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Dadoslnlemacionals de Calalogaçã:o na Publlc.>Ç!o(CIP]
(Cámara Brasileira do Uvro, sr, Brasil)
Liminar
Paz, Qclavl0, 1914
A dupla chama / Octavl0 Paz; lraduç~o Wlildir
Dupont.-5.l.oPauJo
:Siciliano, 1994.
(
ISBN 85-267-0650-<1
1. Amor
2. EnsaJos mexiam""
(
3. Erotismo
I. T!lulo.
CDD-M864
94-1067
lndlces p•.•.a calálogo .lotemático:
Quando se começa a escrever um livro? Quanto tempo
demoramos para escrevê-Io? Perguntas aparentemente fáceis,
mas na verdade árduas. Se me atenho a fatos exteriores, comecei estas páginas nos primeiros dias de março deste ano e
tenninei em fins de abril: dois meses. A verdade é que comecei na minha adolescência. Meus primeiros poemas foram de
amor e desde então esse tema aparece constantemente em
minha poesia. Fui também um ávido leitor de tragédias e comédias, romances e poemas de amor - dos contos das Mil e
uma noites a Romeu ejulteta e A cm1uxa de Parma. Essas
leituras alimentaram minhas reflexões e iluminaram minhas
experiências. Em 1960 escrevi meia centena de páginas sobre
Sade, nas quais procurei traçar as fronteiras entre a seh'Ualidade animal, o erotismo humano e o domínio mais restrito do
amor. Não fiquei inteiramente satisfeito, mas aquele ensaio
serviu para que eu percebesse a imensidão do tema. Em 1995
vivia na Índia; as noites eram azuis e elétricas como as elo
poema que canta os amores de Krishna e Radha. Enamoreime. Então decidi escrever um pequeno livro sobre o amor
que, partindo da conexão íntima entre os três campos - o
1. Ensaios: Uleroturo mexicana M86~
Título original: Tile doub/e flame
© 1993 by Octavio Paz
Düeitos exclusivos para O Brasil cedidos à '
Agência Sicilíano de Livros, Jornais e Revistas Ltda.
Av. Raimundo Pereira de Magalhães,3305
CEPD5145-200 - São Paulo - Brasil
Coord. editorial: Ana Ernília de Oliveira
Revisão: Sílvia S. Ribeiro e Sheíla T. Fabre
Editora Siciliano, 1994
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sexo, o erotismo e o nmúr -, fosse uma explornção elo sentimento amoroso. Fiz algumns anotações. Tive de parar: obrigações circuns[(Jnciais me forçaram a adiar o projeto, Deixei
a Índia e uns dez anos depois, nos Estados Unidos, escrevi
um ensnio sobre Fourier no qual voltei a algumas daquelas
idéias esbopdas
em minhas anotações. Outras preocupações e trabalhos, novamente, se interpuseram. Meu projeto
ficava cada vez mais longe. Eu não podia esquecê-Io, mas
wmpouco tinha ânimo para executá-Io.
Passaram os anos, Continuei escrevendo poemas que,
com freqüência, eram ele nmor. Neles apareciam, como frases
musicais recorrentes - tnmbém como obsessões -, im8gens que eram a cristalização ele minhns reflexões, Não será
difícil para um leitor que tenhn lido meus poemas encontrar
pontes e correspondências
entre eles e est.1S p:íginas. Para
mim, a poesin e o pens'lmento S:lO um sistema único, A fonte
de Jmbos é a vicia: escrevo sobre o que vivi e vivo. Viver também é pensar e, ?ts vezes, atravessar eSSGfronteira na qual
sentir e pensJr se fundem: isso é poesia, Nesse meio tempo,
o papel em que havia rascunhado minhas anomções n<:tÍndia
foi amarelando e algum:.ls p::iginas se perder<:tm n:.lSmudanças e vi:lgens. Ab::1I1doneia idéi::l de escrever o livro,
Em dezembro pJssac1o, ::10reunir alguns textos p::Ira uma
coleção de ensnios (Jdeas Y cOS!lIl/Jbres), lembrei cbquele livro tantas vezes pensado e nunca escrito. Ivbis que pena,
senti vergonhn: não era um esquecimento, era 1.1111:1
traição.
Passei algLlmas noites em c1al'O, roído pelo remorso. Senti a
necessidade de voltar a minha idéia e realiz::i-Ia. Mas eu me
detinha: n50 era um pouco ridículo, no final de minha vida,
escrever um livro sobre o amor? Ou era um ndeus, um testa-
~
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I
De repente, uma manhã, lancei-me a escrever com uma espécie de alegre desespero. À medida que avançava, surgiam
novas visões, Pensara em um ensaio de umas cem páginas e
o texto se alongava mais e mais com imperiosa espontaneidade, até que, com a mesma naturalidade e o mesmo império, deixou de fluir. Esfreguei os olhos: escrevera um livro.
Minha promessa estava cumprida.
Este livro tem uma relação íntima com um poema que escrevi há poucos anos: "Carta de creencia". A expressão designa fi carta que levamos con05CO para sermos acreditados por
pessoas desconhecidas; neste caso, a maioria de meus leitores. Também pode ser interpretada como uma ealta que contém uma declaração de nossas crenças. Pelo menos é esse o
sentido que lhe dou. Repetir um título é feio e se presta a confusões. Por isso preferi outro de que, além disso, eu gosto: A
dupla chama. Segundo o Dicionário de autoridades, a chama é "a parte mnis sutil do fogo, e se eleva em figura piramidal". O fogo original e primordial, a sexualidade, levanta a
chama vermelha do erotismo e esta, por sua vez, sustenta outra chama, azul e trêmula: a do amOl'oErotismo e amor: a dupla chama da vida.
OCTAvro PAZ
México, 4 de maio de 1993
mento? Babnçava a cabeça, pensando que Quevedo, em meu
lugar, teria aproveitado a ocasião para escrever um soneto satírico. Procurei pensar em outras coisas; foi inútil: :1idéia do livro n:1Ome deb::avJ. Passei v;1rias semanas cheio de dúvidas,
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Os reinos de Pã
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A realiel;1e1esensível sempre foi pnra mim uma fonte de surpresas, e também de evidências. Num ~lltigo já remoto, de 1940,
aludi à poesí::l como 'iO testemunho dos sentidos". Testemunho
veríclic~~gens
silo palpáveis, visí;:;e1Sê :lllc1íveis.É verdncle, ::lpoesin é feita ele IXlbvras enlaçadas que emicem reflexos, vislumbres e nuances: o qLle ela nos ensina sào realidacles
ou ilusões? Rimbaucl disse: "Etj'ai vu ce que l'bommea cri I voir"
Fusão ele ver e crei: Na conjunção destas duas palavras está o
segredo da poesia e de seus testemunhos: aguil<2.-Cj.JJe
nos mOS::....
Çl:~.o..poen1a ..n.âove.~~C:º_~1.:l.E
. Q~~9JLºlhQ~ftfl.n}aE~ri~I,._t=..,slm
~i~º$jfº~~~J~l:Tro:'A
i)oesb nos faz tocar o impalpável e escutar a maré cio sITéi1ciocobrindo uma paisagem devastada pela
insônkl. O resrerl1L\l1hopoético nos revela ourro mundo dentro
desre, O munelo outra que é este munclo. Q~L§S:DJi.Ç!9?!jt;n1º~rder seus poderes, convertem-seenl selvido.res d;:lul1aginaçào e
nos fazem ouvir o inaudito e ver o imperceptível. Não é isso,
afinal, o que acontec:e no 5011ho e no encentro eróticQLTnl!!(?
nos sonhos como no <:Irasexual nbraçamos f:1l1tpsmas. Nosso
p::lrceiro rem corpo, rosto e nome, mas sua realidade, precisamente no mamemo mais intenso do abraço, dispersa-se em
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uma cascata de sensações que, por sua vez, dissipam-se. Há
uma pergunta qu~ se fazem todos os apaixonados e que condensa em si o mistério erótico: "Quem é você?" Pergunta sem
resposta ... Os sentidos sàQe oão sãQ d~ste m\.mdo. Por meio
deles, a poesia ergue uma ponte entre o ver e o crel~ Por essa
pome a imaginação ganha corpo e os corpos se conveltem em
imagens.
A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer,
sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal. Ambos são feitos de umá oposição
complementar. A linguagem - som que emite sentido, traço
material que denma idéias corpóreas - é c<tpazde dar nome
ao mais fugaz e evanescente: a sensação; por sua vez, O~l"9tismo não é mera sexualidade animnl- é cerimônia, representaçiio. O erotismo é ..:;exualjcladetransfigurada: metáfora.
Aimaginn'ç{'[óéó<lgenteque move o ato erótico eopoérico.
rÉ a potência que transfigura o sexo em cerimônia e ri(Q e a
linguagem em ritmo e metáfora. A imagem poética é abraço
de realidades opostas e a rima é cópula de sons; a poesia erotiza ;] linguagem e o mundo porque ela própria, em seu
l110dQde operaçào, já é erotismo. E elamesma forma o erotismo é uma metáfora da sexualidade animal. O que diz essa
metáfora? Como toclas <lS metáforas, designa algo que está
<llémda r-ealícladeque lhe dá origem, ,ligo novo e distinto dos
termos que a compõem. Se Góngora diz pLÍlpura nevada, inventa ou descobre uma realidade que, embora feita ele ambos, não é sangue nem neve. O mesmo aconrece con1J?~e.LC:>tismo. Diz, ou melhor, é alguma cois<tdiferentecla mera s~-:
x'Ualidade.
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Embora as maneiras de relacionar-se sejam muitas, o ato
seÀlwlsignifica sempre a mesma coisa: reproduçtio. O erotismo é sexo em ação mas, seja por desviá-Ia ou por negá-Ia,
suspende a finalidade da fLll1çàosexual. Na sexualidade o pr:1zer serve p:1l"aa procriaç:Jo; nQSrituais eróticos o prazer é um
j/
fim em si mesmo ou tem finalidades diferentes da reprodução. A esterilidade não é só uma nota freqüente do erotismo,
mas também, em certas cerimônias, uma de suas condições.
Algumas vezes os textos gnósticos e tântricos falam do sêmen
retido pelo oficiante Ou derramado no altar. Na sexualidade a
violência e a agressão são componentes necessariamente ligados à copulação e, assim, à reprodução; no erotismo, as
tendências agressivas se emancipam, quero dizer, deixam de
servir à procriação e se tornam fins autônomos. En:~resumo, a
metáfora sexual, por meio de suas infinitas variações, significa sempre reprodução; a metáfora erócica, indiferente à perPftuação da vida, interrQmpe a reprodução.
/~lr_-ÔJelação da P?esiaS9m a ling.u.ag.e.rru;::~e.melh2.Dle.i
do
lI' er()ti~~2_~211:l
..~.S~~~.~~~~~ge.'I'aI1:lbéIl1
no PCleI12a.=cristalizaçãQ ~erb~l ;. a yngu.a~e~ se d~svia de sell fi~1~a~1:~L.a
comul1lcaçao:. dlsposlçao lmear e uma caractenSClcaõaSlCa
da linguagem; as palavras se enlaçam umas às outras de forma que a fala pode ser comparada a um veio de água correndo. No poema a Jinearidade se torce, acropela seus próprios
passos, serpemeia: a linha reta deixa de ser o arquétipo em
favor do círculo e da espiral. Há um momento em que a linguagem deixa de deslizar e, por assim dizer, levanta-se e
move-se sobre o vazioj há outro em que cessa de fluir e transforma-se em um sólido transparente - cubo, esfera, obelisco
- plantado no centro da página. Os significados congelamse ou dispersam-se; de uma forma ou de outra, negam-se. As
palavras não dizem às mesmas coisas que na prosa; o poema
já não aspira a dizer, e sim a ser. A poesia interrompe a comunicação como o erotismo, a reprodução.
Diante dos poemas herméticos nos perguntamos perplexos: o que querem dizer? Se lemos um poema mais simples,
nossa perplexidade desaparece, não nosso assombro: nessa
mesma linguagem límpida - água, ar - estão escritos os livros de sociologia e os jornais? Depois, passado o assombro,
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não o encantamento, descobrimos que o poema nos propôe
outra classe de comunicação, regida por leis diferentes das
do intercâmbio de notícias e informações. A linguagem do
poema é a do dia-a-dia e, ao mesmo tempo, diz coisas distintas das que todos dizemos. Esta é a razão do receio com que
as igrejas sempre viram a poesia mística. São João da Cruz
não queria dizer nada que fugisse dos ensinamentos da Igreja; apesar disso, sem querer, seus poemas diziam outras coisas. Os exemplos poderiam se multiplicar. A_p~riculosidade
da poesia é inerente a seu exercício e é const;:mte.emrÇldàsas
épocas e em todos os poetas. Há sempre urna rachadura entre o dizer social e o poético: a poesia é a outra voz, como eu
disse em outro texto. Por isso é, ao mesmo tempo, narural e
perrurbadora sua correspondência com os aspectos do erotismo, negros e brancos, de que falei antes. Poesia e erotismo
nascem dos sentidos, mas não terminam neles. Ao se soltarem, inventam configurações imaginárias - poemas e cerimônias.
Não tenciono aqui me deter .'1asafinidades entre a poesia
e o erotismo. Em outras ocasiões explorei o tema; agora eu o
evoquei como introdução a um assunto diferente, embora intimamente associado à poesia: o amor. Antes de tudo é preciso distinguir o amor propriamente diw do erotismo e da sexualidade. Há uma relação tão íntima entre eles que com freqüência são confundidos. Por exemplo: às vezes falamos da
vida sexual de fulano ou beltrano, mas na realidade nos referimos a sua vida erótica. Quando Swann e Odette falavam de
jaire catleya não se referiam simplesmente à cópula; Proust
nota: "Aquela maneira particular de dizer jazer amor não significava para eles exatamente o mesmo que seus sinônimos".
O ato erótico se desprende do ato sexual: é sexo e é outra
coisa. Além disso, a palavra-talismã catleya tinha um sentido
para Odette e outro para Swann: para ela designava certo
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prazer erótico com certa pessoa e para ele era o nome ele um
sentimento terrível e doloroso: o amor que sentia por Oc1ette.
Não é estranha a confusão: sexo) erotismo e amor são aspectos do mesmo fenômeno, manifestações do que chamamos
vida. O mais antigo dos três, o mais amplo e básico, é o sexo.
É a fonte primordial. O erotismo e o amor são formas derivadas do instinto sexual: cristalizações, sublimações, perversões e condensações que transformam a sexualidade e a tornam, muitas vezes,.incognoscível. Como no caso dos círculos
concêntricos, o sexo é o centro e o pivô dessa geometria passional.
O domínio do sexo, embora menos complexo, é o mais
vasto dos três. Contudo, apesar de imenso, é apenas província ele um reino ainda maior: o da matéria animada. Por sua
vez, J l11rltérinviva é só umn pnrcel:.l do universO. É muito
provável, embora ainda não saibamos com certeza, que em
outros sistemas sobres de outras gal~xias existam p\;)net:1s
com vida semelhJnte fi nossa; muito bem, por mais numerosos que possam ser esses planetas, a vida continuaria sendo
uma ínfima parte do universo, uma exceção ou singularidade. Tal como concebida pela ciência moderna e até onde
nós, os leigos, podemos compreender os cosl11ólogose os físicos, o universo é um conjunto de galáxias em perpétuo movimento de expansão. Cadeia de exceções: as leis que regem
o movimento do 1,,!Diverso
macrofísico não são, segundo parece, int.eiramente aplicáveis ao universo elas partículas elementares. Dentro dessa grande divisão, aparece outra: a da
matéria animada. A segunda lei da termoclinâmica, a tendência à uniformidade e à entropia, dá lugar a um processo inverso - a individuação evolutiva e a incessante produção ele
espécies nov8S e de organismos diferentes. A flecha da biolo- .
gia parece disparada em sentido contrário ao elaflecha da física. Aqui surge 01.1trnexceção: as células se multiplicam por
gemaçào, esporulação e outras modalidades, ou seja, por
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partenogênese ou autodivisão, salvo na pequena ilha em que
a reprodução se realiza pela união de células de sexo diferente (gamems). Essa pequena ilha é a da sexualidade, e seu
domínio, bem mais reduzido, abarca o reino animal e celtas
espécies do reino vegetal. O gênero humano divide com os
animais e com celtas plantas a necessidade de se reproduzir
pelo métOdo do acoplamento, e não pelo mais simples da autodivisão.
Uma vez delimitadas, de forma sumária e tosca, as fronteiras da sexualidade, podemos traçar uma linha divisória entre
esta e o erotismo. Uma linha sinuosa e não poucas vezes violada, seja pela erupção violenta do instinto sexual seja pelas
incursões da fantasia erótica. Ames de tudo, o erotismo é exclusivamente humano; é sexualidade socializada e transfigurada pela imaginação e vontade dos homens. A prímeira coisa
que diferencia o erotismo da sexualidade é a infinita variedade de formas em que se manifesta, em todas as épocas e em
todas as terras, O erotismo é invenção, variação incessante; o
sexo é sempre o mesmo, O protagonista do ato erótico é o
sexo ou, 1118isexatamente, os sexos. O plural é obrigatório
porque, incluindo os chamados prazeres solitários, o desejo
sexual inventa sempre um parceiro imaginário ... ou muitos,
Em todo encontro erótico há um personagem invisível e sempre mivo: a ím8ginação, o desejo. No ato erótico intervêm
sempre dois ou mais, nunca um, Aqui aparece a primeira diferença entre a sexualidade animal e o erotismo humano: neste,
um ou mais participantes podem ser um ente imaginário. Só
os homens e as mulheres copulam com íncubos e súcubos.
As posições básicas, segundo os antigos e as gravums de
Júlio Romano, são 12, m8S as cerimônias e jogo"s eróticos são
inumeráveis e mudam continuamente pela açào constante do
desejo, pai da fantasia. O erotismo varia de acordo com o clima e a geografia, com a sociedade e a história, com o indivíduo e o temperamento. Também com a ocasião, a sorte e a
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inspiração do momento. Se o homem é uma criatura 'ondulante', o mar onde se move é regido pelas ondas caprichosa ~
do erotismo. Esta é outra diferença entre a sexualidade e (
erotismo. Os animais copulam sempre da mesma forma; 0<
homens se olham no espelho da universal copulação anim;;lI.
Ao imitá-Ia, tn.1nsformam a ela e também sua própria sexualidade. Por mais estranhos que sejam os ajuntamentos animais,
uns ternos e olltros ferozes, não há mudança alguma neles. O
pombo voa e ronda a fêmea. A mama" devora o macho depois de fecuncbda, mas esse processo é o mesmo desde o
princípio, Aterradora e prodigiosa monotonia que se converte, no mundo do homem, em aterradora e prodigiosa variedade.
No seio da natureZ8 o homem criou um mundo à parte,
composto por esse conjunto de práticas, institLlições, ritos e
idéias que chamamos cultura. Em sua raiz, o erocismo é sexo,
n<lturez(l; por ser uma criação e por suas funções na sociedade, é cultura. Uma das finalidades do erotismo é domar o
sexo e inseri-Io na sociedade. Sem sexo não h5 sociedade,
pois não há procriação; mas o sexo cambém ameaça a sociedade. Como o deus Pfi, é criação e destruição. É instinto: tremor, pânico, explosão vital. É um vulcâo, e cada um de seus
estalos pode cobrir a sociedade com uma el'Llpçâo de sangue
e sêmen. O sexo é subversivo: ignora as classes e hierarquias,
as artes e as ciências, o dia e a nOite; dorme e só acorda para
fornicar e voltar a dormir. Nova diferença com o mundo animal: a espécie humana padece de uma insaciável sede sexual
e não conhece, como os outros animais, períodos de excitação e períodos de repouso, Ou dito ele outra form8: o homem
é o único ser vivo que n50 dispõe de uma regulação fisiológica e rt1.1tonütica ele sua sexualidade.
Assim como nas cidades modernas Oll nas ruínas da Antiguidade, figuras do falo e da vulva às vezes 8parecem nas pe• Um tipo de peL'(eque cheg~ ~ ter seis toneladas de peso
(1'1,
do T.).
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dras dos altares Oll nas paredes das larrinas. Príapo em ereção
perpérua e Astarte em sinuoso e eterno cio acomp::tnham os
homens em todas as suas peregrinações e aventur8S. Por isso
tivemos de invent:1r regms que ao' mesmo tempo canalizam o
instinto sexu81 e protegem ri sociedade de seus excessos. Em
todas as sociedades há um conjunto de proibições e tablls também de estímulos e incentivos - destinados a regular e
control:1l' o instinto sexual. Essas regras servem simultaneamente 8 sociedade (cultura) e 8 reprodução (n<uurez8). Sem
elas a família se desintegraria, e com esta toda a sociedade.
Submetidos à perene descarga elétrica do sexo, os homens
inventaram um párn-raios: o erotismo. Invenção equívoca,
como todas as que idealizamos: o erotismo propicia a viclrt e
a morte. Começa a se desenhar agora com maior precisc'io a
ambigliicbcle do erotismo: é repressão e permissão, sublimação e perversão. Nos dois casos, a função primordial da sexu::dicbde, a reproc1uç:'io, fica subordin:1cla a outros fíns uns sociais e outros individuais. O erotismo defende a sociedade dos assaltos eb sexualiebde, mas também nega a função
reproduriva.
É
o c<1prichoso servidor da vida e da morte.
As regras e instituições destinacbs a domm o sexo são numerosas, call1bbntes e contraditórias. SerirI inLltil enumer:i·
Ias: vão do tabu do incesto ao contrato de casamento, da castidade obrigatórirI à legislação sobre os bordéis. Suas mudanças desafiam qualquer tentativa de classific3Ç50 que nc'ioseja
do tipo burocr::ítico: todos os dias aparece umrI nova prática e
desaparece outra. Toe!rIs ebs, porém, são compostas de dois
termos: a abstinência e a permissão. Nem uma nem outra são
absolutas. Explica-se: a saúde psíquica cb sociedade e a eswbilidade de suas instituições dependem em grande p(l,rte cio
diálogo contraditório entre ambas. Desde os tempos mais remotos as socied:1des paSS:1111por períodos de Glstidrlde ou
continência seguidos de outras desenfreados. Um exemplo
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imediato: 8 Qumesma e o Carnaval. A Antiguidade e o Oriente conheceram rambém este ritmo duplo: a bacanal, a orgia, a
penitência pública dos astecas, as procissões cristãs de desagravo, o Ramadã dos muçulmanos. Numa sociedade secular
como a nossa, os períodos de c8stidade, quase todos associados ao calendário religioso, desaparecem como práticas coletivas consagradas pela tradição. Não importa; conserva-se in[acto o caráter duplo do erotismo, embora varie seu fundamento: deLxa de ser um mandamento religioso e delico para
se converter em uma prescrição de ordem individual. Essa
prescrição quase sempre tem um fundamento moral, embora
às vezes recorrCl à autoridade da ciência e da higiene. O
medo ela doença não é menos poderoso que o temor à divindade ou que o respeito à lei ética.~~P2E~~~.~~~::.:~e~~~_~z.~.::?
de~poj~:la (!esua a:lré?lal~~1...
ig!,~S;'1J1Ji~!.12!.~LK§S~Slg.~E~tismo:
fascil1ãçãQ~çn;''LDç~::'ªª,:Ylç[~j~;.gL~l1.te
da mOlte. O significado da
metáfora erótica é ambíguo. Men10'í'~Cl:tzerrdo,é plural. Diz
muitas coisas, toelas diferentes, mas em todas elas aparecem
duas p8lavras: prnzer e mOlte.
Nova exeeç::lo dentro da grande exceçào que é o erotismo cli;:lI1tecio munclo animal: em certos casos a abstenção e a
permissão, longe de serem relativas e periódicns, S30 absolutas. São os extremos elo erotismo, seu pontO de superação e,
de certa forma, sua essência. Digo isso porque o erotismo é,
em si mesmo, desejo - um elispClro em direção a um mais
Cllém. Observo qlle o ideal ele uma castidade incondicional
ou ele uma permissão n50 menos incondicional são realmente ideais; quero dizer, muito poucas vezes, talvez nunca, podem se realizar conlpletamente. A castidade do monge e da
freira é conrinu8mente ameapda pelas imagens lúbricas que
aparecem 110S sonhos e pelas poluções noturnas; o libeltino,
por sua vez, passa por períodos de saciedade e de sClturação,
além ele estar sujeico :10S insidiosos ataques da impotência.
Uns sc'iovítimas, durante o sono, do abraço quimérico dos ín19
cubos e...súç~lbos;outros esrão condenados, durante a vigília,
a atravessar às-pãi'amos da insensibilidade. Enfim, realizáveis
ou não, os ideais de total castidade e libertinagem podem ser
coletivos ou individuais. Ambos se inserem na economia vital
da sociedade, embora o segundo, em seus casos mais extremos, seja uma tentativa pessoal de rómper os laços sociais e
se apresente como uma libettação da condição humana.
Não preciso me deter nas ordens religiosas, comunidades
e seitas que pregam uma castidade mais ou menos absoluta
em conventos, mosteiros, ashrams e outros lugares de recolhimento. Todas as religiões conhecem essas confrarias e irmandades. É mais difícil documentar a existência de comunidades libertinas. 'À diferença das associações religiosas, quase
sempre parte de uma Igreja e por isso mesmo reconhecidas
ptlblic~llnenre,os grupos libertinos se reúnem em geral em lugares dismntes e secretos. Por outro lado, é fácil atestar sua
realidade social: aparecem na literatura de todas as épocas,
tanto na ocidenwl como na oriental. Têm sido e são não somente uma realidade sacia! clandestina como também um gênero literário. Desta forma são duplamente reais. As práticas
eróticos-colecivas de caráter público assumem consrantemente formas religiosas. Ni'ioé necessário, para provar isso, lembrar os cultos fálicos do Neolítico ou as bacanais e saturnais
da Antiguidade greco-romanai em duas religiões marcaclamente ascétic<ls,o budismo e o cristianismo, figura também
- e de maneira proeminente - a união entre a se)"Llalidadee
o sagrado. Cada uma das grandes religiões históricas engendrou, externa ou internamente, seitas, movimentos, ritos e liturgias nas quais a carne e o sexo são caminhos em direção à
divindade.]ião podia ser de olltIªJOJ:m?::.,O,~JQtismQ".é.,ªntes
de tudo e sobret0:aõseClêêlê-O~ltrjdade. E ; sobrenatunl! é a
radical e 'suprema outridãdê:··'>'~-'~-'As práticas eróticas religiosas surpreendem canto por sua
variedade como por sua recorrência. A copulação ritual coleli20
va foi praticada por seiws tântricas da Índia, por taoístas da
China e por cristãos gnósticos no Mediterrâneo. A mesma
coisa sucede na comunhão com o sêmen, um ritual dos
adeptos do cantrismo, dos agnósticos adoradores de BarbeIo
e outros grupos. Muitos desses movimentos erótico-religiosos, inspirados por sonhos milenaristas, uniram a religião, o
erotismo e a política; entre outros, os Turbantes Amarelos
Ctaoístas) na China e os <lnabatisrasde Jean de Leyde na Holanela. abselvo que em todos esses rituais, com duas ou três
exceções, a reprodução não possui um significado maior,
mostrando, inclusive, um aspecto negativo. No caso dos
gnósticos, o sêmen e o sangue menstrual deviam ser ingeridos para reintegrá-Ios ao Grande Todo, pois acreditavam que
este mundo fora criado pOr um demiurgo petverso; entre os
ti'inrricose os raoísws, embor8 por razões inversas, a retenção
do sêmen era obrigatória; no tantrism() hinclu, o sêmen era
derram:1do como llma=:;;.
Provavelmente era esse também o senticio do bíblico "pecado de Onã". a coittls il1terruptusvale pane, quase sempre, daqueles ritLlais.Em resumo, no
erotismo religioso se inverte radicalmellte o processo se)"Lla!:
há a exprolxiação dos imensos poderes do sexo em favor de
fins distintos ou contr;:'íriosà reprodução.
a~~'[2~~rna
a~mdL~s
figuras ell1~s:
.~.~2,E~igioso soJitárioe a do libertino. EmbIemas()P?~tos,
mas uni~õs··n"õ lnesll1Õ'lnõvin1éntó~ã~nbõSneg8n1a re,2iBdução eSàO'J~llt~tívas"cre's~lvnçàõotil'lDêI1ãÇãi5JJes~2~1ai; nte
de uln {Ili.j'Derô' c8IcrÜ;'peJ'versO";tti"cõel:eJ1 té~õu ' Jrl:eãl. 'A ;1; esm a
as piràçàol1"lbvêãs"s'êitas(:tâscõll1uI1JcElcfes,'i11âsnelasa sa 1v<lçãoé uma empreiwda coletiva - são uma sociedade dentro da sociedade -, enqLl,lntoo asceta e o libertino são associais, indivíciuos fora da sociedade ou contr8 ela. a culto à
castidade, no Ocidente, é uma herança cio platonismo e de
outms tendências da Antiguidade para as quais <lalma imor21
tal era a prisioneir:1 do corpo mOIta!. A crença ger,l1 era a ele
que um dia fi alm:l voltaria ao Empíreo, o corpo voltaria fi ser
matéria informe. Contudo, o desprezo ao corpo não aparece
no judaísmo, que eX:lltou sempre os poderes genéticos: crescei e multiplicai-vos é o primeiro mandamento bíblico. Talvez por isso, e sobretudo por ser fi religião da encarnaç~o de
Deus no corpo humano, o cristianismo atenuou o dualiSl110
platônico com o dogmu da ressurreição da carne e com o dos
'corpos gloriosos', Ao mesmo tempo, absteve-se de ver no
corpo um caminho em direção à divindade, como fizeram
outras religiões e muitas seitas heréticas. Por quê? Sem dúvida devido à influência do neoplatonismo
sobre os Pais da
Igreja.
No Oriente o culto à castidade começou como um método
para aIc;H1çara longevidade: economizar sêmen er:1 economizar vicia. A mesma coisa acontecia com os eflCtvios sexl.l.ais d8
mulher. Cacb desc:lrga seminal e c:lela orgasmo feminino
eram perda de vimlidade. No segundo momento da evolução
dessas crenças, a castidade se converteu num método para
adquirir, medi:lnte o domínio dos sentidos, poderes sobrenaturais e, no woísmo, :l imol1alielade. Esta é a essência do iog:l.
ApesarçJ~ss.as difere:1ç~~) .~ca~tiçl;lçJ~ç:q.mRr~Ql}?~?l1'l<:lhIOÇÕO
no ..Oriente e noOCicr~11't~:~'~111:1pr~:'a~tlm~xercíçiºqq~ 90S
. iQJ1gIe:çe:~~,RI1Ifh@i11eúf~"~'é~;'111ir~":62~"ª~Tê)'
'g'~;;;de salt o
da
natllrez~ 11~1r,:Y\I1a
;;;11cíil:eçªààü sobrenatLll~ar ....
"Acasticlade é apenas U111caminho entre outros. Como no
caso das prátic8s eróticas coleriv8s) o iogue e o asceta poclbm
se servir cbs pr;l[Ícas se](uais do erotismo n:1o pam se reproduzir, mas para a1cnnçar um fim propri:.1l11entesobren:ltut'~l1seja este a comunhão com a divindade, o êxtase, a libertação
OLIa conquista do 'incondicionado'. Muitos textos religiosos,
entre eles alguns gr8ndes poemas, não vacilnm em comparar
o prazer sexll~tl com o deleite ext::\tico do místlco e com a beatirude da união com a divindade. Em nossa tradiç::io é menos
22
freqüente que na orientnl a fusão entre o sexual e o espiritual. Apesar disso, o Antigo Testamento é pródigo em histórias eróticas, muitas eleJas trágicas e incestuosas; algumas inspiral<1111
textos memoráveis, como a de Rute, que influenciou
ViC[QrHugo a escrever Boozendormi, t:m poema noturno no
qual "a sombra é nupcial". Os textos hindus, porém, são mais
explícitos. Por exemplo, o famoso poema sânscrito cleJayadeva, Gilagouindtl, canta os amores adúlteros do deus Krishna
(O Senhor Obscuro) com a camponesa Radha. Como no caso
do Cântico cios Cânticos, o sentido religioso do poema é indistinguível ele seu sentido erótico profano: são dois aspectos da
mesma realiel8de. Nos místicos sufis é freqüente a confluência
da visão religiosa e cb erótica. A comunhão se compara às vezes a um festim entre dois amantes no qual o vinho corre fart8mente. EmbriClguês c1ivinCl)êxtase erótico.
Mais acim8 falei cio Cântico dos CânCicos ele 5aI0111:10.Esta
coleção ele poemas ele amor profano, uma das obras eróticas
mais bebs j::\ criacbs pela palavra poéticCl, nunca deLxoll, ao
longo ele m:lis ele clois mil anos, ele alimentar;] imagin::!ç80 e (]
sensualicbcle dos homens. A tradição jud:üca e a cristã interprewl11 esses poemas como uma alegoria elas relações entre
jeová e Israel Oll entre Cristo e a Igrej::!.A esta confus;'io elevemos o Cánl/co espirilllal de 5;'ioJoão da Cruz) um cios poemas
m8is intens'os e misteriosos da lírica do Ocidente. É impossível
ler seus poemas unicamente como textos eróricos ou como
.textos religiosos. S;'io um e outro e algo mais, sem o qual não
seriam o que s:1o: poesia. A ambigüid8de dos poemas de São
J0;10 encontrou, na época moderna, resistências e equívocos.
Alguns se empenharam em vê-l os como textOs unicamente
eróticos; OLltI'OSos consideram sClcrílegos. Lembro o esc1nd810 do poera Auden diante de certas imagens do Ccímico espiritI/aI: 8 ele pareci:-tm UI11:-t
grosseira confusão entre a esfera ca1'na J e a espiritual.
23
A crítica de Auden era mais platônica que cristã,~v~,~
mos a PIatão a idéia do erotismo como um impulso viraI que
ascende, degrauPQrdegrau, até a contelnplação dobemsu",~Essa
idéia contém outra: a da paulatina purificação da
alma que, a cada passo, distancia-se mais e mais da sexualidade até que, no auge dessa ascensão, dela se despoja inteiramente. Mas o que nos diz a experiência religiosa - sobretudo por meio do testemunho dos místicos - é precisamente
o contrário: o erotismo, que é sexualidade transfigurada pela
imaginação humana, não desaparece em nenhum caso.
Muda, transforma-se continuamente e, não obstante, nunca
deixa de ser o que é originalmente: impulso sexual.
N"a,-f-ig.t.lraQpº~ta,.a
doJib~ninQ •.."nªºJJª"JJn!ªo entre religi~Q~j~rotismo;.ao.contúrio, há oposição nítida e"dã';:ã':"õ"n:
b~rrino)lfj[ma o prazer como (Wic:ofim dI;~re de qualquer
olltro valor. Ele .9.1l?seseml2r~ se op~com p::1i.xàoaOS valo"'j:ese' ãS·Cfe.~lliU:~jg~º-~~§,g,Ll
..~[iCas,que'ros rul.~.l}~.~s,l.!Q.ord
i.2EEQllQ.,.S~r,:P_2.~._~12:,JjD.1.t.l·~11~~e~d~n(ê~-Ãi
ibertinagem faz
fronteira, em um ele seus extreníos;cOíll a crítica e transforma-se em uma filosofia; no outro exrremo, com a blasfêmia,
o sacrilégio e a profanação, formas contr.:irias;] devoção religiosa. Sacle se orgulhava de professar um intransigente "lteÍsmo filosófico, mas em seus livros há muitas passagens de religioso fmor irreligioso e em su:] vida enfrenrou várias acusações de sacrilégio e impiedade - como as do processo de
1772, em Marselha. Anclré Breton me disse certa vez que seu
ateísmo era uma crença; podeJiamos dizer também que a libertinagem é uma religião às avessas. O libertino nega o
mundo sobrenatural com calveemência que seus ataques S;JO
uma homenagem e, às vezes, uma consagração. É outra e
mais signinc:niva a verdadeira diferença entre o anacoret<.le o
libertino: o erotismo cioprimeiro é uma sublimação solitária e
sem intermeclüírios; o do segundo é um ato que requer, para
SU"lrealizaçào, o concurso ele 1.1111 cLlmpliceou a presença de
uma vítima. O li~ertíno nec:;essitasempr~dooutro
enisso
consiste sua cõnd~~~ção:
'd<;perlª~'ª'~:s-eu'ob]etõ-ê"êesáavo
A libeItinagem, como expressão do desejo e da imagínação exasperada, é imemorial. Como reflexão e como filosofia
explícita é relativamente moderna. A curiosa evolução das palavras líbeninagem e libertino pode nos ajudar a entender o
não menos curioso destino do erotismo na Idade Moderna.
Em espanhollibertíno significou em príncípio 'filho do Iibeno'
e só mais tarde designou uma pessoa dissoluta e de vida licenciosa. Em francês, a palavra teve durante o século XVII um
sentido parecido ao de liberal e liberalidade: generosidade,
desprendimento. No começo os libertinos foram poetas ou,
como Cyrano de Bergerac, poetas-filósofos. Espíritos aventureiros, fantásticos, sensuais, guiados pela louca imaginação
como Theóphile de Viau e Tristan L' Hennite. O sentido eleleveza e desenvoltura da palavra libertinagem no século À'VIIé
expressado com muita graça por Madame de Sevigné: "Je suis
tellement libertine quand j'écns, que le premier tour que je
prends regne tout le long de ma lettre" ("Sou tão libertina
quando escrevo, que na primeira penada acerto o tom ao longo da minha carra").Noséculc) XVIIa libeltinagem se tomou
filosófica. O Iibelt[noJõi-éDnt~}~ct1J.ªlçd[içº da, religião, das
cJ~j-5<;dos c;;t'G';;;~;':A't~;~siçi~' f~í insensív~i~à ~fliosõfi'alibeltina COnVerTeU o erotismo de paixão em crítica moral. Foi a
máscara ilustrada que aSsumiu o erotismo intemporal ao chegar a Idade Moderna. Deixou de ser religião ou profanação, e
em ambos os casos rito, para se transformar em ideologia e
opinião, Desde então o falo e a vulva se tornaramg:fgºti$Jf!,~e
fiscalizam nossos costumes, nossas idéias e nossas leis.
A expressão mais total e literalmente COIt3nteda filosofia
libeltina foram os rom<lnces de Sade. Neles se denuncia a religião com'não menos fúria que a alma e o amor. Explica-se.
24
25
'..;.'0'
A relação erótico-ideal
implica, por parte do libertino, um poder ilimitado sobre o objeto erótico, unido a uma indiferença
igualmente sem limites sobre sua sOlte; por parte do 'objeto
erótico', uma compbcência
rotal diante elos desejos e caprichos de seu senhor. Por isso os libertinos de Sade exigem
sempre absoluta obediência de suas vítimas. Estas condições
nunca podem ser satisfeitas; são premissas filosóficas, n50
realidades psicológicas e físicas. QJiPertino necessita, para
satisfazer seu desejo, saber (e para ele-;abel'-é sêncífTqLie"'o
êõrp(nllJéT(:rcrt~TIl'rr..'t· 5eITsttmf(l'ãaê'e"uln~\"v'õl1l~i'cre-qtrê''SOfl"eJii:7\"liI5er-tiTirfgeinêxlge-<::erf3'"àUronoi'limei1'l""'i'elâçlí'ü"ã'Ví
timâ7sem a qual não se produz a contraditória sensação que
chamamos prazer/dor. O sadom:lsoqtlismo, cerne e coroa da
libertinagem, é também sua negação. Com efeito, a sensação
nega, por um bdo, :'1soberanb cio libertino, fazendo-o dependente da sensibilidade do 'objeto'; por outro, nega também a passividade cb vítima. O libertino e sua vítim<l se tornam cúmplices à custa de um3 singular derrota filosófica:
rompe-se, ao mesmo tempo, a infinitl imp:lssibilicbde elo libertino e a infinirn passivicl::1.deela vítll11a.A libertinagem, filosofia da sensação, postula como fim uma impossível lnsensibilicbde: a atar:lXi3 elos :lntigos. A libertinagem é contraditória: bLISGlsimultaneamente
a destruiçào e a ressurreiçào do
outro. Como c:'1stigo, o parceiro não ressusciw como corpo e
sim como sombra. Tudo o que vê e toca o libertino perde
realidade. Sua realidade depende da de sua vítima: só ela é
real e ela é só um grito, um gesto que se dissipa. O libertino
converte em bntasma tuelo o que toca e ele próprio se torna
sombra enrre as sombr:.ls,
Na história da literatura erótica Sade e seus continu:1e1ores
ocupam uma posição singular. Apes:1r da raivosa alegria com
que aCLlmLllamsuas ICigubres negações, são descendentes de
Platão, que exaltou sempre o Ser. Descenc1entesluciferinos: filhos da luz caícb, a luz negra. P:.ll'<la tradição filosófica Eras é
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uma divindade que comunica a obscuridade com a luz, a matéria com o espírito, o sexo com a idéia, o aqui com o além.
Por meio destes filósofos fala a luz negra, que é a metade do
erotismo: meia filosofia. Para encontrar visões mais completas é preciso recorrer n::1Osó aos filósofos, mas também aos
poetas e aos romancistas. Refletir sobre Eros e seus poderes
não é a mesma coisa que expressá-Io: este último é o dom do
artista e do poeta. Sade foi um escritor prolixo e pesado, o
contrário de um grande artista; Shakespeare e Stendhal nos
dizem mais sobre a enigmática paixão erótica e suas surpreendentes
manifestações
do que Sade e seus modernos
discípulos, enc:lrniçados em transformá-Ia num discurso filosófico. Nos textos destes últimos as masmorras e os leitos de
nav~l1has do sadomasoquismo se conveneram em tediosa cátedra universit5ri;), na qual disputa interminavelmente
a dupla prazer/dor. A superioridade de Freud reside no f8to de
que soube unir sua experiência ele médico com sua imaginação poética. Homem de ciência e poeta trágico, Freud nos
mostrou o caminho da compreensão do erotismo: as ciências
biológicas uniclas :'i intLtiç:'i.ocios grandes poetas. Eros é sobr
e noturno: todos o sentem, mas poucos o vêem. Foi uma presenp invisível para Sl\8 npaixonada Psiquê pela mesma razão que o sol é invisível em pleno db: por excesso de luz. O
duplo :lspecto de Eras, luz e sombra, crisraliz8-se em Lllúa
imagem mil vezes repeticb pelos poetas ela Antologia grega: a
lâmpada aceS:l na obscuridade da alcov;).
Se qüeremos conhecer a f::lce luminosa cio erotismo, sua
raeli;)nte aprovação ela viela, basta olhar por 1.1111 instante uma
dessas figurinhas ele fertilicbde do Neolítico: o talhe de arbustO jovem, a reelonelez elos quadris, as m:1os que oprimem uns
seios frutíferos, o sorriso extático. Ou, pelo menos, se não
podemos visitá-Ia, ver rl1guma reproduçào fotográfica elas
imensas figuras de homens e mulheres esculpidas no santuário budist:l ele Karli, na Índia. Corpos como rios poderosos ou
27
y'::'~
como montanhas pacíficas, imagens de uma natureza por fim
satisfeita, surpreendida nesse momento de paz com o mundo
e conosco que se segue ao gozo sexual. Felicidade solar; o
mundo sorri. Por quanto tempo? O tempo de um suspiro:
uma eternidade. Sim, o erotismo se desprende da sexualidade, transformando-a e desviando-a de seu fIm, a reprodução;
mas esse desprendimento é também um regresso - o casal
volta ao mar sexual e mistura-se em seu menear infinito e
aprazível. Ali recupera a inocência dos animais.,Q ~fotiSIl1º.é
um ritmo; um de $eus acordes é separação, o outro é regresso,
volta à natureza reconciliada. O além erótico está aqui e é
agora mesmo. Todas as mulheres êtodos os homen.s viveram
esses momentos; é nossa ração de paraíso.
A experiência que acabo de evocar é a do regresso à realidade primordial, anterior ao erotismo, ao amor e ao êxtase
dos contemplativos. Este regresso não é fuga da morte nem
negação dos aspectos terríveis do erotismo: é uma tentativa
de compreendê-Ias e integrá-Ios à totalidade. Compreensão
não intelectual, mas sensível: saber dos sentidos. Lawrence
procurou toda sua vida esse saber; um pouco antes de morrer,
milagrosa recompensa, deixou-nos em um fascinante poema
o testemunho de seu descobrimento: o regresso ao Grande
Todo é a descida ao fundo, ao palácio subtenâneo de Plutão e
de Perséfone, a moça que a cada primavera volta à Terra. Regresso ao lugar de origem, onde morte e vida se abraçam:
iDadme una genciana, una antorcha!
Que Ia antorcha bífida, azul, de estaflor me guíe
por Ias gradas obscuras, a cada paso más obscuras,
hacia abajo, donde el azul es negro y Ia negrura azu~
donde Perséfona, ahora mismo, desciende dei belado
[Septiembre
aI reino ciego donde el obscuro se tiende sobre ta obscura,
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donde Perséfona es apenas una voz entre los brazos
[plutónicos,
una invisíble obscuridad abrazackl a Iaprofunckl negrura,
atravesada por Ia pasión de Ia densa tiníebla
bajo el esplendor de Ias antorchas negras que derraman
[sombra sob1"eIa novia perdida y su esposo.l.
1. Bcwarial1/Jlll1llans. A tradução deste fragmento é minha.
• Dã-me uma genciana, uma toeha! / Que a todla IiJfida, azul, desta flor me guie /
pelos degraus escuros, a cada passo mais escuros, I até embaixo. onde o azul é negro e a negrura azul, / onde Perséfona, agora mesmo, desce do gélido setembro /
ao reino cego onde o escuro se estende sobre a escuridão, onde Perséfona é apenas uma voz entre os braços plUlônicos, / uma invisível escuridão abraçada à pro.
funda negrura, atravessada pela paLxão da densa treva sob o esplendor das l0chas negras que derramam / sombra sobre a noiva perdida e seu esposo (N. do T.).
I
I
29
"5
(
'2
Eros e Psiquê
(
(
Uma das primeiras ~11xujções do :1mor, no sentido estrita
ela p::tlavm, é o conto de Eros e Psiquê que Apuleio apresenta
em um dos livros mais divertidos ela Antiguidade greco-rom~ll1a:MelclIJlOJjoses (O C/SilOde o/lro). Eras, divindade cmel e
cujas flechas nào respeitam nem sua mãe nem o próprio ZeLls,
npaL'<:om-se por uma mOltal, Psiquê. É uma história, diz Pierre
Grimal, ;'diret:1mente inspirnd:1 no Pedro de Pbtão - a alma individml (Psiquê), imagem fiel d::l::lImauniversal (Vênus), elev<:tse progressivamente, gr:1ças rtOamor (Eras), eb condição mOltrtl
à imormliclacle divina", A presenç:1 ela :1lma em uma história de
fl1110ré de 1":1to
um eco plrttônico, e o mesmo devo dizer d~lbusca da Íll10Italicl:1c1e,conseguida por PSiqllê ao se unir com uma
divindade. Seja como for, trata-se de uma mesperada transforl1"l.::lção
do platonisl11o: a história é um conto de amor realism
(há nele até um:1 sogra cruel, Vênus), não o rebro de um::l (lventura filosófica solitária. N80 sei se quem já escreveu sobre este
assunto rep::ll'Ollno que, para mÍln, é a grande e verebcleit:t novidade do conto: Eras, um deus, apabmna-se por uma jovem
que é a personificaçào ela alm::l,Psiquê. Observo, logo de início,
que o amor é mútuo e correspondido: nenhum dos dois am::tn31
'.::."
tes é um objeto de contemplação para o outro; muito menos
são graus na escala da contemplação. Eros ama Psiquê e esta
a Eros; por isso, muito prosaicamente, tenninam por se casar.
, São inumeráveis as histórias de deuses apaixonados por mortais, mas em nenhum desses amores, invariavelmente sensuais, figura a atração pela alma da pessoa amada. O conto
de Apuleio anuncia uma visão do amor destinada a mudar,
mil anos depois, a história espiri~al do Ocidente. Outro portento: Apuleio foi um iniciado nos mistérios de Ísis e seu romance termina com a aparição da deusa e a redenção de Lúcio, que fora transfonnado em asno como castigo por sua Úllpia curiosidade. A transgressão, o castigo e a redenção são
elementos constitutivos da concepção ocidental do amor. É o
tema de Goethe na segunda parte do Fausto, o de Wagner em
T1'istãoe Isolda e o de Aurélia, de NeNal.
No conto de Apuleio, a jovem Psiquê, castigada por sua
curiosidade, ou seja, por ser escrava e não dona de seu desejo, deve descer ao palácio subten'ãneo de Plutão e Prosérpina,
reino dos mortos, mas também das raízes e dos germes; promessa de ressurreição. Passada a prova, Psiquê volta à luz e
recupera seu amante: Eros, o invisível, por fim se manifesta.
Temos outro texto que termina também com um regresso e
que pode ser lido como a contrapartida da peregrinação de
Psiquê. Refiro-me às últimas páginas de Ulisses, de ]oyce. Depois de vagabundear pela cidade, os dois personagens,
Bloom e Stephen, voltam à casa de Ulisses-BIoom. Ou seja, à
Ítaca, onde os espera Penélope-Molly. A mulher de Bloom é
todas as mulheres ou, melhor dizendo, é a mulher - a fonte
perene, a vulva abissal, a montanha mae, nos,so começo e
nosso fim. Ao ver Stephen, jovem poeta, MolIy decide que
logo será sua amante. Molly não só é Penélope, é também Vênus; mas, sem a poesia e seus poderes de consagração, não é
mulher nem deusa. Embora MoIly seja uma ignorante, sabe
que não é nada sem a linguagem, sem as metáforas sublimes
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ou idiotas do desejo. Por isso se enfeita com galanteios, canções e músicas da moda como se fossem colares, brincos e
pulseiras. A poesia, a mais elevada e a mais humilde, é seu
espelho: ao ver sua imagem, nela penetra, indo ao abismo de
seu próprio ser e convertendo-se em um manancial.
Os espelhos e sua réplica: as fontes aparecem na história
da poesia erótica como emblemas de queda e ressurreição.
Como a mulher que nelas se contempla, as fontes são água
de perdição e de vida; ver-se nessas águas, nelas cair e voltar
à superfície é voltar a nascer. MoJly é um manancial e fala
sem parar no longo solilóquio que é como o inesgotável
murmúrio que brota de uma fonte. E o que diz? Toda essa torrente de palavras é um grande Sim à vida, um Sim indiferente
ao bem ou ao mal, um Sim egoísta, prudente, ávido, generoso, opulento, estúpido, cósmico. Um Sim dea.ç~itaçào que
funde e confunde em seu monótono fluir o passado, o presente e o futuro; o que fomos e somos e seremos; tudo junto
e todos juntos em uma grande exclamação, como uma onda
que levanta, afunda e mistura a rodos em um todo sem começo nem fim:
Si el mar carmesí a veces como elfuego y IaS gloriosas
puestas de sol y Ias higueras en Iasjardines de Ia Alameda si y
todas Ias extrafias cal/ejuelas y Ias casas rosadas y azules y
amadllas y Iasjardines de l"OSasy de jaz17'lines y de geranios y
de cactos y Gibraltar Ctlando yo era chica y donde yo era una
Flor de Ia Montai'1a si cuando me puse Ia rosa en el cabello
como hacían Ias cbicas andaluzas o me pondré una colorada sí y cómo me besó bajo Ia pared morisca y yo pensé hueno
tanto da él como otro y después lepedi con Ias ajos que me 10
preguntara otra vez y después él me preguntó si yo queda si
para que dijem sí mi flor de Ia montaiia y)'o primera 10 rodeé
con mis brazos sí y 10at1"ajebacia mí para que pudiera sentir
33
'.:-~
mis senos todo perfume sí y su corazón golpeaba locoy sí yo
dije quiero 51.2•
O grande Sim de Molly contém toelas as negações e converte-as em um hino à vida indiferenciada. É uma afirmação
vital semelhante à de Rose Sélavy de Duchamp. Celebração
de Eros, não de Psiquê. Há uma frase no monólogo de Molly
que nenhuma mulher apaixonada poderia ter dito: "j);Ie besó
bajo Ia pared morisca y yo pensé tanto da él como otro ..."
(liMe beijou sob o muro mourisco e eu pensei tanto faz ele
como outro ..,"). Não, não é a mesma coisa com este ou aquele. E esta é uma linha que marca a fronteira entre o amor e o
erotismo. () amor é atraçâ(j por1jIDé,\única pessPª~:porum
corpo e uma.alma: () amoré ~sc()lh;l;O.erotiSrn();~~eitaçãO.
Sem erotismo - sélir form~ivisr~ÊÚq~eentra pelosset1uaós
- não há amor, mas este atravessa o corpo des~jadoe procura a alma no corpo e, na alma, o corpo. A pessoa inteirá.
O sentimentO amoroso é uma exceção dentro dessa grande exceção que é o erotismo diante da sexualidade - mas é
uma exceção que aparece, porém, em todas as sociedades e
épocas. Não há povo nem civilização que não possua poemas, canções, lendas ou contos nos quais a anedota ou o argumento - o mito, no sentido original da palavra - não seja
o encontro de duas pessoas, sua múnla atração e os esforços
e dificuldades que devem enfrentar para se unirem. A idéia
2. Tradução de.losé Salas Subirat.
• O mar cannesim às vezes como o fogo e os poentes gloriosos e as figueiras nos
jardins da Alameda sim e as ruazinhas esquisitas e casas rosas e azuis e amarelas
e os jasmins e gerânios e cactos e Gilbraltar eu mocinha onde eu era uma Flor da
montanha sim quando eu punha a rosa em minha cabeleira como as garotas ano
daluzas costumavam ou devo usar uma vermelha sim e como ele me beijou contra a muralha mourisca e eu pensei tão bem a ele como a outro e então eu pedi a
ele com meus olhos para pedir de novo sim e então ele me pediu quereria eu sim
dizer sim minha flor da montanha e primeiro eu pus os meus braços em tomo
dele e eu puxei ele pra baixo pra mim para ele poder sentir meus peitos todos
perfume sim o coração dele batia como louco e sim eu disse sim eu quero Sims
(tradução de Antônio Houaiss, Círculo elo Livro, 1975) (N. do T.).
34
do encontro exige, por sua vez, duas condições contraditórias:~atração que experimentam os amantes é involuntárla,
nasce de um magnetismo secreto e todo-poderoso; ao mesmo tempo, é uma escolha. Predestinação e escolha, os poderes objetivos e os subjetivos, o destino e a liberdade se- cruzam no amor. O território do amor é um espaço imantâdo
pelo encontro de duas pessoaf)
Durante muito tempo acreditei, seguindo Denis de Rougemont e seu célebre livro L'amouret l'Occident, que este sentimento era exclusivo de nossa civilização e que nascera em unI
lugar e período determinados: Provença, entre os séculos XI e
XII.Hoje essa opinião me parece insustentável. Antes de qual'quer coisa,:é preciso distinguir entre o sentimento amoroso e
a idéia do ~nor adotada por uma sociedade e uma époci] O
primeiro pertence a todos os tempos e lugares: em sua forma
mais simples e imediata não é senão a atração passional que
sentimos por uma pessoa entre muitas. A existência de uma
imensa literatura cujo tema central é o amor é uma prova fínal
da universalidade do sentimento amoroSO. Enfatizo: o sentimento, não a idéia. Amor na forma sumária como defini anteriormente: misteriosa inclinação passional por uma única pessoa, quer dizer, transformação do 'objeto erótico' em um indivíduo livre e único. Os poemas eleSafo não são uma filosofia
do amor: são um testemunho, a forma em que se cristalizou
esse estranho magnetismo. A.mesma coisa pode ser dita das
canções recolhidas no Sbib cbiJ1g (Livro de versos), de muitos
romances espanhóis 01.1 de qualquer outra coleção poética do
gênero. Às vezes, contudo, a reflexão sobre o amor se converte na ideologia de uma sociedade; então estamos diante de
um modo de vicia,1.1111a
mte eleviver e morrer. Diante de uma
ética, uma estética e uma etiqueta: uma cOl1esia, para empregar o termo medieval.
A cortesia não está ao alcance de todos: é um saber e uma
prática. É o privilégio cio que poderia se chamar uma misto35
cracin do cOf;J,çfío.Não uma aristocracia fundada na hereditariedade e nos privilégios da herança, e sim em certas qualidades do espírito. Embora essas qualidades sejam inatas, para
manifestar-se e converter-se em uma segunda natureza, o
adepto deve cultivar sua mente e seus sentidos, aprender a
sentir, falar e, em certos momentos, calar-se, A cOJ1esia é uma
escola de sensibilidade e desinteresse. "Razón de amor", nosso belo poema de amor, o primeiro em nossa língua (século
XlI!), começa assim:
Quién trls/e fiel/e su corazón
venga oir esta rcrzón.
Oirá razón acabada,
hecba de amore bien rimada.
Un escolar Ia rimó
que sierl'/pre dueiJas amó,'
más sielllpre bubo crlciIlza
eu A !eman Ia y Frcrllcla:
moró 11/IIcbo eu Lombardía
jJa reI
aprender cOJ1esía,..•.
O 'amor cortês' se aprende: é um saber dos sentidos iluminados pela luz da alma, uma atração sensual refinada pela
cortesia. Formas análogas às do Ocidente floresceram no
mundo islâmico, na Índia e no Extremo Oriente. Lá também
existiu Lima cultura elo amor, privilégio de um grupo reduzido de homens e mulheres, As literaturns árabe e persa, amb:Js
estreit:lmente associac1:ls :1 vicl:l de corte, são mu ito ricas em
poem:ls, histórias e wlI<ldos sobre o amor, Enfim, dois grnneles romances, um chinês e outro japonês, são essencialmen• Qucm triste tcm scu cOl~\ç:ioJ \'enha ouvir escs razão. J Outra razão acabada, /
feil:! de amor e bem-rim;léb. J Um escolar a rimou J que sempre a u:llllas amou, J
mas sempre educou-se J n:l Alemanha e na França, J morou muito na Lombardia
/ para aprender cortesia ... (1'1. do T.),
te histórias de amor e ambos se passam em um ambiente fechado e aristocrático,
No romance de Tsao Tchan, O sonho do pavilhão vermelho (HU'ng lou meng], a história se passa em uma mansão palaciana e o herói e as duas heroínas pertencem à aristocracia.3 O livro é composto de poemas e reflexões sobre o amor.
Estas últimas são uma mistura da metafísica do budismo e do
taoísmo, tudo tingido de crenças e superstições populares
como na Tragicomédia de Calixto e Melibéia, nosso grande e
terrível livro de amor. A severa filosofia de Confúcio quase
I)ão aparece em O sonho do pavilhão vermelho, a não ser
como uma maçante rede de proibições e preceitos que os
adultos utilizam contra a paixão juvenil - regras hipócritas
que encobrem a desenfreada ambição e luxúria deles mesmos, Oposição entre o mundo profano e o sagrado: a moral
dos adultos é mundana, enquanto o amor entre Bao-yu e
Dai-yu é o cumprimento de um destino decretado há milhares de anos, Algo semelhante devemos dizer da História de
Genji, o romance de Murasaki Shikibu, dama da corre japonesa; os personagens são membros da mais aIra nobreza e
seus amores são vistos através de uma melancólica filosofia
impregnada de budismo e do sentimento de transitoriedade
das coisas neste mundo. É estranho que Denis de Rougemont
tenha se mostrado insensível a todos esses testemunhos onde quer que floresça uma cultura cortesã, brota uma filosofia do amor. A relação desta filosofia com o sentimento geral
reproduz a deste último com o erotismo e a de ambos com a
sexualidade. A imagem dos círculos concêntricos, evoca da
no início destas páginas, volta: o sexo é a raiz, o erotismo é o
talo, e o amor, a flor. E o flU[Q? Os frutos do amor são intangíveis. Este é um de seus enigmas.
3, Embora o tílulo do romance, O sOl1bo do pavilbão venllelho, seja belo e consagrado pela autoridade dos anos, é inexato. Na verdade, HUl1g lou lIIeng quer dizer
SonIJo de mansões vel7l1ellJas. Assim se chamavam as casas dos ricos devido ã cor
avermelhada de suas paredes; as casas de gente do povo eram cinzentas.
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Aceita a existência em outras civilizações de várias ideologias do amor, acrescento que existem diferenças fundamentais entre elas e a do Ocidente. A principal me parece ser
a seguinte: no Oriente o amor foi pensado dentro de uma tradição religiosa; não foi um pensamento autônomo, e sim
uma derivação desta ou daquela doutrina. No Ocidente, ao
contrário, desde o princípio a filosofia do amor foi concebida
e pensada fora da religião oficial e, às vezes, frente a ela. Em
PIatão o pensamento sobre o amor é inseparável de sua filosofia; e nesta última sobram as críticas aos mitos e práticas religiosas (por exemplo, o rogo e o sacrifício como meios para
obter favores dos deuses). O caso mais eloqüente é o do
'amor cortês', visto pela Igreja não só com inquietação, mas
também com reprovação. Nada disso se encontra na tradição
oriental. O romance de Ts::1.O
Tchan é composto como um
contra ponto entre dois mundos que, embora separados, vivem em comunicação: o 'mais além' do budismo e do taoísmo, povoado por monges, ascetas e divindades, diante das
paixões, encontros e separações de uma famí:liaaristocrática
e poligâmica na China do século XVIII.Metafísica religiosa e
realismo psicológico. A mesma dualidade rege o romance de
Murasaki. Nenhuma dessas obras nem os outros romances,
peças de teatro e poesias de tema amoroso foram acusadas
de heterodoxia. Algumas delas foram criticadas e, às vezes,
até proibidas por seus atrevimentos e obscenidades - não
por suas idéias.
A concepção ocidental do destino e seu reverso e complemento, a liberdade, é substancialmente diferente da concepção oriental. Esta diferença inclui outras duas, intimmnente associadas: a responsabilidade de cada um por seus atos e
a existência da alma. O budismo, o taoísmo e o hinduísmo
compartilham a crença na meta psicose e assim se explica por
que a noção de alma individual não seja muito clara nessas
crenças. Para hindus e taoistas o que chamamos de alma não
é senão um momento de uma realidade que nunca pára de
mudar e que, fatalmente, continuará se transformando em vidas futuras até alcançar a libertação final. Quanto ao budismo, nega vigorosamente a existência da alma individual. Nos
dois romances - voltando às obras de Tsao Tchan e Murasaki - o amor é um destino imposto desde o passado. Mais
exatamente, é o carma de cada personagem. O carma, como
se sabe, nada mais é do que o resultado de nossas vidas anteriores. Assim, o amor súbito de Yugao por Genji e os ciúmes
que desperta na 'dama de Rokujo' são o fruto não s6 de seu
presente como, sobretudo, de suas vidas passadas. Shuichi
Kato observa a freqüência com que Murasaki usa a palavra
sukuse (carma) pata explicar a conduta e o destino de seus
personagens. Ao contrário, 122 Ocidente o amoré um destino
livremente escolhido; quero dizer; por mais poderosa que
seja a ihflllêi1c1ada predestinação - o exemplo mais conhecido é a poção mágica que bebem Tristão e Isolda -, para
que o destino se cumpra é necessária a cumplicidade dos
amantes. O amor é um nó no qual se amarram, indissoluvelmente, destino e liberdade.
Devo assinalar agora um aspecto semelhante que, ao fi- .
nal, converte-se em uma nova oposição. Em O sonbo do pavilbão vermelho e na História de Genji o amor é uma escola de
desenganos, um camir;ho no qual paulatinamente a realidade da paixão se revela como uma quimera. A morte telol1,
como na tradição ocidental, uma função capital: desperta o
amante extraviado em seus sonhos. Nas duas obras a análise
da paixão amorosa e de seu caráter simultaneamente real e
irreal é finíssima e penetrante; por isso são comparadas com
vários romances europeus e muito especialmente com os de
Proust. Também Em busca do tempo perdido é o relato de
uma sinuosa peregrinação que conduz o Narrador, de desen39
38
gano em desengano e guiado por esse Virgílio que é a memória involuntária, à contemplação da realidade das realidades: o próprio tempo. Nos dois romances orientais o caminho do desengano não leva à salvação do eu' e sim à revelação de urna vacuidade inefável e indizível; não vemos uma
aparição, e sim uma desaparição: a de nós mesmos em um
vazio radiante. Ao final da obra de Proust o Narrador contempla a cristalização do tempo vivido, um tempo seu e intransferível, mas que já não é seu: é a realidade tal e qual, apenas
uma vibração, nossa porção de imortalidade. A peregrinação
de Proust é uma bUqca pessoal, inspirada por urna filosofia
independente da religião oficial; a dos heróis de Tsao Tchan
e Murasaki é uma confirmação das verdades e ensinamentos
do budismo e do taoísmo. Por mais violentas que tenham
sido suas transgressôes, o amor no Oriente foi vivido e pensado dentro da religião; pode ter sido um pecado, não urna
heresia. No Ocidente o amor desabrochou frente à religião,
fora dela e até mesmo contra ela. O amor ocidental é o filho
da filosofia e do sentimento poético que transfigura em imagem tudo o que toca. Por isso, para nós, o amor tem sido um
culto.
Não é estranho que a filosofia do amor tenha surgido primeiro na Grécia. Ali a filosofia logo se libeltou da religião: o
pensamento grego começou com a crítica dos filosófos présocráticos aos mitos. Os profetas hebreus criticaram a sociedade com base na religião; e os pensadores gregos criticaram
os deuses com base na razão. Tampouco é estranho que o
primeiro filósofo do amor, Platão, tenha sido também um
poeta: a história da poesia é inseparável da do amor. Por tudo
isso, PIatào é o fundador da nossa filosofia do amor. Sua influência ainda dura, sobretudo por sua idéia da alma; sem ela
não existiria nossa filosofia do amor, ou então esta teria rido
uma formulação muito diferente e difícil de imaginar. A idéia
40
da alma, segundo os entendidos, não é grega; em Homero as
almas dos mortos não são realmente almas, entidades incorpóreas: são sombras. Para um grego antigo não era clara a diferença entre o corpo e a alma. A idéia de uma alma diferente
do corpo aparece pela primeira vez em alguns pré-socráticos,
como Pitágoras e Empédoc1es; Plarào recolhe e sistematiza
essa idéia, éonvertendo-a em um dos eixos de seu pensamento e legando-a a seus sucessores. Contudo, embora a
concepção da alma seja central na filosofia do amor platônico, não o é no sentido em que foi depois empregada em Provença, em Dante e Petrarca. O amor de Platão não é o nosso.
Podemos até dizer que a sua filosofia não é uma filosofia do
amor - é antes uma forma sublimada (e sublime) de erotismo. Esta afirmação pode parecer temerária. Não é; para nos
convencermos disso basta ler os dois diálogos consagrados
ao amor, Fedro e O banquete, especialmente o último, e compará-Ios com os outros grandes textos sobre o mesmo tema
que nos deixamm a filosofia e a poesia.
O banquete é composto de vários discursos ou elogios do
amor pronunciados por sete comensais. Muito provavelmente representam as opiniôes e pontos de vista correntes naquela época sobre o tema, salvo o de Sócrates, que expressa
as idéias de Platão. Destaca-se o belo discurso de Aristófanes.
Para explicar o mistério da atração universal que uns sentem
pelos outros, recorre ao mito do andrógino original. Antes
havia três sexos: o masculino, o feminino e o andrógino,
composto por seres duplos. Estes últimos eram fortes, inteligentes e ameaçavam os deuses. Para submetê-Ios, Zeus decidiu dividi-Ios. Desde então, as metades separadas andam em
busca de sua metade complementar. O mito do andrógino
não só é profundo como despertou em nós outras ressonâncias também profundas: somos seres incompletos e o desejo
amoroso é perpétua sede de completude. Sem o outro ou a
outra não serei eu mesmo. Este mito e o de Eva, que nasce da
41
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T
costela de Adão, são metáforas poéticas que, sem explicar
realmente nada, dizem tudo o que há para dizer sobre o
amor. Mas não são uma filosofia e respondem ao mistério do
amor com outro mistério. Além disso, o mito do andrógino
não toca certos aspectos da relação amorosa que para mim
são essenciais, como o do nó entre liberdade e predestinação
ou entre vida mortal e imortalidade.
O centro de O banquete é o discurso de Sócrates. O filósofo relata a seus ouvintes uma conversa que teve com uma
sábia sacerdotisa estrangeira, Diotima da Mantinéia. Platão
com freqüência se serve de mitos antigos (ou inventados)
contados por algum visitante ilustre. Parece estranho que, em
uma sociedade predominantemente homossexLlal como era
o círculo platônico, Sócrates ponha nos lábios de uma mulher uma doutrina sobre o amor. Penso que se trata de uma
reminiscência, precisamente no sentido que dá PI8tão a esta
palavra: uma descida às origens, ao reino das mães, lugar de
verdades primordiais. N::ldamais natural que uma profetisa
anciã seja a encarregada de revelar os mistérios do amor.
Diotima começa dizendo que Eras não é um deus nem um
homem: é um demônio, um espírito que vive entre os deuses
e os mortais. Define-o a preposiçãO entre: em meio desta e
de outra coisa. Sua missão é comunicar e unir os seres vivos.
Talvez por isso o confundamos com o vento e o representemos com asas. É filho elaPobreza e da Abundância, e isso explica sua natureza de intermediário: comunica a luz com a
sombra, o mundo sensível com as idéias. Como filho ela Pobreza, busca a riqueza; como filho da Abund5ncia, distribui
bens. É o desejoso que pede, o desejado que dá.
Amor não é belo; deseja a beleza. Todos os homens desejam. O desejo é busca de possuir o melhor: o estrategista deseja alcançar a vitória, o poeta compor um hino de insuperável beleza, o ceramista fabricar ânforas perfeitas, o comerciante acumular bens e dinheiro. E o amante? Busca a beleza,
42
a formosura humana. O amor nasce à vista da pessoa bela.
Assim, embora o desejo seja universal e aguilhoe todos, cada
um almeja algo diferente: uns isto e outros aquilo. O amor é
uma das formas em que se manifesta o desejo universal e
consiste na atração pela beleza humana. Ao chegar a este
ponto, Diotiina previne Sócrates: o amor não é simples., É
uma mistura composta por vários elementos, unidos e animados pelo desejo. Seu objeto tampouco é simples e muda sem
parar. O amor é algo mais que atração pela beleza humana,
sujeita ao tempo, à morte e à corrupção. Diotima continua:
todos os homens desejam o melhor, começando pelo que
não têm. Estamos contentes com nosso corpo se seus membros são saudáveis e ágeis; se nossas pernas fossem deformadas e negassem-nos apoio, não vacilaríamos em nos desfazer
delas para colocar em seu lugar as de um atleta campeão de
corridas. É assim com tudo o que almejamos. E que proveito
temos quando alcançamos aquilo que desejamos? A índole
do proveito varia em cada caso, mas o resultado é o mesmo:
ficamos felizes. Os homens aspiram à felicidade e a querem.
para sempre. O desejo de beleza, próprio do amor, é também
de felicidade; e não de felicidade instantânea e perecedora,
mas perene. Todos os homens padecem de uma carência:
seus dias estão contados, são mOltais. A aspiração à imortalidade é um traço que une e define todos os homens.
O desejo do melhor se alia ao de tê-Ia e de gozá-Ia para
sempre. Todos os seres vivos e não só os humanos participam dele: todos querem perpetuar-se. O desejo de reprodução é outro dos elementos ou componentes do amor. Há
duas formas de geração: a do corpo e a da alma. Os homens
e mulberes, apaixonados por sua beleza, unem seus corpos
para a reprodução. A geração, diz Platão, é algo divino tanto
entre os animais como entre os humanos. Quanto à outra forma de geração: é superior, pois uma alma engendra em outra
idéias e sentimentos imperecíveis. Aqueles que 'são fecunda43
'.;;.l
dos pela alma' concebem com o pensamento: os poetas, os
artistas, os sábios e, por fim, os criadores das leis e os que ensinam a seus concidadãos a sobriedade e a justiça. Um amante, assim, pode motivar o saber, a virtude e a veneração pelo
belo, o justo e o bom na alma do amado. O discurso de Diotima e os comentários de Sócrates são um tipo de peregrinação. À medida que avançamos, descobrimos novos aspectos
do amor, como alguém que, ao subir a colina, contempla a
cada passo as mudanças do panorama. Mas há uma parte escondida que não podemos ver com os olhos, e sim com o entendimento. "Tudo isto que te revelei", diz Diotima a Sócrates, "são os mistérios menores do amor". Em seguida o instrui
sobre os maiores e ocultos.
.Na juventude nos atrai a beleza corporal e ama-se apenas
um corpo, uma forma bela. Mas se o que amamos é a beleza,
por que amá-Ia só em um corpo e não em muitos? E Diotima
voltaa'Pergl.::m-tar;'''Se·á~15elezâestaein muitas formas e pessoas, por que não amá-Ia nela mesma? E po~g.u.e:!)ê~()iralém
cl~~.forTa~~.~I}}<l;raqLlPo911e;asJazb~I~~:~••idéia?'; Diotima
vê 'õ'~ãmor'como umâescala: embaixo, o an101'"ã-Gmcorpo
belo; em seguida, a beleza de muitos corpos; depois, a própria beleza; mais tarde, a alma virtuosa; por fim, a beleza incorpórea. Se o amor à beleza é inseparável do desejo de
imortalidade, como não participar dela pela contemplação
das formas eternas? A beleza, a verdade e o bem são três e
são um só; são aspectos da mesma realidade, a única: verdadeira. Diotima conclui: "Aquele que seguiu o caminho da iniciação amorosa de forma correta, ao chegar ao fim perceberá
subitamente uma beleza maravilhosa, causa final de todos
nossos esforços ... Uma beleza eterna, não engendrada, incorruptível e que não cresce nem decresce". Uma beleza inteira,
única, idêntica a si própria, que não é feita de partes como o
corpo nem de razões como o discurso. O amor é o caminho,
a ascensão até essa beleza: vai do amor a um só corpo ao
amor a dois ou mais; depois, a todas as formas belas e delas
às ações virtuosas; (l8s ações às idéias e das idéias à mais absoh,Ha beleza. A viela do amance desta forma ele beleza é a
mais sublime que se pode viver, pois nela "os olhos do entendimento comungam com a beleza e o homem procria não
imagens nem simulacros de beleza, mas sim realidades belas". E este é o caminho da imorralídade.
O discurso de Diotima é sublime. SÓCl'ateso foi também,
pois foi digno desse discurso em sua viela, e sobretuclo em
sua morte, Comentá-Ia é corno interromper a silenciosa contemplação do s5bio com os falatórios e as brigas daqui debaixo. Mas esse mesmo amor à verdade - embom no meu caso
seja pequeno e na(b sLlblime- obriga-me a perguntar: Diotima falou reetlmente do amor? Ela e Sócrates blaram de Eras,
esse demônio ou espírito no qual enC;:ll'll<l
um impulso que
n110é puramente anim<ll nem espiricuaI. Eras pode confL1l1dir-nos, lev<lr-nosa Glir no p::inrano eb concupiscência e no
poço do libertino; wmbém pode nos elev"r e levar-nos à
mais alra comempbçào. IS[Qé o que chamo de erotismo ao
longo desl8s reflexões e o que tento distinguir do ;)mor propriamente dito. Repico, f;:tlodo amor tal como o conhecemos
desde Provenp, Este amor, embora existisse em forma difusa
como senrimento, não foi conhecido pela Grécia antiga nem
como idéü.lnem como mito. A ::ttraçàoerótica por UJl1<l
única
pesso:l é univers:ll e ::lp:lI'eceem tocbs as sociedades; a idéia
ou filosofia do amor é históric:l e brota só onde existem circunstâncias sociais, inrelectu:lis e morais. Pbti'io sem dClvicla
teri::!se escandalizado diante do que ch:1l11;)mos"mar. Algumas de SLJaSmanifestações lhe set:iam repugnantes, como a
ide:lliz:lç:'todo adLlI~ério,o suicídio e a morre; outras o ceriam
assombrado, como o culto :'i mulher. E os amores sublimes,
como o de Dance por Be8crizou O ele Petr;)l'ca por L8ura, parecerbm a ele doenças cb alma.
45
44
,':.~
)1'
Também O banquete contém idéias e expressões que nos
escandalizariam se não o lêssemos com ceno distanciamento
histórico. Por exemplo, quando Diotima descreve as escalas
do amor, diz que se começa por amar só um corpo belo, mas
que seria absurdo não reconhecer que outros corpos são
igualmente belos; em conseqüência, seria igualmente absurdo não amar a todos. É claro que Diotima está falando ele
algo muito diferente do que chamamos amor. Para nós a fidelidade é uma das condiçôes da relação amorosa. Diotima não
só parece ignorar isso como nem sequer lhe ocorre pens~r
nos sentimentos daquele ou daquela que amamos: ela os vê
como simples degraus na subida até a contemplação, Na verdade, para Platão o amor não é propriamente uma relação: é
uma aventura solitária. Ao ler certas frases de O banquete é
impossível não pensar, apesar da sublimidade cios conceitos,
num Don Juan filosófico. A diferença é que a corrida do gozador é para baixo e termina no inferno, enquanto a do
amante platônico culmina na contemplação ela idéia. Don
Juan é subversivo e, mais que o amor às mulheres, inspira-se
no orgulho, na tentação de desafiar Deus. É a imagem invertielado eras platônico.
A severa condenação do prazer físico e a pregação da
castidade como caminho para a virtude e a beatitude são a
conseqüência natural da separação pbtônica entre o corpo e
a alma. Para nós essa separação é muito fone. Este é um dos
traços que definem a época moderna: ;:lS fronteiras entre a
alma e o corpo se atenuaram. Muitos ele nossoS contemporâneos já n30 acreditam na alma, uma noção apenas usacla pela
psicologia e pela biologia modernas; ao mesmo tempo, o
que chamamos C01PO é hoje algo muiw mais complexo do
que era para Platão e sua época. Nosso corpo possui muitos
atributos que antes eram da alma. O castigo cio libertino,
como tentei demonstrar anteriormente, consiste em que o
corpo de sua vítima, 'o objeto erótico', é também uma COI1546
,i.-.
ciência; através dela o objeto se transforma em sujeito. O
mesmo podemos dizer da concepção platônica. Pi,lraPlatâo
os objetos eróticos - seja o corpo ou a alma do efebo nunca são sujeitos: têm um corpo e não sentem, têm uma
alma e se calam. São realmente objetos e sua função é a de
proporcionar degraus na subida do filósofo até a contempla.
ção das essências. Embora no curso dessa ascensão o amante
- melhor dizendo, o mestre - tenha relaçôes com outros
homens, seu caminho é essencialmente solitário. Nessa relação com os outros pode haver dialética, quer dizer, divisão
do discurso em partes, mas não há diálogo nem conversação.
O próprio texto de O banquete, embora adote a forma do
diálogo, é composto por sete discursos separados. Em O
banquete, erotismo em sua mais pura e elevada expressão,
não aparece a condiçâo necessária do amor: o outro ou a outra, que aceita ou rejeita, diz Sim ou Não e cujo próprio silêncio é uma resposta. O outro, a outra e seu complemento,
aquilo que converte o desejo em acordo: o livre-arbítrio, a liberdade.
47
"i
I,
3
Pré·história do amor
;1.0 coqle,.Ç(lrestasrefle>\ões desraqueias
afinidades entre
er;~sn~o el~0"e~i;-;-Õ2;'·iIl1'éi[QIÚ~lia'
Jútii5f<.mlda. seXli<lI idadê,isegL1I1dáúma
erorizaçqo da lingua~em, A relaçào emre
amor e poesia não é menos 'íntima. Primeiro a poesia lírica e
depois o romance - que é poesia à sua maneira - têm sido
constantes veículos do sentimento amoroso. O que nos têm
dito os poetas, os dramaturgos e os romancistas sobre o amor
não é menos precioso e profundo que as mecJimções dos filósofos. E com freqüência é mais certo, mais ele acordo com a
realidade humana e psicológica. Os amantes platônicos, tal
como os descreve O banquete, são esc8ssoS; mas não são escaSS::1Sas emoções que, em poucas linhas, tl'aç::158fo ao con~
tempbr uma pessoa amacia:
A mi en elpecbo e1corazón se oprime
Sólo en mirar/e: ni 1a voz acierla
De mi garganta) a prormmpÍ1~'
Cal/a Ia lengua.
y rota
Fuego sulll ele/lIro 11/1cuelpo todo
Presto dlscurre: los incierlos ojos
49
<.~~
,'l
~
:~
:<~;.
1','
':
Vagan Si12 tumbo} Ias oídos hacen
Ronco zumbido.
Cúbrome toda de sudor helaclo:
Pálida queda eual marchita hierba
Yya sInjuerzas, sin allento, inerte
Parezco
muelta.4•
Não é fácil encontrar na poesia grega poemas que possuam a concentrada intensidade do fragmento de Safo, mas
há muitas composições com assuntos semelhantes aos da
poeta, porém sem nenhum lesbianismo. (Nisso também ela
foi excepcional: o homossexualismo feminino, ao contrário
do masculino, não aparece na literatura grega.) As fronteiras
entre erotismo e amor são movediças; apesar disso, não me
parece 8rrisc8do dizer que a grande maioria dos poemas gregos são mais eróticos que amorosos. Isso também se 8plica à
Antologia pC/latina. Alguns desses poemas breves são inesquecíveis: os de Meleagro, vários atribuídos a Platão, alguns
de Filoclemo e, já no período bizantino, os de Pmllo o Silenciador. Em toelos eles vemos, e sobretudo ouvimos, o amante
em seus diversos estados de ânimo - o desejo, o gala, a decepção, os ciúmes, a felicidade efêmera -, mas nunca o outro ou a outra nen~os seus sentimentos e emoçôes. Tampouco
há diálogos ele;:Ullor- como no caso ele Shakespeare e Lope
de Vega - no teatro grego. Egisto e Clitemnestra estào unidos
4. CitO a admírflvel tradução de 1'vlarcelinol'vlcnéndez Pebyo, fcita na pr6prb estrofe de ESlcban lIhnuel de Villcgas: quatro "ersos brancos, os três primeiros sáfi·
cos e o final adônico. P;~bloNcruda empregou a mesma forma em "Angela Adónica", um dos melhores poemas de Residencia eu Ia liel1'C1. Embora menos pelfeito
na versificaçào, o poema de Neruda merece ser comparado com a tradução de
Menéndez Pebyo. Os dois poemas expressam dois momentos extremos do erotismo: o de Safo, a concentrada ansiedade do deseja, e a de l'\eruda, o repouso de·
pois do ;]braço. O fogo e a ~gua.
• A mim no peito o coração se oprime I só em te olhar; nem a voz consegue I da
mi.nha garganta, prolTOmperje desfeita I Cal;] a língua. / Fogo sUli!dentro do meu
corpo toda / Logo se espalha: os incenos alhos I Vagam sem nll1l0, os ouvidos f:lzem I Houco zumbido / Cubro-me toda de wor gelado / Tão p:ilicb quanto e["\.'a
murcha. / E j5 sem forÇ':1s,sem fôlego, íneJ1c/ Pareço moita (N. do T.).
50
pelo crime, não pelo amor: são cúmplices, não amantes; a
paixão solitária devora Pedra e o ciúme, Medéia. Para encontrar prefigurações e premonições do que seria o amm entre
nós é preciso ir a Alexandria e a Roma. O amor nasce na
grande cidade.
O primeiro grande poema de amor é obra de Teócrito: Afei- ~
ticeira.5 Foi escrito no primeiro quartel do século III a. C. e hoje,
mais de dois mil anos depois, lido em traduçôes que embora
boas não deixam de ser traduções, conserva intacta sua carga
passional. O poema é um longo monólogo de Simeta, amante
abandonada de Délfis. Começa com uma invocação à Lua em
suas três manifestações: Ártemis, Selene e Hécate a Terrível.
Vem depois a estranha relação entre Simeta e sua empregada,
esta recebendo ordens para que execute partes do ritual negro
a que as duas se entregam. Cada um desses sortilégios está marcado por um doloroso esttibilho: "Pájaro mágiCO, devuélveme a
1111 amante,
tráelo a mi casa,,6 ("Pássaro mágico, me devolva
meu amante, traga-o a minha casa"). Enquanto a empregada esparrama no chão um pouco de farinha queimada, Simeta diz:
"São os ossos de Délfis". Ao queimar um ramo de louro, que
solta faíscas e dissipa-se deixando apenas cinzas, condena o infiel: "Que assim se incendeie sua carne ..." Depois de oferecer
três libações a Hécate, joga ao fogo um pedaço do manto que
Délfis esquecera em sua casa e grita: "Por que, Eros cruel, te
agarraste na minha carne como uma sanguessuga? Por que chupas meu sangue negro?"Ao terminar sua conjura, Simeta pede a
sua acólita que jogue umas ervas na porta de Délfise nelas cuspa dizendo: "Trituro seus ossos". Enquanto Simeta recita seus
sortilégios, deixa escapar confissões e queixas: está possuída
5. Ou As [eiliceiras.
Segundo Marguerite Yourcenar a tradução literal é Os filtl"Os
Outro tradutor, jack Lindsay, prefere, numa decisão
mais acertada, usar como titulo o nome da herOll1a,Simeta.
6. Pájaro mágico: instrumento de feitiçaria composto de um disco de meia I com
duas perfurações e que se fazia girar Com uma corda. Representava o torcicolo, o
pássaro em que Hera transformou uma ninfa, culpada dos amores adúlteros de
Zeus com 10.
mágicos (Phal1llaceulria).
51
"
pelo desejo e o fogo que acende para queimar seu amante é
o fogo em que ela mesma se queima. Rancor e amor, tudo
junto: Délfis deflorou-a e abandonou-a, mas ela não pode viver sem esse homem desejado e abominável. É a primeira
vez que na literatura aparece - descrito com tal violência e
energia - um dos grandes mistérios humanos: a mistura
inextric.ávelde ódio e amor, despeito e desejo.
O furor amoroso de Simeta parece inspirado por Pã, O
deus sexual de cascos de bode, cuja corrida faz tremer o bosque e cujo hálito sacode as folhagens e provoca o delírio das
fêmeas. Sexualidade pura. Mas depois de cumprido o ritual,
Símeta se acalma como, sob a influência da lua, acalmam-se
as ondas e aquieta-se o vento nas árvores. Então se confia a
Selene como a uma mãe. Sua história é simples. Por seu relato adivinhamos que é uma jovem livre e de condição modesta (embora não tanto: tem uma empregada); vive sozinha
(fala de suas amigas e vizinhas, não de sua família); talvez,
para se manter, tenha algum ofício. É uma pessoa comum,
uma mulher jovem como outras milhares em todas as cidades
do mundo: Simeta podia viver hoje em Nova York, BUenos
Aires ou Praga. Certo dia as vizinhas a convidam à procissão
de Áltemis. Vaidosa, veste-se com sua melhor roupa e cobre
suas costas com um xale de linho emprestado por uma amiga. Encontra na multidão dois jovens, barbai ruivas e torsos
queimados de sol e reluzentes. Coup deJoudre: "Eu vi...", diz
Símeta, mas não diz quem. Para quê? Viu a própria realidade
em um corpo e um nome: Délfis. Perturbada, volta para casa
com uma idéia fixa. Passa dias e dias com febre e insônia. Simera consulta mágicos e bruxas, como agora consultamos os
psiquiatras e, como nós, sem nenhum resultado. Sofre
Ia dolencia de amor, que no se cura
sino con Iapresenta y Iafigura ..•.
• Sofre a doJência do amor, que não se cura / senão com a presença e a figura
(N. do T.).
52
Cheia de dúvidas - é pudica e orgulhosa - envia a Délfis uma mensagem. O jovem atleta se apresenta na hora marcada em sua casa e Simeta, ao vê-Ia, descreve sua emoção
quase com as mesmas expressôes de Safo: "Me cubrió toda
un sudor de bielo... no podía decir una pala bra, ni siquiera
esos balbuceos com que los ninas llaman a su madre en el
suefio,. y mi cuerpo, inerte, era el de una mufieca de cera"
("Toda me cobri de um suor gelado, não podia dizer uma palavra, nem sequer esses balbucios com que as crianças, dormindo, chamam suas mães; e meu corpo, inerte, era de uma
boneca de cera")?
Délfis se desfaz em promessas e nesse mesmo dia dorme
na cama dela. A esse encontro sucedem outros. De repente,
uma ausência de duas semanas e a inevitável intriga de uma
amiga: Délfis se apaixonou por outra pessoa, mas, diz a indiscreta, não sei se é um rapaz ou uma moça. Símeta termina
com um voto e uma ameaça: ama Délfis e vai atrás dele mas,
se ele a rejeitar, tem uns venenos que poderão matá-Ia. E se
despede de'Selene (e de nós): "Adiós, diosa serena: yo soporta ré como hasta ahora mi desdicha,. adtós, diosa de rastro 1'esplandeciente, adiós, est1'ellasque acompafian tu carro en su
pausada cm"rem a través de Ia noche en calma" ("Adeus, serena deusa: suportarei como até agora minha desgraça;
adeus, deusa derost0 resplandecente, adeus, estrelas que
acompanham teu carro em seu ritmo' lento através da noite
calma"). O amor de Simeta é feito de desejo obstinado, desespero, cólera, desamparo. Estamos ml.!'itolonge de Piarão.
Entre o que desejamos e o que estimamos há um abismo:
amamos aquílo que não estimamos e desejamos estar para
sempre com uma pessoa que nos faz infelizes. No amor aparece o mal: é uma sedução malsã que nos atrai e nos vence.
Mas quem se atreve a condenar Simeta?
7. Catulo também imitou, quase tel--rualmente, a passagem de Safo. Outro exemplo de como a poesia mais própria e pessoal é feita de imitaçãO e de invenção.
53
..
T..··
i
o poema
de Teócrito não poderia ter sido escrito na Atenas de Platâo. Nâo só pela misoginia ateniense, mas pela situação da mulher na Grécia clássica. Na época alexandrina,
que parece um pouco Com a nossa, ocorre uma revolução invisível: as mulheres, encerradas no gineceu, saem ao ar livre
e aparecem na superfície da sociedade. Algumas foram notáveis - não na literatura e nas artes, mas na política, como
Olímpia, a mãe de Alexandre, e Arsínoe, a mulher de Ptolomeu Filadelfo. A mudança não se limitou à aristocracia, estendendo-se a essa imensa e ruidosa povoação de comerciantes, artesãos, pequenos proprietários, empregados menores e toda essa gente que, nas grandes cidades, viveu e
ainda vive de conversa fiada. Além de seu valor poético, o
poema de Teócrito joga indiretamente alguma luz sobre a sociedade helênica. De certa forma é um poema de costumes; é
significativo que nos mostre não a vida dos príncipes e dos
potentados, mas sim a da classe média da cidade, com suas
pequenas e grandes paixôes, seus apuros, seu bom senso e
sua loucura. Por esse e outros poemas de Teócrito, assim
como pelas 'farsas' de Herondas, podemos ter uma idéia da
condição feminina e da relativa liberdade de movimentos das
mulheres.
Fazer de uma jovem pobre como Simeta o centro de um
poema passional que altemadamente nos comove, enternece
e faz sorrir foi uma imensa novidade literária e histórica. A primeira pertence a Teócrito e seu gêniO; a segunda, à sociedade
em que viveu. A novidade histórica do poema foi o resultado
de uma mudança social que, por sua vez, era conseqüência da
grande criação do período helênico: a transformação da cidade antiga. Apólis, fechada em si mesma e ciosa de sua autonomia, abriu-se ao exterior. As grandes cidades passaram a ser
cosmopolitas devido ao intercâmbio de pessoas, idéias, costumes e crenças. Entre os poetas do período helênico que figuram na Antologia palatina, vários eram estrangeiros, como o
54
sírio Meleagro. Essa grande criação civilizadora foi realizada
em meio a guerras e a monarquias despóticas que caracterizam essa época. E a maior conquista foi, sem dúvida, a aparição nas novas cidades de um tipo de mulher mais livre. O
'objeto erótico' começou a se transform:lr em sujeito. A préhistória do amor no Ocidente está, como eu já disse, em duas
grande cidades: Alexandria e Roma.
As mulheres - mais exatamente as patrícias - ocupam
um lugar destacado na história de Roma, tanto na República
como durante o Império. Mães, esposas, irmãs, filhas, amantes: não há um episódio da história romana em que não participe alguma mulher ao lado do orador, do guerreiro, do político ou do imperador. Umas foram heróicas, outras virtuosas
e outras infames. Nos anos finais da República aparece outra
categoria social: a cortesã. Ela logo se converteu em um dos
eixos da vida mundana e no objeto da crônica escandalosa.
Umas e outras, patrícias e cortesãs, são mulheres livres nos
diversos sentidos da palavra: por seu nascimento, seus meios
e costumes. Livtes, sobretudo, porque em uma forma desconhecida até então têm liberdade para aceitar ou rejeitar seus
amantes. São donas de seu corpo e de sua alma. As heroínas
dos poemas eróticos e amorosos vêm das duas classes. Por
sua vez, como em Alexandria, os poetas jovens formam grupos que conquistam a notoriedade tanto por suas obras
como por suas opiniôes, seus costumes e seus amores. Catu10foi um deles. Suas querelas literárias e suas sátiras não foram menos ruidosas que seus poemas de amor. Morreu jovem e seus melhores poemas são as confissões de seu amor
por Lésbia, nome poético que ocultava uma patrícia célebre
por sua beleza, posição e vida dissoluta (Clódia). Uma história de amor alternadamente feliz e infeliz, ingênua e CÍnica.A
união dos opostos - o desejo e o despeito, a sensualidade e
o ódio, o paraíso entrevisto e o inferno vivido - resolve-se
em breves poemas de concentrada intensidade. Os modelos
55
de Catulo foram os poetas alexandrinos, sobretudo Calímaco
- famoso na Antiguidade, mas de quem só sobreviveram
fragmentos - e Safo. A poesia de Catulo tem um lugar único
na história do amor pela concisa e afiada economia com que
expressa o mais complexo: a presença simultânea na própria
consciência do ódio e do amor, do desejo e do desprezo.
Nossos sentidos não podem viver sem aquilo que nossa ra~
zão e nossa moral reprovam.
O conflito de Catulo é semelhante ao de Simeta, embora
com variantes decisivas. A primeira é o sexo: nos poemas de
Catulo fala um homem. Diferença significativa: o homem, não
a mulher, é quem está em situação de dependência. A segunda: o herói não é uma' ficção e fala em seu próprio nome. Não
quero dizer com isso que os poemas de Catulo sejam simples
confissões ou confidências; neles, como em todas as obras
poéticas, há um elemento fictício. O poeta que fala é e não é
CatuIo: é uma persona, uma máscara que deixa ver o rosto
real e que ao mesmo tempo o oculta. Suas penas são reais e
também são figuras de linguagem. São imagens, representações. O poeta' converte seu amor em um tipo de romance em
verso, mas nem por isso menOs vivido e sofrido. Outra diferença: ela e ele, sobretudo ela, pertencem às classes superiores. Como são dois seres livres e de celto modo associais ela por sua posição, ele por ser poeta -, atrevem-se a romper
as convenções e regras que os amarram. Seu amor é um exercício de liberdade, uma transgressão e um desafio à sociedade. Este é um traço que figurará mais e mais nos anais da paixão amorosa, de Trtstão e Isolda aos romances de nossos dias.
Por último, Catulo é um poeta e seu reino é o da imaginação.
Ao contrário de Simeta, mais simples e mais rústica, não busca
a vingança com filtros e venenos; sua vingança assume uma
forma imaginária: seus poemas.
Três elementos do amor moderno aparecem em Catulo: a
escolha, a liberdade dos amantes; o desafio, o amor como uma
56
transgressão; e fmalmente, o ciúme. Catulo expressa em breves poemas, lúcidos e dolorosos, o poder de uma paixão que
se filtra pouco a pouco na consciência até paralisar nossa
vontade. Foi o primeiro a observar a natureza imaginária do
ciúme e sua poderosa realidade psicológica. É impossível
confundir esse ciúme com o sentimento da honra maculada.
Em atelo se misturam os ciúmes autênticos - amor a Desdêmona - com a cólera do homem ofendido. Mas é o amor, na
forma pervertida do ciúme, a paixão que o move: And I will
kill thee/And
love you ajter ("Eu te matarei,! para depois te
amar'). Por outro lado, os personagens dos dramas espanhóis, particularmente os de Calderón, não são ciumentos:
ao se vingarem, limpam a mancha, quase sempre imaginária,
que suja sua honra. Não estão apaixonados: são os guardiães
de sua reputação, os escravos da opinião pública. Como diz
um deles:
Ellegislador tirano
ha puesto en ajena mano
mi opinión y no en la mía.·
Em todos esses exemplos, incluindo o mais comovedor,
ateIo, o código social é determinante. Não em Proust, o gran-
de poeta moderno, não do amor, mas sim de sua secreção
venenosa, sua pérola fatal: o ciúme. Swann se sabe vítima de
um delírio. Não o liga a Odette nem a tirania da atração sexual, nem a do espírito. Anos depois, ao lembrar sua paixão,
confessa: I'E pensar que perdi os melhores anos de minha
vida com uma mulher que nem era meu tipo". Sua atração
por Odette é um sentimento inexplicável, salvo em termos
negativos: ela o fascina porque é inacessível. Não seu corpo:
sua consciência. Como a amada ideal dos poetas provençais,
é inatingível. É assim, apesar da facilidade com que se entrega, pelo mero fato de existir. Odette é infiel e mente sem pa-
•o
legislador lÍrano
(N. do T,).
I colocou
em mão alheia
I mínha
opinião, não na mínha.
57
"
"
rar, mas se fosse sincera e fiel também seria inacessível.
Swann pode tocá-Ia e possuí-Ia, pode isolá-Ia, prendê-Ia,
convertê-Ia em sua escrava: uma parte dela vai lhe escapar.
Ela será sempre outra. Odette existe realmente ou é uma ficção de seu amante? Sim, é uma presença, um rosto, um corpo, um cheiro e um passado que não serão nunca seus. A
presença é real e impenetrável: o que há por trás desses
olhos, dessa boca, desses seios? Swann nunca saberá. Talvez
nem a própria Odette saiba; não mente só a seu amante:
mente a si própria.
O mistério de Odette é o de Albertine e o de Gilberte: o
outro sempre nos escapa. Proust analisa interminavelmente
sua infelicidade, destrincha as mentiras de Odette e os subterfúgios de Albertine, mas se nega a reconhecer a liberdade
do outro. O amor é desejo de posse e é desprendimento; em
Proust é só o primeiro, e por isso sua visão do amor é negativa. Swann sofre, sacrifica-se por Odette, termina se casando
com ela e lhe dá seu nome: alguma vez ele a amou? Duvido,
e ele também duvidou. Catulo e Lésbia são associais; Swann
e Odette, amorais. Ela não o ama: usa-o. Ele tampouco a
ama: despreza-a. Contudo, não pode se separar dela: seus
ciúmes o aprisionam. Está apaixonado por seu sofrimento e
seu sofrimento é em vão. Vivemos com fantasmas e nós próprios somos fantasmas. Para sair desta prisão imaginária só
temos dois caminhos. O primeiro é o do erotismo, e já vimos
que termina em um muro. As perguntas do amante ciumento
"No que você pensa?" "O que você sente?" só têm a resposta
do sadomasoquismo - atormentar o outro ou a nós mesmos. Em ambos os casos o outro é inacessível e invulnerável.
Não somos transparentes nem para os outros e nem para nós
próprios. Nisso consiste a falta original do homem, o sinal
que nos condena desde o nascimento. A outra saída é a do
amor: a entrega, aceitar a liberdade da pessoa amada. Uma
loucura, uma quimera? Talvez, mas é a única pOlta do cárcere
S8
dos ciúmes. Há muitos anos escrevi: "O amor é um sacrifício
sem virtude"; hoje diria: "O amor é uma aposta, insensata,
pela liberdade. Não a minha, a alheia".
A época de Augusto é a da grande poesia latina: Virgílio,
Horácio, Ovídio. Todos nos deixaram obras memoráveis.
Poemas de amor? Os de Horácio e Ovídio são variações, freqüentemente perfeitas, dos temas tradicionais do erotismo,
quase sempre impregnados de epicurismo. E Virgílio?Santo
Agostinho disse: "Chorei por Dido quando deveria ter chorado por meus pecados". Grande elogio ao artista insuperável;
contudo, a descrição dos amores de Enéias e Dido é grandiosa como um espetáculo de ópera ou como uma tempestade
vista de longe: é admirável, mas não nos comove. Um poeta
muito mais imperfeito, Propércio, soube comunicar com
maior profundidade e imediatismo as dores e alegrias do
amor. Propércio inventa uma heroína: Cíntia. Mistura de ficção e realidade, é uma figura literária e uma pessoa real. Sabemos que existiu e conhecemos seu nome: Hóstia, embora
os eruditos discutam se foi uma cortesã ou uma mulher casada com um homem rico. Amores novelescos e, apesar disso,
muito reais: encontros, separações, infidelidades, mentiras,
entregas, disputas intermináveis, momentos de sensualidade,
outros de paixão, ira ou morosa melancolia.
A modernidade de Propércio é extraordinária. Acrescento
que é a modernidade de Roma - não uma grande cidade: a
cidade. Muitos dos incidentes e episódios que relatam algumas elegias parecem arrancados de um romance moderno
ou de um filme. Por exemplo: Cíntia decide passear pelos arredores de Roma com um amigo, aparentemente para honrar
a casta juno, mas na verdade, Vênus. Propércio decide se
vingar e organiza uma pequena brincadeira em um lugar retirado. Enquanto se diverte com duas cortesãs apanhadas em
lugares suspeitos - completam o quadro um flautista egípS9
cio e um anão que acompanha a música batendo palmas -,
Cintia irrompe, despenteada e furios"LBatalha campal, arranhadas e mordidas, fuga das duas intrusas e reclamações dos
vizinhos. Cmtia vence e, por fIm, perdoa seu amante (N-8).
Realismo, amor pelo pitoresco e o detalhe veraz, passional e
grotesco. Um humor que não perdoa nem o autor nem sua
amada. Pound descobriu esse humor e o fez seu. Mas a modernidade de Propércio não é só literária: é um marco na história da poesia amorosa.
Há uma elegia de Propércio que iriaugura um modo poético destinado a ter continua dores ilustres. Refiro-me à elegia
sétima do quarto livro. Alguns críticos a condenam: parecelhes de mau gosto por seu assunto e por algumas de suas expressões. Quanto a mim, perturba-me profundamente. O
poema começa com a declaração de um fato insólito e que o
poeta enuncia como se fosse algo natural e correto: "Não é
uma fábula, os manes existem; o fantasma dos monos escapa da pira e aparece entre nós". Qnria morreu e foi incinerada ontem. O lugar das cremações está ao lado de uma estrada
barulhenta como um cemitério de Paris ou Nova York.
Precisamente na hora em que seu amante lembra dela, o
fant;lsma se apresenta em seu leito solitário. É a mesma de
sempre, bela, embora um pouco mais pálida. Há detalhes
atrozes: uma parte da túnica está chamuscada e de seu dedo
anular desapareceu o anel de berilo, devorado pelo fogo.
Cíntia voltou para censurar suas infidelidades - esquece,
como sempre, as dela -, lembrar-lhe suas traições e reafirmar seu amor. O espectro termina com estas palavras: "Tu
podes agora andar com outras, mas logo serás meu, unicamente meu". É' alucinante o contraste entre o caráter sobrenatural do episódio e o realismo da descrição, um realismo marcado pela atitude e as palavras de C"mtia,suas queixas, seus
ciúmes, seus transportes eróticos, a túnica queimada, o anel
desaparecido. Ela revive sua paixão como se não tivesse
60
morrido: é uma verdadeira alma penada. Ao final de sua fúnebre entrevista, foge dos braços de seu amante, não por sua
vontade mas sim porque amanhece "e uma imperiosa lei ordena às sombras voltar às águas do Letes". E lhe repete:
"Você será meu e misturarei o pó de seus ossos com o pó dos
meus" (mecwn eris el mixtís ossíbus ossa leram). Mil e seiscentos anos depois Quevedo escreveria: polvo seré mas polvo enamorado ("pó serei, mas pó apaixonado").
Embora a literatura esteja cheia de fantasmas, nenhuma
dessas aparições tem a realidade terrivelmente física do espectro de Cíntia. Tampouco seu fúnebre erotismo: o fantasma dela se desprende dos braços de seu amante contra sua
vontade. Propércio inaugura um gênero que chegará até
Baudelaire e seus descendentes: a emrevista erótica com os
mortos. A Idade Média foi povoada de incubas e súcubos,
demônios que, na forma de homem e mulher, deslizavam
nos leims e copulavam com os frades e as virgens, os servos e
as senhoras. Estas aparições lascivas e as do 'demônio elo
meio-dia' - tentação dos filhos de Saturno, os religiosos e os
solitários que cultivavam o espírito - são diferentes do espectro de Cíntia. São espíritos infernais, não almas de defuntos. No Renascimento e no Barroco a visita do fantasma se associou ao neoplatonisl~1o. Há vários exemplos nessa tradição
poécica. O mais impressionante é o soneto de Quevedo:
"Amor constante más allá de Ia muerte" ("Amor constante
mais além da malte"). Um astro negro e branco, ardente e gelado.
De acordo com a doutrina platõnica, na hora da morte a
alma Ílnoltal abandona o corpo e sobe às esferas superiores ou
volta à ten-apara purgar suas faltas. O corpo se conompe e volta a ser matéria amorfa; as almas dos apaixonados se-proclll'am
e se unem. Nisso o cristianismo coincide com o platonismo, e
um exemplo são as almas dos adúlteros Paolo e Francesca que
giram juntos no segundo círculo do Inferno. Contudo, há uma
61
diferença substancial: ao contrário da doutrina platônica, o
cristianismo salva o corpo que, depois do ]uízo Final, ressuscita e vive a eternidade da glória ou a do Inferno.
Quevedo rompe com essa tradição e diz algo que não é
nem platônico nem cristão, algo que nossa crítica não estudou nem meditou. A alma do amante abandona sua forma
corporal mas, diz Quevedo, "no su cuidado", sua paixão.
Movida por esse desejo que faz arder seu sangue e até a medula de seus ossos, volta e arde misturada com as cinzas de
seu corpo. Ninguém, que eu saiba, deteve-se nesta menção
explícita do ritual pagão da incineração, reprovado pela Igreja. E mais: umas linhas depois, Quevedo diz que esses despojos continuarão vivendo e amando: "Será-n ceniza mas tendrán sentido ..." ("Serão cinzas mas terão sentido ..."). Blasfêmia enorme, desafio total à dupla tradição cristã e platônica.
Como este soneto passou pela Inquisição? Não sei... Estranha, trágica transgressão: o corpo deixará de ser um corpo
vivo, será matéria vil, cinza e pó; ainda assim, cominuará
amando. A diferença entre alma e corpo se desvanece: tudo
volta a ser pó mas pó animado, desejoso.
Na Idade Moderna a entrevista fúnebre com o fantasma
adota outras formas. Algumas estão impregnadas de religiosidade e vêem na amada morta e em sua visita uma promessa
de redenção: a Aurélia de Nerval ou a Sophie de Novalis. Outras vezes a visão se apresenta como uma culpável alucinação e ourras mais como a projeção de uma consciência perversa. Nas visões de Baudelaire triunfa o mal, com seu cortejo de vampiros e demônios. Não é fácil saber se essas
imagens são filhas de um espírito enfermo ou as formas do
remorso. O tema do fantasma erótico na literatura moderna é
muito vasto: nem é o momento de explorá-Ia nem me sintO
capaz de fazê-lo. Lembro somente de um poema de López
Ve1arde que combina a promessa religiosa de salvação pelo
amor, predileta dos românticos, com o realismo de Propér62
cio. Esse poema foi escrito um pouco antes da morte do poe~
ta, ficou inacabado e contém duas linhas indecifráveis. Tudo
isso faz o poema ainda mais impressionante.
O poema revela um estado de espírito admiravelmente
compatível com uma de suas palavras prediletas: soçobra.
Pode~se ler isso como uma premonição: é o relato de um sonho que o poeta chama 'apocalíptico', duplo anúncio de seus
últimos anos de vida e de umas núpcias fúnebres. É um sonho que expressa seus desejos e seus temores: poema de
amor a uma morta e terror diante da morte. López Velarde
poderia ter dito, como Nerval: "C'est Ia mort ou Ia morte?"
Sua visão é realista: embora não a mencione por seu nome, é
claro que a mulher da aparição é Fuensanta, seu amor juvenil
e a quem dedicou seu primeiro livro. Morta anos antes, em
1917, foi enterrada no Vale do México, longe de sua terra natal. Por isso a chama "Iaprisionera deI Valle de México". Também menciona a roupa com que foi enterrada, comprada
numa viagem de turismo. Ela usa umas luvas negras e o atrai
"ao oceano de seu sonho". Uma correspondência de arrepiar
entre os dois poemas: Propércio conta qué, embora a voz e a
figura do fantasma de Cíntia fossem as de um ser vivo, "os ossos de seus dedos estalavam ao mover-se de· suas frágeis
mãos"; López Velarde, menos brutalmente, diz que suas quatro mãos se enlaçaram "como se fossem os quatro cimentos
da fábrica dos universos" e se pergunta:
l-Conservabas tu carne en cada bueso?
El enigma de amor se velá entero
en Iaprudencia de tus guantes negros."
Os poemas de Catulo e Propércio são visões sombrias do
amor: ciúmes, traições, abandono, morte. Mas assim como,
diante do erotismo negro de Sade, surgem a paixão solar de
• Conservavas tua carne em cada osso? I O enigma do amor se revelou inteiro /
na. prudência de lUas luvas negras (N. do T.).
63
Lawrence e o grande Sim de aceitação de Mol1y BIoom, na literatura greco-romana há também poemas e romances que
celebram o triunfo do amor. Já mencionei o conto de Apuleio. Outro exemplo é Idílíos pastoris de Dafne e Cloé, a pequenâ'obra-prima de Longo. Os romances gregos do período
alexandrino e romano são ricos em histórias de am'or. Hoje
poucos lêem essas obras: em sua época foram imensamente
populares, como são agora os romances sentimentais. Também foram muito apreciadas nos séculos XVI e XVII. Cervantes confessa que a obra de sua velhice, Os trabalhos de Pérsíles e Sígismunda, que ele considerava seu romance mais perfeit:J e melhor escrito, tinha sido inspirado por Helidoro. A
crítica moderna acrescenta outra influência grega: a de Aquiles Tácio. Autores tão diversos como Tasso, Shakespeare e
Calderón admiraram Heliodoro e às vezes o imitaram. Conhecemos o amor que o adolescente Racine professava a
Teógenes e a Caricléia, os heróis do romance de Heliodoro;
surpreendido por seu severo mestre em plena leitura desse
autor profano, Racine sofreu sem protestar o confisco do livro, dizendo: "N&')importa, eu o tenho gravado na memória". Era explicável o interesse por esse tipo de obra: além de
ser muito diveltida pelas peripécias e aventuras que contava,
mostrava aos leitores dos séculos 1.'VI e 1.'VII um aspecto da
Antiguidade muito diferente ao da época clássica e mais próximo de suas preocupações e de sua sensibilidade. À diferençà dos romances latinos, como Satíricon e Metamorfoses (O
asno de ouro), que pertencem realmente à picaresca, o centro dos romances gregos é o amor, um tema que era também
o dos poetas do Renascimento e do Barroco.
A proeminência dos assuntos eróticos, sobretudo heterossexuais, é uma nota predominante na literatura e na arte
da época helênica. Não aparece na Grécia clássica. Michael
Grant observa que um dos poetas mais famosos desse período, Apolônio de Rodes, "foi o primeiro poeta que converteu
64
o amor num tema cardeal da poesia épica" ,8 Ele se refere à
história da paixão de Medéia por Jasão em Os argonautas.
Esse amor fora tema de tragédia para Eurípides; Apolônio o
transformou numa história romântica. Na Comédia Nova o
eixo da ação dramática é invariavelmente o amorde um jovem de boa família por uma hetaira ou escrava que, no final,
acaba sendo filha de um cidadão importante, roubada ao nascer. As heroínas de Eurípides eram rainhas e princesas; as de
Menandro, filhas de famílias burguesas. Também há nessas
obras muitas mulheres de modesta condição, como a Simeta
de Teócrito, ou conduzidas por um destino cruel ao estado
servil. As hetairas, que tinham gozado de uma posição elevada na Atenas de Péric1es, assim continuaram em Alexandria e
nas outras cidades. Nos romances de Heliodoro, Tácio e outros, os heróis são príncipes e princesas reduzidos pela sorte
caprichosa - que havia substituído o sévero Destino - à
condição de servos e outras desgraças. Suas complicadas e
fantásticas aventuras - prisões, fugas, combates, estratagemas para enganar déspotas lascivos e rainhas enciumadas tinham como fundo e acompanhamento os naufrágios, as travessias por deseltos e montanhas, as viagens por países bárbaros e de costumes exóticos. O exotismo sempre foi um dos
temperos das histórias de amor. Além disso, a viagem cumpria
outra função: a do obstáculo vencido. A função da viagem era
dupla: afastava os amantes e no final, inesperadamente, os
juntava, Depois de muitas penalidades, livres enfim da maledicência e da luxúria de tiranos e tiranas, ele e ela voltavam a
sua terra saudáveis, salvos e puros, para finalmente casar.
A sociedade clássica reprovou a paixão amorosa. Platão,
em Pedra, a considera um delírio. Mais tarde, em As leis, chegou até a proscrever a paixão homossex'Ual. Os outros filósofos não foram menos severos e até Epícuro viu no amor uma
8. Miçhael Gram.
1986,
From Ale:t:al1del"
10
Cleopalra,
Nova York, The Hellenistic World,
,
65
~.
::llIIi
.~
",
ameaça contra a serenidade da alma. Os poetas alexandrinos,
contudo, exaltaram o amor, embora não fechassem os olhos
diante de seus estragos. Eu já insinuei, anteriormente, as razões de ordem histórica, social e espiritual dessa grande mudança. Nas grandes cidades apareceu um novo tipo de homem e mulher, mais livre e dono do si. O ocaso das democracias e o surgimento de monarquias poderosas provocaram
uma retração geral em direção à vida privada. A liberdade
política deu lugar à liberdade interior. Nessa evolução de
idéias e costumes, foi decisiva a nova situação da mulher. Sabemos que pela primeira vez na história grega as mulheres
começaram a desempenhar ofícios e funções fora de suas casas. Algumas foram juízas, um fato que teria sido insólito para
Platão e Aristótelesj outras foram parteiras, outras se dedicaram aos estudos filosóficos, à pintura, à poesia. As mulheres
casadas eram bastante livres, como se nota pelas obscenidades nas conversas das loquazes comadres de Teócrlto e Herondas. O casamento começou a ser visto como um assunto
que não deveria ser resolvido unicamente entre os chefes de
família, mas sim como um acordo no qual era essencial a participação dos noivos. Tudo isso prova, uma vez mais, que a
emergência do amor é inseparável da emergência da mulher.
Não há amor sem liberdade feminina.
Um ateniense do século V a.c. era, antes de tudo, um cidadão; um alexandrino do século III a.c. era um súdito de
Ptolomeu Filadelfo. "O romance grego, a Comédia Nova e,
mais tarde, a elegia amorosa", diz Pierre Grimal, "só podiam
nascer numa sociedade que afrouxara os laços tradicionais
para dar ao indivíduo um lugar mais amplo ... O romance
abre as portas do gineceu e pula as muralhas do jardim onde
passeavam as filhas das famílias decentes". Isso foi possível
porque se criara um espaço íntimo de liberdade e esse espaço estava aberto ao olhar do poeta e do público. O indivíduo
privado aparece e, com ele, um tipo de liberdade desconhe66
cida; "A tradição encarcera e determina o herói trágico, enquanto o herói do romance é livre" 9. Os deveres políticos,
exaltados pela filosofia de Platão e Aristóteles, são deslocados pela busca da felicidade pessoal, a sabedoria ou a serenidade, à margem da sociedade. Pirro plocura a indiferença,
Epicuro a sobriedade, Zenão a impassibilidade: virtudes privadas. Outros buscam o prazer, como Calímaco e Meleagro.
Todos desdenham a vida política.
Em Roma os poetas elegíacos proclamam com certa ostentação que servem a uma milícia diferente daquela que combate nas questões civis ou conquista terras longínquas para
Roma: a militla amorls. Tibulo elogia a Idade ele Ouro porque, ao contrário da nossa, "que ensangüentou os mares e levou a mOlte a todas as paItes" , não conheceu a calamidade da
guerra: "Aa~e cmel do guerreiro ainda não havia fOliado a espada". As únicas batalhas que exalta Tibulo em seus poemas
são as do amor. Propércio é mais desafiador. Numa elegia ele
deixa a Virgílio a glória de celebrar a vitória ele Augusto em
ÁcciOjele prefere cantar seus amores com Cíntia, como o "voluptuoso Catulo, que fez Lésbia, com seus versos, mais famosa que Helena". Em outra elegia nos diz com desenvoltura o
que sente diante das façanhas patrióticas: "O divino César
(Augusto) se apressa a levar suas armas até o Indo ... a submeter as correntes do Tigre e o Eufrates ... a levar ao templo ele
Júpüer os troféus dos partos vencidos ... A mim me basta
aplaudir o desfile na Via Sacra..." Todos esses testemunhos de
Alexandria e Roma peltencem ao que eu chamei de pré~histó1"ia do amor. Todos eles exaltam uma paixão que a filosofia
clássica condenara como uma servidão. A atitude de Propérdo, Tibulo e os outros poetas era um desafio à sociedade e
suas leis, uma verdadeira premonição do que hoje chamamos
'desobediência civil'. Não em nome de um princípio geral,
9. Piem:: Grirnal. Introdução
Gallimard, 1958.
a ROl/ltlPlS grecs el {afins, Bibliothêque
de Ia Pléiacle,
67
<v!i
como no caso de Thoreau, mas sim por uma paixão individual como a do herói de A idade de ouro, o filme de Bunuel e
Dalí. Os poetas também poderiam ter dito que o amor nasce
de uma atração involunrária que nosso livre-arbítrio transforma numa ação voluntária. Este último é sua condição necessária, o ato que transforma a servidão em liberdade.
\
4
A dama e a sanla
A Antiguidade greco-romana conheceu o amor quase
sempre como uma p<1lxãodolorosa e, apesar disso, digna de
ser vivicl<1
e em si mesma desejável. Esta verdade, legada pelos
poeras de Alexandria e Roma, não perdeu nem um pouco de
sua vigência: o amor é desejo de completude e assim responde a uma necessidade profunda dos homens. O mito do andrógino é uma realidade psicológica: todos, homens e mulheres, buscamos nossa metade perdida. Mas o mundo antigo
não tinha uma doutrina de amor, um çonjunto de idéias, práticas e condutas encarnadas em uma coletividade e compaltilhaclas por ela, A teoria que poderia ter cumprido essa função,
o eros platônico, na verdade desnaturalizou o amor e o transformou num erotismo filosófico e contemplativo do qual,
além disso, estava excluída a mulher. No século XII, na França, aparece por fim o amor, não como um delírio individual,
uma exceção ou um extravio, mas como um ideal de vida superior. A aparição elo 'amor cortês' tem algo de milagroso,
pois não foi conseqüência de uma pregação religiosa nem de
uma doutrina filosófica. Foi a criação de um grupo de poetas
no seio ele uma sociedade reduzida: a nobreza feudal do sul
da antiga Gália. Não nasceu num grande império nem foi fru68
69
(I
(
(
"
to de uma velha civilização: surgiu num conjunto de senhorios semi-independentes, num período de instabilidade política mas ele imensa fecunclidade espiritual. Foi um anúncio,
uma primavera.~.O século XII foi o século do nascimento ela
Europa; nessa épõca surgem o que seriam depois as gmndes
criações de nossa civilização, entre elas duas das mais notáveis: a poesia lírica e a idéia do amor como forma de vida. Os
poetas inventaram o 'amor cortês'. Eles o inventaram porque
era uma aspiração latente daquela sociedade.1o
. A literatura sobre o 'amor cortês' é vastíssin'Íâ".Aqui s6 to·
carei em alguns pontos que me parecem essenciais em relação ao objeto destas reflexões. Em outros textos tratei este assunto e mais dois outros a ele relacionados: o amor na poesia
de Dante e na lírica do Barroco hispânico; neste ensaio não
volto a falar sobre isso. 11 O termo 'amor cortês' reflete a diferença medieval entre corte e uílfa. Não o amor villano - copulação e procriação -, mas sim um sentimento elevado,
pr6prio das cones senhoriais. Os poetas não o denominaram
'amor coltês'j usaram outra expressão: fin' a1120rs, quer dizer,
amor purificado, refinado.12 Um amor que não tinha por fim
nem o mero prazer carnal nem a reprodução. Uma ascética e
uma estética. Embora entre esses poetas houvesse personalidades notáveis, o que conta realmente é sua obra coletiva.13
As diferenças individuais, embora profundas, não impediram
,...
10.Poesia provençal é um termo inexalo lamo do ponto de viSta lingüística como
geográfico, mas cansagmdo pelo costume.
11-Todos os textos que menciono em seguida aparecem em diversos \'olumes de
minhas Obras completas: Apal'icl1cia desnuda (Ia obra de Marcel D/(c/;al/lpJ, pp.
233-247; em Los pli/Jilegios de Ia L'ista, T,tomo 6; Concilio ria IlIceros, pp. 242-262;
em SorjflaJ74 Inês de Ia CI'IIZ ouws trampas de laje, tomo 5: e Quevedo. Heráelito e alguns sonclOS, pp. 125-137, em Fundación)' disiriencia. tomo 3.
12.Amor em prOl'ençal é voz feminina. Contudo, para evitar confusões, quando
usar a expressão fin '(ImOI; reCOITOao gênero masculino.
13. Entre eles: Guilherme L'X,duque de Aquitânia (o primeiro poeta provcnça!),
Jaufre Rudel, j\·jarcabru, I3ernart de VcntadOnll, Amaut Danicl, Bertran de Bom, a
condessa de Dia (J3eatriz ou Tsoarda?), !'cire Vida], Pcirc CardcnaI... Sobre a poesia provençal a litel<ttura é abundante. Em espanhol temos um::!obra fundamental:
l\lartín de Riquier: Ios rromdores (história literária e textos), [rês tomos, Ariel, Darcelona, 1983.
70
que todos compartilhassem os mesmos valores e a mesma
doutrina. Em menos de dois séculos esses poetas criaram um
c6digo de amor, ainda hoje vigente em muitos de seus aspectos, e nos legaram as formas básicas da lírica do Ocidente.
Três notas da poesia provençal: a maior parte dos poemas
tem por tema o amor; esse amor é entre homem e mulher; os
poemas não são mais escritos em latim: os poetas queriam
ser entendidos pelas damas eVita nuova). Poemas não para
serem lidos, mas ouvidos, acompanhados por música, na
cour do castelo de um gran senhor. Essa feliz combinação
entre a palavra falada e a música s6 podia acontecer numa
sociedade aristocrática amiga dos prazeres refinados, composta por homens e mulheres da nobreza. E nisso reside sua
grande novidade histórica: o banquete platônico era s6 de
homens e as reuniões adivinhadas nos poemas de Catulo e
Propércio eram festas de lib~.rt,;(10'!),
cortesãs e aristocratas de
vida livre como C16dia.
Várias circunstâncias históricas tornaram possível o nascimento do 'amor cortês'. Em primeiro lugar, a existênCia desenhorios feudais relativamente independentes e ricos. O século XII foi um período de afluência: agricultura pr6spera, início da economia urbana, atividade comercial não s6 entre as
regiões européias, mas também com o Oriente. Foi uma época aberta ao exterior: graças às cruzadas os europeus tiveram
um contato mais estreito com o mundo oriental, com suas riquezas e suas ciências; por meio da cultura árabe redescobriram Arist6teles, a medicina e a ciência greco-romanas. Entre
os poetas provençais alguns participaram das cruzadas. O
fundador, Guilherme de Aquitânia, esteve na Síria e mais tarde na Espanha. As relações com esta última foram particularmente frutíferas tanto no domínio da política e do comércio
como no dos costumes; não era raro encontrar nas cortes dos
senhores feudais bailarinas e cantoras árabes do AI Andalus.
Ao começar o século XlI o sul da França foi um lugar privile··
71
giado no qual se entrecruzavam as mais diversas influências,
desde as dos povos nórdicos até as dos orientais. Essa diversidade fecundou os espíritos e produziu uma cultura singular
que não é exagero chamar de primeira civilização européia.
O aparecimento do 'amor cortês' seria inexplicável sem a
evolução da condição feminina. Essa mudança afetou sobretudo as mulheres da nobreza, que gozaram de maior liberdade
que suas avós nos séculos obscuros. Váriascircunstâncias favoreceram essa evolução. Uma foi de ordem religiosa:§..cristianismo outorgara à mulher uma dignidade desconhecida no paganismõ."Outra, a herança germânica: Tácito já tinha observado
com assombro que as mulheres germânicas eram muito mais livres que as romanas (De Germania). Finalmente, a situação do
mundo feudal. O casamento não era baseado no amor, mas sim
em interesses políticos, econômicos e estratégicos. Nesse mundo em perpétua guerra, às vezes em países longínquos, as ausências eram freqüentes e os senhores eram obrigados a entregar a suas esposas o governo de suas terras. A fidelidade entre
as partes não era muito rigorosa e há muitos exemplos de relações extraconjugais. Nessa época era muito popular a lenda arturiana dos amores adúlteros da rainha Guinévera com Lancelote, assim como a desgraça de Trismo e Isolda, vítimas de uma
paixão culpável. Por outro lado, aquelas damas pertenciam a
famílias poderosas e algumas não vacilavam em enfrentar seus
maridos. Guilherme de Aquitânia teve de suportar o fato de ser
abandonado por sua mulher que, refugiada numa abadia e aliada a um bispo, não descansou até conseguir sua excomunhão,14Entre as mulheres desse peno do destacou-se a figura de
Leonor de Aquitânia, esposa de dois reis, mãe de Ricardo Coração de Leão e patrona dos poetas. Váriasdamas da aristocracia
foram também trovadoras; já mencionei a condessa de Dia, famosa trobainlz. As mulheres desfrutaram de liberdades no pel-tA abadia de Fomevraulr, governada por uma abadessa. Guilherme a chamou
de 'abadia das putas'.
72
ríodo feudal e a perderam mais tarde pela ação combinada
da Igreja e da monarquia absoluta. O fenômeno de Alexandria e Roma se repetiu: a história do amor é inseparável da
história da liberdade da mulher,
Não é fácil determinar quais foram as idéias e doutrinas
que influíram no aparecimento do 'amor cortês'. Em todo
caso, foram poucas. A poesia provençal nasceu numa sociedade profundamente cristã. Contudo, em muitos pontos essenciais o 'amor cortês' se afasta dos ensinamentos da Igreja e
até mesmo se opõe a eles. A formação dos poetas, sua cultura
e suas crenças eram cristãs, mas muitos de seus ideais e aspirações estavam em luca com os dogmas do catolicismo romano. Eram crentes sinceros e, ao mesmo tempo, oficiavam num
culto secular e que não era o de Roma. Não parece que tal
contradição tenha perturbado essa gente, pelo menos não no
princípio; por outro lado, ela não passou despercebida pelas
autoridades eclesiásticas, que sempre reprovaram o 'amor
cOltês'. E quanto à influência da Antiguidade greco-romana?
Foi insignificante. Os poetas provençais conheciam os poetas
latinos de maneira vaga e fragmentada. Havia, sim, o precedente de uma literatura 'neolatina' de clérigos que escreviam
'epístolas amatórias' à maneira de Ovídio; segundo René Nelli
"não tiveram influência nem no estilo dos primeiros trovadores nem em suas idéias sobre o amor", 15Vários críticos afirmam que a prosódia da poesia litúrgica latina influiu na métrica e nas formas estróficas da lírica provençal. É possível. Seja
como for, os temas religiosos dessa poesia não podiam influir
nas canções eróticas dos provençais. Por último: O platonismo, o grande fermento erótico e espiritual do Ocidente. Embora não houvesse uma transmissão direta das doutrinas platônicas sobre o amor, é verossímil que tenham chegado aos
poetas provençais cenas noções dessas idéias por meio dos
árabes, Esta hipótese merece um comentário à palte.
15. René I':elli. L 'érotique des Iroubadoul's, Toulouse, 1963.
73
w,::-'.
-
Ao falar das relações entre a 'cortesia' árabe e a da Occitânia, René Nelli diz: "A influência mais prematura, profunda e
decisiva foi a da Espanha muçulmana. As cruzadas na Espanha ensinaram mais aos barões meridionais que as cruzadas
no Oriente". A maioria dos entendidos admite que os poetas
provençais adotaram duas formas poéticas populares árabeandaluzas: o zéjel- e a jarcha. Menciono, em seguida, outro
empréstimo de grande significação e que teve conseqüências
muito profundas não só na poesia mas também nos costumes
e nas crenças: a inversão das posições tradicionais do amante
e sua dama: O eixo da sociedade feudal era o vínculo vertical, ao mesmo tempo jurídico e sagrado, entre senhor e vassaIo. Na Espanha muçulmana os emires e os grandes senhores haviam se declarado servidores e escravos de suas amadas. Os poetas provençais adotam O costume árabe, invertem
a relação tradicional dos sexos, chamam a dama de sua senhora e se confessam seus servos. Numa sociedade muito
mais abena que a hispano-muçulmana e na qual as mulheres
gozav~llnde liberdades impensáveis sob o Islã, essa mudança
foi uma revolução. Inverteu as imagens do homem e da mulher consagradas pela tradição, afetou os costumes, atingiu o
vocabulário e, através da linguagem, a visão do mundo.
Acompanhando o uso dos poetas do AIAndalus, que chamavam suas amadas de sayyidi (meu senhor) e mawlanga (meu
dono), os provençais chamaram suas damas de midons
(meus do minis), É um uso que chegou até nossos dias. A
masculinização do tratamento das damas tendia a destacar a
alteração da hierarquia dos sexos: a mulher ocupava a posição superior e o amante a do vassalo. O amor é subversivo,
Podemos agora abordar o difícil tema do pIatonisl110.Na
erótica árabe o amor mais sublime é o puro; todos os tratadis• Composição estr6fica da métrica popular dos mouros espanhóis (N, do T,),
74
tas exaltam a continência e elogiam os amores castos. Tratase de uma idéia de origem platônica, embora modificada
pela teologia islâmica. É conhecida a influência da filosofia
grega no pensamento árabe. Os ja/asifos (transcrição árabe
de filósofos) logo tiveram acesso às obras de AfÍstóteles e alguns trarados'platônicos e neoplatônicos. Há uma linha de filósofos árabes impregnados de neoplatonismo. É bom distinguir entre aqueles que concebiam o amor como um caminho
para a divindade e os que o circunscreviam à esfera humana,
embora com uma janela aberta para as esferas superiores.
Para a ortodoxia islâmica a via mística que busca a união com
Deus é uma heresia: a distância entre o Criador e a criatura é
infranqueável. Apesar dessa proibição, uma das riquezas espirituais do Islã é a mística sufi, que aceita a união com Deus.
Entre os poetas e místicos sufls, alguns foram mártires e morreram por suas idéias. À tendência ortodoxa pertencia Muhammod lbn Dawud, jurista e poeta ele Bagdá. Seu caso é
singular porque lbn Dawud foi também o autor de um livro,
Kitab-al-Zahra
(O livro dajlor), que é um tratado sobre o
amor e no qual é claramente perceptível a influência de O
banquete e Fedro: o amor nasce da visão de um corpo belo,
os graus do amor vão do físico ao espiritual, a beleza do amado como caminho para a contemplação das formas eternas.
Contudo, fiel à ortodoxia, lbn Dawud rejeita a união com
Deus: a divindade, eterna outrídade, é inacessível.
Um século depois, na Córdoba dos Omeyas, o filósofo e
poeta Ibn Hazm, uma das figuras mais atraentes do AI Andalus, escreve um pequeno tratado de amor, O cola'r da pomba,
traduzido hoje em quase todas as línguas européias. Nós temos a sorte de contar com a admirável versão de Emilio Garda GÓmez.16 Para Ibn Hazm o amor nasce, como em Platão,
16, Segundo Carda Gómez, O livro da fim' é provavelmente de 890 e O cola,· da
POII/M, de 1022, Em sua extensa introdução ao Colar da pomba (AJianza Editorial,
/lladrid, 1971), García Gómez faz uma interessante comparação entre as idéias de
Ibn Hazm e as do Arcipreste de Hita. Há a necessidade de um ensaio modemo
sobre O livro do bom 111110';
75
.c.'"
da visão da beleza física. Também fala, embora de maneira
menos sistemática, da escala do amor, que vai do físico ao espiritual. lbn Hazm menciona uma passagem de lbn Dawud
que, por sua vez, é uma citação de O banquete: ;(Meu parecer
(sobre a natureza do amor) é que consiste na união das almas
que andam divididas, em relação a como eram primeiro em
sua elevada essência, mas não como afirma lbn (Deus tenha
piedade deleO quando, apoiado na opinião de celto filósofo,
diz que as almas são 'esferas partidas', mas sim pela relação
que tiveram antes em seu altíssimo mundo ... " O filósofo é
PIarão e as 'esferas partidas' aludem ao discurso sobre os andróginos em O banquete. A idéia de que as almas se procuram neste mundo pelas relações que tiveram antes de descer
à Terra e encamar num corpo, também é de estirpe platônica: é a reminiscência.
Há outros ecos de Fedroem O colardapomba: "Vejo uma
forma humana mas, quando medito mais detidamente, creio
ver nela um corpo que v~m do mundo celeste das esferas". A
contemplação da formosura é uma epifania. Encontrei outro
eco de lbn Hazm, não nos poetas provençais, mas sim em
Dante. No primeiro capítulo de O colar da pomba lemos: "O
amor, em si mesmo, é um acidente e não pode, pOltanto, ser
supoI1e de outros acidentes" ("A essência do amor"). No capítulo 25 da Vila nuoua, quase com as mesmas palavras, se
diz: ';0 amor não existe em si como substância: é um acidente de uma substância". Em um e outro caso o sentido é claro:
o amor não é nem um anjo nem um ser humano (uma substância incorpórea inteligente), mas algo que acontece aos homens: uma paixão, um acidente. A diferença entre substância
e acidente é mais arístotélica que platônica, mas o que quero
enfatizar é a perturbadora
coincidência entre lbn Hazm e
Dance. À medida que passam os anos, parece-me que mais e
mais se confirma a idéia de Asín Palacios, o primeiro a descobrir a presença do pensamento árabe na poesia ele Dance.
76
Teriam os provençais conhecido o tratado de rbn Hazm?
Embora seja impossível dar uma resposta segura, há indícios
que parecem mostrar a influência do tratado árabe sobre o fin'
amors. Mais de 150 anos depois, André o Capelão escreve, a
pedido de Maria de Champagne, filha de. Leonor de Aquitânia,
um tratado sobre o amor: De arle honesta amandi, no qual repete idéias e fórmulas que figuram em O colar da pomba.17
Não é gratuito imaginar, além disso, que ances de escrito o tratado de André o Capelão (1185), os poetas conheciam, ainda
que de maneira fragmentada, as idéias da erótica árabe, ao
mesmo tempo em que assimilavam as formas métricas e o vocabulário amoroso de sua poesia. As afinidades são numerosas: o culto à beleza física, as escalas do amor, o elogio à castidade - método de purificação do desejo e não um fim em si
mesma - e a visão do amor como a revelação de uma realidade transumana, mas não como uma via para chegar a Deus.
Este úlcimo é decisivo: nem o 'amor cOltês' nem a erótica de
rbn Hazm são uma mística. Nas duas o amor é exclusivamente
humano, embora concenha reflexos de outras realidades ou,
como disse Hazm, ;do mundo das esferas'. Conclusão: a concepção ocidental do amor mostra maior e mais profunda afinidade com a dos árabes e persas que com a da Índia e do Extremo Oriente, Não é escranl1o: ambas são derivações ou,
mais exatamente, desvios de duas religiões monoteístas e
compartílham a crença numa alma pessoal e eterna.
O 'amor coltês' floresce na mesma época e na mesma região geográfica em que aparece e se estende a heresia cátara.18 Devido a suas pregações igualitárias e à pureza e integri17. 71)e al1 o/ COU/1/)' {we,
edição, tradução e introdução de].].
Parry,
Nova
York,
1941.
18. Do grego kcírbaros: puros, Por que suprimimos o 'agá' de kárbmos? O francês
o conserv~. Embora a Real Academia aceite e até aplauda a pretensão de fonetizar
totalmente a onografía do espanhol, ela é inútil e bárbara. Isso nos separa cada
vez mais de nossas raízes e das outras línguas européias, como se vê no caso de
posdaltl,
sicofogi'a, seudó/ll'1/lO e outros monstrengos.
77
<,:.'
dade de costumes de seus bispos, o cararismo conquistou rapidamenre uma vasta audiência popular. Sua teologia impressionou os letrados, a burguesia e a nobreza. Suas críticas
à Igreja Romana alentaram uma população cansada dos abusos do clero e das intrusões dos enviados papais. A ambição
dos grandes senhores, que desejavam se apoderar dos bens
da Igreja e se sentiam ameaçados pela monarquia francesa,
favoreceu também a nova fé. Por último, um sentimento coletivo que não sei se devo chamar nacionalista: o orgulho e a
consciência de compartilhar uma língua, costumes e cultura.
Um sentimento difuso mas poderoso: o de pertencer a uma
comunidade, a Occirânia, o país da língua de oe, rival do país
da língua de oi!. Duas sociedades, duas sensibilidades que
haviam se cristalizado em duas maneiras de dizer oui (sim),
essa partícula que nos define não pelo que negamos, mas
sim pelo que afirmamos e somos. Ao se enraizar na Occitânia, a religião cátara se identificou com a língua e a cultura do
país. Muitos dos grandes senhores e damas que protegeram
os trovadores tinham simpatia por essas doutrinas. Embora
houvesse trovadores cátaros - e nenhum deles escreveu
poesias amorosas - é natural uma certa relação entre o
'amor cOl1ês'e as crenças dos cátaros. Mas não contente com
essa verdade inócua, Denis de Rougemont foi mais longe:
acreditou que os poetas provençais tinham se inspirado na
doutrina cátara e que dela vinham suas idéias básicas. De dedução em dedução, chegou a afirmar que o amor ocidental
era uma heresia - e uma heresia que não sabia ser uma heresia. A idéia de Rougemont ê sedutora e confesso que durante algum tempo conquistou, sem reticências, minha adesão. Depois não concordei e explico por quê.
Mais que uma heresia, o catarismo foi uma religião, pois
sua crença fundamental é um duaJismo que se opõe à fé cristã em todas as suas modalidades - da católica romana à bizantina. Suas origens estão na Pérsia, berço de religiões dua78
listas. Os cátaros professavam não s6 a coexistência de dois
princípios - a luz e as trevas -, mas também, em sua versão
mais extrema, a dos albigenses, a das duas criações. Como
várias seitas gnósticas dos primeiros séculos, acreditavam
que a Terra era criação de um demiurgo perverso (Satã) e
que a matéria era, em si mesma, má. Acreditavam também na
transmigração das almas, condenavam a violência, eram vegetarianos, pregavam a castidade (a reprodução era pecado),
não condenavam o suicídio e dividiam sua Igreja em 'perfeitos' e simples cremes. O crescimento da Igreja cátara no sul
da França e ao norte da Itália é um fenômeno assombroso,
inexplicável: o dualismo é nossa resposta espontânea aos
horrores e às injustiças da Terra. Deus não pode ser o criador
de um mundo sujeito ao acidente, ao tempo, à dor e à morte;
só um demônio pode ter criado uma terra manchada de sangue e regida pela injustiça.
Nenhuma dessas crenças tem a menor afinidade com aS
do 'amor cortês'. Na verdade, deve-se dizer o contrário: há
oposição entre elas. O catarismo condena a matéria e essa
condenação alcança todo o amor profano. Por isso o casamemo era visto como um pecado: gerar ftlhos era propagar a
matéria, continuar a obra do demiurgo Satã. Tolerava-se o casamento, para o creme comum, como pis al!er, um mal necessário.[Q 'fin 'amors' o condena também, mas por uma razão diametralmente oposta: era um vínculo contraído, quase
sempre sem a vontade da mulher, por razões de interesse
material, político ou familiar.]por essa razão exaltava as relações fora do matrimônio, sóS a condição de que não estivessem inspiradas pela mera lascívia e fossem consagradas pelo
amor. O cátaro condenava o amor, incluindo o mais puro,
porque amarrava a alma à matéria: o primeiro mandamer-ito
da 'cortesia' era o amor a um corpo belo. O que era santo
para os poetas era pecado para os cátaros.
79
<.'
A imagem da escala figura em quase todos os cultos. Contém duas idéias; a de subida e a de iniciação. De acordo com
a primeira, o amor é uma elevação, uma mudança de estado:
os amantes transcendem, pelo menos por um momento, sua
condição temporal e, literalmente, se transportam a outro
mundo. De acordo com a segunda idéia, conhecem uma realidade oculta. Trata-se de um conhecimento não-intelectual:
o que contempla e conhece não é o olho do intelecto, como
em Platão, mas sim o do coração. É preciso acrescentar outro
aspecto, derivado não da tradição religiosa nem da filosófica,
mas sim da realidade feudal: o 'serviço' do amante. Como o
vassalo, o amante serve a sua amada. O 'serviço' tem várias
etapas: começa com a contemplação do corpo e do rosto da
amada e continua, conforme um ritual, com a troca de signos, poemas, entrevistas. Onde e quando termina? Se lemos
os textos, comprovamos que, durante o primeiro período da
poesia provençal, não havia erro possível: a consumação do
amor era o gozo carnal. Era uma poesia cavalheiresca, escrita
por senhores e dirigida às damas de sua classe social. Num
segundo momento aparecem os poetas profissionais; muitos
deles não pertenciam à nobreza e viviam de seus poemas,
uns perambulando de castelo em castelo e outros sob a proteção de um grande senhor ou de uma dama de alta linhagem. A ficção poética do princípio, que convertia o senhor
em vassalo de sua dama, deixou de ser uma convenção e refletiu a realidade social: os poetas, quase sempre, eram de categoria inferior à das damas para as quais compunham suas
canções. Era natural que se acentuasse a tonalidade ideal da
relação amorosa, embora sempre associada à pessoa da
dama. A pessoa: sua alma e seu corpo.
'
Não podemos esquecer que o ritual do 'amor cortês' era
uma ficção poética, uma regra de conduta e uma idealização
da realidade social. Assim, é impossível saber como e até que
ponto seus p~eceitos eram cumpridos. Também deve-se con80
siderar que durante a segunda época do 'amor cortês', que
foi seu apogeu, a maioria dos trovadores eram poetas de profissão e seus cantos expressavam não tanto uma experiência
pessoal vivida como uma doutrina ética e estética. Ao comporem suas canções de amor, cumpriam uma função social.
Mas é evidente, também, que os sentimemos e idéias que
aparecem em seus poemas correspondiam de algum modo
ao que pensavam, sentiam e viviam os senhores, as damas e
os clérigos das cortes feudais, Isto ressalvado, enumero os
três graus do 'serviço' amoroso: pretendente, suplicante e
aceito.19 A dama, ao aceitar o amante, o beijava e com isso
terminava seu serviço. Mas havia um quarto grau: o do amante carnal (drutz). Muitos trovadores não aprovavam que se
chegasse ao fach (ao fato: a copulação). Esta reserva se devia
certamente à mudança de categoria dos trovadores que haviam se convertido em poetas profissionais; seus poemas não
refletiam seus sentimentos e, além disso, era já muito grande
a distância que os separava das clamas. Às vezes não era só a
categoria, mas também a idade: eles ou elas eram velhos. Finalmente, pensava-se que a possessão matava o desejo e o
amor. Contudo, Martín de Riquier observa que a crítica moderna "deixou claro que o fin 'amors pode aspirar à união física... Se tal aspiração não existisse, não teria o menor sentido o gênero chamado alba, que supõe já consumada a união
entre os amantes".20 Entre outras coisas, essas canções, frescas como o amanhecer, iluminariam a lírica européia, desde
os rouxinóis de Shakespeare até os pássaros de Lope de
Vega:
Pareja de ruisefíores
que canta ta noche entera,
y yo com mi bella amiga
bajo ta enramada en flor,
19, René N'elli; op. cir,
20. Martín de Riquíer; op. cit,
81
',::)
hasta que grite el vigía
en 10 alto de Ia torre:
iarriba, amantes, ya es hota,
el alba baja dei mo12tel21•.
A idéia de que o amor é uma iniciação implica que é também uma prova. Antes da consumação física havia uma etapa
intermediária que se chamava assag ou assai: prova de amor.
Muitos poemas aludem a esse costume e entre eles um da
condessa de Dia e outro de uma trobairilz menos conhecida,
Azalais de Porcairagues, Esta última expressamente se refere
ao assaz":"Belo amigo ... logo chegaremos à prova (tost en ven,'em a l'assai) e me entregarei a vossa mercê". O assai abrangia, por sua vez, vários graus: assistir ao levantar e ao deitar da
dama; contemplá-Ia desnuda (o corpo da mulher era um mic1'Ocosmoe em suas formas se fazia visível a n3turez8 imeira
com seus vales, colinas e florestas); enfim, penetrar no leito
com ela e entregar-se
?? a diversas carícias, sem chegar à final
(coitus interruptus).--
Nosso poema "Razón de amor", que em seus primeiros
versos alude expressameme ao 'amor cOitês', oferece uma encantadora descrição do assai. Um jardim deliciosamente altifidai: "o lug8l' ameno". A fonte, as árvores floridas, os pássaros,
as rosas, o lírio, a sálvia, as violet8s, as ervas aromácicas: uma
primavera balsâmica. Aparece um jovem: é um 'escolar', vem
da Fr8nça ou da Itália, procurá alguém e se deita ao lado da
fonte: como faz calor, deixa as roupas por peito e bebe a água
fria do manancial. Chega uma donzela de rara beleza, seus
traços físicos e seu vestido são descritos com prazer: o manto
e o briz 1 de seda, o chapéu, as luvas. A jovem avança coitando
21. Poemr anônimo. l\'Hnhaversão é livre.
* Dois rouxinóis! que camam a noire toda! e eu com minha bela amiga!sob os
galhos em flori até que o vigia grite! do alto da torre:! para cima, amances, já é
hora,! a manhii desce da coBna! (N. elo T.)
22. Comentei esta cerimônia nas páginas finais de .t1pariellcia deSiluda ('iI obra de
Mareei Duchamp), no volume V1de minhas obras completas.
82
flores e enquanto as corta canta uma canção de amor. Ele se
levanta e vai a seu encontro: pergunta-lhe se "sabe de amor",
ela lhe responde que sim, mas que ainda não conhece seu
amigo. Por fim se reconhecem pelos presentes que um en-"
viou ao outro: ela é aquela que ele espera e ele é aquele que
ela busca. Ambos são adeptos da 'cortesia'. Os dois se apróximam, se abraçam, deitam "so eloltvar" ("debaixo das oI1veiras") ela tira o manto e o beija nos olhos e na boca: "tan grande sabor de mí había/sol fablar no me podía" ("tão grande sabor de mim havia/o sol queimar não me podia"). Assim,
acariciando-se, juntos durante longo tempo: "un grant pteza
alH estando/de nuestro amor ementando" ("estando ali uma
grande peça/o nosso amor comentanto") até que ela precisa
se despedir e vai embora, com muita pena e juramentos de
amor. O mancebo fica sozinho e diz: "Deque Ia ví fuera deI
huerto/porpoco nonfui muerto" ("Desde que a vi fora do horta/por pouco não me vi morto").
O texto que chegou até nós não parece completo; talvez
seja fragmento de um poema mais longo. Há certos elementos que fazem pensar que seja uma alegoria. Entre os galhos
de uma macieira o jovem descobre dois copos. Um é de prata
e contém um vinho claro e vermelho, deixado para seu amigo pela dona da horta. É a mesma que toma sol com o mancebo ISO elolivar' ou é outra, mencionada pela donzela e que
também o ama? O segundo copo é de água fria. O jovem confessa que a beberia de bom grado se não fosse pelo medo de
que estivesse enfeitiçada. Não tentarei decifrar esse misterioso poema: eu o citei só para mostrar, com um exemplo da língua espanhola, o ritual do assai, a prova do amor.
Entre o 'amor cortês' e o catarismo há pontos de contato
que também existem com o cristianismo e a tradição platônica. Estas afinidades são naturais: o assombroso e significativo
é que o '~:nor cortês' desde o prindpio tenha se manifestado
de maneira independente e com características que proíbem
83
"
confundi-Io cOm as crenças dos cátaros ou com os dogmas
da Igreja católica. Foi uma heresia tanto do cristianismo
como das crenças cátaras e da filosofia platônica do amor.
Melhor dizendo, foi uma di~sidência, uma transgressão. Digo
isso porque foi essencialmente secular, vivido e sentido por
seculares. Eu o chamei de culto porque teve ritos e fiéis, mas
foi um culto frente ou fora das igrejas e religiões. Este é um
dos traços que separam o erotismo do amor. O erotismo
pode ser religioso, como se vê no tantrismo e em algumas
seitas gnósticas cristãs; o amor sempre é humano. Assim,
pois, a exaltação do amor não era nem podia ser compatível
com o rigoroso dualísmo dos cátaros. No momento da grande crise do catarismo, que arrastou em sua queda a civilização provençal, o país invadido pelas tropas de Simon de
Montfort e as consciências violadas pelos inquisidores, é
compreensível que os poetas provençais, como o resto da
população, tenham mostrado simpatia pela causa dos cátaros. Não podia ser de outro modo: sob o pretexto de extirpar
uma heresia, o rei francês Luís Vm, em cumplicidade com O
papa Inocêncio III, que proclamou a cruzada contra os albigenses, estendeu seu domínio ao sul e acabou com a Occitânia. Naqueles dias terríveis todos os occitanos - católicos e
cátaros , nobres e burgueses, povo e.poetas - foram vítimas
da soldadesca de Simon de Montfort e dos cruéis inquisidores dominicanos. Mas não é nenhuma loucura supor que se,
por um milagre, os cátaros tivessem triunfado, eles também
teriam condenado o 'amor burguês'.
As razões da Igreja de Roma para condenar o fin'amcrs,
embora diferentes das dos cátaros, não eram menos poderosas. Antes de tudo, a atitude diante do casamento. Para a
Igreja é um dos sete sacramentos instituídos por Jesus Cristo.
Atentar contra sua integridade ou colocar em dúvida sua santidade não era unicamente uma falta grave: era uma heresia.
84
Para os adeptos do 'amor cortês', o casamento era um jugo
injusto que escravizava a mulher, enquanto o amor fora do
casamento era sagrado e conferia aos amantes uma dignidade espiritual. Como a Igreja, condenavam o adultério como
lascívia, mas o convertiam em sacramento se fosse ungido
pelo fluido misterioso do fin 'amors. A Igreja tampouco podia
aprovar os ritos da cortesia amorosa; se os primeiros passos,
embora pecaminosos, podiam parecer inócuos, não se podia
dizer a mesma coisa das diferentes cerimônias extremamente
sensuais que compunham o assai. A Igreja condenava a
união carnal, mesmo dentro do casamento, se não tivesse
como fim declarado a procriação. O 'amor cortês' não só era
indiferente a essa finalidade como seus ritos exaltavam um
prazer físico ostensivamente desviado da reprodução.
A Igreja elevou a castidade ao nível das virtudes mais altas. Seu prêmio era ultraterreno: a graça divina e, para os melhores, até mesmo a beatificação no céu. Os poetas provençais falavam muito de uma misteriosa exaltação, ao mesmo
tempo física e espiritual, por eles chamada de joí e que era
uma recompensa, a mais alta, do amor. Esta joi não era nem a
simples alegria nem o gozo, mas sim um estado de feli<;:idade
indefinível. Os termos com que alguns poetas descrevem a
joi fazem pensar que se referem ao gozo da possessão carnal,
embora refinado pela espera e a mesura: o 'amor cortês' não
era uma desordem e sim uma estética dos sentidos. Outros
falam do sentimento de união com a natureza por meio da
contemplação da amante nua, comparando-o com a sensação que nos emociona diante de celtas paisagens, como uma
manhã de primavera. Para outros, era uma elevação da alma
semelhante aos transportes dos místicos e ao êxtase dos filósofos e poetas contemplativos. A felicidade é, por essência,
indizível; a joi dos provençais era um gênero inusitado de felicidade e, assim, duplamente indizível. Só a poesia podia
aludir a esse sentimento. Outra diferença: a joí não era um
85
prêmio post-mortem como o outorgado à abstinência, e sim
uma graça natural concedida aos amantes que haviam depurado seus desejos.
Todas essas diferenças se conjugavam numa outra maior:
a elevação da mulher, que de súdita passava a ser senhora. O
'amor cortês' concedia às damas o senhorio mais apreciado:
o do seu corpo e sua alma. A ascensão da mulher foi uma revolução não só na ordem ideal das relações amorosas entre
os sexos, mas na realidade social. É claro que o 'amor cortês'
não conferia às mulheres direitos sociais ou políticos; não era
uma reforma jurídica: era uma mudança na visão do mundo.
Ao transtornar a ordem hierárquica tradicional, tendia a equilibrar a inferioridade social da mulher com sua superioridade
no domínio do amor. Nesse sentido foi um passo em direção
à igualdade dos sexos. Mas, aos olhos da Igreja, a ascensão
da dama se traduzia numa verdadeira deificação. Pecado
mortal: amar a uma crÍéHuracom o 8mor que devemos professar ao Criador. Idolatria, confusão sacríleg8 entre o terrestre e o divino, o temporal e o eterno. Compreendo que Rougemont tenha visto no amor uma heresia; também compreendo que W. H. Auden dissesse que o amor era 'uma
doença do cristianismo'. Para os dois não havia nem pode
haver saúde fora da Igreja. Mas compreender oma idéia não é
compartilhá-Ia - penso exatamente o contrário.
Em primeiro lugar, o amOr aparece em outras civilizaçôes:
o amor também é mna heresia do budismo, do taoísmo, e elo
Islã? Quanto ao amor ocidental, o que os teólogos e seus seguidores modernos chamam de deificação da mulher, foi na
verdade 0111 reconhecimento. Cada pessoa é única e por isso
não é abuso de linguagem falar da 'santidade da pessoa'. A
expressão, além disso, é de origem cristã. Sim, cada ser IlUmano, sem excluir os mais vis, encarna um mistério que não
seria exagerado chamar de santo ou sagrado. Para os cristãos
e os moçulmanos o grande mistério é a queda: a elos ho86
mens, mas também a dos anjos. A grande queda, o grande
mistério, foi o do anjo mais belo, o lugar-tenente das milícias
celestiais: Luzbel. A queda de Luzbel prenuncia e contém a
dos homens. Mas Luzbel, até onde sabemos, é irredimível:
sua condenação é eterna. O homem, ao contrário, pode pagar sua falta, transformar a queda em vôo. O amor é o reconhecimento, na pessoa amada, desse dom do vôo que distingue todas as criaturas humanas. O mistério da condição humana reside em sua liberdade: é queda e é vôo. E nisso
também reside a imensa sedução qoe exerce sobre nós o
amor. Não nos oferece uma via de salvação e muito menos é
uma idolatria. Começa com a admiração diante de uma pessoa, vem depois o entusiasmo e tudo cuimina com a paixão
que nos leva à felicidade ou ao desastre. O amor é uma prova
que a todos, felizes e desgraçados, enobrece.
O fim do 'amor cortês' coincide com '0 da civilização provença!. Os últimos poetas se dispersaram; alguns se refugiaram na Catalunha e na Espanha, outros na Slcília e no norte
da Itália. Mas antes de morrer a poesia provençal fecundou o
resto da Emopa. Por soa influência as lendas celtas do ciclo
arturiano transformaram-se e, graças a sua popularidade, a
'c01tesia' se converteu num ideal de vida. Chrétien de Troyes
foi o primeiro a inserir na matéria épica tradicional a nova
sensibilidade. Seo romance em verso sobre os amores ilícitos
de Lancelote com a rainha Guinévera foi moita imitado. Entre
todos esses relatos, destaca-se o de Tristão e Isolda, arquétipo até nossos dias do que se chamou de amor-paixão. Na
história de Tristão há elementos bárbaros e mágicos que lhe
conferem uma grandeza sombria, mas que a separam do ideal
da 'cortesia'. Para os provençais, que nisso seguem Ibn Hazm
e a erótica árabe, o amor é o fruto de uma sociedade refinada;
não é uma paLxãotrágica, apesar dos sofrimentos e penas dos
apaixonados, porque seu fim último é a joi, essa felicidade
87
'.::."
que resulta da união entre o gozo e a contemplação, o mundo natural e o espiritual. Nos amores de Tristão com Isolda os
elementos mágicos - a poção que bebem inadvertidamente
os amantes - contribuem poderosamente para realçar as
forças irracionais do erotismo. Vítimas desses poderes, os
amantes não têm outra saída senão a mOlte. A oposição entre
esta visão negra da paixão e a da 'cortesia', que a vê como
um processo purificador que nos leva à iluminação, constitui
a essência do mistério do amor. Dupla fascinação diante da
vida e da morte, o amor é queda e vôo, escolha e submissão.
A influência dessa literatura, que misturava as lendas bárbaras com a 'cortesia', foi imensa. Um célebre episódio da Divina comédia ilustra o poder que exerceu sobre os espíritos.
Dante encontra, °nosegundo círculo do 'Inferno', o dos luxuriosos, Paolo e Francesca. Interrogada pelo poeta, Francesca
lhe conta que um dia, enquanto ela e Paolo liam juntos um livro que narrava os amores de Lancelote e Guinévera, descobriram o amor que sentiam um pelo outro e que os levou à
morte. Ao chegar no trecho em que Lancelote e Guinévera,
unidos por sua paixão, beijam-se pela primeira vez, pararam
a leitura e olharam-se perturbados. Então
questi, cbe mai da me nonfia diviso,
Ia bocca me bascíõ tremante?3 .•
e Francesca comenta: "QueZ gim'no piú non vi Zegemmo avante..." ("Naquele dia, não mais continuamos a ler. .."i4. Discutiu-se muito se Dante teve pena ou não da sorte do infeliz
casal. O certo é que, ao ouvir sua história e vê-Ias no inferno,
desmaiou.
Em boa teologia, a sorte dos pecadores só pode nos inspirar desgosto ou repugnância. O contrário seda uma blasfê23. Este, de quien jamás
sl!r~ apm1ada,
Angel Crespo).
• Este, de quem jamais me separarei,
24.
fo,'o
88
/ Ia boca me pesó lodo (mIJelante (verso de
I a minha boca beijou, fremente
leímos mas desde ese i11Slallte... (idem)
(N. do T.).
mia: duvidar da justiça divina. Mas Dante era também um pecador e seus pecados eram sobretudo de amor, como Beatriz
o faz lembrar mais de uma vez. Talvez por isso e pela simpatia que sentia por Francesça - era amigo de sua família mudou um pouco a história; no romance é Guinévera quem
primeiro beija Lancelote. Dante se propunha unir o teólogo
ao poeta, mas nem sempre conseguiu isso. Como todos os
poetas do doZce sull nuovo, conhecia e admirava os provençais. No episódio de Paolo e Francesca alude duas vezes à
doutrina do 'amor cortês'. A primeira é um eco de seu mestre,
Guido Guinizelli, que via o amor como uma aristocracia do
coração: "AmO'; ch 'aZcor gentil ratto s'apprend" ("Amor, que
ao coração gentil velozmente se apega"). O amor é uma confraria espiritual e só aqueles de alma generosa podem amar
realmente. A segunda repete uma máxima de Anclré o Cape~
lão: "AmOl; cb 'a nullo amato amar perdona" (';Amor, que a
todo amado exige amar"). Amor manda e desobedecê-Ia,
para a alma nobre, é impossível. Francesca, ao repetir esta
máxima, não se desculpa de seu amoroso pecado? E essa
desculpa não é também um novo pecado? Que terá realmente pensado Dante de tudo isso?
Dante mudou radicalmente o 'amor cortês' ao colocá-Ia
na teologia escolástica. Dessa forma reduziu a oposição enue
o amor e o cristianismo. Ao introduzir uma figura feminina de
salvação, Beatriz, como intermediária entre o céu e a terra,
transformou o caráter da relação entre o amante e a dama.
Beatriz continuou ocupando a posição superior, mas o vínculo entre ela e Dante mudou de natureza. Alguns se perguntaram: era amor realmente? Mas se não era, por que ela intercedia por um pecador em particular? O amor é exclusivo; a caridade não é: preferir uma pessoa entre outras é um pecado
contra a caridade. Assim, Dante continua preso pelo 'amor
cortês'. Beatriz cumpre, na esfera do amor, uma função análoga à da Virgem Maria no domínio das crenças gerais. Muito
89
iiiiiiiiiiiiiII
"
bem, Beatriz não é uma intercessora universal: é movida pelo
amor a uma pessoa. Em sua figura há uma ambigüidade: Beatriz é amor e caridade. Acrescento outra ambigüidade, não
menos grave; Beatriz é casada. De novo Dante segue o 'amor
cortês' - e numa de suas mais ousadas transgressões da moral cristã. Como justificar a solicitude com que Beatriz cuida
da saúde espiritual de Dante se não é pela intervenção do
amor?
Também era casada Laura, a amada de Petrarca (aliás, antepassada do marquês de Sade). Não se trata, naturalmente,
de uma coincidência: os dois poetas foram fiéis ao arquétipo
do 'amor cortês'. O fato é particularmente significativo se pensamos que Dante e Petrarca não só foram poetas de gênio distinto, mas que suas concepções sobre o amor também eram
diferentes. Pp.trarcaé um espírito menos forte que Dante; sua
poesia não abarca a totalidade do destino humano, suspenso
pelo fio do tempo entre duas eternidades. Mas sua concepção
do amor é m:::ismoderna: nem sua amada é uma mensageira
do céu nem entreabre os mistérios sobrenaturais. Seu amor é
ideal, não celeste; Laura é uma dama, não uma S~lnta.Os poemas de Petrarca não relatam visões sobrenaturais: são análises
sutis d2 paixão. O poeta se compraz nas antíteses - o fogo e
o gelo, a luz e a treva, o vôo e a queda, o prazer e a dorporque ele próprio é o teatro do combate de paixões opostas.
Dante ou a linha reta; Petrarca ou o contínuo ziguezague.
Suas contradições o imobilizam até que novas contradições o
coloquem de novo em movimento. Cada soneto é uma arquitetura aérea que se dissipa para renascer em outro. O Can~
zionere, diferente da Divina comédia, não é o relato de uma
peregrinação e uma subida; Petrarca vive e descreve um interminável debate com ele próprio e em si mesmo. Vive para
dentro e não fala a não ser com seu interior. É o primeiro
poeta moderno; quero dizer, o primeiro que tem consciência
de suas contradições e as convelte em substâncirt de sua poe90
sia. Quase toda a poesia européia do amor pode ser vista
como uma série de glosas, variações e transgressões do Canzionere. Muitos poetas superam Petrarca nisso ou naquilo,
embora poucas vezes na totalidade. Penso em Ronsard, Donne, Quevedo, Lope de Vega e, enfim, nos grandes líricos do
Renascimento e do Barroco. Ao fmal de sua vida, Petrarca sofreu uma crise espiritual e renunciou ao amor: julgava-o um
extravio que havia posto em perigo sua salvação, segundo
nos conta em suas confissões (Secretum). Seu mestre foi Santo Agostinho, outro grande apaixonado e mais sensual que
ele. Sua retratação foi também uma homenagem - um reconhecimento dos poderes do amor.
O legado provençal foi duplo: as formas poéticas e as
idéias sobre o amor. Por meio de Dante, Petrarca e seus sucessores, até os poetas surrealistas do século XX, esta tradição chegou até nós. Vive não só nas formas mais elevadas da
arte e da literatura do Ocidente, mas também nas canções,
nos filmes e mitos populares. A princípio, a transmissão foi
direta: Dante falava o lemosim, e no Purgatório, quando aparece Arnaut Daniel, o faz falar em verso e na língua de oe.
Também Cavalcanti, que viajou pelo sul da França, conhecia
o provençal. O mesmo aconteceu com todos os'poetas dessa
geração. Embora hoje só um grupo de pessoas fale a língua
de De, a tradição que fundou a poesia provençal não desapareceu. A história do 'amor cortês', suas mudanças e metamorfoses, não é só a de nossa arte e literatura: é a história de nossa sensibilidade e dos mitos que incendiaram muitas imaginações desde o século XII até nossos dias. A história da
civilização do Ocidente.
91
<~
~'
)
Um
sistema solar
Se fizermos uma retrospecriva da literatura ocidental durante os oito séculos que nos separam do 'amor cortês', logo
comprovaremos que a imensa mabria desses poemas, peças
de teatro e romances têm o amor como tema, Uma das funções da literatura é a representação das paixões; a preponderância do tema amoroso em nossas obras literárias mostra
que o amor tem sido o tema central dos homens e mulheres
do Ocidente. Outro tema é o do poder, desde a ambição politíca à sede de bens materiais ou de honrarias. No curso destes oito séculos, teria mudado o arquétipo que nos legaram
os poetas provençais? A resposta a essa pergunta exige mais
de um minuto de reflexão. As mudanças foram tantas que é
qU~.seim!-,,Jssívelenumerá-Ias; não menos difícil seria tentar
uma análise de cada tipo ou variante da paixão amorosa. Da
dama dos provençais até Anna Karenina muitas foram as mudanças; começaram com Dante e conr;nuam até os dias de
hoje. Cada poeta e cada romancista têm uma visão própria
do amor; alguns até têm várias, e enca •.nadas em personagens diferentes. Talvez o mais rico em personagens seja Shakespeare: ]ulieta, Ofélia, Marco Antônio, Rosalinda, Otelo ...
93
<,
Cada um deles é o amor em pessoa e é diferente dos outros. O
mesmo podemos dizer de Balzac e sua galeria de apaixonadas e apaixonados, de uma aristocrata como a duquesa de
Langeais a uma plebéia saída de um bordeI como Esther Gobsek. Os apaixonados de Balzac vêm de todas as classes e dos
quatro pontos cardeais. Ele atreveu-se até mesmo a romper
uma convenção respeitada desde a época do 'amor cortes' e
em sua obra aparece pela primeira vez o amor homosse)'.'lJal:
a paixão sublimada e casta do antigo presidiário Vautrin por
Lucien de Rubempré, "bomme àfemmes", e da marquesa de
San Rafael por Paquita Valdés, a "fiUe aux yeux d'or". Diante
de tal variedade, podemos concluir que a história elasliteraturas européias e americanas é a história das metamolfoses do
amor.
Tão logo a enuncio, sinto que preciso retificar e nuançar
minha conclusão: nenhuma dessas mudanças alterou, em sua
essência, o arquétipo criado no século XII. Há cel1asnotas ou
traços distintivos do 'amor cortês' - não mais de cinco,
como veremos adiante - que estão presentes em todas as
histórias de amor de nossa literatura e que, além disso, têm
sido a base das diferentes idéias e imagens que sempre tivemos sobre esse sentimento desde a Idade Média. Algumas
idéias e convenções desapareceram, como a de ser casada a
dama e peltencer à nobreza ou de serem de sexo distinto os
apaixonados. O resto permanece, esse conjunto de condições
e qualidades antitéticas que distinguem o amor das outras paixões: atração/escolha, liberdade/submissão, fidelidade/traição, alma/corpo. Assim, o verdadeiramente assombroso é a
continuidade de nossa idéia do amor, não suas mudanças e
variações. Francesca era uma vítima do amor e a marquesa
de Merteuil uma algoz, Fabricio deI Dongo escapa das armadilhas que arruinam Romeu, mas a paixão que os exalta ou
os devora é a mesma. Todos são heróis e heroínas do amor,
94
V'
esse sentimento estranho que é simultaneamente uma atração fatal e uma livre escolha.
Um dos traços que defmem a literatura moderna é a crítica; quero dizer, ao contrário do passado, não só canta os heróis e relata sua ascensão e queda, como também os analisa.
Dom Quixote não é Aquiles e em seu leito de morte entregase a um amargo exame de consciência; Rastignac não é o piedoso Enéias, ao contrário: sabe que é desapiedado, não se arrepende e, cínico, confessa isso a si próprio. Um intenso poema de B~udelaire se chama "L'examen de minuit". O objeto
da predileção de todos esses exames e análises é a paixão
amorosa. A poesia, o romance e o teatro modernos sobressaem pelo número, a profundidade e a sutileza de seus estudos sobre o amor e seu cortejo de obsessões, emoções e sensações. Muitas dessas análises - por exemplo, a eleStendhal
- foram dissecações; o surpreendente, contudo, é que em
cada caso essas operações de cirurgia mental terminam em
ressurreições. Nas páginas finais de A educação sentimental,
talvez a obra mais perfeita de Flaubert, o herói e um amigo
da juventude fazem um resumo de suas vidas: "Um sonhou
com o amor, o outro com o poder, e os dois fracassaram. Por
quê?" A essa pergunta, o protagonista, Fréderic Moreau, responde: "Talvez a falha tenha residido na linha reta". Ou seja:
a paixão é inflexível e desconhece acomodações. Resposta
reveladora, sobretudo se repararmos que quem fala é um alterego de Flaubelt. Mas Fréderic-Flaubert não está decepcionado com o amor; apesar de seu fracasso, continua achando
que foi a melhor coisa que podia lhe acontecer e a única que
justificava a futilidade da vida. Fréderic estava decepcionado
consigo própria; melhor dizendo, com o mundo em que tinha de viver. Flaubert não desvaloriza o amor: descreve sem
ilusões a sociedade burguesa, esse tecido execrável de compromissos, fraquezas, perfídias, pequenas e grandes traições,
sórdido egoísmo. Não foi engenhoso, mas veraz quando dis95
se: j'vfaclame Bovary c'est moi. Emma Bovary foi, como ele
próprio, não uma vítima do amor, mas de sua sociedade e de
sua classe; o que teria sido dela se não tivesse vivido na sór~
dida província francesa? Dante condena o mundo a paltir do
céu: a literatura moderna o condena a partir da consciência
pessoal ultrajada.
A continuidade de nossa idéia do amor ainda espera sua
história; a variedade de formas em que se manifesta, espera
uma enciclopédia. Mas há outro método mais próximo da
geografia que da história e do registro; desenhar os limites
entre o amor e as outras paixões como aquele que esboça o
contorno de uma ilha no arquipélago. Isto é o que eu me
proponho a fazer no curso destas reflexões. Deixo ao historiador a imensa tarefa, muito além das minhas forças e de mi~
nha capacidade, de narrar a história do amor e de suas metamorfoses; ao sábio, um trabalho igualmente imenso:, a classificação das variantes físicas e psicológicas dessa paixão,
Minha intenção é muito mais modesta.
No começo, procurei deslindar os domínios da sexualidade, do erotismo e do amor. Os três são modos, manifestações
da vida. Os biólogos ainda discutem sobre o que é ou pode
ser a vida. Para alguns é uma palavra vazia de significado; o
que chamamos vida não é nada senão um fenômeno quúnico, o resultado da união de alguns ácidos. Confesso que nunca me convenceram essas simplific<1ções. Se a vida, por
exemplo, começou em nosso planeta pela associação de dois
ou mais ácidos (e qual foi a origem desses ácidos e como
apareceram na Terra?), é impossível reduzir a evolução da
matéria viva, desde os infusórios até os mamíferos, a uma
mera reação química. O certo é que o trânsito da sexualidade
. ao amor se caracteriza tanto por uma crescente complexidade como pela intervenção de um agente que leva o nome de
uma linda princesa grega: Psiquê. A sexualidade é animal; o
96
erotismo é humano. É um fenômeno que se manifesta dentro
de uma sociedade e que consiste, essencialmente, em desviar
ou mudar o impulso sexual reprodutor e transformá-l o numa
representação. O amor, por sua vez, também é cerimônia e
representação, mas é alguma coisa mais: uma purificação,
como diziam os provençais, que transforma o sujeito e o objeto do encontro erótico em pessoas únicas. O amor é a metáfora final da se);ualídade. Sua pedra de fundação é a liberdade: o mistério da pessoa.
Não há amor sem erotismo como não há erotismo sem
sexualidade. Mas a cadeia se rompe em sentido contrário:
amor sem erotismo não é amor e erotismo sem sexo é impensável e impossível. Às vezes é difícil distinguir entre amor e
erotismo; por exemplo: na paixão violentamente sensual que
unia Paolo a Francesca. Apesar disso, o fato de que sofressem
juntos sua pena, sem poder nem, sobretudo, querer se separar, revela que o amor realmente os unia. Embora seu adultério fosse particularmente grave - Paolo era irmão de Giovanni Malaresta, o esposo de Francesca - o amor refinara
sua luxúriaj a paixão, que os mantém unidos no inferno, se
não os salva, os enobrece.
É mais fácil distinguir entre o amor e os outros afetos menos impregnados de sexualidade. Costuma-se dizer que amamos nossa pátria, nossa religião, nosso partido, certos princípios e idéias. É claro que em nenhum desses casos se trata do
que chamamos amor: em todos eles falta o elemento erótico,
a atração por um corpo. Amamos uma pessoa, não uma abstração. Também se utiliza a palavra amor para designar o afeto que professamos a nossos familiares: pais, filhos, irmãos e
outros parentes. Nessa relação não aparece nenhum dos elementos da paixão amorosa: o descobrimento da pessoa amada, geralmente desconhecida; a atração física e espiritual; o
obstáculo que se interpõe entre os amantes; a busca da reciprocidade; enfim, o ato de escolher uma pessoa entre todas
97
as que nos rodeiam. Amamos nossos pais e nossos filhos porque assim nos ordena a religião ou o costume, a lei moral ou
a lei do sangue. Alguém me perguntará: e o complexo de Édipo e de Electra, a atração por nossos pais, não é erótica?A pergunta merece resposta por partes.
O famoso complexo, qualquer que seja sua verdadeira
pertinência biológica e psicológica, está mais perto da sexualidade que do erotismo. Os animais não conhecem o tabu do
incesto. Segundo Freud, todo o processo inconsciente da sexualidade, sob a tirania do superego, consiste precisamente
em desviar esse primeiro apetite sexual e, transformado em
inclinação erótica, dirigi-Io a um objeto distinto e que substitui a imagem do pai ou da mãe. Se a tendência edípica não se
transforma, aparece a neurose e, às vezes, o incesto. Se o incesto se dá sem o consentimento de um dos participantes, é
claro que existe estupro, violação, engano, qualquer coisa,
mas não amor. É diferente se há atração mútua e livre aceitação dessa atração; mas então o afeto familiar desaparece: já
não existem nem pais nem filhos, só amantes. Acrescento
que o incesro entre pais e filhos não é freqüente. A razão provavelmente é a diferença de idades: é o momento da puberdade, o pai e a mãe já envelheceram e deixaram de ser desejáveis. Entre os animais não existe a proibição do incesto,
mas neles o período necessário para alcançar a plena sexualidade é muito breve. O incesto humano quase nunca é voluntário. As duas filhas de LOtembriagaram seu pai duas noites
seguidas para se aproveitar de seu estado; e quanto ao incesto paterno, todos os dias lemos nos jornais histórias d,e pais.
que abusam sexualmente de seus filhos. Nada disso tem relação com o que chamamos amor.
Para Freud as paixôes são jogos de reflexos; acreditamos
amar a X, seu corpo e sua alma, mas na realidade amamos a
imagem Y em X. Sexualismo fantasmagórico que converte
tudo que toca em reflexo e imagem. Na literatura não apare98
ce o incesto entre pais e filhos como uma paixãó livremente
aceita: Édipo não sabe que é filho de ]ocasta. A exceção são
Sade e outros poucos autores dessa família: seu tema não é o
amor, mas sim o erotismo e suas perversôes. Por outro lado,
ao amor entre irmãos devemos uma obra esplêndida deJohn
Ford (It'sa pitty she 'is a whore - Pena que ela seja uma
puta) e páginas memoráveis de Musil em seu romance O homem sem qualidades. Nesses exemplos - há outros - a
cega atração, uma vez reconhecida; é aceita e escolhida. É o
contrário justamente do afeto familiar, no qual o elemento
voluntário, a opção, não aparece. Ninguém escolhe seus
pais, seus filhos e seus irmãos; todos escolhemos nossas
amantes e nossos amantes.
O amor filial, fraternal, paternal e maternal não são amor:
são p'iedade, no sentido mais antigo e religioso dessa palavra.
Piedade vem de pietas. É o nome de uma virtude, nos diz o
Dicionário de autoridades, que "move e incita a reverenciar,
acatar, seIVire honrar a Deus, a nossos pais e a pátria". A pietas é o sentimento de devoção que se professava aos deuses
em Roma. Piedade significa também misericórdia e, para os
cristãos, é um aspecto da caridade. O francês e o inglês distinguem entre as duas acepções e têm dois vocábulos para expressá-ias: piété e piety para a primeira e, para a segunda, pitié
e pitty. A piedade ou amor a Deus brota, segundo os teólogos,
do sentimento de olfandade: a criatura, filha de Deus, se sente
jogada ao mundo e procura seu Criador. É uma experiência literalmente fundamental pois se confunde com o próprio nascimento. Muito se escreveu sobre isso: aqui me limito a lembrar que consiste no sentir e saber que fomos expulsos do
todo pré-natal e lançados a um mundo alheio: esta vida. Nesse sentido o amor a Deus, quer dizer, ao Pai e ao Criador, é
muito parecido com a piedade filial.Já observei que o afetO
que sentimos por nossos pais é involuntário. Como no caso
dos sentimentos filiais, e segundo a boa definição de nosso
99
.,,;.~
Dicionário de autoridades, amar o Criador não é amor; é pie-
é uma criatur~ mort~d e na mística um ser Jntemporal que,
dade. Tampouco o amor a nossos semelhantes é amor: é caridade. Uma linda condessa balzaquiana resumiu mdo isso,
com admirável e concisa impertinência, numa carta a um admirador; je puis jaire, je vous ['avoue, une il'ifinité de cboses
par eharité, tout, exeepté ['amour("Posso fazer, garanto-lhe,
uma infinidade
de coisas por caridade,
tudo, exceto o
amor,,).25
momen[;.lneamente,
A experiência mística vai além da piedade. Os poetas
místicos comparavam suas penas e seus desfalecimentos
com os do amor. Fizeram-no com tons de estremecedora sinceridade e com imagens apaixonadamente
sensuais. Por seu
lado, os poetas eróticos também se servem de termos religiosos. Nossa poesia mística está impregnada de erotismo e nossa poesia amorosa de religiosidade. Nisso nos afastamos da
tradição greco-romana e parecemos mais com os muçulmanos e hindus. Várias vezes se tentou explicar essa enigmática
afinidade entre mística e erotismo, mas nunca se conseguiu,
na minha opiniào, elucidar completamente
essa questão.
Mais ainda, faço uma observação que talvez possa ajudar um
pouco a esclarecer o fenômeno. O ato em que culmina a experiência erótica, o orgasmo, é indizLvel. É uma sensação que
passa da extrema tensão ao mais completo abandono e da
concencração fixa ao esquecimento
de si própria; reunião
dos opostos, durance um segundo: a afírmação do eu e sua
dissolução, a subida e a queda, o além e o aqui, o tempo e o
não-tempo. A experiência mística é igualmente indizível: instantânea fusào dos opostos, a tensão e a clistensão, a afirmação e a negação, o estar fora de si e o reunir-se a si próprio
no seio de uma natureza reconciliada.
É nat~1l"alque os poetas místicos e os eróticos usem uma
linguagem parecida: não há muitas maneil"as de dizer o indizíveL Contudo, a diferença salta aos olhos: no amor o objeto
25.le Iys dal1S Ia ~'alléé.
100
encarna nesta ou naquela forma. Romeu
chora junto ao cadáver c1eJulieta; o ffiLSticovê n;1Sferidas de
Cristo os Sin;1i$da ressurreição. Verso e anverso: o apaixol1;1do vê e roca um;1 presença; o místico contempla uma aparição. Na visão mística o homem dialóg:.1 com seu Criador, ou,
se é budista, com a Vacuidade; num e noutro caso, o di61ogo
se entabula - se é que é possível rolar de diálogo - el1lre o
tempo c1escontínuo do homem e o tempo sem fissuras da
eternidade, um presente que nunca muda, cresce ou decresce, sempre idêntico a si próprio. O amor humano é o de dois
seres sujei(Os ;10 tempo e aos seus acidentes: :.1mudança, as
p;1L,:ões, ;1doença, a morte. Embora n;1o nOS s:.1lvedo tempo,
o entreabre p:ua que, num relâmpago, apareça SU:.1natureza
contraditória, eSS:l viv:lcidacle que sem parar se anula e ren:.1scee que, sempre e ao mesmo tempo, é agora e é nunca.
Por isso, todo amor, incluindo o mais feliz, é trágico.
rvluit::lSvezes comparou-se
a amizade com o amor, em
certas oGlsiões como JXlixões complementares
e em outrZls,
m::lis freqüentes, C01110opostas. Se omitimos o elemenro carn~l, físico, fic:llll óbvi:ls as semelhanças entre amor e ~mizade. Ambos são ;1 fetos - escolhidos livremente, 1180 impostos
pela lei Oll pelo costume, e ambos s~o re1::lções inrerpessoais.
Somos amigos de uma pessoa, 11~0de uma multidão; :l ninguém se pode ch::llnar, sem risco do ridículo, ;amigo do gênero humano'. A escolh;l e a exclusividade são condições que a
amizade com[xlrtilha com o amor. Podemos estar apaLxonados por uma pessoa que não nos ama, mas a amizade sem reciprocicbcle é impossLvel. Outra diferença: a amizade não
nasce a partir da visito, como o amor, mas sim de um sentimento mais complexo: a afinidade nas idéias, nOS sentimentos ou nas ínclinações. No começo do amor há surpresa, o
descobrimeJ1[o ela olllra pessoa a quem nacb nos Iig:l exceco
101
=::;;::;m>M
<.~
uma indefinível :1tI':lç50 físic:l e espiritual; essa pessoa pode
ser estrangeira, vir de um outro mundo. A amizade nasce da
comunh:io de ielébs, sentimentos ou interesses. A simpatia é
o resultado dessa afinidade; o trato refina e transforma a simp:ltia em amizade. O a1110rn:.1sce ele uma flechacla; a amizade, cio interdmbio freqClente e prolongado. O amor é instantâneo; a amiz:1de exige tempo.
Par:l os antigos a amizade era superior ao nmor. Segundo
Aristóteles :l :lmizacle é ;'uma virtude ou vem acompanhada
de virtude: atêm disso, é a coisa mais necessária da vicl::l".26
Plutarco, Cícero e outros também exaltaram a amizade. Em
outras civilizações não foi menor seu prestígio. Entre os
gr:lndes leg:lclos da China ao mundo está sua poesia e nela o
tema da amizade é prepondemnte,
ao lado do sentimento d:l
n:Jtureza e d:l solid:'1o do s:íbio. Encontros, despediebs e
evocações do :lmigo longínquo são freqüentes na poesia
chinesa, como neste poema de \'{!ang \'7ei ao se despedir de
um amigo nas fronteiras do império:
Adios a
J'I.'icIl1,
enviado a A 12S-Hsl
En WeL L1uvi:1Jjgera moja el polvo ligero.
En el mesón los s::wces verdes alin más verdes.
- Oye, [llnigo, bebamos otra copa,
Pas:1c1oel raso Yang no h:1y "o)'e, amigo."Z7.
Al'istóteles diz q1.1ehá três classes de amiz:t.de: pOl' interesse ou utilidade, por prazer e a "amizade perfeit:1, a elos homens de bem e semelh:1ntes na virtude, porque estes desejam igualmente o bem". Desej:lr o bem pam o outro é c1esejá26, Erjc(/ n;CCJfJ1C1quen,
vm. Traduçào de Antonio Gómez Robleelo, ilJéxico, 1983.
27. O P:lSSO de Y:lng. mais além da cidade
frOnleir.l
com os
b~rb3ros
ele \Vei, Cr:l o úllimo [XlSlO militar. oa
(HSiCI1g-I1U).
I
• Adeus:l Yu:m. elwiado :cl Ans-Hsi \'\'ei, Chuva leve moll1:l o pó leve. 1\':1 campina / as folhas \'erdes ainda m:\is \·erdes. lOuça, amigo, beb:ll1los outro copo,
Depois do P:1SSO Yang. j:'1 não existe ; "'ouça, amigo." (N. do T.).
102
I
Ia para si próprio se o amigo é homem de bem. Os dois primeiros tipos de amizade são acidentais e estão destinados a
durar pOL1CO;
o terceiro é perdurável e é um dos bens mais altos a que pode aspirar o homem. Digo homem no sentido liter31 e restrito da palavra: Aristóteles não se refere às mulheres. Sua classificação é de ordem moral e talvez não corresponda tot[t!mente à realidade: um homem mau não pode ser
amigo ele um homem bom? Pílades, modelo de amizade, não
vacila em ser cúmplice de seu amigo Orestes no assassinato
de sua mãe Clitemnestra, e de Egisto, seu amante.
Ao ser perguntado sobre a razão da amizade que o ligava
ao poet<:1Étienne de La Boétie, responde Montaigne: "Porque
ele era ele e eu era eu". E acrescenta que em tudo isso "havia
uma força inexplic:'ível e fatal, mediadora dessa uniào". Um
ap:lixonado não teria respondido de outra forma. Contudo, é
impossível confundir o amor com a amizade, e no mesmo
ens:lio Montaigne se encarrega de diferenciá-Ios: "Embora o
amor nasça também da escolha, ocupa um lugar distinto ao
da amizade ... Seu fogo, confesso, é mais ativo, agudo e ávido; mas é um fogo temerário e volúvel... um fogo febril", enquanto a ;;amizade é um calor uniforme e universal, temperado e na medida ... um calor constante e tranqüilo, todo doçura e polimento, sem asperezas ..." A amizade é uma virtude
eminentemente social e mais durad<;)Ura que o amor. Para 05
jovens, diz Aristóteles, é muito fácil ter amigos, mas COITIa
meSI11::Jfacilidade deles se descartam: a amizade ê uma afeição própria do amadurecimento.
Não tenho certeza disso,
mas acredito que a amizade está menos sujeita que o amor às
mudanças inesperacbs. O amor se apresenta, quase sempre,
como uma ruptura ou violação da ordem social; é um desafio
aos costumes e às instituições da comunidade. É uma paixão
que, ao unir os am:1ntes, os separa da sociedade. Uma repelblica de apaixonados seria ingovernável; o ideal político de
103
"
uma sociedade civilizada - nunca realizado - seria uma república de amigos.
Será irredutível a oposição entre o amor e a amizade? Não
podemos ser amigos de nossas amantes? A opinião de Montaigne - e nisso acompanha os antigos - é na verdade negativa. O casamento lhe parece impróprio para a amizade: além
de ser uma união obrigatória e para toda a vida - embora tenha sido escolhida livremente- o casamento é o teatro de
tantos e tão diversos interesses e paixões que a amizade não
tem lugar ali. Discordo. De um lado, o casamento moderno
não é indissolúvel nem tem multo a ver com o casamento que
Montaigne conhecia; mais, a amizade entre os esposos - um
fato que comprovamos todos os dias - é um dos traços que
redimem o vínculo matrimoniaL A opinião negativa de Montaigne se estende, além disso, ao próprio amor. Aceita que seria muito desejável que as almas e os próprios corpos dos
amantes gozassem da união amistosa; mas a alma da mulher
não lhe parece "bastante forte para suportar os laços de um nó
tão apertado e duradouro". Assim, coincide com os antigos: o
sexo feminino é incapaz çle amizade. Embora essa opinião
possa nos escandalizar, para refutá-Ia devemos submetê-Ia a
um rápido exame.
É verdade que não há na história nem na literatura muitos
exemplos de amizade entre mulheres. Não é muito estranho:
durante séculos e séculos provavelmente desde o Neolítico,
segundo alguns antropólogos, as mulheres sempre viveram
na sombra. O que sabemos do que realmente sentiam e pensavam as esposas de Atenas, as jovens de Jerusalém, as cam. ponesas do século XII ou as burguesas do século XV?À medida que conhecemos um pouco melhor um período histórico, aparecem casos de mulheres notáveis que foram amigas
de filósofos, poetas e artistas: santa Paula, Vitoria Colona, Madame de Sevigné, George Sand, Virginia Woolf, Hannah
Arendt e ta mas outras. Exceções? Sim, mas a amizade é,
como o :lmor, sempre excepcionaL Dito isso, temos de aceiwr que em todos os casos por mim citados falamos de amizades elUre homens e mulheres. Até agora a amizade entre as
mulheres é I1HlltOmais rara que a amizade entre os homens.
Nas relações femininas são freqüentes a intriga, as invejas, as
fofocas, os ciúmes e as pequenas maldades. Tudo isso se
deve, quase segul"::lmente,não a uma incapacidade inata das
mulheres e sim a sua situação social. Talvez sua progressiva
libertação lnude essa situação. Assim seja. A amizade requer
a eS[Íma, de modo que está associada à revalorização da mulher ... E volto à opinião de Momaigne: acho que não se equivocou totalmente ao julgar incompatíveis o amor e a amizade.
São afetos, como ele diz, fogos distintos. Equivocou-se, isso
sim, ao dizer que a mulher se nega à amizade. Tampouco a
oposição entre <:Imore [imiz;]c1eé absoluta: não só há muitos
traços que ambos comp3rtilham como o amor pode se transformnr em amiznc!e. É, eu diri;], um de seus desenlaces, como
vemos em i.11guns caS3mentos. Por último; o amor e a amizade
sEiopaixões raras, muito r~1ras.Não devemos confundi-Ias
nem com os amoricos nem com o que o mundo chama corremememe de 'amizades' ou relações. Disse anteriormente
que o amor é tr~gico; acrescento que a amizade é uma resposta i\ tragédia.
Um::lvez rrapdos os limites, ora fluru::lntes ora imprecisos, entre o Zlmore os outros afetos, podemos cl:."Ir
novo passo e dererminetr seus elementos constitutlvos. Aqui me atrevo
::lchetm5-los constitutivos porque s50 os mesmos desde o
princípio: sobreviveram a oito séculos de história. Ao mesmo
tempo, as relações entre eles mudam sem parar e produzem
novas combinações, fi maneira das partículas da físicZlmoderna. A esse contínuo intercâmbio de influências se deve a
variedade das formas da p,lix:ãoamorosa. São, diria, um COI1jumo ele relações, como o imaginado por Roman Jakobson
104
105
---------"""'==""" •••
=====':;;;~:;;""-'~":;;:i:l::=:::;:::;;:::'::.:::.'::;.,,~"::i3llIIl9li.
".;;."
no nível mais básico da linguagem, o fonológico, entre som e
sentido, cujas combinações e permutas produzem os significados. Não é estranho, portanto, que muitos tenham sido
tentados a desenhar uma combinação das paixões eróticas. É
uma empreitada na qual ninguém teve sucesso até agora.
Penso que isso é impossível: não se deve esquecer nunca
que o amor é, como dizia Dante, um acidente de um ser humano e que este ser é imprevísíveL É mais útil isolar e determinar o conjunto de elementos ou traços distintivos desse
afeto que chamamos de amor. Advirto que não se trata nem
de uma definição nem de um registro, mas sim de um reconhecimento, no primeiro sentido desta palavra: exame cuidadoso de uma pessoa ou de um objeto para conhecer sua natureza e identidade. Vou agora recorrer a algumas das observações feitas no transcurso destas ref1exões, mas unidas a
outras idéias e conjecturas: recapitulação, crítica e l}ipótese.
Ao tentar ordenar melhor minhas idéias, descobri que,
embora certas moda,lidades tenham desaparecido
e outras
mudado, algumas resistiram à erosão dos séculos e às mutações históricas. Podemos reduzi-Ias a cinco e compõem o
que me atrevo a chamar de elementos constitutivos de nossa
imagem do amor. A primeira nota característica do amor é a
exclusividade. Nestas p8ginas eu já me referi a ela várias vezes e procurei demonstrar que é a linha que traça a fronteira
entre o amor e o território mais vasto do erotismo. Este últi-
queim com o mesmo afeto exclusivo. A exclusividade requer
a reciprocidade,
o acordo do outro, sua vontade. Assim, o
amor C1nicofaz fronteira com outro dos elementos constitutivos: a liberdade. Nova prova do que observei anteriormente:
nenhum dos elementos primordiais tem vida autônoma; cada
um está relacionado com os outros, cada um os determina e
é determinado por eles.
Dentro dessa mobilidade, cada elemento é invaríáveL No
caso do amor único é uma condição absoluta: sem ela não há
amor. Mas n50 som.ente com e!;]: é necessário que concorram, em maior Oll menor grau, os outros elementos. O desejo
de exclusividade pode ser mero afã de posse. Esta foi a paixfio analisada com tanta sutileza por Mareei Proust. O verdadeiro amor consiste precisamente na transformação do apetite de posse em entrega. Por isso pede reciprocidade e 3ssim
tmnstorna r8dicalmenre a velha relação entre domínio e servidão. O ;:1morúnico é o fundamento dos outros componentes: todos nele repousam, também é ele o eixo e [Celosgiram
a seu redor. A exigência de exclusividade é um grande mistério: por que rimamos esta pessoa e não oLma? Ninguém jamais pôde esclarecer esse enigma, a não ser C0111 outros enigmas, como o mito cios anclróginos em O banquete. O amor
único é uma das facetas de Olltro grande mistério - a pessoa
humana.
Entre o i:lmor único e a promiscuidade há LIma série de
mo é social e aparece em todos os lugares e em todas as épo~
caso Não há sociedade sem ritos e práticas eróticas, desde os
mais inócuos até os mais sangrentos. O erotismo é a dimensão humana da sexualidade, aquilo que a imaginação acrescenta à natureza. Um exemplo: copulação frente a freme, na
qual os dois participantes se olham nos olhos, é uma invenção humana e não praticada por nenhum dos outros mamíferos. O amor é individual ou, mais exatamente, interpessoal:
queremos unicamente uma pessoa e pedunos a ela que nos
gradações e matizes. Contudo, a exclusividade é a exigência
ide:ll e sem ela n5.o há amor. Mas a infidelidade não é o pão
de cada dia dos cas~lis? Sim, e isso prova que Ibn Hnm, Guinizelli, Sh:lkespeare e o próprio Stendhal n5.o se engan:uam:
o amor é uma paLx5.o que todos ou quase todos veneram mas
que poucos, muito poucos, vivem realmente. Admito, claro,
que nisso como em todas as demais coisas há graus e matizes. A infidelidade pode ser consentida ou não, freqüente ou
ocasional. A primeira, a consentida, se praticada só por uma
106
107
das partes, provoca na outra graves sofrimentos e penosas
humilhações: seu amor não tem reciprocidade. O infiel é insensível ou cruel e em ambos os casos incapaz ele amar realmente. Se ri infidelidade é por mútuo acordo e praticada pelas duas partes - costume mais e mais freqüente - há uma
queda na eensão passional; o casal não se sente empenhado
em cumprir o que a pai.:,,:"lopede. É amor? Na verdade é cumplicidade erótica. Muitos dizem que nesses casos a paixão se
transforma em amizade amorosa. Montaigne teria protestado
no ato: a ami~8de é um afeto tão exclusivo ou mais que o
amor. A permissão para cometer infidelidades é um aceno
ou, melhor, uma resignação. O amor é rigoroso e, como a libertinagem,
embora em direção oposta, é um ascetismo.
Sade viu com clarividência que o libertino aspira à insensibilidade e por isso vê O outro como um objeto; o 3paixonado
procura a fusão e por isso transforma o objeto em sujeito.
Qll:1nrO ã ínfidelicbde ocasional, também é uma falta, uma
fraqueza. Pode e deve ser perdoada porque somos seres imperfeitos e ruelo que fnemos está marcado pelo eseigma de
nossa imperfeição original. E se amamos duas pessoas ao
mesmo tempo? Trata-se sempre de um conflito passageiro;
com freqüência se apresema no momemo de trânsito de um
8mor;l outro. A escolha, que é a prova do amor, resolve invariavelmente, às vezes com crueldade, o conflito. Acredito que
todos esses exemplos bastam para mostrar que o amor único,
embora poucas vezes se realize integralmenee, é a condição
do amor.
O segundo elemento é de natl..Jreza polêmica: o obseáculo
e a transgressão. N:"logratuitamen,te o amor rem sido comparado com a guerra: entre os amores farnosos da mitologia
grega, riCrtem escândalos eróeicos, estão os amores de Vênlls
e Morre. O diálogo entre o obstáculo e o desejo se apresenta
em toclos os amores e assume sempre a forma de um comba108
te. Desde n (bma dos trovadores,
encarnaç5.o da distância -
geográfica, social ou espirírual -, o amor tem sido contínua
e simulwneamente interdição e infração, impedimento e contravenção. Toclos os casrtis, dos poemas e romances, cio teatro e do cinema, enfrentam esta ou aquela proibição, e todos,
com sorte desigual, amiúde trágica, a violam. No passndo o
obstáculo foi sobretudo de ordem social. O a1110rnasceu, no
Ocidente, nas cortes feudais, numa sociedade acentuadamente hierárquica. A potência subversiva da paixão amorosa
se revela no ;amor cortês', que é uma dupla violação cio código feucbl: a ebma cleve ser casada e seu apabwnado, o trovador, de um:'! categoria inferior. No final do século À'VII, tanto
na Espanha como nas capitais cios vice-reinndos do México e
cio Peru, aparece UI11 curioso costume erótico que é a simétrica conrrapmtida do 'amor corcês', cham8da ele 'galanteios de
pnLício'. Ao se est:1belecer n corre em !vlndri, as famílias da
nobreza envi;1Vam suas filhas para serem damas da rainh:1. As
jovens viviam no palácio real e pnrticipavam dos festejos e
cerill1ôni;lS ofici;lis. Assim se davam relações eróticas entre
essas damas jovens e os cortesãos. Mas em geral eles eram
cas:1dos, e c1ess:1forma os flerees eram ilegítimos e tempora is.
Para as dal11::lsjovens, os 'galanteios de p::ll:'ício' eram um tipo
ele inicíaç10 amorosa, n::io muito longe da 'corresia' do amor
med leva!.
28
Com o pass:1r do tempo ;1S proibições derivadas da categoria SOCi;lle elas rivnlicbcles de clãs foram se atenuando,
mas não desapareceram completamente.
É impensnvel, por
exemplo, que intmiz::lde entre duas famílias, como a dos Capuleto e dos Monréquio, possa impedir, numa cidade mocler11:1,os :1mores de dois jovens. Mas agora há outras proibições
n:1Omenos rígidas e cruéis; além disso, muit:1s ebs antigas se
fort;1lecer:1l11.A intercliç:10 fundada na raça continua vigente,
28. VCj:l SorJIIIlIl(1 Im's dC! /(1 em:?: 011 Las Imlllp(ls
quinto de: minh:l$ Obms çOlllp/C!lns).
de
/(1 fe
(pp. 128
:I
134, \·olume
109
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_,
"":f~----------"----"-----
não na legislação, mas nos costumes e na mentalidade popular. O mouro Otelo descobriria que, em matéria de relações
sexuais entre pessoas de raças diferentes, as opiniôes majoritárias em Nova York, Londres ou Paris são até mais intolerantes que as de Veneza no século À'Vl. Ao lado c\::1barreira do
sangue, há o obst5culo social e econômico. Embora hoje a
distânci:l entre ricos e pobres, burgueses e proletários n::lo tenha a form:l rígida e cortante que dividia o cavalheiro do servo ou o cortesão do plebeu, os obstáculos fundados m, cl8sse
social e no dinheiro determinam ainda as relações sexuais.
Distância entre a realicbde e a legislação: essas difen::nças
não figuram nos códigos, mas sim nos costumes. A vida cotidian::t, p::tra não falnr dos rom::tnces nen1 cios filmes, está repleta de histórias de amor com barreiras sociais por motivos
cle classe ou raça.
Outra proibição que ainda não desapareceu
completamente é a relativa 8S paixões homossexuais, sej:1l11masculinas ou femininas. Esta classe de relação foi condenada pebs
Igrejas e clumme muito tempo foi chamada ele 'pecado nefnndo' _ Hoje nossas sociedades - falo das grandes ciebeles são bem mais tolerantes que há alguns anos; contudo, o :1nátema <linda persiste em muitos meios. N::lo se poele esquecer
que h{1:1pen:1s um século C:1USOU
a desgraç:1 ele Oscar Wilcle.
Nossa liter::ltur::l genllmente se esquiva desse tema: é muito
perigoso. Ou o disfarça - todos sabemos, por exemplo, que
Albenine, Gilbene e as ouw;tsjeullesjilles
enfleureram
na
vercbcle r:.1p:1zes.Gide teve niuit::t cor::tgem ::to publicar COIJIdOil; o romance de E. Iv!.Foster, J11C1urice, por vol1t:1de do autor :1p:1receu só depois de sua mone. Alguns poetas modernos foram m:lÍs atrevidos e entre eles se destaca um espanhol, Luis Cernucb. É preciso refletir sobre a época, O mundo
e a línglla em que Cernuda publicou seus poemas parn poder
apreciar seu arrojo.
110
..------
No pass:1do as proibições mais rigorosas e temidas eram
as das Igrejas. Ainda é assim, embora nas sociedades modernas, predominantemente
seculares, sejam menos ouvidas. As
Igrejas perderam grande pmte de seu poder temporal. A ganância tem sido relativa: o século XX aperfeiçoou os ódios religiosos ao convertê-Ios em paixões ideológicas. Os Estados
totalitários não só substituíram as inquisições eclesiásticas,
como seus tribunais foram mais impiedosos e obtusos. Uma
das conquistas da modernidade democrática foi a de subtrair
do controle do Estado a vida privada, vista como um domínio
sagrado das peSSO:1S;os totalitários deram um passo atrás e se
atreveram a legislar sobre o amor. Os nazistas proibiram aos
alemães as relações sexuais com quem não fosse ariano.
Além disso, conceberam projetos eugenísticos destinados a
aperfeiço::u' e purificar a 'raça alemã', como se tratasse de cavalos ou de c[lchol'l'Os. Por sorte não tiver[lIl1 tempo de terminar o serviço.
Os comunist:1s não foram menos intolerm1tesj sua obsessão não foi a pureza racial, mas a ideológica. Ainda temos
viva na memól'i::l pública a lembrança d:1s humilhações e b::lixezas que deviam suportar os cidadãos dessas nações par::l
casar com pessoas do 'mundo livre'. Um dos grandes romances ele amor de nossa época, Doutor jiuago, ele Boris Pasternak, relata a históri~1 de dois amantes separados pejo ódio
das facções ideológicas durante a guerra civil que sucedeu à
tomada de poder pelos bolcheviques. A política era a granele
inimig:l do amor. l'vlas os amantes sempre encontraram um
modo ele escap[lr das tenazes da ideologia. São instantes diminutos e imensos, duram um abrir e fechar de olhos e são
longos C01110um século. Os poetas provençais e os românticos elo século XIX, se tivessem podido ler as páginas de Pasternak nas quais ele descreve o delírio dos amantes, perdidos
numa cabana da estepe, enquanto os homens se matam por
abstrações, teriam aprovado com um sorriso. O poeta russo
111
"
compara essas carícias e essas frases entrecorradas com os
diálogos sobre o amor dos antigos filósofos. Não exagerou:
para os amantes o corpo penS:l e a alma se toca, é palpável.
O obstáculo e a transgressão estão intimamente associados a oU(ro elemenro também duplo: o domínio e a submissão. N:l SU:lorigem, como eu já disse, o arquétipo da relação
amorosa foi a relação senhorial: os vínculos que uniam o vassalo ao senhor foram o modelo do 'amor cortês'. Conrudo, a
transposiç50 ebs relações reais de dominação à esfera do
amor - zona privilegiada do imaginário - foi alguma coisa
mais do que uma tradução ou uma reprodução. O vassalo estava ligado ao senhor por uma obrigação que começava com
o próprio nascimento e da qual a homenagem de submissão
era a manifestaçào simbólica. A relação de soberania e dependência era recíproca e natural; quero dizer, não era o objeto ele um convênio explícito e no qual interviesse a vontaele, mas sim a conseqüência de uma dupla fatalidade: a do
nascimento e a da lei do lugar onde se nascia. Em contrapartidn, a relação amorosa se funda numa ficçi'io: o código de
cortesia. Ao copiar a relação entre o senhor e seu vnssalo, o
apaLxonndo transforma a htalidade do sangue e o soJo em livre escolha: o apaixonndo escolhe, voluntariameme, sua se, nhora e, ao escolhê-Ia, escolhe wmbém sua servidão. O código do amor cortês contém, além disso, outra transgressão da
moral senhoriala ekima de alm linhagem esquece, voluntariamente, sua categoria e cede sua soberania,
O amor rem sido e é a gl'8nde subversão do Ocidente.
Como no erotismo, o agente da transformação .é a imaginação. Mas, no caso do amor, a mudança se dá em relação contrária: não nega o outro nem o reduz a sombra, mas é a negação ela própria soberania. Essa autonegaçào rem um<l contr<lpartida: a aceiraç50 cio outro. Ao contrário do que acontece
no domínio ela libertin::lgem, as imagens permanecem: o OLI-
tro, ri outra, n::\o são uma sombra, mas Uln:l realidnde carnrd e
espirirual. Posso tocá-18 mas t8mbém falar com ela. E posso
ouvi-b - e 111:11S: beber suas palnvras. Outra vez a twnsubstanciação: o corpo se torna voz, sentido; a alma é corporal.
Todo amor é eucaristia.
O afã constante de todos os apaixonados e o tema dos
nossos grandes poetas e romancist:1s têm sido sempre o mesmo: a busca do reconhecimento
da pessoa querida. Reconhecimento no sentido de confessar, como diz o dicionário, a
dependência,
subordinação
ou vassa lagem em que se está
em relação ao outro. O paradoxo reside em que esse reconhecimento é volundrio, é um atO livre. Reconhecimento,
também, no sentido ele confessar que escamas eliante de um
mistério p:dp:.'ível e carnal: uma pessoa. O reconhecimento
aspira ;'t reciprocidade,
mas é independente
dela. É uma
aposta que ninguém tem certeza de ganhar por ser dependente da liberdade do outro. A origem da rebçi'\o de vassal::!gem é ri obrigaçfto natUl'al e recíproca do senhor e do feudatário; ~ do alHor é a busc8 ele uma reciprocie\::1de livremente
ourorgael::l. O paradoxo do amor único reside no mistério da
pessoa que, sem nunca saber exmamente a razào, se seme
invencivelmenre atraída por OLJ(rapessoa, excluindo as demais. O P~H;1doxo ela servidão t~mbém se apoia em outro
mistério: ~1[ransform~çào elo objeto erótico em pessoa o converte imedi:H;lmente em sujeito dono ele livre-:lrbítrio. O objeto qLle desejo se torna sujeito que me deseja ou me rejeita.
A cess:1o (\::1soberania pessoal e a aceitação volunt8ria da servidão entr:l11h:l uma verdadeira l11ud::ll1Ç::l
de natureza: pela
ponte cio mLltuOdesejo o objeto se transforma em sujeito desejoso e o sujeito em objeto desejado, O amor é represenwdo
na forma de um nó; é preciso acrescentar que esse nó é feito
ele dU:ls liberebdes enlaçae!as.
113
112
••• ==wI
>~~
Domin3ção e servidão, assim como obstáculo e transgressão, ID::lisque elementos por si próprios, na verd3de são variantes de lima conrr3dição mais vasta que os engloba: fawlidacle e liberdade. O amor é atração involuntária em relação a
uma pess03 e voluntária aceitação dessa atração. A forma
mais anriga em que se apresenta essa conwldição está na
crença I1::lSpoções e feitiços mágicos. Em todos os povos
aparecem contos e lendas que têm como tema essas crenças.
No Ocidente o melhor exemplo é a história de Trist5.o e Isolda, um arquétipo que ser<Í repetido sem eX::lUst;lOpela arte e
a poesi3. Par::! essa tradiçào o amor é um feitiço e a atração
que leva os amantes a se unirem é a conseqüência de um encantamento. O amor é 1.1111
laço mágico que literalmente cativa vontade e o Iivre-al'bíuio dos apaL~onados. O Renascimento e o Barroco substituíram o filtro medieval por uma
::1
teoria cl::lspaLxões e cbs almas. A metMora do ími't foi o símbolo predileto cios poeras dessa época.
Os rom:1micos e os modernos substituíram o neoplatonismo renascentista por explicações psicológicas e fisiológicas,
tais como a cristalização, a sublimação e outras semelhantes.
Todas elas, por mais diversas que sejam, concebem o amor
como atraçào f~1tal. M3S essa bt::llidac1e, sejam suas vítimas
Calixro e Melibéia ou Hans C::lstorp e Claudia, foi livremente
assumicb em todos os C::lSos.Acrescento: e ardentemenre invocada e desej::lda. A fatalid::lde se manifesrn só com e por
meio da cumplicidade de nossa Iibercbcle. o elo entre liberdade e destino - o grande mistério da tragéclb grega e dos
alltos sacramentais hisp::\nicos - é o eL"\Oem torno do qual
giram todos os apaixonados cb hlstÓria. Ao nos apaixonarmos, escolhemos nOSS::lf:.1raliclade. Sej::!o amor a Deus ou o
;1mor a Iso1cb, o amor é um mistério no qualliberebde e predestinação se enlaçam. Mas o p:.:tradoxo cb liberdade vicej::t
também no subsolo psíquico: as vegetações
infidelidacles, as traições, os abandonos, os
os ciúmes. O mistério da liberdade amorosa
nadamente radiante e fúnebre tem sido o
venenosas das
esquecimentos,
e sua flora altertema central de
nossos poetas e altistas. Também de nossas vidas, a real e a
imaginária, a vivida e a sonhada.
A quinta nota distintiva de nossa idéia do amor consiste,
como no caso das outras, na união indissolúvel de dois contrários, o corpo e a alma. Nossa tradição, desde Platão, exalta
a alma e menospreza o corpo. Diante dela e desde suas origens, o amor enobreceu o corpo: sem atração física, carn::lI,
não há amor. Nossa época nega a alma e reduz o espírito humano a um reflexo das funções corporais. Assim minou no
seu próprio centl'O a noção de pessoa, dupla herança do cristianismo e ela filosofia grega. A noção de alma constitui a pessoa e, sem pessoa, o amor volta ao mero erotismo. Mais
adiante voltarei a falar do ocaso d3 noção de pessoa em nossas sociecl:1des; por agora me limito a dizer que isso tem sido
o principal responsável pelos desastres políticos do século
xx. e do aviltamento geral de nossa civilização. Há uma conexão íntima e causal, necessária, entre as noções de alma, pessoa, direitos humanos e amor. Sem a crença numa alma imortal insepnrável de um corpo mortal, não poderia ter nascido o
amor ünico nem sua conseqüência: a transformação do objeto desejado em sujeito desejoso. Em resumo, o amor exige'
como condição prévia a noção de pessoa e esta de uma alma
encarnada num corpo.
A palavra pessoa é de origem etrUSC3 e designava em
Roma ri másc::lra cio ator teatral. O que existe por trás da 111ásC1.r::l,o que é aquilo que animn o personagem? O espírito hum3no, ::lalma ou Clnima. A pessoa é um ser composto de
uma alma e um corpo. Aqui aparece outro grande paradoxo
do amor, wlvez o mais importante, seu nó trágico: amamos
115
114
"
simultaneamente
um corpo mortal, sujeito ao tempo e seus
acidentes, e uma alma imortal. O amante ama por igualo corpo e a alma. Podemos até dizer que ,se não fosse a ~l(J'ação
pelo corpo, o apaixonado não poderia amar a alma que o
anima. Para o amante o corpo desejado é alma; por isso lhe
fala com uma linguagem para além da linguagem, mas que é
perfeitameiHe compreensível, não com a razào, mas sim com
o corpo, com a pele. Por sua vez a alma é palpável: podemos
tocá-Ia e seu sopro refresca nossas pálpebras ou aquece nossa nuca. Todos os .apaixonados sentem essa transposição do
corporal ao espiritual e vice-versa. Todos sabem disso com
um saber rebelde à razão e à linguagem. Alguns poetas já disseram:
...berplIre (mel eloquent b/ood
Spoke in ber cbeeks, and 50 distinctly wrougbt
TIJa! olle migb! almos! say, heI' body tbollght.29•
Ao ver no COl"pO os atribums da alma, os apaL"Xonaelosincorrem numa heresia reprovada tamo por cristãos como por
platônicos. Assim, não é estranho que tenha sido considerado como um desvio e até como uma loucura: o louco amor
dos poeras medievais. O amor é louco porque fecha os
amantes nUI11:1contradição insolúvel. Para a tradição plmônica, a alma vive prisioneira no corpo; para o cristianismo, viemos a este mundo apenas uma vez e só para salvar nossa
alma. Em um e outro caso há oposição entre alma e corpo,
embora o cristianismo tenha atenuado isso com o dogma da
t'e5surreiçcio da carne e a doutrina dos C01P05religiosos. Mas
o amor é uma transgressão tanto da tradição pbtônica como
da cristã. Tr<.1sladaao corpo os atributos da alma, e este deixa
de ser uma prisão. O nmante ama o corpo como se fosse
alma e a alma como se fosse corpo. O amor mistura a terra
29.Jo11nDonne. Secarlri mmh'f'I'S(l/J'.
• ".seu puro c!oqüenlc sangue I Falou em suas faces, e l~O distintamcntc forjado, I Que :ué se poderia dizer, seu corpo pensado (N. do T.).
com o céu: é a grande
te a 1110 para sempre,
piante dois mribums
dade. A conll'adição
subversão. Cada vez que o amante diz:
confere a uma criatura efêmera e camdivinos - a imortalidade e a imuwbilíé, na verdade, trágica: a carne se cor-
rompe, nossOS dias estão contados. Contudo, amamos.
amamos com o corpo e a alma, em corpo e alma.
E
Esta descrição dos cinco elementos constitutivos de nossa
imagem do amor, por m8ís sumária que seja, me parece que
revela sua naturezo contraditória, paradoxal ou misteriosa.
Mencionei cinco traços distintivos; na verdade, como vimos,
podem ser reduzidos a três: a exclusividade, que é amor a
uma só pessoa; a atração, que é fatalidade livremente assumida; e <.1pessoa, que é corpo e alma. O amor é composto de
contrários, I11::lS
que não podem se separar e que vivem constantemente em lut::le reunião com eles próprios e com os outros. Esses contrários, como se fossem os planetas do estranho sistema sobr elas paixões, giram em torno ele um único
sol. Este sol também é duplo: o casal. Comínua rransmuwçào
de cada elemerHo: a liberd3de escolhe. a servidão, a fatalidade se transforma em escolha voluntária, a alma é corpo e o
corpo é alma. Amamos um ser mortal como se fosse imorral.
Lope disse isso melhor: ao que é temporal chamar eterno.
Sim, somos mortais, somos filhos do tempo e ninguém se salva da morte, Não só sabemos que wmos morrer como a, pessoa que amamos também vai morrer. Somos os joguetes do
tempo e de seus acidentes: a doença e a velhice, que desfiguram o corpo e extraviam a alma. Mas o amor é uma das respostas que o homem inventou para olhar de frente a morte.
Pelo amor roubamos ao tempo que nos mata umas quantas
, horas que transformamos, 8S vezes, em paraíso e outras em
inferno. De amb;;ls as formas o tempo se distende e deixa de
ser uma medida. Mais além da felicidade ou infelicidade, embora seja ::lS(!Lwscoisas, o amor é intensidade; não nos pre117
116
!"!.i'
senteia com a eternidade mas sim com a vivacidade, esse minuto no qual se entreabrem as portas do tempo e do espaço
- aqui é mais além e ágora é sempre. No amor tudo é dois e
tudo tende a ser um.
6
A luz da manhã
Desde o século J\.'VIIIos europeus se eXamin:1111
sem p:1mr e se julgam. Esse desmedido interesse por eles próprios
não é simples narcisismo: é angústia diante da morte. No
apogeu de sua civilização os gregos inventaram a tragédia;
inventaram-na, diz Nietzsche, por um excesso de saúde; só
um organismo forte e lúcido pode ver de frente o.sol cruel do
destino. A consciência histórica nasceu com o Ocidente e
quem diz história diz consciência da mOlte. Herdeira do cristianismo, que inventou o exame de consciência, a modernidade inventou a crítica. Esse é um dos traços que nos distingue ele outras épocas; nem a Antiguidade nem a Id:1deMédia
pr:1tic:1rama crítica com a paixão da moderniclade: crítica dos
outros e de nós próprios, de nosso passado e de nosso presente. O exame de consciência é um ato de introspecção solitária no qual aparecem os fantasmas dos outros e também o
fantasma daquele que fomos - um fantasma plural, pois fomos muitos. Essa descida à caverna de nossa consciência é
feita à luz ela idéin ela mOlte: descemos até o p3ssado porque
sabemos que um cli:1morreremos e, ames, queremos est:1f
em paz conosco. Creio que alguma coisa semelhante pode
118
119
<.'
ser dita dns meditações fílosóficas e históricas sobre a civilização cio Ocidente - sfto exames de consciência, diagnósticos
sobre a saúde de nossas sociedades e discursos diante de sua
morte mais OLlmenos próxima. De Vico a ValélY nossos filósofos não pan.lI11de nos lembrar que as civilizações são mortais. Nos últimos 50 anos esses melancólicos exercícios têm
sido feitos com maior freqüência; quase todos sfto admonirórios e alguns c1esesperançados. São poucos os que, qualquer
que seja seu grupo, se atrevem a anunciar 'manhãs radiantes'.
Se pensamos em termos históricos, vivemos na icbde do ferra, cujo 8to final é a barbáriej se pensamos em termos morais,
vivemos na idade da lnma.
Os estudos sobre a saúde histórica e moral de nossas sociedades abrangem todas as ciências e especialidades: economia, polírica, direito, recursos naturais, doenças, demografia,
queda geral da cu!wra, crise das universidades, ideologias e,
ao final, todo o leque das atividades humanns. Concudo, em
nenhLlma elejas - a não ser umas poucas exceções que podem ser contadas nos dedos - aparece a mais leve reflexão
sobre a histórin do amor no Ocidente e sobre sua situação
atual. Eu me refiro a livros e estudos sobre o amor propriamente dito, n:'io a roda essa abLmdante literatura sobre a se>"I..lalidadehumana, sua história e suas anomalias. Sobre esses
tem8S a bioliografia é muito rica e vai elo ensaio ao rratado de
higiene. Mas o amor é outra coisa. Omissão que diz muiro sobre a têmpera de nossa época. Se o esrudo das instituições políticas e religiosas, as formas econômicas e sociais, as idéias filosóficas e científicas é imprescindível para se ter uma idéia
do que foi e é nossa civílização, como não o será o estudo de
nossos sentimentos, entre eles, aquele que durante mil anos
tem sido o eLxo de nossa vicia afetiva, imaginária e real? O ocaso de nossa imagem do amor seria uma catástrofe maior que a
derrubada ele nossos sistemas econômicos e políticos: seria o
fim de nossa civilização. Ou seja, de nossa maneira ele sentir
e viver.
Um erro que devemos corrigir é o costume de referir. esses fenômenos exclusivamente
à civilização do Ocidente.
Embora se assista hoje, em muitaS partes, à ressurreição elas
particularidades nacionais e até tribais, é claro que, pela primeira vez na história ele nossa espécie, vivemos o início da
fon113çãO ele uma sociedade mundial. A civilização do Ocidente se estendeu ao planeta inteiro. Na América arrasou
com as cultur8S n:1tivas; nós, os americanos, somos uma dimensão excêntrica do Ocidente. Somos sua prolongação e
sua répliç;;t. O mesmo pode ser dito de outros povos da
Oceania e da África. Isso não significa ignorância ou menosprezo pelas sociedades nativas e suas criações; não faço aqui
um juízo de valor: faço constar um fato histórico. Pregar a
volta às cu\(Uras arrican~s ou o regresso a Tenochtitlán ou aos
incas é uma ::lberração sentimental - respeitável, mas errônea _ ou um ato de cínica clemagogífl. Por último, a int1uência ocidental tem sido e é c\eterminante na Oriente. Ainda em
ligação com o tema desws reflexões, basta lembrar as numerosas e profundas an~llogias entre nossa concepção do amor
e a cio Extremo Oriente e da Índia. No caso do Islã o parentesco é ainda mais íntimo: o 'amor cortês' é impensável sem a
erótica árabe. As civilizações não são fortalezas e sim cruzes
no caminho e nossa dívida com a cultura árabe, nessa matéria, é imensa. Em resumo, a imagem ou idéia do amor é hoje
universal e seu destino, neste final de século, é insepadvel
elo destino e18civilização mundial.
Ao fabr cb continuidade do amor é útil repetir que não me
refiro 30 sentimento, que provavelmente permanece em toelos os tempos e lugares, mas às concepções sobre essa paixão elaboraebs por 3lgumas sociedades. Essas concepções
nfto s:'io construções lógicas: são a expressão de profundas aspirações
psíquicas
e sexu::tis. Sua coerência
não é racional
121
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1
I
\
mes como na poesia, no teatro e no romance. A história do
amor n30 é apenas a de uma paixão, mas de um gênero literário. Melhor dizendo, é a história das diversas imagens do
amor que os poetas e romancistas nos têm dado. Essas imagens têm sido retratos e transfigurações, cópias da realidade
e visões de outi'as realidades. Ao mesmo tempo, todas essas
obras se alimentam da filosofia e do pensamento de cada
mas viral. Por isso eu as denomino imagens. Acrescento que,
se não são uma filosofia, são uma visno do mundo e, assim,
são também uma ética e uma estética: uma cOltes/a. Finalmente, a notável continuidade ela imagem cio amor cio século
XII a nossos dias não significa imobilidade. Ao contdrio, em
sua história há inúmeras mudanças e inovações. O amor tem
sido um sentimento constantemente criador e subversivo.
Dentre toclas as civilizações a do Ocidente tem sido, seja
isso bom ou mau, a mais dinâmica e cambiante. Suas lTIuc13nças se refletem em nossa imagem do amor; por sua vez, esta
tem sido um potenre e quase sempre benéfico agente dessas
transformnções. Pensemos, por exemplo, na instituição matrimonial - de sncramento religioso a contrato interpessoalj
de acerlO de famílias sem participação dos contraentes a convênio entre eles; cb obrigação do dote à sep:uação ele bens;
de estado inclissolúvel :10 divórcio moderno. Outra mudança:
o adultério. Estamos já muito longe dos punh;:lis com os quais
os esposos do século XVII degobvam suas mulheres p;.Ha
vingar a honra. A lista ele mudanças poderia ser maior. Não é
necess6rio enumerá-Ias. A grnnde novidade deste fim de século é o laxismo das socied:1des liberais elo Ocideme. Acho
que a conjunção de três fatores explica isso: o primeiro, social, tem sido ~ crescente independência da mulher; o seguncio, de ordem técnica, a aparição de métodos anticoncepcionais mais eficazes e menos perigosos que os anügos; o terceiro, que pertence ao domínio das crenças e valores, é a
mudança ele posiçào do corpo, que deixou de ser a metade
inferior, inreir:11l1ente animal e perecedora do ser humano. A
revoluçãO elo corpo tem sido e é um fato decisivo n:1 dupla
históri::l do amor e cio erotismo: libertou-nos, mas pode t::l1nbém nos degr::ldar e nosavilcar, Voltarei a isso mais adiante.
A literatura ,retrata as mudanças ela sociedade. Também as
prepara e as profetiza. A paulatin::l cristalização de nossa imagem do amor cem sido obra das mud::lnças tanto nos costu-
I
I
época: Dante da escolástica, os poetas renascentistas do neoplatonisl11o, Lados e Stendhal da Enciclopédia,
Proust de
Bergson, os poetas e romancistas modernos de Freucl. Em
nossa língua o exemplo maior, neste século, é o de Antonio
Machado, nosso poeta-filósofo, cuja obra em verso e prosa
gira em torno ela temporalidade humana e portanto de nossa
essencial incompletucle. Sua poesia, como ele próprio disse
certa vez, foi um 'c~nto de fronteira' - do outro !::tdo está a
morte - e seu pensamento sobre o amor é uma reflexão sobre a ausente e, mais raclicalmente, sobre a ausência.
Não me parece exagerado afirmar, não como se fosse
uma lei histórica mas sim como algo mais que uma simples
coincidência, que todas as grandes mudanças cio amor correspondem a movimentos literários que, simultaneamente, as
preparam e refletem, transfiguram e convertem em ideais ele
vida superior. A poesia provençal ofereceu à sociedade feudal do século XII a imagem cio 'amor cortês' como um gênero
de vida digno de ser imitado. A figura de Beatriz, mediadora
entre esse mundo e o outro, desdobrou-se
em sucessivas
criações C0l110 a Margarida de Goethe e a Aurélia de Nerval;
ao mesmo tempo, por obra do contágio poético, iluminou e
confortou as noites de muitoS solitários. Stenc1hal descreveu
pela primeira vez, com fingido rigor científico, o amor-paixão. Digo fingido porque sua descrição é na verdade mais
uma confissão do que uma teoria, embora congelada pelo
pensamento do século XVIII. Os românticos nos ensinaram a
viver, morrer, sonhnr e, sobretudo, amar. A poesia tem exalta123
122
do e analisado o amor, o recriou e propõe que seja imitado
universalmente.
o
fim ela primeira guerra mundial teve repercussões em
toclos os setores da existência. A liberdade dos costumes, sobretuc!o eróticas, foi inusitada. Para compreender a alegria
que sentiram os jovens diante dos atrevimentos daqueles
anos, é preciso lembrar o rigor e a hipocrisia que, durante
todo o século )..,lX, a moral burguesa impôs ao mundo. As
mulheres saíram às ruas, cortaram o cabelo, encurtaram as
saias, exibir8m seus corpos e mostraram a língua a bispos,
juízes e professores. A liberdade erótica coincidiu com a revolução artística. Na Europa e na América surgiram' grandes
poews do amor moderno, um amor que fundia o corpo com
a mente, a rebelião dos sentidos com a do pensamento, a Iíbercbde com a sensualidade. Ninguém disse isso e já é hora
de dizê-Io: na América de língua espanhola surgiram naqueles anos dois ou três grandes poetas do amor. Foi o desabrochar cb linguagem da paixão. O mesmo aconteceu na Rússia,
antes da era Stálin. Contudo, nenhum desses poetas nos deixou um::! teoria elo amor semelhante às que nos legaram os
neoplatônicos
do Ren:Jscimento e os românticos.
Eliot e
Pound foram grandes pensadores, mas não Ihes imeressou o
amor, e sim 8 política e a religião. A exceção foi, como no século XII, a Fr:Jnça. Lá a vanguarda estética, o Surrealismo,
logo se converteu numa rebelião filosófica, moral e política.
Um cios eixos de subversão sLlrrealista foi o erotismo. O melhor da poesia surrealista é a poesia amorosa; penso principalmente, mas não unicamente, em Paul Éluarc!. Alguns dos
surrealísras escrever:Jm também ensaios; Benjali1in Péret cunhou num belo texto a expressão 'amor sublilne' para diferenciar esse sentimemo do amor-paixão de Stendhal.30 En30. "Le noy;'\u de Ia
1956.
COmI11ClC",
prefácio a Al7lbologie de l'allloul'
suiJlime, Paris,
fim, a tradiçàoiniciac!a por Dante e Petrarca estendeu-se através da figura central cio Surrealismo, André Breton.
Na obra e vid •.1 de Breton se misturam a reflexão e o combate. Se seu temperamento
filosófico o inseriu na linha de
Novalis, seu arrojo o levo\"! a combater, como Tibulo e Propércio, na l1Iililia a J770 ris. Não como simples soldado, mas
como capitfto. Desde seu nascimento o Surrealismo se apresentou como um movimento revolucion5rio. Breton quis unir
o privado e o social, a rebelião dos sentidos e do coração encarn<lda em sua idéia do amor único - com a revolução
social e política do comunismo. Fracassou e há ecos desse
fracasso n::lSpágln::ls de L 'amOllrfolt, um cios poucos livros
modernos que merece ser chamado elétrico. Sua atitude não
foi menos intransigente dianre da moral da burguesia. Os românticos tinhnm luwdo contra as proibições d8 soded:-tc1e de
sua época e tinham sido os primeiros a prod:-1l118r8 liberdade
do 811101'.Embora n:1 EurOp8 de 1920 e 1930 ainda subsistissem muitas proibições, wmbém já eram popltlares os preceitos e clOLltrin:-tsdo nmol' livre. Em cenos grupos e meios reinavn a prol1l iscu idade, disfarçada de liberdade. Assim, o
combnte ele BreWll pelo amor se deu em três frentes: a dos
comunistaS, empenh:1dos em ignorar a vida privacb e Sll(lS
paixões; a cbs antigas proibições da Igreja e dn burguesia, e ri
dos en,ancípaclos. Comb"ter os dois primeiros não em difícil,
intelecru:1lmente falando; combater o terceiro grupo era árduo pois implicava a crítica de seu meio soci::d. Nào há nada
mais difícil que defender a liberdade contra os libertários.
Um elos grandes mériws ele Breton foi ter percebido a
função subversiv:1 elo [Ilnor e não unicamente, como a maioria de seus contemporâneos,
elo mero erotismo. Percebeu
t:1mbém, embora n:lO Cbr:1l11enre, as diferenças emre amor e
erotismo, m:1Sn:lo pôele ou não quis se aprofundar nessas diferenças e assim se privou ele dar uma base mais sólida ::lsua
idéia elo omor. Em sua tent:1tiva para inserir sua idéia do amor
125
124
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•••••
no movimento revolucionário
e filosófico de sua época ele sabia disso? - acabou seguindo os poetas do passado,
especi:llmeme um dos fundadores, Dante, que se propôs a
abolir a oposição entre o 'amor cortês' e a filosofin cristã. Na
atitude de Breton ap:1rece novamente a dualidnde do Surrealisl11o:ele um belo, foi uma subversão, uma ruptura; de outro,
encarnou a tradição central do Ocidente, essa corrente que
algumas vezes se propôs a unir a poesia ao pensamento, a
crítica à inspiraç50, a teoria à ação. Foi exemplar que nos
momentos da grande desintegração moral e política qLle precedeu fi segunda guerra mundial, Breton tenha proclam:1do o
lugar cardeal do amor único em nossas vid:1s, Nenhum outro
movimento poético deste século fez isso e aí reside a superioridade elo Surrealismoj uma superioridade não de ordem
estétic:1, I11:lSespiritual.
A posiç:1o de 13l'eton foi subversiva e tradicional. Ela se
opôs ;1 moral prevalecente
em nossas sociedades, tanto a
burguesa como a pseuclo-revolucionária;
ao mesmo tempo e
com a mesma decisão, continuou a tradiç:1o legacla pelos rom5micos e iniciada pejos poetas provençais. Sustentar a idéia
do amor (lJlico no momento d:l gr::tnde libertação erótica que
se seguiu fi primeira guerra mundial era se expor ao esdrnio
ele muita gente; Breton se atreveu a desafiar a opinião 'avançada' com denodo e inteligência. Não foi inimigo d8 nova liberebde erótiC:1 m8S negou-se a confundi-Ia com o amor, Advertiu sobre os obst:lculos que se opõem :.1escolha 8mO['osn:
os preconceitos morais e sociais, as diferenças ele classe e a
alienClção. Esta última lhe parecia o grande e verdadeiro obst:ículo: como escolher se não somos donos nem sequer ele
nós mesmos? Como n-Jarx, Breton atribuía a alienação ao sistema capitalista; uma vez que este desaparecesse, elesapaI'eceda também a nlienaç:'io. Seu outro grande mestre, Hegel, o
primeiro a formular o conceito de alienação, tinha uma idéia
126
menos otimista. A alienação consiste no sentimento de est:1rmos ausentes de nós mesmos; outros poderes (outros fantasmas?) nos desalojam, usurpam nossO verdadeiro ser e nos fazem viver uma vida vicária, alheia. Não ser o que se é, estar
fora ele si, ser um outro sem rosto, anônimo, uma ausência:
isto é a alienaç50. Para Hege1, a alienação nasce com a cisclo.
O que entendia Hegel por cisão? Kostas Papaioannou explica de forma suscinta: "A concepção judeu-cristã desvalorizou a natureza e transformou-a em objeto ... Ao mesmo tempo rompeu o laço orgânico entre o homem e a Cidade (a Pótis). Por último, a razão moderna generalizou a cis50: depois
de ter oposto o espírito à matéria, a alma ao corpo, a fé ao
entendimento, a liberdade à necessidade ... a cisão terminou
por eng!ob:u todas as oposições numa maior: a subjetividade
absoluta e a objetividade absolulCl.31 Mas há um momento
extremo c1essClseparaç:'io do mundo e de si própriO; então o
homem "tenta volt:1r a slmesmo e a saúde se torna acessível".
Como toeb a sua geração, Hegel acreditou a princípio na Revolução Francesa e pensou que estava destinada a suprimir a
alienação e a reconciliar o homem com a natureza e consigo
próprio. O fracasso revolucionflrio o obrigou a se retrair e a
conceber uma filosofia que repensasse a totalidade e a reconstruísse entre os fr8gmentos dispersos a que fora reduzido o incess8nre trabnlho eb negatividade do sujeito. No lugar
da cura incompleta (1:1 ciS80 que havia sido a Revolução
Francesa, Begel propôs uma filosofia que incluía, também,
uma resposta ao enigma da história e um diagnostico da cisão. Não uma 'filosofia da história', mas uma 'história filosófica' dos homens. Se a sociedade civil se havia mostrado "incapaz de se constituir como um
ter-se ao Estado ... Se a Pólís
transcendente
com respeito
alienação? Sim, mas por meio
31. Kost:ts r~p:üo~nnou.
Hegel, P~ris,
sujeito universal, devia submeera impossível, o Est::tdo seria
à sociedade." Cura da císflo e
da clesapariçflo cio sujeito, en-
1962.
127
"
golido pelo Estado, que para Begel era a forma mais elevada
em que podia encamar o espírito objetivo,
.
O erro de Hegel e de seus discípulos talvez tenha consistido em buscar uma solução histórica, quer dizer, temporal,
para a desgrap da história e suas conseqüências: a cisão e
alienaç50. O calvário da história, como ele chamava o processo histórico, é percorrido por um Cristo que muda sem
parar de rosto e de nome, mas que é o mesmo de sempre: o
homem. É ele próprio, mas jamais está em si mesmo; é tempo
e o tempo é const;lnte separação de si. Podemos refutar a
existência do tempo e considerá-Io uma ilusão, Foi o que fizeram os budistas. Comudo, n50 puderam se subtrair a suas
conseqüências; a roda das reencarnações e o carma, a culpa
do passado que sem parar nos impulsiona a viver. Podemos
negar o tempo, não escapar de seu abraço. O tempo é contínua cisão e não descanS:l nunca: se reproduz e se multiplica
ao sep::lrar-se de si próprio. A cisào n:i.o se cura com tempo e
sim com algo ou alguém que seja não-tempo.
Cada minuto é o punhal da separ;]ção - como confi,lJ'
nossa vicb ;10 punhal que nos degola? O remédio está em encontrar um bálsamo que cicacrize para sempre essa contínua
ferida que nos infligem as horas e os minutos. Desde que surgiu sobre a Terra - ou porque foi expulso cio par<lÍso OLl
porque é Ulll momento da evolução universal ela vida - o
homem é um ser incompleto. Nasce e logo foge ele si mesmo.
Aonde V:li?Anda em busca ele si próprio e se persegue sem
cessar. Nunca é ele e sim o que 'quer ser, o que se btiscaj e ao
se alcançar, OLlacrec!imr que se alcançou, desprende-se novamente de si, clesaloja-se, e prossegue sua perseguição. É o
filho do tempo. E 1113is:o tempo é seu ser e sua doença constitucion~lI. SU:l cura só pode estar fora do tempo. E se ni'io
houvesse nada nem ninguém para além do tempo? Então o
homem estaria condenado e teria de aprender a viver cara a
cara com eSS::lterrível verdade. O bálsamo que cicatriza a fe-
dda do tempo se chama rellgi5.o; o saber que nos leva a conviver com nossa ferida se chama filosofia.
Não há saída? Sim, há; em alguns momentos o tempo se
entreabre e nos deLxa ver o outro lado. Estes instantes são experiências da conjunção do sujeito e do objeto, do eu sou e
você é, do agora e sempre, do mais além e do aqui. Não são
reduzíveis a conceitos e só podemos a elas aludir com paradoxos e com as imagens da poesia. Uma dess;J$ experiências
é a do amor, na qual a sensação se une ao sentimento e ambas ao espírito. É a experiência do [Otal estranhamenro: estamos fora de nós, lançados diante da pessoa amada; e é a experiência da volw à origem, a esse lugar que não está no espaço e que é nossa pátria original. A pessoa amada é, ao
mesmo tempo, terra incógnita e casa natal; a desconhecida e
a reconhecicb. A esse respeito é bom citar, mais que os poetas ou os místicos, precisamente 1.1111 filósofo como Hegel,
grande mestre das oposições e negações. Em um de seus textos da jLlventude diz: "0 amor exclui todas as oposições e por
isso esc;.lpa ao domínio da razão ... Anula a objetividade e assim vai além cb reflexão ... No amor a vida descobre a si própria j5 isenta de CjLlalquer incompletucle". O amor suprime a
cisão. Par:l sempre? Hegel não o diz, mas provavelmente em
sua juventude assim acreditou. Podemos até dizer que toda
sua filosofia e especialmente a missão que atribui à dialética
-lógica
quiméric<1 - nada mais é do que uma gigantesc;l
tradução dessa vis~o jLlveníl do amor para a linguagem conceimal c!<lra250,
No mesmo texto Begel percebe com extraordinária agudeza o gr<lncle e tn1gico paradoxo em que se baseia o amor:
"Os amantes não podem se separar a não ser na medida em
que silo mortais ou quando refletem sobre a possibilidade de
morrer". Com efeito, a morte é a força de gravidade do amor.
O impulso amorosO nos arranca da terra e do <lqui; a consciência da morte nos faz voltar: somos mortais, feitos de terra
129
128
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e a ela temos ele voltar. Eu me atrevo a dizer outra coisa mais.
O a1110ré viela plena, unida a si própria, o contrário da separação. Na sensação do abraço carnal, a união cio casal se faz
sentimento e este, por sua vez, se transforma em consciência:
o amor é o descobrimento da unidade da vida. Nesse instante, a unidade compacta se rompe em dois e o tempo reaparece - é um grande buraco que nos engole. A dupla face da
sexualidade reaparece no amor: o sentimento intenso da vida
é indistinguível do sentimento não menos poderoso da extinção do apetite vital; a subida é queda, e a extrema tensão,
distensão. Dessa forma, a fusão total implica a aceitação ela
morte. Sem a morte, a vida - a nossa, a terrestre - não é
vida. O amor não vence a morte, mas a integra na viela. A
morte da pessoa querida confirma nossa condenação: somos
tempo, nada dura e viver é um contínuo separar-se; ao mesmo tempo, na mOrte cessam o tempo e a separnçào: regressamos à indistinção do princípio, a esse estndo que entrevemos
na cópula camn], O amor é um regresso à morte, ao lugar de
reunião. A morte é a mãe universal. juntarei teus ossos'aos
meus, diz Cíntia a seu amante, Concordo que as palavras de
Cíntia não podem saLisfazer os cristãos nem tOdos os que
acreditam em vida após a morte. Contudo, o que teria dito
Francesca se alguém tivesse oferecido salvá~la, mas sem PaoIo? Acho que teria respondido: escolher o céu para mim e o
inferno para meu amado é escolher o inferno, condenar-se
duas vezes.
Breton também enfrentou outro grande mistério do amor:
a escolha. O amor único é o resultado de uma escolha, mas
esta, por sua vez, não é o resultado de um conjunto ele circunstâncias e coincidências? E essas coincidências, são meras
casualidades ou têm um sentido e obedecem a uma lógica secreta? Essas pergunws lhe tiraram o sono e o levaram a escrever páginas memoráveis. O encontro precede a escolha e no
130
encontro o fortuito parece determinante.
Breton advertiu
com perspicácia que o encontro é constituído por uma série
de fatos que surgem na realidade objetiva, sem que aparentemente venham guiados por algum desígnio e sem que nossa
vontade participe em seu desenvolvimentO.
Eu ando sem
rumo certo por uma rU:l qualquer e tropeço em uma transeunte; Sll:l figura me impressiona; quero segui-Ia, desaparee numa esquina e um mês depois, na casa de um amigo ou
a saída de um teatro ou ao entrar num café, a mulher reapaece; sorri, falo COm ela, me responde e assim começa uma
'elação que nos marG1l'á para sempre. Há mil variantes do
ncontro, mas em todas elas intervém um agente que às vees chamamos sorte, outras casualidade e outras destino ou
reelestinação. Casualidade ou destino, essa série de fatos
objetivos regidos por lllna causalidade externa, cnlza-se com
nossa subjetividade, neb se insere e rransform:l-se nUI11:ldimens;lo do l1l::lÍsínrimo e poderoso em cada um de nós - o
clesejo. Breton lembrou Engels e denominou a interseção elas
duas séries, a exterior e a interior, de acaso obJeuuo.32
Breton formula de maneira nítida e econômica sua idéia
do acaso objetivo: "Uma forma da necessidade exterior que
abre caminho no inconsciente humano". A série causal exte'rior se cruza com um:l causa interna: o inconsciente. Ambas
são alheias à nossa vonrade, ambas nos determinam e sua
conjunção cri::t uma ordem, um tecido de relações, sobre o
qual ignoramos tanto a finalidade como a razão de ser. Essa
conjunção ele circunstâncias é acidental ou possui um sentido
e uma direção? Seja o que for, somos joguetes ele forças
alheias, instrumentos de um destino que assume a forma paradoxal e contraditória de um acidente necessário. O acaso
Ver, sobre 3 noção de 'nar objetivo' em I3reton, a penetr.1nle Notícia que con·
sagra 1\'Iarguerite[lonnet em L'(fll1oUl'fou no segundo volume elas Obras cOlI/pletas de Al1dré I3relOn, La Pléiade, Gallin1ard, Paris, 1992, Ver também, no mesmo
\'olume, 3 NOlicin d:1senhora l30nnet e de E.A, Hubert sobre Les mses COIl1Jlllwicall1S, A propósito, a expressão 'acaso objetivo' não aparece em Engels,
32.
131
.,,'.2'
objetivo cumpre, na mitologia de Breton, a função da poção
milagms:l na lenda de Tristão e Isolda e a do ímã nns meráfor:lS da poesia renascentism. O acaso objetivo cria uma espaço
literalmente imnntado: os amanres, como sonâmbulos dotados de uma segunda visão, caminham, cruzam-se, separamse e voltam a se juntar. Não se pmcuram, encontram-se. Breton recria com clarividência poética esses escadas que todos
os amantes conhecem no princípio de sua rel"çào: o saber-se
no centm de um tecido de coincidências, sinais e correspondências. Contudo, algumas vezes o autor nos previne que
não escreve 1.1111
relato romanceado nem uma ficção: apresenta-nos um documento, nos dá a relação de um fato vivido. A
fantasia e a estranheza não são invenções cio autor: são a própria realidade. Será essa sua interpretação? Sim e não. Breton
conm o CJueVill e vivell, mas em seu relato se desdobra, sob o
nome de ClWSO objetiVO, uma teoria da liberdade e da necessidade.
O acaso objetivo, tal como expõe Breton, apresenra.-se
como outra exp!icaçào do enigma da atração amorosa, Como
as outras - a beberagem, a influência dos astros ou as tendências infantis da psicamílise - deL-xaintacto o Olmo mistério, o flll1damental: a conjunção entre destino e liberdade. Acidente ou destino, SOlte ou preclestinação, p:1r:1que a relação
se realize é necess:1ria :1cumplicidade de nossa vontade. O
amor, qualCJuer amor, implica um sacrifício; apesar disso, S:.lbemos estar escolhendo, sem pestanejar, esse sacrifício. Este é
o mistério da liberdade, como O viram admiravelmente os trágicos gregos, os teólogos cristãos e Shakespeare. Também
Dante e Cavalcanti pensavam que o amor era um acidente
que, graças a nossa liberdade, se transformava em escolha.
Cav8Icanti c1ízia: "0 amor n;'io é ri vil1ude mas, nascido da perfeição (da pessoa amada), é o que a torna possível". Devo
acrescentar que a virtude, qualquer que sej:1 o sentido dado a
esta palavra, é antes de tudo e sobretudo um ato livre. Em re-
sumo, usando uma enérgica expressão popular: o C/maré Cl liberdade em pessoa. A liberdade encarnada em um corpo e em
uma alma ... Com Breton se fecha o período que precede a segunda guerr:1 mundial. A tensào que percorre muitas de suas
páginas se deve provavelmente ao fato de possuir consciência
de escrever diante da noite iminente: em 1937, as sombras da
guerra, que haviam coberto o céu espanhol, juntavam-se no
horizonte. Pensava, apesar de seu fervor revolucionário, que
seu testemunho era também um testamento, um legado? Não
sei. Seja C01110for, ele percebia como são precárias
as idéias com que pretendemos explicar o enigma
amorosa. Esse enigma é parte de Olltro maior, o
que, suspenso entre o acidente e a necessidade,
sua situação em Jiberebde.
e ilusórias
da relação
do homem
transforma
Os antigos represel1(aval11 o planeta Vênus, a luz eb mrtnhã, n,l figura ele um jovem pormelor ele uma roch8: LClcifer
(/IIX, h/eis: luz + ferre: portar). Par::! traduzir um trecho do
Ev::!ngelho no qual Jesus fala de Satã como de "lima centelha
c::Iícb do céu", são Jerônimo usou a palavra que designava a
estrela ela manhã: LLtcifer, Feliz deslizamento cio significado:
cham8r o 8genre rebelde ao 1118isbelo exército celestial, com
o nome cio arauto que anuncia o rai8r do dia, foi um aro ele
imaginação poética e moral- a luz é inseparável da sombra,
o vôo eb queel.l. No centro da negrirude absolllta do mal apareceu um renexo indeciso: a luz vaga elo amanhecer. Lúcifer:
começo ou queeb, luz OLl sombra? Talvez um e outro. Os
poet8s perceberrtm essa ambigüidade e tiraram o p:1rtido que
conhecemos, Lúcifer f:1scinou l\'lilton m::1Stambém os rom;1nricos, que o conveneram no ::1njoda rebeldia e no portador
cb tocha ela llberebde. As manhãs são breves e l1l:1isbreves
ainda as ilumín:Jel:1s pela luz ziguezagueante ele Lúcifer. Apareceu ao desponmr do século XVIII e na metade do século
XIX empalideceLI seu rubl'O resplendor, embora tenha conti133
132
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~========-=. =._=..~...~~.=n_'~'
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nll~do ilumin~ndo com uma luz tênue e perolada, luz do
pensamento
mais que do coração, o longo entarclecer do
simbolismo, Até o final ele sua vida Hegel aceitou que ~ filosofi::! chega sempre tarde e que à luz do amanhecer slIcede
sempre a do crepúsculo: "A ave de Minerva começa seu vôo
ao c:Jir da noite".
A modernid~de teve duas manhãs: uma, a que viveu Hegel e sua geraçào, que começa com a Revoluçào Francesa e
termina 50 anos depois; a outra, a que se inicia com o grande
despertar cientrfico e artíscico que precede a primeira guerra
mundial e termina ao eclodir a segunda guerra. O emblema
desse segundo período é, outra vez, a figura ambígua de Lúcifer. Anjo do mal, sua sombra cobre as duas guerras, os campos ele Hitler e Stalin, as explosões de Hiroshíma e Nagasakij
anjo rebelde ela luz, é a fagulha que acende todas as grandes
inovações de nossa época na ciência, na moral e nas artes.
De Picasso a Joyce e de Duchamp a Kaflm, a literatura e a arte
da primeira metade do século XX foram luciferinas. Não se
pode dizer a mesm:1 coisa do período que sucede à segunda
guerr:1 l1luncli:11e cuj:1S posteriores seqi.'telas, indicam toclos
os sin:11s,vivemos agora. O contraste é prudente. Nosso século começou com grandes movimenros revolucionários
no
campo da êlrte, como o Cubisl110 e o Abstr8cionismo, e depois vieram OLltras revoltas p::lssionais, como o Surre;>.lismo,
que se distinguiu por SU:1violência, Crlela gênero liter:írio, do
rom::ll1ce à poesia, foi o teatro ele uma sucessfio ele mudanças
n:1 forma, 11:1orientação e no próprio sentido ebs obras. Essas
transform:1ções e sacudidas abrangeram também a comédia e
o drama. O cinema, além disso, foi influenciado por todas esses exper[menros; por sua vez, sua técnica de apresentação
elas imagens e seu ritmo influír8!TI profundamente na poesia
e no romance, O simultaneísmo, por exemplo, imperante na
poesia e no romance daqueles anos, é filho direto da montagem cinem~1togrMica. Nada semelhanre ocorreu na etap8 que
se seguiu à segunda guerra mundial. O anjo rebelde, Lúcifer,
abandonou o século,
Não sou pessimism nem nostálgico. O período que agora
vivemos não tem sido estéril, embora a produção artística tenha sido gravemente afetada pelas pragas do mercantilismo,
do lucro e da publicidade. A pintura e o romance, por exemplo, foram convertidos em produtos submetidos à moda, a
primeira por meio do fetichismo do objeto único e o segundo
pelo mecanismo da produção em massa. Contudo, desde
1950 não param de surgir obras e personalidades notáveis
nos campos da poesia, da música, do rom3nce e das artes
plásticas. Mas não apareceu nenhum grande movimento estético ou poético. O último foi o Surrealismo. Temos tido ressurreições, umas meramente habilidosas e outras brilhantes.
Melhor dizendo, temos tido, para empregar a exata palavra
lngles:1, reuiucils. Mas um reviual não é uma ressurreição: é
uma labareda que logo se extingue. O século :>.'VIII teve um
neoclassicisl110; nós tivemos um 'neo-expressionismo',
uma
'transv:lI1guarda' e até um 'neo-romantismo'. E o que foran1 a
pop-art e a poesia becl! senão derivações, a primeira de Dadá
e a outra elo Surrealismo? .0 'expressionismo-abstrato'
de
Nova York também foi uma tendência derivada; nos deu excelentes artistas mas, novamente, foi uma bbareda. O mesmo podemos dizer ele uma tendência filosófico-literária elo
pós-guerra, que apareceu em Paris e se estendeu ao mundo:
o existencialismo. Por seu método, foi uma prolongação de
Husserl; pelos seus temas, de Heidegger. Mais um exemplo:
de 1960 em diante começaram a ser publicados ensaios e livros sobre Sacie, Fourier, Roussel e outros, Alguns desses estudos e interpretações s:1o agudos, penetrantes e, às vezes,
profundos. Mas não foram revelações originais: esses autores
e essas obras haviam sido descobertos 30 ou 40 anos antes
por Apollinaire e os surrealistas. Outro revlwf. Não vale a
pena continuar ... Repito: a segunda metade do século XX não
135
134
")
é pobre em obras notáveis; contudo, até mesmo por sua pró. pria n01turezCl,essas obras representam algo muito diferente e
ainda contrário às da primeira metade do século, Não as ilumina a luz ambígua e violenta de Lúcifer: são obras crepusculares. O melancólico Saturno é seu nome? Talvez, embora Saturno ame 05 matizes. A mitologia o pinta como o sober::1I10
de uma idade de oura espiritual minado pela bílis negra, a
melancolia, esse humor que ama o claro-escuro. Por outro
lado, nosso tempo é simplista, sumário e brutal. Depois de
ter caído na idolatria dos sistemas ideológicos, nosso século
termina na adoraçào das Coisas. Que lugar tem o amor num
mundo como o nosso?
7
A praça e a alcava
A gLlerra
;li
• fria durou mais de 40 anos. Além ela briga entre
os grandes blocos form:1dos depois ela derrota elo ELxo e ebs
outras vissicitucles desse período, uma polêmica comoveu a
classe intelectual e a vastos segmentos da opinião pública internacion~ll. Esse eleb~He lembrava, às vezes, as disputas .teológicas da Reforma e Contra-Reforma
ou as controvérsias
provoca das pela Revolução Francesa. Contudo, havia uma
diferença enorme: as discussões sobre a gLlerra fria eram
mais de ordem política e moral que filosófica e religiosa; não
versavam sobre as causas primeiras ou últimas, mas tinham
por tenla uma C{Llestilodefacto: 8 verdadeira natureza elo regime soviético, que se proclamava soci::tlista. foi uma polêmica necess5ri:1 e 5I'ic!:l: desmascarou a mentira, desonrou
muitos e geloll as mentes e os corações ele outros, 1118S não
produziu idéi~lSno\'as. Foi sUl'preendeme que nessa mmosCera de litígios e clenLmcias, de maques e contra-nt8ques, poemas e rom::1l1cesfossem escritos, concertos compostos e quadros pintados. Não menos surpreendente foi o surgimento de
escritores e artistas lnc1ependentes na Rússia, Polônia, na anriga Tchecoslovóqui8, Hungria, Romênia e em olltrospaíses
136
137
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esterilizados pela dupla opressão do dogmatismo pseudo-revolucionário e do espírito burocrático. Também na América
Latina, apesar das ditaduras militares e da obsessão da maioria dos nossos intelectu:1is apaixonados por soluções simplistas, apareceram naqueles anos vários poetas e romancistas
notáveis. Essa época provavelmente chegou ao fim. Como já
observei, foi um período mais de obras e personctgens isolados cIo que movimentos literários e artísticos.
No Ocidente repetiu-se o fenômeno do primeiro pósguerra: triunfou e espalhou-se uma nova e mais livre moral
erótica. Esse período apresenta duas características que não
aparecem no anterior: uma, a participação ativa e pública das
mulheres e dos homossexuais; outra, o tom político das reivindicaçôes de mUltos desses grupos. Foi e é uma luta pela
igu::lidade de direitos e pelo reconhecimemo jll1'lelicoe social;
no caso elas mulheres ele uma condição biológica e social; no
caso elos homossexuais, ele llmct exceção. As e1U::lS
exlgênci<ls,
a igualcbcle e o reconhecimento da diferenp, emm e si'ío legítimas; contudo, dbJl1re delas os comensais ele O ballCjuete
platônico reri::lm arreg::ll:1eto os olhos: o sexo, matéri::l de debate político? No pass::ldo fora freqüente a fusi'lo entre erotismo e reJigi80: o tantrismo, o taoísmo, os gnósticos; em nossa
época a polític::l 8bsorve O erotismo e o transfol"1m: já não é
uma paixão e sim llm direito. Ganância e prejulzo - conquist:.1-se a legitimicbde, mas desaparece a outra dimensão, a
passional e a espirirua1. Durante todos esses anos foram publicados, como j:'lnotei, muitos artigos, ensaios e livros sobre
sexologi::! e outras questões afins com a sociologia e a polítiC::ldo sexo, todcts elas alheias ao tema destas retlexões. O
grande ausente da revolw erótica deste fim ele século foi o
amor. Contrasta essa situaçào com as mudanç<ls introduzidas
pelo neoplatonismo ren8scentista, a filosofia 'libertina' do século À'VIII ou a gr::lnc!e revolução romt1nrica. I'....
lais adiante espero mostrar algumas elas causas desse fracasso, verdadeira
138
falência que nos converteu em inválidos não do corpo, mas
do espírito.
Ortega y Gasset observou certa vez a presença de ritmos
vitais nas sociecbdes: períodos de culto à juventude seguidos
de outros fi velhice, exaltação da maternidade e do lar ou do
amor livre, ela guerra e da caça ou da vida conremplativ:J.. Assim, parece-me que as mudanças na sensibilidade coletiva
que vivemos no século XX obedecem a um ritmo penduJar, a
um vaivém entre Eros e Tânatos. Quando ess::ls mudanças da
sensibilidade e do sentimento coincidem com outras no domínio do pensamento e da arte, brotam novas concepções
do amor. Trata-se de autênticas conjunções históricas, como
se vê no '::lmor cortês', para mencionar só um exemplo. Uma
ocasião para que se realizasse uma convergência dessa na tureZ:1 pode ter sido a generosa explosão juvenil de 196s. Por
desgraça, a revolt:1 dos estud:mtes não tinha idéias próprias
nem procluziu obras originais como a de outros movimentos
elo passado. Seu grande mérito foi se atrever, com exemplar
ousadia, :1proclamar e tentar levar à prática as idéias libertárias dos poeras e escritores da primeira metade do século.
S~utre e outrOS intelectuais participaram dos comícios e das
passeatas, mas não foram atores e sim coro: aplaudiram, não
inspiraram. Em 1968 não houve uma revolução: houve a representação, a festa da revolução. A cerimônia era real: a deidade invocada, um fantasma. Festa da revolução: nostalgia
d::l p::lrusi::l,convocaçfio da Ausente. Por um instante pareceu
brilhar a luz equívoca e avennelhada de Lúcifer; logo apagou-se, obscurecida pela fumaça das discussões nos conelaves de jovens puros e e1ogmáticos. Depois, alguns deles formaram grL1pOSele terroristas,
Na antiga Unii'lo Soviética e nos países que estavam sob
seu domínio deu-se o contrário: fortaleceram-se as antigas
proibições e, em nome ele um 'progressismo' arcaico, a burocr:1cía voltou a entronizar os preceitos mais conservadores e
139
convencionais ela moral burguesa do século :XIX. A arte e a literatura tiveram a mesma sorce: o acaelemiclsmo, expulso da
vida artística elo Ocidente pela vanguarda, se refugiou na 'pátria do socialismo'. O mais curioso foi encontrar, entre os defensores eb medíocre cultura oficial soviétic:?l, muiros antigos
vanguardiscas europeus e latino-:unericanos. Nunca se deram
ao tralxtlho ele nos explicar esta contradição. Também logo
aprovaram a legislação reacionária elas burocraci;;ls comunistas em matéria sexual e erótica. Conformismo moral e estético, abjeção espiritual.
O império comunista foi uma fortaleza construíela sobre
areias movediças. Alguns de nós acreditamos que o regiJi1e
estava ameaçado de petrificação; não, seu mal era uma degeneraçii.o do sistema nervoso; a p;;lralisia. Os primeiros sintomas se manifestar:1m com a queda de KhfLlschev, Em menos
de 30 anos :1 fortaleza caiu e arrastou uma construção mais
(lntig,l; o império czarist:l, O nr Reich foi aniquibdo peb 101lCLlrade Hitler, as bombas elos aliados e a resistêncb russa; a
União Soviética pela instabilidade de suas funcl:1ções - o caráter heterogêneo
elo império czarista -, a irrealidade do
programa soci~11e econômico bolchevique e :l crueldade dos
méroelos llS<1c1os
para impbnt~-lo. Além disso, peb rigidez ela
domrina, versão simpllsta cio marxismo, verd<1e1eira C:1l1l1sa
de força illlpost::l ao povo russo. A rapidez da qued:l ainda
nos assombra. ,Mas continua em pé a grande incógnita que
foi a RClssia desde seu surgimento na história univers::d há
cinco séculos: o que espera esse povo? E a RClssia, o que vem
escondendo do mundo?
O fururo é impenetrável: esta é a lição que nos deram as
ideologias que pretendi;1111 possuir ns chaves ela hisrória. É
verdade que 8S vezes o horizonte cobre-se de sinais: quem os
traça e quem podeclecifr<.Í-los? Todos os sistenias de interpretação falharam. Temos C(Llecomeçar de novo e fazer a mesma
pergunta que fizeram Kant e outros fundadores cio pensa140
mento moderno. Enqu:1nto isso, parece-me temer~rio denunciar a supersrição da história. Foi e é uni grande depósito de
noviclades, umas mamvilhosas, ODu-asterríveis; tem sido também um arm:1zém imenso onde se acumulam ns repetições e
as cacofoni(ls, os c1isF:1rcese as máscaras, Depois das orgias
intelectuais deste século é preciso desconfiar ela história e
aprender a pensar COI11sobried<1de. Exercício de desnudamentoj jogar fora os disfarces, arrancar as móscaras. O que
ocultam? O rosto do presente? Não, o presente não tem cam.
Nossa tarefa é, just:1mente, dar-lhe uma cara. O presente é
uma matéria 80 mesmo tempo maleável e indócil - parece
obedecer i\ nüo que o esculpe e o resultado é sempre diferente do que imaginávamos. É preciso resignar-se, pois não
temos outro recurso: pelo mero fato de estarmos vivos, temos
de enfrent::lr o presente e formar um rosto dessa confusão de
linh::ls e volumes. Converter o presente em presença. Por isso
:1pergunw sobre o lugar cio amor no mundo atual é, ao mesmo tempo, inilL\dível e crucial. Escamoteá-Ia é, m:1is que uma
deserçào, uma mlHibçào.
Dur:1l1re muiros anos alguns de nós participamos de uma
bawlha que às vezes parecia perdida: defender o presente ~
informe, imperfeito, manchado por muitOs horrores, mas depositário de germes ele liberdade - do sistema towlilário,
oculto sob a m;lscara do futl1l'o. Caiu finalmenre o disfarce e
o rosto terrível, ao cont::ltO do :11',começOll :1se desmanchar,
como no conto ele Poe, desmanch3ram-se
as feLções ele Mr.
Valdemar, conve)'(idas num líquido acinzenrac!o. As sementes
e os germes de liberdade que defendemos comra os totalitarismos deste século hoje secam nas bols:1s ele plástico cio capitalismo democrático. Devemos resg:1t:l-bs e espargi-Ias pelos quatro POl1l0Scardeais. Há uma conexão íntima e causal
entre amor e liberdaC!e.
141
••
A herança que 1968 nos deixou foi a liberdade erótica.
Nesse sentido o movimento estudantil, mais que o prelúdio
de umn revolução, foi a consagração final ele uma luta que
começou ao despontar o século XIX, preparada ao mesmo
tempo pelos filósofos libel1inos e seus adversários, os poetas
românticos. Mas o que fizemos com essa liberdade? Percebemos, 25 anos após 1968, de um lado, que deLxamos a liberdade erótica ser confisca da pelos poderes do dinheiro e da publicidade; de outro, O paulatino crepúsculo da imagem do
amor em nossa sociedade. Duplo fracasso. O dinheiro corrompeu, uma vez mais, a liberdade. Alguém poderá me dizer
que a pornografia acompanha todas as sociedades, incluindo
as primitivas; é a contr::qxntida nntural das restrições e proibições que são parte dos códigos sociais. E quanto à prostituição, é tão 8ntign como 8S primeims cidades; n princípio foi
associada 80S templos, conforme podemos ver no poema de
Gilgamesh. Assim, pois, não é nova a ligação entre a pornografia, a prostituição e o lucro. Tanto as imagens (pornografia) como os corpos (prostituição) sempre fornm, e em todos
os lugares, objeto de comércio. Então, onde está a novidnde
da situaçào atual? Respondo: em primeiro lugar, nas proporções do fenômeno e, segundo veremos, na mudança de natureza que ele experimentou. Depois, imaginava-se que a liberel::1clesexual acabaria por suprimir tantO o comércio cios
corpos quanto o das im::lgens eróticas. A verdade é que ocorreu o contrário. A socieebde capitalista democr8tica aplicou
as leis impessoais do mercado e a técnica dn produção em
massa na vida erótica, Assim a degradou, embora como negócio tenha tido grande sucesso.
Os povos sempre viram com uma mistura de fascínio e
terror as representações
do corpo humano. Os primitivos
acreditavam que as pinturas e as esculturas eram a duplica142
ção mágica das pesso~s reais. Em alguns lugares remotos ainda existem camponeses que não se deixam fotografar porque
acreditam que aquele que se apodera da imagem de seu cor~
po também se apodera de sua alma. De certa maneira não estão errados: há um laço indissolúvel entre o que chamamos
alma e o que chamamos corpo. É estranho que numa época
em que se fala mnto de direitos humanos, se permita alugar e
vender, típicos engodos comerciais, os corpos de homens e
mulheres para sua exibição, incluindo as partes mais íntimas.
O escandaloso não é o fato de se tratar de uma prática universal e admitida por todos, mas sim que ninguém se escandaliza: nossos alicerces morais intumesceram. Em muitos povos a beleza foi vista como uma prolongação da divindade;
hoje é um signo publicitário. Em todas as religiões e civilizações a imagem humana sempre foi venerada como sagrada e
por isso, em ;:dgumas, era proibida a representação do corpo.
Um dos grandes atrativos da pornografia consistiu, precisamente, na transgressão dessas crenças e proibições. Aqui entl<la mudança da natureza pela qual passou a pornografia e a
que me referi antes.
A modernidade dessacralizou o corpo e a publicidade o utilizou como um instrumento de propaganda. Todos os di3s a televisão nos apresenta belos corpos seminus para anunciar uma
marca de cerveja, llJ11 móvel, um novo modelo de carro ou
meias femininas. O capitalismo convelteu Eros em um empregado de Mammon. À degradação da imagem temos de acrescentar a selvidão sexual. A prostituição é uma vasta rede internacional que trafica com todas as raças e todas as idades, sem
excluir, como sabemos, as crianças. Sade sonhava com uma sociedade de leis fracas e paixões fOltes, na qual o único direito
seria o do prazer, por mais cruel e mortífero que fosse. Nunca se
imaginou que o comércio suplantaria a filosofia libertina e que
o prazer se transformaria em um parafuso da indústria. O erotismo transformou-se num departamento da indústria da publici143
dade e num ramo do comércio. No passado, a pornografia e
a prostituição eram atividades artesanais, por assim dizer;
hoje são parte essencial da economia de consumo. Não me
alanna sua existência, mas sim as proporções que assumiram
e a natureza que têm hoje, ao mesmo tempo mecânica e institucional. Deixaram de ser transgressões.
Para compreender nossa situação nada melhor que comparar duas políticas de aparências opostas, mas que produzem resultados semelhantes. Uma é a estúpida proibição das
drogas, que longe de eliminar seu uso, multiplicou-o e fez do
narcotráfico um dos grandes negócios do século XX; um negócio tão grande e poderoso. que desafia a polícia e ameaça a
estabilidade política de algumas nações. Outra, a permissão
sexual degradou Eros, corrompeu a imaginação humana, ressecou a sensibilidade e fez da liberdade sex'Uala máscara da
escravidão dos corpos. Não estou pedindo a volta da odiosa
moral das proibições e castigos: enfatizo, isso sim, que os poderes do dinheiro e a moral do lucro fizeram da liberdade de
amar uma servidão. Nesse domínio, como em tantos outros,
as sociedades modernas enfrentam contradições e perigos
que não conheceram no passado.
A degradação do erotismo corresponde a outras perversões que foram e são, eu diria, o tiro pela culatra da modernidade. Basta mencionar alguns exemplos: o mercado livre,
que aboliu o patrimonialismo e os tributos, tende continuamente a produzir enormes monopólios que representam sua
negação; os partidos políticos, órgãos da democracia, transformaram-se em aplanadoras burocráticas e em poderosos
grupos de conchavos; os meios de comunicação corrompem
as mensagens, cultivam o sensacionalismo, desprezam as
idéias, praticam uma censura dissimulada, sobrecarregamnos com notícias triviais e escamoteiam a verdadeira informação. Como achar estranho então que a liberdade erótica hoje
designe uma servidão? Repito: não estou propondo que se
suprimam as liberdades; peço, e não sou o único a fazê-Io,
que cesse o confisco de nossas liberdades pelos poderes do
lucro. Eua pound resumiu admiravelmente nossa situação
em três linhas:
17:Jeyhave brought whoresfor Eleusis.
Corpses m-e set to banquet
at behest of usura"
A morte é inseparável do prazer, Tânatos é a sombra de
Eros. A sex'Ualidade é a resposta à morte: as células se unem
para formar outra célula e assim se perpetuarem. Desviado
da reprodução, o erotismo cria um domínio isolado regido
por uma deidade dupla: o prazer que é mOlte. Não será por
mera casualidade que os contos do Decâmerol1, grande elogio do prazer carnal, sejam precedidos pela descrição da peste que assolou Florença em 1348; tampouco que um romancista hispano-americano, Gabriel Garda Márquez, tenha escolhido como o lugar e a data de um romance de amor
precisamente a malsã Caltagena nos dias da epidemia do cólera. Há poucos anos surguiu a Aids, com a mesma silenciosa
aleivosia com que antes se apresen(ou a sífilis.33 Hoje, porém,
escamas menos preparados para enfrentar essa doença que
há cinco séculos. Em primeiro lugar, por nossa fé na medicina moderna, uma fé que chega perto da credulidade supersticiosa; depois, porque nossas defesas morais e psicológicas
enfraqueceram. À medida que a técnica domina a natureza e
dela nos separa, cresce nossO estado indefeso diante de seus
ataques. Ela era uma deusa doadora, como todas as grandes
divindades, de vida e de morte; hoje é um conjumo de forças,
um depósito de energia que podemos dominar, canalizar e
utaS para t.lêusis / Cadãveres no banquete / a comando da usura (N. do T.).
33. A maioria dos especialistas descarta hoje a teoria da origem americana da sífilis. Jl"lasé um fato que os europeus tinham consciência clara dessa doença - antes provavelmente confundida CSllll a lepra - depois das viagens de Colombo.
Também é comprovada a existência da sífilis na América antes da chegada dos
europeus.
145
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explorar. Deixamos de temê-Ia e acreditávamos que era nossa servidora. De repente, sem nenhum aviso, mostra-nos seu
outro rosto, o da morte. Temos de aprender; outra vez, a
olhar a na t'<.l
reza. Isso implica uma mudança radical em nossas atitudes.
Não sei se a ciência logo encontrará uma vacina contra a
Aids. Tomara que sim. Mas o que quero ressalrar é nossa condição psicológica e moral indefesa diante dessa doença. É claro que as medidas profiláticas - o uso da camisinha e outros
recursos - são indispensáveis, mas também é óbvio que tudo
isso não basta. O contágio está ligado à conduta, e assim na
propagação do mal int~rvém a responsabilidade de cada indivíduo. Esquecer isso seria hip~crita e nocivo. Um especialista
no assunto escreveu: "A história da humanidade mostra que
nenhuma doença foi eliminada unicamente com tratamentos.
Nossa única esperança para conseguir deter a Aids repousa na
prevenção, pois é pouco provável que consigamos dispor,
num futuro próximo, de uma vacina que se possa aplicar em
todas as pessoas; a única vacina de que dispomos no momento é a educação".34 Muito bem, nossa sociedade carece hoje
de autoridade moral para pregar a continência, para não falar
de castidade. O Estado moderno, com boas e más razões, abstém-se até onde é possível de legislar sobre essas questões.
Ao mesmo tempo a moral familiar, geralmente associada às
crenças religiosas tradicionais, desmoronou. E com que autoridade poderiam propor a moderação os meios de comunicação que inundam nossas casas com bobagens sexuais? E
quanto a nossos intelectuais e pensadores: onde encontraremos dentre eles um Epicuro, para não falar de um Sêneca? Ficam as Igrejas. Numa sociedade secular como a nossa, não é
suficiente. Na verdade, fora da moral religiosa, que não é aceitável para muitos, o amor é o melhor defensor contra a Aids,
34. Mervyn F, Silverman, da American Foundation for AlDS Researçh. Citado pelos
doutores Samuel Ponce de Le6n e Antonio Úlzcano Araujo em "Quo vadis Aids?"
ensaio publicado em laJomada Semmwl, Mé.xico, 11 de abril de 1993.
146
quer dizer, contra a promiscuidade. Não é um remédio físico,
não é uma vacina: é um paradigma, um ideal de vida fundado na liberdade e na entrega. Um dia se encontrará a vacina
contra a ~ids, mas, se não surgir uma nova ética erótica, continuará nossa debilidade diante da natureza e seus imensos
poderes de destlUiçào. Acreditávamos que éramos os donos
da terra e os senhores da natureza; agora estamos inermes
diante dela. Para recobrar a força espiritual devemos antes recobrar 3 humildade.
O fim do comunismo nos obriga a ver COI11 maior rigor
crüico a situação moral de nossas sociedades. Seus males não
são exclusivamente econômicos mas sim, como sempre, políticos, no bom senrido da palavra. Ou seja, morais. Têm a ver
com a liberdade, a justiça, a fraternidade e, enfim, com o que
CI13111:11110S
comumente v:110res.No centro dessas idéias e
crenças está a noção de indivíduo. É o fundamento de nossas'
instituições políticas e d~ nossas idéias sobre o que devem
ser a justiça, solidariedade e convivência social. A noção de
indivíduo confunde-se com a de liberdade. Não é fácil definir
esta (dríma. Desele o nascimento da filosofia debate-se o
tema: qll~l1 é o lugar da liberdade no universo regido por leis
imutáveis? E no caso das filosofias que admirem a contingência e o acidente, que sentido tem a palavra liberdade? Entre a
sorte e a necessidade, há um lugar para a liberdade? Estas
questões vão além do::.limites deste ensaio e aqui me limito a
revebr minha crença: a liberdade não é um conceito isolado
nem pode ser definida isoladamente; vive em relação pennanente com outra conceito sem o qual não existiria - a necessidade. Por sua vez. esta é impensável sem a liberdade: a necessidade serve-se da liberdade para realizar-se e a liberdade
só existe dí::lnte da necessidade. Isso foi visto pelos trágicos
gregos com maior clareza que os filósofos. Desde então, os
teólogos n50 pararam de discutir sobre a relação entre a pre147
destinação e o livre-arbírrio; os cientistas modernos voltaram
ao tema e um nor1vel cosmólogo contemporâneo,
Srepheo
Hawkins, chamou os 'buracos negros' de uma singularidade
física, quer dizer, uma exceção ou acidente. Assim, existem
lugares no espaço-tempo onde cessam as leis que' regem o
universo. Se submetermos essa idéia a uma crítica rigorosa,
ela acaba tornando-se impensável ou inconsistente. Fica parecida às antinomias de Kant, que ele julgava insolúveis. Contu~
do, os 'buracos negros' existem. Da mesma forma, a liberdade
existe. Mesmo sabendo que enunciamos um paradoxo, podemos dizer que a liberdade é uma dimensão da necessidade.
Sem liberdade não há o que chamamos persol1a. Ela existe sem alma? Para a maioria dos cientistas e para muiros de
nossos contemporâneos,
a alma desapareceu enquanto entidade independeme
do corpo. Ela é [ida como uma noção
desnecessária. Mas ao mesmo tempo que decretam sua desaparição, a alma reaparece não fora, mas precisamente dentro
do corpo: os atributos da antiga alma, como O pensamento e
suas faculdades, converteram-se em propriedades do corpo.
Basta folhear um tratado de psicologia moderna e das novas
disciplinas cognoscitiuas para perceber que o cérebro e outros órgãos possuem hoje quase todas as faculdades da alma.
O corpo, sem deixar de ser corpo, converteu-se em alma.
Voltarei a este ponto no final deste ensaio. Por ora observo
que, sob um ponto ele vista estritamente científíco, ainda
existem vários problemas não resolvidos. O prímeiro e central é explicar e descrever o salto do físico-químico 80 pensamento. A lógica hegeli:.108 havia encontrado uma explicação,
provavelmente quimérica: o salto dialético do quantitativo ao
qualitativo. A ciência, com razão, não é partidária desses passe-par/ou! lógicos, mas tampouco encontrou uma explicação
realmente convincente para a suposta origem físico-química
do pens::llnenro.
148
As conseqüências dessa forma de pensar foram funestas,
O eclipse da alma provocou uma dúvida que não me parece
exagerado chamar ontológica sobre o que é ou pode ser realmente um ser humôlno. É mero corpo perecível, um conjunto
de reações físico-quimicas? É uma máquina, como pensam os
especialist:ls da 'inteligência artificial'? Num e noutro caso, é
um ente ou, melhor dizendo, um produto que, se chegássemos a ter os conhecimentos necessários, poderiamos reproduzir e até melhorar à vontade. O ser humano, que havia deixado de ser a cópia da divindade, agora também deixa de ser
um resultado da evolução natural e ingressa na ordem da
produçtio industrial: é uma fabricação. Esta concepção destrói a noção de indivíduo e assim ameaça em seu próprio núcleo os valores e crenças que têm sido o fundmnento de nossa civilização e de nossas instituições sociais e políticas. Dessa forma, o confisco elo erotismo e do amor pelos poderes do
dinheiro é rtpenas um aspecto do ocaso do ;.Imor; o outro é a
evaporação ele seu elemenw constitutivo: a pessoa. Ambos
se completam e abrem uma perspectiva sobre o posslvel futuro de nOSS:lSsociedades - a b'arbárie tecnológica.
Desde a Antiguidade greco-romana, apesar das numerosas muclanÇ8s de ordem religiosa, filosófica e científica, havíamos vivido num universo mental relativamente estável, pois
repousav,l sobre dois poderes aparentemente inalteráveis: a
m<:ttériae o espírito, Eram dU:Js noções ao mesmo tempo antiéticas e complementares. Uma e outra, desde o :Renascimento, começaram a balançar. No século XVJII um dos pilares, o
espírito, começou a desmoronar. Paulatinamente abandonou,
primeiro, o Céll e, depois, a terra; deixou de ser a primeira
causa, o principio origln<:ldor de tudo o que existe; quase ao
111esmotempo retirou-se do corpo e das consciências. A ,lima,
o pllel/J7ICI, como dizi:Jm os gregos, é um sopro que se converteu em ar. Psiquê voltou à sua pátria longínqua, a mitologia.
149
Cada vez mais, por meio de diferentes hipóteses e teorias,
pensamos que a alma depende do corpo ou, mais exatamente, que é uma de suas funções. O outro termo, a antiga matéria, limite extremo do cosmo para Pio tino, também foi se desvanecendo. Já n50 é substância nem nada que possamos ouvir, ver e tocar: é energia que, por sua vez, é tempo que se
espacializa, espaço que se resolve em duração. A alma ficou
corpórea; a matéria, insubstancial. Dupla ruptura que nos encerrou para sempre dentro de uma' espécie de dois parênteses; nada do que vemos parece ser real e é invisível aquilo
que é verdadeiro. A realidade última não é uma presença e
sim uma equaçào. O corpo deixou de ser alguma coisa sólida, visível e palpável: já não passa de um complexo de funções; e a alma se indentificou com essas funções. A mesma
SOlte tiveram os objetos físicos, desde as moléculas até os astros. Ao contemplar o céu noturno, os antigos viam nas figuras das constelações uma geometria anim8cb: a própria ordem; para nós o universo deL'{oli de ser um espelho ou um
arquétipo, Tocbs essas mudanças alter::.ram a idéia do amor a
tal ponto que a tornaram, como a alma e a matéria, incognoscível.
Para os antigos, o universo era a imagem visível da perfeição; na noção circular dos astros e planetas, PIarão vi:l :l própria figura do ser e do bem. Reconciliação elo movimento e
da iclentiebcle: o girar dos corpos celestes, longe de ser mudança e acidente, era o diálogo do ser consigo mesmo. Assim, o mundo sublunar, nossa Terra - região do acidente, a
imperfeição e a mOlte - tinha que imitar a ordem celeste: a
sociedade dos homens deveria copiar a sociedade dos astros.
Essa idéia alimentou o pensamento político ela Antiguidade e
do Renascimento; podemos encontrá-ia em Aristóteles e nos
estóicos, em Giordano Bruno e em Campanella. O último
que viu no céu o modelo ele cidade dos jusros foi Fourier, que
traduziu a atraçào newroniana em termos soci:lis: em Harmo150
nia a atração passionale não o interesse - regeria as relações humanas. Mas Fourier foi uma exceção: nenhum dos
grandes pensadores políticos dos séculos XIX e :xx se inspirou na física e na astronomia modernas. A situação foi muito
claramente descrita e resumida por Einstein: "A política é
para o momento, a equação para a eternidade". Interpreto assim suas palavras: a ponte entre a eternidade e o tempo, o espaço estelar e o humano, o céu e a história, desmoronou. Es~
tamos sozinhos no universo. Mas para Einstein o universo
::linda tinha uma figura, era uma ordem. Também essa crença
hoje estil trôpega e a físic::lquântica postula um universo outro dentro do universo. A acreditar na ciência contemporânea, o universo está em expansão, é um mundo' que se dispersa, A sociedade moderna também é uma sociedade errante. Somos homens err:lntes num mundo errante.
Ao obscurecimento da antiga imagem do mundo corresponde o ocaso da idéia da alma, Na esfera d:lS relações humanas a c\esap:l.l'ição da alma se traduziu numa paulatina,
mas irreversLvel desvalorização
d:l pessoa. Nossa tradição
acreditava que cada homem e cada mulher eram um ser único, irrepetível; nós, os modernos, os vemos como órgãos,
funções e processos. As conseqüências disso foram terríveis.
O homem é um ser carniceiro e moral: como todos os animais vive matando, mas para isso necessita uma doutrina
que o justifique. No passado, as religiões e as icleologias lhe
forneceram tod:l classe de razões para assassinar seus semelhantes. Contudo, a idéia da alma foi uma defesa contra o
homicídio dos Estados e das Inquisições. Alguém dirá: defesa fraca, frágil, precária. N::io nego isso, mas acrescento, defesa mesmo assim, O primeiro argumento a favor dos índios
americanos foi afirmar que eram criaturas com alma: quem
poderia agora repetir, com a mesma autoridade, o argumento dos missionários espanhóis? Na grande polêmica que comoveu as consciências no século XVI, Bartolol11é de Ias Ca151
;'.::'
sas atreveu-se a dizer: "Est::unos aqui, na América, não para
subjugar os n:ltivos, mas para convertê-Ias e salvar suas almas". Numa época dominada pela idéia de cruzada, que justificava a conquista pela conversão forçada dos infiéis, a noção de alma foi um escudo contra a cobiça e ri crueldade dos
escravocrmas. A alma foi o fundamento da natureza sagr<lda
de cada pessoa. Porque temos alma, temos livre-arbítrio: faculdade para escolher.
Já se disse que nOS50 século pode ver com desdém os assírios, os mongóis e todos os conquistadores ela história: as
matanças de Hitler e de Stalín não têm paralelo. Ressaltou-se
menos, contudo, que existe uma relação direta entre a concepção que reduz a pessoa a um mero mecanismo e os campos de concentração. Com freqüência se compara os Estados
totalit<Írios cio século XX com a Inquisição. A verdade é que
esra se beneficia da comparação; nem nos momemos mais
sombrios de seu furor dogmático, os inquisidores esqueceram que suas vítimas eram pessoas: queriam matar o corpo e
sCllvClr,se possível, a alma. Concordo que est:l idéia p:lrece
horrível, m:lS que dizer elos milhões que, nos C:lI11POS
do Gu!ag, perderam a alnu antes de perder o corpo? Pois a primeira coisa que fizeram com eles foi conveltê-los em categorias
ideológicas; ou sej:l, pClra empregar o eufemismo moderno,
os 'expll1saram cio discurso históricO'; depois, os eliminaram.
A 'história' foi II pedra de roque: estar fora deb era perder a
identidade hUmCln:l.A desumanizaçào das vítimas, ,l!ém disso, correspondia
i1 c!esumanização
dos verdugos: eles se
viam não tanto como pedagogos do gênero hllm:lno e sim
como engenheiros. Seus cortesãos chamaram Smlin de 'engenheiro ele alm:ls'. Na verdade as palavras vítima e verdugo
não perrencem ao vocabLd<Írio do totalitarismo, que só conhecia rermos como raça e cbsse, instrumentos e agentes de
lima suposr:l mecnnica e física da história. A dificuldade para
definir o fenômeno ror:llitdrio consiste em que nào se podem
aplicar ali :lS::\l1tigascategorias políticas, como rirania, despotismo, cesarismo e outras do gênero. Assim se explica a freqüência do rermo engenbeiro na época de Stalin. A razão é
clara: o EstCldo towlirário foi, literalmente, o primeiro poder
desalmado na história dos homens.
Parecer,l estranho que eu tenha me referido à história política moderna ::to f:llar cio anlOl'. A estranheza se dissipa logo
ao repararmos que a1110re política são dois extremos das relações hum:lnas: a relaçào pública e a privada, a praça e a alcova, o grupo e o casal. Amor e política são dois pólos unidos por um arco - a pessoa. A sorte da pessoa na sociedade
política se reflete n::t re!:lção amorosa e vice-vers:l. A história
de Romeu e ]ulieta é incompreensível se omitirmos as clesavenÇ:ls senhoriais nas cidades italianas do Ren::lscimento, e o
mesmo acontece com a história de Larissa e ]iV::1gofora do
contêxto ela revoluç:'io bolchevique e da guerra civil. É inútil
dar outros exemplos. Tudo se corresponcle. A relaç:'io entre
amor e polític:l est~ presente ao longo da históriCl cio Ocidente. Na Idade l....
lodernn o amor tem sido um agente decisivo
t:lnto 11;)mucbnça ela moral soci::tl e dos costumes como na
aparição de novas práticas, idéias e instituições. Em todas essas mudanças - penso sobretudo em dois grandes momentOS, o Romantisnlo e o primeiro pós-guerra - o ser humano
foi a alavanc::t e o eL'\o. Quando falo de ser humano não evoco uma abstração: refiro-me a uma totalidade concreta. Mencionei algumas vezes a palavra alma e confesso-me culpado
de lima omissão: a alma, ou como queiramos chamar a psique humana, não só é razão e intelecto - também é uma
sensibilidade. A alma é corpo, sensação; a sensação se converte em afeto, sentimento, paL'í:ão. O elemento afetivo nasce
do corpo, l11::1S é tilguma coisa mais elo que mraç:'io física. O sen([mento e ::I p::Ji.xãosão o centro, o coração da alma apaixonad::l.
Como p::lL'\:1oe n:'io só como idéia, o amor tem sido revolucionário n:l Id:'lCleModern:l. O Rom::tntismo não nos ensinoll a
153
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-. -- - ..,
pensar: nos ensinou a sentir. O crime dos revolucionários
modernos foi o de expulsar do espírito revolucionário o elemento afetivo. E a grande miséria moral e espiritual elas democracias liberais é sua insensibilidade aferiva. O dinheiro
confiscou o erotismo porque, antes, as almas e os corações já
haviam secado.
Embora o amor continue sendo o tema dos poetas e romancisras elo século XX, est5 ferido em seu ceme: a noç~o de
pessoa. A crise da idéia cio amor, a multiplicação dos campos
de tr:1balho forçado e a <1me<1çaecológica são faros concomirantes, estreitnmenre relacionados com o ocaso da alma. A
idéia elo amor foi o suporte moral e espiritual ele nossas sociedades durante um milênio. Nasceu num recanto da Euro- .
pa e, como o pensamento e a ciência do Ocidente, universalizou-se. Hoje ameaça se dissolver; seus inimigos não são os
antigos, a Igreja e a moral cb abstinência, mas sim a promiscuid:1de, que o tr;1/1sforma em passatempo, e o dinheiro, que
o converte em serviclfto. Se nosso mundo vai recuperar a saúde, a cma deve ser dupln: a regeneração política inclui a ressurreição do amor. Ambos, amor e política, dependem do renascimento &1 noção que tem sido o eixo ele nossa civilizaçào: a pesso(l. Não penso numa volta impossível às 8ntigas
concepções da alma; acredito que, sob pena de extinç8o, devemos encontrar UlKI vis:1o do homem e da mulher que nos
devolva a consciência da singularidade e da identidade de
cada um. Visão ao mesmo tempo nova e antiga, que encare
cada ser humano C0l110criatura única, irreperível e preciosa.
Cabe à imaginaç80 criadora de nossos filósofos, artistas e
cientistas rec1escobt'ir não o mais longínquo e sim o mais íntimo e diário: o mistério que é cada um de nós. Para reinvemar
o amor, como pedia o poera, temos de invem8r outra vez o
homem.
8
Qodeios para uma conclusão
Em sua origem, na Grécia antiga, as fronteiras entre as
ciências e a filosofia eram indiscerníveis; os primeiros filósofos foram também e sem conmldiçno físicos, biólogos, cosmólogos. O exemplo melhor é o de Pitágoras: matemático e
fundador de um movimento filosófico-religioso. Um pouco
mais tarde começa a separação e Sócrates a consuma~ a atenção dos filósofos se desloca em direção ao homem interior. O
objeto filosófico por excelência, mais que a natLlreza e seus
mistérios, foi a alma humana, os enigmas da consciência, as
paixões e a razão. Contudo, não diminuiu o interesse pela
pbysls e os segredos cio cosmo: Pia tão cultivou a' matemática
e a geometria; Aristóteles se interessou pelas ciências biológicas; Demócriro e o aromismo; os estóicos elaboraram um sistema cosmo]ógico que tem aspectos extremamente modernos ... Com o fim do mundo antigo precipitou-se a separação;
na Idade Média as ciências começaram a se desenvolver e foram mais práticas que teóricas, enquanto a filosofia converteu-se em serva elo saber supremo, a teologia. No Renascimento começa, de novo, a união entre o saber científico e a
especulação filosófica. A aliança não durou muito; as ciên155
154
das conquistaram aos poucos sua autonomia, especializaram-se e cada uma se constituiu num saber separado; a filosofia, por seu lado, transformou-se num discurso teórico geral, sem bases. empíricas, desdenhoso dos saberes patticulares e afastado das ciências. O último grande diálogo entre a
ciência e a filosofia foi o de Kant. Seus sucessores dialogaram
com a história universal, como Hegel, ou com eles próprios,
como Schopenhauer e Nietzsche. O discurso filosófico voltouse contra si próprio, examinou seus fundamentos e se intelTOgou: crítica da razão, da vontade, da filosofia e, por fim, da linguagem. Mas os territórios que a filosofia abandonava, as
ciências ocupavam - do espaço cósmico ao espaço interior,
dos átomos e os astros às células e destas às paixões, às volições e ao pensamento.
À medida que as ciências se constituíam e fixavam os territórios de sua competência, dava-se um processo duplo: primeiro, a progressiva especialização dos conhecimentos; depois, em direção contrária, a aparição de linhas de convergência e de pontos de intersecção entre as diversas ciências.
Por exemplo, entre a física e a química ou entre a química e a
biologia. De um lado, os Emites de cada especialidade, o até
aqui chega esta ou aquela disciplina; de outro, o desde aqui
começa um novo território que, para ser explorado, necessita
do concurso de duas ou mais ciências. No último meio século
este processo de cruzamento entre as disciplinas se acelerou:
o elemento tempo, que jogava um papel secundário, sobretudo na física e na astronomia, converteu-se num fator determinante. Primeiro, a relatividade de Einstein imprimiu movimento, por dizer assim, ao universo de Newton, no qual O espaço e o tempo eram invariáveis. Depois, a hipótese do
big-bang (como o chama acertadamente Jorge Hernández
Campos, o gran-pum) introduziu o tempo na especulação
científica: se o universo teve um começo também terá, inexoravelmente, um fim. Ou seja, o cosmo tem uma história e um
dos objetos da ciência é conhecê-ia e contá-Ia. A física tornou-se crônic::l do cosmo. Novas perguntas se desenharam
no horizonte, questões que a ciência, desde Newton, desprezara, tais como a origem do universo, seu fim provável e a direçào da flecha do tempo: está obrigada a seguir a curvatLlra
do espaço e assim volmr sobre si pr6pria? Essas questões,
provocadas pelo próprio desenvolvimento ela física, são sem
dúvida legitim::l1nentecientíficas; também são de ordem filosófica: "A cosmologia contemporânea", diz um especialista,
"é especulativa" .35 Intersecção da ciência mais moderna e da
mais antiga filosofia: as perguntas que hoje se fazem os cientistas se fizermn, há 2500 anos, os filósofos jônicos, fundadores do pensamento ocidental. Submetidas à rigorosa crítica
da ciência, essas perguntas hoje volwm e são tão atuais como
no r::liar(\:1 nossa civiliz::lção.Muito bem, se ::lSperguntas que
se fazem hoje os cosmó1ogos s:'io::lSmesmas do princípio, serJo t:10 ;1tu;1ist::lmbémsuas respost8s?
Erme os livros que n6s, leigos, temos lido sobre esses assuntos com grande proveito está o de Steve Weinberg, 71Je
firsllbree millules (977). Ciência e história, este livro é o relato mais compreensível, claro e inteligente cios três minutos
que se seguirnJ11::'Ia blg-bal1g. Tudo o que tem acontecido no
cosmo há bilhões ele anos é conseqüência desse fia! {u:.: ins~
wntâneo. Mas o que nconteceu antes? Como n Bíblia e outros
textos religiosoS e mitológicos, os cientistas nada nos dizem
sobre o que houve ou aconteceu antes do começo. \\7einberg
diz que a respeitO disso nada se sabe e que, além cio mais,
nada se pode dizer. Tem razão. Mas sua prudência nos leva a
um enigma lógico e ontológico que abalou toclas as certezas
filosóficas: o que é o n<tcla?Pergunta contradit6ri::'le que contérn SLlrlnl1ulação: é impossível que nada. seja alguma coisa,
porque se fosse isso ou aquilo não seria, deixaria de ser nada.
35. Alam Ligh\tl1<l11 c llobclta Drower; OligillS. Harvard
Uní\'CI'Sili'
Prcss, 1990.
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Pergunta insensata e cuja única resposta é o silêncio ... que
tampouco é uma resposta.
Afirmaçào indiscurível: nada se pode dizer do nada. Contudo, postular o nada, o não-ser, como anterior ao ser, segundo se deduz ela hipótese do big-bang, é afirmar algo igualmente contraditório - o nada é a origem do ser. Esta afirmação nos leva diretamente à sentença que é o fundamento
religioso, não racional, do judeu-cristianismo: no princípio
Deus criou o mundo do nada. A resposta religiosa introduz
um terceiro enigma que é o nào-ser e o enigma que é o ser:
Deus. Mas a hipótese científica é ainda mais misteriosa que a
Bíblia, pois omite o agente criador. Confesso que me parece
mais razoável, embora me deL'Ceigualmente perplexo e insatisfeito, a crença religiosa: um agente criador, Deus, que é o
ser supremo, tira de si próprio o nada. De um ponto de vista
estriwmente lógico, a hipótese cientifica é menos consistente
que a crença religiosa: como, sem um criador rodo-poderoso,
pode ter emergido o ser do nào-ser? Os filósofos pngãos acolheram com um compreensível sorriso de incredulidnde a
idéia judaica e cristã de um Deus que faz do nada um mundo:
qual teria sido sua reação diante da hipótese de um universo
que brota repentinamente do fiada, sem causa e movido por
si próprio?
Diante da impossibilidade lógica e ontológica de deduzir
o ser elo nada, Plarào imaginou um demiurgo que, misturando os elementos pré-existentes, criara ou, mais exatamente,
recriara o mundo. O demiurgo inspirou-se nas idéias e formas eternas. O mundo e nós somos cópias, reproduções, reflexos da realidade eterna. De seu lado, Aristóteles concebeu
um motor íllmovil, o que foi uma pequena contradiçãocomo pode ser imóv.elum motor? - embora menos flagrante
que a da Bíblia. Talvez para contornar esses escolhos, vários
cientistas modernos, entre eles Hawkins, pensam que provavelmente, antes do bíg-bang, o que seria depois o universo
era uma 'singularidade' cósmica, uma espécie de 'buraco negro' primordial. Os 'buracos negros' não são regidos pelas
leis do espaço-tempo cósmico e sim pelos principios da flsica
quântica, ou seja, o princípio de indetenninação. As 'singularidades' de Hawkins e ele outros lembram imediatamente o
caos original da mitologia grega. Essa idéia foi recolhida e
reelaborada com grande sutileza pelos neoplmônicos; para
Plotino foi a imagem inveltida do Um: o Múltiplo. Mas assim
como do Um nada se pode dizer, nem sequer que é, pois está
antes do ser e do não-ser, tampouco se pode dizer do Múltiplo: cada uma das propriedades que o definem ao mesmo
tempo o negam. O caos dos neoplatônicos é uma bela premonição cios 'buracos negros' da física conten1porânea. A hipótese ele um 'buraco negro' primordial é mais consistente
que as outras; no prindpio existia algo - o caos. Esta idéia
nos leva a outra: se o começo foi uma exceção ou uma singularidade (o caos), e se aceitamos que tudo aquilo que tem um
começo tem também um fim, é claro que o universo acabará
por voltar ao estado original e se convelterá num 'buraco negro'. Este é matéria reconcentrada, máxima entropia: em certo momento de sua condensação, está destinado a arrebentar
num big-bang e a recomeçar tudo outra vez. Esta hipótese
nos lembra os estóicos, que imaginavam uma sucessão de
criações e destruições: do caos primordial ao universo, do
universo como um sistema feito de afinidades e repulsões a
uma colisão que produziria um incêndio cósmico e desta
conflagração univers31 ao recomeço do ciclo... Este pequeno
trajeto noS revela que a moderna cosmologia especulativa
volta continuamente às respostas que nossa tradição filosófica e religiosa deram às perguntas sobre o começo do mundo.
Com extraordinária pretensão, alguns filósofos decretaram
a mOl1eda filosofia. Para Regel, a filosofia tinha se 'realizado'
em seu sistema; para seu continuador, Marx, foi superada pela
dialética materi::llista(Engels sustentou o fim da 'coisa em si'
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<.'
kantiana, solucionada em produção social pela ação do trabalho humano); Heidegger acusou a mewfísica de 'ocultar o
ser'; outros falaram da 'miséria da filosofia'. Com a mesma arrog:'\ncia podemos falar hoje da 'miséria da ciência'. Não
acredito nisso. Melhor dizendo, acredito no contrário. A grande lição filosófica da ciência contemporânea consiste, precisamente, em nos ter mostrado que as perguntas que a filosofia não parou ele fazer durante dois séculos - as pergumas
sobre a origem e o fim - são as que de fato contam, As ciências, graças ao seu prodigioso desenvolvimemo,
tinham de
enfrentar esses temas em algum momento; foi uma bênçào
para nós que esse mamemo tenha sido o do nosso tempo. É
uma das poucas coisas, neste crepuscular fim de século, que
acende em nosso ânimo uma pequena luz de esperança. Em
1954, numa carta a um colega, Einstein dizia: "O físico não é
nada mais do que um filósofo que se interessa por certos casos particulares; de ourro modo seria só um técnico". Poderíamos acrescentar que esses casos panículares, no transcurso de uma geraçào, revelaram ser da maior importância. Em
OLltra ocasiào, ao falar de si próprio e de sua obra, Einstein
escreveu: "Eu n;:lo sou realmeme um físico, mas sim um filósofo e mé um memfísico". Se esta frase fosse escrita agora, talvez Einstein a tivesse formulado de maneira um pouco difereme: "SOU1.lmfísico e por isso mesmo sou um filósofo e até
um metafísico". juízo perfeitamente aplicável aos cosmólogos especubtivos contemporâneos.
A pergunta sobre a origem reaparece no campo da biologi3. Quando e como começou a vida na Terra? Para responder a essa pergunta é preciso, outra vez, o concurso de várias
disciplinas: a física e a astronomia, a geologia, a química, a
genética. A maioria dos entendidos pensam que a aparição
sobre a Terra do fenômeno que chamamos vicb tem alguma
coisa ele milagroso. Com isso querem dizer que é dificilmente
explicável, tão numerosos e complexos são os fatores físicoquímicos e ambientais que devem se reunir p3ra que, esponraneameme e sem a ação de um agente externo, possa se
produzir a vicia. Um dos mais notáveis geneticistas contemporâneos, Francis Crick, prêmio NobeI em 1962 por sua descoberta, com james Watson e Maurice Wilkins, da estrutura
molecul::tr do ADN, dedicou um livro a este tema: rife uself,
its origins, anel na/LIre (981).36 Cricl\: começa dizendo que é
quase impossível que a vida seja oriunda do nosso planeta: é
preciso procur;.lr fora sua origem. Onde? Claro que não no sistema sobr, por razões óbvias, mas sim em outro sistema análogo ao nosso. Em nossa galáxia ou em outra? Crick não específica. E t:1mbém não pretende localizar o lugar de sua apari-
ção _ seria impossível - nem descreve como pode ter
sLlrgido a vicb neste incógnito planeta. Simplesmente supõe
que lá, qualquer que tenha sido esse lá, as condições foram
mais frlvor:.íveis que na Terra. Mas como chegou a vida ao globo terrestre? Devido às clist1ncias que separ;J.m uns dos outros
os sóis e as g::t1:.íxias,seria impossível que criaturas vivas, donas de 1.1111::1 longevidadevárias vezes superior à nossa, pudessem chegar à Terra e plantar as pl'imeiras sementes de vida.
Uma viagem dessa natureza teria uma duração de bílhões de
"nos terrestres. Anos antes de Crick, em 1903, diante de c1ificulcbcles semelhantes, outro prêmio Nobel, o físico sueco S.
A. Arrheníus, j~ idealiz:ll'::1uma hipótese bem engenhosa: nuvens de sementes flUtuantes, vindas do espaço exterior, caíram na Terra quando nosso globo era, usando uma expressão
pitoresca, o que os cientistas chamam ele 'caldo de cultLlra' favorável à reprodução ele bactérias e outros organismos elementares. Arrhenius ch::lInou sua hipótese de Pallespermia.
36, COll1ClllCi o livro dc Crick 1\1I111
pequeno ensalo de 1982, "Intcligências cxtraICITCSlrcsy dcmillrgos, b:t\:tcrias c dinossaur~". Este texto foi public:ldo em Somuras de ouras (1985), Vcr o segundo volume de minhas Obras COll/p/CIaS: Excul'siOl1cslJnclll'siol7cs,
161
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I
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Crick apanhou essa idéia, modificou-a e desenvolveu-a numa
curiosa mistura de especulação lógica e de fantasia.
A hipótese de Arrhenius tinha um defeito: a imensidào
das distâncias e as inclemências do espaço teriam destruído
as nuvens de frágeis sementes muito antes de que tivessem
podido chegar peno de nosso planeta. De dedução em dedução Crick chegou a uma conclusão logicamente irrepreensível: as bactérias tinham de ter chegado à Terra em veículos
hermeticamente fechados e invulneráveis às chuvas de asteróides e outras inclemências do espaço exterior. Das naves
interestelares aos seus construtores só havia um passo: uma
civilizaçào, num momento muito elevado de sua evolução,
decidira propagar a vida entre os planetas de outros sistemas.
Crick não diz como esses sábios e filantrópicos seres conseguir::llTIaveriguar as condições da Terra e de outros planetas
que escolheram. Mas ele imagina que essa decisão foi tomada quando aqueles sábios descobriram que SU::l civilização e
eles próprios estavam condenados à extinçâo. Então, num
ato de filantropi::l cósmica destinado não a salvá-los mas sim
a vidn em si mesma, pensaram em transportar os germes vitais a outros pbneras em naves imunes às vicissitudes de uma
viagem tão cheia de perigos. Por que as bactérias? Por serem
os únicos organismos que, preservados num" ambiente favorável, poderi::lm se reproduzir indefinidamente
e resistir assim à dumçâo de uma viagem imerestelar.]á n:J Terra, as b:lctérias repetiriam os passos da evolução natural, que 8S levariam à aparição da espécie humana e, um pouco mais tarde,
ao momen(o em que Cricl<escreveria seu livro, no qual exporia sua teoria: Panespennia dirigida.
O livro de Criel" é surpreendente por várias razões. Duas
delas são seu rigor dedutivo e sua nobreza moral. Contudo,
tem algumas inconsistências, como o episódio dos dinossauros. Foram os reis ela Terra durante mais de 600 milhões de
anos e ainda continuari,lll1 sendo se não fosse por sua extin162
ção, até agora não explica da inteiramente. Alguns especialistas duvidam que a causa do desaparecimento
dos gigantescos s:íurios tenha sido a queda de um aerólito que escureceu
a Terra, acabou com a vegetação e, assim, privou os animais
de alimentos. Enfim, qualquer que tenha sido a causa, o que
terin aconteCido se os dinossauros não tivessem perecido?
Que rumo teria tomaclo a evoluçâo? O episódio dos dinossauros significa a intervenção do acaso e do acidente no próprio funcl:1mento das ciências biológicas: a evoluçào natural.
Sua extinção súbita era imprevisível. Assim, pois, a aparição
da inteligência humana sobre o plnneta deve-se a um acidente. A introduçâo do fator tempo na biologia a converte em
história. E já se sabe, a história é imprevisívet. Somos filhos
do acaso.
Crick "nâo nos fnz essas perguntas, mas como no caso elas
cosmologias especulmivas, é impossível não perceber suas involuntárias coincidências com as hipóteses e doutrinas da Antiguicbde sobre esses temas. A civílizaçâo extraterrestre de Crick
cem algumas coisas parecidas com o demiurgo de Pia tão ou
com ~s várias seitas gnósticas dos primeiros séculos de nossa
er:1. Os extJ~1terrestres nào criaram a vida; assim Criek contorna
o escolho lógico ele tirar do nada o ser; como o clemiurgo do Timeu, usam os elementos já existentes combimnelo-os e lançando-os ao espaço: as b:.lctérias descem à Terra como as almas ele
Plar80. Mas h:1l.lma diferenp substancial: o demiurgo 030 dá a
vid:.lpor nós, enquanto a civilização extr::tterrestre, no transe ela
mOlte, envia ao espaço seus mensageiros de vida. Morte que clá
viela. A figura ele Cristo l1a cruz é O arquétipo, o modelo inconsciente que inspira n fant:.lsia da civilização agonizante idealizada por Criei\..Como (:.lntos outros cientistas, o biólogo inglês se
proíbe de introduzir um agente criador (Deus) para explicar a
origem eb vida na TeI1'a, mas o que é essa civilização extraterrestre a pomo ele mOITerse nâo o equivalente elo Deus cristilo e
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sua promessa de ressurreição? Estamos diante da tradução
em tennos de ciência e história de um mistério relígioso.
No livro de Mervin Minsky, 1be society ojmínd (1985), o
autor não nos oferece a divinização de uma civilização extraterrestre, mas sim a do engenheiro eletrônico. Minsky é uma
das autoridades em 'inteligência artificial' e está convencido
de que não só é factível, mas iminente a fabricação de máquinas pensantes. Seu livro parte de uma analogia; o que chamamos mente' é um conjunto de partes diminutas como as
partículas elementares que compõem o átomo: nêutrons, elétrons, prótons. As forças que movem as partes que compõem
a mente não são nem podem ser diferentes das que juntam,
separam e fazem girar as partículas atômicas. A analogia mais
perfeita entre umas e outras é o circuito de chamadas e respostas em que consiste a operação de um computador. Faço
outra analogia: as pequenas partes lembram as peças ele um
quebra-cabeça; isoladamente não têm forma identificável,
mas unidas a outras se transformam em lima mào, uma folha
de árvore, uma tela até que, todas juntas, ganham corpo e
sentido: são uma jo,,"emque passeia com seu cachorrinho
por um parque. As partes que compõem a mente são móveis
e, como as peças do quebra-cabeça, não sabem por que ou
para que se mexem nem o que as move. Não pensam, embora sejam partes, e partes indispensáveis, do pensamento.
Aqui nasce uma diferença que desfaz a simetria: as peças do
quebra-cabeça são movidas por uma mão que sabe o que faz
e para que o faz. Uma intençào inspira a mão e a cabeça do
jogador. No caso da mente nào há jogador: o eu desaparece.
A máquina não pensa, masjaz o pensamento sem que ninguém a oriente.
Um aspecto omitido por Minsky: a relação entre a mente,
concebida como um aparelho, e o mundo exterior. Para que
a mente humana comece a funcionar - na prática funciona
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as 24 horas do dia, incluindo as dedicadas ao sono - precisa
receber um estímulo exterior. O número desses estímulos exteriores é praticamente infinito, de modo que a máquina,
para escolher aquilo que lhe interessa, deve estar equipada
com um seletor de objetos ou temas pensáveis que seja o
equivalente ao que chamamos sensibilidade, atenção e vontade. Essas faculdades não são puramente racionais e a segunda está impregnada de afetividade. Assim, a máquina teria de ser, além de inteligente, sensível. Na verdade, teria de
se convelter numa réplica exata de nossas faculdades: vontade, imaginação, entendimento, memória, etc. Entraríamos aSsim nas famasias repulsivas de f!lundos habitados por criaturas idênticas. Por outro lado, se a máquina pensante fosse
tamb.ém a réplíca da mente humana, haveria de todas as formas uma diferença que não hesito em chamar de imensa: a
mente humana não sabe que é realmente uma máquina nem
tem consciência de sê-Ioj a mente acredita numa ilusão: seu
eu, sua consciência. No caso de uma máquina fabricada por
um engenheiro, que classe de consciência poderia ter? Diante de um estímulo dado, a máquina pensante começa essa série de operações que chamamos sentir, perceber, observar,
medir, escolher, combinar, desfazer, provar, decidir, etc. Estas
operações são de ordem material e consistem em sucessivas
uniões e separações, justaposições e divisões das partes que
compõem a máquina até aparecer um resultado: uma idéia,
um conceito. Platão, Aristóteles, Kant e Hegel se esforçaram
para definir o que é uma idéia e um conceito, sem conseguir
isso inteiramente. A máquina resolve o problema: é um momento de uma cadeia de operações materiais realizadas por
partícul<lsdiminuras e movidas por uma corrente elétrica.
Quem realiza as operações que selo o pensamenco ela
máquina? Ninguém. Para os budist8s o eu é uma construção
mental sem existência própria, uma quimera. Suprimi-Io é
suprimir a fome do erro, do desejo e da desgraç8, liberar-se
165
":::.'
do fardo pesado (carma) e entrar no incondicionado: a liberação absoluta (nirvana). A máquina pensante eleMinsky não
tem preocupações morais nem religiosas: elimina o eu por
ser desnecessário. Mas é realmente desnecessário? Podemos
viver sem o eu? Para os budistas, a extinção do eu implica a
da ilusão que chamamos vida e nos abre as portas do nirvüna. Para Minsky a supressão do eu não tem conseqüências
morais, mas sim científicas e técnicas. Primeiro, nos faz compreender o funcion~lInento da mente; segundo, nos permitirá
fabricar máquinas pensantes cada vez mais simples e perfeitas. É preciso examinar mais atentamente essa pretensão.
Desde que o homem começou a pensar, quer dizer, desde que começou a ser homem, uma silenciosa testemunha o
vê pensar, gozar, sofrer e, numa palavra, viver: sua consciência. Que realidade tem a consciência, esse perceber o que fazemos e pens::tmos? A idéin que tem Minsky eb consciência
pode se comparar a da imagem num espelho. A compar::tç~o
é útil, pois nos permite ver com celt::tclareza a diferença entre um::!máquina e um:1consciência. Se nos olhamos em um
espelho, a imagem que vemos nos remete ao nosso corpoi a
consciêncb, que n:.iotem figura visível, não nos remete a um
eu (reputado como ilusório por Minsky), e t::tmpouco, como
seria ele esperar, ao objeto que a origina: o circuito de relações entre as diminutas panícubs. Se a consciência é a projeç:'io de l\11l mecanismo, por que essa projeç50 e o próprio
mecanismo evaporam-se tornando-se invisíveis? Ou dito de
outra form::t:se me olho no espelho, vejo minha imagem; se
penso que estou pensando, ou seja, se me dou conta do que
faço, não olho nem nunca olharei meus pensamentos. Pensamos, e ao pensar nos damos coma disso; contudo, não vemos o que pensarnos; então, como as descargas elétric:1sque
provocam os movimentos das diferentes partes que compõem a menre, em vez de se transformarem em figuras visíveis ou audíveis, se conveltem em pensamentos invisíveis e
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que não ocupam lugar no espaço? Eliot disse: "Entre opensamento e o ato, cai a sombra". Nesse caso, a sombra se evapo-ra: o pensamento tem corpo mas não sombra: é uma máquina
que fn invisível aquilo que produz. É uma anomalia, uma
verdadeira singularidade, no sentido que Hawkins dá ao termo. A máquina pensante de Minsky se apresenta como um
modelo mais simples, econômico e eficiente do que chamamos mente ou espírito. A verdade é que introduz um mistério
não menos árduo que a imaterialidade da alma ou a transubstanciaçào do pão e do vinho na Eucaristia. Sua máquina é mihlgrosa e estúpida: milagrosa porque produz, com meios materiais, pensamentos invisíveis e incorpóreosj estúpida porque
não sabe que os pensa.
Parece que Descartes foi o primeiro que teve a idéia de
ver a mente como uma máquina. Mas uma máquina dirigida
por um espírito. O século XVIII concebeu o universo como
um relógio manejado por um relojoeiro onisciente: Deus. A
idéia de lima máquina que anda sozinha, que ninguém controla e que pode acrescentar, atenuar e mudar de direçao a
corrente que a move, é uma idéia do século XX.Embora essa
idéia, como já vimos, seja contraditória, não podemos descartá-Ia completamente. É um fato que podemos fabricar máquinas capazes de realizar certas operações mentais: os com~
putadores. Embora ainda não tenhamos fabricado aquelas
que possam se regular sozinhas, os especialistas dizem que
não é impossível que logo consigamos isso. A questão é saber até anele pode chegar a inteligência dessas máquinas e
quais podem ser os limites de sua autonomia. Para começar:
a imeligênci::thumana pode fabricar objetos mais inteligentes
que ela própria? Se seguinnos a lógica, a resposta é negativa.
Para que a inteligência humana criasse inteligências superiores a ela própria, teria de ser mais inteligente do que é. Tratase de uma impossibilidade ao mesmo tempo lógica e ontológica. Quanto ao segundo ponto: os homens são movidos por
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seus desejos, ambições e projetos, mas limitados pelo poder
real de sua imeligência e os meios de que dispõem. Quais
poderiam ser as ambições e os desejos das máquinas pensantes? Só poderiam ser aqueles inscritos na sua fabricação por
seu fabricante: o homem. A autonomia das máquinas depende, essencialmente, do homem. É uma autonomia condicionada, ou seja, não é uma verdadeira autonomia.
Volto à comparação emre as peças de um quebra-cabeça
e as partes que compõem a máquina pensame. Já observei
que a diferenÇól entre ambas consiste em que as peças do
quebra-cabeça são movidas por um jogador e as da máquina
pensame por um programa ativado por uma corrente elétrica. O que acomece se alguém desliga a máquina de. sua fonte
de energia? A máquina deixa de pensar. O quebra-cabeça e a
máquina dependem de um agente. E tem mais: a resolução
do enigma que é o quebra-cabeça consiste em refazer uma figura; o jogador não inventa essa figura, mas a reconstrói a
partir de seus diversos e diminutos fragmentos. No caso das
imeligências
artificiais que conhecemos
(computadores)
ocorre alguma coisa parecida: suas operações obedecem a
um programa, a um plano do operador da máquina. Em ambos os C::lSOSo agente. (eu, razão, alma, operador, qualquer
nome) é indispensável. E assim é por duas razões: porque
põe em movimento o aparelho e porque determina de antemão o campo e a natureza de suas funções e operações. Mas
as máquinas pensantes com que sonham alguns especialistas
da 'inteligência artificial' não vão além dessas limitações? Se
formos acreditar nesses especialistas, elas não só teriam a faculdade de se auto-regular e autodirigir, maS seriam muito
mais inteligentes que os homens. Numa explosão de entusiasmo, um autor de obras de ficçào ciemífic::l muito merecidamente famosas, Arthur C. Clarke, disse recentemente:
"Considero o homem uma espécie transitória que será superada por alguma forma de vida que vai incluir a tecnologia de
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computadores".
Ele se referia, sem dúvida, às inteligências
artificiais. Clarke invoca, como tantos outros, os manes de
Darwin: as máquinas pensantes são um momento da evolução natural, comO as amebas, os dinossauros, as formigas e
os homens. Mas há uma grande diferença: Danvin fechou entre parênteses a noção de seu criador, Deus, que tivesse colocado em andamento o processo da evolução natural; como
Crick e muitos outros, Clarke reintroduz o agente críaclor,
agora clisfnrçaclo de biólogo e engenheiro eletrônico.
Transcrevi as palavras de Clarke como amostra de uma
maneira ele pensar muito popular, sobretudo entre os cientistas e técnicos. Devo esclarecer que fui leitor assíduo de seus
livros, fascin80re união de ciência e fantasia; lembro com prazer e saudade uma luminosa tarde, há mais de 30 anos, na
qual vi Cl:1rke sentado com um amigo no terraço do hotel
MOllllt Lavinin, na periferia de Colombo. O mar batia na costa
e cobria os penhascos ela pequena baía com um manto quebrado de espumas ferventes. Não me atrevi a lhe dirigir a pabvra: ele me pareceu um visirante de outro pbnera ... Na frase
do romnncistn inglês re8parece, encoberta por preocupações
ele ordem científica, o velho espíri~o especulativo que animou
não só a filosofia mas, com mais freqüência, as visões dos profetas e funebdores ele seitas e religiões. A ciência começou por
excluit' Deus elo universo; depois entronizoLl a história, <lS vezes encarnaeb em ideologias redentoras e outras em civilizações filantrópicas; agora coloca em seu lugar o cientista e o .
técnico, o fabricante ele máquinas mais inteligentes que seu
criador e don::ls de um;'!.liberdade que não conheceram Lúcifer e suas hastes rebeldes. A imaginação religiosn concebeu
um Deus superior 8 SU:1Scriaturas; a imaginação técnica concebeu um Deus-engenheiro inferior aos seus inventos.
Embora ainda tenha minhas reservas em relaç50
derna concepção
:1
mo-
biológica da mente, ela me parece mais rica
169
e fecunda que as teorias mecanicistas. Estas últimas vêem nos
computndores um modelo para compreendê-Ia e o ponto de
paltida para a fabricação de inteligências 3nificiaisj por outro
lado, a concepção biológica tem bases mais firmes, pois se
funda na observação do organismo humano, esse estranho e
complexo composto de sensnções, percepções, volições,
sentimentos, pensamentos e atos. Uma autoridade nesta matéria, o neurologista Oliver Sacks, diz num artigo recente;
"Lemos, excitados, sobre as últimas teorias da mente - químicas, quânticas ou 'computacionais' - e depois nos perguntamos: isso é tudo?... Se quisermos ter uma teoria da mente, como ela opera realmente nos seres viventes, terá de ser
radicalmente diferente de qualquer teoria inspirada no computador. Deve ser baseada no sistema nervoso, na vida interior da criatura viva, no funcionamento de suas sensações e
intenções ... em SU;1 percepção dos objetos, gente e sÍ[uaçôes ... na habilidade elas criaturas superiores para nbstrair e
compartilhar, por meio da linguagem e da cultura, a consciência de outros". Ou seja, o modelo deve ser o próprio homem, esse animal que pensa, fala, inventa e vive em sociedndes (culturn). Uma teoria dessa natureza é a de Gernlcl M.
Edelman, a qltal o próprio Sacks dedicou um extenso e brilhante ensaio.37 Coment:;n-ei de forma breve algumas das
idéias de Eclelman e Sacks. Como as anteriores, está claro,
minh3s reflexões não serào de natureza científica.
A primeira vantagem da nova teoria é que descarta a
analogia com os computadores e resiste ao simplismo das
explic:tções meramente físico-químicas. Outra vantagem é
seu realismo: a mente deve ser estudada precisamente em
seu próprio meio, o org:.-mismohumano, e em seu meio n3tural. A teoria é ainda incompleta - há vastos territórios
inexploraclos - e muitas de suas hipóteses C8recem ele veri37. Oli\'cr Saeks; Makil18 I/P lhe //Iind, sobre o livro de G,I\'1.Edclman: Brigbl ail~
bn'lIiam /ire; 011 tbe III{/tler of IlJe lIIilld (Basic Books, 1993) em 77Je New YOl'k Re!'iew of Books, 8 de abril de 1993.
170
ficação empírica. Essas limitações não invalidam sua fecundidade; é uma hipótese que nos faz pensar. Ede1man começa
pelo começo, pela sensaçâo em sua forma mais simples, que
chama de jeelings: frio ou calor, alívio ou constrangimento,
doce e amargo, etc. As sensações implicam uma valoração:
isto é desagradável, aquilo é gostoso, aquele outro é áspero,
e assim sucessivamente até o mais complexo, como o sofrimento que também é alegria ou o prazer que é dor. As sensações são percepções embrionárias, pois será que sentiríamos se percebêssemos que sentimos? Por sua vez, percepção é concepção; ao perceber a realidade imediatamente
impomos uma forma ã nossa percepção, a construímos:
'cada percepção é um ato de criação'.
A idéia da natureza criadora da percepção, comenta
Sacks, já aparece em Emerson, A verdade é que sua origem
remonta à filosofia grega e era corrente na psicologia medieval e renascentista. Corresponde à teoria vigente até o século
XVII, sobre a função dos chamados 'sentidos interiores': o
bom senso, a estimativa, a imaginativa, a memória e a fantasia, encarregados de recolher e purificar os dados dos cinco
sentidos exteriores e transmiti-Ias, como formas inteligíveis, à
alma racional. A imagem ou forma que recebe o entendimento não é o dado cru dos sentidos. Na tradição budista também aparecem essas divisôes, numa ordem ligeiramente diferente: sensação, percepção, imaginação e entendimento.
Cada uma dessas divisões designa um momento de um processo que converte os dados e estímulos exteriores em impressões, idéias e conceitos; na sensação está presente a percepção que transmite esses dados à imaginação que os entrega, como formas, ao entendimento que, por sua vez, os
transforma em intelectos. O processo criador das operações
mentais não é uma idéia nova, embora seja nova a ·maneira
como a neurologia moderna descreve e explica o processo.
171
Em cada um dos momentos dessa complicada série de
oper<tções - composta de milhões de chamadas e respostas
na rede de relações neurológicas - aparece uma inlençclo.
Aquilo que sentimos e percebemos não é unicamente uma
sensação OLluma representação, mas sim alguma coisa dotada de llm:l direção, um valor ou uma iminência de significação, Como é sabido, a fenomenologia
de Edmund Husserl
baseia-se no conceito de intencionalidade.
Husserl tomou
essa idéia, modificando-a substancialmente, elo filósofo austríaco Franz Brentano. Em todas as nossas relações com o
mundo objetivo - sensações, percepções, imagens - aparece um elemento sem o qual não há consciência do mundo
nem ele nós próprios: o objeto já tem, no momento em que
surge na consciência, uma direção, uma intenção. Segundo
Brentano o sujeito tem invariavelmente uma rebção intencional com o objeto que percebe; ou mais c1ar:.lmenre, o objeto
está incluído na percepção do sujeito como intencionalidade.
O objero, qualquer que sejo., aparece inclefecrivelmente como
algo c1esej~\'el, temível, enigmático, útil ou já conhecido, etc.
A mesma coisa aconrece com as sensações e percepções ele
Eelelman; nfio sfio mer:.lS sens:.1ções nem represent:.lções. SEio,
como já disse, valomções. Acredito que é fácil exwlir uma
conclusão de tudo isso: a noçEio de intencionalidade nos remete:l umsLljeito, seja este a consciência de Husserl ou o circuiro neurológico de Edell11:.1n.Contudo, Edelman se reCLlsaa
considerar a existêncb de um sujeito ao qual se pode atribuir
a imencionaliebde
com que aparece o objero. Não obstante
sua neg:.1ç~o do sujeiro, Edelman se impressiona mllito com
"a unidade com que o mundo rlparece diante elo perceptor,
:.lpes:ll' ela J11ulriplicicbcle de I11rlneiras de percebê-Io que emprega o sistema nervoso".38 Não fica menos impression:ldo
com i·:.lSteori:.lS :.ltll:.lisda mente que não podem explicar :.l
existência ele um elemento que integre ou unifique toclas es38. Otiver S;lcks: op. cil.
172
sas percepções." Dilema delicado: de um lado, a negação do
sujeito; do ourro, a necessidade ele um sujeira. Como Edelman resol ve isso?
Para tornar mais compreensível sua concepç:'ío, Edelman
usa UIl1:.1
met,'tfom: a mente é uma orquestra que executa uma
obra sem maestro. Os músicos - os neurônios e os grupos de
neurônios - estão conectados e cada executante responde
ao outro que o interpelar; assim criam colerivrlmente uma
obra musicrlL Mas, diferente das orquestras da vida real, a orquestra neurológica não roca uma prlltitura já escriw: improvisa sem parar. Nessas improvisações aparecem e reaparecem
frases (experiências) de outros momentos desse conceIto que
começou n:.l nossa inn'incia e terminará com nossa morte.
Duas observações me ocorrem. A primeiro, na hipótese de
Edellllan, a inici~lli\'a jX1SSado diretor cb orquestra aos executantes. No GISO cb orquestra real, os executantes sfio sujeitos
conscientes e com a intençno de compor coletivamente uma
peça musical: essa consciência e essa vontade existem também nos neLll"ônios?Se é assim, os neurônios se puseram antes de :.lcordo~Ou haver;í por acaso uma ordem preesrabelecida que rege as chall1:.lc1ase respostas dos neurônios? Num e
noutro C:.lSOo l11:.lestronão desaparece, ele se dissemina. O
problema se desloca, m:.lSnão se resolve. A segunda: a improvisação requer sempre um pl8no. O exemplo mais imedhHo é
o elo jazz e o clc1smgas ela Índia: os músicos improvisam com
celta liberdade, mas dentro de um padrão e de uma estrutura
básic:.l. A mesma coisa acontece com as outras improvisações,
sejam musicais ou de outra na[Ureza. Trate-se de uma bmalha
ou ele um cli;í!ogo ele negócios, de um passeio no bosque ou
de uma discussão politica, seguimos um plano. Pouco importa que renha sido traçado um minuto antes e que seja muito
vngo e esquem::itico - é um plano. E rodos os plnnos exigem
ur'n pbnejador. Quem f3Z o plano da orquestra neurológica?
173
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Como vimos, Edelman conhece a dificuldade de explicar
o funcionamento dos neurônios sem a presença de um diretor de orquestra, sem um sujeito. Com certa freqüência ele se
refere ao sentimento de identidade, a um ser e uma consciência. Essas palavras designam as comttUções dos neurônios. O
circuito neurológico, disperso em nosso corpo e composto
por milhões de neurônios (alguns são como tribos nômades,
o que me assombra e me deixa perplexo), não só constrói
nosso mundo com os ladrilhos e pedras das sensaçoes, percepçoes e intelecçoes, mas também constrói o próprio sujeito: o nosso ser e a nossa consciência. Construçoes ao mesmo
tempo sólidas e evanescences: nunca desaparecem, mas mudam continuamente de forma. Contínua metamorfose de nossa imagem do mundo e de nós próprios. Esta visão - pois
traca-se realmente de uma visão -lembra as concepções budistas sobre a natureza quimérica da realidade e do ser humano. Para os budistas o eu tampouco tem uma existência própria e independente: é uma construção, um conglomerado
de elementos mentais e sensoriais, Estes elementos ou, melhor dizendo, racemos de elementos, são cinco no tot81
(skhandas em sânscrito ou kbandas em p:iili).Os elementos
compÓem o sujeito e sua consciência; são o produto de nosso carma, a soma de nossos erros e pecados em vidas passadas e no presente. Por meio da meditação e de outros recursos podemos destruir a ignorância e o desejo, liberar-nos do
eu e entrar no incondicional, um estado indefinível que não é
sua vida nem morte e do qual não se pode clizer absolutamente nada (nirvana). É extraordinária a semelhança entre
essas concepçoes e 8S da neurologia. Também são not::íveis
as diferenças, O construtor do eu, para o buclista, é o carma;
para Edelm8n, o sistema nervoso. O budista deve destruir o
eu se quiser escapar ela desgraça que é nascer e romper o
laço que o prende à roda das encarnações. Para Edelman o
eu e a consciência são construções indestrutíveis, salvo por
174
um transtorno do circLlitoneurológico (doença ou morte). O
eu é um::!construção e depende da interação dos neurônios.
É um artificio necessário e indispensável: sem ele não poderíamos viver. Aqui aparece a grande questão: o dia em que o
homem descobrir que sua consciência e seu próprio ser não
são nada mais do que construções, artifícios, poderá continuar vivendo como agora? Parece impossível. E no momento
que a consciência percebesse que é uma construção do sistema nervoso e que seu funcionamento depende dos neurônios, perderia sua eficácia e deixaria de ser consciência. A
concepção da consciência como uma ·construção dos nemônios não afeta só o organismo individual, cada homem, mas
sim a coletividade inteira. Nossas instituições, leis, idéias, artes, enfim, nossa civiliz8Çãointeira está baseada na noção de
um ser hum::lOodotado de liberdade. Pode-se fundar uma civilização sobre uma construção neurológica?
Para o budista a Iiberraçno começa no momento em que o
indiyíduo rompe a crosta da ignorância e percebe sua situação. Este perceber é a conseqüência de um ato livre: o eu, a
consciência, decide sua dissolução para escapar do ciclo vidamorre-vida ... A liberdade exige, como a orquestra neurológica, um sujeito, um eu. Sem eu, não há liberdade d~ decisão;
sem liberdade - dentro dos limites que mencionei - não há
ser hum~lOo.Nem a liberdade nem o eu figuram na concepção de Eclelman. Muito menos a noção de pessoa. Sacks observa que ainda não podemos ver os grupos ele neurônios
nem desenhar os mapas de suas interaçõesj tampouco podemos ouvira orquestra que sem parar executa suas improvisaçoes em nosso cérebro. Por isso EdelInan e seus colegas conceberam "animais sintéticOS,artefatos que atU:.1.l11
por meio de
COl11pl\t~dores,mas cuja conduta (se se pode usar esta palavra) não é programada nem robótica e sim não-ética". (A propósitO, uma pabv~ de estirpe husserliana.) Edelman não duvida que, num futuro não muito distante, será perfeitamente
175
possível fabricar 'artefatos conscientes'. E S3cks comenta;
"Felizmente isso não acontecerá até o início do próximo século". Felizmente? Não podemos lavar as mãos: é impossível
adiar a discussão de um tema dessa gravidade aré o próximo
século. Confesso meu espanto e decepção.
Estas divagações de um leigo sobre temas científicos da
atualidade não foram mera digressão: tiveram um duplo objetivo. O primeiro, mostrar que as ciências contemporâneas,
não por insuficiência, mas ao contrário, por seu próprio desenvolvimento, tiveram de se fazer cenas perguntas fí!osóficas e meta físicas que, há séculos, os cientistas ignoraram fosse porque isso lhes parecia fora de sua jurisdição ou porque eram consideradas questões supérfluas, contraditórias
ou sem sentido. O fato de que muitos cientistas notáveis formulem hoje essas mesmas perguntas tem um claro significado: abre a porta pam que se volte a discutir o velho tema das
relações entre a alma e o corpo. Nem preciso repetir que não
pretendo nem desejo voltar às antigas concepções. O corpo
possui atributos que ::1l1teseram da alma e isso, no fundo, é
saudável. Mas o velho equilíbrio entre a alma e o corpo rompeu-se. Todas as civilizações conheceram o diálogo - feito
de conjunções e c1isjunções- entre o corpo (alma, psique,
a/mel e O\.Hrasdenominações). Nossa cultura é a primeira que
pretendeu abolir esse cli::ílogopela supressão ele um dos interlocutores: a alma. Ou, se preferirmos um termo neutro: o
não-corpo. Como procurei demonstrar em outro texto, o corpo se conveneu cada vez mais em um mecanismo e o mesmo
aconteceu com a ::Ilma.39 Mudanças na genealogia do homem: primeiro, criatura de Deus; depois, resultado da evolução cbs células origin::íriasje agora, mecanismo. A inquietante ascensão e1nm::íquina como arquétipo do ser humano desenha uma interrogaçào sobre o fUrLlrode nossa espécie.
39. Ver COl1jUl1cjo/1csJ'disJ~mciones (1967).
176
Por tudo isso acho que não seria um despropósito comen~
tar, de um ponto de vista alheio às ciências, mas não contrário
a elas, alguns dos assuntos que hoje preocupam os cientistas.
Os tempos, parece-me, estão maduros para iniciar uma reflexão filosófica, baseada nas experiências das ciências contemporâneas, que nos ílumine sobre as velhas e permanentes
questões que agitaram o entendimento humano: a origem do
universo e da vida, o lugar do homem no cosmo, as relações
entre nossa parte pensante e afetiva, o diálogo entre o corpo e
a alma. Todos estes temas estão relacionados diretamente
com o objeto deste livro: o amor e seu lugar no horizonte da
história contemporânea.
O segundo objeto destas digressões foi o de mostrar que,
ao mal-estar social e espiritual das democracias liberais, descrito no capítulo anterior, corresponde um mal-estar não menos profundo na esfera da cultura. 'No campo da literatura e
das altes a doença se manifesta por um duplo fenômeno que
analisei em outros escritos: a çomercialização das artes, especialmente a pif'lura e o romance, bem como a multiplícação
e proliferação de modas literárias e artísticas de vida curta.
Estas modas se espalham com a rapidez das epidemias medievais e fazem tantas vítimas quanto elas.40 No caso das
ciências já aludi ao aspecto mais grave: a mecanização, a redução a modelos mecânicos de complexos fenômenos mentais. A idéia de 'fabricar mentes' leva espontaneamente à aplicação da técnica industrial da produção em série: a fabricação de clones, réplicas idênticas deste ou daquele tipo ele
mente individual. De acordo com as necessidades da economia ou da política, os governos ou as grandes empresas poderiam encomendar a manufatura deste ou daquele número
de médicos, jornalistas, professores, operários ou músicos.
Além da duvidosa viabilidade destes projetOs, é claro que a
fílosofía em que se sustentam lesiona, em sua essência, a no40, Ver Octavio Paz. A outra voz, São Paulo, Editora Siciliano, 1993.
177
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ção de ser humano, concebido como um ser único e irrepetível. É esse o aspecto inquietante das novas concepções e isso
é o que devemos discutir hoje, 'felizmente' ou não. Se a criatura humana se converte num objeto que pode ser substituído e duplicar-se por outro, o gênero humano se torna expenclable: algo que pode ser substituído com facilidade, como os
outros produtos ela indústria. O erro dessa concepção é mosófico e moral. O segundo é mais grave que o primeiro. A
identificação entre a meme e a máquina é só unia analogia,
talvez útil sob o ponto de vista científico, mas que não se
pode interpretar literalmente sem o risco de terríveis abusos.
Na verdade estamos di:lnte de uma variante das sucessivas
tentativas de desumanizaçào que os homens sempre sofreram desde o começo da história.
No século À'VIos europeus decidiram que os índios ameriemos não eram toralmente racionais. O mesmo se disse, em
outras épocas, dos negros, chineses, hindus e outras coletividades. Desumaniz3ção pela diferença: se eles não são como
nós, eles não são inteiramente humanos. No século XIX,Hegel e r..'farxestucbram outra variedade, fundada n50 na diferença, mas sim na alienaçào. Para Hegel a alien<1çãoé tão ::111tiga como a espécie humana: começou ao raiar da história
com a submissão do escravo à vontade de um amo. Marx
descobriu outra variante, a do trabalhador assalariado: a inserção de um homem concreto é uma categoria abstrata que
o despoja ele sua individualidade. Em ambos os casos literalmente se rouba do indivíduo uma parte de seu ser reduzindo
o homem ao est3do de instrumento. Coube aos nazistas e aos
comunistas levar :1 sua conclusão final estas mutilações psíquicas. Os dois totalitarismos se propuseram abolir a singularidade e diversidade das pessoas: os nazistas, em nome de
um absoluto biológico, a raça; os comunistas, em nome de
um absoluto histórico, a classe, representada por uma 0110doxia ideológica encarnada num comitê central. Agora, em
(
{
178
nome da ciência, pretende-se não o extermínio deste ou daquele grupo de indivíduos, mas sim a fabricação em massa
de andróides. Entre os romances de previsão do futuro, o
mais atual hoje não é o de Orwell e sim Admirável mundo
novo, de Huxley. A escravidão tecnológica está à vista. O in~
divíduo sobreviveu a dois totalitarismos. Sobreviverá à tecnificação do mundo?
Este longo rodeio chegou ao fim. Sua conclusão é breve:
os males que afligem as sociedades modernas são políticos e
econômicos, mas também morais e espirituais. Uns e outros
ameaçam o fundamento de nossas sociedades: a idéia do indivíduo. Essa idéia foi a fonte das liberdades políticas e intelectuais; também a criadora de uma das grandes invenções
humanas: o amor. A reforma política e social das democracias liberais capitalistas deve ser acompanhada de uma reformet não menos urgente do pensetmento contemporâneo.
K;:>ntfel. a crítica da razão pura e da razão prática; precisamos
hoje de outro Kant que faça a crítica da razão científica. O
momemo é propício porque na maioria das ciências é visível,
até onde nós, leigos, podemos perceber, um movimento de
auto-reflexão e :lutocrítica, como mostram admiravelmente
os cosmólogos modernos. O diálogo entre a ciência, a filosofia e a poesb pocleri<1ser o prelúdio da reconstituição da unidade da cultura e também da ressurreição do indivíduo, que
tem sido a pedra ele fundação e o manancial de nossa civilizaçào.
179
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Qepasse: a dupla chama
Todos os di::ts ouvimos esta frase: nosso século é o século
da comunicaçào. É um lugar comum que, como todos, encer1'8 um equívoco.
Os mociernos meios de transmissão de notÍcias são prodIgiosos; menos prodigiosas, porém, são as formas como US:lmos esses meios e 8 natureza cbs notícias e informações por eles wlnsmitidas.
Os meios muitas vezes
manipulam a informaçào e, além disso, sobrec8l'regam-nos
com bobagens. Mesmo sem esses defeitos toda comunicJção, incluindo a direta e sem intermediários, é equívoca. O
clinlogo, a mais alta forma de comunicação que conhecemos,
é sempre uni confronto de alteridacles irredutíveis, Seu caráter contraciitório consiste no fmo de ele ser o intercâmbio de
informações concretas e singulares para quem as emite e abstratas e gerais p8l'a quem as recebe, Digo verde e me refiro a
uma sensaçào particular, única e inseparável de um instante,
um lugar e um estado psíquico e físico: a luz incidindo sobre
a planta verde neSS::lt::lrde um pouco fria de primavera. Meu
interlocutor ouve uma série de sons, percebe uma situação e
vislumbrJ 8 idéia de verde. Há possibilidades ele comunicação concreta? Sim, embora o equívoco nunca desapareça
181
-':.'
completamente. Somos homens, não anjos. Os sentidos nos
comunicam com o mundo e, simultaneamente, encermm-nos
em n6s mesmos: as sensações são subjetivas e indizíveis. O
pensamento e a linguagem são pontes mas, precisamente
por isso, não suprimem a distância entre n6s e a realidade exterior. Com esta ressalva, podemos dizer que a poesia, a festa
e o amor são formas de conjunicação concreta, quero dizer,
de comunhão. Nova dificuldade: a comunh8o é indizível e,
de certa maneira, exclui a comunicação. Não é um intercâmbio de notícias, mas sim uma fusão. No caso da poesia, a comunhão começa numa zona de silêncio, exatamente quando
termina o poema. Poderíamos definir o poema como um organismo produtOr de silêncios. Na festa - penso, antes de
tudo, nos ritos e em outras cerimônias religiosas - a fusão se
opera em sentido contr5rio: não o regresso ao silêncio, refúgio da subjetividade, mas sim entrada no grande todo coletivo: o eu se converte em nós. No amor, a contradição entre
comunicação e comunhão é ainda mais patente.
O encontro erótico começa com a visão cio corpo desejado. Vestido ou desnudo, o corpo é uma presença, lima forma
que, por um instante, é todas as formas do mundo. Mal abraçamos essa form3, debwmos de percebê-Ia como presença e
a temos como matéria concreta, palpável, que cabe em nossos braços e que, não obstame, é ilimitada. Ao rlbmçar a presença deixamos de vê-ia e ela própria deixa de ser presença.
Dispersão do corpo desejado: vemos só uns olhos que nos
miram, uma garg:ll1ta iluminada pela luz de uma lâmpada e
logo voltada para a noite, o brilho de um m(]sculo, a sombra
que desce cio umbigo ao sexo. Cada um desses fragmentOs
vive por si só, m:1S refere-se a uma totalidade do corpo. Esse
corpo que logo se tornou infinito. O corpo da minha companheira deixa de ser uma forma e convelte-se numa substância disforme e imensa l1::l qual, ac f'.1eSmOtempo, me perco e
me recobro. Nós nos perdemos como pessoa e nos recobra182
mos con10 sensações. À medida que a sensação se faz mais
intensa, o corpo que abraçamos se faz mais e mais intenso.
Sensação de infinitude: perdemos corpo nesse corpo. O
abraço carnal é o apogeu e a perda do corpo. Também é a
experiência da perda da identidade, dispersão de formas em
mil sensações e visões, queda numa substância oceânica,
evaporação da essência. Não há forma nem presença. E.:dste
a onda que nos move, a cavalgada pelas planícies da noite.
Experiência circular: começa pela abolição do corpo do casal, convertido numa substância infinita que palpita, se expande, se contrai e nos encerra nas águas primordiais; um
instante depois, a substância se desvanece, o corpo volta a
ser corpo e reaparece a presença. Só podemos perceber a
mulher amada como forma que esconde uma alteridade irredutível ou como substância que se anula e noS anula.
A condenação cio amor carnal como um pecado contra o
espírito não é cristã e sim platônica. Para Piatão a forma é a
idéia, a essência. O corpo é uma presença no sentido real da
palavra: a manifestação sensível da essência. É a imitação, a
cópia de um arquétipo divino, a idéia eterna. Por isso, em Fedro e em O banquete, o amor mais elevado é a contemplaçâo
do corpo formoso _ contemplação roubada da forma que é
essência. O abraço carnal entranha uma degradação da forma
em substância e da idéia em sensação. Por isso mmbém Eras é
invis'ível;não é tlma presença, é a obscuridade palpitante que
rodeia Psiquê e a arrasta numa queda sem fim. O apaLxonado
vê a presença banhada pela luz da idéia; quer tê-la, mas cai na
treva de um corpo que se dispersa em fragmentos. A presença
renega sua forma, regressa à substância original para, no final,
anular-se. Anulação do. presença, dissolução da forma: pecado contra a essência. Todo pecado atrai um castigo: de volta
elo arrebatamento, encontramo-nos de novo frente a um corpo e uma alma outra vez estranhos. Então surge a pergunta ri183
~
tual: em que você pensa? E a resposta: em nada. Palavras que
se repetem em intermináveis galerias de ecos.
Não é estranho que Piatão tenha condenado o amor físico. Contudo, não condenou a reprodução. Em O banquete
chama de divino o desejo de procriar: é ânsia de imortalidade. Os filhos da alma, as idéias, são melhores que os filhos da
carne; mas, em As leis, exalta a reprodução corporal. A razão:
é um dever político engendrar cidadãos e mulheres que sejam capazes de assegurar a continuidade da vida na cidade.
Além dessa consideração ética e política, Platão percebeu
claramente a vertente pânica do amor, sua conexão com o
mundo da sexualidade animal e quis rompê-Ia. Foi coerente
consigo próprio e com sua visão do mundo das idéias incorruptíveis. Mas há uma t~rrível contradição na concepção platônica do erotismo: ~em o corpo e o desejo que provoca no
amante, não há ascensão rumo aos arquétipos. Para contemplar as formas eternas e participar da essência, é preciso passar pelo corpo. Não há outro caminho. Nisso o platonismo é
o oposto da visão cristã: o eras platônico busca a desencarnação enquanto o misticismo cristão é sobremdo um amor, a
exemplo de Cristo, que se transforma em carne para nos salvar. Apesar dessa diferença, ambos coincidem em sua vontade de romper com este mundo e subir ao outro. O platônico
pela escala da contemplação, o cristianismo pelo amor a uma
divindade que, mistério inefável, encarnou num corpo.
Unidos em sua negação deste mundo, o platonismo e o
cristianismo voltam a separar-se em outro ponto fundamental. Na contemplação platônica há participação, não reciprocidade: as formas eternas não amam o homem; por outro
lado, o Deus cristão padece pelos homens, o· Criador está
apaixonado por suas criaturas. Ao amar Deus, dizem os teólogos e os místicos, devolvemos a Ele, pobremente, o imenso
amor que nos dedica. O amor humano, tal como o conhece-o
mos e vivemos no Ocidente desde a época do 'amor coItês',
184
1
I
nasceu da confluência entre o platonismo e o cristianismo e,
mmbém, de suas oposições. O amor humano, quer dizer, o
verdadeiro amor, não nega o corpo nem o mundo. Tampouco aspira a outro e nem se vê como caminhando em direçào
a uma eternidade p~Haalém elamudança e do tempo. O amor
é amor não CI este mundo, mas sim deste mundo; está atado à
Terra peb força da gravidade elo corpo, que é prazer e morte.
Sem alma ~ ou como queira se chamar a esse sopro que faz
de cae1::lhomelll e de caela mulher uma persollCl- não há
amor, mas tampouCO ele existe sem corpo. Pelo corpo o
amor é erotismo e assim se comunica com as forças mais vastas e ocult::lseb vida. Ambos, o amor e o erotismo ~ dupla
chama _ se alimentam elo fogo original: a sexualidade. Eles
volt8m sempre ~ fonte primordial, a Pà e a seu alarido que estremece a selva.
O reverso do eros platônico é o t:mtrismo, em seus dois
grandes ral110S:o hindu e o budista. Para o adepto de taotm,
o corpo nfio manifesw ::I essênci:l: é um caminho de iniciaçfio. l\'1aisalém n~o está a essência, que para Pbrào é um objeto de contemplação e participação; aO final da experiência
erótica o adepto chega, se é budista, à vacuid::lde, uni estado
no qual o nacb e o ser são idênrícos; se é hindLI,a um estado
semelhante, mas no qual o elemento eleterminante não é o
n~cb, maS sim o ser -um ser sempre idêntico a ele própriO,
l11:lisalém da mudança. Duplo p~lfadoxo: para o budista o
nacb está cheiO; p::trao hínduísta o ser está V:lzio.O rito central elo tnnrrismo é a copubção. Possuir um corpo e com ele
sentir toelas as etapas cio abraço erótico, sem excluir nenhum
de seus extravios ou aberrações, é repetir ritualmente o .processo cósmico cb criação, a destruição e a recriação elos
mundos. Também é uma maneira ele romper esse processo e
deter a roda elo tempo e das sucessivas reenc<.1r11ações.
O iogue deve evitar a ejacu1::lç80e esw prárica obedece a dois
propósitos; neg:u a funçào reproduriva cl::lsexualidade e
185
\~
)
\'
transformar o sêmen em pensamento de iluminação. Alquimia erótica: n fusão do eu e do mundo, do pensamento e da
realidade, produz um relâmpago: a iluminação, labareda súbita que literalmente consome o sujeito e o objeto. Não fica
nada - o iogue se dissolve no incondicionado. Abolição das
formas. No wntrismo há uma violência memfísica ausente no
platonismo - romper o ciclo cósmico para penetrar no incondionado. A cópula ritual é, de um lado, uma imersão no
caos, uma volta à fonte original da vidaj de outro, é uma prática ascética, uma purificação dos sentidos e da mente, uma
desnudez progressiva até chegar à anulação do mundo e do
eu. O iogue n:'io deve retroceder diante de nenhuma carícia,
mas seu gozo, cada vez mais concentrado, deve se trnnsformar em suprema indiferença. Curioso parnlelo com Sac1e,
qClevia na libertinagem um caminho à ataraxia, a insensibiliebde ela pedra vuldnicrt.
As diferenças entre o tantrismo e o platonismo são instrLltivas. O amante platônico contempb a forma, o corpo, sem
cair no abraço: o iogue alcança a libertação através elacópula. Num caso, a contemplação da forma é umn viagem que
conduz ti. vis:'io da essêncin e à participaç:'io com elnj do outro, a cópub ritual exige atravessar a treva erótica e realizar a
destruição elasformas. Apesar de ser um rito acentuaebmente
carnal, o erotismo tântrico é tlmn experiência de desencrtrnação. O platonismo implica lima repressão e uma sublimação:
a forma am:1elaé intodvel e rtssim se subtrai ela agressão sádica. O iogue aspira à abolição do desejo e aí está a natureza
contraditória ele sua tent::ttivn. É um erotismo ascético, um
prrtzer que negn n si próprio. Sua experiência está impregnada de um sadismo n:'io físico, mJS mental: é preciso destruir
as formas. No plmonismo, o corpo amado é intocável; no tantrismo o intodvel é o espírito elo iogue. Por isso precisrt esgotar, durante o abraço, toclas rtScarícias propostas pelos manuais ele erotismo, mas retendo n descarga seminrtl; se conse186
gue isso, alcança a indiferença do diamante: impenetrável,
luminoso e transparente.
Embora as diferenças entre o plaronlsmo e o tantrismo sejam muito profundas :..- correspondem a duas visões do mupdo e do homem radicalmente opostas - há um ponto de
união entre eles: o outro desaparece. Tanto o corpo que contempla o amante platônico como a mulher que acaricia o iogue são objetos, escalas numa ascensão ao céu puro das essências ou àquela região fora dos mapas: o incondicionado. O
fim que ambos perseguem está além do outro. Isto é, essencialmente, o que os separa do amor, tal como foi descrito nestas páginas. É útil repetir: o amor não é a busca da idéia ou da
essência; tampouco é um caminho em direção a um estado
para além da idéia e não-idéia, do bem e do mal, do ser e io
não-ser. O amor não busca nada além de si próprio, nenhum
bem, nenhum prêmiO; muito menos persegue uma finalidade
que o transcenda. É indiferente a toda transcendência: começa e acaba nele mesmo. É atração por uma alma e um corpo,
não uma idéia: uma pessoa. Essa pessoa é única e é dotada de
liberdade; para possuí-Ia, o amante tem de ganhar sua vontade. Possessão e entrega são atos recíprocos.
Como todas as grandes criações do homem, o amor é duplo: é a suprema ventura e a desgraça suprema. Abelardo assim denominou o relato de sua vida: "História de minhas calamidades". Sua maior calamidade foi também sua maior felicidade: ter encontrado Heloísa e ser amado por ela. Por ela
foi homem, conheceu o amor; por ela deixou de sê-1o:castraram-no. A história de Abelardo é estranha, fora do comum.
Contudo, em todos os amores, sem exceção, aparecem esses
contrastes, embora quase sempre menos denunciados. Os
amances passam sem parar da exaltação ao desânimo, da tristeza à alegria, da cólera à ternura, do desespero à sensualidade. Ao contrário do libeltino, que procura ao mesmo tempo
187
,~
o prazer mais intenso e a insensibilidade moral mais absoluta, o amante é perpetuamente movido por suas contraditórias
emoções. A linguagem popular, em todos os tempos e lugares, é rica em expressões que descrevem a vulnerabilidade
do apaixonado: o amor é uma ferida, uma chaga. Mas, como
diz São João da Cruz, é "uma chaga presenteada", um "cautério suave", uma "ferida deleitosa". Sim, o amor é uma flor de
sangue. Também é um talismã: a vulnerabilidade dos amantes os defende. Seu escudo é sua condição indefesa, estão armados com sua desnudez. Cruel paradoxo: a sensibilidade
extrema dos amantes é a outra cara de sua indiferença, nào
menos extrema, diante de tudo que não seja seu amor. O
grande perigo que ameaça os amantes, a armadilha mortal
em que caem muitos, é o egoísmo. O castigo não se faz esperar: os amantes não vêem nada nem ninguém que não sejam
eles mesmos até que se petrificam ... ou se chateiam. O egoísmo é um poço. Para sair ao ar livre, é preciso olhar além de
nós mesmos; lá está o mundo à nossa espera.
O amor não nos protege dos riscos e desgraças da existência. Nenhum amor, sem excluir os mais tranqüilos e felizes, escapa dos desastres e desventuras do tempo. O amor,
qualquer amor, é feito de tempo e nenhum amante pode evitar a grande calamidade: a pessoa amada está sujeira às
afrontas da idade, à doença e à morte. Como um remédio
contra o tempo e a sedução do amor, os budistas conceberam um exercício de meditação que consistia em imaginar o
corpo de uma mulher como um saco cheio de dejetos. Os
monges cristãos também praticaram esses exercícios denegridores da vida. O remédio foi inócuo e provocou a vingança
do corpo e da imaginação exasperada: as tenwções ao mesmo tempo terríveis e lascivas dos anacoretas. Suas visões,
embora sombras feitas de ar, fantasmas que a luz dissipa, não
são quimeras. São realidades que vivem no subsolo psíquico
e que a abstinência alimenta e fortifica. Transformadas em
monstros pela imaginação, o desejo as desata. Cada uma das
criaturas que povoam o inferno de Santo Antônio é símbolo
de uma paixão reprimida. A negação da vida se resolve na
violência. A abstinência não nos livra do tempo: transforma-o
em agressão psíquica, contra os outros e contra nós mesmos.
Não há remédio contra o tempo. Ou, ao menos, não Oconhecemos. Mas devemos nos confiar à corrente temporal, é
preciso viver. O corpo envelhece porque é tempo como tudo
o que existe sobre esta terra. Sei que conseguimos prolongar
a vida e (1 juventude. Para Balzac a idade crítica da mulher começava aos 30 anOSiagora, aos 50. Muitos cientistas pensam
que num futuro não muito longe será possível evitar os achaques da velhice. Estas predições otimistas contrastam com o
que sabemos e vemos todos os dias: a miséria aumenta em
mais da metade do planeta, há muica fome e até na antiga
União Soviética, nos últimos anos do regime comunista, aumentou a taxa de mortalidade infantil. (Esta é uma das causas
que explicam o desmoronamento do império soviético.) Mas
ainda que se cumprissem as previsões dos otimistas, continuaríamos sendo súditos do tempo. Somos tempo e não podemos nos abstrair de seu domínio. Podemos transfigurá-Io,
não negá-Io nem destruí-Ia. Isso é o que fizeram os grandes
artistas, os poetas, os filósofos, os cientistas e alguns homens
de açào. O amor também é uma resposta: por ser temporal, o
amor é, simultaneamente; consciência da morte e tentativa
de fazer do instante uma eternidade. Todos os amOres s~o infelizes porque todos são feitos de tempo, todos são o nó frágil das criaturas tempon:lis que sabem que vão morrer; em todos os amores, até nos mais trágicos, há um instante de felicidade que não é exagerado chamar de sobre-humana: é uma
vitória comra o tempo, um vislumbrar do O1.Hrolado, esse
mais além que é um aqui, onde nada muda e tudo o que é
realmente é.
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188
't
A juventude é o tempo do amor. Contudo, há jovens velhos incapazes de amar, não por impotência sexual, mas sim
por aspereza de alma; também existem velhos jovens apabmnados: uns são ridículos, outros patéticos e outros sublimes.
Mas podemos amar um corpo envelhecido ou desfigurado
pela doença? É muito difícil, embora não inteiramente impossível. Basta lembrar que o erotismo é singular e não desdenha nenhuma anomalia. Não existem monstros formosos?
Além disso, é óbvio que podemos continuar amando uma
pessoa, apesar do desgaste da vida cotidiana ou dos estragos
da velhice e da doença. Nesses casos, a atração física cessa e
o amor se transforma. Em geral se converte não em piedade,
mas sim em compaixão, no sentido de compartilhar e participar do sofrimento do outro. Já velho, Unamuno dizia: "Não
sinto nada qU8ndo roço as pernas d8 minha mulher, mas as
minhas doem e as dela também". A palavra paixão significa
sofrimento e, por extensão, designa também o sentimento
amoroso. O amor é sofrimento, padecimento, porque é carência e desejo de possessào daquilo que desejamos e não temos; por sua vez, a felicidade é possessão, embora instantânea e sempre precária. O Dfcionán'o de autoridades registra
outra palavra hoje em desuso, mas empregada por Petrarca:
compbatía. Deveríamos reintroduzi-la na língua, pois expressa com força esse sentimento de amor transfigurado pela velhice ou a doença do ser amado.
Segundo a tradição, o amor é um composto indefinível de
alma e corpo; entre eles, à maneira de um leque, se desdobra
uma série de sentimentos e emoções que vão da sexualidade
mais direta ã veneração, da ternura ao erotismo. Muitos desses sentimentos são negativos: no amor há rivalIdade, despeito, medo, ciúme e finalmente ódio. Catulo já dizia: "O ódio é
indistinguível do amor", Esses afetos e ressentimentos, simpatias e antiptltias, misturam-se em todas as relações amorosas e
compõem um licor único, diferente em cada caso e que muda
190
de coloração, aroma e sabor segundo mudam o tempo, as
circunstâncias e os humores. É uma poção mais poderosa
que a de Tristão e Isolda. Provê vida e morte: tudo depende
dos amantes. Pode transformar-se em paixào, aborrecimento,
ternura e obsessão. Em certa idade, pode se converter em
comphatfa. Como definir esse sentimento? Não é um afeto da
cabeça nem do sexo mas sim do coraçào: fruto último do
amor, quando vencemos o costume, o tédio e a tentação insidiosa que nos faz odiar tudo aquilo que amamos.
O amor é intensidade e por isso é uma distensão do tempo: estira os minutos e os faz longos como séculos. O tempo,
que é medida isócrona, torna~se descontínuo e incomensuráveL Mas depois de cada um desses instantes sem medida, voltamos ao tempo e ao seu horário: não podemos escapar da
sucessão. O amor começa com o olhar: olhamos a pessoa que
queremos e elas nos olha. Que vemos? Tudo e nada. Não por
muito tempo: ao fIm de um momento, desviamos os olhos. De
outro modo, eu já disse, nos petrificaríamos. Num de seus
poemas mais completos, Donne se refere a essa situação.
Deslumbrados, os amantes se olham interminavelmente:
Wee, like sepulchrall statues lay,
All da)! the same our postures we7"e
And we said nothing all the da)!...•
Se se prolongasse essa imóvel beatitude, pereceríamos.
Devemos voltar aos nossos corpos, a vida nos exige:
Lave mysteries 111 soules do graw,
Eu! yet the body is his booke."
I
I
•. Enquanto estátuas sepulcrais ali quedamos. Todo o dia na mesma posição,
Sem mínima palavra, todo o dia (N. do T.).
•• Os mistérios do amor, a alma os seme, I Porém o corpo é as páginas que lemos (N, do T.).
191
't
Temos de olhar, juntos, o mundo que nos rodeia. Temos
que ir além, ao encontro do desconhecido.
Se o amor é tempo, não pode ser eterno. Está condenado
à extinção ou a se transformar em outro sentimento. A história
de Filemon e B~ucis, contada por Ovídio no livro nr das Me/amOlfoses, é um exemplo encantador. Júpiter e Mercúrio percorrem a FlÍgia, mas n50 encontram hospitalidade em nenhuma casa onde pedem pousada, até que chegam à choupana
do velho, pobre e piedoso Filemon e sua velha esposa, Baueis. O casal os acolhe com generosidade, oferece-Ihes um leito rústico ele aIgas e um jantar frugal, regado com úm vinho
novo que bebem em copos de madeira. Pouco a pouco os velhos descobrem a natureza divina de seus hóspedes e prostram-se diame deles. Os deuses revelam sua identidade e ordenam ao casal que com-eles subam a colina, Então, com um
sin~ll, fazem com que ;]s águas cubram a terra elos frígios ímpios e convertem em p5nrano suas casas e seus campos. Do
alto, Baucis e Filemon vêem com medo e pesar a destruição
ele seus vizinhos; depois, mar;J.vilhados, presenciam como sua
choça se transforma num templo de mármore e teto vermelho. Então Júpiter Ihes pede que digam seu desejo, Filemon
troca algumas palavras com Baueis e roga aos deuses que Ihes
permiram ser, no que resta de suas vidas, guareliães e sacerdotes do sanru:lrio. E acrescenta: "Já que vivemos juncos desde
. nossa juventucie, queremos morrer juntos e na mesma hora:
que eu não veja a pira ele Baucis nem que ela me sepulte", E
assim foi: muitos anos guardaram o templo até que, debilitados pelo tempo, Baucis viu Filemon cobrir-se ele folhngens e
Filemon viu como a folhngem cobria Baucis. Juntos disseram:
"Adeus, esposo" e as cascas esconderam suas bocas. Filemon
e Bnucis se converteram em duas árvores, Não venceram o
tempo, abandonaram-se
e transformaram-se.
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ao seu curso e assim o rransformar::ll11
Filemon e Baucis não pediram a imortalidade nem quiseram ir além da condição humana: aceitaram-na, submeteramse ao tempo. A prodigiosa metamorfose com que os deuses
- o tempo - os premiaram, foi um regresso: voltaram à natureza para compal1ilhar com ela, e nela, as sucessivas transformações ele tudo o que é vivo. Assim, sua história nos oferece, neste fim de século, outra lição. A crença na metamorfose
fundou-se, 113Antiguidade, na contínua comunicação entre os
três mundos: o sobren:Hural, o humano e o da natureza. Rios,
árvores, colinas, bosques, mares, tudo estava animado, tudo
se comunicava e tr:lnsfonnava-se ao comunicar-se. O cristianismo dessacralizou a natureza e traçou uma linha divisória e
infranqueável entre o mundo natural e o humano. Fugiram as
ninfas, as n:'íbdes, os s:'ítiros e os tritões ou convelteram-se em
anjos ou demônios. A Idade Moderna acentuou o divórcio:
num extremo, a n;.l(ureza; no outro, a cultura, Hoje, ao término (1:1 moclernicbcle, reclescobrimos que somos pane da natureza. A Terra é um sistema de relações ou, como diziam os estóicos, conspiraçiio ele elementos, toelos movidos pela simpatia universal. Nós somos p~l.ltes, peças vivas nesse sistema. A
idéia de parentesco cios homens com o universo api:lrece na
origem ela concepção do amor. É uma crença que começa
com os primeiros poems, permeia a poesia romântica e chega
alé nós. A semelhança, o parentesco entre a montanha e a
mulher ou entre a 3rvore e o homem, são eixos do sentimento
amoroso. O amor pode ser agora, como o foi no passado,
uma via ele reconciliaçào com a natureza. Niio podemos nos
transformar em fomes ou árvores, em pássaros ou touros, mas
podemos nos reconbecerem todos eles.
Não menos (riste que ver envelhecer ou morrer a pessoa
que amamOS, é descobrir que nos engana ou que deixou de
nos amar. Submetido ao tempo, à l11lldança e à morte, o amor
é vítima C;;1I11bém cio hábiro e do cansaço. A convivência diária, se os apaixonados não têm imaginação, pode acabar com
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~
o amor mais intenso. Pouco podemos contra os infortúnios
que o tempo reserva a cada homem e a cada mulher. A vida é
um contínuo risco, viver é se expor. A abstinência do ermitão
se resolve no delírio solitário; a fuga dos amantes, em malte
cruel. Outras paixões podem nos seduzir e arrebatar. Umas
superiores, como o amor a Deus, ao saber e a uma causa; outras inferiores, como o amor ao dinheiro ou ao poder. Em nenhum desses casos desaparece o risco inerente à vida: o místico pode descobrir que corria atrás de uma quimera, o saber
não defende o sábio da decepção que é todo o saber, o poder não salva o político da traição do amigo. A glória é um
emblema equivocado com freqüência e o esquecimento é
mais forte do que todas as reputações. As desgraças do amor
são as desgraças da vida.
Apesar de todos os males e desgraças, sempre buscamos
querer e ser queridos. O amor é o mais próximo, nesta terra, à
beatitude dos bem-aventurados. As imagens da Idade ele
Ouro e do Paraíso terrestre confundem-se com as do amor
correspondido, o casal no seio da natureza reconciliada. Através de mais de dois milênios, tanto no Ocidente como no
Oriente, a imaginação criou casais ideais de amantes que são
a cristalização de nossos desejos, sonhos, temores e obsessões. Quase sempre esses casais são jovens: Dafne e Cloé, Calixto e Melibéia, Bao-yu e Dai-yu. Uma das exceções é, precisamente, a de Filemon e Baucis. Emblemas do amor, esses casais conhecem uma felicidade sobre-humana, mas também
um final trágico. A Antiguidade viu no amor um desvario e até
o próprio Ovídio, grande cantor dos relacionamentos fáceis,
dedicou um livro inteiro, Heroides, às desventuras do amor:
separação, ausência, engano. Trata-se de 20 epístolas de mulheres célebres aos amantes e esposos que as abandonaram,
todos eles heróis lendários. Contudo, para a Antiguidade o arquétipo foi juvenil e feliz: Dafne e Cloé, Eros e Psiquê. Por outro lado, a Idade Média inclina-se decididamente pelo modelo
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trágico. O poema de Tristão começa assim: "Senhores, lhes
agradaria ouvir um formoso conto de amor e de morte? Tratase da história de Tristão e Isolda, a rainha. Ouçam como, entre grandes alegrias e penas, amaram-se e morreram no mesmo dia, ele por ela e ela por ele ..." Desde o Renascimento
nosso atquétipo também é trágico: Calixto e Melibéia mas,
sobretudo e antes de tudo, Romeu e ]ulieta, a mais triste de
todas essas histórias, pois os dois morrem inocentes e vítimas
não do destino, mas da casualidade. Com Shakespeare o acaso destrona o Destino antigo e a Providência cristã.
Existe um casal que abarca todos os casais, dos velhos Filemon e Baucis aos adolescentes Romeu e ]ulieta; sua figura
e sua história são as da condição humana em todos os tempos e lugares: Adão e Eva. São o casal primordial, o que contém todos os outros. Embora seja um mito judeu-cristão, tem
equivalentes ou paralelos nos relatOs de outras religiões.
Adão e Eva são o começo e o fim de cada casal. Vivem no Paraíso, um lugar que não está além do tempo e sim em seu
princípio. O Paraíso é o que está antes; a história é a degradação do tempo primordial, a queda do eterno agora na sucessão. Antes da história, no Paraíso, a natureza era inocente e
cada criatura vivia em harmonia com as outras, com ela própria e com o todo. O pecado de Adão e Eva os arroja ao tempo sucessivo: à mudança, ao acidente, ao trabalho e à morte.
A natureza, corrompida, divide-se e começa a inimizade entre as criaturas, a carnificina universal: todos contra todos.
Adão e Eva percorrem este mundo hostil, povoam-no com
seus atos e sonhos, umedecem-no com seu pranto e com o
suor de seu corpo. Conhecem a glória do fazer e do procriar,
o trabalho que gasta o corpo, os anos que nublam a vista e o
espírito, o horror do filho que morre e do filho que mata, comem o pão da pena e bebem a água da felicidade. O tempo
os habita, o tempo os desabita. Cada casal de amantes revive
sua história, cada casal sofre a nostalgia do Paraíso, tem cons195
1
ciência
rnorte e vive um contínuo corpo a corpo com o
tempo sem corpo ... Reinventar o amor é reinventar o casal
original, os desterrados do Éden, criadores deste mundo e da
história.
O amor não vence a morte: é uma aposta contra o tempo e
seus acidentes. Pelo amor vislumbramos, nesta vida, a outra.
Não a vida eterna e sim, como tentei dizer em alguns poemas,
a vivacidade pura. Num trecho famoso, ao falar da experiência religiosa, Freud se refere ao 'sentimento oceânico', esse
sentir-se envolto e movido pela totalidade da existência. É a
dimensão pânica dos antigos, o furor sagrado, o entusiasmo:
recuperação da totalidade e descobrimento do eu como totalidade dentro do Grande Todo. Ao nascer, fomos ammcados da
totalidade; no amor todos sentimos voltar à totalidade original. Por isso as ÍJl18genspoéticas transformam a pessoa amada
em natll1'eza - montanha, água, nuvem, estrela, selva, mar,
onda ~ e, por sua vez, a natureza fala como se fosse mulher.
Reconciliação com a totalidade que é o mundo. Também com
os três tempos. O amor não é a eternidade; tampouco é o tempo dos calendários e elos relógios, o tempo sucessivo. O tempo do amor não é grande nem pequeno: é a percepção instântanea de todos os tempos num só, de todas as vidas num
instante. Não nos livra da mOlte, mas nos faz vê· Ia cara a cara.
Esse .instante é o reverso e o complementO do 'sencimento
oceâ nico'. Não é o regresso às águas ela origem, mas sim a
conquista de um estado que nos reconcilia com o exílio do
Paraíso. Somos o teatro do abraço dos opostos e de sua dissolução, resolvidos numa só nota que não é ele afirmação nem
de negação, e sim de aceitação. 6 que vê o casal, no espaço
de um piscar de olhos? A identidade dn apariçã.o e desnparição, a verdade do corpo e do !1iio-corpo,a visão da presença
que se dissolve num esplendor: vivacidade pura, o ritmo do
tempo.
México, 12 de maio de 1993
196
~umário
1.
2.
3.
4,
5.
6.
7.
8.
9.
9
Liminar,5
Os reinos de Pã, 11
Eros e Psiquê, 31
Pré-história do amor, 49
A dama e a santa, 69
Um sistema solar, 93
A luz da manhã, 119
A praça e a alcova, 137
Rodeios para uma conclusão, 155
Repasse: a dupla chama, 181