D. Carlos con cedeu , em 13 de n ovem bro, a Joseph Galtier, redator do jorn al fran cês Le Temps. O rei ju stificava a vigen te ditadu ra, declaran do, aliás com verdade, qu e ou tros políticos, an tecessores do fran qu ism o, lh e tin h am igu alm en te solicitado poderes ditatoriais. Um a das su as afirm ações foi especialm en te desastrada: aqu ela em qu e D. Carlos derivava a su a atu al con fian ça n o ch efe do govern o das “garan tias de caráter” qu e ele lh e oferecia. Deste m odo, o rei parecia im olar toda a classe política estran h a ao fran qu ism o, du vidan do qu e ela fosse portadora das tais “garan tias de caráter” qu e exorn ariam o seu ditador privativo. Estas declarações tiveram u m efeito devastador en tre certos áu licos, até en tão fiéis ao tron o. As defecções qu e logo foram con h ecidas abran geram person alidades relevan tíssim as. Au gu sto José da Cu n h a, an tigo m in istro da Coroa e ex-preceptor de D. Carlos, An selm o Braam cam p Freire, Par do Rein o, e Fau stin o de Sá Nogu eira, descen den te do Marqu ês de Sá da Ban deira, con sideraram -se divorciados do credo m on árqu ico. Foi sob os rigores do fran qu ism o qu e o m ovim en to dem ocrático se reorgan izou . Mas agora esta reorgan ização n ão se en cam in h ou para a difu são pedagógica e pacífica do seu ideário. O ativism o revolu cion ário da geração do Ultim ato n ão preten deu segu ir os processos in ofen sivos da m era dou trin ação. A con spiração revolu cion ária obedeceu a u m a arqu itetu ra sediciosa qu e com bin ou u m plan o de relativa visibilidade com u m ou tro de m aior opacidade. Preten dem os com isto dizer qu e do m esm o m odo qu e o Partido Repu blican o coorden ava a ação do protesto pú blico, trabalh an do em com u m com ou tras organ izações cívicas, toleradas pela exígu a legalidade vigen te – com o, por exem plo, a Liga Liberal, de Migu el Bom barda –, tam bém n ão desprezava o con tribu to de ou tras organ izações secretas ou clan destin as. Era o caso da Maçon aria e da Carbon ária Portu gu esa. Se a prim eira gozava de larga tradição, a Carbon ária, espécie de braço arm ado m açôn ico, n ascera do em pen h o de Artu r Du arte da Lu z Alm eida, o qu al com eçara por fu n dar u m a Maçon aria Acadêm ica qu e posteriorm en te viria a perder o seu caráter exclu sivam en te estu dan til. Em 28 de jan eiro de 1908 abortou em Lisboa o m ovim en to revolu cion ário qu e os repu blican os e os “dissiden tes” de Alpoim h aviam forjado. Segu n do José Relvas, foi este even to qu e alu cin ou João Fran co e o despen h ou n a “fase deliran te” do seu con su lado. Com efeito, a resposta en con trada para a gravidade dos acon tecim en tos con sistiu n a preparação do decreto de 31 de jan eiro, san cion ado por D. Carlos em Vila Viçosa. O decreto con figu rava u m a au tên tica declaração de gu erra para todos os opositores do fran qu ism o. Nele se previa a facu ldade govern am en tal de “expu lsar do Rein o ou fazer tran sportar para u m a provín cia u ltram ari- 280 JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO n a”, em n om e dos “in teresses gerais da n ação”, todos aqu eles qu e fossem in diciados pela au toridade ju dicial. Ficavam tam bém su spen sas as im u n idades parlam en tares dos qu e se m an ifestassem “con tra a segu ran ça do Estado” ou se apresen tassem com o “in im igos da sociedade”. No dia segu in te, 1º. de fevereiro de 1908, ao regressar a Lisboa n a com pan h ia da su a fam ília, D. Carlos su cu m biu n u m a esqu in a do Terreiro do Paço, sob os disparos dos regicidas Man u el dos Reis Bu iça e Alfredo Lu ís da Costa. O prín cipe real D. Lu ís Filipe foi a ou tra vítim a da san h a assassin a. A preparação do revolu cion arism o carbon ário acelerou n otoriam en te n o período su bseqü en te ao regicídio. A “Alta Ven da”, órgão deliberativo da organ ização, passou a in clu ir com o ch efes as person alidades de Mach ado San tos e de An tôn io Maria da Silva. A palavra de ordem do triu n virato dirigen te ia n o sen tido de serem aliciadas as bases da h ierarqu ia castren se por repu blican os qu e pu dessem in sin u ar-se n os qu artéis da gu arn ição de Lisboa. Mas n em todos os repu blican os advogavam a solu ção revolu cion ária im ediata. O jorn al O Mundo, acolh en do as orien tações de Bern ardin o Mach ado e Afon so Costa, passou a exprim ir, após o regicídio, opin iões de gran de m oderação. Fazia-lh e fren te o gru po do jorn al A Luta , arregim en tan do Brito Cam ach o, José Relvas, Malva do Vale, In ocên cio Cam ach o e José Barbosa. Um dos m ais ativos pregoeiros do revolu cion arism o im ediato era João Ch agas, o qu al con vertera os fascícu los das su as Cartas Políticas em libelos in cen diários. O tron o era agora ocu pado por D. Man u el II. In experien te, m u ito in flu en ciado por su a m ãe, algo perm eável aos avan ços do u ltram on tan ism o, o jovem rei teve ain da con tra ele o com pleto desm an telam en to do cam po m on árqu ico. Com efeito, a crise lavrava n o in terior dos partidos tradicion ais da realeza. A agrem iação dos progressistas ressen tia-se pela debilidade de m an do de José Lu cian o de Castro, já m u ito alqu ebrado pela idade avan çada e pela doen ça. O Partido Regen erador, por seu tu rn o, m ergu lh ou n u m a verdadeira orgia dissolu tória. O falecim en to de Hin tze Ribeiro, em agosto de 1907, tran sform ara a lu ta pela su cessão n u m circo de dispu tas sem freio. Em bora Jú lio de Vilh en a tivesse con segu ido o triu n fo da su a can didatu ra, tal h egem on ia n u n ca foi acatada por ou tros “n otáveis”. A in stabilidade govern ativa foi o corolário n ecessário deste con tu rbado pan o de fu n do. Ten h am os presen te qu e en tre fevereiro de 1908 e ou tu bro de 1910 se su cederam , em estado perm an en te de pertu rbação e fragilidade, os gabin etes de Ferreira do Am aral, Cam pos Henriques, Sebastião Teles, Wenceslau de Lima, Veiga Beirão e Teixeira de Sousa. Neste agitado cenário, foram completamente ignorados os apelos de Júlio de Vilhena e do próprio D. Manuel II para que se reconstruíssem os partidos históricos. O congresso republicano que se reuniu em Setúbal entre 23 e 25 de abril de 1909 ditou a vitória tangencial da facção revolucionária. A Carbo- 281 Amadeu Carvalho Homem nária no seu conjunto e as figuras individuais de José Relvas, Inocêncio Camacho, José Barbosa, Antônio José de Almeida e João Chagas rejubilaram com o revés sofrido por Afonso Costa e Bernardino Machado, paladinos da tendência moderada. Afonso Costa, contudo, aceitou sem azedume os resultados do congresso, não se furtando, sequer, a integrar um comitê revolucionário civil, na companhia de João Chagas e Antônio José de Almeida. Organizou-se um comitê revolucionário militar sob o comando do almirante Cândido dos Reis. E do mesmo modo que a Carbonária prosseguiu a todo o vapor a sua tarefa de sedução às baixas patentes militares, assim o almirante tratou de aliciar, por seu turno, individualidades militares de mais alta hierarquia. Em 30 de janeiro de 1910 realizou-se na capital uma reunião republicana com os “correligionários mais prestigiosos de todo o país” para ponderar sobre a viabilidade de promover no espaço nacional uma “forte agitação”. Os que defendiam a imediata passagem à ação sobrelevavam a militância dos mais reticentes. Além do proselitismo revolucionário que João Chagas continuava a desenvolver nas Cartas Políticas, também Antônio José de Almeida, na recém-criada revista Alma Nacional, manifestava e difundia os mesmos pontos de vista. O congresso republicano de abril de 1910, convocado para o Porto, selou o pacto entre a Carbonária e o restante associativismo democrático não clandestino, fazendo aprovar uma moção de solidariedade para com as associações políticas secretas que cooperavam na obra revolucionária. O Partido Republicano irá obter nas eleições de 28 de agosto de 1910 a maior vitória jamais alcançada por ele, com os seus catorze deputados eleitos. Os resultados das urnas não demoveram, contudo, os adeptos da metodologia revolucionária. Como é sabido, foi de armas na mão, no decurso da madrugada de 4 para 5 de outubro, que Machado Santos fez singrar a república, resistindo nas barricadas da Rotunda aos augúrios pessimistas que ditaram o suicídio de Cândido dos Reis. João Chagas vaticinara que se o novo regime pudesse implantar-se em Lisboa, pelo veredito da violência, os novos poderes seriam decretados pelo telégrafo, pacificamente, para o resto do país. Foi isso que se verificou. Portugal era – é ainda – uma Grei centralista. Se tal constituiu e constitui uma das suas maiores fraquezas ou, pelo contrário, o segredo da sua perenidade, tal questão é matéria para desenvolvimentos que ultrapassam os limites deste trabalho. 282 JACOBINOS, LIBERAIS E DEMOCRATAS NA EDIFICAÇÃO DO PORTUGAL CONTEMPORÂNEO B IBLIOGRA FIA ALEXANDRE, V. Origens do colonialismo português moderno (1822-1890). Lisboa, 1979. ALMEIDA, P. T. de. 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E que houve porventura mais semelhanças entre algumas fases da Ditadura que se seguiu ao 28 de maio de 1926 e certos momentos da Primeira República do que entre esta e o Sidonismo institucionalizado de 1918. E ponderar-se-ia ainda que, mesmo em termos políticos, e abstraindo da figura do rei, a República parlamentar esteve mais próxima da Monarquia de 1908-1910 do que esta da Ditadura franquista, cujo paralelo se encontraria antes no Dezembrismo de Sidônio Pais. Na verdade, e dadas as sucessivas experiências políticas ocorridas no Portugal de então, ou se tende a cair num atomismo periodista, tentando homogeneizar as muitas pequenas fases que o caracterizaram ou, pelo contrário, se prefere uma única época de conjunto, situada entre os períodos de grande estabilidade que foram a Regeneração oitocentista e o Estado Novo novecentista. Esta época de conjunto iniciar-se-ia com os primeiros anos do século XX – quando os fermentos de mudança se introduziram definitivamente – e terminaria com a definição de Estado Novo e com a adoção definitiva de um Estado autoritário e antiliberal, por volta de 1930. Ao longo de trinta atribulados anos sucederam-se, por vezes vertiginosamente, uma Monarquia constitucional assente num desprestigiado rotativismo partidário (1900-1906), uma Monarquia constitucional renovada (1906-1907), uma Monarquia despótica e autoritária (1907-1908), uma nova Monarquia constitucional assente na multiplicidade dos partidos e na sua instabilidade conseqüente (1908-1910), uma Ditadura republicana visando um Estado parlamentar (1910-1911), uma República democrática parlamentar (19111915), uma Ditadura militar visando a correção das instituições (1915), uma 285 A. H. de Oliveira Marques segunda República democrática parlamentar caracterizada pelo predomínio de um partido (1915-1917), um Regime presidencialista autocrático (19171918), uma restauração da Monarquia (em parte do país; 1919), uma Terceira República democrática parlamentar assente na multiplicidade de partidos e na instabilidade sua conseqüente (1919-1926), uma Ditadura militar indecisa visando a correção das instituições (1926-1928) e, por fim, uma Ditadura sabendo já “o que queria e para onde ia” (1928 e seguintes). Variedade e instabilidade caracterizam também, naturalmente, as estruturas políticas e as ideologias políticas. Multiplicaram-se os partidos políticos e os grupos de pressão, acentuando-se a diversificação ideológica. Na organização de cada grupo, também se esteve longe de um modelo único. Partidos de massas e partidos de quadros disputaram entre si poder e influência. Sucederam-se as eleições autárquicas, legislativas e presidenciais. O número de governos atingiu o máximo em toda a história portuguesa do passado e do futuro. A classe política alargou-se e democratizou-se. Nunca, como então, o acesso ao poder foi tão fácil e a queda desse mesmo poder tão rápida e definitiva. Não admira que a atividade legislativa de todo o período se mostrasse também intensa, variada e instável. Se o corpo de leis edificado foi imponente e válido, já a efetividade dessas mesmas leis e o seu impate na sociedade se revelaram muito menores. De uma maneira geral, a legislação do primeiro terço do século XX, até durante a Monarquia, distanciava-se muito, na vanguarda que a definia, das reais possibilidades de Portugal para a absorver e frutificar. Era uma legislação esclarecida e ideal, feita por gente bem-pensante e apostada na modernização rápida do país, mas inadequada às suas condições de base. Os homens do tempo acreditavam na ação direta, de cima para baixo, como arma eficaz para corrigir e remodelar a sociedade em que se integravam. Mas a verdade é que a toda essa variedade e instabilidade dos meios e dos agentes políticos correspondiam estruturas econômicas e sociais arcaicas, cuja solidez só pouco foi abalada e só pouco podia ser abalada. A organização da propriedade, por exemplo, reconhecida por todos como imprópria para o desenvolvimento da agricultura, dificilmente podia ser tocada sem uma dinâmica revolucionária que de todo faltava. Os pequenos proprietários recusavam-se ao emparcelamento, ao passo que os latifundiários rejeitavam in limine qualquer reforma que lhes amputasse a terra. Na economia, por seu turno, continuava a insistir-se nos produtos tradicionais – os cereais, o vinho, o azeite, a cortiça – com técnicas ultrapassadas e com formas de comercialização já de há muito exploradas. Não era fácil, por seu turno, conseguir uma modificação de mercados externos. E todo o comércio com o estrangeiro girava em torno das relações com a GrãBretanha e das facilidades, até de transporte, que aquele país proporcionava. O peso esmagador da Grã-Bretanha na vida portuguesa não se limita- 286 DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA va, evidentemente, ao comércio externo nem à economia em geral. Por via deles condicionava toda a política externa – e, às vezes, até a interna – subordinando-a aos seus desejos, interesses e objetivos. Era impensável trilhar um caminho independente, afastado da aliança e da proteção britânicas, que assim se revelavam um pesado fator de estabilidade na diplomacia de Portugal. É certo que se tentou, e com alguns resultados, a via da industrialização. As conservas de peixe atestam-no. Mas a estrada a percorrer era longa e trinta anos não chegavam para conseguir, por meio dela, uma maior independência econômica. Aliás, tanto a agricultura como a indústria se debatiam com a inadequação da rede de transportes internos, imperfeita, incompleta e facilmente deteriorável. Por seu turno, o comércio interno continuava a assentar numa multiplicidade de formas tradicionais pouco desenvolvidas, privilegiando a pequena loja, os mercados e as feiras. Malgrado a renovação causada pela guerra, esses modelos persistiram, freando grandes concentrações de capital e grandes complexos comerciais. Assim, o pequeno comerciante e o pequeno industrial, ao lado do pequeno proprietário, controlavam ou, pelo menos, dominavam numericamente o espaço econômico da época. Rotineiros e timoratos, constituíam uma força conservadora, flutuante em simpatias políticas, pronta a apoiar quem quer que lhe proporcionasse pequenos aumentos de lucro mas também quem quer que lhe garantisse segurança e tranqüilidade. Os próprios proletários, quer rurais quer urbanos, em aumento constante, partilhavam desse conservantismo de base já que, na sua maioria, detinham alguma coisa de seu. Com poucas exceções, o movimento operário português mostrou-se sempre tímido e pouco vanguardista, contentando-se com pequenos avanços no nível de vida e nas condições de trabalho. Quase todos os grupos sociais, aliás, sofreram duramente com as conseqüências da guerra, vendo reduzido, durante muitos anos, o seu poder de compra. Enquadrando estas forças, existia uma Igreja ultramontana, composta por uma maioria de sacerdotes e de congregacionistas dos dois sexos, pouco instruídos e pouco esclarecidos. O seu peso na sociedade era muito grande, embora variasse com os grupos sociais e com as regiões do país. A Igreja receava o aumento da descristianização em curso, que atribuía ao avanço do republicanismo e da Maçonaria. Por isso lutou com todas as forças e por todos os meios contra o regime implantado em 1910, temendo que a sua influência entre as massas pudesse diminuir. Conservadoras ainda se mostravam grande parte das Forças Armadas, nomeadamente o Exército, onde coexistiam o recruta analfabeto oriundo dos meios rurais e o oficial orgulhoso, cônscio dos seus privilégios de casta e da sua “missão” defensora e redentora. Temperado pelas campanhas da África e pela participação na Primeira Guerra, o oficial do Exército 287 A. H. de Oliveira Marques viu na arena política um campo onde se julgava com o dever de intervir, a fim de “salvar a Pátria”. A seu lado encontrou outros corpos militarizados, como a Guarda Nacional Republicana, porventura mais radicalizada mas não menos interessada em cumprir a sua missão de intervenção. Outra força conservadora eram as colônias. A sua manutenção indivisível e a sua valorização a todos os níveis constituíam um pesado lastro, travando um desenvolvimento mais acelerado da Metrópole. Das colônias saíam também benefícios, é certo. Por via delas Portugal continuava a fazer alguma figura e a ter alguma relevância nesse conserto de nações ambiciosas e pouco escrupulosas que definiam a época. As colônias serviam de escudo contra o imperialismo absorcionista da Espanha e de moeda de troca para obter a proteção da Inglaterra. Mas foram as colônias que, em grande parte, motivaram a intervenção na guerra, com as conseqüências trágicas que daí resultaram para todo o país. Com tempo, o Portugal republicano conseguiria talvez minorar a defasagem entre forças progressivas e bases conservadoras, esbater assimetrias e fazer vingar a legislação mais avançada. Mas esse tempo não lhe foi concedido. A quatro anos de existência, a eclosão da Primeira Guerra e os seus resultados puseram fim prático a projetos e a empreendimentos grandiosos, reduzindo a obra governativa à difícil gestão do cotidiano. A República deixou de se distinguir da Monarquia e de representar uma alternativa de progresso e de bem-estar. Os Messias passaram a ser outros. Embora um esboço de ideologia republicana se pudesse fazer remontar a 1820, foi só nos meados do século XIX que o republicanismo surgiu como doutrina expressa com clareza e repercussão popular. O seu ideário pôde assim cristalizar no Manifesto e Programa de 1891, elaborado pouco antes da revolta republicana de 31 de janeiro desse ano, e que persistiria até à proclamação da República. Nele se fundiam os princípios das gerações de 48, 65-70 e 90. Foi seu autor o grande historiador e filósofo positivista Teófilo Braga (este Manifesto foi publicado muitas vezes. Veja-se, por exemplo, o texto apenso ao Boletim do Partido Republicano Português, Lisboa, p., 463-70, 1912. O Manifesto e Programa, posteriormente chamado ora Manifesto ora Programa, abria com uma introdução de caráter histórico e ideológico. Descrevia os acontecimentos do ano decorrido desde o Ultimatum (1890), sintetizando nele a falência do regime monárquico-constitucional da Carta, a exautoração dos partidos rotativos e a crise, “na expectativa de uma tremenda catástrofe nacional”, e a que um e os outros haviam arrastado a Nação. Separava, conseqüentemente, esta da Monarquia, que se mantinha “apenas pela indiferença geral”. E apontava para a necessidade de a Nação ter “um partido seu, que pugne pela sua dignidade e independência, tirando da civilização moderna as bases de uma nova reorganização política”. Esse partido era o Partido Republicano Português, identificado assim como 288 DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA partido nacional (e, portanto, único), de vanguarda, e cientificamente programado. O Partido Republicano desenvolver-se-ia “na razão direta do desalento público e da propaganda do moderno saber, trazido na fecunda corrente européia”. E, mais adiante, definia-se “República” como “uma nacionalidade exercendo por si mesmo a própria soberania, intervindo no exercício normal das suas funções e magistratura”. Monarquia e monárquicos relegavam-se, pois, para o campo do obscurantismo, do passado pré-científico, do quase absolutismo, do não-europeu, do antinacional. Não se tratava de uma opção pluralista, mas de uma dicotomia entre progressismo e reacionarismo. A introdução do Manifesto e Programa encerrava-se por uma evocação das grandes gerações do passado – as de 1384, 1640, 1820 e 1834 – e por um apelo à “obra gloriosa da reorganização de Portugal”. O texto continuava com a definição de liberdade e de igualdade – em termos políticos – e com um primeiro parágrafo dedicado à “Organização dos Poderes do Estado”. Nele apontava para os três poderes tradicionais, o legislativo, o executivo e o judicial, rejeitando conseqüentemente o poder moderador da Carta Constitucional e perfilhando as bases da Constituição de 1822. O poder legislativo seria exercido, em nível municipal, pelas federações de municípios legislando em assembléias provinciais e, em nível nacional, pela federação de províncias legislando numa assembléia nacional. De dez em dez anos funcionaria uma Constituinte destinada à revisão periódica da Constituição e à reforma da codificação. O poder executivo dividir-se-ia em três superministérios, o da Segurança Pública (Exército e Marinha de Guerra, Interior, Justiça e Negócios Estrangeiros), o da Educação Pública (Educação, Cultura e Assistência) e o da Economia Pública (Agricultura, Comércio, Indústria, Marinha Mercante, Comunicações, Obras Públicas e Finanças). No poder judicial existiriam “juízes de conciliação, preparação, arbitragem e revisão”, juízes cíveis (“singular, coletivo e especial”), criminais, policiais e administrativos. A segunda parte, ou parágrafo, do Manifesto e Programa continha as chamadas “liberdades essenciais”, as “liberdades políticas” e as “liberdades civis”. Nas primeiras incluíam-se, além das tradicionais liberdade de consciência, liberdade de imprensa e liberdade de discussão, certas aspirações muito caras aos republicanos, tais como a igualdade entre todos os cultos, a abolição do juramento religioso, o registro civil obrigatório, o ensino elementar secular e a secularização dos cemitérios, além de outras bastante originais, como a divisão do professorado em docente e examinante, a educação progressiva da mulher, a abolição dos graus e da freqüência obrigatória no ensino superior e a harmonização e simplificação dos vários códigos. Nas liberdades políticas entravam, como novidades, o sufrágio universal, a autonomia municipal e a descentralização (e administração civil) das colônias, a abolição dos monopólios particulares, a abolição do corpo di- 289 A. H. de Oliveira Marques plomático e a transformação do corpo consular numa magistratura para as relações internacionais e, por fim, a abolição do serviço militar obrigatório (com o Exército reduzido a quadros e milícias), além das tradicionais liberdades de associação, reunião e representação, liberdade de trabalho e indústria, autonomia da Nação etc. Finalmente, no âmbito das liberdades civis, entravam a extinção das derradeiras formas senhoriais de propriedade (foros, laudêmios, lutuosas etc.), a obrigatoriedade do cultivo da terra sob pena de expropriação, a reforma do crédito, um novo sistema de regulamentação do trabalho de menores, o fomento do cooperativismo a todos os níveis, a não concorrência do Estado com as indústrias particulares, a criação de colônias penais agrícolas, a extinção de loterias e dos jogos de azar, a revisão pautal, a abolição dos direitos de consumo, a criação de tribunais arbitrais de classe para conflitos sociais, o estabelecimento de bolsas de trabalho, o reconhecimento da dívida pública “com o resgate da externa e regularizando a interna como meio de capitalização dos pequenos possuidores”, etc. (a este programa convirá aditar o Manifesto dos emigrados da revolução de 31.1.1891, por acentuar e precisar melhor alguns dos pontos referidos na “Introdução” ao programa republicano – Manifesto dos Emigrados de 31 de Janeiro, prefácio e notas de Alexandre Cabral, Lisboa, 1974). Importa, todavia, acentuar que muito republicano jamais lera o programa ou os manifestos do seu partido. Sobre a futura República, não tinha idéias definidas. Ser republicano, por 1890, 1900 e 1910, queria dizer ser contra a Monarquia, contra a Igreja e os Jesuítas, contra a corrupção política e os partidos monárquicos. Mas a favor de quê? As respostas mostravam-se vagas e variadas. Subsistia, como objetivo preciso, a descentralização. Mas, quanto ao resto, a tendência geral era antes para se conceder à palavra “República” algo de carismático e místico, e para acreditar que bastaria a sua proclamação para libertar o país de toda a injustiça e de todos os males. “Eu, meu senhor”, dizia no tribunal um dos soldados implicados na revolta de 31 de janeiro de 1891, “não sei o que é a República, mas não pode deixar de ser uma coisa santa. Nunca na igreja senti um calafrio assim”. E, com as mudanças inevitáveis que uma maior instrução implicaria, a idéia era a mesma entre os camponeses, os operários, os pequenos e os médios burgueses, sem distinção de classe. É importante acentuar este aspecto para compreender as desilusões e as contradições dos republicanos quando, por fim, triunfaram, em 1910. Na verdade, o republicanismo veio a findar também como uma espécie de utopia, que implicava um regime perfeito “do povo para o povo”, baseado em completa igualdade, liberdade e “justiça democrática”. O ideário republicano, na sua última fase, mostrava pouca diferença do de 1820 (ou seja, o da Revolução Francesa), que a Monarquia Constitucional tentara interpretar e aplicar de uma forma pragmática. Este fato esvaziou a República 290 DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA de muitas realizações práticas (que haviam cimentado e institucionalizado a monarquia liberal), reduzindo-a, em grande parte, a um aperfeiçoamento difícil ou impossível de fórmulas já experimentadas. Seria, no entanto, errado supor que o republicanismo estagnou com a proclamação da República. Se a ideologia de base sofreu poucas ou nenhumas mudanças, a verdade é que se instituiu uma política de governo que foi evoluindo à medida que a realidade abria os olhos aos republicanos e lhes mostrava a necessidade de objetivos mais determinados. Três grandes questões caracterizaram o período 1900-1930, individualizando-o de certa maneira e concedendo-lhe unidade: a questão do regime, a questão religiosa e a questão colonial. Nenhuma delas, é fato, foi específica do primeiro terço da centúria, quer por derivar de épocas anteriores quer por prosseguir em épocas subseqüentes. Mas a somatória das três, a sua inter-relacionação e a elevação de qualquer delas a base da existência de Portugal independente só nessa época puderam ser encontrados. A questão do regime foi porventura a mais específica do seu tempo e a que mais diferenciou o país em termos internacionais. É verdade que a mudança de instituições sacudira a França e a Espanha na década de 1870. Uma geração depois, todavia, não representava problema grave nem agitava a opinião pública de qualquer dos dois países. Embora o Partido Republicano estivesse bem representado no Parlamento de Madri e a República tivesse até sido proclamada em algumas cidades catalãs durante a revolta de outubro de 1908, a Monarquia espanhola assentava ainda em fundamentos sólidos e eram sobretudo as questões autonomistas que davam força ao republicanismo espanhol de então. Noutros Estados da Europa, a questão do regime achava-se ancilarmente ligada à mudança das bases da própria sociedade, essa sim, considerada prioritária. Era o que sucedia na Alemanha com o forte Partido Social-Democrata, de ideologia marxista e, de uma maneira geral, nos países mais evoluídos, com movimentos socialistas afins. Na própria Espanha, o Partido Socialista tinha uma importante votação popular em nível de municípios, estando representado no Parlamento desde 1910. Ora, em Portugal, e embora o republicanismo se apresentasse, em muitos casos, colorido de socialismo (quer “utópico” quer “científico”), a questão política sobrelevava claramente a questão social. Entendia-se que a mudança de funcionamento da sociedade seria inoperante sem a mudança prévia das instituições políticas definidoras do Estado. Não se aceitava uma subversão social “de baixo para cima”, arrastando consigo o próprio regime ou tornando-o secundário. Acreditava-se, sim, que as alterações sociais se fariam “de cima para baixo” por ação legislativa e que, para tal, havia que mudar primeiramente o regime político. Era, no fundo, o resultado da fraqueza da classe operária portuguesa em face da força e da politi- 291 A. H. de Oliveira Marques zação da pequena e média burguesias urbanas, receosas de “revoluções” profundas que abalassem o direito de propriedade e o conjunto de direitos civis e políticos pouco a pouco conseguidos a partir de 1820. Um rei popular e político hábil, como outrora o haviam sido D. Luís e D. Pedro V, poderia ter arredado ou, pelo menos, minorado, o perigo republicano. Mas, à exceção da rainha-mãe Maria Pia, a família real portuguesa, na primeira década do século XX, era tudo menos popular. O rei D. Carlos, inteligente e culto, artista e homem de ciência, orgulhoso, desprezava os seus conterrâneos, viajava muito, ausentando-se tempo demais no estrangeiro, onde se divertia e gastava o que a opinião pública julgava excessivo. Conheciam-se e eram mal vistas pela sociedade hipocritamente puritana do tempo as suas aventuras galantes em Paris, as suas amantes notórias, as suas fracas qualidades de pai de família. E entendia-se, numa época em que o desprestígio dos partidos monárquicos e dos seus chefes políticos atingira o ponto máximo, que o rei não prestava suficiente atenção aos negócios públicos e que não escolhia para governar os homens mais qualificados, entregando o poder a ministros corruptos e corruptores, cuja obra conduziria, em última análise, à perda da independência. A rainha D. Amélia, malgrado a sua constante ação caritativa e filantrópica, era tida como “beata” e dócil instrumento do clero secular e regular, nomeadamente da Companhia de Jesus. Acusavam-na de constituir um mau exemplo para os príncipes seus filhos, educados sob uma tutela clerical tida por excessiva e nefasta. Também a achavam gastadora e pouco simpática, muito dada a validos e favoritas, não se lhe perdoando as más relações notórias com a rainha-mãe D. Maria Pia, a “filha de Vítor Manuel”. A questão religiosa tinha paralelo em outros países, nomeadamente na França, na Itália, na Bélgica e, décadas atrás, na Alemanha. Em Portugal, contudo, e dada a sua ligação íntima com a questão do regime, assumia aspectos muito próprios e diferenciados. O anticlericalismo era timbre da opinião pública mais esclarecida e vanguardista. Entendia-se que, sem extirpar a ação do clero na vida individual e coletiva, não valia a pena empreender medidas revolucionárias de reforma da sociedade. Como dizia o estadista Afonso Costa, em discurso de 16 de outubro de 1911, avaliando a obra já então realizada pelo Novo Regime: “ela [a República] desceu até às raízes do mal, e arrancou-as, expulsando os Jesuítas, dispersando as congregações e aconselhando o padre, desde o tonsurado bispo até ao humilde cura da aldeia, a resignar-se com o estabelecido ou a lutar contra princípios que o governo tinha combatido e estava disposto a esmagar”. Combater e destruir o clericalismo, portanto, era tão indispensável como derrubar o regime. Igreja e Monarquia identificavam-se e mutuamente sustentavam-se. E, tal como a família real em relação ao regime, assim também o clero português no iníco do século não ajudava a uma dignificação da Igreja nem a uma atitude simpática da opinião pública para com ela. 292 DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA A questão colonial, especificamente portuguesa na sua forma de receio e desconfiança em face das demais potências com patrimônio ultramarino e de corrida contra o tempo para o aproveitar e valorizar, esteve intimamente ligada à questão do regime. Foi um dos grandes motivos do descrédito da Monarquia, da proclamação da República e da intervenção de Portugal na guerra. E, embora apaziguada e relegada a segundo plano após 1919, continuou a desempenhar papel de relevo na política, na economia e na sociedade portuguesas no decênio seguinte. O patrimônio colonial era considerado – malgrado algumas opiniões em contrário – inalienável e indestrutível. A “lusitanização” dos territórios possuídos na África e Ásia tinhase por evidente, pensando-se pouco em hipóteses de independência “à brasileira”. Além disso, e como já foi dito atrás, as colônias permitiam a Portugal manter ainda alguma figura no conserto internacional. A questão da dívida pública externa foi outro quebra-cabeças de então, como aliás de toda a história portuguesa. O país, pouco produtivo e em vias de desenvolvimento, exigira sempre gastos avultados. Parte deles, aliás, respeitara a guerras civis e a questões políticas diversas. Pedia-se então dinheiro emprestado ao estrangeiro. Pagava-se mal, com sucessivos atrasos e moratórias. Os credores protestavam e ameaçavam. Recorria-se a expedientes, a conversões forçadas, a manobras financeiras sempre insatisfatórias para os interesses nacionais. Em março de 1900, o tribunal arbitral de Berna, a quem Portugal recorrera numa dessas questões com os credores estrangeiros – a questão da estrada de ferro de Lourenço Marques –, proferiu sentença altamente desfavorável ao país. Foi necessário pagar 3 mil contos aos governos britânico e norte-americano. Em 1902 resolveu-se outra questão de dívida pública externa, sendo aprovado um convênio que levantou tempestade nas tribunas e na imprensa. A atribulada história da Primeira República Portuguesa passou por três grandes fases. Na primeira, de 1910 a 1917 – a “República forte” –, o novo regime justificou-se e aguentou-se à mercê de uma atitude agressiva e pouco contemporizadora, tanto no interior como no exterior. Na segunda, de 1917 a 1919, dominado pelas forças de direita e subjugado pelas conseqüências desastrosas da guerra, tentou enveredar por caminho diferente, que se revelou então impossível. Finalmente, na terceira, de 1919 a 1926 – a “República fraca” –, aceitou compromisso atrás de compromisso, abandonando, na prática, os princípios revolucionários de 1910 e renovando toda uma política de hesitações e incoerências que caracterizara os finais da Monarquia. Vítima sobretudo do conflito mundial, cujos efeitos começou a sentir logo em 1914, a Primeira República Portuguesa foi, de certa maneira, um regime sem sorte, que os acontecimentos internacionais impediram de se fortalecer e cristalizar (veja-se o paralelo com a Segunda República Espanhola, à qual faltou, igualmente, o tempo indispensável para deitar 293 A. H. de Oliveira Marques raízes). Foi também um regime excepcional na Europa do seu tempo, vanguardista na contestação e, em muitos casos, na subversão que propunha, o que tornava difícil a sua consolidação num período curto. E foi, por fim, um regime apoiado sobretudo nas massas urbanas e flutuando ao sabor da instabilidade social que elas atravessaram entre 1910 e 1926. Em qualquer destes aspectos, a Primeira República contrastou flagrantemente com o regime que lhe sucedeu, o qual, em perfeita sintonia com os movimentos autoritários e fascistas da Europa, solidariamente ancorado nas massas rurais e conservadoras, e dispondo de suficiente tempo de paz para se estabilizar, pôde aguentar-se durante dezenas de anos. A política agressiva da “República forte” dirigiu-se, no plano interno, em primeiro lugar contra a Igreja, reconhecida como o baluarte mais perigoso do conservantismo e do reacionarismo. Dirigiu-se igualmente contra os monárquicos, contra a oligarquia financeira e econômica, contra o anarco-sindicalismo e a organização operária em geral, contra o caciquismo rural tradicional etc. No plano externo, e obviamente mitigada pelos melindres diplomáticos e pelos perigos de isolamento internacional, dirigiu-se contra a Espanha e, conjunturalmente, contra a Alemanha, numa tentativa para minorar a hegemonia espanhola na Península e para assegurar o futuro desanuviado do patrimônio colonial. Neste sentido, e também para sacudir o peso protetor da Inglaterra, adotou, desde os primeiros dias do conflito de 1914-1918, uma política belicista e intervencionista, ao lado dos Aliados, a contrastar com a neutralidade do país vizinho. A República surgiu e triunfou em Portugal ao abrigo de dois mitos: o da pátria decadente, “à beira do abismo”, conduzida pela Monarquia “à ruina e à desonra”, e o da possibilidade do seu ressurgimento com novas instituições, iniciado pela geração de 1890 e desde essa data. A decadência da pátria dever-se-ia sobretudo a múltiplos fatores morais, todos eles incorporados na Monarquia: o jesuitismo, a “corrupção moral”, o servilismo, os “preconceitos e os privilégios das castas” e outros conceitos mais ou menos vagos, difundidos e partilhados pela opinião pública. Por isso se aspirava a uma república “pura”, “imenso e grande ideal”, perfilhado por homens instruídos e politicamente responsáveis como um Afonso Costa ou um Paulo Falcão. Mas rejeitava-se que fosse apenas uma corrente filosófica a determinante do ideário republicano. Para muitos, a República era a “conseqüência lógica e fatal” da própria evolução histórica portuguesa, caracterizada por instituições e costumes “fundamentalmente democráticos”. A monarquia constitucional, estabelecida depois da revolução liberal de 1820 e estabilizada a partir dos meados do século, seguira os padrões comuns à maioria dos Estados europeus da época. O rei “reinava mas não governava”, ainda que as suas funções em Portugal estivessem acrescidas do chamado “poder moderador” que lhe dava certos direitos intervenientes, como o de dissolver as Câmaras quando necessário. 294 DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA Durante a Monarquia, a representação parlamentar era em grande parte uma farsa. Tal como acontecida na Espanha, embora o regime fosse teoricamente constitucional, continuava na prática uma monarquia absoluta, que confiava o poder aos partidos; e os partidos, manipulando habilmente o maquinismo político, impunham esse poder a um povo ignorante e indiferente na sua maioria. Luis Araquistain viu muito bem este problema, salientando que o poder não emanava do povo para os partidos e destes para a Coroa, mas sim da Coroa para os partidos e destes para as organizações locais de caciques. “O povo votava por quem era mandado ou por quem mais lhe pagasse os votos”. Os partidos não passavam de agrupamentos heterogêneos, em torno de chefes. As suas ideologias eram vagas e pouco se diferenciavam umas das outras. Embora os Regeneradores fossem um pouco mais conservadores e os Progressistas um pouco mais radicais, seria absurdo tentar classificá-los como Direita ou Esquerda. Ambos eram profundamente conservadores e ambos se compunham de elementos oriundos dos mesmos grupos sociais e com interesses semelhantes. O Partido Republicano parecia, à primeira vista, completamente diferente. Apresentava um programa de ação radical, contava com gente mais dinâmica, mais nova e mais consciente dos interesses do país. Apelava para as massas, prometendo-lhes melhoria de nível de vida. Clamava contra a corrupção política, contra o reacionarismo clerical e contra a nobreza. No entanto, como vimos, o Partido Republicano definia-se muito mais pelo que não era do que pelo que era. Era contra a Monarquia, contra a Igreja, contra a corrupção, contra os grupos oligárquicos. Mas o seu programa mostrava-se muito vago na afirmação de realidades positivas. E não podia ser de outro modo, dada a filiação heterogênea dos seus membros. Se o grosso se compunha de representantes da classe média, não faltavam proletários e até camponeses, de interesses contraditórios com os daquela; e mesmo aristocratas idealistas ou despeitados militavam nas suas fileiras. Era uma espécie de Frente Popular, formidável e eficiente na luta contra a situação que estava; mas inepto para operar logo que conquistasse o poder e presa de lutas intestinas que o levariam à desagregação. O mais que se poderia afirmar do Partido Republicano era o seu caráter fundamentalmente urbano: mas ainda aqui as exceções se mostravam numerosas. Feita a revolução de 1910, conquistado o poder pela força, o Partido Republicano desagregou-se rapidamente, e a instabilidade política prosseguiu. Os elementos mais conservadores abriram cisão, agrupando-se em torno de duas personalidades dominantes, uma mais popular e demagoga, a outra mais intelectual e autenticamente crítica. O grosso do partido manteve a unidade, sob a chefia do mais hábil e dotado dos estadistas da República, Afonso Costa. Compunham-no sobretudo as massas da pequena burguesia, com muitos proletários também. No entanto, os vícios herdados 295 A. H. de Oliveira Marques mantiveram-se. Os partidos da República, ainda que mais definidos ideologicamente, nunca conseguiram eximir-se ao prestígio do “chefe” e ao autoritarismo do cacique. Quando o chefe morria, fraquejava ou se retirava da vida política, o partido declinava, abria cisão, extinguia-se muitas vezes. Depois de 1919, a tendência para a especialização ideológica acentuou-se. Na ala esquerda formaram-se alguns partidos ou associações políticas interessadas pela estruturação programática e pela relativa coerência de atitudes; sirvam de exemplos o Partido Comunista (1919), o grupo Seara Nova (1921) e a Esquerda Democrática (1925), além de uma maior afirmação parlamentar e prática do velho Partido Socialista. Na ala direita, o movimento era menos perceptível: grupos como o dos Católicos, ou o dos Monárquicos, mostravam-se tão heterogêneos como o antigo Partido Republicano. O único agrupamento coeso era o do Integralismo Lusitano, datando já de antes da guerra, e que iria fornecer a essência da ideologia do Corporativismo português depois de 1930. Não obstante esta tendência política, o grosso do eleitorado continuava firmemente sob a alçada dos partidos tradicionais, detentores de um maquinismo complexo e de um “savoir-faire” que escapava ainda (ou por vontade) aos novos. Era o Partido Democrático (nome por que era geralmente conhecido o P R P), era o Partido Nacionalista (resultado final e herdeiro da fusão de Evolucionistas com Unionistas) que geralmente governavam sozinhos ou combinados, e que ganhavam as eleições. A revolução de 28 de maio de 1926, que pôs fim à República Democrática, foi, superficialmente, uma rebelião de todos os partidos contra a supremacia do Partido Democrático, enquistado no poder. Analisada em profundidade, contudo, foi muito mais do que isso: foi um autêntico movimento de reação antiurbana, a resposta da maioria conservadora das províncias à maioria radical das cidades-capitais. À semelhança da revolução republicana de 1910, o 28 de maio foi uma coligação de elementos heterogêneos, definida antes pelo que não queria do que pelo que queria. Ao contrário dela, foi um movimento majoritário da estabilização, que triunfou, porque soube utilizar as camadas inertes, subjacentes, da população, as interpretou no seu conservadorismo e as representou na defesa dos chamados valores tradicionais: a Religião, o Exército, a Nação, a Família, a Ordem, a Terra. À semelhança do que aconteceu com os vários movimentos conservadores ocorridos por toda a Europa pela mesma época, a situação política portuguesa oriunda do 28 de maio foi provavelmente apoiada pela maioria da Nação. A República evoluía logicamente para um radicalismo de feição socialista ou socializante. Reforma agrária, aumento de tributação sobre os possidentes, nacionalizações, desenvolvimento da assistência social, melhoria do nível de vida das classes populares, contavam-se entre os assuntos 296 DA MONARQUIA PARA A REPÚBLICA em discussão e inseriam-se na agenda dos partidos, quando não se achavam já em vias de efetivação. Era o resultado óbvio da gradual industrialização do país e da lenta alfabetização das massas. Mas esta evolução, se parecia excessivamente demorada a uns – os intelectuais, os operários –, afigurava-se espantosamente rápida a outros – os proprietários rurais, os capitalistas, parte da classe média, a Igreja. De uma maneira geral, todos estavam descontentes. De uma maneira geral, todos se uniam contra o status quo. De uma maneira geral, todos aplaudiram o golpe, muitos porque foram incapazes de o compreender, muitos porque julgaram poder aproveitar-se dele. Como sucedera em 1910, com a Monarquia, a República Democrática caía agora por falta de defensores. O movimento produziu-se. Desencadeara-o o exército – as altas e médias patentes, cujo poder de compra estava reduzido à metade do que fora em 1910. Apoiaram-no: o alto e médio funcionalismo público, por idênticas razões; os bancos, o alto comércio e a grande indústria, agravados pela crise econômica e financeira, aterrorizados pelo surto do socialismo; o clero, decadente pela progressiva descristianização, ansioso por recuperar a influência perdida; parte da classe média das cidades, descontente com a crise econômica, saturada de instabilidade política e de ameaças revolucionárias; parte da intelligentzia, desiludida com o decair dos ideais republicanos, atraída pela novidade do Integralismo. Como grande pano de fundo, a Nação agrária, a Nação conservadora, a Nação feminina. Depois de uma natural instabilidade política durante os três ou quatro primeiros anos – semeada de revoluções, de golpes de Estado e de ministérios – o Novo Regime consolidou-se por volta de 1931. Símbolo dessa consolidação foi a entrega da chefia governamental a Salazar (1932) que, na realidade, dominava já desde 1928. 297 capítu lo 16 A D EMOCRA CIA FRÁ GIL: A PRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESA (1910-1926) “um regime débil e caótico que acabou por comprometer a sorte da democracia em Portugal.” João Medin a* “As revoluções são o imprevisto; em nenhum país como este, o imprevisto, se não é impossível que represente a sorte grande, é provável que seja um bilhete que saiu branco – uma desilusão e um prejuízo.“ Basílio Teles, As ditaduras (1911; reed. de artigos pu blicados em 1907). “O mais grave erro da República foi o de não ter sabido realizar-se.” João Chagas, A última crise (1915) . O D ESMORON A R D A REA LEZA E A CON QUISTA D O POD ER PELOS REPUBLICA N OS (1980-1910) O desm oron am en to da m on arqu ia con stitu cion al coin cide com o fin al do rein ado de D. Lu ís (falecido em ou tu bro de 1889), o qu e levaria Oliveira Martin s, artista sen sível aos pren ú n cios do dram a n acion al qu e se m u ltiplicavam n o fin al daqu ela década, a resu m ir o tran se escreven do qu e, ao fech ar-se o ataú de régio, se dera o sin al para o in ício da tragédia, soltan do “lu gu brem en te as fú rias da desgraça Eu m ên ides, qu e pairavam en qu an to a roda de u m a fortu n a falaz ia acu m u lan do, em voltas su cessivas, as cau sas da ru ín a próxim a” (artigo de 1892, in clu ído n o volu m e II de Política e História, de O. Martin s). Lin gu agem som bria, m esm o fú n ebre, m as qu e de fato correspon dia fielm en te ao acu m u lar de catástrofes qu e se abateriam sobre o n osso país n o in ício do rein ado de D. Carlos: Ultimatum in glês de 11.1.1890, crise econ ôm ico-fin an ceira de 1891-1892, revolta repu blican a n o Porto (31.1.1981), gu erras colon iais em Moçam biqu e ... Eram de fato, com o escrevia ain da Martin s n o m esm o texto, os estrem eções du m “já lon go terrem oto cu jo fim n ão vim os ain da”... 299 João Medina DESAGREGAÇÃO DO ROTATIVISMO Politicam en te, a Regen eração baseava-se n o rotativism o, ou seja, n a altern ân cia pacífica, n o poder, das du as alas do liberalism o m on árqu ico, e qu e seriam , depois do pacto da Gran ja (fu são de h istóricos e reform istas n o Partido Progressista, o “partido patu léia”, em 1876), os sem pitern os Regen eradores, liderados pelo etern o Fon tes (qu e h avia de falecer em 1887), e os Progressistas, n a prática con du zin do am bos as m esm a políticas e revelan do os m esm os vícios, m as in capazes de caberem n a m esm a m esa orçam en tal. “Eles n ão estão divididos, eles cabem n os m esm os prin cípios – on de eles n ão cabem é n a m esm a sala de jan tar!”, satiriza o pan fletário repu blican o João Ch agas ( Posta restante, 1906). A lei eleitoral, de base cen sitária, e a perversão sistem ática do su frágio torn avam aliás o voto u m a farsa qu e foi tem a obrigatório de qu an tos caricatu ristas, jorn alistas e até rom an cistas trataram desse tem a,1 den u n cian do, com ju sta pertin ácia, ao lon go de toda a segu n da m etade do sécu lo XIX e n a prim eira década da cen tú ria segu in te, a m en tira eleitoral, as m ais diversas form as de caciqu ism o e a con stan te desvirtu ação do voto “livre” n o Portu gal con stitu cion al, ten do sido tam bém tópico in variável da propagan da repu blican a n a crítica aos m ales da realeza liberal. Os partidos n ão passavam de pequ en os gru pos fixados em Lisboa. Com a su a clien tela certa e os seu s caciqu es n a provín cia – ou “in flu en tes” – qu e serviam às su as clien telas pagas o con sabio “carn eiro com batatas” das “ch apeladas” eleitorais, fabrican do as m aiorias n ecessárias para qu em fora ch am ado a form ar govern o. De fato, as eleições saíam dos govern os e n ão estes daqu elas: a Coroa n om eava u m m in istro, este form ava o seu gabin ete en tre os seu s am igos e m aiorias do partido, dissolvia o parlam en to e preparava a m aioria parlam en tar in dispen sável para govern ar com ela. Qu an do já n ão lograva m an ter-se n o poder, cabia ao rei n om ear ou tro prim eiro-m in istro, qu e repetia o processo. As m u dan ças freqü en tes de gabin etes e a dificu ldade em assegu rar govern os de legislatu ra torn avam qu ase im possível m an ter u m a política estável e coeren te por m u ito tem po. As qu ezílias in tern as dos partidos m on árqu icos ir-se-iam agravan do n o fin al do sécu lo XIX, dan do origem a dissidên cias qu e afetaram tan to progressistas (os Dissiden tes de Alpoim su rgiram em 1905) com o Regen eradores (dos qu ais se h avia de separar João Fran co ao criar o Cen tro Regen erador Liberal em 1901); pela m esm a altu ra ten tou -se ain da a criação du m Partido Nacion alista, fortem en te en feu dado ao catolicism o retrógrado, liderado por u m dissiden te regen erador, Jacin to Cân dito da Silva. O partido “legitim ista, o Migu elism o – m an ter-se-ia todavia arredado da vida parlam en tar. O operariado, u m a vez desfeitas já n a década de 1880 as ilu sões dos h om en s qu e tin h am fu n dado em 1875 o Partido So- 300 A DEMOCRACIA FRÁGIL: A PRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESA (1910-1926) cialista, viu -se depressa sem u m órgão partidário do Repu blican ism o, qu e garan tiam aos trabalh adores qu e a fu tu ra Repú blica seria “social”. Qu an to aos repu blican os, esses n ão logravam sair dos m in ú scu los redis a qu e os tin h am con den ado as leis eleitorais feitas para favorecer a m aqu in aria partidária da m on arqu ia, o qu e seria agravado com diplom as verdadeiram en te escan dalosos; u m deles, da lavra de Hin tze, ficou m esm o design ado por “ign óbil porcaria” (lei eleitoral de 1901) ... por fim , n ota-se qu e o partido h egem ôn ico por excelên cia, ao lon go de todo o n osso sistem a parlam en tar m on árqu ico, o Regen erador – qu e por essa razão m ais tem po ocu pou o poder en tre 1851 e 1910 –, sofreria, além da referida cisão fran qu ista, u m en orm e en fraqu ecim en to in tern o por via das capelas agru padas em torn o de líderes qu e n ão se en ten diam , en tre eles (Teixeira de Sou sa, Jú lio Vilh en a, Veiga Beirão, Cam pos Hen riqu es etc.). Assim , arredado do jogo parlam en tar a altern ativa in stitu cion al do repu blican ism o e en tran do em fragm en tação os partidos rotativistas, crescen do en tre algu m as facções dissiden tes a ten tação ditatorial ou cesarista – de qu e o Fran qu ism o foi a expressão m ais agressiva e calam itosa (J. Vilh en a, n u m artigo de 20.X.1907, n o Popular, profetizara qu e aqu ela ditadu ra term in aria “fatalm en te por u m crim e ou u m a revolu ção”, acaban do aliás por am bos, pois ao Regicídio – 1.II.1908 – se h avia de su ceder, dois an os volvidos, a revolu ção do 5 de ou tu bro... ), o Liberalism o oitocen tista torn ara-se, sobretu do depois da prim eira experiên cia ditatorial de Fran co (feita de parceria com Hin tze Ribeiro, 1895-1897), u m sim ples cen ário pin tado, u m m ero acervo de prin cípios em qu e n in gu ém já acreditava. DO TERREMOTO AO “DIES IRAE” O en dividam en to extern o, a em igração crescen te, a estagn ação econ ôm ica in tern a, o predom ín io da bu rgu esia m ercan til e fin an ceira, ban cária, a depen dên cia extern a em vários setores, desde o tecn ológico aos dem ais, o erro de u m a opção livre – cam bista n u m país on de a produ ção fabril era fru ste, o defeitu oso fu n cion am en to do sistem a liberal parlam en tar, todos estes problem as se agravaram de m odo dram ático n os com eços da década de1890, sobretu do n a gravíssim a crise de 1891-1892, gerada pelas flu tu ações cam biais n a Am érica do Su l, com o n efasto reflexo n a rem essa das pou pan ças dos em igran tes, sem esqu ecer a sim u ltân ea trepidação in tern a trazida pelo Ultimatum in glês de jan eiro de 1890, m om en to de verdadeira h u m ilh ação coletiva n acion al qu e h avia de despertar para a ação u m in cipen te Partido Repu blican o, su rgin do n aqu ele período de an gú stia e cólera com o u m a espécie de Sebastian ism o verm elh o qu e tran sform ava a idéia da Repú blica n u m m ito de tipo m essiân ico – ela 301 João Medina era, ao m esm o tem po, D. Sebastião e a Virgem Maria à qu al se reza pela salvação –, com o aliás o su speitaram , com bastan te apreen são, as figu ras m ais lú cidas do clã an tim on árqu ico (Basílio Teles, v.g.). O déficit do tesou ro, já de si m u itíssim o preocu pan te, fazia pairar n o com eço da década de 1890 o espectro m u ito real da ban carrota; a esta som ava-se, com a crise colon ial de qu e resu ltara a afron ta do Ultimatum in glês, o perigo da perda do n osso im pério african o, esse “terceiro im pério” cu ja preservação patriótica se torn ara u m m ito n acion al de in calcu láveis con seqü ên cias: a du pla derrocada do sistem a regen erador (ou seja, por u m lado, o desm oron am en to do liberalism o en qu an to tal, e, por ou tro, a am eaça da ban carrota com plicada com a am eaça das perda do im pério african o em proveito da n ossa “Fiel Aliada” agu dizaria a m en talidade m essiân ica lu sa, despertan do em algu n s setores políticos e cu ltu rais a m itologia do “en direita” e o ditador ou salvador capaz, ao m esm o tem po, de an iqu ilar o crescen te perigo repu blican o e, por ou tro, de ven cer os dois dem ôn ios m ais in stan tes, a ban carrota e a am eaça im perial vin da da GrãBretan h a. Destes pân icos e aspirações saiu verdadeiram en te o fim do sistem a liberal, desacreditado n a política e n a vida prática efetiva dos portu gu eses, torn an do afin al sin ôn im o de bu rlas eleitorais n a adm in istração, com padrios gritan tes e in cú ria econ ôm ico-fin an ceira. Em m eados da década de 1890, com algu m as retu m ban tes vitórias m ilitares african as (geração de An tôn io En es, vitórias m ilitares em Moçam biqu e, de 1895 em dian te), o son h o du m regim e au toritário e reden tor vai crescen do em torn o do n ovo rei, D. Carlos, apostado em desm an telar o velh o sistem a m on árqu ico-con stitu cion al em proveito de “en direitas” ou “m essias” qu e estabelecessem en tre n ós u m cesarism o, qu er civil, qu er m ilitar, capaz de ven cer a crise, ou seja, san ear as fin an ças, expu lsar os partidos do sistem a, qu ebrar a espin h a ao repu blican ism o qu e am eaçara tu do su bverter desde 1891 com a falh ada revolta portu en se. Mou zin h o de Albu qu erqu e, o apoteoticam en te aclam ado h erói african ista, foi u m desses h om en s providen ciais em qu e o Paço pen sou para estabelecer a alm ejada ditadu ra en direitadora, m as foi afin al o civil e ju rista João Fran co (1855-1929) qu e, em 1906 acabaria por ten tar a (aliás catastrófica) experiên cia do dito en gradecim en to do poder régio ou cesarism o m on árqu ico – de qu e o trân sfu ga Oliveira Martin s fora o m ais resolu to pregoeiro ideológico e até prático –, qu e se h avia de saldar com o assassin ato do próprio m on arca qu e patrocin ara essa tão afron tosa ten tativa de se afastar dos parâm etros do liberalism o estabelecido en tre n ós desde 1834. Caberia en tão aos repu blican os lu sos, depois do triu n fo da revolu ção de 1910, ten tar restau rar ou recom eçar o liberalism o em Portu gal. 302 A DEMOCRACIA FRÁGIL: A PRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESA (1910-1926) A SEGUN D A EXPERIÊN CIA LIBERA L A REPÚBLICA D EMOLIBERA L (1910-1926) A REVOLUÇÃO LISBOETA A crise colon ial fora explorada pelos Repu blican os, cu ja prim eira ten tativa de tom ada do poder, a im pacien te e desastrada revolta portu en se em 1891 era, com o o su blin h aria Basílio Teles n u m a obra célebre ( Do Ultimatum ao 31 de Janeiro, 1905), o desfech o lógico daqu ele “dia [qu e] valeu sécu los”, o do Ultimatum in glês de 11.I.1990. O tron o dos Bragan ças era apon tado com o o fau tor de todas as desgraças n acion ais, poetas dem agógicos com o Ju n qu eiro ou Edo Metzn er celebravam em verso o ódio an tibrigan tin o, apelan do sem rebu ços ao assassin ato com o qu e ritu al do m on arca, ao qu al se deitavam todas as cu lpas, o loiro e sibarita D. Carlos, qu e de fato acabaria varado, assim com o o Prín cipe real, por dois exaltados, Alfredo Costa e Man u el Bu ica, n o Terreiro do Paço (1.11.1908). Com esse crim e caía a in feliz experiên cia ditatorial de João Fran co e acelerava-se n os setores repu blican os m ais in trépidos a idéia de con fiar a u m a associação secreta con spirativa, de in spiração e m odelo m açôn ico, a Carbon ária portu gu esa – criada em fin s de oitocen tos e liderada en tão por u m triu n virato a qu e perten ciam Mach ado San tos, Lu z de Alm eida e An tôn io Maria da Silva, u m oficial de m arin h a, u m bibliotecário e u m en gen h eiro civil, respectivam en te –, a tarefa de “pôr a revolu ção n a ru a”, derru ban do pelas arm as a realeza, o qu e se decidiu por fim n o con gresso de Setú bal (abril de 1909) do PRP (Partido Repu blican o Portu gu ês), abrin do assim a via à revolta arm ada, já qu e as eleições n u n ca seriam m étodo viável para ascen der ao poder. Graças a u m form idável trabalh o de sapa e de proselitism o por todo o país, trein o n o m an ejo de arm as e sobretu do de bom bas, in filtran do os seu s “bon s prim os” n as Forças Arm adas, m orm en te n a Marin h a, com seu s bastiões con spirativos solidam en te im plan tados em bairros operários ribeirin h os de Lisboa, a Carbon ária, ou “m açon aria florestal”, preparou a revolu ção repu blican a sem n u n ca ver os seu s m an ejos su bversores abortados pela vigilân cia policial, an tes logran do m obilizar algu n s m ilh ares de h om en s e sobretu do h eroísm os bastan tes para, n o m eio du m a con fu sa e a todos os pon tos de vista caótica revolta civil e m ilitar, após dois dias de lu ta, do 4 ao 5 de ou tu bro de 1910, deitar abaixo de u m a m on arqu ia m u ltissecu lar, forçan do o jovem D. Man u el II (n ascido em 1889, n o an o m esm o em qu e, n o Brasil, triu n fara a Repú blica) a fu gir para a In glaterra, on de aliás viveria assistido pela galan te colaboração dos h om en s do n ovo regim e, qu e tin h am previam en te solicitado ao Foreign Office a au torização 303 João Medina para m u dar de regim e e as con dições em qu e o fariam , com o esperado respeito pela pessoa – e pelos ben s – do próprio rei ... O n ovo regim e fora o resu ltado de décadas de propagan da m essiân ica, on de, a par de arden tes son h os de reden ção n acion al, se m istu ravam prom essas dem agógicas de “bacalh au a pataco” ou , pelo m en os, de u m a m elh oria da con dição e do passadio das classes popu lares e da m édia e pequ en a bu rgu esia qu e n a prom etida Repú blica tin h am con fiado os seu s m ais fu n dos an seios de em en da dos m ales pátrios, agravados com a crise gen eralizada dos an os 90 e os sobressaltos colon iais sem esqu ecer os clam orosos escân dalos dos “adian tam en tos” qu e tin h am degradado por com pleto a im agem da fam ília real. RECOMEÇAR O LIBERALISMO De fato, tom ada a revolu ção n o seu m ais fu n do an seio e sign ificado, 1910 foi an tes de m ais a terceira ten tativa de estabelecer en tre n ós o Estado bu rgu ês liberal, após os ten tam es pom balin os e a revolu ção de 1820-1834, e de m odelar u m a sociedade realm en te bu rgu esa, de in stalar em Portu gal a (até ali falh ada) civilização bu rgu esa. O qu e sign ificava qu e se tin h am de fato gorado os propósitos sem elh an tes in ten tados sobretu do pela revolu ção liberocapitalista do prim eiro m odelo liberal, aqu ele qu e se en saiara en tre 1820 e 1851. Agora ia ten tar-se u m remake do liberalism o qu e se fru stara e fora ren egado pelos seu s próprios filh os desde os an os 90, ten tan do de n ovo ergu er u m a sociedade, u m Estado, u m a cu ltu ra e u m a sociedade realm en te bu rgu eses sobre os escom bros do fiasco da an terior ten tativa com prom etida por D. Carlos e João Fran co, para só citar as cabeças visíveis do im en so processo de desm an telam en to e in u m ação dos ideais vin tistas, m in deleiros e regen eradores. O Estado e a sociedade, a econ om ia e a cu ltu ra ressen tiam -se ain da, à altu ra do 5 de ou tu bro, do arcaísm o de An tigo Regim e qu e perdu rara apesar da desam ortização das propriedades, do en cerram en to das orden s religiosas, da extin ção do m orgadio, da laicização do en sin o e da vida em geral, e de qu an tas reform as ju rídicas, fiscais, adm in istrativas, fu n diárias da Silveira, tin h am en saiado para im plan tar en tre n ós o regim e represen tativo com an dado pela bu rgu esia, segu n do valores bu rgu eses. Con tu do, com o se disse, Portu gal n ão se m odern izara a fu n do, an tes acabar, n a fase da crise n oven tista, por ter sau dades do “an tigam en te” au toritarista e clerical, em su m a “m igu elista”, de qu e o fran qu ism o, com os seu s m étodos bru tais, fora u m a varian te atu alizada. Um dos m elh ores e m ais lú cidos críticos repu blican os do cesarism o fran qu ista, João Ch agas, debru çan do-se sobre as qu erelas em torn o do clero e do ressu rgir de u m 304 A DEMOCRACIA FRÁGIL: A PRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESA (1910-1926) sen tim en to clerical n o Paço e n a classe política dirigen te, observara n as su as Cartas políticas – u m dos m aiores m on u m en tos da prosa dou trin al e pan fletária portu gu esa –, qu e algu n s fen ôm en os do rein ado fin al da m on arqu ia, o de D. Man u el II, com provavam qu e se ren egaram as origen s voltairian as e racion alistas do n osso liberalism o, acrescen tan do: É o Portu gal dos sécu los XVII e XVIII, o Portu gal absolu tista, edu cado pelos frades e pelos jesu ítas, com o m esm o fu n do étn ico e a m esm a m en talidade. É u m Portu gal de torvos in qu isidores, de grotescos ch ech és, de capitães-m ores, de beatas, de peraltas, de sécias, de vates de eirado e de ratos de sacristia, trescalan do ao fartu m dos tem pos om in osos. Esse Portu gal reviveu com a crise fin al da din astia. Era u m sedim en to social, u m depósito com o o qu e existe n o fu n do de garrafas. A sociedade agitou -se. Ele veio acim a e tu rvou -a. O qu e restou de extin to, de m orto n a alm a portu gu esa adqu iriu vida, adqu iriu m ovim en to, en trou em atividade. ( Cartas políticas, 2ª série, 21.IV.1909). Em ou tras palavras, o tal “sedim en to” do An tigo Regim e sobreviveria às ten tativas su perficiais de liberalização e m odern ização, resistira in cólu m e às reform as e aos ten tam es de in du strialização capitalista, voltava à su perfície da sociedade com a crise de 1890 – a própria geração de 90 exaltara esses valores passadistas e retrógrados (v. g., A. Nobre e Alberto de Oliveira) –, e fazia agora bloco com os esforços de “en direitas”, com o João Fran co, a fim de arrasar de vez todo o edifício liberal. A tal “oligarqu ia fin an ceira tem perada por ficções con stitu cion ais” (O. Martin s) dava lu gar aos ven cidos de 1834, de regresso ao poder, don de afin al, n u n ca tin h am sido com pleta e estru tu ralm en te afastados. A Repú blica era, destarte, a ten tativa de recom eçar o liberalism o, aliás em parâm etros econ ôm icos e sociais qu e n ão divergiam de todo os m oldes vin tistas qu e o seu im agin ário tan to aperfeiçoara, cu ltu an do h om en s com o José Estevão, Passos Man u el, Mou zin h o da Silveira e ou tros gran des próceres do espírito liberal e reform ista de oitocen tos. A VERGONHA DA “ADESIVAGEM” A Repú blica ten tou , pois, a reform a radical, o regresso ao pu ro liberalism o. Fê-lo a vários n íveis, pren den do-se desde logo com a reform a dos sím bolos e da m en talidade: a ban deira, o escu do, a topon ím ia, a ortografia, as in stitu ições do en sin o (por exem plo, criaram -se as Facu ldades de Letras e Direito, em 1911 e 1913, respectivam en te), os feriados, os form u lários oficiais ( o afran cesado “Saú de e Fratern idade!” su bstitu iu a fórm u la de en cerram en to dos ofícios da m on arqu ia, qu e era “Deu s gu arde V. Exa!”), as n ovas estam pilh as postais, a criação de u m cu lto cívico 305 João Medina popu lar e n acion al em torn o do m ito de Cam ões etc. Nu m a Eu ropa con servadora e predom in an tem en te m on árqu ica, a isolada Repú blica lu sa – só h avia m ais du as, a h elvética e a fran cesa – posta de qu aren ten a pela “fiel aliada” e m alvista pela Espan h a de Afon so XIII, qu e n ão h esitaria em dar gu arida aos m on árqu icos portu gu eses – ou “talassas”, com o eram en tão design ados – ali h om izados com in tu itos de organ izarem as in cu rsões arm adas con tra o n ovo regim e (o qu e fariam em 1911 e 1912) – h esitava en tre o certo radicalism o extrem o n os propósitos e u m a pru den te n ecessidade de se “con solidar” an tes de pôr em prática as su as reform as. Estas tin h am m u ito a ver com os escân dalos de corru pção, com padrio e sobretu do com os “adiam en tos” qu e a fam ília real se h abitu ara a pedir ao erário pú blico, con fu n din do-o com o erário régio, com m an ifesto preju ízo do prim eiro, casos qu e tin h am de fato m an ch ado a repu tação tan to da din astia com o do pessoal político dirigen te, sen do im pu tada a Fran co a m an eira atrabiliária com o liqu idara esse caso, em plen a ditadu ra, e forn ecen do con tas m an ipu ladas de m olde a darem essas dívidas com o saldadas. Em pen h ado em m oralizar e in iciar vida n ova, o n ovo regim e com eçou portan to por qu erelar o an tigo dotador Fran co, qu e acabaria aliás ilibado, prim eira das m u itas desilu sões e falh an ços do projetado “Dies Irae” repu blican o qu e, com o o con fessaria de n ovo João Ch agas, era m ais u m “idílio” do qu e o prom etido dia do castigo. O fenômeno da “adesivagem”, um dos mais impressionantes e curiosos m ovim en tos sociais e políticos da n ossa classe política n os tem pos m odern os, com plicaria ain da m ais os ru bros propósitos de barrela, castigo, em en da e cau térico qu e se tin h am desde sem pre associado à idéia de in stau ração en tre n ós du m regim e de barrete frígido, ou seja, h on esto, reto, fratern o, igu alitário e livre, abn egadam en te devotado à regen eração da vida portu gu esa; os “aderen tes” ou “adesivos” eram aqu eles qu e, ten do servido à Mon arqu ia em lu gares de destaqu e ou m esm o em fu n ções m an ifestam en te repressivas (gu arda m u n icipal, polícia, exército), se passavam para o n ovo regim e, m u dan do de cam isa, lábaro e con vicções com u m a fu lm in an te rapidez, su scitan do assim a in dign ação com preen sível dos pou cos m on árqu icos qu e se m an tin h am fiéis à ban deira azu l e bran ca, assim com o dos velh os repu blican os “h istóricos”, qu e viam en trar de roldão n os arraiais da Repú blica aqu eles m esm os qu e, ain da on tem , os persegu iam , descrim in avam , espadeiravam ou espin gardeavam . O fen ôm en o da “adesivagem ”, cu ja am plidão im pression ou e desgostou as alm as retas e fez as delícias dos gazetilh eiros e caricatu ristas, su scitan do m esm o u m a revista satírica ch am ada O Adesivo (1911), alim en taria até o fin al da Repú blica os protestos, a irritação, a cólera ou a sim ples m ofa de qu em via deste m odo im oral o tem plo do n ovo regim e assaltado por clien telas fam élicas e deson estas, raceosas de perderam po- 306 A DEMOCRACIA FRÁGIL: A PRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESA (1910-1926) sições, em pregos, preben das ou sin ecu ras. Foram pou qu íssim os os qu e, com o Paiva Cou ceiro ou Parati, se n egaram a “aderir” a n ova ban deira verde-ru bra e se m an tiveram fielm en te in tran sigen tes n o seu am or pelo an tigo regim e caído. Figu ras m in isteriais, da m agistradu ra, da diplom acia, do exército, da polícia, do clero, da u n iversidade, do fu n cion alism o pú blico ou in telectu ais fam osos celebrizaram -se pela su a “adesivagem ” qu e iam do rábido Pe. Matos (qu e com eçara por fu gir para Espan h a, don de m an daria a su a en vergon h ada declaração de adesão à Repú blica), a políticos com o José Maria de Alpoim , Teixeira de Sou sa, Ferreira do Am aral, Cerveira de Albu qu erqu e, Leote do Rego, Norton de Matos, ou escritores com o Hen riqu e Lopes de Men don ça, Abel Botelh o, Jú lio Dan tas etc. O m oderan tism o prático e a au sên cia de au tên tico “Dies Irae” repu blican o derivam em larga m edida deste fen ôm en o de “adesivagem ” qu e m u ito degradou as gran des esperan ças de verdadeira reform a e em en da dos m ales n acion ais depositadas n o adven to do n ovo regim e. Se, com o dizia u m jorn al sin dicalista lisboeta, a realeza m orrera “pu lh am en te” ( A Sementeira, n º. 26, ou tu bro de 1910), a verdade é qu e a im acu lada im agem da esperan çosa Repú blica, m u lh er virgin al, aparecia desde as prim eira h oras con spu rcada pelo lodo dos “adesivos”, qu e se lh e colavam ao corpo com o san gu essu gas, com o aliás o explicava u m desen h o do Suplemento Ilustrado (27.XI.1910, des. De A. Moraes): “Percebo, m en in os ... Aderem , com o as san gu essu gas!” A “BALBÚRDIA SANGUINOLENTA” A fragilidade da ordem pú blica, o desen ten dim en to perm an en te dos prin cipais líderes políticos do n ovo regim e (A. Costa, B. Cam ach o e A. J. Alm eida, dirigen tes, respectivam en te, dos Dem ocráticos, Un ion istas e Evolu cion istas), a in stabilidade política tradu zida em govern os efêm eros cu ja du ração n ão excederia os três m eses, a geral in capacidade de preparar e execu tar reform as de fu n do decepcion ariam assim os qu e tin h am esperado da repú blica u m a gran de barrela, e qu e agora, m u itas vezes dolorosam en te m agoados (Basílio Teles, Mach ado San tos, Sam paio Bru n o, Cu n h a e Costa etc.), ora se abstin h am de participar do n ovo estado de coisas, ora se afastavam en ojados ou até m u davam de cam po; as cizân ias perm an en tes, a in capacidade de u n ir em torn o de u m n ú cleo cen tral e fu n dam en tal de reform as os esforços dos n ovos dirigen tes e das n ovas forças partidárias, a con stan te in stabilidade govern am en tal, o agravar dos velh os problem as de sem pre, n o cam po econ ôm ico e fin an ceiro, as qu erelas da sociedade civil e, agora, n ovos con flitos qu e se agu çariam de m odo exasperan te – n om eadam en te com a Igreja católica – fragilizaram 307 João Medina a Repú blica, torn aram -n a an êm ica, in capaz, paralizada por in decisões, revoltas, bern ardas castren ses, sobressaltos, – era a “balbú rdia san gu in olen ta” prevista u m a vez por Eça de Qu eirós –, e erros fu n estos. Destes, u m dos m ais graves talvez ten h a sido a declaração de gu erra, lan çada n os prim eiros dias e depois extrem ada por Afon so Costa com a su a lei de Separação das Igrejas (u m plu ral in ju stificado...) e do estado (20.IV.1911), verdadeiro aríete lan çado con tra os católicos, o clero e tu do o qu e em Portu gal, para o m elh or e para o pior, represen tava a vivên cia da religião tradicion al. Esta gu erra cu staria im en so à Repú blica, n a m edida em qu e, som ada a ou tros con flitos n ão m en os can den tes, redu ziria cada vez m ais o cam po dos qu e apoiavam o Novo Regim e: os 16 an os qu e m edeiam en tre a revolu ção de 1910 e o golpe castren se de Braga em 1926 são a crôn ica m on óton a, fren ética, qu ase sem pre san gu in olen ta, de desilu sões con stan tes e desvarios in fin dáveis, em ritm o cada vez m aior, crôn ica du m a progressiva degradação do ideal, da fé e da esperan ça n u m regim e qu e fora, con tu do, proclam ado, sau dado e apoiado com u m a u n an im idade en tu siástica e qu ase m essiân ica, qu e raram en te se terá con h ecido n ou tras épocas da n ossa História de oito sécu los. Os assassin atos da “Noite San gren ta” (19.X.1921) – a “n oite in fam e”, com o lh e ch am ou Rau l Bran dão –, du ran te a qu al tom bam fu n dadores da Repú blica com o Mach ado San tos, An tôn io Gran go e Carlos da Maia, leva ao clím ax esta dan sa m acabra qu e só term in aria de vez cin co an os depois. Ao n ú m ero dos in im igos da Repú blica con vém acrescen tar o operariado, depressa desilu dido com os preten sos in tu itos sociais do n ovo regime – “Oh! A República!...” , gemeria a revista Terra Livre (nº. 11, 24.IV.1913), desen gan ada da u tilidade de ter trocado u m m on arca por u m Presiden te da Repú blica –, qu e n ão tardaria aliás em fazer m an ifestações con tra as greves e em disparar sobre u m cortejo de m u lh eres qu e pediam au m en to de salário, em Setú bal (m arço de 1911), ao m esm o tem po qu e a “lei bu rla” de Brito Cam ach o sobre a greve, com o lock-out igu alm en te garan tido, levaria os sin dicalistas e as m assas trabalh adoras em geral a in iciarem u m con ten cioso com a repú blica, qu e teria m om en tos dram áticos em 1912 (declaração do estado de sítio em Lisboa, prisões em m assa de sin dicalistas, m etidos em porões de n avios su rtos n o Tejo, en cerram en to da Un ião Operária Nacion al, deportações de sin dicalistas para presídios alen tejan os...), 1913 (en cerram en to da Casa Sin dical, repressão violen ta con tra os “an arqu istas”, expu lsão de Pin to Qu artim para o Brasil), 1917, 1918 etc. Este divórcio en tre operariado e repú blica n u n ca m ais seria san ado, em bora aqu i e além , m u ito pon tu alm en te com o du ran te a revolta m on árqu ica de Mon san to (jan eiro de 1919), trabalh adores pegassem em arm as con tra sedições talassas, para defen der u m regim e qu e, afin al, lh es 308 A DEMOCRACIA FRÁGIL: A PRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESA (1910-1926) pagava sem pre com tiros, assaltos à Casa Sin dical, deportações, prisões arbitrárias e leis an ti-sociais. Ou tro setor qu e depressa se afastaria da repú blica foi o exército, cu jo con ten cioso de algu m m odo com eçara n o próprio dia da revolu ção de ou tu bro de 1910: im plan tado pelas ram as. O regim e n u n ca lograria, porém , reform ar e dem ocratizar o exército de m olde a tran sform á-lo n o seu braço arm ado, preferin do criar a Gu arda Repu blican a com o força pretorian a, aliás in clin ada a segu ir o seu próprio cam in h o. A en trada n a gu erra, em 1916 – m as desde 1914 qu e com batíam os em An gola con tra as tropas alem ãs –, u m dos erros m ais obstin adam en te levados adian te pela Repú blica, com o álibi da defesa das colôn ias – cu ja partilh a a Alem an h a e a In glaterra tin h am projetado em 1898 e depois em 1913 –, acarretou dram as su plem en tares para as Forças Arm adas, m an dadas m orrer sem glória n a Flan dres ou n as “epopéias m alditas” dos sertões african os, prim eiro em An gola, depois em Moçam biqu e. Destes trau m as derivaria u m con stan te m al estar n as fileiras, en tre as qu ais cresceria aliás a idéia de qu e delas devia partir precisam en te a derru bada do regim e qu e, n ascido das arm as, com elas h avia de perecer. Nu n ca as ten do con segu ido con trolar, a Repú blica m orreria logicam en te degolada pelas du rin dan as. In capaz de criar u m exército realm en te repu blican o, de m odelo h elvético com o son h ara a propagan da dos apóstolos repu blican os, in capaz de o dotar de ch efes de con fian ça, ideologicam en te en qu adrados n a m en talidade triu n fan te em 1910, a Prim eira Repú blica lim itara-se afin al a abalar a velh a in stitu ição m ilitar com h u m ilh ações e tarefas in glórias, de qu e a n ossa in terven ção n a gu erra de 19141918 foi o episódio m ais calam itoso. A REPUBLICA PROPÕE-SE ACABAR COM O CATOLICISMO A h ostilidade à religião, m an ifestada logo n os prim eiros dias da revolu ção por u m a en xu rrada de diplom as qu e retom avam m edidas pom balin as e liberais para expu lsar as orden s religiosas e laicizar a vida do país, con h eceria desde 20 de abril de 1911, com a já referida lei da Separação, u m passo m ais a fim de criar n a sociedade portu gu esa u m fosso im en so en tre católicos e repu blican os, em vez de se lim itar a proceder à m u tu am en te van tajosa m era separação dos foros estatal e religioso. Afon so Costa, Min istro da Ju stiça e u m dos ideólogos e estrategos fu n dam en tais da Primeira República, anunciou numa reunião maçônica, a 21.III.1911 – lei qu e doravan te seria sign ificativam en te design ada pelos seu s defen sores com o “a In tan gível” ... –, qu e esta iria elim in ar com pletam en te o catolicism o em du as gerações. Estava criado u m “casu s belli” m ortal para o 309 João Medina próprio regim e qu e assim , acin tosa e fron talm en te, desafiava a m ilen ar in stitu ição con fession al, tão fu n dam en te en raizada n a m en talidade e n os costu m es portu gu eses. Se as ch am adas “aparições” de Fátim a ocorreram em 1917, em plen o govern o (o terceiro e ú ltim o) de Afon so Costa, tal fato n ada tem de casu al: o m ilagrism o ou m essian ism o du m país com o o n osso reagia deste m odo, pelo cu lto m ariân ico e pelo recu rso ao m ilagre, em plen a gu erra, a rábida h ostilização afron tosam en te decretada pelo dito político beirão, esse “Costa Cabral da Repú blica”, com o lh e ch am ou Carlos Malh eiro Dias ( Zona de Tufões, 1912; repetiu -o Roch a Martin s n ’ Os Fantoches, 1ª série, 20.I.1914). Qu an do Sidôn io Pais, fortem en te apoiado por todos os setores h ostis ao “gu errism o” e ao seu partido (o Partido Dem ocrático de Afon so Costa), desde os operários à aristocracia, passan do pelo clero, tom a o poder (dezem bro de 1917), u m a das su as prim eiras m edidas seria a de pôr fim às disposições qu e, desde 1910, os m in istros da Ju stiça do Novo Regim e tin h am vin do a decretar con tra todos os bispos, a pon to de, já em 1912, doze prelados estarem su spen sos, destru ídos ou desterrados (m edidas tom adas por apen as dois m in istros da referida pasta, A. Costa e An tôn io Macieira). Sidôn io pu n h a assim fim à “irritan te qu estão” (com o lh e ch am aria, m ais tarde, Salazar), dan do os passos diplom áticos n ecessários para reatar relações com a San ta Sé, e com eçan do por dar ele m esm o o exem plo do n ovo espírito de relacion am en to Igreja/ Estado, ao ser o prim eiro Presiden te da Repú blica portu gu esa a en trar n u m tem plo católico para ali assistir a u m a cerim ôn ia em m em ória dos n ossos soldados tom bados n a gu erra. Praticam en te liqu idado en tão o con ten cioso Repú blica/ Igreja, restabelecidas as relações en tre a Repú blica portu gu esa e o Vatican o (teve papel de relevo n estas n egociações o n osso fu tu ro prêm io Nobel da Medicin a, Egas Mon iz, en tão Min istro de Sidôn io Pais), a fase pós-sidon ista (1918-1926) – a qu e se ch am ou “a n ova Repú blica Velh a” (já qu e o sidon ism o ou dezem brism o fora design ado por Repú blica Nova”) – já n ão con h eceria as en orm es dificu ldades qu e tin h am pau tado as relações Igreja/ Estado. Mas n ão deixaria esse con ten cioso de acicatar o m ovim en to político católico, qu e desde o fim da Prim eira Gu erra Mu n dial decide afirm ar-se au ton om am en te n o cam po partidário, estim u lado n esse sen tido pelos Papas Ben to XV e Pio XI, caben do a Salazar papel de relevo n esta estratégia “dem ocrata cristã”. A QUEDA DA PRIMEIRA REPÚBLICA As dificu ldades do Novo Regim e tam bém tin h am sido n otáveis n os ou tros dom ín ios, com o n o cam po econ ôm ico e fin an ceiro. A in flação, sobretu do desde a en trada de Portu gal n a gu erra, reforçara o afastam en to 310 A DEMOCRACIA FRÁGIL: A PRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESA (1910-1926) crescen te das classes m édias u rban as em relação a u m regim e n o qu al tin h am depositado tão fu n das esperan ças. O aparecim en to, em 1914, de u m a n ova ideologia m on árqu ica e ao ressu rgir do sen tim en to afeito à realeza, reclam an do-se ain da por cim a do velh o m igu elism o tem perado com con tribu tos fran ceses da Action Française – o In tegralism o Lu sitan o – dava ao cam po con servador an ti-repu blican o u m dos pilares m ais agressivos e atu an tes da con tra-revolu ção, aqu ele qu e m ais pesaria n o derru be da Prim eira Repú blica, de par com o con servador sidon ista e u m a ou ou tra su gestão ditatorialista própria do espírito do tem po, esses an os 20 tão prolifícos em m odelos cau dilh istas. O exército aparecia n atu ralm en te, aos olh os destes gru pos e setores ideológicos, com o a força ideal, o in stru m en to providen cial destin ado a cortar o n ó górdio da repú blica dem oliberal, caótica e desgovern ada, o m on opólio in con testável do sistem a eleitoral e partidário n as m ãos do afon sism o, ou seja, do Partido Dem ocrático, a facção h egem ôn ica do velh o Partido Repu blican o Portu gu ês. O sidon ism o fora já u m exem plo de com o podiam federar-se e triu n far todos os clãs e m eios qu e se opu n h am a este predom ín io afon sista, dem oliberal, an ticlerical e dem agógico – este ú ltim o gru po era geralm en te sin tetizado n a expressão aliás apropriada de “dem agogia”. O cu lto da ditadu ra e o lou vor da espada com o solu ção torn aram -se com u n s, ao m esm o tem po qu e proliferavam as ten tativas de derru be do regim e parlam en tar, o qu e seria fin alm en te con segu ido du ran te o segu n do m an dato do catastrófico Bern adin o Mach ado n a Presidên cia da Repú blica, em m aio de 1926. O Exército estava fin alm en te n o poder, os m ilitares iriam procu rar estabelecer u m a ditadu ra, e só faltava o ditador – o qu e levaria pelo m en os dois an os a ach ar, depois de se apresen tarem algu n s can didatos can h estros ao cargo (Gom es da Costa, Sin el de Cordes, João de Alm eida, Filom en o da Câm ara, Vicen te de Freitas). Paradoxalm en te – ou , m u ito ao in vés, com bastan te lógica e, de algu m m odo, sim bolicam en te tam bém –, a lideran ça resu ltan te do golpe de espadas de 1926 acabaria por ser con fin ada a u m civil aliás de cepa clerical, já qu e o Min istro das Fin an ças fin alm en te ch am ado pelos m ilitares em 1928, após algu n s m eses de catastrófica con du ta da n au do Estado, An tôn io de Oliveira Salazar (n ascido em 1889, n o m esm o an o em qu e Ch arlot, Heidegger e Hitler vieram ao m u n do) – freqü en tara o sem in ário e recebera m esm o orden s m en ores, m as optara afin al pela carreira acadêm ica, en tran do em Coim bra pou co depois da revolu ção repu blican a ter eclodido. Em su m a, as du rin dan as en gen draram u m ditador glacial vin do do cam po católico, ch am ado com o m ero técn ico fin an ceiro, com o se tratasse apen as de con sertar u m a cadeira estragada e n ão de fu n dar u m n ovo tipo de tron o para o poder, de govern ação – e de ditadu ra. Qu e u m an tigo dirigen te das h ostes católicas, reagru padas depois da gu erra sem 311 João Medina qu artel qu e a Prim eira Repú blica m overa à Igreja portu gu esa e com an dadas por este estratego e teorizador form ado n o C. A. D. C. de Coim bra acabasse por ser o ditador esperado pela ditadu ra in iciada em 1926 era, ao fim e ao cabo, u m “ju ste retou r des ch oses”: o regim e im plan tado em 1910 persegu ira a Igreja e ten tara esm agá-la, caben do agora, m u ito n atu ralm en te portan to, a u m dos prin cipais dirigen tes católicos form ados n esses an os de ch u m bo e h u m ilh ação assen h orear-se do Estado, desterrar a dem ocracia e govern ar com m ão de ferro u m país on de os m ilitares degolada a repú blica, tin h am procu rado qu em fosse capaz de segu rar o tim ão do govern o, e m an tê-lo fixo n u m a direção certa e ordeira. E este sabia o qu e qu eria e para on de ia, com o o disse com sibilin o lacon ism o n u m discu rso de 1930… 312 A DEMOCRACIA FRÁGIL: A PRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESA (1910-1926) N OTA S 1. Lem brem os algu n s n om es de escritores e an alistas políticos – e títu los de jorn ais ou pan fletos – n os qu ais a crítica à bu rla do su frágio do con stitu cion alism o m on árqu ico foi con stan te e particu larm en te agu da: Rafael Bordalo Pin h eiro n os sem in ários satíricos An tôn io Maria (du as séries: 1879-1884 e 1891-1898) e Pontos nos ii (1885-1889), o pan fleto A Lanterna, Jú lio Din is n a Morgadinha dos Canaviais (1868), Eça e Ram alh o Ortigão n as Farpas (desde 1871 em dian te), Gu ilh erm e de Azevedo e Gu erra Ju n qu eiro n a peça satírica Viagem , Pin to em O Sr. Deputado (1882), o rom an cista repu blican o Teixeira de Qu eirós em Saústico Nogueira (1883), o m on árqu ico Con de de Ficalh o em Uma eleição perdida (1888), o político m on árqu ico dissiden te Au gu sto Fu sch in i n o seu exam e crítico da Regen eração in titu lado O presente e o futuro de Portugal, etc. 313 João Medina B IBLIOGRA FIA OBRAS GERAIS MEDINA, J. (Dir.) História de Portugal dos tempos pré-históricos aos nosso dias. 15v. Alfragide: Ediclu be, 1993. ___. História de Portugal Contemporâneo – político e in stitu cion al. Lisboa: Un iversidade Aberta, 1994. OBRAS ESPECÍFICAS HOMEM, A. C. A idéia republicana em Portugal. O con tribu to de Teófilo Braga. Coim bra: Livraria Min erva, 1989. ___. A Propaganda republicana (1870-1910). Coim bra: s.n ., 1990. MEDINA, J. Oh! a República!... Estu dos sobre o repu blican ism o e a Prim eira Repú blica portu gu esa. Lisboa: INIC, 1990. TELO, A. J. Decadência e queda da Primeira República portuguesa. Lisboa: A Regra do Jogo, 1980, 1984. 2 v. 314 capítu lo 17 O ESTA D O N OVO. FA SCISMO, SA LA ZA RISMO E EUROPA Lu ís Reis Torgal* O PROBLEMA D A S FON TES Poderíam os com eçar por falar das dificu ldades em an alisar este e ou tros tem as sem qu e se con h eça profu n dam en te os arqu ivos do Estado Novo, n om eadam en te, para o caso presen te, o Arqu ivo do Min istério dos Negócios Estran geiros, e os espólios pessoais de Salazar, de qu e saiu o respectivo catálogo.1 Não in sistirem os, todavia, exageradam en te n esta dificu ldade, porqu e, pese em bora a im portân cia dessas fon tes, ou tras, im pressas, n ão são de m en or relevân cia para con h ecer esta problem ática, qu e vam os abordar à m an eira de en saio. Com efeito, a qu estão qu e n os preocu pa é, fu n dam en talm en te, de ordem ideológica e cu ltu ral. Isto é, o qu e desejam os estu dar é a posição pú blica de Salazar e dos salazaristas (salazaristas estru tu rais ou de con ju n tu ra) relativam en te à qu estão da Eu ropa,2 qu e, ao con trário do qu e se possa pen sar, é m u ito debatida n o tem po, de tal form a qu e se en con tram verdadeiros n ú cleos bibliográficos especializados n as n ossas bibliotecas.3 Ora, tratan do-se de u m a tem ática desse tipo, pode dizer-se qu e os textos pu blicados n os dão u m a im agem su ficien tem en te esclarecedora das posições do regim e, qu e n ão seriam por certo essen cialm en te con trariadas em atitu des privadas ou n a prática diplom ática. Aliás, estas qu estões da política extern a do Estado Novo são as qu e se en con tram , ain da assim , m elh or docu m en tadas e estu dadas, qu er pelos “h istoriadores” e in telectu ais do regim e,4 qu er m esm o pelos n ovos h istoriadores e politólogos do Salazarism o, qu e sobre o tem a escreveram livros ou algu n s artigos de in teresse. Neste particu lar, devem destacar-se os estu dos sobre a Gu erra Civil da Espan h a 5 ou sobre a Segu n da Gu erra Mu n dial,6 en carados n u m a perspectiva política, diplom ática e econ ôm ica. Mas, con tin u ava por qu estion ar, de u m a m an eira global, a posição assu m ida peran te a qu estão da Eu ropa, problem a de gran de oportu n idade, qu e vam os abordar, portan to, à m an eira de en saio, n u m a lin h a política ideológico-cu ltu ral.7 315 Luís Reis Torgal FA SCISMO E SA LA ZA RISMO Ao su bin titu larm os este texto “Salazarism o, Fascism o e Eu ropa”, n ão preten dem os repor u m a velh a polêm ica qu e se desen volveu em dois plan os com plem en tares: por assim dizer, de fora para den tro e de den tro para fora. Expliqu em os m elh or: n ão desejam os voltar a discu tir a qu estão ou as qu estões de saber se é ou n ão legítim o falar de “Fascism o” com o u m con ceito fu n dam en tal para caracterizar regim es qu e, apesar de diferen tes, são com u n s em pon tos essen ciais e qu e con stitu em sistem as próprios de “u m a época”, e, por ou tro lado, de qu estion ar sobre o problem a da legitim idade de con siderar o Estado Novo portu gu ês u m a form a de “Fascism o”.8 O qu e desejam os foi sim , pela ju n ção dos três con ceitos, abarcar m elh or toda a profu n didade e latitu de do problem a em debate. Qu er dizer, segu n do pen sam os n ão seria possível en ten der a qu estão do posicion am en to do Salazarism o peran te a Eu ropa, se n ão n os in terrogássem os sobre as su as relações com os “fascism os” (con ceito qu e con sideram os poder con tin u ar a u tilizar) e tam bém – acrescen tam os – com ou tros con ceitos e realidades políticas básicas, tais com o “dem ocracia” e “com u n ism o”. A dem arcação das origin alidades do Estado Novo parte de afirm ações in sisten tes do próprio Salazar, m an ifestadas n o prin cípio do seu con su lado e qu e se prolon gam du ran te o a su a govern ação. Logo n a en trevista dada a An tôn io Ferro, em 1932, afirm ou , falan do da ditadu ra m ilitar portu gu esa: “A n ossa ditadu ra aproxim a-se, eviden tem en te, da ditadu ra fascista n o reforço da au toridade, n a gu erra declarada a certos prin cípios da dem ocracia, n o seu caráter acen tu adam en te n acion alista, n as su as preocu pações de ordem social. Afasta-se, n os seu s processos de ren ovação. A ditadu ra fascista ten de para u m cesarism o pagão, para u m Estado Novo qu e n ão con h ece lim itações de ordem ju rídica ou m oral, qu e m arch a para o seu fim , sem en con trar em baraços ou obstácu los”.9 Portan to, Salazar qu e adm irava Mu ssolin i, a pon to de ter a su a fotografia n a m esa de trabalh o 10 e de ter preparado u m a su a foto com dedicatória en dereçada ao Duce11 qu is salien tar o caráter próprio do sistem a, con sideran do a ain da existen te ditadu ra, saída do 28 de m aio, em bora a dar o passo decisivo para o n ovo regim e, com o u m a form a de au toritarism o “m oral”, ao passo qu e en ten dia o fascism o com o u m a ditadu ra “am oral”, “m aqu iavélica”. In clu sivam en te, para distin gu ir bem os dois regim es, argu m en tou com a célebre afirm ação de Mu ssolin i, cau sa de algu m as con fu sões sobre a caracterização dos regim es au toritários da Eu ropa do tem po: “O fascism o é u m produ to típico italian o com o o bolch evism o é u m produ to ru sso. Nem u m n em ou tro podem tran splan tar-se e viver fora da su a n atu ral origem ”.12 E apen as para dar m ais u m exem plo, em bora este m en os claro n o con fron to com o fascism o, m as m ais rico em ou tros aspectos, vejam os o 316 O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA qu e disse Salazar n o 1º. Con gresso da Un ião Nacion al, em 26 de m aio de 1934: “Sem dú vida se en con tram , por esse m u n do, sistem as políticos com os qu ais tem sem elh an ças, pon tos de con tacto, o n acion alism o portu gu ês – aliás qu ase só restritos à idéia corporativa. Mas n o processo de realização e sobretu do n a con cepção do Estado e n a organ ização do apoio político e civil do Govern o são bem m arcadas as diferen ças. Um dia se recon h ecerá ser Portu gal dirigido por sistem a origin al, próprio da su a h istória e da su a geografia, qu e tão diversas são de todas as ou tras, e desejávam os se com preen desse bem n ão term os posto de lado os erros e vícios do falso liberalism o e da falsa dem ocracia para abraçarm os ou tros qu e podem ser ain da m aiores, m as an tes para reorgan izar e fortalecer o país com os prin cípios da au toridade, de ordem , de tradição n acion al, con ciliados com aqu elas verdades etern as qu e são, felizm en te, patrim ôn io da h u m an idade e apan ágio da civilização cristã”.13 O m esm o tipo de argu m en tos en con tram os em au tores salazaristas e tam bém , cu riosam en te, n os n acion alistas estran geiros, especialm en te fran ceses, qu e elegeram Portu gal para cam po dos seu s ideais e das su as “experiên cias” políticas.14 Em relação ao prim eiro caso, tom em os com o exem plo o h istoriador e ideólogo do regim e, se bem qu e origin ário das corren tes m on árqu icas in tegralistas, João Am eal. Nu m pequ en o livro de 1938, Construção do Novo Estado, após elogiar o regim e fascista, com o u m dos sistem as do qu e ch am a a “Revolu ção n ecessária”,15 fala do “m odelo portu gu ês”, con stru ído n a base da Revolu ção Nacion al do 28 de m aio e n o plan o de Salazar: “... o Estado Novo Corporativo ergu eu -se pou co a pou co, n a su a arqu itetu ra firm e, h arm on iosa, logicam en te adequ ada ‘ao n osso tem peram en to e às n ossas n ecessidades’”.16 E Gon zagu e de Reyn old – qu e n u m livro sobre a crise da Eu ropa, de 1935, lou vara tam bém o Fascism o,17 con siderou , n u m a obra sobre Portu gal do an o segu in te, n a qu al, apesar de tecer algu m as críticas à realidade ain da existen te n o n osso país, elogiou a experiên cia portu gu esa, qu e Portu gal n ão poderia im itar as experiên cias estran geiras, m esm o o Fascism o: “Et m êm e l’im itation , la copie du fascism e n e serait san s dan ger d’in féodation à la politiqu e italien n e. Car tou t régim e im porté de l’étran ger est u n e su bm ission à l’étran ger”.18 Mas esta origin alidade afirm ada e reafirm ada n ão exclu ía a idéia ou a esperan ça n u m a “revolu ção n ecessária” – para em pregar a expressão de Am eal – qu e se deveria passar, com as su as nuances próprias, u m pou co por todo o m u n do. Não poderem os esqu ecer qu e Salazar e os salazaristas, para além de an ticom u n istas sistem áticos, foram tam bém sistem aticam en te an tiliberais e an tidem ocratas. Qu an tos exem plos poderíam os u tilizar para com provar esta prem issa! Basta por isso só recordar a con stan te lu ta de Salazar con tra aqu eles qu e pejorativam en te apelidavam o seu sistem a de “ditadu ra”, aos qu ais con trapu n h a a idéia de qu e a “ditadu ra”, 317 Luís Reis Torgal ou o au toritarism o, era em si m esm o u m regim e, em bora em processo de aperfeiçoam en to e de tran sform ação. Foi isso exatam en te o qu e afirm ou , logo em 1934, n o 1º. Con gresso da Un ião Nacion al, repetin do as palavras qu e dissera a “u m crítico fran cês”: “As ditadu ras n ão m e parecem ser h oje parên teses du m regim e, m as elas próprias u m regim e, sen ão perfeitam en te con stitu ído, u m regim e em form ação. Terão perdido o seu tem po os qu e voltarem atrás, assim com o talvez tam bém o percam os qu e n elas su pu serem en con trar a su m a sabedoria política”.19 Em m aio de 1940, n u m discu rso n a Assem bléia Nacion al, dirá explicitam en te, com o o disse, de form a m ais ou m en os expressa, n ou tras ocasiões: “... n ós qu e n os afirm am os por u m lado an ticom u n istas e por ou tro an tidem ocratas e an tiliberais, au toritários e in terven cion istas...”.20 E afirm ações deste tipo con tin u arão a ser expressas m ais tarde, por exem plo em 1958,21 ou depois, em m om en to de “revivescên cia” do sistem a e das su as form as repressivas. A verdade é qu e, ain da qu e pu desse m u ito tran sitoriam en te ter feito crer qu e o regim e se poderia abrir a eleições livres, Salazar afirm ou -se sem pre con tra a dem ocracia, m esm o n o an o de 1945, com o term o da gu erra. Criticou os erros dos sistem as au toritaristas da Alem an h a e da Itália, con den ou o seu “totalitarism o”, 22 m as n u n ca aceitou os sistem as dem ocráticos, m u ito especialm en te em Portu gal (tin h a sem pre presen te o qu e con siderava a “balbú rdia san gu in olen ta” da experiên cia da Prim eira Repú blica), 23 e m esm o n ou tros países, em bora adm ita qu e em algu n s os seu s preju ízos sejam m en ores. 24 Qu an do m u ito procu rou provar, em estratégia de fim de gu erra, qu e o sistem a corporativo con stitu ía, do pon to de vista social e n ão político, a verdadeira dem ocracia: “Eu n ão qu ero forçar con clu sões – afirm ava, n u m discu rso proferido n a Assem bléia Nacion al em m aio de 1945 – m as, se a dem ocracia pode ter, além do seu sign ificado político, sign ificado social, en tão os verdadeiros dem ocratas som os n ós”. 25 É claro qu e depois da gu erra, Salazar terá com eçado a descrer n a “revolu ção n ecessária”, isto é, a ter algu m as dú vidas sobre o processo de desaparecim en to das dem ocracias e da su a su bstitu ição por sistem as au toritários; n o en tan to, peran te o n ovo “descon certo da Eu ropa” do pós-gu erra, con tin u ou a afirm ar qu e as dem ocracias passavam por u m a crise dolorosa 26 e a n ecessidade de Estados fortes27 para fazer fren te ao perigo com u n ista. Não seria possível en ten der a posição de Salazar peran te a Eu ropa e a política m u n dial sem partirm os deste pon to fu n dam en tal. É este seu an tidem ocratism o sistem ático, este “in tern acion alism o au toritário”, qu e, em con ju gação com ou tros fatores con ju n tu rais e n acion ais, vão explicar o seu “eu ropeísm o” e, ao m esm o tem po, o seu “an tieu ropeísm o”. 318 O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA N A CION A LISMO E EUROPEÍSMO Qu an do em abril de 1948 se celebraram os 20 an os da en trada de Salazar para o govern o, in titu lou -se a pu blicação, editada pela Un ião Nacion al, dos discu rsos en tão proferidos, Um grande português e um grande europeu: Salazar. Esta du pla im agem , n acion al e eu ropéia, vai servir de pretexto para refletirm os sobre a qu estão do Salazarism o e a Eu ropa. Para m elh or en ten derm os essa situ ação, deverem os n otar qu e, para Salazar e para toda u m a vasta e m u ltifacetada lin h a de pen sam en to eu ropeísta de sen tido tradicion al, “Eu ropa” n ão sign ificava propriam en te u m con tin en te, n em u m a estru tu ra econ ôm ica e m u ito m en os u m a estru tu ra política su pran acion al, m as u m “patrim ôn io cu ltu ral”, m arcado pelo Cristian ism o, por valores éticos e ju rídicos assen tes n a tradição. Daí partir-se para u m con ceito m ais geral, qu e tem , con tu do, com o base, a Eu ropa – o con ceito de “Ociden te”. Portan to, a “Eu ropa” para esta corren te, de qu e participaram as várias lin h as n acion alistas, n ão con tradizia u m a forte afirm ação de n acion alidade, m as qu eria sign ificar qu e a “idéia eu ropéia” u ltrapassava a Eu ropa e tin h a qu e ver com o patrim ôn io am erican o e african o, de con stru ção essen cialm en te eu ropéia. Assim , este m ovim en to, n o tem po en tre as du as gu erras e, sobretu do, com a vitória com u n ista n a Rú ssia e o avizin h ar da Segu n da Gu erra Mu n dial, tem a idéia de qu e a Eu ropa, ou , m ais vastam en te o “Ociden te”, está em crise de m orte, só poden do ergu er-se com a con stru ção de u m a “Nova Eu ropa”. Era essa a idéia, com as su as varian tes, do Nacion alSin dicalism o, do Fascism o e tam bém dos n acion alism os e au toritarism os de todos os m atizes. Desta form a, a Alem an h a em gu erra, n a su a fase vitoriosa, con stitu ía u m a Internationale Rechskammer, u m a Câm ara Ju rídica In tern acion al – a cu ja reu n ião, cu riosam en te, assistiu Cabral Mon cada, com a aqu iescên cia de Salazar, qu e se m an tin h a n a expectativa, con form e n os con ta aqu ele professor de Coim bra n as su as im pression an tes Memórias,28 Câm ara essa qu e preten dia reestru tu rar a Eu ropa e o Mu n do de acordo com prin cípios de u m a “n ova ordem ”. Na Itália an tes da gu erra falava-se de u m “Pan fascism o”, de u m a “In tern acion al Fascista”, da con cepção de u m a “Nova Eu ropa”29 – apropriação abu siva das idéias revolu cion árias do carbon ário Mazzin i, de m eados do sécu lo XIX30 –, prom oven do o Istituto Nazionale di Cultura Fascista, em plen a gu erra, u m con gresso sobre o tem a “Idea dell’Europa”,31 qu e procu rava sen sibilizar a opin ião para u m a con cepção de Eu ropa feita n a base de valores “fascistas” ( lato sensu ).32 En tretan to, os in telectu ais de direita, falavam da “decadên cia do Ociden te” (para em pregar as palavras de Spen gler) ou da Eu ropa, procu ran do criar u m “cordão san itário” con tra o com u n ism o, e tam bém con tra o liberalis- 319 Luís Reis Torgal m o e a dem ocracia, e ch am an do a aten ção para a u rgên cia de u m a “revolu ção n ecessária”, feita n a base de valores tradicion ais ren ovados. Apen as para exem plificar com u m a obra de gran de im pacto em Portu gal, recordem os o livro do su íço Gon zagu e de Reyn old, L’Europe tragique (1935). João Am eal, com a obra de 1938 Construção do Novo Estado, ou com as su as reflexões de 1945, A Europa e os seus fantasmas,33 são bem o exem plo típico deste gên ero de pen sam en to, prim eiro n u m a fase ain da in depen den te, de tipo m on árqu ico e “fascista” (en tre aspas) e depois n u m a perspectiva de “regim e”, de con torn os ideológicos m ais vagos. No con texto da gu erra, tam bém o tradicion alista m on árqu ico Edu ardo Freitas da Costa, n o seu Testamento da Europa, esperava o ren ascer da Eu ropa das ru ín as, sen do Portu gal o arau to dessa n ova m en sagem de “civilização”.34 Era, em certo sen tido, a idéia de “Qu in to Im pério” qu e ressu rgia. E ain da a própria polêm ica de Silva Dias35 con tra Abel Salazar 36 dos an os 40, aqu ele defen den do u m a idéia católica de Eu ropa, em oposição a u m a vaga e con fu sa con cepção de n ova Eu ropa assen te em valores dem ocráticos, é reveladora de idên tico espírito. Mas é claro qu e as idéias de Salazar, em bora in tegran do-se n este vasto m ovim en to, têm a su a origin alidade, resu ltan te de fatores reais da política e da “razão do Estado”. Vam os an alisá-las de segu ida, de u m m odo sistem ático e orden ado, para u m a m elh or com preen são das várias qu estões qu e su põe. An tes de m ais ch am em os, todavia, a aten ção para o fato de, apesar do seu caráter idên tico por toda a su a lon ga vida política – parafrasean do a afirm ação de u m jorn alista belga, Salazar con siderou se u m “h om em qu e jam ais se en gan ou ”37 – h aver n o seu pen sam en to alterações de tom e de expressão em razão das con ju n tu ras diferen tes de Portu gal, da Eu ropa e do Mu n do. De qu alqu er form a, em bora salien tan do sem pre a posição pessoal e pú blica de Salazar, com o presiden te do Con celh o e político in con testado do sistem a qu e fu n dou , an alisarem os, m ais latam en te, a idéia de “Eu ropa” do Salazarism o, isto é, do m ovim en to qu e brotan do de Salazar teve os seu s in térpretes, qu e ain da h oje fazem ecoar, em bora de m odo tên u e e in con seqü en te a su a voz. S A LA ZA R, SA LA ZA RISMO E “EUROPA ” As idéias do Salazarism o sobre a “Eu ropa” su põem ou têm su bjacen te as segu in tes qu estões e posições: ANTICOMUNISMO, ANTILIBERALISMO E ANTIDEMOCRATISMO Con form e já foi dito e provado, o Salazarism o, com o os ou tros “fascism os”, m an ifesta em prim eira lin h a um sistemático anticomunismo e um 320 O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA não menos sistemático antiliberalismo e antidemocratismo. Este prin cípio explica, em parte, com o tam bém afirm am os e vam os ain da m elh or esclarecer, a posição do Salazarism o qu an to à Eu ropa. Por u m lado, Salazar e os salazaristas n ão adm itiam qu e, de qu alqu er form a, os países com u n istas, n om eadam en te a Rú ssia, pu dessem participar da “aven tu ra eu ropéia”. Tal com o Gon zagu e de Reyn old, a Rú ssia com u n ista aparecia-lh es com o u m a “an ti-Eu ropa”.38 Este an ticom u n ism o obsessivo – até certo pon to explicável, ten do presen te a ditadu ra estalin ista – con dicion ou toda a política extern a portu gu esa. De on de a posição pron ta de Portu gal a favor dos “n acion alistas” espan h óis, com o objetivo de evitar o qu e se con siderava im in en te, isto é, o perigo da con cretização do plan o com u n ista de con stitu ir n a Pen ín su la as “repú blicas soviéticas ibéricas”.39 Daí qu e Salazar e os seu s ideólogos tivessem en ten dido a posição germ ân ica com o “fron teiro do Ociden te”, com preen den do, de form a m ais ou m en os explícita, a posição de Hitler, e, depois da derrota da Alem an h a, tivessem defen dido a n ecessidade da su a recon stitu ição. Pela su a im portân cia e sign ificado este pon to m erece-n os u m pou co m ais de aten ção. Na verdade algu n s pen sadores m ais ou m en os próxim os de Salazar en ten deram explicitam en te o papel da Alem an h a n azi, revelan do a su a sim patia por Hitler. Ain da em 38, aqu ele qu e h averia de ser o h istoriógrafo do regim e, João Am eal, afirm ava: “Hitler, pela su a reação vigorosa e triu n fal, sou be levan tar a barreira m ais eficaz – barreira in tran spon ível – à m arch a para oeste da epidem ia m arxista. Títu lo de glória su ficien te para lh e ren der a ju sta gratidão de todos os povos do Ociden te em perigo.40 E o ten en te José Gon çalves An drade – person alidade m u ito pou co im portan te, m as cu jas idéias são sign ificativas com o fen ôm en o de m en talidade – ch egou a tran screver, n u m a obra de elogio de Salazar, u m a carta qu e terá en viado ao Führer, con vidan do-o a colaborar ativam en te n a organ ização de u m a Liga In tern acion al con tra o com u n ism o.41 Salazar n u n ca terá tido especial sim patia por Hitler e pelo n azism o, ao con trário do qu e se passou com Mu ssolin i, por ele con siderado u m “gên io político”,42 e com o fascism o, em bora – com o vim os – sem pre ten h a afirm ado qu e era u m sistem a só aceitável n a Itália; n o en tan to, as parcas afirm ações pú blicas sobre a Alem an h a e, sobretu do, as su as en trelin h as e os seu s silên cios provam com o con siderava fu n dam en tal o seu papel n o con texto da Eu ropa. Com efeito, em bora se tivesse esforçado por explicar qu e a n eu tralidade portu gu esa n a gu erra fora, n o seu dizer, u m a “n eu tralidade colaboran te”,43 colaboran te com os Aliados – o qu e n a realidade acon teceu depois de 1942-1943 – é eviden te a su a com preen são pela qu estão alem ã. Assim su cedeu qu an do, n u m im portan te discu rso proferido n a Em issora Nacion al, em 27 de ou tu bro de 1938, criticou o 321 Luís Reis Torgal Tratado de Versalh es pela situ ação de “m en oridade” qu e atribu íra à Alem an h a,44 elogiou o Tratado de Mu n iqu e, qu e – n o seu dizer – se n ão origin ou u m a “n ova Eu ropa”, ao m en os criou as perspectivas de “u m a Eu ropa m u ito diferen te”,45 e ch am ou a aten ção para o papel da Itália e da Alem an h a n o apoio à “Espan h a n acion alista” com o objetivo de “ergu er barreiras à in vasão com u n ista”.46 A Rú ssia era sem pre o prim eiro objetivo da su a lu ta. Daí o seu m edo em qu e ela tivesse u m papel in terven ien te n a gu erra, qu e criasse u m a situ ação de alian ça com países am igos. Por isso, n u m discu rso de 39 afirm ará tam bém qu e jam ais a Rú ssia poderia aju dar o Ociden te n o restabelecim en to da paz, parecen do in clu sivam en te com preen der, ou pelo m en os n ão criticar com veem ên cia, a in vasão pela Alem an h a da Polôn ia – qu e h om en ageia pelo “seu h eróico sacrifício” e pelo “seu patriotism o” – para au m en tar a fren te an tibolch evista.47 E, em 1940, n u m discu rso qu e já referim os, m an ifestar-se-á “an ticom u n ista”, m as igu alm en te “an tidem ocrata” e “an tiliberal”.48 Salien tam os ou tra vez este ú ltim o pon to, porqu e ele será fu n dam en tal para en ten derm os a posição do salazarism o, depois da gu erra, an te a Eu ropa com u n itária em form ação. Efetivam en te, Salazar e os salazaristas viam com m ágoa qu e o pós-gu erra trou xe a “vitória das dem ocracias”,49 o qu e im plicava, segu n do o seu m odo de ver – ten do em con ta a su a idéia de qu e as dem ocracias estavam em crise e qu e a su a esperan ça apon tava para a afirm ação dos Estados fortes e de cu n h o n acion alista –, u m n ítido retrocesso. São elu cidativas estas palavras de Salazar proferidas em ou tu bro de 1945, em qu e fala do “ven to da dem ocracia” e da “gravidade das con tradições e dos equ ívocos em qu e a Eu ropa se debate”: “Para m im creio qu e o pen sam en to político eu ropeu , n o sen tido da revisão objetiva, à lu z da razão e da experiên cia, dos prin cípios qu e devem reger a organ ização e o govern o das n ações, acu sa u m n ítido recu o, isto é, u m retrocesso”.50 Mas, m ais do qu e o “perigo da dem ocracia”, Salazar receava sobretu do o “perigo com u n ista” qu e ressu rgia com esses “ven tos” e qu e perm itia a in trom issão dos com u n istas n os Estados dem ocráticos. Afin al a Eu ropa batera-se e arru in ara-se para se opor à “n ova ordem germ ân ica”, “m as – são palavras textu ais de Salazar, ditas em 1946 – é sobre as su as ru ín as ain da fu m egan tes qu e se vê alastrar a ‘n ova ordem com u n ista’”.51 O m edo con stan te do com u n ism o e da Rú ssia soviética persegu iu sem pre Salazar, n ão possibilitan do ou tra lógica política. Dirá in sisten tem en te, de resto, qu e a Rú ssia tem u m a m ística e u m a estratégia expan sion ista,52 ao passo qu e a Eu ropa se m an tin h a em con stan tes h esitações. E igu al crítica acabará por fazer aos Estados Un idos, já em m om en to de con flito com os am erican os.53 A Alem an h a ocu para sem pre u m lu gar estratégico n a Eu ropa – fora desde tem pos passados o seu “fron teiro” –, pelo qu e era n ecessário n ão a deixar an iqu ilar, dado qu e o perigo n ão vin h a daí e sim do Les- 322 O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA te.54 Será, de resto, com am argu ra qu e criticará, já em 1960, a “capitu lação in con dicion al do III Reich ” e a su a divisão, qu ebran do, assim a “barreira qu ase in tran spon ível” con tra a “pressão eslava”.55 Mas a lógica an tidem ocrática de Salazar n ão lh e perm itiu tam bém verificar qu e se estava a procu rar aos pou cos a form ação de u m a Eu ropa com u n itária, dem ocrática, e igu alm en te con trária ao com u n ism o de sistem a. Aden au er, ch an celer da Alem an h a Federal, qu e Salazar elogiou n esse an o de 1958 56 do Tratado de Rom a, era u m dos obreiros dessa “Eu ropa”, qu e, com o verem os, o estadista portu gu ês por várias vezes con testou , por razões estratégicas e de prin cípio. A IMAGEM DE ORIGINALIDADE DE PORTUGAL NA EUROPA Ou tra qu estão fu n dam en tal para en ten der a posição do salazarism o relativam en te à Eu ropa diz respeito à realidade e à im agem de Portu gal com o u m país sui generis. No seu in ício o Estado Novo foi apresen tado com o u m regim e de rein tegração de Portu gal n a realidade eu ropéia, depois da vergon h osa situ ação da dívida pú blica e da “balbú rdia san gu in olen ta” em qu e caiu a I Repú blica. No en tan to, à m edida qu e as con vu lsões eu ropéias se iam dilatan do com o avizin h ar da gu erra e qu e as n ações dem ocráticas iam tom an do posições con tra as “ditadu ras”, Portu gal ia-se sen tin do m ais isolado, sobretu do porqu e n ão qu eria, por u m lado, aban don ar a tradicion al Alian ça In glesa e, por ou tro, receava u m a ligação dem asiado com prom etedora com os Estados “fascistas”, para qu e n atu ralm en te iam as sim patias políticas do salazarism o. E a situ ação torn ava-se m ais com plexa porqu e com eçavam a ecoar os prim eiros ru m ores an ticolon ialistas n a Eu ropa. Salazar foi, assim , crian do a idéia de qu e Portu gal possu ía o seu próprio “espírito”, o qu e explica, à distân cia, a su a fam osa expressão “orgu lh osam en te sós”,57 de gran de im pacto n os an os 60, qu an do a política m u n dial se voltou praticam en te toda con tra as posições assu m idas pelo n osso país. O prim eiro passo n esse sen tido é dado n o tem po da gu erra, qu an do Salazar afirm a a n eu tralidade portu gu esa. Essa atitu de estratégica – em qu e provavelm en te estiveram in teressadas as potên cias aliadas, m ais do qu e as do Eixo – foi afin al pon to de partida, em bora n o dom ín io ideológico as origen s deste processo sejam an teriores, dado qu e se radicam n o prin cípio logo afirm ado por Salazar n o in ício da su a govern ação e corroborado pelos seu s partidários e sim patizan tes estran geiros (especialm en te da Action Française) de qu e Portu gal con stitu ía u m caso à parte n o con texto dos estados au toritários da Eu ropa. Em 1937, qu an do as con vu lsões eu ropéias se agu dizavam , já Salazar, n u m discu rso proferido n a sala dos “Passos Perdidos” da Assem bléia Nacion al, m an ifestava a in depen dên cia portu gu esa n o con texto das rivali- 323 Luís Reis Torgal dades em con fron to e con siderava qu e se arriscava n a batalh a “a própria civilização do ociden te”.58 E, além disso, defen dia-se das gran des críticas qu e se com eçavam a se avolu m ar con tra o seu regim e, vin das da Eu ropa dem ocrática. Dirigin do-se aos oficiais de terra e do m ar, reu n idos para celebrar o m alogro do aten tado qu e lh e tin h a sido dirigido dias an tes, proclam ava: “Vós sabeis qu e este regim e a qu e ain da h oje ch am am ditadu ra, e agora carregado com o apodo de fascista, é bran do com o os n ossos costu m es, m odesto com o a própria vida da Nação, am igo do trabalh o e do povo. Não h á agitação su perficial ou profu n da, n em divisões das classes, n em ódios irreprim íveis n a gran de m assa, irm an ada h oje n a aspiração su prem a do en gran decim en to n acion al”.59 (p. 302) Esta idéia de “paraíso perdido”, n o m eio de u m a Eu ropa em delírio, será obviam en te fortalecida n o con texto da gu erra. Poderíam os apresen tar várias fon tes com provatórias. Mas citem os apen as algu m as qu e tiveram com certeza gran de im pacto n acion al. *Recordem os, assim , n o dom ín io do cin em a,60 o film e de gran de au diên cia O pátio das cantigas, de 1941, realizado por Fran cisco Ribeiro, irm ão de An tôn io Lopes Ribeiro, u m dos m ais im portan tes cin eastas do regim e, qu e de resto foi o produ tor e o au tor dos diálogos. Ele retrata as pequ en as qu ezílias de u m pacato e alegre pátio lisboeta, afastado das gran des batalh as qu e abalavam o Mu n do. Explicitam en te, u m dos figu ran tes prin cipais, Narciso (Vasco San tan a), n o m eio de u m a côm ica lu ta em qu e redu n daram os festejos de San to An tôn io, gu arda as crian cin h as n u m palan qu e qu e tem por cim a escrita a palavra “Salazar”. E o realizador foi ao pon to de gracejar com a gu erra, im itan do os soldados em lu ta e a Cru z Verm elh a em ação, en qu an to o san gren to con flito fazia m ilh ões de m ortos. Um an o an tes, em 1940, realizava-se a Exposição do Mu n do Portu gu ês. Era assim qu e o jorn al O Século com en tava a Sala Portu gal: “é o pavilh ão da n ossa paz in tern a, do n osso labor, da n ossa von tade de viver; é a apoteose da n ossa fé coletiva, a disciplin a do n osso espírito. É a n ossa h ospitalidade aberta com o zon a de refú gio e de paz aos estran geiros; é a fidelidade ao n osso destin o.61 O volu m e IV (pu blicado em 1956) dos Anais da Revolução Nacional, obra dirigida por João Am eal, in titu lava-se “O Mu n do em Gu erra. Portu gal em Paz”, sen do o capítu lo IV dedicado ao tem a “Um a zon a de paz n o m eio da gu erra”. Aliás qu an do a gu erra term in ou foi organ izada u m a m an ifestação a Salazar para agradecer ao Presiden te do Con celh o o fato de ter salvo Portu gal do gran de cataclism o. In tern am en te Salazar tirava os seu s dividen dos e preparava-se para o gran de con fron to político. No con texto do pós-gu erra, Portu gal procu rava in tegrar-se n a “com u n idade in tern acion al”. Foi essa a própria expressão u sada por Salazar, ao m esm o tem po qu e ten tava iden tificar-se, n a m edida do possível, com 324 O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA a lu ta da “dem ocracia” con tra o n azism o, isto é, con tra o “Estado totalitário”. Esta in tegração tin h a os seu s cu stos teóricos e práticos e, assim , com o já dissem os, Salazar teve tam bém de salien tar qu e essa afirm ação e essa lu ta “n ão en volviam o ataqu e a form as diversas de organ ização do Poder”, qu eren do com isto exclu ir Portu gal da acu sação de Estado fascista. Ao con trário, n u m verdadeiro jogo de cin tu ra, preten deu m ostrar qu e, em term os de “alcan ce social”, os “verdadeiros dem ocratas” éram os “n ós”. É n u m discu rso n otável proferido n a Assém bleia Nacion al em 18 de m aio de 1945 qu e deparam os com este raciocín io de circu n stân cia,62 de qu e ain da se ou vem ecos n a lógica de algu n s “salazaristas”, qu e con tin u am a acreditar n a eficácia do Estado corporativo. Mas n esse m esm o discu rso, Salazar volta a exclu ir o país da aceitação do parlam en tarism o e das solu ções federalistas da Eu ropa, ao m esm o tem po qu e salien ta o papel especial de Portu gal n a recon stitu ição do Ociden te”.63 A posição do Estado Novo portu gu ês procu rava, pois, afirm ar-se e m an ter-se n u m a situ ação sui generis, só aceitan do pactu ar o m ín im o in dispen sável com os “ven tos da História”. É qu e Salazar con tin u ava a afirm ar, agora em razão da “vitória das dem ocracias” e do avan çar do perigo com u n ista, qu e a Eu ropa e o Mu n do estavam em crise m oral acelerada – “O Mu n do está ch eio de idéias falsas e palavras vãs”, proclam ava ele,64 de qu e era n ecessário salvar o país. Portu gal esteve n a Sociedade das Nações (SDN), propu n h a-se en trar n a ONU, m as isso n ão alteraria su bstan cialm en te a su a lin h a de ru m o. E a lin h a da su a política extern a seria de tipo atlân tico. “Den tro ou fora das Nações Un idas, a n ossa política extern a n ão tem sen ão de segu ir, ao lado dos tradicion ais im perativos h istóricos e geográficos, as claras in dicações do ú ltim o con flito. O cen tro de gravidade da política eu ropéia… sen ão da política m u n dial, deslocou -se m ais ain da para oeste e situ ou n o prim eiro plan o o Atlân tico, com os estados qu e o rodeiam . Em recon h ecê-lo n ão deixam os de ser eu ropeu s; o qu e dam os é m ais largo sen tido ao Ociden te.65 Está aqu i traçado, n este texto fu n dam en tal de u m seu discu rso de 1946, o perfil da su a con cepção de “Eu ropa”, qu e depois an alisarem os com u m pou co m ais de cu idado. Por en qu an to preocu pem o-n os com as qu estões qu e a explicam . Um a das m ais im portan tes será a realidade própria de Portu gal com o u m país colon izador e qu e teim ava em con tin u ar a ju stificar essa posição. Se essa situ ação teve de levar Salazar a alterar n os an os 50 a estru tu ra ju rídico-política do Estado – só desta form a lh e foi perm itido en trar em 1955 n a ONU, pelas m ãos dos Estados Un idos e da Grã-Bretan h a – o certo é qu e ela con stitu iu o gran de problem a portu gu ês e a cau sa do aban don o do apoio dos países Aliados, bem com o, a certo prazo, o m otivo da qu eda do regim e. Salazar, à m edida qu e se esforçava por m an ter a im agem paradisíaca de Portu gal – ain da em 1951, falan do das “su bversões” do Mu n do, “n a 325 Luís Reis Torgal m aior parte catastróficas”, referia-se à n ossa situ ação privilegiada,66 lu tava con tra as posições an ticolon ialistas, qu e iam crescen do n o con texto in tern acion al. Com efeito, se n a África, m ercê da descolon ização qu e se in icia n o pós-gu erra, se verificavam os prim eiros m ovim en tos con tra as posições portu gu esas n o con tin en te, vai ser in icialm en te a Un ião In dian a a m ovim en tar-se con tra a presen ça portu gu esa n o Estado da Ín dia e a criar o prim eiro gran de con ten cioso “colon ial” portu gu ês. As pressões su rgiram n os fin ais dos an os 40 67 e disseram respeito a qu estões do Padroado, m as foi n os an os 50 qu e se efetu ou a ação sistem ática de Nh eru , qu e cu lm in aria com a in vasão dos territórios in dian os de colon ização portu gu esa. Peran te este com bate aceso e peran te a falta de apoios, in clu sive da su a aliada In glaterra, Salazar qu eixa-se por várias vezes de a Eu ropa se sen tir “en vergon h ada” do seu passado colon izador.68 Mas o dram a de Salazar au m en ta ain da qu an do verifica qu e o fen ôm en o da descolon ização e da au todeterm in ação é im parável. Para além , com o dissem os, de se ter alterado o estatu to das colôn ias portu gu esas, qu e passaram a ser apelidadas de Provín cias Ultram arin as, defen de o direito da colon ização por parte de Portu gal e da Eu ropa. Ain da em 1957 afirm ava: “Nós crem os qu e h á raças, decaden tes ou atrasadas, com o se qu eira, em relação às qu ais perfilh am os o dever de ch am á-las à civilização...69 Em 1960, em en trevista a Le Figaro, in sistia qu e “a palavra colôn ia n o seu m ais pu ro sign ificado” con tin u ava a ser “respeitável”70 e su blin h ava, dian te da im in ên cia da descolon ização e da lu ta pela in depen dên cia dos territórios da África: “Se tem os ju ízo, n ão separem os as coletividades african as dos seu s gu ias secu lares qu e pou co a pou co, e n ão com o torren te devastadora, lh es vão tran sm itin do a su a civilização”.71 A gu erra colon ial african a ia com eçar e Salazar ia fican do cada vez m ais isolado. A ONU tom ará posições con tra Portu gal e a favor da au todeterm in ação dos territórios colon izados e os EUA, govern ados por Ken n edy, votarão a favor dessas m oções.72 Os discu rsos de Salazar passarão a versar predom in an tem en te os problem as u ltram arin os e afirm ará a célebre e já referida posição de “orgu lh osam en te sós”, qu e con stitu iu o ch avão da ú ltim a fase do seu con su lado. “EUROPEÍSMO” E “ANTIEUROPEÍSMO” A ideologia salazarista em relação à Eu ropa e ao Mu n do m an tevese essen cialm en te con stan te. Só se alteraram as su as con dicion an tes. Vejam os, pois, agora, com o corolário desta an álise, a idéia aparen tem en te con traditória de Salazar dian te da realidade eu ropéia e en ten dam os porqu e n ele se con ju gam , logicam en te aliás, u m “eu ropeísm o” e u m “an tieu ropeísm o”. An tes, porém , para u m a m elh or com preen são do as- 326 O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA su n to, esbocem os, em lin h as gerais, as corren tes eu ropeístas qu e se perfilam , sobretu do, n o pós-gu erra. O projeto eu ropeísta é velh o, com o se sabe, sen do com u m dizer-se qu e, de u m a form a pré-m odern a, rem on ta a Pierre Du bois (qu e m orreu cerca de 1321). As in ten ções desse projeto ou desses projetos estão ligadas a con cepções diversas e de variado tipo, desde a idéia de u n idade cristã, ten do com o base política de h egem on ia “sacerdotal” ou “im perial”, à idéia de paz e de solidariedade en tre os povos, ou a desígn ios m ais con cretos de m an u ten ção de u m a “ordem con servadora”, ou de idéias de in tern acion alism o liberal, dem ocrático ou socialista, ou até a pragm áticos plan os de organ ização econ ôm ica. Depois da Prim eira Gran de Gu erra, m as em especial depois da Segu n da, esses projetos en tram n u m a ordem de in iciativas m ais direta, n ão só n u m a m era con cepção eu ropeísta m as m esm o m u n dial. Foi n esse con texto qu e su rgiu a SDN em 1919-1920, e em 1945 a ONU, e qu e apareceu , só em 1957, com o Tratado de Rom a, a Com u n idade Econ ôm ica Eu ropéia (CEE), precedida em 1947 da criação do BENELUX, em 1949 do Con celh o da Eu ropa e em 1951 da Com u n idade Eu ropéia do Carvão e do Aço (CECA), para falar apen as em algu m as etapas fu n dam en tais. No en tan to, para u m m elh or en ten dim en to das lin h as em con fron to, sem o qu e n ão será fácil en ten der com u m a certa exatidão as posições do Salazarim o, parece-n os ain da im portan te falar das ten dên cias qu e se esboçavam n o cam po das idéias e das realizações. Pode dizer-se, em prim eiro lu gar, qu e se desen h am plan os apen as con cretizados n o cam po das ideologias m ilitan tes. Um deles, assu m ido pela esqu erda socialista in depen den te, qu e criara n o pós-gu erra o Movim en to para os Estados Socialistas da Eu ropa, pen sava n a possibilidade de alterar a face eu ropéia capitalista, n u m a perspectiva política, cu ltu ral e socioecon ôm ica socialista, fora, n o en tan to, do sistem a de in flu ên cias soviético. Em 1947 tran sform a-se n o Movim en to Socialista Eu ropeu , perden do, segu n do algu n s dos seu s in iciais organ izadores e depois dissiden tes, adeptos de u m esqu erdism o radical, o seu idealism o de prin cípio, e in tegran do-se n u m certo “pragm atism o eu ropeu ”.73 Ou tra lin h a, diam etralm en te oposta a esta, con stitu ía a extrem a direita n acion alista e católica, qu e n ão propen dia para u m projeto con creto e su pran acion al de “Eu ropa”, em bora estabelecesse algu m as pon tes com os projetos pragm áticos e im perialistas do n azism o e do fascism o italian o. Acim a de tu do, pen sava tam bém n u m a alteração da face da Eu ropa, m as – in vocan do a experiên cia da cristan dade m edieval e as idéias revivalistas rom ân ticas – n u m a perspectiva corporativa, au toritária e católica. Nou tro sen tido, em con fron to direto com o n azi-fascism o, en con trava-se o com u n ism o soviético, qu e, m ais do qu e u m plan o eu ropeu , tin h a objetivos in tern acion alistas de “poder proletário” e projetos con cretos de expan são n a Eu ropa e n o Mu n do. 327 Luís Reis Torgal Mas as lin h as eu ropeístas e in tern acion ais qu e realm en te acabaram por se in stitu cion alizar depois da gu erra n ão foram estas. Foi sim , por u m lado, u m a corren te eu ropeísta prática, de tipo econ ôm ico, m as tam bém de ten dên cias políticas, defen dida por dem ocratas-cristãos, liberais e socialistas m oderados. A “Eu ropa dos Seis” (Alem an h a, Fran ça, Itália, Holan da, Bélgica e Lu xem bu rgo), qu e lh e deu in ício, m arca a afirm ação de u m a Eu ropa cen tro-ociden tal. Por ou tro lado, diferen tes lin h as com u n itárias afirm avam -se n ou tros qu adran tes geográficos e n ou tras áreas de Poder. É o caso da OECE (Organ ização Eu ropéia de Cooperação Econ ôm ica), qu e su rgia em 1948 n o con texto do Plan o Marsh all (1947), isto é, do plan o de apoio dos EUA à Eu ropa destru ída pela gu erra. Trata-se, pois, de u m a con cepção eu ropéia atlân tica sob lideran ça am erican a qu e acabou por desaparecer com a criação da OCDE (Organ ização de Cooperação e de Desen volvim en to Econ ôm ico), criada em 1960 e qu e abarca 24 países, da Eu ropa (algu n s da CEE), da Am érica (os EUA e o Can adá) e da Ocean ia (Au strália e Nova Zelân dia). En tretan to, para a defesa do Atlân tico con tra o “perigo com u n ista” – ao qu al respon derá n o Leste o Pacto de Varsóvia –, organ izava-se jogo em 1949, com a presen ça dom in an te dos EUA e com algu n s países da fu tu ra Com u n idade Eu ropéia, a OTAN ou NATO (Organ ização do Tratado do Atlân tico Norte). No plan o econ ôm ico, de algu m a form a com o con trapon to a u m a con cepção de “com ércio fech ado” da CEE, su rgia em 1960 n a Eu ropa a EFTA (Eu ropean Free Trade Association ). Associação Eu ropéia de Com ércio Livre). É n o seio desta rede com plexa de organ izações, on de se cru zam con cepções políticas e econ ôm icas diferen tes, qu e vam os en con trar, em parte, o Estado Novo portu gu ês. Nu m discu rso de 1949, proferido n a Sala das Sessões da Assem bléia Nacion al, n o qu al se pron u n ciou sobre a adesão de Portu gal ao Pacto do Atlân tico, Salazar sin tetizou a su a opin ião sobre a Eu ropa. Assim , depois de afirm ar qu e Portu gal n ão poderia ser acu sado de precon ceitos raciais, disse: “Não é, porém , precon ceito racial a verificação de u m fato h istórico – qu al a m arcada su perioridade do eu ropeu , n a tarefa civilizadora, en tre todos os povos da Terra. Desta Eu ropa gerada n a dor das in vasões, sacrificada em gu erras in testin as, cu rtida n o trabalh o in san o, revolvida a cada passo, por avalan ch es de idéias e revolu ções qu e se assem elh am a fu riosos tem porais, descobridora, viageira, m ission ária, m ãe das n ações, desta Eu ropa sim u ltan eam en te trágica e gloriosa ain da h oje se pode asseverar qu e m an tém o prim ado da ciên cia e das artes, u tiliza n o m ais alto grau os segredos da técn ica, con serva o in stin to de afin ar as in stitu ições e de su blim ar a cu ltu ra e é deten tora de in com parável experiên cia política. Não esqu eçam os o qu e se deve a ou tros em criação artística, esplen dor literário, su tileza de filosofias aqu i e além criadas e desen volvidas; m as só 328 O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA da Eu ropa se pode afirm ar qu e criou , sob in spiração cristã, valores u n iversais, gen erosam en te, gratu itam en te, postos ao dipor do Mu n do, n a su a ân sia de tran splan tar civilização. Cada u m de n ós deveria sen tir o orgu lh o de se afirm ar eu ropeu .” E con tin u ou n ou tro sen tido: “Seria, n o en tan to, desrazoável fech ar os olh os à crise da Eu ropa n o presen te m om en to; devastada, em pobrecida, dividida, m oralm en te desfeita, corroída pelo desân im o, a braços com u m a perigosa desorien tação m en tal e o claro declin ar das virtu des em qu e se form ou , m u itos pergu n tam se n ão são estes sin tom as da decadên cia e se esta n ão será defin itiva: finis Europae”.74 Com o se vê, é u m a “Eu ropa trágica” qu e Salazar n os apresen ta – “l’Europe tragique” (Gon zagu e de Reyn old), “a Eu ropa e os seu s fan tasm as” (João Am eal) –, m as tam bém u m a “Eu ropa gloriosa”. Na verdade, o seu “eu ropeísm o” tem sobretu do este sen tido vago, qu ase diríam os rom ân tico, “espiritu al”, este sen tido de Eu ropa com o “patrim ôn io cu ltu ral”. Mas n ão só. Com o homo politicus, Salazar viu tam bém a qu estão em term os estratégicos. Daí a adesão de Portu gal ao Pacto do Atlân tico. É qu e para ele – com o procu ram os provar – h á dois prin cípios essen ciais qu e estão n a base da su a política extern a e n a su a idéia de Eu ropa e de Mu n do: o seu an ticom u n ism o sistem ático, em ligação com u m tam bém sistem ático an tiliberalism o e an tidem ocratism o, e a im agem da “origin alidade” de Portu gal, ten do em con ta a su a ação própria de civilizador de vastas regiões, em particu lar da África. Esta ú ltim a posição ju stificava em parte o afastam en to do país em relação aos con flitos da Eu ropa: “Sem pre qu e o fizem os” – afirm ava n esse m esm o discu rso – “livrem en te ou com pelidos por ou tros e pelas circu n stân cias, distraím o-n os das n ossas tarefas u ltram arin as, e sem lu cros, an tes com graves dan os e perdas de vidas e fazen da, voltam os para a Pátria, se às vezes com glória, sem pre desilu didos das n ossas in terven ções”.75 Os dois prin cípios con ju n tam en te explicavam , por su a vez, u m a con cepção de Eu ropa alargada, de tipo atlân tico, n a base de u m a ação fu n dam en tal dos Estados Un idos, com o potên cia m essiân ica: “A Eu ropa n ão pode sem o au xílio am erican o salvar n esta h ora o qu e resta do seu patrim ôn io m oral e da su a liberdade”.76 Afin al o qu e defen deu Salazar n ão foi u m a Eu ropa com u n itária, de tipo con tin en tal e m u ito m en os de tipo federalista. Desde m u ito cedo – pelo m en os em 1936 – qu e o vem os a criticar o qu e con sidera a “fan tasia” dos Estados Un idos da Eu ropa,77 assim com o, pou cos m eses após o Tratado de Rom a, o en con tram os den u n cian do a “Eu ropa dos Seis” e o Mercado Com u m , con sideran do qu e qu ebrava o sistem a de relações dos países qu e con stitu íam a OECE e repu tava-a u m a organ ização preju dicial em n om e do “com ércio livre” (recorde-se qu e em 1960 Portu gal in tegrarse-á n a OCDE e aderirá à EFTA).78 329 Luís Reis Torgal A Eu ropa é, para Salazar, o cen tro n evrálgico do m u n do. Mas n ão a en ten de som en te n u m a perspectiva estritam en te “eu ropéia”, e sim n u m a perspectiva eu ro-am erican a 79 e eu ro-african a. Se, por u m lado, os EUA salvarão os valores da Eu ropa – “o cen tro de gravidade da política m u n dial” (segu n do dizia) “n ão é n em pode já ser eu ropeu , m as qu an do m u ito eu ro-am erican o” –, a Eu ropa tam bém n ão pode viver sem a África, qu e é o seu “com plem en to n atu ral”, com o por diversas vezes dirá, an tes e depois dos con flitos da descolon ização.80 Portan to, a Eu ropa só con segu irá refazer os seu s valores se m an tiver a su a posição civilizadora n a África, se se opu ser term in an tem en te ao com u n ism o soviético e se con segu ir, assim , fazer reviver o seu espírito secu lar. Nesta m edida, se a Am érica tem u m papel político im portan te n esta tarefa, u m país pequ en o, m as h istoricam en te sign ificativo com o Portu gal, n ão desem pen h ará u m a fu n ção m en os relevan te: “con tribu ição qu e o portu gu ês deu para o alargam en to do espaço su jeito à in flu ên cia eu ropéia, a expan são qu e ele próprio realizou da civilização ociden tal e a ação qu e n o m esm o sen tido con tin u a a desen volver n os territórios su jeitos à su a soberan ia fazem deste pequ en o país u m obreiro n ão despicien do da tarefa coletiva da Eu ropa”.81 Eis, pois, por qu e Salazar é u m “eu ropeísta” e u m “n ão eu ropeísta”. Mas o certo é qu e foi a su a posição eu ropéia qu e saiu derrotada n a batalh a estratégica da Eu ropa e do m u n do. A lu ta an ticolon ial gen eralizada e o aban don o dos EUA, e da própria Eu ropa, em relação à política portu gu esa eu ro-african a, bem com o as n ovas estratégias – cada vez m ais toleran tes, apesar da “gu erra fria” – para fazer fren te ao com u n ism o soviético, acabaram por arrastar o Portu gal salazarista para u m a posição solitária. Daí qu e Portu gal só “voltará” à “Eu ropa”, a “ou tra Eu ropa”, após o 25 de Abril, depois de en trar n a via dem ocrática. Por isso, é possível ain da h oje en con trar vozes de resson ân cia salazarista qu e criticam a “in tegração eu ropéia”, em bora su rjam tam bém várias posições, igu alm en te críticas, com ou tras origen s ideológicas, por vezes diam etralm en te diferen tes. V OZES “SA LA ZA RISTA S” SOBRE A EUROPA Os n acion alistas fran ceses – qu e n a Fran ça perderam a “batalh a das idéias” – en ten deram Portu gal com o o “bastião do Ociden te” (“le bastion avançé de l’Occident”, com o disse Hen ri Massis, au tor da obra Défense de l’Occident”.82 Jacqu es Plon card d’Assac, qu e, desem pen h an do u m papel de “in telectu al orgân ico” n o Estado Novo, foi o m ais salazaristas desses fran ceses, ao estabelecer u m “dicion ário político de Salazar”, realçou n a palavra “Eu ropa” exatam en te essa posição de Salazar con tra a com u n idade eu ropéia e essa ou tra idéia de Eu ropa com o patrim ôn io estru tu rado n u m a Eu ro-afro-am érica.83 330 O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA Matos Gom es, u m m on árqu ico qu e dedicou em 1953 u m a obra à “Política Extern a de Salazar”, acen tou , com sim patia, apesar da “seren idade objetiva” qu e dizia m an ifestar n esse estu do, exatam en te os aspectos com qu e caracterizam os o pen sam en to de Salazar sobre a Eu ropa. Isto é, procu rou desen h ar as su as con cepções n a base da idéia de qu e Salazar – “qu e jam ais se en gan ou ” –, teve sem pre presen te o perigo com u n ista, a com preen são pela Alem an h a, con sideran do o germ an o com o “o fron teiro da Eu ropa em face do eslavo in vasor”, a “m aldita h eran ça” das dem ocracias. Daí qu e ch egasse a u m “eu ropeísm o toleran te e com preen sivo”, toleran te de todos os sistem as políticos, à exceção do com u n ism o, e repu diasse as u topias eu ropeístas de base dem ocrática.84 Sin tetizan do, afirm ava: “Portu gal defen de o seu eu ropeísm o e, com ele, a su a fidelidade à Verdade, à Hon ra, à Ju stiça, à Legitim idade do Direito, ao Bem -Com u m dos Hom en s e das Nações. Mas repele com apru m o a in sídia do bolch evism o.85 Mas foi João Am eal o ideólogo e o h istoriador do regim e qu e m ais se dedicou à an álise e à reflexão sobre a realidade eu ropéia. Para além de livros teóricos, direta ou in diretam en te, sobre o tem a, lecion ou n o In stitu to Su perior de Ciên cias Sociais e Política Ultram arin a u m cu rso acerca da “idéia de Eu ropa” e pu blicou u m a “História da Eu ropa”. O seu texto de 1945 A Europa e os seus fantasmas reprodu z – ele qu e acreditava, veem en tem en te, an tes da gu erra, n a con stru ção de u m “Novo Estado” – as velh as teses caras ao pen sam en to n acion alista em crise, crise qu e n ão o leva a crer com igu al en tu siasm o em solu ções con cretas de m u dan ça, m as apen as em vagas idéias rom ân ticas. Os “fan tasm as” da Eu ropa eram a “h eresia liberal”, o com u n ism o, o “am erican ism o” (a “ditadu ra da m áqu in a”)... A “Idade Nova” teria de assen tar n a História, n o Nacion alism o (n o “bom n acion alism o”, fu n dam en tado n o catolicism o) e n o “Novo Estado”, corporativo, m u n icipalista, qu e tem com o célu la a Fam ília. “Sob o sign o de São Tom ás” – n esta vaga esperan ça de teoria política católica term in a o seu livro de pessim ism o e de esperan ça. Na in trodu ção dissera: “Não estam os, de fato, em plen a atm osfera de tragédia? À sem elh an ça de Electra, n ão sofre a Eu ropa o assalto da ron da dos fan tasm as – dos seu s fan tasm as – qu e a afogam e estran gu lam com desm edidos braços de som bra? Mas os fan tasm as poderão ser ven cidos, dissolvidos – se a Eu ropa se pu ser n ovam en te em m arch a para on de se descerram as gran des claridades, de acordo com as bases profu n das da civilização do ociden te e com as lições e os apelos dos n ovos tem pos; se a Eu ropa voltar a ser aqu ilo qu e foi n o seu período áu reo: cristan dade, u n ida con tra as h eresias, fiel à lei de Deu s e às leis da n atu reza h u m an a...”.86 Nas su as lições sobre a Idéia de Europa n ão são su bstan cialm en te diferen tes as esperan ças de Am eal, ain da qu e as idéias corram com preocu pações didáticas m ais “objetivas” e ain da qu e ten h a com o con dim en tos os 331 Luís Reis Torgal novos condicionalismos dos anos 60. Lá temos, por um lado, a recusa de qualquer esquema de soberania supranacional e, por outro, a idéia, ainda subsistente, de que os Estados Unidos deveriam ajudar a não morrer a “civilização ocidental”.87 Em 1969, falando do Ocidente, está subjacente a luta travada por Portugal no Ultramar: “O Ultramar Português será fator determinante do projeto do futuro Portugal nos quadros do Ocidente futuro!”.88 Mas o m ais in teressan te em João Am eal é qu e ele foi o au tor da ú n ica História da Europa até agora pu blicada em Portu gal por u m portu gu ês.89 Obviam en te é u m a h istória m arcada pelas gran des lin h as da ideologia in tegralista e salazarista, u m a h istória qu e con siderou com o “h eresias” os m ovim en tos revolu cion ários qu e vão da Revolu ção Fran cesa e do liberalism o, ou m esm o do Ren ascim en to e do Ilu m in ism o, ao com u n ism o e à dem ocracia. Mas acim a de tu do trata-se de u m a h istória vista “sob o ân gu lo portu gu ês”. Um dos objetivos con siste em m ostrar o con tribu to qu e “Portu gal deu à Civilização Ociden tal”. Aí tem os o n acion alism o portu gu ês n a base do “ociden talism o”.90 Um ou tro caso dign o de n ota é o Pau lo de Pitta e Cu n h a, docen te da Facu ldade de Direito de Lisboa, qu e esboçou sobre os problem as da Eu ropa algu m as reflexões de cu n h o “cien tífico”, con dicion adas pelas idéias salazaristas dos an os 60. Nu m bem docu m en tado estu do acerca do “Movim en to Eu ropeu ”, n o qu al apresen tou os textos fu n dam en tais da com u n idade eu ropéia, e das etapas qu e a precederam , qu estion ou sobre as dificu ldades em articu lar a soberan ia dos Estados e as in stitu ições su pran acion ais da CEE Tam bém a sim patia de Pitta e Cu n h a se dirigia para a idéia de u m a com u n idade eu ro-am erican a, qu e, n o en tan to, os processos de descolon ização preju dicariam .91 Poderíam os discu tir agora se o m arcelism o trou xe algo às con cepções portu gu esas de Eu ropa 92 ou m esm o se algu n s m in istros m ais de Salazar, com o Adrian o Moreira – com o m in istro e depois com o professor –, abriram já a qu estão a ou tras perspectivas.93 Fosse com o fosse, o certo é qu e a política portu gu esa n ão se alterou su bstan cialm en te. Apesar de afirm ações de “cooperação” e da m aior abertu ra ao m ercado in tern acion al, aban don an do, assim , aos pou cos o “m ercado ú n ico eu ropeu ”, m an tivem o-n os essen cialm en te em idên tica atitu de de solidão política n o espaço eu ropeu e m u n dial. Ain da recen tem en te se ou viram ecos das teses salazaristas... Não é por acaso qu e Silva Cu n h a, qu e foi m in istro de Salazar n os an os 60, em 1980 falava de u m a Eu ropa en fraqu ecida, de Portu gal desde sem pre in teressado n as organ izações eu ropéias, aceitan do a n ova in tegração só com o u m desafio à crise agôn ica do país – u m país sem Ultram ar, de qu e ele próprio fora Min istro.94 E tam bém n ão é por acaso qu e Kaú lza de Arriaga, qu e perten ceu ao govern o de “extrem a direita portu gu esa”, m an tin h a a idéia – em palavras dirigidas ao jorn al Expresso, n o con texto do de- 332 O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA bate sobre o tratado de Maastrich t, qu e apon tou para a organ ização da Un ião Eu ropéia – qu e Portu gal “com eteu u m erro ao en trar para a CE, porqu e a n ossa com u n idade n atu ral tem a ver com a In glaterra e a Am érica do Norte e os an tigos territórios u ltram arin os”.95 333 Luís Reis Torgal N OTA S 1. GARCIA, M. M. Arquivo de Salazar. Inventário e Índices. Lisboa: Estam pa, 1991. 2. Este texto qu e agora pu blicam os é u m a refu n dição e atu alização do artigo Salazarism o, Fascism o e Eu ropa. Vértice, p.41-52, jan .-fev., 1993; n ova edição: O Estu do da História. Boletim da Associação de Professores de História ( Lisboa), II série, n .12-13-14-15, p.111-34, 19901993. No con texto da m esm a tem ática e retom an do, em boa parte, idéias desse artigo, pu blicam os tam bém : Salazarism o, Alem an h a e Eu ropa. Discu rsos Políticos e Cu ltu rais. Revista de História das Ideias, n .16. Do Estado Novo ao 25 de Abril, 1994, p.73-104; pu blicado tam bém em SANTOS, M. L. dos, KNEFELKAMP, U., HANENBERG, P. (Org.) Portugal und Deutschland auf dem Weg nach Europa (Portugal e a Alemanha a caminho da Europa. Cen tau ru s-Verlagsgesellsch aft, Pfaffen weiler, 1995. p.193-219, e em TELO, A. J. (Coord.) O fim da Segunda Guerra Mundial e os novos rumos da Europa. Lisboa: Cosm os, 1996. p.241-262. 3. Na BGUC o “Fu n do Pedro de Mou ra e Sá” tem u m a excelen te coleção de obras sobre a Eu ropa. Relativam en te à bibliografia sobre a Eu ropa em Portu gal n o sécu lo XX, ver LANDUYT, A. (Org., Ed.) Europa Unita e Didactica Integrata. Storiografie e Bibliografie e Confronto / A United Europa and Integrated Didactics. Historiographies and Bibliographies Compared / Europe Unie et Didactique Intégrée. Historiographies et Bibliographies Comparées. Sien a: Protagon Editori Toscan i, 1995. - Portu gal e a In tegração Eu ropéia / Portu gal an d th e Eu ropean In tegration ” (Lu ís Reis Torgal e Maria Man u ela Tavares Ribeiro), p.130-139 e seleção bibliográfica in tegrada. 4. Ver AMEAL, J. (Dir.) Dez anos de política externa. 10 v., Lisboa: Im pren sa Nacion al, Anais da Revolução Nacional, particu larm en te v.V, Barcelos, Com pª. Editora do Min h o, 1956; TEIXEIRA, L. Neutralidade colaborante. Lisboa, 1945 (Prêm io Afon so de Bragan ça, do Secretariado Nacion al de In form ação); CASTRO, A. de Subsidios para a história da política externa portuguesa durante a guerra. Lisboa: Livraria Bertran d, s.d.; GOMES, M. Política Externa. Edições Além , 1953 e NOGUEIRA, F. História de Portu gal, II su plem en to. 1933-1974. In : BARCELOS (Ed.) História de Portugal. Porto: Civilização, 1981 e Salazar, especialm en te v. III e IV. 5. OLIVEIRA, C. Salazar e a Guerra Civil de Espanha. Lisboa: O Jorn al, 1987.; LOFF, M. Salazarismo e Franquismo na época de Hittler (1936-1942). Porto: Cam po das Letras, 1996, e RODRÍGUEZ, A. P. El Estado Novo de Oliveira Salazar y La Guerra Civil Española: In form ación , Pren sa y Propagan da (1936-1939). Madri, 1997. Tese (Dou torado) – Un iversidade Com plu ten se de Madrid, (Policopiada). 6. TELO, A. J. Portugal na Segunda Guerra Mundial. Lisboa: Perspectivas e Realidades, 1987; ___. Propaganda e guerra secreta, 1939-1945. Lisboa: Perspectivas e Realidades, 1990; ___. Portugal na Segunda Guerra (1941-1945). Lisboa: Veja, 1991. 2v.; ROSAS, F. O Salazarismo e a aliança luso-britânica. Lisboa: Fragm en tos, 1998; ___. Portugal entre a Paz e a Guerra. Lisboa: Estam pa, 1990; CARRILHO, M., et al. Portugal na Segunda Guerra Mundial. Con tribu tos para u m a Reavaliação. Lisboa: Dom Qu ixote, 1989; ANDRADE, L. V. de. Neutralidade colaborante. O Caso de Portu gal n a Segu n da Gu erra Mu n dial. Lisboa: Pon ta Delgada, 1993. ROLLO, F. Portugal e o Plano Marshall. Lisboa: Estam pa, 1994. 7. Note-se, todavia, qu e esta qu estão tem sido por vezes abordada, em algu m as obras gerais sobre o Salzarism o. Por exem plo, C. OLIVEIRA apresen tou sobre ela algu m as reflexões n o seu livro Salazar e o seu tempo. Lisboa: O Jorn al, 1991. Sobretu do cap. III. 8. Pode-se en con trar u m levan tam en to do problem a n a obra de PINTO, A. C. O salazarismo e o fascismo europeu . Problem as de In terpretação n as Ciên cias Sociais. Lisboa: Estam pa, 1992. En tre ou tros, e destacam os aqu i o recen te en saio de SCHIRÓ, L. B. de. A experiência fascista em Itália e em Portugal. Lisboa: Edições Un iversitárias Lu sófon as, 1997, poderem os dizer qu e n ós próprios participam os n este debate com u m artigo, pu blicado n o Brasil e qu e em breve terá u m a edição refu n dida em Espan h a: Estado Novo em Portu gal: En saio de Reflexão sobre o seu Sign ificado. Estudos Ibero-Americanos (Porto Alegre), PUCRS, n .1, v.XXIII, p.3-32, ju n . 1997. 334 O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA 9. FERRO, A. Salazar. O h om em e a su a obra. Lisboa: Em presa Nacion al de Pu blicidade, 1933. p.74. 10. Veja-se a su a reprodu ção em Vértice, n .13, p.87, abr. 1989. 11. En con tram os essa fotografia n o arqu ivo particu lar de u m descen den te de Salazar. Ver su a reprodu ção em ALVES, C. T. A biblioteca e o arqu ivo de Salazar. Notas para u m Catálogo. Revista de História das Ideias (Coimbra), n .17, p.281, 1995. 12. FERRO, A., op . cit., p.74. 13. O Estado Novo Portu gu ês n a evolu ção política eu ropéia. (Discu rso proferido n a sessão in au gu ral do 1º. Con gresso da Un ião Nacion al, n a Sala Portu gal da Sociedade de Geografia de Lisboa, em 28 de m aio de 1934). Discursos (Coimbra), Coim bra Editora, v.I, p.334-5, 1935. 14. Sobre as relações do Salazarism o com os n acion alistas fran ceses, ver MEDINA, J. Salazar em França. Lisboa: Ática, 1977. 15. Construção do Novo Estado. Porto: Tavares Martin s, 1938. p.21 ss. 16. Ibidem ., p.29. 17. “L’État fasciste est u n m agn ifiqu e oeu vre arch itectu rale. Sa con tem plation , son étu de, provoqu en t u n plaisir esth étiqu e. C’est la seu le con stru ction politiqu e, parm i tou tes celles qu ’on a élevées ou ébau ch ées depu is la gu erre, qu i soit h arm on ieu se dan s sa n ou veau té” ( L’Europe Tragique. Paris: Spes, 1935. p.292-3). 18. Portugal. Paris: Spes, 1936. p.326. 19. O discu rso está em Op. cit., p.346. 20. Discu rso proferido n a Assem bléia Nacion al, em 26 de m aio de 1940, du ran te a sessão em qu e a Câm ara aprovou a Con cordata e o Acordo Mission ário, assin ados n o Vatican o em 7 de m aio an terior. Discursos (Coimbra), Coim bra Editora v.III, p.236. s.d. 21. “Pan orâm ica da política m u n dial”, en trevista con cedida ao jorn al Le Figaro e ali pu blicado em 2-3 de setem bro de 1958, Discursos(Coimbra), v.VI, Coim bra Editora, 1967. p.40-1. Ali afirm ou : “Se a dem ocracia con siste n o n ivelam en to pela base e n a recu sa de adm itir as desigu aldades n atu rais; se a dem ocracia con siste em acreditar qu e o Poder en con tra a su a origem n a m assa e qu e o Govern o deve ser obra da m assa e n ão do escol, en tão efetivam en te, eu con sidero a dem ocracia u m a ficção. Não creio n o su frágio u n iversal, porqu e o voto in dividu al n ão tem em con ta a diferen ciação h u m an a. Os h om en s, n a m in h a opin ião, devem ser igu ais peran te a lei, m as con sidero perigoso atribu ir a todos os m esm os direitos políticos. Se o liberalism o con siste em con stru ir toda a sociedade sobre as liberdades in dividu ais, en tão eu con sidero m en tira o liberalism o. Não creio n a liberdade, m as n as liberdades. A liberdade qu e n ão se in clin a peran te o in teresse n acion al ch am a-se an arqu ia e destru irá a n ação”. 22. “Portu gal, a gu erra e a paz”, discu rso proferido em sessão da Assem bléia Nacion al de 18 de m aio de1945, em Discursos, v.IV, p.114-5, e “Miséria e m edo, características do m u n do atu al”, discu rso proferido n u m a sala da biblioteca da Assem bléia Nacion al, em 25 de setem bro de 1947, ibidem , p.300. 23. Por exem plo, “Votar é u m gran de dever”, discu rso proferido n u m a das salas da biblioteca da Assem bléia Nacion al em 7 de ou tu bro de 1945, Discursos, v.IV, p.187-8; “Relevân cia do fator político e a solu ção portu gu esa”, discu rso proferido n a sessão in au gu ral da I Con ferên cia da Un ião Nacion al, em 9 de n ovem bro de 1946, n o Liceu D. Filipa de Len castre, ibidem , p.261; “Atm osfera Mu n dial e os Problem as Nacion ais”, discu rso proferido em 1º. de n ovem bro de 1957 ao m icrofon e da Em issora Nacion al, Discursos, v.V, p.416-7. 24. Por exem plo, en trevista ao jorn al m exican o Excelsior, pu blicado em 9 de abril de 1960, Entrevistas, Coim bra: Coim bra Editora, 1967, p.7. 25. Discu rso citado, “Portu gal, a gu erra e a paz”, Discursos, IV, p.119-20. 26. “Govern o e Política”, discu rso proferido n a posse da n ova com issão execu tiva da Un ião Nacion al, em sessão realizada n u m a sala da biblioteca da Assem bléia Nacion al, em 4 de m arço de 1947, Discursos, IV, p.269. 335 Luís Reis Torgal 27. Ibidem , p.268. 28. MONCADA, L. C. Memórias ao longo de uma vida. Lisboa: Verbo, 1992. p.194 ss. 29. Registrem os algu m as obras características deste m ovim en to de idéias; GRAVELLI, A. Difesa dell’Europa e funzione antieuropea del Fascismo. Rom a: Nu ova Eu ropa, 1932; ___. Europa com noi. Rom a: Nu ova Eu ropa, 1933; ___. Panfascismo. Rom a: Nu ova Eu ropa, 1935; ___. Verso l’Internazionale fascista. Rom a: Nu ova Eu ropa, 1932; NARDELLI, M. Fascismo, idea universale. Tren to: Editrice Tren tin o, 1936; ___. Nuova civiltà per Nuova Europa. Rom a: Un ion e Editoriale d’Itália, 1942; WINSCHUH, J. Costruzione della Nuova Europa. Firen ze: Cya, 1941. 30. Por exem plo, LODOLINI, A. La vita di Mazzini narrata ai Giovani Fascisti. Firen ze: Bem porad, 1929; ROSSI, R. Mazzini e il Facismo. Livorn o: Massim a Casa, 1931. 31. Istitu to Nazion ale di Cu ltu ra Fascista. Primo convegno nazionale dei gruppi scientifici. Rom a, 23-26 n ovem bre 1942, XXI, II tem a “Idea dell’Europa”, Rom a, s. e., 1943. 32. Esses con gressos já vin h am se realizan do an tes. Gon zagu e de Reyn old fala-n os n a su a presen ça em u m qu e se efetu ou n a Academ ia Real de Itália em Novem bro de 1932 ( L’Europe Tragique, p.393). As atas desse con gresso foram pu blicadas: Reale Accadem ia d’Italia. Fon dazion e A. Atti dei convegni. Convegno di scienze morali e storiche 14-20 novembre 1932, XI. Tem a: Europa, Rom a: Reale Accadem ia d’Italia, 1933. 33. A europa e os seus fantasmas. Porto: Tavares Martin s, 1945. 34. Testamento da Europa. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1942. 35. O problema da Europa. Lisboa: Edições Gam a, 1945. 36. A crise da Europa. Lisboa: Cosm os, 1942. 37. La Lanterne, 16.4.1952, citado em : GOMES, M., Política externa de Salazar. Lisboa: Edições, Além , 1953. p.264. 38. L’Europe tragique, op. cit., p.398. 39. Por exem plo, “A Em baixada da Colôn ia Portu gu esa n o Brasil e a n ossa política extern a”, discu rso proferido n o Gabin ete do Presiden te do Con celh o em 15 de abril de 1937, peran te os com ission ados pela Colôn ia Portu gu esa do Brasil para cu m prim en tar o Govern o, Discursos, II, p.279. 40. Construção do Novo Estado, op. cit., p.34. 41. Doutor Oliveira Salazar. O seu tem po e a su a obra. Porto: Editora Edu cação Nacion al, 1937, en tre as p.10 e 11. 42. “Preocu pação da paz e preocu pação da vida”, discu rso proferido n a Em issora Nacion al, n o en cerram en to da cam pan h a eleitoral para a n ova Assem bléia Nacion al, em 27 de ou tu bro de 1938, Discursos, II, p.105. Salazar pron u n ciava-se n o con texto da con ferên cia de Mu n iqu e (29 de setem bro de 1938), n a qu al a Alem an h a reforçou as su as posições n a Eu ropa, ocu pan do os Su detas, adian do-se, assim , o gran de con flito. Salazar elogia Ch am berlain ,” a qu em – n o seu dizer – o Ch efe do Govern o italian o deve ter dado a colaboração decisiva do seu gên io político”. 43. Essa tese, qu e Salazar expen deu , foi con cretam en te exposta e ju stificada por TEIXEIRA L. Portugal e a guerra. Neu tralidade colaboran te. Lisboa, 1945. 44. Discu rso in lugar cit., p. 107. 45. Ibidem, p.110. 46. Ibidem, p.112. 47. “Eu ropa em gu erra. Repercu ssão n os problem as n acion ais”, discu rso proferido n a Assem bléia Nacion al, em 9 de ou tu bro de 1939, du ran te a sessão em qu e a Câm ara se con gratu lou pela viagem do Ch efe do Estado à África portu gu esa, Discursos, III, p.185. 48. “Problem as político-religiosos da Nação Portu gu esa e do seu Im pério”, discu rso proferido n a Assem bléia Nacion al em 25 de m aio de 1940, Discursos, III, p.236. 336 O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA 49. “Exposição sobre a política in tern a e extern a”, n otas taqu igráficas de u m discu rso dirigido às n ovas com issões da Un ião Nacion al, n u m a sala de biblioteca da Assem bléia Nacion al, em 18 de agosto de 1945, Discursos, IV; p.142. 50. “Votar é u m gran de dever”, discu rso proferido n u m a das salas da biblioteca da Assem bleia Nacion al em 7 de ou tu bro de 1945, Discursos, IV, p.175. 51. “Relevân cia do fator político...”, discu rso já citado, Discursos, IV, p.254. 52. Ibidem , p.255 ss. 53. “A Posição Portu gu esa em face da Eu ropa, da Am érica e da África”, discu rso proferido n a sede da Assem bléia Nacion al em 23 de m aio de 1959, Discursos, VI, p.67. 54. “Miséria e m edo...”, discu rso citado (25.11.1947), Discursos, IV, p.289 ss. 55. “Pan oram a da política m u n dial”, en trevista cit. ( Le Figaro, 2-3.9.1958), Discursos, VI, p. 6. 56. Ibidem , p.3 ss. 57. Cf. “Erros e fracassos da era política”, discu rso proferido n a posse da Com issão Execu tiva da Un ião Nacion al, em 18 de fevereiro de 1965, Discursos, v.VI, p.368. 58. “Portu gal, a Alian ça In glesa e a Gu erra de Espan h a”, discu rso proferido n a sala dos “Passos Perdidos” da Assem bléia Nacion al, em 6 de ju lh o de 1937, ao agradecer aos oficiais de terra e m ar as h om en agen s qu e lh e prestaram pelo m alogro do aten tado de qu e foi alvo n o dia 4, Discursos, v.II, p.304. 59. Ibidem, p.302. 60. Em especial sobre os film es Revolução de Maio (1937) e Feitiço do Império (1940), de An tôn io Lopes Ribeiro, ver o n osso artigo Cin em a e Propagan da n o Estado Novo. “A con versão dos Descren tes”. Revista de História das Ideias ( Coimbra) , n .18, p.277-337, 1996. 61. O Século, 2.8.1940. 62. “Portu gal, a gu erra e a paz”, discu rso cit., Discursos, v.IV, passim , n om eadam en te p.106, 114, 119-120. 63. Ibidem , p.110 ss. Ver tam bém “Exposição sobre política extern a”, n otas sobre u m discu rso cit. (18.8.1945), p.142 ss., e “Votar é u m gran de dever”, discu rso cit. (7.10.1945), p.169 ss. 64. “Ideias falsas e palavras vãs (Reflexões sobre o ú ltim o ato eleitoral)”, discu rso proferido n a reu n ião das com issões dirigen tes da Un ião Nacion al, realizada em 23 de fevereiro de 1946, n u m a sala da biblioteca da Assem bléia Nacion al, Discursos, v.IV, p.213. 65. Ibidem , p.211-12. 66. “In depen dên cia da política n acion al – su as con dições”, discu rso proferido n a sessão in au gu ral do III Con gresso da Un ião Nacion al, em Coim bra, a 22 de n ovem bro de 1951, Discursos, v.V, p.51 ss. 67. “Qu estões de política in tern a”, discu rso proferido n u m a das salas da biblioteca da Assem bléia Nacion al, dirigido aos Govern adores Civis, às com issões distritais da Un ião Nacion al e aos can didatos a depu tados, em 20 de ou tu bro de 1949, Discursos, v.IV, p.449 ss. 68. “Goa e u n ião in dian a (Aspectos econ ôm ico, político e m oral)”, discu rso proferido em 12 de abril de 1954, ao m icrofon e da Em issora Nacion al, Discursos, v.V, p.189. 69. “A atm osfera m u n dial e os problem as n acion ais”, discu rso proferido em 1º. de n ovem bro de 1957, ao m icrofon e da Em issora Nacion al, Discursos, v.V, p.427. 70. En trevista cit., Discursos, v.VI, p.11. 71. Ibidem , p.27. 72. “O u ltram ar portu gu ês e a ONU”, discu rso proferido n a sessão extraordin ária da Assem bléia Nacion al, em 30 de ju n h o de 1961, Discursos, v.VI, p.128 ss. Ver sobre os con flitos en tre Salazar e Ken n edy, ANTUNES, J. F. Kennedy e Salazar. O leão e a raposa. Lisboa: Difu são Cu ltu ral, 1991. 337 Luís Reis Torgal 73. Ver sobre este tem a BOURDET, C. A farsa da Europa. Paris: Segh ers, 1977. 74. “Portu gal n o pacto do Atlân tico”, discu rso proferido n a sala de sessões da Assem bléia Nacion al, em 25 de ju lh o de 1949, Discursos, v.IV, p.419-20. 75. Ibidem , p.412. 76. Ibidem , p.420. 77. “In depen dên cia da política n acion al”, discu rso proferido n u m a das salas de São Ben to, em 21 de fevereiro de 1936, Discursos, v.II, p.117. 78. “A atm osfera m u n dial e os problem as n acion ais”, discu rso proferido em 1º. de n ovem bro de 1957 aos m icrofon es da Em issora Nacion al, Discursos, v.V, p.439. 79. Ver o n osso artigo, qu e retom a algu m as con siderações aqu i expostas, “Salazarism o, Eu ropa e Am érica”. Revista Portuguesa de História (Coimbra), tom o XXXI, p.615-34. Facu ldade de Letras. 80. Cf. Por exem plo, “Preparação n acion al para o pós-gu erra”, discu rso proferiso n a sessão de abertu ra do II Con gresso da Un ião Nacion al, em 25 de m aio de 1944, n o Liceu D. Filipa de Len castre, Discursos, v.IV, p.61, “Apon tam en tos sobre a situ ação in tern acion al”, discu rso proferido n a Sociedade de Geografia, em 30 de m aio de 1956, n a sessão de abertu ra do Con gresso da Un ião Nacion al, ibidem , v.V, p.371 ss., “A posição portu gu esa em face da Eu ropa, da Am érica e da África”, discu rso proferido n a sede da Un ião Nacion al em 23 de m aio de 1959, idem, p.64 ss. 81. “Portu gal com o elem en to de estabilidade n a Civilização Ociden tal”, palavras de Salazar pu blicadas n o Journal de Genève n o n ú m ero de 13 de ou tu bro de 1953, dedicado a Portu gal, Discursos, v.V, p.157 e passim . 82. No volu m e Défense de l’Occident, qu e o au tor ofereceu à Biblioteca Geral da Un iversidade de Coim bra, pode ler-se este passo, qu e foi depois tran scrito n o opú scu lo (coletân ea extraída da obra Les idées restent) Occidente ou Oriente? No lim iar da Hora Trágica. Coim bra: Casa do Castelo, 1949: “La civilisation ne vivra que dans la mesure ou nous voudrons, ou nous en ferons une idée-maîtresse, idée-chef – c’est ce le Portugal a compris et qui en fait le bastion avancé de la défense de l’Occident”. 83. D’ASSAC, J. P. Dictionnaire politique de Salazar. Lisboa: S. N. I., 1964. p.135 ss. 84. Cf. GOMES, M. Política externa de Salazar. Lisboa: Edições Além , 1953. cap.XI, p.261 ss. 85. Ibidem , p.271. 86. Op. cit., p.XIV. 87. Ideia de Europa. Cu rso Professado n os An os Lectivos de 1965-1966 e 1966-1967. Lisboa: In stitu to Su perior de Ciên cias Sociais e Política Ultram arin a, 1967. Ver sobretu do p.165 ss. 88. O Ocidente e Portugal Separata do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, ju lh o-setem bro, 1969, p.195. 89. Note-se todavia, qu e, n o con texto da n ova situ ação eu ropéia, o didata da História, A. S. RODRIGUES, colaborou n u m a obra con ju n ta: História da Europa. Escrito por doze h istoriadores eu ropeu s. Coim bra: Min erva, 1992, tradu ção da obra pu blicada em Paris: Hach ette, 1992. 90. Ver História da Europa. Porto: Tavares Martin s, 1961, 1964, 1969. 3v. (2.ed, Lisboa: Verbo, 1982-1984, 5v.). Cf. Prefácio da 1.ed., p.XVII. 91. O movimento político europeu e as instituições supranacionais, Lisboa, Separata do Boletim do Ministério da Justiça, 1963, em particu lar p.152-53. 338 O ESTADO NOVO. FASCISMO, SALAZARISMO E EUROPA 92. Ver, por exem plo, a coletân ea do pen sam en to de CAETANO, M. Eu ropa. In : ZORRO, A. M. (Com p.) Princípios e definições. Lisboa: Pan oram a, 1969. (Textos de 1936 a 1967). Ali, sobretu do n o títu lo “Eu ropa” (p.67-69), verifica-se qu e Marcello, apesar de m an ter as su as descon fian ças em relação aos Estados Un idos da Eu ropa e de con ceber a Eu ropa essen cialm en te com o u m a “cu ltu ra”, fala com certa ên fase da “cooperação eu ropéia” e parece perceber a dificu ldade de países pequ en os com o Portu gal em su bsistirem isolados. Procu ravase a “abertu ra”, em gran de parte desm en tida pelas realidades. No en tan to, recorde-se o papel de algu n s m em bros m ais liberais do govern o m arcelista, com o, por exem plo, Rogério Martin s, qu e tiveram , n o dom ín io teórico e prático (vide, de su a au toria, Caminho de país novo. Lisboa, 1970), u m papel im portan te n essa “abertu ra”. Esta qu estão, m eram en te esboçada, precisa de ser profu n dam en te an alisada em várias perspectivas, o qu e está fora das n ossas in ten ções de m om en to. 93. Ver Espaço Europeu , Discu rso proferido pelo Min istro do Ultram ar [...], em 5 de n ovem bro de 1962, n a sessão solen e in au gu ral do Cen tro Portu gu ês de Estu dos Eu ropeu s, Lisboa, Agên cia-Geral do Ultram ar, 1962, e A Europa em formação, Lisboa, Separata do Boletim da Sociedade de Geografia, 1974. No discu rso referido, Moreira m ostra a su a desilu são peran te a ONU e defen de, n u m a altu ra em qu e se in au gu rava em Lisboa o Cen tro Portu gu ês de Estu dos Eu ropeu s, o reforço da Eu ropa, qu e precisa de en con trar o seu “espírito” e de salvar a “ou tra m etade”. No segu n do estu do, m ais pen sado e pen sado n ou tra época, fala do equ ívoco da NATO, qu e n ão foi u m a in stitu ição de diálogo en tre a Eu ropa e URSS, m as sim dos EUA, o ú n ico in terlocu tor, e a URSS E fala da velh a idéia de a Pen ín su la con stitu ir u m espaço Atlân tico-Su l. 94. Cf. A idéia de Europa. Raízes históricas. evolução. Concretização atual. Portugal e a Europa, Gu im arães, Separata da Revista de Guimarães, 1982. Silva Cu n h a apresen ta-se n este opú scu lo com o Professor da Un iversidade Livre do Porto. 95. Expresso Revista, v.6, n .6, p.12, 1992. 339 capítu lo 18 APÓS O 25 DE ABRIL José Medeiros Ferreira* Eduardo Lourenço, no Labirinto da saudade, dedica algumas das melhores páginas da sua reflexão à atitude dos portugueses perante a descolonização. Nesse ensaio de psicanálise mítica do destino português, Eduardo Lourenço salienta “Pelo império devimos outros, mas de tão singular maneira que na hora em que fomos amputados à força (mas nós vivemos a amputação como “voluntária”) dessa componente imperial da nossa imagem, tudo pareceu passar-se como se jamais tivéssemos tido essa fagimerada existência “imperial” e em nada nos afetasse o regresso aos estreitos e morenos muros de pequena casa lusitana”. Eduardo Lourenço escrevia assim entre o verão de 1997 e a primavera de 1978, entre S. Pedro em Portugal e Vence na França. Hoje a “imagem” imperial não estará tão ausente do imaginário de alguns como parecia naquele momento. Mas então como detectou o mesmo filósofo: “Num dos momentos de maior transcendência da história nacional, os Portugueses estiveram ausentes de si mesmos...”.1 Essa “ausência” durou pelo menos um ano e meio, exatamente o tempo necessário para se operar a alienação da soberania portuguesa nos territórios sob administração colonial com a conhecida singularidade aplicada a Macau, e a exceção constituída pelo caso de Timor. A questão africana estava no centro dos problemas nacionais a serem resolvidas e estivera certamente na origem da sublevação das Forças Armadas. Como afirmou transparentemente o então general Costa Gomes: O que tornou inevitável a revolta do 25 de Abril foi a necessidade de resolver o problema da guerra em África. As reivindicações dos oficiais do Quadro Permanente foram quase na totalidade satisfeitas... o problema colonial era, não só o mais importante, como aquele que os oficiais conheciam melhor, tendo certamente chegado à conclusão de que só poderia ser solucionado depois de derrubar o regime então existente.2 A grande clivagem entre os oficiais do MFA e o General Spínola situou-se exatamente no rumo a dar à descolonização e esteve presente na 341 José Medeiros Ferreira elaboração e na apresentação do programa do movimento das Forças Armadas, tendo o general Spínola conseguido suprimir da versão original a referência ao direito das colônias à autodeterminação. A visita a Lisboa do secretário-geral da ONU, Kurt Waldheim, de 2 a 4 de agosto de 1974, foi um marco importante nas pressões internacionais para que a descolonização portuguesa se fizesse o mais rapidamente possível, sem que isso viesse a significar um maior empenho das Nações Unidas nas conversações entre as partes. Nos contactos que o secretário-geral da ONU manteve com os responsáveis portugueses foi explicada a posição das Nações Unidas quanto à questão dos territórios sob administração colonial, assim como a atitude da Organização de Unidade Africana (OUA) sobre o reconhecimento dos movimentos de independência como os representantes desses territórios.3 As conversações entre Kurt Waldheim e as autoridades portuguesas deram mesmo lugar a um comunicado conjunto Portugal-ONU em que se explicita o entendimento da ONU e da OUA sobre essa matéria assim como o comprometimento de Portugal a respeitar as pertinentes soluções da ONU e a reconhecer o direito à autodeterminação e à independência de todos os territórios ultramarinos sob a sua administração, posição já consagrada constitucionalmente com a publicação de Lei 7/74 de 26 de julho. Aliás só a publicação dessa lei terá permitido a visita do SecretárioGeral da ONU naquela altura. As relações entre Portugal e a ONU durante o processo de descolonização não foram depois tão intensas conforme deixara antever esse encontro. Notar-se-á até uma débil presença da ONU no processo de descolonização em causa. A nomeação do professor Veiga Simão para chefe da Missão Portuguesa junto da ONU inscrevia-se no entanto no propósito de “criar responsabilidades aos Movimentos de Libertação não só perante as autoridades portu gu esas com o, tam bém , peran te en tidades in tern acion ais idôneas que, co-responsabilizando-se no processo serviriam de forças moderadoras aos setores extremistas”.4 Tal política teria sido “frontalmente contrariada pela Comissão Coordenadora do MFA e pelo general Costa Gomes, que consideravam aquela estratégia como abertura à interferência da ONU no processo de descolonização e, conseqüentemente, desprestigiante para o país. A única via, diziam, era a das negociações diretas com os Movimentos de Libertação”.5 O MFA irá ter, de qualquer maneira, um papel decisivo na definição dos interiocutores para as negociações de trégua, cessar-fogo, paz e transferência de soberania. Neste particular as condições militares nos teatros de guerra tiveram uma enorme influência e foram os responsáveis pelo MFA na Guiné, em Moçambique e em Angola que pressionaram Lisboa a legiti- 342 APÓS O 25 DE ABRIL mar as conversações locais por meio de negociações com os movimentos independentistas que tinham de fato expressão militar. Insista-se neste ponto. Os militares portugueses privilegiaram como interlocutores necessários para o cessar-fogos os movimentos que tinham expressão armada nos territórios em guerra. Como esses movimentos não desligaram a questão do cessar-fogo da questão do acesso à independência, as transferências de soberania fizeram-se por meio daqueles movimentos. Não por eles aparecerem envolvidos em ideologias “esquerdistas” mas por terem adotado a via do combate militar para impôr a autodeterminação. A questão do cessar-fogo só dizia respeito aos territórios da Guiné, de Moçambique e de Angola. O que acontecerá nas outras colônias, nomeadamente em Timor já é de outra natureza e não entra neste ciclo inicial do cessar-fogo. As preferências posteriores em Angola e Timor no verão de 1975 não são da mesma natureza interpretativa do ciclo do cessar-fogo do último semestre do ano de 1974. O princípio de que a paz se negociava entre quem estava em guerra apareceu com toda a naturalidade aos oficiais que estavam na Guiné, em Moçambique e em Angola. Nas zonas de combate os militares tomaram a iniciativa de estabelecer conversações para se alcançar tréguas imediatas. Além disso pressionaram a fim de que as autoridades portuguesas evoluissem para posições mais conformes com as realidades militares e mais consensuais em termos internacionais. O membro da Comissão Coordenadora da MFA, e Ministro dos Governos Provisórios, Melo Antunes, será a expressão política dessa confluência de critérios. Só mais tarde se poderá detectar a preferência política por certos movimentos de independência sobretudo nos casos de Angola e Timor. Mas quer na Guiné quer em Moçambique foi a situação militar que ditou o comportamento dos oficiais do MFA, dos militares em geral, e também dos negociadores governamentais. GUINÉ-BISSAU A descolonização da Guiné apresentava-se como a de mais difícil negociação política, já porque o PAIGC declarara unilateralmente a independência da Guiné-Bissau em 24 de setembro de 1973 em Madina de Boé e o fato fora reconhecido por 82 países membros da ONU, já porque o PAIGC pretendia ver também reconhecido o direito à independência para o arquipélago de Cabo Verde. Essas condições são apresentadas logo na primeira reunião entre as delegações do governo português e do PAIGC em Londres, a 25 de maio de 1974. A particularidade de o general Spínola ter sido Governador-Geral da Guiné não teria ajudado a rapidez das tomadas de decisão sobre essas matérias. 343 José Medeiros Ferreira A apreciacão de Mário Soares sobre o envolvimento de Spínola no processo de descolonização da Guiné não foi muito positiva na altura: Indiscutivelmente, a sua atuação não beneficiou em nada o processo. Pelo contrário: a sua intransigência, a sua incapacidade de avaliar corretamente a situação, impedem-nos de assinar em Londres um acordo com o PAIGC em melhores condições do que aquele que nós tivemos finalmente de assinar três meses mais tarde, em Argel.6 As reuniões de 25 de maio e de 13 de junho entre o PAIGC e a delegação portuguesa, presidida por Mário Soares na sua qualidade de MNE, são inconclusivas. Só depois da tomada de decisão do MFA na Guiné, numa assembléia realizada em 1º de julho, se consegue cortar o nó górdio da questão, ou seja, passar da fase da discussão sobre a natureza da descolonização (se com consulta eleitoral, se com um maior ou menor período transitório) à fase da transferência do poder. Nessa moção, aprovada pelo MFA da Guiné, numa reunião com delegações de base de todas as unidades militares, no qual participaram cerca de oitocentos militares, considera-se que a ideologia do PAIGC tem uma grande adesão popular e domina o panorama político da Guiné; que os grupos políticos surgidos naquele território após o 25 de Abril careciam de legitimidade e de representatividade “apenas tendo servido para envenenar o ambiente político da Guiné”; que o reconhecimento internacional do PAIGC é um fato “tão forte que o número de países que reconhecem a república da Guiné-Bissau é já superior ao daqueles que mantêm relações diplomáticas com Portugal”; que a Resolução nº. 03061 da Assembléia Geral da ONU de 9 de setembro de 1973 torna ilegal a presença de tropas portuguesas; que o PAIGC é o único agrupamento político cuja ideologia e programa “asseguram a conivência e a igualdade de direitos de todas as etnias da Guiné e o respeito pelos legítimos interesses dos europeus radicados”, e assim por diante. Como corolário de todos esses considerandos que revelam uma grande atenção quer a situação militar quer a situação internacional, essa reunião deliberou: 1. Repudiar qualquer solução local e unilateral que não fosse aceita pelo governo central de Portugal; 2. Exigir que o governo português reconhecesse imediatamente “e sem equívocos” a República da Guiné-Bissau e o direito à autodeterminação e independência dos povos de Cabo Verde; 3. Exigir que fossem imediatamente reatadas as negociações com o PAIGC, “não para negociar o direito à independência, mas tão só os mecanismos conducentes à transferência dos poderes”.7 Em síntese, nessa reunião de cerca de oitocentos militares, em 1º de julho de 1974, reconhece-se a legitimidade exclusiva do PAIGC como re- 344 APÓS O 25 DE ABRIL presentante do povo da Guiné e exige-se o recomeço das negociações entre as autoridades de Lisboa e aquele movimento de independência, conversações que haviam sido interrompidas por decisão do Presidente da república Antônio Spínola. Semanas mais tarde, nas matas do Cantanhez, uma delegação de militares portugueses, chefiada pelo governador da Guiné Carlos Fabião, e uma delegação do PAIGC, chefiada por José Araújo, concordam num cessar-fogo em todo o território da Guiné. O acordo de Argel, assinado em 26 de agosto de 1974 e ratificado pelo presidente Spínola em 29 do mesmo mês, reconhecia dois dados de fato: a República da Guiné-Bissau e o cessar-fogo, já estabelecido no interior da Guiné. CABO VERDE O acordo assinado em 26 de agosto de 1974 entre o Governo Português e o PAIGC continha, além dos preceitos destinados à transferência de soberania da Guiné, o reconhecimento do direito do povo do arquipélago de Cabo Verde à autodeterminação e à independência. As negociações para esse efeito seriam, no entanto, separadas das conversações sobre a Guiné depois daquele acordo. Dos nove artigos do Acordo entre o Governo Português e o PAIGC, dois são dedicados a Cabo Verde. É essa sem dúvida uma das decisões mais discutíveis do processo de descolonização dado que a unidade pretendida pelo PAIGC entre a Guiné e Cabo Verde acabou por não se verificar. Mas não é menos verdade que a Assembléia Geral da ONU havia reconhecido na sua Resolução A/2918 (XXVII) de 14 de novembro de 1972 o dito PAIGC como “representante único e autêntico do povo da Guiné e Cabo Verde”. Enquanto a descolonização da Guiné era obviamente inevitável em 1974, já a independência concedida ao arquipélago de Cabo Verde foi um ato voluntário do poder em Portugal e tem, pois, uma interpretação mais vasta radicando nas causas da descolonização, que não se resumem às necessidades dos militares e à pressão das Forças Armadas para o efeito. O processo de transferência de soberania de Portugal para a República de Cabo Verde teve as suas especificidades. Assim não há qualquer acordo publicado, como os de Alger, Lusaca ou Alvor realizados para a GuinéBissau, Moçambique ou Angola respectivamente, embora tivesse havido um documento formalizado em 19 de dezembro de 1974 no qual se previa a eleição de uma assembléia constituinte em Cabo Verde que decidiria sobre o futuro político do território. No plano jurídico existiu, sim, o Estatuto Orgânico de Cabo Verde para o período de transição que terminaria em 5 de julho de 1975 (Lei nº. 13/74 de 17 de dezembro). 345 José Medeiros Ferreira Nesse Estatuto são definidos os órgãos políticos de transição: um alto comissário, nomeado pelo presidente da República, a quem competia representar a soberania portuguesa e era o comandante-chefe das Forças Armadas no arquipélago; um Governo de Transição, composto pelo Alto Comissário enquanto Primeiro Ministro e mais cinco ministros, três nomeados pelo PAIGC e dois pelo presidente da República Portuguesa. Esse governo teria em acumulação os poderes legislativo e executivo mas o seu fim principal era o de conduzir o território à independência por meio de eleição, por sufrágio direto e universal, prevista para 30 de junho de 1975, de uma Assembléia Constituinte, prevista para a mesma data, dotada de plenos poderes soberanos para decidir sobre o futuro de Cabo Verde e sobre o seu regime político. Logo a 5 de julho, essa Assembléia declara a independência da República de Cabo Verde. Não se caracteriza a nova república como Popular como o farão a Guiné, Moçambique e Angola. Não deixa de ser significativo saber-se que as operações de preparação dessas eleições culminaram com um recenseamento robusto tendo-se registrado cerca de 120 mil cidadãos cabo-verdeanos. Apresentou-se apenas uma lista com os nomes de 56 candidatos a deputados sob a forte influência política e militar do PAIGC. Logo depois das independências da Guiné e de Cabo Verde foi evidente que ambos os territórios queriam aparecer como Estados na sociedade internacional. Tanto assim que, quer Bissau, quer a Praia, têm a sua própria representação diplomática no exterior, a começar por Lisboa. A unidade política dos dois territórios não estava na ordem do dia. Mas ambos haviam prestado serviços recíprocos para o acesso à independência um do outro: os militantes cabo-verdianos do PAIGC lutando política e militarmente na Guiné e ajudando a criar uma situação militar nesse território que levaria as autoridades colonialistas a encararem aí a própria derrota. Pelo seu lado, o PAIGC só aceita o cessar-fogo na Guiné se o princípio da independência também for estendido ao arquipélago de Cabo-Verde. Prestados esses serviços mútuos, cada qual seguiria o seu caminho depois da independência. A facilidade com que o Governo Português, nesse verão de 1974, irá aceitar o acesso à independência dos arquipélagos de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, onde não havia luta armada, dá a idéia que as autoridades de Lisboa pretendem resolver de uma vez por todas a questão dos territórios ultramarinos, vistos doravante como possíveis sorvedouros das finanças metropolitanas por meio dos chamados Planos de Fomento, e como passíveis de virem a constituir, no futuro, focos de tensões políticas ao retardador. Assim, ao mito do Portugal Uno e Indivisível do Minho a Timor, opõe-se a metodologia da descolonização uniforme. É a forma que a metrópole européia encontra de se libertar de uma vez por todas da lógica ultramarina. É o centro que dispensa a periferia. 346 APÓS O 25 DE ABRIL A descolonização assim concebida não se destina apenas a ceder nos territórios onde a situação militar é má. Ela estende a sua compreensão a todas as parcelas que possam pesar no futuro sobre a lógica da liberdade de ação de Lisboa. Daí a aceleração dos processos em Cabo Verde, S. Tomé e Timor. S . TOMÉ E PRÍNCIPE Se a luta armada na Guiné-Bissau teve conseqüências sobre o acesso à independência do arquipélago de Cabo Verde, onde o PAIGC não tivera expressão militar, a independência de Cabo Verde, por sua vez, vai constituir um paradigma para a transferência de soberania noutro arquipélago: o de S. Tomé e Príncipe. Em S. Tomé e Príncipe a repressão colonial havia sido brutal no passado mesmo sem luta armada por parte dos emancipalistas. Quando em 1960 é fundado o Comitê de Libertação de S. Tomé e Príncipe (CLSTP), ainda está bem viva na memória de todos o massacre de Batepá ocorrido em fevereiro de 1953 em que teriam sido mortos mais de mil são tomenses por se recusarem a trabalhar nas roças de cacau. O ambiente local não é pois muito propício à defesa da manutenção da soberania portuguesa por parte da população de S. Tomé e Príncipe. Pelo seu lado a ONU havia reconhecido desde 1962 o CLSTP como único e legítimo representante do povo do arquipélago. Quando surge o 25 de Abril os seus principais dirigentes estavam exilados na República do Gabão onde, em 1972, haviam alargado o conceito de Comitê de Libertação para o de Movimento de Libertação. No caso da descolonização de S. Tomé também tem particular relevância o papel da visita a Portugal do secretário-geral da ONU, Kurt Waldheim, em agosto de 1974 e das repetidas reuniões de militares em serviço no território. Assim numa reunião realizada em S. Tomé, a 12 de outubro de 1974, os oficiais dos três ramos das Forças Armadas declararam o MLSTP como único interlocutor para as negociações que se avizinham. Essas negociações principiam no mês seguinte em Argel, tendo sido assinado um Protocolo de Acordo entre o Governo português e o MLSTP em 26 de novembro. Nesse acordo, o Governo português reconhecia o MLSTP como representante legítimo do povo daquele arquipélago. À semelhança dos casos anteriores, os órgãos políticos para o período de transição eram um alto-comissário e um Governo de Transição com competências legislativa e executiva. Embora oficialmente se trate de um Protocolo de Acordo,8 este diploma está mais aperfeiçoado nos seus termos e no articulado jurídico geral do que os anteriores acordos similares: são dezessete os seus artigos em que, 347 José Medeiros Ferreira para além dos órgãos políticos de transição, está prevista a constituição de um Banco Central em S. Tomé com o ativo e o passivo do Departamento de S. Tomé e Príncipe do Banco Nacional Ultramarino. A eleição da assembléia representativa do povo de S. Tomé e Príncipe é conformada “com os princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem”. Nota-se nesse protocolo um apuramento das cláusulas da descolonização como resultado dos anteriores acordos celebrados por Portugal na matéria, nomeadamente o Acordo de Lusaca entre Portugal e a Frelimo. A principal tarefa dos órgãos de transição era a de prepararem as condições para a eleição de uma Assembléia Constituinte. Mas nem em S. Tomé o processo de transição foi isento de peripécias. No interior do próprio governo não se entenderam os membros da Associação Cívica com os membros do MLSTP, e também entre o governo e o alto-comissário português (Pires Veloso) haverá uma prova de força, em março de 1975, sobre a dissolução do contigente militar indígena que o MLSTP pretendia ver constituído em milícia popular antes das eleições, tendo o alto-comissário conseguido impôr o acordado na Argélia sobre essa matéria. Com um corpo eleitoral de cerca de 21 mil membros, procedeu-se à eleição da Assembléia Constituinte que, em 12 de julho de 1975, proclamava a independência da República de S. Tomé e Príncipe. S. Tomé e Príncipe é um dos primeiros territórios independentes a encetar uma política de aproximação a Portugal pro meio assinatura de vários acordos de cooperação em domínios muito diversos. M OÇAMBIQUE As pressões para Portugal clarificar a sua posição quanto à descolonização eram também muito fortes no plano internacional. As dúvidas sobre o comportamento do Estado português na matéria eram tantas que até os governos da Zâmbia e da Tanzânia procuram no verão de 1974 o separatista branco Jorge Jardim para avaliarem as possibilidades de independência mais claras para Moçambique de imediato. Entre junho e julho de 1974, ou seja nos dois meses de maior indefinição sobre o rumo a dar à questão ultramarina, várias entidades procuram Jorge Jardim, encarando este como alguém que, à sua maneira, pretendia a transferência da soberania de Portugal para Moçambique. Lisboa está pois, na mira de todos. Há aqui um conjunto de circunstâncias que concorrem para que os poderes africanos se auscultem mutuamente perante o que julgam ainda ser a tentativa de protelamento da descolonização por parte do novo poder político instaurado em Portugal. 348 APÓS O 25 DE ABRIL Ora, esse novo poder político em Portugal atravessava então, e precisamente por causa da natureza da descolonização, uma verdadeira crise que só terminaria com a queda do 1º Governo Provisório prisidido pelo professor Palma Carlos e a formação de um 2º Governo Provisório chefiado por um militar, o coronel Vasco Gonçalves. Mais exatamente era o aparecimento do MFA como agente político determinante. Como já havia concluído Jorge Jardim “o centro de decisão mais válido residia no MFA e fiquei de lhes fazer chegar as nossas recomendações”. 9 O centro principal de decisão era o MFA não só em Portugal como ainda em Moçambique e nos outros territórios ultramarinos. Em Moçambique o papel dos militares não pára de crescer nesse período. Deste modo o MFA de Moçambique envia, a 22 de julho de 1974, uma mensagem para a Comissão Coordenadora do Movimento em Lisboa recomendando o reconhecimento imediato da Frelimo como legítimo representante do povo moçambicano e do direito desse povo à independência. Essa reunião realizou-se em Nampula tendo as comissões regionais do MFA de Cabo Delgado e de Tete anunciado aí que davam um prazo até o fim do mês de julho para se encontrar um acordo global de cessar-fogo com a Frelimo; caso contrário as tropas estacionadas nos referidos distritos imporiam um cessarfogo unilateral. Mais, o pessoal dos helicópteros negava-se a fazer os reabastecimentos das tropas terrestres depois daquele prazo.10 Em Moçambique, como aliás na Guiné, a seleção do interlocutor para as negociações sobre a transferência de soberania foi claramente ditada pela existência de um movimento que lutara militarmente contra a presença do colonialismo português. A Frelimo foi esse movimento para Moçambique. Esse entendimento entre as Forças Armadas portuguesas e a Frelimo deitará por terra a procura de outras vias como as procuradas por Jorge Jardim e por Joana Simião. O percurso desde o 25 de Abril até ao Acordo de Lusaca de 7 de setembro foi muito acidentado no interior de Moçambique, com o aparecimento de vários movimentos que tentavam tirar à Frelimo pelo menos o exclusivismo de representatividade política no território. Apareceu assim o Grupo Unido de Moçambique (GUMO) que viria a dissolver-se em fins de junho de 74 em razão de sua conhecida proximidade ao governo colonial anterior. Mas também surgem outros agrupamentos que proclamam propósitos semelhantes como o Movimento Federalista de Moçambique ou a Frente Independente de Convergência Ocidental (FICO). Ou os que querem concorrer no terreno próprio à Frelimo como o Movimento de Libertação de Moçambique (MOLIMO). Com efeito, logo nos princípios de junho, começam em Lusaca encontros exploratórios nos quais participam o ministro português dos Negócios Estrangeiros Mário Soares e Samora Machel, presidente da Frelimo, embora sem resultados conclusivos. Reabrem as hostilidades na Zambézia e seguem-se as peripécias relatadas por Antônio Spínola no seu livro País sem rumo. 349 José Medeiros Ferreira Finalmente o MFA, dentro do princípio de que a paz se faz entre quem está em guerra, decide pelo lado português que as negociações devem fazer-se e dar resultados rápidos. O Acordo entre Estado Português e a Frelimo, celebrado em Lusaca em 7 de setembro de 1974, é muito claro nos seus objetivos. Trata-se de um “acordo conducente à independência de Moçambique”, embora o seu ponto nº 1 proponha a “transferência progressiva dos poderes” que o Estado detinha. Já o ponto nº 2 decide que “A independência completa de Moçambique será solenemente proclamada em 25 de junho de 1975, dia do aniversário da Fundação Frelimo”.11 O Acordo de Lusaca estabelece os órgãos de governo transitório e oficializa o cessar-fogo já assegurado na prática entre as partes militares. Os órgãos do governo transitório foram constituídos por um AltoComissário, de nomeação do presidente da República Portuguesa, por um Governo de Transição nomeado por acordo entre a Frente de Libertação de Moçambique e o Estado Português, e por uma Comissão Militar Mista nomeada também por acordo entre o Estado Português e a Frente de Libertação de Moçambique (art. 3º.). Do ponto de vista financeiro têm particular importância os artigos 14 e 16 que tratavam da responsabilização por parte da Frelimo dos compromissos “assumidos pelo Estado Português em nome de Moçambique desde que tenham sido assumidos no efetivo interesse deste território”, e de constituição em Moçambique de um Banco Central que teriam funções de banco emissor sendo para o efeito necessário transferir para aquele Banco, “as atribuições, o ativo e o passivo do Departamento de Moçambique do Banco Nacional Ultramarino”, respectivamente. Enquanto em 7 de setembro de 1974 se celebra em Lusaca o Acordo entre o Estado Português e a Frente de Libertação de Moçambique para a transferência de soberania, em Lourenço Marques assiste-se à insurreição de forças contrárias ao processo de descolonização, prontamente dominadas pelos oficiais do MFA. Este episódio irá marcar as relações futuras entre militares e entre o MFA e a Frelimo. Daí por diante fica entendido que o processo de descolonização em Moçambique irá levar a um grande êxodo de portugueses radicados naquele território apesar do artigo 15º. do Acordo de Lusaca. O general Spínola, insuspeito de qualquer simpatia pelo Acordo de Lusaca não deixou de reconhecer que “apesar de tudo, muito dependeria da forma como o Acordo fosse posto em execução, não só no campo imediato correspondente ao período do Governo de Transição, como depois da independência.” Ora, o Acordo de Lusaca aparece assinado pelo lado da Frelimo apenas por Samora Machel, enquanto pelo lado português figuram oito nomes 350 APÓS O 25 DE ABRIL representativos do Governo Provisório, do MFA e do Concelho de Estado, pondo-se assim a Frelimo a coberto de qualquer mudança de responsáveis em Lisboa que invalidasse o Acordo. Mas até à independência, em 25 de setembro de 1975, Samora Machel manteve-se fora do território de Moçambique “permanecendo afastado dos compromissos estabelecidos durante o período de transição”.12 Permanecer afastado dos compromissos estabelecidos durante o período de transição não era de molde a criar um clima de confiança entre os portugueses estabelecidos e residentes em Moçambique: um fator a mais no desencadeamento do amplo fenômeno dos “retornados” que marcará a descolonização de Moçambique e de Angola assim como a caracterização social de Portugal após a independência das colônias. O que se analisará mais adiante. Além do fenômeno do regeresso a Portugal de milhares de residentes em Moçambique (o Censo Geral da População de 1981 cifrou-os em 164.065), a descolonização desse território traria grandes conseqüências financeiras derivadas dos compromissos anteriores do Estado Português referentes à constituição da barragem de Cabora-Bassa. Com efeito, os credores do Consórcio, criado por decreto-lei nº 49225 de 4 de setembro de 1969, exigiram que a dívida da hidroelétrica de Cabora-Bassa fosse assumida sob a forma de dívida direta pelo Estado português, o que teve como conseqüência o aumento muito significativo da dívida direta do Estado. A NGOLA O processo de descolonização de Angola foi o mais complexo e aquele que mais conseqüências internas e internacionais teve. Foi o mais complexo, porque do ponto de vista militar a situação não era alarmante embora se mantivessem cerca de 65 mil homens em armas do lado português. Por outro lado, o entendimento entre os movimentos de independência não se apresentava pelas realidades étnicas e pelas rivalidades políticas em que se baseavam: FNLA, UNITA e MPLA eram movimentos armados rivais. No território angolano o elemento branco era significativo e tinha expectativas de poder desempenhar um papel político relevante. Finalmente, a divisão entre os movimentos de libertação veio dar azo a uma internacionalização dos conflitos internos que muito perturbou o acesso à independência de Angola e o período subseqüente, aumentando a rivalidade entre a URSS e os Estados Unidos na África negra. O processo de descolonização de Angola foi também aquele que maiores preocupações provocou em Portugal. Angola estivera sempre no centro 351 José Medeiros Ferreira das políticas ultramarinas de Lisboa, e era, em última instância o que motivara a construção da doutrina do Espaço Econômico Português em 1961. Ora, mais do que a situação militar no território angolano em 1974, o que funcionava mesmo mal, em relação à de articulação entre Portugal e Angola, era o desequilíbrio comercial agravado pelo desequilíbrio da balança de pagamentos portuguesa. O problema dos “atrasados” apenas veio dar uma expressão financeira a essa negativa relação. Logo em outubro de 1963 Angola foi obrigada a recorrer ao crédito automático do Fundo Monetário da Zona Escudo, e em novembro desse mesmo ano esgotara já os limites máximos do crédito a que tinha direito, tendo a partir de então começado a acumulação de “atrasados”, ou seja, de pagamentos devidos à metrópole e não liquidados. A partir de 1964, os atrasados cresceram irreversivelmente. A credibilidade do sistema foi seriamente posta em causa quando o volume de atrasados se tornou insustentável, na ordem dos 9 milhões de contos, em 1971.13 Essa crescente dificuldade nos pagamentos de Angola à metrópole levou os industriais portugueses a investirem diretamente na produção em Angola, contribuindo assim para uma drenagem de capitais de Portugal para Angola, ao arrepio da industrialização da metrópole. Acresce que, como esse desequilíbrio na balança de pagamentos se devera à falta de proteção aduaneira no território angolano, as autoridades “provinciais” vão conseguir introduzir em fins de 1971 certas medidas restritivas às importações de bens e serviços metropolitanos (decreto 478/71 de 8 de novembro). O decreto considerava que toda a solução realista do problema seria em bases restritivas. A grande novidade destas medidas residia na “generalização do registro prévio para as importações de mercadorias que passa a ser extensivo às compras na Metrópole”.14 Estas medidas restritivas são agravadas por um despacho do Governo Geral de Angola de 17 de janeiro de 1972 que insere disposições sobre a concessão de licenças de importação de bens de equipamento, limitando-o nos casos em que a respectiva aquisição não beneficie de financiamentos externos ou de condições de pagamento diferido, assegurado pelo fornecedor. Deste protecionismo angolano “resultou uma aceleração da tendência centrífuga perante a Metrópole: não sendo a principal fornecedora de bens de equipamento, matérias-primas e produtos intermediários necessários à industrialização de Angola, a política de licenciamento na importação veio, por um lado, reforçar o papel do estrangeiro nas importações angolanas, e, por outro, dar novo âmbito à produção doméstica essencialmente dirigida à sua procura interna”.15 352 APÓS O 25 DE ABRIL O que precipitou a descolonização de Angola foi assim mais da ordem das razões econômicas do que motivações militares. É certo que a situação militar no teatro de operações de Angola não era tão grave como o que se vivia em Moçambique e na Guiné. Mas, mesmo assim, o volume dos efetivos militares em Angola não decrescia. Pelo contrário, exigia cada vez mais tropas mobilizadas. Se antes dos acontecimentos de março de 1961 o efetivo em Angola era de apenas 1.500 soldados metropolitanos, já no fim desse ano estacionam 28.477 homens. Esse número não deixará de subir, com a única exceção do ano de 1972. Assim, o efetivo total das tropas era, em 1973, de 65.592 homens, sendo 27.819 de recrutamento local e 37.773 mobilizados de Portugal.16 Mas se a guerra não colocava qualquer questão urgente como em Moçambique ou na Guiné, o simples fato de haver no território mais de 60 mil homens em armas atribuía ao elemento militar uma posição determinante para o futuro daquele território. E na medida em que eram os oficiais da metrópole que controlavam o dispositivo militar, principalmente naquele território, era necessário contar com ele no período em que a descolonização se ia decidir. Foi o caso de Angola onde, numa reunião realizada em Luanda em 18 de setembro de 1974, cerca de quinhentos oficiais se pronunciaram no intuito de a descolonização ser protagonizada por aqueles movimentos que haviam adquirido uma “legitimidade revolucionária” pelo fato de terem lutado contra o regime colonialista: Foi na noite de 18 de setembro que se reuniram no salão nobre do Palácio do Governo cerca de 500 oficiais dos três ramos das forças armadas que vieram a aprovar uma moção por 427 votos a favor, 7 contra e 48 abstenções. Considerava o seu texto, no essencial… a necessidade de respeitar o já proclamado princípio do direito à autodeterminação e independência dos povos colonizados.17 Esta reunião de militares em Luanda efetuou-se no preciso momento em que em Lisboa o general Spínola pretendia chamar a si o caso especial de Angola. Exatamente três dias antes efetuara-se na Ilha do Sal um encontro entre o presidente português e o presidente Zairense, Mobutu. Nesse encontro de 15 de setembro teriam sido tratados temas como os de Cabinda, possíveis contactos com Holden Roberto para efeitos de cessar-fogo no norte de Angola, e o comportamento dos ex-gerdarmes catangueses refugiados naquela província. A entrevista entre Spínola e Mobutu, realizada na ilha do Sal em cabo Verde em 14 de Setembro de 1974, foi interpretada na África como um con- 353 José Medeiros Ferreira vite para que a FNLA avançasse sobre Angola, onde entretanto uma sua coluna militar havia sido feita prisioneira na região de Toto pelo exército português. E a declaração feita por Spínola, em 22 de setembro, de que assumiria pessoalmente a responsabilidade da descolonização de Angola terá sido acolhida pelo elemento branco aí residente, pela FNLA e pela Unita.18 O último ato político ligado à descolonização do general Spínola como presidente da República foi exatamente a realização de uma reunião com vários elementos da Província de Angola, realizada no Ministério de Coordenação Interterritorial em 25 de setembro a que também assistiu o ministro Almeida Santos. Mais do que todo o resto foi a descolonização que dividiu Spínola e o MFA. Essa divisão iniciara-se com a supressão já referida na alínea c do ponto 8 do Programa do MFA, na noite de 25 para 26 de abril, e irá aprofundar-se na reunião da Manutenção Militar em 13 de junho para culminar na demissão do primeiro presidente da Junta de Salvação Nacional em 30 de setembro. Spínola não se entendia com ninguém quer sobre a Guiné, quer sobre Moçambique, quer sobre Angola. Nem interna nem externamente, a sua política encontrava apoios que a viabilizassem. Os acontecimentos do 28 de setembro de 1974, se desencadeados por razões atinentes à evolução política interna portuguesa, acabaram por ter incidência sobretudo na questão da descolonização de Angola. O impacto destes acontecimentos em Angola não foi porém abrupto. A FNLA continuou a sua penetração no interior do norte de Angola depois do 28 de setembro e, após conversações com dirigentes do MFA em Kinshasa, aceitou um cessar-fogo com o exército português que entrou em vigor em 15 de outubro. Não era porém o primeiro movimento guerrilheiro a fazê-lo. Já em 14 de junho de 1974 a Unita, pelo próprio Jonas Savimbi, havia aceito formalmente a suspensão das hostilidades num encontro com representantes das Forças Armadas portuguesas (tenente-coronel Passos Ramos, Major Pezarat Correia, capitão Moreira Dias) na Zona Militar Leste, numa região do rio Lungue-Bungo controlada por forças da Unita.19 A partir daí a Unita pôde desenvolver atividade política naquela parte do território angolano. Por sua vez, o MPLA, por meio de Agostinho Neto, assinou um cessar-fogo, em 21 de outubro, com uma delegação portuguesa presidida pelo comodoro Leonel Cardoso, e composta pelo major Emílio da Silva, brigadeiro Ferreira de Macedo e major Pezarat Correia. Foi na Chana do Lunhamege, no Leste, perto da fronteira com a Zâmbia. A partir daí o MPLA vai encetar uma estratégia de implantação política do “poder popular”, organizado em nível de bairro e de empresa e da 354 APÓS O 25 DE ABRIL ocupação de municípios. Depois vai estender as suas atividades aos centros urbanos nas áreas habitacionais dos Quimbundos e dos Bacongos. Em Kinshasa, a 12 de outubro, autoridades portuguesas têm uma reunião com o presidente do Zaire, Mobutu, e com o presidente do FNLA, Holden Roberto, e chegam a um acordo sobre a cessação das hostilidades a partir do dia 15 de outubro. Em 28 de outubro uma delegação presidida pelo almirante Rosa Coutinho encontra-se perto da cidade do Luso (atual Luena) com uma delegação da Unita presidida por Jonas Savimbi. A Unita passa a desenvolver a sua atividade em várias cidades incluindo Lobito e Benguela. Em novembro a Unita marca presença em Luanda. O principal, no entanto, passava por um entendimento entre os três movimentos de libertação, FNLA, MPLA e Unita, pois esses movimentos apareciam como rivais. A cimeira de Alvor no Algarve foi precedida de um encontro entre os três movimentos FNLA, MPLA e Unita, realizado em Mombaça entre 3 e 5 de janeiro de 1975. Concordam em negociar com Portugal na base de uma plataforma da qual constatavam, como pontos fundamentais, a exclusão de qualquer outra organização angolana na fase de conversações e transferência de soberania, a necessidade de um período de transição, o princípio da manutenção da integridade territorial de Angola, nela incluindo explicitamente o enclave de Cabinda em que forças da FLEC pretendiam a separação de Luanda, e ainda critérios bastante abrangentes para uma futura lei de nacionalidade de cidadãos angolanos. Só então a Unita foi reconhecida pela Organização de Unidade Africana como movimento de libertação de Angola. “Para isso contribuíra decisivamente a ação portuguesa, conduzida pelos responsáveis governamentais, militares e do MFA de Angola, ao reconhecerem à Unita o mesmo estatuto e legitimidade dos outros dois movimentos, como aliás lhe era devido em face da situação militar objetiva que vigorava em 25 de Abril de 1974”.20 O acordo de Alvor entre o Estado Português e os três movimentos nacionalistas angolanos, assinado em 15 de janeiro de 1975, teve por base a plataforma de compromisso alcançada dez dias antes em Mombaça pelos representantes de Angola. O acordo de Alvor apenas teve um começo de execução: Portugal nomeou o general da Força Aérea Silva Cardoso para alto-comissário em Angola e a 31 de janeiro tomou posse o Governo de Transição. Depois só houve dificuldades no seu cumprimento. Discutem-se muito as causas do fracasso do acordo de Alvor e quase se sepultou a primeira e mais viva das evidências: o desentendimento entre os três movimentos de libertação co-signatários do dito Acordo. Chegou-se a considerar que a própria radicalização política e social em Portugal entre o 11 de março de 1975 e o 25 de novembro desse ano se de- 355 José Medeiros Ferreira via a uma estratégia que visava promover a independência de Angola por meio do MPLA como forma de expandir a influência soviética na África. Estava-se em pleno período de conflito Leste/Oeste em que os principais protagonistas eram os EUA e a URSS, mas nem tudo o que é verosímil é verdadeiro. A competição no nível político, de janeiro a maio, ainda pôde ser considerada uma campanha eleitoral num sentido muito amplo. Cada movimento tentava mobilizar a seu favor a maior parte da população, inclusive a população branca, tendo vista as eleições para a futura assembléia constituinte, mas também tendo em conta outros possíveis cenários, como os do confronto violento. Por outro lado e contrariamente ao estipulado no acordo de Alvor, somente parcelas muito pequenas das Forças Armadas dos três movimentos foram transferidas para as Forças Armadas Integradas que não conseguiram fazer muito mais do que organizar patrulhas mistas, sobretudo na cidade de Luanda. Cada movimento manteve as suas Forças separadas. Calcula-se que a FNLA tivesse, por altura do acordo de Alvor, cerca de 25 mil soldados; o MPLA perto de 6 mil assim como a Unita.21 A internacionalização do conflito angolano em meados de 1975 teve uma característica curiosa que foi a vontade manifesta das partes em afastar Portugal da condução do processo político no período de transição para a independência. Assim, entre 16 de 21 de junho de 1975, vão reunir-se em Nakuru, no Quênia, os presidentes dos três movimentos signatários do Acordo de Alvor na ausência de qualquer representante português o que contrariava o espírito do artigo58 do acordo de Alvor, segundo o qual “Quaisquer questões que surjam na interpretação e na aplicação do presente acordo e que não possam ser solucionadas nos termos do artigo 27 serão resolvidas por via negociada entre o Governo Português e os movimentos de libertação”. Ora, as conclusões da cimeira de Nakuru omitem qualquer referência ao papel de Portugal no período de transição e incluem mesmo disposições que contrariavam o acordo de Alvor como a medida preconizada de se constituir um Exército Nacional angolano dada a “ineficácia até aqui verificada nas Forças Militares Mistas”. As conclusões da cimeira de Nakuru são porém mais interessantes de um ponto de vista histórico por reconhecerem já então “a introdução pelos Movimentos de Libertação de grandes quantidades de armamento”. Quem primeiro recebeu ajuda externa em Angola capaz de destroçar o laborioso acordo de Alvor tem sido uma discussão próxima do debate sobre quem nasceu antes se a galinha ou o ovo.22 Fontes norte-americanas variadas indicam que a FNLA recebeu 300 mil dólares da CIA, no início do ano de 1975, via Zaire,23 e depois teria usufruído de ajudas em armamento, homens e outros recursos logísticos. 356 APÓS O 25 DE ABRIL As mesmas fontes indicam que a partir de abril de 1975 o MPLA começou a receber armamento pesado da Rússia e de outros países da Europa de Leste que eram transportados em barcos iugoslavos até Brazaville e depois encaminhados para Angola. Desde o momento em que o MPLA passou a dominar a cidade e o porto de Luanda, esse armamento passou também a entrar por aí. John Stockwell que foi um dos responsáveis pela ação da CIA em Angola, nessa altura, revelou mais tarde uma cronologia dos diferentes apoios externos aos movimentos angolanos:24 • em maio de 1974, a China envia um carregamento de 450 toneladas de armas para a FNLA e 112 conselheiros militares; • em julho de 1974, a CIA inicia o financiamento do FNLA de Holden Roberto; • em fins de 1874, os soviéticos começaram a enviar armas para o MPLA, e vão intensificar essas remessas de armamento a partir de março de 1975; • em julho de 1975, os EUA enviam armas para Angola e uma ajuda de 14 milhões de dólares é aprovada para apoiar a FNLA e a Unita; Em 9 de julho de 1975, o MPLA lançou a “segunda batalha de Luanda”.25 Por meio de uma ação combinada das suas forças regulares, as FAPLA (Forças Armadas populares de Libertação de Angola), e da milícia da capital angolana. O conflito angolano entra, então, numa fase de internacionalização cada vez mais acentuada: a FNLA e a Unita recebem ajudas dos EUA, Zaire e África do Sul; do MPLA dos soviéticos, países da Europa de Leste, Cuba e Congo-Brazza. Em 22 de agosto de 1975 tendo em conta a evolução da situação em Angola para um autêntico estado de guerra, o V Governo Provisório, o último presidido pelo general Vasco Gonçalves, declara suspensa a vigência do acordo de Alvor no respeitante aos orgãos de Governo de Angola (decreto-lei nº. 458- a/75). Portugal não conseguira impedir a internacionalização do conflito angolano. No mês de outubro essa internacionalização do conflito em Angola deixa de ser caracterizada apenas pela ajuda efetiva de tropas estrangeiras em território angolano: uma coluna, constituída majoritamente por tropas regulares sul-africanas, entrou em Angola proveniente do então sudoeste africano em meados desse mês. “Altamente móvel, dispondo de uma logística sólida, e equipada num nível técnico superior ao que os três movimentos haviam alcançado naquela altura, esta coluna varreu literalmente o MPLA do seu caminho. No início de novembro, chegou à cidade de Lobito, permitindo assim que a Unita e os seus aliados reocupassem todo o território a oeste e a sul do Huambo que haviam anteriormente perdido. 357 José Medeiros Ferreira Ao mesmo tempo a FNLA lançou uma nova ofensiva ao norte, e conseguiu chegar até à periferia de Luanda...”.26 Em data não determinada, mas possivelmente a partir de outubro de 1975, começou a chegar pessoal cubano e mais material de guerra soviético para apoiar o MPLA. Cerca de 15 mil homens passaram a constituir o exército regular afeto ao MPLA, dotado de carros de combate soviéticos T-34 e T-54, de peças de artilharia e de mísseis, e ainda de aviões Mig-21. As autoridades dos Estados Unidos estavam divididas quanto ao tipo de apoio a fornecer aos movimentos tidos como mais pró-ocidentais como o FNLA e a Unita: sobretudo o Congresso manisfestava-se reticente em continuar a apoiar as operações secretas da CIA, enquanto Kissinger havia adotado a postura de ver os acontecimentos de Angola do prisma do conflito Leste/Oeste já um pouco tarde e perante opiniões contraditórias dos seus conselheiros.27 A atitude das autoridades portuguesas, pelo seu lado, acabou por favorecer objetivamente a estratégia do MPLA, embora o fato de este movimento se ter conseguido impor em Luanda tenha sido determinante para aquela posição. O próprio fato de Luanda ser a capital política e administrativa e de possuir um porto e um aeroporto internacionais ajudou a essa convergência final. Mesmo o fenômeno de retorno da população branca por uma ponte aérea cujo terminal era Luanda favoreceu essa coexistência com o poder do MPLA na capital, e até levou a ameaças em relação aos outros movimentos. Assim a FNLA terá sido avisada que as autoridades militares portuguesas reagiriam com todos os meios à sua disposição caso alguma Força desse movimento pretendesse ocupar Luanda antes do dia da independência, data limite para o funcionamento da ponte aérea sob responsabilidade portuguesa. E, com efeito, tanto o alto-comissário almirante Leonel Cardoso como o restante pessoal português deixaram Luanda no dia 11 de novembro de 1975, transferindo a soberania para o Estado de Angola e não tendo reconhecido qualquer governo pois na altura declararam-se dois: um, sediado em Luanda, tomou o nome de Governo da República Popular de Angola e era uma emanação do MPLA; outro, sediado no Huambo (Nova Lisboa), apoiado pela FNLA e pela Unita, proclamou a República Democrática de Angola, de efêmera duração. O governo português resolveu não reconhecer nenhum dos governos, o que era aliás a posição da OUA naquela emergência, e assim se manteve até 22 de fevereiro de 1976, quando o VI Governo Provisório, muito pressionado pelo presidente da República Costa Gomes e pelo ministro dos Negócios Estrangeiros Melo Antunes, resolveu reconhecer o governo do MPLA em Luanda. Como se escrevia num documento doutrinal a esse propósito: 358 APÓS O 25 DE ABRIL O reconhecimento da República Popular de Angola é a única forma de garantir os direitos e expectativas dos refugiados e de assegurar as negociações relativas ao contencioso existente entre os dois Estados, derivado da situação colonial, decorram de maneira mais favorável aos interesses nacionais.28 Além disso o MPLA havia dado provas de pretender e de defender a integridade territorial de Angola (como no caso de Cabinda e que coadjuvaram a resposta dos militares portugueses à FLEC em várias ocasiões). Por muito tempo se julgou que a posição portuguesa, na ocasião, fora ditada por pretensas afinidades ideológicas, mas como se verá mais adiante, a propósito das conseqüências da descolonização, essa explicação não dá conta dos múltiplos aspectos em que o acesso à independência de Angola se processou. O S CASOS DA ÍNDIA, TIMOR E MACAU Foram atípicos, no processo geral da descolonização saída do movimento histórico do 25 de Abril, três casos diferentes de cessação de soberania portuguesa nos territórios da Índia, de Timor e de Macau. O caso mais difícil de analisar é o de Timor por não ser claro o que se passou naquela ilha no verão de 1975 e por suscitar as maiores polêmicas sobre as atitudes das autoridades portuguesas. Por causa de Timor, o Estado português cortou relações diplomáticas com a Indonésia, em dezembro de 1975, no seguimento da invasão de Timor-Leste por tropas daquele país. Ficou assim incompleto o processo de descolonização daquele território. CONSEQÜÊNCIAS INTERNACIONAIS Lisboa, desde a década de 1960, mais do que capital de um império colonial, estava subjugada por este, gastando na defesa diplomática e militar da manutenção da soberania política o melhor do seu tempo, fazenda e energia. Mas, se prestarmos atenção quer ao programa do MFA quer às teses federalistas do general Spínola, mesmo depois do 25 de Abril, muitas e diversas forças nacionais apostaram na continuação de uma política integrada entre Lisboa, Bissau, Praia, Maputo e Luanda. O que diferia, e era o essencial, era o peso relativo atribuído às capitais referidas: Spínola tentando libertar Lisboa do beco em que a haviam introduzido Salazar e Caetano e querendo dar-lhe papel determinante na condução da nova comunidade federativa; Melo Antunes desejando a emergência de um eixo tropical não- 359 José Medeiros Ferreira alinhado constituído pela dupla Luanda-Maputo em que Lisboa se deveria apoiar. Vasco Gonçalves aceitando teses pró-soviéticas de uma descolonização da qual resultaria o enquadramento de Lisboa numa teia tecida de Moscou a Havana passando por Maputo e Luanda. Embora sem se confundirem, essas diferentes posições tinham em comum uma visão pessimista sobre a integração mais acelerada de Portugal na CEE. De uma forma geral, a descolonização portuguesa foi encarada com simpatia pela comunidade internacional sem que tivesse notado um movimento de positiva solidariedade para com este país em transe tão revolucionário. O auxílio prestado na ponte aérea entre Angola e Portugal se beneficiou as pessoas que queriam partir também ajudou a desertificar África do elemento branco, e poderia ter introduzido na metrópole elementos de pertubação social e política que, ao fim e ao cabo, não se produziram. Pode-se concluir do testemunho do general Spínola um certo alheamento do então presidente Richard Nixon dos EUA diante dos problemas decorrentes, para Portugal, do processo de descolonização e a fraca importância que atribuía a Portugal na transição para a independência dos territórios africanos. Diferente parece ter sido a atitude de Moscou que terá empregado esforços, também em Lisboa, no sentido de o acesso à independência das colônias portuguesas se fazer num sentido que lhe fosse mais favorável. Com efeito, no seguimento do estabelecimento de algumas zonas de influência soviética na África, primeiro na Somália, depois na Etiópia e fundamentalmente na república do Congo-Brazzaville, Moscou vai-se interessar mais empenhadamente na descolonização portuguesa. Essa penetração foi facilitada pelos apoios que a URSS havia dado aos movimentos de libertação durante a luta armada contra o colonialismo português, apoio tanto mais fácil quanto Moscou não tinha sequer relações diplomáticas com Portugal nem havia efetuado investimento na zona, o que sempre dificultava a liberdade de manobra de outras potências diante de Lisboa. Aliás um dos argumentos com que os responsáveis pela política colonialista portuguesa procuravam sensibilizar os governos dos países ocidentais aliados consistia em afirmar que caso Portugal saísse da África seriam os soviéticos que tomariam o seu lugar. Assim, desde 1960 que a diplomacia britânica considerava “inevitável um aumento da influência comunista em certas áreas da África”, mas não considerava que essa presença pudesse criar raízes na medida em que nas antigas potências coloniais se fomentassem laços comuns com os novos países independentes baseados na língua, na educação, na cultura, nas práticas administrativas e no comércio. Era o que recomendava tranquilamente o funcionário do Foreign Office que preparava, no verão de 1960, umas conversações quadripartidas sobre a África entre Portugal, Bélgica, França e reino Unido, que aliás foram adiadas por desinteresse dos três últimos países. Era já o isolamento de fato para Portugal na questão africana. 360 APÓS O 25 DE ABRIL Ora, após a descolonização de 1975, uma das primeiras questões que se colocaram aos novos responsáveis portugueses foi a de compreender qual a natureza de penetração russa em África. Portugal aliás não era virgem na gestão de confrontos entre potências continentais na África Austral Quando a Alemanha bismarquiana e sobretudo pós-bismarquiana revelou algum interesse pela penetração na África, logo houve quem, em Portugal, festejasse o aparecimento ultramarino da potência continental e se quisesse apoiar nela. Barros Gomes simboliza essa tendência. Porém a natureza da expansão alemã na África revelou-se adventícia e verificou-se precária. Seria assim a natureza da influência russa nas ex-colônias portuguesas como o previra desde 1960 a diplomacia britânica? Houve quem afirmasse que o comportamento revolucionário do PCP em 1974-1975 se devera a esses apetites soviéticos pela África de expressão portuguesa, apresentando-se como fato a merecer reflexão a forma como, conseguida a independência de Angola em 11 de novembro de 1975, quando em Luanda se estabelecera um governo do MPLA – movimento cujas ligações com Moscou eram conhecidas, – logo a 25 de novembro de 1975 o PCP se entrega em Lisboa às delícias da democracia parlamentar que antes repudiara com veemência e alguma brutalidade. Esta tese foi veiculada sobretudo nos meios da produção teórica estratégica mais tradicional, nomeadamente entre os estrategos da ditadura salazarista e os estrategos oficiais dos países ocidentais: residia na importância geoestratégica em atribuir à África Austral a perspectiva de uma generalização do conflito Leste/Oeste. Para os portugueses essa importância era decisiva (controle da rota do Cabo, acesso a matérias-primas fundamentais…) pelo que os russos sempre dariam prioridade a uma operação de cerco à Europa Ocidental via África, enquanto os pensadores aliados mantinham as posições que haviam determinado a articulação de missões da Aliança Atlântica em certas áreas localizadas da Europa Central, do Mediterrâneo e do Atlântico Norte. Foi necessário deixar correr algum tempo para se verificar que o interesse russo não ultrapassava facilmente o grau de aproveitamento de alguns “alvos de oportunidade” para empregar um conceito desses meios de pensamento estratégico, conceito que significa não ser aí que se exerce o esforço principal. Não sendo do interesse português acentuar a emergência de uma grande potência hegemônica na região da África Austral, a política externa portuguesa orientou-se empiricamente para os seguintes objetivos naquela região depois da descolonização: • acentuar a influência russa mas sem pretender eliminá-la, dado as circunstâncias não permitirem a Moscou o estabelecimento de uma hegemonia duradoura; 361 José Medeiros Ferreira • promover soluções que reduzissem as probabilidades de conflitos armados na área; • manter a sua margem de manobra entre diversas entidades ou estados interessados direta ou indiretamente na região, de modo a não facilitar o aparecimento de uma potência regional hegemônica; • facilitar acordos entre a RP de Moçambique e a República da África do Sul de forma a permitir a venda e a cobrança de energia elétrica fornecida pelo funcionamento da barragem de Cabora Bassa, cuja construção e manutenção onerava pesadamente o serviço de dívida externa do Estado Português; • apoiar a integridade territorial dos novos Estados assim como o estabelecimento da língua portuguesa como língua oficial; • promover uma política de cooperação com os PALOP em nível bilateral ou multilateral; O princípio da década de 1980, com a vitória do presidente republicano Ronald Regan nos Estados Unidos, vai presenciar um aumento da violência armada na África Austral, que passará a ter uma leitura mais direta pelas grelhas de interpretação do conflito Leste/Oeste, sobretudo em Angola. Mas entre 1975 e 1980 a ação dos Estados Unidos não foi determinante na evolução da África Austral, embora o fato de haver tropas cubanas em Angola tivesse sempre constituído um fato que pesou nas relações entre Washington e Luanda a ponto de as não estabelecerem diplomaticamente. Um dado extremamente importante foi o fato de todas as ex-colônias portuguesas se terem determinado a aderir à Convenção de Lomé II que regia a cooperação Norte/Sul entre a Comunidade Européia e o conjunto de países da África, Caraíbas e Pacífico (ACP), a maior parte dos quais fora colônia de um dos Estados membros da CEE, criando assim um espaço econômico entre a CEE e muitos países africanos, entre os quais todos os PALOP. A SPECTOS POLÍTICOS O Estado português teve que definir uma política imediata em relação à África depois das transferências de soberania, tantos eram os problemas a resolver: retorno de nacionais, segurança dos portugueses que pretendiam continuar nos territórios agora independentes, interesses econômicos e financeiros a defender para não onerar ainda mais o povo português com as seqüelas da organização e da guerra, diversificação dos mercados tradicionais de abastecimento em café, açúcar, algodão, petróleo etc. Tratava-se, pois, de definir qual o lugar que as relações com África ocupariam na estrutura das relações internacionais de Portugal sem colônias. 362 APÓS O 25 DE ABRIL A primeira preocupação foi a de estabelecer acordos de cooperação entre Portugal e as ex-colônias, geralmente negociados durante o processo de acesso à independência daqueles territórios. Assim, a 22 de junho de 1975, é assinado em Lisboa um Acordo de Cooperação cientifíca e técnica entre Portugal e a República da Guiné-Bissau. Em 5 de julho, é concluído, na cidade da Praia, um Acordo Geral de Cooperação e Amizade com a república de S. Tomé e Príncipe que acedia naquele mesmo dia à independência. A República Popular de Moçambique, cuja independência fora proclamada em 25 de setembro, assina, a 2 de outubro, um Acordo de Cooperação com Portugal. Em relação a Angola, o processo de normalização diplomática foi mais complexo e moroso. Assistiu-se primeiro às dificuldades portuguesas na definição de um critério para o reconhecimento do governo angolano logo depois da independência, reconhecimento esse que aconteceu em fevereiro de 1976, ou seja, três meses depois da passagem formal dos poderes em Luanda. Em maio daquele ano era a República Popular de Angola que rompia as relações diplomáticas, para só reatar em outubro, depois de um encontro entre os Ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois países em Cabo Verde. Mesmo assim demoram os angolanos a enviar um embaixador-residente para Lisboa, enquanto o Governo Português apóia a entrada da República Popular de Angola nas Nações Unidas, o que ocorre durante a 31ª Assembléia Geral daquela organização em 1976. Só com o encontro entre o general Eanes e Agostinho Neto, em maio de 1978, ocorrido em Bissau, se enceta um período de maior colaboração entre os dois Estados, formalizada no Acordo Geral de Cooperação e Amizade datado daquele ano. O Estado português teve ainda que criar rapidamente novos departamentos e instrumentos políticos e diplomáticos para essas novas relações. Criou-se assim, em 4 de setembro de 1975, na orgânica do IV Governo Provisório, o Ministério da Cooperação que seria extinto em julho de 1976 com o advento do 1º Governo Constitucional. No 1º Governo Constitucional, o MNE dota-se de um Gabinete Coordenador para a Cooperação que vigorou até ao estabelecimento, em 1980, num governo da Aliança Democrática, de uma Direção-Geral para a Cooperação. Por outro lado, elaboram-se vários estatutos para o Instituto Português para a Cooperação, uma espécie de “holding” dos interesses econômicos e financeiros portugueses na África. Como já referido, Portugal passou a ser um país doador em relação à cooperação internacional, novidade absoluta para o Estado português. A cooperação, depois da independência das colônias, foi, pois, uma novidade como vertente das ações externas do Estado português. Em ter- 363 José Medeiros Ferreira mos internacionais está consagrado que a cooperação se destina a apoiar o desenvolvimento dos Estados, centrado no homem e na cultura de cada povo, tendo por objetivo promover e acelerar esse desenvolvimento nos domínios econômico, cultural e social, aprofundando e diversificando as relações entre Estados beneficiados e doadores num espírito de solidariedade e interesse mútuo, segundo a Convenção de Lomé que liga os países da Comunidade Européia ao conjunto dos países menos desenvolvidos da África, Caraíbas e Pacífico (ACP). Ponto importante é o que determina que o apoio do estado doador só será concedido a pedido do estado beneficiário que terá todo o direito de determinar as suas opções políticas, sociais, econômicas e culturais. Embora dedicando escassas verbas governamentais para o efeito, a cooperação entre Portugal e os PALOP caracterizou o novo tipo de relações entre as partes e permitiu manter o contato necessário de estado a estado durante o delicado período imediatamente posterior à descolonização. E nem sempre foram fáceis as relações políticas entre Portugal e os novos países de expressão portuguesa. Desde logo as relações políticas foram mais estreitas com Cabo Verde e Guiné-Bissau, seguindo-se depois S. Tomé e Príncipe. Nenhuma dificuldade houve no início das relações diplomáticas e mesmo na cooperação militar foi rápido o entendimento com as Forças Armadas portuguesas, nomeadamente nos domínios da balizagem de costas, faróis, apetrechamento e dragagem de portos, treino de pessoal etc. A República da Guiné-Bissau pedirá o apoio português para a demarcação dos limites das suas águas territoriais num difirendo que a opôs à Guiné-Conakry. E quando, em outubro de 1978, Portugal formalizou a sua candidatura a membro não permanente do Concelho de Segurança, esses países apoiaram a sua candidatura contra a de Malta. Um ponto de encontro na política externa de Portugal e das ex-colônias foi a promoção e a maior visibilidade da língua portuguesa na cena internacional. De fato, enquanto não foram independentes aqueles territórios, eram dois os Estados que falavam português. Depois do acesso à independência dos territórios africanos, passaram a sete os Estados de língua oficial portuguesa presentes em três continentes: Europa, América do Sul e África. Estavam criadas as condições políticas para a promoção do português como língua internacional. CONCLUSÃO Embora o desencadeador do movimento do 25 de Abril se deva, em primeiro lugar, à necessidade de resolver a questão colonial, esta efetivamen- 364 APÓS O 25 DE ABRIL te só domina a cena política portuguesa até os primeiros meses de 1975. Se houver que utilizar um acontecimento histórico como marco, pode-se erigir a cimeira de Alvor em 15 de janeiro de 1975. A partir daí, – e contrariando muitas opiniões sobre a influência determinante do processo de transferência de soberania de Portugal para Angola no curso do poder político em Lisboa –, o centro das preocupações dos portugueses tornou-se mesmo o Portugal europeu. Para a opinião pública, nessa altura, o papel de Portugal na descolonização esgotava-se nos diplomas que formalizavam o tempo e o modo de transferência de soberania. De certa maneira, raramente a metrópole foi tão egocêntrica como durante o processo de descolonização. A evolução do poder político em Portugal é determinada essencialmente pela descolonização entre o 25 de Abril de 1974 e 28 de setembro inclusive. Já os acontecimentos cristalizados por volta do 11 de março de 1975 têm um forte componente português e europeu. Mas se essa interpretação é genericamente correta, e só ela permitiu que a esta altura se apresentasse a descolonização saída do 25 de Abril como uma “descolonização exemplar“, isso não significa que as conseqüências da descolonização não tenham afetado a sociedade portuguesa durante muito mais tempo e de forma muito profunda, durável e variada. As conseqüências imediatas foram de ordem militar, social e econômica. Em 1990 as relações públicas do Estado-Maior-General das Forças Armadas revelaram à agência noticiosa Lusa os seus números oficiais sobre as baixas sofridas durante “as campanhas de África”, entre 1961 e 1975. Segundo Manuel Carlos Freire, daquela agência, o número total de vítimas fatais durante a guerra na África foi de 8.831. O maior número de mortos pertenceu ao Exército (8.290) seguindo-se a Força Aérea (346) e a Marinha (195). Relativamente ao número de feridos, as estimativas apontam para cerca de 30 mil, sendo o exército mais atingido, com mais de 25 mil feridos. Dos totais anuais de vítimas fatais verifica-se que 1973 foi o ano em que as Forças Armadas tiveram maior número de mortos (Exército, 856; FAP, 27; Marinha, 40). A pressão sobre os militares que, entre 1961 e 1974, estiveram mobilizados na África terá sido de 117 mil efetivos. Assim, calcula-se que o número total aproximado de militares que participaram nos três principais teatros de operações na África (Guiné, Angola e Moçambique) terá sido de 1.368.900 (um milhão, trezentos e sessenta e oito mil e novecentos indivíduos). Tendo sido a guerra colonial conduzida pelas Forças Armadas da Metrópole, os colonos radicados na África só tiveram duas soluções após a decisão de descolonizar. Ou se colocavam sob a proteção dos partidos africanos ou preferiam regressar à metrópole, vista esta como Mãe Pátria para dar a certas expressões consagradas o seu verdadeiro sentido. 365 José Medeiros Ferreira O resultado de todas essas realidades e contigências foi o fenômeno social do retorno de cerca de meio milhar de residentes nos territórios africanos para Portugal, num concentrado período de tempo pouco superior a um ano. O fenômeno do retorno feriu tanto a sensibilidade contemporânea dos portugueses que o seu número se encontra quantificado por órgãos oficiais do Estado. O Recenseamento de 1981, por perguntar a residência dos inquiridos em 31 de dezembro de 1973, apurou a existência, em Portugal, de 505.078 cidadãos que regressaram de África depois daquela data. Que conseqüências teve esse retorno sobre a geografia humana do território metropolitano? Segundo dados elaborados pelo Instituto Nacional de Estatística, no censo de 1981, o total de “retornados” terá sido de 505.078, sendo 309.058 provenientes de Angola e 164.065 de Moçambique, de fato as duas colônias de “povoamento”. Dos valores obtidos pelo Recenseamento Geral da População de 1981 ressaltam os seguintes indicadores: quase dois terços dos retornados vieram de Angola e os retornados, nascidos em Portugal, eram originários majoritariamente das áreas urbano-industriais de Lisboa e do Porto (cerca de 23% ) e das regiões deprimidas do norte e centro interiores do país (34% ). O impacto demográfico do fenômeno do retorno da África, entre 1974 e 1976, pode ser quantitativamente medido pelo Recenseamento Geral da população, ocorrido em março de 1981, quando todo, Portugal se estabilizava depois do período revolucionário. A população total de Portugal ficou cifrada em 9.833.014 (nove milhões, oitocentos e trinta e três mil e catorze indivíduos), sendo 505.078 (quinhentos e cinco mil setenta e oito) considerados retornados. Mas não foram só os expatriados que regressaram num lapso de tempo intenso e condensado. Também os dispositivos dos acordos de transferência de soberania não foram muito favoráveis a uma diluição no tempo do retorno das tropas. Do ponto de vista econômico quando se verificou a descolonização já a efêmera quimera política do mercado comum português estava destruída e nenhum responsável em Lisboa, ou em qualquer outro lado, ousava retomar esse objetivo criado pela pressão doutrinária, presente no Decretolei 44.016 de 8 de novembro de 1961, que instituía uma zona de comércio livre entre Portugal e o Ultramar. As trocas comerciais entre Portugal e os territórios ultramarinos não ultrapassaram os 13% do total da balança comercial da metrópole em 1973, com esta já pesadamente envolvida no intercâmbio com os países europeus da EFTA e da CEE. E o problema financeiro que os “atrasados” das colônias representavam não era de molde a encorajar o aumento das ex- 366 APÓS O 25 DE ABRIL portações para a África portuguesa. Esses territórios vão aliás implementar medidas protecionistas nos inícios dos anos 70. Essa redução das trocas comerciais entre Portugal e as suas colônias mais realçava a desproporção existente com o aumento constante das despesas militares devidas ao esforço de guerra na África. Assim, e observando a evolução das despesas militares em relação ao total das despesas públicas, em porcentagem, verificamos que, durante a década de 1960, elas passam de cerca de 25% , no início da década, para cerca de 40% no fim. Até 1974 essa porcentagem não é nunca inferior a 35% , para, entre 1974 e 1980, decaír abaixo dos 10% e se situar à volta dos 6,5% em 1985. Em relação ao PIB, a porcentagem das despesas militares passa de 6,85, em 1974, para 2,44% em 1985.29 Do ponto de vista comercial, a principal conseqüência da descolonização foi a diminuição drástica das exportações dos territórios descolonizados para Portugal, que caíram para valores percentuais abaixo de 1% . Quanto às exportações de Portugal para os PALOP, a evolução depois das independências, se bem que irregular, demonstra uma amplitude situada entre os 5% do total das exportações portuguesas em valor (1982) e o teto dos 10% . Esse desequilíbrio na balança comercial entre Portugal e os PALOP, obrigou o Estado português a conceder linhas de crédito à exportação para as mercadorias com destino a esse grupo de países, durante o período em análise. Portugal ocupa na balança comercial com os PALOP um lugar mais importante como fornecedor do que como comprador. A importância dos PALOP na balança comercial portuguesa é muito menor do que a de Portugal na balança comercial daqueles países. Mas Portugal como país exportador sentiu menos os efeitos da descolonização. A balança comercial entre Portugal e os antigos países da zona escudo manteve-se excedentária desde 1976, sendo a taxa de cobertura favorável a Portugal. Angola, por exemplo, continuou como o quarto cliente português após o Reino Unido, a RFA e a França até entrada de Portugal na Comunidade Européia. No que se refere às exportações, Portugal ocupava o segundo lugar entre os fornecedores de Moçambique no quadro dos países da OCDE e o quinto em geral, e contribuía com 5,8% do total das importações moçambicanas entre 1976 e 1980. No período quinquenal seguinte, 1980-1985, as exportações portuguesas representavam 7,6% das importações do Estado moçambicano, mantendo o segundo lugar como fornecedor depois da República Federal da Alemanha. Na década de 1980 o saldo da balança comercial acumulado em favor de Portugal nas suas transações com Moçambique foi superior a 31 milhões de contos. De uma maneira geral, Portugal aparece como parceiro comercial muito importante para os PALOP´s em todo este período, sobretudo como 367 José Medeiros Ferreira fornecedor já que como cliente a sua posição desceu depois da descolonização. Alguém já chamou “ciclo comercial” a este período posterior às independências. Os interesses econômicos de Portugal nas colônias não se resumiam, no entanto, aos seus aspectos comerciais. A vertente investimento tinha um significado tal que, por altura da visita a Lisboa do secretário-geral da ONU, Kurt Waldhein, no verão de 1974, foram os investimentos privados portugueses, efetuados em Angola e em Moçambique, estimados em 190 milhões de contos e em 150 milhões de contos respectivamente, em documentos preparados para conversações entre as autoridades portuguesas e o secretário-geral da ONU. Pode-se mesmo interpretar as nacionalizações, nomeadamente as dos Bancos, efetuadas em Portugal a partir de março de 1975, como uma medida capaz de facilitar um certo tipo de descolonização, e colocar do lado português, como interlocutor dos novos Estados, não uma multidão de interesses privados, mas o próprio Estado português. As relações econômicas entre Portugal e esse conjunto de países tornaram-se assim, no período posterior à descolonização, eminentemente políticas, tanto mais que às nacionalizações efetuadas pelos governos em Lisboa se seguiram as nacionalizações operadas pelos governos na África. Por causa dessas nacionalizações, efetuadas tanto em Portugal como nos novos países africanos, as questões econômicas situaram-se freqüentemente no nível das relações políticas entre os Estados. 368 APÓS O 25 DE ABRIL N OTA S 1. LOURENÇO, E., 1978, p.47. 2. GOMES, C. 1979, p.17. 3. No caso de Angola só mais tarde a OUA reconhecerá também a UNITA como movimento de independência. 4. SPÍNOLA, A., 1978, p.270. 5. Ibidem, p.271. 6. SOARES, M., 1976. p.36. 7. Moção aprovada pelo MFA da Guiné. Reunião de 1º. de julho de 1974 (Documento datilografado de quatro páginas, consultado no Centro de Documentação sobre o 25 de Abril. Universidade de Coimbra). 8. DG, nº. 293, 3º supl., 1ª. série de 17.12.1974. 9. JARDIM, J., 1976, p.278. 10. SPÍNOLA, A., op. cit., p.437-438. 11. DG, nº. 210, 2º. supl., 1ª. série de 9 de setembro de 1974. 12. Mozambique a Country Study, Federal Research Division. 3. ed. Washington: Library of Congress, 1985. p.58 13. NETO, A. M., 1991. 14. FERREIRA, M. E., 1990, p.131. 15. Ibidem, p.139 16. Estado Maior do Exército, Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (19611974). Lisboa, v. 1, 1988, p.260-261. 17. HEIMER, F. W., 1980, p.93. 18. Ibidem, 1980, p.63. 19. CORREIA, P. P., 1991, p.98. 20. Ibidem, p.105-106. 21. HEIMER, F. W., op. cit., p.76. 22. KISSINGER, W. I. A biography. London, Boston: Faber and Faber, 1992. 23. BELL, C. The diplomacy of detente. The Kissinger Era. London: M. Robertson, 1877. p.173. 24. Ver STOCKELL, J. A CIA contra Angola. Lisboa: Ulmeiro, 1979. 25. HEIMER, F. W., op. cit., p.81. 26. Ibidem, p.84. 27. ISAACSON, op. cit., p.673-685. 28. Memorando de 3 páginas, datilografado, arquivado no Centro de Documentação de 25 de Abril, Universidade de Coimbra. 29. Cf. Ministério da Defesa Nacional, Livro branco da defesa nacional, MDN, 1986, p.150-1. 369 José Medeiros Ferreira B IBLIOGRA FIA AA.VV., A descolonização portuguesa – aproxim ação a u m estu do. Lisboa: In stitu to Dem ocracia e Liberdade, 1979 e 1982. 2v. ___. Os retornados – u m estu do sociográfico. Lisboa: Cadern os IED, 1984. ___. Portugal – PALOP. As relações econ ôm icas e fin an ceiras. Coord. Adelin o Torres. Lisboa: Esch er, 1991. CORREIA, P. P. Portu gal n a h ora da descolon ização. In : REIS A. (Dir .) Portugal comtemporâneo. Lisboa: Alfa, 1992. v.6, p.117-70. ___. Descolonização de Angola – a jóia da coroa do im pério portu gu ês. Lisboa: Editorial In qu érito, 1991. FERREIRA, J. M. Portu gal em tran se. In : História de Portugal. Lisboa: Estam pa, 1994. v.VIII, FERREIRA, M. E. 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Maria do Rosário Them udo Barata Professora Catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. N u n o Go n çalo Fre itas Mo n te iro Pesqu isador do In stitu to de Ciên cias Sociais da Un iversidade de Lisboa e Professor con vidado n o In stitu to Su perior de Ciên cias do Trabalh o e da Em presa. Francisco Calazans Falcon Professor Associado do Departam en to de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Jo sé Jo bso n d e A n d rad e A rru d a Professor Titu lar do Departam en to de História da USP e do In stitu to de Econ om ia da UNICAMP. 372 José Te ngarrinha Professor da Universidade de Lisboa. Miriam Halp e rn Pe re ira Professora Catedrática de História Modern a e Con tem porân ea do In stitu to Su perior de Ciên cias do Trabalh o e da Em presa em Lisboa, Diretora da revista Ler História. Jaim e Re is Professor Catedrático do In stitu to Un iversitário Eu ropeu de Floren ça. A m ad e u Carvalh o Ho m e m Professor Associado da Un iversidade de Coim bra. A. H. de Olive ira Marque s Professor Catedrático da Universidade de Lisboa. 373 Jo ão Me d in a Professor Catedrático da Facu ldade de Letras da Un iversidade de Lisboa. Lu ís Re is To rgal Professor Catedrático da Facu ldade de Letras da Un iversidade de Coim bra, m em bro do In stitu to de História e Teoria das Idéias. Jo sé Me d e iro s Fe rre ira Professor da Un iversidade Nova Lisboa. 374 375 So bre o Livro Formato: 16x23 cm Mancha: 27x43 paicas Tipologia: Meriden Rom an 10 (texto), Meriden Rom an 12 (títu los) Equ ip e d e re alização Coordenadora Executiva Lu zia Bian ch i Revisão Técnica Maria Helen a Martin s Cu n h a Produção Gráfica Edson Fran cisco dos San tos Preparação e Revisão de Texto João Edu ardo Pedroso de Oliveira Carlos Valero Catalogação Valéria Maria Cam pan eri Projeto Gráfico e Criação da Capa Cássia Letícia Carrara Dom ician o Diagramação e Capa Ren ato Valderram as 376