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Sociedade, Conhecimento e Colonialidade

Escrevo apenas 1 capítulo na coletânea organizada por Maíra Baumgarten, cujo subtítulo é "olhares sobre a América Latina". Eis q meu capítulo autoral intitula-se "Linhagens pós-coloniais e a possibilidade de ampliação do conhecimento: um debate epistemológico"

Soc&Conh-FINAL.indd 1 22/11/2016 12:06:10 Reitor Rui Vicente Oppermann Vice-Reitora e Pró-Reitora de Coordenação Acadêmica Jane Fraga Tutikian EDITORA DA UFRGS Diretor Alex Niche Teixeira Conselho Editorial Carlos Pérez Bergmann Claudia Lima Marques Jane Fraga Tutikian José Vicente Tavares dos Santos Marcelo Antonio Conterato Maria Helena Weber Maria Stephanou Regina Zilberman Temístocles Cezar Valquiria Linck Bassani Alex Niche Teixeira, presidente Soc&Conh-FINAL.indd 2 Coordenação da Série Ivan da Costa Marques (UFRJ, Rio de Janeiro) José Vicente Tavares dos Santos (UFRGS, Porto Alegre) Maíra Baumgarten (UFRGS, Porto Alegre) Conselho Editorial Ana Maria Fernandes (UNB, Brasília) César Ricardo Siqueira Bolaño (UFS, Sergipe) Clarissa Eckert Baeta Neves (UFRGS, Porto Alegre) Ernani Lampert (FURG, Rio Grande) Fernanda Sobral (UNB, Brasília) Gilson Lima (UFRGS, Porto Alegre) Ingrid Sarti (UFRJ, Rio de Janeiro) Ivan Izquierdo (PUCRS, Porto Alegre) José Vicente Tavares dos Santos (UFRGS, Porto Alegre) Jorge Olimpio Bento (Univ. Porto, Portugal) Maria Lucia Maciel (UFRJ, Rio de Janeiro) 22/11/2016 12:06:25 Soc&Conh-FINAL.indd 3 22/11/2016 12:06:25 © dos autores 1ª edição: 2016 Direitos reservados desta edição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul Capa: Carla M. Luzzatto Revisão editorial: Cristina humé Pacheco Tradução do Espanhol para Português: Regina Beatriz Vargas (capítulos: 4 Marcelo Arnold-Cathalifaud, Hugo Cadenas, 8 Silvia Lago Martínez e 10 Hernán homas, Lucas Becerra) Editoração eletrônica: Luciane Delani A graia desta obra foi atualizada conforme o Acordo Ortográico da Língua Portuguesa, de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 1o de janeiro de 2009. S678 Sociedade, conhecimentos e colonialidade: olhares sobre a América Latina / organizado por Maíra Baumgarten . – Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016. 244p. : il. ; 16x23cm (Série Cenários do Conhecimento) Inclui referências. Inclui iguras, gráicos, quadros e tabelas. 1. Ciências Sociais. 2. Sociologia. 3. Ciências Sociais – Colonialidade – Desenvolvimento. 4. Linhagens pós-coloniais – Ampliação – Conhecimento. 5. Sociologia – Política. 6. Sociologia do desenvolvimento. 7. Produção – Conhecimento – América Latina – Políticas – Democracia – Inclusão. 8. Política brasileira – Ciência – Tecnologia – Inovação. 9. Inovação – Cooperativismo – Desenvolvimento inclusivo. 10. Movimentos sociais – América Latina – Produção – Conhecimentos. I. Baumgarten, Maíra. II. Série. CDU 316(7/8=6) CIP-Brasil. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação. (Jaqueline Trombin – Bibliotecária responsável CRB10/979) ISBN 978-85-386-0324-5 Soc&Conh-FINAL.indd 4 22/11/2016 12:06:25 Apresentação Série Cenários do Conhecimento O conhecimento humano apresenta variadas motivações e assume diversas formas. Reletir sobre o conhecimento requer o exercício da transdisciplinariedade, encontros entre temas, áreas, problemas. Escapar do linear em direção ao transversal e às redes. Alargar fronteiras disciplinares, construir cenários e pensar utopias. Informação e conhecimento sempre foram importantes pilares dos diferentes modos de produção da vida humana. O conhecimento, sua busca, é parte da estratégia de sobrevivência da espécie humana. Esse movimento de conhecer se relaciona à situação concreta de cada sociedade, ao seu estado da arte, a suas práticas de vida, sua cultura, suas técnicas, sua ideologia. As formas contemporâneas de sociedade se fazem acompanhar por profundas reestruturações organizacionais e culturais. Vivemos em um tempo em que a ciência não apenas estuda, desvenda, mas também cria objetos empíricos e produz teorias que os sustentam enquanto fenômeno. A natureza urbana está cada vez mais repleta de objetos “não naturais” que funcionam como projeções físicas ou psíquicas do ser humano. Vivemos um processo de hibridação entre o natural e o humano e o artiicial. Nesse contexto, recoloca-se, permanentemente, o desaio para o desenvolvimento de conceitos e teorias que permitam compreender e intervir sobre processos com grande repercussão sobre a vida cotidiana, pois Soc&Conh-FINAL.indd 5 22/11/2016 12:06:25 na sociedade mundializada atual – híbrida de arcaísmos, modernidades impossíveis e pós-modernidades instáveis – é preciso encontrar sendas para o entendimento das novas questões sociais, novos instrumentos teórico-metodológicos para pensar um mundo cada vez mais complexo. A relexão sobre o conhecimento e seu papel na sociedade impõe desaios à imaginação cientíica: a complexidade e a dialeticidade do conhecimento, a atitude dialógica e a complementaridade entre incomensuráveis, a hibridação e a ética. A série Cenários do Conhecimento, originada no Laboratório de Divulgação de Ciência, Tecnologia e Inovação Social (LaDCIS) do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pretende ser um espaço de interlocução entre as diversas perspectivas e disciplinas que tratam do conhecimento cientíico, da informação, sua produção, difusão, das redes de conhecimentos e da inovação social. Cenários nos falam de atores, pessoas que agem e reletem sobre sua ação, o mundo, a sociedade. Surgem da necessidade humana de compreender e exprimir a complexidade da vida e expressam composições de seres que sentem, pensam e que são natureza e cultura e interagem em e a partir de estruturas complexas. Artiicialidades sempre renovadas e uma natureza viva e mutante. Essa linha editorial tem por objetivo trazer à tona as problematizações mais atuais do campo da pesquisa cientíica, da informação, da tecnologia e da inovação social, ocupando um espaço que se faz progressivamente estratégico pela necessidade crescente de dar conta das questões relacionadas aos processos de produção de conhecimentos e de sua apropriação social. Nessa síntese entre sociedade e conhecimento, também chamada de sociedade ou era da informação, emerge cada vez mais a necessidade de construir cenários que indiquem novas direções. A Série Cenários do Conhecimento passou, no ano de 2015, por algumas mudanças, ampliando seu conselho diretivo, que conta, agora, com mais dois coordenadores além de sua fundadora, profª Maíra Baumgarten (LaDCIS-UFRGS): os professores José Vicente Tavares dos Santos, diretor do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados (ILEA-UFRGS) e Ivan da Costa Marques, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nossa proposta parte da perspectiva da complexidade e busca organizar trilhas, caminhos que iluminem a realidade através desses objetos que Soc&Conh-FINAL.indd 6 22/11/2016 12:06:25 são a expressão mesma do conhecimento: os livros, em uma coleção de cenários. O livro Sociedade, conhecimentos e colonialidade: olhares sobre a América Latina nos apresenta um cenário de estudos sobre fenômenos que marcam a sociedade contemporânea e, especialmente, seus impactos sobre a sociedade latino-americana vista como um espaço com características especíicas tanto no âmbito da construção de conhecimentos, quanto em termos de potencialidades transformadoras. Ivan da Costa Marques, José Vicente Tavares dos Santos e Maíra Baumgarten Soc&Conh-FINAL.indd 7 22/11/2016 12:06:25 Soc&Conh-FINAL.indd 8 22/11/2016 12:06:25 Agradecimentos Esse livro teve sua origem em um evento promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-UFRGS), com o apoio e aval da Associação Latino-Americana de Sociologia (ALAS), então sob a presidência de Paulo Henrique Martins. O encontro, um Pré-ALAS, contou com a participação de diversos sociólogos de diferentes países latino-americanos e foi parte integrante do Seminário Internacional Sociologia no Século XXI, comemorativo dos 40 anos do PPGS-UFRGS. Agradecemos à Universidade Federal do Rio Grande do Sul que propiciou e forneceu as condições para a realização do evento e que apoia, com sua estrutura, nossa produção intelectual. Também ao Instituto de Filosoia e Ciências Humanas e ao PPGS-UFRGS, que apoiaram a realização do evento e do presente livro. Agradecemos da mesma forma à Secretaria Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC-RS), que contribuiu para a realização do Encontro. Expressamos, igualmente, nossa gratidão ao Conselho de Desenvolvimento Cientíico e Tecnológico (CNPq), à Coordenação de Pessoal de Ensino Superior (Capes) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (Fapergs), que forneceram suporte a grande parte do trabalho de pesquisa que originou os distintos capítulos do livro. Essas instituições também apoiam a coleção Cenários do Conhecimento através do Laboratório de Divulgação de Ciência, Tecnologia e Inovação Social Soc&Conh-FINAL.indd 9 22/11/2016 12:06:25 (LaDCIS-UFRGS) e do Observatório de Ciência, Tecnologia e Inovação Social (ObCTIS), ligado a este laboratório. Muitos dos capítulos desse livro são resultados de debates realizados nos grupos de trabalho de Ciência, Tecnologia e Inovação da Associação Latino-Americana de Sociologia (coordenados por Maíra Baumgarten, Silvia Lago e Roberto Pineda Ibarra) e de Ciência, Tecnologia e Inovação Social da Sociedade Brasileira de Sociologia (coordenados por Fernanda Sobral, Maíra Baumgarten e Maria Lucia Maciel). A todos os nossos interlocutores agradecemos a atenção, as críticas e contribuições. Agradecemos, ainda, a preciosa contribuição de Regina Vargas, pesquisadora do LaDCIS, que traduziu para o Português os trabalhos que estavam em Espanhol e que ajudou na revisão e na formatação, realizada por Jean Lucas Nunes, bolsista do laboratório. Esperamos que os trabalhos que constituem esse livro e as práticas sociológicas que eles expressam possam contribuir para a projeção de um mundo mais solidário e um futuro com mais esperança para todos nós. Porto Alegre, verão de 2015. Maíra Baumgarten (Organizadora) Soc&Conh-FINAL.indd 10 22/11/2016 12:06:25 Sumário Introdução Sociedade e colonialidade: construindo conhecimentos ao Sul 13 Maíra Baumgarten PARTE I – DESENVOLVIMENTO, COLONIALIDADE E AS CIÊNCIAS SOCIAIS O (des) encanto do desenvolvimento latino-americano na sociedade global 23 Paulo Henrique Martins Linhagens pós-coloniais e a possibilidade de ampliação do conhecimento: um debate epistemológico Adelia Miglievich-Ribeiro 41 A sociologia como política: a “Sociologia do Desenvolvimento” e a produção sociológica contemporânea 65 Anete B. L. Ivo As ciências sociais latino-americanas frente à complexidade social local, regional e global 97 Marcelo Arnold-Cathalifaud, Hugo Cadenas Soc&Conh-FINAL.indd 11 22/11/2016 12:06:25 PARTE II – PRODUZIR CONHECIMENTOS NA AMÉRICA LATINA: POLÍTICAS, DEMOCRACIA, INCLUSÃO A dimensão econômica e social da política brasileira de ciência, tecnologia e inovação 115 Fernanda A. da F. Sobral A contextualização da verdade ou como a ciência torna-se periférica Fabrício Monteiro Neves 131 Fazer ciência na periferia: internacionalizar é preciso? Maíra Baumgarten 151 Bens comuns, democracia e acesso ao conhecimento na América Latina e no Caribe 169 Silvia Lago Martínez Ciência, tecnologia, inovação e a universidade em ambientes democráticos 187 Michelangelo Giotto Santoro Trigueiro Inovação, cooperativismo e desenvolvimento inclusivo: repensar a mudança tecnológica e a inclusão social 205 Hernán homas, Lucas Becerra A produção de conhecimento sobre os movimentos sociais na América Latina Maria da Glória Gohn Autores Soc&Conh-FINAL.indd 12 227 241 22/11/2016 12:06:26 Introdução Sociedade e colonialidade: construindo conhecimentos ao Sul1 As primeiras décadas do século XXI registram transformações aceleradas em todas as dimensões da vida social; novas sociabilidades evoluem em contextos também marcados pela regressão social. Na esfera econômica, novas tecnologias reconiguram trabalhadores e dinâmicas empresariais; a globalização dos mercados e o predomínio das altas inanças intensiicam luxos contraditórios de crescimento em escala planetária. Longe de serem tranquilos e harmoniosos, os processos em curso vêm aumentando desigualdades socioeconômicas, conlitos e instabilidade. Privilégios e vulnerabilidades coexistem e se retroalimentam. Esse mundo em transição, nosso subcontinente latino-americano, nossas sociedades, dilemas e potencialidades, conhecimentos que produzimos, o lugar que ocupamos no cenário atual são os temas principais abordados nesse livro, que se construiu a partir de um momento de relexão propiciado pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS. O Encontro Sociedade, Conhecimentos e Colonialidade. Olhares sobre a América Latina foi um evento preparatório para o XXIV Congresso da Associação Latino-Americana de Sociologia (Pré-ALAS) e uma das atividades do Seminário: A sociologia no século XXI, comemorativo aos quarenta O encontro que originou este livro contou com o apoio do CNPq, da Capes e da Fapergs. O livro foi organizado no âmbito do Observatório de Ciência, Tecnologia e Inovação Social (ObCTIS) do LaDCIS/PPGS-UFRGS, patrocinado pelo PPGSociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com apoio do CNPq, da Capes e da Fapergs. 1 Soc&Conh-FINAL.indd 13 22/11/2016 12:06:26 anos do PPGS-UFRGS. Esses dois eventos tiveram por objetivo aprofundar o conhecimento e o debate sobre os principais fenômenos que marcam a sociedade contemporânea e, especialmente no caso do pré-ALAS, seus impactos sobre a sociedade latino-americana, criando um espaço de trocas e de fomento a novas perspectivas de análise sociológica. As transformações em curso afetam indivíduos, empresas e nações, potencializam crises, criam impasses e, também, possibilidades para a construção de um patamar superior de realização humana. Desenvolvimento, colonialidade e as ciências sociais Na primeira parte do livro são apresentadas e debatidas questões relacionadas à problemática do desenvolvimento, da colonialidade e da produção sociológica atual, frente à complexidade do mundo contemporâneo. No capítulo um, denominado O (des) encanto do desenvolvimento latino-americano na sociedade global, Paulo Henrique Martins parte de uma pergunta: por que o tema do desenvolvimentismo regressa com força na América Latina nos últimos anos? A resposta inicial que o autor propõe para alimentar o debate é que os intelectuais, incluindo os economistas, diferentemente do que pensavam vários cientistas sociais nos anos 1990, estão percebendo que a globalização não tem contribuído para solucionar as desigualdades e injustiças sociais. Ao contrário, essas se ampliaram gerando o aumento de indicadores sociológicos negativos como o da violência, da dessocialização, da corrupção e das doenças psicossomáticas. Ou seja, os impactos da globalização econômica sobre as políticas de desenvolvimento foram exagerados, contribuindo para mascarar os novos pactos de dominação nos planos nacional, regional e global. No segundo capítulo, Adelia Miglievich-Ribeiro empreende um debate epistemológico a partir do tema das linhagens pós-coloniais e a possibilidade de ampliação do conhecimento. De acordo com a autora, a razão pós-colonial, em distinção à típica racionalidade moderna-ocidental, recusa explicações totalitárias e unívocas. Miglievich-Ribeiro explicita como arbitrariamente experiências históricas locais e particulares se alçaram à condição de “padrão universal” ou “modernidade” ou ainda “progresso”, subalternizando todas as demais formas de vida. 14 Soc&Conh-FINAL.indd 14 22/11/2016 12:06:26 Para a autora, descolonizar nossa própria compreensão do mundo e das pessoas no mundo traduz um empenho epistemológico que é, como tal, simultaneamente ético e político, reunindo estudos sob a rubrica de pós-colonial. Sua proposta é revisitar algumas correntes do pós-colonial em suas variações. Segundo ela, a colonialidade não é uma história passadista de modo que os neocolonialismos intervêm ainda hoje na compreensão do mundo elaborada pela ciência. Assim, a descolonização epistemológica é uma tarefa que se impõe a uma sociologia que se propõe crítica e comprometida com a superação dos silenciamentos históricos e das muitas mazelas sociais. No capítulo terceiro, Anete Ivo apresenta a sociologia como política, analisando a “Sociologia do Desenvolvimento” e a produção sociológica contemporânea. O capítulo aborda inlexões da produção sociológica sobre o desenvolvimento nos anos mais recentes. Como ponto de partida indaga “qual o ponto de vista sociológico do desenvolvimento hoje?”. A resposta a esta indagação, segundo Anete Ivo, envolve analisar a noção de desenvolvimento e suas mudanças condicionadas por contextos históricos singulares do capitalismo periférico, que relete polissemias na noção e uma relação paradoxal entre poder e saber, entre ciência e política, que acompanha as proposições políticas e a relexão sociológica sobre o desenvolvimento. O capítulo se estrutura em três partes: a primeira retoma os paradigmas da noção de desenvolvimento dos anos 1960; a segunda considera as mudanças epistemológicas que enfatizam novos paradigmas, um solidarista e outro institucional, de uma nova regulação e prática da governança para o desenvolvimento; e a terceira e última parte apresenta o repertório de temas que organizam a produção da sociologia do desenvolvimento no Brasil hoje. A autora articula, portanto, um horizonte conceitual, que marca a formação da sociologia do desenvolvimento e suas inlexões no deslocamento de paradigmas no contexto mais recente e como estas mudanças se expressam na estruturação do subcampo de pesquisa, de natureza mais quantitativa, com base nos grupos de pesquisas (GPs) autoclassiicados como integrantes da subárea da “sociologia do desenvolvimento”. A discussão efetuada requaliica interpretações sobre as possibilidades de um “neodesenvolvimentismo” hoje, ultrapassando perspectivas que entendem o desenvolvimento apenas como uma neomodernização orientada por elementos macroeconômicos de competitividade, estabilidade e crescimento, gerenciado pelo Estado nacional, observando-o com base em processos de hegemonia e contra-hegemo15 Soc&Conh-FINAL.indd 15 22/11/2016 12:06:26 nia, que envolve olhares distintos entre a produção sociológica em sociedades periféricas e países centrais do regime de acumulação. No quarto e último capítulo da primeira parte, Marcelo Arnold-Cathalifaud e Hugo Cadenas analisam as ciências sociais latino-americanas frente à complexidade social local, regional e global. Neste capítulo, são discutidas alternativas para que as pesquisas na América Latina, em âmbito local, regional e global, abordem, de modo produtivo, os cenários em transformação que caracterizam as primeiras décadas deste século. Os autores destacam, explicitamente, as contribuições das ciências sociais e indicam alguns obstáculos que as limitam. O capítulo analisa, em primeiro lugar, o modo como nossas disciplinas encaram a demanda por conhecimentos no atual contexto mundial; em segundo lugar, aponta obstáculos, internos e externos, que impedem a aplicação de suas contribuições; e, inalmente, apresenta uma proposta programática, inspirada nas teorias sociais da complexidade, com ênfase em sua relevância para a América Latina. Produzir conhecimentos na América Latina: políticas, democracia, inclusão A segunda parte do livro trata da produção de conhecimentos na América Latina e, especiicamente, no Brasil, diiculdades encontradas, políticas de produção, avaliação, divulgação e inclusão. Debate também questões referentes à nossa posição periférica e às nossas necessidades concretas em termos de o que e como produzir e como apropriar socialmente os conhecimentos produzidos. Fernanda Sobral, no quinto capítulo, coloca em debate a dimensão econômica e social da política brasileira de ciência, tecnologia e inovação, buscando mostrar a dimensão econômica – expressa na ideia de competitividade e de fomento à inovação tecnológica – e a dimensão social – expressa na ideia de inclusão social e de transferência do conhecimento para a sociedade na atual política de ciência, tecnologia e inovação. O capítulo aborda a questão por meio da análise mais geral das tendências das sociedades contemporâneas que se reletem nos principais desaios colocados pela Estratégia Nacional de C,T&I 2012-2015, nos programas prioritários, nas tendências do fomento à pesquisa e na im- 16 Soc&Conh-FINAL.indd 16 22/11/2016 12:06:26 plementação de alguns programas de fomento e de formação de recursos humanos como os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT) e o Ciência sem Fronteiras (CsF). A autora busca evidenciar alguns resultados e diiculdades desses programas e aponta que, embora a dimensão social esteja presente na política brasileira de ciência, tecnologia e inovação, é a dimensão econômica que está sendo predominante, ainda que a maior associação entre a dimensão econômica e social seja uma exigência das sociedades democráticas. No sexto capítulo do livro, Fabrício Neves demonstra, de forma acurada, como a ciência produzida ao sul do mundo se torna periférica. O capítulo trata do tema dos contextos da verdade. A argumentação teórica se estrutura em torno de questões levantadas pelos estudos sociais em ciência e tecnologia, focando-se na vertente de estudos que levam em conta as diferenças de legitimação e circulação do conhecimento cientíico em contextos periféricos no sistema global de ciência e tecnologia. Fabrício se detém na discussão do que se chamou sistema biotecnológico, um complexo articulado formado por instituições acadêmicas, empresas públicas e empresas de pesquisa biotecnológicas especializadas na produção de conhecimento e tecnologia voltados para a manipulação da vida. A análise é desenvolvida, segundo o autor, por meio do conceito de regime de produção de conhecimento periférico, um regime de perturbações recíprocas entre sistemas, limitado pelas conigurações institucionais dos Estados nacionais, mas em contato com os centros de produção tecnocientíicos. Tal regime, no Brasil, foi caracterizado como tradutor de demandas locais, neste sentido, produtor de pesquisa de interesse meramente periférico, sem capacidade de circulação ampla na rede global do sistema, e, portanto, negligenciada no centro. No próximo capítulo, seguindo uma linha de argumentação próxima, Maíra Baumgarten discute alguns dos constrangimentos e diiculdades envolvidos na produção e divulgação de ciência e tecnologia no Brasil e na América Latina, questionando as opções de políticas e as prioridades estabelecidas pelas agências de gestão e fomento. O capítulo trata, portanto, das relações entre avaliação e gestão de ciência e tecnologia, a produção de conhecimentos e o lugar das ciências sociais nessa temática. Segundo a autora, uma das questões centrais que vem sendo debatida em diferentes fóruns sobre edição de livros e periódicos em ciências sociais na América Latina – sua produção e circulação – é a necessidade de ampliar os pro17 Soc&Conh-FINAL.indd 17 22/11/2016 12:06:26 cessos de internacionalização daquilo que produzimos no subcontinente e as diiculdades e possibilidades envolvidas neste processo, sem perder de vista que o público predominante (nas ciências sociais) é nacional e latino-americano e que temos uma cultura e identidade que passa pela língua, assim como possuímos em nossos países problemas e questões diferentes daqueles dos países europeus e da América do Norte. A abordagem dessa problemática no capítulo busca apontar alternativas possíveis e adequadas que apoiem a ampliação de nossas redes de conhecimentos sem provocar a perda da identidade linguística e cultural. Silvia Lago Martínez, no capítulo oitavo, problematiza a noção de bem comum associada aos bens intelectuais e culturais, o acesso aberto à produção cientíica e as novas formas de gerar conteúdo, produzir conhecimento e compartilhar obras na arquitetura da internet, em oposição às pressões exercidas pela legislação de propriedade intelectual e pelas empresas do setor para limitar e controlar o luxo de informação e circulação da produção cultural e intelectual. A autora analisa os processos desenvolvidos nesse sentido na América Latina e no Caribe, observando, por um lado, as diversas iniciativas governamentais que envolvem ações sobre o Acesso Aberto e a utilização de software livre em ciência e tecnologia, na administração pública e nas instituições educacionais. Por outro lado, Silvia Lago aponta as iniciativas dos diversos atores não governamentais que promovem o Acesso Aberto como nova norma acadêmica e cientíica, o software livre e as formas colaborativas de trabalho para a produção de conhecimento, propiciando uma nova noção de bem comum. O nono capítulo analisa os principais desaios e oportunidades que se colocam, contemporaneamente, às universidades da América Latina. Michelangelo Trigueiro coloca ênfase na necessidade de se rever determinadas práticas e estruturas nas universidades e em suas relações com os demais ambientes de produção de ciência, tecnologia e inovação, considerando-se a expansão de ambientes democráticos, que afetam inúmeros processos decisórios nas universidades. Segundo o autor, em termos empíricos, a pesquisa se baseou em estudos realizados a esse respeito na realidade brasileira, em que se confrontaram novas demandas de diferentes setores da sociedade, especialmente o produtivo, em áreas consideradas estratégicas para o desenvolvimento do país, com a base cientíico-tecnológica e inovativa instalada. O capítulo conclui, em con- 18 Soc&Conh-FINAL.indd 18 22/11/2016 12:06:26 sonância com os anteriores, que é inadiável um novo desenho de políticas públicas para a ciência, a tecnologia, a inovação e as universidades, argumentando que são necessários muitos outros indicadores, além da publicação em periódicos especializados, para que se possa estimular a busca de soluções para problemas recorrentes nesses países, as quais muito dependem da ciência, tecnologia e inovação. Hernán homas e Lucas Becerra trazem, no capítulo dez, elementos para repensar a mudança tecnológica e a inclusão social, debatendo as questões da inovação, cooperativismo e desenvolvimento inclusivo. O capítulo analisa criticamente um conjunto de questões relacionadas ao tipo e caráter das unidades produtivas que devem ser privilegiadas como reguladoras de um sistema de inovação e produção. De modo sucinto, a teoria econômica sobre mudança tecnológica e inovação considera: i) a inovação como resultado da competição dinâmica entre empresas maximizadoras de lucro; ii) que essa competição, geradora de novas mercadorias e de novas técnicas de produção, traduz-se necessariamente em maiores taxas de crescimento econômico; e iii) uma vez que (por deinição) os loci da inovação são as empresas maximizadoras de lucro, elas devem ser consideradas como o ator-chave das políticas públicas de inovação. Partindo da avaliação crítica desses enunciados, o capítulo posiciona, através de exposição teórica, as cooperativas de trabalho como atores dinamizadores de processos de inovação e de desenvolvimento social. Os autores buscam aqui, particularmente, hierarquizar estas unidades produtivas no âmbito da órbita de ação das políticas públicas de Ciência, Tecnologia e Inovação (CTI). A hipótese de trabalho presente no capítulo se relaciona à ideia de que mudar o centro de atenção para as cooperativas de trabalho pode ativar um conjunto de dinâmicas de aprendizagem, circulação de conhecimentos e geração de capacidades técnico-produtivas que revertem em processos mais democráticos de apropriação do conhecimento e de geração de valor agregado. Ao inal do capítulo, apresenta-se um conjunto de relexões relacionadas às políticas públicas de ciência, tecnologia e inovação orientadas ao desenvolvimento inclusivo. O último capítulo do livro trata da produção de conhecimento sobre os movimentos sociais. Partindo da constatação de que no campo teórico de análise sobre movimentos sociais, nas últimas cinco décadas, houve grande inluência do referencial de produção de conhecimento 19 Soc&Conh-FINAL.indd 19 22/11/2016 12:06:26 cientíico construído nos países do Norte nas análises e explicações sobre os movimentos e mobilizações ocorridas no Sul, no mesmo período, Maria da Glória Gohn coloca uma série de interrogantes como pontos de partida para o debate sobre o tema: quais as especiicidades dos movimentos sociais latino-americanos em relação aos movimentos que ocorrem no Norte, em diferentes tempos históricos? Por que muitos pesquisadores tratam movimentos e outros fenômenos sociais do Sul com um referencial teórico advindo do Norte? É possível falar de uma teoria dos movimentos sociais do Sul? Esperamos com esse livro contribuir para o debate sobre a produção de conhecimentos na América Latina, nossa posição na sociedade global e importância das relações Sul-Sul para ampliicar debates necessários e estratégicos sobre democracia e inclusão, buscando formas de produzir e divulgar conhecimentos adequados às nossas realidades e contextos especíicos e a redescoberta e desvelamento de formas alternativas e solidárias de construir a vida e conviver. Maíra Baumgarten (Organizadora) 20 Soc&Conh-FINAL.indd 20 22/11/2016 12:06:26 Parte I Desenvolvimento, colonialidade e as ciências sociais Soc&Conh-FINAL.indd 21 22/11/2016 12:06:26 Soc&Conh-FINAL.indd 22 22/11/2016 12:06:26 O (des) encanto do desenvolvimento latino-americano na sociedade global Paulo Henrique Martins Podemos sintetizar nossa relexão nesse texto com uma pergunta: por que o tema do desenvolvimentismo, que implica participação ativa do Estado nas ações de modernização, que havia sido relativamente desvalorizado no debate acadêmico nas duas últimas décadas na região sob o peso do neoliberalismo, regressa com força na América Latina nos últimos anos? Nossa resposta inicial para alimentar o debate é que os intelectuais, incluindo os economistas, diferentemente do que pensavam vários cientistas sociais nos anos 90, estão percebendo que a globalização não tem contribuído para solucionar as desigualdades e injustiças sociais. Ao contrário, elas se ampliaram gerando o aumento de outros indicadores sociológicos negativos como o da violência, da dessocialização, da corrupção e das doenças psicossomáticas. Ou seja, os impactos da globalização econômica sobre as políticas de desenvolvimento foram exagerados, contribuindo para mascarar os novos pactos de dominação nos planos nacional, regional e global. Vamos tentar aprofundar isto neste texto. As ciências sociais e o desenvolvimento Quando o pensamento crítico não é capaz de reletir mais profundamente sobre a realidade, então as perspectivas de eliminação dos processos democráticos e do avanço de forças conservadoras – capitalistas, patriarcalistas e colonialistas – passam a constituir uma sombra inevitável Soc&Conh-FINAL.indd 23 22/11/2016 12:06:26 sobre o futuro das sociedades nacionais, da paz mundial e da cidadania democrática planetária. Este comentário é válido especialmente para a América Latina, cujo destino não pode ser apreciado a partir do entendimento simpliicado oferecido pelo debate entre desenvolvimento com Estado interventor ou desenvolvimento com Estado mínimo. Uma rápida retrospectiva da modernização latino-americana e brasileira no século XX demonstra que a presença do Estado é fundamental para se viabilizar projetos desenvolvimentistas. Nesta perspectiva, o debate deve ser reconigurado para aquele entre desenvolvimentismo com cidadania democrática ou desenvolvimentismo com autoritarismo. Certamente, o avanço desta discussão não pode permanecer monopólio dos economistas que tendem a analisar o tema do desenvolvimento a partir do crescimento econômico e das variações do PIB (Produto Interno Bruto). A discussão tem que ser ampliada para se repensar o desenvolvimento a partir de variáveis sociológicas que considerem o tema da desigualdade, da violência, do meio ambiente. Por isso, as ciências sociais e a sociologia têm um rol central para apresentar um entendimento mais complexo do fenômeno do desenvolvimento de caráter epistêmico e epistemológico, contribuindo para aclarar as presenças das diferentes forças sociais e históricas que deinem sua materialidade e também as políticas de crescimento econômico e de expansão de mercado na vida cotidiana.1 Quando fazemos uma retrospectiva histórica, veriicamos que na América latina e no Brasil o tema do desenvolvimento sempre teve uma presença particular nas ciências sociais, através da economia do desenvolvimento e da sociologia do desenvolvimento, e no interior das agências estatais, o que se explica pelos esforços dos países da região de estabelecer políticas industriais e urbanas capazes de enfrentar o “subdesenvolvimento”. Na verdade, a partir dos anos 1950, a sociologia icou de certo modo subordinada à economia do desenvolvimento, o que teve impactos negativos sobre as perspectivas de emancipação de sociologias fenomenológicas e relacionais necessárias para explicar as mudanças complexas do cotidiano na região, em particular para se apreciar mais claramente o papel dos intelectuais na reprodução de ideologias autoritárias. No caso brasileiro, as críticas têm que considerar que o aumento da consumação de bens duráveis e não duráveis não é um fato natural inelutável senão o produto de um acordo entre sindicalistas e empresários iniciado no governo do Partido dos Trabalhadores (PT), no governo Lula, para manter empregos e salários nas indústrias de bens de consumo. 1 24 Soc&Conh-FINAL.indd 24 22/11/2016 12:06:26 Assim, em um primeiro momento, entre os anos 1950 e 1980, o desenvolvimento era interpretado como o único modelo possível de passagem das sociedades do “Terceiro Mundo” para o padrão “Primeiro Mundo”. Entretanto, desde os anos 1980 e sobretudo na década de 1990, a ideia de desenvolvimento como desenvolvimentismo, isto é, modernização social e econômica com forte presença estatal, foi muito questionada a partir de dois temas conluentes: a do desenvolvimento como Estado mínimo sugerido pelo neoliberalismo e pelo consenso de Washington, e pela ilusão da globalização como eliminação do imperialismo a partir da uniformização planetária e livre circulação dos capitais. Muitos sociólogos se sentiram atraídos pela perspectiva da globalização. Otavio Ianni, por exemplo, criou o termo globologia para deinir a nova ciência que pensaria o global.2 Para ele, com a globalização, os temas da hegemonia e da soberania nacional tinham icado desatualizados, pois as empresas e as corporações transnacionais estavam agora “operando em escala regional, continental e global e dispõem de condições para impor-se aos diferentes regimes políticos, às diversas estruturas estatais, aos distintos projetos nacionais” (Ianni, 1994). Este comentário nos ajuda a entender o que já sublinhamos antes, que desde os anos 1990 o tema de desenvolvimento foi de certo modo subalterno ao da globalização, levando intelectuais prestigiados de esquerda a questionar o interesse efetivo da política nacional e as ciências sociais em um “mundo globalizado”. Neste momento da década de 90, muitos comemoraram os novos tempos, inclusive intelectuais marxistas, que viam na globalização a passagem para uma nova etapa do desenvolvimento do capitalismo, com a resolução dos problemas econômicos a respeito da livre circulação dos capitais que, até então, supunha-se teria atrasado a superação do “subdesenvolvimento”. Aqui, podemos identiicar algumas tendências dos intelectuais marxistas da Teoria da Dependência como é o caso de R. M. Marini, que em um artigo de 1997 propunha que a globalização era o produto da superação das fronteiras nacionais, alterando a geograia política de cada país (Marini, 2008, p. 248). Certamente, o debate sobre desenvolvimento “Denominamos esta ciência emergente da dinâmica global como globologia, o que simplesmente signiica a ciência de distintos processos globais, sejam econômicos, políticos ou culturais. Se a sociologia é a ciência dos sistemas sociais, então globologia é a ciência do sistema global. Globologia, pois, é análoga à sociologia e refere-se aos estudos de estruturas e processos do sistema-mundo como um todo, da mesma forma que a sociologia se refere ao estudo de estruturas e processos sociais. ” (Ianni, 1994). 2 25 Soc&Conh-FINAL.indd 25 22/11/2016 12:06:26 icou complexo, e devemos reconhecer que intelectuais como Conceição Tavares, Luiz Gonzaga Beluzzo, entre outros da Universidade de Campinas reagiam contra os discursos privatizantes. Os liberais, por seu lado, comemoravam o im da União Soviética e o avanço do neoliberalismo e da diminuição da presença do Estado na organização da sociedade. Para os neoliberais, a globalização signiicava a vitória do mercado em âmbito mundial, deslocando os Estados nacionais para lugares secundários, e tal vitória deveria ser conirmada pela ideia de Estado mínimo. A ideia do im da história mundial sugerida por F. Fukuyama (1992) no período é emblemática do espírito dos liberais. Entre os sociólogos há que se destacar, porém, aqueles que viam com reservas o discurso da globalização como panaceia de um mundo socialmente integrado pelo livre capital circulante. O sociólogo colombiano A. Escobar (1995) já propunha o termo pós-desenvolvimentismo para explicar que estaria havendo naquele momento o inal de um ciclo de desenvolvimento e o início de outro. Também avançamos nesta direção na nossa tese de doutorado (Martins, 1992) quando exploramos o tema do mito do desenvolvimento latino-americano.3 O contexto atual da crise de regulação do capitalismo inanceiro internacional e a evidência que a ideia de globalização econômica não avançou nada em termos de diminuição das desigualdades econômicas e sociais dão razão aos que receberam com ceticismo o discurso da globalização e que entendiam a importância de se valorizar o papel do Estado com agente da modernização nacional. De fato, neste momento se reconhece amplamente que o Estado tem papel fundamental na implementação de ações que contribuam para minimizar os efeitos da crise mundial sobre as economias nacionais, regionais e locais. Esta assertiva não elimina, claro, a importância de se repensar que Estado queremos ou então como organizar a relação entre política e economia em favor da democratização da vida social. O que se destaca sobretudo aqui é a Para nós, o desenvolvimentismo era um pacto de poder entre forças capitalistas e patrimonialistas o que nos levou a sugerir que a crise do desenvolvimento nos anos 1980 era uma crise do poder patrimonialista de mercado (Martins, 1991). Para isso, analisamos três momentos de crise na qual os intelectuais tiveram um rol central para a organização dos pactos de poder: anos 30, anos 60 e anos 80 do século XX (Martins, 1992). Também buscamos demonstrar na época que o desenvolvimentismo não se airmava só para a mecânica do capitalismo e das forças oligárquicas senão desde intervenções dos intelectuais na sistematização da ideologia do progresso econômico. 3 26 Soc&Conh-FINAL.indd 26 22/11/2016 12:06:26 importância de se deslocar o debate sobre desenvolvimento do discurso equivocado do neoliberalismo que apenas contribui para reforçar o poder do capitalismo inanceiro e rentista. Isto implica a importância de saber para onde está caminhando o pensamento crítico a respeito do tema do desenvolvimento. Vamos fazer essa relexão desde América Latina, pois aqui se formou nas últimas décadas uma importante tradição sociológica, que pensou com qualidade a relação entre desenvolvimento, dependência e imperialismo, e esta questão do impacto da crise global sobre os países da região é um tema de grande interesse da opinião pública na atualidade. As novas ideias no debate sobre o desenvolvimento na América Latina No momento presente de evidência da crise mundial e regional da regulação capitalista e da ausência de um debate crítico mais efetivo, revaloriza-se uma versão mais conservadora de desenvolvimento que exalta novamente a relação entre intervenção estatal e crescimento econômico no contexto da globalização, ou seja, da revalorização do papel do Estado desenvolvimentista. Há, aqui, os que não escondem seus entusiasmos a respeito da perspectiva de um neodesenvolvimento como é o caso de L. C. Bresser Pereira (2004) e R. Boschi e F. Gaitán (2008), que enfatizam a dinâmica da política para repensar o desenvolvimento como neodesenvolvimento. Há, por outro lado, os que aceitam a perspectiva de um novo modelo de desenvolvimento, como propõe a socióloga Anete Ivo, mas que criticam a redução das políticas de inclusão à lógica do mercado e do Estado eiciente (Ivo, 2012, p. 205-206).4 Para nós nos parece mais simpática esta posição, ainda que consideremos ser necessário o avanço na direção de revalorizar o desenvolvimento desde a perspectiva de redemocratização da sociedade e da criação de mecanismos participativos que neutralizem o poder tirânico das forças capitalistas e patriarcalistas antidemocráticas. De fato, as resistências ao desenvolvimento se ampliam quando consideramos Assim, para a autora, tais políticas sociais apresentam limites no padrão da distribuição, nos direitos da cidadania e nos objetivos mais amplos da seguridade econômica e alimentar, sem desconhecer as melhorias no alívio das famílias em condição de pobreza. 4 27 Soc&Conh-FINAL.indd 27 22/11/2016 12:06:26 a associação entre este modelo e a ideia de progresso econômico – que é reproduzida pelas teorias da modernização, pelas teorias da dependência (Grosfoguel, 2000) e pela sociologia do desenvolvimento – contribui para legitimar políticas públicas e sociais que ampliam a desigualdade. Independentemente das várias posições – a favor ou contra – há um fato inelutável: na América Latina, o tema do desenvolvimento é hoje uma unanimidade entre os intelectuais, pois se reconhece que a globalização econômico-inanceira não substitui o papel do Estado no planejamento das políticas de promoção das atividades econômicas, sociais e culturais. Para nós, portanto, o desenvolvimento continua a se constituir como um grande atrativo sociológico, uma utopia que se encarna quando naturalmente todos acreditam na sua encarnação. A imaginação se torna realidade se assim queremos e se transformamos as ideias e crenças em ações práticas. Então, não se pode negar a discussão do tema desenvolvimento quando há um consenso sobre sua importância, sobre suas possibilidades e sobre o papel estratégico do Estado para enfrentar a crise e combater as desigualdades. Por consequência, não acreditamos que se pode avançar na discussão sobre o futuro do desenvolvimento e sobre o desenvolvimentismo na América Latina – e pensar alternativas a ele, inclusive pensar a sua negação se necessário – sem considerar que sua consensualidade básica é assegurada por sua estrutura utópica, isto é, pela crença coletiva e pública que a mesma desperta entre diversos segmentos sociais. Deste modo, é importante se entender os motivos pelos quais o ideal do desenvolvimento aparece como central em todos os pactos de poder inclusive os mais radicais como, por exemplo, o da Bolívia. E, seguramente, isto tem relação, como explicamos, pelo fato de que não se pode pensar a relação entre desenvolvimento, democracia, igualdade social e liberdade coletiva sem a mediação da política nos processos econômicos e outros, que no momento presente aparece pela igura do Estado. Mas devemos igualmente considerar que a utopia do desenvolvimento se inclui dentro de uma lógica temporal linear que está articulada com a do progresso histórico, o que indica problemas epistemológicos dramáticos quando se considera a importância do desenvolvimento para o reforço da colonialidade e do imperialismo. Comecemos por situar então os problemas teóricos que necessitam ser questionados desde sua natureza utópica, pois necessitamos obser- 28 Soc&Conh-FINAL.indd 28 22/11/2016 12:06:26 var limitações conceituais que não favorecem o avanço do pensamento crítico na atualidade. A primeira e mais evidente é a redução do desenvolvimento a um processo uniforme, quase um pensamento homogêneo sem consideração de suas variadas versões históricas. Outra limitação tem relação com a tendência a reduzi-lo a um desaio econômico sem considerar a pluralidade de motivos que o determinam, sobretudo as diversas conigurações de poder que se materializam sobre os territórios nacionais e regionais. Tais limitações se referem ao fato de que a associação estreita do desenvolvimento com a ideia de crescimento econômico não facilita entender que se trata de outro fenômeno histórico e cultural mais amplo do que sua dimensão econômica e que ele se expressa por diversas conigurações ou padrões de poder, envolvendo forças capitalistas e anticapitalistas em âmbitos locais, regionais, nacionais e internacionais. Estas simpliicações teóricas que se passam em dois níveis – redução do desenvolvimento ao crescimento e redução do sistema-mundo a sistema capitalista – depreciam a complexidade do movimento histórico da criação humana e geram a ideologia equivocada de um pensamento planetário que, valorizando excessivamente a economia mercantil, mascara a diversidade de pensamentos existentes e possíveis, a ecologia de saberes que nos propõe B. Santos (2008). Para introduzir um entendimento mais complexo do desenvolvimento que tenciona sua estrutura utópica para abrir as heterotopias (Martins, 2012), temos necessariamente que discutir a relação complexa entre o desenvolvimento do capitalismo e desenvolvimento como processo político e social mais amplo que envolve o econômico e o sobrepassa. Nesta direção, é de grande atualidade recordar C. Furtado quando ele airmava ser necessário superar a visão restritiva do desenvolvimento como algo quantiicável baseado na acumulação para introduzir uma visão ampliada do desenvolvimento como um processo de ativação das forças sociais, de avanço e da capacidade associativa. Para ele, se trata de um processo social e cultural e apenas secundariamente econômico. “Produz-se o desenvolvimento quando na sociedade manifesta-se uma energia capaz de canalizar, de forma convergente, forças que estavam latentes ou dispersas” (Furtado, 1983, p. 149). Podemos agora mudar nosso olhar para localizar o debate sobre desenvolvimento e do sistema-mundo de duas formas: a) O desenvolvi- 29 Soc&Conh-FINAL.indd 29 22/11/2016 12:06:26 mento é um modo de expressão do sistema-mundo em uma dinâmica temporal e espacial que se identiica ao capitalismo; b) O desenvolvimento é um modo de expressão sistema-mundo, que é mais amplo que o sistema capitalista. Isto é, tais avanços na discussão de desenvolvimento nos levam a sugerir a importância de fazer a diferença entre o capitalista e o sistema-mundo. No sistema capitalista, o desenvolvimento se identiica ao crescimento econômico; no sistema-mundo, ele se abre para os processos sociais e culturais mais amplos, permitindo o entendimento histórico mais amplo dos processos simbólicos e linguísticos que no conjunto participam da organização da vida social e comunitária das nações e comunidades nacionais e internacionais. Desde este entendimento complexo, podemos airmar que o desenvolvimento é em primeiro lugar um fenômeno que não se reduz ao mercado, mas se abre à diversidade cultural, social e histórica. Ou seja, sua natureza fenomênica se refere sempre à manifestação temporal do sistema-mundo que se desdobra sob lutas políticas que se expressam como padrões de poder. Recordando a airmação I. Wallerstein (1996, p. 195) que “lo que desarrolla no es un país sino un padrón de poder”, A. Quijano (2000, p. 75) aclara este entendimento airmando que o padrão do poder capitalista não existe de modo homogêneo no espaço mundial: “ [...] esto padrón de poder es mundial, no puede existir de outro modo, pero se desarrolla de modos diferentes y em niveles distintos em diferentes espacios-tiempos o contextos históricos”. Esta é a direção que vamos seguir neste texto. Entretanto, vamos buscar aprofundar este modelo de análise através do entendimento das particularidades dos padrões de poder do sistema-mundo, que é mais complexo que o sistema capitalista em sentido restrito. América Latina e os desafios do desenvolvimento sob as mudanças do imperialismo A respeito do desenvolvimento do pensamento crítico na América Latina no contexto do deslocamento dos centros de impulsão do capitalismo econômico e inanceiro a nível global, veriicamos a presença de pressões contraditórias entre a recolonialidade e a descolonialidade dos sistemas de saber e poder. Por um lado, presenciamos o avanço importante das teorias da modernização através do reforço da ideologia do progresso e as teses do 30 Soc&Conh-FINAL.indd 30 22/11/2016 12:06:26 crescimento econômico ilimitado que propõem a necessidade de libertar a sociedade de consumo dos limites jurídicos e políticos impostos pelas constituições republicanas. Por outro, observamos igualmente as reações anticoloniais que se posicionam contra a redução do desenvolvimento a crescimento econômico e de redução dos direitos de cidadania a consumo do mercado. Entretanto, este avanço do padrão do desenvolvimento na etapa atual de emergência do imperialismo oriental não é um processo homogêneo na América Latina, conhecendo adaptações particulares do poder, que chamamos de padrões especíicos do desenvolvimento. Na América Latina, o avanço do debate crítico expressa o entendimento desta região como um subsistema histórico e vivo dentro do sistema-mundo. América Latina emerge como uma expressão particular e inédita do sistema mundial, que é reconhecido como tal desde que os atores intelectuais, ativistas e movimentos sociais passaram a questionar a centralidade do imperialismo eurocêntrico na época da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), como vamos examinar mais à frente. América Latina contribui para tornar o sistema-mundo mais complexo quando revela pela política que a equação centro x periferia não é uma determinação meta-histórica senão um sistema de relações de forças valorizadas culturalmente na medida em que foram signiicadas como prioridades por um grupo ou grupos.5 A América Latina é também a síntese de movimentos sistêmicos de naturezas diversas – econômicas, mas igualmente políticas, culturais, morais, estéticas e históricas. Trata-se de movimentos estimulados por inovações culturais e tecnológicas capitalistas e por reações diversas manifestando inovações e resistências variadas legitimadas sobre as heranças e memórias tradicionais. Tudo isso contribui para reorganizar os padrões de percepção recorrentes sobre a vida e sobre a relação homem x homem e homem x natureza, abrindo passagem a novos entendimentos e práxis do modo de produção da humanidade ao longo do século XXI. Podemos dizer que o contexto atual revela uma situação que recorda, desde certos limites e guardando as distancias históricas apropriadas, o que Centro x periferia é uma equação cultural que envolve forças nacionais (agências como os aparatos estatais e a Igreja e sujeitos históricos como os movimentos sociais) e forças transnacionais (corporações, governos, associações civis, movimentos sociais) que disputam pelo controle de recursos do desenvolvimento. 5 31 Soc&Conh-FINAL.indd 31 22/11/2016 12:06:26 se passou na época da Cepal. Naquele período, a dependência econômica da América Latina se conigurava na airmação dos Estados Unidos e de sua presença como novo eixo do imperialismo. O clima da época ica evidente quando se analisa o texto de R. Prebisch a respeito dos problemas do desenvolvimento na América Latina. De fato, entre os anos 1950 e 1990 foi inegável a hegemonia dos EUA em âmbito mundial e, sobretudo, de América Latina; assim, os avanços do pensamento desenvolvimentista foram inluenciados pela relação dos países latino-americanos com os Estados Unidos. O contexto latino-americano é interessante para reletir sobre a leitura mais ampla da ideia de desenvolvimento, o que é importante para entendermos a presença de vários padrões de desenvolvimento no sistema-mundo. A relexão sobre o caso brasileiro é interessante para explicar as mudanças atuais na estrutura de tal sistema. Avancemos na discussão com uma informação concreta e contemporânea sobre a situação externa do Brasil: atualmente, o país exporta quase 80 % de sua soja, petróleo e minério de ferro para a China, o que signiica uma autonomia importante do Brasil no que diz respeito aos Estados Unidos e uma dependência crescente em relação à China. Para nós, estes e outros dados relativos à nova especialização da América Latina e do Brasil na exportação de produtos extrativistas, agrícolas e minerais provam que o que chamamos de globalização signiicou de fato novos deslocamentos do imperialismo, agora com a emergência da China como grande potência mundial. O deslocamento do imperialismo está claramente impactando sobre a geopolítica mundial, sobre os rumos dos conlitos de interesses internacionais e continentais e sobre o declínio evidente do eurocentrismo. O peso do novo imperialismo ainda não foi absorvido no debate político, e por isso muitos não entendem os impactos previsíveis deste novo imperialismo oriental a respeito do mundo e da América Latina. Mas o fato de a China ser o maior credor dos Estados Unidos da América no momento presente é uma evidência das mudanças da ordem mundial, e, por isso, é muito importante se conhecer mais profundamente a situação latino-americana. Ou seja, o deslocamento do centro imperialista como movimento sistêmico dentro do sistema-mundo, nos últimos sessenta anos, do Ocidente para o Oriente é um fato novo e irrecusável, o que está gerando, por consequência, reações alter-sistêmicas na América Latina, que vão seguramente renovar o entendimento teórico e a prática do desenvolvimento. 32 Soc&Conh-FINAL.indd 32 22/11/2016 12:06:26 A seguir, vamos buscar inalizar esta relexão sublinhando uma consequência lógica da tese que defendemos aqui a respeito do fato de que o sistema-mundo é maior do que o sistema capitalista. A aceitação desta tese, que, penso, foi adequadamente demonstrada aqui, tem como desdobramento necessário a importância da aceitação de que não há um só padrão de desenvolvimento na América Latina na contemporaneidade, senão alguns padrões de poder que podem ser classiicados desde uma tipologia que nos ajude a compreender mais claramente os movimentos sistêmicos e alter-sistêmicos na América Latina. O uso do conceito de tipo ideal, aclara-nos Weber (1979), é importante para organizar juízos de atribuição que nos permitem formar hipóteses que não nos revelam a realidade, mas que facilitam signiicá-la.6 É com esta intenção que vamos, na última parte do texto, buscar organizar alguns tipos que espelham os movimentos padrões de poder na América Latina. Conclusão: uma tipologia provisória de padrões de desenvolvimento na América Latina A tese que expomos aqui é que não há um único padrão de desenvolvimento, senão vários padrões de desenvolvimento que expressam as contradições do sistema capitalista dentro do sistema-mundo por um lado, e dos chamados movimentos alter-sistêmicos dentro do mesmo sistema-mundo por outro lado, revelando tanto as interferências do capitalismo como as reações anticapitalistas. Podemos então propor que o desenvolvimento deveria ser pronunciado no plural, como um conjunto de atividades teóricas e práticas de mudança social, cultural e histórica, seguindo uma rota de tempo linear que não permite perceber a presença de diversos padrões de poder. Na América Latina eles espelham diferentes padrões de poder sob a dialética do centro e periferia do sistema-mundo e do capitalismo global. Nesta direção, propomos a presença na America Latina de uma tipologia Explica M. Weber (1979, p. 106-107): “Embora não constitua uma exposição da realidade, (o conceito de tipo ideal) pretende conferir a ela (realidade). [...] [E a seguir:] Queremos sublinhar desde logo a necessidade de que os quadros de pensamento que aqui tratamos, ideais em sentido puramente lógico, sejam rigorosamente separados da noção do dever ser, do exemplar. Trata-se da construção de relações que parecem suicientemente motivadas para a nossa imaginação e, consequentemente, objetivamente possíveis, e que parecem adequadas ao nosso saber monológico. 6 33 Soc&Conh-FINAL.indd 33 22/11/2016 12:06:26 de desenvolvimentos, ou seja, de quatro padrões de desenvolvimento que necessitam ser mais aprofundados em outro momento, pois todo esquema explicativo é necessariamente limitado, mas necessário para explicar as realidades caóticas, como nos explica Weber. Aqui, temos o Padrão de desenvolvimento por desaios econômico-inanceiros com subalternização do social ao consumo; Padrão de desenvolvimento por desaios econômico-inanceiros com indexação do social aos direitos republicanos; Padrão de desenvolvimento por direitos coletivos solidários com apoio em políticas econômicas plurais; e Padrão de desenvolvimento por direitos igualitários com apoio em políticas econômicas coletivistas. Padrão de desenvolvimento por desafios econômico-financeiros com subalternização do social ao consumo Este padrão se funda na hegemonia dos economistas neoliberais na deinição dos desaios do desenvolvimento em termos claramente econômicos e consumistas. Aqui, o social não é percebido como um sistema social que tem o seu próprio ritmo, senão como um produto de crescimento econômico. O desenvolvimento é claramente o crescimento econômico, e o papel do Estado é apoiar a reprodução do padrão de poder econômico e inanceiro internacionalista, sendo a cidadania limitada à inclusão dos indivíduos no mercado de consumo de bens e serviços. Os casos mais evidentes aqui são países como Brasil e México, mas temos igualmente que analisar com mais profundidade a expansão deste padrão em países como Argentina, Paraguai, Panamá e Nicarágua. Os economistas neste padrão de desenvolvimento creem na necessidade absoluta de guardar o mantimento do que eles chamam de “mix” da política econômica, que é organizado por três variáveis macroeconômicas – desaios de inlação, câmbio lutuante e superávit primário –, que para eles são os fundamentos do crescimento econômico. Segundo tal visão, o social é um efeito do crescimento econômico e da inserção dos indivíduos no mercado de bens e serviços de consumo. No Brasil, a aplicação deste modelo é evidente. A ação estatal foca dois pontos: primeiro, assegurar as exportações de matéria-prima, principalmente produtos extrativistas, como minério de ferro, ou agrícolas, como soja, que se destinam na maior parte ao mercado chinês; o outro ponto é a mercantilização de bens de consumo duráveis e não duráveis para as 34 Soc&Conh-FINAL.indd 34 22/11/2016 12:06:26 populações internas assegurando o ideal de inclusão pelo consumo. Os efeitos perversos desse modelo sobre a democracia e a participação cidadã preocupam, pois ampliam o interesse egoísta e desorganiza a solidariedade social. No Brasil, todas as políticas públicas e ação social são pensadas para incluir os indivíduos pelo consumo. Para isso, foi organizado um sistema de créditos para indivíduos pobres através de cartões de crédito regionais. Os cartões, cujo número chega quase a 45 milhões, propiciam às pessoas de baixa renda maior facilidade para dispor de créditos que podem chegar a dez vezes ou mais o seu salário. Os indicadores econômicos são exitosos, pois há mais de quarenta milhões de pobres consumindo mercadorias com apoio das políticas sociais, mas os indicadores sociológicos são muito preocupantes: aumento das drogas, da violência, da desarticulação familiar e da destruição ambiental. Padrão de desenvolvimento por desafios econômico-financeiros com indexação do social aos direitos republicanos Este padrão se funda igualmente na hegemonia dos economistas, como no caso anterior. Entretanto a ambição de classiicar o social como produto do crescimento econômico encontra resistência em uma memória de direitos de cidadania republicana (o trabalho, a livre expressão, os serviços públicos básicos, como educação e saúde, etc.) que ainda funciona como dispositivo de resistência ao avanço neoliberal. Aqui, podemos recordar os casos de países como Chile e Costa Rica, onde existe ainda a valorização do ideal de público, de educação pública, de saúde pública, entre outros. As grandes manifestações estudantis recentes no Chile e as preocupações com o meio ambiente em Costa Rica são expressões desta memória dos direitos republicanos. Há neste grupo, no entanto, países que, lamentavelmente, estão perdendo suas memórias culturais republicanas sob o peso do neoliberalismo como podemos recordar com as situações da Argentina e Uruguai; há, por outro lado, outros países como a Colômbia e o Peru, que passam a valorizar a memória dos direitos republicanos como uma possibilidade de escapar à tirania do padrão de colonialidade neoliberal. 35 Soc&Conh-FINAL.indd 35 22/11/2016 12:06:26 Padrão de desenvolvimento por direitos coletivos solidários com apoio a políticas econômicas plurais Este padrão se baseia em articulações amplas de agentes sociais e institucionais, não só econômicos, e que expressam certos tipos de rupturas com os padrões de poder típicos da modernização conservadora (aliança das oligarquias com o capitalismo internacional). Sob pressão dos movimentos sociais e de forças politicamente organizadas, os governos são obrigados a fazer concessões, o que impacta sobre a estrutura do Estado e das políticas redistributivistas. Aqui nos parece que as lutas coletivas por direitos solidários e amplos que redimensionam a relação política e cultural entre os homens, por um lado, e entre os homens e a natureza, por outro, são mais importantes do que os desaios econômicos pragmáticos. Para nós nos parece que os casos da Bolívia, Equador e Venezuela podem ser classiicados neste tipo de padrão de poder. No caso boliviano, o gás é importante, mas ele é um meio para o avanço do Estado plurinacional, não é uma meta em si mesma independentemente dos fatores políticos. É o contrário do que acontece, por exemplo, em um país como o Brasil. Neste tipo de relativa ruptura com a ordem oligárquica internacionalizada, como é o caso sobretudo boliviano, os desaios econômicos não se impõem à sociedade como prioridade número um, senão como um recurso intermediário que deve ser usado para inalidades éticas e políticas mais nobres e vinculado com direitos coletivos. Aqui, a possibilidade de articulação da atividade humana com a moral coletiva abre várias possibilidades de emancipação de economias plurais e solidárias. Certamente, não podemos falar aqui somente de lores, pois as pressões para imposição de um modelo de base extrativista na região são grandes e constituem ameaças políticas desestabilizadoras. Padrão de desenvolvimento por direitos igualitários com apoio em políticas econômicas coletivistas Este padrão se baseia em articulações amplas de agentes sociais e institucionais mobilizados para assegurar a predominância dos direitos igualitários sobre os interesses econômicos. Há ruptura com os interesses oligárquicos tradicionais e com a burguesia colonial, e a atividade econômica é regulada por uma burocracia implicada com os usos coletivos dos recursos disponíveis. Cuba nos parece o caso típico deste padrão de poder. 36 Soc&Conh-FINAL.indd 36 22/11/2016 12:06:26 Suas diiculdades atuais se explicam pelas grandes pressões internacionais mobilizadas pelos Estados Unidos, mas não se pode esquecer a importância das lutas sociais e valores de igualdade sociais lá implantados. Finalmente, pensamos, esta tipologia ideal tem seus méritos para destacar a complexidade dos padrões de poder e desenvolvimento e para demonstrar que os espaços da política e das lutas democráticas continuam a existir sobredeterminando os interesses econômicos e espelhando os deslocamentos do sistema-mundo sob as tensões sistêmicas e alto-sistêmicas. Mas, claro, reconhecemos os limites desta tipologia, ainda que acreditemos que deva ser objeto de investigação comparativa mais profunda. 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As teorias pós-coloniais problematizam as conquistas da modernidade, sobretudo questionam seu pseudouniversalismo, identiicando nele a vitória de um paradigma sobre outros tão legítimos quanto, ainda que expressivos de vozes que o projeto colonial silenciou. Nesse sentido, a razão pós-colonial, em termos amplos, na distinção à típica racionalidade moderna-ocidental, recusa explicações totalitárias e unívocas que pretendem um grau de abstração tal a desconsiderar os processos históricos e os contextos especíicos. Não que não seja possível ultrapassar os particularismos e, por meio dos conceitos e das teorias, articular fenômenos e acontecimentos em plano mundial, mas, até hoje, as ciências sociais, ao intentarem fazê-lo, elevaram arbitrariamente uma única experiência histórica à condição de “padrão universal” ou “modernidade” ou ainda “progresso”, subalternizando todas as demais formas de vida diferenciadas daquela tomada como norma. Tal etnocentrismo foi consequente e serviu à criação de estereótipos, desdobrando-se, no limite, à desumanização do Soc&Conh-FINAL.indd 41 22/11/2016 12:06:26 outro, com a consequência dos emudecimentos e dos etnocídios que marcam a “modernidade-colonialidade”, faces de uma mesma moeda. Pensar a razão pós-colonial é apostar nas leituras alternativas acerca das dinâmicas históricas e das elaborações culturais na constituição das sociedades bem como de seus discursos legitimadores. Tais revisões históricas e, por que não, sociológicas, são cada vez mais reivindicadas curiosamente pelos chamados intelectuais diaspóricos que, nascidos nas bordas do sistema mundial, “invadiram” departamentos das universidades centrais, mantendo-se, porém, desconfortáveis em sua “hibridez”. Na medida da intensidade dos processos de deslocamento e realocamentos dos poderes coloniais, ou melhor, neocoloniais no cenário de im do século XX e início do século XXI, mudam-se, também, as produções teóricas que desestabilizam as explicações canônicas sobre o mundo, os povos, as relações de mando e de subserviência, os modelos a se buscar alcançar, as vantagens e desvantagens destes, a efetividade de suas promessas de liberdade e igualdade, democracia e emancipação. Noutros termos, os metarrelatos liberal e marxista são questionados, evocando-se o modo como deles participaram as gentes que, muito recentemente, se constituem como sujeitos de sua própria história. Descolonizar nossa própria compreensão do mundo e das pessoas no mundo traduz um empenho epistemológico que é, como tal, simultaneamente ético e político. Silenciar vozes é, num só tempo, prejuízo à ciência em seu propósito de ofertar a ambicionada “clareza” que propugnava como sentido do labor cientíico,1 e delito em face da justiça da dignidade igual e do direito à diferença nas sociedades contemporâneas. Nem por isso, quer-se dizer que é tarefa simples vocalizar falas antes 1 É Weber que em A ciência como vocação (1993), cânone das ciências sociais, nota que diante do politeísmo de valores que marca a modernidade não poderá a ciência pleitear substituir a religião num “mundo desencantado” para pretender dizer aos homens a direção a seguir em sua vida. Ainda que sem poder deinir os rumos da humanidade, sua relevância está em fornecer aos humanos algumas bases para suas intransferíveis decisões (jamais o cientista, porém, decidirá no lugar do homem de ação). Portanto, é dever ético da ciência, diante das intenções humanas, dar a clareza sobre como alcançar os objetivos a que se propõe (clareza acerca da adequação dos meios a ins), assim como cabe à ciência também ofertar clareza aos humanos sobre as consequências previsíveis de suas ações. Segundo este argumento, cabe-nos inquirir se a metanarrativa moderna, assumida pelo próprio Weber, é realmente esclarecedora dos múltiplos caminhos e dos inindos desdobramentos que cada caminho aponta ou se o maniqueísmo Ocidente x Oriente pouco esclareceu acerca da complexidade dos processos históricos. 42 Soc&Conh-FINAL.indd 42 22/11/2016 12:06:26 emudecidas, posto que, não poucas vezes, as apropriações indébitas e redutoras do discurso alheio revelam a atualização e o reforço da subalternidade do outro. Atentando para o desaio epistemológico contido no (re)conhecimento dos valores e das pessoas que portam os valores que embasam a ação social, parece imperativo à “ciência do social” abraçar o projeto de descolonização da ciência a im de aprofundar e expandir seu potencial explicativo das realidades. Julia Almeida, em “Perspectivas pós-coloniais em diálogo”, que introduz a coletânea que coorganiza Crítica pós-colonial: panorama de leituras contemporâneas (Almeida; Miglievich-Ribeiro; Gomes, 2013), enfatiza os domínios linguísticos e culturais das distintas correntes de estudos pós-coloniais. Situa a crítica pós-colonial, primeiramente, na cena cultural de língua inglesa em seus usos do pós-estruturalismo e do marxismo, redirecionados para servir à decodiicação dos itinerários de reinvenção das subjetividades subalternas. O pós-colonial de língua inglesa evidencia, dentre outros, os trabalhos de Edward Said (2007b) acerca do “oriental” ou de Gayatri Spivak (2010) sobre o “sujeito feminino”; ainda de Homi Bhabha (2007) ao problematizar os “sujeitos coloniais híbridos”. Em que pese a convergência com as abordagens claramente europeias sob a rubrica do “pós-moderno”, a incitação da crítica pós-colonial não nasce na Europa, mas em suas margens: esse é o ponto crucial. O sujeito colonial e pós-colonial nasce, portanto, como questão em textos seminais como Os condenados da terra, publicado pela primeira vez em 1961, de Frantz Fanon, uma investigação sem equivalentes até hoje sobre as condições políticas, psíquicas e afetivas dos povos colonizados em África pouco antes das guerras de libertação. Almeida (2013) atenta ainda aos chamados estudos culturais, sob a égide de Stuart Hall, e observa uma certa demora na recepção francesa das discussões pós-coloniais que ganhavam força no mundo anglófono. Ao mesmo tempo, a autora nota que, na América Latina de língua espanhola, correntes críticas precediam as intuições ditas pós-coloniais e, há muito, problematizavam a “diferença colonial” tal como apropriada pelos colonizadores que, sob a “práxis racional da violência” (Dussel, 2000, p. 472), submetia indígenas, africanos e mestiços (estes últimos, nalguns casos) à desumanização e espoliação de todos os tipos. Ressaltando, por im, a vertente portuguesa dos estudos pós-coloniais contemporâneos, Julia 43 Soc&Conh-FINAL.indd 43 22/11/2016 12:06:26 Almeida destaca o mérito da participação de Boaventura de Sousa Santos (2004) em sua senda de fazer dialogar com as “epistemologias do Sul”, cuja recepção no Brasil é especialmente bem-sucedida. Abordo algumas das linhagens pós-coloniais, sem a pretensão da síntese à qual tais correntes se recusam, a im de problematizar, conforme o título do artigo, possibilidades e limites deste instrumental analítico na ampliação do escopo explicativo das ciências sociais que se mostra dependente de nossa capacidade de audição e tradução de vozes e saberes historicamente silenciados. Noutros termos, o pós-colonial anuncia não apenas o alargamento de métodos ou objetos, mas o empoderamento de sujeitos construtores de conhecimento. Talvez – esta é uma aposta – possamos começar então a falar de conhecimento universal porque plural, contraditório, diverso. Desfiando o novelo do pós-colonial O martinicano Frantz Fanon, formado em psiquiatria, revolucionário da Frente Nacional de Libertação da Argélia, em seu texto seminal Os condenados da terra é identiicado como um dos fundadores dos estudos pós-colonias mediante sua análise minuciosa das estratégias de violência, subordinação e desumanização que produziram/produzem “o colonizado, tornado espectador sobrecarregado de inessencialidade” (Fanon, 2005). Sua crítica radical recusa a identidade pura quer do colonizador quer do colonizado. Nem as tradições culturais nativas podem ser calciicadas, nem é o europeu uma entidade abstrata e homogênea. As identidades são sempre instáveis e conformadas como zonas de luta política, nas quais também nasce a ideia de “diferença colonial”. Para Fanon, na “reorganização dialética” de sua herança colonial, os sujeitos colonizados poderão reinventar-se em sua verdadeira humanidade: “homens novos”, portanto, em incessante constituição. Edward Said, nascido palestino em Jerusalém, tornada, depois, Israel, tendo o inglês e o árabe como seus idiomas primordiais (não sabe em qual deles teria pronunciado a primeira palavra), escrevendo, porém, apenas no primeiro, formou-se em Harvard e lecionou em Columbia, vindo a se tornar um dos mais importantes críticos literários e culturais dos Estados Unidos. Escreveu Orientalismo (2007), livro de referência do pós-colonial, 44 Soc&Conh-FINAL.indd 44 22/11/2016 12:06:26 no qual faz notar que ao criar o “oriental” como o “não-ocidental”, a episteme moderna recusou-lhe, na verdade, a existência, e retirou-lhe a humanidade. Não existe o “oriental”, denuncia, sequer existe o “ocidental”. Como Fanon ao falar do “negro”, Said endossa que os poderes coloniais forjam o colonizado como “espectador sobrecarregado de inessencialidade”, negando a complexidade das interações, das culturas e das sociedades, jamais redutíveis a qualquer estereótipo. É de Said (2007, p. 23) o clamor para que possamos realizar a crítica do humanismo “em nome do humanismo”, interpondo-nos às campanhas publicitárias massivas, sobretudo de teor bélico, que usurpam a condição humana daqueles não classiicados em “americanos” (do Norte) ou “ocidentais”, por isso, condenados à irracionalidade sob a genérica e pouco crível – do ponto de vista analítico – categoria “Islã” (daí a celebração da excepcionalidade americana ou ocidental e a maldição sobre quem não pertence a este grupo). Não há, contudo, amparo para tais clivagens numa sociologia histórica que, na contemporaneidade, se pretenda rigorosa. Nem o Ocidente nem o Oriente – também não a América ou o Islã – são termos capazes de dar conta da incomensurável teia de histórias entrelaçadas que se fazem e se refazem na dinâmica mundial. Quaisquer binarismos (Ocidente x Oriente; cultura x natureza; modernidade x tradição; Norte x Sul; masculino x feminino) subestimam a inteligência humana na compreensão da realidade, mais complexa e plural, como insistem em dizer os pós-coloniais. Said, em seu Orientalismo (2007), avança numa leitura desconstrutora dos textos colonialistas, evidenciando os processos de reiicação das dicotomias que fazem com que o real, uma vez assim apreendido, acabe por se constituir numa fábula. Stuart Hall, jamaicano, descobriu desde muito cedo a violência da colonização e os distúrbios capazes de provocar na constituição das subjetividades. Levado a estudar literatura em Oxford, é tido hoje como o pai dos “estudos culturais”, nascidos na Universidade de Birmingham, nos anos 1970. Inspira-se no conceito diférance de Derrida, que lhe serve para também rejeitar as oposições binárias forjadas na modernidade e úteis na elaboração ocidental da “diferença colonial”. Ao falar de “diferança” (um trocadilho em francês) e não “diferença” (dual), Hall percebe o jogo sistemático e ininterrupto de similaridades e diferenças entre “eus” e “outros” em cada um de nós a desconstruir a cisão modernidade 45 Soc&Conh-FINAL.indd 45 22/11/2016 12:06:26 e pré-modernidade, revelando a primeira, desde sempre, como uma “totalidade suturada” (2009, p. 58). A cultura é, diga-se de passagem, o “lócus da indecidibilidade”. Nas dinâmicas culturais, transpassam múltiplas identiicações e pertenças tais como as de classe, gênero, região, religião, de maneira que as culturas ditas modernas se realizam cotidianamente nas ambivalências, tensões e hibridizações que permeiam a história dos humanos em seus deslocamentos, diásporas, recomposições, reinvenções. O pós-colonial, para Hall, antes de se tratar de uma atitude epistemológica, é uma temporalidade real, que tornou a diférance, desde há muito existente, irrefutável. É delicado, porém, pensar que um argumento é irrefutável apenas faticamente, uma vez que não há ciência neutra e os argumentos são também sustentados normativamente. Poucos negariam que vivemos uma temporalidade capaz de promover consciências e éticas a acentuar a heterogeneidade do real, mas ninguém ousaria airmar que tal desiderato é pouco tenso e mesmo belicoso. Ainda assim, segundo Hall (2009, p. 106), a crítica pós-colonial sinaliza para: [...] a proliferação de histórias e temporalidades, a intrusão da diferença e da especiicidade nas grandes narrativas generalizadoras do pós-iluminismo eurocêntrico, a multiplicidade de conexões culturais laterais e descentradas, os movimentos e migrações que compõem o mundo hoje, frequentemente se contornando os antigos centros metropolitanos. A “virada linguística”, isto é, a descoberta da discursividade e da textualidade, do poder cultural, da ideia de representação como modalidade de regulamentação e do simbólico como fonte de identidade alargou nos estudos culturais, uma modalidade do pós-colonial, o campo das pesquisas para além do foco do materialismo histórico e dialético. As subjetividades, postas no centro das investigações, a exemplo das questões de gênero e sexualidade, raça e de etnia, marcam uma inlexão nas análises. Não por outro motivo, Stuart Hall é severamente criticado, dentre outros, por Arif Dirlik (1997), professor na Universidade de Duke, nos EUA, que o acusa da pretensão de impor o culturalismo como substitutivo universalista às metanarrativas estruturalistas que rejeita. Dirlik também acusa Hall de, ao se desfazer do capitalismo como foco de análise, robustecer o discurso conservador neoliberal. Esta percepção é a de muitos que deslegitimam 46 Soc&Conh-FINAL.indd 46 22/11/2016 12:06:27 qualquer bom insight pós-colonial, negando-se a ver alguma positividade na forma como tais abordagens poderiam enriquecer o empenho crítico nas ciências sociais contemporâneas. Stuart Hall (2009) elabora algumas respostas a Dirlik. Insistindo no caráter pós-estruturalista de seus estudos nega a pretensão universalista de que é acusada a ênfase dada às dimensões intersubjetivas da dominação e opressão humanas. Observa que o ganho analítico dos estudos culturais está no reconhecimento de que as estruturas econômicas, sociais e políticas instalam-se, também, nas subjetividades, compondo, aqui sob a inspiração de Raymond Williams (1969), também uma “estrutura de sentimentos” tão real na vida em sociedade quanto qualquer outra. Mas, se o pós-moderno de que se alimentam os estudos culturais rejeitam os “fundamentos últimos da realidade”, isto implica que sequer o capitalismo (ou a exploração da força de trabalho) poderia ser considerado a síntese das experiências humanas. Contrariando Dirlik, porém, Hall não crê nisso uma adesão ao discurso conservador. Ainda que sem pressupor sua existência como determinação última das sociedades, é plausível aos estudos culturais criticarem o capitalismo, somando-se ao esforço desconstrutor de discursos, performances, conigurações e instituições que atingem seu ápice na contemporânea sociedade capitalista. Em referência a Foucault (1979), interessa aos estudos culturais investigar um mundo construído por poderes macro e microscópicos; na atenção a Gramsci (1979), é relevante examinar as articulações contra-hegemônicas e as resistências no plano cultural, sem subestimar as agudas análises do mundo do trabalho que também dividiram o mundo em metrópoles e colônias, criando ainda não gratuitamente as “zonas de fronteira”, material e metaforicamente, que metamorfoseiam antigos em novos colonialismos. Em língua inglesa, ganha também destaque o denominado “Grupo de Estudos Subalternos do Sul da Ásia”, uma organização interdisciplinar de intelectuais indianos, dirigida por Ranajit Guha, a expressar um contexto de globalização, transculturação e diásporas, direcionada à crítica da historiograia nacionalista eurocêntrica que invisibilizou aspectos centrais da história da Índia e silenciou uma gama de vozes nativas. Nos anos 1980, o grupo cresce com os trabalhos de Partha Chatterjee, Dipesh Chakrabarty, Gayatri Chakrabarty Spivak, dentre outros. Focalizando a contribuição especíica de Spivak, nascida em Calcutá em 1942 e professora nos Estados Unidos, onde completou seus estu47 Soc&Conh-FINAL.indd 47 22/11/2016 12:06:27 dos pós-graduados em Literatura Comparada, tendo publicado, em 1985, seu famoso Pode o subalterno falar?, nota-se como a investigadora analisa a luta por autodeterminação do colonizado mediante sua produção de contradiscursos de resistência. Destaca a categoria do “subalterno”, sob a inspiração gramsciana, para se referir aos grupos desagregados – ou apenas episodicamente agregados – alvos de constantes constrangimentos impostos pelas classes dominantes que impedem sua identiicação como “ator coletivo”. Recordando Marx de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, a autora fala de camadas da sociedade excluídas do mercado e da representação política e legal, fragmentadas e deslocadas cujos projetos de consciência de classe e de transformação da consciência são descontínuos (Spivak, 2010, p. 12). Os estudos subalternos percebem, em detrimento do marxismo ortodoxo, sutis movimentos sociais e uma avalanche de protestos, não poucos avessos à lógica da racionalidade moderna sobre a qual se erigiram os conceitos de “consciência em si” e “consciência para si”. Spivak reabilita o conceito de ideologia que torna duvidosas as pretensões de “representação” e “agenciamento” do subalterno por seus autoproclamados “porta-vozes”: os intelectuais (também os intelectuais pós-coloniais). Ressalta de maneira original a “arena do instinto” (Spivak, 2010, p. 34) onde as coisas se dão, ilegível à racionalidade moderna. Há que se escutar o silêncio, esse é seu ponto. Na arrogância de traduzir a voz subalterna, não poucas vezes, intelectuais, políticos, ativistas contribuíram para reforçar o emudecimento. Melhor fariam os “bem-intencionados” intelectuais atuando ostensivamente na reestruturação do espaço social, econômico, simbólico para torná-lo permeável à presença e à intervenção das camadas subalternizadas. Elas estão silentes porque há um excesso de vozes que não são as suas. Não há que se falar pelo subalterno. Necessário é fazer com que a audiência se preste a ouvi-los do modo como se expressam. A estudiosa volta seu olhar, sobretudo, para as mulheres indianas e para a impossibilidade, quer dos intelectuais quer dos políticos, de “acessá-las” e encenar seus desejos e interesses, uma vez que intraduzíveis nos sistemas cognitivos e políticos convencionais. Desaia-nos, todos, a escutar e sentir, mais que a sofreguidão de falar no lugar delas. Homi Bhabha, também crítico literário indiano, em O local da cultura, segue apontando para a “alteridade” ou “diferença colonial” como artifícios discursivos a condenar ao silêncio pessoas e grupos. Propõe a 48 Soc&Conh-FINAL.indd 48 22/11/2016 12:06:27 desconstrução dos binarismos modernos, dentre eles, colonizador/colonizado, mediante a articulação dos “sujeitos diversos de diferenciação”, capazes de interpelar o discurso e a prática hegemônica, subvertendo e transgredindo a ordem, recriando pela “tradução” novas realidades. O poder da tradução pós-colonial da modernidade reside em sua estrutura ‘performática’, ‘deformadora’, que não apenas reavalia os conteúdos de uma tradição cultural ou transpõe valores ‘trans-culturalmente’. A herança cultural da escravidão ou do colonialismo é posta ‘diante’ da modernidade ‘não’ para resolver suas diferenças históricas, em uma nova totalidade, nem para renunciar suas tradições. É para introduzir um outro lócus de inscrição e intervenção, um outro lugar de enunciação híbrido, ‘inadequado’, através daquela cisão temporal – ou entre-tempo – [...] da agência pós-colonial. (Bhabha, 2007, p. 334). Bhabha destaca o potencial de reelaboração, pelos povos subordinados, de suas histórias reprimidas. Em consonância com a crítica pós-colonial, sabe que a cultura existe como posições negociadas e renegociadas a produzir “os sujeitos da fala”. Retomando Fanon, o crítico pós-colonial indiano enfatiza o caráter não essencialista das identidades e a impossibilidade das “tradições puras”, mas as ininterruptas “estratégias culturais e textuais de aquisição de poder” (Bhabha, 2007, p. 249). Expõe o complexo processo de identiicação entre colonizador e colonizado que evidencia a fratura de todo maniqueísmo e a irrealidade das categorias “primitivo”, “colono”, “negro”, “branco”, “árabe”, “cristão”, uma vez “rasuradas” nos confrontos tantas vezes camulados e nas criativas insurgências, a exemplo da mimese, da ironia, da civilidade dissimulada, que provocam “descoseduras” e religações contingentes, movimentos e manobras, a revelar como signo da história presente não mais as entidades ixas mas o ser “híbrido”, personagem excêntrico, ambivalente, indeterminado a sabotar a metanarrativa iluminista do universalismo hegemônico. Para Bhabha, a história contemporânea só é passível de compreensão na vistoria de suas fendas, tornadas visíveis pela crítica pós-colonial. Somos híbridos porque a história da humanidade o é. Ignorar as fraturas do projeto moderno é o mesmo que negar a história. Somente será possível postular a igualdade da condição humana (numa ordem universal metafísica) na percepção de nossas irrecusáveis diferenças e alternâncias. 49 Soc&Conh-FINAL.indd 49 22/11/2016 12:06:27 Tal sensibilidade intelectual não passa despercebida aos investigadores latino-americanos que, inspirados no Grupo Sul-Asiático dos Estudos Subalternos, funda, nos anos 1990, o Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos, que inseria a América Latina no debate pós-colonial. Entretanto, uma inlexão marca o projeto dos críticos pós-coloniais latino-americanos, a saber: 1) a consciência de que o contexto histórico das lutas por independência política no continente deram-se um século antes das guerras de libertação das colônias na África e no Sul da Ásia; 2) o reconhecimento de uma séria produção intelectual anticolonial que não poderia ser desprezada na atualização da crítica aos neocolonialismos; 3) a descoberta dos efeitos da história colonial nas subjetividades e na organização da cultura sem a ruptura com as correntes que a antecederam tais como a ilosoia da libertação e algumas teorias dependentistas, não menos, com o campo marxista heterodoxo aqui constituído. Ao im e ao cabo, o pós-colonial latino-americano diferencia-se dos demais pós-coloniais e parece poder vir a ter um fôlego ainda maior, a depender de nossa competência para o diálogo intergeracional e para o não-sectarismo. Nesse sentido, também é oportuna a menção à especiicidade das interfaces deste com a vertente portuguesa dos estudos pós-coloniais, representada, sobretudo, por Boaventura de Souza Santos (2004). O giro decolonial latino-americano Relata-nos Luciana Ballerstrin (2013) que a tradução por Santiago Castro-Gomez do inglês para o espanhol do manifesto “Colonialidad y modernidad-racionalidad”, clássico de Aníbal Quijano, originalmente publicado em 1993, na Revista Boundary, número 2, da Universidade de Duke, marca o redirecionamento da crítica pós-colonial na América Latina, agora mais centrada no acúmulo crítico do pensamento produzido na América Latina e menos nas referências aos pós-modernos Foucault e Derrida: A teologia da libertação desde os anos sessenta e setenta; os debates em ilosoia e ciência social latino-americana sobre noções como ilosoia da libertação e uma ciência social autônoma (ex: Enrique Dussel, Rodolfo Kusch, Orlando Fals Borda, Pablo Gonzáles Casanova, Darcy Ribeiro); a teoria da dependência; os debates em América Latina sobre a modernidade e a pós-modernidade dos anos oitenta, seguidos 50 Soc&Conh-FINAL.indd 50 22/11/2016 12:06:27 das discussões sobre hibridez na antropologia, na comunicação e nos estudos culturais nos anos noventa; e, nos Estados Unidos, o grupo latino-americano dos estudos subalternos. O grupo da modernidade/ colonialidade tem encontrado inspiração num amplo número de fontes, desde as teorias críticas europeias e norte-americanas da modernidade, até o grupo sul-asiático dos estudos subalternos, a teoria feminista chicana, a teoria pós-colonial e a ilosoia africana; assim mesmo, muitos de seus membros têm operado numa perspectiva modiicada de sistemas mundo. Sua principal força orientadora, contudo, é uma relexão continuada sobre a realidade cultural e política latino-americana, incluindo o conhecimento subalternizado dos grupos explorados e oprimidos (Escobar, 2003 apud Ballestrin, 2013, p. 99). Mignolo aponta que as teorias pós-coloniais das quais bebem não apenas Ranajit Guha, mas também Gayatri Spivak, Homi Bhabha entre outros estudiosos indianos não poderiam ser tão facilmente aplicadas no caso latino-americano ou se negaria a América Latina como lócus de enunciação. Fazia-se, assim, imprescindível que os intelectuais latino-americanos pudessem fundar sua especíica crítica ao ocidentalismo a partir de sua própria experiência histórica. A este projeto juntam-se diversos nomes, como Aníbal Quijano, Walter Mignolo, Fernando Coronil, Edgardo Lander, Oscar Guardiola, Freya Schiwy, Zulma Palermo e Santiago Castro-Gómez, assumindo o desaio epistemológico do “giro decolonial” ou da “modernidade-colonialidade-decolonialidade”. É de Mignolo, segundo José Jorge Carvalho (2013, p. 66), a convicção de que “tivemos nossos próprios teóricos pós-coloniais muito antes de que surgissem esses famosos acadêmicos de língua inglesa de hoje”. Nessa perspectiva, surge como especial desaio ao pós-colonial em língua hispânica e portuguesa/brasileira apropriar-se criticamente de intelectuais anticoloniais que há muito produziam ricos insights acerca do valor dos povos e culturas não-europeias e não-setentrionais. É de inegável ganho analítico reler à luz de antigas e novas problemáticas José Carlos Mariátegui, Rodolfo Kusch, Paulo Freire, Darcy Ribeiro aos quais se soma, dentre tantos, Leopoldo Zea e Enrique Dussel. Como diz também Sergio Costa (2013), tal vertente pós-colonial latino-americana opta por se chamar “decolonial”, marcando sua especiicidade em face do pós-colonial de língua inglesa, também tendem a se distanciar de qualquer empenho, tipicamente pós-moderno, de negação da ciência 51 Soc&Conh-FINAL.indd 51 22/11/2016 12:06:27 tout court. Optam por uma postura a que Costa chama de “intermediária”, que busca explicitar os entrecruzamentos entre as disciplinas cientíicas e o colonialismo europeu que possibilitou, dentre outros, a apartação entre a sociologia e a antropologia, a primeira a estudar a “sociedade moderna ocidental”, a segunda a se ocupar das “culturas pré-modernas” ou do “resto do mundo”. O questionamento da geopolítica do conhecimento, por isso, da ligação entre discurso e poder não lhes desencoraja no intento de participar (ampliando) das ciências humanas uma vez reconceituadas. Noutros termos, não se pretende renegar a ciência mas revelar a face oculta de sua constituição como tal (a “colonialidade”) no mesmo movimento em que se valorizam epistemes rebaixadas à condição de “ignorância” por largo tempo servindo assim a um projeto colonial opressor e genocida. Falamos aqui do exercício da “decolonialidade epistemológica”. Cabe à vertente decolonial, segundo Mignolo (2003, p. 35), fazer emergir o “pensamento liminar” a revelar uma “gnosiologia poderosa emergente” no continente latino-americano. Entende-se o pensamento liminar como uma “enunciação fraturada em situações dialógicas com a cosmologia territorial e hegemônica” (p. 11), um “novo medievalismo”, abrangendo um mundo de histórias locais ao mesmo tempo em que suscitando inéditas articulações da “diferença cultural” tendo a “diversalidade como projeto universal” (p. 420). Seu especíico pós-colonial é a constatação da colonialidade moderna e de sua decolonialidade em curso: A pós-colonialidade é tanto um discurso crítico que traz para o primeiro plano o lado colonial do sistema mundial moderno e a colonialidade do poder embutida na própria modernidade, quanto um discurso que altera a proporção entre locais geoistóricos (ou histórias locais) e a produção de conhecimentos. O reordenamento da geopolítica do conhecimento manifesta-se em duas direções diferentes, mas complementares: 1. A crítica da subalternização na perspectiva dos estudos subalternos; 2. A emergência do pensamento liminar como uma nova modalidade epistemológica na interseção da tradição ocidental e a diversidade das categorias suprimidas sob o ocidentalismo; o orientalismo (como objetiicação do lócus do enunciado enquanto ‘alteridade’) e estudos de área (como objetiicação do “Terceiro Mundo”, enquanto produtor de culturas, mas não de saber). (Mignolo, 2003, p. 136-137, grifo meu). 52 Soc&Conh-FINAL.indd 52 22/11/2016 12:06:27 O pensamento liminar é mais que pós-colonial ao articular questões que ultrapassam o “local” ou, noutro sentido, exigem que o global (ocidental; moderno) também se reconheça como “local” para que seja, enim, possível produzir uma rearticulação de destinos globais e histórias locais, na valorização dos saberes subalternizados (Costa, 2013, p. 267). A “modernidade-colonialidade-decolonialidade” enfatiza seu caráter pós-ocidental2 e anti-imperialista: se, no século XVI, missionários espanhóis violentaram a cultura dos povos ameríndios, hoje, os Estados Unidos, à época colônia britânica, transformaram-se no “outro imperial” (Mignolo, 2003, p. 16), por isso, uma sociologia pós-ocidental vem explicitar a ilegitimidade da nova ordem mundial e somar ao empenho de “remapear os loci acadêmicos de enunciação em função dos quais se mapeou o mundo” (p. 418). O desaio decolonial latino-americano (pós-ocidental) está em formular teorias a partir do chamado “Terceiro Mundo”, embora não apenas para o “Terceiro Mundo”, como se se tratasse de uma “contracultura ‘bárbara’ perante a qual a teorização do Primeiro Mundo teria de reagir e acomodar-se” (Mignolo, 2003, p. 417). Há que se dizer que uma sociologia não-colonizada não visa ao lugar do colonizador em que pesem os riscos de tais desvios. Ainda que haja tais intenções, porém, conforme presume Costa (2013) se está muitíssimo longe de qualquer “virada” substancial no campo cientíico mundial, em muito, expressão, da geopolítica mundial. Permito-me dizer que o status quo pouco tem a temer numa mirada realista. Ainda assim, os esforços decoloniais se fazem imprescindíveis, se não para conquistar poder mundial, ao menos para reparar injustiças históricas em seu próprio lócus de produção de conhecimento: as comunidades cientíicas latino-americanas. José Jorge Carvalho (2013) mencionou um empenho ainda a se realizar pelos decoloniais da América Latina: ouvir as vozes dos povos não contemplados sob a rubrica da “nação”, isto é, os múltiplos grupos, coletividades, etnias que não sucumbem aos marcos da modernidade iluminista e, por O conceito é do cubano Roberto Retamar que, em 1974, propôs o “pós-ocidentalismo”, que o ajudaria a perseguir melhor algumas questões. Com este, a crítica pós-colonial que, em seus inícios, não incluía as Américas, teria-as, agora, reunidas, assim como o Caribe, a África do Norte e a África subsaariana. Também, o pós-ocidentalismo contemplava desde o império espanhol após o século XVI até a emergência dos EUA. Cf. Miglievich-Ribeiro, “Pensamento Latino-Americano e Pós-Colonial: o diálogo possível entre Darcy Ribeiro e Walter Mignolo”, 2012. 2 53 Soc&Conh-FINAL.indd 53 22/11/2016 12:06:27 isso mesmo, vêm sendo até hoje, duramente, excluídos da história. O antropólogo observa que, neste ponto, não há que se rejeitar a contribuição dos pós-coloniais de língua britânica que, antes de nós, latino-americanos, izeram da etnograia uma prática acadêmica sistemática. Falta, do ponto de vista de Carvalho, aos decoloniais latino-americanos, sediados ou não nas universidades do centro, promoverem sua própria agenda etnográica, familiarizando-se com línguas e saberes de contingentes populacionais que também conformam o continente, ainda que a prática do “colonialismo interno” – expressão que busco em Pablo Casanova (2007) – mantenha-os segregados e “desumanizados”. O pós-colonialismo lusófono Como narra Bárbara dos Santos (2013), se bem que a crítica pós-colonial lusófona tenha se inspirado nos teóricos anglófonos, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos enfatiza sua especiicidade ao explicitar a condição subalterna de Portugal na Europa desde os idos da constituição do sistema moderno colonial. Para as colônias de Portugal, porém, sobretudo para os povos africanos, pouca diferença faz saber se a violência do tráico humano e da escravidão era fomentada pelos portugueses mestiços ou se serviam ao fortalecimento da economia britânica. É de conhecimento geral, aliás, que o combate ao tráico negreiro e as lutas abolicionistas conviviam com estratégias comerciais inglesas e não-inglesas de manutenção e aumento do lucro ainda que clandestinamente. Não há, portanto, nada de óbvio no fato de que a academia lusófoba pudesse produzir uma crítica mais consistente, a meu ver, da história colonial do que qualquer outra. Isto não signiica, entretanto, que não se admita que a crítica não possa nascer em qualquer parte, e mesmo acima da linha do Equador, sendo, pois, o “norte” e o “sul” tomados também em sentido igurado, reunindo o segundo visões acerca do mundo de algum modo inusitadas e provocadoras. Nesse sentido, Boaventura de Souza Santos, falando em português, a partir de Coimbra, é hoje uma das vozes com maior ressonância no Brasil, ao menos entre os igualmente críticos do “totalitarismo epistêmico”, dispostos a uma revisão das ciências sociais. Boaventura de Sousa Santos (2004) chama a razão moderna hegemônica de “arrogante” por difundir certezas que ela mesma não quer se dar 54 Soc&Conh-FINAL.indd 54 22/11/2016 12:06:27 ao trabalho de questionar; “metonímica”, posto que, tal como a igura de linguagem, ao invés de se perceber como “parte”, entre outras, de um “todo”, iguala-se falsamente à totalidade e convence a todos da inexistência das demais totalidades, cada qual a expressar uma racionalidade especíica. Também chama a razão moderna de “proléptica”, visto que criou a ilusão de um futuro predeinido e monolítico a superar necessariamente o presente, então desprezado em suas ricas experiências (p. 779-780). Assim é que denuncia a ignorância, fruto da indolência, da racionalidade moderna que não quer ir além dos pouco úteis analiticamente binômios modernos, como Norte/Sul, Ocidente/Oriente, colonizador/colonizado, rico/pobre, cultura/natureza, masculino/feminino. Para Santos (2004), a “razão preguiçosa” da modernidade hegemônica incorre cumulativamente em erros cuja revisão se recusa a fazer. A descolonização epistemológica é um esforço que poucos se veem dispostos a assumir, entretanto, é o único recurso para uma “vida decente”. Há indubitavelmente um apelo ético aos estudiosos proferido por Boaventura Santos. A racionalidade arrogante da modernidade desconsiderou formas de conhecimento do mundo tais quais a sabedoria e a sensibilidade e, com isto, produziu mais mortes do que promoveu vidas. As dicotomias rasas recriaram um mundo profundamente excludente que negava a complexidade da realidade que, como uma igura geométrica de várias faces, é capaz de se combinar com outras múltiplas iguras de incontáveis faces e se desdobrar em desenhos ao ininito. Saber-se um investigador limitado diante do ininito de possibilidades de realizações humanas é substituir a vaidade pelo “cuidado”, a prepotência pela “prudência” na análise das sociedades e das gentes. É uma reforma radical para uma sociologia nascida como disciplina na lógica positivista, produtora de “inexistências” [algo como o que não se explica é porque não existe]. Boaventura de Souza Santos enumera algumas formas de raciocínio, condicionadas pela ciência moderna, que nos impede, até hoje, de ampliar nossa compreensão da realidade social. Começa por citar a crença no “tempo linear” e seus conceitos derivados, como “progresso”, “revolução”, “modernização”, “desenvolvimento” que exigiu a negligência para com as especiicidades, as concomitâncias e as atualizações de processos históricos relegados aos rótulos de “primitivo”, “obsoleto”, “pré-moderno”, “selvagem”, “resíduo” quando eram/são experiências vivas e simultâneas a qualquer outra do mundo ocidental. Tais 55 Soc&Conh-FINAL.indd 55 22/11/2016 12:06:27 classiicações produziram e reproduziram hierarquias sustentadas, sobretudo, nas ideologias de “raça” e de “sexo”, estando no ápice da evolução da espécie o homem branco (Santos, 2004, p. 787-788). Santos (2004) aponta ainda como traço da racionalidade moderna a supremacia da escala universal sobre as escalas regionais, nacionais e locais. Algo que fez com que os saberes locais disputassem o status de ciência (universal), posto alcançado por apenas uma delas, aquela que, antes das demais, se projetou como hegemônica, a moderna-iluminista, quer em sua matriz liberal quer marxista. Mas todo global é local e vice-versa, se não pelos interesses em disputa que ao hierarquizar saberes como “universal” e “locais” emprestam apenas ao primeiro a aura de racionalidade e de verdade, de supremacia, portanto. O autor enfatiza ainda o “totalitarismo epistêmico”, que impõe a lógica produtivista, nascida na dimensão econômica e espraiada para todas as demais dimensões da vida, como padrão único de valoração do mundo e das existências. Nota que esta atitute “colonizadora” gera tal grau de cegueira epistemológica que os sociólogos passam a desconsiderar tudo que não se deine em termos de riqueza ou lucro a ponto de, em sua incapacidade de enxergar para além de tais índices de mensuração, fazerem uso indiscriminado de categorias como “atraso”, “incompetência”, “ineicácia”, “esterelidade”, “pobreza”, “ignorância” para nomear as experiências que não se enquadram no ethos capitalista. Boaventura de Sousa Santos (2004) postula o que chama de “sociologia das ausências” e “sociologia das emergências” como exercícios de descolonização epistemológica. A objetiicação do “outro” durante o longo processo da colonização, concomitante à construção do campo disciplinar da sociologia, relegou a “inexistência”, posto que à desumanização, inúmeras existências concretas subsumidas no esforço de compreensão do mundo. Em seu lugar, icaram lacunas, vazios, ausências. Reverter este ônus para o conhecimento sociológico requer o exame atento de tais ausências e a criação de situações em que tais feitos/obras, até então invisibilizados, possam se fazer visíveis/audíveis, portanto, seus artíices, os sujeitos subalternos, se projetem como enunciadores de suas próprias vozes. Por meio da “sociologia das emergências”, Santos nos incita a investigar o quanto a realidade é prenhe de possibilidades, muitas vezes, subestimadas por não terem (ainda) se completado nas expectativas da 56 Soc&Conh-FINAL.indd 56 22/11/2016 12:06:27 racionalidade hegemônica. Chama atenção para as latências, possibilidades e tendências, para o contrafático, nem por isso, irreal. Mais uma vez, contrariando a lógica moderna, não divide o mundo entre “o que existe” e “o que não existe”. Atenta, em contrapartida, ao que “ainda não existe”, mas cuja vida se realiza em gérmen. Nada para a “sociologia das emergências” é desprezível. Propõe-se, assim, uma nova semântica das expectativas: As expectativas modernas eram grandiosas em abstracto, falsamente ininitas e universais. Justiicaram, assim, e continuam a justiicar a morte, a destruição e o desastre em nome de uma redenção vindoura [...]. As expectativas legitimadas pela sociologia das emergências são contextuais porque medidas por possibilidades e capacidades concretas e radicais, e porque, no âmbito dessas possibilidades e capacidades, reivindicam uma realização forte que as defenda da frustração. São essas expectativas que apontam para os novos caminhos da emancipação social, ou melhor, das emancipações sociais. (Santos, 2004, p. 797-798). Resta ao sociólogo que adere a uma “racionalidade cosmopolita” em oposição à racionalidade moderna hegemônica o delicado trabalho da “tradução” entre os universos culturais do pesquisador e do pesquisado, ambos sujeitos da fala e da cognição. Há vários obstáculos a se enfrentar neste empenho epistemológico (e ético), e a barreira linguística não é o maior deles. Há que se saber respeitar os silêncios intraduzíveis sem obrigar os mundos a se amalgamarem. Simplesmente aceitar a “diferença”, sem temê-la e, por isso, julgá-la, classiicá-la, condená-la, sequencialmente. Sem dúvidas que o êxito da tradução está na ampliação do número de falantes, ou melhor, de “escutados” já que só fala, conforme Spivak (2010), quem é ouvido. A descolonização epistemológica, mais do que expandir a agenda de pesquisa, quer ampliar e diversiicar o reconhecimento aos produtores de conhecimento. 57 Soc&Conh-FINAL.indd 57 22/11/2016 12:06:27 Considerações finais A revisão das epistemologias modernas impõe-se em distintas ciências, não menos na sociologia. O que se quer dizer é que a sociologia, em seu intento histórico de dar inteligibilidade ao real, se não evidenciar as várias facetas da modernidade recriadas em cada território e cultura, em seus múltiplos signiicados e metamorfoses, estará inventando fábulas ao invés de cumprir com o mínimo zelo sua pretensão de contribuir para que os humanos compreendam melhor a si mesmos, os outros, seu habitat, o mundo em que vivem, enim. Noutros termos, a teleologia moderna encobriu a realidade, ou melhor, as realidades, mediante o uso da violência não raras vezes. O futuro já não pode ser imaginado como um movimento na direção da completude do projeto incompleto da modernidade [nas suas versões marxista ou habermasiana], mas deve ser pensado, antes, em termos de ‘transmodernidade’ [Dussel], de um mundo para o qual todas as racionalidades existentes possam contribuir. A socialização do conhecimento, ou seja, a superação do totalitarismo epistêmico, implica a superação da modernidade/colonialidade [...]; em síntese, o ‘mito da modernidade’ é o mito que justiicou não apenas o totalitarismo cientíico, mas o totalitarismo tout court, tal como o estamos a testemunhar no início do século XXI à escala global. (Mignolo, 2004, p. 677). Não é uma história passadista a colonialidade e sua interferência na elaboração de cosmovisões, algumas delas a se chamar de “ciência”. Os neocolonialismos persistem na divisão internacional do trabalho e dos bens do trabalho na era da globalização liberal, também na divisão entre sujeitos e objetos do conhecimento. Aníbal Quijano (2010) atenta para a “racialização” do poder, do saber e do ser capaz de destituir parte majoritária da humanidade da plena condição humana. Observa ainda como as lutas independentistas não puderam elas mesmas erradicar a força com que a colonialidade penetra corações e mentes subalternizando, além de etnias, gêneros, sexualidades. Pudemos ver que a fundação da sociologia como disciplina é debitária da culminância da racionalidade moderna na versão positivista que “cegou” suas práticas investigativas à variedade das culturas e dos modos de convivência e de organização de sociedades, na medida em que se tomava como padrão e/ou como meta, numa visão unilinear de história, a expe58 Soc&Conh-FINAL.indd 58 22/11/2016 12:06:27 riência histórica, singular, portanto, do Ocidente moderno. A sociologia crítica, contudo, em suas múltiplas vertentes, começou, no início do século XX a descontruir tais metarrelatos. Curiosamente, a primeira geração da Escola de Frankfurt – testemunha da barbárie civilizacional representada pelo totalitarismo de Estado nazista que levou à máxima “racionalização” o intento de extermínio dos judeus, sob o discurso da “pureza racial” – lançou não poucas dúvidas sobre o teor do “esclarecimento” trazido pelo Iluminismo. A segunda geração, sobretudo Habermas, foi responsável por reabilitar a razão, assegurando sua dimensão comunicativa e não meramente instrumental. Contudo, não convenceu todos de modo que, após os anos 1980, ganham especial atenção as propostas pós-modernas que não apenas rompem com a noção de teleologia da história, como expõem o caráter discursivo e estratégico de qualquer pretensão de verdade única ou de fundamentos últimos da realidade. Não se nega que o pós-colonial, sobretudo a linhagem dos “estudos culturais” e dos “estudos subalternos indianos”, beba desta fonte. No limite, desprezam a ciência e, também, a sociologia, sendo esta uma narrativa dentre outras. Mas isto não exaure a diversidade da crítica pós-colonial. A crítica pós-colonial não se confunde com o que se convencionou chamar de pós-modernismo celebratório que nega não apenas a possibilidade de soluções para os problemas mas a existência destes. Também não se trata de propor um saber do “Sul” contra o “Norte”. Não é casual que Souza Santos insista na diferença da Ibéria em face dos demais Estados-Nação europeus. Recusando a racionalidade moderna hegemônica, violenta em sua arrogância, o sociólogo português almeja uma “racionalidade cosmopolita”, prudente e compromissada com uma nova ética em prol da vida. Por sua vez, os decoloniais latino-americanos remontam à rica tradição crítica anticolonial no continente articulando-a aos desaios atuais de ruptura do silenciamento de inúmeras vozes, etnias e povos. Ao ressaltar a face oculta da modernidade, a saber, a colonialidade, nem por isso, a vertente da modernidade-colonialidade-decolonialidade, por exemplo, desfaz da cosmologia moderna que moldou os valores da liberdade, da igualdade, da democracia ou dos direitos humanos, mas apontam seus limites e contradições; sobretudo, confrontam com outras cosmovisões tão legítimas quanto (ou, quiçá, mais) em suas aspirações de “bem viver”. O movimento de descolonização epistemológica é real embora ainda frágil diante de saberes (e poderes) cristalizados nos cânones da ciência e em 59 Soc&Conh-FINAL.indd 59 22/11/2016 12:06:27 suas instituições. Ainda assim, no seio do próprio euro-norte-centrismo – a exemplo de Wallerstein, nos Estados Unidos, e de Lyotard, Foucault, Deleuze, Derrida, Guatari, na França – são produzidos estudos que desaiam as narrativas dicotômicas do mundo. Os pós-coloniais também o fazem de modo especial ao tornar sujeito da fala o “subalterno”. Não se trata, porém, da proposição de um novo paradigma. Há mais divergências entre os críticos pós-coloniais do que convergências, exceto quanto à urgência do remapeamento dos loci de enunciação na geopolítica do conhecimento. Não apostam, contudo, na substituição da metanarrativa moderna ocidental por outra, a apontar o caminho da emancipação da humanidade. Este cuidado/ cautela é o que os pós-coloniais trazem, a meu ver, de melhor, precisamente o antitotalitarismo e o antitotalitarismo epistêmico. O problema é que não pode haver um caminho uni-versal. Tem de haver muitos caminhos, pluri-versais. E este é o futuro que pode ser alcançado a partir da perspectiva da colonialidade com a contribuição dada pela modernidade, mas não de modo inverso. (Mignolo, 2004, p. 678). Há que se ampliar as vozes a participar da construção do conhecimento. Se Karl Marx mantém-se como uma referência necessária, não menos Waman Puma de Ayala e Alvarado Tezozomoc, Gloria Anzaldúa, Mohammed Abed Al-Jabri, Vine Deloria Jr. e tantos outros. É oportuno lembrar mais uma vez Said (2007, p. 78), o crítico pós-colonial autodenominado, também, “crítico do humanismo, em nome do humanismo”, que diz: Chega perto de ser escandaloso, por exemplo, que quase todo programa de estudos medievais em nossa universidade omita rotineiramente um dos pontos altos da cultura medieval, a saber, a Andaluzia muçulmana antes de 1492, e que, como Martin Bernal mostrou para a antiga Grécia, a mistura complexa das culturas europeia, africana e semítica tenha sido purgada dessa heterogeneidade tão perturbadora para o humanismo corrente. Parecerá a alguns quase uma heresia dizer que a sociologia necessita ser “refundada”, mas isto importa menos do que a impossibilidade mesma de tal projeto. Viveremos sob o imperativo da racionalidade moderna ocidental e suas valorações éticas por muito mais tempo que possivelmente alguns de nós desejariam. O preço a se pagar se manterá alto: a exclusão 60 Soc&Conh-FINAL.indd 60 22/11/2016 12:06:27 pela desumanização de contingentes populacionais inteiros a menos que renunciem à sua cosmovisão, algo como abdicar de sua própria identidade, o que é também uma modalidade de desumanização, a mais cruel. Não que exista “identidade pura” – disto já tratamos – mas falamos aqui do exercício da autodeterminação na “negociação” das identidades. A cultura, entretanto, se manterá como uma arena de luta, embates, resistências, rearranjos, que a sociologia, como disciplina, poderá manter ignorando (razão indolente) ou, ao contrário, tomar como um de seus mais sérios empreendimentos: o mapeamento das tensões, hibridismos, deslocamentos, diásporas que evidenciam as modernidades entrelaçadas e as histórias partilhadas, em suas assimetrias. 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Duas orientações analíticas estruturam a análise, combinando recursos qualitativos e quantitativos: a) uma relexão de natureza mais teórica sobre o campo da sociologia do desenvolvimento e suas inlexões nos anos 1980 e 1990. Esse esforço antecipa um “conceito” de como a sociologia formulou a noção do desenvolvimento na década de 1960, sua crítica e suas inlexões mais recentes, a partir da década de 1990, sob inluência de processos de globalização e reestruturação do capitalismo; e b) uma caracterização dos principais campos temáticos identiicados como “objetos da subárea da sociologia do desenvolvimento”, na história mais recente – anos 1990 a 2000 –, no Brasil, revelando “traços do objeto” apreendidos com base dos grupos de pesquisa do CNPq (em agosto de 2012). Este capítulo resume e atualiza parte do relatório realizado para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) “Estado das Artes na Sociologia do Desenvolvimento”, entre julho e agosto de 2012. Foi desenvolvido na vigência da bolsa de produtividade do CNPq e contou com a colaboração do pesquisador Mateus dos Santos, professor atual da Uniansa e mestre em Administração, que realizou o levantamento dos dados da Plataforma Lattes e a quem agradeço essa colaboração. 1 Soc&Conh-FINAL.indd 65 22/11/2016 12:06:27 O capítulo se estrutura em três partes: a primeira retoma os paradigmas da noção de desenvolvimento; a segunda considera as mudanças epistemológicas que enfatizam novos paradigmas, os quais reletem uma nova regulação assentada em pactos de governança para o desenvolvimento; e a terceira e última parte apresenta um repertório de temas que organizam a produção da sociologia do desenvolvimento no Brasil hoje. A análise articula, portanto, um horizonte conceitual que marca a formação da sociologia do desenvolvimento que relete sobre as mudanças institucionais de modernização da economia da política e da sociedade dos anos 1960 e suas inlexões no contexto de hegemonia liberal mais recente (anos 1990) e identiica, por outro lado, como essas mudanças se expressam na forma como a comunidade cientíica da sociologia brasileira apreende e encaminha efetivamente problemáticas atinentes ao tema, tomando por base as problemáticas dos grupos de pesquisas (GPs) registrados na plataforma Lattes do CNPq, autoclassiicados pelos seus líderes como integrantes da subárea da “sociologia do desenvolvimento”.2 Paradigmas do desenvolvimento dos anos sessenta3 A noção de desenvolvimento no Brasil aparece no horizonte da sociedade e da política nos anos sessenta como um “mito fundador” da nação brasileira moderna, inscrita na ordem urbano-industrial capitalista. A construção dessa perspectiva funda um projeto de mudança social racionalizador para a implantação de um regime econômico de crescimento e bem-estar no Brasil, implicando um repertório de problemas e dilemas crítico a este processo, a exemplo das teses do subdesenvolvimento, da teoria da modernização, das teorias críticas, da dependência e dualidade da estrutura social, entre um segmento tradicional e moderno. Foram levantados perto de 117 Grupos de Pesquisa registrados na plataforma Lattes do CNPq (GPs) que se autorreconhecem como integrantes da subárea da sociologia do desenvolvimento, mas apenas 42 integram especiicamente a área da sociologia. Os grupos de pesquisa levantados na subárea da sociologia do desenvolvimento entre 1990 e 2000 abarcam um total de 425 pesquisadores e 324 estudantes, em agosto de 2012, período de realização do levantamento. A pesquisa realizada a partir dos pesquisadores identiicou um total de 1.343 projetos nessa subárea de conhecimento no mesmo período. 3 Essa parte sintetiza e atualiza parte do artigo IVO, Anete B. L . O paradigma do desenvolvimento: do mito fundador ao novo desenvolvimento. Caderno CRH, Salvador, Centro de Recursos Humanos (UFBA), v. 25, p. 187-210, 2012. 2 66 Soc&Conh-FINAL.indd 66 22/11/2016 12:06:27 À luz de um horizonte epistemológico da economia política, a noção de desenvolvimento adquiriu um lugar hegemônico nas ciências sociais latino-americanas, no período pós-Segunda Guerra, como modernização nacional e revolução nacionalista brasileira e reforçou o papel racionalizador da sociologia como ciência diretamente associada ao processo político de modernização das relações capitalistas periféricas. Entendida como “mito”, a noção constitui-se em base cognitiva com função catalisadora a partir de cujos enunciados se atualizou o “ideário iluminista do progresso” em países da América Latina e que articulou, complexa e contraditoriamente, representantes das velhas e novas elites dominantes, no âmbito do Estado nacional, bem como as suas formas especíicas de articulação com forças externas do regime de acumulação capitalista. Segundo José Nun (2001, p. 10) o paradigma da modernização, no pós-guerra, signiicava para os economistas a busca do crescimento sustentado do produto per capita. Para os sociólogos, a difusão de valores para a racionalização, o universalismo, o desempenho, a secularização; e, para os cientistas políticos, a efetiva institucionalização de uma democracia representativa. Ou seja, articulada ao projeto nacional a sociologia desempenhava um papel racionalizador, mas também crítico à nova ordem. Essa tensão entre a racionalização do processo de desenvolvimento e sua crítica se expressa em dois núcleos de produção intelectual brasileira, no período de 1950 a 1970: a) os intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), na década de 50, próximas à teoria de “subdesenvolvimento” da Cepal; b) as críticas produzidas por intelectuais da escola paulista, apoiadas na análise dos processos de dominação e contradições das classes sociais. Para os intelectuais do Iseb, a noção do desenvolvimento correspondia à noção de modernização brasileira, traduzida num regime de mudança baseado na implantação de um processo de industrialização e urbanização, de crescimento econômico e progresso técnico acompanhado das relações produtivas com base no emprego assalariado e na elevação do padrão de vida da população, sob liderança do empresariado nacional. A tese cepalina apoiava-se no conceito de subdesenvolvimento, entendido como uma “formação histórica singular” que articulava um setor “atrasado” ao setor “moderno”, numa forma especíica de as economias pré-industriais, penetradas pelo capitalismo, passarem para formas mais avançadas. Esse projeto sustentava-se numa coalizão formada pela burocracia estatal, as elites empresariais e os trabalhadores assalariados. O Estado 67 Soc&Conh-FINAL.indd 67 22/11/2016 12:06:27 nacional assumia assim um papel protagonista do projeto do desenvolvimento, visando a gerar condições institucionais e de infraestrutura para alavancar a economia, tais como ações protecionistas aos empresários da indústria nacional (o projeto de “substituição das importações”, desde Vargas) e criação de infraestrutura, de modo a prover as condições desses investimentos, indicados no Plano de Metas (1956-1961) de Juscelino Kubitschek. No entanto, o projeto criou fortes obstáculos ao acesso democrático das demais classes sociais aos mercados de terras, trabalho e capital, ou seja, à cidadania. A literatura sociológica brasileira dos anos 1960 e 1970 discutiu de forma crítica a natureza do “desenvolvimento capitalista periférico” na América Latina e seus efeitos sobre a matriz das relações sociais excludentes, a exemplo da teoria da “massa marginal” criada em 1969 por Nun, da “teoria da dependência” (Cardoso; Falleto, 1970), e a crítica às “teses dualistas” de subdesenvolvimento e modernização da Cepal, formulada por Francisco de Oliveira em 1972, etc. No livro Dependência e desenvolvimento na América Latina (1970, p. 37), Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto consideram que a “problemática sociológica do desenvolvimento [...] implica [...] o estudo das estruturas de dominação e das formas de estratiicação social que condicionam os mecanismos e os tipos de controle e decisão do sistema econômico em cada caso particular”. Com essa formulação, Cardoso e Falleto abrem um novo esquema de interpretação do desenvolvimento fundado sob as contradições de classe, pelas quais se observam as estruturas de dominação, os conlitos de interesses e as instituições sociopolíticas. A crítica de Francisco de Oliveira à tese cepalina esclarece que os dilemas entre tradição e modernidade, implícitas à perspectiva dualista do subdesenvolvimento da Cepal, continham uma visão ético-inalista da satisfação das necessidades, contraditória já que a inalidade do capitalismo é sua própria reprodução. Para Oliveira, essa discussão tinha importância ideológica fundamental, já que a funcionalidade da dependência desconsiderava a questão principal: “A quem serve o desenvolvimento econômico capitalista no Brasil?” (Oliveira, 1976, p. 10). Assumindo a categoria marxiana de exército industrial de reserva nos países periféricos, o autor produz uma crítica ao modelo de “substituição da importação” e conclui encaminhando o dilema entre tradição e modernidade. Para Oliveira (1976, p. 28-29), 68 Soc&Conh-FINAL.indd 68 22/11/2016 12:06:27 [...] a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acumulação global [...]. Nas condições concretas descritas, o sistema caminhou inexoravelmente para uma concentração da renda, da propriedade e do poder. O processo de “modernização autoritária” do desenvolvimento brasileiro, realizado durante o período militar, envolveu, portanto, intensos debates e críticas sobre o caráter altamente concentrador do regime capitalista implantado no Brasil, restrito ao progresso técnico e ao crescimento econômico, sem alteração signiicativa da distribuição da renda e das relações políticas em favor da cidadania. Essa crítica singulariza a questão social em países caracterizados pela extrema pobreza, altos índices de desigualdades sociais e por um Estado de bem-estar incompleto, como o Brasil, que deixou à margem a maioria dos trabalhadores brasileiros, fora da proteção dos direitos do trabalho e da cidadania, reduzidos à condição de reprodução no nível de sobrevivência. Inflexões da noção do desenvolvimento nos anos 90 Contradições entre redemocratização nacional e reforma institucional liberal A sociedade civil brasileira das décadas de 1970 e 1980 reconigura-se sob a emergência de novos atores sociais coletivos: o novo sindicalismo, os novos movimentos sociais urbanos e o movimento social no campo; as pressões de organizações não governamentais, que se expandem desde 1986; a ação dos intelectuais, da Igreja, dos partidos de esquerda de oposição ao regime militar na formação de uma opinião pública crítica, o papel da imprensa, bem como a formação de um novo empresariado paulista moderno, produtor de bens de capital, constituído no governo Geisel, que começa a se autonomizar na formulação de políticas para o setor produtivo, juntando-se à maioria da sociedade brasileira na defesa de interesses “nacionais” e na formulação crítica ao projeto nacional baseado em liberdades políticas e civis e na expansão de direitos sociais universais para a cidadania. 69 Soc&Conh-FINAL.indd 69 22/11/2016 12:06:27 O Estado, nesse contexto de grande politização das relações sociais, desloca-se do seu papel de promotor do progresso técnico para expressar-se como instância processadora de conlitos dos distintos grupos de interesses da sociedade civil, que pressionam por acesso a direitos civis, políticos e sociais associados a um projeto nacional democrático mais inclusivo. A alta mobilização dos atores sociais, que caracteriza o período conhecido como de redemocratização nacional, encaminhou mudanças institucionais importantes consolidadas na Constituição Brasileira de 1988. Na contramão da historicidade dos atores sociais organizados, no Brasil na luta democrática, observa-se no âmbito internacional um movimento político de reforma do welfare, sob a hegemonia de setores liberais conservadores do capitalismo inanceiro internacional. Tal movimento contrapõe-se frontalmente ao pacto redistributivo que sustentou o estado de bem-estar em muitos países e teve efeitos graves nos países latino-americanos, como o Brasil, devido ao caráter incompleto do regime de bem-estar desses países, marcados por alta segmentação do mercado de trabalho e uma dívida social que deixou à margem dos resultados do desenvolvimento um contingente elevado de cidadãos brasileiros em condições de extrema pobreza, marcando uma estrutura social brasileira de enormes desigualdades sociais. As oposições liberais ao pacto redistributivo do modelo de bem-estar não são novas e expressam contradições clássicas entre forças políticas diversas (liberais e socialistas), que postulam por maior ou menor liberalização de mercados, maior ou menor grau de “desmercantilização” (Esping-Andersen, 1990) da força de trabalho em relação ao capital, questões que integram o tema do conlito redistributivo. O diagnóstico conservador da governabilidade para a América Latina, consolidado no relatório he crisis of democracy (1975) de Michel Crozier, Samuel Huntington e Joji Watanuki, e encomendado pela Comissão Trilateral, orientou e consolidou os interesses do capitalismo global4 no período. No âmbito interno do país produz uma contradição entre, de um lado, os princípios democráticos expressos nas lutas e avanços da cidadania política, civil e social em 1980 e, de outro lado, os princípios gestores do Estado reformado nos anos 1990, orientado segundo princípios de liberalização do mercado. 4 Articulando os países do Norte (especialmente Estados Unidos e países da Europa) e Ásia (Japão). 70 Soc&Conh-FINAL.indd 70 22/11/2016 12:06:27 Essas teses conservadoras fundamentam uma crítica veemente ao welfare como fator de ingovernabilidade dos Estados nacionais, baseada na ideia de uma incontrolabilidade da crise iscal e as tendências inlacionárias entendidas como resultado da demanda crescente dos setores sociais, e da intervenção do Estado nacional sobre a economia, que, segundo tal diagnóstico, constituem-se obstáculos ao livre mercado. Sugerem, então, medidas restritivas à democracia, através da reforma das instituições políticas em benefício do mercado, priorizando políticas de estabilidade econômica, combate à inlação e liberação de fronteiras em favor do livre trânsito de capitais, especialmente do capital inanceiro e promovendo uma desconcentração do Estado nacional pela descentralização de políticas e em benefício dos circuitos globalizados de abertura de fronteiras do capital inanceiro internacional (ver Ivo, 2001). O conlito, na década 1990, expressa, portanto, uma antinomia entre o projeto de democratização nacional, formulado pelos diversos atores nacionais em favor dos direitos da cidadania, nos anos 1980, e os atores internacionais, associados a agentes nacionais, como os Bancos Centrais e setores técnicos comprometidos com a política monetarista, a reforma e as reformas institucionais do Estado. Essa reforma rompe com as normativas emancipatórias da justiça social e do “bem-estar”, enfatizando critérios estratégicos e gerenciais no controle das contas públicas na alocação dos benefícios da assistência aos mais necessitados, com base em forte intervenção do Executivo nacional na aplicação rigorosa dos ajustes, controle e avaliação das políticas públicas e dos seus beneiciados, despolitizando o conlito redistributivo. Tal orientação produz uma ruptura da coalizão nacional-desenvolvimentista (entre Estado, elites empresariais e trabalhadores assalariados urbanos) que vigorou até os anos 1970; neutralizou o papel político desempenhado pelo Estado nacional na década de 1980, como processador dos conlitos da sociedade civil; e paciicou ou neutralizou muitas lutas encaminhadas pelos atores da sociedade civil organizada na década de oitenta, despolitizando a questão social. Apesar desses mecanismos de neutralização do conlito, os movimentos sociais no Brasil abriram-se em redes e escalas transnacionais de luta, com a formação de fóruns sociais, gerando novas arenas de negociação de direitos civis e econômicos das minorias, no âmbito das políticas de igualdade e direitos sociais. 71 Soc&Conh-FINAL.indd 71 22/11/2016 12:06:27 O Estado nacional reformado dos anos 1990 exerceu um poder coercitivo como gestor do ajuste iscal, convertendo os princípios universalistas da Constituição Brasileira de 1988, especialmente aqueles relativos à inclusão e universalidade dos direitos sociais, em ações de combate à pobreza, deslocados do universo do trabalho, pela via prioritária de programas de assistência focalizada. Essa transição deslocou a “temática do conlito”, implícita à dimensão da justiça redistributiva do desenvolvimento, para o tema “dos procedimentos”, transferindo princípios estratégicos do mercado (eiciência e competitividade) para um Estado-gerente reformado, implementados por uma burocracia estatal moderna que, nesse contexto, passa a se constituir em um dos atores fundamentais desse processo de transição do Estado nacional. No âmbito dos territórios, o processamento dos conlitos opera a passagem dos projetos de desenvolvimento local e dos interesses de múltiplos atores locais para escalas e arranjos transnacionais, e, em sentido inverso, de agentes multilaterais e corporativos sobre os territórios, num duplo movimento de externalização e internalização, que atuam na dinâmica dos territórios. O confronto de interesses de atores nos territórios gera conlito de saberes, formas de dominação, mas também um potencial inovador da ação coletiva que implica tensões e conlitos, mas, também, coalizões e acordos entre agentes nesses territórios. Assim, a desconcentração do Estado nacional em benefício do “desenvolvimento local” reforça um desenvolvimento endógeno (econômico e social, local e regional) como possibilidade inovadora, que por sua vez recoloca novos constrangimentos e dilemas, em termos das diversas escalas do local, nacional e internacional. Uma nova epistemologia do desenvolvimento Acompanha a reestruturação da sociedade, da economia e do Estado, no período da década de 1980, uma crítica epistemológica das ciências sociais sobre o caráter dedutivo e estrutural da noção de desenvolvimento entendido como “um modelo universal” único, regido pelo mercado e pela democracia liberal (ou por modelos autoritários), como se só existisse uma forma de regulação para os conlitos sociais em todas as sociedades e em todos os seus segmentos. 72 Soc&Conh-FINAL.indd 72 22/11/2016 12:06:27 Essa crítica visa superar a perspectiva homogeneizadora do desenvolvimento como modelo universal e é pensada alternativamente “[...] como um projeto de humanidade solidária inerente a todos os atores sociais com capacidade autotransformadora para o desenvolvimento”, a exemplo do que analisa Prieto (2010, p. 82). Esse paradigma articula duas tradições opostas: as lutas emancipatórias dos movimentos sociais, com forte tradição marxiana, e os novos postulados liberais de Amartya Sen baseados em oportunidades individuais, via capacitação e organização dos pobres para lutarem contra sua condição de pobreza. A crítica à abordagem estrutural que acompanhou a matriz emancipatória e identitária das lutas e movimentos sociais e a desconcentração do Estado nacional em favor de novos paradigmas do desenvolvimento local, do ponto de vista analítico, tem sido encaminhada ao menos por três perspectivas teórico-metodológicas, que consideram a dimensão da transversalidade, buscando articular as dimensões entre classe e estratiicação social; entre ator e estrutura; e entre o local e o global. Para tanto, emergem algumas categorias, como as noções de reconhecimento, as categorias da ação prática da governança local e as análises do capital social e cultural e arranjos de atores em redes, estabelecendo possibilidades analíticas que reletem novas formas de encaminhamento das relações conlitivas inerentes a arranjos locais e à formação de pactos para projetos de desenvolvimento em escala local. Os autores Axel Honneth (2002) e Nancy Fraser (1997), da teoria social crítica renovada da Escola de Frankfurt, encaminham a superação da polarização das pautas redistributivas, inerentes à noção marxiana da classe social, com as lutas por reconhecimento, associadas à dimensão weberiana do status. A. Honneth, fazendo das normas implícitas do reconhecimento o fundamento dos vínculos sociais, produz as bases de uma legítima crítica social (Géguen; Malochet, 2012, p. 46). Nancy Fraser considera que o retorno à teoria do reconhecimento acompanha o cultural turn, ou seja, a ênfase cultural das sociedades contemporâneas. Para Fraser, muitas reivindicações de justiça não exigem apenas melhorias econômicas, mas implicam reconhecimento de identidades e diferenças culturais. No entanto, ela critica as teorias do reconhecimento restritas às dimensões culturais, morais e identitárias, por desconhecerem a dimensão redistributiva da justiça. Fraser (1997) considera que a questão 73 Soc&Conh-FINAL.indd 73 22/11/2016 12:06:27 da justiça, nas sociedades contemporâneas, caracteriza-se pela articulação de dois tipos de “injustiça”: a do tipo socioeconômico, manifesta pela exploração do trabalho e pelas condições de reprodução material; e a do tipo cultural e simbólico, submetida a formas de dominação cultural, desqualiicação e invisibilidade social. Um segundo recurso analítico considera a noção de redes sociais como uma categoria mediadora com capacidade de ultrapassar a oposição metodológica entre estrutura e ação e a dependência analítica da matriz social pela racionalidade instrumental. Granovetter (1973) destaca a importância das redes sociais informais para a obtenção de empregos nos mercados de trabalho. Ele considera como, numa cadeia de relações, os laços podem responder pelo maior ou menor sucesso dos indivíduos. Dessa forma, o autor assevera que as formas de relação social são concretas e permeadas de atitudes recíprocas e podem ser produtoras de coesão social (p. 1373). Da perspectiva da organização e das formas de resistência, a articulação das organizações sociais e das associações dos movimentos sociais em escalas transnacionais, na luta antiglobalização nos anos 2000, é emblemática na constituição de um espaço público ampliado, na formação de uma cidadania cosmopolita, a exemplo dos Fóruns Mundiais. As organizações não governamentais e movimentos sociais comprometidos com a formulação de novos entendimentos e alternativas ao desenvolvimento, transnacionalizam as redes de inúmeros movimentos sociais na crítica ao regime de acumulação globalizado e ao “modelo único” (Scherer-Warren, 2003; Scherer-Warren et al., 2000; Gohn, 1985, 2008). Uma terceira dimensão da transversalidade toma por base os arranjos dos agentes no território, nas suas interfaces no âmbito das cadeias produtivas dos grandes projetos locais, considerando o seu potencial conlitivo e a possibilidade de permitir acordos. Essa proposição considera a permeabilidade de arranjos entre atores na construção de pautas políticas locais ou regionais, em cada país, de acordo com suas singularidades históricas, a exemplo da análise de Danielle Leborgne e Alain Lipietz (1991; 1992) para os contextos pós-fordistas na Itália e dos estudos de José Ricardo Ramalho (2005; 2006) ao discutir a formação de novos padrões de participação e formação de redes sociopolíticas nas localidades de instalação das atividades industriais. Esses arranjos mobilizam atores distintos, quer se considerem áreas metropolitanas ou as tipicamente rurais. Nas metrópoles, o desenvolvi74 Soc&Conh-FINAL.indd 74 22/11/2016 12:06:27 mento local e territorial contempla arranjos e interesses entre empresas industriais, trabalhadores e agentes locais. Boschi e Gaitán (2008, p. 309) destacam acordos que têm grande importância na geração do bem-estar para os assalariados, a exemplo dos “[...] acordos institucionais do mercado de trabalho [...] por meio das negociações entre os diversos atores envolvidos, no desdobramento de estratégias de qualiicação da mão de obra”. Por outro lado, o impacto de grandes projetos nacionais sobre o âmbito local e regional, promove uma reestruturação econômica e impacta sobre as condições sociais e ambientais, provocando conlito e mobilização de agentes (econômicos, sociais e políticos) em diversos espaços de governança, que envolvem arranjos sociais e políticos em diferentes níveis na solução de conlitos. Esses espaços contêm a superposição de interesses distintos de atores sobre o território e envolvem movimentos contraditórios, tanto de integração como de exclusão, ou seja, constrange as formas de reprodução das populações tradicionais e locais preexistentes e faz emergir confrontos e negociações entre atores de grandeza e forças distintas, a exemplo dos interesses das grandes empresas multinacionais ou de aplicação de grandes projetos de infraestrutura como os de energia na implantação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em contraposição à dinâmica da reprodução da vida das populações locais sobre um mesmo território. O “novo” desenvolvimento ancorado num capitalismo por expropriação promove uma nova acumulação primitiva de bens naturais e gera um grave conlito entre populações tradicionais e capitalismo contemporâneo. Analisa essas novas (“velhas”) contradições, contrapõe-se uma nova utopia e epistemologia em torno da noção do buen vivir (viver bem), que se distingue da noção de “bem-estar ocidental”, e recupera a cosmovisão dos povos e nacionalidades autóctones, envolvendo diálogo permanente e construtivo de saberes sobre formas integradoras do homem com a natureza (terra, água, ar e solo) (ver Acosta, 2012, p. 202). Como esses novos pressupostos se expressam na construção de temas centrais na produção da sociologia do desenvolvimento hoje? A resposta a essa indagação se esboça no item seguinte, com base numa caracterização das principais temáticas assumidas pela sociologia do desenvolvimento, na história recente, tomando por base o levantamento dos grupos de pesquisas (GPs) registrados na Plataforma Lattes do CNPq e autoclassiicados como integrantes da subárea da “sociologia do desenvolvimento”. 75 Soc&Conh-FINAL.indd 75 22/11/2016 12:06:27 O campo da sociologia do desenvolvimento hoje5 Essa recomposição do objeto da sociologia do desenvolvimento com seus subtemas explicita a pluralidade dos usos e apropriações diferenciadas desse campo de conhecimento nos anos mais recentes. Além disso, revela proposições efetivas do universo da pesquisa sociológica em curso, nos anos dois mil, indicando como a comunidade cientíica da sociologia identiica a noção e o sentido do desenvolvimento, como subcampo especíico. Segundo nossa categorização, a análise dos temas dos GPs resultou em oito núcleos temáticos: desenvolvimento agrário ou local (21 %); epistemologia e desenvolvimento (20 %); instituições e regulação (18 %); desenvolvimento e meio ambiente (11 %); trabalho e desenvolvimento (11 %); instituições de socialização (9 %); ciência, tecnologia e inovação (5 %); e organizações e mercado (5 %). Ou seja, são 8 temáticas (Gráico 1) que se distribuem em instituições universitárias e públicas, sendo 66 % de universidades federais e 25 % de universidades estaduais, com menor participação de grupos de pesquisa originários de universidades privadas (10 %). A maioria desses GPs (55 %) concentra-se na região Sudeste, seguida pela região Sul, com 23 %, enquanto a região Nordeste abarca 18 % dos GPs e a Centro Oeste tem participação menor, de 4 %, o que corresponde apenas a GPs sediados em centros da Fundação Universidade de Brasília (UNB). O levantamento dos dados e a sistematização das informações foram realizados pelo pesquisador Mateus Santos, a quem agradeço a colaboração. Agradeço também a Elsa Kraychete essa indicação; a deinição das categorias trabalhadas e interpretação dos dados, no entanto, são de minha inteira responsabilidade. 5 76 Soc&Conh-FINAL.indd 76 22/11/2016 12:06:27 Gráico 01 – Distribuição temática dos grupos de pesquisa (GPs) vinculados à subárea da Sociologia do Desenvolvimento – décadas de 1990 e 2000. 20 % 21 % Desenvolvimento Agrário e Local Desenvolvimento e Meio Ambiente Instituições e Regulação Organizações e Mercado 9% 11 % Ciência, Tecnologia e Inovação Trabalho e Desenvolvimento 11 % Instituições de Socialização 18 % 5% Epistemologia e Desenvolvimento 5% Fonte: Plataforma Lattes do CNPq, 1990-2000. Sistematização de Mateus Santos para esse projeto. Aprofundando a distribuição dos grupos por unidades da Federação, São Paulo é responsável por 23 % de grupos de pesquisa dedicados à subárea da sociologia do desenvolvimento, seguido pelo Rio de Janeiro (18 %) e Minas Gerais (11 %). Na região Sul, as instituições do estado de Santa Catarina abarcam 14 % dos GPs universitários nessa subárea, localizados nessa região. A relação entre grandes regiões e unidades da Federação pode ser observada no Gráico 2, a seguir. 77 Soc&Conh-FINAL.indd 77 22/11/2016 12:06:27 Gráico 02– Distribuição dos grupos de pesquisa (GPs) da Sociologia do Desenvolvimento segundo estados e regiões-Brasil, décadas de 1990 e 2000. Fonte: Plataforma Lattes do CNPq, 1990-2000. Sistematização de Mateus Santos para esse projeto. Esses oito núcleos temáticos (ver anexos) subdividem-se em problemáticas que contemplam uma transversalidade e interdisciplinaridade das fronteiras da sociologia com a economia, a ciência política e a antropologia. Organizam-se em torno de questões de caráter epistemológico, que exploram o jogo de interações entre a construção social do desenvolvimento, como resultado da sociabilidade dos atores em diferentes instâncias institucionais e na vida local (mercado, organizações sociais e políticas públicas), e a regulação política do processo de desenvolvimento econômico e social, especialmente relativa aos arranjos entre atores sociais e políticos, públicos e privados, em processos de governança e pactuação de microagendas locais e nacionais. Cada tema combina e recombina um elenco de subtemas, que podem ser observados no desdobramento analítico dos quadros temáticos anexos, orientado, seja pela perspectiva do “ator” em processos de “integração social” pela via do mercado, seja vivenciado por instituições de socialização, como a família, a escola e as políticas públicas voltadas para a capacitação dos agentes sociais e públicos. 78 Soc&Conh-FINAL.indd 78 22/11/2016 12:06:28 A ação e a sociabilidade dos atores sociais estão diretamente atreladas às formas de regulação microssociais entre o mercado, a sociedade e a vida institucional de políticas públicas, através da rede de atores em diferentes escalas territoriais. Esses territórios referem-se mais às realidades rurais e, em sua grande maioria, à agricultura familiar ou aos assentamentos da Reforma Agrária. No contexto agrário, os temas gravitam em torno do mercado, dos processos de ruralidade e identidades de comunidades tradicionais, mas também contemplam arranjos de governança local. No contexto das cidades, predominam processos de participação ou descentralização de políticas ou problemas vinculados a riscos, violência e segurança pública, ou às temáticas que se referem à descentralização das políticas públicas. As conexões e passagens entre esses âmbitos acompanham um deslocamento da ação coletiva com base no ator estratégico e na capacitação (empowerment) desses agentes segundo “oportunidades” de mercado e de políticas. Essa reorientação da emancipação social, dissociada de atores coletivos e das tensões inerentes à dinâmica dos mercados de trabalho e dos princípios redistributivos, diiculta observar a relação entre essas políticas e estruturas de dominação associadas às modalidades de inserção das famílias aos mercados, ao consumo na reprodução da cidadania e também expressa limitações das políticas de transferência de renda pela “porta da oferta”. A objetivação dessas temáticas no campo da “sociologia do desenvolvimento”, nos GPs do CNPq, colocou em evidência que a abordagem histórico-estrutural de natureza das classes, que sustentava o pacto do desenvolvimento entre um regime de acumulação e uma forma de regulação do trabalho nas décadas de 1960-1980, não se constitui hoje na referência central dos grupos que se autoclassiicam nessa subárea do desenvolvimento, especialmente naqueles constituídos nos anos 2000. Parte dos GPs levantados, especialmente aqueles associados a esforços de maior escopo teórico, agregados, nessa análise, na temática da “epistemologia do desenvolvimento”, exploram problemáticas teórico-metodológicas mais amplas, como a passagem e as relações entre os universos microssociais e macrossociais, com base na ideia de “processos” e movimentos de reconversão produtiva, além da dimensão das desigualdades sociais no campo dos estudos do trabalho. A profunda transformação da sociedade, especialmente a partir dos anos 1990, provocou um realinhamento de teses e opções de pesquisa, privilegiando a transversalidade na análise dos processos sociais. Da utopia 79 Soc&Conh-FINAL.indd 79 22/11/2016 12:06:28 do desenvolvimento como projeto nacional, encaminhado com base num pacto entre o Estado nacional, o empresariado e os trabalhadores assalariados urbanos, passou-se a uma concepção do desenvolvimento reorientada para um paradigma de desenvolvimento endógeno, local, que é acompanhado de dois processos regulatórios de natureza e sentidos diversos: a) os dispositivos da reforma do Estado inerentes ao diagnóstico conservador da governabilidade de inspiração neoliberal, em favor do mercado; b) o processo nacional de desconcentração do Estado nacional em favor de uma maior democratização do poder, com o reconhecimento das instâncias locais como as mais apropriadas para o estabelecimento de mecanismos de integração da cidadania nos espaços territorializados. Enquanto os estudos da década de 1960 e 1970 preocupavam-se, de uma perspectiva histórica e macroestrutural, com a tensão entre as classes, as limitações de assimilação e a mobilidade das famílias – questionando as relações de dominação e dependência do país na ordem mundial e encaminhando o dilema da integração social pela via do mercado de trabalho e de um sistema de proteção social, mesmo restrito aos trabalhadores assalariados urbanos –, a tematização dos GPs registrados na plataforma do CNPq, especialmente os criados no início da década 2000, enfatizam, agora, os atores sociais (agricultura familiar, movimentos sociais e agentes públicos) e sua atuação sobre o mercado, explorando a interface de uma sociologia econômica, ou da sociologia das organizações ou convenções, assentadas no paradigma de desenvolvimento local e arranjo dos agentes e atores em acordos parciais de governança. A perspectiva da mudança inerente ao processo de modernização urbano-industrial – que envolveu análises críticas sobre a heterogeneidade do mercado de trabalho e as formas de subordinação ao capital, bem como as lutas urbanas por cidadania – contempla agora, fundamentalmente, as possibilidades de mobilização e integração do mundo rural e do desenvolvimento agrário e (ou) local (urbano e rural). Focaliza um empreendedorismo urbano e rural das classes populares de rendas mais baixas, como matriz de um desenvolvimento endógeno, com base nos seguintes paradigmas: a) um paradigma institucional, dos arranjos entre atores pela via da governança, da dinâmica organizacional e da implementação de políticas descentralizadas; e b) outro de caráter solidarista, que busca romper com o determinismo das categorias econômicas sobre a construção das relações sociais, para observar as trocas econômicas como resultado dos proces80 Soc&Conh-FINAL.indd 80 22/11/2016 12:06:28 sos de sociabilidade dos agentes. Mas, considera igualmente c) processos de resistência e luta das populações tradicionais diante da acumulação do capital orientado para um capitalismo por espoliação de bens naturais a produção de commodities. Podemos destacar algumas agências de socialização nesses estudos: a família e a escola ou a educação, a empresa e as políticas públicas, bem como as comunidades territoriais tradicionais, que aparecem como matrizes da integração social e de formas de resistência dos agentes subordinados à dinâmica dos mercados, como no caso da agricultura familiar ou das políticas públicas voltadas para a inserção produtiva e para o reconhecimento da cidadania; ou os processos de resistência e lutas das comunidades locais diante do impacto dos grandes projetos. Grande parte dos estudos apoia-se em análises dos atores sobre o mercado e o consumo, a mobilização e integração das famílias e agentes econômicos e (ou) políticos, considerando teses relativas à economia popular, à economia solidária e às categorias intermediárias do capital social e das redes sociais, entendidas como “ativos econômicos”. Os estudos sobre saúde integram a perspectiva do meio ambiente e da sustentabilidade, problematizando as tensões entre natureza, sociedade e política, especialmente da perspectiva da sustentabilidade do desenvolvimento. O peso dado à “cultura” e ao “capital social” integra-se à dinâmica do desenvolvimento econômico e social pela potencialidade da “cultura” como fomento ao mercado, observando-se como elementos da cultura local e tradicional podem ser mobilizados e ajustados a projetos de desenvolvimento urbano (econômico e social) diante da crise das sociedades fordistas. Por outro lado, aqueles que integram a subtemática do “desenvolvimento e meio ambiente” analisam como as comunidades tradicionais podem ter seus direitos preservados e garantir autenticidade e autonomia cultural na preservação do meio ambiente, no âmbito de sua integração a um modelo de desenvolvimento econômico e social. Dessa perspectiva, processos de diferenciação sociocultural e políticos mobilizam estudos relativos a povos e comunidades territoriais tradicionais. No conjunto desses estudos, permanece a questão subjacente de saber até que ponto o paradigma multicultural, o do solidarismo ou o institucional, possibilita explicitar e identiicar relações de poder e imaginar formas de transformá-las em relações de “autoridade partilhada”, em processos de cooperação em diversas escalas. 81 Soc&Conh-FINAL.indd 81 22/11/2016 12:06:28 Esses paradigmas, orientados exclusivamente pela ação dos indivíduos, assentam-se na perspectiva liberal de autonomia do sujeito como condição de “empoderamento” e não se referem às condições estruturais dos determinantes da pobreza, que dizem respeito ao conlito redistributivo. Eles têm inluenciado as condições e concepções de integração social de natureza liberal, com base nos paradigmas do capital humano, do capital social e da local governance, que operam o ”mito” ou a noção de desenvolvimento pela capacitação dos “pobres” na luta para a superação de sua própria condição de pobreza. Essa tese contém uma tautologia: converte a inserção dos pobres no mercado (como produtores e consumidores) em “virtude emancipatória”. Reorienta os precários bens disponíveis das famílias populares em “ativos” (casa, terra e trabalho) e “bens de capital” do empreendimento, orientados para superar sua condição de vulnerabilidade social e de pobreza, que se produz na dinâmica assimétrica e segmentada do mercado de trabalho. Segundo o Banco Mundial, à mobilização desses “ativos” (propriedades) – que, em realidade, se constituem recursos de sobrevivência dos trabalhadores do setor informal – agregam-se outros “capitais” sociais e culturais, segundo Moser (1996), como a solidariedade familiar e as redes comunicativas, consideradas como “oportunidades” no encaminhamento das soluções para as condições de pobreza. Ou seja, as formas de resistência dos trabalhadores autônomos da economia informal são ressigniicadas como “virtudes do mercado”. Essa estratégia orientada liberal da microeconomia constitui-se na via de integração ao mercado para os “pobres viáveis”, aqueles com possibilidade de se transformarem em “cidadãos empreendedores e consumidores” no mercado. Sem desconhecer a potencialidade dos empreendimentos solidários e da microeconomia no fomento ao mercado interno e mesmo na superação de situações de pobreza, a tese da auto-organização estratégica do setor popular ativo transforma “os pobres viáveis”, aqueles inseridos no mercado, em agentes inanceiros e consumidores no âmbito local, pelo acesso ao crédito e ao consumo, assumindo também os riscos do endividamento no médio prazo pelo acesso aos créditos populares. Portanto, as variáveis societais e culturais como fontes “exclusivas” de desenvolvimento podem ocultar o caráter conlitual do mercado em favor do “mito” das “virtudes” do mercado e da “cooperação”, reorientando a 82 Soc&Conh-FINAL.indd 82 22/11/2016 12:06:29 sociabilidade do setor popular como “bens” do mercado, ou transformando quaisquer tipos de “inserção” em supostas virtudes da integração social pela via do mercado. Conclusões A “nova” sociologia do desenvolvimento, na forma como identiicada e levantada a partir das temáticas dos GPs da Plataforma do CNPq, no período de 1990 a 2000, traduz-se em universos temáticos diversos (sociologia política, sociologia do mercado, microeconomia, sociologia das organizações, do terceiro setor etc.) e em correntes teóricas muito heterogêneas, apoiando-se também em modelos interpretativos diferentes. A observação dos temas tratados pelos grupos de pesquisa nos leva a indicar ainda em caráter muito preliminar e indicativo alguns deslocamentos empíricos e semânticos, em relação às teses originais da sociologia do desenvolvimento dos anos. Do ponto de vista cronológico, pode-se admitir uma renovação da noção de desenvolvimento nos anos 2000, afastando-se das teses e críticas fundadoras da sociologia do desenvolvimento e da modernização das sociedades latino-americanas das décadas de 1960 e 1970. Hoje o mundo rural não é entendido como um mundo à parte, mas integrado e mobilizado por uma microeconomia, sustentada em cadeias produtivas articuladas e em escalas. Ele compreende dimensões da inovação e novas tecnologias que teorizam sobre a relação entre natureza, sociedade, economia e cultura, da perspectiva da sustentabilidade, e constituem-se em polo produtivo que posiciona países emergentes na ordem mundial como produtores de commodities. Processos de difusão, antes considerados a partir das cidades, referem-se, hoje, a processos de produção e reconversão produtivas próprias ao mundo rural, na produção da agricultura familiar e na produção de commodities, fazendo emergir um novo ator político global das populações tradicionais locais frente a um padrão de acumulação por expropriação de bens naturais e na geração de projetos energéticos de infraestrutura como os associados ao Programa de Aceleração do Crescimento, implementado pelo governo brasileiro. Permanecem, no entanto, os riscos inerentes às formas de integração social desses agentes como sujeitos do consumo e as limitações de um 83 Soc&Conh-FINAL.indd 83 22/11/2016 12:06:29 grande contingente de famílias integradas à economia agrária de subsistência, apenas parcialmente protegidas, com base em políticas de transferência de renda e nos limites da subsistência. Em termos de atores estratégicos, a proposta de desenvolvimento, antes fortemente orientada pelo Estado nacional como um agente racionalizador da modernização brasileira de base urbana e industrial, é reorientada hoje pela hegemonia da inanceirização do mercado. Nas décadas de 1940-1960, o padrão da integração social e das lutas por cidadania estava diretamente associado ao papel dos sindicatos como atores coletivos representantes dos trabalhadores e empresários e vinculado à estruturação heterogênea do mercado de trabalho. Hoje o projeto de integração social do estado social liberal prioriza a ação dos pobres pelo mercado (dissociado da dimensão do trabalho) e desloca o sujeito do trabalho para um sujeito do consumo, baseado na monetarização e inanceirização das políticas públicas de assistência dirigidas a segmentos dos estratos de renda mais pobres (a exemplo do crédito e das transferências de renda dos diversos programas sociais estimuladores do acesso ao consumo). Observa-se, portanto, uma disjunção analítica e política entre trabalho e capital e entre pobreza e trabalho, passando a cidadania social a ser encaminhada com base na aplicação estratégica e massiva de transferências monetárias de renda pelos governos a um amplo contingente da população, que passa a um gerenciamento direto dos governos na “boa alocação” dos benefícios dos programas sociais, no cumprimento de contrapartidas, não como resultado da inclusão produtiva qualiicada dessas famílias no mercado de trabalho, mas no atendimento às normas morais do “bom gerenciamento” dos recursos distribuídos e do “bom cumprimento” das condicionalidades, produzindo e reproduzindo um grande controle sobre classes populares pauperizadas, agora pelo vínculo institucional de alocação dos benefícios do crédito, das bolsas etc. A abordagem, em termos dos atores, considera a tendência à individualização da inserção política institucional. Ela pode variar segundo a dimensão de gênero e geração dos indivíduos e pessoas (homens e mulheres; jovens e idosos), bem como segundo o tipo de organizações ou outras formas de associações e até mesmo de famílias. Por outro lado, considera, também, os recursos que esses atores dispõem e mobilizam nas suas trocas mercantis, elementos difíceis de serem 84 Soc&Conh-FINAL.indd 84 22/11/2016 12:06:29 apreendidos com base nos dados levantados (dados os seus limites). Eles correspondem tanto a constrangimentos ou limitações do ator num sistema mais amplo de relações sociais contraditórias e assimétricas, como das deiciências no acesso à tecnologias ou à qualidade das políticas de educação e saúde, constrangedoras de oportunidades ou mesmo responsáveis por fragilidades acumuladas nas trajetórias sociais das pessoas nos ciclos reprodutivos da família, mas podem ter dimensões mais restritas e pontuais às formas de participação e inserção em programas locais. O padrão da distribuição não é linear e tem diferenças de impacto por regiões e estratos de renda, condicionadas pela coniguração do mercado de trabalho e pela dinâmica das atividades produtivas, mas também pelos ciclos reprodutivos de processos sociodemográicos mais amplos, no interior das famílias e da sociedade. Por im, as antinomias e contradições entre os ativos e o mercado de trabalho supõem pactuar direitos à proteção e à reprodução que ultrapassam as iniciativas individuais, envolvem pactos coletivos mais amplos e um papel ativo do Estado nacional como mediador da justiça redistributiva, num país com elevado grau de desigualdades sociais e de renda. Só dessa perspectiva os processos de mobilidade social ultrapassam a dimensão do tratamento individual de acesso às políticas sociais e o estágio das necessidades dos estratos mais baixos da pirâmide de renda, integrados institucionalmente às políticas públicas e ao mercado como beneiciários de políticas sociais orientadas para acesso ao crédito e ao consumo pela renda. O artigo buscou contrapor os sentidos e alcances da noção do desenvolvimento e suas inlexões na produção sociológica brasileira no contexto mais recente de virada liberal dos anos noventa e dois mil. Voltar a esses antecedentes e delinear campos de pesquisa pode ajudar a requaliicar interpretações sobre um “novo” desenvolvimento, que ultrapasse visão mais restrita de uma neomodernização restrita a elementos macroeconômicos de competitividade, estabilidade e crescimento, gerenciado pelo protagonismo do Estado nacional. Reforçar e analisar o papel do Estado nacional na construção dos novos pilares do crescimento, da redistribuição e da inovação é sem dúvida importante, mas esses esforços implicam explicitar as tensões e conlitos subjacentes aos interesses de diversas classes e segmentos, produtores das políticas, e os dispositivos cognitivos pelos quais se pode esclarecer os ho- 85 Soc&Conh-FINAL.indd 85 22/11/2016 12:06:29 rizontes do “como”, “do porquê”, mas, sobretudo, a dimensão do “para quem” se produzem as novas políticas do desenvolvimento. Referências ACOSTA, A. O buen vivir: uma oportunidade de imaginar um outro mundo. In: BARTELT, D. D. (Org.). Um campeão visto de perto. Uma análise do modelo de desenvolvimento brasileiro. Rio de Janeiro: Heinrich Böll Foundation, 2012. p. 198- 216. (Série Democracia). Disponível em: < http://br.boell.org/sites/default/iles/downloads/alberto_acosta.pdf >. Acesso em: 22 ago. 2015. BOSCHI, R.; GAITÁN, F. 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-  Socioantropologia  Teoria do conhecimento - - - -  Ensino do método INSTITUIÇÃO  Estudos qualitativos  História de vida Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias e Ambientais Centro de Estudos Rurais e Urbanos Universidade do Estado de Santa Catarina Universidade Federal de Sergipe Grupo de Estudos Rurais e Urbanos continua... 89 Soc&Conh-FINAL.indd 89 22/11/2016 12:06:29 Continuação TEMÁTICA SUBTEMAS Desenvolvimen-  Transformações to rural sociais agrário ou local  Mundo rural  Estudo local  Tecnologias sociais  Agricultura familiar  Assentamentos rurais  Gestão territorial Sociologia do desenvolvimento Integração regional e regulação Descentralização e Federalismo MÉTODO  Agricultores familiares  Agentes gestores  Interdisciplinaridade: geograia, socioeconomia e ambiente  Modernização técnica  Agricultura familiar  Educação  Regional  Ruralidades  Políticas públicas  Políticas públicas  Regional Regulação Ajuste estrutural Integração regional Mercosul Processo decisório Classes sociais Estado Mercosul Classes sociais  Relações de trabalho campo e cidade  Estudos regionais  Sociologia do desenvolvimento Desenvolvimento regional Descentralização administrativa Capacitação de agentes Estado Direitos e aspectos jurídicos Burocracia Democracia e políticas públicas ATORES OU UNIDADES ANALÍTICAS Desenvolvimen- Regulação to e setor de Reforma do Estado energia Reestruturação do setor elétrico  Análise Estrutural  Agentes públicos INSTITUIÇÃO Universidade Federal de Sergipe Universidade Federal do Vale do São Francisco Universidade Federal de Santa Catarina Universidade do Contestado -  Burocracia  Interdisciplinaridade  Aneel  Eletrobras  Estado  Análises comparativas  Abordagem histórico-estrutural Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Universidade Federal de Uberlândia continua... 90 Soc&Conh-FINAL.indd 90 22/11/2016 12:06:29 Continuação TEMÁTICA Democracia Políticas públicas Gestão pública e desenvolvimento urbano SUBTEMAS Regimes democráticos Matriz institucionalista Controle interno Racionalidade burocrática Corrupção ATORES OU UNIDADES ANALÍTICAS  Administração pública  Corrupção Avaliação de políticas  Políticas púSociologia nos problicas cessos políticos Sociologia pública Reivindicação de direitos Cidadania Cidade  Associação de bairros MÉTODO  Neoinstitucionalismo  Sociologia/ antropologia  Estudos locais: bairros Políticas sociais Saúde e ecologia Atores sociais humana Tomadas de decisão Riscos sociais Políticas de saúde Meio ambiente Meio Ambiente e sociedade Conlitos socioambientais Sustentabilidade Justiça ambiental Tecnologias sociais Cidadania Atores sociais Políticas de saúde Comunidades tradicionais MS - Conlitos socioambientais - Cultura e política Tecnologias sociais INSTITUIÇÃO Centro de Estudos de Cultura Contemporânea Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Universidade Estadual do Ceará Universidade Federal de Minas Gerais Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Minas Gerais continua... 91 Soc&Conh-FINAL.indd 91 22/11/2016 12:06:29 Continuação TEMÁTICA Riscos e sustentabilidade Tecnologias ambientais Educação ambiental Epistemologia, meio ambiente e desenvolvimento Sociologia econômica SUBTEMAS ATORES OU UNIDADES ANALÍTICAS MÉTODO Múltiplos e complexos vínculos sociais entre riscos (ambientais, alimentares, tecnológicos), suas percepções, os desaios de sua governança e as estratégias de sustentabilidade INSTITUIÇÃO Meio Ambiente Sustentabilidade Redes agroalimentares Riscos (ambientais, alimentares e tecnológicos) Governança Redes agroalimentares Governança Tecnologias ambientais Produção e inovação tecnológica Servidores Meio ambiente Sustentabilidade Conselhos Governança Conselhos Capacitação Extensão  Teoria do conhecimento  Natureza e desenvolvimento social  Produção intelectual  Globalização  Políticas Públicas  Governança  Inovação  Políticas de emprego Teoria do conhecimento Natureza e desenvolvimento Levantamento Universidade  Arenas de concertação crítico de de Brasilia  Classes: empreabordagens : sários, Estado e - neoinstitutrabalhadores cionalismo - as redes e relações sociais - estudos comparados - diferenciação do capitalismo continua... Universidade Federal de Santa Catarina Estudo de caso Instituto Federal local de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte Universidade Estadual de Londrina Universidade Federal do Paraná 92 Soc&Conh-FINAL.indd 92 22/11/2016 12:06:29 Continuação TEMÁTICA Sociologia brasileira SUBTEMAS  Estudos sobre Brasil moderno  Formação social brasileira Transformações  Mudança social do mundo rural  Processos sociais rurais e ciências sociais  Meio ambiente  Questão agrária  Globalização e agricultura  Juventude rural Modernidade e produção cultural brasileira Sociedade industrial: processos e teorias sociais Pensamento social brasileiro Sociologia brasileira: história e paradigmas  Modernidade  Produção cultural  Sociologia da cultura - ATORES OU UNIDADES ANALÍTICAS - MÉTODO Pensamento social contemporâneo  Políticas públicas  Atores sociais Reconversões produtivas Processos sociais rurais Recomposições identitárias  Museus  Produção cultural Interface antropologia e sociologia História das ideias sociológicas - -  Estudo sobre a escola de Sociologia e política – SP  Padrão de vida dos trabalhadores em SP (pioneiros)  Produção sociológica  Escola de Sociologia e Política de SP  Tendências institucionais epistemológicas e teórico-contemporâneas  Teoria da dependência e desenvolvimento  América Latina  Produção Sociologia do sociológica conhecimento  América Latina Interdisciplinar: história, sociologia, c. política, antropologia, biblioteconomia e administração pública INSTITUIÇÃO Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo Universidade Federal de Pernambuco Universidade Federal do Rio de Janeiro Universidade Federal de Alfenas Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Universidade Federal do Rio Grande do Sul continua... 93 Soc&Conh-FINAL.indd 93 22/11/2016 12:06:29 Continuação TEMÁTICA SUBTEMAS Risco e seguran-  Representações ça social  Processos sociais  Cidades  Desigualdade social Ciência e tecno- Dinâmica territorial logia Tomada de decisões Políticas públicas Governança Saúde Inovação Sociologia da ciência e tecnologia Sistemas regionais de inovação Signiicado cultural de tecnologias Transformações produzidas Desenvolvimento e violência Violência Segurança pública Memória social Cidadania Violência e cidadania Instituições de Relações entre escola socialização: fae família mília e educação Gerações Antropologia da criança Serviço social Pedagogia Direito Sociologia da infância e educação ATORES OU UNIDADES ANALÍTICAS MÉTODO INSTITUIÇÃO  Cidades  Governança Sociabilidade Políticas públicas Governança Pesquisa quali- Fundação Oswaldo Cruz -quantitativa Intersetorialidade Sistemas de inovação Pesquisa comparada Cultura e tecnologia Universidade Federal de Pernambuco - - Universidade Federal Rural do Semiárido - Pesquisas inUniversidade Feterdisciplinares deral do Espírito e transdiscipli- Santo nares Educação - - Universidade Federal de Pelotas Abordagem teórico-política Interdisciplinar: antropologia, serviço social, direito Universidade Federal de Ouro Preto Fundação Universidade Regional de Blumenau continua... 94 Soc&Conh-FINAL.indd 94 22/11/2016 12:06:29 Continuação TEMÁTICA Relações de trabalho Mercado, direito, instituição e atores Trabalho e poder Relações de trabalho, emprego e desigualdade Trabalho, sociedade e esfera pública SUBTEMAS Emancipação coletiva Sujeitos políticos Reconhecimento identitário Formas organizacionais Ativismo político e cultural Movimentos sociais (greves) Mercado de trabalho e emprego Sindicalismo ATORES OU UNIDADES ANALÍTICAS Movimentos sociais Classes populares Organizações Associativismo Lutas sociais Transformações do mundo do trabalho Identidades coletivas Associativismo e participação Mercado de trabalho Organização sindical Desigualdades Associativismo Organização sindical Sociabilidades Trabalhadores Sociedade civil Esfera pública INSTITUIÇÃO RepresentaUniversidade Feções analíticas deral Fluminense de dicotomia : rural e urbano; local e global; Tradicional e moderno Líderes sindicais Sociologia do Greves trabalho Direitos Instituições Trabalho Relações de classe Estruturas políticas Formas ideológicas e culturais Sujeito e emancipação Atuação sindical Atores locais e regionais Esfera pública Reorganização do trabalho e da produção Desenvolvimento regional Escalas local, nacional e global MÉTODO Interdisciplinaridade (sociologia, antropologia, política); teoria e prática; ciência e poder Trabalho como categoria ontológica Sociologia do trabalho Sociologia do trabalho Territórios Desenvolvimento regional Universidade Federal de São Carlos Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Universidade do Estado do Rio de Janeiro Universidade de São Paulo continua... 95 Soc&Conh-FINAL.indd 95 22/11/2016 12:06:29 Continuação TEMÁTICA Organização e mercado Organização e sociedade SUBTEMAS Mercado, relações sociais e redes de poder Mercado como construção social (relações sociais, culturais, morais e redes de poder) Rede empresa, empresários e sociedade Políticas públicas ATORES OU UNIDADES ANALÍTICAS MÉTODO Organizações Atores Interdisciplinaridade Economia e construção social Sociologia francesa Empresas Empresários Políticas públicas Estudo de redes INSTITUIÇÃO Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Universidade Federal Fluminense 96 Soc&Conh-FINAL.indd 96 22/11/2016 12:06:29 As ciências sociais latino-americanas frente à complexidade social local, regional e global Marcelo Arnold-Cathalifaud Hugo Cadenas Introdução As ciências sociais latino-americanas enfrentam hoje grandes desaios. As rápidas mudanças sociais ocorridas em ins do século passado e início do atual colocam nossas disciplinas diante de novos cenários que demandam adequada compreensão. Tal situação não só exige uma recomposição de nossas tradições conceituais e metodológicas como também novos enfoques e perspectivas. A globalização midiática, as novas crises econômicas e políticas, os movimentos sociais que ressurgem com renovado ímpeto, os problemas ambientais, a indignação frente às profundas desigualdades sociais e uma frustrada modernização, entre outros fenômenos, marcam a agenda global e demandam uma atenção sistemática. O desaio de compreender as dinâmicas sociais não é menor. Frente a este, é preciso reconhecer que nossas disciplinas, marcadas por rupturas e descontinuidades, não são suicientes. As exigências que se apresentam impõem esforços adicionais. O presente artigo dedica-se a analisar possíveis alternativas de resposta aos novos desaios. Para tanto, faz-se necessário abordar nossos pontos fortes e também nossas principais diiculdades. Só ao reconhecer esses aspectos é que se poderá avançar efetivamente rumo ao desenvolvimento equilibrado de nossas disciplinas e estar preparados para a emergência dos novos problemas dessa incerta sociedade contemporânea. Soc&Conh-FINAL.indd 97 22/11/2016 12:06:29 A exposição organiza-se em três partes. Primeiro, discute-se como as ciências sociais enfrentam a demanda por conhecimento ante os novos contextos da sociedade. Em segundo lugar, são analisados obstáculos, internos e externos, que impedem a aplicação de seus aportes. Finalmente, apresenta-se uma oferta programática, inspirada nas teorias da complexidade, para o fortalecimento das ciências sociais, com ênfase em suas aplicações na América Latina. O conhecimento sociológico e suas repercussões na América Latina As ciências sociais podem estar em um bom momento, ou diante de um grande problema. Há, atualmente, uma demanda intensa por conhecimentos sobre a sociedade, e nossas comunidades disciplinares cresceram de forma signiicativa. No entanto, as dinâmicas sociais contemporâneas avançaram muito além de sua compreensão sociológica. De certo modo, esta não é uma situação nova, muito embora, na sua atual condição, as ciências sociais não possam se justiicar com falta de maturidade ou atraso não intencionado. O século XXI encontrou nossas disciplinas em atitude titubeante. Por um lado, um otimismo frente a diversos fenômenos, como as novas conigurações políticas e sociais, a expansão e diversiicação das comunicações através das redes sociais, um lento mas crescente bem-estar econômico e incremento das camadas médias, novos horizontes de investigação e a inserção de nossa região em dinâmicas globais impensáveis há um século atrás. Por outro lado, podemos reconhecer-nos nas profundas desigualdades sociais que atravessam a região, no recrudescimento da violência nas cidades e nos campos, nas injustiças que atiçam movimentos sociais e de protesto em toda parte, em uma persistente impotência ante a corrupção política e a degradação do meio ambiente, tudo isso acompanhado de nossos modelos de crescimento econômico e praticamente formando seu núcleo. Diante desta situação dual, ao se tentar visualizar o panorama geral, é comum diagnosticar-se uma crise nas disciplinas, e o problema parece estar resolvido ao se alcançar este diagnóstico. No entanto, aparentemente não está claro nem mesmo onde estaria situada essa crise e o que se deveria fazer com ela. Isso é o que pretendemos enfatizar. 98 Soc&Conh-FINAL.indd 98 22/11/2016 12:06:29 Acreditamos que o problema que afeta nosso fazer atualmente não é o escasso reconhecimento de nossas pesquisas e pesquisadores. Embora com diiculdades e limitações, as ciências sociais latino-americanas têm ganhado espaço em nossos debates regionais e têm projeção internacional. Além disso, apesar de ocorrer sob pressão e urgência por intervir socialmente, e com ferramentas limitadas para isso, o apoio dos cientistas sociais é demandado constantemente. Tampouco o problema reside na efetividade de nossas técnicas de produção de conhecimentos e análise social, pois nossas metodologias não diferem substantivamente daquelas do resto do mundo. Nem sequer é a qualidade de nossas contribuições o nosso maior problema; ainda que as métricas internacionais, como Scimago journal e Country Rank, não nos coloquem no Top 10 de suas medições, temos consciência de que o debate em nossas disciplinas diicilmente pode ser encapsulado em indicadores desse tipo. De fato, nossa produção intelectual não é registrada com esses indicadores, apesar de seu impacto político. Ao contrário, sustentamos que nossas maiores diiculdades residem em uma inclinação e atitude frente à produção de conhecimento sobre a sociedade e suas dinâmicas, o que gerou um conlito cuja condução não tem sido adequada e cujas consequências devem ser enfrentadas propositivamente. As ciências sociais têm se aprofundado continuamente no desenvolvimento de pesquisas que extrapolam os assuntos puramente regionais. Inúmeros problemas mundiais dos quais somos parte têm sido objetos de investigação, como os dilemas do direito internacional, conlitos ambientais que ultrapassam nossas fronteiras regionais, ou as consequências globais de um capitalismo que não obedece a lógicas territoriais (Aliste; Urquiza, 2010; Birle et al., 2012; Fix-Fierro et al., 2003). Da mesma forma, pesquisadores latino-americanos têm dedicado importantes esforços para problematizar a aplicabilidade de paradigmas teóricos de maior alcance na América Latina, como é o caso da antiga tradição de interpretações e aplicações de Max Weber (Medina Echavarría, 1963; Peón, 1998), de Marx (Arico, 1982) ou Bourdieu (García Canclini, 1982; Baranguer, 2010), buscando e ensaiando novas ferramentas para a compreensão de nossa complexidade social. As maiores diiculdades têm-se localizado no plano de seu potencial explicativo sobre fenômenos não suicientemente detalhados por esses paradigmas, assim como sua conexão com uma discussão latino-americana de maior alcance. 99 Soc&Conh-FINAL.indd 99 22/11/2016 12:06:29 Paralelamente a isso, nas últimas décadas, surgiram no âmbito regional propostas originais para revitalizar o desenvolvimento disciplinar local e explorar campos e linhas não hegemônicas de pensamento. Intelectuais importantes vinculados às humanidades e aos estudos latino-americanos, agrupados em programas acadêmicos como a crítica cultural, estudos culturais ou subalternos e, mais recentemente, pós-coloniais ou descoloniais, estão inluenciando decisivamente a matriz das ciências sociais regionais (Castro-Gómez, 2000; Castro-Gómez; Grosfoguel, 2007; Costa, 2006; De Barros, 2011; Dussel, 2000; Mignolo, 2010; Quijano, 2000). A partir dessas posturas, promove-se a valorização de nossas produções e, de modo geral, das não hegemônicas, para assim superar nossa tradicional subordinação aos atuais centros produtores de ciências sociais. Em parte seguindo a tradição dos estudos da teoria da dependência (Cardoso; Faleto, 1969), outras diversas correntes de pensamento têm chamado a atenção sobre o modo como se devem observar as sociedades latino-americanas. Apesar de sua valiosa contribuição para o debate latino-americano, algumas das propostas dessas correntes, interpretadas de forma exagerada, têm afetado a qualidade de seus aportes, e, se os seus propósitos forem mal compreendidos, pode-se reforçar o isolamento de nossas produções. Esta última consequência merece toda nossa atenção, razão pela qual nos estenderemos na mesma. Aberturas necessárias às ciências sociais latino-americanas O ponto de partida de algumas posturas “latino-americanistas” é um topos geográico que tem consequências epistemológicas. Airma-se que as teorias – e inclusive técnicas de investigação – destinadas a explicar a sociedade estariam amarradas às suas localizações de origem, o que impugnaria a pretensão de universalidade de seus conhecimentos sobre uma ampla gama de fenômenos sociais. Tal objeção seria especialmente válida para a América Latina, onde convivem países muito heterogêneos, não modernizados, estratiicados, desiguais e excludentes, isto é, aparentemente muito diferentes das realidades de onde surgiu a maioria das teorias sociológicas clássicas e contemporâneas. Não considerar essas limitações seria um sinal de submissão a uma racionalidade “eurocêntrica” (Dussel, 2000; Quijano, 2000), o que não só ampliaria a incompreensão de nossas realidades, 100 Soc&Conh-FINAL.indd 100 22/11/2016 12:06:29 como também a deformaria. Em contrapartida, propõe-se contemplar nossa diversidade e particularismos regionais e deixar de interpretá-los como condições sociais incompletas ou atrasadas. A principal motivação dessas posturas parece residir em uma legítima animosidade frente a interpretações que se izeram passar por sociológicas, mas na verdade serviram como justiicação para formas de dominação e exploração com raízes estadunidenses, europeias, brancas etc. Sobre isso estamos de acordo, ainda mais tendo em vista copiosa evidência de argumentos, frutos de louváveis esforços, especialmente da intensa revisão crítica da história latino-americana. Nossas objeções a essas perspectivas, portanto, não estão voltadas ao conteúdo de suas análises e sim ao frutífero de sua estratégia. O sugerido por essas posturas conduz as ciências sociais latino-americanas ao melhor caminho? Se levarmos a sério o convite para valorizar mais, ou menos, os conhecimentos sociológicos conforme sua procedência, país ou região de origem, ica evidente tratar-se de uma proposta desproporcionada e fundada em um apego ao local (neoetnocentrismo?), incompatível com a discussão em âmbito disciplinar. O debate não poderia ser colocado nestes termos. Tal posição, como diz um antigo provérbio, levaria a jogar fora o bebê junto com a água da banheira. Uma revanche histórica ou política desse tipo bloqueia horizontes os quais convém manter abertos. Além do mais, caso se insista no valor de isolar as ciências sociais latino-americanas dos centros hegemônicos, dever-se-ia assumir com radicalidade tal postulado e aplicar seus resultados a seus próprios proponentes. Para descolonizar o descolonialismo teórico seria necessário fazer uma revisão exaustiva dos princípios e fundamentos empregados pelos mais renomados representantes desses movimentos, os quais, em sua maioria, desenvolveram seus argumentos com referência a escolas, temas e autores estadunidenses ou europeus ou se apoiaram nesses para produzir suas próprias inovações teóricas. Seria necessário apagar os rastros do caminho percorrido junto a Foucault ou à ilosoia francesa, esconder os vínculos com a Frankfurt dos anos 1960, ou renegar toda a relação genética com o debate pós-moderno da antropologia norte-americana dos anos 1970 (Cliford, 2001). Contudo, ao se fazer isso, o que restaria de pé dessas correntes? Quem ainda quisesse salvar seu projeto precisaria diferenciar entre bons e maus europeus ou norte-americanos, boas e más teorias ou conceitos. Isso levaria a um debate moral que poucos poderiam realizar sem esquivar-se, com muito esforço, de se livrar de seus excessos ideológicos. 101 Soc&Conh-FINAL.indd 101 22/11/2016 12:06:29 Acentuar que as teorias sociais não podem estar desvinculadas das condições sociais ou organizacionais nas quais se desenvolvem não constitui uma novidade. No início do século XX, Max Weber (1922) pedia às ciências sociais – certamente, com a singeleza de seu tempo – neutralidade valorativa. Sua sugestão não estava dirigida exclusivamente às ciências sociais alemãs, excluindo-se as demais. Uma ciência social ancorada em um lugar geográico e baseada em origens sociais e étnicas só foi possível na Alemanha anos mais tarde, com o triunfo do nacional-socialismo, cujas consequências são conhecidas. Ao contrário, desde o início, as ciências sociais tiveram como pano de fundo pretensões universalistas. A divisão do trabalho social de Durkheim (2001) não apresentava um tratado sobre as particularidades da região da Alsácia e tampouco O Capital de Marx (1867) se limitava às indústrias têxteis inglesas ou alemãs. Graças a isso, tanto Rússia quanto Cuba – e também China – puderam pensar-se como sociedades de classes e promover suas revoluções. Assim, o socialismo sempre se pensou como um programa para uma sociedade mundial (anticapitalista). Em suma, uma ênfase exagerada no local leva-nos irremediavelmente a nos desligarmos de uma construção disciplinar mais ampla. Diante disso, só resta às ciências sociais ser elaboradas de forma enviesada e limitada, desconectadas por iniciativa própria dos centros de pesquisa dos países desenvolvidos e ocidentais e encolhidas em um mundo próprio. Tudo parece indicar que tal estratégia conduz a um beco sem saída. Tampouco leva a um inal feliz a prática de desqualiicar a atividade cientíica por supostamente portar passaporte estrangeiro ou importar uma ideia forânea. Ainda mais quando tais críticas confundem ciência com as conhecidas e debatidas limitações dos enfoques evolucionistas, positivistas, quantitativos e causais. Tais críticas estão muito pouco informadas sobre o construtivismo e seu impacto na epistemologia contemporânea (Arnold-Cathalifaud, 1997). O universalismo teórico, bem entendido e desenvolvido, ao contrário, é constitutivo de nossas matrizes disciplinares. Esta perspectiva tem sido um incentivo a abordar a pluralidade e localidade das expressões sociais como algo comum que as permeia, e não se deve confundir com uma visão hegemônica ou com uma interpretação de diferenças como defeitos. A modernidade latino-americana certamente não se pode pressupor como uma versão imperfeita da europeia ou da estadunidense, mas sim como 102 Soc&Conh-FINAL.indd 102 22/11/2016 12:06:29 uma das manifestações de um processo que se dá sob certas condições econômicas, políticas e culturais. Por isso, tais perspectivas críticas têm razão quando enfrentam as concepções eurocêntricas, mas erram ao conferir a estas o caráter de cientíicas e, duplamente, ao desqualiicar, assim, aquelas que sim o são. Como se sabe, teorias como o marxismo, a psicanálise ou o estruturalismo, dado seu nível de abstração, têm sido capazes de abordar uma diversidade de manifestações sociais e humanas, sem deixar de considerar seus padrões comuns. Tais teorias não apagam de um lance a heterogeneidade, mas assumem a tarefa de compreender suas expressões. Nem mesmo a modelagem matemática ou a extensiva aplicação de estatísticas eliminam a diversidade social, cultural e humana; antes, têm possibilitado compreender suas variações como conexões e equivalências que passam despercebidas. Enquanto as “desobediências epistêmicas” (Mignolo, 2010) ou as “suspeitas radicais” não aportarem métodos alternativos e comprovadamente mais adequados, podem ter como efeito uma lexibilização do rigor e dos alcances de nossas investigações, levando a perderem-se de vista os critérios de aceitabilidade das explicações cientíicas – algo que convém manter em vigor. Em relação a isso, concordamos com Robles (2012) quando coloca, com propriedade, que este valioso novo pensamento latino-americano deve ser sociologicamente fortalecido, de modo a evitarem-se algumas de suas incongruências. Nesse mesmo sentido, é bastante persuasivo o conselho do sociólogo pernambucano Paulo Henrique Martins (2012), ao convidar-nos a construir uma região do conhecimento inserida em um mundo global, a qual se caracterize pela produção de campos críticos não hegemônicos, mas que promovam uma integração criativa com a sociologia clássica e moderna. Em suma, trata-se de evitar cair nas inconsistências e equívocos de um universalismo eurocentrado, mas sem sucumbir a um particularismo relativista descontextualizado e ingênuo. Em nossa visão, não se deve icar lamentando uma situação de dependência frente à hegemonia anglo-europeia (e no futuro, provavelmente, da China). Acreditamos que nossa produção regional se expressaria melhor combinando o particular (local) com o geral (global). Uma saudável mescla de “universalismo” e “particularismo” (Chernilo; Mascareño, 103 Soc&Conh-FINAL.indd 103 22/11/2016 12:06:29 2005). Para tanto, poderíamos, por exemplo, fomentar pesquisas de amplo alcance abordando a globalização e suas formas hegemônicas atuais de subordinação de países e de identidades locais; a revitalização das diversidades sociais e culturais; a proteção da memória e do patrimônio nacional; os efeitos das atuais crises inanceiras sobre a seguridade social; as novas e crescentes desigualdades e exclusões sociais; a devastação dos recursos naturais e o aquecimento global; o crescimento da violência, da insegurança e dos maus-tratos nas grandes cidades; as múltiplas formas de corrupção; as aceleradas mudanças na composição etária da população; o encolhimento dos estados, a desproteção e o individualismo; as transformações dos padrões afetivos, sexuais e de gênero; os novos movimentos sociais e a emergência das redes sociais globais; a transformação da impaciência dos cidadãos e cidadãs em indignação ou os desaios da governabilidade internacional, entre muitos outros problemas. Todos esses fatos se desenrolam no mundo contemporâneo, não são patrimônio de um país ou região, embora, evidentemente, ocorram com intensidades variadas. Na América Latina, por exemplo, pode-se produzir um grande acúmulo de relexões disciplinares sobre crises e emergências sociais vinculadas a contextos de rápido crescimento econômico, enquanto se mantêm, e até mesmo se ampliam, as enormes desigualdades sociais. Outra questão a considerar são nossas contribuições à compreensão do colapso das reformas neoliberais implantadas na região. Contribuições ao estudo da complexidade latino-americana Diicilmente poderíamos saber com segurança como a sociedade contemporânea consegue funcionar de forma descoordenada ou descontrolada, mas, seja como for, podemos airmar que não temos conhecimento suiciente. Isto ocorre porque, frente ao desaio de abordar os “grandes problemas contemporâneos”, em que nada se pode considerar ixo, imutável ou deinitivo, nossas teorias, conceitos e metodologias tradicionais se veem limitadas. Mais do que isso, colocam barreiras cognitivas ao simpliicar ou ignorar fenômenos emergentes. Se quisermos ir além de uma crítica reiterativa e puramente discursiva sobre a situação de nossas práticas, será necessário, como já airmado, 104 Soc&Conh-FINAL.indd 104 22/11/2016 12:06:29 remover os obstáculos e enfrentar os desaios cognoscitivos e práticos de nossas disciplinas. Para tanto, um ponto de partida seria identiicar os “pontos cegos” que impedem lidar com o caráter contingente dos fenômenos sociais, com seus altos graus de incerteza, sua crescente diversidade e condição heterárquica e não cêntrica. Ante tal encruzilhada, pode ser esclarecedor examinar o que ocorre em ciências que enfrentam problemas similares. Assim, entre outras sugestões com objetivos equivalentes, propomos vincular as ciências sociais com as “teorias da complexidade”, pois essas reletem melhor as transformações sociais contemporâneas, e, além disso, as contribuições que as conformam não estão limitadas a regiões ou a linhas de pensamento especíicas, sendo adotadas por renomados cientistas e intelectuais de diversas partes do planeta. Neste cenário, importantes contribuições originam-se em nossa região, especialmente entre aqueles que destacam sua diversidade e versatilidade, isto é, seu caráter policêntrico. Esses, em sua maioria, estão sintonizados com as correntes renovadoras, como González Casanova (2004, 2009), ou provêm de centros permeados pelo pensamento de Edgar Morin (2001) e de Humberto Maturana (Maturana; Varela, 1973) ou daqueles sob a inluência luhmaniana da teoria dos sistemas sociais (Rodríguez; Arnold, 1991). Entre os primeiros, o sociólogo Julio Mejía (2009), por exemplo, airma que na América Latina se participa da mudança epistemológica fundada nas teorias da complexidade; o antropólogo Arturo Escobar (2003) recomenda não enfatizar o particularismo frente a um falso, ou incompleto e deformado universalismo eurocentrado, e sim enfocar a multiplicidade; ilósofos como Castro-Gómez e Grosfoguel (2007) propõem deinir as estruturas sociais utilizando linguagens que considerem a diversidade, reconheçam lógicas autônomas e permitam abordar processos heterogêneos e múltiplas temporalidades. Em conjunto, esses autores consideram aproximações que combinam o abstrato e universalista com o reconhecimento de particularidades regionais ou históricas. Na atual fase da globalização, a sociedade não pode ser reduzida a uma de suas manifestações regionais, assim como não é razoável propor uma compreensão sociológica da América Latina prescindindo de seus vínculos com outras regiões. De fato, o pensamento latino-americano não é patrimônio de nenhum país em particular. Ademais, dedicar-se a desenvolver conhecimento sobre a sociedade de maneira isolada leva a 105 Soc&Conh-FINAL.indd 105 22/11/2016 12:06:29 descuidar o fato de que processos representados como contraditórios em nível local ou micro são complementares ou paradoxais no nível global ou macro – de que outra forma podemos compreender nossas crescentes e diversiicadas dependências? Quanto mais conhecemos nossos objetos de interesse, menos podemos considerá-los de forma isolada. Muito menos pode a modernidade europeia evadir-se de seu surgimento a partir do traumático encontro com um “novo mundo”, como aponta persuasivamente Dussel (2000). O que foi dito antes reforça a impressão de ser sem fundamento a suposição de que as explicações sobre a sociedade, seus problemas, mudanças ou evolução devam ocorrer a partir de determinados países ou regiões; tampouco a condição latino-americana ou a da modernidade europeia estão circunscritas a seus limites. Uma explicação estrutural contundente da sociedade mundial já foi teorizada e seus antecedentes explorados por Wallerstein (1974) e Luhmann (1971), e ambos coincidem em situar sua origem em processos que surgem entre os séculos XV e XVI na Europa (ver Stichweh, 2000). Certamente, a desejada revitalização das ciências sociais regionais não ocorrerá como um processo natural, que só o tempo produzirá. Os impactos de uma atitude de espera são equivalentes ao que ocorre em uma escada rolante: todos avançam, mas as distâncias que os separam se mantêm. Por isso, nada é mais inadequado do que permanecer em uma crítica vazia ou submeter-se aos padrões cientíicos sem intervir em sua discussão. Diante disso, nos animamos a apresentar nossa proposta programática. Posicionar a dimensão social da complexidade no centro dos debates tem muitas vantagens. Dentre essas, uma observação sistêmica, não reducionista, dos fenômenos sociais e uma postura epistemológica construtivista, isto é, desontologizada. Estas qualidades constituem um convite persuasivo a alinhar pesquisas e conigurar um campo paradigmático alternativo à hoje hegemônica perspectiva tecnocrática-economicista da sociedade, fundada em pressupostos como a escassez ou o equilíbrio, os quais respondem a um tipo reducionista de ciência e a uma práxis tradicional e conservadora na política pública. Não cabe nesta apresentação expor em detalhes a estrutura e os alcances da abordagem da complexidade. No entanto, colocando de forma sucinta, a partir dessa perspectiva revela-se, sem surpresa, o incremento acelerado das atuais e potenciais conexões dos componentes associados à diferenciação 106 Soc&Conh-FINAL.indd 106 22/11/2016 12:06:29 da sociedade, processos que possibilitam estados emergentes, imprevistos e instáveis cujos funcionamentos não são determinados por centros ou hierarquias. Tais manifestações, recorrentes na sociedade contemporânea, diicultam sua compreensão e a previsão de suas tendências. Grande parte dos fenômenos sociais que se comportam como sistemas complexos – oscilando entre ordem e desordem – são considerados caóticos. Por um lado, pequenas mudanças provocam enormes transformações; por outro, grandes mudanças podem ser imperceptíveis no curto prazo. Seus comportamentos se auto-organizam em redes internas de inter-relações, e, sendo assim, uma decomposição analítica de cunho positivista não permitiria compreendê-los. Do ponto de vista tradicional, a excessiva geração de incerteza social é interpretada como expressão de desvios e anomalias que devem ser corrigidas controlando suas causas. Sob a perspectiva da complexidade, ao contrário, são os efeitos de estruturas e processos relacionados entre si que, nessa própria relação, geram novos estados. Nessa visão, os conlitos não são avaliados como problemas, nem as mudanças como diiculdades; tampouco a integração e a estabilidade aparecem como metas universais. Tem-se por suposto que a evolução da sociedade acompanhada de baixos graus de conformismo e de intensas disputas oferece melhores oportunidades ao conlito e este, por sua vez, à evolução social. Essa perspectiva, dos sistemas sociais complexos, está aberta às mais diversas descrições da sociedade, as quais explica em função da atuação de observadores, estabelecendo-se hipóteses sobre as prováveis tendências ou situações. A partir de seus fundamentos, podem-se distinguir as formas como se irão compondo, ampliando e diversiicando as “realidades” sociais, as quais, por outro lado, são reintroduzidas como informação, de modo a levarem-se em conta comunicações geralmente excluídas das correntes centrais da sociedade, isto é: incluindo a presença do que antes estava ausente. Santos (2006, p. 26) parece apontar nesse mesmo sentido ao referir-se às perspectivas da “outredade”. Aportes como esse também contribuem para redirecionar processos sociais, pois ampliam a capacidade relexiva da sociedade – especialmente de seus grupos emergentes – e, com isso, esclarecem e democratizam sua tomada de decisões. Tais aberturas, por sua vez, distanciam-se das concepções essencialistas ou de pensamento único que impregnam as concepções ideologizadas e normativas da sociedade (com as quais se tenta neutralizar a falta de conhecimentos). 107 Soc&Conh-FINAL.indd 107 22/11/2016 12:06:29 Colocar o foco de observação sobre a complexidade social implica ter em conta os distintos planos que compõem a sociedade, de modo que a distinção sujeito/objeto perde sua função. Tanto a “realidade” como sua observação são referenciadas, ou melhor, autorreferenciadas. Isso permite perceber atividades que são estruturalmente admissíveis, embora semanticamente indesejáveis, como, por exemplo, as desigualdades programadas por meio de soisticados mecanismos de inclusão, ou os danos ambientais provocados por processos industriais que garantem ou prometem bem-estar. Permite, ainda, a própria inclusão da perspectiva da complexidade como um objeto de observação para a mesma. O paradigma da complexidade para as ciências sociais implica, certamente, dispositivos de investigação e instrumentos que considerem – ou modelem – diferentes planos e temporalidades na sociedade; implica também aceitar, sem sucumbir, a constituição paradoxal de seus processos. Por exemplo, o fato de a sociedade mostrar-se, ao mesmo tempo, a mesma e distinta para diferentes observadores torna fundamental considerar as referências que produzem tais diferenças. Para alcançar estes propósitos, fomentam-se a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade como “novos modos de conhecimento”. Assim, outro resultado dessa renovação é a permeabilidade entre as perspectivas que lidam com a unidade subjacente ao múltiplo e vice-versa. Conclusões Nos sentidos antes mencionados, o paradigma da complexidade apega-se aos valores da ciência e suas aspirações universalistas. Isso não se traduz como indiferença diante do que se quer explicar, menos ainda como estímulo ao abandono do interesse pela mudança ou descuido da valorização do conhecimento aplicado. De fato, compreender a complexidade implica atuar com mais propriedade e efetividade ante as condições da sociedade e, assim, contribuir para saldar a dívida com os agentes de mudança que esperam de nossas disciplinas tecnologias para a transformação e, também responder à crítica em todo o planeta. No entanto, e antes de tudo, para tal reposicionamento de nossas disciplinas ter início e fazer parte de nossas expectativas, é preciso remover os obstáculos, internos e externos, que nos impedem de aproveitar a glo- 108 Soc&Conh-FINAL.indd 108 22/11/2016 12:06:29 balização de uma ciência, a qual já não se diferencia com base em critérios regionais ou culturais, mas sim em disciplinas e temas de investigação (Luhmann, 1996). Incorporar-se a tais critérios e expor nossas produções a um mundo mais global faz sentido, na medida em que, como apontamos antes, traz contribuições à sociedade, seja para uma intervenção reparadora ou mudança emancipatória, seja para sua compreensão teórica. Caso nossos argumentos sejam aceitos, independentemente de ser ou não respaldada sua opção pela perspectiva da complexidade, deveríamos recompor nossas posições com uma rápida integração às novas discussões das ciências e promover a apropriação crítica e criativa de seus debates através de nossas organizações acadêmicas regionais. Para tanto, estão disponíveis suas centenárias universidades públicas, os novos centros acadêmicos, associações como a Alas, entre outras, e especialmente eventos, cujas convocatórias e temas são uma clara expressão das complexidades que demandam ser compreendidas, antes de se atuar cegamente sobre elas, e nas quais o simples e o isolado são cada vez mais escassos. Finalizando, nosso itinerário sintetiza-se em um apelo para aproveitarem-se as oportunidades e estreitarem-se os laços, de modo a compartilhar a aspiração de posicionar ativamente nossas produções no nível global, de forma coletiva e colaborativa e, sobretudo, a não voltar as costas à ciência que caracteriza o século XXI, nem às urgências de informação e de transformação que reclama nossa sociedade. Referências ALISTE, E.; URQUIZA, A. (Ed.). Medio ambiente y sociedad. Conceptos, metodologías y experiencias desde las ciencias sociales y humanas. Santiago de Chile: RIL Editores, 2010. ARICO, J. Marx y América Latina. México D. F.: Alianza Editorial, 1982. ARNOLD-CATHALIFAUD, M. Introducción a las epistemologías sistémico/ constructivistas. Cinta de Moebio, Revista de Epistemología de Ciencias Sociales, Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Chile, Santiago de Chile, n. 2, p. 88-95, 1997. BARANGER, D. La recepción de Bourdieu en Argentina. 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Mohr (Paul Siebeck), 1922. 112 Soc&Conh-FINAL.indd 112 22/11/2016 12:06:30 Parte II Produzir conhecimento na América Latina: políticas, democracia, inclusão Soc&Conh-FINAL.indd 113 22/11/2016 12:06:30 Soc&Conh-FINAL.indd 114 22/11/2016 12:06:30 A dimensão econômica e social da política brasileira de ciência, tecnologia e inovação Fernanda A. da F. Sobral Introdução O capítulo tem como objetivo mostrar a dimensão econômica, expressa na ideia de competitividade e de fomento à inovação tecnológica, e a dimensão social, expressa na ideia de inclusão social e de transferência do conhecimento para a sociedade na atual política de ciência, tecnologia e inovação. A abordagem dessa questão será feita inicialmente por meio da análise mais geral das tendências das sociedades contemporâneas, tais como globalização, democratização, revolução dos meios de comunicação e informação e sustentabilidade ambiental que terminam se reletindo nas novas tendências de fomento à produção do conhecimento como internacionalização, interdisciplinaridade, aplicabilidade e interação com a sociedade. Depois se pretende analisar, no Brasil, os principais desaios colocados pela Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação para o período de 2012 a 2015, os programas prioritários e as tendências do fomento à pesquisa cientíica e tecnológica, por meio da implementação de alguns programas de fomento como os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs). Finalmente, pretende-se apontar alguns resultados desse programa e algumas diiculdades no fomento com a intenção de evidenciar que, embora a dimensão social esteja presente na política brasileira de ciência, tecnologia e inovação (CT&I), é a dimensão econômica que se mostra predominante, ainda que a maior associação entre a dimensão econômica e social seja uma exigência das sociedades democráticas e globalizadas. Soc&Conh-FINAL.indd 115 22/11/2016 12:06:30 Tendências das sociedades contemporâneas que afetam a política de CT&I e o fomento Entre as condições socioeconômicas que inluenciam as políticas de ciência, tecnologia e inovação na atualidade e, consequentemente, o fomento e a produção de conhecimento, podem-se destacar o processo de globalização, a revolução proporcionada pelas novas tecnologias da informação e comunicação (TICs), a democratização da sociedade e a preocupação com a sustentabilidade ambiental. Embora se possa falar da globalização pela sua dimensão propriamente econômica, enquanto integração de commodities, capital e dos mercados de trabalho, entende-se também que esse processo inluencia as relações sociais da humanidade de um modo mais amplo. Segundo Sassen (2010), o processo de globalização envolve tanto dinâmicas relativas à formação de processos e instituições explicitamente globais como outras dinâmicas que induzem a processos dentro de territórios e domínios institucionais, que foram construídos nacionalmente e que levam ao aumento das conexões e da interdependência além-fronteiras. Contudo, a economia global não se ramiica da mesma forma em todos os lugares. Há um núcleo (ou núcleos) do qual todas as economias mundiais são dependentes (Lombas, 2013). Como airma Castells (2000), esse núcleo globalizado contém os mercados inanceiros, o comércio internacional, a produção transnacional e, até certo ponto, ciência e tecnologia, e mão-de-obra especializada. É por intermédio desses componentes estratégicos globalizados da economia que o sistema econômico se interliga globalmente. A própria revolução provocada pelas TICs é outro fator que pode ser visto como um dos resultados do processo de globalização, mas cujo desenvolvimento e alastramento tem também permitido a aceleração desse processo. Cada vez mais as instituições de CT&I e os atores nelas envolvidos estão conectados pelo mundo afora, reduzindo as distanciais espaciais e aumentando as conexões. Ainda que o processo de globalização não se limite apenas à esfera econômica, ele tem contribuído para o modelo de inovação tecnológica restrito à dimensão econômica e para a internacionalização da produção de conhecimento. A globalização estimulou a abertura do comércio ao mercado internacional, que, por sua vez, aumentou a competitividade, 116 Soc&Conh-FINAL.indd 116 22/11/2016 12:06:30 obrigando as empresas a produzirem inovações tecnológicas, considerando o conhecimento especializado e arranjos cooperativos com universidades, governo e outras empresas (Sobral, 2011). Há também uma mudança no papel do Estado, diminuindo suas funções reguladora e produtiva, passando a capacidade de inovação sobretudo para o setor produtivo privado. Além disso, a internacionalização da produção do conhecimento passa a ser cada vez estimulada e caracterizada pelo envolvimento de pesquisadores em círculos mais amplos e diversos de trocas e difusão de ideias, pelo estabelecimento de relações de colaboração cientíica e participação em redes internacionais de pesquisa, por sua vez também facilitada pela intensa utilização das TICs (Lombas, 2013). Por outro lado, o processo de democratização das sociedades é uma tendência vigente, fazendo com que, cada vez mais, a imprensa, as organizações não governamentais (ONGs) e a sociedade civil organizada procurem exercer inluência para que a produção cientíica e tecnológica tenha uma maior responsabilidade social. O próprio desenvolvimento das TICs possibilita a interação de diferentes atores e de diferentes instituições no processo de produção e de apropriação do conhecimento. Outrora contida essencialmente nos limites da comunidade acadêmica, a empreitada de produção e de apropriação do conhecimento tende a ampliar progressivamente os limites de seu universo em direção a um envolvimento maior de outros atores sociais (Sobral, 2011). Nesse sentido, se poderia supor que as demandas sociais aumentem em vários setores, inclusive no que concerne à ciência e tecnologia e que, por outro lado, essas demandas possam estar reletidas na produção e transferidas pela divulgação do conhecimento. Essa ideia está presente em alguns estudos na área de “Ciência, Tecnologia e Sociedade”; Nowotny, Scott e Gibbons (2001, p. 50-51), por exemplo, airmam que: “Se, no século passado, a ciência falou para a sociedade, neste século, a sociedade passa a falar para a ciência.” Assim, a democratização das sociedades pode inluenciar para que a interação com a sociedade no campo cientíico e tecnológico tenda a ocorrer em duas dimensões: na produção do conhecimento por meio de pesquisas e de desenvolvimento de produtos que procurem atender demandas do setor produtivo e/ou oferecer subsídios no sentido de resolver problemas coletivos e necessidades sociais, como também na transferência do conhecimento para a sociedade, por meio de diferentes formas de divulgação e de difusão do conhecimento cientíico e tecnológico. 117 Soc&Conh-FINAL.indd 117 22/11/2016 12:06:30 Tanto a globalização, enfatizando a importância da competitividade, como a democratização, mostrando a relevância da interação entre conhecimento e sociedade, levam à tendência da pesquisa se originar e se justiicar cada vez mais no contexto da aplicação do conhecimento, isto é, em possibilidades e expectativas de sua utilização. Por outro lado, essa visão de que as pesquisas devem ser desenvolvidas a partir da necessidade de resolver problemas práticos, e não apenas de interesses cognitivos, tende a tornar o conhecimento mais trans, multi ou interdisciplinar do que disciplinar, pois, se o conhecimento é produzido visando à aplicação dos resultados e não apenas com a intenção de acumulação do conhecimento na área, muitas vezes o problema a ser solucionado por meio do conhecimento exige que disciplinas complementares trabalhem conjuntamente, de diferentes formas. Esse aspecto se relaciona diretamente com a questão ambiental. Pode se airmar que a preocupação com a sustentabilidade ambiental está presente nas sociedades contemporâneas, já que o homem adotou, para sua sobrevivência, ao longo dos tempos, práticas de exploração cada vez mais predatórias, constituindo assim problemas ambientais para a humanidade. A dimensão desses mecanismos de degradação intensiicou-se com o advento da Revolução Industrial, no inal do século XVIII e com o consequente processo de urbanização, agravando-se ainda mais com o avanço do sistema de globalização, que não só gerou, mas disseminou, em escala global, uma gama de fatores de degradação socioambiental. Esse modelo de desenvolvimento hegemônico e predatório gerou uma forte crise ambiental manifestada, sobretudo, pela incerteza da sobrevivência das gerações futuras no planeta em virtude da escassez dos bens naturais e do desequilíbrio socioambiental já existente (Santos, 2013). Esses problemas ambientais são anunciados ao mundo demandando às ciências um processo contínuo de investigação e apontamento das soluções possíveis. O caráter global e complexo dos problemas ambientais suscitou a necessidade de encontrar métodos capazes de articular processos sociais e naturais de diferentes escalas espaciais e temporais e de diferentes ordens conceituais, que pudessem explicar os fenômenos multicausais, inéditos e heterogêneos que constituem os sistemas ambientais, o que levou os cientistas a pensarem e agirem numa perspectiva interdisciplinar, reunindo saberes e pesquisas de diversas áreas da ciência na busca de uma 118 Soc&Conh-FINAL.indd 118 22/11/2016 12:06:30 melhor compreensão da realidade e da projeção de cenários futuros mais coniáveis (Santos, 2013). A política brasileira de ciência, tecnologia e inovação Depois de descritas algumas das condições socioeconômicas que inluenciam o fomento e a produção do conhecimento de uma maneira geral, pretende-se mostrar como algumas dessas tendências se expressam na política brasileira de ciência, tecnologia e inovação tanto nos principais desaios apresentados pela Estratégia Nacional para Ciência, Tecnologia e Inovação (ENCTI) 2012-2015 como por meio de seus programas prioritários. A seguir, são listados os principais desaios (Brasil, 2012): • Redução da defasagem cientíica e tecnológica que ainda separa o Brasil das nações mais desenvolvidas pela promoção da inovação e deinição de segmentos tecnológicos prioritários; • Expansão e consolidação da liderança brasileira na economia do conhecimento da Natureza tais como terras raras e pré-sal; • Ampliação das bases para a sustentabilidade ambiental e o desenvolvimento de uma economia de baixo carbono pela capacitação cientíica e tecnológica na área de energia a partir de fontes renováveis e combustíveis alternativos; • Consolidação do novo padrão de inserção internacional do Brasil: CT&I como elemento decisivo nas parcerias com países em desenvolvimento (Brics, Ibas, Mercosul, Unasul, CPLP), apoio à circulação de cientistas brasileiros e à internacionalização das empresas brasileiras. • Superação da pobreza e redução das desigualdades sociais e regionais: programa de inovação em tecnologia assistiva, massiicação das TICs, desenvolvimento de tecnologias urbanas e habitacionais, criação do Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), fomento a tecnologias para agricultura familiar. Considerando os desaios apontados, a dimensão de competitividade econômica dos países e das empresas e a dimensão social estão presentes na política de CT&I, na medida em que se observa a preocupação com a sustentabilidade ambiental, com a promoção da inovação tecnológica, 119 Soc&Conh-FINAL.indd 119 22/11/2016 12:06:30 com o estímulo à internacionalização dos pesquisadores, das empresas e da produção do conhecimento mas também com a redução das desigualdades sociais e regionais por meio do fomento de certas inovações sociais citadas anteriormente. Essa tendência também se veriica ao se analisar os “Eixos de Sustentação da ENCTI” (Brasil, 2012) que se referem à: • Promoção da inovação nas empresas cujo objetivo é ampliar a participação empresarial nos esforços tecnológicos do país, com vistas ao aumento da competitividade nos mercados nacional e internacional; • Novo padrão de inanciamento público para o desenvolvimento cientíico e tecnológico que pretende ampliar os recursos destinados ao desenvolvimento da base cientíica nacional e à inovação tecnológica; • Fortalecimento da pesquisa e da infraestrutura cientíica e tecnológica visando proporcionar soluções criativas às demandas da sociedade brasileira e uma base robusta ao esforço de inovação; • Formação e capacitação de recursos humanos cujo objetivo é ampliar o capital humano capacitado para atender as demandas por pesquisa, desenvolvimento e inovação em áreas estratégicas para o desenvolvimento sustentável do país, com destaque para as áreas de Engenharias. Ainda que alguns eixos sejam gerais e sempre imprescindíveis para a ciência e tecnologia do país tais como fortalecimento da pesquisa e da infraestrutura cientíica e tecnológica e formação e capacitação de recursos humanos, nota-se, porém, que há uma maior orientação para o incentivo da inovação tecnológica no seu sentido restrito e econômico. Essa constatação também pode ser feita ao se veriicar os programas prioritários deinidos e listados a seguir: • • • • • • • • • TICs – Tecnologias da informação e comunicação; Fármacos e complexo industrial da saúde; Petróleo e gás; Complexo industrial da defesa; Aeroespacial; Nuclear; Fronteiras para a inovação; Biotecnologia; Nanotecnologia e novos materiais; 120 Soc&Conh-FINAL.indd 120 22/11/2016 12:06:30 • • • • Fomento da economia verde; Energia; Biodiversidade; oceanos e zonas costeiras; CT&I para o desenvolvimento social; No que concerne aos programas prioritários, a dimensão social está presente explicitamente em apenas um deles, embora também possa estar indiretamente incluído em outros programas. O objetivo do programa referente ao desenvolvimento social é produzir e difundir conhecimento e soluções criativas para a inclusão produtiva e social, a melhoria da qualidade de vida e o exercício da cidadania. Especiicamente, este programa pretende promover a melhoria da educação cientíica, a popularização da C&T e a apropriação social do conhecimento. Também pretende aplicar tecnologias sociais e promover a extensão tecnológica para a inclusão produtiva e social, incluindo o fomento a P&D na área de Tecnologia Assistiva, voltada para as pessoas com necessidades especiais, e a geração e difusão de tecnologias para a agricultura familiar como também tecnologias que contribuam para que as cidades sejam economicamente viáveis, socialmente justas e ambientalmente sustentáveis. Considerando que é um programa de CT&I para o desenvolvimento social, essa dimensão é mais enfatizada ainda que numa associação com a dimensão econômica, na medida em que visa à inclusão social e produtiva. O Programa INCTs enquanto ilustração da política Visando ilustrar essa política, passa-se agora à análise da implementação de um programa governamental, com o intuito de mostrar as novas tendências do fomento à ciência e tecnologia e da produção do conhecimento e evidenciar a dimensão social e econômica aí vigente. Será principalmente analisado o caso dos INCTs que, embora também englobem a formação de recursos humanos, têm sua característica principal voltada para o fomento à pesquisa cientíica e tecnológica. Também se poderia analisar o Programa Ciência sem Fronteiras (CsF), como ilustração da política, cujo objetivo é promover a consolidação, expansão e internacionalização da ciência e tecnologia, da inovação e da competitividade brasileira por meio do intercâmbio de alunos de 121 Soc&Conh-FINAL.indd 121 22/11/2016 12:06:30 graduação e pós-graduação e da mobilidade internacional. Este programa expressa bem o modelo de inovação no sentido predominantemente econômico, mas não será aqui analisado na medida em que é mais caracterizado como um programa de formação de recursos humanos, ainda que se espere resultados na produção do conhecimento. O Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTS) visa promover a excelência nas atividades de ciência e tecnologia (C&T) e sua internacionalização, assim como uma vigorosa integração do sistema de C&T com o sistema empresarial, melhoria da educação cientíica e participação mais equilibrada das diferentes regiões do país no esforço produtivo, com base no conhecimento. Inicialmente, pode se airmar que ambos os programas (INCTs e CsF) estão preocupados com a internacionalização do conhecimento e também com a promoção da inovação no sentido predominantemente econômico, porém o programa INCTs também está visando oferecer subsídios ao desenvolvimento social. Alguns outros aspectos serão considerados para dar sustentação a essa airmação, tais como os objetivos dos INCTs transcritos do Documento de Orientação do Programa (Brasil, 2008): • Mobilizar e agregar, de forma articulada, com atuação em redes, os melhores grupos de pesquisa em áreas de fronteira da ciência e em áreas estratégicas para o desenvolvimento sustentável do país, como deinidas no Plano de Ação Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Nacional (PACTI); • Impulsionar a pesquisa cientíica básica e fundamental competitiva internacionalmente; • Desenvolver pesquisa cientíica e tecnológica de ponta, associada a aplicações, promovendo a inovação e o espírito empreendedor, em estreita articulação com empresas inovadoras, nas áreas do Sistema Brasileiro de Tecnologia (Sibratec); • Promover o avanço da competência nacional em sua área de atuação, criando, para tanto, ambientes atraentes e estimulantes para alunos talentosos de diversos níveis, do ensino médio ao pós-graduado, e responsabilizando-se diretamente pela formação de jovens pesquisadores. Os Institutos Nacionais devem ainda estabelecer programas que contribuam para a melhoria do ensino de ciências e com a difusão da ciência para o cidadão comum; e 122 Soc&Conh-FINAL.indd 122 22/11/2016 12:06:30 • Apoiar a instalação e o funcionamento de laboratórios em instituições de ensino e pesquisa e empresas, em temas de fronteira da ciência e da tecnologia, promovendo a competitividade internacional do país, a melhor distribuição nacional da pesquisa cientíico-tecnológica e a qualiicação do país em áreas prioritárias para o seu desenvolvimento regional e nacional. Além disso, nesse mesmo documento, constam as missões principais dos INCTs, que devem ser a promoção da pesquisa de vanguarda e de elevada qualidade em temas de fronteira e/ou estratégicos, a formação de recursos humanos e a transferência de conhecimento para a sociedade, o que pressupõe um programa de educação e difusão de conhecimento focalizado no fortalecimento do ensino médio e na educação cientíica da população. Esse aspecto signiica um estímulo à utilização de outros instrumentos para divulgação dos resultados das pesquisas, além da publicação cientíica, ou seja, a produção para não pares (Albert; Bernard, 2000). Para aqueles INCTs voltados para a aplicabilidade do conhecimento, também é requerida a transferência do conhecimento para o setor empresarial ou para o governo. Ou seja, a atuação dos INCTs pode se dar desde a elaboração das teorias e conceitos até produtos comerciais ou contribuições para a formulação de políticas públicas, que é a situação mais próxima das Ciências Humanas e Sociais. Deve-se observar que a transferência do conhecimento para a sociedade se refere a ações de divulgação e educação cientíica, não incluindo a transferência do conhecimento para o setor produtivo e para o governo, considerada como outra missão daqueles INCTs que realizam pesquisa aplicada. Além desse aspecto, os INCTs devem perseguir a excelência cientíica e a relevância econômica e social, ou seja, trazer impactos de ordem cientíica, mas também impactos econômicos e sociais, possibilitando diferentes peris de organização e produção de conhecimento. Por essa razão, ainda que as metas e as missões dos INCTs sejam genéricas, alguns INCTs desenvolvem mais pesquisa básica, outros predominantemente pesquisa aplicada e ainda há casos de desenvolvimento de produtos e processos. Porém, em geral, os INCTs apresentam uma associação desses tipos de pesquisa. Mas as diferenças entre os INCTs não se limitam apenas ao tipo de pesquisa. O conjunto dos 122 INCTs apresenta uma diversidade muito grande no que se refere às suas áreas temáticas, linhas de pesquisas, está123 Soc&Conh-FINAL.indd 123 22/11/2016 12:06:30 gios de P&D, trajetórias históricas de suas instituições nucleares e redes, desenhos institucionais e contextos de macropolíticas do Governo Federal relacionadas a essas áreas, como é o caso da saúde (Macedo, 2012). No que concerne às áreas temáticas, a distribuição é a seguinte: ciências agrárias e agronegócios (9,8 %); energia (8,2 %); engenharia e tecnologia da informação (10,7 %); exatas (9,0 %); humanas e sociais aplicadas (9,0 %); ecologia e meio ambiente (14,8 %); nanotecnologia (8,2 %); e saúde (30,3 %). No que se refere a trajetórias, há alguns INCTs que já estão organizados há muitos anos, tendo recebido inanciamentos como PADCT, Pronex, Instituto do Milênio, e há aqueles que se organizaram em redes primeiramente para se constituir num INCT. Também alguns INCTs têm por base departamentos ou programas de pós-graduação das instituições de ensino superior, outros estão centrados em instituições de pesquisa como as unidades da Fiocruz, etc. Algumas redes dos INCTs se restringem a instituições acadêmicas, outras envolvem, além dessas instituições, empresas e também organizações não governamentais (Macedo, 2012). Mesmo considerando essa diversidade, o Documento de Orientação do Programa INCT, conforme indicado anteriormente, enfatiza a questão da “transferência de conhecimentos para a sociedade”, buscando fortalecer e ampliar a utilização ampla dos resultados das ações de C&T&I em benefício da sociedade em geral como uma orientação para todos os INCTs, e ainda, quando for o caso, a aplicabilidade do conhecimento no setor produtivo e/ou no governo. Nesse sentido, o programa incentiva parcerias diversiicadas e aplicações que levem a impactos condizentes com o desenvolvimento sustentável, em suas múltiplas dimensões: econômica, social, ambiental, cultural. Ou seja, é importante ter em mente que a transferência do conhecimento é exigida para todos, ainda que as parcerias e as formas de transferência possam se diferenciar a depender do peril do INCT. A partir de estudos de caso realizados (Sobral, 2012a, 2012b) sobre o INCT de Observatório das Metrópoles e sobre o INCT de Administração Institucional de Conlitos (InEAC), da área de ciências humanas e sociais, a respeito da articulação com políticas públicas e outros atores – ONGs, organismos públicos, etc. – e da transferência do conhecimento para a sociedade, enquanto educação cientíica e divulgação e difusão de conhe- 124 Soc&Conh-FINAL.indd 124 22/11/2016 12:06:30 cimento, constatou-se uma diversidade de interações entre instituições de pesquisa e organizações não acadêmicas. Há uma gama de atores sociais que se encontram fora da academia, como o setor produtivo, o governo, as organizações não governamentais, os movimentos sociais, etc, porém, cabe registrar que, no caso dos INCTs analisados, ambos sediados no Rio de Janeiro, houve certo predomínio de interações com os governos municipais, federal, ONGs e movimentos sociais, e menor proporção de interações com o governo estadual, ainda que haja relações com o governo estadual por parte dos núcleos locais sediados em outros estados, apontando a importância de analisar o contexto político, econômico e social que pode estar inluenciando essa questão. Nos estudos de caso citados, icou evidente que ambos os grupos de pesquisa já tinham uma experiência anterior de interação com organizações não acadêmicas e de transferência de conhecimento para a sociedade, só que no caso do Observatório das Metrópoles essa tendência é decorrente da própria área de conhecimento (planejamento urbano), diferentemente do InEAC, que contrariou as tendências da área (antropologia) mas que foi reconhecido pelo fato de se tornar INCT e pelo apoio de sua instituição universitária sede (Universidade Federal Fluminense) . Em resumo, o programa INCT reconheceu e legitimou a tendência de transferência de conhecimento para a sociedade, fazendo com que essa dimensão fosse ampliada e objetivada. Mas se destaca o fato da esfera acadêmica e não acadêmica estarem caminhando juntas, pois se veriica que, além das experiências bem-sucedidas de transferência do conhecimento para a sociedade, há um grau de internacionalização muito grande da rede de pesquisa, não apenas com os países centrais, mas também com a América Latina. Ao mesmo tempo em que são formados recursos humanos altamente qualiicados na pós-graduação, também são capacitados proissionais de diferentes tipos e que desempenham tarefas importantes para a sociedade. Ou seja, a excelência não exclui a dimensão social e econômica do conhecimento. Segundo Nowotny (2006), não há incompatibilidade entre ciência real e ciência excelente, já que a ciência real surge e é construída pela ciência acadêmica e excelente. Assim, a ciência responde às várias demandas provenientes do Estado, da indústria e da sociedade e, de forma crescente, do mundo globalizado, sem diminuir a excelência, na medida em que há 125 Soc&Conh-FINAL.indd 125 22/11/2016 12:06:30 certo nível de autonomia, competição e seleção de propostas. Se a ciência real signiicar, igualmente, a ciência excelente, torna-se não apenas socialmente robusta, mas também cientiicamente forte. O quadro seguinte mostra as principais formas de interação com a sociedade adotadas pelos INCTs aqui analisados: Embora nesses exemplos mencionados a interação com o setor produtivo não esteja acontecendo, há inúmeros outros INCTs que estão viabilizando esse tipo de interação, ou seja, no programa de fomento como um Experiências de interação com usuários não acadêmicos • • • Cursos de formação para diferentes proissionais: conselheiros municipais, agentes setoriais, guardas municipais, policiais, delegados, etc; Assessoria a órgãos governamentais, movimentos sociais e ONGs; Participação em redes sociais, conselhos, fóruns, etc; Difusão dos resultados • • • Criação e atualização de portais; Criação de boletim informativo; Criação de revista eletrônica; • • • • • • • • • • Criação de sites em núcleos locais; Disponibilização de informações no portal por meio de ferramentas interativas; Estabelecimento de parcerias com jornais para divulgação de matérias concernentes ao tema; Difusão de conhecimento pela mídia falada e escrita; Participação e organização de eventos; Apoio à programação de rádios comunitárias; Elaboração de DVDs sobre os temas pesquisados pelos INCTs com disponibilização para escolas do ensino médio; • • • Subsídios na formulação de políticas e de programas governamentais referentes ao tema do INCT; Subsídios na elaboração de planos, medidas, legislação referentes ao tema do INCT; Descentralização das atividades de pesquisa a partir da ampliação de núcleos; Proissionalização da colaboração com usuários não acadêmicos; Proissionalização das atividades de divulgação cientíica; Proissionalização da gestão inanceira; Sensibilização dos gestores de CT&I e das universidades para o fomento de ensino e pesquisa em temas transversais. das pesquisas Resultados e impactos das atividades do INCT • • • • • • • 126 Soc&Conh-FINAL.indd 126 22/11/2016 12:06:30 todo, as dimensões cientíica, econômica e social estão presentes, ainda que uma dessas dimensões possa predominar mais do que outra, a depender do peril do INCT, da área de conhecimento ou do tema de pesquisa. Considerando que há mais INCTs em áreas ou temas não propriamente sociais, a ênfase maior continua na questão cientíica e econômica, ainda que a transferência de conhecimento para a sociedade seja exigida para todos, o que é uma mudança importante no fomento à pesquisa. De uma forma geral, alguns dos principais resultados dos INCTs em termos da organização da pesquisa, sem apontar especiicidades de áreas ou de temas, podem ser assim resumidos: • Integração de agências federais, estaduais e setoriais (como CNPq, Capes, FAPs, Ministério da Saúde, Petrobrás) em torno de um programa único de fomento; • Organização do trabalho de pesquisa em redes colaborativas, possibilitadas pelas TICs e pelas parcerias nacionais e internacionais; • Grande número de INCTs temáticos estimulando a multidisciplinaridade/interdisciplinaridade; • Menor concentração do conhecimento dada a participação no fomento de inúmeras FAPs e a participação de pesquisadores de diferentes unidades federadas e regiões; • Descentralização federativa e público-privada dada a participação das FAPs e também do setor produtivo privado; • Maior articulação e/ou parcerias com pesquisadores e ICTs de outros países possibilitando a internacionalização do conhecimento; • Maior capacidade de resposta às demandas e necessidades públicas considerando a possibilidade de subsidiar políticas; • Maior capacidade de produção de inovações tecnológicas dada a articulação com o setor produtivo; • Indução de formatos não tradicionais de difusão do conhecimento para a sociedade, possibilitando, além da produção para pares (PP) a produção para não pares (PNP) (Albert e Bernard); • Fortalecimento da pós-graduação e ao mesmo tempo oferta de cursos não necessariamente acadêmicos. • Importância dos impactos cientíicos, econômicos e sociais. Contudo, os resultados iniciais do programa INCTs também apontam diiculdades no sistema de fomento à pesquisa, o que leva a pensar sobre a necessidade de se ir mais adiante. Por exemplo, há uma duali127 Soc&Conh-FINAL.indd 127 22/11/2016 12:06:30 dade entre novos formatos de fomento (como os INCTs) com sistemas de avaliação tradicionais, como também um conlito entre o fomento temático e interdisciplinar e a institucionalização disciplinar por meio das sociedades cientíicas, comitês de avaliação, departamentos universitários e programas de pós-graduação. Ainda que tenham sido veriicadas experiências exitosas nas atividades dos INCTs, há, de uma forma geral, pouca institucionalização da interação entre conhecimento e sociedade, e, inalmente, se percebe um espaço ainda reduzido para os jovens pesquisadores e para as instituições emergentes. As inovações sociais que procuram resolver problemas coletivos e necessidades sociais (Baumgarten, 2008) também são ainda pouco apoiadas. Considerações finais A título de conclusão, é importante considerar que os efeitos da globalização e da democratização se fazem sentir na atual política de CT&I, trazendo uma forte conotação econômica, mas também uma conotação social. Essa questão foi apresentada tanto nas deinições da política como na implementação do programa INCTs. Convém lembrar que desde Marx (1977) a ciência e a tecnologia já eram apontadas como forças produtivas, no sentido de possibilitar o aumento de produtividade e a acumulação de capital. Sob tal perspectiva, ela é pensada a partir do ponto de vista do capital, ou seja, da relação social de produção na qual se insere e pode ser relacionada às formas soisticadas de intensiicação da extração de mais valia e controle do trabalho pelo capital. Esse aspecto é enfatizado pelo processo de globalização. Ou seja, a ciência e a tecnologia, além de aumentarem a nossa competitividade, também estão associadas ao controle, dominação e poder. E, nesse aspecto, também é bom lembrar Foucault (1977) ao mostrar que a ciência e o saber são verdades que se constituem por meio de relações de poder e como relações de poder. São assim produzidas por sistemas de poder, mas que induzem e reproduzem efeitos de poder. Airmação que pode ser ampliada ao se considerar a ciência e a tecnologia. Por essa razão, é da maior importância que a implementação da política de CT&I enfatize a dimensão social, além da dimensão econômica. Na medida em que os resultados da ciência sejam transferidos 128 Soc&Conh-FINAL.indd 128 22/11/2016 12:06:30 mais amplamente para a sociedade e que as demandas sociais estejam reletidas na produção de conhecimento, poderá haver uma apropriação mais coletiva dos seus resultados, ainda que saibamos que pesquisas que não envolvam aplicabilidade (as pesquisas básicas) também devam ser estimuladas em função do próprio desenvolvimento da ciência. A apropriação social do conhecimento abrange o setor produtivo, mas também outros atores sociais. Economia e sociedade devem andar juntas. Referências ALBERT, M.; BERNARD, P. Faire utile ou faire savant? La “nouvelle production de connaissances”et la sociologie universitaire québécoise. Sociologie et Sociétés, v. 32, n. 1, p. 71-92, 2000. BAUMGARTEN, M. Ciência, tecnologia e desenvolvimento - redes e inovação social. Parcerias Estratégicas, Brasília: Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, Ministério da Ciência e Tecnologia, n. 26, p. 101-118, jun. 2008. BRASIL. Ministério da Ciência e Tecnologia, Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientíico e Tecnológico (CNPq). Programa institutos nacionais de ciência e tecnologia (Documento de orientação aprovado pelo comitê de coordenação). Brasília, DF, jul. 2008. ______. Ministério da Ciência e Tecnologia. Estratégia nacional de ciência e tecnologia 2012-2015: balanço das atividades estruturantes 2011. Brasília, DF, 2012. CASTELLS, M. 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CGEE: Brasília, 2012b. 130 Soc&Conh-FINAL.indd 130 22/11/2016 12:06:30 A contextualização da verdade ou como a ciência torna-se periférica 1 Fabrício Monteiro Neves Introdução A pesquisa trata do tema da construção dos contextos de verdade. A argumentação teórica estrutura-se em torno de questões levantadas pelos estudos sociais da ciência e tecnologia (ESCT), focando-se nas vertentes de investigações que levam em conta as diferenças de legitimação e circulação do conhecimento cientíico entre contextos periféricos e centrais no sistema global de ciência e tecnologia. Deter-se-á na discussão do que aqui se chamará sistema biotecnológico, um complexo articulado formado por instituições acadêmicas, empresas públicas e empresas de pesquisa biotecnológicas especializadas na produção de conhecimento e tecnologia voltados para a manipulação da vida. O estudo utilizou entrevistas semiestruturadas com líderes de grupos de pesquisa em biotecnologia em seis estados da federação,2 métodos de coleta de dados bibliográicos e empregou técnicas qualitativas de análise, especiicamente, a análise temática de conteúdo. O sistema biotecnológico é observado a partir do conceito de regime de produção de Agradeço à revisão criteriosa e aos comentários críticos de Vanessa Ponte. Este artigo também foi avaliado e criticado pelo grupo DISCO - Direito, Sociedade Mundial e Constituição, da Universidade de Brasília, aos membros deixo meu agradecimento. 2 Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Paraná, Minas Gerais, Distrito Federal, Pernambuco. 1 Soc&Conh-FINAL.indd 131 22/11/2016 12:06:30 conhecimento (periférico), um regime de perturbações recíprocas entre sistemas, limitado pelas conigurações institucionais dos Estados nacionais, mas em contato com os centros de produção tecnocientíicos.3 Tal regime, no Brasil, é caracterizado como tradutor de demandas locais, neste sentido, produtor de pesquisa de interesse meramente periférico, sem capacidade de circulação ampla na rede global do sistema, e, portanto, negligenciado no centro. A condição periférica, no escopo deste artigo, é tratada não em um nível estrutural, como foi de praxe na teoria da dependência e da modernização. Não nego esta dimensão, no entanto, concentrou-se aqui no âmbito fenomenológico da prática cientíica e das expectativas consubstanciadas em discursos. Procura-se aí encontrar a dinâmica na qual a diferença centro/periferia se inscreve como valor e, portanto, torna-se expectativa e prática, determinando o conteúdo do conhecimento, atribuindo consequentemente valor incremental, local, periférico à produção cognitiva. Admite assim um endereço no sistema cientíico, portanto de valor inferior àqueles assumidamente universais. Hierarquização O contexto mais geral da investigação cientíica, aquele que transcende as paredes dos laboratórios, institutos de pesquisa, universidades etc. está, de uma forma ou de outra, incidindo internamente. No plano dos sistemas sociais, o acoplamento entre sistema e entorno é fundamental para se entender por que se pesquisa o que se pesquisa, por que se faz ciência como se faz. Como airmam as teorias não-diferenciacionistas sobre a ciência, não há nenhum âmbito transcendente ao fenômeno social; o sistema cientíico, como qualquer outro fenômeno social, baseia-se em processos comunicativos que se estabilizaram em sua história. Os sistemas são sensíveis aos ambientes em função das possibilidades de observação que engendram. Possibilidades de observação estruturam-se, no plano sistêmico, como capacidade de conexão, sempre seletiva, com o entorno. No que tange à O conceito de regime de produção é baseado em Günther Teubner (2005), porém repensado à luz do processo de produção de conhecimento. 3 132 Soc&Conh-FINAL.indd 132 22/11/2016 12:06:30 organização cientíica fala-se em capacidade de observar as decisões de outras organizações, como as políticas, econômicas, jurídicas, entre outras. Nesse sentido, este contato com o entorno envolve possibilidades “reais” de uma teoria para o sistema cientíico e as possibilidades de inanciamento, legalidade, moralidade, lucro para as organizações. A este relacionamento seletivo Luhmann (2007) chama acoplamento estrutural,4 porque ainda que o sistema dependa do entorno, ele não é deinido a partir de si mesmo. As deinições internas, portanto, seguem aquilo que foi estabilizado como comunicação seletivamente incorporada, ressigniicada e consolidada como estrutura de expectativa. A diferenciação centro/periferia estaria sendo utilizada pelas organizações cientíicas para observar e, como consequência, para se estruturar frente ao entorno, produzindo uma série de processos internos vinculada a esta forma de observação. Não é só nas organizações cientíicas que esta forma é delagrada, as políticas cientíicas e tecnológicas no Brasil, historicamente, estruturaram-se em torno dessa mesma forma, que cria uma hierarquia no sistema cientíico global em torno de instituições mais ou menos desenvolvidas, embora só se possa considerar isso se se parte de uma forma de observação que tome a sociedade como um sistema global, não demarcado regionalmente (Luhmann, 2007). As demarcações que surgem na sociedade moderna dão-se por meio da diferenciação funcional processada entre sistemas sociais sem que, no entanto, abandone as possibilidades de que as diferenciações estratiicadas continuem operando no plano parcial da sociedade.5 Com base nesta forma de observar, Neves (2006) deine os “países periféricos” a partir de uma realização insuiciente desta diferenciação funcional, embora isso não envolva um abandono do argumento da sociedade moderna em realidades periféricas, como o Brasil, que já não podem ser tratadas como “sociedades tradicionais”. Processo de perturbações recíprocas que modiica cada um dos sistemas acoplados, cuja modiicação responde à estrutura interna de cada sistema. Ver Rodrigues e Neves (2012). 5 Esta é a controversa tese de Luhmann a respeito da sociedade moderna. O autor assume que a diferenciação funcional e não mais a estratiicada seria a forma primária de diferenciação da sociedade: “Hoje em dia – sob a diferenciação funcional – também se encontra a estratiicação na forma de classes sociais, inclusive diferenças de centro/periferia; no entanto, essas são agora manifestações secundárias da dinâmica própria dos sistemas funcionais” (Luhmann, 2007, pág. 485). 4 133 Soc&Conh-FINAL.indd 133 22/11/2016 12:06:30 Neves (2006, p. 17) acrescenta que, em realidades periféricas, existirão “vínculos não suicientemente complexos entre sistema e ambiente, que levam à degeneração da ‘correspondente segurança de expectativas’ e fazem surgir um excesso de novos problemas (mais possibilidades)”. Isso exporia os sistemas da modernidade periférica diante de uma “complexidade desestruturada” e “desestruturante”, tornando-os incapazes de direcionarem a complexidade ambiental em função de suas expectativas autônomas internas, o que Neves (2006) conceitua como modernidade negativa.6 A realidade periférica se apresenta com níveis não estruturados de complexidade, o que traz problemas de hipercomplexidade sistêmica para toda a sociedade, na medida em que as expectativas funcionais são contrariadas constantemente por intervenções intersistêmicas por meio da sobreposição de elementos como o poder e o dinheiro. A questão a se averiguar aqui é qual é o elemento social da “modernidade periférica” tem incidido em uma diferenciação, ou na escassez dela, no plano das relações entre sistema e entorno, especiicamente incidido na diferenciação da ciência brasileira.7 Tais elementos funcionam na prática como reforço da condição periférica. Quer dizer, os critérios de seleção que se cristalizam e criam as expectativas estruturais que orientam a organização cientíica na periferia dependem da deinição das diferenciações privilegiadas neste contexto de produção cientíica. Esta deinição evidencia a tendência aos particularismos regionais que surgem em função das conigurações institucionais híbridas, que se manifestam na sociedade global, diferenciada funcionalmente. Embora a ciência seja um sistema funcional global, ela se diferencia no plano da relação ciência e sociedade em função destas conigurações regionais. Por isso, “o universalismo dos sistemas funcionais que operam na sociedade do mundo longe de excluir os particularismos os estimula” (Luhmann, Isso envolve, por exemplo, no caso do direito, insuiciente fechamento sistêmico em função de vários fatores, como a hipertroia dos processos econômicos, acabando por gerar intervenções degenerativas do entorno, ou alopoiesis (Neves, 2001). 7 A baixa institucionalização e o atavismo cultural são elementos muitas vezes reforçados na literatura. Burgos (1996) refere-se à baixa institucionalização adotando a hipótese da fragilidade das redes tecnocientíicas na periferia, pouco alargadas, envolvendo poucos atores. Schwartzman (1979) se refere à herança ibérica e escolástica na “cultura cientíica” brasileira, que reproduziu a atitude refratária que Portugal teve com o “novo espírito cientíico”. 6 134 Soc&Conh-FINAL.indd 134 22/11/2016 12:06:30 2007, p. 128). Questiona-se então: de que forma estes particularismos são estimulados, a despeito da lógica global de diferenciação funcional? Várias respostas foram elaboradas, além daquela enunciada por Neves (2001) e elas buscam captar a especiicidade regional com base na interação de sistemas funcionais fechados. Teubner (2005), por exemplo, ressalta a especiicidade e a tendência de conigurações idiossincráticas no plano da política e do direito na modernidade. Nega, portanto, a uniformização dos processos sociais decorrentes do fenômeno da “globalização”. Mesmo com a globalização do mercado e das tecnologias de informação, “as condições econômicas do capitalismo avançado não estão convergindo. (...) as divergências institucionais entre as sociedades industriais desenvolvidas aumentaram ao invés de diminuírem” (Teubner, 2005, p. 132). A que se deve então este fenômeno aparentemente contraintuitivo? Fundamentalmente, aos acoplamentos plurilaterais de sistemas sociais autônomos que formam regimes de produção contextualizados nos limites dos Estados nacionais. Isto signiica que há necessidade de uma modiicação teórica que passa da ideia de reciprocidade nos acoplamentos estruturais bipolares para a ideia de ciclicidade em relações intersistêmicas pluripolares. (Teubner, 2005, p. 137). Teubner argumenta que a ciclicidade das perturbações recíprocas intersistêmicas engendrará um novo nível de complexidade para cada sistema envolvido no regime de produção regional da sociedade global. Nesta observação, inclui-se a tese da alopoiesis, como fenômeno decorrente das especiicidades das relações intersistêmicas regionais, as quais se dão no plano da evolução da sociedade global, portanto, são historicamente condicionadas a perturbações que as instituições e os sistemas locais desenvolveram: o regime de produção, nesse sentido, apresenta uma natureza contextualizada e histórica. Assim posto, este processo cria especiicidades locais. Teubner (2005, p. 138) exempliica como funciona a dinâmica da ciclicidade dos regimes de produção: Tomemos o exemplo das normas técnicas. Resultados de pesquisas cientíicas que provocam impulsos, modiicando a deinição de standards técnicos, não podem ser justiicados como tais, mas apenas percebidos como irritações do sistema jurídico. Essas irritações, por sua vez, forçam 135 Soc&Conh-FINAL.indd 135 22/11/2016 12:06:30 o direito a reconstruir novas normas. No lado jurídico do regime de produção, meras correlações entre o crescimento e a tendência para o risco, tal como foram concebidas pelo lado cientíico, são ‘desentendidas’ de tal modo como se determinassem, num certo ponto, a mudança da legalidade para a ilegalidade de um comportamento, recontextualizando-a como norma na rede de diferenciações jurídicas. Essa norma, por sua vez, não vale para o sistema econômico como uma máxima categórica de comportamento, mas sim como uma irritação de custos, que depende da probabilidade de esse comportamento ser descoberto e da intensidade com a qual é sancionado. O aumento de custos, por sua vez, irrita a política por meio das intervenções dos lobistas. A política se vê obrigada a reformular os standards, até o ponto que, mais uma vez, irritam os técnicos, que são forçados a revê-los e reformulá-los. O Chinese whisper das reconstruções originadas por perturbações provoca, dessa maneira, uma dinâmica cíclica de inovações permanentes que chega a um equilíbrio momentâneo, quando os sistemas em jogo desenvolveram valores relativamente estáveis em sua própria esfera e enquanto eles sejam compatíveis entre si. O ciclo de irritações recíprocas é observado, especiicamente, pelos sistemas, de modo que a criação de novas estruturas se deve à ciclicidade do relacionamento entre os sistemas, provocando diferenças em função de contextos institucionais especíicos. Podemos observar o desenvolvimento dessas diferenças por meio dos mecanismos evolutivos – variação, seleção e restabilização.8 Neste aspecto, a variação na comunicação sistêmica, produzindo elementos divergentes com o passado, expõe o sistema a uma complexidade que demandará seleção, o que resulta em uma nova estrutura de expectativas, em uma restabilização, e, inalmente, em um “equilíbrio momentâneo”. Este equilíbrio caracterizará as especiicidades institucionais nos regimes de produção regionais e impedirá a convergência institucional no plano global, produzindo e reproduzindo, ao im, hierarquias sistêmicas do tipo centro/periferia. Deste modo, a dinâmica relacional entre sistemas em um contexto produz, de forma coevolutiva, regimes de produção entre eles, regimes de conhecimento diferenciados entre si, inclusive em termos hierárquicos. Alguns regimes se coniguram centrais e outros periféricos para a 8 Sobre mecanismos evolutivos ver Rodrigues e Neves (2012); Neves (2006); Luhmann (2007). 136 Soc&Conh-FINAL.indd 136 22/11/2016 12:06:30 produção do conhecimento. Como argumento em outro trabalho (Neves; Costa Lima, 2012, p. 270): Este é o cerne da questão sobre a diferenciação centro/periferia no sistema internacional de ciência e tecnologia (SICT). Há uma hierarquia instituída com base nas referências de excelência cientíica, publicações e patentes, que possui estabilidade dinâmica, e que, na dimensão da construção do conhecimento, opera na distinção do conhecimento válido (puriicado, com poder de circulação) e não válido (local, de pouca circulação). Assume-se que os Estados Nacionais, assim, fornecem um contexto institucional especíico que incide na organização do sistema na sua inserção em uma ordem social global, não homogênea, não horizontalizada, produtora de hierarquias. Este contexto será descrito em termos de um regime de produção de conhecimento formado pelo acoplamento estrutural entre sistemas sociais distintos, quais sejam a economia, o direito, a política e a ciência. Ressalte-se, porém, que, neste caso, interessa a repercussão deste regime no sistema cientíico. Portanto, tratou-se de analisar como o sistema cientíico na periferia tem observado e incorporado o entorno. Cada período histórico especiicou uma ciência singular em função do tipo de relação que o sistema cientíico estabeleceu com os outros sistemas sociais, neste sentido, trata-se de evolução das formas sociais.9 Considera-se assim centros de produção de conhecimento no interior do sistema global da ciência, e, portanto, também periferia. Centro/periferia é somente um critério de observação que perpassa as comunicações cientíicas, desde o centro e desde a periferia. Como código de observação simbolicamente generalizado, centro/periferia incide na própria prática cientíica, diferenciando a ciência em organização de ponta/organização atrasada, pesquisa de fronteira/pesquisa convencional, valor global/valor local, autoridade/não autoridade, capilaridade/restrição. Cada lado destas dicotomias estrutura determinadas regras operativas, desde o que deve ser inanciado até o que deve ser reproduzido, quem deve ser respeitado academicamente e quem não, e, geralmente, isso se relaciona com contextos regionalizados na sociedade global, tendo como referência o espaço de- 9 Ver Shapin, 1995; Bloor, 2009. 137 Soc&Conh-FINAL.indd 137 22/11/2016 12:06:30 marcado pelo Estado Nacional. O regime de produção de conhecimento, formado pela coniguração historicamente tomada pelos sistemas sociais e das relações entre eles, disponibiliza informações no contexto que incidem, em consonância com critérios de seletividade especíicos, nos modos de (auto)observação de cada sistema especíico. Trata-se, portanto, dos contextos dentro dos quais o conhecimento cientíico é construído na sociedade moderna, no caso especíico, na modernidade periférica, no regime de produção do conhecimento brasileiro. A diferenciação centro/periferia condiciona um tipo especíico de conhecimento, tendo em vista que é um critério de observação que organiza os contextos em que biólogos moleculares e engenheiros genéticos trabalham. O conhecimento, na medida em que é contingência, que poderia ter assumido outras formas, sofrerá das limitações de determinadas maneiras de observar, criadas comunicativamente e estruturadas pelo sistema. Assim posto, quer-se saber como os critérios de observação do sistema biotecnológico têm incidido na forma do conhecimento cientíico na periferia. Assume-se que, em uma sociedade que se estrutura em termos de sistemas funcionalmente diferenciados, sua reprodução se dá em função dos resultados da evolução de cada um deles. Estes resultados estão sempre disponíveis e cobram saídas particulares dos sistemas funcionais. A partir da segunda metade do século passado, tem-se considerado que a ciência, como nunca, tematiza ruídos que emergem dos acoplamentos estruturais com outros sistemas em suas comunicações: a economia dispondo sua complexidade em termos de inanciamentos, a política pressionando por níveis superiores de produção cientíica, e o direito limitando o rol das possíveis comunicações. O resultado, na organização cientíica, responde por aquilo que os teóricos contemporâneos, principalmente os pesquisadores dos ESCT, têm chamado de construção social do conhecimento. Endereçamento A relativização do conteúdo do conhecimento cientíico operada pelos ESCT a partir da década de 70 do último século (ver Bloor, 2009; Longino, 2002) transformou as formas de observar a produção do conhecimento e expôs uma nova epistemologia, em paralelo com a crítica feminista, teoria crítica e teorias pós-coloniais (horpe, 2007). Em geral, 138 Soc&Conh-FINAL.indd 138 22/11/2016 12:06:30 houve uma ênfase renovada nos aspectos contextuais do conhecimento produzido, incluindo o conhecimento cientíico, o qual era apresentado não mais como universal, neutro, imparcial. Por meio de novos métodos de investigação, a ciência agora era uma atividade produtora de um tipo de verdade circunscrita ao seu contexto social, endereçada na prática, situada e relacionada ao contexto.10 Tais questões emergem em particular nas abordagens feministas e multiculturais. A SSK11 e a epistemologia feminista têm em comum a crítica construtivista das noções liberais de universalidade e neutralidade, e uma ênfase “conservadora” no local sobre o universal. A primeira ênfase pode ser observada, em particular, na noção de Donna Haraway de “conhecimento situado” e na ideia de Helen Longino de “epistemologia local”. (horpe, 2007, p. 72). A nova reivindicação epistemológica que emergia nos estudos sociais da ciência abriu muitas possibilidades de estudo, em grande parte ressaltando a diversidade em contraposição à unidade do conhecimento. Ao focar na prática, o diverso era encontrado nos mais diferentes contextos, mesmo na ciência a diversidade e o pluralismo apareciam quando se observava mais de perto disciplinas, laboratórios e linguagens (Longino, 2002). A unidade das ciências era agora considerada um projeto civilizador, uma forma de colonialismo cognitivo que remetia a processos de ajustamento cultural, socialização prática, enquadramento epistemológico de contextos considerados hierarquicamente inferiores no que tange à excelência cientíica. A ciência ocidental estabeleceu-se reforçada pelos elementos constituintes da civilização industrial, ainda que a nascente indústria do século XVIII não contasse com a tradição cientíica até aquele momento em constituição (Bronowski; Mazlish, 1986). Houve, no entanto, perturbações recíprocas entre o sistema cientíico moderno e as exigências tecnológicas da competição capitalista. A ciência foi demandada e inanciada pela indústria, principalmente no século XX. De certa forma coevoluíram por meio da ciclicidade de perturbações recíprocas, formando um regime de Destacou-se principalmente as etnograias de laboratório, como as de Latour e Woolgar (1997) e Knorr-Cetina (2005). 11 Sigla para Sociology of Scientiic Knowledge. 10 139 Soc&Conh-FINAL.indd 139 22/11/2016 12:06:30 produção de conhecimento. Deve-se ter claro a partir desse ponto que a coevolução deu-se em contextos especíicos e que, portanto, o que hoje se chama “complexo cientíico-industrial” incorporou uma dinâmica eminentemente local de produção de conhecimento. Desse modo, o sucesso de elementos cognitivos e tecnológicos dessa forma de conhecer e aplicar conhecimento esteve muito mais ligado a processos sociais do que à sua superioridade epistemológica. Fala-se em circulação e expansão de redes sociotécnicas (Latour, 2000), sempre a partir de um ponto, um contexto, um centro. A expansão deve ser pensada, como airma a sociologia do conhecimento, a partir dos porta-vozes, tradutores que propagam os elementos cognitivos, defendendo-os para além de seu contexto de criação, adaptando-os a outros contextos, muitas vezes ressaltando sua universalidade. A ciência ocidental tem um porta-voz privilegiado: a tecnologia moderna. Assim, se o universalismo é pensado como um valor resultante da circulação do conhecimento, compreende-se mais facilmente o pluralismo epistemológico, evitando classiicações etnocêntricas e racistas a respeito de conteúdos cognitivos originais surgidos em outros contextos. Mesmo a ciência deve ser pensada em seus distintos contextos de prática, tanto intelectual quanto institucional, devido, sobretudo, à existência de pressupostos não conscientemente administrados na prática cientíica. O papel das pressuposições na investigação requer que a análise epistemológica da teoria e da pesquisa deve incluir a análise do contexto social e intelectual nos quais a pesquisa ocorre e teorias e hipóteses são avaliadas. O contexto intelectual é constituído de pressuposições de fundo e recursos de pesquisa – instrumentos, amostras, protocolos experimentais. O contexto social é o conjunto de instituições e interações através das quais pressupostos e recursos circulam e o mais amplo ambiente social ao qual instituições e interações são vinculados. (Longino, 2002, p. 177). O que nos interessa aqui são esses pressupostos, aos quais, seguindo a teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann, chamaremos de distinções na comunicação.12 Se, para Luhmann, o meio de comunicação simboliPara uma discussão a respeito da relação entre a teoria dos sistemas sociais e os estudos sociais da ciência, ver Neves (2013). 12 140 Soc&Conh-FINAL.indd 140 22/11/2016 12:06:30 camente generalizado da ciência é a verdade (Luhmann, 1996), não considera que esta seja a única forma de direcionamento da comunicação no interior do sistema cientíico. Embora concorde em parte com seu argumento, já que considero o funcionamento um meio também central para compreender a ciência atualmente,13 a distinção centro/periferia não pode ser descartada se se quer compreender a produção de ciência e tecnologia. Como airma o mesmo autor: Quem não trabalha nos centros de investigação cientíica com as facilidades de informação atual, perde o vínculo e pode no melhor dos casos inteirar-se com atraso considerável do que se tem trabalhado em outros lugares. Os prêmios Nobel demonstram em matéria cientíica uma distribuição marcadamente regional. A consequência é um padrão de centro/periferia que não é estável e que pode mudar seu ponto de gravidade. (Luhmann, 2007, p. 126). Centro/periferia se constitui como um pressuposto também na prática cientíica, assumido em vários contextos de comunicação no interior do sistema cientíico. Não é uma forma de distinção sem consequências práticas. Ainda que não seja tematizada caso a caso, ela opera direcionando a comunicação de variadas maneiras, seja por meio do reconhecimento explícito da excelência cientíica, dos rankings de universidades e revistas acadêmicas, nas cheias de laboratórios e institutos de pesquisa, seja por meio de pressuposições implícitas que operam nos processos de seleção.14 Como se verá, é por meio dessa forma de distinção também que os cientistas investigados escolheram objetos, métodos e teorias. Contextualização Ao analisar o processo de acoplamento estrutural entre ciência/sistemas sociais na sociedade contemporânea, a literatura tem dado destaque às expectativas do sistema econômico.15 Ao perturbar os limites A este respeito, ver Neves (2009). Sobre seleção na prática cientíica, ver Knorr-Cetina (2009). 15 Nesta literatura destacam-se temas como a “Economia do conhecimento” (Powell; Snellmann, 2004), “Novo modo de produção de ciência” (Gibbons et al., 1994), “Hélice tripla da universidade, empresa e estado” (Etzkowitz, 2005). 13 14 141 Soc&Conh-FINAL.indd 141 22/11/2016 12:06:30 do sistema cientíico, o regime de produção biotecnológico na periferia disponibiliza, como decorrência dos acoplamentos, resultados em forma de mais irritação e, no caso contemporâneo da pesquisa biotecnológica, estas irritações e resultados se relacionam profundamente com inovação tecnológica. Inovação, quando incorporada como informação no sistema cientíico, reproduz o subsistema sob o primado do código tecnológico do funcionamento, com consequências para novas seleções e diferenciações. Na ciclicidade de perturbações entre estes sistemas, os empreendimentos econômicos que participam do contexto de produção cientíica e tecnológica, estando às voltas com um cenário econômico hipercompetitivo, buscam alternativas de diferenciação no processo de concorrência econômica dinâmica. E não importa aqui se tais irmas são inovadoras ou imitadoras: “elas procuram encontrar alternativas às técnicas que estão utilizando no momento” (Nelson; Winter, 2005, p. 400). O comportamento das irmas no contexto periférico dispõe, no regime de produção de conhecimento, uma série de preferências empresariais estruturada pelos resultados do próprio contexto, portanto, estando vinculadas à política econômica e de inovação local, à legislação, ao estado da pesquisa tecnocientíica. Arocena e Sutz (2005) tratam da frágil produção de conhecimento, atividades de inovação informais, com resultados encapsulados, baixa demanda por conhecimento por parte das empresas, fraca cooperação entre elas, incipiente cooperação internacional. A localização das irmas biotecnológicas e a observação delas sobre sua colocação no mercado internacional, baixa competitividade, fazem com que suas preferências internas se direcionem para as potencialidades lucrativas que a observação assentada na diferenciação centro/periferia apresenta. As irmas periféricas, segundo Arocena e Sutz (2005), não são o alvo preferencial de compras tecnológicas governamentais na América Latina; em sua maioria, elas são sempre feitas fora, as soluções são importadas. Assim sendo, por que as empresas privadas deveriam coniar nas tecnologias locais? Deste modo, tecnologias locais só alcançam aqueles nichos de mercado de vocação periférica e assim propiciam expectativas que tendem a reproduzir a diferenciação centro/periferia na ciclicidade do regime de produção de conhecimento. A complexidade das possibilidades de pesquisa e desenvolvimento é reduzida, deste modo, por meio do critério centro/periferia, com as irmas, os laboratórios, as universidades, selecionando e desenvolvendo conheci142 Soc&Conh-FINAL.indd 142 22/11/2016 12:06:30 mento e tecnologia com impacto fundamentalmente local. Este é o caso, por exemplo, de temas como “doenças negligenciadas” e “agricultura tropical” – preferências históricas de tal regime de produção de conhecimento –, casos que possuem modelos de relativo sucesso no contexto periférico, ainda que com baixo impacto na ciência e tecnologia centrais, reiro-me especiicamente à Embrapa e à Fiocruz. Tais preferências ilustram o que alguns autores (Bound, 2008; Neves, 2009) vêm chamando de modelo bioambiental de produção de conhecimento. As empresas de desenvolvimento do bionegócio no Brasil ilustram este elemento de busca de uma vantagem competitiva, da diferença do centro, como é o caso da empresa Biominas, que em seu site airma: Um diferencial competitivo do Brasil para o desenvolvimento da biotecnologia é sua notável biodiversidade. Considerada a diversidade genética e bioquímica presente neste patrimônio natural, depara-se com um universo de oportunidades para a inovação biotecnológica. Além disso, a distribuição regional diferenciada desta biodiversidade cria oportunidades para um desenvolvimento econômico que valoriza as especiicidades locais, capaz de estruturar arranjos produtivos sustentáveis baseados em aplicações biotecnológicas. Esta forma de produção e utilização de conhecimento e tecnologia se diferencia, portanto, do contexto central, o que facilita a sobrevivência das irmas periféricas no mercado internacional. Isso é o resultado da ciclicidade dos acoplamentos estruturais, e, nesta dinâmica, a busca de conhecimento por parte das irmas disponibilizará, no contexto, suas preferências estruturadas pela diferença centro/periferia, o que condiciona as políticas cientíicas e tecnológicas e, inalmente, o sistema de pesquisa biotecnológico. Por sua vez, a pesquisa biotecnológica incorporará ou negará o resultado desta ciclicidade em seus próprios termos, na oferta (escassa) de conhecimento e tecnologia. As irmas periféricas, assim, não absorvem tais perturbações, não se sentem irritadas por aquilo que lhes é ofertado desde o regime de produção periférico; em outras palavras, mostram-se ignorantes ao contexto local. “Bioambiental” é o limite temático do sistema de biotecnologia periférico, e, no interior deste contorno, as possibilidades de acordos com empresas e governos são maiores. Desta maneira, “bioambiental”, como diferenciação periférica, pode ser entendido como um elemento no regime que reduz a 143 Soc&Conh-FINAL.indd 143 22/11/2016 12:06:30 complexidade dos encaminhamentos possíveis nos acoplamentos dos sistemas. No entanto, limita potencialidades de circulação de conhecimento e tecnologia locais. Como salienta um dos pesquisadores entrevistados (E6): Nossa expectativa é que, ao trabalhar com doenças causadas por parasitas Schistossoma manssoni, que ocorrem em regiões com baixo nível de desenvolvimento, em regiões tropicais e subtropicais, trabalhando com doenças negligenciadas pela indústria farmacêutica, pelo mercado farmacêutico, e isso é uma coisa que motiva bastante, é uma possibilidade de manter um nível de competição com grupos localizados fora do país, principalmente em termos farmacêuticos. Doenças como diabetes, Alzheimer, obesidade, doenças coronárias, tudo isso é pesquisado intensamente pela indústria farmacêutica, então é muito difícil você entrar numa competição dessas. Por outro lado, pesquisando parasitas negligenciados você tem um pouco mais de tempo e você consegue fazer a sua pesquisa sem ser atropelado. Mesmo assim, desenvolver um medicamento é uma coisa que para nós demora, é uma pesquisa para trinta anos, vinte anos, a indústria farmacêutica com toda a tecnologia e recursos, dura doze anos, dez anos. As mesmas bases que promovem a diferenciação provocam a “desdiferenciação” erigida no critério de observação centro/periferia. O que não se coloca relacionado a temas vinculados ao código centro/periferia, como “doenças negligenciadas”, corre o risco da negação e da impossibilidade de reprodução e circulação, desde um ponto de vista econômico, político e cientíico-organizacional. Neste último caso, a desaprovação pelos pares, as consequências imprevistas e mesmo os “resultados insatisfatórios” aparecem como condição da escolha do lado errado do código centro/periferia. Deste modo, toda nova expectativa criada sofre rechaço do sistema das mais variadas maneiras, desde o rechaço pela não publicação internacional em revistas centrais, dado que centro/periferia estruturam também níveis de coniança diferentes, até o rechaço dos pares perifericamente localizados, como a seguir. Nós temos critério aqui dentro, mas tem laboratório que não tem critério nenhum. O laboratório de uma professora aqui pegou dinheiro público, e o que ela quis fazer? Ela quis fazer pesquisa com câncer de seio [sic]. Genética de câncer de mama é a coisa mais pesquisada no mundo, em geral hoje você tem que estar ao lado de um hospital, ao 144 Soc&Conh-FINAL.indd 144 22/11/2016 12:06:31 lado de uma equipe médica, tudo ajeitado para que a coisa funcione. Ela não pensou nesses detalhes, foi um fracasso. É algo bonito, fundamentado teoricamente... (E20). Portanto, como critério de diferenciação, centro/periferia estruturará comunicações no interior do regime de produção periférico. Ressalve-se, porém, que este critério é tangencial aos sistemas do regime de produção. Dado o fechamento operacional, cada sistema vai, à sua maneira, observar tal diferenciação que perpassa todo o regime de produção de conhecimento. A economia pensará nas vantagens competitivas, a política cientíica e tecnológica direcionará seus programas de incentivo para tais temáticas – como, recentemente, pode-se notar o Fundo Setorial CT-Biotec e CT-Agro, e a Política de Biotecnologia. Neste regime dinâmico, a ciência direciona suas preferências temáticas, programáticas, investigativas para densiicar o acoplamento com os outros sistemas. A dinâmica evolutiva promove uma ciclicidade de perturbações que cria contextos emergentes de pesquisa. Deste modo, a pesquisa tecnocientíica biotecnológica evolui para mecanismos de variação e seleção, os quais estão localizados naquele espectro estruturado de expectativas cuja heterorreferência é a diferenciação do regime de produção de conhecimento entre centro/periferia. Ao ultrapassar a fronteira de demarcação centro/ periferia, corre-se o risco de negação não só pelos membros da organização cientíica, mas pelos membros envolvidos em grupos de resolução de problemas, localizados em regimes de produção de conhecimento periféricos. Deste modo, embora não haja temas “credenciados”, “apropriados”, “legítimos” na investigação, pelo menos explicitamente, não se pode ignorar que, em função da diferenciação centro/periferia no regime de produção de conhecimento periférico, cria-se uma inlação temática que, em casos extremos, pode transformar-se em “febre” ou “moda”, que é o sintoma sistêmico das exigências cada vez maiores do entorno, cujas consequências podem ser a desdiferenciação em função do abandono de linhas, temas e projetos de pesquisa, não enquadrados nas expectativas criadas. Por isso, de algum modo, pode-se abdicar, ad nauseam, de uma posição central no sistema global de ciência e tecnologia, com temáticas globais, tecnologias globais, conhecimentos globais. Como expõe a entrevista, em continuidade, todas as modas ressaltadas referem-se ao modelo periférico bioambiental. 145 Soc&Conh-FINAL.indd 145 22/11/2016 12:06:31 A gente passou por época em que se você não tivesse a palavra sustentabilidade no projeto icava difícil ser aprovado. Agora a gente está em uma fase de agricultura familiar. Infelizmente, no inanciamento da pesquisa existe muito modismo. Cria-se assim o que parece ser o foco daquele momento, e se você não conseguir encaixar sua pesquisa naquilo ica muito difícil de conseguir recurso. E os biocombustíveis parecem que vão ser o tema, provavelmente. (E2). Esta canalização da complexidade societal com criação de complexidade sistêmica é um processo ininterrupto de variação, seleção e restabilização da comunicação, portanto, é neste processo que reside a evolução sistêmica. Em função disto, temas “quentes” emergem e eles só podem ser compreendidos em função dos acoplamentos estruturais que cada regime de produção de conhecimento estabelece. Estas diferenciações temáticas estão associadas ao regime de produção de conhecimento, historicamente construído, cuja posição no sistema global de ciência e tecnologia é auto-observado como periférico. O trecho abaixo ilustra a posição do Brasil no que tange a doenças negligenciadas. O entrevistado, pesquisador da Fiocruz, articula o potencial de pesquisa nacional com o mercado potencial dessas doenças no mundo. O Brasil tem uma posição singular: é um país em desenvolvimento que é afetado tanto pelas doenças de países pobres como pelas de países ricos. A indústria tem a oportunidade de lucrar com medicamentos feitos para os que podem pagar, como na Europa e nos Estados Unidos. Mas também precisamos de fármacos para a população que sofre com doenças tropicais e infecciosas. Só que, ao contrário dos países africanos e asiáticos, que também têm essas doenças, temos capacidade técnica para desenvolvimento desses fármacos. O fornecimento para os outros países que necessitam poderia impulsionar nossa indústria e resolver os problemas da população. Na verdade, vemos uma oportunidade única para o país nessa área. (E18, 2007). A questão não é somente de objetividade do contexto periférico ou não, se de fato estas posições são reais ou ideologicamente construídas. Porém, mais do que isso, deve-se ressaltar que centro/periferia é um critério de observação, corriqueiramente adotado pelos grupos de pesquisa para se referir a sua posição no sistema global de ciência e tecnologia. É exatamente este critério de observação que estrutura a objetividade cotidiana 146 Soc&Conh-FINAL.indd 146 22/11/2016 12:06:31 das pesquisas e que condiciona as expectativas em torno das seleções que, costumeiramente, são feitas. Entre aqueles grupos investigados que trabalham na pesquisa e no desenvolvimento de fármacos, todos tiveram uma forte incidência da codiicação “doenças negligenciadas”, que é um tema que, por sua vez, decorre da codiicação centro/periferia. O cenário de pesquisa em doenças negligenciadas é uma forte canalização de esforços e criação de expectativas em decorrência das possibilidades ainda abertas no mercado global. É, pois, uma forma de se colocar em um nicho distante dos blockbusters da indústria farmacêutica. Ademais, constitui uma forma de canalizar a complexidade, reduzindo-a com um critério constrangido pelo regime de produção de conhecimento periférico. Pode-se observar a canalização da produção cientíica periférica na fala abaixo, ressaltando-se a relação ciência e política. Abriu um edital de doenças negligenciadas, até onde eu sei não havia isso antes. Tem leishmaniose, malária, lepra, tuberculose... estava entre elas. Essas políticas são interessantes para investimento, direcionar o dinheiro. Eu acho que o problema é que se pulveriza o recurso, e aí entra um monte de coisa, se tivesse que dar retorno já teria dado, eu gosto dessa canalização de recursos. Parece que essa política nova de biotecnologia é acertada, eu acho que você não pode exigir que um grupo de pesquisa produza alguma coisa em dois anos, porque atrasa a liberação de recursos, quase sempre se atrasa. Nós temos um projeto milênio aprovado já faz um ano, foi liberado só um dinheirinho, então em um projeto de dois anos você acaba não cumprindo aquilo, e isso não é uma boa política de investimento. (E12). A binarização da comunicação recairá nos eventos sistêmicos que se processam no interior dos grupos de pesquisa. A binarização do regime de produção de conhecimento em centro/periferia incide em todos os sistemas do acoplamento, na pesquisa funciona como qualquer outro código de comunicação: reduz possibilidades de pesquisa, torna possível a comunicação e, ao mesmo tempo, aumenta as chances de sucessos evolutivos na ciclicidade dos acoplamentos entre sistema e entorno. Determinados códigos tornam a comunicação mais provável por articular sentido no sistema. Estes códigos, generalizados simbolicamente, ao fornecerem critérios para a auto-observação e hetero-observação do entorno, constroem o sistema em um sentido restrito, circunscrito aos seus limites temáticos e operacionais periféricos. 147 Soc&Conh-FINAL.indd 147 22/11/2016 12:06:31 Diferença Tentou-se aqui apresentar e discutir procedimentos sistêmicos de produção contextual de conhecimento e tecnologia. Airmou-se que processos que ocorrem na prática da produção da ciência e tecnologia reforçam e reproduzem a diferenciação centro/periferia no regime de produção de conhecimento periférico. Buscou-se uma abordagem que observasse o âmbito fenomenológico da prática cientíica, especiicamente as expectativas expressas em discursos por pesquisadores em biotecnologia. Defendeu-se que a diferença centro/periferia se inscreve como valor e, portanto, torna-se expectativa e prática. A reprodução de tal diferença tem como consequência a atribuição de valor incremental, local, periférico à produção cognitiva de determinados contextos do sistema da ciência e, por outro lado, valor paradigmático, exemplar, a outros. Admitiu-se assim um processo de endereçamento no sistema cientíico, produtor de diferenças entre teoria, métodos e produtos. Identiicou-se alguns discursos a respeito da operação dessa forma binária de expectativa, como a busca de “vantagem competitiva”, para alcançar diferença com o centro e, portanto, não concorrer com temas e agendas que são considerados “monopolizados”. Desta forma, pode-se airmar que tais diferenças importam também para resultados no âmbito do conhecimento, embora este não tenha sido o interesse do trabalho. Se se aceita que a diferença centro/periferia é uma dimensão que incide nas expectativas e seleções de cientistas, pode-se abrir perspectivas na agenda dos estudos sociais da ciência e tecnologia, mas que faça jus a um dos seus pressupostos, qual seja o de que conhecimento é resultante de um contexto. Referências AROCENA, R.; SUTZ, J. Conhecimento, inovação e aprendizado: sistemas e políticas no Norte e no Sul. In: LASTRES, H. M. M.; CASSIOLATO, J. E.; ARROIO, A. (Org.). Conhecimento, sistemas de inovação e desenvolvimento. 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Quando analisamos a problemática da produção e manutenção de periódicos em ciências sociais no Brasil, percebemos que as condições sob as quais se desenvolvem as atividades de edição nessa área estão subordinadas a diversos âmbitos que compreendem desde as instituições em que se produz a pesquisa – as condições de infraestrutura que as mesmas oferecem e suas políticas –, passando por instâncias nacionais, regionais e locais de formulação de políticas de avaliação, controle e inanciamento da pesquisa. Esse capítulo é uma versão com foco modiicado, revisada e ampliada do artigo “Gestão de Periódicos Cientíicos em Ciências Sociais: uma experiência”, publicado na revista Pensata, v. 4, n. 2, de outubro de 2015. A pesquisa sobre periódicos cientíicos e divulgação de ciência está sendo desenvolvida no âmbito do Observatório de Ciência, Tecnologia e Inovação Social, projeto do LaDCIS/UFRGS e contou com apoio do CNPq e da Fapergs. Agradeço a Regina Vargas, editora gerente da revista Sociologias, a revisão cuidadosa e as valiosas sugestões de conteúdo. 1 Soc&Conh-FINAL.indd 151 22/11/2016 12:06:31 As revistas cientíicas e de divulgação são instrumentos estratégicos para a circulação dos conhecimentos produzidos nas instituições de pesquisa e, como tal, constituem-se em objeto de formulação de políticas e de avaliação em âmbito internacional e nacional, por órgãos de gestão e fomento à pesquisa, ao mesmo tempo em que desenvolvem políticas editoriais próprias para deinir objetivos e escopo das publicações. Por outro lado, apesar de os periódicos cientíicos se constituírem em importantes meios de circulação de conhecimentos e de formação de redes de pesquisadores, as atividades editoriais não têm sido adequadamente valorizadas nas instituições de pesquisa, e, de forma geral, os cientistas sociais enfrentam inúmeros desaios para editar seus periódicos (Campos, 2014; Benchimol; Cerqueira; Papi, 2014; Baumgarten, 2015). Questões como as políticas de inanciamento, os parâmetros de classiicação das revistas, a utilização de critérios bibliométricos externos e a situação da infraestrutura institucional oferecida a editores e periódicos são alguns dos temas centrais na discussão sobre periódicos no Brasil e na América Latina. Ao mesmo tempo, algumas das exigências em termos de internacionalização de periódicos, relacionadas com orientações das agências de fomento e de bases de dados (parâmetros utilizados para a classiicação das revistas, métricas usadas em sua avaliação) indicam a importância de empreender um amplo debate sobre o tema. A importância de ampliar os processos de internacionalização daquilo que produzimos no subcontinente e as diiculdades e possibilidades envolvidas neste processo estão entre as questões que vêm sendo debatidas em distintos encontros que tratam da produção e circulação de conhecimentos em ciências sociais.2 Esse foi um dos principais temas do último Fórum de Editores da Associação Latino-Americana de Sociologia (Alas), em 2013. Como resultado dos debates, voltamos para nossos países com a tarefa de buscar soluções para essa necessidade que se está colocando para nossos periódicos, sem perder de vista que o público predominante (nas ciências sociais) é nacional e latino-americano e que temos uma cultura e identidade que IV Encontro de Editores de Ciências Sociais (SBS 2013), Fórum de Editores de Saúde Coletiva – Carta de São Paulo (Abrasco, 2014) Fórum Internacional de Revistas Cientíicas (Anpocs, 2015), V Encontro de Editores de Ciências Sociais (SBS 2015), Esocite (2015) entre outros. 2 152 Soc&Conh-FINAL.indd 152 22/11/2016 12:06:31 passa pela língua, assim como possuímos em nossos países problemas e questões diferentes daqueles dos países europeus e da América do Norte. Publicar em português e em espanhol é importante não só porque nossos leitores entendem esses idiomas, mas também porque essas são as nossas raízes culturais e linguísticas. É claro que publicar em um idioma que tem alcance mundial (o inglês) permite levar a produção cientíica latino-americana não só para Europa e América do Norte, como também para África e Ásia, regiões que partilham algumas das especiicidades da nossa região. Esse é um aspecto positivo desse tipo de internacionalização, pois possibilita o diálogo sobre diferentes abordagens a problemas que se assemelham e possibilita aos países do Norte um melhor entendimento de nossas especiicidades. Por outro lado, entre os principais problemas na tendência de internacionalização via padronização no idioma inglês estão: 1) o risco de aprofundar a elitização da ciência, pois a grande maioria de estudantes e mesmo de pesquisadores no Brasil e América Latina não domina esse idioma e, portanto, terá diicultado o seu acesso ao conhecimento produzido e difundido nessa língua; 2) o risco de aprofundar a dominação cultural pela consolidação do idioma inglês como a “língua da ciência”. Isso aumenta o risco da “assimilação” que descaracteriza e acaba com culturas e conhecimentos locais (epistemicídio). O Sul produz teoria a partir de sua própria perspectiva e especiicidades, e a obrigatoriedade de vertê-la para o inglês para que seja reconhecida internacionalmente desrespeita e discrimina as culturas não anglo-saxônicas. A isso se poderia chamar “racismo cultural”. O presente capítulo aborda esta problemática, buscando apontar alguns dos problemas do atual movimento de internacionalização da nossa ciência focada em uma única língua – o inglês –, indicando alternativas possíveis que apoiam a ampliação de nossas redes de conhecimentos sem provocar a perda da identidade linguística e cultural e que promovem e ampliam as relações Sul-Sul. 153 Soc&Conh-FINAL.indd 153 22/11/2016 12:06:31 Contextos de produção e circulação de conhecimentos em ciências sociais A edição não tem sido muito valorizada nas universidades brasileiras, instituições em que as principais atividades são a docência e a pesquisa. Até meados do século passado, os congressos, encontros e livros foram a principal fonte de circulação do conhecimento. Em ciências sociais, especiicamente, os livros vêm sendo o principal meio de divulgação e circulação do que é produzido. Durante a década de 1970, alguns poucos periódicos cumpriram o importante papel de incentivar o debate teórico e político3 no Brasil, mas foi somente a partir dos anos 1980 e 1990 que as atividades de divulgação e disseminação do conhecimento produzido nas universidades passaram a encontrar apoio em políticas especíicas nas agências, a partir da criação do Ministério de Ciência e Tecnologia, do relativo fortalecimento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientíico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) no Ministério da Educação. Nas instituições de pesquisa (universidades e institutos de pesquisa), não obstante, essas atividades permaneceram secundárias, e a iniciativa de seu desenvolvimento icou a cargo, principalmente, dos programas de pós-graduação e de algumas unidades das instituições, tais como departamentos ou faculdades, de modo geral, sem uma política institucional voltada especiicamente ao apoio da atividade de divulgação e difusão do conhecimento produzido. Os principais periódicos na área de ciências sociais são relativamente recentes: a revista Dados do Iuperj, uma das mais antigas, iniciou em 1966, mas está disponível digitalmente apenas a partir de 1996; a Revista Brasileira de Ciências Sociais - RBCS (Anpocs) teve início em 1986; a revista Tempo Social (USP), em 1989; e Sociologias, que sucedeu os Cadernos de Sociologia, na UFRGS, em 1998.4 A última década do século XX e as décadas iniciais do novo século trouxeram mudanças importantes para a produção de ciência e tecnologia Estudos Cebrap, Lua Nova, Cadernos de Saúde Pública entre outros. Nas décadas de 1970, 1980, esses periódicos foram estratégicos para a manutenção de debates e trocas entre a coletividade de cientistas sociais no Brasil. 4 Disponível em: <https://sites.google.com/site/sociologiasemrevista/revistas-a1>. Acesso em: 20 set. 2015. 3 154 Soc&Conh-FINAL.indd 154 22/11/2016 12:06:31 no país com o surgimento de novos programas de pós-graduação (PPG) e mudanças nos programas já existentes, que passaram, a partir da avaliação da Capes, a desenvolver uma lógica distinta e uma série de atividades antes inexistentes ou consideradas de menor importância. Esse processo levou a um incremento da produção e, também, da divulgação de pesquisas por meio de periódicos cientíicos. Ao analisar alguns paradoxos existentes no atual cenário das revistas cientíicas no Brasil, Breno Bringel (2015) chama atenção para o fato de que na área de ciências sociais, ao mesmo tempo em que há em curso um processo de proissionalização e institucionalização, com um maior grau de especialização e de aprofundamento no conhecimento de vários temas, há também uma menor integração intelectual, o que se percebe pela segmentação das agendas de pesquisa e diiculdade de estabelecer debates e interações sistemáticas em nossas revistas. Por outro lado, a crescente relevância dos periódicos, como meios estratégicos de interação e formação de redes, não é acompanhada de um crescimento correspondente da importância conferida aos mesmos em termos de políticas institucionais para o setor e de valorização das atividades editoriais (Baumgarten, 2015; Bringel, 2015). Se, de forma geral, as instituições não têm políticas editoriais abrangentes que apoiem e viabilizem a edição de periódicos, em alguns casos há programas de apoio à edição de periódicos (a Universidade Federal do Rio Grande do Sul é um exemplo) que dão algum suporte para a produção das revistas através da destinação de bolsista, impressão, editoração e treinamentos nas plataformas de acesso aberto.5 Mas permanece a falta de valorização das atividades de edição e gestão de periódicos no que se refere a avaliação institucional, cargos, gratiicações, infraestrutura. A carência de pessoal técnico e de espaço nas universidades relete-se nas revistas que, muitas vezes, não têm funcionários permanentes, apenas bolsistas, e têm espaço físico inadequado às suas atividades. Dessa forma, o que vem possibilitando a existência e a permanência de alguns periódicos importantes para sua área e com uma produção signiicativa são as políticas de fomento das agências nacionais como CNPq e Capes, algumas Disponível em: <http://www.ufrgs.br/propesq/programas/apoio-a-edicacao-de-periodicos/ apresentacao-do-paep>. Acesso em: 20 set. 2015. 5 155 Soc&Conh-FINAL.indd 155 22/11/2016 12:06:31 agências estaduais (FAPs e fundos estaduais de ciência e tecnologia) e projetos como o da SciELO, que disponibiliza periódicos cientíicos.6 A Scientiic Electronic Library Online ( SciELO) é resultado de um projeto de pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) em parceria com o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme). Tem por objetivo o desenvolvimento de uma metodologia comum para preparação, armazenamento, disseminação e avaliação da produção cientíica em formato eletrônico e consiste na implantação de uma biblioteca eletrônica que abrange uma coleção selecionada de periódicos cientíicos brasileiros. A SciELO, que a partir de 2002 passou a contar com o apoio do CNPq, vem desempenhando um importante papel na qualiicação dos periódicos brasileiros e tem encontrado adeptos em diversos países ibero-americanos, transformando-se em ator importante no cenário da divulgação da produção cientíica no Brasil e na América Latina. Com o avanço das atividades do projeto, novos títulos de periódicos foram sendo incorporados à coleção da biblioteca no Brasil.7 Há uma política para a admissão e a permanência de periódicos cientíicos na Coleção SciELO Brasil que prevê uma série de critérios e procedimentos de avaliação dos periódicos candidatos a participarem na biblioteca eletrônica.8 Foi também formada a Rede SciELO, que abrange diversos países ibero-americanos e que vem contribuindo para o progresso da investigação cientíica por meio do melhoramento da comunicação dos resultados de pesquisa em periódicos nacionais de qualidade. Seu objetivo é: “[...]aumentar de forma sustentável a visibilidade, a qualidade, o uso e o impacto dos periódicos que indexa. Portanto, contribui para o desenvolvimento das capacidades, infraestruturas nacionais de informação e comunicação cientíica [...]”9 nos países em que atua. A abrangência da rede com suas distintas coleções já desenvolvidas e em desenvolvimento está descrita na Figura 1. A SciELO implantou coleções de periódicos Disponível em: <http://www.cnpq.br/web/guest/sobre2>. Acesso em: 20 set. 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/?lng=pt>. Acesso em: 20 set. 2015. 8 Disponível em:<http://www.scielo.br/avaliacao/20141003NovosCriterios_SciELO_Brasil.pdf>. Acesso em: 20 set. 2015. 9 Agenda de discussão sobre o desenvolvimento futuro da Rede SciELO. SciELO em Perspectiva. Disponível em: <http://blog.scielo.org/blog/2013/08/19/agenda-de-discussao-sobre-o-desenvolvimento-futuro-da-rede-scielo/>. Acesso em: 10 nov. 2015. 6 7 156 Soc&Conh-FINAL.indd 156 22/11/2016 12:06:31 em onze países ibero-americanos, além das coleções especíicas de Saúde Pública e a Social Sciences English Edition. Estão em desenvolvimento as coleções Bolívia, Paraguai, Peru e Uruguai. Figura 1 – Rede SciELO Fonte: Blog SciELO A Coleção SciELO Social Sciences English Edition foi originalmente concebida para aumentar a visibilidade de nossos periódicos vertendo para o inglês alguns artigos selecionados por periódico, que compunham um número anual em inglês de cada revista pertencente à coleção. Essa coleção foi descontinuada por falta de apoio e inanciamento, o que é, no mínimo, estranho quando se considera o forte movimento em favor da internacionalização das agências (CNPq e Capes) e a preferência pelo idioma inglês. 157 Soc&Conh-FINAL.indd 157 22/11/2016 12:06:31 Por outro lado, em 2014, a CAPES chamou os editores de periódicos para um encontro e anunciou um projeto de internacionalização de algumas das revistas brasileiras, apoiando aquelas consideradas de padrão internacional para que passem a ser editadas por grupos editoriais internacionais.10 O encontro contou com a presença de algumas dessas editoras, indicando claramente a disposição da Capes em utilizar os critérios e mecanismos de mercado em sua política de internacionalização, em direção contrária daquela que se esperaria de uma instituição pública (Bringel, 2015). Como veremos adiante, apesar da importância da SciELO e de suas contribuições para a qualiicação dos processos editoriais e visibilidade dos nossos periódicos, eventualmente suas exigências e demandas sobrecarregam os processos de gestão das revistas. Não obstante as muitas diiculdades para a edição de periódicos, eles têm desempenhado um papel cada vez mais estratégico na circulação do conhecimento e na formação de redes nacionais e internacionais. São também muito importantes para os programas de pós-graduação, ajudando a mostrar e qualiicar sua produção. As revistas, assim como os programas, são avaliadas e hierarquizadas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A Capes criou um complexo sistema de avaliação dos PPGs, com plataformas (atualmente, Sucupira) para a inserção de dados que após serão utilizados pela própria coletividade cientíica (pesquisadores indicados por PPGs e instituições e escolhidos por um coordenador de área) para julgar a qualidade dos programas. Como auxiliar desse sistema, a agência criou um aplicativo para avaliação dos periódicos utilizados pelos programas de pós-graduação: o Qualis Periódicos e, recentemente, o Qualis Livros. A avaliação e a classiicação dos PPGs cumpriram o papel de qualiicar os programas, criar instrumentos para acompanhar a produção e para incentivá-la. Não obstante, trouxeram junto consigo algo que já estava ocorrendo nos países centrais: uma ênfase crescente no produtivismo, incentivado pelos processos avaliativos e pela lógica desses processos que (historicamente), no Brasil, contém uma aparente contradição: um embasamento utilitarista para o modelo de gestão do setor, que incorpora Ver notícia “Capes anuncia projeto de internacionalização das revistas brasileiras” publicada pela Folha de S. Paulo, disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2014/10/1541286-capes-anuncia-projeto-de-internacionalizacaode-revistas-cientiicas-brasileiras.shtml>. É importante considerar que esses grupos não trabalham com política de acesso aberto, como SciELO. 10 158 Soc&Conh-FINAL.indd 158 22/11/2016 12:06:31 o discurso da inovação (econômica) e da relação necessária com o setor produtivo, ao lado da institucionalização da prática cientíica segundo as motivações internas dos diversos campos do conhecimento, atendendo, de forma preferencial, a uma demanda espontânea da coletividade acadêmica, sobre a qual apenas se aplicam critérios de mérito técnico e cientíico, com base na ideia de autonomia da ciência e de excelência.11 Uma forte dominância, nas agências de fomento e avaliação, da perspectiva das áreas de ciências exatas e biociências, cuja produção tem características mais internacionais (em termos de temática e público), levou à adoção de padrões internacionais de qualidade “pasteurizados”. Esses indicadores não foram desenvolvidos no país e sim importados dos países centrais, em que os contextos são diferentes (tanto em termos de desenvolvimento do setor de C&T e de infraestrutura, quanto de cultura). Também não foi levado em conta o fato de que várias dessas métricas já vêm sendo reavaliadas em seus países de origem. Ao mesmo tempo, não foram questionados os conceitos de excelência e qualidade empregados. Tais conceitos são utilizados sem um maior conhecimento sobre sua origem, sobre o referencial teórico a partir do qual se constituem e sobre quem e por que os deine como tal. O que é qualidade e quais são os parâmetros para medi-la? Existe qualidade em abstrato? Excelência para quê e para quem?12 Além do mais, há uma grande diferença entre áreas: exatas e biociências têm características muito diferentes das humanidades. Como padronizar? É possível e desejável? A Capes tem critérios construídos por áreas, entretanto, há uma tendência a privilegiar alguns critérios a partir da hegemonia (histórica) das áreas de ciências exatas e biomédicas. Exemplos são o fator de impacto e a adoção do inglês como a língua privilegiada da internacionalização. A visão mertoniana da ciência como autônoma e regida por uma dinâmica própria, independente da sociedade em que se desenvolve, e dos cientistas como um grupo social cujo objetivo é a busca desinteressada de novos conhecimentos, está na raiz do conceito de excelência que vem sendo empregado no Brasil, orientando, também as propostas de avaliação em C&T (ver a respeito Baumgarten, 2004b). 12 Ver a esse respeito Baumgarten, 2004a. 11 159 Soc&Conh-FINAL.indd 159 22/11/2016 12:06:31 A forte pressão para promover a internacionalização (entendida basicamente como publicar em periódicos estrangeiros e em inglês) que a Capes vem imprimindo aos programas de pós-graduação tem impactos diretos nos programas da área de ciências sociais, cujos integrantes buscam cada vez mais publicar em periódicos estrangeiros, apesar de suas temáticas e questões serem, de forma geral, nacionais, locais, relacionadas com contextos do Sul. Os periódicos publicados por esses programas, por sua vez, vêm sendo forçados paulatinamente a publicar em inglês (e não em português ou espanhol). Junto a isso é exigida a sua presença em indexadores e bases de dados ligadas aos grandes grupos editoriais como Elsevier ao mesmo tempo em que se desconsideram bases importantes para periódicos das áreas de humanidades, como Redalyc,13 uma rede de revistas da América Latina, do Caribe, de Portugal e da Espanha, o que traz inúmeros problemas como veremos na seção a seguir. Os periódicos no Brasil: políticas, avaliação, gestão Algumas questões importantes a considerar para reletir sobre os periódicos são: que tipos de temas e problemas orientam as pesquisas em ciências sociais? Qual a relação com o que pesquisamos e nossa cultura e língua? Que público desejamos atingir? Nossos temas são predominantemente internacionais ou locais e regionais? Uma longa experiência como editora de periódico cientíico na área de humanidades e o trabalho de pesquisa nos temas políticas de C&T, indicadores de C&T e divulgação de C&T permitem visualizar alguns dos principais entraves e problemas no campo da edição de periódicos no Brasil e também o lugar desses na produção cientíica brasileira. Nos últimos vinte anos, a atividade editorial no país sofreu grandes mudanças com o advento do acesso aberto e o desenvolvimento de instrumentos como a Plataforma SEER, que possibilitou a disponibilização online dos periódicos e trouxe consigo programas de gerenciamento dos mesmos. Também a própria SciELO desenvolveu seu programa de gerenciamento, instrumentos que dão suporte e apoio ao editor, mas que precisam ser aprendidos e para os quais editores, bolsistas e funcionários precisam ser treinados. 13 Para mais informações ver http://www.redalyc.org/ . 160 Soc&Conh-FINAL.indd 160 22/11/2016 12:06:31 Por outro lado, não há (ainda) políticas de valorização das atividades editoriais e de reconhecimento das mesmas nas rotinas de avaliação institucional (no programa, na unidade ou na universidade), e apenas recentemente esse reconhecimento passou a existir (de forma ainda tímida) nas agências de fomento (através das abas de participação em comitês editoriais e de edição no CV Lattes). Dessa forma, a atividade editorial – estratégica no sentido da circulação dos conhecimentos produzidos e do apoio à formação de redes de pesquisadores e ampliação do âmbito de divulgação do que é produzido nas universidades e instituições de pesquisa – vem sendo uma atividade a mais para o pesquisador (que o sobrecarrega e para a qual há pouco reconhecimento institucional), o qual precisa lidar com processos extremamente complexos de gestão e edição com um mínimo de apoio e, muitas vezes, com recursos escassos. Os editores também têm a seu cargo (juntamente com a Comissão Editorial) a formulação da política do periódico e de suas rotinas. A formulação da política dos periódicos vem sendo crescentemente orientada por normas e critérios advindos das agências de fomento e da SciELO (mesmo aqueles que não recebem recursos ou que não estão na base SciELO os seguem, porque querem participar no futuro). Essa forte ingerência pode levar a uma padronização dos nossos periódicos, ameaçando a diversidade e variedade que os caracteriza. Um claro exemplo são as novas regras da SciELO que colocam, para 2016, a obrigatoriedade de que os periódicos (de ciências sociais) participantes da base publiquem, pelo menos, 30 % de seus artigos em inglês. Além da uniformização, essa exigência pode levar à exclusão de boa parte de nossos alunos (que não têm um bom domínio do inglês). Por outro lado, isso exclui (ou restringe) a publicação de artigos de países com outras línguas (Espanha, Portugal, França, parte do Canadá, parte da África). Há ainda a considerar o fato de que muitos dos colaboradores estrangeiros (notadamente os anglo-saxões) não querem ter seu paper publicado em inglês, pois pretendem publicá-lo em seus países. Além dos processos avaliativos internos (programa de apoio aos periódicos, CNPq, Capes, SciELO), há ainda os processos avaliativos dos indexadores internacionais (Scopus, SocINDEX) e repositórios como Redalyc (Red de Revistas cientíicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal) que apresentam exigências diversas para a inclusão dos periódicos em suas bases de dados. A adequação do periódico a todos esses pro- 161 Soc&Conh-FINAL.indd 161 22/11/2016 12:06:31 cessos avaliativos é algo bastante difícil e demanda tempo e conhecimento das diferentes instâncias, critérios e procedimentos. Um ator importante no cenário internacional são as grandes editoras como Sage e Elsevier que dominam boa parte do mercado editorial de periódicos. As editoras são empresas que se regem pela lógica comercial e mercantil (apesar de seu discurso de proissionalização e divulgação da ciência), cobrando os acessos aos artigos e também, eventualmente, dos próprios autores (taxas de processamento de artigos) que submetem textos. O interesse comercial encoberto por uma ideologia de proissionalização, visibilidade e excelência universal vem impondo critérios e visões que reforçam a estrutura desigual de produção e circulação de conhecimentos, mantendo os países periféricos dependentes com relação aos centrais no que se refere à ciência e à tecnologia (Bringel, 2015; Beigel, 2013). Um episódio recente de tentativa de desqualiicação da SciELO14 demonstra o tipo de estratégia e de perspectiva veiculadas pelos críticos do acesso aberto e de estruturas alternativas às grandes editoras. Internamente, o Qualis Periódicos, que primeiramente hierarquizava as revistas em nacionais e internacionais, mudou sua forma de avaliação, estabelecendo um conjunto de níveis: A1 e A2; B1 a B5 e C para classiicar as revistas. Os critérios são deinidos dentro das áreas e também a classiicação pode ser diferente de área para área, justamente pela diferenciação dos critérios. Assim, uma mesma revista pode ser classiicada como A1 em sua área e como B5 em outra subárea ou área, o que é, no mínimo, estranho e demonstra como a qualidade (e excelência) pode ter diferentes padrões a partir de distintas perspectivas. No caso dos periódicos que estão bem avaliados no Qualis (extratos A1 e A2), há o agravante da grande demanda para publicação. Esta acaba por criar um enorme excesso de artigos submetidos e diiculdade para conseguir avaliadores disponíveis, aumentando o tempo entre o recebimento e a publicação do artigo. Um dos mais signiicativos problemas enfrentados pelos periódicos nos parece ser a proissionalização das equipes editoriais. As atividades de gestão das operações cotidianas não deveriam icar em mãos de bolsistas (que trocam a toda hora), ou de estagiários ou mesmo de funcionários das instituições de pesquisa sem experiência na área editorial, pois são ativida14 Ver artigo de Jefrey Beall “Is SciELO a publication favela?”, disponível em: <http://peloscielo.org>. 162 Soc&Conh-FINAL.indd 162 22/11/2016 12:06:31 des complexas que exigem conhecimento mínimo das normas e dos luxos que orientam o processo, bom manejo do português e preferencialmente conhecimento de outros idiomas, contatos cotidianos com pesquisadores, consultores, responsabilidade, conidencialidade e qualiicação em gestão. Os editores são também professores, pesquisadores e não têm como assumir o trabalho de gestão executiva, que envolve conhecimento aprofundado dos sistemas de gerenciamento editorial. Por outro lado, a própria atividade de coordenação editorial já é uma atividade bastante absorvente. Atualmente os periódicos inanciados pelo CNPq vêm enfrentando outro sério problema relacionado ao repasse dos recursos: pela primeira vez, desde que existe o Programa de Apoio à Edição de Periódicos do CNPq (e depois Capes), o recurso destinado foi interrompido. A metade do montante foi utilizada, e, sem qualquer aviso, o restante do recurso não foi repassado aos editores responsáveis por cada projeto editorial. Assim sendo, algumas atividades essenciais para a manutenção da periodicidade da revista não puderam ser efetuadas nos prazos previstos, dentre elas, serviços contratados de terceiros, tais como traduções de artigos (para atender aos critérios de internacionalização) e marcação de arquivos em formato XML (exigência da SciELO para a manutenção dos periódicos na base). Tais atrasos também podem comprometer a própria pontualidade na periodicidade das revistas, especialmente quando estas se mantêm basicamente com o apoio dessas agências. O problema ica mais sério, porque a crise de inanciamento é geral, e as universidades e programas de pós-graduação também não estão recebendo os repasses ou os receberam com cortes de 75 % a 85 %, o que diiculta o apoio dos mesmos aos periódicos. Se essa situação se mantiver, o esforço despendido até agora para a criação, manutenção e melhoria dos veículos de circulação de conhecimentos na área de ciências sociais no Brasil se perderá, pois as revistas terão problemas para manter a periodicidade e credibilidade, enfrentarão diiculdades com seus fornecedores e correrão o risco de serem excluídas da SciELO e dos indexadores e repositórios internacionais. Esse conjunto de problemas vem sendo debatido pelos editores da área de ciências sociais em encontros que ocorrem em diferentes fóruns, como a Reunião Anual da Anpocs e o Congresso Brasileiro de Sociologia, que tem entre suas atividades o Encontro de Editores em Ciências Sociais, que já está em sua quinta edição. Entre as principais questões discutidas nos encontros sobre edição de livros e periódicos no Brasil – sua produção 163 Soc&Conh-FINAL.indd 163 22/11/2016 12:06:31 e circulação – estão as políticas nacionais de gestão e de fomento à edição de periódicos, os processos avaliativos a que esses se encontram submetidos e os movimentos no sentido de ampliar os processos de internacionalização do que é produzido no país, bem como as diiculdades e possibilidades envolvidas nesse processo (Sociedade Brasileira de Sociologia, 2013). A análise do relatório do IV Fórum de Editores de Ciências Sociais aponta diversos problemas no âmbito da edição de periódicos na área de ciências sociais, entre eles: falta de proissionalização das equipes editoriais, responsável, em alguns casos, pela descontinuidade da produção de revistas e pela grande diiculdade de criar novos veículos de divulgação na área de humanidades; diiculdades com relação à avaliação de impacto com base em citações como instrumento de medição de qualidade em ciências sociais; produtivismo crescente, com resultados danosos para a qualidade da produção editorial; temas relativos à internacionalização e à cooperação Sul-Sul; os parâmetros da SciELO para avaliação e manutenção das revistas na sua base (Sociedade Brasileira de Sociologia, 2013). A essas questões, podemos acrescentar a pressão das grandes editoras internacionais para entrar no país e abrir para si o mercado local de edição de periódicos. Nos debates do V Fórum de Editores de Ciências Sociais (Sociedade Brasileira de Sociologia, 2015) essa problemática se manteve e foi acrescida de novas questões, como a avaliação de impacto com base em citações. Analisou-se o baixíssimo índice de citações de trabalhos publicados em periódicos nacionais, na área das ciências sociais (em termos internacionais), resultante de limitações relacionadas à língua e aos temas e questões de interesse (ou falta de interesse) nos países centrais, nem sempre estratégicos para os países do Sul. Apontou-se a necessidade de promover um debate sobre a questão, com vistas a problematizar seu uso como instrumento de medição de qualidade e a buscar alternativas. Outro problema importante que voltou a ser colocado foi o da internacionalização da produção brasileira, debatendo-se as relações centro-periferia e produção cientíica, a questão da dependência acadêmica, das temáticas locais versus público internacional. A identidade do debate nacional e a língua também foram abordados. Uma das recomendações foi estabelecer o eixo Sul-Sul e a América Latina como instâncias estratégicas da internacionalização. 164 Soc&Conh-FINAL.indd 164 22/11/2016 12:06:31 Internacionalizar é preciso (?) A pergunta do título do artigo refere-se a uma dúvida sobre a necessidade (possibilidade e oportunidade) de internacionalizar a ciência brasileira, mas também remete a Fernando Pessoa e sua dúvida sobre a precisão (exatidão) da vida. Ora, reletir sobre acontecimentos, instituições, estruturas, ações das pessoas – enim, investigar a sociedade, ou as relações de poder, ou grupos populacionais especíicos ou culturas – é pensar sobre a vida; e a atividade de pensar e representar a vida em sociedade não é uma ciência exata (como de resto nem as chamadas ciências exatas o são). É atividade que exige o contexto, mesmo quando se trata do global. É um pensar em línguas e culturas especíicas. Os problemas são nacionais e locais, ainda que hoje o mundo seja global. Os públicos também o são. O mundo ainda não tem uma única língua, e há uma forte relação entre linguagem e cultura. As questões são globais no que se refere à nossa relação com a natureza, à distribuição de riqueza, ao modo de produção da vida dominante; mas são, ao mesmo tempo, locais em termos de repercussões concretas. Assim, quando pensamos sobre que tipo de internacionalização é boa para nós, é também necessário reletir sobre nossa realidade concreta, nossa história, nossas potencialidades e nossos interesses. O tema dos periódicos cientíicos e de divulgação em ciências sociais é crucial nos estudos que trabalham com a relação ciência, tecnologia e sociedade (CTS), pois os periódicos desempenham um papel importante na conformação de qual saber vai ser criado, que conhecimento vai ser construído. Por outro lado, se não tivermos nossa própria relexão contextual sobre este papel, não teremos elementos para problematizar, junto a agentes locais (CNPq, Capes, FAPs estaduais, as próprias coletividades cientíicas locais e os coletivos em geral), os critérios que concedem «objetividade» a processos de medida de “qualidade” associada a publicações em periódicos que são classiicados de acordo com critérios cuja história, em geral, desconhecemos e nunca paramos para avaliar. Um dos consensos a que chegamos no IV Fórum de Editores de Ciências Sociais foi o de que a qualidade dos periódicos não pode ser separada de seu conteúdo e de seus processos de revisão. Uma grande pesquisa pode ser publicada em qualquer lugar e em qualquer idioma. 165 Soc&Conh-FINAL.indd 165 22/11/2016 12:06:31 Nossos periódicos são vários, heterogêneos e distintos. Alguns são direcionados para um público leitor amplo, geral e internacional; outros são mais especializados em seu conteúdo e voltados para o público especializado. Seu escopo e público leitor não dizem nada sobre a qualidade de seu conteúdo intelectual (Sociedade Brasileira de Sociologia, 2013). Fazer circular o conhecimento em ciências sociais no Brasil e ajudar no estabelecimento de redes de pesquisadores (internamente, na América Latina e apoiando a relação Sul-Sul) parece ser um bom objetivo para os nossos periódicos, e, para tanto, é essencial que os processos avaliativos e classiicatórios levem em conta nossas características, necessidades e potencialidades. A investigação e debate sobre as atividades de edição são estratégicos no momento atual, dada a sua importância para o avanço das ciências sociais, para a disseminação do conhecimento produzido em sociologia, ciência política e antropologia, para a divulgação cientíica neste campo e, principalmente, para a compreensão social acerca do atual momento histórico de transição entre modos de produção social. Referências BAUMGARTEN, M. Avaliação e gestão de ciência e tecnologia: Estado e coletividade cientíica. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, CES, v. 70, p. 33-56. dez. 2004a. ______. Comunidades ou coletividades? O fazer cientíico na era da informação. Política & Sociedade. Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, v. 1, n. 4, p. 97-136, 2004b. ______. Gestão de periódicos cientíicos em ciências sociais: uma experiência. Pensata. 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Disponível em: <http//blog.scielo. org/blog/2014/08/28/produtivismo-pesquisa-e-comunicacao-cientiica-entre-o-veneno-e-o-remedio/>. Acesso em: 18 set. 2015. CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO (CNPq). Programas de editoração. Disponível em: <http:// cnpq.br/apresentacao-programa-editorial>. Acesso em: 20 set. 2015. SCIENTIFIC ELECTRONIC LIBRARY ONLINE - SciELO. Critérios, política e procedimentos para a admissão e a permanência de periódicos cientíicos na Coleção SciELO Brasil. São Paulo, set. 2014. Disponível em: <http://www.scielo. br/avaliacao/20141003NovosCriterios_SciELO_Brasil.pdf>. Acesso em: 20 set. 2015. ______. Sobre este site. Disponível em: <http://www.scielo.br/?lng=pt>. Acesso em: 20 set. 2015. SOCIEDADE BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA. Relatório do IV Fórum de Editores de Ciências Sociais. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia, Salvador, 10-13 set. 2013. ______. Relatório do V Fórum de Editores de Ciências Sociais. 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Esta polêmica tem sido frequente na última década em toda a região latino-americana, envolvendo atores governamentais, intelectuais, cientistas, educadores, estudantes, artistas, trabalhadores da cultura e a comunidade de maneira geral. Compartilhamos a convicção de Albornoz (2010, p. 7) de que existe atualmente, na América Latina, uma forte demanda pela aplicação de políticas em ciência, tecnologia e inovação que repercutam socialmente, conforme aumentam os esforços realizados nesta direção em cada país. Nesse sentido, é importante destacar que os investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) na América Latina e Caribe (AL&C) chegaram a duplicar no período de 2002-2011, embora representem 3,2 % do total mundial (Ricyt, 2013, p. 12). Ao mesmo tempo, segundo dados da mesma fonte, entre os países latino-americanos e caribenhos, há uma grande concentração desses investimentos. No ano de 2011, o Brasil representou 63 % dos investimentos da AL&C, o México, 18 % e a Argentina, 11 % – estes três países sozinhos representando 92 % dos investimentos totais no bloco. Da mesma forma, a quantidade de pesquisadores e tecnólogos cresceu 71 %, com o Brasil concentrando 53,5 %, Argentina, 18,4 %, México, Soc&Conh-FINAL.indd 169 22/11/2016 12:06:32 17,4 % e Colômbia 3,0 %. Em 2010, registravam-se na AL&C 1,09 pesquisadores e tecnólogos para cada mil membros da população economicamente ativa (PEA); para os Estados Unidos e Canadá, esta relação foi de 9,06 e para os países da União Europeia, 6,18. Aliada a esta expansão dos sistemas de ciência e tecnologia, surge também uma crescente demanda social de políticas em C e T, cujos resultados introduzem mudanças sociais, maior informação, distribuição e acesso à produção cientíica e à participação na gestão de políticas públicas neste campo. Uma das demandas está relacionada com a geração de políticas e ações para o Acesso Aberto (AA) global não comercial, entendido como o acesso livre e gratuito, através da internet, aos resultados de pesquisas em revistas cientíicas e acadêmicas, relatórios, teses, palestras, dados primários, registros em áudio/vídeo de pesquisas, ao uso de repositórios digitais multidisciplinares e temáticos e bibliotecas digitais que relitam a produção de uma instituição (Babini, 2011, p. 3). A comunidade acadêmica latino-americana reconhece a necessidade de desenvolver as políticas de AA, de tal forma que os resultados da pesquisa desenvolvida com verbas públicas sejam incorporados a repositórios digitais acessíveis de forma aberta. Este movimento surge como reação dos acadêmicos e da sociedade em seu conjunto ao aumento do controle dos direitos autorais sobre trabalhos publicados, assim como às excessivas imposições nas políticas de acesso e distribuição (Aguado López, 2013, p. 1-2). Entre outras limitações, como aponta Babini (2013, p. 3-4), [...] las revistas cientíicas internacionales del circuito comercial cobran por el acceso a sus contenidos y, en el caso que los autores soliciten que sus artículos se ofrezcan en acceso abierto, entonces cambian el modelo de negocio y las editoriales cobran al autor – o a su institución – por publicar en ellas. Outra das razões da origem do movimento do acesso aberto na AL&C está relacionada à invisibilidade da ciência produzida na região nos índices internacionais e ao aproveitamento da internet e da web para desenvolver alternativas de publicação em acesso aberto. Por outro lado, mais de 75 % dos recursos para pesquisa e programas de desenvolvimento na AL&C provêm do setor público (Organización de 170 Soc&Conh-FINAL.indd 170 22/11/2016 12:06:32 las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura (Unesco), 2010) e a maioria dos que se dedicam à pesquisa trabalham em universidade públicas. Na Argentina, isso pode ser constatado através do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação Produtiva, cujos indicadores apontam, para 2011, que 49 % dos cargos ocupados por pessoas dedicadas a P&D (pesquisadores, bolsistas, corpo técnico e de apoio) correspondem a universidades públicas e 35 % a organismos públicos (Ministerio de Ciencia, Tecnología e Innovacíon Productiva – MINCyT, 2013, p. 59). Todavia, paradoxalmente, a propriedade da informação, em evidente contradição com o contexto tecnológico, é legalmente monopolista dentro do marco jurídico vigente. Embora as pesquisas sejam inanciadas direta e indiretamente pela sociedade, o controle da obra passa a ser privado na maioria dos casos. Apesar de ser o Estado o maior produtor de conteúdos educativos, cientíicos e culturais, esta produção de relevante interesse público pode não estar disponível. O resultado disso é o aumento das tensões jurídicas e políticas entre a apropriação e a liberação dos bens e obras intelectuais e as regulações de direitos autorais e direitos de cópia, e as tecnologias digitais orientadas à gestão desses direitos. Por essa razão, e devido à crescente demanda social, os governos têm-se mostrado sensíveis à problemática, mediante algumas ações para permitir o acesso aberto à produção cientíica e tecnológica nacional criada a partir de fundos governamentais. Mobilização social pelo Acesso Aberto A comunidade latino-americana inspira-se no movimento internacional por acesso aberto, que promoveu diversas declarações (Budapeste, 2002; Berlim, 2003; Bethesda, 2003), enquanto na região se reconhece a Declaração de Salvador, de 2005, como a mais signiicativa. Esta última insta aos governos que coniram alta prioridade ao acesso aberto nas políticas de desenvolvimento cientíico, incluindo a exigência de que a investigação inanciada com fundos públicos esteja disponível de forma aberta; que o custo da publicação seja considerado parte do custo da investigação; que os periódicos locais de AA, os repositórios e outras iniciativas pertinentes sejam fortalecidos; que se promova a integração da informa171 Soc&Conh-FINAL.indd 171 22/11/2016 12:06:32 ção cientíica dos países em desenvolvimento no acervo do conhecimento mundial (Declaración..., 2005). No âmbito internacional, embora a promoção do acesso aberto pela Comissão Europeia se dê através de iniciativas isoladas, diversos organismos nacionais dos estados membros da União Europeia e diversas instituições acadêmicas da Noruega, Islândia, Índia, Austrália, Indonésia, Japão e Estados Unidos contam com políticas de acesso aberto. Com relação aos periódicos cientíicos, os dados para a AL&C apontam um aumento crescente de publicações de livre disponibilidade. O diretório regional de revistas Latindex cataloga 6.964 revistas, das quais 3.002 são de acesso aberto, enquanto o Directory of Open Access Journals (DOAJ) registra, para o ano de 2013, um total de 9.982 revistas de acesso aberto, das quais 17 % são de países da região. Quanto aos repositórios digitais, há 223 registrados no diretório mundial de repositórios OpenDOAR (Babini, 2013, p. 3-4). Diversas iniciativas tornaram possível a expansão mencionada, tais como os portais regionais de periódicos de acesso aberto Scielo, Redalyc e os portais nacionais, especialmente do Brasil, Argentina e México, os universitários, entre os quais se destacam a Unam, a USP e a Uchile, e os repositórios temáticos como o desenvolvido por Clacso em ciências sociais, além de outras iniciativas como Cybertesis, que reúne teses digitais do Chile e de países da América do Norte e Europa. Entre as ações da comunidade acadêmica, conta-se com a Semana Internacional do Acesso Aberto, que se realiza há sete anos, enquanto na região ganha força a Jornada Virtual Acceso Abierto Latinoamérica, realizada anualmente, desde 2010. Na Argentina, ela é organizada conjuntamente pela representação argentina da Organização Pan-americana de Saúde e Organização Mundial da Saúde (OPS-OMS), pelo Centro Argentino de Información Cientíica Tecnológica del Consejo Nacional de Investigaciones Cientíicas y Técnicas (Conicet) e pela Biblioteca do MINCyT, instituições às quais se somou, em 2013, a Red Federada de Repositorios Institucionales de Publicaciones Cientíicas. Embora sejam instituições com inanciamento estatal as que aportam os recursos para a realização da jornada (como a plataforma virtual Blackboard), o êxito da mesma advém da ampla participação da comunidade acadêmica e cientíica local. Vale destacar também o papel desempenhado pelo movimento de bibliotecários que promove o AA em uma Lista Latino-Americana de Acesso 172 Soc&Conh-FINAL.indd 172 22/11/2016 12:06:32 Aberto e Repositórios. O grupo LLAAR conta com mais de 600 membros no Facebook e cumpre um papel de difusão e de promoção do acesso aberto. Membros dessas comunidades vêm se organizando e participando de eventos regionais para mostrar e compartilhar resultados das iniciativas desenvolvidas em países da região. No entanto, apesar dos importantes avanços realizados, grande parte da produção cientíica da região ainda não está disponível nos repositórios digitais com livre acesso. Sobretudo aquela publicada em periódicos internacionais do circuito comercial, nos quais a oferta de conteúdos de AA é mínima. Até o momento, o foco das intervenções do acesso aberto tem sido principalmente a criação de repositórios de investigação para o depósito de artigos de periódicos e a utilização de plataformas online para publicá-las. Fischman (2013) distingue vários obstáculos que limitam a expansão em AA da produção de pesquisa nos países da AL&C. Por um lado, uma parte importante da produção cientíica latino-americana é publicada fora da região, em periódicos que não são de acesso aberto, mas sim comerciais. Por outro lado, os sistemas de promoção da pesquisa costumam dar maiores “incentivos” à publicação em periódicos internacionais, com maior fator de impacto. La tendencia es que a mayor Factor de Impacto, más difícil es el acceso a esa publicación en términos de costos (muchas bibliotecas no pueden pagar la subscripción), e idioma (mayoritariamente en inglés). Esto implica que gran parte de la producción sobre temáticas relevantes para la región, y que ha sido pagada con fondos públicos, no es accesible incluso dentro de la propia región. (Fischman, 2013, p. 3-4). Por essas e outras razões, a intervenção estatal é fundamental nesta questão. A pressão da comunidade tem sensibilizado os legisladores dos respectivos países, de modo a produzirem-se diversos projetos, com resultados heterogêneos, os quais são revisados na seção a seguir. 173 Soc&Conh-FINAL.indd 173 22/11/2016 12:06:32 Ações pelo Acesso Aberto O poder legislativo argentino sancionou, em 13 de novembro de 2013, a lei nº 26.899. Esta lei obriga as instituições do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia que recebem inanciamento do Estado Nacional a criarem repositórios digitais institucionais de acesso aberto e gratuito, nos quais devem depositar a produção cientíica e tecnológica nacional. Isso inclui trabalhos técnico-cientíicos, teses acadêmicas, artigos de periódicos, entre outros, que sejam resultado da realização de atividades de pesquisa inanciadas com fundos públicos, sejam elas desenvolvidas por pesquisadores, tecnólogos, docentes, bolsistas de pós-doutorado ou por estudantes de mestrado e doutorado. A lei estabelece ainda a obrigatoriedade de publicar os dados primários da pesquisa após cinco anos de sua coleta, para que possam ser utilizados por outros pesquisadores. Segundo a fundamentação do projeto, o modelo de acesso aberto à produção cientíico-tecnológica implica que os usuários deste tipo de material podem: […] en forma gratuita, leer, descargar, copiar, distribuir, imprimir, buscar o enlazar los textos completos de los artículos cientíicos, y usarlos con propósitos legítimos ligados a la investigación cientíica, a la educación o a la gestión de políticas públicas, sin otras barreras económicas, legales o técnicas que las que suponga Internet en sí misma. (Argentina, 2013). A autoridade encarregada da aplicação da referida lei será o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação Produtiva. Além da Argentina, na região só o Peru possui uma lei de AA, a qual foi sancionada em 2012. Esta lei (nº 30.035) regula o Repositório Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação de Acesso Aberto. O Consejo Nacional de Ciencia, Tecnología e Innovación Tecnológica (Concytec) é responsável pela gestão do Repositório Nacional Digital. Enquanto isso, uma lei similar segue em debate (desde 2007) no Congresso Nacional brasileiro, e, no México, uma começou a ser debatida no legislativo em 2013. Ao mesmo tempo, surgem iniciativas regionais, como a criação de “LAReferencia”, um projeto para o desenvolvimento de uma rede federada de repositórios institucionais de publicações cientíicas, destinada a armazenar, compartilhar e dar visibilidade à produção cientíica 174 Soc&Conh-FINAL.indd 174 22/11/2016 12:06:32 latino-americana. A criação do projeto foi acordada em Buenos Aires, em 29 de novembro de 2012, pelas maiores autoridades cientíicas do continente, incluindo representantes de Argentina, Brasil, Colômbia, México, Chile, Equador, Peru, Venezuela e El Salvador. O objetivo principal do projeto é a criação de uma estratégia consensual e de um pacto para a construção e manutenção da Rede. Esse projeto é inanciado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e surge no marco da Cooperação Latino-Americana de Redes Avançadas (RedCLARA), que reúne as redes de educação e pesquisa da América Latina e, através delas, as universidades e institutos de pesquisa. A Unesco, por sua vez, também aprova e promove o livre acesso à informação cientíica (artigos de publicações periódicas, conferências e conjuntos de dados de diferentes tipos) provenientes da pesquisa inanciada com fundos públicos. Entre as ações conduzidas por esse organismo destaca-se a publicação Diretrizes Políticas para o Desenvolvimento e Promoção do Acesso Aberto. Trata-se de um guia para a compreensão dos aspectos mais relevantes do acesso aberto. Além disso, o documento aponta a crise decorrente do custo de assinatura de periódicos cientíicos como a origem do movimento por acesso aberto e detalha os aspectos legais relativos a copyright e licenças para publicar em AA (Swan, 2013). Contudo, as ações governamentais não conseguem dar resposta ao fenômeno em seu conjunto. Ao mesmo tempo em que se expandem a mobilização pelo acesso aberto e o debate em torno de um novo conceito de bem comum, aumentam as tensões jurídicas e políticas em torno da apropriação do valor intelectual, que, há alguns anos, vêm adquirindo uma nova dinâmica em escala global. O bem comum A promoção do acesso aberto como norma acadêmica e cientíica não se restringe a um conjunto de iniciativas. Ao contrário, esta noção é acompanhada de outros princípios, como os da inclusão, da solidariedade e da cooperação entre amplos setores da comunidade educacional, cientíica, acadêmica e cultural, setores esses dedicados a considerar e recuperar o conhecimento e a produção cultural como bem comum. 175 Soc&Conh-FINAL.indd 175 22/11/2016 12:06:32 A noção de bem comum é um conceito complexo. Há duas concepções gerais acerca do conceito de bem: a tradição jurídica – o bem jurídico – que se refere às coisas, materiais ou não, sobre as quais as pessoas têm um direito de uso reconhecido por lei; e a tradição econômica – o bem econômico – referido às coisas que são úteis a quem as usa ou possui. Conforme Vercelli e homas (2009, p. 24): Los bienes comunes son bienes que se producen, se heredan o se transmiten en una situación de comunidad, que tiene un carácter “común”. […] el concepto de “bien/bienes” indica aquello que tiene (o puede tener) un valor, un interés, una utilidad, un mérito y que, a su vez, recibe (o puede recibir) protección jurídica. Así, los bienes son todas aquellas ‘cosas materiales’ o ‘entidades intelectuales’ en cuanto objetos de derecho. Esta ressigniicação de bem comum apela à natureza dos bens intelectuais. Estes, por sua vez, se produzem em uma época, espaço e cultura determinados, incorporam valores e, através de seus usos e costumes, [re]produzem conhecimentos, técnicas ou códigos que os precedem e que caracterizam uma época, sendo, assim, constantemente utilizados e reutilizados na produção intelectual. Tais bens podem estar armazenados, registrados ou codiicados de diversas formas, mas, por suas características, têm um caráter comum, circulam livremente, são compartilhados, estão incorporados e vivem em cada pessoa de forma disseminada (Vercelli; homas, 2009, p. 78). Assim, a internet começa a ser concebida como um bem comum. A tecnologia digital, de um modo geral, e a internet em particular são plataformas para a criação coletiva e colaborativa de conhecimento, que estão apoiadas em padrões e infraestruturas abertas. A mudança tecnológica redeine muitas das relações que os diferentes grupos sociais mantêm com os bens comuns. A internet, como criação tecnológica e cultural, é a resultante de processos auto-organizados, de lutas, tensões e negociações entre diferentes grupos sociais que a construíram. Seu crescimento e estado atual não foram concebidos por nenhuma pessoa, corporação comercial ou Estado em particular. Portanto, o debate em torno do software livre ou privativo está estreitamente relacionado ao AA e à noção de bem comum. Em seu relato sobre a história da internet, Movia (2012, p. 51) informa que em 2003, quando a web começava e ser conhecida do grande público, 176 Soc&Conh-FINAL.indd 176 22/11/2016 12:06:32 98 % das pessoas que navegavam pela rede utilizavam a ferramenta instalada no sistema operativo de seu computador: o Internet Explorer, da Microsoft. Apenas sete anos depois, o cenário mudou com o desenvolvimento do software livre em oposição ao software proprietário. A utilização do Internet Explorer caiu pelo menos 50 %, enquanto a do Mozilla Firefox, um projeto de software livre criado por uma comunidade mundial, se aproxima dos 30 %, e pelo menos outros três navegadores são cada vez mais conhecidos. Como resposta à questão de como esta mudança foi possível, o autor airma que o conjunto dessas tecnologias foram pensadas para compartilhar conhecimento, com “la idea de que debían ser un espacio donde cualquiera pudiera intervenir, en igualdad de condiciones” (Movia, 2012, p. 52). O software livre é um dos elementos essenciais da natureza comum e aberta da tecnologia digital para a inovação colaborativa. O projeto GNU criou um novo modo de utilizar e distribuir os programas, o qual Stallman (2004) denominou licenças de copyleft.1 O software construído em colaboração não podia ser liberado ao domínio público, uma vez que as empresas costumavam apropriar-se de programas lançados sem copyright. Assim, o copyleft surgiu como uma estratégia para licenciar programas em sintonia com o tipo de distribuição pretendida para os mesmos. O copyleft remete, portanto, a um tipo de licença criada para o software livre que permite a redistribuição deste último apenas se forem garantidas, a quem o recebe, as mesmas liberdades outorgadas pelo produtor ou pela comunidade que o criou. Pouco tempo depois, a Creative Commons (CC) – uma organização sem ins lucrativos criada nos Estados Unidos, em 2001, por Lawrence Lessig – desenvolve um modelo legal oferecendo uma série de aplicações informáticas que facilitam a distribuição de bens culturais. Com este modelo, é possível selecionar licenças com diferentes conigurações: o direito do autor de outorgar liberdade de citação e reprodução de sua obra, de criação de obras dela derivadas, de oferecê-la publicamente e de não permitir seu uso comercial. Desse modo, as “licenças abertas” marcaram uma tendência e proporcionaram o marco para uma nova forma de produção, a qual possibilitaria dispensar os intermediários no âmbito acadêmico e na indústria cultural O termo copyleft foi cunhado por Richard Stallman e constitui um jogo de palabras em inglês – copyright (direito de cópia) com a substituição de right (que também signiica direita) por left (esquerda). 1 177 Soc&Conh-FINAL.indd 177 22/11/2016 12:06:32 de um modo geral. As licenças abertas (ou livres) são necessárias para a distribuição pela internet e, consequentemente, para o acesso de forma gratuita para ler, baixar no próprio computador, copiar, distribuir, imprimir, buscar ou vincular textos. A produção intelectual no capitalismo contemporâneo Sem dúvida, esta reapropriação das licenças livres gerou inúmeras controvérsias. Um dos maiores problemas no debate entre os direitos públicos e privados da propriedade intelectual – e, nesse contexto, dos bens comuns – é que a discussão tende a assumir um caráter ideológico. De um lado, estão os que tendem a tratar a criação usando critérios de equivalência entre bens intangíveis e tangíveis e, portanto, “privativos”. No outro lado, os que defendem os interesses públicos e a prevalência do direito de livre acesso à cultura, à educação, à ciência e à tecnologia. O setor editorial privado airma que a escassez, traduzida pela restrição ao acesso, pode aumentar o valor do produto. Sendo assim, criminaliza-se a reprodução, mesmo quando é motivada por ins cientíicos e educativos não comerciais. No entanto, gera-se aí uma contradição: a interconexão horizontal possibilitada pela internet propicia uma circulação da informação que se distingue, entre outras razões, pela desarticulação da multiplicidade de tempos, pela participação social na elaboração da informação e pela perda do controle dos emissores/produtores sobre sua própria criação e/ou informação, a partir do momento em que esta se distribui. Pensadores como Lazzarato, Rullani, Moulier Boutang, Hardt e outros reinterpretam as ideias de Marx e as aplicam às transformações em curso na esfera da propriedade intelectual, para analisar as repercussões da digitalização do conhecimento sobre o processo de trabalho capitalista. O valor de troca do conhecimento está ligado à capacidade prática de limitar juridicamente sua difusão, uma vez que tal valor não obedece à sua escassez natural, mas sim decorre de limitações institucionais ou de acesso (Rullani, 2004). Scott Lash (2005), por sua vez, airma que na era das manufaturas o poder estava associado à propriedade como meio mecânico de produção. Já na era da informação, ele se associa à propriedade intelectual, de modo que, no capitalismo tecnológico, a propriedade dos meios de produção traz consigo o direito de explorar, e a propriedade intelectual, o de excluir (copyright). 178 Soc&Conh-FINAL.indd 178 22/11/2016 12:06:32 Para Hardt (2010), a produção imaterial vincula-se conceitualmente à produção de ideias, de informação, de imagens, de conhecimentos, de códigos, de linguagens, de relações sociais, de afetos. Para esse autor, as questões de fundo são, hoje, a escassez e o caráter reprodutível de certos bens. Assim, poderíamos expressar a situação atual dizendo que a luta se dá entre a propriedade exclusiva e a propriedade compartilhada. Neste capitalismo informacional ou cognitivo, embora a produção imaterial possa ser privatizada como propriedade, por meio de patentes e direitos de autor, ica muito mais difícil vigiar esta propriedade, pois as tecnologias digitais facilitam muito seu compartilhamento e reprodução. Esses bens tentam constantemente escapar aos limites da propriedade e se tornar comuns. Os processos de virtualização separam o conhecimento de seu suporte material e o tornam [re]produzível, mutável, apto a ser utilizado de modo distinto, tanto o capital como o trabalho empregado para produzi-lo. Para os autores mencionados, o capital realiza sua expropriação do comum, não por meio da privatização per se, mas na forma de renda. Patentes e direitos de autor, por exemplo, geram renda no sentido de que garantem uma receita baseada na posse da propriedade material ou imaterial. A internet propicia uma circulação da informação diferente do habitual, entre outras razões, como já apontamos, pela perda do controle dos emissores/produtores sobre sua própria criação e/ou informação, a partir do momento em que esta se distribui. Esse último fenômeno tende a ser reivindicado por alguns setores sociais como direito básico, coincidindo com a tomada de consciência de que os direitos à informação e ao conhecimento são parte dos direitos humanos. Ações por software livre Os governos da região começam a intervir em questões de software, tanto a partir da gestão governamental como em políticas e marcos legais. Todos os países da AL&C encontram-se em pleno processo de regularização desses marcos legais, sob fortes demanda e pressões da sociedade civil. O exemplo mais recente vem do Uruguai, país pioneiro em âmbito mundial no desenvolvimento e aprovação da lei do software livre e de formatos abertos (dezembro de 2013). Esta lei contempla, entre outros, três pontos importantes e inter-relacionados: formatos abertos e padronizados 179 Soc&Conh-FINAL.indd 179 22/11/2016 12:06:32 em todos os âmbitos da administração pública; a preferência pelo licenciamento do software livre ao invés do privativo; a formação de educandos na utilização do software livre através das instituições educacionais públicas. Também na Bolívia, o estado plurinacional sancionou, no ano de 2012, a Lei de Telecomunicações e das TICs. Nela há um capítulo dedicado integralmente a Governo Eletrônico e Software Livre, adjudicando aos órgãos de governo a promoção e priorização do uso do software livre e de padrões abertos no nível central do Estado. Quanto ao Brasil, desde 2009 encontra-se em debate no legislativo o projeto de lei Marco Civil da Internet, proposta que deine os direitos e deveres dos usuários e das empresas que navegam na rede. O projeto visa proteger a privacidade do usuário assim como sua liberdade de expressão. Segundo os defensores do projeto, o Marco Civil garante uma internet livre, democrática, aberta, com a garantia de neutralidade da rede, permitindo ao usuário decidir aquilo que deseja ler e a que ter acesso, e não que uma empresa faça isso em seu lugar. Em seu artigo segundo, o projeto de lei reconhece a escala mundial da rede, o exercício da cidadania em meios digitais, os direitos humanos, a pluralidade, a diversidade, a abertura, a livre iniciativa, a livre concorrência, a colaboração. O projeto ainda não foi debatido e tem passado por modiicações consideradas cruciais pelas organizações sociais que o promovem, as quais denunciam fortes pressões, por parte das empresas de telecomunicações, para que não se aprove o projeto de lei na forma em que está proposto. Na Argentina, discute-se uma lei nacional de uso obrigatório do software livre nos três poderes do Estado, a qual já foi aprovada em nível provincial em Rio Negro, Entre Rios e Missiones. Em 2011, foi criado o Programa Unidade de Software Público Argentino, visando a que o software de propriedade pública possa ser desenvolvido, utilizado, modiicado e distribuído para facilitar o cumprimento de objetivos governamentais e sociais. Mais recentemente, emerge o projeto Software Público para o Desenvolvimento (SPD), como um conjunto de políticas orientadas à promoção e ao desenvolvimento do software argentino. O SPD colocaria à disposição das administrações e dos cidadãos e cidadãs os aplicativos e programas desenvolvidos neste âmbito, os quais teriam código aberto. Essas ações são consideradas insuicientes pelas organizações da sociedade argentina que promovem o software livre. A mobilização continua, 180 Soc&Conh-FINAL.indd 180 22/11/2016 12:06:32 com o emprego de diversas ações, estratégias e iniciativas inovadoras no momento de trabalhar de forma colaborativa. Em defesa do modelo colaborativo A mobilização das organizações da sociedade foi o que colocou a questão do software livre na agenda pública. O objetivo principal é conseguir marcos legais que preservem múltiplas iniciativas de diferentes atores, tanto no plano da produção intelectual como no do trabalho colaborativo. Seria impossível mencionar a totalidade das ações que vêm sendo realizadas nos últimos anos. Para destacar apenas as mais signiicativas, podemos apontar: • O XV Workshop de Software Livre (WSL 2014) – evento cientíico que se realiza no âmbito do Fórum Internacional Software Livre (FISL). Desde 2000, o WSL e o FISL se realizam anualmente em Porto Alegre, Brasil. • O Festival Latino-Americano de Instalação de Software Livre (Flisol) que ocorre há vários anos. A última edição, de 2013, foi realizada simultaneamente em mais de 200 cidades de todo o continente, com sedes na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, Espanha, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela. • Os Encontros de Software Livre e Economia Social na Argentina, organizados pela cooperativa de trabalho de software livre Gcoop, cujo último evento (2013) reuniu oito cooperativas de trabalho dedicadas ao software livre e às tecnologias. Em 2012, foi criada a Federação Argentina de Cooperativas de Trabalho de Tecnologia, Inovação e Conhecimento. Entre outras iniciativas realizadas por militantes do software livre e da cultura livre, vale a pena mencionar o LibreBus, um projeto que nasceu na América Central, com o objetivo de estabelecer um diálogo entre as diferentes comunidades de software e cultura livres, de compartilhar experiências e de fortalecer redes regionais. Em 2011, um grupo de ativistas vinculados ao movimento de cultura livre (conhecimento, software, arte, biodiversidade) viajaram a bordo de um ônibus percorrendo Costa Rica, Nicarágua, Honduras, El Salvador e Guatemala. A versão Cone Sul do LibreBus aconteceu em 2012, percorrendo quatro países: Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai, com princípios e objetivos similares. 181 Soc&Conh-FINAL.indd 181 22/11/2016 12:06:32 Ao mesmo tempo, os princípios do software livre começam a vincular-se a novas formas de produção, uma das quais denominada de produção entre pares (P2P). Esta se caracteriza pela ausência de uma diretriz única, por esquemas de trabalho tendentes à horizontalidade, deinição de papéis de lógica voluntária e trabalho em redes distribuídas. As plataformas web colaborativas são uma forma de apropriação das ferramentas digitais, que implica a existência de colaboração em todos os níveis de aplicação. Isso produz inovações na forma de conseguir recursos para sustentar a plataforma, na forma de produzir valor (conteúdos na produção intelectual) e na forma de distribuir este valor. Alguns exemplos do P2P são encontrados na Wikipedia, na P2P Foundation, na Open Source Ecology e na RedPanal, entre outras. A Red Panal, por exemplo, é a primeira comunidade de música colaborativa do mundo hispânico e está entre as primeiras experiências deste tipo em âmbito global. A rede conta com mais de 4 mil músicos, que residem nos países ibero-americanos, produzindo conteúdos de forma permanente. A cultura livre Como observamos no relato precedente, quanto mais restritivo se torna o acesso à produção intelectual, mais resistência é gerada, e, com ela, emergem estratégias para escapar às limitações. Neste ponto da controvérsia, produz-se um encontro de sujeitos coletivos e de tecnologias em uma rede tecnossocial que conigura simultaneamente suas práticas sociais, suas formas de interação e de ação coletiva, linguagens e usos diversos das tecnologias digitais. Os recursos e as ferramentas para produzir em modos de colaboração intelectual criativa e aberta são inventados e recriados na internet, onde, a partir da expansão da banda larga e da web 2.0, apresentam-se possibilidades ininitas. Este movimento é formado por sujeitos coletivos oriundos de múltiplas práticas sociais e culturais. Ancorados nos princípios do software livre, eles promovem a liberdade de distribuir e modiicar produções e obras criativas, mediante o livre acesso à comunicação e à cultura e questionando o modelo atual de direitos de autor. Essas múltiplas expressões foram criadas pelos próprios atores, ativistas da “cultura livre” que, em seu agir coletivo, coniguram resistên182 Soc&Conh-FINAL.indd 182 22/11/2016 12:06:32 cias no cenário da produção cultural. O princípio “cultura livre” se opõe às indústrias culturais “privativas”. Esta corrente transversal de criadores, intelectuais, músicos, artistas, editores, programadores, videoativistas, fotógrafos2 persegue o objetivo de proteger a criação compartilhando-a e distribuindo-a livremente, redeinindo, assim, na prática, os direitos de autor e de propriedade (Lessig, 2005). Trata-se de uma ética coletiva no uso de ideias, imagens e pensamentos diversos situados em lugares distantes (Lago Martínez, 2012). À guisa de conclusão As controvérsias em âmbito governamental e intelectual sobre o acesso ao conhecimento e aos bens culturais na sociedade contemporânea são superadas pelas forças sociais que se apropriam desses princípios e fazem frente, cotidianamente, às formas de controle do luxo da informação, circulação e produção intelectual e cultural. As estratégias adotadas podem parecer medidas de curto alcance, mas esta luta permanente obriga as indústrias culturais, assim como a legislação vigente, a reforçar os controles e repensar novos modelos de negócios. Como airma Lazzarato (2006), no circuito de valorização do conhecimento no capitalismo cognitivo, produzem-se incoerências que dão lugar a espaços de liberdade, a partir dos quais se podem produzir transformações sociais. A apropriação da internet contribuiu para a ressigniicação da noção de bem comum, que não é jurídica nem econômica, mas sim social. Os governos e as instituições cientíicas da América Latina e Caribe estão frente ao desaio de gerar canais e mecanismos institucionalizados para que as ações incluam as demandas sociais de democratização. A intervenção governamental implicaria, como um primeiro passo, a consolidação do Acesso Aberto à produção intelectual. Isso provoca reações diversas, que vão da ampla aceitação à resistência ferrenha. Em um segundo momento, estabelecer e garantir o livre acesso à internet, sem restrições quanto ao tráfego, serviços e conteúdos, em condições técnicas adequadas; consolidar a legislação sobre software livre; observar a Refere-se a grupos e coletivos estudados na pesquisa “Internet, cultura digital e contra-hegemonia: novas formas de intervenção militante”, credenciada e inanciada pela Universidade de Buenos Aires e dirigida por Silvia Lago Martínez. 2 183 Soc&Conh-FINAL.indd 183 22/11/2016 12:06:32 relação entre empresas e software livre, de modo a apoiar e expandir modelos de produção entre pares e o programa Software Público. Por último, revisar a legislação dos direitos de autor na produção cientíica e educativa. Referências AGUADO LÓPEZ, E. ¿Son los promotores del acceso abierto los alejandrinos del siglo XXI? Cuadernos del Pensamiento Crítico Latinoamericano, Buenos Aires, Clacso, n. 6, segunda época, p. 1-2, oct. 2013. ALBORNOZ, M. Prólogo. 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Concentrar-se-á a atenção na realidade brasileira, embora as relexões aqui desenvolvidas, em grande parte, possam se aplicar a outras sociedades latino-americanas, uma vez que se tenciona imprimir ao texto um caráter crítico, relativamente ao que se considera o padrão hegemônico de produção de ciência, tecnologia e inovação, que, muitas vezes, negligencia particularidades regionais ou locais, implicando a perda de alternativas importantes para os países da América Latina. Isso não signiica, obviamente, assumir posição dicotômica do tipo centro-periferia, por exemplo, ou discurso refratário ao padrão mencionado anteriormente. Ao se colocar em uma perspectiva crítica quanto à maneira como as universidades de nosso contexto latino-americano levam adiante o empreendimento cientíico-tecnológico e inovativo, o presente texto quer se colocar, sobretudo, no campo do questionamento a respeito de nossas especiicidades, ao mesmo tempo que quer evitar fórmulas ou receitas prontas, mormente as que se baseiam nos países considerados mais avançados, por exemplo, os Estados Unidos e outros da Europa ocidental. Esse olhar, que procura chamar a atenção para a importância de se ressaltarem as diversi- Soc&Conh-FINAL.indd 187 22/11/2016 12:06:32 dades e as dinâmicas próprias de cada realidade latino-americana, mesmo que venha a se ater mais especiicamente à realidade brasileira, sem descuidar de considerar o processo de geração de ciência, tecnologia e inovação, em termos globais, é a principal contribuição que este trabalho almeja alcançar. Isso e o convite para que venhamos a aprofundar tal discussão, mediante novas pesquisas e questionamentos teóricos, em diferentes espaços, em nossas sociedades; o que se evidencia como não apenas necessário, mas urgente à luz das grandes transformações na esfera do conhecimento e no modo como este tem sido organizado socialmente. Em termos de sua divisão interna, este capítulo será subdividido em três seções, inter-relacionadas. A primeira apresentará o que se está entendendo, aqui, por ambientes democráticos para a produção de ciência, tecnologia e inovação. A segunda tratará das interfaces da ciência, tecnologia e inovação com as universidades. A esse respeito, não serão abordados vários outros papéis que cabem às universidades, como atividades de ensino, as práticas de extensão, os serviços públicos oferecidos pelos hospitais a elas vinculados e outros, como os relacionados às bibliotecas. O que se tenciona nessa segunda parte é destacar a universidade como um ator importante na produção cientíica, tecnológica e de inovação. Finalmente, a última seção, à guisa de conclusão, buscará destacar o que podem ser importantes desaios para a sociedade brasileira e a América Latina, diante das grandes transformações que vêm se dando na esfera do conhecimento e que se impõem às universidades. Ambientes democráticos para a produção de ciência, tecnologia e inovação A discussão na presente seção é central neste trabalho, pois tudo o mais dependerá desse conceito básico: ambientes democráticos. Conquanto seja uma expressão bastante utilizada no cotidiano de diferentes públicos, não é algo evidente por si mesma. É sabido tratar-se de uma expressão polissêmica, a depender de diferentes contextos sócio-históricos e culturais. Aqui, a noção de ambientes democráticos para a produção de ciência, tecnologia e inovação é bastante especíica e tem sua inspiração na obra de Philip Kitcher, Science, truth and democracy, sobre o que ele designou well-ordered science, discutida em profundidade no livro de Trigueiro (2012, 188 Soc&Conh-FINAL.indd 188 22/11/2016 12:06:32 p. 133-152) Ciência, verdade e sociedade. Aqui será feita apenas uma apresentação sumária das ideias expostas na obra. Na verdade, Kitcher (2001, p. 211) reconhece que a formulação do conceito de well-ordered science tem um débito com John Rawls, em suas obras A theory of justice e Outline of a decision procedure for ethics. Kitcher também explicita ter sido inluenciado pelas ideias de Robert Dahl, em seu A preface to democratic theory, e por Amy Gutmann e Dennis hompson, em Why deliberative democracy. Em resumo, há muita discussão a montante da expressão que abre e que deve orientar a relexão nesta seção. As diiculdades para encontrar uma tradução mais próxima ao termo ordered, em well-ordered science, e o que parecem aspectos mais especíicos na proposta deste capítulo a esse respeito, em contraste com as formulações originais de Kitcher, levaram a se optar pela expressão ciência bem articulada ou ciência, tecnologia e inovação bem articuladas. É este sentido geral, a ser mais bem explicitado mais adiante, que se pretende adotar para caracterizar os ambientes democráticos referidos anteriormente. Do ponto de vista de uma tradução mais literal, o termo ordered tem duas acepções mais corriqueiras, ligadas à ideia de encomendar ou de arrumar, esta última expressão no sentido de colocar em ordem ou de organizar. Não se pretende discorrer sobre os sentidos mais adequados para se traduzir ordered. Contudo, seja na primeira dessas duas acepções, seja na segunda, percebe-se, na leitura do texto de Kitcher, que não são exatamente esses os sentidos visados pelo autor, e, se os fossem, não seriam adequados para os argumentos que se tenciona sustentar, aqui. Primeiro, uma ideia de “ciência bem encomendada” (na primeira das tentativas de tradução) de longe não signiicaria nada para os aspectos que se espera ressaltar ao abordar a produção de ciência, tecnologia e inovação, bem como suas interfaces com as universidades. Uma ciência bem encomendada sugeriria que ela deveria atender a um pedido e que o izesse bem, ou algo nessa direção. Insiste-se: não é esse o sentido da discussão que se tenciona realizar aqui. A segunda tentativa de tradução, “ciência bem arrumada”, embora mais próxima daquilo que se pretende discorrer, também não é precisamente o que se tem em mente sobre o assunto. Este trabalho não defenderia a ideia de uma “ciência (ou tecnologia, ou inovação) bem arrumada”, tampouco “bem organizada”. Essas expressões não fazem nenhum sentido, na medida em que se entende a ciência, a 189 Soc&Conh-FINAL.indd 189 22/11/2016 12:06:32 tecnologia e a inovação como determinadas atividades humanas, dentro de uma dinâmica própria, repleta de tensões, controvérsias e interesses de todo o tipo, os quais, ao inal, produzem certos resultados – uma teoria, um artefato ou um novo processo produtivo, por exemplo. O que seria, então, nesse caso, “bem organizada”? Ou “bem arrumada”? Essas expressões certamente não se aplicam à atividade cientíica. Se pensarmos em algo mais próximo, como a expressão “regulada” ou “bem regulada”, em nosso idioma, soaria como “bem ajustada”, ou mesmo como algumas ideias relacionadas a algum comando de “fora” ou de “cima”. Igualmente, não é nada disso que se tenciona desenvolver aqui. A autonomia cientíica e a liberdade para criar e buscar conhecimentos objetivos e bem demonstrados são valores indissociáveis do que se entende, hoje, por ciência. Esta tem sua dinâmica própria, seus procedimentos e códigos bem deinidos, e isso é algo que precisa ser mantido em sociedades democráticas como as que vivemos. O mesmo se diz quanto às atividades de geração de novas tecnologias e de inovação. Contudo, a autonomia cientíica e a liberdade de pesquisa não são os únicos valores em questão para a ciência, a tecnologia e a inovação, nas sociedades contemporâneas, conforme tem sido reiterado pelo autor mencionado antes, bem como por James Robert Brow, em seu Who rules in Science, e por Hugh Lacey, em Valores e atividades cientíicas 1, segundo diferentes percursos argumentativos. Ao focalizarem mais especiicamente na ciência, cada um a seu modo, perguntam o que ela tem feito para os menos favorecidos nas sociedades. O presente texto pretende ampliar esse escopo de preocupações, ao tempo em que concorda, grosso modo, com as inquietações desses autores. Na verdade, questiona-se não apenas o que a ciência, a tecnologia e a inovação têm feito pelos menos favorecidos, mas para as mais diferentes demandas prementes nas sociedades contemporâneas, sejam estas relacionadas às áreas consideradas estratégicas para o desenvolvimento de um país, economicamente falando, sejam aquelas ligadas a necessidades sociais básicas, como as que concernem ao acesso e à qualidade de moradia, à saúde, à segurança, à educação e aos transportes públicos, por exemplo. Esse é um questionamento inadiável, sobretudo em sociedades como as nossas, que, historicamente, têm carregado grande peso em termos de desigualdades, precariedade no atendimento médico e hospitalar, elevados 190 Soc&Conh-FINAL.indd 190 22/11/2016 12:06:32 índices de evasão escolar – em todos os níveis –, e moradias sem o mínimo de salubridade, sem energia elétrica e sem infraestrutura de ruas adequada. No caso brasileiro, somam-se a esses os recorrentes problemas de seca no semiárido, estradas sem condições mínimas de trânsito seguro, infraestrutura aeroportuária incompatível com as demandas de escoamento da produção e das importações e tantos outros temas. Nada disso é novidade no Brasil e em todo o contexto da América Latina. Um ou outro país tem conseguido equacionar melhor e com maior celeridade seus problemas, e outros ainda permanecem em fases bastante preliminares para o seu encaminhamento devido, o que requer grandes aportes de recursos inanceiros, mas não só, também muita criatividade, decisões irmes e muita ciência, tecnologia e inovação (C,T&I). Certamente que os problemas aqui mencionados e que têm feito parte, de um modo geral, das agendas dos políticos e do poder executivo, em seus diferentes níveis, não se limitam ao circuito do conhecimento cientíico, tecnológico e inovativo. Mas é inegável que tais conhecimentos são indispensáveis para se chegar aos destinos esperados, para sociedades mais justas e com melhor qualidade de vida para todos. Contudo, a questão que se coloca, ecoando as preocupações apontadas anteriormente por autores de sociedades mais desenvolvidas, é: nós, sociedades latino-americanas, temos obtido respostas consequentes, e em que medida, da C,T&I, para obtermos as esperadas soluções para esse grande espectro de agudas necessidades? O que nossas ciências, tecnologias e inovações têm feito, ao longo de nossa história, para diminuir ou contribuir para tais soluções? Vivendo em pleno contexto de uma revolução na esfera do conhecimento, em diferentes setores, a ponto de ser caracterizada por alguns autores como a sociedade do conhecimento, é evidente que se sobressai a importância da C,T&I para cumprir, ademais, esse papel social. Em suma, o valor verdade e a “ética da convicção” – conforme preconizada por Max Weber, em seus ensaios Ciência e política: duas vocações – não podem mais ser os únicos a orientar a conduta dos pesquisadores. Temas relacionados, por exemplo, às novas biotecnologias – como o Diagnóstico Genético Pré-Implantação (DGPI), a utilização de células de embriões humanos para pesquisa envolvendo células-tronco e a introdução de novas variedades de plantas engenheiradas em laboratório para a alimentação humana – são altamente controvertidos e têm requerido 191 Soc&Conh-FINAL.indd 191 22/11/2016 12:06:32 nova orientação de conduta por parte dos especialistas. Eles são instados a responder sobre as eventuais consequências, para os indivíduos e para as sociedades, devido à adoção dos novos conhecimentos, tecnologias e produtos gerados nos laboratórios; bem como a esclarecer e a desmistiicar certas visões eventualmente distorcidas a respeito desses novos conhecimentos – o que requer que a linguagem hermética e muito técnica da pesquisa seja traduzida adequadamente para o grande público. Em resumo, tais fatos, para citar apenas uma área de ponta do desenvolvimento cientíico e tecnológico, passam a pressionar os pesquisadores por maior compromisso com os destinos de suas pesquisas, o que ressalta o âmbito dos princípios éticos e da moral que deverá legitimar a produção de C,T&I. Isto é: algo inusitado surge no horizonte do padrão de comportamento que tem guiado os cientistas e tecnólogos. Nesse sentido, a ética da convicção deve se compor com uma “ética da responsabilidade” – pensada originalmente por Weber como da alçada especíica da política: pesar bem as consequências das ações, suas implicações para os mais diferentes indivíduos e grupos sociais, e agir com muito cuidado e ponderação. Diante dessas considerações, faz-se mister insistir na importância de se ampliar o espaço de relexão e discussão sobre o questionamento a respeito da máxima que estabelece que “à ciência cabe apenas a investigação dos fenômenos”, eximindo-a de um compromisso com a realidade concreta, em termos de sua intervenção e em prol de sua transformação. Isso coloca em xeque, certamente, o paradigma weberiano que estabelece rígida separação entre “juízo de valor” e “juízo de realidade”, ou entre ciência e política. O que os autores anteriormente mencionados argumentam, com uma robusta fundamentação ilosóica, é que é plenamente possível desenvolver um conhecimento objetivo acerca da realidade sem deixar de se comprometer com as necessárias transformações na realidade concreta. Pensando com base na perspectiva de um pesquisador da América Latina, e muito preocupado com os destinos de nossas ciências, tecnologias e inovações, em face aos imperativos sociais e econômicos que se lhe apresentam, essa linha de relexão soa como alvíssara. É com esse pano de fundo que se coloca a presente relexão. A considerar o padrão hegemônico que tem orientado a formação de nossos pesquisadores, mormente balizado pelas realidades das sociedades norte-americana e europeia, é bastante razoável esperar a reprodução dos valores promanados dessas realidades na cultura acadêmica latino-americana, 192 Soc&Conh-FINAL.indd 192 22/11/2016 12:06:32 amplamente reforçada pelas sistemáticas de avaliação de suas agências de fomento e de demais órgãos do executivo. O resultado é um presumível distanciamento das demandas prementes de nossas sociedades, na medida em que passa a valer, fundamentalmente, a produtividade dos pesquisadores, medida, principalmente, em termos de publicação em periódicos, especialmente nos internacionais, com uma consequente provável obnubilação do foco nas questões que atingem mais diretamente nossas realidades e especiicidades. Se a qualidade da ciência, da tecnologia e da inovação de nossas sociedades é medida, fundamentalmente, pelos critérios predominantes dos países que as dominam internacionalmente, é óbvio que qualquer esforço que venha a divergir de tais critérios implica certo descrédito por parte da chamada “comunidade cientíica internacional”. Não se trata aqui de criar falsas dicotomias do tipo qualitativo versus quantitativo, tampouco de negar a importância de determinados indicadores, como o número de publicações, a taxa de produtividade de artigos cientíicos, o número de patentes e assim por diante. Porém quer-se chamar a atenção para que tais critérios não sejam reiicados a um ponto de inviabilizar o exame pertinente de questões que dizem respeito mais de perto ao contexto da América Latina e de suas múltiplas diversidades. Por exemplo, por que não valorizar o grau de conectividade entre os ambientes acadêmicos e de inovação às indústrias locais, a sua realidade rural, aos seus movimentos sociais e a demais esferas da sociedade? Indicadores que venham a incentivar tais interfaces poderão ter um peso muito maior em nossas sistemáticas de avaliação de C,T&I, com consequências compensadoras em todas essas esferas, em termos de benefícios econômicos e sociais. Outro exemplo a considerar é o de um critério que estabeleça forte valorização aos projetos e conhecimentos que efetivamente produzam resultados positivos na economia e na sociedade – na educação, na saúde, nos transportes públicos e na segurança, entre outros. Tudo isso requer uma reorientação em determinados padrões de conduta dos pesquisadores para ampliar os horizontes de intervenção na realidade. E projetos que também ampliem as possibilidades de integração entre diferentes países da América Latina e que possam trocar informações e compartilhar experiências práticas enriquecedoras e bem-sucedidas também é outro aspecto a ser considerado numa reorientação de nossas sistemáticas de avaliação. É a esse esforço combinado, de gerar novos conhecimentos em maior articulação com a sociedade e com suas demandas concretas e urgentes, 193 Soc&Conh-FINAL.indd 193 22/11/2016 12:06:32 que se está chamando de ambientes democráticos de produção de C,T&I; ou, como se designou anteriormente, uma ciência, uma tecnologia e uma inovação bem articuladas. Isto é, bem respaldadas socialmente, mais bem legitimadas pela sociedade. Desse modo, a expressão “articulada” ou “bem articulada” para a C,T&I é adequada para esses propósitos de argumentação, na medida em que: de um lado, preserva a autonomia cientíica e valores considerados relevantes para os cientistas (não se estaria a falar de ordenada, regulada, comandada ou qualquer coisa que signiicasse diminuir o que esses indivíduos consideram valioso para eles próprios em suas atividades proissionais), e, de outro lado, não dá à ideia de autonomia caráter absoluto, soberano, que não precisasse também estar bem sustentada por outros indivíduos, os cidadãos comuns – legitimada, como costumamos dizer. Na linguagem corriqueira da sociedade brasileira, quando dizemos que “alguém é bem articulado”, queremos dizer, por exemplo, “que se expressa bem”, ou que “tem bons contatos”, “especialmente políticos”, enim, que é uma pessoa “inluente e sociável”. Pois todos esses sentidos são os que se pretende aqui ao se referir à C,T&I bem articulada. Assim, essa noção signiica a ideia de uma C,T&I que é tanto bem articulada internamente, no âmbito das várias comunidades cientíicas e de pesquisadores, entre si, ou entre as várias áreas e subáreas do conhecimento – que se “expressam bem”, se comunicam bem entre si –, quanto é bem articulada com o seu ambiente externo, com a sociedade de um modo geral – com a qual, igualmente, deve se expressar e se comunicar bem – e com o contexto internacional. Na linha das formulações de Max Weber, a noção de uma C,T&I bem articulada seria um tipo ideal. Rigorosamente, precisaria explicitar, antes de qualquer coisa, a medida do que se poderia considerar bem articulada, ou seja, os critérios para se dizer o quão bem C,T&I estariam, ou não, articuladas. Porém não se tenciona avançar, no momento, nessa discussão. Talvez agora isso não seja relevante para os propósitos do ensaio. Poderíamos não chegar a nada ou a nenhum conjunto de indicadores factíveis, dada a enorme complexidade do fenômeno cientíico, tecnológico e inovativo e de suas múltiplas possibilidades de realização, que deve se originar de debates mais ampliados com os atores mais diretamente ligados ao tema, os pesquisadores e os formuladores de políticas para a C,T&I. 194 Soc&Conh-FINAL.indd 194 22/11/2016 12:06:32 Contudo, ainda assim, a noção de uma C,T&I bem articulada pode ser útil para identiicarmos problemas que apontem para graves bloqueios de comunicação ou de articulação interna e externa dessas atividades; para aquilo que alguns autores da área da administração chamam de problemas de falta de “sinergia” ou de conectividade, como referido anteriormente, ou que os cientistas sociais chamariam de “problemas de integração”. Nesse sentido, uma C,T&I bem articulada é aquela que possui boa sinergia interna e externa; no extremo oposto, a que apresenta graves problemas de articulação, comunicação e integração. No entendimento de Kitcher (2001) e de Brown (2001), há grande débito da ciência moderna para com o que eles chamam “menos favorecidos” da sociedade, como se comentou brevemente no início da seção. Muitos autores poderiam discordar radicalmente da ideia de que a ciência, a tecnologia e a inovação contemporâneas, de um modo geral, não estejam bem articuladas (segundo a acepção apresentada há pouco), reunindo argumentos em favor do apoio cotidiano e do prestígio aparente da ciência, da tecnologia e da inovação, no interior da sociedade, em razão de sua contínua demonstração de capacidade realizadora, e em razão do fascínio que exercem na consciência dos indivíduos (próximo à linha das discussões de Herbert Marcuse e Jürgen Habermas sobre a ideia de que ciência e tecnologia se constituem, no atual estágio do capitalismo, em fundamento de legitimação da própria dominação tecnocrática). Mas pretende-se insistir na necessidade de um pouco mais de ceticismo quanto a isso, pois o mundo social, a vida real, sempre tende a nos surpreender, como temos assistido no Brasil às manifestações de rua, nos últimos anos. Em meio a inúmeras reivindicações, muitas vezes difusas, há sinais evidentes de um desconforto generalizado com o “sistema”. Cabe perguntar: em que medida esses fatos se relacionam com o tema deste trabalho? Que sinais nos enviam as ruas de que algo precisa mudar em nossas atividades de produção de C,T&I? Será necessário esperar que esses reclamos cheguem mais perto dessas atividades e passem a questionar mais seriamente o destino do dinheiro público para tais atividades? Como sua legitimidade poderia ser mais duramente abalada? Um dos propósitos desta relexão é chamar a atenção para esses questionamentos, que somente fazem sentido em ambientes e em sociedades que têm se empenhado seriamente em aprimorar suas democracias. 195 Soc&Conh-FINAL.indd 195 22/11/2016 12:06:32 Esses questionamentos estão relacionados ao que se tem chamado de exercício de uma cidadania mais ativa ou atuante, nos países da América Latina, no que concerne aos rumos de sua C,T&I. Isso ressalta o papel das grandes mídias, abrindo espaços e programas que possam esclarecer melhor sobre diferentes aspectos da C,T&I contemporânea, como informações mais idedignas e claras sobre os novos resultados das pesquisas – separando o que é mito do que é realidade, por exemplo, quanto aos “transgênicos”, às pesquisas sobre células-tronco, à educação a distância e ao diagnóstico genético pré-implantação (DGP) –, seus riscos e também seus reais benefícios. Nesse contexto de uma cidadania ativa acerca da C,T&I, as escolas também assumem grande importância na formação das crianças e dos adolescentes sobre o atual contexto de revoluções cientíicas e tecnológicas, ao não se limitar, meramente, a apresentar os conteúdos das matérias de física, química, biologia e sociologia, por exemplo, mas ampliar as discussões sobre as várias relações entre essas áreas do conhecimento e o papel que assumem no desenvolvimento das sociedades, bem como os compromissos éticos para com os diferentes públicos que integram a sociedade. Finalmente, os governos, as organizações não governamentais e as próprias empresas privadas podem estimular e criar muitos fóruns de discussão, no interior da sociedade, visando se articular melhor aos esforços desenvolvidos pelos cientistas e demais pesquisadores, sem deixar de contar, obviamente, com a necessidade de maior aporte de recursos inanceiros, não apenas para a própria pesquisa, mas para toda essa gama de novas atividades que precisam ser fomentadas. Na próxima seção, será discutido mais especiicamente o papel das universidades diante desse cenário de produção consequente de C,T&I, ao se ressaltar as suas muitas interfaces. 196 Soc&Conh-FINAL.indd 196 22/11/2016 12:06:32 As interfaces da ciência, tecnologia e inovação com as universidades Não é nenhuma novidade a importância que as universidades e as demais instituições de ensino superior têm ganhado no contexto atual do desenvolvimento cientíico, tecnológico e inovativo. Isso não se deve apenas à maior procura de jovens e adultos por esse nível de ensino, seja para a formação proissional, seja para a maior qualiicação dos egressos, mediante os cursos de especialização e de pós-graduação. Deve-se, também, ao fato de que é de lá que tem se originado parte substancial dos resultados cientíicos, tecnológicos e inovativos, indispensáveis ao avanço do conhecimento e fundamentais para o próprio desenvolvimento econômico e social. As inovações – que são produtos e processos inseridos no âmbito da atividade econômica, nas indústrias, na agricultura e no setor dos serviços e que dependem, muitas vezes, dos conhecimentos cientíicos e tecnológicos – são o fator crucial para a maior competitividade e crescimento econômico das empresas e dos países. Não obstante, há ainda muito o que se fazer para aumentar a conectividade entre as universidades e a C,T&I, nas sociedades latino-americanas, a julgar pelos inúmeros estudos produzidos a esse respeito, como os realizados pelo Centro de Estudos e Gestão Estratégica (CGEE) do Brasil. No caso brasileiro, um conjunto de situações distintas, comparativamente a um período de 30 anos atrás, passa a fazer parte do atual contexto de desenvolvimento cientíico-tecnológico e inovativo, condicionando muitos ambientes e realidades culturais. De um momento mais verticalizado, dirigido, concentrado (no contexto do regime militar), passa-se a um cenário de globalização e maior democratização dos processos de produção, difusão e acesso aos conhecimentos especializados. Novos critérios de qualidade – que ultrapassam o domínio exclusivo do meio acadêmico, envolvendo a qualidade de vida, valores de uso, o custo do acesso a novos produtos e processos, bem como as inúmeras questões éticas, relativas ao controle do conhecimento – fazem parte, agora, de intensas e ampliadas redes de relações e negociações entre atores tradicionais e novos, implicando aumento considerável da complexidade do processo decisório. Esse fato compõe cenário importante a considerar na busca para construir uma C,T&I bem articulada, conforme formulação na seção 197 Soc&Conh-FINAL.indd 197 22/11/2016 12:06:32 anterior, no Brasil. Tudo isto tende a ressaltar a atuação política do Estado e de suas agências, bem como o papel de produtor de conhecimentos e de formação de recursos humanos das universidades e das instituições de ensino superior. Ademais, veriicam-se mudanças importantes nos padrões de antigas proissões e nos peris de trabalho, que demandam maior capacidade inovadora e empreendedora. De um lado, a sociedade brasileira aponta para a valorização do conhecimento e para a possibilidade de ampliação de novos serviços, e, de outro, antigas visões de estabilidade no emprego e de crescente “terceirização” de inúmeras atividades, antes desenvolvidas pelas próprias empresas ou órgãos públicos, levam os indivíduos a buscar o aprimoramento pessoal, a atualização de conhecimentos e a realização de novas ideias para aumentar suas chances de sucesso em ambiente crescentemente competitivo. Grandes conglomerados passam a dividir espaços com pequenas empresas; pesadas indústrias relacionam-se com inúmeras redes de microempreendedores e serviços proissionais inéditos; grandes mudanças nos processos produtivos, nas fábricas e nas empresas agrícolas diminuem o tempo de trabalho e favorecem a proliferação das atividades ligadas ao lazer, ao turismo e a outras iniciativas no gênero, ampliando as possibilidades de contratação de pessoal e de atuação autônoma. Desse modo, seja para preparar novos proissionais para esse cenário, seja para desenvolver importantes conhecimentos cientíicos e tecnológicos, em sua relação com os processos econômicos, e para responder a novas demandas sociais por qualidade nos serviços públicos, bem como a um conjunto grande de problemas e preocupações que passam a fazer parte do cotidiano das sociedades, o papel das instituições de ensino superior e das universidades é consideravelmente destacado. Antigas formas de gestão acadêmica e pedagógica passam a ser confrontadas com a necessidade de agilidade e lexibilidade administrativa. As pressões sociais se fazem sentir mais irmes e decisivas nos seus setores representativos e nas instâncias políticas e decisórias da sociedade. Os governos passam a questionar mais a qualidade dos resultados provenientes das universidades e das instituições responsáveis pela formação de recursos humanos para o mercado de trabalho, repercutindo cobranças da sociedade. As instituições de ensino superior são instadas a mudar processos, rotinas, currículos e a sua própria forma tradicional de inserção e rela- 198 Soc&Conh-FINAL.indd 198 22/11/2016 12:06:32 cionamento com a sociedade. Tudo isto ocorre num momento em que se veriicam a ampliação de novas vagas, cursos e estratégias de competição entre essas instituições, redirecionando antigas formas de disputa, envolvendo o setor público/estatal e o setor privado. No conjunto dessas novas demandas e pressões sociais pelo ensino superior de qualidade, a pesquisa e a extensão ganham novos contornos e passam a apontar para outros signiicados e para um papel diferenciado, envolvendo as instituições públicas e aquelas comandadas pelos grupos privados. Ou seja, não se trata, hoje, de meramente aplicar a mesma concepção, entendimento e prática em relação à pesquisa e à extensão que dominam os ambientes universitários públicos e o segmento privado do ensino superior brasileiro; ao contrário, cabe buscar formas mais adequadas a diferentes contextos organizacionais. Os espaços que se abrem à iniciativa privada, no campo do ensino superior brasileiro, são inúmeros. Porém ainda persistem a lógica dominante das instituições públicas e o tratamento cientiicista que preside as suas práticas de ensino, pesquisa e extensão, que acabam por inluenciar e nortear toda a política desse setor da educação no país, atingindo as sistemáticas de avaliação e o reconhecimento de novos cursos. Nesse sentido, ao minimizar ou desconhecer as especiicidades das organizações privadas, suas trajetórias históricas e peculiaridades, as avaliações e demais medidas lançadas pelo nível federal, tendem a produzir nivelamento problemático no conjunto das instituições de ensino superior, diicultando o aparecimento de formas mais criativas de ensino, pesquisa e extensão, bem como de funcionamento e gestão dessas organizações – o que acaba por limitar o atendimento adequado à formação de recursos humanos para C,T&I, no país. Se, de um lado, as universidades públicas têm concentrado o esforço de pesquisa e desenvolvimento tecnológico no país, de outro lado, pela sua natureza, cultura e estrutura interna, têm apresentado maior diiculdade de adaptação às demandas e transformações operadas no contexto atual do avanço cientíico-tecnológico, comparativamente a algumas instituições particulares congêneres. Se considerarmos que no contexto dos próximos dez anos torna-se indispensável um aumento considerável no acesso da população aos resultados dos novos conhecimentos, a im de garantir mão de obra condizente com os desaios trazidos pelo desenvolvimento cientíico-tecnológico, a 199 Soc&Conh-FINAL.indd 199 22/11/2016 12:06:32 baixa proporção de estudantes no ensino superior, relativamente à população jovem e em vias de ingressar no mercado de trabalho, é um dos fatos mais preocupantes quando se trata de pensar a formação de recursos humanos para a C,T&I no Brasil. Outro aspecto a ser considerado é o descompasso entre o ritmo de elevação nos indicadores referentes ao aumento do acesso ao ensino superior brasileiro e a demanda, em velocidade muito superior, proveniente das indústrias e dos setores produtivos mais dinâmicos, por proissionais qualiicados e muito especializados. Percebe-se, ainda, desarticulação entre as políticas setoriais – da educação, indústria e comércio com a ciência, tecnologia e inovação –, levando a que muitos dos resultados esperados pelas iniciativas já em curso não conluam para os objetivos requeridos pela sociedade. Veriica-se crescente interesse por novos conhecimentos e maior facilidade de acesso a esses saberes, bem como a forte disposição dos setores produtivos para adaptação de novos conhecimentos às necessidades locais, além da existência de ampla força de trabalho. Porém constata-se a insuiciência de centros de formação proissional e uma grande dependência do que se designa “conhecimento tácito”. Outro aspecto importante a considerar, além da necessidade de se intensiicarem medidas para melhorar a qualidade e os indicadores de pessoal formado nas instituições de ensino superior, é a importância de se aprofundar a discussão e se buscar novas sistemáticas de certiicação proissional, a im de se poder responder adequadamente aos novos problemas, em tempo, na competição que deverá se intensiicar daqui para frente, em nível internacional. Com o maior intercâmbio cientíico e tecnológico, no contexto da globalização, a certiicação e a revalidação de diplomas são temas cruciais, e extremamente complexos de serem acertados entre as várias partes interessadas, pois envolvem atores com histórias e peris muito diferentes, no mais das vezes, se colocando como inconciliáveis, entre estes, empresários, pesquisadores, jovens talentos e hierarquias acadêmicas tradicionais. Na perspectiva da consolidação de uma C,T&I bem articulada, este é um aspecto especialmente sensível na realidade brasileira, dado o intrincado jogo político (e muitas resistências) entre associações proissionais e comunidades cientíicas, para avançar em perspectivas consideradas “ousadas”, como a da certiicação e da revalidação de diplomas. 200 Soc&Conh-FINAL.indd 200 22/11/2016 12:06:32 O chamado “novo modo de produção do conhecimento” aponta para a ênfase no “enfoque transdisciplinar”, em maior diversiicação e heterogeneidade quanto aos tipos de atores e interesses que condicionam o atual contexto cientíico-tecnológico e inovativo, no surgimento de novas formas de articulação entre as organizações que integram a atividade cientíico-tecnológica e inovativa, em maior interação entre universidades e indústrias, e na formulação de novos critérios e indicadores de qualidade dos produtos gerados pela prática cientíico-tecnológica – não se restringindo apenas a cânones e expectativas de pares de cientistas –, e, de outro lado, ainda se constata, no Brasil, a prevalência de determinadas estruturas burocráticas emperradas e de organização do conhecimento com padrões de funcionamento que diicultam progredir na linha das novas possibilidades de articulação com os muitos atores mais diretamente envolvidos com a C,T&I. Na busca de se construir uma nova maneira de organizar e orientar as ações nas interfaces entre as universidades e a C,T&I, no Brasil, é bastante evidente uma distância entre o que é apontado como necessário para o país avançar em seu esforço de superação de barreiras para um desenvolvimento mais amplo e efetivo em suas diferentes áreas, bem como para vencer mazelas sociais persistentes, e o que é existente hoje. Os temas da melhoria da qualidade das instituições, da formação de recursos humanos e da adequação da base técnico-cientíica e inovativa brasileira aos grandes e imediatos desaios de sua sociedade trazem, centralmente, a problemática da avaliação institucional e dos programas e cursos de graduação e pós-graduação para o debate. Hoje, os órgãos governamentais brasileiros precisam avançar bem mais na discussão e readequação das atuais sistemáticas de avaliação da pós-graduação e da C,T&I. No momento em que se discutem questões de grande impacto, como a aproximação da universidade com o setor produtivo e com demais setores e movimentos da sociedade e a busca de novos indicadores de qualidade para os processos inovativos e de transferência de tecnologia, que contemplem também novas formas de organização e de produção do conhecimento, faz-se necessário repensar alguns aspectos presentes nesses modelos. O argumento básico é que as abordagens tradicionais de avaliação, calcadas, fundamentalmente, em uma perspectiva “disciplinar”, são inadequadas para dar conta da complexidade da produção atual de C,T&I, que se constitui, tipicamente, como um “fenômeno de redes”. Em outras palavras, 201 Soc&Conh-FINAL.indd 201 22/11/2016 12:06:32 as abordagens tradicionais de avaliação de programas de C,T&I, no país, não são suicientes para mensurar satisfatoriamente aspectos e realidades importantes em áreas de ponta do desenvolvimento cientíico-tecnológico e inovativo contemporâneo; ou não são adequadas para dar conta de responder aos novos questionamentos e demandas provenientes de vários setores da sociedade, não apenas os que repercutem interesses dos setores produtivos, mas também do grande público e das necessidades sociais prementes, apontadas na primeira seção. Assim, a discussão a respeito das sistemáticas de avaliação da ciência, tecnologia e inovação e dos programas de graduação e de pós-graduação constitui aspecto central na construção de nova agenda para essas áreas, na realidade brasileira e, quiçá, em outros países latino-americanos, dadas as várias semelhanças, em inúmeros aspectos. À guisa de conclusões: desafios para a sociedade brasileira e a América Latina Diante do que se discutiu nas seções anteriores, são muitos os desaios que estão à frente das universidades e de suas interfaces com a produção de C,T&I em ambientes democráticos, a exemplo da sociedade brasileira. São algumas questões de difícil conciliação, pois envolvem atores com perspectivas ideológicas e políticas bem arraigadas, que precisam ser consideradas, para não se cair nas discussões puramente tecnocráticas. A ideia de uma C,T&I bem articulada fortalece a arena política de decisões e a necessidade de se ampliar consideravelmente o grau de informação sobre os mais variados assuntos para o grande público. Tudo isso passa por questões muito complexas, mas inadiáveis. Por exemplo, como enfrentar o desaio referente ao descompasso entre o ritmo de crescimento do número de estudantes em universidades e demais instituições de ensino superior e a demanda por proissionais qualiicados e muito especializados nos setores produtivos? Como ampliar o número de vagas nas instituições de ensino superior, sem comprometer a qualidade dos cursos e dos proissionais formados? Como enfrentar as resistências históricas nas relações entre diferentes atores das universidades com demais setores da sociedade? Particularmente, as relações entre empresários e pesquisadores? Como estes últimos, envolvidos nas atividades de C,T&I reagiriam diante da necessidade, aqui defendida, de novos valores para 202 Soc&Conh-FINAL.indd 202 22/11/2016 12:06:32 suas orientações de conduta, como o maior compromisso com a transformação da realidade concreta e da superação de problemas históricos de suas sociedades? Enim, um dos principais desaios a constar de uma agenda consequente para a formação de recursos humanos e para o aumento das sinergias entre as universidades e a produção de C,T&I, diante dos imperativos do setor produtivo e de muitos outros setores da sociedade, menos aquinhoados, é, certamente, o da “gestão para a qualidade”, e da mudança em suas sistemáticas de avaliação de C,T&I. Veriica-se que o país dispõe de boa capacidade cientíica instalada e que apresenta bons indicadores de publicação, porém níveis muito baixos em termos de patentes e de conhecimentos aplicados nos processos produtivos, e de transferência de conhecimentos para a melhoria de muitas demandas sociais, na educação, na saúde, na segurança e nos transportes públicos, por exemplo. Esses são os grandes desaios para a produção de C,T&I em sua articulação com as universidades, na sociedade brasileira, e que se estima, também, com maior ou menor proximidade em outros países da América Latina. Referências BROWN, J. R. 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Belo Horizonte: Fabrefactum, 2012. 203 Soc&Conh-FINAL.indd 203 22/11/2016 12:06:33 Soc&Conh-FINAL.indd 204 22/11/2016 12:06:33 Inovação, cooperativismo e desenvolvimento inclusivo: repensar a mudança tecnológica e a inclusão social Hernán homas Lucas Becerra O presente capítulo tem por objetivo analisar criticamente um conjunto de sentidos estabelecidos relacionados ao tipo e ao caráter das unidades produtivas que devem ser privilegiadas como reguladoras de um sistema de inovação e produção. De modo sucinto, a teoria econômica sobre mudança tecnológica e inovação considera: i) a inovação como resultado da competição dinâmica entre empresas maximizadoras de lucro; ii) que essa competição, geradora de novas mercadorias e de novas técnicas de produção, traduz-se necessariamente em maiores taxas de crescimento econômico; e iii) uma vez que (por deinição) os loci da inovação são as empresas maximizadoras de lucro, estas devem ser consideradas como o ator chave das políticas públicas de inovação. Partindo da avaliação crítica desses enunciados, este capítulo pretende posicionar, através de exposição teórica, as cooperativas de trabalho como atores dinamizadores de processos de inovação e de desenvolvimento social. Busca-se aqui, particularmente, hierarquizar estas unidades produtivas no âmbito de ação das políticas públicas de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I). Assim, a hipótese de trabalho trata de mostrar que mudar o centro de atenção para as cooperativas de trabalho pode ativar um conjunto de dinâmicas de aprendizagem, circulação de conhecimentos e geração de Soc&Conh-FINAL.indd 205 22/11/2016 12:06:33 capacidades técnico-produtivas que revertem em processos mais democráticos de apropriação do conhecimento e de geração de valor agregado. Nesse sentido, o capítulo apresenta uma revisão focada na literatura econômica relativa ao papel da empresa em termos de inovação, para em seguida questionar esses princípios. Do ponto de vista metodológico, utiliza-se uma abordagem conceitual que combina conceitos da sociologia da tecnologia, em especial da análise sociotécnica (homas, 2008a; 2008b; e 2009) e da economia da aprendizagem (Lundvall, 1992). As principais ferramentas teóricas utilizadas são: co-construção, relações problema-solução, funcionamento/ não-funcionamento, aliança sociotécnica e sociedade da aprendizagem. Finalmente, como resultado desse exercício, apresenta-se um conjunto de relexões relacionadas às políticas públicas de ciência, tecnologia e inovação orientadas ao desenvolvimento inclusivo. Economia, tecnologia e desenvolvimento: do status teórico às implicações analíticas A tecnologia (enquanto artefatos, processos e formas de organização), em suas distintas variantes,1 foi uma questão essencial no desenvolvimento da teoria econômica. Desde os clássicos de Adam Smith e de Karl Marx, as formas como a tecnologia, o capital e o trabalho se vinculam entre si têm atraído interesse no sentido de caracterizar os determinantes da geração de valores de mudança e da geração-acumulação da riqueza (MacKenzie, 1984). Esses determinantes foram codiicados e sintetizados (e, a partir daqui, tem início um extenso trajeto teórico) por Robert Solow (1956; 1962) na seguinte tese: “Em longo prazo (isto é, com uso pleno dos recursos), a taxa de crescimento de uma economia é igual à sua taxa de progresso técnico”. Já no nível da irma (isto é, em termos microeconômicos), o enfoque neoclássico voltou-se para a análise da relação entre os preços relativos dos fatores e as modiicações na função de produção. Diferentes escolas de pensamento econômico, em diferentes momentos históricos, atribuíram um conjunto diverso de signiicados e signiicantes à dimensão tecnológica: “progresso técnico”, “desenvolvimento das forças produtivas”, “modiicação da técnica”, “mudança tecnológica”, “inovação,” etc. 1 206 Soc&Conh-FINAL.indd 206 22/11/2016 12:06:33 Esta escola trabalha com o pressuposto de que o capital constitui uma unidade homogênea que pode adquirir diferentes formas de artefatos (maquinarias) e de processos (técnicas) que permitem plena lexibilidade das taxas de participação dos fatores capital e trabalho no processo de produção. Nesse sentido, se as relações capital/trabalho sofrem alteração a partir de modiicações nas taxas de salários e de benefícios, os empresários podem escolher entre um conjunto de técnicas disponíveis, ou desenvolver novas, com o objetivo de aumentar a eiciência em termos de economia de uso dos fatores de produção.2 Metodologicamente, a plena permutabilidade dos fatores, a qual possibilita a escolha de distintas técnicas, formaliza-se com a construção de uma “função de produção”. Dada uma certa função de produção, a tecnologia se reduz a um conjunto de informação codiicada e disponível que pode ser ordenada de forma contínua em função das diferentes relações capital/trabalho. No entanto, na discussão que deu origem à “Controvérsia de Cambridge”, Srafa (1960), Pasinetti (1969) e Robinson (1953) inverteram o argumento neoclássico. Para esses autores, a relação de causalidade não se dá do vetor de taxas de salários e lucros para a seleção do tipo de técnica, mas ao contrário. Os neo-ricardianos sustentam que é a escolha da técnica que determina a distribuição da receita, e não esta última que determina a escolha da técnica. Esta mudança de enfoque possibilita a existência do reswitching de técnicas. O valor de um determinado bem de capital, em um dado momento, é a soma do valor do trabalho acumulado (tempo de trabalho multiplicado pelo salário médio) correspondente a diferentes períodos, com a taxa de lucro correspondente. Assim, quando aumenta a taxa de lucro (o que por extensão implica uma diminuição da taxa de salário), o valor de uma merEmbora prima facie possa parecer que a posição neoclássica é monolítica, há uma controvérsia relacionada às dinâmicas de tomada de decisão sobre a mudança nos processos de produção. A primeira perspectiva sustenta que mudanças nos preços relativos dos fatores estimulam modiicações na técnica de produção com um viés para a economia daquele fator de produção (capital ou trabalho) que encareceu relativamente (Hicks, 1932). A segunda posição argumenta que, frente a um aumento nos preços de um fator produtivo, buscam-se ou adotam-se modiicações na técnica, as quais tendem a reduzir o custo total de produção, independentemente do fator que essa nova técnica economiza (Salter, 1960). 2 207 Soc&Conh-FINAL.indd 207 22/11/2016 12:06:33 cadoria (ou, neste caso, de um bem de capital) sofrerá tensões: aumentará o valor relativo do trabalho correspondente a períodos anteriores e diminuirá relativamente o valor do trabalho correspondente a períodos mais recentes. Desse modo, sendo o capital uma categoria heterogênea (e não homogênea como sustentam os neoclássicos), é possível que se utilize uma mesma técnica intensiva em capital, escolhida para uma taxa de salários elevada, quando os salários baixam (o que, na visão neoclássica, implicaria a necessária mudança para uma técnica intensiva em trabalho). Isso é o que a economia neo-ricardiana denomina reswitching de técnicas. Vale observar que, se uma técnica intensiva em capital (portanto, econômica em trabalho) pode ser utilizada também quando a taxa de salários diminui, então o resultado inal é uma distribuição da riqueza gerada pelo sistema que favorece os proprietários do capital. Portanto, o tipo de técnica escolhida viabiliza processos de concentração funcional da renda em favor dos proprietários de um tipo de fator. O inverso também é válido: se uma técnica intensiva em trabalho pode ser utilizada quando os salários sobem, então se produz uma concentração da riqueza em favor dos assalariados. O enfoque proposto pela economia da mudança tecnológica (Schumpeter, 1928; Usher, 1955; Nelson, 1995; Freeman, 1987) constitui uma forma de pensar todo um conjunto de fenômenos econômicos, na medida em que se busca abrir a “caixa preta” da tecnologia (Rosemberg, 1982). Para a assim chamada escola neo-schumpeteriana, a mudança tecnológica é entendida tanto como uma modiicação da técnica (orientada à melhoria da eiciência) quanto como o desenvolvimento de novos produtos que permitem a criação de novos mercados e a obtenção de ganhos suplementares pela geração de monopólios naturais. Assim, as empresas já não concorrem apenas com base nos preços, mas também em termos dinâmicos, buscando não icar “ultrapassadas” no desenvolvimento tecnológico. Nesse sentido, na medida em que a atividade das empresas se desenvolve em ambientes competitivos, existe um incentivo à inovação, pois as mesmas asseguram sua própria continuidade mediante a acumulação do capital, produto da obtenção de rendas crescentes. Em outras palavras, para esta escola, a inovação é própria de um sistema em que a competição comanda as normas sociais de convivência entre as irmas. Mas quais são os processos ou mecanismos que viabilizam a inovação? A economia evolucionista sustenta que a inovação se assenta em processos auto-organizados que envolvem não só fatores tecnológicos, mas 208 Soc&Conh-FINAL.indd 208 22/11/2016 12:06:33 também do “contexto ou ambiente” no qual se desenvolvem os processos de inovação. A introdução do conceito de processos auto-organizados permite incorporar ao corpus conceitual-analítico a possibilidade de mudança na conduta dos agentes, os incentivos a adotar novas tecnologias e as capacidades para utilizar uma inovação de modo eiciente (Yoguel, 2000). A inovação e a difusão são partes constitutivas de um mesmo processo. Nesse sentido, as inovações podem alterar-se em função de melhoras incrementais, de sua própria difusão. Para López (1998, p. 10, tradução nossa): Durante a etapa de difusão, as irmas apresentarão distintos comportamentos – algumas serão adaptadoras precoces, outras preferirão esperar, etc. –, e, em função não só de fatores tecnológicos, mas fundamentalmente do ambiente em que se desenvolve o processo, as diversas estratégias receberão recompensas diferenciadas, com perdedores e ganhadores. Embora essa diversidade possa, evidentemente, ter consequências negativas para certas irmas, no nível sistêmico ela é essencial para materializar o potencial do processo de desenvolvimento coletivo. Na mesma linha, Lundvall (1992) desenvolve o conceito de Sistemas Nacionais de Inovação (SNI). Os SNI se fundam sobre duas estruturas básicas – a da produção e a institucional. Segundo Johnson e Lundvall (1994, p. 697), um SNI contém: [...] todos os elementos que contribuem para o desenvolvimento, introdução, difusão e uso de inovações, incluindo não só universidades, institutos tecnológicos e laboratórios de pesquisa e desenvolvimento, mas também elementos e relações aparentemente distantes da ciência e da tecnologia. A abordagem de Lundvall (1992) está centrada na consideração da sociedade como um ator coletivo do processo de inovação, que desenvolve ações de aprendizagem constantes, diversas e complexas, associadas a atividades rotineiras de produção, distribuição e consumo, as quais se constituem em insumos para o processo de inovação. Tais atividades incluem diversas aprendizagens learning-by-doing (Arrow, 1962), learning-by-using (Rosenberg, 1982) e learning-by-interacting (Lundvall, 1988). Por essa via e com base nos conceitos de learning society e learning economy, Lundvall chega à identiicação de um novo modelo explicativo para a dinâmica inovativo-produtiva (Christensen; Lundvall, 2004). 209 Soc&Conh-FINAL.indd 209 22/11/2016 12:06:33 O enfoque de Lundvall (1992) sobre os SNI sustenta-se essencialmente no pressuposto de que a atividade inovadora reside no sistema e não é redutível a suas partes componentes: “O importante no SNI não é tanto a característica individual de cada componente, mas sim as relações e o tipo e grau de integração entre os mesmos” (homas; Gianella, 2008, p. 44, tradução nossa). Mas então, se a competição constitui a força motriz da inovação empresarial e se as empresas capitalistas necessitam instrumentos jurídico-normativos para apropriarem-se da riqueza gerada pela inovação, tal dinâmica não entra em contradição com o processo coletivo mais geral, em que a geração e circulação de conhecimento se dão no nível das sociedades? Modelo interativo sociocognitivo: inovação inclusiva e sociedade da aprendizagem Quando se transfere o foco analítico das empresas para outros tipos de organizações, detectam-se outras formas de inovação em outros âmbitos: instituições (públicas e privadas) de pesquisa e desenvolvimento (P&D), organismos governamentais, instituições de base social, ONGs e cooperativas. Normalmente, esses tipos de organizações não iguram nos estudos de caso e tampouco nas discussões teóricas dos economistas da inovação e da mudança tecnológica. Pensado na perspectiva de um modelo analítico-explicativo, este conjunto heterogêneo de organizações pode ser entendido em termos de um sistema complexo de interações sociocognitivas em que se desenvolvem dinâmicas de geração e circulação de aprendizagens, conhecimentos, relações problema-solução e capacidades. Um modelo sistêmico como esse exige a combinação de aportes teóricos da economia da aprendizagem e da sociologia da tecnologia. Os trabalhos sobre as dinâmicas e mecanismos de aprendizagem (Lundvall, 1992; Johnson e Lundvall, 1994) centram sua atenção sobre os processos de tipos learning-by-doing, learning-by-using e learning-by-interacting. Essas três “formas” de aprendizagem estão relacionadas a diferentes tipos de interação: a) no learning-by-doing, as aprendizagens resultam de uma interação entre um ator (com seu respectivo acervo de conhecimentos, informação e práticas), com relação a novas práticas tecnológicas, institucionais 210 Soc&Conh-FINAL.indd 210 22/11/2016 12:06:33 e sociais, e conhecimentos codiicados e tácitos relativos a um artefato, atividade produtiva e/ou uso social; b) por sua vez, no learning-by-using as aprendizagens resultam da interação entre atores e coisas, mediante a qual, em um processo dinâmico, conigura-se a capacidade do ator para utilizar, transformar e dispor do artefato de forma plena; e inalmente, c) o conceito de learning-by-interacting busca dar conta dos processos de aprendizagem resultantes das interações entre os atores (instituições) que compõem um sistema nacional de inovação e produção. De modo similar, a sociologia da tecnologia concentra-se mais nas interações do que nas acumulações (Callon, 1992; homas, 2008a; 2008b) e, em particular, pensa os fenômenos em que as sociedades e seus dotes tecnológicos são co-construídos (Bijker, 1995; homas, 2008b). Os artefatos são co-construídos com seus usuários, os produtores com os usuários, as sociedades com as tecnologias que utilizam. Porque, no mesmo processo sociotécnico em que tecnologias são concebidas, produzidas e utilizadas, constroem-se relações sociais de produção, de trabalho, de comunicação, de convivência. A resultante da “hibridação” de ambos os aportes é o que neste capítulo se denomina “modelo interativo sociocognitivo” (ver Gráico 1). Esse modelo busca, a partir de uma perspectiva sistêmica, dar conta das interações entres atores heterogêneos (universidades, empresas, cooperativas, institutos de P&D, ONGs, organismos públicos e usuários inais), processos (relações problema-solução e aprendizagens) e práticas (conhecimento e capacidades). A partir do enfoque construtivista, os processos e práticas são produto da interação entre os atores, mas esses atores, por sua vez, constituem suas identidades, conformam ideologias, ativam ou impedem processos de inovação e mudança sociotécnica em função da ativação de processos particulares e da produção, reprodução e circulação de práticas concretas. 211 Soc&Conh-FINAL.indd 211 22/11/2016 12:06:33 Gráico 1. Modelo interativo sociocognitivo: caso geral Fonte: Elaboração própria O modelo geral pressupõe livre circulação de conhecimentos, luidez nas interações entre os diferentes atores que conformam o sistema, o que em termos ideais possibilita a geração de aprendizagens e capacidades baseada na participação ampla e aberta da construção dos problemas e na democratização das soluções. Em sua versão ideal, a maximização dos processos de interação garante a geração de novas aprendizagens e, por extensão, processos inovadores e de mudança tecnológica sustentáveis ao longo do tempo, orientados à satisfação das necessidades e exigências técnico-cognitivas das sociedades. No entanto, na prática, os sistemas podem apresentar nós ou elementos-chave que deinem um “estilo” sistêmico. Nesse sentido, um sistema pode girar em torno de um conjunto particular de instituições, como as empresas maximizadoras de lucros. Qual a implicação disto? A coniguração das relações problemas-solução, a geração de conhecimento, o aumento de capacidades e o rumo das aprendizagens se orientam quase exclusivamente à potencialização do papel da empresa como “agente inovador”. A matriz material que conigura a trama de relações institucionais confere 212 Soc&Conh-FINAL.indd 212 22/11/2016 12:06:33 a base necessária para que a ideologia enraizada na política pública (neste caso, de ciência e tecnologia orientadas à geração de novos produtos e mercados), as atividades dos grupos de pesquisa (assumindo a “evolução da ciência e da tecnologia” e a neutralidade da “verdade” cientíica) e a legislação (garantindo irrestritamente a apropriação privada dos benefícios da aprendizagem) reproduzam, em longo prazo, um estilo sistêmico em que a produção sociocognitiva é apropriada individualmente. Ainda mais signiicativo é entender que este estilo restringe (ao invés de potencializar) as possibilidades de aprendizagem e, por extensão, de formação de novas dinâmicas inovadoras. Isto se explica porque a dinâmica de gestão do conhecimento que detém uma empresa padrão maximizadora de lucros faz com que a mesma tente apropriar-se daquele, preservando-o para si, por meio de propriedade intelectual, ou silenciando-o através do segredo industrial (ver Gráico 2). Para a empresa capitalista, isto se dá necessariamente desse modo, dado que em seu entorno sistêmico o conhecimento e a aprendizagem são formas de obter vantagens competitivas dinâmicas. As empresas se veem impelidas a apropriar-se da “renda da aprendizagem” por ser esta sua forma de sobreviver em um ambiente regido pelo princípio da concorrência. Assim, sob um estilo centrado na empresa maximizadora de lucros, o resultado inovador esperado das interações é menor do que o resultado esperado daqueles estilos que proporcionam maior luidez às interações. 213 Soc&Conh-FINAL.indd 213 22/11/2016 12:06:33 Gráico 2. Modelo interativo sociocognitivo: centralidade da empresa maximizadora de lucros Fonte: Elaboração própria Contudo, sob a lógica cooperativista subjaz um princípio oposto ao da competição. A mesma racionalidade que rege o interior das unidades produtivas cooperativistas pode ser aplicada (e na prática isso ocorre com as federações ou as cooperativas associadas, como no caso de Mondragón e SanCor) entre cooperativas. As empresas cooperativas podem (e tendem concretamente a) interagir mais entre si e compartilhar mais conhecimento do que empresas capitalistas comuns. Desse modo, se na raiz da inovação está o conhecimento compartilhado, as cooperativas de trabalho podem ser atores geradores de inovação local mais eicazes do que as empresas capitalistas. A lógica normal de uma rede de cooperativas de trabalho e serviços, ao contrário, é socializar saberes. Assim é, porque sua constituição organizacional a conduz a racionalidades para as quais cooperar é o modo normal de ser de uma cooperativa. Isso permite uma interação mais luida no plano cognitivo. O estilo do sistema muda em seu conjunto se a centralidade repousa nas cooperativas de trabalho, em lugar de nas empresas maximizadoras de lucros (ver Gráico 3). 214 Soc&Conh-FINAL.indd 214 22/11/2016 12:06:33 Gráico 3. Modelo interativo sociocognitivo: centralidade da cooperativa de trabalho e produção Fonte: Elaboração própria Com base nisso, pode-se imaginar (e construir) outra forma de desenvolvimento cognitivo, na qual diferentes instituições – muito mais luidas do que as empresas maximizadoras de lucros – vinculam-se a outras instituições públicas e, além disso, trocam conhecimentos em outras dinâmicas, como as universidades, os institutos de P&D, as cooperativas, os usuários, as organizações não governamentais e os órgãos públicos. Uma tal esfera de circulação de conhecimentos é viável na medida em que uma unidade produtora não se aproprie exclusivamente do conhecimento gerado pelo sistema; só assim é possível pensar essas dinâmicas. Nesse nível, as cooperativas podem socializar o conhecimento melhor do que outras empresas que são focadas unicamente no lucro. 215 Soc&Conh-FINAL.indd 215 22/11/2016 12:06:34 Do modelo analítico à dimensão explicativa: uma comparação entre empresas maximizadoras de lucros e cooperativas de trabalho e produção Uma vez exposto o modelo, é possível produzir análises complementares pela dimensão explicativa. Para a comparação entre empresas maximizadoras de lucro e cooperativas, empregam-se quatro conceitos: co-construção, relações problema-solução, funcionamento/não-funcionamento e aliança sociotécnica (homas, 2008a; 2008b). A noção de co-construção sustenta que a sociedade é tecnologicamente construída, assim como a tecnologia é socialmente conformada. Tanto a coniguração material de um sistema como a atribuição de sentido de funcionamento a uma tecnologia (artefato, organização ou processo produtivo) produzem-se como derivação contingente das disputas, pressões, resistências, negociações e convergências que vão conformando a articulação heterogênea entre atores, conhecimentos e artefatos materiais. As dinâmicas de inovação e mudança tecnológica constituem processos de co-construção sociotécnica, o que signiica que as alterações em algum desses elementos produzem mudanças tanto no sentido e funcionamento de uma tecnologia como nas relações sociais vinculadas a ela. Nesse sentido, os “problemas” e as relações de correspondência “problema-solução” constituem construções sociotécnicas. Nos processos de co-construção sociotécnica, a participação relativa do funcionamento problema-solução alcança um caráter dominante de tal monta que condiciona o conjunto de práticas socioinstitucionais e, em particular, as dinâmicas de aprendizagem e a geração de instrumentos organizacionais. O conhecimento gerado nesses processos problema-solução é em parte codiicado e em parte tácito (só parcialmente explicitado: determinado por práticas cotidianas, desenvolvido no marco do processo de tomada de decisões). O “funcionamento” ou “não-funcionamento” de um artefato é resultado de um processo de construção sociotécnica no qual intervêm, normalmente de forma auto-organizada, elementos heterogêneos: condições materiais, sistemas, conhecimentos, regulações, inanciamento, prestações, etc. O “funcionamento” (Bijker, 1995) dos artefatos não é algo dado, “intrínseco às características do artefato”, mas antes uma contingência que se 216 Soc&Conh-FINAL.indd 216 22/11/2016 12:06:34 constrói social, tecnológica e culturalmente. Supõe processos complexos de adequação de respostas/soluções tecnológicas a articulações sociotécnicas concretas e especíicas historicamente situadas. O “funcionamento” ou “não-funcionamento” de uma tecnologia é uma relação interativa: é resultado de um processo de construção sociotécnica no qual intervêm elementos heterogêneos – sistemas, conhecimentos, regulações, materiais, inanciamento, prestações, etc. É possível sugerir que se constrói funcionamento no marco de processos de adequação sociotécnica: processos auto-organizados e interativos de integração de um conhecimento, artefato ou sistema tecnológico em uma trajetória sociotécnica, sócio-historicamente situada. O funcionamento/não-funcionamento de uma tecnologia advém do sentido construído nesses processos auto-organizados de adequação/inadequação sociotécnica: a adequação gera funcionamento (homas; Buch, 2008). A noção de aliança complementa, como mecanismo de análise, a articulação entre artefatos, materiais, conhecimentos e atores, conformando a rede que viabiliza ou restringe as possibilidades de funcionamento/não-funcionamento de uma tecnologia. É possível deinir uma aliança sociotécnica como uma coalizão de elementos heterogêneos, implicados no processo de construção de funcionamento/não-funcionamento de uma tecnologia. As alianças se constituem dinamicamente, em termos de movimentos de alinhamento e coordenação de artefatos, ideologias, regulações, conhecimentos, instituições, atores sociais, recursos econômicos, condições ambientais, materiais, etc., que viabilizam ou impedem a estabilização da adequação sociotécnica de uma tecnologia e a atribuição de sentido de funcionamento/não-funcionamento. Assim, as alianças sociotécnicas permitem descrever e analisar as relações entre atores e sistemas tecnológicos, entre grupos sociais relevantes e artefatos. Dito isso, é possível utilizar esses conceitos para explicar as implicações sistêmicas que tem um sistema de inovação e produção centrado na empresa maximizadora de lucros vis-a-vis as cooperativas de trabalho. 217 Soc&Conh-FINAL.indd 217 22/11/2016 12:06:34 Co-construção Nesse aspecto, o que uma empresa maximizadora de lucros co-constrói? Em princípio, seleciona e promove normas vinculadas com o reforço da apropriação dos ganhos e, portanto, da apropriação do conhecimento. Como resultado, promove um modelo de acumulação baseado na noção de renda capitalista e de concentração de renda, bem como na concorrência entre empresas. No caso cooperativista, considera-se que, compartilhando e socializando, as coisas icarão melhores para todos em termos de solidariedade, igualdade e equidade, de cooperação e coordenação entre instituições, e que, dessa forma, talvez se produza uma trama social capaz de incluir todos. Relações problema-solução Além disso, as relações problema-solução são distintas, caso se tratem de empresas maximizadoras de lucro ou de cooperativas. Em princípio, nas primeiras, registram-se como relações problema-solução, e em particular como solução válida para todo tipo de problemas, aquelas que têm a ver com a maximização da renda. Em primeiro lugar, está a construção do problema. Qual é o problema? Problema é tudo aquilo que impede o aumento da produtividade e/ ou da competitividade e impossibilita o aumento da taxa de lucro. Esse é o problema para uma empresa capitalista. O problema não se constrói em torno do tipo de qualidade do emprego, das necessidades das famílias que integram a comunidade da empresa, ou da produção de bens (com qualidade e em quantidade suiciente) necessários à melhoria da qualidade de vida de uma comunidade. Para resolver este tipo de problemas, seria preciso ter participação no poder do construtor do problema. A empresa capitalista trata de fazer com que poucos participem da construção do problema e, menos ainda, do desenho da solução correspondente. No caso das cooperativas, é inevitável que os que constroem o problema e participam do benefício da solução sejam os mesmos. Isso é muito mais aberto e democrático; ao mesmo tempo, é muito mais eiciente em termos técnico-produtivos e muito mais aberto em termos de processo de aprendizagem. 218 Soc&Conh-FINAL.indd 218 22/11/2016 12:06:34 Funcionamento/não-funcionamento Quando uma tecnologia funciona, na prática isso tem a ver com o fato de que ela é compatível não só com outras tecnologias, mas também com sua dotação inicial de fatores, com a capacidade dos trabalhadores para operarem essa tecnologia, com o gosto dos usuários e seu nível de conhecimentos para utilizá-la, entre outras coisas. Isto é, algo funciona, não porque esteja “bem” ou “mal” construído, mas porque se conecta bem com tudo o que existe previamente, e porque alguns grupos decisores participam do processo de construção de seu funcionamento (homas, 2008a; 2008b; 2009). A questão, então, é: a que se adéquam as tecnologias geradas por empresas maximizadoras de lucros? Estas empresas geram dinâmicas sociotécnicas nas quais – metaforicamente – tudo o que se conecta com o resto do sistema gera renda. Para uma empresa capitalista, o que funciona é tudo aquilo que serve para maximizar os ganhos do capital, e tudo o que não serve para isso não é útil, não funciona. É, de fato, por essa razão que algumas tecnologias “evoluem” mais rapidamente do que outras; as empresas focam algumas delas, não todas. Esse é o motivo pelo qual algumas estratégias em termos de terapias clínicas, por exemplo, são fomentadas por algumas empresas, e há outras que evidentemente são pouco exploradas. Por outro lado, as cooperativas constroem – ou pelo menos deveriam construir – os problemas de outro modo; problemas que têm a ver com a vida das pessoas que trabalham nas tecnologias do processo, problemas dos beneiciários ou usuários inais das tecnologias de produto. Alianças sociotécnicas Finalmente, conforme a teoria construtivista da tecnologia, as tecnologias (em suas dimensões organizacional, de artefato e de processo) funcionam através de alianças complexas e heterogêneas. Em alianças entre atores e actantes. Por exemplo, promulga-se uma regulação beneiciando certo setor técnico-produtivo que utiliza determinado tipo de tecnologia, com engenheiros capazes de desenvolver certas máquinas, as quais, por sua vez, dão sentido a determinados trabalhadores que possuem certas capacidades – máquinas e trabalhadores geradores de produtos que são consumi- 219 Soc&Conh-FINAL.indd 219 22/11/2016 12:06:34 dos por determinados consumidores. Por trás do automóvel de combustão interna há uma gigantesca aliança internacional que envolve desde aquele que troca os pneus das empresas Pirelli ou Goodyear, passando pela rede de abastecimento de combustíveis, por siderúrgicas que fabricam a chapa, consumidores de automóveis, a necessidade de percorrer médias e longas distâncias, até a política energética exterior estadunidense. Isto é o que se deine como uma aliança sociotécnica. É por isso que é tão problemático fazer uma aliança alternativa: para poder colocar em funcionamento um veículo de tecnologia alternativa – vale lembrar que o funcionamento é uma construção sociotécnica –, é preciso outra aliança, não basta desenvolver um motor elétrico e baterias de lítio. Quando se pensam estratégias públicas em que o desenvolvimento técnico-produtivo e social está associado à incorporação de grandes empresas transnacionais mediante inversão externa direta (seguindo a lógica tradicional da economia da mudança tecnológica antes enunciada), invisibilizam-se as consequências geradas pelas alianças sociotécnicas das quais já fazem parte. Nesse contexto, as cooperativas de trabalho são atores privilegiados em uma estratégia de mudança tecnológica, desenvolvimento local e inclusão social. Assim, as cooperativas de trabalho podem viabilizar outro tipo de alianças que seriam impossíveis caso fossem estruturadas em torno das empresas maximizadoras de lucros. Evidentemente, a pergunta que surge de imediato é sobre os recursos necessários para tornar estas novas alianças suicientemente fortes para disputar poder em relação às já existentes. Observando-se as dinâmicas políticas e econômicas vigentes, ica claro que atualmente os governos da região privilegiam as inversões e subsídios destinados a radicar empresas transnacionais, a assegurar a subsistência das grandes empresas nacionais e, em muito pequena medida, estabelecem um fundo para gerar novas dinâmicas locais. As grandes irmas locais existem, porque o Estado gera as condições adequadas para sua existência e permanência. Em outras palavras, formulam-se políticas ativas para promover o uso de tecnologias maximizadoras de lucro. Portanto, é possível pensar políticas alternativas orientadas à geração de processos de desenvolvimento inclusivo, reorientando os fundos públicos que hoje constroem o funcionamento das grandes empresas capitalistas. 220 Soc&Conh-FINAL.indd 220 22/11/2016 12:06:34 Aportes para uma política de C&T orientada ao desenvolvimento inclusivo: rumo à geração de sistemas tecnológicos sociais Em primeiro lugar, não se pode ser ingênuo. Não se trata de uma tecnologia singular, não se trata de fazer um automóvel, um computador, um software, um medicamento; trata-se, sim, de gerar sistemas tecnológicos sociais completos – a base material de novas alianças sociotécnicas – que tenham outra orientação, que se retroalimentem entre si, que sejam mutuamente compatíveis. Entendem-se tais sistemas tecnológico-sociais como sistemas sociotécnicos heterogêneos (de atores e artefatos, de comunidades e sistemas tecnológicos) voltados à geração de dinâmicas de inclusão social e econômica, democratização da tomada de decisões tecnológicas e desenvolvimento sustentável. Eles implicam ações de concepção de produtos, processos produtivos e tecnologias de organização focalizadas em relações problema/solução inclusivas, adequadas para: • a socialização dos bens e serviços • a democratização do controle e das decisões • o empoderamento das comunidades de produtores e usuários Porque uma tecnologia singular não é suiciente para mudar uma dinâmica sociotécnica. A noção de alianças sociotécnicas permite pensar em termos estratégicos. Suscita perguntas do tipo: O que se vai admitir? De que modo será desenvolvido? Que tecnologias serão consideradas no estado em que se encontram e quais serão modiicadas? Como se irá operar sobre elas? Todas essas questões são operacionalizáveis; não são racionalizações ideais. Pode-se começar, por exemplo, conferindo utilidade social ao conhecimento cientíico e tecnológico produzido localmente. A maior parte do conhecimento produzido na região é conhecimento aplicável não aplicado (CANA) (Kreimer; homas, 2002). Conhecimento que, no entanto, se “aplica” em outros lugares, é utilizado por outros atores, em outras regiões, mas não é utilizado para resolver os problemas sociais locais. Em segundo lugar, é preciso ter em conta, em termos das políticas públicas no plano sociocognitivo, que existe uma contradição entre apropriação e socialização do conhecimento. Não se trata aqui de uma socialização ingênua do conhecimento: conceber o conhecimento como um 221 Soc&Conh-FINAL.indd 221 22/11/2016 12:06:34 bem público não signiica declará-lo de “livre uso”. Existem diferentes formas de licenciar conhecimento para deinir quais usuários, quais grupos sociais e quais empresas podem ou não fazer uso dele. Trata-se simplesmente de colocar em ação um Estado um pouco mais perspicaz em termos de escolhas e de legislações. Nesse sentido, as cooperativas de trabalho podem constituir o novo locus da inovação ou, pelo menos, um dos loci privilegiados da inovação. Para tanto, seria preciso criar novas formas de inanciamento: créditos para desenvolvimento e aprendizagem, subsídios para inovação. Em lugar de ver a relação universidade-empresa em termos não especíicos, considerar a relação universidade-cooperativas em termos estratégicos. Tal vinculação interinstitucional, na verdade, já está ocorrendo. Ampliação do espaço público Em termos socioeconômicos, é necessário pensar dinâmicas de economia e aprendizagem e abrir novos espaços públicos. Em termos de inovação tecnológica, o território do público pode expandir-se. Há potencial para o desenvolvimento de tecnologias em saúde pública e educação pública. As estruturas públicas de transporte, habitação e alimentação podem – e devem – ser melhoradas. No plano sociopolítico, esta ampliação do espaço público vincula a governabilidade dos países da região à produção de bens comuns: bens que compartilhamos entre todos e que podemos governar conjuntamente. A ampliação do espaço público permitiria melhorar nossa qualidade de vida: o acesso a bens e serviços, ao conhecimento e às culturas, o desenvolvimento de novas formas de existência e de convivência. No momento atual, alguém está escolhendo e deine o que, de um modo geral, não convém à sociedade em seu conjunto; escolhe o caro e não o acessível, escolhe para poucos e não para muitos; escolhe o exclusivo e não o inclusivo. Ampliar o espaço público, enim, não é mais do que recuperar esferas de cidadania. Cidadania sociotécnica Quando se pensa em cidadania sociotécnica, é inevitável reletir sobre “Quem toma as decisões tecnológicas em nossos países?” Em favor de quem? De acordo com quais interesses? Com que níveis de risco aceitáveis? Neste âmbito, socializar a apropriação das tecnologias é uma questão 222 Soc&Conh-FINAL.indd 222 22/11/2016 12:06:34 não secundária, não trivial. Não se trata apenas de um problema ambiental ou produtivo, local ou empresarial, é um problema de sobrevivência. Os sistemas tecnológicos sociais podem ser a forma mais democrática de conceber, desenvolver, produzir, implementar, gerir e avaliar a matriz material do futuro. Porque é disso que trata a tecnologia: do matriz material que possibilita às sociedades humanas se manter vivas. Nesse aspecto, as cooperativas de trabalho e outras articulações sociais (como empresas públicas, universidades e institutos de P&D) – que não passam pela empresa maximizadora de lucros – podem ser os loci mais adequados para conceber e produzir esses sistemas tecnológicos sociais. O destino das sociedades futuras, em se tratando de igualdade de direitos, geração de espaços de liberdade, qualidade de vida da população, consolidação das democracias e preservação do meio ambiente, depende da base material sobre a qual elas se desenvolvem. Referências ARROW, K. he economic implications of learning by doing. 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Retrocedendo na História, tomo como exemplo três momentos signiicativos na América Latina relativos à ocorrência de movimentos e análises a respeito. Estes momentos localizam-se nas décadas de 1960, inal dos anos 70 e parte dos 80, e na atualidade. Movimentos sociais nos anos de 1960 Sabe-se que a década de 1960 foi uma década de movimentos, mudanças e transformações em várias partes do mundo. Alguns movimentos tinham matrizes temáticas similares em várias regiões do mundo, tais como o movimento dos estudantes. Entretanto eles se desenvolveram de Soc&Conh-FINAL.indd 227 22/11/2016 12:06:34 variadas formas segundo as conjunturas política, social e econômica dos países. Assim, Maio de 68 na França, Alemanha ou Estados Unidos foi muito diferente de Maio de 68 no Brasil ou em Córdoba/Argentina, países então sob regimes militares. No Brasil, por exemplo, as rebeliões estudantis cerraram ileiras contra o regime militar. As passeatas e manifestações nas ruas foram enfrentamentos com a polícia e órgãos de repressão. Entretanto uma boa parte da interpretação que se fez sobre o período, no Sul, adveio de análises que tomaram como foco eventos centrados no Norte. Destaco dois autores que tiveram papel importante a respeito: Alain Touraine e Herbert Marcuse, além da inluência de Jean Paul Satre. Eles destacaram que as manifestações, no seu nascedouro, buscavam muito mais uma mudança nos costumes, nos comportamentos, na cultura universitária tradicional vigente, do que uma mudança de regime político. A sequência dos acontecimentos tomou vulto e trouxe questionamentos a respeito do poder político também. Olhando para América Latina nos anos de 1960, observa-se que tivemos, além dos estudantes, vários outros movimentos que se explicam como heranças de nosso passado colonial, escravocrata e opressor dos povos indígenas. No meio rural, teve-se, por exemplo, as Ligas Camponesas no Brasil; nas cidades, houve muitas greves operárias. Enquanto no mundo urbano o repertório era moderno e se expressava por meio de marchas, demonstrações e greves, no mundo agrário, predominante na maioria da América Latina de então, os protestos foram focalizados, com uso de violência, de duração limitada, com ações diretas contra os oponentes, responsáveis por atos de injustiças. Vários autores latino-americanos buscaram entender aquelas manifestações segundo teorias da modernização, contrapondo o rural ao urbano nos moldes dos processos históricos ocorridos na Europa, numa visão etapista e linear, ou utilizando-se de teorias da marginalidade social, algumas em versões criadas ou desenvolvidas nos Estados Unidos. Registre-se, entretanto, que na América Latina ocorreram vários esforços, nas décadas de 1960 e 1970, para entender as especiicidades das lutas e movimentos latino-americanos, a exemplo de Rodolfo Stavenhagen, Lúcio Kowarick, Aníbal Quijano, André Gunder Frank e outros latino-americanos. A teoria da dependência, com Enzo Falleto e Fernando Henrique Cardoso (1972), também pontuou especiicidades do processo latino-americano. Entretanto a produção mais notável nesse período, no sentido 228 Soc&Conh-FINAL.indd 228 22/11/2016 12:06:34 de captar diferenças entre olhares, adveio de autores que reletiram sobre as relações de opressão contribuindo para as bases de um pensamento do Sul, ainda que eles tivessem vivido experiências no Norte. Como exemplo cito Frantz Fanon (1968), autor que eu considero o verdadeiro criador de uma Pedagogia do Oprimido (Paulo Freire parece ter-se inspirado nele). A seguir, reproduzo longa citação de artigo de Wallerstein (2008, p. 4) a respeito da vida e da principal obra de Fanon, Os condenados da terra (Les damnés de la terre, 1961): O livro traz um prefácio famoso da autoria de Jean-Paul Sartre, que Fanon achava brilhante. O título, evidentemente, era tirado do primeiro verso da Internacional, o hino do movimento operário mundial. Foi este livro, e não o primeiro, que granjeou a Fanon uma reputação mundial, incluindo, é claro, nos Estados Unidos. O livro tornou-se quase uma bíblia para todos os que estavam envolvidos nos muitos e diversos movimentos que culminaram na revolução mundial de 1968. Depois de as labaredas de 1968 se terem extinguido, a obra de Fanon retirou-se para um canto menos turbulento. E, no inal dos anos oitenta, os vários movimentos identitários e pós-coloniais descobriram o primeiro livro, a que prodigalizaram a sua atenção, em grande parte sem entenderem o que Fanon queria dizer com ele. Fosse o que fosse que Fanon era, ele não era um pós-modernista. Em vez disso, podia ser caracterizado como tendo uma parte de freudiano marxista, uma parte de marxista freudiano e, no fundamental, como estando inteiramente empenhado em movimentos revolucionários de libertação. [....] Também me chama a atenção, como chamou a Sartre, o grau em que estes livros não se dirigem de modo nenhum aos poderosos do mundo, mas antes aos “condenados da terra”, uma categoria que, para o autor, e largamente coincidente com “as pessoas de cor”. Fanon está sempre enfurecido com os poderosos, que são, ao mesmo tempo, cruéis e condescendentes. Mas está ainda mais enfurecido com as pessoas de cor cujo comportamento e atitudes contribuem para manter o mundo de desigualdades e de humilhação e que, muitas vezes, se comportam assim apenas para obter umas migalhas para si próprias. O que se pode concluir provisoriamente até aqui é que a chave para o entendimento da questão da dominação na produção de saberes não é dada pelo território onde a teoria é produzida ou pela nacionalidade de seu produtor ou reprodutor. O que importa é qualiicar a natureza destes sa- 229 Soc&Conh-FINAL.indd 229 22/11/2016 12:06:34 beres quanto aos seus pontos de vista já que, como disse Bof, todo ponto de vista parte de um ponto. Que interesses, grupos, sujeitos, valores e processos sociais este ponto de vista privilegia? Esta chave também pode ser observada na literatura. Nos anos 60, foram lançadas as principais obras de autores que se tornaram referência para as gerações, a exemplo de Julio Cortázar (História de cronópios e das famas), Alejo Carpentier (O século das luzes), Mario Vargas Llosa (A cidade e os cachorros), Gabriel Garcia Márquez (A má hora) e outros. Estes autores foram inluenciados por James Joyce, Wiliam Faulkner, Franz Kafka e outros. Mas todos eles, em diferentes contextos nacionais, buscaram trazer e reconstruir perspectivas para o universo latino-americano. Movimentos sociais dos direitos civis nos Estados Unidos, teorias norte-americanas e influências na América Latina Nas décadas de 50-60 do século passado, igualmente teve-se um movimento vigoroso por direitos civis nos Estados Unidos, que levou à construção de várias teorias explicativas, a exemplo da Teoria de Mobilização de Recursos (Olson) ou as teorias de Mobilização Política (TMP) (Tilly, MacAdam e Tarrow). Alguns autores denominam esta última abordagem como Teoria do Processo Político (TPP). A TMP dá à ênfase aos ciclos e processos de mobilizações sociopolíticas e o foco nas organizações e nos processos de institucionalização das ações coletivas (Gohn, 2012c). Foi construída a partir de debates com outras teorias, a exemplo da Teoria da Escolha Racional dos anos de 1960 de Mancur Olson, reconstruída pela TMP; a Teoria da Mobilização de Recursos de John McCarthy e Mayer Zald e outros, dos anos de 1970, bastante criticada na TMP; críticas às velhas abordagens sobre o collective behavior, herança das abordagens psicossociais que predominaram na primeira metade do século XX (ver Smelser, 1963). A TMP dialogou também com as teorias culturais e identitárias de autores europeus, tais como a dos Novos Movimentos Sociais (A. Touraine, A. Melucci), e com a produção norte-americana sobre os movimentos sociais nos debates sobre as questões: estruturas x ações dos atores (J. Cohen). As abordagens clássicas norte-americanas predominantes até a década de 60 nos Estados Unidos assinalavam que os movimentos sociais tinham 230 Soc&Conh-FINAL.indd 230 22/11/2016 12:06:34 suas raízes nas noções da psicologia social, especialmente na questão da privação social das multidões (Gohn, 2012c). Elas viam “as ações de massas como expressão do colapso da sociedade e da anomia social; era frequente considerar-se que os seus dirigentes agiam levados por impulsos psíquicos inconscientes, e que os que nelas participavam iam atrás de uma ideologia irracional” (Flacks, 2005, p. 49). Mas a partir dos anos 1960, esta abordagem passou a ser criticada no seio da própria comunidade de acadêmicos que viviam nos Estados Unidos, surgindo deste processo outras interpretações. As teorias da Mobilização de Recursos e da Mobilização Política surgiram deste debate crítico. Várias dessas teorias têm sido utilizadas e proclamadas na atualidade, especialmente no Brasil, como inovações no campo analítico. Elas foram construídas para explicar realidades e tempos históricos completamente diferentes da América Latina. Em relação à onda de movimentos sociais de base ocorrida na América Latina, especialmente no Brasil, a partir dos anos 1970, esta abordagem tem um ponto em comum: o pragmatismo, o desejo de que a pesquisa estivesse a serviço dos pesquisados e não do pesquisador. Segundo Flacks, “a nova visão” dos movimentos sociais pós anos sessenta passava por uma ênfase nos movimentos enquanto “política por outros meios”, encarando-os como esforços coletivos no sentido da prossecução de determinados interesses através de estratégias inteligíveis e apontando objetivos racionais. Para compreender os movimentos não era preciso fazer a psicanálise dos participantes, mas antes que se explicassem os modos como o surgimento e a evolução de um dado movimento estavam relacionados com as oportunidades, as ameaças e os recursos disponíveis para atingir os respectivos ins. Ainal, a participação em movimentos explicava-se melhor através da análise dos modos como os participantes se achavam inseridos nas comunidades e redes do que com base no pressuposto de que se tratava de gente desenraizada ou socialmente alienada. Em vez de ver os movimentos como forças irracionais ou destrutivas, era mais iel à verdade histórica reconhecer o seu papel constitutivo no moldar das sociedades modernas (Flacks, 2005, p. 49). A TMP foi muito pouco utilizada no Brasil nas décadas de 1980 e 1990, na análise dos movimentos que aqui ocorriam, quando surgiram vários estudos e publicações sobre a “era movimentalista” dos movimentos sociais no Brasil. Neste novo século, a abordagem de Tilly e colaboradores 231 Soc&Conh-FINAL.indd 231 22/11/2016 12:06:34 tem sido “redescoberta” e utilizada por vários pesquisadores e professores de universidades brasileiras. Foi traduzido para o português um dos livros mais conhecidos do grupo que é Power in Movement, de Sidney Tarrow (publicado nos Estados Unidos em 1994, edição revista em 1998, a qual foi a base para a tradução para o português em 2009). A abordagem de Tarrow focaliza as relações entre as ações coletivas e o estado, buscando reconstruir seus “frames”– quadros e repertórios de atuação, localizando-as no tempo em termos de média ou longa duração, destacando os processos de oportunidades políticas construídos, assim como priorizando a dimensão cultural dos atores em cena. A abordagem dos novos movimentos sociais nas décadas de 1970-1980 Na década de 1970 e parte de 1980, loresceu na América Latina o que se denominou “novos movimentos sociais”. Foram movimentos organizados em periferias urbanas, articulados com pastorais cristãs e intelectuais engajadas na luta contra o regime militar. Estes movimentos eram muito diferentes dos movimentos identitários de mulheres, afrodescendentes ou indígenas, assim como diferentes dos movimentos ambientalistas que se iniciavam no Brasil, por exemplo. No conjunto estes movimentos diferenciavam-se dos movimentos europeus da época, lá focados mais em questões ambientais, da mulher, dos imigrantes etc. Mas a maioria deles, tanto na Europa como na América Latina, foram analisados sob o paradigma dos “novos movimentos sociais”, tendo Alberto Melucci, Alain Touraine, Manuel Castells, Claus Ofe, etc. como principais referenciais teóricos, além de Gramsci e suas formulações sobre a sociedade civil. Na ocasião, a preocupação principal era apontar as novidades que estes movimentos traziam em relação aos movimentos operários, até então vistos por várias abordagens como os “sujeitos históricos por excelência”. Claus Ofe demarcou o debate da época entre as novas e as velhas formas de movimentos sociais. O antigo debate do período pós 1945, “revolução” e “reforma” icou para trás porque não se tratava mais de discutir a nação, o modelo econômico; a própria classe operária tinha se modernizado. No Brasil lutavam contra o regime militar via contestação das políticas de arrocho salarial, criando formas novas de sindicalismo no ABCD paulista, que logo se difundiram por todo país. 232 Soc&Conh-FINAL.indd 232 22/11/2016 12:06:34 A partir de 1980 impera uma nova era de organização dos movimentos sociais na América Latina: os movimentos identitários. No Brasil, após a Constituição de 1988, políticas públicas reforçaram esta hegemonia, com o reconhecimento de vários direitos sociais das mulheres, afrodescendentes, crianças/adolescentes, idosos, homossexuais, etc. Esta nova era cria novos peris ao associativismo civil, menos organizado via movimentos sociais de reivindicações, lutas e pressão diretas, e mais focalizadas em organizações sociais que visam ao desenvolvimento de projetos e programas sociais em parceria com órgãos estatais. De um lado pode-se fazer uma leitura: conquista e exercício de direitos, vivência da cidadania. De outro, um olhar mais preciso e acurado verá que, na maioria das vezes, trata-se de uma cidadania tutelada, outorgada, onde autonomia transigura-se em sustentabilidade – viver com recursos gerados pelos próprios grupos, a partir de estruturas de apoio de ONGs e associações civis, estando estas plugadas em editais, apoios e auxílios governamentais, e em projetos de extensão universitários. Esta participação institucionalizada se contrapõe a movimentos que lutam por direitos, pela emancipação, localizados mais no plano rural e nos territórios dos povos originários indígenas. Autores europeus também foram fundamentais no debate e na análise da nova fase dos movimentos e associativismo civil, a exemplo de Axel Honneth e a Teoria do Reconhecimento, além de N. Bobbio e H. Arendt na questão do espaço público (com ênfase nas formas não estatais). Abordagens teóricas contemporâneas sobre movimentos na América Latina contemporânea A abordagem humanista A abordagem humanista/holística pode ser observada no caso dos povos indígenas da Bolívia. Dentre os princípios que dão suporte à nova Constituição e à lei boliviana de Participação e Controle Social de 2010 está o do vivir bien, ou Suma Kamana – que envolve a ideia holística de viver bem e em equilíbrio entre os seres humanos e com a natureza. A incorporação desta categoria no universo de reconstrução do Estado e nação boliviana (a qual foi também incorporada na nova Constituição do Equador) promove uma mudança paradigmática por promover a interculturalização no país. A população é convidada a pensar e agir com prin233 Soc&Conh-FINAL.indd 233 22/11/2016 12:06:34 cípios de seus ancestrais, num movimento de descolonização de ideias e práticas. O eixo articulatório desta abordagem é dado por uma concepção de desenvolvimento – antes associada a desenvolvimento e crescimento econômico – voltada para uma visão humanista, que enfatiza o indivíduo e a qualidade de vida, denominada por alguns como “desenvolvimento humano integral e sustentável”. As teorias pós-coloniais na análise dos movimentos sociais As teorias pós-coloniais também são denominadas por alguns como das racionalidades alternativas. Incluem autores da Europa, Estados Unidos, América Latina e Ásia. O leque de autores é vasto destacando-se: Boaventura de Souza Santos, Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Walter Mignolo, Spivak, S. Hall, P. Gilroy, Édouard Glissant, Serge Gruzinski etc., além de precursores como F. Fanon , Orlando Fals Borda, H. Bhabha, E. Said, Darcy Ribeiro, etc. (ver Gohn, 2012b). O enfoque pós-colonial não foi construído para explicar especiicamente mobilizações sociais, mas ele tem sido uma das vertentes que têm revitalizado o debate teórico sobre os movimentos sociais porque foca pontos centrais nas lutas e movimentos sociais da América Latina: a apropriação do saber dos povos nativos, a expropriação de suas terras e cultura e os processos de dominação que as metrópoles impuseram aos colonizados. Os oprimidos desenvolveram culturas de resistência – ora se calam, ora se insurgem, porque a situação se perpetua, com mudanças históricas no cenário político e econômico. A teoria pós-colonial teve sua elaboração inicial na Europa em relação ao tema da colonização, especialmente na África e as formas coloniais ainda lá existentes (ver Spivak, 2009). Segundo Wallerstein (2008, p. 10): [...] em torno da questão da identidade cultural, da identidade nacional, encontramos o dilema fundamental que assolou todo o pensamento anti-sistêmico no último meio século e, provavelmente, assolará também o meio século seguinte. A rejeição do universalismo europeu é fundamental para a rejeição do domínio pan-europeu e da sua retórica do poder na estrutura do sistema-mundo moderno, aquilo que Aníbal Quijano designou por colonialidade do poder. 234 Soc&Conh-FINAL.indd 234 22/11/2016 12:06:34 Na América Latina os adeptos das teorias pós-coloniais recuperam, do período de sua formação histórica, a matriz do poder colonial no século XVI. A fundamentação deste poder está no controle do conhecimento, fazendo deste controle as bases do domínio político, econômico, cultural e social. O saber dominante, colonial, desqualiicou outros conhecimentos e saberes que não o do colonizador, europeu, do hemisfério Norte, advindo dos brancos, etc. Com isto, o problema central da América Latina seria a descolonização do saber e do ser (enquanto repositório de práticas e valores que mantêm e reproduzem subjetividades e conhecimentos), saberes estes que “são mantidos por um tipo de economia que alimenta as instituições, os argumentos e os consumidores” (Mignolo, 2009, p. 254). Na mesma linha de argumentos, Sirvent (2008) airma que um dos grandes problemas sociais contemporâneos é o fenômeno da naturalização da injustiça, da exploração e da pobreza nas mentes da população, inibindo o desenvolvimento do pensamento crítico. Com isto, o poder dominante foi se transformando em nosso sentido comum. Sirvent preconiza a necessidade de se construir poder por meio do conhecimento, e isso implica “construir categorias para pensar a realidade que possam gerar ações de mobilização coletiva em confrontação com os signiicados que desmobilizam e paralisam” (Sirvent, 2008, p. 22). Dussel (2002) contribui para novos olhares sobre os movimentos sociais ao analisar uma pedagogia crítica que contribui para a emancipação dos oprimidos, numa abordagem que une Paulo Freire, a Escola de Frankfurt – especialmente Marcuse –, análises de Freud, Nietzsche e Lévinas, etc. para criar uma “ética da libertação” a partir da construção da identidade das vítimas. A ética da libertação realiza-se com a consciência ética de ser vítima, ela se transforma em sujeito pela comunidade. O comunitarismo e o neocomunitarismo são um veio analítico utilizado em algumas vertentes das teorias da descolonização. As interpretações contemporâneas sobre os movimentos sociais que se apoiam nas teorias pós-coloniais reforçam o questionamento dos paradigmas e teorias hegemônicas. 235 Soc&Conh-FINAL.indd 235 22/11/2016 12:06:34 Interpretações atuais A partir dos efeitos dos movimentos sociais da década de 1960 – direitos civis (Estados Unidos), estudantes (França, Alemanha, a ex-Checoslováquia, Estados Unidos, América Latina, etc.) – o campo dos movimentos sociais se amplia e airma-se como estudo de movimentos e não apenas ações coletivas. Destacamos que a América do Norte, a Europa e a América Latina possuem contextos históricos especíicos e lutas e movimentos sociais correspondentes a estes contextos. Europa e América do Norte formularam teorias próprias. Na América Latina, as posturas metodológicas foram híbridas, geraram muitas informações, mas o conhecimento produzido foi orientado basicamente por teorias criadas em outros contextos, diferentes de suas realidades nacionais, como a teoria europeia dos novos movimentos sociais. Poucos estudos dedicam-se às questões teóricas envolvidas, embora todos eles sejam realizados sob um dado prisma no leque das abordagens teórico-metodológicas existentes. Resistência e autonomia são categorias chaves, especialmente nas abordagens sobre os movimentos dos povos indígenas, camponeses, etc. Entretanto, o desenvolvimento do processo democrático em vários países tem levado a políticas públicas formuladas a partir de diálogos e parcerias com a sociedade civil organizada, de forma despolitizada, deixando muitos movimentos sociais com pouco espaço para suas ações. Neste cenário, as abordagens advindas das teorias da Mobilização Política, com suas categorias, estruturas de oportunidades, contentious politics, frames, etc. têm ganhado espaço porque elas focalizam menos os conlitos, e mais as negociações, a “engenharia do social” tecida nas estruturas institucionalizadas. O movimento dos afrodescendentes, especialmente no Brasil, tem sido analisado sob este enfoque (aliado à teoria do reconhecimento), dada a atuação do poder público na última década em questões como a dos quilombolas (terras de ex-escravos), cotas para acesso a universidades, públicas e privadas (essas últimas com o Prouni-Programa Universidade para Todos). Os novos movimentos sociais da contemporaneidade, especialmente as mobilizações Primavera Árabe, Indignados na Europa, Occupy Wall Street nos Estados Unidos e em várias regiões do mundo, e estudantes (Chile e outros) têm alterado profundamente o cenário das mobilizações transnacionais: passou da antiglobalização (ou alterglobalização) para a negação 236 Soc&Conh-FINAL.indd 236 22/11/2016 12:06:34 da globalização e seus efeitos sobre a economia e o social. Pensando em termos de uma Sociologia dos Movimentos Sociais (vide Gohn, 2013c), concluímos que os atuais movimentos estão operando uma renovação nas lutas sociais da magnitude que os novos movimentos sociais operaram nas décadas de 1960, 1970 e parte de 1980 (América Latina). Eles estão reformulando a pauta das demandas e repolitizando-os de forma nova, na maioria das vezes independente das estruturas partidárias. A nova etapa das lutas sociais se faz aliando inovações tecnológicas e retorno às teorias do século XIX, totalmente revisadas. De um lado, os neomarxistas, de outro, o socialismo libertário e o humanismo holístico, em certos segmentos dos povos indígenas da realidade latino-americana como a teoria do “buen vivir”. No plano das análises, não se trata mais de contrapor os novos movimentos sociais – nucleados em torno de questões identitárias, tais como sexo, etnia, raça, faixa etária, etc. – aos “velhos” movimentos, dos trabalhadores, como Clauss Ofe e outros izeram na década de 1980, por exemplo. Não se trata, portanto, de contrapor tipos de movimentos ou ações coletivas e nem paradigmas teóricos interpretativos como mais ou menos adequados, até porque todos eles continuam a coexistir com os novos. Trata-se de reconhecer a diversidade de movimentos e ações civis coletivas, suas articulações e os marcos interpretativos que têm lhes atribuídos sentidos e signiicados novos, o que eles têm trazido à luz no campo da investigação de uma Sociologia dos Movimentos Sociais. Resulta do novo cenário que movimentos sociais voltaram a ter visibilidade e centralidade na nova década do século XXI, como atores que pressionam por processos de mudança social e reinventam as formas de fazer política. Eles também se transformaram bastante, realizaram deslocamentos em suas identidades e incorporaram outras dimensões do pensar e agir social. Alteram seus projetos políticos. Mas como são muitos e heterogêneos, parte deles fragmentou-se, perdeu ou redeiniu sua identidade, ideias e pontos de vistas centrais, alterando o projeto e a cultura política existente. Outros se redeiniram segundo as mudanças de outros atores sociais em cena. Outros ainda aproveitaram brechas e se conectaram com as possibilidades dadas pela globalização, econômica (geradora de resistências e protestos) e cultural (geradora de novas sociabilidades, novas interações e aprendizagens baseadas na pedagogia do exemplo – aprender via observação – nos grandes eventos transnacionais, ou via conexão na rede internet). O peril dos parti- 237 Soc&Conh-FINAL.indd 237 22/11/2016 12:06:34 cipantes alterou-se de militante para um ativista. As Marchas tornaram-se o modelo básico de protesto. As redes sociais substituíram os “muros de Paris” como divulgadora das demandas e das palavras de ordem e articuladora das ações em si, lembrando e comparando com 1968. Segundo Flacks (2005, p. 59): Doug Bevington e Chris Dixon, estudantes de pós-graduação em sociologia e ativistas da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, izeram recentemente um inquérito informal junto de ativistas antiglobalização, com vista a fazer um levantamento dos recursos intelectuais e dos discursos teóricos que os norteavam. As conclusões a que chegaram conirmam a crítica que aqui faço: a bibliograia atualmente existente sobre a sociologia dos movimentos sociais não ocupa um lugar prioritário nas listas de leitura dos ativistas, ao contrário do que sucede com obras como os estudos de caso históricos e contemporâneos, as biograias e os livros de memórias. Mais importante do que isso, no entanto, é o inventário esboçado por Bevington e Dixon da discussão teoricamente relevante disponível em “websites” de ativistas e em publicações vocacionadas para a relexão sobre os movimentos. Para além de se centrarem em questões relativas à estratégia, à táctica e à construção dos movimentos, estas discussões revelam uma grande preocupação com o modo de assegurar a sua permanente democratização. [...] Perante este quadro, de imediato se reconhece que os ativistas de hoje continuam a debater-se com questões que são centrais para a teoria social dos acadêmicos há pelo menos um século. Concluindo Se considerarmos como “teoria” um determinado quadro intelectual que nos fornece explicações para a compreensão dos fenômenos analisados assim como extrair possibilidades para delinear rumos sobre o futuro do estudo em tela, nos países do Sul temos elementos para várias teorias sobre os movimentos sociais, mas nenhuma completamente consolidada nos marcos das especiicidades locais. O que dispomos é de um grande acervo de narrativas acerca de uma série de acontecimentos históricos onde os movimentos participaram, de forma que podemos falar de paradigmas do Sul. Um grande desaio é construir categorias teóricas para pensar as especiicidades de nossa realidade, categorias que relitam o movimento 238 Soc&Conh-FINAL.indd 238 22/11/2016 12:06:35 real desta realidade, que capte seus signiicados. Este desaio inscreve-se nos marcos de um diagnóstico que diz ser um dos problemas da América Latina: a descolonização do saber e do ser (enquanto repositório de práticas e valores que mantêm e reproduzem subjetividades e conhecimentos). Saberes estes que são mantidos por um tipo de economia que alimenta as instituições, as representações sobre a vida sociocultural de seu povo e os argumentos sobre os caminhos a seguir. Referências CARDOSO, F. H.; FALLETO, E. Dependência e desenvolvimento na América Latina. Ensaio de interpretação sociológica. 7. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1970. CASTELLS, M. A sociedade em rede - a era da informação: economia, sociedade e cultura. v. 1. São Paulo: Paz e Terra, 1999. ______. Redes de indignação e de esperança. 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Doutora em Ciências Humanas – Sociologia (PPGSA/IFCS), Universidade Federal do Rio de Janeiro, com pós-doutorado em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo. Docente-pesquisadora dos programas de pós-graduação em Ciências Sociais (PGCS) e em Letras (PPGL) na mesma universidade. Anete Brito Leal Ivo Mestre em Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco, é professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGCS) da Universidade Federal da Bahia. Pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades da Faculdade de Filosoia e Ciências Humanas da mesma universidade. Atua também como pesquisadora do CNPq. Fabrício Monteiro Neves Mestre em Políticas Sociais, Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília. Soc&Conh-FINAL.indd 241 22/11/2016 12:06:35 Fernanda Antônia da Fonseca Sobral Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília, com pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciencies Sociales, em Paris, na França. É professora/pesquisadora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia na Universidade de Brasília. Membro do Conselho Superior da Fundação de Apoio a Pesquisa do Distrito Federal e do Conselho da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Hernán homas Doutor em Política Cientíica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com pós-doutorado na mesma instituição. É professor titular na Universidade Nacional de Quilmes, na Argentina, e também diretor do Instituto de Estudos sobre Ciência e Tecnologia na mesma universidade. Atua como pesquisador principal do Conselho Nacional de Investigações Cientíicas e Técnicas (Conicet), na Argentina. Hugo Cadenas Mestre em Antropologia e Desenvolvimento pela Universidade do Chile. Doutor em Sociologia, Universidade Ludwig Maximilian de Munique, na Alemanha. Na Universidade do Chile, é professor do Departamento de Antropologia e coordenador do Mestrado em Análise Sistêmica Aplicada à Sociedade, na Faculdade de Ciências Sociais. Lucas Becerra Mestre em Estudos Internacionais, Universidade Torcuato Di Tella, Buenos Aires, Argentina. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires. Professor adjunto do Departamento de Economia e Administração da Universidade Nacional de Quilmes, na Argentina. Na mesma universidade, participa do grupo de pesquisas do Instituto de Estudos sobre Ciência e Tecnologia. Maíra Baumgarten Mestre e doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS. Coordenadora do Laboratório de Divulgação de Ciência, Tecnologia e Inovação Social (LaDCIS-UFRGS). Além de editora da Revista Sociologias, é co-editora no Conselho Editorial da Associação Latino-Americana de Sociologia. Membro da diretoria da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Marcelo Arnold-Cathalifaud Mestre em Ciências Sociais na área de Sociologia da Modernização Social, Universidade do Chile. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bielefeld, Alemanha, é professor titular da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade do Chile. 242 Soc&Conh-FINAL.indd 242 22/11/2016 12:06:35 Maria da Gloria Gohn Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Doutora em Ciência Política pela mesma universidade, com pós-doutorado na New School of University, em Nova Iorque, nos Estados Unidos. É professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas; pesquisadora do CNPq e membro do conselho do Research Committee on Social Classes and Social Movements, da Associação Internacional de Sociologia. Michelangelo Giotto Santoro Trigueiro Mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Fez um pós-doutorado no Instituto de Filosoia, Lógica e Filosoia da Ciência, na Universidade Ludwig Maximilian de Munique, na Alemanha; outro no Centre for Social and Economic Research on Innovation in Genomics (Innogen), na Inglaterra; e um terceiro pós-doutorado no Departamento de Política Cientíica e Tecnológica da Unicamp. É professor titular e pesquisador do Instituto de Ciências Sociais, Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. Paulo Henrique Martins Mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de Paris I (Pantheon-Sorbonne), na França. No mesmo país, fez pós-doutorado na Universidade de Paris-Nanterre. Professor titular de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor e pesquisador dos programas de pós-graduação em Sociologia e Saúde Coletiva da UFPE. Pesquisador de produtividade do CNPq nível 1B. Silvia Beatriz Lago Martínez Socióloga, realizou estudos de Pós-Graduação em Política e Gestão de Ciência e Tecnologia na Universidade de Buenos Aires, na Argentina. Professora da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires e pesquisadora do Instituto Gino Germani, onde é codiretora do Programa de Pesquisa sobre Sociedade de Informação. Atualmente coordena a pesquisa “Políticas públicas para a inclusão digital na Argentina e no Cone Sul”. 243 Soc&Conh-FINAL.indd 243 22/11/2016 12:06:35 Este livro foi composto na tipologia Adobe Garamond Pro, em corpo 12 e impresso no papel Ofset 75 g/m2 na Gráica da UFRGS Editora da UFRGS • Ramiro Barcelos, 2500 – Porto Alegre, RS – 90035-003 – Fone/fax (51) 3308-5645 – [email protected] – www.editora.ufrgs.br • Direção: Alex Niche Teixeira • Editoração: Luciane Delani (coordenadora), Carla M. Luzzatto, Clarissa Felkl Prevedello, Cláudio Marzo da Silva, Cristina humé Pacheco, Fernanda Kautzmann, e Lucas Ferreira de Andrade • Administração: Aline Vasconcelos da Silveira, Cláudio Oliveira Rios, Gabriela Campagna de Azevedo, Getúlio Ferreira de Almeida, Janer Bittencourt, Jaqueline Trombin e Laerte Balbinot • Apoio: Luciane Figueiredo Soc&Conh-FINAL.indd 244 22/11/2016 12:06:35