O Fetiche de São Cipriano
Shirlei Massapust
Feiticeiros também possuem sentimentos. Eles ficam ofendidos quando abrem
análises criticas nos velhos moldes acadêmicos onde alguns dos seus pares acabaram
retratados como homens primitivos, ignorantes, desprovidos de bom senso ou foram
reduzidos a simples objetos de estudo após receberem antropólogos e etnólogos com
cordialidade e hospitalidade.
Embora os esp“ritas do século XIX apreciassem todos os tipos de testes da
metodologia cient“fica, gato escaldado tem medo de água fria. Hoje em dia filosofia
demais, cálculos estat“sticos, ensaio cl“nico duplo-cego e placebo são comumente
interpretados como produto espúrio de corrupção literária.
Este é um dos motivos que levaram os feiticeiros a desenvolver um estilo editorial
próprio. Os manuais de magia do ocidente possuem formatação padronizada. São
cap“tulos miúdos contendo nada além de receitas de feitiços ou estórias. Contudo,
apesar da decantada aversão à cultura mainstream, não é raro percebermos a influência
das belas artes no processo ritual.
N. A. Molina não hesitou em usar uma adaptação disfarçada do poema O
Aprendiz de Feiticeiro, de Goethe, como prefácio do Livro de São Cipriano1, nem em
publicar uma tradução das Litanias de Satã, de Charles Baudelaire, poema extra“do da
coletânea Les Fleurs du Mal (1857), sob o argumento de que isto foi utilizado em rituais
por um grupo de bruxos parisienses . 2 Então não fiquei surpresa ao constatar a
inocorrência da magia de envoûtement atribu“da por Molina às páginas da polêmica
edição conjunta de Le Véritable Dragon Rouge3 e Le Poule Noire, – donde Jimmy Page
extraiu o signo de sua alcunha no quarto álbum do Led Zeppelin. 4 – Isso é uma
pegadinha.
O atrapalhado aprendiz de feiticeiro acreditará que o mestre traduziu a fórmula
do manual francês enquanto o filósofo alquimista (é assim que Molina chama aos
leitores que compreendem suas analogias) será capaz de identificar e interpretar as
entrelinhas do conto tcheco homônimo, U červeného draka (1889), de Josef Jiř“ Kolář,
1
MOLINA, N. A. Antigo Livro de São Cipriano: O gigante e verdadeiro capa de aço. 29ª edição. Rio de Janeiro,
Espiritualista, sem data, p 7-8.
2
N. A.MOLINA. Nostradamus, a Magia Branca e a Magia Negra. (2a edição). Rio de Janeiro, Espiritualista, p 111.
3
De acordo com o perito avalista do acervo do Wierius – o mais importante leilão de livros de alquimia e magia cerimonial
da atualidade – a primeira edição, com 107 páginas, mente o ano de publicação (1521) na página de rosto, sendo na
verdade uma compilação do século XVII ou XVIII. O t“tulo Le Dragon Rouge, ou l’art de Commander les Espritis Celestes,
sem autoria nem data, consta no catálogo da biblioteca de Amos Strettell (1720-1780).
4
N. A.MOLINA. Nostradamus, a Magia Branca e a Magia Negra. (2a edição). Rio de Janeiro, Espiritualista, p 122.
1
onde um feiticeiro suicida encerra a própria vida diante dum manequim criado à sua
imagem e semelhança, deixando o objeto carregado pela energia da morte. A
representação do homem se torna o próprio homem e afeta aos que se aproximam
propagando tendências suicidas, fazendo-os repetir o sacrif“cio de si mesmos
encenando a primeira fatalidade.
Assim como o Inferno era uma região pouco explorada antes da fict“cia visita de
Dante Alighieri, apenas o nome do feiticeiro Cipriano fora citado antes da elaboração da
peça de teatro El Mágico Prodigioso (1637), encomendada a Pedro Calderón de la
Barca pelo munic“pio de Yepes, na prov“ncia de Toledo, para a celebração do feriado
de Corpus Christi. No enredo o personagem faz um pacto com o demônio assinando
um contrato com seu próprio sangue e passa um ano recluso numa caverna estudando
feitiços. Com tudo isso ele não consegue suprimir o livre arb“trio de terceiros, mas pode
inculcar imagens nos pensamentos alheios, fazer aflorar sentimentos e conjurar uma
entidade definida como esqueleto, estátua, imagem e simulacro da morte.5
A platéia efetivamente via a boneca parecida com o cadáver de Justina. No fim
deste inusitado ano letivo Cipriano agradece ao demônio instrutor:
Viendo que ya yo puedo
al infierno poner asombro y miedo,
pues com tanto cuidado
la mágica he estudiado,
que aun tú mismo no puedes
decir, si es que me igualas, que me excedes;
viendo que ya no hay parte
della, que com fatiga, estúdio y arte
yo no la haya alcanzado;
pues la nigromancia He penetrado,
cuyas l“neas oscuras
me abrirán las funestas sepultures,
haciendo que su centro
aborte los cadáveres, que dentro
tiranamente encierra
la avarienta codicia de la tierra,
respondiendo por puntos
a mis vocês los pálidos difuntos;
y viendo, em fin, cumplida
5
COLDERÓN. El Magico Prodigioso. Zaragoza, Ebro, 1971, p 82-83 e 101.
2
la edad del sol que fue plazo a mi vida.6
Mais tarde, Cipriano se arrepende e morre como mártir na Antioquia, literalmente
amarrado ao cadáver da verdadeira Justina. É neste último ato que o ritual se inspira
para mimetizar a conseqüência da magia aprendida na cova de dois vivos , que se
resume a suportar um sofrimento inimaginável enquanto não houver abdicação da
castidade. A coletânea lusitana de O Grande Livro de S. Cypriano ou Thesouro do
Feiticeiro (1885) apresentou a seguinte receita de feitiçaria com um casal de bonecos
amarrados um no outro com linha branca até gastar o carretel, enquanto se pragueja
nove vezes, ao meio dia, depois de rezar a oração das horas abertas em honra à Virgem
Maria:
Eu te prendo e te amarro em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo,
Padre, Filho e Esp“rito Santo, para que debaixo deste santo poder não
possas comer nem beber, nem estar em parte alguma do mundo sem
que estejas na minha companhia. Eu (fulano), aqui te prendo e amarro,
assim como prenderam a Nosso Senhor Jesus Cristo no madeiro da
Cruz; e o descanso que tu terás enquanto para mim te não virares, será
o que terão as almas no fogo do purgatório penando continuamente
pelos pecados deste mundo, e como o que tem o vento no ar, as ondas
no mar, sempre em cont“nuo movimento, a maré a subir e a descer, o
sol que nasce na serra e que vai pôr-se no mar. Será esse o descanso
que eu te dou enquanto para mim te não virares com todo o teu
coração, corpo, alma e vida; debaixo da santa pena de obediência e
preceitos superiores, ficas preso e amarrado a mim, assim como ficam
estes dois bonecos amarrados um ao outro. 7
A regra geral aponta que não importa o dogma teológico relacionado ao nome
de poder. Numa tradição adaptada de cancioneiros e peças de teatro a rima se sobrepõe
à lógica e personalidades só precisam de fama. Por exemplo, sabemos que Maria
Padilha foi amante e segunda esposa do Rei Pedro I de Castela. Nunca foi santa nem
mártir. Contudo, velhos feitiços de Cipriano rogam pelo sangue derramado de Jesus
Cristo em nome de Satanaz, Barrabaz e Caifaz , pelo poder de Maria Padilha e de
6
COLDERÓN. El Magico Prodigioso. Zaragoza, Ebro, 1971, p 85.
7
O GRANDE LIVRO DE SÃO CYPRIANO OU THESOURO DO FEITICEIRO. Lisboa, J. Andrade & Lino de Sousa, 1885,
tomo II, p 15-16. || A adaptação brasileira acrescenta uma exigência: Estas palavras devem ser repetidas por nove dias
seguidos, sempre durante as batidas do meio dia dos sinos da igreja mais próxima da casa da pessoa que se deseja
enfeitiçar . (NEGRÃO, Walter. O Livro de São Cipriano. São Paulo, Três, sem data, p 24).
3
toda a sua fam“lia , etc., enquanto o feiticeiro martela pregos extra“dos dos restos de
caixões exumados.8
Se produzir bonecos de pano e decorar orações paradoxais não parecer dif“cil o
bastante, saiba que uma variante paralela do envoûtement requer o uso de linha e
agulha especial“ssimas. O posicionamento majoritário informa que a agulha equipada
com linho galego passa três vezes entre a pele e a carne de um defunto até ficar tão
cheia de sangue e gordura quanto uma linha de pipa que enche de cerol quando untada
em cola e pó de vidro.9
O posicionamento minoritário de Murzim Gemwy sugere que a imantação é feita
sem furar o cadáver. Para fazer esta mágica deve-se oferecer para ajudar a costurar a
mortalha ou a roupa de um defunto . Ele afirma possuir o folclórico manuscrito grego
em cujo cap“tulo XXI o feiticeiro Cipriano teria dito que a agulha apenas toca a epiderme
(
ι
ί α) do cadáver, que é seu dæmon ( αί ω ) auxiliar:
São Cipriano, propositalmente, tornava suas mágicas bem dif“ceis de
preparar, a fim de evitar que ca“sse na mão de pessoas ignorantes ou
mal intencionadas. Hoje, que o povo está mais evolu“do, há mais
instrução, pode-se publicar as fórmulas mágicas sem aqueles
obstáculos propositais.10
Quando objetos de cera substituem os de pano, a reciclagem da cera derretida
das velas que crepitam à volta do caixão num velório é igualmente útil para o feiticeiro
que deve derreter novamente a cera em fogo de lenha de ciprestes .11 No tempo em
que ainda não existia parafina industrial (um derivado do petróleo) todas as velas eram
feitas de sabão e cera de abelhas. Hoje a transformação da gordura animal em sabão
é feita fervendo-a em água com soda cáustica (hidróxido de sódio), mas quando isso
8
Bernardo Barreiro localizou e publicou o ritual omitido por Gumerzindo e outros, por receio de que algum estouvado
use dele , no tópico sobre o poder oculto ou segredo da varinha de aveleira . A fonte contemporânea ensina a evocar
Elohim, Adonay, Jeová, Ariel e um esp“rito interventor (Lharia-Thai) para produzir uma réplica da vara de Moisés,
entalhada em madeira da árvore Corylus avellana. (O GRANDE LIVRO DE SÃO CYPRIANO OU THESOURO DO
FEITICEIRO. Lisboa, J. Andrade & Lino de Sousa, 1885, tomo I, p 94, tomo II, p 21-23 e 78-79; BARREIRO, Bernardo.
Brujos Y Astrólogos de la Inquisición de Galicia y el Famoso Libro de San Cipriano. Madrid, Akal, 1980, p 270-271).
9
O GRANDE LIVRO DE SÃO CYPRIANO OU THESOURO DO FEITICEIRO. Lisboa, J. Andrade & Lino de Sousa, sem
data, tomo II, p 70-72; O TRADICIONAL LIVRO NEGRO DE SÃO CIPRIANO. Rio de Janeiro, Pallas, 1993, p 34-35;
NEGRÃO, Walter. O Livro de São Cipriano. São Paulo, Três, sem data, p 16.
10
GEMWY, Murzim G. O Grande e Leg“timo Livro Vermelho e Negro de São Cipriano. São Paulo, Edrel, p 77. || Compare
com a corruptela coletada por Mauss onde se exige passar um de seus cabelos no buraco de uma agulha que costurou
três mortalhas... (MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo, Cosac Naify, 2003, p 104).
11
NEGRÃO, Walter. O Livro de São Cipriano. São Paulo, Três, sem data (certamente editado entre 1970 e 1980), p 28.
4
também não existia era preciso improvisar com salmoura (cloreto de sódio) e o povo
fazia velas usando a imaginação. Um feitiço para multiplicar a cera mandava bater uma
dúzia de ovos de ema, misturar com uma arroba de sebo de bode e mexer até que tudo
virasse cera amarela para se fazer dela toda a obra que quiserem .12
Na época em que existia pena de morte por enforcamento na Europa alguns
feiticeiros recolhiam os cadáveres dos criminosos executados para fazer velas. A carne
era transformada em sabão enriquecido com favos de colméia e óleo de gergelim
(Sesamum indicum) importado de Sápmi. Somente as mãos eram tratadas com um
preparado de sal grosso, levedo de cerveja em pó, nitrato de sódio derivado da
decomposição do esterco de cavalo, etc. Mãos mumificadas eram usadas como
candelabro, com os cinco dedos acesos.
Confesso que na primeira vez que li a respeito pensei que fosse lenda, mas o
Whitby Museum possui uma Main de Gloire em exposição. Isto foi doado ao museu
em 1935 por Joseph Ford, que encontrou ao abrir a parte oca da parede duma casa em
Castleton, no distrito de Derbyshine, Inglaterra13. Um manuscrito do séc. XVIII ensina a
imobilizar inimigos usando duas mãos acesas dentro dum c“rculo mágico rodeado por
um morcego, uma cabeça de gato preto, um par de chifres de touro e o crânio do
enforcado sobre um par de t“bias cruzadas. 14 Outro feitiço, relatado no Petit Albert,
possivelmente surtia o efeito desejado quando alguém via o objeto medonho:
Assisti três vezes ao julgamento definitivo de certos celerados que
confessaram, na tortura, terem usado a mão de glória nos roubos que
haviam cometido, e como, durante o interrogatório, se lhes perguntou
o que isso era e como a tinham conseguido, eles responderam, em
primeiro lugar, que a mão de glória tornava estupefatos e imóveis todos
aqueles a que era apresentada, de modo que se mexiam tanto como
se estivessem mortos. Em segundo lugar, que era a mão de um
enforcado.15
Evocando esp“ritos
12
VIZEU, Adélio Perdigão. O Antigo e Verdadeiro Livro Gigante de São Cipriano. Rio de Janeiro, Eco Mandarino, p 165.
13
Hand of Glory. Em: WHITBY MUSEUM: Museum collection – special collections. Publicado em 01/03/2014. URL:
http://www.whitbymuseum.org.uk/collections/hogg.htm
14
HAINING, Peter. O Livro do Feiticeiro. Trad. Luiza Muros da Silveira. RJ, Pallas, 1983, p 110-111.
15
HUSSON, Bernard. O Grande e o Pequeno Alberto. Trad. Raquel Silva. Lisboa, Edições 70, 1970, p 380; PLANCY,
Jacques Albin Simon Collin de. Dictionnaire Infernal. Paris, Librairie Universelle de P. Mongié A”né, 1826, p 482.
5
Em 1860 a ficção de Calderón ainda passava por obra hagiográfica e era
confundida com a legenda aurea, conforme atestado pelo feiticeiro francês e ex-diácono
Alphonse Louis Constant.16 Uma caverna semelhante à mencionada na peça de teatro
existe até hoje. No século XVI tinha uma sacristia ali debaixo da Igreja de São Cipriano,
na Costa de Carvajal, em Salamanca, onde o pároco Clemente Potos“ lecionava artes
divinatórias.
Potos“ era um poss“vel partidário da causa de Johannes Trithemius, que
aconselhava o estudo comedido dos livros de magia por religiosos seletos,
acompanhado da censura perante o público leigo. Este último fez uma lista dos t“tulos
de livros secretos no catálogo Antipalus Maleficiorum (1508); entre os quais consta a
mais antiga referência historiográfica ao livro de São Cipriano, tratado latino então
entitulado Item est liber alius pestifer quatuor regum ex daemonum numero praenotatus,
cuius inicium est varium. Et nunc quidem “ncipit sic: Quicumque magicae artis. Apud
alios vero aliter inchoatur. Et hoc maledictum opus Sancto Martyri Cipriano Mendaciter
audet ascribere, quod ultimo esset suplicio vetandum.17
Grande Cipriano, famoso mágico : Ilustração na capa do
Heptameron, editado em 1810 por Vincio Bocatorti.
Pessoas da região começaram a inventar estórias sobre diabos em forma
humana que ensinavam arte das trevas a um pequeno número de estudantes na
caverna. No fim do curso um estudante era sorteado para pagar as mensalidades de
16
LEVI, Eliphas. História da Magia. Trad. Rosabis Camaysar. São Paulo, Pensamento, 1995, p 167-170.
17
PEUCKERT, Will-Erich. Pansophie: Em versuch zur geschichte dei weissen und schwarzen Magie. Berl“n, Erich
Schmidt Verlag, 1956, p 47.
6
todos. Miguel de Cervantes adaptou a lenda na peça La Cueva de Salamanca (1515),
onde sarcasticamente questiona se existem diabos batizados, capazes de se fazer ver
na figura do sacristão da paróquia ao passo que este e outros seriam vistos
convertidos em diabo ! A Rainha Isabel ficou tão escandalizada com a repercussão da
lenda que ordenou o fechamento da caverna. A própria igreja foi destru“da em 1580.
Em algum momento no tempo, uma lenda idêntica nasceu em Sibiu, na Romênia.
A estória fala sobre os solomonári que estudam o livro de capa preta da escola de magia
Șolomanţie18, alegadamente situada nas montanhas, à margem do lago Cindrelu. Ali
somente o șolomonar sorteado para trabalhar como aide-de-camp após o término do
ano letivo pode montar no dragão vermelho (em romeno zmeu; termo derivado de
zmeură, o fruto da roseira).19
O caso concreto mais impressionante foi o de Christian Hahnemann, admitido
como aprendiz em 1779 numa loja maçônica , em Sibiu. Mesmo desconhecendo o
idioma local ele conseguiu aprender lições que o levaram a formular o primeiro princ“pio
da homeopatia e da magia simpática: Similia similibus curantur.20 O problema é que a
Maçonaria não reconhece a existência de nenhuma loja maçônica na Romênia antes de
1879!21
No século XIX apareceram vários livros de São Cipriano em Portugal e Espanha.
A ilustração do frontisp“cio da Orac“o dels gloriosos y mart“rs, San Cipriá y Santa Justina
(1846), impressa por Viuda Solá, introduziu um elemento inexistente na estória anterior
ao mostrar Cipriano queimando seus antigos livros de feitiçaria. Isto teria acontecido
18
Acrônimo de Salamanca com Solomōn (Σ
ώ ), supondo um hipotético livro La Salamántica ou The Solomancie de
Clemente Potos“ ou outro, baseado na Clavicula Salomonis. Em 1820, A. Beniciana Kabina revelou que São Cipriano
era o codinome do autor compilador de La Granguejer“a ou Gran Gregeria (1820), nome alternativo da então proibida
Clavicula Salomonis. Inclusive é verdade que até hoje as edições de São Cipriano tem cap“tulos intitulados Chave de
Salomão . O problema é que o conteúdo da clav“cula não é estável. O conhecimento enciclopédico que YHWH deu ao
Rei Salomão (1 Reis 4:29-34) originou o mito do livro de magia cerimonial que foi visto por Flávio Josefo nas mãos do
exorcista Eleazar, nativo de Jerusalém, no primeiro século da era cristã ( Antiguidade Judaica 8. 2. 5.). Na versão do
Talmude, deus da poder e autoridade a Salomão, mas é Ashmedai quem revela segredos sob coação (B. Gittin 68a-b).
A primeira edição do Index librorum prohibitorum (1559) censurou o Talmude e a Clavicula Salomonis, juntamente com
quaisquer cr“ticas, sátiras e citações. Não se podia falar a favor ou conta os apócrifos do Rei Salomão porque isto era
um tabu absoluto. Então certos editores começaram a substituir t“tulos e nomes proibidos por figuras familiares ao
cristianismo. Por exemplo, o t“tulo da comédia Liber Belial: De Consolatione Peccatorum (1382), de Jacobus Palladinus
de Teramo (1349-1417), mudou para Processus Luciferi contra Iesum coram Iudice Salomone na reedição de 1611.
19
GERARD, Emily. The Land Beyond the Forest: Facts, figures and fancies from Transylvania. New York, Harper &
Brothers, 1888, p 198-199; SENN, Harry A. Were-Wolf and Vampire in Romania. New York, Columbia University Press,
1982, p 8 e 109.
20
NETO, Hermann Windisch. "Homeopatia: Ciência ou superstição" Em: MONTFORT Associação Cultural. Online,
28/06/2014 às 18:52h. URL: http://www.montfort.org.br
21
MARQUES, A. H. de Oliveira. Dicionário de Maçonaria Portuguesa. Vol II, J-Z. Lisboa, Editorial Delta, 1986, p 1263.
7
depois da conversão do personagem ao catolicismo e antes dele escrever o livro de
orações da Cruz de Caravaca.
Anos mais tarde, a versão de El Abanico – selo da Sociedad Editorial Manresana
– foi dividida em duas partes vendidas separadamente: Um cancioneiro de quatro
páginas intitulado Vida Y Martirio de los Gloriosos San Cipriano y Santa Justina e um
livreto de orações que dava uma bela Cruz de Caravaca adornada com anjos como
souvenir.22 O cancioneiro é uma adaptação da peça de Calderón. Ele abraça a inovação
onde o personagem não morre no mesmo dia em que aceita a conversão. Ao invés
disso queima os livros de feitiçaria, é batizado, catequizado, faz penitência e progride
na igreja até se tornar Bispo da Antioquia.
Abominando su ciência,
el nuevo converso luego
llevó al Obispo sus libros,
y él mismo les puso fuego.
Isto gerou um problema log“stico para o próximo contador de estórias. Se os
papéis originais foram queimados, o que suas cópias estavam fazendo nas livrarias?
Acredite se quiser: Tudo que é jogado ao fogo cai diretamente no Inferno. O diabo pegou
o livro e apagou as chamas nas águas do lago dos dragões vermelhos! Durante séculos,
ele procurou pessoas dignas de serem os novos proprietários dos manuscritos.
Um livro foi dado ao bibliotecário do monastério de Brooken, o monge alemão
Jonás Sulfurino, que subiu uma montanha num dia escuro de tempestade. Em meio a
rajadas de raios e trovões este opulento apóstata fez um pacto e recebeu o tomo que
ensina a confeccionar as vestes do feiticeiro, a varinha de aveleira, talismãs, bonecos
de feitiço, etc.23 Ato cont“nuo, um lavrador parisiense chamado Victor Siderol resgatou
outro volume dos Inguerimaços de S. Cypriano, depositado pelo diabo debaixo da tábua
dum quarto alugado na Rua de Saint Honore para que ele o encontrasse.24
Finalmente, o último tomo foi psicografado por um médium esp“rita inglês, Dr
Edward, incorporado pelo esp“rito de São Cipriano.25 Esse é o conto que mandingueiros
22
VIDA Y MARTIRIO DE LOS GLORIOSOS SAN CIPRIANO Y SANTA JUSTINA. Manresa, El Abanico, sem data (c.
1980-1912). 4 p; VERDADERA ORACIÓN DE LOS GLORIOSOS MÁRTIRES S. CIPRIANO Y STA. JUSTINA
ACOMPAÑADA DE LA SS. CRUZ DE CARAVACA. Manresa, Sociedad Editorial Manresana, sem data (c. 1980-1912).
16 p.
23
SCHOLTEN, Max. El Libro de San Cipriano. Barcelona, Dalmau Soc“as, p 13.
24
MR ZALOTTE. As Ciências Ocultas. Em: O GRANDE LIVRO DE SÃO CYPRIANO OU THESOURO DO FEITICEIRO.
Lisboa, J. Andrade & Lino de Sousa, sem data, Livro III, p 8.
25
MARIUS, Dorius C. O Livro Revelação de São Cipriano. Rio de Janeiro, Monterrey, 1995, p 17.
8
conhecem e repetem entre si, mas infelizmente não vivemos em Passárgada e a história
real de um livro nunca é tão divertida.
Bordas: Gravuras espanholas de 1846 onde um anjo entrega coroas de louros e
penas de escrever a Cipriano e Justina. Centro: Uma repetição do mesmo motivo
iconográfico publicada em Manresa. A tradição informa que o feiticeiro escreveu o
livro de orações da Cruz de Caravaca depois de queimar suas obras antigas.
Não tem nenhum feitiço com figuras humanas em dois dos livros do séc. XIX
cujos autores anônimos adotaram o codinome do m“tico São Cipriano: O Heptameron ó
Elementos Magicos (1810) foi impresso em Brussels por Vincio Bocatorti e reeditado em
Barcelona pela Parsifal Ediciones, em 1989.26
O Gran Gregeria (1845) foi produzido ou compilado por Antonio Venetiana del
Rabina e circulou na forma de manuscritos até o historiador Bernardo Barreiro localizar
algumas cópias e publicar em anexo ao livro acadêmico Brujos Y Astrólogos de la
Inquisición de Galicia y el Famoso Libro de San Cipriano (1885).27
Embora atribu“do a São Cipriano, muito provavelmente o autor pretendeu que
este livro fosse o segundo tomo desconhecido da Pseudomonarchia Daemonum (1563),
publicada primeiro por Johann Wierus e depois por Antonio Venetiana del Rabina sob o
t“tulo Gran Grimorio (1820). O segundo tomo segue a hierarquia demonológica do
primeiro e continua apresentando tópicos com pertinência temática, sempre misturando
magia cerimonial de inspiração judaica com o cristianismo sincrético e humor“stico da
ficção de Johann Wierus.
26
HEPTAMERON Ó ELEMENTOS MAGICOS: Compuesto por el gran Cipriano famoso majico, traducido al latin y de
este as Frances por Estehhaazy y ultimamente a la lengua castellana, por Fabio Salazar y Quincoces, ascrologo,
alquimisla y profundo naturalista. Barcelona, Parsifal Ediciones, 1989. 88 p.
27
BARREIRO, Bernardo. Brujos Y Astrólogos de la Inquisición de Galicia y el Famoso Libro de San Cipriano. Akal, 1980,
p 253-294.
9
Não consegui encontrar o Livro de São Cipriano (1849) da Typographia de D.
Antonio Moldes, cuja existência foi citada no periódico O Archeologo Português (Vol.
XXIII. Lisboa, Imprensa Nacional, 1918, p 223). É dito, com ind“cios de verossimilhança,
que os direitos de publicação da estória de Victor Siderol e outras partes espec“ficas da
antologia O Grande Livro de S. Cypriano ou Thesouro do Feiticeiro (1885) foram
vendidos pelo bibliófilo e bibliotecário espanhol D. Gumerzindo Ruiz Castillejo y Moreno
ao editor português Domingos M. Fernández e depois a Frederico Napoleão de Victória,
de mesma profissão, sendo a última negociação firmada em 25/03/1885. Esse time de
bibliófilos reuniu diversos opúsculos numa edição dividida em três tomos com
encadernação única, incluindo mais de uma mandinga com bonecos.
Esta antologia foi parcialmente traduzida e comentada com explicações
abundantes, em 1907, pelo ocultista francês Enediel Shaiah (Alfredo Rodr“guez de
Aldao). A mesma antologia se tornou a obra de referência que forneceu a maior parte
do conteúdo das variantes brasileiras. Entre os t“tulos que citam ou parafraseiam este
ancestral português, dois são tremendamente famosos: A adaptação de Murzim Gemwy
e a robusta compilação de N. A. Molina.
A editora Quaresma publicou uma variante anônima do livro de São Cipriano no
Brasil de 1939 até 1965. Certamente surgida em 1967 ou 1968, a versão de Murzim
Gemwy substituiu sua antecessora. 28 A campanha de divulgação buscou m“dias
alternativas para atingir um público jovem, leitor de histórias em quadrinhos e fãs do
cinema de terror. Na verdade tal livro foi o produto duma franquia de editoras de
quadrinhos nacionais: Impressa pela Edrel, era adquirida através de pedido de
reembolso postal remetido à editora Tróia e, logo depois, à gloriosa Taika – então
instalada no número 70 da Rua Esp“rita, no bairro do Cambuci, em São Paulo – que
anunciou repetitivamente em HQs para jovens rapazes, tais como Seleções de Terror e
Drácula.
A influência dos romances gráficos no estilo das ilustrações surgiu mais forte em
Portugal, onde Martim Avillez fez uma entrada triunfal no catálogo de chancela
ilustrando a primeira edição do Grande livro de S. Cipriano ou Tesouros do Feiticeiro
(1971), com texto adaptado pelo editor Fernando Ribeiro De Mello.
28
Apesar da capa festivamente colorida, a versão de Murzim Gemwy foi intitulada O Grande e Leg“timo Livro Vermelho
e Negro de São Cipriano porque sucedeu a O Grande e Verdadeiro Livro de S. Cypriano da editora Quaresma, que
circulou com três capas diferentes de 1939 até 1965 e cuja última edição tinha capa vermelha e negra. Na
interessant“ssima capa em preto e branco da primeira edição da Quaresma o feiticeiro destila um composto l“quido numa
retorta aquecida sobre um fogão à lenha feito de tijolos. Da fumaça sai um sátiro. Tem crânio e ossos espalhados pelo
chão. Sobre uma mesa existe um esqueleto completo, de pé, montado à semelhança dos modelos das faculdades de
medicina. Em todas as capas da Quaresma o feiticeiro tem cartas de pôquer na mesa, para adivinhação, mas a arte das
edições coloridas é comparativamente pobre e infantilizada.
10
Trata-se de um catálogo de bizarrias às quais Avillez empresta humor com uso
de vinhetas e onomatopéias próprios das revistas em quadrinhos, num estilo que varia
do traço minucioso, pleno de detalhes e meios-tons em hachuras delicadas, até ao
quase esboço. O que torna esta primeira edição da coleção Afrodite notável é o fato de
ser impressa na sua quase totalidade – capa e miolo – com cores diretas, incluindo
dourados e prateados, e num efeito de gradiente (técnica split fountain ).
O certo é que o resultado final eleva a edição a um n“vel visual que nenhuma
outra atingiu ou procurou fazê-lo, acentuando o caráter mágico e alucinante que Ribeiro
de Mello tão astutamente explorou na campanha de promoção e na sessão da
banheira , fazendo-se acompanhar por figurantes vestidos de Diabo.
As primeiras edições da obra de N. A. Molina, com 512 páginas, não tem a ficha
obrigatória com data de publicação impressa nos volumes, mas possui registro na
agência International Standard Book Number (ISBN) efetivado em 1973 pela editora
Espiritualista, do Rio de Janeiro.
Foi, portanto, naquele ano que o compilador N. A. Molina publicou o Antigo Livro
de São Cipriano: O Gigante e Verdadeiro Capa de Aço, que não tem e nunca teve capa
de metal. Houve censura parcial do conteúdo no Brasil e a obra completa em edição de
luxo saiu em Portugal, sendo vendida até hoje pela distribuidora lisbonense licenciada,
Dinalivro.
A edição portuguesa tem capa dura, preta, com letras gravadas em folha de ouro.
Essa edição é procurada no Brasil graças ao design diferenciado de algumas páginas
impressas em tinta vermelha e verde e à encadernação rústica, com t“tulo em douração,
semelhante à duma tese de doutorado.
Imagens publicadas entre 1820 e 1920: 1) Livro com falso ano de publicação. 2)
A cena do delicioso banho de fogo que não queima , no cancioneiro de El
Abanico, é uma alegoria alqu“mica cujo significado oculto ou corolário nas
11
entrelinhas remete à dúvida: Teria o criado Clar“n transformado os corpos de
Cipriano e Justina em estátuas de cera? 3) Fantasma ou estátua de Justina.
Nem os livros modernos copiam fielmente uns aos outros nem os antigos
mantém a redação dos exemplares mais remotos (exceto pela lista de tesouros da
Gal“cia que circulava clandestinamente em Toledo desde o século XVII29). Para atender
à demanda dum crescente mercado de bruxos do bem as compilações vem se tornando
cada vez mais suaves. Ao contrário dos fãs de cinema de terror, os atuais consumidores
não apreciam a leitura de receitas onde um gato seja cozido como um caranguejo.
Livros temáticos falam em feitiços e receitas que não vamos publicar porque é
melhor deixá-los nas trevas30 . Então o mandingueiro precisa virar arqueólogo colhendo
pedaços censurados. A maioria impaciente inventa ritos tão únicos quanto uma fórmula
revelada à imprensa em 1898 pelo satanista carioca Dr. Justino, que dormia com uma
navalha debaixo do travesseiro, a navalha de Cambucá, um assassino que morrera de
um tiro . Ele adaptou o malef“cio do boneco de cera com amostras de DNA e outras
exigências impares ensinadas pelo diácono apóstata Alphonse Louis Constant, no
Dogme et Rituel de la Haute Magie (1856).
Antes de furar e queimar, Dr. Justino enforcava o boneco do odiado exclamando:
Arator, Lepidator, Tentator, Soniator, Ductor, Comestos, Devorator, Seductor ,
companheiros da destruição e do ódio, semeadores da discórdia que agitam livremente
os malef“cios, peço-vos e conjuro-vos que admitais e consagreis esta imagem .31
O dragão vermelho
No conto U červeného draka (1889) o feitiço só é suplantado quando um pintor
combate a m“mica pela m“mica pintando um quadro do manequim feiticeiro. As
mandingas sobre desenhos que anulam magias seguem a mesma lógica: Aquele que
souber pintar ou desenhar poderá ver-se livre, muito facilmente, de algum fantasma que
o perseguir porque ao desenhar o fantasma, estará fazendo com que ele fique preso
29
Em 1610 a inquisição de Toledo apreendeu e destruiu El Libro de San Cipriano, cujas cópias eram feitas e
comercializadas pelo médico mouro Juan de Toledo, 25 anos. As pinturas para desencantar tesouros não expuseram
nenhuma riqueza aos clientes de Juan. (SIERRA, Julio. Procesos en la Inquisición de Toledo (1575-1610): Manuscrito
de Halle. Madrid, Trotta, 2005, p 574-575).
30
O LIVRO DE OURO DE SÃO CIPRIANO: Magias positivas para o bem. São Paulo, Escala, p 10.
31
BARRETO, Paulo. As Religiões do Rio. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1976, p 118.
12
na tela ou no papel .32 Inclusive os que se crêem perseguidos por vampiros devem
pintar numa tela esses vampiros, ou desenhá-los num papel .33
Por que alguém seria perseguido por fantasmas? Certamente porque um
feiticeiro realizou um ritual de envoûtement usando um cadáver como modelo de
representação.
Em 13/10/2012 o Programa do Pedro Augusto, na Rádio Tupi, noticiou uma
ocorrência policial inusitada. Logo depois que a mãe de Jussara faleceu, a filha escreveu
dezessete nomes de desafetos num papel e pôs a lista dentro da boca da mãe. Os
amaldiçoados ficaram sabendo e tentaram roubar o cadáver durante o velório para
retirar o papel. A pol“cia impediu a perturbação da cerimônia funerária e a falecida foi
enterrada com a lista enquanto os supersticiosos tentavam inutilmente explicar as
hipotéticas conseqüências do feitiço.
O Livro de São Cipriano de Samuel Stamm ensina o trabalho para matar alguém
onde se escreve o nome da vitima numa folha de papel branco e coloca num caixão,
aos pés do cadáver. Pede-se ao defunto que, ao partir para a eternidade, leve com ele
a tal pessoa . O pedido é repedido cochichando no ouvido do falecido34. Clarival do
Prado Valladares encontrou evidências da prática durante pesquisa de campo no Brasil:
O achado mais estranho nessas pesquisas ocorreu no velho cemitério,
de cripta, no antigo Convento de São Francisco, de Vila Velha de
Alagoas, hoje Deodoro. O cemitério em desuso, com entrada de
alçapão pela Capela do Sacramento, consta de uma cripta de cerca de
4 X 6 m em correspondência às dimensões da capela (...). Fizemos a
documentação fotográfica com um refletor que providencialmente nos
serviu para o exame detalhado das inumeráveis inscrições de nomes
de pessoas e datas recentes, até de 1965, em letras de imprensa e de
uma mesma caligrafia, enchendo totalmente o forro abobadado da
cripta. De maneira alguma aquelas inscrições, feitas a fumo de velas,
contra o reboco, poderiam corresponder aos nomes dos sepultados.
Praticamente todas as datas já estavam fora do seu uso, e nem há
sinais nem not“cias de sepultamento nestes últimos decênios.
Encontramos urnas de restos mortais trasladados, violadas, com os
ossos, cabelos e fragmentos de vestes, espalhados sobre um batente
(...). Em nossa interpretação trata-se de prática de feitiçaria, com uma
caligrafia idêntica para várias inscrições, cujos nomes não parecem ser
32
BAKKATUYU, Sirih. Livro do Touro Negro. Rio de Janeiro, Ediouro, p 76.
33
LIANO JR, Nelson e COELHO, Paulo. Manual Prático do Vampirismo. Rio de Janeiro, ECO, 1986, 97.
34
STAMM, Samuel. O Livro de São Cipriano. Rio de Janeiro, Rede Carioca, 2002, p 103.
13
de mortos, mas de indiciados do fetichismo (...). No velho Cemitério de
N. S. do Rosário (1875), das ru“nas de Iguaçu Velha, além da prática
de macumba em torno do Cruzeiro (...) há os restos da base de uma
capela-jazigo cuja entrada foi fechada por parede de alvenaria e na
qual, posteriormente, se fez uma abertura de 40 X 50 cm. Examinando
o interior desta capela-jazigo, com o foco de uma lanterna,
encontramos uma quantidade espantosa de objetos de uso pessoal
(roupas, cartas, retratos, vidros, terços, etc.) e todas as paredes
preenchidas com nomes e datas de pessoas (...). Há uma certa
semelhança entre esta observação e aquela outra de Deodoro, de
Alagoas. Nossa cautela está em diferenciar a prática ingênua da
macumba, em termos de ação votiva e de apelo, com esta outra. 35
Márcia Cristina Neves localizou uma variante onde o feiticeiro batiza um boneco
numa cachoeira com o nome da v“tima, compra objetos pontudos (alfinetes e agulhas)
nunca usados para outra finalidade, vai ao cemitério, espeta a representação
mimetizando o aviltamento do representado e enterra o boneco aos pés dum defunto
fresco, pedindo a este que o leve com ele.36
Alternativamente, enterra uma amostra de DNA num cemitério, dentro de um
pequeno caixão, para que todos os mortos persigam alguém.37 Praticantes de rituais
dif“ceis só deixam papéis nos caixões quando não conseguem enterrar bonecos aos
pés dum defunto pedindo ao fantasma que leve o vatic“nio com ele.
N. A. Molina repetiu o feitiço para sugar a vida de alguém mediante
representação. O feiticeiro faz dois bonecos: Um deles representa a si mesmo e o outro
o enfeitiçado. Amarrar e pregar o par de bonecos na cabeça cria uma relação de
dependência e subordinação. Um prego no peito absorve a saúde de um para o outro.
Um prego no ventre causa intranqüilidade. Pregos nas pernas e pés terminam de trancar
os caminhos do enfeitiçado38. De acordo com N. A. Molina, um boneco solitário é usado
com o propósito de prejudicar sem transferir a vida do enfeitiçado para o feiticeiro.
No lugar disso, o encargo de vampirizar o alheio será dado a Guland (citado pela
primeira vez no Grimoire Verum, quando se tornou personagem do folclore europeu).
35
VALLADARES, Clarival do Prado. Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros: Um estudo da arte cemiterial ocorrida
no Brasil desde as sepulturas de igrejas e as catacumbas de ordens e confrarias até as necrópoles secularizadas. Vol I.
Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, 1972, p 439-1440.
36
NEVES, Márcia Cristina A. Do Vodu à Macumba. São Paulo, Tr“ade, 1991, p 85.
37
NEVES, Márcia Cristina A. Do Vodu à Macumba. São Paulo, Tr“ade, 1991, 72.
38
N. A.MOLINA. Antigo Livro de São Cipriano: O gigante e verdadeiro Capa de Aço. (29a edição). Rio de Janeiro,
Espiritualista, p 240-241; O GRANDE LIVRO DE SÃO CYPRIANO OU THESOURO DO FEITICEIRO. Lisboa, J. Andrade
& Lino de Sousa, sem data, tomo II, p 21-23.
14
Disposta assim a figura, uma noite à hora de Saturno atravessa-a em
todos os sentidos, com agulhas ou espinhos envenenados, cobre-a de
injúrias e maldições em nome de Guland, imaginando firmemente que
tens à tua frente a mesma pessoa de corpo e alma; joga por fim o
boneco no fogo. Se tudo isto fizeres como digo, pondo toda tua fé e
força de vontade, não duvides de que, como a cera se derreterá e
consumirá, assim se consumirá a pessoa sofrendo dores agudas em
todas as partes correspondentes às feridas feitas na figura 39.
A exigência do cálculo do horário dedicado ao planeta Saturno por tabelas de
almanaques astrológicos é acessória. O cerne de caráter universal e transcendental do
rito independe de horários, da aprovação de deus ou da ação de interventores. O
hipnotizador cético faz isto sozinho. O desejo do agente é canalizado pela idealização
do fetiche e se realiza plenamente na reação alheia diante da representação.
Nos séculos passados, quando existiam muitas formas de protesto contra a
igreja católica, certos autores faziam sua parte elaborando receitas polêmicas. Da“ vem
os bonecos cheios de pó de hóstia e outros elementos vinculados. Alphonse Louis
Constant acusou necromantes ansiosos por cometer sacrilégios misturando a cera
liquefeita com óleo batismal e cinzas de hóstias queimadas: Padres apóstatas sempre
se encontravam para lhes dar os tesouros da Igreja , modelavam imagens de alta
qualidade art“stica,
davam-lhe os sacramentos
e infligiam torturas imaginárias
pronunciando todas as maldições que exprimiam o ódio do feiticeiro .40
Algumas vezes o envoûtement foi usado em protestos pol“ticos e eventos
análogos. Essa atitude não mata ninguém, mas incomoda. Achar um boneco morto que
te representa é medonho! Em 1447 a esposa do Duque de Gloucester, Roger
Brolingbroke e um feiticeiro se juntaram para acender chamas perto duma escultura de
Henrique VI, simulando a morte do monarca por insolação.41
Em algum momento entre quinze de novembro de 1894 e quinze de novembro
de 1898 um partido de oposição planejou um ritual de envoûtement que simularia a
morte de Prudente de Moraes, o Presidente do Brasil. Seria um ritual verdadeiramente
assustador e grandioso com carcaças de animais jorrando sangue para todos os lados,
mas os revolucionários desistiram porque o feiticeiro cobrou sessenta contos de réis.42
39
N. A.MOLINA. Nostradamus, a Magia Branca e a Magia Negra. (2a edição). Rio de Janeiro, Espiritualista, p 122-124.
40
LEVI, Eliphas. Dogma e Ritual da Alta Magia. Trad. Rosabis Camaysar. SP, Pensamento, 1997, p 355 e 358.
41
NEVES, Márcia Cristina A. Do Vodu à Macumba. São Paulo, Tr“ade, 1991, p 58-59.
42
BARRETO, Paulo. As Religiões do Rio. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1976, p 37.
15
Em 1900 um boneco de William McKinley, o Presidente dos Estados Unidos, foi crivado
de alfinetes e queimado nas escadas da embaixada norte-americana em Londres.
16
O Poder da Representação
A maioria das pessoas nunca leu o livro Dom Quixote, de Miguel de Cervantes,
mas não há quem não tenha escutado seu mais famoso adágio: No creo en brujas,
pero que las hay, las hay . A ironia se encaixa como uma luva nos fatos da vida real,
pois as bruxas existem e sempre estiveram à solta propagando bruxedos. O mais
famoso deles é o boneco amaldiçoado que se enche de espetos para matar alguém.
A Antropologia ensina que as pinturas rupestres eram um ensaio para controlar
magicamente o mundo. Cenas de caça da idade da pedra serviriam de alegorias através
das quais o homem buscava dominar a realidade, dela extraindo aquilo que mais
prezava: Alimento farto e fecundidade.
Porém existe uma falha nesta hipótese: Se os desenhos fossem fetiches ou alvos
de tiro, por que não estão danificados por furos de flechas, lanças, pedradas, etc.?
Talvez a melhor hipótese seja a alternativa proposta por José Gaiarsa, onde a pintura
rupestre seria a primeira história em quadrinhos que já se fez .43
Na magia cerimonial a função do feitiço de representação mnemônica é criar e
manipular o próprio vale da estranheza. A equivalência dos trabalhos ritual“sticos
provenientes de culturas dispersas em diferentes épocas e lugares demonstra a
universalidade e caráter transcendental da associação entre os modelos e imagens a
estes relacionadas no mundo das idéias.
Graças ao estudo pioneiro de Sir James George Frazer e Marcel Mauss, a escola
antropológica definiu uma teoria da magia simpática baseada em dois princ“pios lógicos:
A lei da m“mica e a lei do contato ou contágio.
A m“mica supõe fenômenos de abstração e atenção. Através dela um objeto se
liga e deve afetar àquilo que representa (similia similibus evocantur). A semelhança
duma figura com o representado pode ser convencional, pois o fetiche é integralmente
representativo. Essa imagem, boneco ou desenho, é um esquema muito reduzido, um
ideograma deformado; é semelhante apenas teórica e abstratamente .44
Da“ o corolário da magia homeopática onde o semelhante cura o semelhante
(similia similibus curantur). É por isso, por exemplo, que os brasileiros podem usar a
semente da planta Talisia esculenta, popularmente chamada olho de boi , na defesa
contra o mau olhado.
43
GAIARSA, Dr. José A. Desde a Pré-História até McLuhan . Em: MOYA, Álvaro de (org). Shazam! São Paulo,
Perspectiva, 1977, p 115.
44
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo, Cosac Naify, 2003, p 104.
17
As cartas para os mortos e bonecos depositados aos pés dos finados pertencem
à classe do que Marcel Mauss chamou de ritos de contrariedade , ritos dependentes
da noção abstrata de simpatia mimética (attractio similium) onde se espera que a morte
alheia leve uma doença ou um desafeto embora. Pegue um ovo podre e escreva nele
o nome da pessoa nove vezes , diz uma fórmula para fazer com que uma persona non
grata vá embora, Escreva, também, para onde quer que ela vá. À meia-noite atire o ovo
contra a porta da casa da v“tima .45 O ovo é uma célula tronco morta. Para gerar um
benef“cio o ritual requer um malef“cio de igual grandeza. Se o ritual for feito sem a oferta
dum sacrif“cio o ato produzirá tanto o benef“cio quanto seu contrário.46
Um exemplo trágico: Em 04/07/2014, durante os jogos da Copa do Mundo no
Brasil, a contracapa do jornal Jogo Extra destacou uma foto enviada por Yasuyoshi
Chiba mostrando bonecos confeccionados por uma loja de artigos religiosos do Rio de
Janeiro. Todos os fetiches representavam o atacante da Colômbia, James Rodr“gues,
vestindo a camisa 10, com as pernas amarradas para não ter bom desempenho ao jogar
contra a seleção brasileira. De fato, a Colômbia perdeu a chance de se classificar para
o quarto lugar, mas o atacante brasileiro, Neymar, usuário da camisa 10, fraturou a
coluna durante o jogo. No jogo seguinte a seleção brasileira perdeu de 1 x 7 para a
Alemanha. Foi a goleada mais vergonhosa da história das copas.
O escritor W. W. Jacobs levou a hipótese ao extremo no conto de terror The
Monkey's Paw (1915). No enredo uma fam“lia inglesa está sentada para jantar na
cozinha. O filho sai para trabalhar numa fábrica e os pais passam a ouvir a narrativa
dum hóspede que viajou para a Índia e voltou trazendo uma pata de macaco com poder
de realizar três desejos.
Este personagem está a ponto de lançar o talismã ao fogo quando seu
hospedeiro o detém e, a despeito de todos os esforços do sargento-mor, formula o
desejo de receber 200 libras. Logo após, batem à porta. Ali está um cavalheiro de ar
solene, que faz parte da empresa para a qual trabalha o filho da fam“lia.
Tão gentilmente quanto poss“vel, o visitante dá a not“cia de que o filho falecera
num acidente ocorrido na fábrica. Sem reconhecer qualquer responsabilidade, a
companhia manifesta suas condolências e oferece 200 libras como indenização. Os pais
estão aturdidos e desejam ver o filho de volta. De novo batem à porta. Eles intuem, de
alguma forma, que se trata do filho. Mas não em carne. O conto se encerra com a
formulação do terceiro desejo, o de que o fantasma se afaste.
45
NEVES, Márcia Cristina A. Do Vodu à Macumba. São Paulo, Tr“ade, 1991, p 73.
46
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo, Cosac Naify, 2003, p 106-107.
18
Realismo mágico
A metodologia cient“fica descarta acidentes na busca duma teoria geral da magia
(como se a criatividade fosse o excesso dum particular e não aquilo que o torna
especial). O olhar de fora abstrai conceitos de experiências onde costumes semelhantes
se equivalem, mas carece da vivencia, do sitz in leben.
Concordamos que não existem povos geneticamente inferiores, embora uns não
utilizem tecnologias tão sofisticadas quanto outros. Endossamos as palavras de
sabedoria de Victor Turner sobre a riqueza e complexidade da vida imaginativa e
emocional do homem em qualquer parte do mundo, sobretudo nas sociedades tribais:
Não se trata de estruturas cognoscitivas diferentes, mas de uma idêntica estrutura
cognoscitiva, articulando experiências culturais muito diversas .47
O problema é que, apesar de tudo, o pensamento mágico foi classificado como
um triste precursor do pensamento cient“fico, humanamente inferior ao conceito de
religião a priori. Por que haveria de ser assim?
Existem feiticeiros de ambos os sexos, de todas as etnias e classes sociais. Não
é verdade que os feiticeiros nunca sentem a necessidade de questionar a estrutura de
seus ritos; do contrário inexistiriam inovações e variantes adaptadas de geração em
geração, de boca a boca, de livro em livro. Também não é verdade que todos acreditam
na infalibilidade do ritual. Os ingênuos desistem e se afastam após falhar uma ou duas
vezes. A razão da perseverança é o contentamento com a experiência de realismo
mágico per si.
O problema dos antropólogos é que eles procuram sempre olhar para baixo.
Você só vê a mandinga ganhar forma se olhar para cima e para os lados onde os
semelhantes se atraem, mas também se repelem e competem entre si.
Encantada pelos saquinhos de pó de amor, gotas de atração, óleo do inferno,
diabinho na garrafa e pelo negro bel“ssimo que vendia tudo aquilo numa loja vodu no
Plaza de Aemas, em Nova Orleans, a brasileira Maria Helena Farelli interrogou-o sobre
feitiços pesados. O mandingueiro norte-americano mostrou bonecos feios e retorcidos
repetindo uma fórmula do Picatrix. 48
Sem nenhuma obrigação moral ou profissional de acatar aquilo, Maria Helena
não deixou de revelar sua decepção pelo aspecto da figura de pó de pedra misturada
com goma, preparada por um especialista no assunto, pois ela estava acostumada com
47
48;
TURNER, Victor W. O Processo Ritual. Trad. Nancy Campi de Castro. Petrópolis, Vozes, 1974, p 15.
FARELLI, Maria Helena. A Magia do Vodu. Rio de Janeiro, Luz de Velas, 1995, p 31-33 (livro com citação do Picatrix
traduzida em: Homem, Mito & Magia. São Paulo, Três, 1973, p 45).
19
as figuras de cera brasileiras e galegas, vendidas em lojas de Umbanda e barracas de
ex-votos. Tais peças chegam ao n“vel art“stico do estatuário quando feitas por latinos
com talento para artesanato.
Cabeça de cera para feitiço ou ex voto.
(Foto © 16/02/2014, Gitano Blanco).
O vulto é um suporte de feitiçaria dirigida. Na tradição das Américas e Europa
existe a crença de que a probabilidade de êxito do feitiço é diretamente proporcional à
semelhança da representação perante seu modelo. O verbo francês envoûter vem da
raiz latina vultus, que descreve a face de algo ou alguém.
O feitiço de representação mnemônica, envoûtement, requer a posse dum vulto
plano (desenho ou foto) ou tridimensional (estátua, boneco, relevos). Em francês, o
boneco artesanal produzido para este fim se chama dagyde. Não existe uma explicação
lógica para este nome. Muitos livros dizem que vem do grego, mas é mentira. Dagyde
é a fonética aproximada do nome eg“pcio dum amuleto de múmia animal.
No oeste africano o termo juju – aplicado a objetos com poderes sobrenaturais –
derivou da raiz francesa joujou (brinquedo comum). O exorcista brasileiro Hans Holzer
acredita que o feiticeiro entra num estado de exaltação e del“rio, alcançado por meio
de drogas aromáticas ou auto-hipnose; formula o ato de morte em sua mente, com a
miniatura (dagyde) nas mãos e em frente de seus olhos .49 Isso não é sempre verdade.
No século XIX poucas coisas pareciam tão interessantes quanto ver cientistas
fazendo feitiço! Foi na França que a fotografia se tornou uma alternativa tecnológica
para o envoûtement. A primeira experiência que logrou transportar a sensibilidade de
49
HOLZER, Hans. A Verdade Sobre a Bruxaria. Record, p 193-194. Em: LIMA, Luiz da Rocha. A Luta Contra a Bruxaria.
Rio de Janeiro, Educandário Social Lar de Frei Luiz, 1987, p 214-215.
20
um paciente para uma placa fotográfica foi realizada pelo Coronel Eugène Auguste
Albert de Rochas d'Aiglun e publicada nos jornais La Justice (edição de agosto de 1902)
e L’Initiation (vol. XVII, n.º 2, de novembro de 1892). Este experimentador esp“rita reuniu
voluntários que foram postos em estado de sono hipnótico. Com os céticos nem a
hipnose funcionou, mas os comprometidos com a causa fizeram a mágica acontecer.
A cada voluntário foi solicitado que segurasse cera de abelhas, pomada de cera
de abelhas com óleo de oliva, copo com água, lã ou uma chapa de gelatinobromuro
(filme das máquinas fotográficas daquela época). Eles foram instru“dos a crer estar
transferindo sensibilidade para estes objetos. Então cada chapa fotográfica foi usada
para fotografar o seu respectivo possuidor, reforçando a sugestão hipnótica e a base
metodológica.
Uma estatueta confeccionada com cera de modelar e sensibilizada,
colocada alguns instantes em face e a uma pequena distância de um
paciente, reproduzia neste as sensações das picadas que eu fazia na
cera; ora no alto do corpo, se eu picava a figura na cabeça, ora na parte
inferior, se eu a picava nos pés. (...). Cheguei a localizar exatamente a
sensação, colocando, como os antigos feiticeiros, na cabeça de minha
figurinha, uma mecha de cabelos cortada da nuca do paciente durante
seu sono hipnótico (...). Uma placa carregada de gelatinobromuro e um
aparelho fotográfico me permitiram realizar facilmente a experiência
que só teve êxito completo quando eu tive o cuidado de carregar a
placa de sensibilidade do paciente antes de a colocar no aparelho.
Mas, operando assim, obtive um retrato tal, que se o magnetizador
tocava um ponto qualquer do rosto ou das mãos sobre a camada de
gelatinobromuro, a paciente sentia a impressão no ponto exatamente
correspondente; e isto não só imediatamente depois da operação, mas
ainda três dias depois, quando o retrato foi fixado e colocado perto da
paciente. Esta parecia nada ter sentido durante a operação de fixagem,
feita longe dela, e sentia igualmente bem pouco quando se tocava, em
lugar da camada de gelatinobromuro, a chapa de vidro que lhe servia
de suporte.
Querendo levar a experiência o mais longe poss“vel e
aproveitando a presença ali de um médico, piquei violentamente, sem
prevenir e por duas vezes, com um alfinete, a imagem da mão direita
de Mme. L..., que soltou um grito de dor e perdeu os sentidos por um
instante. Quando voltou a si, observamos sobre o dorso de sua mão
duas raias vermelhas sub cutâneas que ela não tinha antes, e que
21
correspondiam exatamente às duas arranhaduras que meu alfinete
havia feito sobre a camada gelatinosa.50
Outros experimentadores reuniram voluntários diferentes e publicaram
resultados parecidos. Dr Luys conseguiu transmitir a sensibilidade a trinta e cinco metros
alguns instantes depois da pose . D’ Arsac logrou êxito e publicou no jornal Paris-
Bruxelles de 12/10/1862, mas, em sua opinião, tudo seria efeito de sugestão porque na
ausência do hipnotizador, podia-se, nove vezes sobre dez, picar o retrato, sem que a
hipnotizada sentisse dor alguma 51 . Nunca a paciente experimentou a menor dor,
quando o clichê era picado por uma pessoa que ignorasse a finalidade da experiência.
Desenho de pontos de acupuntura do método francês adaptado pelo Dr Albert
Leprince, autor dos livros L'Acupuncture chinoise: Méthode française (1935) e
Envoûtements Roman (1947). Para ele, espetar agulhas em certas partes dos
seres humanos ou de suas fotos causa a mudança no ânimo do influenciado.
Os ritos de ódio concentram a fúria, a paixão e outros sentimentos marcantes na
representação mnemônica. A tortura simulada mais conhecida é aquela onde o feiticeiro
espeta o vulto proferindo pragas e palavras de baixo calão, mas o exerc“cio da
50
PAPUS. Tratado Elementar de Magia Prática. Trad. E. P. São Paulo, Pensamento, 1978, p 397-400.
51
PAPUS. Tratado Elementar de Magia Prática. Trad. E. P. SP, Pensamento, 1978, p 400-401, nota 20.
22
imaginação é livre. A relação de oferta e procura por figuras de cera descartáveis, no
ocidente, atende ao critério de menor preço e melhor técnica. Parafina custa pouco, é
reciclável e mais fácil de modelar do que pedras e resinas de secagem rápida. Então
quando um brasileiro pensa em adquirir bonecos para causar benef“cios ou malef“cios
a si mesmo ou outrem ele quase sempre acaba comprando uma imagem de parafina
industrial numa loja de artigos religiosos.
Prevejo um futuro aonde a aparência dos vultos de uso perene – feitos para
amarrar o amor ou adquirir benef“cios semelhantes aos idealizados no conto O Retrato
de Dorian Gray (1890), de Oscar Wilde, – chegará cada vez mais perto do ideal. (Dizem
as más l“nguas que noutros pa“ses já tem gente fazendo feitiçaria com esculturas de
impressora 3D). Por outro lado, os vultos descartáveis continuarão a ser toscos e
baratos. Como pode ser isso? A similitude impressiona mais que o contato. Uma
escultura impecável é o que todos desejam; porém é dific“limo encontrar um feiticeiro
habilidoso que aceite trabalhar duro esculpindo algo que será rapidamente destru“do.
Sir James George Frazer descreve o princ“pio do contato ou contágio
enunciando que coisas que alguma vez tiveram contato entre si continuam a agir umas
sobre as outras a distância, mesmo depois de interrompido o contato f“sico .52 A idéia
requer a premissa de existência dum intermediário material, semelhante ao éter da
f“sica, que une objetos distantes e leva as impressões de um para o outro. Para Marcel
Mauss as partes estão ligadas entre si de uma maneira necessária e cada fragmento
vale pela coisa inteira (Totum ex parte): Os dentes, a saliva, o suor, as unhas, os
cabelos representam integralmente a pessoa .53 Da“ o adágio popular francês avoir une
dent contre quelqu’ún.
O princ“pio do contágio pelo contato não engloba somente as amostras de DNA,
como também atinge a própria personalidade jur“dica e àquilo sobre o qual o indiv“duo
exerça ou haja exercido direito à posse e propriedade. Sendo assim, figuras humanas
podem servir alternativamente ou cumulativamente como representação mnemônica e
v“nculo de contato por contágio: Os objetos que usa habitualmente, brinquedos e
outros, são assimilados às partes destacadas do corpo .54
O feitiço melhora quando dois atributos se confundem: Quem nunca viu uma
obra de ficção ou caso concreto onde dois apaixonados fazem bonecos de si mesmos,
trocam o par no dia dos namorados e, depois, um fica alfinetando a réplica do outro
quando o casal briga por qualquer razão?
52
FRAZER, J. G. The Golden Bough. Em: Homem, Mito & Magia. São Paulo, Três, 1973, p 46.
53
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo, Cosac Naify, 2003, p 100.
54
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo, Cosac Naify, 2003, p 111.
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Numa infinidade de casos semelhantes nem sequer estamos diante de
esquemas distintos de noções e de ritos, mas de entrecruzamentos, da magia a priori.
Quem nunca brincou de desenhar verrugas, chifres, etc., e rasgar fotos de jornal dum
cantor desafinado ou panfletos dum pol“tico odiado?
A busca da facilidade e o avanço tecnológico se chocam contra a lei de contato,
pois tem se tornado cada vez mais raro o habito de misturar amostras de DNA (unhas,
cabelos, dentes de leite, etc.) na composição da parafina liquefeita em banho-maria,
costurar trajes de bonecos com tecido de roupas “ntimas, etc. A influência da tradição
oriental resolveu o impasse transformando o próprio boneco num objeto de uso pessoal
do enfeitiçado. Finalmente, o método mais ético e higiênico conquistou espaço nos
lugares mais inusitados.
Na magia simpática o vivo recebe benef“cios, malef“cios ou influência por
intermédio da representação. Assim como a crendice popular afirma ser poss“vel
infringir supl“cios em pessoas vivas picando bonecos com alfinetes, há variantes onde
se castiga o esp“rito do santo que não faz milagres. O exemplo mais conhecido é o
costume de pendurar a imagem de Santo Antônio de cabeça para baixo dentro de um
poço até ele cumprir a função de cupido arrumando um marido para sua devota! O morto
recebe um meio de permanecer presente no mundo dos vivos por meio das imagens,
podendo receber oferendas e escutar rezas com pedidos de intervenção. É por isso que
alguns religiosos rezam diante de imagens que representam santos falecidos.
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