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Reitor
Rui Vicente Oppermann
Vice-Reitora e Pró-Reitora
de Coordenação Acadêmica
Jane Fraga Tutikian
EDITORA DA UFRGS
Diretor
Alex Niche Teixeira
Conselho Editorial
Carlos Pérez Bergmann
Claudia Lima Marques
Jane Fraga Tutikian
José Vicente Tavares dos Santos
Marcelo Antonio Conterato
Maria Helena Weber
Maria Stephanou
Regina Zilberman
Temístocles Cezar
Valquiria Linck Bassani
Alex Niche Teixeira, presidente
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Coordenação da Série
Ivan da Costa Marques
(UFRJ, Rio de Janeiro)
José Vicente Tavares dos Santos
(UFRGS, Porto Alegre)
Maíra Baumgarten
(UFRGS, Porto Alegre)
Conselho Editorial
Ana Maria Fernandes
(UNB, Brasília)
César Ricardo Siqueira Bolaño
(UFS, Sergipe)
Clarissa Eckert Baeta Neves
(UFRGS, Porto Alegre)
Ernani Lampert
(FURG, Rio Grande)
Fernanda Sobral
(UNB, Brasília)
Gilson Lima
(UFRGS, Porto Alegre)
Ingrid Sarti
(UFRJ, Rio de Janeiro)
Ivan Izquierdo
(PUCRS, Porto Alegre)
José Vicente Tavares dos Santos
(UFRGS, Porto Alegre)
Jorge Olimpio Bento
(Univ. Porto, Portugal)
Maria Lucia Maciel
(UFRJ, Rio de Janeiro)
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© dos autores
1ª edição: 2016
Direitos reservados desta edição:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Capa: Carla M. Luzzatto
Revisão editorial: Cristina humé Pacheco
Tradução do Espanhol para Português: Regina Beatriz Vargas (capítulos: 4 Marcelo Arnold-Cathalifaud, Hugo Cadenas, 8 Silvia Lago Martínez e 10 Hernán homas, Lucas Becerra)
Editoração eletrônica: Luciane Delani
A graia desta obra foi atualizada conforme o Acordo Ortográico da Língua Portuguesa, de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 1o de janeiro de 2009.
S678
Sociedade, conhecimentos e colonialidade: olhares sobre a América Latina / organizado por Maíra Baumgarten . – Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016.
244p. : il. ; 16x23cm
(Série Cenários do Conhecimento)
Inclui referências.
Inclui iguras, gráicos, quadros e tabelas.
1. Ciências Sociais. 2. Sociologia. 3. Ciências Sociais – Colonialidade – Desenvolvimento. 4. Linhagens pós-coloniais – Ampliação – Conhecimento. 5. Sociologia
– Política. 6. Sociologia do desenvolvimento. 7. Produção – Conhecimento – América
Latina – Políticas – Democracia – Inclusão. 8. Política brasileira – Ciência – Tecnologia –
Inovação. 9. Inovação – Cooperativismo – Desenvolvimento inclusivo. 10. Movimentos
sociais – América Latina – Produção – Conhecimentos. I. Baumgarten, Maíra. II. Série.
CDU 316(7/8=6)
CIP-Brasil. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação.
(Jaqueline Trombin – Bibliotecária responsável CRB10/979)
ISBN 978-85-386-0324-5
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Apresentação
Série Cenários do Conhecimento
O conhecimento humano apresenta variadas motivações e assume diversas
formas. Reletir sobre o conhecimento requer o exercício da transdisciplinariedade, encontros entre temas, áreas, problemas. Escapar do linear em
direção ao transversal e às redes. Alargar fronteiras disciplinares, construir
cenários e pensar utopias.
Informação e conhecimento sempre foram importantes pilares dos
diferentes modos de produção da vida humana. O conhecimento, sua
busca, é parte da estratégia de sobrevivência da espécie humana. Esse
movimento de conhecer se relaciona à situação concreta de cada sociedade, ao seu estado da arte, a suas práticas de vida, sua cultura, suas
técnicas, sua ideologia.
As formas contemporâneas de sociedade se fazem acompanhar por
profundas reestruturações organizacionais e culturais. Vivemos em um
tempo em que a ciência não apenas estuda, desvenda, mas também cria
objetos empíricos e produz teorias que os sustentam enquanto fenômeno.
A natureza urbana está cada vez mais repleta de objetos “não naturais” que
funcionam como projeções físicas ou psíquicas do ser humano. Vivemos
um processo de hibridação entre o natural e o humano e o artiicial.
Nesse contexto, recoloca-se, permanentemente, o desaio para o desenvolvimento de conceitos e teorias que permitam compreender e intervir sobre processos com grande repercussão sobre a vida cotidiana, pois
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na sociedade mundializada atual – híbrida de arcaísmos, modernidades
impossíveis e pós-modernidades instáveis – é preciso encontrar sendas para
o entendimento das novas questões sociais, novos instrumentos teórico-metodológicos para pensar um mundo cada vez mais complexo.
A relexão sobre o conhecimento e seu papel na sociedade impõe desaios à imaginação cientíica: a complexidade e a dialeticidade do conhecimento, a atitude dialógica e a complementaridade entre incomensuráveis,
a hibridação e a ética.
A série Cenários do Conhecimento, originada no Laboratório de
Divulgação de Ciência, Tecnologia e Inovação Social (LaDCIS) do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, pretende ser um espaço de interlocução entre as diversas perspectivas e disciplinas que tratam do conhecimento cientíico,
da informação, sua produção, difusão, das redes de conhecimentos e
da inovação social. Cenários nos falam de atores, pessoas que agem e
reletem sobre sua ação, o mundo, a sociedade. Surgem da necessidade
humana de compreender e exprimir a complexidade da vida e expressam
composições de seres que sentem, pensam e que são natureza e cultura e
interagem em e a partir de estruturas complexas. Artiicialidades sempre
renovadas e uma natureza viva e mutante.
Essa linha editorial tem por objetivo trazer à tona as problematizações
mais atuais do campo da pesquisa cientíica, da informação, da tecnologia
e da inovação social, ocupando um espaço que se faz progressivamente
estratégico pela necessidade crescente de dar conta das questões relacionadas aos processos de produção de conhecimentos e de sua apropriação
social. Nessa síntese entre sociedade e conhecimento, também chamada
de sociedade ou era da informação, emerge cada vez mais a necessidade de
construir cenários que indiquem novas direções.
A Série Cenários do Conhecimento passou, no ano de 2015, por algumas mudanças, ampliando seu conselho diretivo, que conta, agora, com
mais dois coordenadores além de sua fundadora, profª Maíra Baumgarten
(LaDCIS-UFRGS): os professores José Vicente Tavares dos Santos, diretor
do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados (ILEA-UFRGS) e
Ivan da Costa Marques, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Nossa proposta parte da perspectiva da complexidade e busca organizar trilhas, caminhos que iluminem a realidade através desses objetos que
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são a expressão mesma do conhecimento: os livros, em uma coleção de
cenários. O livro Sociedade, conhecimentos e colonialidade: olhares sobre a
América Latina nos apresenta um cenário de estudos sobre fenômenos que
marcam a sociedade contemporânea e, especialmente, seus impactos sobre
a sociedade latino-americana vista como um espaço com características
especíicas tanto no âmbito da construção de conhecimentos, quanto em
termos de potencialidades transformadoras.
Ivan da Costa Marques,
José Vicente Tavares dos Santos e
Maíra Baumgarten
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Agradecimentos
Esse livro teve sua origem em um evento promovido pelo Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (PPGS-UFRGS), com o apoio e aval da Associação Latino-Americana de Sociologia (ALAS), então sob a presidência de Paulo Henrique Martins. O encontro, um Pré-ALAS, contou com a participação
de diversos sociólogos de diferentes países latino-americanos e foi parte
integrante do Seminário Internacional Sociologia no Século XXI, comemorativo dos 40 anos do PPGS-UFRGS.
Agradecemos à Universidade Federal do Rio Grande do Sul que propiciou e forneceu as condições para a realização do evento e que apoia,
com sua estrutura, nossa produção intelectual. Também ao Instituto de
Filosoia e Ciências Humanas e ao PPGS-UFRGS, que apoiaram a realização do evento e do presente livro. Agradecemos da mesma forma à
Secretaria Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC-RS), que contribuiu para a realização do Encontro.
Expressamos, igualmente, nossa gratidão ao Conselho de Desenvolvimento Cientíico e Tecnológico (CNPq), à Coordenação de Pessoal
de Ensino Superior (Capes) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio
Grande do Sul (Fapergs), que forneceram suporte a grande parte do trabalho de pesquisa que originou os distintos capítulos do livro. Essas instituições também apoiam a coleção Cenários do Conhecimento através
do Laboratório de Divulgação de Ciência, Tecnologia e Inovação Social
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(LaDCIS-UFRGS) e do Observatório de Ciência, Tecnologia e Inovação
Social (ObCTIS), ligado a este laboratório.
Muitos dos capítulos desse livro são resultados de debates realizados
nos grupos de trabalho de Ciência, Tecnologia e Inovação da Associação
Latino-Americana de Sociologia (coordenados por Maíra Baumgarten,
Silvia Lago e Roberto Pineda Ibarra) e de Ciência, Tecnologia e Inovação
Social da Sociedade Brasileira de Sociologia (coordenados por Fernanda
Sobral, Maíra Baumgarten e Maria Lucia Maciel). A todos os nossos interlocutores agradecemos a atenção, as críticas e contribuições.
Agradecemos, ainda, a preciosa contribuição de Regina Vargas, pesquisadora do LaDCIS, que traduziu para o Português os trabalhos que
estavam em Espanhol e que ajudou na revisão e na formatação, realizada
por Jean Lucas Nunes, bolsista do laboratório.
Esperamos que os trabalhos que constituem esse livro e as práticas
sociológicas que eles expressam possam contribuir para a projeção de um
mundo mais solidário e um futuro com mais esperança para todos nós.
Porto Alegre, verão de 2015.
Maíra Baumgarten
(Organizadora)
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Sumário
Introdução
Sociedade e colonialidade: construindo conhecimentos ao Sul
13
Maíra Baumgarten
PARTE I – DESENVOLVIMENTO, COLONIALIDADE E AS CIÊNCIAS SOCIAIS
O (des) encanto do desenvolvimento latino-americano
na sociedade global 23
Paulo Henrique Martins
Linhagens pós-coloniais e a possibilidade
de ampliação do conhecimento: um debate epistemológico
Adelia Miglievich-Ribeiro
41
A sociologia como política: a “Sociologia do Desenvolvimento”
e a produção sociológica contemporânea 65
Anete B. L. Ivo
As ciências sociais latino-americanas frente à complexidade social
local, regional e global 97
Marcelo Arnold-Cathalifaud, Hugo Cadenas
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PARTE II – PRODUZIR CONHECIMENTOS NA AMÉRICA LATINA:
POLÍTICAS, DEMOCRACIA, INCLUSÃO
A dimensão econômica e social da política brasileira
de ciência, tecnologia e inovação 115
Fernanda A. da F. Sobral
A contextualização da verdade
ou como a ciência torna-se periférica
Fabrício Monteiro Neves
131
Fazer ciência na periferia: internacionalizar é preciso?
Maíra Baumgarten
151
Bens comuns, democracia e acesso ao conhecimento
na América Latina e no Caribe 169
Silvia Lago Martínez
Ciência, tecnologia, inovação e a universidade
em ambientes democráticos 187
Michelangelo Giotto Santoro Trigueiro
Inovação, cooperativismo e desenvolvimento inclusivo:
repensar a mudança tecnológica e a inclusão social 205
Hernán homas, Lucas Becerra
A produção de conhecimento sobre
os movimentos sociais na América Latina
Maria da Glória Gohn
Autores
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Introdução
Sociedade e colonialidade: construindo
conhecimentos ao Sul1
As primeiras décadas do século XXI registram transformações aceleradas
em todas as dimensões da vida social; novas sociabilidades evoluem em
contextos também marcados pela regressão social. Na esfera econômica,
novas tecnologias reconiguram trabalhadores e dinâmicas empresariais; a
globalização dos mercados e o predomínio das altas inanças intensiicam
luxos contraditórios de crescimento em escala planetária. Longe de serem
tranquilos e harmoniosos, os processos em curso vêm aumentando desigualdades socioeconômicas, conlitos e instabilidade. Privilégios e vulnerabilidades coexistem e se retroalimentam.
Esse mundo em transição, nosso subcontinente latino-americano, nossas sociedades, dilemas e potencialidades, conhecimentos que produzimos,
o lugar que ocupamos no cenário atual são os temas principais abordados
nesse livro, que se construiu a partir de um momento de relexão propiciado
pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS.
O Encontro Sociedade, Conhecimentos e Colonialidade. Olhares sobre a
América Latina foi um evento preparatório para o XXIV Congresso da Associação Latino-Americana de Sociologia (Pré-ALAS) e uma das atividades do Seminário: A sociologia no século XXI, comemorativo aos quarenta
O encontro que originou este livro contou com o apoio do CNPq, da Capes e da Fapergs.
O livro foi organizado no âmbito do Observatório de Ciência, Tecnologia e Inovação Social
(ObCTIS) do LaDCIS/PPGS-UFRGS, patrocinado pelo PPGSociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com apoio do CNPq, da Capes e da Fapergs.
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anos do PPGS-UFRGS. Esses dois eventos tiveram por objetivo aprofundar o conhecimento e o debate sobre os principais fenômenos que marcam
a sociedade contemporânea e, especialmente no caso do pré-ALAS, seus
impactos sobre a sociedade latino-americana, criando um espaço de trocas
e de fomento a novas perspectivas de análise sociológica. As transformações em curso afetam indivíduos, empresas e nações, potencializam crises,
criam impasses e, também, possibilidades para a construção de um patamar superior de realização humana.
Desenvolvimento, colonialidade e as ciências sociais
Na primeira parte do livro são apresentadas e debatidas questões
relacionadas à problemática do desenvolvimento, da colonialidade e da
produção sociológica atual, frente à complexidade do mundo contemporâneo. No capítulo um, denominado O (des) encanto do desenvolvimento
latino-americano na sociedade global, Paulo Henrique Martins parte de
uma pergunta: por que o tema do desenvolvimentismo regressa com força na
América Latina nos últimos anos? A resposta inicial que o autor propõe para
alimentar o debate é que os intelectuais, incluindo os economistas, diferentemente do que pensavam vários cientistas sociais nos anos 1990, estão
percebendo que a globalização não tem contribuído para solucionar as
desigualdades e injustiças sociais. Ao contrário, essas se ampliaram gerando o aumento de indicadores sociológicos negativos como o da violência,
da dessocialização, da corrupção e das doenças psicossomáticas. Ou seja,
os impactos da globalização econômica sobre as políticas de desenvolvimento foram exagerados, contribuindo para mascarar os novos pactos de
dominação nos planos nacional, regional e global.
No segundo capítulo, Adelia Miglievich-Ribeiro empreende um debate epistemológico a partir do tema das linhagens pós-coloniais e a possibilidade de ampliação do conhecimento. De acordo com a autora, a razão
pós-colonial, em distinção à típica racionalidade moderna-ocidental, recusa explicações totalitárias e unívocas. Miglievich-Ribeiro explicita como
arbitrariamente experiências históricas locais e particulares se alçaram à
condição de “padrão universal” ou “modernidade” ou ainda “progresso”,
subalternizando todas as demais formas de vida.
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Para a autora, descolonizar nossa própria compreensão do mundo e
das pessoas no mundo traduz um empenho epistemológico que é, como
tal, simultaneamente ético e político, reunindo estudos sob a rubrica de
pós-colonial. Sua proposta é revisitar algumas correntes do pós-colonial em suas variações. Segundo ela, a colonialidade não é uma história
passadista de modo que os neocolonialismos intervêm ainda hoje na
compreensão do mundo elaborada pela ciência. Assim, a descolonização
epistemológica é uma tarefa que se impõe a uma sociologia que se propõe crítica e comprometida com a superação dos silenciamentos históricos e das muitas mazelas sociais.
No capítulo terceiro, Anete Ivo apresenta a sociologia como política,
analisando a “Sociologia do Desenvolvimento” e a produção sociológica contemporânea. O capítulo aborda inlexões da produção sociológica sobre o
desenvolvimento nos anos mais recentes. Como ponto de partida indaga
“qual o ponto de vista sociológico do desenvolvimento hoje?”. A resposta a esta
indagação, segundo Anete Ivo, envolve analisar a noção de desenvolvimento e suas mudanças condicionadas por contextos históricos singulares
do capitalismo periférico, que relete polissemias na noção e uma relação
paradoxal entre poder e saber, entre ciência e política, que acompanha as
proposições políticas e a relexão sociológica sobre o desenvolvimento.
O capítulo se estrutura em três partes: a primeira retoma os paradigmas
da noção de desenvolvimento dos anos 1960; a segunda considera as mudanças epistemológicas que enfatizam novos paradigmas, um solidarista e
outro institucional, de uma nova regulação e prática da governança para o
desenvolvimento; e a terceira e última parte apresenta o repertório de temas
que organizam a produção da sociologia do desenvolvimento no Brasil hoje.
A autora articula, portanto, um horizonte conceitual, que marca a formação
da sociologia do desenvolvimento e suas inlexões no deslocamento de paradigmas no contexto mais recente e como estas mudanças se expressam na
estruturação do subcampo de pesquisa, de natureza mais quantitativa, com
base nos grupos de pesquisas (GPs) autoclassiicados como integrantes da
subárea da “sociologia do desenvolvimento”. A discussão efetuada requaliica interpretações sobre as possibilidades de um “neodesenvolvimentismo”
hoje, ultrapassando perspectivas que entendem o desenvolvimento apenas
como uma neomodernização orientada por elementos macroeconômicos de
competitividade, estabilidade e crescimento, gerenciado pelo Estado nacional, observando-o com base em processos de hegemonia e contra-hegemo15
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nia, que envolve olhares distintos entre a produção sociológica em sociedades periféricas e países centrais do regime de acumulação.
No quarto e último capítulo da primeira parte, Marcelo Arnold-Cathalifaud e Hugo Cadenas analisam as ciências sociais latino-americanas
frente à complexidade social local, regional e global. Neste capítulo, são
discutidas alternativas para que as pesquisas na América Latina, em âmbito local, regional e global, abordem, de modo produtivo, os cenários
em transformação que caracterizam as primeiras décadas deste século.
Os autores destacam, explicitamente, as contribuições das ciências sociais e indicam alguns obstáculos que as limitam. O capítulo analisa, em
primeiro lugar, o modo como nossas disciplinas encaram a demanda por
conhecimentos no atual contexto mundial; em segundo lugar, aponta
obstáculos, internos e externos, que impedem a aplicação de suas contribuições; e, inalmente, apresenta uma proposta programática, inspirada
nas teorias sociais da complexidade, com ênfase em sua relevância para
a América Latina.
Produzir conhecimentos na América Latina:
políticas, democracia, inclusão
A segunda parte do livro trata da produção de conhecimentos na
América Latina e, especiicamente, no Brasil, diiculdades encontradas,
políticas de produção, avaliação, divulgação e inclusão. Debate também
questões referentes à nossa posição periférica e às nossas necessidades concretas em termos de o que e como produzir e como apropriar socialmente
os conhecimentos produzidos.
Fernanda Sobral, no quinto capítulo, coloca em debate a dimensão
econômica e social da política brasileira de ciência, tecnologia e inovação,
buscando mostrar a dimensão econômica – expressa na ideia de competitividade e de fomento à inovação tecnológica – e a dimensão social – expressa na ideia de inclusão social e de transferência do conhecimento para
a sociedade na atual política de ciência, tecnologia e inovação.
O capítulo aborda a questão por meio da análise mais geral das tendências das sociedades contemporâneas que se reletem nos principais
desaios colocados pela Estratégia Nacional de C,T&I 2012-2015, nos
programas prioritários, nas tendências do fomento à pesquisa e na im-
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plementação de alguns programas de fomento e de formação de recursos
humanos como os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT)
e o Ciência sem Fronteiras (CsF). A autora busca evidenciar alguns resultados e diiculdades desses programas e aponta que, embora a dimensão
social esteja presente na política brasileira de ciência, tecnologia e inovação, é a dimensão econômica que está sendo predominante, ainda que a
maior associação entre a dimensão econômica e social seja uma exigência
das sociedades democráticas.
No sexto capítulo do livro, Fabrício Neves demonstra, de forma
acurada, como a ciência produzida ao sul do mundo se torna periférica.
O capítulo trata do tema dos contextos da verdade. A argumentação teórica se estrutura em torno de questões levantadas pelos estudos sociais
em ciência e tecnologia, focando-se na vertente de estudos que levam em
conta as diferenças de legitimação e circulação do conhecimento cientíico em contextos periféricos no sistema global de ciência e tecnologia.
Fabrício se detém na discussão do que se chamou sistema biotecnológico, um complexo articulado formado por instituições acadêmicas, empresas públicas e empresas de pesquisa biotecnológicas especializadas na
produção de conhecimento e tecnologia voltados para a manipulação
da vida. A análise é desenvolvida, segundo o autor, por meio do conceito de regime de produção de conhecimento periférico, um regime
de perturbações recíprocas entre sistemas, limitado pelas conigurações
institucionais dos Estados nacionais, mas em contato com os centros de
produção tecnocientíicos. Tal regime, no Brasil, foi caracterizado como
tradutor de demandas locais, neste sentido, produtor de pesquisa de
interesse meramente periférico, sem capacidade de circulação ampla na
rede global do sistema, e, portanto, negligenciada no centro.
No próximo capítulo, seguindo uma linha de argumentação próxima,
Maíra Baumgarten discute alguns dos constrangimentos e diiculdades
envolvidos na produção e divulgação de ciência e tecnologia no Brasil e na
América Latina, questionando as opções de políticas e as prioridades estabelecidas pelas agências de gestão e fomento. O capítulo trata, portanto,
das relações entre avaliação e gestão de ciência e tecnologia, a produção
de conhecimentos e o lugar das ciências sociais nessa temática. Segundo a
autora, uma das questões centrais que vem sendo debatida em diferentes
fóruns sobre edição de livros e periódicos em ciências sociais na América
Latina – sua produção e circulação – é a necessidade de ampliar os pro17
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cessos de internacionalização daquilo que produzimos no subcontinente
e as diiculdades e possibilidades envolvidas neste processo, sem perder de
vista que o público predominante (nas ciências sociais) é nacional e latino-americano e que temos uma cultura e identidade que passa pela língua,
assim como possuímos em nossos países problemas e questões diferentes
daqueles dos países europeus e da América do Norte. A abordagem dessa
problemática no capítulo busca apontar alternativas possíveis e adequadas
que apoiem a ampliação de nossas redes de conhecimentos sem provocar
a perda da identidade linguística e cultural.
Silvia Lago Martínez, no capítulo oitavo, problematiza a noção de
bem comum associada aos bens intelectuais e culturais, o acesso aberto
à produção cientíica e as novas formas de gerar conteúdo, produzir
conhecimento e compartilhar obras na arquitetura da internet, em
oposição às pressões exercidas pela legislação de propriedade intelectual
e pelas empresas do setor para limitar e controlar o luxo de informação e
circulação da produção cultural e intelectual. A autora analisa os processos
desenvolvidos nesse sentido na América Latina e no Caribe, observando,
por um lado, as diversas iniciativas governamentais que envolvem ações
sobre o Acesso Aberto e a utilização de software livre em ciência e tecnologia, na administração pública e nas instituições educacionais. Por outro
lado, Silvia Lago aponta as iniciativas dos diversos atores não governamentais que promovem o Acesso Aberto como nova norma acadêmica e cientíica, o software livre e as formas colaborativas de trabalho para a produção
de conhecimento, propiciando uma nova noção de bem comum.
O nono capítulo analisa os principais desaios e oportunidades que
se colocam, contemporaneamente, às universidades da América Latina.
Michelangelo Trigueiro coloca ênfase na necessidade de se rever determinadas práticas e estruturas nas universidades e em suas relações com
os demais ambientes de produção de ciência, tecnologia e inovação,
considerando-se a expansão de ambientes democráticos, que afetam
inúmeros processos decisórios nas universidades. Segundo o autor, em
termos empíricos, a pesquisa se baseou em estudos realizados a esse respeito na realidade brasileira, em que se confrontaram novas demandas
de diferentes setores da sociedade, especialmente o produtivo, em áreas
consideradas estratégicas para o desenvolvimento do país, com a base
cientíico-tecnológica e inovativa instalada. O capítulo conclui, em con-
18
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sonância com os anteriores, que é inadiável um novo desenho de políticas públicas para a ciência, a tecnologia, a inovação e as universidades,
argumentando que são necessários muitos outros indicadores, além da
publicação em periódicos especializados, para que se possa estimular
a busca de soluções para problemas recorrentes nesses países, as quais
muito dependem da ciência, tecnologia e inovação.
Hernán homas e Lucas Becerra trazem, no capítulo dez, elementos
para repensar a mudança tecnológica e a inclusão social, debatendo as
questões da inovação, cooperativismo e desenvolvimento inclusivo. O capítulo analisa criticamente um conjunto de questões relacionadas ao tipo
e caráter das unidades produtivas que devem ser privilegiadas como reguladoras de um sistema de inovação e produção. De modo sucinto, a teoria
econômica sobre mudança tecnológica e inovação considera: i) a inovação
como resultado da competição dinâmica entre empresas maximizadoras
de lucro; ii) que essa competição, geradora de novas mercadorias e de novas técnicas de produção, traduz-se necessariamente em maiores taxas de
crescimento econômico; e iii) uma vez que (por deinição) os loci da inovação são as empresas maximizadoras de lucro, elas devem ser consideradas
como o ator-chave das políticas públicas de inovação.
Partindo da avaliação crítica desses enunciados, o capítulo posiciona,
através de exposição teórica, as cooperativas de trabalho como atores dinamizadores de processos de inovação e de desenvolvimento social. Os autores buscam aqui, particularmente, hierarquizar estas unidades produtivas
no âmbito da órbita de ação das políticas públicas de Ciência, Tecnologia
e Inovação (CTI). A hipótese de trabalho presente no capítulo se relaciona
à ideia de que mudar o centro de atenção para as cooperativas de trabalho
pode ativar um conjunto de dinâmicas de aprendizagem, circulação de
conhecimentos e geração de capacidades técnico-produtivas que revertem
em processos mais democráticos de apropriação do conhecimento e de
geração de valor agregado. Ao inal do capítulo, apresenta-se um conjunto
de relexões relacionadas às políticas públicas de ciência, tecnologia e inovação orientadas ao desenvolvimento inclusivo.
O último capítulo do livro trata da produção de conhecimento sobre os movimentos sociais. Partindo da constatação de que no campo
teórico de análise sobre movimentos sociais, nas últimas cinco décadas,
houve grande inluência do referencial de produção de conhecimento
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cientíico construído nos países do Norte nas análises e explicações sobre os movimentos e mobilizações ocorridas no Sul, no mesmo período,
Maria da Glória Gohn coloca uma série de interrogantes como pontos de partida para o debate sobre o tema: quais as especiicidades dos
movimentos sociais latino-americanos em relação aos movimentos que
ocorrem no Norte, em diferentes tempos históricos? Por que muitos pesquisadores tratam movimentos e outros fenômenos sociais do Sul com
um referencial teórico advindo do Norte? É possível falar de uma teoria
dos movimentos sociais do Sul?
Esperamos com esse livro contribuir para o debate sobre a produção
de conhecimentos na América Latina, nossa posição na sociedade global
e importância das relações Sul-Sul para ampliicar debates necessários e
estratégicos sobre democracia e inclusão, buscando formas de produzir e
divulgar conhecimentos adequados às nossas realidades e contextos especíicos e a redescoberta e desvelamento de formas alternativas e solidárias
de construir a vida e conviver.
Maíra Baumgarten
(Organizadora)
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Parte I
Desenvolvimento,
colonialidade e as ciências sociais
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O (des) encanto do desenvolvimento
latino-americano na sociedade global
Paulo Henrique Martins
Podemos sintetizar nossa relexão nesse texto com uma pergunta: por que
o tema do desenvolvimentismo, que implica participação ativa do Estado
nas ações de modernização, que havia sido relativamente desvalorizado no
debate acadêmico nas duas últimas décadas na região sob o peso do neoliberalismo, regressa com força na América Latina nos últimos anos? Nossa
resposta inicial para alimentar o debate é que os intelectuais, incluindo
os economistas, diferentemente do que pensavam vários cientistas sociais
nos anos 90, estão percebendo que a globalização não tem contribuído
para solucionar as desigualdades e injustiças sociais. Ao contrário, elas se
ampliaram gerando o aumento de outros indicadores sociológicos negativos como o da violência, da dessocialização, da corrupção e das doenças
psicossomáticas. Ou seja, os impactos da globalização econômica sobre as
políticas de desenvolvimento foram exagerados, contribuindo para mascarar os novos pactos de dominação nos planos nacional, regional e global.
Vamos tentar aprofundar isto neste texto.
As ciências sociais e o desenvolvimento
Quando o pensamento crítico não é capaz de reletir mais profundamente sobre a realidade, então as perspectivas de eliminação dos processos democráticos e do avanço de forças conservadoras – capitalistas,
patriarcalistas e colonialistas – passam a constituir uma sombra inevitável
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sobre o futuro das sociedades nacionais, da paz mundial e da cidadania
democrática planetária. Este comentário é válido especialmente para a
América Latina, cujo destino não pode ser apreciado a partir do entendimento simpliicado oferecido pelo debate entre desenvolvimento com
Estado interventor ou desenvolvimento com Estado mínimo. Uma rápida retrospectiva da modernização latino-americana e brasileira no século
XX demonstra que a presença do Estado é fundamental para se viabilizar
projetos desenvolvimentistas. Nesta perspectiva, o debate deve ser reconigurado para aquele entre desenvolvimentismo com cidadania democrática
ou desenvolvimentismo com autoritarismo.
Certamente, o avanço desta discussão não pode permanecer monopólio dos economistas que tendem a analisar o tema do desenvolvimento
a partir do crescimento econômico e das variações do PIB (Produto Interno Bruto). A discussão tem que ser ampliada para se repensar o desenvolvimento a partir de variáveis sociológicas que considerem o tema da
desigualdade, da violência, do meio ambiente. Por isso, as ciências sociais
e a sociologia têm um rol central para apresentar um entendimento mais
complexo do fenômeno do desenvolvimento de caráter epistêmico e epistemológico, contribuindo para aclarar as presenças das diferentes forças
sociais e históricas que deinem sua materialidade e também as políticas
de crescimento econômico e de expansão de mercado na vida cotidiana.1
Quando fazemos uma retrospectiva histórica, veriicamos que na
América latina e no Brasil o tema do desenvolvimento sempre teve uma
presença particular nas ciências sociais, através da economia do desenvolvimento e da sociologia do desenvolvimento, e no interior das agências
estatais, o que se explica pelos esforços dos países da região de estabelecer
políticas industriais e urbanas capazes de enfrentar o “subdesenvolvimento”. Na verdade, a partir dos anos 1950, a sociologia icou de certo modo
subordinada à economia do desenvolvimento, o que teve impactos negativos sobre as perspectivas de emancipação de sociologias fenomenológicas
e relacionais necessárias para explicar as mudanças complexas do cotidiano na região, em particular para se apreciar mais claramente o papel dos
intelectuais na reprodução de ideologias autoritárias.
No caso brasileiro, as críticas têm que considerar que o aumento da consumação de bens duráveis
e não duráveis não é um fato natural inelutável senão o produto de um acordo entre sindicalistas
e empresários iniciado no governo do Partido dos Trabalhadores (PT), no governo Lula, para
manter empregos e salários nas indústrias de bens de consumo.
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Assim, em um primeiro momento, entre os anos 1950 e 1980, o desenvolvimento era interpretado como o único modelo possível de passagem
das sociedades do “Terceiro Mundo” para o padrão “Primeiro Mundo”. Entretanto, desde os anos 1980 e sobretudo na década de 1990, a ideia de
desenvolvimento como desenvolvimentismo, isto é, modernização social e
econômica com forte presença estatal, foi muito questionada a partir de dois
temas conluentes: a do desenvolvimento como Estado mínimo sugerido
pelo neoliberalismo e pelo consenso de Washington, e pela ilusão da globalização como eliminação do imperialismo a partir da uniformização planetária e livre circulação dos capitais. Muitos sociólogos se sentiram atraídos
pela perspectiva da globalização. Otavio Ianni, por exemplo, criou o termo
globologia para deinir a nova ciência que pensaria o global.2 Para ele, com a
globalização, os temas da hegemonia e da soberania nacional tinham icado
desatualizados, pois as empresas e as corporações transnacionais estavam
agora “operando em escala regional, continental e global e dispõem de condições para impor-se aos diferentes regimes políticos, às diversas estruturas
estatais, aos distintos projetos nacionais” (Ianni, 1994). Este comentário
nos ajuda a entender o que já sublinhamos antes, que desde os anos 1990 o
tema de desenvolvimento foi de certo modo subalterno ao da globalização,
levando intelectuais prestigiados de esquerda a questionar o interesse efetivo
da política nacional e as ciências sociais em um “mundo globalizado”.
Neste momento da década de 90, muitos comemoraram os novos
tempos, inclusive intelectuais marxistas, que viam na globalização a passagem para uma nova etapa do desenvolvimento do capitalismo, com a resolução dos problemas econômicos a respeito da livre circulação dos capitais
que, até então, supunha-se teria atrasado a superação do “subdesenvolvimento”. Aqui, podemos identiicar algumas tendências dos intelectuais
marxistas da Teoria da Dependência como é o caso de R. M. Marini, que
em um artigo de 1997 propunha que a globalização era o produto da
superação das fronteiras nacionais, alterando a geograia política de cada
país (Marini, 2008, p. 248). Certamente, o debate sobre desenvolvimento
“Denominamos esta ciência emergente da dinâmica global como globologia, o que simplesmente
signiica a ciência de distintos processos globais, sejam econômicos, políticos ou culturais. Se a
sociologia é a ciência dos sistemas sociais, então globologia é a ciência do sistema global. Globologia, pois, é análoga à sociologia e refere-se aos estudos de estruturas e processos do sistema-mundo
como um todo, da mesma forma que a sociologia se refere ao estudo de estruturas e processos
sociais. ” (Ianni, 1994).
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icou complexo, e devemos reconhecer que intelectuais como Conceição
Tavares, Luiz Gonzaga Beluzzo, entre outros da Universidade de Campinas reagiam contra os discursos privatizantes.
Os liberais, por seu lado, comemoravam o im da União Soviética e
o avanço do neoliberalismo e da diminuição da presença do Estado na
organização da sociedade. Para os neoliberais, a globalização signiicava a
vitória do mercado em âmbito mundial, deslocando os Estados nacionais
para lugares secundários, e tal vitória deveria ser conirmada pela ideia
de Estado mínimo. A ideia do im da história mundial sugerida por F.
Fukuyama (1992) no período é emblemática do espírito dos liberais.
Entre os sociólogos há que se destacar, porém, aqueles que viam com
reservas o discurso da globalização como panaceia de um mundo socialmente integrado pelo livre capital circulante. O sociólogo colombiano
A. Escobar (1995) já propunha o termo pós-desenvolvimentismo para
explicar que estaria havendo naquele momento o inal de um ciclo de desenvolvimento e o início de outro. Também avançamos nesta direção na
nossa tese de doutorado (Martins, 1992) quando exploramos o tema do
mito do desenvolvimento latino-americano.3
O contexto atual da crise de regulação do capitalismo inanceiro
internacional e a evidência que a ideia de globalização econômica não
avançou nada em termos de diminuição das desigualdades econômicas e sociais dão razão aos que receberam com ceticismo o discurso da
globalização e que entendiam a importância de se valorizar o papel do
Estado com agente da modernização nacional. De fato, neste momento
se reconhece amplamente que o Estado tem papel fundamental na implementação de ações que contribuam para minimizar os efeitos da crise
mundial sobre as economias nacionais, regionais e locais. Esta assertiva
não elimina, claro, a importância de se repensar que Estado queremos
ou então como organizar a relação entre política e economia em favor
da democratização da vida social. O que se destaca sobretudo aqui é a
Para nós, o desenvolvimentismo era um pacto de poder entre forças capitalistas e patrimonialistas o que nos levou a sugerir que a crise do desenvolvimento nos anos 1980 era uma crise do
poder patrimonialista de mercado (Martins, 1991). Para isso, analisamos três momentos de crise
na qual os intelectuais tiveram um rol central para a organização dos pactos de poder: anos 30,
anos 60 e anos 80 do século XX (Martins, 1992). Também buscamos demonstrar na época que o
desenvolvimentismo não se airmava só para a mecânica do capitalismo e das forças oligárquicas
senão desde intervenções dos intelectuais na sistematização da ideologia do progresso econômico.
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importância de se deslocar o debate sobre desenvolvimento do discurso
equivocado do neoliberalismo que apenas contribui para reforçar o poder do capitalismo inanceiro e rentista.
Isto implica a importância de saber para onde está caminhando o pensamento crítico a respeito do tema do desenvolvimento. Vamos fazer essa
relexão desde América Latina, pois aqui se formou nas últimas décadas
uma importante tradição sociológica, que pensou com qualidade a relação entre desenvolvimento, dependência e imperialismo, e esta questão
do impacto da crise global sobre os países da região é um tema de grande
interesse da opinião pública na atualidade.
As novas ideias no debate sobre
o desenvolvimento na América Latina
No momento presente de evidência da crise mundial e regional
da regulação capitalista e da ausência de um debate crítico mais efetivo, revaloriza-se uma versão mais conservadora de desenvolvimento
que exalta novamente a relação entre intervenção estatal e crescimento
econômico no contexto da globalização, ou seja, da revalorização do
papel do Estado desenvolvimentista. Há, aqui, os que não escondem
seus entusiasmos a respeito da perspectiva de um neodesenvolvimento
como é o caso de L. C. Bresser Pereira (2004) e R. Boschi e F. Gaitán
(2008), que enfatizam a dinâmica da política para repensar o desenvolvimento como neodesenvolvimento.
Há, por outro lado, os que aceitam a perspectiva de um novo modelo
de desenvolvimento, como propõe a socióloga Anete Ivo, mas que criticam a redução das políticas de inclusão à lógica do mercado e do Estado
eiciente (Ivo, 2012, p. 205-206).4 Para nós nos parece mais simpática
esta posição, ainda que consideremos ser necessário o avanço na direção
de revalorizar o desenvolvimento desde a perspectiva de redemocratização
da sociedade e da criação de mecanismos participativos que neutralizem o
poder tirânico das forças capitalistas e patriarcalistas antidemocráticas. De
fato, as resistências ao desenvolvimento se ampliam quando consideramos
Assim, para a autora, tais políticas sociais apresentam limites no padrão da distribuição, nos
direitos da cidadania e nos objetivos mais amplos da seguridade econômica e alimentar, sem
desconhecer as melhorias no alívio das famílias em condição de pobreza.
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a associação entre este modelo e a ideia de progresso econômico – que é
reproduzida pelas teorias da modernização, pelas teorias da dependência
(Grosfoguel, 2000) e pela sociologia do desenvolvimento – contribui para
legitimar políticas públicas e sociais que ampliam a desigualdade.
Independentemente das várias posições – a favor ou contra – há um
fato inelutável: na América Latina, o tema do desenvolvimento é hoje uma
unanimidade entre os intelectuais, pois se reconhece que a globalização
econômico-inanceira não substitui o papel do Estado no planejamento
das políticas de promoção das atividades econômicas, sociais e culturais.
Para nós, portanto, o desenvolvimento continua a se constituir como um
grande atrativo sociológico, uma utopia que se encarna quando naturalmente todos acreditam na sua encarnação. A imaginação se torna realidade se assim queremos e se transformamos as ideias e crenças em ações
práticas. Então, não se pode negar a discussão do tema desenvolvimento
quando há um consenso sobre sua importância, sobre suas possibilidades
e sobre o papel estratégico do Estado para enfrentar a crise e combater as
desigualdades. Por consequência, não acreditamos que se pode avançar na
discussão sobre o futuro do desenvolvimento e sobre o desenvolvimentismo na América Latina – e pensar alternativas a ele, inclusive pensar a sua
negação se necessário – sem considerar que sua consensualidade básica é
assegurada por sua estrutura utópica, isto é, pela crença coletiva e pública
que a mesma desperta entre diversos segmentos sociais.
Deste modo, é importante se entender os motivos pelos quais o ideal
do desenvolvimento aparece como central em todos os pactos de poder
inclusive os mais radicais como, por exemplo, o da Bolívia. E, seguramente, isto tem relação, como explicamos, pelo fato de que não se pode
pensar a relação entre desenvolvimento, democracia, igualdade social e
liberdade coletiva sem a mediação da política nos processos econômicos
e outros, que no momento presente aparece pela igura do Estado. Mas
devemos igualmente considerar que a utopia do desenvolvimento se inclui dentro de uma lógica temporal linear que está articulada com a do
progresso histórico, o que indica problemas epistemológicos dramáticos
quando se considera a importância do desenvolvimento para o reforço
da colonialidade e do imperialismo.
Comecemos por situar então os problemas teóricos que necessitam
ser questionados desde sua natureza utópica, pois necessitamos obser-
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var limitações conceituais que não favorecem o avanço do pensamento
crítico na atualidade. A primeira e mais evidente é a redução do desenvolvimento a um processo uniforme, quase um pensamento homogêneo
sem consideração de suas variadas versões históricas. Outra limitação
tem relação com a tendência a reduzi-lo a um desaio econômico sem
considerar a pluralidade de motivos que o determinam, sobretudo as
diversas conigurações de poder que se materializam sobre os territórios
nacionais e regionais.
Tais limitações se referem ao fato de que a associação estreita do desenvolvimento com a ideia de crescimento econômico não facilita entender
que se trata de outro fenômeno histórico e cultural mais amplo do que sua
dimensão econômica e que ele se expressa por diversas conigurações ou padrões de poder, envolvendo forças capitalistas e anticapitalistas em âmbitos
locais, regionais, nacionais e internacionais. Estas simpliicações teóricas que
se passam em dois níveis – redução do desenvolvimento ao crescimento e redução do sistema-mundo a sistema capitalista – depreciam a complexidade
do movimento histórico da criação humana e geram a ideologia equivocada
de um pensamento planetário que, valorizando excessivamente a economia
mercantil, mascara a diversidade de pensamentos existentes e possíveis, a
ecologia de saberes que nos propõe B. Santos (2008).
Para introduzir um entendimento mais complexo do desenvolvimento que tenciona sua estrutura utópica para abrir as heterotopias
(Martins, 2012), temos necessariamente que discutir a relação complexa
entre o desenvolvimento do capitalismo e desenvolvimento como processo político e social mais amplo que envolve o econômico e o sobrepassa. Nesta direção, é de grande atualidade recordar C. Furtado quando
ele airmava ser necessário superar a visão restritiva do desenvolvimento
como algo quantiicável baseado na acumulação para introduzir uma
visão ampliada do desenvolvimento como um processo de ativação das
forças sociais, de avanço e da capacidade associativa. Para ele, se trata
de um processo social e cultural e apenas secundariamente econômico.
“Produz-se o desenvolvimento quando na sociedade manifesta-se uma
energia capaz de canalizar, de forma convergente, forças que estavam
latentes ou dispersas” (Furtado, 1983, p. 149).
Podemos agora mudar nosso olhar para localizar o debate sobre desenvolvimento e do sistema-mundo de duas formas: a) O desenvolvi-
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mento é um modo de expressão do sistema-mundo em uma dinâmica
temporal e espacial que se identiica ao capitalismo; b) O desenvolvimento é um modo de expressão sistema-mundo, que é mais amplo que o
sistema capitalista. Isto é, tais avanços na discussão de desenvolvimento
nos levam a sugerir a importância de fazer a diferença entre o capitalista
e o sistema-mundo. No sistema capitalista, o desenvolvimento se identiica ao crescimento econômico; no sistema-mundo, ele se abre para os
processos sociais e culturais mais amplos, permitindo o entendimento
histórico mais amplo dos processos simbólicos e linguísticos que no conjunto participam da organização da vida social e comunitária das nações
e comunidades nacionais e internacionais.
Desde este entendimento complexo, podemos airmar que o desenvolvimento é em primeiro lugar um fenômeno que não se reduz ao mercado,
mas se abre à diversidade cultural, social e histórica. Ou seja, sua natureza
fenomênica se refere sempre à manifestação temporal do sistema-mundo
que se desdobra sob lutas políticas que se expressam como padrões de
poder. Recordando a airmação I. Wallerstein (1996, p. 195) que “lo que
desarrolla no es un país sino un padrón de poder”, A. Quijano (2000, p.
75) aclara este entendimento airmando que o padrão do poder capitalista
não existe de modo homogêneo no espaço mundial: “ [...] esto padrón de
poder es mundial, no puede existir de outro modo, pero se desarrolla de
modos diferentes y em niveles distintos em diferentes espacios-tiempos o
contextos históricos”. Esta é a direção que vamos seguir neste texto. Entretanto, vamos buscar aprofundar este modelo de análise através do entendimento das particularidades dos padrões de poder do sistema-mundo, que
é mais complexo que o sistema capitalista em sentido restrito.
América Latina e os desafios do desenvolvimento
sob as mudanças do imperialismo
A respeito do desenvolvimento do pensamento crítico na América Latina no contexto do deslocamento dos centros de impulsão do capitalismo
econômico e inanceiro a nível global, veriicamos a presença de pressões
contraditórias entre a recolonialidade e a descolonialidade dos sistemas de
saber e poder. Por um lado, presenciamos o avanço importante das teorias
da modernização através do reforço da ideologia do progresso e as teses do
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crescimento econômico ilimitado que propõem a necessidade de libertar
a sociedade de consumo dos limites jurídicos e políticos impostos pelas
constituições republicanas. Por outro, observamos igualmente as reações
anticoloniais que se posicionam contra a redução do desenvolvimento a
crescimento econômico e de redução dos direitos de cidadania a consumo
do mercado. Entretanto, este avanço do padrão do desenvolvimento na
etapa atual de emergência do imperialismo oriental não é um processo
homogêneo na América Latina, conhecendo adaptações particulares do
poder, que chamamos de padrões especíicos do desenvolvimento.
Na América Latina, o avanço do debate crítico expressa o entendimento desta região como um subsistema histórico e vivo dentro do sistema-mundo. América Latina emerge como uma expressão particular e
inédita do sistema mundial, que é reconhecido como tal desde que os
atores intelectuais, ativistas e movimentos sociais passaram a questionar
a centralidade do imperialismo eurocêntrico na época da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), como vamos examinar
mais à frente. América Latina contribui para tornar o sistema-mundo mais
complexo quando revela pela política que a equação centro x periferia não
é uma determinação meta-histórica senão um sistema de relações de forças valorizadas culturalmente na medida em que foram signiicadas como
prioridades por um grupo ou grupos.5
A América Latina é também a síntese de movimentos sistêmicos de
naturezas diversas – econômicas, mas igualmente políticas, culturais, morais, estéticas e históricas. Trata-se de movimentos estimulados por inovações culturais e tecnológicas capitalistas e por reações diversas manifestando inovações e resistências variadas legitimadas sobre as heranças e
memórias tradicionais. Tudo isso contribui para reorganizar os padrões de
percepção recorrentes sobre a vida e sobre a relação homem x homem e
homem x natureza, abrindo passagem a novos entendimentos e práxis do
modo de produção da humanidade ao longo do século XXI.
Podemos dizer que o contexto atual revela uma situação que recorda,
desde certos limites e guardando as distancias históricas apropriadas, o que
Centro x periferia é uma equação cultural que envolve forças nacionais (agências como os aparatos estatais e a Igreja e sujeitos históricos como os movimentos sociais) e forças transnacionais
(corporações, governos, associações civis, movimentos sociais) que disputam pelo controle de recursos do desenvolvimento.
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se passou na época da Cepal. Naquele período, a dependência econômica
da América Latina se conigurava na airmação dos Estados Unidos e de sua
presença como novo eixo do imperialismo. O clima da época ica evidente
quando se analisa o texto de R. Prebisch a respeito dos problemas do desenvolvimento na América Latina. De fato, entre os anos 1950 e 1990 foi inegável a hegemonia dos EUA em âmbito mundial e, sobretudo, de América
Latina; assim, os avanços do pensamento desenvolvimentista foram inluenciados pela relação dos países latino-americanos com os Estados Unidos. O
contexto latino-americano é interessante para reletir sobre a leitura mais
ampla da ideia de desenvolvimento, o que é importante para entendermos a
presença de vários padrões de desenvolvimento no sistema-mundo.
A relexão sobre o caso brasileiro é interessante para explicar as mudanças atuais na estrutura de tal sistema. Avancemos na discussão com
uma informação concreta e contemporânea sobre a situação externa do
Brasil: atualmente, o país exporta quase 80 % de sua soja, petróleo e minério de ferro para a China, o que signiica uma autonomia importante
do Brasil no que diz respeito aos Estados Unidos e uma dependência crescente em relação à China. Para nós, estes e outros dados relativos à nova
especialização da América Latina e do Brasil na exportação de produtos
extrativistas, agrícolas e minerais provam que o que chamamos de globalização signiicou de fato novos deslocamentos do imperialismo, agora com
a emergência da China como grande potência mundial.
O deslocamento do imperialismo está claramente impactando sobre a
geopolítica mundial, sobre os rumos dos conlitos de interesses internacionais e continentais e sobre o declínio evidente do eurocentrismo. O peso
do novo imperialismo ainda não foi absorvido no debate político, e por
isso muitos não entendem os impactos previsíveis deste novo imperialismo
oriental a respeito do mundo e da América Latina. Mas o fato de a China
ser o maior credor dos Estados Unidos da América no momento presente
é uma evidência das mudanças da ordem mundial, e, por isso, é muito
importante se conhecer mais profundamente a situação latino-americana.
Ou seja, o deslocamento do centro imperialista como movimento sistêmico dentro do sistema-mundo, nos últimos sessenta anos, do Ocidente
para o Oriente é um fato novo e irrecusável, o que está gerando, por consequência, reações alter-sistêmicas na América Latina, que vão seguramente
renovar o entendimento teórico e a prática do desenvolvimento.
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A seguir, vamos buscar inalizar esta relexão sublinhando uma consequência lógica da tese que defendemos aqui a respeito do fato de que
o sistema-mundo é maior do que o sistema capitalista. A aceitação desta
tese, que, penso, foi adequadamente demonstrada aqui, tem como desdobramento necessário a importância da aceitação de que não há um só
padrão de desenvolvimento na América Latina na contemporaneidade,
senão alguns padrões de poder que podem ser classiicados desde uma
tipologia que nos ajude a compreender mais claramente os movimentos
sistêmicos e alter-sistêmicos na América Latina. O uso do conceito de
tipo ideal, aclara-nos Weber (1979), é importante para organizar juízos
de atribuição que nos permitem formar hipóteses que não nos revelam a
realidade, mas que facilitam signiicá-la.6 É com esta intenção que vamos,
na última parte do texto, buscar organizar alguns tipos que espelham os
movimentos padrões de poder na América Latina.
Conclusão: uma tipologia provisória
de padrões de desenvolvimento na América Latina
A tese que expomos aqui é que não há um único padrão de desenvolvimento, senão vários padrões de desenvolvimento que expressam as
contradições do sistema capitalista dentro do sistema-mundo por um
lado, e dos chamados movimentos alter-sistêmicos dentro do mesmo
sistema-mundo por outro lado, revelando tanto as interferências do capitalismo como as reações anticapitalistas. Podemos então propor que o
desenvolvimento deveria ser pronunciado no plural, como um conjunto
de atividades teóricas e práticas de mudança social, cultural e histórica,
seguindo uma rota de tempo linear que não permite perceber a presença
de diversos padrões de poder.
Na América Latina eles espelham diferentes padrões de poder sob a
dialética do centro e periferia do sistema-mundo e do capitalismo global.
Nesta direção, propomos a presença na America Latina de uma tipologia
Explica M. Weber (1979, p. 106-107): “Embora não constitua uma exposição da realidade, (o conceito de tipo ideal) pretende conferir a ela (realidade). [...] [E a seguir:] Queremos sublinhar desde
logo a necessidade de que os quadros de pensamento que aqui tratamos, ideais em sentido puramente lógico, sejam rigorosamente separados da noção do dever ser, do exemplar. Trata-se da construção
de relações que parecem suicientemente motivadas para a nossa imaginação e, consequentemente,
objetivamente possíveis, e que parecem adequadas ao nosso saber monológico.
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de desenvolvimentos, ou seja, de quatro padrões de desenvolvimento que
necessitam ser mais aprofundados em outro momento, pois todo esquema
explicativo é necessariamente limitado, mas necessário para explicar as realidades caóticas, como nos explica Weber. Aqui, temos o Padrão de desenvolvimento por desaios econômico-inanceiros com subalternização do
social ao consumo; Padrão de desenvolvimento por desaios econômico-inanceiros com indexação do social aos direitos republicanos; Padrão de
desenvolvimento por direitos coletivos solidários com apoio em políticas
econômicas plurais; e Padrão de desenvolvimento por direitos igualitários
com apoio em políticas econômicas coletivistas.
Padrão de desenvolvimento por desafios econômico-financeiros
com subalternização do social ao consumo
Este padrão se funda na hegemonia dos economistas neoliberais na
deinição dos desaios do desenvolvimento em termos claramente econômicos e consumistas. Aqui, o social não é percebido como um sistema social que tem o seu próprio ritmo, senão como um produto de crescimento
econômico. O desenvolvimento é claramente o crescimento econômico,
e o papel do Estado é apoiar a reprodução do padrão de poder econômico
e inanceiro internacionalista, sendo a cidadania limitada à inclusão dos
indivíduos no mercado de consumo de bens e serviços.
Os casos mais evidentes aqui são países como Brasil e México, mas
temos igualmente que analisar com mais profundidade a expansão deste
padrão em países como Argentina, Paraguai, Panamá e Nicarágua. Os economistas neste padrão de desenvolvimento creem na necessidade absoluta
de guardar o mantimento do que eles chamam de “mix” da política econômica, que é organizado por três variáveis macroeconômicas – desaios
de inlação, câmbio lutuante e superávit primário –, que para eles são os
fundamentos do crescimento econômico. Segundo tal visão, o social é um
efeito do crescimento econômico e da inserção dos indivíduos no mercado
de bens e serviços de consumo.
No Brasil, a aplicação deste modelo é evidente. A ação estatal foca dois
pontos: primeiro, assegurar as exportações de matéria-prima, principalmente produtos extrativistas, como minério de ferro, ou agrícolas, como
soja, que se destinam na maior parte ao mercado chinês; o outro ponto
é a mercantilização de bens de consumo duráveis e não duráveis para as
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populações internas assegurando o ideal de inclusão pelo consumo. Os
efeitos perversos desse modelo sobre a democracia e a participação cidadã
preocupam, pois ampliam o interesse egoísta e desorganiza a solidariedade social. No Brasil, todas as políticas públicas e ação social são pensadas
para incluir os indivíduos pelo consumo. Para isso, foi organizado um
sistema de créditos para indivíduos pobres através de cartões de crédito
regionais. Os cartões, cujo número chega quase a 45 milhões, propiciam
às pessoas de baixa renda maior facilidade para dispor de créditos que
podem chegar a dez vezes ou mais o seu salário. Os indicadores econômicos são exitosos, pois há mais de quarenta milhões de pobres consumindo mercadorias com apoio das políticas sociais, mas os indicadores
sociológicos são muito preocupantes: aumento das drogas, da violência,
da desarticulação familiar e da destruição ambiental.
Padrão de desenvolvimento por desafios econômico-financeiros
com indexação do social aos direitos republicanos
Este padrão se funda igualmente na hegemonia dos economistas,
como no caso anterior. Entretanto a ambição de classiicar o social como
produto do crescimento econômico encontra resistência em uma memória de direitos de cidadania republicana (o trabalho, a livre expressão,
os serviços públicos básicos, como educação e saúde, etc.) que ainda
funciona como dispositivo de resistência ao avanço neoliberal. Aqui,
podemos recordar os casos de países como Chile e Costa Rica, onde
existe ainda a valorização do ideal de público, de educação pública, de
saúde pública, entre outros. As grandes manifestações estudantis recentes no Chile e as preocupações com o meio ambiente em Costa Rica são
expressões desta memória dos direitos republicanos. Há neste grupo, no
entanto, países que, lamentavelmente, estão perdendo suas memórias
culturais republicanas sob o peso do neoliberalismo como podemos recordar com as situações da Argentina e Uruguai; há, por outro lado, outros países como a Colômbia e o Peru, que passam a valorizar a memória
dos direitos republicanos como uma possibilidade de escapar à tirania
do padrão de colonialidade neoliberal.
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Padrão de desenvolvimento por direitos coletivos
solidários com apoio a políticas econômicas plurais
Este padrão se baseia em articulações amplas de agentes sociais e institucionais, não só econômicos, e que expressam certos tipos de rupturas
com os padrões de poder típicos da modernização conservadora (aliança
das oligarquias com o capitalismo internacional). Sob pressão dos movimentos sociais e de forças politicamente organizadas, os governos são
obrigados a fazer concessões, o que impacta sobre a estrutura do Estado e
das políticas redistributivistas.
Aqui nos parece que as lutas coletivas por direitos solidários e amplos
que redimensionam a relação política e cultural entre os homens, por um
lado, e entre os homens e a natureza, por outro, são mais importantes
do que os desaios econômicos pragmáticos. Para nós nos parece que os
casos da Bolívia, Equador e Venezuela podem ser classiicados neste tipo
de padrão de poder. No caso boliviano, o gás é importante, mas ele é um
meio para o avanço do Estado plurinacional, não é uma meta em si mesma
independentemente dos fatores políticos. É o contrário do que acontece,
por exemplo, em um país como o Brasil. Neste tipo de relativa ruptura
com a ordem oligárquica internacionalizada, como é o caso sobretudo
boliviano, os desaios econômicos não se impõem à sociedade como prioridade número um, senão como um recurso intermediário que deve ser
usado para inalidades éticas e políticas mais nobres e vinculado com direitos coletivos. Aqui, a possibilidade de articulação da atividade humana
com a moral coletiva abre várias possibilidades de emancipação de economias plurais e solidárias. Certamente, não podemos falar aqui somente de
lores, pois as pressões para imposição de um modelo de base extrativista
na região são grandes e constituem ameaças políticas desestabilizadoras.
Padrão de desenvolvimento por direitos
igualitários com apoio em políticas econômicas coletivistas
Este padrão se baseia em articulações amplas de agentes sociais e
institucionais mobilizados para assegurar a predominância dos direitos
igualitários sobre os interesses econômicos. Há ruptura com os interesses
oligárquicos tradicionais e com a burguesia colonial, e a atividade econômica é regulada por uma burocracia implicada com os usos coletivos dos
recursos disponíveis. Cuba nos parece o caso típico deste padrão de poder.
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Suas diiculdades atuais se explicam pelas grandes pressões internacionais
mobilizadas pelos Estados Unidos, mas não se pode esquecer a importância das lutas sociais e valores de igualdade sociais lá implantados.
Finalmente, pensamos, esta tipologia ideal tem seus méritos para destacar a complexidade dos padrões de poder e desenvolvimento e para demonstrar que os espaços da política e das lutas democráticas continuam a
existir sobredeterminando os interesses econômicos e espelhando os deslocamentos do sistema-mundo sob as tensões sistêmicas e alto-sistêmicas.
Mas, claro, reconhecemos os limites desta tipologia, ainda que acreditemos que deva ser objeto de investigação comparativa mais profunda.
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Linhagens pós-coloniais e a possibilidade
de ampliação do conhecimento:
um debate epistemológico
Adelia Miglievich-Ribeiro
As múltiplas e distintas vertentes dos estudos pós-coloniais que, em
comum, propõem a teorização crítica das heranças coloniais à luz das
experiências de descolonização e da persistência dos neocolonialismos
intervêm mais nitidamente nos debates acadêmicos a partir das últimas
décadas do século XX, explicitando a geopolítica do conhecimento e
seu impacto na produção dos cânones que tendem a ocultar sua própria
condição de conhecimento localizado.
As teorias pós-coloniais problematizam as conquistas da modernidade, sobretudo questionam seu pseudouniversalismo, identiicando nele
a vitória de um paradigma sobre outros tão legítimos quanto, ainda que
expressivos de vozes que o projeto colonial silenciou. Nesse sentido, a razão pós-colonial, em termos amplos, na distinção à típica racionalidade
moderna-ocidental, recusa explicações totalitárias e unívocas que pretendem um grau de abstração tal a desconsiderar os processos históricos e
os contextos especíicos. Não que não seja possível ultrapassar os particularismos e, por meio dos conceitos e das teorias, articular fenômenos
e acontecimentos em plano mundial, mas, até hoje, as ciências sociais,
ao intentarem fazê-lo, elevaram arbitrariamente uma única experiência
histórica à condição de “padrão universal” ou “modernidade” ou ainda
“progresso”, subalternizando todas as demais formas de vida diferenciadas
daquela tomada como norma. Tal etnocentrismo foi consequente e serviu
à criação de estereótipos, desdobrando-se, no limite, à desumanização do
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outro, com a consequência dos emudecimentos e dos etnocídios que marcam a “modernidade-colonialidade”, faces de uma mesma moeda.
Pensar a razão pós-colonial é apostar nas leituras alternativas acerca das dinâmicas históricas e das elaborações culturais na constituição
das sociedades bem como de seus discursos legitimadores. Tais revisões
históricas e, por que não, sociológicas, são cada vez mais reivindicadas
curiosamente pelos chamados intelectuais diaspóricos que, nascidos nas
bordas do sistema mundial, “invadiram” departamentos das universidades centrais, mantendo-se, porém, desconfortáveis em sua “hibridez”.
Na medida da intensidade dos processos de deslocamento e realocamentos dos poderes coloniais, ou melhor, neocoloniais no cenário de im do
século XX e início do século XXI, mudam-se, também, as produções
teóricas que desestabilizam as explicações canônicas sobre o mundo, os
povos, as relações de mando e de subserviência, os modelos a se buscar
alcançar, as vantagens e desvantagens destes, a efetividade de suas promessas de liberdade e igualdade, democracia e emancipação. Noutros
termos, os metarrelatos liberal e marxista são questionados, evocando-se
o modo como deles participaram as gentes que, muito recentemente, se
constituem como sujeitos de sua própria história.
Descolonizar nossa própria compreensão do mundo e das pessoas
no mundo traduz um empenho epistemológico que é, como tal, simultaneamente ético e político. Silenciar vozes é, num só tempo, prejuízo
à ciência em seu propósito de ofertar a ambicionada “clareza” que propugnava como sentido do labor cientíico,1 e delito em face da justiça da
dignidade igual e do direito à diferença nas sociedades contemporâneas.
Nem por isso, quer-se dizer que é tarefa simples vocalizar falas antes
1
É Weber que em A ciência como vocação (1993), cânone das ciências sociais, nota que diante do
politeísmo de valores que marca a modernidade não poderá a ciência pleitear substituir a religião
num “mundo desencantado” para pretender dizer aos homens a direção a seguir em sua vida. Ainda que sem poder deinir os rumos da humanidade, sua relevância está em fornecer aos humanos
algumas bases para suas intransferíveis decisões (jamais o cientista, porém, decidirá no lugar do
homem de ação). Portanto, é dever ético da ciência, diante das intenções humanas, dar a clareza
sobre como alcançar os objetivos a que se propõe (clareza acerca da adequação dos meios a ins),
assim como cabe à ciência também ofertar clareza aos humanos sobre as consequências previsíveis
de suas ações. Segundo este argumento, cabe-nos inquirir se a metanarrativa moderna, assumida
pelo próprio Weber, é realmente esclarecedora dos múltiplos caminhos e dos inindos desdobramentos que cada caminho aponta ou se o maniqueísmo Ocidente x Oriente pouco esclareceu
acerca da complexidade dos processos históricos.
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emudecidas, posto que, não poucas vezes, as apropriações indébitas e
redutoras do discurso alheio revelam a atualização e o reforço da subalternidade do outro. Atentando para o desaio epistemológico contido no
(re)conhecimento dos valores e das pessoas que portam os valores que
embasam a ação social, parece imperativo à “ciência do social” abraçar o
projeto de descolonização da ciência a im de aprofundar e expandir seu
potencial explicativo das realidades.
Julia Almeida, em “Perspectivas pós-coloniais em diálogo”, que
introduz a coletânea que coorganiza Crítica pós-colonial: panorama de
leituras contemporâneas (Almeida; Miglievich-Ribeiro; Gomes, 2013),
enfatiza os domínios linguísticos e culturais das distintas correntes de
estudos pós-coloniais. Situa a crítica pós-colonial, primeiramente, na
cena cultural de língua inglesa em seus usos do pós-estruturalismo e
do marxismo, redirecionados para servir à decodiicação dos itinerários
de reinvenção das subjetividades subalternas. O pós-colonial de língua
inglesa evidencia, dentre outros, os trabalhos de Edward Said (2007b)
acerca do “oriental” ou de Gayatri Spivak (2010) sobre o “sujeito feminino”; ainda de Homi Bhabha (2007) ao problematizar os “sujeitos
coloniais híbridos”. Em que pese a convergência com as abordagens claramente europeias sob a rubrica do “pós-moderno”, a incitação da crítica
pós-colonial não nasce na Europa, mas em suas margens: esse é o ponto
crucial. O sujeito colonial e pós-colonial nasce, portanto, como questão
em textos seminais como Os condenados da terra, publicado pela primeira vez em 1961, de Frantz Fanon, uma investigação sem equivalentes até
hoje sobre as condições políticas, psíquicas e afetivas dos povos colonizados em África pouco antes das guerras de libertação.
Almeida (2013) atenta ainda aos chamados estudos culturais, sob a
égide de Stuart Hall, e observa uma certa demora na recepção francesa das
discussões pós-coloniais que ganhavam força no mundo anglófono. Ao
mesmo tempo, a autora nota que, na América Latina de língua espanhola,
correntes críticas precediam as intuições ditas pós-coloniais e, há muito,
problematizavam a “diferença colonial” tal como apropriada pelos colonizadores que, sob a “práxis racional da violência” (Dussel, 2000, p. 472),
submetia indígenas, africanos e mestiços (estes últimos, nalguns casos)
à desumanização e espoliação de todos os tipos. Ressaltando, por im,
a vertente portuguesa dos estudos pós-coloniais contemporâneos, Julia
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Almeida destaca o mérito da participação de Boaventura de Sousa Santos
(2004) em sua senda de fazer dialogar com as “epistemologias do Sul”,
cuja recepção no Brasil é especialmente bem-sucedida.
Abordo algumas das linhagens pós-coloniais, sem a pretensão da síntese à qual tais correntes se recusam, a im de problematizar, conforme o
título do artigo, possibilidades e limites deste instrumental analítico na
ampliação do escopo explicativo das ciências sociais que se mostra dependente de nossa capacidade de audição e tradução de vozes e saberes
historicamente silenciados. Noutros termos, o pós-colonial anuncia não
apenas o alargamento de métodos ou objetos, mas o empoderamento de
sujeitos construtores de conhecimento. Talvez – esta é uma aposta – possamos começar então a falar de conhecimento universal porque plural,
contraditório, diverso.
Desfiando o novelo do pós-colonial
O martinicano Frantz Fanon, formado em psiquiatria, revolucionário da Frente Nacional de Libertação da Argélia, em seu texto seminal Os
condenados da terra é identiicado como um dos fundadores dos estudos
pós-colonias mediante sua análise minuciosa das estratégias de violência, subordinação e desumanização que produziram/produzem “o colonizado, tornado espectador sobrecarregado de inessencialidade” (Fanon,
2005). Sua crítica radical recusa a identidade pura quer do colonizador
quer do colonizado. Nem as tradições culturais nativas podem ser calciicadas, nem é o europeu uma entidade abstrata e homogênea. As identidades são sempre instáveis e conformadas como zonas de luta política,
nas quais também nasce a ideia de “diferença colonial”. Para Fanon, na
“reorganização dialética” de sua herança colonial, os sujeitos colonizados
poderão reinventar-se em sua verdadeira humanidade: “homens novos”,
portanto, em incessante constituição.
Edward Said, nascido palestino em Jerusalém, tornada, depois, Israel,
tendo o inglês e o árabe como seus idiomas primordiais (não sabe em qual
deles teria pronunciado a primeira palavra), escrevendo, porém, apenas
no primeiro, formou-se em Harvard e lecionou em Columbia, vindo a se
tornar um dos mais importantes críticos literários e culturais dos Estados
Unidos. Escreveu Orientalismo (2007), livro de referência do pós-colonial,
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no qual faz notar que ao criar o “oriental” como o “não-ocidental”, a episteme moderna recusou-lhe, na verdade, a existência, e retirou-lhe a humanidade. Não existe o “oriental”, denuncia, sequer existe o “ocidental”.
Como Fanon ao falar do “negro”, Said endossa que os poderes coloniais
forjam o colonizado como “espectador sobrecarregado de inessencialidade”, negando a complexidade das interações, das culturas e das sociedades,
jamais redutíveis a qualquer estereótipo.
É de Said (2007, p. 23) o clamor para que possamos realizar a crítica do humanismo “em nome do humanismo”, interpondo-nos às campanhas publicitárias massivas, sobretudo de teor bélico, que usurpam a
condição humana daqueles não classiicados em “americanos” (do Norte)
ou “ocidentais”, por isso, condenados à irracionalidade sob a genérica e
pouco crível – do ponto de vista analítico – categoria “Islã” (daí a celebração da excepcionalidade americana ou ocidental e a maldição sobre
quem não pertence a este grupo). Não há, contudo, amparo para tais clivagens numa sociologia histórica que, na contemporaneidade, se pretenda
rigorosa. Nem o Ocidente nem o Oriente – também não a América ou o
Islã – são termos capazes de dar conta da incomensurável teia de histórias
entrelaçadas que se fazem e se refazem na dinâmica mundial. Quaisquer
binarismos (Ocidente x Oriente; cultura x natureza; modernidade x tradição; Norte x Sul; masculino x feminino) subestimam a inteligência humana na compreensão da realidade, mais complexa e plural, como insistem
em dizer os pós-coloniais. Said, em seu Orientalismo (2007), avança numa
leitura desconstrutora dos textos colonialistas, evidenciando os processos
de reiicação das dicotomias que fazem com que o real, uma vez assim
apreendido, acabe por se constituir numa fábula.
Stuart Hall, jamaicano, descobriu desde muito cedo a violência da
colonização e os distúrbios capazes de provocar na constituição das subjetividades. Levado a estudar literatura em Oxford, é tido hoje como o
pai dos “estudos culturais”, nascidos na Universidade de Birmingham,
nos anos 1970. Inspira-se no conceito diférance de Derrida, que lhe serve para também rejeitar as oposições binárias forjadas na modernidade e
úteis na elaboração ocidental da “diferença colonial”. Ao falar de “diferança” (um trocadilho em francês) e não “diferença” (dual), Hall percebe o jogo sistemático e ininterrupto de similaridades e diferenças entre
“eus” e “outros” em cada um de nós a desconstruir a cisão modernidade
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e pré-modernidade, revelando a primeira, desde sempre, como uma “totalidade suturada” (2009, p. 58). A cultura é, diga-se de passagem, o
“lócus da indecidibilidade”. Nas dinâmicas culturais, transpassam múltiplas identiicações e pertenças tais como as de classe, gênero, região,
religião, de maneira que as culturas ditas modernas se realizam cotidianamente nas ambivalências, tensões e hibridizações que permeiam a
história dos humanos em seus deslocamentos, diásporas, recomposições,
reinvenções. O pós-colonial, para Hall, antes de se tratar de uma atitude
epistemológica, é uma temporalidade real, que tornou a diférance, desde
há muito existente, irrefutável.
É delicado, porém, pensar que um argumento é irrefutável apenas
faticamente, uma vez que não há ciência neutra e os argumentos são
também sustentados normativamente. Poucos negariam que vivemos
uma temporalidade capaz de promover consciências e éticas a acentuar a
heterogeneidade do real, mas ninguém ousaria airmar que tal desiderato
é pouco tenso e mesmo belicoso. Ainda assim, segundo Hall (2009, p.
106), a crítica pós-colonial sinaliza para:
[...] a proliferação de histórias e temporalidades, a intrusão da diferença
e da especiicidade nas grandes narrativas generalizadoras do pós-iluminismo eurocêntrico, a multiplicidade de conexões culturais laterais e
descentradas, os movimentos e migrações que compõem o mundo hoje,
frequentemente se contornando os antigos centros metropolitanos.
A “virada linguística”, isto é, a descoberta da discursividade e da textualidade, do poder cultural, da ideia de representação como modalidade de
regulamentação e do simbólico como fonte de identidade alargou nos estudos culturais, uma modalidade do pós-colonial, o campo das pesquisas
para além do foco do materialismo histórico e dialético. As subjetividades,
postas no centro das investigações, a exemplo das questões de gênero e
sexualidade, raça e de etnia, marcam uma inlexão nas análises. Não por
outro motivo, Stuart Hall é severamente criticado, dentre outros, por Arif
Dirlik (1997), professor na Universidade de Duke, nos EUA, que o acusa
da pretensão de impor o culturalismo como substitutivo universalista às
metanarrativas estruturalistas que rejeita. Dirlik também acusa Hall de,
ao se desfazer do capitalismo como foco de análise, robustecer o discurso
conservador neoliberal. Esta percepção é a de muitos que deslegitimam
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qualquer bom insight pós-colonial, negando-se a ver alguma positividade
na forma como tais abordagens poderiam enriquecer o empenho crítico
nas ciências sociais contemporâneas.
Stuart Hall (2009) elabora algumas respostas a Dirlik. Insistindo no
caráter pós-estruturalista de seus estudos nega a pretensão universalista de
que é acusada a ênfase dada às dimensões intersubjetivas da dominação
e opressão humanas. Observa que o ganho analítico dos estudos culturais está no reconhecimento de que as estruturas econômicas, sociais e
políticas instalam-se, também, nas subjetividades, compondo, aqui sob
a inspiração de Raymond Williams (1969), também uma “estrutura de
sentimentos” tão real na vida em sociedade quanto qualquer outra. Mas,
se o pós-moderno de que se alimentam os estudos culturais rejeitam os
“fundamentos últimos da realidade”, isto implica que sequer o capitalismo
(ou a exploração da força de trabalho) poderia ser considerado a síntese
das experiências humanas. Contrariando Dirlik, porém, Hall não crê nisso uma adesão ao discurso conservador. Ainda que sem pressupor sua existência como determinação última das sociedades, é plausível aos estudos
culturais criticarem o capitalismo, somando-se ao esforço desconstrutor
de discursos, performances, conigurações e instituições que atingem seu
ápice na contemporânea sociedade capitalista. Em referência a Foucault
(1979), interessa aos estudos culturais investigar um mundo construído por poderes macro e microscópicos; na atenção a Gramsci (1979), é
relevante examinar as articulações contra-hegemônicas e as resistências no
plano cultural, sem subestimar as agudas análises do mundo do trabalho
que também dividiram o mundo em metrópoles e colônias, criando ainda
não gratuitamente as “zonas de fronteira”, material e metaforicamente,
que metamorfoseiam antigos em novos colonialismos.
Em língua inglesa, ganha também destaque o denominado “Grupo
de Estudos Subalternos do Sul da Ásia”, uma organização interdisciplinar
de intelectuais indianos, dirigida por Ranajit Guha, a expressar um contexto de globalização, transculturação e diásporas, direcionada à crítica da
historiograia nacionalista eurocêntrica que invisibilizou aspectos centrais
da história da Índia e silenciou uma gama de vozes nativas. Nos anos 1980,
o grupo cresce com os trabalhos de Partha Chatterjee, Dipesh Chakrabarty, Gayatri Chakrabarty Spivak, dentre outros.
Focalizando a contribuição especíica de Spivak, nascida em Calcutá
em 1942 e professora nos Estados Unidos, onde completou seus estu47
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dos pós-graduados em Literatura Comparada, tendo publicado, em 1985,
seu famoso Pode o subalterno falar?, nota-se como a investigadora analisa
a luta por autodeterminação do colonizado mediante sua produção de
contradiscursos de resistência. Destaca a categoria do “subalterno”, sob a
inspiração gramsciana, para se referir aos grupos desagregados – ou apenas
episodicamente agregados – alvos de constantes constrangimentos impostos pelas classes dominantes que impedem sua identiicação como “ator
coletivo”. Recordando Marx de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, a autora
fala de camadas da sociedade excluídas do mercado e da representação
política e legal, fragmentadas e deslocadas cujos projetos de consciência de
classe e de transformação da consciência são descontínuos (Spivak, 2010,
p. 12). Os estudos subalternos percebem, em detrimento do marxismo
ortodoxo, sutis movimentos sociais e uma avalanche de protestos, não
poucos avessos à lógica da racionalidade moderna sobre a qual se erigiram
os conceitos de “consciência em si” e “consciência para si”.
Spivak reabilita o conceito de ideologia que torna duvidosas as pretensões de “representação” e “agenciamento” do subalterno por seus autoproclamados “porta-vozes”: os intelectuais (também os intelectuais pós-coloniais). Ressalta de maneira original a “arena do instinto” (Spivak,
2010, p. 34) onde as coisas se dão, ilegível à racionalidade moderna. Há
que se escutar o silêncio, esse é seu ponto. Na arrogância de traduzir a voz
subalterna, não poucas vezes, intelectuais, políticos, ativistas contribuíram
para reforçar o emudecimento. Melhor fariam os “bem-intencionados”
intelectuais atuando ostensivamente na reestruturação do espaço social,
econômico, simbólico para torná-lo permeável à presença e à intervenção
das camadas subalternizadas. Elas estão silentes porque há um excesso de
vozes que não são as suas. Não há que se falar pelo subalterno. Necessário é
fazer com que a audiência se preste a ouvi-los do modo como se expressam.
A estudiosa volta seu olhar, sobretudo, para as mulheres indianas e para a
impossibilidade, quer dos intelectuais quer dos políticos, de “acessá-las” e
encenar seus desejos e interesses, uma vez que intraduzíveis nos sistemas
cognitivos e políticos convencionais. Desaia-nos, todos, a escutar e sentir,
mais que a sofreguidão de falar no lugar delas.
Homi Bhabha, também crítico literário indiano, em O local da cultura, segue apontando para a “alteridade” ou “diferença colonial” como
artifícios discursivos a condenar ao silêncio pessoas e grupos. Propõe a
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desconstrução dos binarismos modernos, dentre eles, colonizador/colonizado, mediante a articulação dos “sujeitos diversos de diferenciação”,
capazes de interpelar o discurso e a prática hegemônica, subvertendo e
transgredindo a ordem, recriando pela “tradução” novas realidades.
O poder da tradução pós-colonial da modernidade reside em sua estrutura ‘performática’, ‘deformadora’, que não apenas reavalia os conteúdos de uma tradição cultural ou transpõe valores ‘trans-culturalmente’. A herança cultural da escravidão ou do colonialismo é posta
‘diante’ da modernidade ‘não’ para resolver suas diferenças históricas,
em uma nova totalidade, nem para renunciar suas tradições. É para introduzir um outro lócus de inscrição e intervenção, um outro lugar de
enunciação híbrido, ‘inadequado’, através daquela cisão temporal – ou
entre-tempo – [...] da agência pós-colonial. (Bhabha, 2007, p. 334).
Bhabha destaca o potencial de reelaboração, pelos povos subordinados, de suas histórias reprimidas. Em consonância com a crítica pós-colonial, sabe que a cultura existe como posições negociadas e renegociadas
a produzir “os sujeitos da fala”. Retomando Fanon, o crítico pós-colonial
indiano enfatiza o caráter não essencialista das identidades e a impossibilidade das “tradições puras”, mas as ininterruptas “estratégias culturais e
textuais de aquisição de poder” (Bhabha, 2007, p. 249). Expõe o complexo processo de identiicação entre colonizador e colonizado que evidencia
a fratura de todo maniqueísmo e a irrealidade das categorias “primitivo”,
“colono”, “negro”, “branco”, “árabe”, “cristão”, uma vez “rasuradas” nos
confrontos tantas vezes camulados e nas criativas insurgências, a exemplo da mimese, da ironia, da civilidade dissimulada, que provocam “descoseduras” e religações contingentes, movimentos e manobras, a revelar
como signo da história presente não mais as entidades ixas mas o ser
“híbrido”, personagem excêntrico, ambivalente, indeterminado a sabotar
a metanarrativa iluminista do universalismo hegemônico. Para Bhabha, a
história contemporânea só é passível de compreensão na vistoria de suas
fendas, tornadas visíveis pela crítica pós-colonial. Somos híbridos porque
a história da humanidade o é. Ignorar as fraturas do projeto moderno é o
mesmo que negar a história. Somente será possível postular a igualdade
da condição humana (numa ordem universal metafísica) na percepção de
nossas irrecusáveis diferenças e alternâncias.
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Tal sensibilidade intelectual não passa despercebida aos investigadores latino-americanos que, inspirados no Grupo Sul-Asiático dos Estudos Subalternos, funda, nos anos 1990, o Grupo Latino-Americano de
Estudos Subalternos, que inseria a América Latina no debate pós-colonial. Entretanto, uma inlexão marca o projeto dos críticos pós-coloniais
latino-americanos, a saber: 1) a consciência de que o contexto histórico
das lutas por independência política no continente deram-se um século
antes das guerras de libertação das colônias na África e no Sul da Ásia;
2) o reconhecimento de uma séria produção intelectual anticolonial que
não poderia ser desprezada na atualização da crítica aos neocolonialismos; 3) a descoberta dos efeitos da história colonial nas subjetividades
e na organização da cultura sem a ruptura com as correntes que a antecederam tais como a ilosoia da libertação e algumas teorias dependentistas, não menos, com o campo marxista heterodoxo aqui constituído.
Ao im e ao cabo, o pós-colonial latino-americano diferencia-se dos
demais pós-coloniais e parece poder vir a ter um fôlego ainda maior, a depender de nossa competência para o diálogo intergeracional e para o não-sectarismo. Nesse sentido, também é oportuna a menção à especiicidade
das interfaces deste com a vertente portuguesa dos estudos pós-coloniais,
representada, sobretudo, por Boaventura de Souza Santos (2004).
O giro decolonial latino-americano
Relata-nos Luciana Ballerstrin (2013) que a tradução por Santiago Castro-Gomez do inglês para o espanhol do manifesto “Colonialidad y modernidad-racionalidad”, clássico de Aníbal Quijano, originalmente publicado
em 1993, na Revista Boundary, número 2, da Universidade de Duke, marca
o redirecionamento da crítica pós-colonial na América Latina, agora mais
centrada no acúmulo crítico do pensamento produzido na América Latina e
menos nas referências aos pós-modernos Foucault e Derrida:
A teologia da libertação desde os anos sessenta e setenta; os debates em
ilosoia e ciência social latino-americana sobre noções como ilosoia
da libertação e uma ciência social autônoma (ex: Enrique Dussel, Rodolfo Kusch, Orlando Fals Borda, Pablo Gonzáles Casanova, Darcy
Ribeiro); a teoria da dependência; os debates em América Latina sobre a modernidade e a pós-modernidade dos anos oitenta, seguidos
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das discussões sobre hibridez na antropologia, na comunicação e nos
estudos culturais nos anos noventa; e, nos Estados Unidos, o grupo
latino-americano dos estudos subalternos. O grupo da modernidade/
colonialidade tem encontrado inspiração num amplo número de fontes, desde as teorias críticas europeias e norte-americanas da modernidade, até o grupo sul-asiático dos estudos subalternos, a teoria feminista chicana, a teoria pós-colonial e a ilosoia africana; assim mesmo,
muitos de seus membros têm operado numa perspectiva modiicada
de sistemas mundo. Sua principal força orientadora, contudo, é uma
relexão continuada sobre a realidade cultural e política latino-americana, incluindo o conhecimento subalternizado dos grupos explorados
e oprimidos (Escobar, 2003 apud Ballestrin, 2013, p. 99).
Mignolo aponta que as teorias pós-coloniais das quais bebem não
apenas Ranajit Guha, mas também Gayatri Spivak, Homi Bhabha entre
outros estudiosos indianos não poderiam ser tão facilmente aplicadas
no caso latino-americano ou se negaria a América Latina como lócus de
enunciação. Fazia-se, assim, imprescindível que os intelectuais latino-americanos pudessem fundar sua especíica crítica ao ocidentalismo
a partir de sua própria experiência histórica. A este projeto juntam-se
diversos nomes, como Aníbal Quijano, Walter Mignolo, Fernando Coronil, Edgardo Lander, Oscar Guardiola, Freya Schiwy, Zulma Palermo
e Santiago Castro-Gómez, assumindo o desaio epistemológico do “giro
decolonial” ou da “modernidade-colonialidade-decolonialidade”. É de
Mignolo, segundo José Jorge Carvalho (2013, p. 66), a convicção de
que “tivemos nossos próprios teóricos pós-coloniais muito antes de que
surgissem esses famosos acadêmicos de língua inglesa de hoje”. Nessa
perspectiva, surge como especial desaio ao pós-colonial em língua hispânica e portuguesa/brasileira apropriar-se criticamente de intelectuais
anticoloniais que há muito produziam ricos insights acerca do valor dos
povos e culturas não-europeias e não-setentrionais. É de inegável ganho
analítico reler à luz de antigas e novas problemáticas José Carlos Mariátegui, Rodolfo Kusch, Paulo Freire, Darcy Ribeiro aos quais se soma,
dentre tantos, Leopoldo Zea e Enrique Dussel.
Como diz também Sergio Costa (2013), tal vertente pós-colonial latino-americana opta por se chamar “decolonial”, marcando sua especiicidade
em face do pós-colonial de língua inglesa, também tendem a se distanciar
de qualquer empenho, tipicamente pós-moderno, de negação da ciência
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tout court. Optam por uma postura a que Costa chama de “intermediária”,
que busca explicitar os entrecruzamentos entre as disciplinas cientíicas e
o colonialismo europeu que possibilitou, dentre outros, a apartação entre
a sociologia e a antropologia, a primeira a estudar a “sociedade moderna
ocidental”, a segunda a se ocupar das “culturas pré-modernas” ou do “resto
do mundo”. O questionamento da geopolítica do conhecimento, por isso,
da ligação entre discurso e poder não lhes desencoraja no intento de participar (ampliando) das ciências humanas uma vez reconceituadas. Noutros
termos, não se pretende renegar a ciência mas revelar a face oculta de sua
constituição como tal (a “colonialidade”) no mesmo movimento em que se
valorizam epistemes rebaixadas à condição de “ignorância” por largo tempo
servindo assim a um projeto colonial opressor e genocida. Falamos aqui do
exercício da “decolonialidade epistemológica”.
Cabe à vertente decolonial, segundo Mignolo (2003, p. 35), fazer
emergir o “pensamento liminar” a revelar uma “gnosiologia poderosa
emergente” no continente latino-americano. Entende-se o pensamento
liminar como uma “enunciação fraturada em situações dialógicas com a
cosmologia territorial e hegemônica” (p. 11), um “novo medievalismo”,
abrangendo um mundo de histórias locais ao mesmo tempo em que suscitando inéditas articulações da “diferença cultural” tendo a “diversalidade
como projeto universal” (p. 420). Seu especíico pós-colonial é a constatação da colonialidade moderna e de sua decolonialidade em curso:
A pós-colonialidade é tanto um discurso crítico que traz para o primeiro plano o lado colonial do sistema mundial moderno e a colonialidade do poder embutida na própria modernidade, quanto um
discurso que altera a proporção entre locais geoistóricos (ou histórias
locais) e a produção de conhecimentos. O reordenamento da geopolítica do conhecimento manifesta-se em duas direções diferentes,
mas complementares: 1. A crítica da subalternização na perspectiva
dos estudos subalternos; 2. A emergência do pensamento liminar
como uma nova modalidade epistemológica na interseção da tradição ocidental e a diversidade das categorias suprimidas sob o ocidentalismo; o orientalismo (como objetiicação do lócus do enunciado
enquanto ‘alteridade’) e estudos de área (como objetiicação do “Terceiro Mundo”, enquanto produtor de culturas, mas não de saber).
(Mignolo, 2003, p. 136-137, grifo meu).
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O pensamento liminar é mais que pós-colonial ao articular questões
que ultrapassam o “local” ou, noutro sentido, exigem que o global (ocidental; moderno) também se reconheça como “local” para que seja, enim,
possível produzir uma rearticulação de destinos globais e histórias locais,
na valorização dos saberes subalternizados (Costa, 2013, p. 267).
A “modernidade-colonialidade-decolonialidade” enfatiza seu caráter pós-ocidental2 e anti-imperialista: se, no século XVI, missionários
espanhóis violentaram a cultura dos povos ameríndios, hoje, os Estados
Unidos, à época colônia britânica, transformaram-se no “outro imperial”
(Mignolo, 2003, p. 16), por isso, uma sociologia pós-ocidental vem explicitar a ilegitimidade da nova ordem mundial e somar ao empenho de
“remapear os loci acadêmicos de enunciação em função dos quais se mapeou o mundo” (p. 418). O desaio decolonial latino-americano (pós-ocidental) está em formular teorias a partir do chamado “Terceiro Mundo”,
embora não apenas para o “Terceiro Mundo”, como se se tratasse de uma
“contracultura ‘bárbara’ perante a qual a teorização do Primeiro Mundo
teria de reagir e acomodar-se” (Mignolo, 2003, p. 417). Há que se dizer
que uma sociologia não-colonizada não visa ao lugar do colonizador em
que pesem os riscos de tais desvios. Ainda que haja tais intenções, porém,
conforme presume Costa (2013) se está muitíssimo longe de qualquer
“virada” substancial no campo cientíico mundial, em muito, expressão,
da geopolítica mundial. Permito-me dizer que o status quo pouco tem a
temer numa mirada realista. Ainda assim, os esforços decoloniais se fazem
imprescindíveis, se não para conquistar poder mundial, ao menos para
reparar injustiças históricas em seu próprio lócus de produção de conhecimento: as comunidades cientíicas latino-americanas.
José Jorge Carvalho (2013) mencionou um empenho ainda a se realizar
pelos decoloniais da América Latina: ouvir as vozes dos povos não contemplados sob a rubrica da “nação”, isto é, os múltiplos grupos, coletividades,
etnias que não sucumbem aos marcos da modernidade iluminista e, por
O conceito é do cubano Roberto Retamar que, em 1974, propôs o “pós-ocidentalismo”, que o
ajudaria a perseguir melhor algumas questões. Com este, a crítica pós-colonial que, em seus inícios, não incluía as Américas, teria-as, agora, reunidas, assim como o Caribe, a África do Norte e a
África subsaariana. Também, o pós-ocidentalismo contemplava desde o império espanhol após o
século XVI até a emergência dos EUA. Cf. Miglievich-Ribeiro, “Pensamento Latino-Americano e
Pós-Colonial: o diálogo possível entre Darcy Ribeiro e Walter Mignolo”, 2012.
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isso mesmo, vêm sendo até hoje, duramente, excluídos da história. O antropólogo observa que, neste ponto, não há que se rejeitar a contribuição
dos pós-coloniais de língua britânica que, antes de nós, latino-americanos,
izeram da etnograia uma prática acadêmica sistemática. Falta, do ponto
de vista de Carvalho, aos decoloniais latino-americanos, sediados ou não
nas universidades do centro, promoverem sua própria agenda etnográica,
familiarizando-se com línguas e saberes de contingentes populacionais que
também conformam o continente, ainda que a prática do “colonialismo
interno” – expressão que busco em Pablo Casanova (2007) – mantenha-os
segregados e “desumanizados”.
O pós-colonialismo lusófono
Como narra Bárbara dos Santos (2013), se bem que a crítica pós-colonial lusófona tenha se inspirado nos teóricos anglófonos, o sociólogo
Boaventura de Sousa Santos enfatiza sua especiicidade ao explicitar a condição subalterna de Portugal na Europa desde os idos da constituição do
sistema moderno colonial.
Para as colônias de Portugal, porém, sobretudo para os povos africanos, pouca diferença faz saber se a violência do tráico humano e da
escravidão era fomentada pelos portugueses mestiços ou se serviam ao
fortalecimento da economia britânica. É de conhecimento geral, aliás,
que o combate ao tráico negreiro e as lutas abolicionistas conviviam
com estratégias comerciais inglesas e não-inglesas de manutenção e aumento do lucro ainda que clandestinamente. Não há, portanto, nada
de óbvio no fato de que a academia lusófoba pudesse produzir uma
crítica mais consistente, a meu ver, da história colonial do que qualquer
outra. Isto não signiica, entretanto, que não se admita que a crítica não
possa nascer em qualquer parte, e mesmo acima da linha do Equador,
sendo, pois, o “norte” e o “sul” tomados também em sentido igurado,
reunindo o segundo visões acerca do mundo de algum modo inusitadas
e provocadoras. Nesse sentido, Boaventura de Souza Santos, falando em
português, a partir de Coimbra, é hoje uma das vozes com maior ressonância no Brasil, ao menos entre os igualmente críticos do “totalitarismo
epistêmico”, dispostos a uma revisão das ciências sociais.
Boaventura de Sousa Santos (2004) chama a razão moderna hegemônica de “arrogante” por difundir certezas que ela mesma não quer se dar
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ao trabalho de questionar; “metonímica”, posto que, tal como a igura
de linguagem, ao invés de se perceber como “parte”, entre outras, de um
“todo”, iguala-se falsamente à totalidade e convence a todos da inexistência das demais totalidades, cada qual a expressar uma racionalidade
especíica. Também chama a razão moderna de “proléptica”, visto que
criou a ilusão de um futuro predeinido e monolítico a superar necessariamente o presente, então desprezado em suas ricas experiências (p.
779-780). Assim é que denuncia a ignorância, fruto da indolência, da
racionalidade moderna que não quer ir além dos pouco úteis analiticamente binômios modernos, como Norte/Sul, Ocidente/Oriente, colonizador/colonizado, rico/pobre, cultura/natureza, masculino/feminino.
Para Santos (2004), a “razão preguiçosa” da modernidade hegemônica
incorre cumulativamente em erros cuja revisão se recusa a fazer. A descolonização epistemológica é um esforço que poucos se veem dispostos
a assumir, entretanto, é o único recurso para uma “vida decente”.
Há indubitavelmente um apelo ético aos estudiosos proferido por
Boaventura Santos. A racionalidade arrogante da modernidade desconsiderou formas de conhecimento do mundo tais quais a sabedoria e a
sensibilidade e, com isto, produziu mais mortes do que promoveu vidas.
As dicotomias rasas recriaram um mundo profundamente excludente
que negava a complexidade da realidade que, como uma igura geométrica de várias faces, é capaz de se combinar com outras múltiplas iguras
de incontáveis faces e se desdobrar em desenhos ao ininito. Saber-se um
investigador limitado diante do ininito de possibilidades de realizações
humanas é substituir a vaidade pelo “cuidado”, a prepotência pela “prudência” na análise das sociedades e das gentes.
É uma reforma radical para uma sociologia nascida como disciplina na lógica positivista, produtora de “inexistências” [algo como o que
não se explica é porque não existe]. Boaventura de Souza Santos enumera
algumas formas de raciocínio, condicionadas pela ciência moderna, que
nos impede, até hoje, de ampliar nossa compreensão da realidade social.
Começa por citar a crença no “tempo linear” e seus conceitos derivados,
como “progresso”, “revolução”, “modernização”, “desenvolvimento” que
exigiu a negligência para com as especiicidades, as concomitâncias e as
atualizações de processos históricos relegados aos rótulos de “primitivo”,
“obsoleto”, “pré-moderno”, “selvagem”, “resíduo” quando eram/são experiências vivas e simultâneas a qualquer outra do mundo ocidental. Tais
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classiicações produziram e reproduziram hierarquias sustentadas, sobretudo, nas ideologias de “raça” e de “sexo”, estando no ápice da evolução da
espécie o homem branco (Santos, 2004, p. 787-788).
Santos (2004) aponta ainda como traço da racionalidade moderna a
supremacia da escala universal sobre as escalas regionais, nacionais e locais.
Algo que fez com que os saberes locais disputassem o status de ciência
(universal), posto alcançado por apenas uma delas, aquela que, antes das
demais, se projetou como hegemônica, a moderna-iluminista, quer em
sua matriz liberal quer marxista. Mas todo global é local e vice-versa, se
não pelos interesses em disputa que ao hierarquizar saberes como “universal” e “locais” emprestam apenas ao primeiro a aura de racionalidade e de
verdade, de supremacia, portanto.
O autor enfatiza ainda o “totalitarismo epistêmico”, que impõe a lógica produtivista, nascida na dimensão econômica e espraiada para todas
as demais dimensões da vida, como padrão único de valoração do mundo
e das existências. Nota que esta atitute “colonizadora” gera tal grau de
cegueira epistemológica que os sociólogos passam a desconsiderar tudo
que não se deine em termos de riqueza ou lucro a ponto de, em sua incapacidade de enxergar para além de tais índices de mensuração, fazerem
uso indiscriminado de categorias como “atraso”, “incompetência”, “ineicácia”, “esterelidade”, “pobreza”, “ignorância” para nomear as experiências
que não se enquadram no ethos capitalista.
Boaventura de Sousa Santos (2004) postula o que chama de “sociologia das ausências” e “sociologia das emergências” como exercícios de descolonização epistemológica. A objetiicação do “outro” durante o longo processo da colonização, concomitante à construção do campo disciplinar da
sociologia, relegou a “inexistência”, posto que à desumanização, inúmeras
existências concretas subsumidas no esforço de compreensão do mundo.
Em seu lugar, icaram lacunas, vazios, ausências. Reverter este ônus para o
conhecimento sociológico requer o exame atento de tais ausências e a criação de situações em que tais feitos/obras, até então invisibilizados, possam
se fazer visíveis/audíveis, portanto, seus artíices, os sujeitos subalternos, se
projetem como enunciadores de suas próprias vozes.
Por meio da “sociologia das emergências”, Santos nos incita a investigar o quanto a realidade é prenhe de possibilidades, muitas vezes,
subestimadas por não terem (ainda) se completado nas expectativas da
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racionalidade hegemônica. Chama atenção para as latências, possibilidades e tendências, para o contrafático, nem por isso, irreal. Mais uma vez,
contrariando a lógica moderna, não divide o mundo entre “o que existe”
e “o que não existe”. Atenta, em contrapartida, ao que “ainda não existe”,
mas cuja vida se realiza em gérmen. Nada para a “sociologia das emergências” é desprezível. Propõe-se, assim, uma nova semântica das expectativas:
As expectativas modernas eram grandiosas em abstracto, falsamente
ininitas e universais. Justiicaram, assim, e continuam a justiicar a
morte, a destruição e o desastre em nome de uma redenção vindoura
[...]. As expectativas legitimadas pela sociologia das emergências são
contextuais porque medidas por possibilidades e capacidades concretas
e radicais, e porque, no âmbito dessas possibilidades e capacidades, reivindicam uma realização forte que as defenda da frustração. São essas
expectativas que apontam para os novos caminhos da emancipação social, ou melhor, das emancipações sociais. (Santos, 2004, p. 797-798).
Resta ao sociólogo que adere a uma “racionalidade cosmopolita” em
oposição à racionalidade moderna hegemônica o delicado trabalho da
“tradução” entre os universos culturais do pesquisador e do pesquisado,
ambos sujeitos da fala e da cognição. Há vários obstáculos a se enfrentar
neste empenho epistemológico (e ético), e a barreira linguística não é o
maior deles. Há que se saber respeitar os silêncios intraduzíveis sem obrigar os mundos a se amalgamarem. Simplesmente aceitar a “diferença”, sem
temê-la e, por isso, julgá-la, classiicá-la, condená-la, sequencialmente.
Sem dúvidas que o êxito da tradução está na ampliação do número
de falantes, ou melhor, de “escutados” já que só fala, conforme Spivak
(2010), quem é ouvido. A descolonização epistemológica, mais do que
expandir a agenda de pesquisa, quer ampliar e diversiicar o reconhecimento aos produtores de conhecimento.
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Considerações finais
A revisão das epistemologias modernas impõe-se em distintas ciências,
não menos na sociologia. O que se quer dizer é que a sociologia, em seu intento histórico de dar inteligibilidade ao real, se não evidenciar as várias facetas da modernidade recriadas em cada território e cultura, em seus múltiplos
signiicados e metamorfoses, estará inventando fábulas ao invés de cumprir
com o mínimo zelo sua pretensão de contribuir para que os humanos compreendam melhor a si mesmos, os outros, seu habitat, o mundo em que
vivem, enim. Noutros termos, a teleologia moderna encobriu a realidade,
ou melhor, as realidades, mediante o uso da violência não raras vezes.
O futuro já não pode ser imaginado como um movimento na direção
da completude do projeto incompleto da modernidade [nas suas versões marxista ou habermasiana], mas deve ser pensado, antes, em termos de ‘transmodernidade’ [Dussel], de um mundo para o qual todas
as racionalidades existentes possam contribuir. A socialização do conhecimento, ou seja, a superação do totalitarismo epistêmico, implica
a superação da modernidade/colonialidade [...]; em síntese, o ‘mito da
modernidade’ é o mito que justiicou não apenas o totalitarismo cientíico, mas o totalitarismo tout court, tal como o estamos a testemunhar
no início do século XXI à escala global. (Mignolo, 2004, p. 677).
Não é uma história passadista a colonialidade e sua interferência na
elaboração de cosmovisões, algumas delas a se chamar de “ciência”. Os
neocolonialismos persistem na divisão internacional do trabalho e dos
bens do trabalho na era da globalização liberal, também na divisão entre
sujeitos e objetos do conhecimento. Aníbal Quijano (2010) atenta para
a “racialização” do poder, do saber e do ser capaz de destituir parte majoritária da humanidade da plena condição humana. Observa ainda como
as lutas independentistas não puderam elas mesmas erradicar a força com
que a colonialidade penetra corações e mentes subalternizando, além de
etnias, gêneros, sexualidades.
Pudemos ver que a fundação da sociologia como disciplina é debitária
da culminância da racionalidade moderna na versão positivista que “cegou” suas práticas investigativas à variedade das culturas e dos modos de
convivência e de organização de sociedades, na medida em que se tomava
como padrão e/ou como meta, numa visão unilinear de história, a expe58
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riência histórica, singular, portanto, do Ocidente moderno. A sociologia
crítica, contudo, em suas múltiplas vertentes, começou, no início do século XX a descontruir tais metarrelatos. Curiosamente, a primeira geração
da Escola de Frankfurt – testemunha da barbárie civilizacional representada
pelo totalitarismo de Estado nazista que levou à máxima “racionalização”
o intento de extermínio dos judeus, sob o discurso da “pureza racial” –
lançou não poucas dúvidas sobre o teor do “esclarecimento” trazido pelo
Iluminismo. A segunda geração, sobretudo Habermas, foi responsável
por reabilitar a razão, assegurando sua dimensão comunicativa e não
meramente instrumental. Contudo, não convenceu todos de modo que,
após os anos 1980, ganham especial atenção as propostas pós-modernas
que não apenas rompem com a noção de teleologia da história, como expõem o caráter discursivo e estratégico de qualquer pretensão de verdade
única ou de fundamentos últimos da realidade. Não se nega que o pós-colonial, sobretudo a linhagem dos “estudos culturais” e dos “estudos
subalternos indianos”, beba desta fonte. No limite, desprezam a ciência
e, também, a sociologia, sendo esta uma narrativa dentre outras. Mas
isto não exaure a diversidade da crítica pós-colonial.
A crítica pós-colonial não se confunde com o que se convencionou
chamar de pós-modernismo celebratório que nega não apenas a possibilidade de soluções para os problemas mas a existência destes. Também não
se trata de propor um saber do “Sul” contra o “Norte”. Não é casual que
Souza Santos insista na diferença da Ibéria em face dos demais Estados-Nação europeus. Recusando a racionalidade moderna hegemônica, violenta em sua arrogância, o sociólogo português almeja uma “racionalidade
cosmopolita”, prudente e compromissada com uma nova ética em prol da
vida. Por sua vez, os decoloniais latino-americanos remontam à rica tradição crítica anticolonial no continente articulando-a aos desaios atuais
de ruptura do silenciamento de inúmeras vozes, etnias e povos. Ao ressaltar a face oculta da modernidade, a saber, a colonialidade, nem por isso,
a vertente da modernidade-colonialidade-decolonialidade, por exemplo,
desfaz da cosmologia moderna que moldou os valores da liberdade, da
igualdade, da democracia ou dos direitos humanos, mas apontam seus
limites e contradições; sobretudo, confrontam com outras cosmovisões
tão legítimas quanto (ou, quiçá, mais) em suas aspirações de “bem viver”.
O movimento de descolonização epistemológica é real embora ainda
frágil diante de saberes (e poderes) cristalizados nos cânones da ciência e em
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suas instituições. Ainda assim, no seio do próprio euro-norte-centrismo – a
exemplo de Wallerstein, nos Estados Unidos, e de Lyotard, Foucault, Deleuze, Derrida, Guatari, na França – são produzidos estudos que desaiam
as narrativas dicotômicas do mundo. Os pós-coloniais também o fazem de
modo especial ao tornar sujeito da fala o “subalterno”. Não se trata, porém,
da proposição de um novo paradigma. Há mais divergências entre os críticos pós-coloniais do que convergências, exceto quanto à urgência do remapeamento dos loci de enunciação na geopolítica do conhecimento. Não
apostam, contudo, na substituição da metanarrativa moderna ocidental por
outra, a apontar o caminho da emancipação da humanidade. Este cuidado/
cautela é o que os pós-coloniais trazem, a meu ver, de melhor, precisamente
o antitotalitarismo e o antitotalitarismo epistêmico.
O problema é que não pode haver um caminho uni-versal. Tem de haver
muitos caminhos, pluri-versais. E este é o futuro que pode ser alcançado
a partir da perspectiva da colonialidade com a contribuição dada pela
modernidade, mas não de modo inverso. (Mignolo, 2004, p. 678).
Há que se ampliar as vozes a participar da construção do conhecimento.
Se Karl Marx mantém-se como uma referência necessária, não menos Waman
Puma de Ayala e Alvarado Tezozomoc, Gloria Anzaldúa, Mohammed Abed
Al-Jabri, Vine Deloria Jr. e tantos outros. É oportuno lembrar mais uma vez
Said (2007, p. 78), o crítico pós-colonial autodenominado, também, “crítico do humanismo, em nome do humanismo”, que diz:
Chega perto de ser escandaloso, por exemplo, que quase todo programa de estudos medievais em nossa universidade omita rotineiramente
um dos pontos altos da cultura medieval, a saber, a Andaluzia muçulmana antes de 1492, e que, como Martin Bernal mostrou para a antiga
Grécia, a mistura complexa das culturas europeia, africana e semítica
tenha sido purgada dessa heterogeneidade tão perturbadora para o humanismo corrente.
Parecerá a alguns quase uma heresia dizer que a sociologia necessita
ser “refundada”, mas isto importa menos do que a impossibilidade mesma
de tal projeto. Viveremos sob o imperativo da racionalidade moderna ocidental e suas valorações éticas por muito mais tempo que possivelmente
alguns de nós desejariam. O preço a se pagar se manterá alto: a exclusão
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pela desumanização de contingentes populacionais inteiros a menos que
renunciem à sua cosmovisão, algo como abdicar de sua própria identidade, o que é também uma modalidade de desumanização, a mais cruel. Não
que exista “identidade pura” – disto já tratamos – mas falamos aqui do
exercício da autodeterminação na “negociação” das identidades. A cultura, entretanto, se manterá como uma arena de luta, embates, resistências,
rearranjos, que a sociologia, como disciplina, poderá manter ignorando
(razão indolente) ou, ao contrário, tomar como um de seus mais sérios
empreendimentos: o mapeamento das tensões, hibridismos, deslocamentos, diásporas que evidenciam as modernidades entrelaçadas e as histórias
partilhadas, em suas assimetrias.
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A sociologia como política:
a “Sociologia do Desenvolvimento”
e a produção sociológica contemporânea
1
Anete B. L. Ivo
Este capítulo indaga “qual o ponto de vista sociológico do desenvolvimento,
hoje?” A resposta a essa indagação implica analisar as inlexões polissêmicas
dessa noção condicionadas por contextos históricos singulares do capitalismo periférico, que reletem relações paradoxais entre poder e saber e
entre ciência e política, que acompanham a relexão sociológica sobre o
desenvolvimento, como partes integrantes de um movimento de hegemonia e contra hegemonia.
Duas orientações analíticas estruturam a análise, combinando recursos qualitativos e quantitativos: a) uma relexão de natureza mais teórica
sobre o campo da sociologia do desenvolvimento e suas inlexões nos anos
1980 e 1990. Esse esforço antecipa um “conceito” de como a sociologia
formulou a noção do desenvolvimento na década de 1960, sua crítica e
suas inlexões mais recentes, a partir da década de 1990, sob inluência de
processos de globalização e reestruturação do capitalismo; e b) uma caracterização dos principais campos temáticos identiicados como “objetos
da subárea da sociologia do desenvolvimento”, na história mais recente –
anos 1990 a 2000 –, no Brasil, revelando “traços do objeto” apreendidos
com base dos grupos de pesquisa do CNPq (em agosto de 2012).
Este capítulo resume e atualiza parte do relatório realizado para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) “Estado das Artes na Sociologia do Desenvolvimento”, entre julho e agosto de
2012. Foi desenvolvido na vigência da bolsa de produtividade do CNPq e contou com a colaboração do pesquisador Mateus dos Santos, professor atual da Uniansa e mestre em Administração,
que realizou o levantamento dos dados da Plataforma Lattes e a quem agradeço essa colaboração.
1
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O capítulo se estrutura em três partes: a primeira retoma os paradigmas da noção de desenvolvimento; a segunda considera as mudanças
epistemológicas que enfatizam novos paradigmas, os quais reletem uma
nova regulação assentada em pactos de governança para o desenvolvimento; e a terceira e última parte apresenta um repertório de temas que organizam a produção da sociologia do desenvolvimento no Brasil hoje.
A análise articula, portanto, um horizonte conceitual que marca a formação da sociologia do desenvolvimento que relete sobre as mudanças institucionais de modernização da economia da política e da sociedade dos anos
1960 e suas inlexões no contexto de hegemonia liberal mais recente (anos
1990) e identiica, por outro lado, como essas mudanças se expressam na
forma como a comunidade cientíica da sociologia brasileira apreende e encaminha efetivamente problemáticas atinentes ao tema, tomando por base as
problemáticas dos grupos de pesquisas (GPs) registrados na plataforma Lattes
do CNPq, autoclassiicados pelos seus líderes como integrantes da subárea da
“sociologia do desenvolvimento”.2
Paradigmas do desenvolvimento dos anos sessenta3
A noção de desenvolvimento no Brasil aparece no horizonte da sociedade e da política nos anos sessenta como um “mito fundador” da nação brasileira moderna, inscrita na ordem urbano-industrial capitalista. A
construção dessa perspectiva funda um projeto de mudança social racionalizador para a implantação de um regime econômico de crescimento e
bem-estar no Brasil, implicando um repertório de problemas e dilemas
crítico a este processo, a exemplo das teses do subdesenvolvimento, da
teoria da modernização, das teorias críticas, da dependência e dualidade
da estrutura social, entre um segmento tradicional e moderno.
Foram levantados perto de 117 Grupos de Pesquisa registrados na plataforma Lattes do CNPq
(GPs) que se autorreconhecem como integrantes da subárea da sociologia do desenvolvimento,
mas apenas 42 integram especiicamente a área da sociologia. Os grupos de pesquisa levantados
na subárea da sociologia do desenvolvimento entre 1990 e 2000 abarcam um total de 425 pesquisadores e 324 estudantes, em agosto de 2012, período de realização do levantamento. A pesquisa
realizada a partir dos pesquisadores identiicou um total de 1.343 projetos nessa subárea de conhecimento no mesmo período.
3
Essa parte sintetiza e atualiza parte do artigo IVO, Anete B. L . O paradigma do desenvolvimento: do mito fundador ao novo desenvolvimento. Caderno CRH, Salvador, Centro de Recursos
Humanos (UFBA), v. 25, p. 187-210, 2012.
2
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À luz de um horizonte epistemológico da economia política, a noção
de desenvolvimento adquiriu um lugar hegemônico nas ciências sociais
latino-americanas, no período pós-Segunda Guerra, como modernização
nacional e revolução nacionalista brasileira e reforçou o papel racionalizador da sociologia como ciência diretamente associada ao processo político de modernização das relações capitalistas periféricas. Entendida como
“mito”, a noção constitui-se em base cognitiva com função catalisadora a
partir de cujos enunciados se atualizou o “ideário iluminista do progresso”
em países da América Latina e que articulou, complexa e contraditoriamente, representantes das velhas e novas elites dominantes, no âmbito do
Estado nacional, bem como as suas formas especíicas de articulação com
forças externas do regime de acumulação capitalista.
Segundo José Nun (2001, p. 10) o paradigma da modernização, no
pós-guerra, signiicava para os economistas a busca do crescimento sustentado do produto per capita. Para os sociólogos, a difusão de valores para a
racionalização, o universalismo, o desempenho, a secularização; e, para os
cientistas políticos, a efetiva institucionalização de uma democracia representativa. Ou seja, articulada ao projeto nacional a sociologia desempenhava
um papel racionalizador, mas também crítico à nova ordem. Essa tensão entre a racionalização do processo de desenvolvimento e sua crítica se expressa
em dois núcleos de produção intelectual brasileira, no período de 1950 a
1970: a) os intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb),
na década de 50, próximas à teoria de “subdesenvolvimento” da Cepal; b)
as críticas produzidas por intelectuais da escola paulista, apoiadas na análise
dos processos de dominação e contradições das classes sociais.
Para os intelectuais do Iseb, a noção do desenvolvimento correspondia
à noção de modernização brasileira, traduzida num regime de mudança
baseado na implantação de um processo de industrialização e urbanização,
de crescimento econômico e progresso técnico acompanhado das relações
produtivas com base no emprego assalariado e na elevação do padrão de
vida da população, sob liderança do empresariado nacional. A tese cepalina apoiava-se no conceito de subdesenvolvimento, entendido como uma
“formação histórica singular” que articulava um setor “atrasado” ao setor
“moderno”, numa forma especíica de as economias pré-industriais, penetradas pelo capitalismo, passarem para formas mais avançadas.
Esse projeto sustentava-se numa coalizão formada pela burocracia
estatal, as elites empresariais e os trabalhadores assalariados. O Estado
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nacional assumia assim um papel protagonista do projeto do desenvolvimento, visando a gerar condições institucionais e de infraestrutura para
alavancar a economia, tais como ações protecionistas aos empresários da
indústria nacional (o projeto de “substituição das importações”, desde
Vargas) e criação de infraestrutura, de modo a prover as condições desses
investimentos, indicados no Plano de Metas (1956-1961) de Juscelino
Kubitschek. No entanto, o projeto criou fortes obstáculos ao acesso democrático das demais classes sociais aos mercados de terras, trabalho e
capital, ou seja, à cidadania.
A literatura sociológica brasileira dos anos 1960 e 1970 discutiu de
forma crítica a natureza do “desenvolvimento capitalista periférico” na
América Latina e seus efeitos sobre a matriz das relações sociais excludentes, a exemplo da teoria da “massa marginal” criada em 1969 por Nun,
da “teoria da dependência” (Cardoso; Falleto, 1970), e a crítica às “teses
dualistas” de subdesenvolvimento e modernização da Cepal, formulada
por Francisco de Oliveira em 1972, etc.
No livro Dependência e desenvolvimento na América Latina (1970, p.
37), Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto consideram que a “problemática sociológica do desenvolvimento [...] implica [...] o estudo das
estruturas de dominação e das formas de estratiicação social que condicionam os mecanismos e os tipos de controle e decisão do sistema econômico em cada caso particular”. Com essa formulação, Cardoso e Falleto
abrem um novo esquema de interpretação do desenvolvimento fundado
sob as contradições de classe, pelas quais se observam as estruturas de dominação, os conlitos de interesses e as instituições sociopolíticas.
A crítica de Francisco de Oliveira à tese cepalina esclarece que os dilemas entre tradição e modernidade, implícitas à perspectiva dualista do
subdesenvolvimento da Cepal, continham uma visão ético-inalista da satisfação das necessidades, contraditória já que a inalidade do capitalismo é sua
própria reprodução. Para Oliveira, essa discussão tinha importância ideológica fundamental, já que a funcionalidade da dependência desconsiderava a
questão principal: “A quem serve o desenvolvimento econômico capitalista
no Brasil?” (Oliveira, 1976, p. 10). Assumindo a categoria marxiana de exército industrial de reserva nos países periféricos, o autor produz uma crítica ao
modelo de “substituição da importação” e conclui encaminhando o dilema
entre tradição e modernidade. Para Oliveira (1976, p. 28-29),
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[...] a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações
novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo, um modo
de compatibilizar a acumulação global [...]. Nas condições concretas
descritas, o sistema caminhou inexoravelmente para uma concentração
da renda, da propriedade e do poder.
O processo de “modernização autoritária” do desenvolvimento brasileiro, realizado durante o período militar, envolveu, portanto, intensos
debates e críticas sobre o caráter altamente concentrador do regime capitalista implantado no Brasil, restrito ao progresso técnico e ao crescimento econômico, sem alteração signiicativa da distribuição da renda e das
relações políticas em favor da cidadania. Essa crítica singulariza a questão
social em países caracterizados pela extrema pobreza, altos índices de desigualdades sociais e por um Estado de bem-estar incompleto, como o
Brasil, que deixou à margem a maioria dos trabalhadores brasileiros, fora
da proteção dos direitos do trabalho e da cidadania, reduzidos à condição
de reprodução no nível de sobrevivência.
Inflexões da noção do desenvolvimento nos anos 90
Contradições entre redemocratização nacional
e reforma institucional liberal
A sociedade civil brasileira das décadas de 1970 e 1980 reconigura-se sob a emergência de novos atores sociais coletivos: o novo sindicalismo, os novos movimentos sociais urbanos e o movimento social
no campo; as pressões de organizações não governamentais, que se expandem desde 1986; a ação dos intelectuais, da Igreja, dos partidos de
esquerda de oposição ao regime militar na formação de uma opinião
pública crítica, o papel da imprensa, bem como a formação de um novo
empresariado paulista moderno, produtor de bens de capital, constituído no governo Geisel, que começa a se autonomizar na formulação
de políticas para o setor produtivo, juntando-se à maioria da sociedade
brasileira na defesa de interesses “nacionais” e na formulação crítica ao
projeto nacional baseado em liberdades políticas e civis e na expansão de
direitos sociais universais para a cidadania.
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O Estado, nesse contexto de grande politização das relações sociais,
desloca-se do seu papel de promotor do progresso técnico para expressar-se como instância processadora de conlitos dos distintos grupos de interesses da sociedade civil, que pressionam por acesso a direitos civis, políticos e sociais associados a um projeto nacional democrático mais inclusivo.
A alta mobilização dos atores sociais, que caracteriza o período conhecido
como de redemocratização nacional, encaminhou mudanças institucionais importantes consolidadas na Constituição Brasileira de 1988.
Na contramão da historicidade dos atores sociais organizados, no
Brasil na luta democrática, observa-se no âmbito internacional um movimento político de reforma do welfare, sob a hegemonia de setores liberais
conservadores do capitalismo inanceiro internacional. Tal movimento
contrapõe-se frontalmente ao pacto redistributivo que sustentou o estado de bem-estar em muitos países e teve efeitos graves nos países latino-americanos, como o Brasil, devido ao caráter incompleto do regime de
bem-estar desses países, marcados por alta segmentação do mercado de
trabalho e uma dívida social que deixou à margem dos resultados do desenvolvimento um contingente elevado de cidadãos brasileiros em condições de extrema pobreza, marcando uma estrutura social brasileira de
enormes desigualdades sociais.
As oposições liberais ao pacto redistributivo do modelo de bem-estar
não são novas e expressam contradições clássicas entre forças políticas diversas (liberais e socialistas), que postulam por maior ou menor liberalização de mercados, maior ou menor grau de “desmercantilização” (Esping-Andersen, 1990) da força de trabalho em relação ao capital, questões que
integram o tema do conlito redistributivo.
O diagnóstico conservador da governabilidade para a América Latina,
consolidado no relatório he crisis of democracy (1975) de Michel Crozier, Samuel Huntington e Joji Watanuki, e encomendado pela Comissão
Trilateral, orientou e consolidou os interesses do capitalismo global4 no
período. No âmbito interno do país produz uma contradição entre, de um
lado, os princípios democráticos expressos nas lutas e avanços da cidadania política, civil e social em 1980 e, de outro lado, os princípios gestores
do Estado reformado nos anos 1990, orientado segundo princípios de
liberalização do mercado.
4
Articulando os países do Norte (especialmente Estados Unidos e países da Europa) e Ásia (Japão).
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Essas teses conservadoras fundamentam uma crítica veemente ao welfare como fator de ingovernabilidade dos Estados nacionais, baseada na
ideia de uma incontrolabilidade da crise iscal e as tendências inlacionárias entendidas como resultado da demanda crescente dos setores sociais,
e da intervenção do Estado nacional sobre a economia, que, segundo tal
diagnóstico, constituem-se obstáculos ao livre mercado. Sugerem, então,
medidas restritivas à democracia, através da reforma das instituições políticas em benefício do mercado, priorizando políticas de estabilidade econômica, combate à inlação e liberação de fronteiras em favor do livre
trânsito de capitais, especialmente do capital inanceiro e promovendo
uma desconcentração do Estado nacional pela descentralização de políticas e em benefício dos circuitos globalizados de abertura de fronteiras do
capital inanceiro internacional (ver Ivo, 2001).
O conlito, na década 1990, expressa, portanto, uma antinomia entre
o projeto de democratização nacional, formulado pelos diversos atores
nacionais em favor dos direitos da cidadania, nos anos 1980, e os atores
internacionais, associados a agentes nacionais, como os Bancos Centrais e
setores técnicos comprometidos com a política monetarista, a reforma e as
reformas institucionais do Estado.
Essa reforma rompe com as normativas emancipatórias da justiça social e do “bem-estar”, enfatizando critérios estratégicos e gerenciais no
controle das contas públicas na alocação dos benefícios da assistência aos
mais necessitados, com base em forte intervenção do Executivo nacional
na aplicação rigorosa dos ajustes, controle e avaliação das políticas públicas e dos seus beneiciados, despolitizando o conlito redistributivo.
Tal orientação produz uma ruptura da coalizão nacional-desenvolvimentista (entre Estado, elites empresariais e trabalhadores assalariados urbanos) que vigorou até os anos 1970; neutralizou o papel político desempenhado pelo Estado nacional na década de 1980, como processador dos
conlitos da sociedade civil; e paciicou ou neutralizou muitas lutas encaminhadas pelos atores da sociedade civil organizada na década de oitenta,
despolitizando a questão social. Apesar desses mecanismos de neutralização
do conlito, os movimentos sociais no Brasil abriram-se em redes e escalas
transnacionais de luta, com a formação de fóruns sociais, gerando novas
arenas de negociação de direitos civis e econômicos das minorias, no âmbito
das políticas de igualdade e direitos sociais.
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O Estado nacional reformado dos anos 1990 exerceu um poder coercitivo como gestor do ajuste iscal, convertendo os princípios universalistas
da Constituição Brasileira de 1988, especialmente aqueles relativos à inclusão e universalidade dos direitos sociais, em ações de combate à pobreza, deslocados do universo do trabalho, pela via prioritária de programas
de assistência focalizada. Essa transição deslocou a “temática do conlito”,
implícita à dimensão da justiça redistributiva do desenvolvimento, para o
tema “dos procedimentos”, transferindo princípios estratégicos do mercado (eiciência e competitividade) para um Estado-gerente reformado,
implementados por uma burocracia estatal moderna que, nesse contexto,
passa a se constituir em um dos atores fundamentais desse processo de
transição do Estado nacional.
No âmbito dos territórios, o processamento dos conlitos opera a
passagem dos projetos de desenvolvimento local e dos interesses de múltiplos atores locais para escalas e arranjos transnacionais, e, em sentido
inverso, de agentes multilaterais e corporativos sobre os territórios, num
duplo movimento de externalização e internalização, que atuam na dinâmica dos territórios.
O confronto de interesses de atores nos territórios gera conlito de saberes, formas de dominação, mas também um potencial inovador da ação
coletiva que implica tensões e conlitos, mas, também, coalizões e acordos
entre agentes nesses territórios. Assim, a desconcentração do Estado nacional em benefício do “desenvolvimento local” reforça um desenvolvimento endógeno (econômico e social, local e regional) como possibilidade
inovadora, que por sua vez recoloca novos constrangimentos e dilemas,
em termos das diversas escalas do local, nacional e internacional.
Uma nova epistemologia do desenvolvimento
Acompanha a reestruturação da sociedade, da economia e do Estado,
no período da década de 1980, uma crítica epistemológica das ciências
sociais sobre o caráter dedutivo e estrutural da noção de desenvolvimento
entendido como “um modelo universal” único, regido pelo mercado e
pela democracia liberal (ou por modelos autoritários), como se só existisse
uma forma de regulação para os conlitos sociais em todas as sociedades e
em todos os seus segmentos.
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Essa crítica visa superar a perspectiva homogeneizadora do desenvolvimento como modelo universal e é pensada alternativamente “[...] como
um projeto de humanidade solidária inerente a todos os atores sociais com
capacidade autotransformadora para o desenvolvimento”, a exemplo do
que analisa Prieto (2010, p. 82). Esse paradigma articula duas tradições
opostas: as lutas emancipatórias dos movimentos sociais, com forte tradição marxiana, e os novos postulados liberais de Amartya Sen baseados em
oportunidades individuais, via capacitação e organização dos pobres para
lutarem contra sua condição de pobreza.
A crítica à abordagem estrutural que acompanhou a matriz emancipatória e identitária das lutas e movimentos sociais e a desconcentração
do Estado nacional em favor de novos paradigmas do desenvolvimento
local, do ponto de vista analítico, tem sido encaminhada ao menos por
três perspectivas teórico-metodológicas, que consideram a dimensão da
transversalidade, buscando articular as dimensões entre classe e estratiicação social; entre ator e estrutura; e entre o local e o global. Para tanto,
emergem algumas categorias, como as noções de reconhecimento, as categorias da ação prática da governança local e as análises do capital social e
cultural e arranjos de atores em redes, estabelecendo possibilidades analíticas que reletem novas formas de encaminhamento das relações conlitivas inerentes a arranjos locais e à formação de pactos para projetos de
desenvolvimento em escala local.
Os autores Axel Honneth (2002) e Nancy Fraser (1997), da teoria
social crítica renovada da Escola de Frankfurt, encaminham a superação
da polarização das pautas redistributivas, inerentes à noção marxiana da
classe social, com as lutas por reconhecimento, associadas à dimensão weberiana do status. A. Honneth, fazendo das normas implícitas do reconhecimento o fundamento dos vínculos sociais, produz as bases de uma
legítima crítica social (Géguen; Malochet, 2012, p. 46). Nancy Fraser
considera que o retorno à teoria do reconhecimento acompanha o cultural turn, ou seja, a ênfase cultural das sociedades contemporâneas. Para
Fraser, muitas reivindicações de justiça não exigem apenas melhorias
econômicas, mas implicam reconhecimento de identidades e diferenças
culturais. No entanto, ela critica as teorias do reconhecimento restritas
às dimensões culturais, morais e identitárias, por desconhecerem a dimensão redistributiva da justiça. Fraser (1997) considera que a questão
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da justiça, nas sociedades contemporâneas, caracteriza-se pela articulação de dois tipos de “injustiça”: a do tipo socioeconômico, manifesta
pela exploração do trabalho e pelas condições de reprodução material; e
a do tipo cultural e simbólico, submetida a formas de dominação cultural, desqualiicação e invisibilidade social.
Um segundo recurso analítico considera a noção de redes sociais como
uma categoria mediadora com capacidade de ultrapassar a oposição metodológica entre estrutura e ação e a dependência analítica da matriz social
pela racionalidade instrumental. Granovetter (1973) destaca a importância das redes sociais informais para a obtenção de empregos nos mercados
de trabalho. Ele considera como, numa cadeia de relações, os laços podem
responder pelo maior ou menor sucesso dos indivíduos. Dessa forma, o
autor assevera que as formas de relação social são concretas e permeadas
de atitudes recíprocas e podem ser produtoras de coesão social (p. 1373).
Da perspectiva da organização e das formas de resistência, a articulação das organizações sociais e das associações dos movimentos sociais em
escalas transnacionais, na luta antiglobalização nos anos 2000, é emblemática na constituição de um espaço público ampliado, na formação de
uma cidadania cosmopolita, a exemplo dos Fóruns Mundiais. As organizações não governamentais e movimentos sociais comprometidos com a
formulação de novos entendimentos e alternativas ao desenvolvimento,
transnacionalizam as redes de inúmeros movimentos sociais na crítica ao
regime de acumulação globalizado e ao “modelo único” (Scherer-Warren,
2003; Scherer-Warren et al., 2000; Gohn, 1985, 2008).
Uma terceira dimensão da transversalidade toma por base os arranjos
dos agentes no território, nas suas interfaces no âmbito das cadeias produtivas dos grandes projetos locais, considerando o seu potencial conlitivo
e a possibilidade de permitir acordos. Essa proposição considera a permeabilidade de arranjos entre atores na construção de pautas políticas locais
ou regionais, em cada país, de acordo com suas singularidades históricas,
a exemplo da análise de Danielle Leborgne e Alain Lipietz (1991; 1992)
para os contextos pós-fordistas na Itália e dos estudos de José Ricardo
Ramalho (2005; 2006) ao discutir a formação de novos padrões de participação e formação de redes sociopolíticas nas localidades de instalação
das atividades industriais.
Esses arranjos mobilizam atores distintos, quer se considerem áreas
metropolitanas ou as tipicamente rurais. Nas metrópoles, o desenvolvi74
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mento local e territorial contempla arranjos e interesses entre empresas industriais, trabalhadores e agentes locais. Boschi e Gaitán (2008, p. 309) destacam acordos que têm grande importância na geração do bem-estar para
os assalariados, a exemplo dos “[...] acordos institucionais do mercado de
trabalho [...] por meio das negociações entre os diversos atores envolvidos,
no desdobramento de estratégias de qualiicação da mão de obra”.
Por outro lado, o impacto de grandes projetos nacionais sobre o âmbito local e regional, promove uma reestruturação econômica e impacta
sobre as condições sociais e ambientais, provocando conlito e mobilização de agentes (econômicos, sociais e políticos) em diversos espaços
de governança, que envolvem arranjos sociais e políticos em diferentes
níveis na solução de conlitos. Esses espaços contêm a superposição de
interesses distintos de atores sobre o território e envolvem movimentos
contraditórios, tanto de integração como de exclusão, ou seja, constrange as formas de reprodução das populações tradicionais e locais preexistentes e faz emergir confrontos e negociações entre atores de grandeza
e forças distintas, a exemplo dos interesses das grandes empresas multinacionais ou de aplicação de grandes projetos de infraestrutura como os
de energia na implantação do Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC) em contraposição à dinâmica da reprodução da vida das populações locais sobre um mesmo território.
O “novo” desenvolvimento ancorado num capitalismo por expropriação promove uma nova acumulação primitiva de bens naturais e gera um
grave conlito entre populações tradicionais e capitalismo contemporâneo. Analisa essas novas (“velhas”) contradições, contrapõe-se uma nova
utopia e epistemologia em torno da noção do buen vivir (viver bem), que
se distingue da noção de “bem-estar ocidental”, e recupera a cosmovisão
dos povos e nacionalidades autóctones, envolvendo diálogo permanente e
construtivo de saberes sobre formas integradoras do homem com a natureza (terra, água, ar e solo) (ver Acosta, 2012, p. 202).
Como esses novos pressupostos se expressam na construção de temas
centrais na produção da sociologia do desenvolvimento hoje? A resposta a
essa indagação se esboça no item seguinte, com base numa caracterização
das principais temáticas assumidas pela sociologia do desenvolvimento, na
história recente, tomando por base o levantamento dos grupos de pesquisas
(GPs) registrados na Plataforma Lattes do CNPq e autoclassiicados como
integrantes da subárea da “sociologia do desenvolvimento”.
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O campo da sociologia do desenvolvimento hoje5
Essa recomposição do objeto da sociologia do desenvolvimento com
seus subtemas explicita a pluralidade dos usos e apropriações diferenciadas
desse campo de conhecimento nos anos mais recentes. Além disso, revela
proposições efetivas do universo da pesquisa sociológica em curso, nos anos
dois mil, indicando como a comunidade cientíica da sociologia identiica a
noção e o sentido do desenvolvimento, como subcampo especíico.
Segundo nossa categorização, a análise dos temas dos GPs resultou
em oito núcleos temáticos: desenvolvimento agrário ou local (21 %);
epistemologia e desenvolvimento (20 %); instituições e regulação (18 %);
desenvolvimento e meio ambiente (11 %); trabalho e desenvolvimento
(11 %); instituições de socialização (9 %); ciência, tecnologia e inovação
(5 %); e organizações e mercado (5 %). Ou seja, são 8 temáticas (Gráico
1) que se distribuem em instituições universitárias e públicas, sendo 66 %
de universidades federais e 25 % de universidades estaduais, com menor
participação de grupos de pesquisa originários de universidades privadas
(10 %). A maioria desses GPs (55 %) concentra-se na região Sudeste,
seguida pela região Sul, com 23 %, enquanto a região Nordeste abarca
18 % dos GPs e a Centro Oeste tem participação menor, de 4 %, o que
corresponde apenas a GPs sediados em centros da Fundação Universidade
de Brasília (UNB).
O levantamento dos dados e a sistematização das informações foram realizados pelo pesquisador
Mateus Santos, a quem agradeço a colaboração. Agradeço também a Elsa Kraychete essa indicação; a deinição das categorias trabalhadas e interpretação dos dados, no entanto, são de minha
inteira responsabilidade.
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Gráico 01 – Distribuição temática dos grupos de pesquisa (GPs) vinculados à
subárea da Sociologia do Desenvolvimento – décadas de 1990 e 2000.
20 %
21 %
Desenvolvimento Agrário e Local
Desenvolvimento e Meio Ambiente
Instituições e Regulação
Organizações e Mercado
9%
11 %
Ciência, Tecnologia e Inovação
Trabalho e Desenvolvimento
11 %
Instituições de Socialização
18 %
5%
Epistemologia e Desenvolvimento
5%
Fonte: Plataforma Lattes do CNPq, 1990-2000. Sistematização de Mateus Santos para
esse projeto.
Aprofundando a distribuição dos grupos por unidades da Federação,
São Paulo é responsável por 23 % de grupos de pesquisa dedicados à subárea da sociologia do desenvolvimento, seguido pelo Rio de Janeiro (18 %)
e Minas Gerais (11 %). Na região Sul, as instituições do estado de Santa
Catarina abarcam 14 % dos GPs universitários nessa subárea, localizados
nessa região. A relação entre grandes regiões e unidades da Federação pode
ser observada no Gráico 2, a seguir.
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Gráico 02– Distribuição dos grupos de pesquisa (GPs) da Sociologia do Desenvolvimento segundo estados e regiões-Brasil, décadas de 1990 e 2000.
Fonte: Plataforma Lattes do CNPq, 1990-2000. Sistematização de Mateus Santos para
esse projeto.
Esses oito núcleos temáticos (ver anexos) subdividem-se em problemáticas que contemplam uma transversalidade e interdisciplinaridade
das fronteiras da sociologia com a economia, a ciência política e a antropologia. Organizam-se em torno de questões de caráter epistemológico,
que exploram o jogo de interações entre a construção social do desenvolvimento, como resultado da sociabilidade dos atores em diferentes
instâncias institucionais e na vida local (mercado, organizações sociais e
políticas públicas), e a regulação política do processo de desenvolvimento
econômico e social, especialmente relativa aos arranjos entre atores sociais
e políticos, públicos e privados, em processos de governança e pactuação
de microagendas locais e nacionais.
Cada tema combina e recombina um elenco de subtemas, que podem
ser observados no desdobramento analítico dos quadros temáticos anexos,
orientado, seja pela perspectiva do “ator” em processos de “integração social” pela via do mercado, seja vivenciado por instituições de socialização,
como a família, a escola e as políticas públicas voltadas para a capacitação
dos agentes sociais e públicos.
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A ação e a sociabilidade dos atores sociais estão diretamente atreladas
às formas de regulação microssociais entre o mercado, a sociedade e a vida
institucional de políticas públicas, através da rede de atores em diferentes
escalas territoriais. Esses territórios referem-se mais às realidades rurais e,
em sua grande maioria, à agricultura familiar ou aos assentamentos da Reforma Agrária. No contexto agrário, os temas gravitam em torno do mercado, dos processos de ruralidade e identidades de comunidades tradicionais, mas também contemplam arranjos de governança local. No contexto
das cidades, predominam processos de participação ou descentralização
de políticas ou problemas vinculados a riscos, violência e segurança pública, ou às temáticas que se referem à descentralização das políticas públicas.
As conexões e passagens entre esses âmbitos acompanham um deslocamento da ação coletiva com base no ator estratégico e na capacitação (empowerment) desses agentes segundo “oportunidades” de mercado e de políticas. Essa reorientação da emancipação social, dissociada de atores coletivos e
das tensões inerentes à dinâmica dos mercados de trabalho e dos princípios
redistributivos, diiculta observar a relação entre essas políticas e estruturas
de dominação associadas às modalidades de inserção das famílias aos mercados, ao consumo na reprodução da cidadania e também expressa limitações
das políticas de transferência de renda pela “porta da oferta”.
A objetivação dessas temáticas no campo da “sociologia do desenvolvimento”, nos GPs do CNPq, colocou em evidência que a abordagem
histórico-estrutural de natureza das classes, que sustentava o pacto do desenvolvimento entre um regime de acumulação e uma forma de regulação
do trabalho nas décadas de 1960-1980, não se constitui hoje na referência
central dos grupos que se autoclassiicam nessa subárea do desenvolvimento, especialmente naqueles constituídos nos anos 2000.
Parte dos GPs levantados, especialmente aqueles associados a esforços
de maior escopo teórico, agregados, nessa análise, na temática da “epistemologia do desenvolvimento”, exploram problemáticas teórico-metodológicas mais amplas, como a passagem e as relações entre os universos
microssociais e macrossociais, com base na ideia de “processos” e movimentos de reconversão produtiva, além da dimensão das desigualdades
sociais no campo dos estudos do trabalho.
A profunda transformação da sociedade, especialmente a partir dos
anos 1990, provocou um realinhamento de teses e opções de pesquisa,
privilegiando a transversalidade na análise dos processos sociais. Da utopia
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do desenvolvimento como projeto nacional, encaminhado com base num
pacto entre o Estado nacional, o empresariado e os trabalhadores assalariados urbanos, passou-se a uma concepção do desenvolvimento reorientada
para um paradigma de desenvolvimento endógeno, local, que é acompanhado de dois processos regulatórios de natureza e sentidos diversos: a) os
dispositivos da reforma do Estado inerentes ao diagnóstico conservador da
governabilidade de inspiração neoliberal, em favor do mercado; b) o processo nacional de desconcentração do Estado nacional em favor de uma
maior democratização do poder, com o reconhecimento das instâncias
locais como as mais apropriadas para o estabelecimento de mecanismos de
integração da cidadania nos espaços territorializados.
Enquanto os estudos da década de 1960 e 1970 preocupavam-se, de
uma perspectiva histórica e macroestrutural, com a tensão entre as classes,
as limitações de assimilação e a mobilidade das famílias – questionando
as relações de dominação e dependência do país na ordem mundial e encaminhando o dilema da integração social pela via do mercado de trabalho e de um sistema de proteção social, mesmo restrito aos trabalhadores
assalariados urbanos –, a tematização dos GPs registrados na plataforma
do CNPq, especialmente os criados no início da década 2000, enfatizam,
agora, os atores sociais (agricultura familiar, movimentos sociais e agentes
públicos) e sua atuação sobre o mercado, explorando a interface de uma
sociologia econômica, ou da sociologia das organizações ou convenções,
assentadas no paradigma de desenvolvimento local e arranjo dos agentes
e atores em acordos parciais de governança.
A perspectiva da mudança inerente ao processo de modernização urbano-industrial – que envolveu análises críticas sobre a heterogeneidade
do mercado de trabalho e as formas de subordinação ao capital, bem como
as lutas urbanas por cidadania – contempla agora, fundamentalmente, as
possibilidades de mobilização e integração do mundo rural e do desenvolvimento agrário e (ou) local (urbano e rural). Focaliza um empreendedorismo urbano e rural das classes populares de rendas mais baixas, como
matriz de um desenvolvimento endógeno, com base nos seguintes paradigmas: a) um paradigma institucional, dos arranjos entre atores pela via da
governança, da dinâmica organizacional e da implementação de políticas
descentralizadas; e b) outro de caráter solidarista, que busca romper com o
determinismo das categorias econômicas sobre a construção das relações
sociais, para observar as trocas econômicas como resultado dos proces80
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sos de sociabilidade dos agentes. Mas, considera igualmente c) processos
de resistência e luta das populações tradicionais diante da acumulação do
capital orientado para um capitalismo por espoliação de bens naturais a
produção de commodities.
Podemos destacar algumas agências de socialização nesses estudos: a
família e a escola ou a educação, a empresa e as políticas públicas, bem como
as comunidades territoriais tradicionais, que aparecem como matrizes da
integração social e de formas de resistência dos agentes subordinados à
dinâmica dos mercados, como no caso da agricultura familiar ou das políticas públicas voltadas para a inserção produtiva e para o reconhecimento
da cidadania; ou os processos de resistência e lutas das comunidades locais
diante do impacto dos grandes projetos.
Grande parte dos estudos apoia-se em análises dos atores sobre o mercado e o consumo, a mobilização e integração das famílias e agentes econômicos e (ou) políticos, considerando teses relativas à economia popular,
à economia solidária e às categorias intermediárias do capital social e das
redes sociais, entendidas como “ativos econômicos”. Os estudos sobre saúde integram a perspectiva do meio ambiente e da sustentabilidade, problematizando as tensões entre natureza, sociedade e política, especialmente
da perspectiva da sustentabilidade do desenvolvimento.
O peso dado à “cultura” e ao “capital social” integra-se à dinâmica do
desenvolvimento econômico e social pela potencialidade da “cultura” como
fomento ao mercado, observando-se como elementos da cultura local e tradicional podem ser mobilizados e ajustados a projetos de desenvolvimento
urbano (econômico e social) diante da crise das sociedades fordistas.
Por outro lado, aqueles que integram a subtemática do “desenvolvimento e meio ambiente” analisam como as comunidades tradicionais
podem ter seus direitos preservados e garantir autenticidade e autonomia
cultural na preservação do meio ambiente, no âmbito de sua integração
a um modelo de desenvolvimento econômico e social. Dessa perspectiva,
processos de diferenciação sociocultural e políticos mobilizam estudos relativos a povos e comunidades territoriais tradicionais.
No conjunto desses estudos, permanece a questão subjacente de saber
até que ponto o paradigma multicultural, o do solidarismo ou o institucional, possibilita explicitar e identiicar relações de poder e imaginar
formas de transformá-las em relações de “autoridade partilhada”, em processos de cooperação em diversas escalas.
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Esses paradigmas, orientados exclusivamente pela ação dos indivíduos,
assentam-se na perspectiva liberal de autonomia do sujeito como condição de “empoderamento” e não se referem às condições estruturais dos
determinantes da pobreza, que dizem respeito ao conlito redistributivo.
Eles têm inluenciado as condições e concepções de integração social de
natureza liberal, com base nos paradigmas do capital humano, do capital
social e da local governance, que operam o ”mito” ou a noção de desenvolvimento pela capacitação dos “pobres” na luta para a superação de sua
própria condição de pobreza.
Essa tese contém uma tautologia: converte a inserção dos pobres no
mercado (como produtores e consumidores) em “virtude emancipatória”.
Reorienta os precários bens disponíveis das famílias populares em “ativos”
(casa, terra e trabalho) e “bens de capital” do empreendimento, orientados
para superar sua condição de vulnerabilidade social e de pobreza, que se
produz na dinâmica assimétrica e segmentada do mercado de trabalho.
Segundo o Banco Mundial, à mobilização desses “ativos” (propriedades) – que, em realidade, se constituem recursos de sobrevivência dos
trabalhadores do setor informal – agregam-se outros “capitais” sociais e
culturais, segundo Moser (1996), como a solidariedade familiar e as redes
comunicativas, consideradas como “oportunidades” no encaminhamento
das soluções para as condições de pobreza. Ou seja, as formas de resistência dos trabalhadores autônomos da economia informal são ressigniicadas
como “virtudes do mercado”. Essa estratégia orientada liberal da microeconomia constitui-se na via de integração ao mercado para os “pobres
viáveis”, aqueles com possibilidade de se transformarem em “cidadãos empreendedores e consumidores” no mercado.
Sem desconhecer a potencialidade dos empreendimentos solidários e
da microeconomia no fomento ao mercado interno e mesmo na superação
de situações de pobreza, a tese da auto-organização estratégica do setor popular ativo transforma “os pobres viáveis”, aqueles inseridos no mercado,
em agentes inanceiros e consumidores no âmbito local, pelo acesso ao
crédito e ao consumo, assumindo também os riscos do endividamento no
médio prazo pelo acesso aos créditos populares.
Portanto, as variáveis societais e culturais como fontes “exclusivas” de
desenvolvimento podem ocultar o caráter conlitual do mercado em favor
do “mito” das “virtudes” do mercado e da “cooperação”, reorientando a
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sociabilidade do setor popular como “bens” do mercado, ou transformando quaisquer tipos de “inserção” em supostas virtudes da integração social
pela via do mercado.
Conclusões
A “nova” sociologia do desenvolvimento, na forma como identiicada
e levantada a partir das temáticas dos GPs da Plataforma do CNPq, no
período de 1990 a 2000, traduz-se em universos temáticos diversos (sociologia política, sociologia do mercado, microeconomia, sociologia das
organizações, do terceiro setor etc.) e em correntes teóricas muito heterogêneas, apoiando-se também em modelos interpretativos diferentes.
A observação dos temas tratados pelos grupos de pesquisa nos leva
a indicar ainda em caráter muito preliminar e indicativo alguns deslocamentos empíricos e semânticos, em relação às teses originais da sociologia
do desenvolvimento dos anos.
Do ponto de vista cronológico, pode-se admitir uma renovação da noção
de desenvolvimento nos anos 2000, afastando-se das teses e críticas fundadoras da sociologia do desenvolvimento e da modernização das sociedades
latino-americanas das décadas de 1960 e 1970. Hoje o mundo rural não é
entendido como um mundo à parte, mas integrado e mobilizado por uma
microeconomia, sustentada em cadeias produtivas articuladas e em escalas.
Ele compreende dimensões da inovação e novas tecnologias que teorizam
sobre a relação entre natureza, sociedade, economia e cultura, da perspectiva
da sustentabilidade, e constituem-se em polo produtivo que posiciona países emergentes na ordem mundial como produtores de commodities.
Processos de difusão, antes considerados a partir das cidades, referem-se, hoje, a processos de produção e reconversão produtivas próprias ao
mundo rural, na produção da agricultura familiar e na produção de commodities, fazendo emergir um novo ator político global das populações
tradicionais locais frente a um padrão de acumulação por expropriação de
bens naturais e na geração de projetos energéticos de infraestrutura como
os associados ao Programa de Aceleração do Crescimento, implementado
pelo governo brasileiro.
Permanecem, no entanto, os riscos inerentes às formas de integração
social desses agentes como sujeitos do consumo e as limitações de um
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grande contingente de famílias integradas à economia agrária de subsistência, apenas parcialmente protegidas, com base em políticas de transferência de renda e nos limites da subsistência.
Em termos de atores estratégicos, a proposta de desenvolvimento, antes fortemente orientada pelo Estado nacional como um agente racionalizador da modernização brasileira de base urbana e industrial, é reorientada hoje pela hegemonia da inanceirização do mercado. Nas décadas de
1940-1960, o padrão da integração social e das lutas por cidadania estava
diretamente associado ao papel dos sindicatos como atores coletivos representantes dos trabalhadores e empresários e vinculado à estruturação heterogênea do mercado de trabalho. Hoje o projeto de integração social do
estado social liberal prioriza a ação dos pobres pelo mercado (dissociado
da dimensão do trabalho) e desloca o sujeito do trabalho para um sujeito do consumo, baseado na monetarização e inanceirização das políticas
públicas de assistência dirigidas a segmentos dos estratos de renda mais
pobres (a exemplo do crédito e das transferências de renda dos diversos
programas sociais estimuladores do acesso ao consumo).
Observa-se, portanto, uma disjunção analítica e política entre trabalho e capital e entre pobreza e trabalho, passando a cidadania social a ser
encaminhada com base na aplicação estratégica e massiva de transferências
monetárias de renda pelos governos a um amplo contingente da população, que passa a um gerenciamento direto dos governos na “boa alocação”
dos benefícios dos programas sociais, no cumprimento de contrapartidas,
não como resultado da inclusão produtiva qualiicada dessas famílias no
mercado de trabalho, mas no atendimento às normas morais do “bom
gerenciamento” dos recursos distribuídos e do “bom cumprimento” das
condicionalidades, produzindo e reproduzindo um grande controle sobre
classes populares pauperizadas, agora pelo vínculo institucional de alocação dos benefícios do crédito, das bolsas etc.
A abordagem, em termos dos atores, considera a tendência à individualização da inserção política institucional. Ela pode variar segundo a
dimensão de gênero e geração dos indivíduos e pessoas (homens e mulheres; jovens e idosos), bem como segundo o tipo de organizações ou outras
formas de associações e até mesmo de famílias.
Por outro lado, considera, também, os recursos que esses atores dispõem e mobilizam nas suas trocas mercantis, elementos difíceis de serem
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apreendidos com base nos dados levantados (dados os seus limites). Eles
correspondem tanto a constrangimentos ou limitações do ator num sistema
mais amplo de relações sociais contraditórias e assimétricas, como das deiciências no acesso à tecnologias ou à qualidade das políticas de educação
e saúde, constrangedoras de oportunidades ou mesmo responsáveis por
fragilidades acumuladas nas trajetórias sociais das pessoas nos ciclos reprodutivos da família, mas podem ter dimensões mais restritas e pontuais às
formas de participação e inserção em programas locais.
O padrão da distribuição não é linear e tem diferenças de impacto por
regiões e estratos de renda, condicionadas pela coniguração do mercado
de trabalho e pela dinâmica das atividades produtivas, mas também pelos
ciclos reprodutivos de processos sociodemográicos mais amplos, no interior das famílias e da sociedade.
Por im, as antinomias e contradições entre os ativos e o mercado de trabalho supõem pactuar direitos à proteção e à reprodução que ultrapassam
as iniciativas individuais, envolvem pactos coletivos mais amplos e um
papel ativo do Estado nacional como mediador da justiça redistributiva,
num país com elevado grau de desigualdades sociais e de renda. Só dessa
perspectiva os processos de mobilidade social ultrapassam a dimensão do
tratamento individual de acesso às políticas sociais e o estágio das necessidades dos estratos mais baixos da pirâmide de renda, integrados institucionalmente às políticas públicas e ao mercado como beneiciários de
políticas sociais orientadas para acesso ao crédito e ao consumo pela renda.
O artigo buscou contrapor os sentidos e alcances da noção do desenvolvimento e suas inlexões na produção sociológica brasileira no contexto
mais recente de virada liberal dos anos noventa e dois mil. Voltar a esses
antecedentes e delinear campos de pesquisa pode ajudar a requaliicar interpretações sobre um “novo” desenvolvimento, que ultrapasse visão mais
restrita de uma neomodernização restrita a elementos macroeconômicos de
competitividade, estabilidade e crescimento, gerenciado pelo protagonismo do Estado nacional.
Reforçar e analisar o papel do Estado nacional na construção dos novos pilares do crescimento, da redistribuição e da inovação é sem dúvida
importante, mas esses esforços implicam explicitar as tensões e conlitos
subjacentes aos interesses de diversas classes e segmentos, produtores das
políticas, e os dispositivos cognitivos pelos quais se pode esclarecer os ho-
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rizontes do “como”, “do porquê”, mas, sobretudo, a dimensão do “para
quem” se produzem as novas políticas do desenvolvimento.
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Anexos
TEMÁTICA
SUBTEMAS
ATORES OU
UNIDADES
ANALÍTICAS
Desenvolvimen- Agricultura familiar Associações
to rural agrário Exclusão social
Agricultores
ou local
Participação de
familiares
Mercado
atores em redes
Sustentabilidade
Negócios rurais
Associativismo
Economia solidária
Segurança alimentar
Renda
Reforma agrária
Desenvolvimen- Agricultura familiar
to rural agrário Novos agentes
ou local
locais
Políticas públicas
Meio ambiente
Comunidades
tradicionais
Desenvolvimen- Movimentos sociais
to rural agrário Questão ambiental
ou local
Assentamentos de
trabalhadores rurais
Luta pela terra
Sociedades tradicionais
Desenvolvimento agrário e
meio ambiente
Políticas públicas
Educação
Sustentabilidade
Desenvolvimen- Conhecimento
to rural agrário Tecnologia
ou local
Meio ambiente
Ruralidades e
meio ambiente
Estudos rurais e
urbanos
Ruralidades e meio
ambiente
Mares
Histórias de vida
Narrativas do desenvolvimento
Metodologia
Novos agentes
locais
Comunidades
tradicionais
Políticas públicas
Assentamentos
de RA
Movimentos
sociais
Comunidades
tradicionais
Políticas públicas
MÉTODO
Economia
solidária
Redes sociais
Universidade de
Brasília
Instituto de Economia Agrícola
-
-
Socioantropologia
Teoria do conhecimento
-
-
-
-
Ensino do
método
INSTITUIÇÃO
Estudos
qualitativos
História de
vida
Centro de Estudos e Pesquisas
Agrárias e Ambientais
Centro de
Estudos Rurais e
Urbanos
Universidade do
Estado de Santa
Catarina
Universidade
Federal de Sergipe
Grupo de
Estudos Rurais e
Urbanos
continua...
89
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Continuação
TEMÁTICA
SUBTEMAS
Desenvolvimen- Transformações
to rural
sociais
agrário ou local Mundo rural
Estudo local
Tecnologias sociais
Agricultura familiar
Assentamentos
rurais
Gestão territorial
Sociologia do
desenvolvimento
Integração
regional e
regulação
Descentralização e Federalismo
MÉTODO
Agricultores
familiares
Agentes gestores
Interdisciplinaridade:
geograia, socioeconomia
e ambiente
Modernização
técnica
Agricultura familiar
Educação
Regional
Ruralidades
Políticas públicas
Políticas públicas
Regional
Regulação
Ajuste estrutural
Integração regional
Mercosul
Processo decisório
Classes sociais
Estado
Mercosul
Classes sociais
Relações
de trabalho
campo e
cidade
Estudos
regionais
Sociologia do
desenvolvimento
Desenvolvimento
regional
Descentralização
administrativa
Capacitação de
agentes
Estado
Direitos e aspectos
jurídicos
Burocracia
Democracia
e políticas
públicas
ATORES OU
UNIDADES
ANALÍTICAS
Desenvolvimen- Regulação
to e setor de
Reforma do Estado
energia
Reestruturação do
setor elétrico
Análise
Estrutural
Agentes públicos
INSTITUIÇÃO
Universidade
Federal de Sergipe
Universidade Federal do Vale do
São Francisco
Universidade
Federal de
Santa Catarina
Universidade do
Contestado
-
Burocracia
Interdisciplinaridade
Aneel
Eletrobras
Estado
Análises
comparativas
Abordagem
histórico-estrutural
Universidade
Federal do Estado
do Rio de Janeiro
Universidade
Federal de
Uberlândia
continua...
90
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Continuação
TEMÁTICA
Democracia
Políticas
públicas
Gestão pública
e desenvolvimento urbano
SUBTEMAS
Regimes democráticos
Matriz institucionalista
Controle interno
Racionalidade burocrática
Corrupção
ATORES OU
UNIDADES
ANALÍTICAS
Administração
pública
Corrupção
Avaliação de políticas Políticas púSociologia nos problicas
cessos políticos
Sociologia pública
Reivindicação de
direitos
Cidadania
Cidade
Associação de
bairros
MÉTODO
Neoinstitucionalismo
Sociologia/
antropologia
Estudos locais: bairros
Políticas sociais
Saúde e ecologia Atores sociais
humana
Tomadas de decisão
Riscos sociais
Políticas de saúde
Meio ambiente
Meio Ambiente
e sociedade
Conlitos socioambientais
Sustentabilidade
Justiça ambiental
Tecnologias sociais
Cidadania
Atores sociais
Políticas de
saúde
Comunidades
tradicionais
MS - Conlitos
socioambientais
-
Cultura e
política
Tecnologias
sociais
INSTITUIÇÃO
Centro de Estudos de Cultura
Contemporânea
Universidade
Federal Rural
do Rio de Janeiro
Universidade
Estadual do
Ceará
Universidade
Federal de
Minas Gerais
Universidade
Federal de
Santa Catarina
Universidade
Federal de
Minas Gerais
continua...
91
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Continuação
TEMÁTICA
Riscos e
sustentabilidade
Tecnologias
ambientais
Educação
ambiental
Epistemologia,
meio ambiente
e desenvolvimento
Sociologia
econômica
SUBTEMAS
ATORES OU
UNIDADES
ANALÍTICAS
MÉTODO
Múltiplos e
complexos
vínculos
sociais
entre riscos
(ambientais,
alimentares,
tecnológicos),
suas percepções, os
desaios de sua
governança e
as estratégias
de sustentabilidade
INSTITUIÇÃO
Meio Ambiente
Sustentabilidade
Redes agroalimentares
Riscos (ambientais,
alimentares e tecnológicos)
Governança
Redes agroalimentares
Governança
Tecnologias ambientais
Produção e inovação
tecnológica
Servidores
Meio ambiente
Sustentabilidade
Conselhos
Governança
Conselhos
Capacitação
Extensão
Teoria do conhecimento
Natureza e desenvolvimento social
Produção
intelectual
Globalização
Políticas Públicas
Governança
Inovação
Políticas de emprego
Teoria do conhecimento
Natureza e
desenvolvimento
Levantamento Universidade
Arenas de
concertação
crítico de
de Brasilia
Classes: empreabordagens :
sários, Estado e - neoinstitutrabalhadores
cionalismo
- as redes e
relações sociais
- estudos
comparados
- diferenciação
do capitalismo
continua...
Universidade
Federal de
Santa Catarina
Estudo de caso Instituto Federal
local
de Educação,
Ciência e Tecnologia do Rio
Grande do Norte
Universidade
Estadual de
Londrina
Universidade
Federal do Paraná
92
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Continuação
TEMÁTICA
Sociologia
brasileira
SUBTEMAS
Estudos sobre Brasil
moderno
Formação social
brasileira
Transformações Mudança social
do mundo rural Processos sociais
rurais
e ciências sociais
Meio ambiente
Questão agrária
Globalização e
agricultura
Juventude rural
Modernidade e
produção cultural brasileira
Sociedade
industrial: processos e teorias
sociais
Pensamento
social brasileiro
Sociologia brasileira: história e
paradigmas
Modernidade
Produção cultural
Sociologia da
cultura
-
ATORES OU
UNIDADES
ANALÍTICAS
-
MÉTODO
Pensamento
social contemporâneo
Políticas públicas
Atores sociais
Reconversões
produtivas
Processos
sociais rurais
Recomposições identitárias
Museus
Produção
cultural
Interface
antropologia e
sociologia
História das
ideias sociológicas
-
-
Estudo sobre a
escola de Sociologia
e política – SP
Padrão de vida dos
trabalhadores em
SP (pioneiros)
Produção
sociológica
Escola de
Sociologia e
Política de SP
Tendências institucionais epistemológicas e teórico-contemporâneas
Teoria da dependência e desenvolvimento
América Latina
Produção
Sociologia do
sociológica
conhecimento
América Latina
Interdisciplinar: história,
sociologia,
c. política,
antropologia,
biblioteconomia e administração pública
INSTITUIÇÃO
Fundação Escola
de Sociologia e
Política de São
Paulo
Universidade
Federal de
Pernambuco
Universidade
Federal do Rio
de Janeiro
Universidade
Federal de Alfenas
Universidade
Estadual Paulista
Júlio de Mesquita
Filho
Universidade
Federal do Rio
Grande do Sul
continua...
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Continuação
TEMÁTICA
SUBTEMAS
Risco e seguran- Representações
ça social
Processos sociais
Cidades
Desigualdade social
Ciência e tecno- Dinâmica territorial
logia
Tomada de decisões
Políticas públicas
Governança
Saúde
Inovação
Sociologia da
ciência e tecnologia
Sistemas regionais de
inovação
Signiicado cultural
de tecnologias
Transformações
produzidas
Desenvolvimento e violência
Violência
Segurança pública
Memória social
Cidadania
Violência e
cidadania
Instituições de
Relações entre escola
socialização: fae família
mília e educação
Gerações
Antropologia da
criança
Serviço social
Pedagogia
Direito
Sociologia
da infância e
educação
ATORES OU
UNIDADES
ANALÍTICAS
MÉTODO
INSTITUIÇÃO
Cidades
Governança
Sociabilidade
Políticas públicas
Governança
Pesquisa quali- Fundação
Oswaldo Cruz
-quantitativa
Intersetorialidade
Sistemas de
inovação
Pesquisa comparada
Cultura e
tecnologia
Universidade
Federal de Pernambuco
-
-
Universidade
Federal Rural do
Semiárido
-
Pesquisas inUniversidade Feterdisciplinares deral do Espírito
e transdiscipli- Santo
nares
Educação
-
-
Universidade
Federal de Pelotas
Abordagem
teórico-política
Interdisciplinar: antropologia, serviço
social, direito
Universidade
Federal de Ouro
Preto
Fundação
Universidade
Regional de
Blumenau
continua...
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Continuação
TEMÁTICA
Relações de
trabalho
Mercado, direito, instituição e
atores
Trabalho e
poder
Relações de trabalho, emprego
e desigualdade
Trabalho, sociedade e esfera
pública
SUBTEMAS
Emancipação
coletiva
Sujeitos políticos
Reconhecimento
identitário
Formas organizacionais
Ativismo político e
cultural
Movimentos sociais
(greves)
Mercado de trabalho
e emprego
Sindicalismo
ATORES OU
UNIDADES
ANALÍTICAS
Movimentos
sociais
Classes populares
Organizações
Associativismo
Lutas sociais
Transformações do
mundo do trabalho
Identidades coletivas
Associativismo e
participação
Mercado de trabalho
Organização sindical
Desigualdades
Associativismo
Organização
sindical
Sociabilidades
Trabalhadores
Sociedade civil
Esfera pública
INSTITUIÇÃO
RepresentaUniversidade Feções analíticas deral Fluminense
de dicotomia :
rural e urbano;
local e global;
Tradicional e
moderno
Líderes sindicais Sociologia do
Greves
trabalho
Direitos
Instituições
Trabalho
Relações de classe
Estruturas políticas
Formas ideológicas e
culturais
Sujeito e emancipação
Atuação sindical
Atores locais e
regionais
Esfera pública
Reorganização do
trabalho e da produção
Desenvolvimento
regional
Escalas local, nacional e global
MÉTODO
Interdisciplinaridade
(sociologia,
antropologia,
política);
teoria e prática; ciência e
poder
Trabalho
como categoria ontológica
Sociologia do
trabalho
Sociologia do
trabalho
Territórios
Desenvolvimento
regional
Universidade
Federal de São
Carlos
Universidade
Federal Rural do
Rio de Janeiro
Universidade do
Estado do Rio de
Janeiro
Universidade de
São Paulo
continua...
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Continuação
TEMÁTICA
Organização e
mercado
Organização e
sociedade
SUBTEMAS
Mercado, relações
sociais e redes de
poder
Mercado como
construção social
(relações sociais,
culturais, morais e
redes de poder)
Rede empresa, empresários e sociedade
Políticas públicas
ATORES OU
UNIDADES
ANALÍTICAS
MÉTODO
Organizações
Atores
Interdisciplinaridade
Economia e
construção
social
Sociologia
francesa
Empresas
Empresários
Políticas públicas
Estudo de
redes
INSTITUIÇÃO
Universidade
Estadual Paulista
Júlio de Mesquita
Filho
Universidade Federal Fluminense
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As ciências sociais latino-americanas
frente à complexidade social local,
regional e global
Marcelo Arnold-Cathalifaud
Hugo Cadenas
Introdução
As ciências sociais latino-americanas enfrentam hoje grandes desaios. As
rápidas mudanças sociais ocorridas em ins do século passado e início do
atual colocam nossas disciplinas diante de novos cenários que demandam
adequada compreensão. Tal situação não só exige uma recomposição de
nossas tradições conceituais e metodológicas como também novos enfoques e perspectivas.
A globalização midiática, as novas crises econômicas e políticas, os
movimentos sociais que ressurgem com renovado ímpeto, os problemas
ambientais, a indignação frente às profundas desigualdades sociais e uma
frustrada modernização, entre outros fenômenos, marcam a agenda global
e demandam uma atenção sistemática. O desaio de compreender as dinâmicas sociais não é menor. Frente a este, é preciso reconhecer que nossas
disciplinas, marcadas por rupturas e descontinuidades, não são suicientes. As exigências que se apresentam impõem esforços adicionais.
O presente artigo dedica-se a analisar possíveis alternativas de resposta
aos novos desaios. Para tanto, faz-se necessário abordar nossos pontos
fortes e também nossas principais diiculdades. Só ao reconhecer esses aspectos é que se poderá avançar efetivamente rumo ao desenvolvimento
equilibrado de nossas disciplinas e estar preparados para a emergência dos
novos problemas dessa incerta sociedade contemporânea.
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A exposição organiza-se em três partes. Primeiro, discute-se como as
ciências sociais enfrentam a demanda por conhecimento ante os novos
contextos da sociedade. Em segundo lugar, são analisados obstáculos, internos e externos, que impedem a aplicação de seus aportes. Finalmente,
apresenta-se uma oferta programática, inspirada nas teorias da complexidade, para o fortalecimento das ciências sociais, com ênfase em suas
aplicações na América Latina.
O conhecimento sociológico
e suas repercussões na América Latina
As ciências sociais podem estar em um bom momento, ou diante
de um grande problema. Há, atualmente, uma demanda intensa por
conhecimentos sobre a sociedade, e nossas comunidades disciplinares
cresceram de forma signiicativa. No entanto, as dinâmicas sociais contemporâneas avançaram muito além de sua compreensão sociológica.
De certo modo, esta não é uma situação nova, muito embora, na sua
atual condição, as ciências sociais não possam se justiicar com falta de
maturidade ou atraso não intencionado.
O século XXI encontrou nossas disciplinas em atitude titubeante. Por
um lado, um otimismo frente a diversos fenômenos, como as novas conigurações políticas e sociais, a expansão e diversiicação das comunicações
através das redes sociais, um lento mas crescente bem-estar econômico
e incremento das camadas médias, novos horizontes de investigação e a
inserção de nossa região em dinâmicas globais impensáveis há um século
atrás. Por outro lado, podemos reconhecer-nos nas profundas desigualdades sociais que atravessam a região, no recrudescimento da violência nas
cidades e nos campos, nas injustiças que atiçam movimentos sociais e de
protesto em toda parte, em uma persistente impotência ante a corrupção
política e a degradação do meio ambiente, tudo isso acompanhado de
nossos modelos de crescimento econômico e praticamente formando seu
núcleo.
Diante desta situação dual, ao se tentar visualizar o panorama geral,
é comum diagnosticar-se uma crise nas disciplinas, e o problema parece
estar resolvido ao se alcançar este diagnóstico. No entanto, aparentemente
não está claro nem mesmo onde estaria situada essa crise e o que se deveria
fazer com ela. Isso é o que pretendemos enfatizar.
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Acreditamos que o problema que afeta nosso fazer atualmente não é o
escasso reconhecimento de nossas pesquisas e pesquisadores. Embora com
diiculdades e limitações, as ciências sociais latino-americanas têm ganhado espaço em nossos debates regionais e têm projeção internacional. Além
disso, apesar de ocorrer sob pressão e urgência por intervir socialmente,
e com ferramentas limitadas para isso, o apoio dos cientistas sociais é demandado constantemente. Tampouco o problema reside na efetividade
de nossas técnicas de produção de conhecimentos e análise social, pois
nossas metodologias não diferem substantivamente daquelas do resto do
mundo. Nem sequer é a qualidade de nossas contribuições o nosso maior
problema; ainda que as métricas internacionais, como Scimago journal
e Country Rank, não nos coloquem no Top 10 de suas medições, temos
consciência de que o debate em nossas disciplinas diicilmente pode ser encapsulado em indicadores desse tipo. De fato, nossa produção intelectual
não é registrada com esses indicadores, apesar de seu impacto político. Ao
contrário, sustentamos que nossas maiores diiculdades residem em uma
inclinação e atitude frente à produção de conhecimento sobre a sociedade
e suas dinâmicas, o que gerou um conlito cuja condução não tem sido
adequada e cujas consequências devem ser enfrentadas propositivamente.
As ciências sociais têm se aprofundado continuamente no desenvolvimento de pesquisas que extrapolam os assuntos puramente regionais.
Inúmeros problemas mundiais dos quais somos parte têm sido objetos
de investigação, como os dilemas do direito internacional, conlitos ambientais que ultrapassam nossas fronteiras regionais, ou as consequências
globais de um capitalismo que não obedece a lógicas territoriais (Aliste;
Urquiza, 2010; Birle et al., 2012; Fix-Fierro et al., 2003). Da mesma forma, pesquisadores latino-americanos têm dedicado importantes esforços
para problematizar a aplicabilidade de paradigmas teóricos de maior alcance na América Latina, como é o caso da antiga tradição de interpretações e aplicações de Max Weber (Medina Echavarría, 1963; Peón, 1998),
de Marx (Arico, 1982) ou Bourdieu (García Canclini, 1982; Baranguer,
2010), buscando e ensaiando novas ferramentas para a compreensão de
nossa complexidade social. As maiores diiculdades têm-se localizado no
plano de seu potencial explicativo sobre fenômenos não suicientemente
detalhados por esses paradigmas, assim como sua conexão com uma discussão latino-americana de maior alcance.
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Paralelamente a isso, nas últimas décadas, surgiram no âmbito regional propostas originais para revitalizar o desenvolvimento disciplinar
local e explorar campos e linhas não hegemônicas de pensamento. Intelectuais importantes vinculados às humanidades e aos estudos latino-americanos, agrupados em programas acadêmicos como a crítica cultural, estudos culturais ou subalternos e, mais recentemente, pós-coloniais
ou descoloniais, estão inluenciando decisivamente a matriz das ciências
sociais regionais (Castro-Gómez, 2000; Castro-Gómez; Grosfoguel,
2007; Costa, 2006; De Barros, 2011; Dussel, 2000; Mignolo, 2010;
Quijano, 2000). A partir dessas posturas, promove-se a valorização de
nossas produções e, de modo geral, das não hegemônicas, para assim
superar nossa tradicional subordinação aos atuais centros produtores de
ciências sociais. Em parte seguindo a tradição dos estudos da teoria da
dependência (Cardoso; Faleto, 1969), outras diversas correntes de pensamento têm chamado a atenção sobre o modo como se devem observar
as sociedades latino-americanas. Apesar de sua valiosa contribuição para
o debate latino-americano, algumas das propostas dessas correntes, interpretadas de forma exagerada, têm afetado a qualidade de seus aportes,
e, se os seus propósitos forem mal compreendidos, pode-se reforçar o
isolamento de nossas produções. Esta última consequência merece toda
nossa atenção, razão pela qual nos estenderemos na mesma.
Aberturas necessárias
às ciências sociais latino-americanas
O ponto de partida de algumas posturas “latino-americanistas” é um
topos geográico que tem consequências epistemológicas. Airma-se que as
teorias – e inclusive técnicas de investigação – destinadas a explicar a sociedade estariam amarradas às suas localizações de origem, o que impugnaria
a pretensão de universalidade de seus conhecimentos sobre uma ampla
gama de fenômenos sociais. Tal objeção seria especialmente válida para a
América Latina, onde convivem países muito heterogêneos, não modernizados, estratiicados, desiguais e excludentes, isto é, aparentemente muito
diferentes das realidades de onde surgiu a maioria das teorias sociológicas
clássicas e contemporâneas. Não considerar essas limitações seria um sinal
de submissão a uma racionalidade “eurocêntrica” (Dussel, 2000; Quijano, 2000), o que não só ampliaria a incompreensão de nossas realidades,
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como também a deformaria. Em contrapartida, propõe-se contemplar
nossa diversidade e particularismos regionais e deixar de interpretá-los
como condições sociais incompletas ou atrasadas. A principal motivação dessas posturas parece residir em uma legítima animosidade frente
a interpretações que se izeram passar por sociológicas, mas na verdade serviram como justiicação para formas de dominação e exploração
com raízes estadunidenses, europeias, brancas etc. Sobre isso estamos
de acordo, ainda mais tendo em vista copiosa evidência de argumentos,
frutos de louváveis esforços, especialmente da intensa revisão crítica da
história latino-americana. Nossas objeções a essas perspectivas, portanto, não estão voltadas ao conteúdo de suas análises e sim ao frutífero de
sua estratégia. O sugerido por essas posturas conduz as ciências sociais
latino-americanas ao melhor caminho?
Se levarmos a sério o convite para valorizar mais, ou menos, os conhecimentos sociológicos conforme sua procedência, país ou região de origem, ica evidente tratar-se de uma proposta desproporcionada e fundada
em um apego ao local (neoetnocentrismo?), incompatível com a discussão
em âmbito disciplinar. O debate não poderia ser colocado nestes termos.
Tal posição, como diz um antigo provérbio, levaria a jogar fora o bebê
junto com a água da banheira. Uma revanche histórica ou política desse
tipo bloqueia horizontes os quais convém manter abertos. Além do mais,
caso se insista no valor de isolar as ciências sociais latino-americanas dos
centros hegemônicos, dever-se-ia assumir com radicalidade tal postulado
e aplicar seus resultados a seus próprios proponentes. Para descolonizar
o descolonialismo teórico seria necessário fazer uma revisão exaustiva dos
princípios e fundamentos empregados pelos mais renomados representantes desses movimentos, os quais, em sua maioria, desenvolveram seus
argumentos com referência a escolas, temas e autores estadunidenses ou
europeus ou se apoiaram nesses para produzir suas próprias inovações teóricas. Seria necessário apagar os rastros do caminho percorrido junto a
Foucault ou à ilosoia francesa, esconder os vínculos com a Frankfurt dos
anos 1960, ou renegar toda a relação genética com o debate pós-moderno
da antropologia norte-americana dos anos 1970 (Cliford, 2001). Contudo, ao se fazer isso, o que restaria de pé dessas correntes? Quem ainda quisesse salvar seu projeto precisaria diferenciar entre bons e maus europeus
ou norte-americanos, boas e más teorias ou conceitos. Isso levaria a um
debate moral que poucos poderiam realizar sem esquivar-se, com muito
esforço, de se livrar de seus excessos ideológicos.
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Acentuar que as teorias sociais não podem estar desvinculadas das condições sociais ou organizacionais nas quais se desenvolvem não constitui
uma novidade. No início do século XX, Max Weber (1922) pedia às ciências
sociais – certamente, com a singeleza de seu tempo – neutralidade valorativa. Sua sugestão não estava dirigida exclusivamente às ciências sociais
alemãs, excluindo-se as demais. Uma ciência social ancorada em um lugar
geográico e baseada em origens sociais e étnicas só foi possível na Alemanha
anos mais tarde, com o triunfo do nacional-socialismo, cujas consequências são conhecidas. Ao contrário, desde o início, as ciências sociais tiveram
como pano de fundo pretensões universalistas. A divisão do trabalho social
de Durkheim (2001) não apresentava um tratado sobre as particularidades da região da Alsácia e tampouco O Capital de Marx (1867) se limitava
às indústrias têxteis inglesas ou alemãs. Graças a isso, tanto Rússia quanto
Cuba – e também China – puderam pensar-se como sociedades de classes e
promover suas revoluções. Assim, o socialismo sempre se pensou como um
programa para uma sociedade mundial (anticapitalista).
Em suma, uma ênfase exagerada no local leva-nos irremediavelmente
a nos desligarmos de uma construção disciplinar mais ampla. Diante disso, só resta às ciências sociais ser elaboradas de forma enviesada e limitada,
desconectadas por iniciativa própria dos centros de pesquisa dos países desenvolvidos e ocidentais e encolhidas em um mundo próprio. Tudo parece
indicar que tal estratégia conduz a um beco sem saída.
Tampouco leva a um inal feliz a prática de desqualiicar a atividade cientíica por supostamente portar passaporte estrangeiro ou importar
uma ideia forânea. Ainda mais quando tais críticas confundem ciência
com as conhecidas e debatidas limitações dos enfoques evolucionistas,
positivistas, quantitativos e causais. Tais críticas estão muito pouco informadas sobre o construtivismo e seu impacto na epistemologia contemporânea (Arnold-Cathalifaud, 1997).
O universalismo teórico, bem entendido e desenvolvido, ao contrário, é constitutivo de nossas matrizes disciplinares. Esta perspectiva tem
sido um incentivo a abordar a pluralidade e localidade das expressões sociais como algo comum que as permeia, e não se deve confundir com uma
visão hegemônica ou com uma interpretação de diferenças como defeitos.
A modernidade latino-americana certamente não se pode pressupor como
uma versão imperfeita da europeia ou da estadunidense, mas sim como
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uma das manifestações de um processo que se dá sob certas condições econômicas, políticas e culturais. Por isso, tais perspectivas críticas têm razão
quando enfrentam as concepções eurocêntricas, mas erram ao conferir a
estas o caráter de cientíicas e, duplamente, ao desqualiicar, assim, aquelas
que sim o são.
Como se sabe, teorias como o marxismo, a psicanálise ou o estruturalismo, dado seu nível de abstração, têm sido capazes de abordar uma
diversidade de manifestações sociais e humanas, sem deixar de considerar seus padrões comuns. Tais teorias não apagam de um lance a heterogeneidade, mas assumem a tarefa de compreender suas expressões. Nem
mesmo a modelagem matemática ou a extensiva aplicação de estatísticas
eliminam a diversidade social, cultural e humana; antes, têm possibilitado
compreender suas variações como conexões e equivalências que passam
despercebidas.
Enquanto as “desobediências epistêmicas” (Mignolo, 2010) ou as
“suspeitas radicais” não aportarem métodos alternativos e comprovadamente mais adequados, podem ter como efeito uma lexibilização do rigor
e dos alcances de nossas investigações, levando a perderem-se de vista os
critérios de aceitabilidade das explicações cientíicas – algo que convém
manter em vigor. Em relação a isso, concordamos com Robles (2012)
quando coloca, com propriedade, que este valioso novo pensamento latino-americano deve ser sociologicamente fortalecido, de modo a evitarem-se algumas de suas incongruências.
Nesse mesmo sentido, é bastante persuasivo o conselho do sociólogo
pernambucano Paulo Henrique Martins (2012), ao convidar-nos a construir uma região do conhecimento inserida em um mundo global, a qual
se caracterize pela produção de campos críticos não hegemônicos, mas que
promovam uma integração criativa com a sociologia clássica e moderna.
Em suma, trata-se de evitar cair nas inconsistências e equívocos de um
universalismo eurocentrado, mas sem sucumbir a um particularismo relativista descontextualizado e ingênuo.
Em nossa visão, não se deve icar lamentando uma situação de dependência frente à hegemonia anglo-europeia (e no futuro, provavelmente, da
China). Acreditamos que nossa produção regional se expressaria melhor
combinando o particular (local) com o geral (global). Uma saudável
mescla de “universalismo” e “particularismo” (Chernilo; Mascareño,
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2005). Para tanto, poderíamos, por exemplo, fomentar pesquisas de amplo alcance abordando a globalização e suas formas hegemônicas atuais
de subordinação de países e de identidades locais; a revitalização das
diversidades sociais e culturais; a proteção da memória e do patrimônio
nacional; os efeitos das atuais crises inanceiras sobre a seguridade social;
as novas e crescentes desigualdades e exclusões sociais; a devastação dos
recursos naturais e o aquecimento global; o crescimento da violência, da
insegurança e dos maus-tratos nas grandes cidades; as múltiplas formas
de corrupção; as aceleradas mudanças na composição etária da população; o encolhimento dos estados, a desproteção e o individualismo; as
transformações dos padrões afetivos, sexuais e de gênero; os novos movimentos sociais e a emergência das redes sociais globais; a transformação
da impaciência dos cidadãos e cidadãs em indignação ou os desaios da
governabilidade internacional, entre muitos outros problemas. Todos
esses fatos se desenrolam no mundo contemporâneo, não são patrimônio de um país ou região, embora, evidentemente, ocorram com intensidades variadas. Na América Latina, por exemplo, pode-se produzir
um grande acúmulo de relexões disciplinares sobre crises e emergências
sociais vinculadas a contextos de rápido crescimento econômico, enquanto se mantêm, e até mesmo se ampliam, as enormes desigualdades
sociais. Outra questão a considerar são nossas contribuições à compreensão do colapso das reformas neoliberais implantadas na região.
Contribuições ao estudo
da complexidade latino-americana
Diicilmente poderíamos saber com segurança como a sociedade contemporânea consegue funcionar de forma descoordenada ou descontrolada, mas, seja como for, podemos airmar que não temos conhecimento
suiciente. Isto ocorre porque, frente ao desaio de abordar os “grandes
problemas contemporâneos”, em que nada se pode considerar ixo, imutável ou deinitivo, nossas teorias, conceitos e metodologias tradicionais se
veem limitadas. Mais do que isso, colocam barreiras cognitivas ao simpliicar ou ignorar fenômenos emergentes.
Se quisermos ir além de uma crítica reiterativa e puramente discursiva sobre a situação de nossas práticas, será necessário, como já airmado,
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remover os obstáculos e enfrentar os desaios cognoscitivos e práticos de
nossas disciplinas. Para tanto, um ponto de partida seria identiicar os
“pontos cegos” que impedem lidar com o caráter contingente dos fenômenos sociais, com seus altos graus de incerteza, sua crescente diversidade
e condição heterárquica e não cêntrica. Ante tal encruzilhada, pode ser
esclarecedor examinar o que ocorre em ciências que enfrentam problemas
similares. Assim, entre outras sugestões com objetivos equivalentes, propomos vincular as ciências sociais com as “teorias da complexidade”, pois
essas reletem melhor as transformações sociais contemporâneas, e, além
disso, as contribuições que as conformam não estão limitadas a regiões ou
a linhas de pensamento especíicas, sendo adotadas por renomados cientistas e intelectuais de diversas partes do planeta.
Neste cenário, importantes contribuições originam-se em nossa região, especialmente entre aqueles que destacam sua diversidade e versatilidade, isto é, seu caráter policêntrico. Esses, em sua maioria, estão sintonizados com as correntes renovadoras, como González Casanova (2004,
2009), ou provêm de centros permeados pelo pensamento de Edgar Morin (2001) e de Humberto Maturana (Maturana; Varela, 1973) ou daqueles sob a inluência luhmaniana da teoria dos sistemas sociais (Rodríguez;
Arnold, 1991). Entre os primeiros, o sociólogo Julio Mejía (2009), por
exemplo, airma que na América Latina se participa da mudança epistemológica fundada nas teorias da complexidade; o antropólogo Arturo Escobar (2003) recomenda não enfatizar o particularismo frente a um falso,
ou incompleto e deformado universalismo eurocentrado, e sim enfocar a
multiplicidade; ilósofos como Castro-Gómez e Grosfoguel (2007) propõem deinir as estruturas sociais utilizando linguagens que considerem a
diversidade, reconheçam lógicas autônomas e permitam abordar processos heterogêneos e múltiplas temporalidades. Em conjunto, esses autores
consideram aproximações que combinam o abstrato e universalista com o
reconhecimento de particularidades regionais ou históricas.
Na atual fase da globalização, a sociedade não pode ser reduzida a
uma de suas manifestações regionais, assim como não é razoável propor
uma compreensão sociológica da América Latina prescindindo de seus
vínculos com outras regiões. De fato, o pensamento latino-americano
não é patrimônio de nenhum país em particular. Ademais, dedicar-se a
desenvolver conhecimento sobre a sociedade de maneira isolada leva a
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descuidar o fato de que processos representados como contraditórios em
nível local ou micro são complementares ou paradoxais no nível global
ou macro – de que outra forma podemos compreender nossas crescentes
e diversiicadas dependências?
Quanto mais conhecemos nossos objetos de interesse, menos podemos
considerá-los de forma isolada. Muito menos pode a modernidade europeia
evadir-se de seu surgimento a partir do traumático encontro com um “novo
mundo”, como aponta persuasivamente Dussel (2000). O que foi dito antes
reforça a impressão de ser sem fundamento a suposição de que as explicações
sobre a sociedade, seus problemas, mudanças ou evolução devam ocorrer a
partir de determinados países ou regiões; tampouco a condição latino-americana ou a da modernidade europeia estão circunscritas a seus limites. Uma
explicação estrutural contundente da sociedade mundial já foi teorizada e
seus antecedentes explorados por Wallerstein (1974) e Luhmann (1971), e
ambos coincidem em situar sua origem em processos que surgem entre os
séculos XV e XVI na Europa (ver Stichweh, 2000).
Certamente, a desejada revitalização das ciências sociais regionais não
ocorrerá como um processo natural, que só o tempo produzirá. Os impactos de uma atitude de espera são equivalentes ao que ocorre em uma
escada rolante: todos avançam, mas as distâncias que os separam se mantêm. Por isso, nada é mais inadequado do que permanecer em uma crítica
vazia ou submeter-se aos padrões cientíicos sem intervir em sua discussão.
Diante disso, nos animamos a apresentar nossa proposta programática.
Posicionar a dimensão social da complexidade no centro dos debates tem muitas vantagens. Dentre essas, uma observação sistêmica, não
reducionista, dos fenômenos sociais e uma postura epistemológica construtivista, isto é, desontologizada. Estas qualidades constituem um convite persuasivo a alinhar pesquisas e conigurar um campo paradigmático
alternativo à hoje hegemônica perspectiva tecnocrática-economicista da
sociedade, fundada em pressupostos como a escassez ou o equilíbrio, os
quais respondem a um tipo reducionista de ciência e a uma práxis tradicional e conservadora na política pública.
Não cabe nesta apresentação expor em detalhes a estrutura e os alcances
da abordagem da complexidade. No entanto, colocando de forma sucinta, a
partir dessa perspectiva revela-se, sem surpresa, o incremento acelerado das
atuais e potenciais conexões dos componentes associados à diferenciação
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da sociedade, processos que possibilitam estados emergentes, imprevistos e
instáveis cujos funcionamentos não são determinados por centros ou hierarquias. Tais manifestações, recorrentes na sociedade contemporânea, diicultam sua compreensão e a previsão de suas tendências.
Grande parte dos fenômenos sociais que se comportam como sistemas complexos – oscilando entre ordem e desordem – são considerados
caóticos. Por um lado, pequenas mudanças provocam enormes transformações; por outro, grandes mudanças podem ser imperceptíveis no curto prazo. Seus comportamentos se auto-organizam em redes internas de
inter-relações, e, sendo assim, uma decomposição analítica de cunho positivista não permitiria compreendê-los.
Do ponto de vista tradicional, a excessiva geração de incerteza social é interpretada como expressão de desvios e anomalias que devem ser
corrigidas controlando suas causas. Sob a perspectiva da complexidade,
ao contrário, são os efeitos de estruturas e processos relacionados entre si
que, nessa própria relação, geram novos estados. Nessa visão, os conlitos
não são avaliados como problemas, nem as mudanças como diiculdades;
tampouco a integração e a estabilidade aparecem como metas universais.
Tem-se por suposto que a evolução da sociedade acompanhada de baixos
graus de conformismo e de intensas disputas oferece melhores oportunidades ao conlito e este, por sua vez, à evolução social.
Essa perspectiva, dos sistemas sociais complexos, está aberta às mais
diversas descrições da sociedade, as quais explica em função da atuação de
observadores, estabelecendo-se hipóteses sobre as prováveis tendências ou
situações. A partir de seus fundamentos, podem-se distinguir as formas
como se irão compondo, ampliando e diversiicando as “realidades” sociais,
as quais, por outro lado, são reintroduzidas como informação, de modo a
levarem-se em conta comunicações geralmente excluídas das correntes centrais da sociedade, isto é: incluindo a presença do que antes estava ausente.
Santos (2006, p. 26) parece apontar nesse mesmo sentido ao referir-se às
perspectivas da “outredade”. Aportes como esse também contribuem para
redirecionar processos sociais, pois ampliam a capacidade relexiva da sociedade – especialmente de seus grupos emergentes – e, com isso, esclarecem e democratizam sua tomada de decisões. Tais aberturas, por sua vez,
distanciam-se das concepções essencialistas ou de pensamento único que
impregnam as concepções ideologizadas e normativas da sociedade (com as
quais se tenta neutralizar a falta de conhecimentos).
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Colocar o foco de observação sobre a complexidade social implica ter
em conta os distintos planos que compõem a sociedade, de modo que a
distinção sujeito/objeto perde sua função. Tanto a “realidade” como sua
observação são referenciadas, ou melhor, autorreferenciadas. Isso permite
perceber atividades que são estruturalmente admissíveis, embora semanticamente indesejáveis, como, por exemplo, as desigualdades programadas
por meio de soisticados mecanismos de inclusão, ou os danos ambientais
provocados por processos industriais que garantem ou prometem bem-estar. Permite, ainda, a própria inclusão da perspectiva da complexidade
como um objeto de observação para a mesma.
O paradigma da complexidade para as ciências sociais implica, certamente, dispositivos de investigação e instrumentos que considerem – ou
modelem – diferentes planos e temporalidades na sociedade; implica também aceitar, sem sucumbir, a constituição paradoxal de seus processos.
Por exemplo, o fato de a sociedade mostrar-se, ao mesmo tempo, a mesma
e distinta para diferentes observadores torna fundamental considerar as
referências que produzem tais diferenças. Para alcançar estes propósitos,
fomentam-se a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade como “novos modos de conhecimento”. Assim, outro resultado dessa renovação é a
permeabilidade entre as perspectivas que lidam com a unidade subjacente
ao múltiplo e vice-versa.
Conclusões
Nos sentidos antes mencionados, o paradigma da complexidade apega-se aos valores da ciência e suas aspirações universalistas. Isso não se traduz como indiferença diante do que se quer explicar, menos ainda como
estímulo ao abandono do interesse pela mudança ou descuido da valorização do conhecimento aplicado. De fato, compreender a complexidade
implica atuar com mais propriedade e efetividade ante as condições da
sociedade e, assim, contribuir para saldar a dívida com os agentes de mudança que esperam de nossas disciplinas tecnologias para a transformação
e, também responder à crítica em todo o planeta.
No entanto, e antes de tudo, para tal reposicionamento de nossas
disciplinas ter início e fazer parte de nossas expectativas, é preciso remover
os obstáculos, internos e externos, que nos impedem de aproveitar a glo-
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balização de uma ciência, a qual já não se diferencia com base em critérios
regionais ou culturais, mas sim em disciplinas e temas de investigação
(Luhmann, 1996). Incorporar-se a tais critérios e expor nossas produções
a um mundo mais global faz sentido, na medida em que, como apontamos
antes, traz contribuições à sociedade, seja para uma intervenção reparadora ou mudança emancipatória, seja para sua compreensão teórica.
Caso nossos argumentos sejam aceitos, independentemente de ser ou
não respaldada sua opção pela perspectiva da complexidade, deveríamos
recompor nossas posições com uma rápida integração às novas discussões
das ciências e promover a apropriação crítica e criativa de seus debates
através de nossas organizações acadêmicas regionais. Para tanto, estão disponíveis suas centenárias universidades públicas, os novos centros acadêmicos, associações como a Alas, entre outras, e especialmente eventos,
cujas convocatórias e temas são uma clara expressão das complexidades
que demandam ser compreendidas, antes de se atuar cegamente sobre elas,
e nas quais o simples e o isolado são cada vez mais escassos.
Finalizando, nosso itinerário sintetiza-se em um apelo para aproveitarem-se as oportunidades e estreitarem-se os laços, de modo a compartilhar
a aspiração de posicionar ativamente nossas produções no nível global, de
forma coletiva e colaborativa e, sobretudo, a não voltar as costas à ciência
que caracteriza o século XXI, nem às urgências de informação e de transformação que reclama nossa sociedade.
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Parte II
Produzir conhecimento na América
Latina: políticas, democracia,
inclusão
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A dimensão econômica e social
da política brasileira de ciência,
tecnologia e inovação
Fernanda A. da F. Sobral
Introdução
O capítulo tem como objetivo mostrar a dimensão econômica, expressa na
ideia de competitividade e de fomento à inovação tecnológica, e a dimensão
social, expressa na ideia de inclusão social e de transferência do conhecimento para a sociedade na atual política de ciência, tecnologia e inovação.
A abordagem dessa questão será feita inicialmente por meio da análise mais
geral das tendências das sociedades contemporâneas, tais como globalização, democratização, revolução dos meios de comunicação e informação e
sustentabilidade ambiental que terminam se reletindo nas novas tendências de fomento à produção do conhecimento como internacionalização,
interdisciplinaridade, aplicabilidade e interação com a sociedade. Depois se
pretende analisar, no Brasil, os principais desaios colocados pela Estratégia
Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação para o período de 2012 a 2015,
os programas prioritários e as tendências do fomento à pesquisa cientíica e
tecnológica, por meio da implementação de alguns programas de fomento
como os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs). Finalmente, pretende-se apontar alguns resultados desse programa e algumas diiculdades no fomento com a intenção de evidenciar que, embora a dimensão
social esteja presente na política brasileira de ciência, tecnologia e inovação
(CT&I), é a dimensão econômica que se mostra predominante, ainda que
a maior associação entre a dimensão econômica e social seja uma exigência
das sociedades democráticas e globalizadas.
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Tendências das sociedades contemporâneas
que afetam a política de CT&I e o fomento
Entre as condições socioeconômicas que inluenciam as políticas de
ciência, tecnologia e inovação na atualidade e, consequentemente, o fomento e a produção de conhecimento, podem-se destacar o processo de
globalização, a revolução proporcionada pelas novas tecnologias da informação e comunicação (TICs), a democratização da sociedade e a preocupação com a sustentabilidade ambiental.
Embora se possa falar da globalização pela sua dimensão propriamente econômica, enquanto integração de commodities, capital e dos mercados
de trabalho, entende-se também que esse processo inluencia as relações
sociais da humanidade de um modo mais amplo. Segundo Sassen (2010),
o processo de globalização envolve tanto dinâmicas relativas à formação de
processos e instituições explicitamente globais como outras dinâmicas que
induzem a processos dentro de territórios e domínios institucionais, que
foram construídos nacionalmente e que levam ao aumento das conexões e
da interdependência além-fronteiras. Contudo, a economia global não se
ramiica da mesma forma em todos os lugares. Há um núcleo (ou núcleos)
do qual todas as economias mundiais são dependentes (Lombas, 2013).
Como airma Castells (2000), esse núcleo globalizado contém os mercados inanceiros, o comércio internacional, a produção transnacional e,
até certo ponto, ciência e tecnologia, e mão-de-obra especializada. É por
intermédio desses componentes estratégicos globalizados da economia
que o sistema econômico se interliga globalmente.
A própria revolução provocada pelas TICs é outro fator que pode ser
visto como um dos resultados do processo de globalização, mas cujo desenvolvimento e alastramento tem também permitido a aceleração desse
processo. Cada vez mais as instituições de CT&I e os atores nelas envolvidos estão conectados pelo mundo afora, reduzindo as distanciais espaciais
e aumentando as conexões.
Ainda que o processo de globalização não se limite apenas à esfera
econômica, ele tem contribuído para o modelo de inovação tecnológica
restrito à dimensão econômica e para a internacionalização da produção
de conhecimento. A globalização estimulou a abertura do comércio ao
mercado internacional, que, por sua vez, aumentou a competitividade,
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obrigando as empresas a produzirem inovações tecnológicas, considerando o conhecimento especializado e arranjos cooperativos com universidades, governo e outras empresas (Sobral, 2011). Há também uma mudança
no papel do Estado, diminuindo suas funções reguladora e produtiva, passando a capacidade de inovação sobretudo para o setor produtivo privado.
Além disso, a internacionalização da produção do conhecimento passa a ser cada vez estimulada e caracterizada pelo envolvimento de pesquisadores em círculos mais amplos e diversos de trocas e difusão de ideias,
pelo estabelecimento de relações de colaboração cientíica e participação
em redes internacionais de pesquisa, por sua vez também facilitada pela
intensa utilização das TICs (Lombas, 2013).
Por outro lado, o processo de democratização das sociedades é uma
tendência vigente, fazendo com que, cada vez mais, a imprensa, as organizações não governamentais (ONGs) e a sociedade civil organizada procurem exercer inluência para que a produção cientíica e tecnológica tenha
uma maior responsabilidade social. O próprio desenvolvimento das TICs
possibilita a interação de diferentes atores e de diferentes instituições no
processo de produção e de apropriação do conhecimento. Outrora contida essencialmente nos limites da comunidade acadêmica, a empreitada de
produção e de apropriação do conhecimento tende a ampliar progressivamente os limites de seu universo em direção a um envolvimento maior de
outros atores sociais (Sobral, 2011). Nesse sentido, se poderia supor que
as demandas sociais aumentem em vários setores, inclusive no que concerne à ciência e tecnologia e que, por outro lado, essas demandas possam estar reletidas na produção e transferidas pela divulgação do conhecimento.
Essa ideia está presente em alguns estudos na área de “Ciência, Tecnologia
e Sociedade”; Nowotny, Scott e Gibbons (2001, p. 50-51), por exemplo,
airmam que: “Se, no século passado, a ciência falou para a sociedade,
neste século, a sociedade passa a falar para a ciência.”
Assim, a democratização das sociedades pode inluenciar para que
a interação com a sociedade no campo cientíico e tecnológico tenda a
ocorrer em duas dimensões: na produção do conhecimento por meio de
pesquisas e de desenvolvimento de produtos que procurem atender demandas do setor produtivo e/ou oferecer subsídios no sentido de resolver
problemas coletivos e necessidades sociais, como também na transferência
do conhecimento para a sociedade, por meio de diferentes formas de divulgação e de difusão do conhecimento cientíico e tecnológico.
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Tanto a globalização, enfatizando a importância da competitividade, como a democratização, mostrando a relevância da interação entre
conhecimento e sociedade, levam à tendência da pesquisa se originar e se
justiicar cada vez mais no contexto da aplicação do conhecimento, isto
é, em possibilidades e expectativas de sua utilização. Por outro lado, essa
visão de que as pesquisas devem ser desenvolvidas a partir da necessidade
de resolver problemas práticos, e não apenas de interesses cognitivos,
tende a tornar o conhecimento mais trans, multi ou interdisciplinar do
que disciplinar, pois, se o conhecimento é produzido visando à aplicação
dos resultados e não apenas com a intenção de acumulação do conhecimento na área, muitas vezes o problema a ser solucionado por meio do
conhecimento exige que disciplinas complementares trabalhem conjuntamente, de diferentes formas.
Esse aspecto se relaciona diretamente com a questão ambiental. Pode
se airmar que a preocupação com a sustentabilidade ambiental está presente nas sociedades contemporâneas, já que o homem adotou, para sua
sobrevivência, ao longo dos tempos, práticas de exploração cada vez mais
predatórias, constituindo assim problemas ambientais para a humanidade. A dimensão desses mecanismos de degradação intensiicou-se com o
advento da Revolução Industrial, no inal do século XVIII e com o consequente processo de urbanização, agravando-se ainda mais com o avanço
do sistema de globalização, que não só gerou, mas disseminou, em escala
global, uma gama de fatores de degradação socioambiental. Esse modelo
de desenvolvimento hegemônico e predatório gerou uma forte crise ambiental manifestada, sobretudo, pela incerteza da sobrevivência das gerações futuras no planeta em virtude da escassez dos bens naturais e do
desequilíbrio socioambiental já existente (Santos, 2013).
Esses problemas ambientais são anunciados ao mundo demandando
às ciências um processo contínuo de investigação e apontamento das soluções possíveis. O caráter global e complexo dos problemas ambientais suscitou a necessidade de encontrar métodos capazes de articular processos
sociais e naturais de diferentes escalas espaciais e temporais e de diferentes
ordens conceituais, que pudessem explicar os fenômenos multicausais,
inéditos e heterogêneos que constituem os sistemas ambientais, o que levou os cientistas a pensarem e agirem numa perspectiva interdisciplinar,
reunindo saberes e pesquisas de diversas áreas da ciência na busca de uma
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melhor compreensão da realidade e da projeção de cenários futuros mais
coniáveis (Santos, 2013).
A política brasileira de ciência, tecnologia e inovação
Depois de descritas algumas das condições socioeconômicas que inluenciam o fomento e a produção do conhecimento de uma maneira
geral, pretende-se mostrar como algumas dessas tendências se expressam
na política brasileira de ciência, tecnologia e inovação tanto nos principais
desaios apresentados pela Estratégia Nacional para Ciência, Tecnologia
e Inovação (ENCTI) 2012-2015 como por meio de seus programas prioritários.
A seguir, são listados os principais desaios (Brasil, 2012):
• Redução da defasagem cientíica e tecnológica que ainda separa o
Brasil das nações mais desenvolvidas pela promoção da inovação e
deinição de segmentos tecnológicos prioritários;
• Expansão e consolidação da liderança brasileira na economia do conhecimento da Natureza tais como terras raras e pré-sal;
• Ampliação das bases para a sustentabilidade ambiental e o desenvolvimento de uma economia de baixo carbono pela capacitação cientíica e tecnológica na área de energia a partir de fontes renováveis e
combustíveis alternativos;
• Consolidação do novo padrão de inserção internacional do Brasil:
CT&I como elemento decisivo nas parcerias com países em desenvolvimento (Brics, Ibas, Mercosul, Unasul, CPLP), apoio à circulação de cientistas brasileiros e à internacionalização das empresas
brasileiras.
• Superação da pobreza e redução das desigualdades sociais e regionais:
programa de inovação em tecnologia assistiva, massiicação das TICs,
desenvolvimento de tecnologias urbanas e habitacionais, criação do
Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), fomento a tecnologias para agricultura familiar.
Considerando os desaios apontados, a dimensão de competitividade
econômica dos países e das empresas e a dimensão social estão presentes
na política de CT&I, na medida em que se observa a preocupação com
a sustentabilidade ambiental, com a promoção da inovação tecnológica,
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com o estímulo à internacionalização dos pesquisadores, das empresas e
da produção do conhecimento mas também com a redução das desigualdades sociais e regionais por meio do fomento de certas inovações sociais
citadas anteriormente.
Essa tendência também se veriica ao se analisar os “Eixos de Sustentação da ENCTI” (Brasil, 2012) que se referem à:
• Promoção da inovação nas empresas cujo objetivo é ampliar a participação empresarial nos esforços tecnológicos do país, com vistas ao
aumento da competitividade nos mercados nacional e internacional;
• Novo padrão de inanciamento público para o desenvolvimento cientíico e tecnológico que pretende ampliar os recursos destinados ao
desenvolvimento da base cientíica nacional e à inovação tecnológica;
• Fortalecimento da pesquisa e da infraestrutura cientíica e tecnológica visando proporcionar soluções criativas às demandas da sociedade
brasileira e uma base robusta ao esforço de inovação;
• Formação e capacitação de recursos humanos cujo objetivo é ampliar
o capital humano capacitado para atender as demandas por pesquisa,
desenvolvimento e inovação em áreas estratégicas para o desenvolvimento sustentável do país, com destaque para as áreas de Engenharias.
Ainda que alguns eixos sejam gerais e sempre imprescindíveis para
a ciência e tecnologia do país tais como fortalecimento da pesquisa e da
infraestrutura cientíica e tecnológica e formação e capacitação de recursos
humanos, nota-se, porém, que há uma maior orientação para o incentivo
da inovação tecnológica no seu sentido restrito e econômico.
Essa constatação também pode ser feita ao se veriicar os programas
prioritários deinidos e listados a seguir:
•
•
•
•
•
•
•
•
•
TICs – Tecnologias da informação e comunicação;
Fármacos e complexo industrial da saúde;
Petróleo e gás;
Complexo industrial da defesa;
Aeroespacial;
Nuclear;
Fronteiras para a inovação;
Biotecnologia;
Nanotecnologia e novos materiais;
120
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•
•
•
•
Fomento da economia verde;
Energia;
Biodiversidade; oceanos e zonas costeiras;
CT&I para o desenvolvimento social;
No que concerne aos programas prioritários, a dimensão social está
presente explicitamente em apenas um deles, embora também possa estar
indiretamente incluído em outros programas.
O objetivo do programa referente ao desenvolvimento social é
produzir e difundir conhecimento e soluções criativas para a inclusão
produtiva e social, a melhoria da qualidade de vida e o exercício da cidadania. Especiicamente, este programa pretende promover a melhoria da
educação cientíica, a popularização da C&T e a apropriação social do
conhecimento. Também pretende aplicar tecnologias sociais e promover
a extensão tecnológica para a inclusão produtiva e social, incluindo o
fomento a P&D na área de Tecnologia Assistiva, voltada para as pessoas
com necessidades especiais, e a geração e difusão de tecnologias para a
agricultura familiar como também tecnologias que contribuam para que
as cidades sejam economicamente viáveis, socialmente justas e ambientalmente sustentáveis. Considerando que é um programa de CT&I para
o desenvolvimento social, essa dimensão é mais enfatizada ainda que
numa associação com a dimensão econômica, na medida em que visa à
inclusão social e produtiva.
O Programa INCTs enquanto ilustração da política
Visando ilustrar essa política, passa-se agora à análise da implementação de um programa governamental, com o intuito de mostrar as novas
tendências do fomento à ciência e tecnologia e da produção do conhecimento e evidenciar a dimensão social e econômica aí vigente. Será principalmente analisado o caso dos INCTs que, embora também englobem
a formação de recursos humanos, têm sua característica principal voltada
para o fomento à pesquisa cientíica e tecnológica.
Também se poderia analisar o Programa Ciência sem Fronteiras
(CsF), como ilustração da política, cujo objetivo é promover a consolidação, expansão e internacionalização da ciência e tecnologia, da inovação
e da competitividade brasileira por meio do intercâmbio de alunos de
121
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graduação e pós-graduação e da mobilidade internacional. Este programa
expressa bem o modelo de inovação no sentido predominantemente econômico, mas não será aqui analisado na medida em que é mais caracterizado como um programa de formação de recursos humanos, ainda que se
espere resultados na produção do conhecimento.
O Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTS)
visa promover a excelência nas atividades de ciência e tecnologia (C&T)
e sua internacionalização, assim como uma vigorosa integração do sistema de C&T com o sistema empresarial, melhoria da educação cientíica
e participação mais equilibrada das diferentes regiões do país no esforço
produtivo, com base no conhecimento.
Inicialmente, pode se airmar que ambos os programas (INCTs e CsF)
estão preocupados com a internacionalização do conhecimento e também
com a promoção da inovação no sentido predominantemente econômico,
porém o programa INCTs também está visando oferecer subsídios ao desenvolvimento social. Alguns outros aspectos serão considerados para dar
sustentação a essa airmação, tais como os objetivos dos INCTs transcritos
do Documento de Orientação do Programa (Brasil, 2008):
• Mobilizar e agregar, de forma articulada, com atuação em redes, os
melhores grupos de pesquisa em áreas de fronteira da ciência e em
áreas estratégicas para o desenvolvimento sustentável do país, como
deinidas no Plano de Ação Ciência, Tecnologia e Inovação para o
Desenvolvimento Nacional (PACTI);
• Impulsionar a pesquisa cientíica básica e fundamental competitiva
internacionalmente;
• Desenvolver pesquisa cientíica e tecnológica de ponta, associada a
aplicações, promovendo a inovação e o espírito empreendedor, em
estreita articulação com empresas inovadoras, nas áreas do Sistema
Brasileiro de Tecnologia (Sibratec);
• Promover o avanço da competência nacional em sua área de atuação,
criando, para tanto, ambientes atraentes e estimulantes para alunos
talentosos de diversos níveis, do ensino médio ao pós-graduado, e
responsabilizando-se diretamente pela formação de jovens pesquisadores. Os Institutos Nacionais devem ainda estabelecer programas
que contribuam para a melhoria do ensino de ciências e com a difusão da ciência para o cidadão comum; e
122
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• Apoiar a instalação e o funcionamento de laboratórios em instituições
de ensino e pesquisa e empresas, em temas de fronteira da ciência e
da tecnologia, promovendo a competitividade internacional do país,
a melhor distribuição nacional da pesquisa cientíico-tecnológica e a
qualiicação do país em áreas prioritárias para o seu desenvolvimento
regional e nacional.
Além disso, nesse mesmo documento, constam as missões principais
dos INCTs, que devem ser a promoção da pesquisa de vanguarda e de
elevada qualidade em temas de fronteira e/ou estratégicos, a formação de
recursos humanos e a transferência de conhecimento para a sociedade, o
que pressupõe um programa de educação e difusão de conhecimento focalizado no fortalecimento do ensino médio e na educação cientíica da população. Esse aspecto signiica um estímulo à utilização de outros instrumentos para divulgação dos resultados das pesquisas, além da publicação
cientíica, ou seja, a produção para não pares (Albert; Bernard, 2000). Para
aqueles INCTs voltados para a aplicabilidade do conhecimento, também
é requerida a transferência do conhecimento para o setor empresarial ou
para o governo. Ou seja, a atuação dos INCTs pode se dar desde a elaboração das teorias e conceitos até produtos comerciais ou contribuições
para a formulação de políticas públicas, que é a situação mais próxima das
Ciências Humanas e Sociais.
Deve-se observar que a transferência do conhecimento para a sociedade se refere a ações de divulgação e educação cientíica, não incluindo
a transferência do conhecimento para o setor produtivo e para o governo,
considerada como outra missão daqueles INCTs que realizam pesquisa aplicada. Além desse aspecto, os INCTs devem perseguir a excelência cientíica
e a relevância econômica e social, ou seja, trazer impactos de ordem cientíica, mas também impactos econômicos e sociais, possibilitando diferentes
peris de organização e produção de conhecimento. Por essa razão, ainda
que as metas e as missões dos INCTs sejam genéricas, alguns INCTs desenvolvem mais pesquisa básica, outros predominantemente pesquisa aplicada
e ainda há casos de desenvolvimento de produtos e processos. Porém, em
geral, os INCTs apresentam uma associação desses tipos de pesquisa.
Mas as diferenças entre os INCTs não se limitam apenas ao tipo de
pesquisa. O conjunto dos 122 INCTs apresenta uma diversidade muito
grande no que se refere às suas áreas temáticas, linhas de pesquisas, está123
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gios de P&D, trajetórias históricas de suas instituições nucleares e redes,
desenhos institucionais e contextos de macropolíticas do Governo Federal
relacionadas a essas áreas, como é o caso da saúde (Macedo, 2012).
No que concerne às áreas temáticas, a distribuição é a seguinte:
ciências agrárias e agronegócios (9,8 %); energia (8,2 %); engenharia e
tecnologia da informação (10,7 %); exatas (9,0 %); humanas e sociais
aplicadas (9,0 %); ecologia e meio ambiente (14,8 %); nanotecnologia
(8,2 %); e saúde (30,3 %).
No que se refere a trajetórias, há alguns INCTs que já estão organizados há muitos anos, tendo recebido inanciamentos como PADCT,
Pronex, Instituto do Milênio, e há aqueles que se organizaram em redes
primeiramente para se constituir num INCT. Também alguns INCTs têm
por base departamentos ou programas de pós-graduação das instituições
de ensino superior, outros estão centrados em instituições de pesquisa
como as unidades da Fiocruz, etc. Algumas redes dos INCTs se restringem a instituições acadêmicas, outras envolvem, além dessas instituições,
empresas e também organizações não governamentais (Macedo, 2012).
Mesmo considerando essa diversidade, o Documento de Orientação do Programa INCT, conforme indicado anteriormente, enfatiza
a questão da “transferência de conhecimentos para a sociedade”, buscando fortalecer e ampliar a utilização ampla dos resultados das ações
de C&T&I em benefício da sociedade em geral como uma orientação
para todos os INCTs, e ainda, quando for o caso, a aplicabilidade
do conhecimento no setor produtivo e/ou no governo. Nesse sentido,
o programa incentiva parcerias diversiicadas e aplicações que levem
a impactos condizentes com o desenvolvimento sustentável, em suas
múltiplas dimensões: econômica, social, ambiental, cultural. Ou seja,
é importante ter em mente que a transferência do conhecimento é
exigida para todos, ainda que as parcerias e as formas de transferência
possam se diferenciar a depender do peril do INCT.
A partir de estudos de caso realizados (Sobral, 2012a, 2012b) sobre o
INCT de Observatório das Metrópoles e sobre o INCT de Administração
Institucional de Conlitos (InEAC), da área de ciências humanas e sociais,
a respeito da articulação com políticas públicas e outros atores – ONGs,
organismos públicos, etc. – e da transferência do conhecimento para a
sociedade, enquanto educação cientíica e divulgação e difusão de conhe-
124
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cimento, constatou-se uma diversidade de interações entre instituições de
pesquisa e organizações não acadêmicas. Há uma gama de atores sociais
que se encontram fora da academia, como o setor produtivo, o governo,
as organizações não governamentais, os movimentos sociais, etc, porém,
cabe registrar que, no caso dos INCTs analisados, ambos sediados no Rio
de Janeiro, houve certo predomínio de interações com os governos municipais, federal, ONGs e movimentos sociais, e menor proporção de interações com o governo estadual, ainda que haja relações com o governo estadual por parte dos núcleos locais sediados em outros estados, apontando a
importância de analisar o contexto político, econômico e social que pode
estar inluenciando essa questão.
Nos estudos de caso citados, icou evidente que ambos os grupos de
pesquisa já tinham uma experiência anterior de interação com organizações não acadêmicas e de transferência de conhecimento para a sociedade,
só que no caso do Observatório das Metrópoles essa tendência é decorrente da própria área de conhecimento (planejamento urbano), diferentemente do InEAC, que contrariou as tendências da área (antropologia)
mas que foi reconhecido pelo fato de se tornar INCT e pelo apoio de sua
instituição universitária sede (Universidade Federal Fluminense) .
Em resumo, o programa INCT reconheceu e legitimou a tendência
de transferência de conhecimento para a sociedade, fazendo com que
essa dimensão fosse ampliada e objetivada. Mas se destaca o fato da
esfera acadêmica e não acadêmica estarem caminhando juntas, pois se
veriica que, além das experiências bem-sucedidas de transferência do
conhecimento para a sociedade, há um grau de internacionalização muito grande da rede de pesquisa, não apenas com os países centrais, mas
também com a América Latina. Ao mesmo tempo em que são formados
recursos humanos altamente qualiicados na pós-graduação, também
são capacitados proissionais de diferentes tipos e que desempenham
tarefas importantes para a sociedade. Ou seja, a excelência não exclui a
dimensão social e econômica do conhecimento.
Segundo Nowotny (2006), não há incompatibilidade entre ciência
real e ciência excelente, já que a ciência real surge e é construída pela ciência acadêmica e excelente. Assim, a ciência responde às várias demandas
provenientes do Estado, da indústria e da sociedade e, de forma crescente,
do mundo globalizado, sem diminuir a excelência, na medida em que há
125
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certo nível de autonomia, competição e seleção de propostas. Se a ciência
real signiicar, igualmente, a ciência excelente, torna-se não apenas socialmente robusta, mas também cientiicamente forte.
O quadro seguinte mostra as principais formas de interação com a
sociedade adotadas pelos INCTs aqui analisados:
Embora nesses exemplos mencionados a interação com o setor produtivo não esteja acontecendo, há inúmeros outros INCTs que estão viabilizando esse tipo de interação, ou seja, no programa de fomento como um
Experiências de interação
com usuários não
acadêmicos
•
•
•
Cursos de formação para diferentes proissionais: conselheiros municipais,
agentes setoriais, guardas municipais, policiais, delegados, etc;
Assessoria a órgãos governamentais, movimentos sociais e ONGs;
Participação em redes sociais, conselhos, fóruns, etc;
Difusão dos resultados
•
•
•
Criação e atualização de portais;
Criação de boletim informativo;
Criação de revista eletrônica;
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
Criação de sites em núcleos locais;
Disponibilização de informações no portal por meio de ferramentas
interativas;
Estabelecimento de parcerias com jornais para divulgação de matérias
concernentes ao tema;
Difusão de conhecimento pela mídia falada e escrita;
Participação e organização de eventos;
Apoio à programação de rádios comunitárias;
Elaboração de DVDs sobre os temas pesquisados pelos INCTs com
disponibilização para escolas do ensino médio;
•
•
•
Subsídios na formulação de políticas e de programas governamentais
referentes ao tema do INCT;
Subsídios na elaboração de planos, medidas, legislação referentes ao tema
do INCT;
Descentralização das atividades de pesquisa a partir da ampliação de
núcleos;
Proissionalização da colaboração com usuários não acadêmicos;
Proissionalização das atividades de divulgação cientíica;
Proissionalização da gestão inanceira;
Sensibilização dos gestores de CT&I e das universidades para o fomento
de ensino e pesquisa em temas transversais.
das pesquisas
Resultados e impactos
das atividades do INCT
•
•
•
•
•
•
•
126
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todo, as dimensões cientíica, econômica e social estão presentes, ainda
que uma dessas dimensões possa predominar mais do que outra, a depender do peril do INCT, da área de conhecimento ou do tema de pesquisa.
Considerando que há mais INCTs em áreas ou temas não propriamente
sociais, a ênfase maior continua na questão cientíica e econômica, ainda
que a transferência de conhecimento para a sociedade seja exigida para
todos, o que é uma mudança importante no fomento à pesquisa.
De uma forma geral, alguns dos principais resultados dos INCTs em
termos da organização da pesquisa, sem apontar especiicidades de áreas
ou de temas, podem ser assim resumidos:
• Integração de agências federais, estaduais e setoriais (como CNPq,
Capes, FAPs, Ministério da Saúde, Petrobrás) em torno de um programa único de fomento;
• Organização do trabalho de pesquisa em redes colaborativas, possibilitadas pelas TICs e pelas parcerias nacionais e internacionais;
• Grande número de INCTs temáticos estimulando a multidisciplinaridade/interdisciplinaridade;
• Menor concentração do conhecimento dada a participação no fomento de inúmeras FAPs e a participação de pesquisadores de diferentes unidades federadas e regiões;
• Descentralização federativa e público-privada dada a participação das
FAPs e também do setor produtivo privado;
• Maior articulação e/ou parcerias com pesquisadores e ICTs de outros
países possibilitando a internacionalização do conhecimento;
• Maior capacidade de resposta às demandas e necessidades públicas
considerando a possibilidade de subsidiar políticas;
• Maior capacidade de produção de inovações tecnológicas dada a articulação com o setor produtivo;
• Indução de formatos não tradicionais de difusão do conhecimento
para a sociedade, possibilitando, além da produção para pares (PP) a
produção para não pares (PNP) (Albert e Bernard);
• Fortalecimento da pós-graduação e ao mesmo tempo oferta de cursos
não necessariamente acadêmicos.
• Importância dos impactos cientíicos, econômicos e sociais.
Contudo, os resultados iniciais do programa INCTs também apontam diiculdades no sistema de fomento à pesquisa, o que leva a pensar
sobre a necessidade de se ir mais adiante. Por exemplo, há uma duali127
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dade entre novos formatos de fomento (como os INCTs) com sistemas
de avaliação tradicionais, como também um conlito entre o fomento
temático e interdisciplinar e a institucionalização disciplinar por meio
das sociedades cientíicas, comitês de avaliação, departamentos universitários e programas de pós-graduação. Ainda que tenham sido veriicadas
experiências exitosas nas atividades dos INCTs, há, de uma forma geral,
pouca institucionalização da interação entre conhecimento e sociedade,
e, inalmente, se percebe um espaço ainda reduzido para os jovens pesquisadores e para as instituições emergentes. As inovações sociais que
procuram resolver problemas coletivos e necessidades sociais (Baumgarten, 2008) também são ainda pouco apoiadas.
Considerações finais
A título de conclusão, é importante considerar que os efeitos da globalização e da democratização se fazem sentir na atual política de CT&I,
trazendo uma forte conotação econômica, mas também uma conotação
social. Essa questão foi apresentada tanto nas deinições da política como
na implementação do programa INCTs.
Convém lembrar que desde Marx (1977) a ciência e a tecnologia já
eram apontadas como forças produtivas, no sentido de possibilitar o aumento de produtividade e a acumulação de capital. Sob tal perspectiva, ela
é pensada a partir do ponto de vista do capital, ou seja, da relação social de
produção na qual se insere e pode ser relacionada às formas soisticadas de
intensiicação da extração de mais valia e controle do trabalho pelo capital.
Esse aspecto é enfatizado pelo processo de globalização. Ou seja, a ciência
e a tecnologia, além de aumentarem a nossa competitividade, também
estão associadas ao controle, dominação e poder.
E, nesse aspecto, também é bom lembrar Foucault (1977) ao mostrar que a ciência e o saber são verdades que se constituem por meio de
relações de poder e como relações de poder. São assim produzidas por
sistemas de poder, mas que induzem e reproduzem efeitos de poder.
Airmação que pode ser ampliada ao se considerar a ciência e a tecnologia. Por essa razão, é da maior importância que a implementação da
política de CT&I enfatize a dimensão social, além da dimensão econômica. Na medida em que os resultados da ciência sejam transferidos
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mais amplamente para a sociedade e que as demandas sociais estejam
reletidas na produção de conhecimento, poderá haver uma apropriação
mais coletiva dos seus resultados, ainda que saibamos que pesquisas que
não envolvam aplicabilidade (as pesquisas básicas) também devam ser
estimuladas em função do próprio desenvolvimento da ciência. A apropriação social do conhecimento abrange o setor produtivo, mas também
outros atores sociais. Economia e sociedade devem andar juntas.
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129
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130
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A contextualização da verdade
ou como a ciência torna-se periférica
1
Fabrício Monteiro Neves
Introdução
A pesquisa trata do tema da construção dos contextos de verdade. A argumentação teórica estrutura-se em torno de questões levantadas pelos
estudos sociais da ciência e tecnologia (ESCT), focando-se nas vertentes
de investigações que levam em conta as diferenças de legitimação e circulação do conhecimento cientíico entre contextos periféricos e centrais
no sistema global de ciência e tecnologia. Deter-se-á na discussão do que
aqui se chamará sistema biotecnológico, um complexo articulado formado por instituições acadêmicas, empresas públicas e empresas de pesquisa
biotecnológicas especializadas na produção de conhecimento e tecnologia
voltados para a manipulação da vida.
O estudo utilizou entrevistas semiestruturadas com líderes de grupos de pesquisa em biotecnologia em seis estados da federação,2 métodos
de coleta de dados bibliográicos e empregou técnicas qualitativas de
análise, especiicamente, a análise temática de conteúdo. O sistema biotecnológico é observado a partir do conceito de regime de produção de
Agradeço à revisão criteriosa e aos comentários críticos de Vanessa Ponte. Este artigo também foi
avaliado e criticado pelo grupo DISCO - Direito, Sociedade Mundial e Constituição, da Universidade de Brasília, aos membros deixo meu agradecimento.
2
Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Paraná, Minas Gerais, Distrito Federal, Pernambuco.
1
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conhecimento (periférico), um regime de perturbações recíprocas entre
sistemas, limitado pelas conigurações institucionais dos Estados nacionais, mas em contato com os centros de produção tecnocientíicos.3 Tal
regime, no Brasil, é caracterizado como tradutor de demandas locais,
neste sentido, produtor de pesquisa de interesse meramente periférico,
sem capacidade de circulação ampla na rede global do sistema, e, portanto, negligenciado no centro.
A condição periférica, no escopo deste artigo, é tratada não em um
nível estrutural, como foi de praxe na teoria da dependência e da modernização. Não nego esta dimensão, no entanto, concentrou-se aqui no âmbito fenomenológico da prática cientíica e das expectativas consubstanciadas em discursos. Procura-se aí encontrar a dinâmica na qual a diferença
centro/periferia se inscreve como valor e, portanto, torna-se expectativa
e prática, determinando o conteúdo do conhecimento, atribuindo consequentemente valor incremental, local, periférico à produção cognitiva.
Admite assim um endereço no sistema cientíico, portanto de valor inferior àqueles assumidamente universais.
Hierarquização
O contexto mais geral da investigação cientíica, aquele que transcende as paredes dos laboratórios, institutos de pesquisa, universidades
etc. está, de uma forma ou de outra, incidindo internamente. No plano
dos sistemas sociais, o acoplamento entre sistema e entorno é fundamental para se entender por que se pesquisa o que se pesquisa, por que se faz
ciência como se faz. Como airmam as teorias não-diferenciacionistas
sobre a ciência, não há nenhum âmbito transcendente ao fenômeno social; o sistema cientíico, como qualquer outro fenômeno social, baseia-se em processos comunicativos que se estabilizaram em sua história.
Os sistemas são sensíveis aos ambientes em função das possibilidades de
observação que engendram.
Possibilidades de observação estruturam-se, no plano sistêmico, como
capacidade de conexão, sempre seletiva, com o entorno. No que tange à
O conceito de regime de produção é baseado em Günther Teubner (2005), porém repensado à
luz do processo de produção de conhecimento.
3
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organização cientíica fala-se em capacidade de observar as decisões de outras organizações, como as políticas, econômicas, jurídicas, entre outras.
Nesse sentido, este contato com o entorno envolve possibilidades “reais”
de uma teoria para o sistema cientíico e as possibilidades de inanciamento, legalidade, moralidade, lucro para as organizações. A este relacionamento seletivo Luhmann (2007) chama acoplamento estrutural,4 porque
ainda que o sistema dependa do entorno, ele não é deinido a partir de
si mesmo. As deinições internas, portanto, seguem aquilo que foi estabilizado como comunicação seletivamente incorporada, ressigniicada e
consolidada como estrutura de expectativa.
A diferenciação centro/periferia estaria sendo utilizada pelas organizações cientíicas para observar e, como consequência, para se estruturar
frente ao entorno, produzindo uma série de processos internos vinculada a esta forma de observação. Não é só nas organizações cientíicas que
esta forma é delagrada, as políticas cientíicas e tecnológicas no Brasil,
historicamente, estruturaram-se em torno dessa mesma forma, que cria
uma hierarquia no sistema cientíico global em torno de instituições mais
ou menos desenvolvidas, embora só se possa considerar isso se se parte de
uma forma de observação que tome a sociedade como um sistema global,
não demarcado regionalmente (Luhmann, 2007).
As demarcações que surgem na sociedade moderna dão-se por meio
da diferenciação funcional processada entre sistemas sociais sem que, no
entanto, abandone as possibilidades de que as diferenciações estratiicadas continuem operando no plano parcial da sociedade.5 Com base nesta forma de observar, Neves (2006) deine os “países periféricos” a partir
de uma realização insuiciente desta diferenciação funcional, embora
isso não envolva um abandono do argumento da sociedade moderna
em realidades periféricas, como o Brasil, que já não podem ser tratadas
como “sociedades tradicionais”.
Processo de perturbações recíprocas que modiica cada um dos sistemas acoplados, cuja modiicação responde à estrutura interna de cada sistema. Ver Rodrigues e Neves (2012).
5
Esta é a controversa tese de Luhmann a respeito da sociedade moderna. O autor assume que a
diferenciação funcional e não mais a estratiicada seria a forma primária de diferenciação da sociedade: “Hoje em dia – sob a diferenciação funcional – também se encontra a estratiicação na forma
de classes sociais, inclusive diferenças de centro/periferia; no entanto, essas são agora manifestações
secundárias da dinâmica própria dos sistemas funcionais” (Luhmann, 2007, pág. 485).
4
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Neves (2006, p. 17) acrescenta que, em realidades periféricas, existirão “vínculos não suicientemente complexos entre sistema e ambiente,
que levam à degeneração da ‘correspondente segurança de expectativas’
e fazem surgir um excesso de novos problemas (mais possibilidades)”.
Isso exporia os sistemas da modernidade periférica diante de uma “complexidade desestruturada” e “desestruturante”, tornando-os incapazes de
direcionarem a complexidade ambiental em função de suas expectativas
autônomas internas, o que Neves (2006) conceitua como modernidade
negativa.6 A realidade periférica se apresenta com níveis não estruturados
de complexidade, o que traz problemas de hipercomplexidade sistêmica
para toda a sociedade, na medida em que as expectativas funcionais são
contrariadas constantemente por intervenções intersistêmicas por meio da
sobreposição de elementos como o poder e o dinheiro.
A questão a se averiguar aqui é qual é o elemento social da “modernidade
periférica” tem incidido em uma diferenciação, ou na escassez dela, no
plano das relações entre sistema e entorno, especiicamente incidido na
diferenciação da ciência brasileira.7 Tais elementos funcionam na prática
como reforço da condição periférica. Quer dizer, os critérios de seleção
que se cristalizam e criam as expectativas estruturais que orientam a organização cientíica na periferia dependem da deinição das diferenciações
privilegiadas neste contexto de produção cientíica.
Esta deinição evidencia a tendência aos particularismos regionais
que surgem em função das conigurações institucionais híbridas, que se
manifestam na sociedade global, diferenciada funcionalmente. Embora
a ciência seja um sistema funcional global, ela se diferencia no plano da
relação ciência e sociedade em função destas conigurações regionais. Por
isso, “o universalismo dos sistemas funcionais que operam na sociedade
do mundo longe de excluir os particularismos os estimula” (Luhmann,
Isso envolve, por exemplo, no caso do direito, insuiciente fechamento sistêmico em função de
vários fatores, como a hipertroia dos processos econômicos, acabando por gerar intervenções
degenerativas do entorno, ou alopoiesis (Neves, 2001).
7
A baixa institucionalização e o atavismo cultural são elementos muitas vezes reforçados na literatura. Burgos (1996) refere-se à baixa institucionalização adotando a hipótese da fragilidade
das redes tecnocientíicas na periferia, pouco alargadas, envolvendo poucos atores. Schwartzman
(1979) se refere à herança ibérica e escolástica na “cultura cientíica” brasileira, que reproduziu a
atitude refratária que Portugal teve com o “novo espírito cientíico”.
6
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2007, p. 128). Questiona-se então: de que forma estes particularismos são
estimulados, a despeito da lógica global de diferenciação funcional?
Várias respostas foram elaboradas, além daquela enunciada por Neves (2001) e elas buscam captar a especiicidade regional com base na interação de sistemas funcionais fechados. Teubner (2005), por exemplo,
ressalta a especiicidade e a tendência de conigurações idiossincráticas
no plano da política e do direito na modernidade. Nega, portanto, a
uniformização dos processos sociais decorrentes do fenômeno da “globalização”. Mesmo com a globalização do mercado e das tecnologias
de informação, “as condições econômicas do capitalismo avançado não
estão convergindo. (...) as divergências institucionais entre as sociedades
industriais desenvolvidas aumentaram ao invés de diminuírem” (Teubner, 2005, p. 132). A que se deve então este fenômeno aparentemente
contraintuitivo? Fundamentalmente, aos acoplamentos plurilaterais de
sistemas sociais autônomos que formam regimes de produção contextualizados nos limites dos Estados nacionais.
Isto signiica que há necessidade de uma modiicação teórica que passa
da ideia de reciprocidade nos acoplamentos estruturais bipolares para a
ideia de ciclicidade em relações intersistêmicas pluripolares. (Teubner,
2005, p. 137).
Teubner argumenta que a ciclicidade das perturbações recíprocas intersistêmicas engendrará um novo nível de complexidade para cada sistema envolvido no regime de produção regional da sociedade global. Nesta
observação, inclui-se a tese da alopoiesis, como fenômeno decorrente das
especiicidades das relações intersistêmicas regionais, as quais se dão no
plano da evolução da sociedade global, portanto, são historicamente condicionadas a perturbações que as instituições e os sistemas locais desenvolveram: o regime de produção, nesse sentido, apresenta uma natureza
contextualizada e histórica. Assim posto, este processo cria especiicidades
locais. Teubner (2005, p. 138) exempliica como funciona a dinâmica da
ciclicidade dos regimes de produção:
Tomemos o exemplo das normas técnicas. Resultados de pesquisas cientíicas que provocam impulsos, modiicando a deinição de standards
técnicos, não podem ser justiicados como tais, mas apenas percebidos
como irritações do sistema jurídico. Essas irritações, por sua vez, forçam
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o direito a reconstruir novas normas. No lado jurídico do regime
de produção, meras correlações entre o crescimento e a tendência
para o risco, tal como foram concebidas pelo lado cientíico, são
‘desentendidas’ de tal modo como se determinassem, num certo ponto,
a mudança da legalidade para a ilegalidade de um comportamento,
recontextualizando-a como norma na rede de diferenciações jurídicas.
Essa norma, por sua vez, não vale para o sistema econômico como uma
máxima categórica de comportamento, mas sim como uma irritação
de custos, que depende da probabilidade de esse comportamento ser
descoberto e da intensidade com a qual é sancionado. O aumento de
custos, por sua vez, irrita a política por meio das intervenções dos lobistas. A política se vê obrigada a reformular os standards, até o ponto
que, mais uma vez, irritam os técnicos, que são forçados a revê-los
e reformulá-los. O Chinese whisper das reconstruções originadas por
perturbações provoca, dessa maneira, uma dinâmica cíclica de inovações permanentes que chega a um equilíbrio momentâneo, quando os
sistemas em jogo desenvolveram valores relativamente estáveis em sua
própria esfera e enquanto eles sejam compatíveis entre si.
O ciclo de irritações recíprocas é observado, especiicamente, pelos
sistemas, de modo que a criação de novas estruturas se deve à ciclicidade
do relacionamento entre os sistemas, provocando diferenças em função
de contextos institucionais especíicos. Podemos observar o desenvolvimento dessas diferenças por meio dos mecanismos evolutivos – variação,
seleção e restabilização.8 Neste aspecto, a variação na comunicação sistêmica, produzindo elementos divergentes com o passado, expõe o sistema
a uma complexidade que demandará seleção, o que resulta em uma nova
estrutura de expectativas, em uma restabilização, e, inalmente, em um
“equilíbrio momentâneo”. Este equilíbrio caracterizará as especiicidades
institucionais nos regimes de produção regionais e impedirá a convergência institucional no plano global, produzindo e reproduzindo, ao im, hierarquias sistêmicas do tipo centro/periferia.
Deste modo, a dinâmica relacional entre sistemas em um contexto
produz, de forma coevolutiva, regimes de produção entre eles, regimes
de conhecimento diferenciados entre si, inclusive em termos hierárquicos. Alguns regimes se coniguram centrais e outros periféricos para a
8
Sobre mecanismos evolutivos ver Rodrigues e Neves (2012); Neves (2006); Luhmann (2007).
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produção do conhecimento. Como argumento em outro trabalho (Neves; Costa Lima, 2012, p. 270):
Este é o cerne da questão sobre a diferenciação centro/periferia no sistema internacional de ciência e tecnologia (SICT). Há uma hierarquia
instituída com base nas referências de excelência cientíica, publicações e patentes, que possui estabilidade dinâmica, e que, na dimensão
da construção do conhecimento, opera na distinção do conhecimento
válido (puriicado, com poder de circulação) e não válido (local, de
pouca circulação).
Assume-se que os Estados Nacionais, assim, fornecem um contexto
institucional especíico que incide na organização do sistema na sua inserção em uma ordem social global, não homogênea, não horizontalizada,
produtora de hierarquias. Este contexto será descrito em termos de um regime de produção de conhecimento formado pelo acoplamento estrutural
entre sistemas sociais distintos, quais sejam a economia, o direito, a política e a ciência. Ressalte-se, porém, que, neste caso, interessa a repercussão
deste regime no sistema cientíico. Portanto, tratou-se de analisar como
o sistema cientíico na periferia tem observado e incorporado o entorno.
Cada período histórico especiicou uma ciência singular em função do
tipo de relação que o sistema cientíico estabeleceu com os outros sistemas
sociais, neste sentido, trata-se de evolução das formas sociais.9
Considera-se assim centros de produção de conhecimento no interior
do sistema global da ciência, e, portanto, também periferia. Centro/periferia é somente um critério de observação que perpassa as comunicações
cientíicas, desde o centro e desde a periferia. Como código de observação
simbolicamente generalizado, centro/periferia incide na própria prática
cientíica, diferenciando a ciência em organização de ponta/organização
atrasada, pesquisa de fronteira/pesquisa convencional, valor global/valor
local, autoridade/não autoridade, capilaridade/restrição. Cada lado destas
dicotomias estrutura determinadas regras operativas, desde o que deve ser
inanciado até o que deve ser reproduzido, quem deve ser respeitado academicamente e quem não, e, geralmente, isso se relaciona com contextos
regionalizados na sociedade global, tendo como referência o espaço de-
9
Ver Shapin, 1995; Bloor, 2009.
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marcado pelo Estado Nacional. O regime de produção de conhecimento,
formado pela coniguração historicamente tomada pelos sistemas sociais
e das relações entre eles, disponibiliza informações no contexto que incidem, em consonância com critérios de seletividade especíicos, nos modos
de (auto)observação de cada sistema especíico.
Trata-se, portanto, dos contextos dentro dos quais o conhecimento
cientíico é construído na sociedade moderna, no caso especíico, na modernidade periférica, no regime de produção do conhecimento brasileiro.
A diferenciação centro/periferia condiciona um tipo especíico de conhecimento, tendo em vista que é um critério de observação que organiza os contextos em que biólogos moleculares e engenheiros genéticos trabalham. O
conhecimento, na medida em que é contingência, que poderia ter assumido
outras formas, sofrerá das limitações de determinadas maneiras de observar,
criadas comunicativamente e estruturadas pelo sistema. Assim posto, quer-se saber como os critérios de observação do sistema biotecnológico têm
incidido na forma do conhecimento cientíico na periferia.
Assume-se que, em uma sociedade que se estrutura em termos de
sistemas funcionalmente diferenciados, sua reprodução se dá em função
dos resultados da evolução de cada um deles. Estes resultados estão sempre
disponíveis e cobram saídas particulares dos sistemas funcionais. A partir
da segunda metade do século passado, tem-se considerado que a ciência,
como nunca, tematiza ruídos que emergem dos acoplamentos estruturais
com outros sistemas em suas comunicações: a economia dispondo sua
complexidade em termos de inanciamentos, a política pressionando por
níveis superiores de produção cientíica, e o direito limitando o rol das
possíveis comunicações. O resultado, na organização cientíica, responde
por aquilo que os teóricos contemporâneos, principalmente os pesquisadores dos ESCT, têm chamado de construção social do conhecimento.
Endereçamento
A relativização do conteúdo do conhecimento cientíico operada pelos ESCT a partir da década de 70 do último século (ver Bloor, 2009;
Longino, 2002) transformou as formas de observar a produção do conhecimento e expôs uma nova epistemologia, em paralelo com a crítica
feminista, teoria crítica e teorias pós-coloniais (horpe, 2007). Em geral,
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houve uma ênfase renovada nos aspectos contextuais do conhecimento
produzido, incluindo o conhecimento cientíico, o qual era apresentado
não mais como universal, neutro, imparcial. Por meio de novos métodos
de investigação, a ciência agora era uma atividade produtora de um tipo de
verdade circunscrita ao seu contexto social, endereçada na prática, situada
e relacionada ao contexto.10
Tais questões emergem em particular nas abordagens feministas e multiculturais. A SSK11 e a epistemologia feminista têm em comum a crítica construtivista das noções liberais de universalidade e neutralidade,
e uma ênfase “conservadora” no local sobre o universal. A primeira
ênfase pode ser observada, em particular, na noção de Donna Haraway
de “conhecimento situado” e na ideia de Helen Longino de “epistemologia local”. (horpe, 2007, p. 72).
A nova reivindicação epistemológica que emergia nos estudos sociais da
ciência abriu muitas possibilidades de estudo, em grande parte ressaltando
a diversidade em contraposição à unidade do conhecimento. Ao focar na
prática, o diverso era encontrado nos mais diferentes contextos, mesmo na
ciência a diversidade e o pluralismo apareciam quando se observava mais de
perto disciplinas, laboratórios e linguagens (Longino, 2002). A unidade das
ciências era agora considerada um projeto civilizador, uma forma de colonialismo cognitivo que remetia a processos de ajustamento cultural, socialização prática, enquadramento epistemológico de contextos considerados
hierarquicamente inferiores no que tange à excelência cientíica.
A ciência ocidental estabeleceu-se reforçada pelos elementos constituintes da civilização industrial, ainda que a nascente indústria do século XVIII não contasse com a tradição cientíica até aquele momento em
constituição (Bronowski; Mazlish, 1986). Houve, no entanto, perturbações recíprocas entre o sistema cientíico moderno e as exigências tecnológicas da competição capitalista. A ciência foi demandada e inanciada pela
indústria, principalmente no século XX. De certa forma coevoluíram por
meio da ciclicidade de perturbações recíprocas, formando um regime de
Destacou-se principalmente as etnograias de laboratório, como as de Latour e Woolgar (1997)
e Knorr-Cetina (2005).
11
Sigla para Sociology of Scientiic Knowledge.
10
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produção de conhecimento. Deve-se ter claro a partir desse ponto que a
coevolução deu-se em contextos especíicos e que, portanto, o que hoje se
chama “complexo cientíico-industrial” incorporou uma dinâmica eminentemente local de produção de conhecimento.
Desse modo, o sucesso de elementos cognitivos e tecnológicos dessa
forma de conhecer e aplicar conhecimento esteve muito mais ligado a
processos sociais do que à sua superioridade epistemológica. Fala-se em
circulação e expansão de redes sociotécnicas (Latour, 2000), sempre a partir de um ponto, um contexto, um centro. A expansão deve ser pensada,
como airma a sociologia do conhecimento, a partir dos porta-vozes, tradutores que propagam os elementos cognitivos, defendendo-os para além
de seu contexto de criação, adaptando-os a outros contextos, muitas vezes
ressaltando sua universalidade. A ciência ocidental tem um porta-voz privilegiado: a tecnologia moderna.
Assim, se o universalismo é pensado como um valor resultante da
circulação do conhecimento, compreende-se mais facilmente o pluralismo epistemológico, evitando classiicações etnocêntricas e racistas a respeito de conteúdos cognitivos originais surgidos em outros contextos.
Mesmo a ciência deve ser pensada em seus distintos contextos de prática,
tanto intelectual quanto institucional, devido, sobretudo, à existência de
pressupostos não conscientemente administrados na prática cientíica.
O papel das pressuposições na investigação requer que a análise epistemológica da teoria e da pesquisa deve incluir a análise do contexto
social e intelectual nos quais a pesquisa ocorre e teorias e hipóteses
são avaliadas. O contexto intelectual é constituído de pressuposições
de fundo e recursos de pesquisa – instrumentos, amostras, protocolos experimentais. O contexto social é o conjunto de instituições e
interações através das quais pressupostos e recursos circulam e o mais
amplo ambiente social ao qual instituições e interações são vinculados.
(Longino, 2002, p. 177).
O que nos interessa aqui são esses pressupostos, aos quais, seguindo a
teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann, chamaremos de distinções
na comunicação.12 Se, para Luhmann, o meio de comunicação simboliPara uma discussão a respeito da relação entre a teoria dos sistemas sociais e os estudos sociais
da ciência, ver Neves (2013).
12
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camente generalizado da ciência é a verdade (Luhmann, 1996), não considera que esta seja a única forma de direcionamento da comunicação no
interior do sistema cientíico. Embora concorde em parte com seu argumento, já que considero o funcionamento um meio também central para
compreender a ciência atualmente,13 a distinção centro/periferia não pode
ser descartada se se quer compreender a produção de ciência e tecnologia.
Como airma o mesmo autor:
Quem não trabalha nos centros de investigação cientíica com as facilidades de informação atual, perde o vínculo e pode no melhor dos
casos inteirar-se com atraso considerável do que se tem trabalhado em
outros lugares. Os prêmios Nobel demonstram em matéria cientíica
uma distribuição marcadamente regional. A consequência é um padrão de centro/periferia que não é estável e que pode mudar seu ponto
de gravidade. (Luhmann, 2007, p. 126).
Centro/periferia se constitui como um pressuposto também na prática cientíica, assumido em vários contextos de comunicação no interior
do sistema cientíico. Não é uma forma de distinção sem consequências
práticas. Ainda que não seja tematizada caso a caso, ela opera direcionando a comunicação de variadas maneiras, seja por meio do reconhecimento
explícito da excelência cientíica, dos rankings de universidades e revistas
acadêmicas, nas cheias de laboratórios e institutos de pesquisa, seja por
meio de pressuposições implícitas que operam nos processos de seleção.14
Como se verá, é por meio dessa forma de distinção também que os cientistas investigados escolheram objetos, métodos e teorias.
Contextualização
Ao analisar o processo de acoplamento estrutural entre ciência/sistemas sociais na sociedade contemporânea, a literatura tem dado destaque às expectativas do sistema econômico.15 Ao perturbar os limites
A este respeito, ver Neves (2009).
Sobre seleção na prática cientíica, ver Knorr-Cetina (2009).
15
Nesta literatura destacam-se temas como a “Economia do conhecimento” (Powell; Snellmann,
2004), “Novo modo de produção de ciência” (Gibbons et al., 1994), “Hélice tripla da universidade, empresa e estado” (Etzkowitz, 2005).
13
14
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do sistema cientíico, o regime de produção biotecnológico na periferia
disponibiliza, como decorrência dos acoplamentos, resultados em forma
de mais irritação e, no caso contemporâneo da pesquisa biotecnológica,
estas irritações e resultados se relacionam profundamente com inovação
tecnológica. Inovação, quando incorporada como informação no sistema
cientíico, reproduz o subsistema sob o primado do código tecnológico do
funcionamento, com consequências para novas seleções e diferenciações.
Na ciclicidade de perturbações entre estes sistemas, os empreendimentos
econômicos que participam do contexto de produção cientíica e tecnológica, estando às voltas com um cenário econômico hipercompetitivo, buscam alternativas de diferenciação no processo de concorrência econômica
dinâmica. E não importa aqui se tais irmas são inovadoras ou imitadoras:
“elas procuram encontrar alternativas às técnicas que estão utilizando no
momento” (Nelson; Winter, 2005, p. 400).
O comportamento das irmas no contexto periférico dispõe, no regime de produção de conhecimento, uma série de preferências empresariais
estruturada pelos resultados do próprio contexto, portanto, estando vinculadas à política econômica e de inovação local, à legislação, ao estado da
pesquisa tecnocientíica. Arocena e Sutz (2005) tratam da frágil produção
de conhecimento, atividades de inovação informais, com resultados encapsulados, baixa demanda por conhecimento por parte das empresas,
fraca cooperação entre elas, incipiente cooperação internacional.
A localização das irmas biotecnológicas e a observação delas sobre sua
colocação no mercado internacional, baixa competitividade, fazem com
que suas preferências internas se direcionem para as potencialidades lucrativas que a observação assentada na diferenciação centro/periferia apresenta. As irmas periféricas, segundo Arocena e Sutz (2005), não são o alvo
preferencial de compras tecnológicas governamentais na América Latina;
em sua maioria, elas são sempre feitas fora, as soluções são importadas.
Assim sendo, por que as empresas privadas deveriam coniar nas tecnologias locais? Deste modo, tecnologias locais só alcançam aqueles nichos de
mercado de vocação periférica e assim propiciam expectativas que tendem
a reproduzir a diferenciação centro/periferia na ciclicidade do regime de
produção de conhecimento.
A complexidade das possibilidades de pesquisa e desenvolvimento é
reduzida, deste modo, por meio do critério centro/periferia, com as irmas,
os laboratórios, as universidades, selecionando e desenvolvendo conheci142
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mento e tecnologia com impacto fundamentalmente local. Este é o caso,
por exemplo, de temas como “doenças negligenciadas” e “agricultura
tropical” – preferências históricas de tal regime de produção de conhecimento –, casos que possuem modelos de relativo sucesso no contexto
periférico, ainda que com baixo impacto na ciência e tecnologia centrais,
reiro-me especiicamente à Embrapa e à Fiocruz. Tais preferências ilustram o que alguns autores (Bound, 2008; Neves, 2009) vêm chamando
de modelo bioambiental de produção de conhecimento. As empresas
de desenvolvimento do bionegócio no Brasil ilustram este elemento de
busca de uma vantagem competitiva, da diferença do centro, como é o
caso da empresa Biominas, que em seu site airma:
Um diferencial competitivo do Brasil para o desenvolvimento da biotecnologia é sua notável biodiversidade. Considerada a diversidade
genética e bioquímica presente neste patrimônio natural, depara-se
com um universo de oportunidades para a inovação biotecnológica.
Além disso, a distribuição regional diferenciada desta biodiversidade
cria oportunidades para um desenvolvimento econômico que valoriza
as especiicidades locais, capaz de estruturar arranjos produtivos sustentáveis baseados em aplicações biotecnológicas.
Esta forma de produção e utilização de conhecimento e tecnologia se
diferencia, portanto, do contexto central, o que facilita a sobrevivência das
irmas periféricas no mercado internacional. Isso é o resultado da ciclicidade dos acoplamentos estruturais, e, nesta dinâmica, a busca de conhecimento por parte das irmas disponibilizará, no contexto, suas preferências
estruturadas pela diferença centro/periferia, o que condiciona as políticas
cientíicas e tecnológicas e, inalmente, o sistema de pesquisa biotecnológico. Por sua vez, a pesquisa biotecnológica incorporará ou negará o
resultado desta ciclicidade em seus próprios termos, na oferta (escassa) de
conhecimento e tecnologia.
As irmas periféricas, assim, não absorvem tais perturbações, não se
sentem irritadas por aquilo que lhes é ofertado desde o regime de produção periférico; em outras palavras, mostram-se ignorantes ao contexto local.
“Bioambiental” é o limite temático do sistema de biotecnologia periférico,
e, no interior deste contorno, as possibilidades de acordos com empresas e
governos são maiores. Desta maneira, “bioambiental”, como diferenciação
periférica, pode ser entendido como um elemento no regime que reduz a
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complexidade dos encaminhamentos possíveis nos acoplamentos dos sistemas. No entanto, limita potencialidades de circulação de conhecimento e
tecnologia locais. Como salienta um dos pesquisadores entrevistados (E6):
Nossa expectativa é que, ao trabalhar com doenças causadas por parasitas Schistossoma manssoni, que ocorrem em regiões com baixo nível de
desenvolvimento, em regiões tropicais e subtropicais, trabalhando com
doenças negligenciadas pela indústria farmacêutica, pelo mercado farmacêutico, e isso é uma coisa que motiva bastante, é uma possibilidade
de manter um nível de competição com grupos localizados fora do
país, principalmente em termos farmacêuticos. Doenças como diabetes, Alzheimer, obesidade, doenças coronárias, tudo isso é pesquisado
intensamente pela indústria farmacêutica, então é muito difícil você
entrar numa competição dessas. Por outro lado, pesquisando parasitas
negligenciados você tem um pouco mais de tempo e você consegue
fazer a sua pesquisa sem ser atropelado. Mesmo assim, desenvolver um
medicamento é uma coisa que para nós demora, é uma pesquisa para
trinta anos, vinte anos, a indústria farmacêutica com toda a tecnologia
e recursos, dura doze anos, dez anos.
As mesmas bases que promovem a diferenciação provocam a “desdiferenciação” erigida no critério de observação centro/periferia. O que não
se coloca relacionado a temas vinculados ao código centro/periferia, como
“doenças negligenciadas”, corre o risco da negação e da impossibilidade de
reprodução e circulação, desde um ponto de vista econômico, político e
cientíico-organizacional. Neste último caso, a desaprovação pelos pares,
as consequências imprevistas e mesmo os “resultados insatisfatórios” aparecem como condição da escolha do lado errado do código centro/periferia. Deste modo, toda nova expectativa criada sofre rechaço do sistema das
mais variadas maneiras, desde o rechaço pela não publicação internacional
em revistas centrais, dado que centro/periferia estruturam também níveis
de coniança diferentes, até o rechaço dos pares perifericamente localizados, como a seguir.
Nós temos critério aqui dentro, mas tem laboratório que não tem critério nenhum. O laboratório de uma professora aqui pegou dinheiro
público, e o que ela quis fazer? Ela quis fazer pesquisa com câncer de
seio [sic]. Genética de câncer de mama é a coisa mais pesquisada no
mundo, em geral hoje você tem que estar ao lado de um hospital, ao
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lado de uma equipe médica, tudo ajeitado para que a coisa funcione.
Ela não pensou nesses detalhes, foi um fracasso. É algo bonito, fundamentado teoricamente... (E20).
Portanto, como critério de diferenciação, centro/periferia estruturará
comunicações no interior do regime de produção periférico. Ressalve-se,
porém, que este critério é tangencial aos sistemas do regime de produção.
Dado o fechamento operacional, cada sistema vai, à sua maneira, observar
tal diferenciação que perpassa todo o regime de produção de conhecimento. A economia pensará nas vantagens competitivas, a política cientíica
e tecnológica direcionará seus programas de incentivo para tais temáticas
– como, recentemente, pode-se notar o Fundo Setorial CT-Biotec e CT-Agro, e a Política de Biotecnologia. Neste regime dinâmico, a ciência
direciona suas preferências temáticas, programáticas, investigativas para
densiicar o acoplamento com os outros sistemas.
A dinâmica evolutiva promove uma ciclicidade de perturbações que
cria contextos emergentes de pesquisa. Deste modo, a pesquisa tecnocientíica biotecnológica evolui para mecanismos de variação e seleção, os
quais estão localizados naquele espectro estruturado de expectativas cuja
heterorreferência é a diferenciação do regime de produção de conhecimento entre centro/periferia. Ao ultrapassar a fronteira de demarcação centro/
periferia, corre-se o risco de negação não só pelos membros da organização
cientíica, mas pelos membros envolvidos em grupos de resolução de problemas, localizados em regimes de produção de conhecimento periféricos.
Deste modo, embora não haja temas “credenciados”, “apropriados”,
“legítimos” na investigação, pelo menos explicitamente, não se pode ignorar
que, em função da diferenciação centro/periferia no regime de produção de
conhecimento periférico, cria-se uma inlação temática que, em casos extremos, pode transformar-se em “febre” ou “moda”, que é o sintoma sistêmico
das exigências cada vez maiores do entorno, cujas consequências podem
ser a desdiferenciação em função do abandono de linhas, temas e projetos
de pesquisa, não enquadrados nas expectativas criadas. Por isso, de algum
modo, pode-se abdicar, ad nauseam, de uma posição central no sistema global de ciência e tecnologia, com temáticas globais, tecnologias globais, conhecimentos globais. Como expõe a entrevista, em continuidade, todas as
modas ressaltadas referem-se ao modelo periférico bioambiental.
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A gente passou por época em que se você não tivesse a palavra sustentabilidade no projeto icava difícil ser aprovado. Agora a gente está
em uma fase de agricultura familiar. Infelizmente, no inanciamento
da pesquisa existe muito modismo. Cria-se assim o que parece ser o
foco daquele momento, e se você não conseguir encaixar sua pesquisa
naquilo ica muito difícil de conseguir recurso. E os biocombustíveis
parecem que vão ser o tema, provavelmente. (E2).
Esta canalização da complexidade societal com criação de complexidade sistêmica é um processo ininterrupto de variação, seleção e restabilização da comunicação, portanto, é neste processo que reside a evolução
sistêmica. Em função disto, temas “quentes” emergem e eles só podem ser
compreendidos em função dos acoplamentos estruturais que cada regime
de produção de conhecimento estabelece. Estas diferenciações temáticas
estão associadas ao regime de produção de conhecimento, historicamente
construído, cuja posição no sistema global de ciência e tecnologia é auto-observado como periférico. O trecho abaixo ilustra a posição do Brasil no
que tange a doenças negligenciadas. O entrevistado, pesquisador da Fiocruz, articula o potencial de pesquisa nacional com o mercado potencial
dessas doenças no mundo.
O Brasil tem uma posição singular: é um país em desenvolvimento
que é afetado tanto pelas doenças de países pobres como pelas de países
ricos. A indústria tem a oportunidade de lucrar com medicamentos
feitos para os que podem pagar, como na Europa e nos Estados Unidos. Mas também precisamos de fármacos para a população que sofre
com doenças tropicais e infecciosas. Só que, ao contrário dos países
africanos e asiáticos, que também têm essas doenças, temos capacidade
técnica para desenvolvimento desses fármacos. O fornecimento para
os outros países que necessitam poderia impulsionar nossa indústria e
resolver os problemas da população. Na verdade, vemos uma oportunidade única para o país nessa área. (E18, 2007).
A questão não é somente de objetividade do contexto periférico ou
não, se de fato estas posições são reais ou ideologicamente construídas. Porém, mais do que isso, deve-se ressaltar que centro/periferia é um critério
de observação, corriqueiramente adotado pelos grupos de pesquisa para
se referir a sua posição no sistema global de ciência e tecnologia. É exatamente este critério de observação que estrutura a objetividade cotidiana
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das pesquisas e que condiciona as expectativas em torno das seleções que,
costumeiramente, são feitas. Entre aqueles grupos investigados que trabalham na pesquisa e no desenvolvimento de fármacos, todos tiveram uma
forte incidência da codiicação “doenças negligenciadas”, que é um tema
que, por sua vez, decorre da codiicação centro/periferia.
O cenário de pesquisa em doenças negligenciadas é uma forte canalização de esforços e criação de expectativas em decorrência das possibilidades ainda abertas no mercado global. É, pois, uma forma de se colocar em
um nicho distante dos blockbusters da indústria farmacêutica. Ademais,
constitui uma forma de canalizar a complexidade, reduzindo-a com um
critério constrangido pelo regime de produção de conhecimento periférico. Pode-se observar a canalização da produção cientíica periférica na fala
abaixo, ressaltando-se a relação ciência e política.
Abriu um edital de doenças negligenciadas, até onde eu sei não havia
isso antes. Tem leishmaniose, malária, lepra, tuberculose... estava entre
elas. Essas políticas são interessantes para investimento, direcionar o
dinheiro. Eu acho que o problema é que se pulveriza o recurso, e aí
entra um monte de coisa, se tivesse que dar retorno já teria dado, eu
gosto dessa canalização de recursos. Parece que essa política nova de
biotecnologia é acertada, eu acho que você não pode exigir que um
grupo de pesquisa produza alguma coisa em dois anos, porque atrasa
a liberação de recursos, quase sempre se atrasa. Nós temos um projeto
milênio aprovado já faz um ano, foi liberado só um dinheirinho, então
em um projeto de dois anos você acaba não cumprindo aquilo, e isso
não é uma boa política de investimento. (E12).
A binarização da comunicação recairá nos eventos sistêmicos que se
processam no interior dos grupos de pesquisa. A binarização do regime de
produção de conhecimento em centro/periferia incide em todos os sistemas
do acoplamento, na pesquisa funciona como qualquer outro código de comunicação: reduz possibilidades de pesquisa, torna possível a comunicação
e, ao mesmo tempo, aumenta as chances de sucessos evolutivos na ciclicidade
dos acoplamentos entre sistema e entorno. Determinados códigos tornam a
comunicação mais provável por articular sentido no sistema. Estes códigos,
generalizados simbolicamente, ao fornecerem critérios para a auto-observação
e hetero-observação do entorno, constroem o sistema em um sentido restrito,
circunscrito aos seus limites temáticos e operacionais periféricos.
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Diferença
Tentou-se aqui apresentar e discutir procedimentos sistêmicos de produção contextual de conhecimento e tecnologia. Airmou-se que processos que ocorrem na prática da produção da ciência e tecnologia reforçam
e reproduzem a diferenciação centro/periferia no regime de produção de
conhecimento periférico. Buscou-se uma abordagem que observasse o
âmbito fenomenológico da prática cientíica, especiicamente as expectativas expressas em discursos por pesquisadores em biotecnologia.
Defendeu-se que a diferença centro/periferia se inscreve como valor e,
portanto, torna-se expectativa e prática. A reprodução de tal diferença tem
como consequência a atribuição de valor incremental, local, periférico à
produção cognitiva de determinados contextos do sistema da ciência e,
por outro lado, valor paradigmático, exemplar, a outros. Admitiu-se assim
um processo de endereçamento no sistema cientíico, produtor de diferenças entre teoria, métodos e produtos.
Identiicou-se alguns discursos a respeito da operação dessa forma binária de expectativa, como a busca de “vantagem competitiva”, para alcançar
diferença com o centro e, portanto, não concorrer com temas e agendas que
são considerados “monopolizados”. Desta forma, pode-se airmar que tais
diferenças importam também para resultados no âmbito do conhecimento,
embora este não tenha sido o interesse do trabalho. Se se aceita que a diferença centro/periferia é uma dimensão que incide nas expectativas e seleções
de cientistas, pode-se abrir perspectivas na agenda dos estudos sociais da
ciência e tecnologia, mas que faça jus a um dos seus pressupostos, qual seja
o de que conhecimento é resultante de um contexto.
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Fazer ciência na periferia:
internacionalizar é preciso?
1
Maíra Baumgarten
Introdução
O cenário da mundialização e inanceirização da economia se fez acompanhar de processos de globalização em diversos âmbitos, inclusive no da
cultura e da ciência e tecnologia. No Brasil, a internacionalização da ciência e tecnologia vem sendo vista nas universidades, instituições de gestão e
fomento à pesquisa e em diversas outras instâncias sociais como necessária
e até imprescindível para o desenvolvimento da ciência e do próprio país.
Entre os espaços privilegiados para a formação de redes de cientistas estão os periódicos acadêmicos. Quando analisamos a problemática
da produção e manutenção de periódicos em ciências sociais no Brasil,
percebemos que as condições sob as quais se desenvolvem as atividades
de edição nessa área estão subordinadas a diversos âmbitos que compreendem desde as instituições em que se produz a pesquisa – as condições
de infraestrutura que as mesmas oferecem e suas políticas –, passando por
instâncias nacionais, regionais e locais de formulação de políticas de avaliação, controle e inanciamento da pesquisa.
Esse capítulo é uma versão com foco modiicado, revisada e ampliada do artigo “Gestão de Periódicos Cientíicos em Ciências Sociais: uma experiência”, publicado na revista Pensata, v. 4, n.
2, de outubro de 2015. A pesquisa sobre periódicos cientíicos e divulgação de ciência está sendo
desenvolvida no âmbito do Observatório de Ciência, Tecnologia e Inovação Social, projeto do
LaDCIS/UFRGS e contou com apoio do CNPq e da Fapergs. Agradeço a Regina Vargas, editora
gerente da revista Sociologias, a revisão cuidadosa e as valiosas sugestões de conteúdo.
1
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As revistas cientíicas e de divulgação são instrumentos estratégicos
para a circulação dos conhecimentos produzidos nas instituições de pesquisa e, como tal, constituem-se em objeto de formulação de políticas e
de avaliação em âmbito internacional e nacional, por órgãos de gestão e
fomento à pesquisa, ao mesmo tempo em que desenvolvem políticas editoriais próprias para deinir objetivos e escopo das publicações.
Por outro lado, apesar de os periódicos cientíicos se constituírem em
importantes meios de circulação de conhecimentos e de formação de redes
de pesquisadores, as atividades editoriais não têm sido adequadamente
valorizadas nas instituições de pesquisa, e, de forma geral, os cientistas
sociais enfrentam inúmeros desaios para editar seus periódicos (Campos,
2014; Benchimol; Cerqueira; Papi, 2014; Baumgarten, 2015).
Questões como as políticas de inanciamento, os parâmetros de classiicação das revistas, a utilização de critérios bibliométricos externos e a
situação da infraestrutura institucional oferecida a editores e periódicos
são alguns dos temas centrais na discussão sobre periódicos no Brasil e
na América Latina. Ao mesmo tempo, algumas das exigências em termos
de internacionalização de periódicos, relacionadas com orientações das
agências de fomento e de bases de dados (parâmetros utilizados para a
classiicação das revistas, métricas usadas em sua avaliação) indicam a importância de empreender um amplo debate sobre o tema.
A importância de ampliar os processos de internacionalização daquilo
que produzimos no subcontinente e as diiculdades e possibilidades envolvidas neste processo estão entre as questões que vêm sendo debatidas em
distintos encontros que tratam da produção e circulação de conhecimentos em ciências sociais.2
Esse foi um dos principais temas do último Fórum de Editores da
Associação Latino-Americana de Sociologia (Alas), em 2013. Como resultado dos debates, voltamos para nossos países com a tarefa de buscar
soluções para essa necessidade que se está colocando para nossos periódicos, sem perder de vista que o público predominante (nas ciências sociais)
é nacional e latino-americano e que temos uma cultura e identidade que
IV Encontro de Editores de Ciências Sociais (SBS 2013), Fórum de Editores de Saúde Coletiva –
Carta de São Paulo (Abrasco, 2014) Fórum Internacional de Revistas Cientíicas (Anpocs, 2015),
V Encontro de Editores de Ciências Sociais (SBS 2015), Esocite (2015) entre outros.
2
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passa pela língua, assim como possuímos em nossos países problemas e
questões diferentes daqueles dos países europeus e da América do Norte.
Publicar em português e em espanhol é importante não só porque
nossos leitores entendem esses idiomas, mas também porque essas são as
nossas raízes culturais e linguísticas. É claro que publicar em um idioma
que tem alcance mundial (o inglês) permite levar a produção cientíica
latino-americana não só para Europa e América do Norte, como também
para África e Ásia, regiões que partilham algumas das especiicidades da
nossa região. Esse é um aspecto positivo desse tipo de internacionalização,
pois possibilita o diálogo sobre diferentes abordagens a problemas que se
assemelham e possibilita aos países do Norte um melhor entendimento
de nossas especiicidades.
Por outro lado, entre os principais problemas na tendência de internacionalização via padronização no idioma inglês estão: 1) o risco de aprofundar a elitização da ciência, pois a grande maioria de estudantes e mesmo de pesquisadores no Brasil e América Latina não domina esse idioma
e, portanto, terá diicultado o seu acesso ao conhecimento produzido e
difundido nessa língua; 2) o risco de aprofundar a dominação cultural pela
consolidação do idioma inglês como a “língua da ciência”. Isso aumenta o
risco da “assimilação” que descaracteriza e acaba com culturas e conhecimentos locais (epistemicídio). O Sul produz teoria a partir de sua própria
perspectiva e especiicidades, e a obrigatoriedade de vertê-la para o inglês
para que seja reconhecida internacionalmente desrespeita e discrimina as
culturas não anglo-saxônicas. A isso se poderia chamar “racismo cultural”.
O presente capítulo aborda esta problemática, buscando apontar alguns dos problemas do atual movimento de internacionalização da nossa
ciência focada em uma única língua – o inglês –, indicando alternativas
possíveis que apoiam a ampliação de nossas redes de conhecimentos sem
provocar a perda da identidade linguística e cultural e que promovem e
ampliam as relações Sul-Sul.
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Contextos de produção e circulação
de conhecimentos em ciências sociais
A edição não tem sido muito valorizada nas universidades brasileiras,
instituições em que as principais atividades são a docência e a pesquisa.
Até meados do século passado, os congressos, encontros e livros foram a
principal fonte de circulação do conhecimento. Em ciências sociais, especiicamente, os livros vêm sendo o principal meio de divulgação e circulação do que é produzido.
Durante a década de 1970, alguns poucos periódicos cumpriram o
importante papel de incentivar o debate teórico e político3 no Brasil, mas
foi somente a partir dos anos 1980 e 1990 que as atividades de divulgação
e disseminação do conhecimento produzido nas universidades passaram a
encontrar apoio em políticas especíicas nas agências, a partir da criação do
Ministério de Ciência e Tecnologia, do relativo fortalecimento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientíico e Tecnológico (CNPq) e da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
no Ministério da Educação. Nas instituições de pesquisa (universidades
e institutos de pesquisa), não obstante, essas atividades permaneceram
secundárias, e a iniciativa de seu desenvolvimento icou a cargo, principalmente, dos programas de pós-graduação e de algumas unidades das
instituições, tais como departamentos ou faculdades, de modo geral, sem
uma política institucional voltada especiicamente ao apoio da atividade
de divulgação e difusão do conhecimento produzido.
Os principais periódicos na área de ciências sociais são relativamente recentes: a revista Dados do Iuperj, uma das mais antigas, iniciou em
1966, mas está disponível digitalmente apenas a partir de 1996; a Revista
Brasileira de Ciências Sociais - RBCS (Anpocs) teve início em 1986; a revista Tempo Social (USP), em 1989; e Sociologias, que sucedeu os Cadernos
de Sociologia, na UFRGS, em 1998.4
A última década do século XX e as décadas iniciais do novo século
trouxeram mudanças importantes para a produção de ciência e tecnologia
Estudos Cebrap, Lua Nova, Cadernos de Saúde Pública entre outros. Nas décadas de 1970, 1980,
esses periódicos foram estratégicos para a manutenção de debates e trocas entre a coletividade de
cientistas sociais no Brasil.
4
Disponível em: <https://sites.google.com/site/sociologiasemrevista/revistas-a1>. Acesso em: 20 set. 2015.
3
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no país com o surgimento de novos programas de pós-graduação (PPG) e
mudanças nos programas já existentes, que passaram, a partir da avaliação
da Capes, a desenvolver uma lógica distinta e uma série de atividades antes
inexistentes ou consideradas de menor importância. Esse processo levou
a um incremento da produção e, também, da divulgação de pesquisas por
meio de periódicos cientíicos.
Ao analisar alguns paradoxos existentes no atual cenário das revistas cientíicas no Brasil, Breno Bringel (2015) chama atenção para o
fato de que na área de ciências sociais, ao mesmo tempo em que há em
curso um processo de proissionalização e institucionalização, com um
maior grau de especialização e de aprofundamento no conhecimento
de vários temas, há também uma menor integração intelectual, o que
se percebe pela segmentação das agendas de pesquisa e diiculdade de
estabelecer debates e interações sistemáticas em nossas revistas. Por
outro lado, a crescente relevância dos periódicos, como meios estratégicos de interação e formação de redes, não é acompanhada de um
crescimento correspondente da importância conferida aos mesmos em
termos de políticas institucionais para o setor e de valorização das atividades editoriais (Baumgarten, 2015; Bringel, 2015).
Se, de forma geral, as instituições não têm políticas editoriais abrangentes que apoiem e viabilizem a edição de periódicos, em alguns casos
há programas de apoio à edição de periódicos (a Universidade Federal do
Rio Grande do Sul é um exemplo) que dão algum suporte para a produção das revistas através da destinação de bolsista, impressão, editoração e
treinamentos nas plataformas de acesso aberto.5 Mas permanece a falta de
valorização das atividades de edição e gestão de periódicos no que se refere
a avaliação institucional, cargos, gratiicações, infraestrutura.
A carência de pessoal técnico e de espaço nas universidades relete-se
nas revistas que, muitas vezes, não têm funcionários permanentes, apenas
bolsistas, e têm espaço físico inadequado às suas atividades. Dessa forma,
o que vem possibilitando a existência e a permanência de alguns periódicos importantes para sua área e com uma produção signiicativa são as
políticas de fomento das agências nacionais como CNPq e Capes, algumas
Disponível em: <http://www.ufrgs.br/propesq/programas/apoio-a-edicacao-de-periodicos/
apresentacao-do-paep>. Acesso em: 20 set. 2015.
5
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agências estaduais (FAPs e fundos estaduais de ciência e tecnologia) e projetos como o da SciELO, que disponibiliza periódicos cientíicos.6
A Scientiic Electronic Library Online ( SciELO) é resultado de um
projeto de pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (Fapesp) em parceria com o Centro Latino-Americano e do Caribe
de Informação em Ciências da Saúde (Bireme). Tem por objetivo o desenvolvimento de uma metodologia comum para preparação, armazenamento, disseminação e avaliação da produção cientíica em formato eletrônico
e consiste na implantação de uma biblioteca eletrônica que abrange uma
coleção selecionada de periódicos cientíicos brasileiros. A SciELO, que a
partir de 2002 passou a contar com o apoio do CNPq, vem desempenhando um importante papel na qualiicação dos periódicos brasileiros e tem
encontrado adeptos em diversos países ibero-americanos, transformando-se em ator importante no cenário da divulgação da produção cientíica no
Brasil e na América Latina.
Com o avanço das atividades do projeto, novos títulos de periódicos
foram sendo incorporados à coleção da biblioteca no Brasil.7 Há uma política para a admissão e a permanência de periódicos cientíicos na Coleção
SciELO Brasil que prevê uma série de critérios e procedimentos de avaliação dos periódicos candidatos a participarem na biblioteca eletrônica.8
Foi também formada a Rede SciELO, que abrange diversos países
ibero-americanos e que vem contribuindo para o progresso da investigação cientíica por meio do melhoramento da comunicação dos resultados de pesquisa em periódicos nacionais de qualidade. Seu objetivo é:
“[...]aumentar de forma sustentável a visibilidade, a qualidade, o uso e
o impacto dos periódicos que indexa. Portanto, contribui para o desenvolvimento das capacidades, infraestruturas nacionais de informação e
comunicação cientíica [...]”9 nos países em que atua. A abrangência da
rede com suas distintas coleções já desenvolvidas e em desenvolvimento
está descrita na Figura 1. A SciELO implantou coleções de periódicos
Disponível em: <http://www.cnpq.br/web/guest/sobre2>. Acesso em: 20 set. 2015.
Disponível em: <http://www.scielo.br/?lng=pt>. Acesso em: 20 set. 2015.
8
Disponível em:<http://www.scielo.br/avaliacao/20141003NovosCriterios_SciELO_Brasil.pdf>.
Acesso em: 20 set. 2015.
9
Agenda de discussão sobre o desenvolvimento futuro da Rede SciELO. SciELO em Perspectiva. Disponível em: <http://blog.scielo.org/blog/2013/08/19/agenda-de-discussao-sobre-o-desenvolvimento-futuro-da-rede-scielo/>. Acesso em: 10 nov. 2015.
6
7
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em onze países ibero-americanos, além das coleções especíicas de Saúde
Pública e a Social Sciences English Edition. Estão em desenvolvimento as
coleções Bolívia, Paraguai, Peru e Uruguai.
Figura 1 – Rede SciELO
Fonte: Blog SciELO
A Coleção SciELO Social Sciences English Edition foi originalmente concebida para aumentar a visibilidade de nossos periódicos vertendo
para o inglês alguns artigos selecionados por periódico, que compunham
um número anual em inglês de cada revista pertencente à coleção. Essa
coleção foi descontinuada por falta de apoio e inanciamento, o que é,
no mínimo, estranho quando se considera o forte movimento em favor
da internacionalização das agências (CNPq e Capes) e a preferência pelo
idioma inglês.
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Por outro lado, em 2014, a CAPES chamou os editores de periódicos
para um encontro e anunciou um projeto de internacionalização de algumas
das revistas brasileiras, apoiando aquelas consideradas de padrão internacional para que passem a ser editadas por grupos editoriais internacionais.10
O encontro contou com a presença de algumas dessas editoras, indicando
claramente a disposição da Capes em utilizar os critérios e mecanismos de
mercado em sua política de internacionalização, em direção contrária daquela que se esperaria de uma instituição pública (Bringel, 2015).
Como veremos adiante, apesar da importância da SciELO e de suas
contribuições para a qualiicação dos processos editoriais e visibilidade dos
nossos periódicos, eventualmente suas exigências e demandas sobrecarregam os processos de gestão das revistas. Não obstante as muitas diiculdades
para a edição de periódicos, eles têm desempenhado um papel cada vez mais
estratégico na circulação do conhecimento e na formação de redes nacionais
e internacionais. São também muito importantes para os programas de pós-graduação, ajudando a mostrar e qualiicar sua produção.
As revistas, assim como os programas, são avaliadas e hierarquizadas
pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A Capes criou um complexo sistema de avaliação dos PPGs, com plataformas (atualmente, Sucupira) para a inserção de dados que após serão
utilizados pela própria coletividade cientíica (pesquisadores indicados por
PPGs e instituições e escolhidos por um coordenador de área) para julgar a
qualidade dos programas. Como auxiliar desse sistema, a agência criou um
aplicativo para avaliação dos periódicos utilizados pelos programas de pós-graduação: o Qualis Periódicos e, recentemente, o Qualis Livros.
A avaliação e a classiicação dos PPGs cumpriram o papel de qualiicar os programas, criar instrumentos para acompanhar a produção e para
incentivá-la. Não obstante, trouxeram junto consigo algo que já estava
ocorrendo nos países centrais: uma ênfase crescente no produtivismo, incentivado pelos processos avaliativos e pela lógica desses processos que
(historicamente), no Brasil, contém uma aparente contradição: um embasamento utilitarista para o modelo de gestão do setor, que incorpora
Ver notícia “Capes anuncia projeto de internacionalização das revistas brasileiras” publicada pela
Folha de S. Paulo, disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2014/10/1541286-capes-anuncia-projeto-de-internacionalizacaode-revistas-cientiicas-brasileiras.shtml>. É importante
considerar que esses grupos não trabalham com política de acesso aberto, como SciELO.
10
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o discurso da inovação (econômica) e da relação necessária com o setor
produtivo, ao lado da institucionalização da prática cientíica segundo as
motivações internas dos diversos campos do conhecimento, atendendo,
de forma preferencial, a uma demanda espontânea da coletividade acadêmica, sobre a qual apenas se aplicam critérios de mérito técnico e cientíico, com base na ideia de autonomia da ciência e de excelência.11
Uma forte dominância, nas agências de fomento e avaliação, da perspectiva das áreas de ciências exatas e biociências, cuja produção tem características mais internacionais (em termos de temática e público), levou
à adoção de padrões internacionais de qualidade “pasteurizados”. Esses
indicadores não foram desenvolvidos no país e sim importados dos países
centrais, em que os contextos são diferentes (tanto em termos de desenvolvimento do setor de C&T e de infraestrutura, quanto de cultura). Também não foi levado em conta o fato de que várias dessas métricas já vêm
sendo reavaliadas em seus países de origem.
Ao mesmo tempo, não foram questionados os conceitos de excelência
e qualidade empregados. Tais conceitos são utilizados sem um maior conhecimento sobre sua origem, sobre o referencial teórico a partir do qual
se constituem e sobre quem e por que os deine como tal. O que é qualidade e quais são os parâmetros para medi-la? Existe qualidade em abstrato?
Excelência para quê e para quem?12
Além do mais, há uma grande diferença entre áreas: exatas e biociências têm características muito diferentes das humanidades. Como
padronizar? É possível e desejável? A Capes tem critérios construídos
por áreas, entretanto, há uma tendência a privilegiar alguns critérios a
partir da hegemonia (histórica) das áreas de ciências exatas e biomédicas.
Exemplos são o fator de impacto e a adoção do inglês como a língua
privilegiada da internacionalização.
A visão mertoniana da ciência como autônoma e regida por uma dinâmica própria, independente da sociedade em que se desenvolve, e dos cientistas como um grupo social cujo objetivo é
a busca desinteressada de novos conhecimentos, está na raiz do conceito de excelência que vem
sendo empregado no Brasil, orientando, também as propostas de avaliação em C&T (ver a respeito Baumgarten, 2004b).
12
Ver a esse respeito Baumgarten, 2004a.
11
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A forte pressão para promover a internacionalização (entendida basicamente como publicar em periódicos estrangeiros e em inglês) que a
Capes vem imprimindo aos programas de pós-graduação tem impactos
diretos nos programas da área de ciências sociais, cujos integrantes buscam cada vez mais publicar em periódicos estrangeiros, apesar de suas
temáticas e questões serem, de forma geral, nacionais, locais, relacionadas com contextos do Sul. Os periódicos publicados por esses programas,
por sua vez, vêm sendo forçados paulatinamente a publicar em inglês (e
não em português ou espanhol). Junto a isso é exigida a sua presença em
indexadores e bases de dados ligadas aos grandes grupos editoriais como
Elsevier ao mesmo tempo em que se desconsideram bases importantes
para periódicos das áreas de humanidades, como Redalyc,13 uma rede de
revistas da América Latina, do Caribe, de Portugal e da Espanha, o que
traz inúmeros problemas como veremos na seção a seguir.
Os periódicos no Brasil: políticas, avaliação, gestão
Algumas questões importantes a considerar para reletir sobre os periódicos são: que tipos de temas e problemas orientam as pesquisas em
ciências sociais? Qual a relação com o que pesquisamos e nossa cultura e
língua? Que público desejamos atingir? Nossos temas são predominantemente internacionais ou locais e regionais?
Uma longa experiência como editora de periódico cientíico na área
de humanidades e o trabalho de pesquisa nos temas políticas de C&T,
indicadores de C&T e divulgação de C&T permitem visualizar alguns
dos principais entraves e problemas no campo da edição de periódicos no
Brasil e também o lugar desses na produção cientíica brasileira.
Nos últimos vinte anos, a atividade editorial no país sofreu grandes
mudanças com o advento do acesso aberto e o desenvolvimento de instrumentos como a Plataforma SEER, que possibilitou a disponibilização
online dos periódicos e trouxe consigo programas de gerenciamento dos
mesmos. Também a própria SciELO desenvolveu seu programa de gerenciamento, instrumentos que dão suporte e apoio ao editor, mas que
precisam ser aprendidos e para os quais editores, bolsistas e funcionários
precisam ser treinados.
13
Para mais informações ver http://www.redalyc.org/ .
160
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Por outro lado, não há (ainda) políticas de valorização das atividades
editoriais e de reconhecimento das mesmas nas rotinas de avaliação
institucional (no programa, na unidade ou na universidade), e apenas
recentemente esse reconhecimento passou a existir (de forma ainda
tímida) nas agências de fomento (através das abas de participação em
comitês editoriais e de edição no CV Lattes).
Dessa forma, a atividade editorial – estratégica no sentido da circulação
dos conhecimentos produzidos e do apoio à formação de redes de pesquisadores e ampliação do âmbito de divulgação do que é produzido nas universidades e instituições de pesquisa – vem sendo uma atividade a mais para
o pesquisador (que o sobrecarrega e para a qual há pouco reconhecimento
institucional), o qual precisa lidar com processos extremamente complexos
de gestão e edição com um mínimo de apoio e, muitas vezes, com recursos
escassos. Os editores também têm a seu cargo (juntamente com a Comissão
Editorial) a formulação da política do periódico e de suas rotinas.
A formulação da política dos periódicos vem sendo crescentemente
orientada por normas e critérios advindos das agências de fomento e da
SciELO (mesmo aqueles que não recebem recursos ou que não estão na base
SciELO os seguem, porque querem participar no futuro). Essa forte ingerência pode levar a uma padronização dos nossos periódicos, ameaçando a
diversidade e variedade que os caracteriza. Um claro exemplo são as novas
regras da SciELO que colocam, para 2016, a obrigatoriedade de que os periódicos (de ciências sociais) participantes da base publiquem, pelo menos,
30 % de seus artigos em inglês. Além da uniformização, essa exigência
pode levar à exclusão de boa parte de nossos alunos (que não têm um bom
domínio do inglês). Por outro lado, isso exclui (ou restringe) a publicação
de artigos de países com outras línguas (Espanha, Portugal, França, parte do
Canadá, parte da África). Há ainda a considerar o fato de que muitos dos
colaboradores estrangeiros (notadamente os anglo-saxões) não querem ter
seu paper publicado em inglês, pois pretendem publicá-lo em seus países.
Além dos processos avaliativos internos (programa de apoio aos periódicos, CNPq, Capes, SciELO), há ainda os processos avaliativos dos
indexadores internacionais (Scopus, SocINDEX) e repositórios como Redalyc (Red de Revistas cientíicas de América Latina y el Caribe, España y
Portugal) que apresentam exigências diversas para a inclusão dos periódicos em suas bases de dados. A adequação do periódico a todos esses pro-
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cessos avaliativos é algo bastante difícil e demanda tempo e conhecimento
das diferentes instâncias, critérios e procedimentos.
Um ator importante no cenário internacional são as grandes editoras
como Sage e Elsevier que dominam boa parte do mercado editorial de
periódicos. As editoras são empresas que se regem pela lógica comercial
e mercantil (apesar de seu discurso de proissionalização e divulgação da
ciência), cobrando os acessos aos artigos e também, eventualmente, dos
próprios autores (taxas de processamento de artigos) que submetem textos. O interesse comercial encoberto por uma ideologia de proissionalização, visibilidade e excelência universal vem impondo critérios e visões que
reforçam a estrutura desigual de produção e circulação de conhecimentos,
mantendo os países periféricos dependentes com relação aos centrais no
que se refere à ciência e à tecnologia (Bringel, 2015; Beigel, 2013). Um
episódio recente de tentativa de desqualiicação da SciELO14 demonstra o
tipo de estratégia e de perspectiva veiculadas pelos críticos do acesso aberto
e de estruturas alternativas às grandes editoras.
Internamente, o Qualis Periódicos, que primeiramente hierarquizava
as revistas em nacionais e internacionais, mudou sua forma de avaliação,
estabelecendo um conjunto de níveis: A1 e A2; B1 a B5 e C para classiicar
as revistas. Os critérios são deinidos dentro das áreas e também a classiicação pode ser diferente de área para área, justamente pela diferenciação
dos critérios. Assim, uma mesma revista pode ser classiicada como A1
em sua área e como B5 em outra subárea ou área, o que é, no mínimo,
estranho e demonstra como a qualidade (e excelência) pode ter diferentes
padrões a partir de distintas perspectivas.
No caso dos periódicos que estão bem avaliados no Qualis (extratos
A1 e A2), há o agravante da grande demanda para publicação. Esta acaba
por criar um enorme excesso de artigos submetidos e diiculdade para conseguir avaliadores disponíveis, aumentando o tempo entre o recebimento
e a publicação do artigo.
Um dos mais signiicativos problemas enfrentados pelos periódicos
nos parece ser a proissionalização das equipes editoriais. As atividades de
gestão das operações cotidianas não deveriam icar em mãos de bolsistas
(que trocam a toda hora), ou de estagiários ou mesmo de funcionários das
instituições de pesquisa sem experiência na área editorial, pois são ativida14
Ver artigo de Jefrey Beall “Is SciELO a publication favela?”, disponível em: <http://peloscielo.org>.
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des complexas que exigem conhecimento mínimo das normas e dos luxos
que orientam o processo, bom manejo do português e preferencialmente
conhecimento de outros idiomas, contatos cotidianos com pesquisadores,
consultores, responsabilidade, conidencialidade e qualiicação em gestão.
Os editores são também professores, pesquisadores e não têm como assumir o trabalho de gestão executiva, que envolve conhecimento aprofundado dos sistemas de gerenciamento editorial. Por outro lado, a própria
atividade de coordenação editorial já é uma atividade bastante absorvente.
Atualmente os periódicos inanciados pelo CNPq vêm enfrentando
outro sério problema relacionado ao repasse dos recursos: pela primeira
vez, desde que existe o Programa de Apoio à Edição de Periódicos do
CNPq (e depois Capes), o recurso destinado foi interrompido. A metade
do montante foi utilizada, e, sem qualquer aviso, o restante do recurso não
foi repassado aos editores responsáveis por cada projeto editorial. Assim
sendo, algumas atividades essenciais para a manutenção da periodicidade
da revista não puderam ser efetuadas nos prazos previstos, dentre elas,
serviços contratados de terceiros, tais como traduções de artigos (para
atender aos critérios de internacionalização) e marcação de arquivos em
formato XML (exigência da SciELO para a manutenção dos periódicos na
base). Tais atrasos também podem comprometer a própria pontualidade
na periodicidade das revistas, especialmente quando estas se mantêm basicamente com o apoio dessas agências. O problema ica mais sério, porque
a crise de inanciamento é geral, e as universidades e programas de pós-graduação também não estão recebendo os repasses ou os receberam com
cortes de 75 % a 85 %, o que diiculta o apoio dos mesmos aos periódicos.
Se essa situação se mantiver, o esforço despendido até agora para a
criação, manutenção e melhoria dos veículos de circulação de conhecimentos na área de ciências sociais no Brasil se perderá, pois as revistas
terão problemas para manter a periodicidade e credibilidade, enfrentarão
diiculdades com seus fornecedores e correrão o risco de serem excluídas
da SciELO e dos indexadores e repositórios internacionais.
Esse conjunto de problemas vem sendo debatido pelos editores da
área de ciências sociais em encontros que ocorrem em diferentes fóruns,
como a Reunião Anual da Anpocs e o Congresso Brasileiro de Sociologia,
que tem entre suas atividades o Encontro de Editores em Ciências Sociais,
que já está em sua quinta edição. Entre as principais questões discutidas
nos encontros sobre edição de livros e periódicos no Brasil – sua produção
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e circulação – estão as políticas nacionais de gestão e de fomento à edição
de periódicos, os processos avaliativos a que esses se encontram submetidos e os movimentos no sentido de ampliar os processos de internacionalização do que é produzido no país, bem como as diiculdades e possibilidades envolvidas nesse processo (Sociedade Brasileira de Sociologia, 2013).
A análise do relatório do IV Fórum de Editores de Ciências Sociais
aponta diversos problemas no âmbito da edição de periódicos na área de
ciências sociais, entre eles: falta de proissionalização das equipes editoriais,
responsável, em alguns casos, pela descontinuidade da produção de revistas
e pela grande diiculdade de criar novos veículos de divulgação na área de
humanidades; diiculdades com relação à avaliação de impacto com base em
citações como instrumento de medição de qualidade em ciências sociais;
produtivismo crescente, com resultados danosos para a qualidade da produção editorial; temas relativos à internacionalização e à cooperação Sul-Sul;
os parâmetros da SciELO para avaliação e manutenção das revistas na sua
base (Sociedade Brasileira de Sociologia, 2013). A essas questões, podemos
acrescentar a pressão das grandes editoras internacionais para entrar no país
e abrir para si o mercado local de edição de periódicos.
Nos debates do V Fórum de Editores de Ciências Sociais (Sociedade
Brasileira de Sociologia, 2015) essa problemática se manteve e foi acrescida
de novas questões, como a avaliação de impacto com base em citações.
Analisou-se o baixíssimo índice de citações de trabalhos publicados em
periódicos nacionais, na área das ciências sociais (em termos internacionais), resultante de limitações relacionadas à língua e aos temas e questões
de interesse (ou falta de interesse) nos países centrais, nem sempre estratégicos para os países do Sul. Apontou-se a necessidade de promover um
debate sobre a questão, com vistas a problematizar seu uso como instrumento de medição de qualidade e a buscar alternativas.
Outro problema importante que voltou a ser colocado foi o da internacionalização da produção brasileira, debatendo-se as relações centro-periferia e produção cientíica, a questão da dependência acadêmica,
das temáticas locais versus público internacional. A identidade do debate
nacional e a língua também foram abordados. Uma das recomendações foi
estabelecer o eixo Sul-Sul e a América Latina como instâncias estratégicas
da internacionalização.
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Internacionalizar é preciso (?)
A pergunta do título do artigo refere-se a uma dúvida sobre a necessidade (possibilidade e oportunidade) de internacionalizar a ciência brasileira, mas também remete a Fernando Pessoa e sua dúvida sobre a precisão
(exatidão) da vida. Ora, reletir sobre acontecimentos, instituições, estruturas, ações das pessoas – enim, investigar a sociedade, ou as relações de
poder, ou grupos populacionais especíicos ou culturas – é pensar sobre a
vida; e a atividade de pensar e representar a vida em sociedade não é uma
ciência exata (como de resto nem as chamadas ciências exatas o são).
É atividade que exige o contexto, mesmo quando se trata do global. É um pensar em línguas e culturas especíicas. Os problemas são
nacionais e locais, ainda que hoje o mundo seja global. Os públicos
também o são. O mundo ainda não tem uma única língua, e há uma
forte relação entre linguagem e cultura. As questões são globais no que se
refere à nossa relação com a natureza, à distribuição de riqueza, ao modo
de produção da vida dominante; mas são, ao mesmo tempo, locais em
termos de repercussões concretas.
Assim, quando pensamos sobre que tipo de internacionalização é boa
para nós, é também necessário reletir sobre nossa realidade concreta, nossa história, nossas potencialidades e nossos interesses.
O tema dos periódicos cientíicos e de divulgação em ciências sociais
é crucial nos estudos que trabalham com a relação ciência, tecnologia e
sociedade (CTS), pois os periódicos desempenham um papel importante
na conformação de qual saber vai ser criado, que conhecimento vai ser
construído. Por outro lado, se não tivermos nossa própria relexão contextual sobre este papel, não teremos elementos para problematizar, junto
a agentes locais (CNPq, Capes, FAPs estaduais, as próprias coletividades
cientíicas locais e os coletivos em geral), os critérios que concedem «objetividade» a processos de medida de “qualidade” associada a publicações
em periódicos que são classiicados de acordo com critérios cuja história,
em geral, desconhecemos e nunca paramos para avaliar.
Um dos consensos a que chegamos no IV Fórum de Editores de
Ciências Sociais foi o de que a qualidade dos periódicos não pode ser
separada de seu conteúdo e de seus processos de revisão. Uma grande
pesquisa pode ser publicada em qualquer lugar e em qualquer idioma.
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Nossos periódicos são vários, heterogêneos e distintos. Alguns são direcionados para um público leitor amplo, geral e internacional; outros
são mais especializados em seu conteúdo e voltados para o público especializado. Seu escopo e público leitor não dizem nada sobre a qualidade
de seu conteúdo intelectual (Sociedade Brasileira de Sociologia, 2013).
Fazer circular o conhecimento em ciências sociais no Brasil e ajudar no
estabelecimento de redes de pesquisadores (internamente, na América Latina e apoiando a relação Sul-Sul) parece ser um bom objetivo para os nossos
periódicos, e, para tanto, é essencial que os processos avaliativos e classiicatórios levem em conta nossas características, necessidades e potencialidades.
A investigação e debate sobre as atividades de edição são estratégicos
no momento atual, dada a sua importância para o avanço das ciências
sociais, para a disseminação do conhecimento produzido em sociologia,
ciência política e antropologia, para a divulgação cientíica neste campo
e, principalmente, para a compreensão social acerca do atual momento
histórico de transição entre modos de produção social.
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Bens comuns, democracia e acesso
ao conhecimento na América Latina
e no Caribe
Silvia Lago Martínez
Introdução
O propósito deste capítulo é contribuir para o debate sobre o conhecimento
como bem comum e o acesso aberto à produção intelectual e cultural, especialmente no campo das ciências sociais e humanas. Esta polêmica tem sido
frequente na última década em toda a região latino-americana, envolvendo
atores governamentais, intelectuais, cientistas, educadores, estudantes, artistas, trabalhadores da cultura e a comunidade de maneira geral.
Compartilhamos a convicção de Albornoz (2010, p. 7) de que existe
atualmente, na América Latina, uma forte demanda pela aplicação de políticas em ciência, tecnologia e inovação que repercutam socialmente, conforme aumentam os esforços realizados nesta direção em cada país. Nesse
sentido, é importante destacar que os investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) na América Latina e Caribe (AL&C) chegaram a duplicar no período de 2002-2011, embora representem 3,2 % do total mundial
(Ricyt, 2013, p. 12). Ao mesmo tempo, segundo dados da mesma fonte,
entre os países latino-americanos e caribenhos, há uma grande concentração
desses investimentos. No ano de 2011, o Brasil representou 63 % dos investimentos da AL&C, o México, 18 % e a Argentina, 11 % – estes três países
sozinhos representando 92 % dos investimentos totais no bloco.
Da mesma forma, a quantidade de pesquisadores e tecnólogos cresceu
71 %, com o Brasil concentrando 53,5 %, Argentina, 18,4 %, México,
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17,4 % e Colômbia 3,0 %. Em 2010, registravam-se na AL&C 1,09 pesquisadores e tecnólogos para cada mil membros da população economicamente ativa (PEA); para os Estados Unidos e Canadá, esta relação foi de
9,06 e para os países da União Europeia, 6,18.
Aliada a esta expansão dos sistemas de ciência e tecnologia, surge
também uma crescente demanda social de políticas em C e T, cujos resultados introduzem mudanças sociais, maior informação, distribuição
e acesso à produção cientíica e à participação na gestão de políticas
públicas neste campo.
Uma das demandas está relacionada com a geração de políticas e ações
para o Acesso Aberto (AA) global não comercial, entendido como o acesso
livre e gratuito, através da internet, aos resultados de pesquisas em revistas cientíicas e acadêmicas, relatórios, teses, palestras, dados primários,
registros em áudio/vídeo de pesquisas, ao uso de repositórios digitais multidisciplinares e temáticos e bibliotecas digitais que relitam a produção de
uma instituição (Babini, 2011, p. 3).
A comunidade acadêmica latino-americana reconhece a necessidade
de desenvolver as políticas de AA, de tal forma que os resultados da pesquisa desenvolvida com verbas públicas sejam incorporados a repositórios
digitais acessíveis de forma aberta. Este movimento surge como reação
dos acadêmicos e da sociedade em seu conjunto ao aumento do controle
dos direitos autorais sobre trabalhos publicados, assim como às excessivas
imposições nas políticas de acesso e distribuição (Aguado López, 2013, p.
1-2). Entre outras limitações, como aponta Babini (2013, p. 3-4),
[...] las revistas cientíicas internacionales del circuito comercial cobran
por el acceso a sus contenidos y, en el caso que los autores soliciten que
sus artículos se ofrezcan en acceso abierto, entonces cambian el modelo de negocio y las editoriales cobran al autor – o a su institución – por
publicar en ellas.
Outra das razões da origem do movimento do acesso aberto na AL&C
está relacionada à invisibilidade da ciência produzida na região nos índices
internacionais e ao aproveitamento da internet e da web para desenvolver
alternativas de publicação em acesso aberto.
Por outro lado, mais de 75 % dos recursos para pesquisa e programas
de desenvolvimento na AL&C provêm do setor público (Organización de
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las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura (Unesco),
2010) e a maioria dos que se dedicam à pesquisa trabalham em universidade públicas. Na Argentina, isso pode ser constatado através do Ministério
da Ciência, Tecnologia e Inovação Produtiva, cujos indicadores apontam,
para 2011, que 49 % dos cargos ocupados por pessoas dedicadas a P&D
(pesquisadores, bolsistas, corpo técnico e de apoio) correspondem a universidades públicas e 35 % a organismos públicos (Ministerio de Ciencia,
Tecnología e Innovacíon Productiva – MINCyT, 2013, p. 59).
Todavia, paradoxalmente, a propriedade da informação, em evidente
contradição com o contexto tecnológico, é legalmente monopolista dentro do marco jurídico vigente. Embora as pesquisas sejam inanciadas direta e indiretamente pela sociedade, o controle da obra passa a ser privado
na maioria dos casos. Apesar de ser o Estado o maior produtor de conteúdos educativos, cientíicos e culturais, esta produção de relevante interesse
público pode não estar disponível.
O resultado disso é o aumento das tensões jurídicas e políticas entre
a apropriação e a liberação dos bens e obras intelectuais e as regulações de
direitos autorais e direitos de cópia, e as tecnologias digitais orientadas à
gestão desses direitos.
Por essa razão, e devido à crescente demanda social, os governos têm-se mostrado sensíveis à problemática, mediante algumas ações para permitir o acesso aberto à produção cientíica e tecnológica nacional criada a
partir de fundos governamentais.
Mobilização social pelo Acesso Aberto
A comunidade latino-americana inspira-se no movimento internacional por acesso aberto, que promoveu diversas declarações (Budapeste,
2002; Berlim, 2003; Bethesda, 2003), enquanto na região se reconhece
a Declaração de Salvador, de 2005, como a mais signiicativa. Esta última insta aos governos que coniram alta prioridade ao acesso aberto nas
políticas de desenvolvimento cientíico, incluindo a exigência de que a
investigação inanciada com fundos públicos esteja disponível de forma
aberta; que o custo da publicação seja considerado parte do custo da investigação; que os periódicos locais de AA, os repositórios e outras iniciativas
pertinentes sejam fortalecidos; que se promova a integração da informa171
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ção cientíica dos países em desenvolvimento no acervo do conhecimento
mundial (Declaración..., 2005).
No âmbito internacional, embora a promoção do acesso aberto pela
Comissão Europeia se dê através de iniciativas isoladas, diversos organismos nacionais dos estados membros da União Europeia e diversas instituições acadêmicas da Noruega, Islândia, Índia, Austrália, Indonésia, Japão e
Estados Unidos contam com políticas de acesso aberto.
Com relação aos periódicos cientíicos, os dados para a AL&C
apontam um aumento crescente de publicações de livre disponibilidade. O diretório regional de revistas Latindex cataloga 6.964 revistas,
das quais 3.002 são de acesso aberto, enquanto o Directory of Open
Access Journals (DOAJ) registra, para o ano de 2013, um total de
9.982 revistas de acesso aberto, das quais 17 % são de países da região. Quanto aos repositórios digitais, há 223 registrados no diretório
mundial de repositórios OpenDOAR (Babini, 2013, p. 3-4). Diversas iniciativas tornaram possível a expansão mencionada, tais como
os portais regionais de periódicos de acesso aberto Scielo, Redalyc e
os portais nacionais, especialmente do Brasil, Argentina e México, os
universitários, entre os quais se destacam a Unam, a USP e a Uchile, e
os repositórios temáticos como o desenvolvido por Clacso em ciências
sociais, além de outras iniciativas como Cybertesis, que reúne teses
digitais do Chile e de países da América do Norte e Europa.
Entre as ações da comunidade acadêmica, conta-se com a Semana
Internacional do Acesso Aberto, que se realiza há sete anos, enquanto na região ganha força a Jornada Virtual Acceso Abierto Latinoamérica, realizada
anualmente, desde 2010. Na Argentina, ela é organizada conjuntamente
pela representação argentina da Organização Pan-americana de Saúde e
Organização Mundial da Saúde (OPS-OMS), pelo Centro Argentino de
Información Cientíica Tecnológica del Consejo Nacional de Investigaciones Cientíicas y Técnicas (Conicet) e pela Biblioteca do MINCyT,
instituições às quais se somou, em 2013, a Red Federada de Repositorios
Institucionales de Publicaciones Cientíicas. Embora sejam instituições
com inanciamento estatal as que aportam os recursos para a realização da
jornada (como a plataforma virtual Blackboard), o êxito da mesma advém
da ampla participação da comunidade acadêmica e cientíica local.
Vale destacar também o papel desempenhado pelo movimento de bibliotecários que promove o AA em uma Lista Latino-Americana de Acesso
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Aberto e Repositórios. O grupo LLAAR conta com mais de 600 membros
no Facebook e cumpre um papel de difusão e de promoção do acesso
aberto. Membros dessas comunidades vêm se organizando e participando
de eventos regionais para mostrar e compartilhar resultados das iniciativas
desenvolvidas em países da região.
No entanto, apesar dos importantes avanços realizados, grande parte
da produção cientíica da região ainda não está disponível nos repositórios
digitais com livre acesso. Sobretudo aquela publicada em periódicos internacionais do circuito comercial, nos quais a oferta de conteúdos de AA é
mínima. Até o momento, o foco das intervenções do acesso aberto tem sido
principalmente a criação de repositórios de investigação para o depósito de
artigos de periódicos e a utilização de plataformas online para publicá-las.
Fischman (2013) distingue vários obstáculos que limitam a expansão em AA da produção de pesquisa nos países da AL&C. Por um lado,
uma parte importante da produção cientíica latino-americana é publicada fora da região, em periódicos que não são de acesso aberto, mas
sim comerciais. Por outro lado, os sistemas de promoção da pesquisa
costumam dar maiores “incentivos” à publicação em periódicos internacionais, com maior fator de impacto.
La tendencia es que a mayor Factor de Impacto, más difícil es el acceso
a esa publicación en términos de costos (muchas bibliotecas no pueden
pagar la subscripción), e idioma (mayoritariamente en inglés). Esto
implica que gran parte de la producción sobre temáticas relevantes
para la región, y que ha sido pagada con fondos públicos, no es accesible incluso dentro de la propia región. (Fischman, 2013, p. 3-4).
Por essas e outras razões, a intervenção estatal é fundamental nesta
questão. A pressão da comunidade tem sensibilizado os legisladores dos
respectivos países, de modo a produzirem-se diversos projetos, com resultados heterogêneos, os quais são revisados na seção a seguir.
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Ações pelo Acesso Aberto
O poder legislativo argentino sancionou, em 13 de novembro de
2013, a lei nº 26.899. Esta lei obriga as instituições do Sistema Nacional
de Ciência e Tecnologia que recebem inanciamento do Estado Nacional
a criarem repositórios digitais institucionais de acesso aberto e gratuito,
nos quais devem depositar a produção cientíica e tecnológica nacional.
Isso inclui trabalhos técnico-cientíicos, teses acadêmicas, artigos de periódicos, entre outros, que sejam resultado da realização de atividades de
pesquisa inanciadas com fundos públicos, sejam elas desenvolvidas por
pesquisadores, tecnólogos, docentes, bolsistas de pós-doutorado ou por
estudantes de mestrado e doutorado. A lei estabelece ainda a obrigatoriedade de publicar os dados primários da pesquisa após cinco anos de sua
coleta, para que possam ser utilizados por outros pesquisadores. Segundo
a fundamentação do projeto, o modelo de acesso aberto à produção cientíico-tecnológica implica que os usuários deste tipo de material podem:
[…] en forma gratuita, leer, descargar, copiar, distribuir, imprimir,
buscar o enlazar los textos completos de los artículos cientíicos, y
usarlos con propósitos legítimos ligados a la investigación cientíica, a
la educación o a la gestión de políticas públicas, sin otras barreras económicas, legales o técnicas que las que suponga Internet en sí misma.
(Argentina, 2013).
A autoridade encarregada da aplicação da referida lei será o Ministério
de Ciência, Tecnologia e Inovação Produtiva.
Além da Argentina, na região só o Peru possui uma lei de AA, a qual
foi sancionada em 2012. Esta lei (nº 30.035) regula o Repositório Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação de Acesso Aberto. O Consejo
Nacional de Ciencia, Tecnología e Innovación Tecnológica (Concytec) é
responsável pela gestão do Repositório Nacional Digital. Enquanto isso,
uma lei similar segue em debate (desde 2007) no Congresso Nacional brasileiro, e, no México, uma começou a ser debatida no legislativo em 2013.
Ao mesmo tempo, surgem iniciativas regionais, como a criação de
“LAReferencia”, um projeto para o desenvolvimento de uma rede federada de repositórios institucionais de publicações cientíicas, destinada a armazenar, compartilhar e dar visibilidade à produção cientíica
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latino-americana. A criação do projeto foi acordada em Buenos Aires,
em 29 de novembro de 2012, pelas maiores autoridades cientíicas do
continente, incluindo representantes de Argentina, Brasil, Colômbia,
México, Chile, Equador, Peru, Venezuela e El Salvador. O objetivo principal do projeto é a criação de uma estratégia consensual e de um pacto
para a construção e manutenção da Rede. Esse projeto é inanciado pelo
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e surge no marco da
Cooperação Latino-Americana de Redes Avançadas (RedCLARA), que
reúne as redes de educação e pesquisa da América Latina e, através delas,
as universidades e institutos de pesquisa.
A Unesco, por sua vez, também aprova e promove o livre acesso à informação cientíica (artigos de publicações periódicas, conferências e conjuntos de dados de diferentes tipos) provenientes da pesquisa inanciada
com fundos públicos. Entre as ações conduzidas por esse organismo destaca-se a publicação Diretrizes Políticas para o Desenvolvimento e Promoção
do Acesso Aberto. Trata-se de um guia para a compreensão dos aspectos
mais relevantes do acesso aberto. Além disso, o documento aponta a crise
decorrente do custo de assinatura de periódicos cientíicos como a origem
do movimento por acesso aberto e detalha os aspectos legais relativos a
copyright e licenças para publicar em AA (Swan, 2013).
Contudo, as ações governamentais não conseguem dar resposta ao
fenômeno em seu conjunto. Ao mesmo tempo em que se expandem a
mobilização pelo acesso aberto e o debate em torno de um novo conceito
de bem comum, aumentam as tensões jurídicas e políticas em torno da
apropriação do valor intelectual, que, há alguns anos, vêm adquirindo
uma nova dinâmica em escala global.
O bem comum
A promoção do acesso aberto como norma acadêmica e cientíica não
se restringe a um conjunto de iniciativas. Ao contrário, esta noção é acompanhada de outros princípios, como os da inclusão, da solidariedade e da
cooperação entre amplos setores da comunidade educacional, cientíica,
acadêmica e cultural, setores esses dedicados a considerar e recuperar o
conhecimento e a produção cultural como bem comum.
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A noção de bem comum é um conceito complexo. Há duas concepções gerais acerca do conceito de bem: a tradição jurídica – o bem jurídico – que se refere às coisas, materiais ou não, sobre as quais as pessoas
têm um direito de uso reconhecido por lei; e a tradição econômica – o
bem econômico – referido às coisas que são úteis a quem as usa ou possui. Conforme Vercelli e homas (2009, p. 24):
Los bienes comunes son bienes que se producen, se heredan o se
transmiten en una situación de comunidad, que tiene un carácter
“común”. […] el concepto de “bien/bienes” indica aquello que tiene
(o puede tener) un valor, un interés, una utilidad, un mérito y que,
a su vez, recibe (o puede recibir) protección jurídica. Así, los bienes son todas aquellas ‘cosas materiales’ o ‘entidades intelectuales’ en
cuanto objetos de derecho.
Esta ressigniicação de bem comum apela à natureza dos bens intelectuais. Estes, por sua vez, se produzem em uma época, espaço e cultura
determinados, incorporam valores e, através de seus usos e costumes,
[re]produzem conhecimentos, técnicas ou códigos que os precedem e
que caracterizam uma época, sendo, assim, constantemente utilizados e
reutilizados na produção intelectual. Tais bens podem estar armazenados, registrados ou codiicados de diversas formas, mas, por suas características, têm um caráter comum, circulam livremente, são compartilhados, estão incorporados e vivem em cada pessoa de forma disseminada
(Vercelli; homas, 2009, p. 78).
Assim, a internet começa a ser concebida como um bem comum. A
tecnologia digital, de um modo geral, e a internet em particular são plataformas para a criação coletiva e colaborativa de conhecimento, que estão
apoiadas em padrões e infraestruturas abertas. A mudança tecnológica redeine muitas das relações que os diferentes grupos sociais mantêm com
os bens comuns. A internet, como criação tecnológica e cultural, é a resultante de processos auto-organizados, de lutas, tensões e negociações entre diferentes grupos sociais que a construíram. Seu crescimento e estado
atual não foram concebidos por nenhuma pessoa, corporação comercial
ou Estado em particular. Portanto, o debate em torno do software livre ou
privativo está estreitamente relacionado ao AA e à noção de bem comum.
Em seu relato sobre a história da internet, Movia (2012, p. 51) informa
que em 2003, quando a web começava e ser conhecida do grande público,
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98 % das pessoas que navegavam pela rede utilizavam a ferramenta instalada no sistema operativo de seu computador: o Internet Explorer, da
Microsoft. Apenas sete anos depois, o cenário mudou com o desenvolvimento do software livre em oposição ao software proprietário. A utilização
do Internet Explorer caiu pelo menos 50 %, enquanto a do Mozilla Firefox, um projeto de software livre criado por uma comunidade mundial,
se aproxima dos 30 %, e pelo menos outros três navegadores são cada vez
mais conhecidos. Como resposta à questão de como esta mudança foi
possível, o autor airma que o conjunto dessas tecnologias foram pensadas para compartilhar conhecimento, com “la idea de que debían ser un
espacio donde cualquiera pudiera intervenir, en igualdad de condiciones”
(Movia, 2012, p. 52).
O software livre é um dos elementos essenciais da natureza comum e aberta da tecnologia digital para a inovação colaborativa. O projeto GNU criou
um novo modo de utilizar e distribuir os programas, o qual Stallman (2004)
denominou licenças de copyleft.1 O software construído em colaboração não
podia ser liberado ao domínio público, uma vez que as empresas costumavam apropriar-se de programas lançados sem copyright. Assim, o copyleft surgiu
como uma estratégia para licenciar programas em sintonia com o tipo de distribuição pretendida para os mesmos. O copyleft remete, portanto, a um tipo
de licença criada para o software livre que permite a redistribuição deste último
apenas se forem garantidas, a quem o recebe, as mesmas liberdades outorgadas
pelo produtor ou pela comunidade que o criou.
Pouco tempo depois, a Creative Commons (CC) – uma organização
sem ins lucrativos criada nos Estados Unidos, em 2001, por Lawrence
Lessig – desenvolve um modelo legal oferecendo uma série de aplicações
informáticas que facilitam a distribuição de bens culturais. Com este
modelo, é possível selecionar licenças com diferentes conigurações: o
direito do autor de outorgar liberdade de citação e reprodução de sua
obra, de criação de obras dela derivadas, de oferecê-la publicamente e de
não permitir seu uso comercial.
Desse modo, as “licenças abertas” marcaram uma tendência e proporcionaram o marco para uma nova forma de produção, a qual possibilitaria
dispensar os intermediários no âmbito acadêmico e na indústria cultural
O termo copyleft foi cunhado por Richard Stallman e constitui um jogo de palabras em inglês – copyright (direito de cópia) com a substituição de right (que também signiica direita) por left (esquerda).
1
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de um modo geral. As licenças abertas (ou livres) são necessárias para a
distribuição pela internet e, consequentemente, para o acesso de forma
gratuita para ler, baixar no próprio computador, copiar, distribuir, imprimir, buscar ou vincular textos.
A produção intelectual no capitalismo contemporâneo
Sem dúvida, esta reapropriação das licenças livres gerou inúmeras
controvérsias. Um dos maiores problemas no debate entre os direitos públicos e privados da propriedade intelectual – e, nesse contexto, dos bens
comuns – é que a discussão tende a assumir um caráter ideológico. De um
lado, estão os que tendem a tratar a criação usando critérios de equivalência entre bens intangíveis e tangíveis e, portanto, “privativos”. No outro
lado, os que defendem os interesses públicos e a prevalência do direito de
livre acesso à cultura, à educação, à ciência e à tecnologia.
O setor editorial privado airma que a escassez, traduzida pela restrição
ao acesso, pode aumentar o valor do produto. Sendo assim, criminaliza-se
a reprodução, mesmo quando é motivada por ins cientíicos e educativos
não comerciais. No entanto, gera-se aí uma contradição: a interconexão
horizontal possibilitada pela internet propicia uma circulação da informação que se distingue, entre outras razões, pela desarticulação da multiplicidade de tempos, pela participação social na elaboração da informação e
pela perda do controle dos emissores/produtores sobre sua própria criação
e/ou informação, a partir do momento em que esta se distribui.
Pensadores como Lazzarato, Rullani, Moulier Boutang, Hardt e outros
reinterpretam as ideias de Marx e as aplicam às transformações em curso na
esfera da propriedade intelectual, para analisar as repercussões da digitalização do conhecimento sobre o processo de trabalho capitalista. O valor de
troca do conhecimento está ligado à capacidade prática de limitar juridicamente sua difusão, uma vez que tal valor não obedece à sua escassez natural,
mas sim decorre de limitações institucionais ou de acesso (Rullani, 2004).
Scott Lash (2005), por sua vez, airma que na era das manufaturas o poder estava associado à propriedade como meio mecânico de produção. Já na
era da informação, ele se associa à propriedade intelectual, de modo que, no
capitalismo tecnológico, a propriedade dos meios de produção traz consigo
o direito de explorar, e a propriedade intelectual, o de excluir (copyright).
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Para Hardt (2010), a produção imaterial vincula-se conceitualmente
à produção de ideias, de informação, de imagens, de conhecimentos, de
códigos, de linguagens, de relações sociais, de afetos. Para esse autor, as
questões de fundo são, hoje, a escassez e o caráter reprodutível de certos
bens. Assim, poderíamos expressar a situação atual dizendo que a luta se
dá entre a propriedade exclusiva e a propriedade compartilhada.
Neste capitalismo informacional ou cognitivo, embora a produção
imaterial possa ser privatizada como propriedade, por meio de patentes e
direitos de autor, ica muito mais difícil vigiar esta propriedade, pois as tecnologias digitais facilitam muito seu compartilhamento e reprodução. Esses
bens tentam constantemente escapar aos limites da propriedade e se tornar
comuns. Os processos de virtualização separam o conhecimento de seu suporte material e o tornam [re]produzível, mutável, apto a ser utilizado de
modo distinto, tanto o capital como o trabalho empregado para produzi-lo.
Para os autores mencionados, o capital realiza sua expropriação do comum,
não por meio da privatização per se, mas na forma de renda. Patentes e direitos de autor, por exemplo, geram renda no sentido de que garantem uma
receita baseada na posse da propriedade material ou imaterial.
A internet propicia uma circulação da informação diferente do habitual, entre outras razões, como já apontamos, pela perda do controle dos
emissores/produtores sobre sua própria criação e/ou informação, a partir
do momento em que esta se distribui. Esse último fenômeno tende a ser
reivindicado por alguns setores sociais como direito básico, coincidindo
com a tomada de consciência de que os direitos à informação e ao conhecimento são parte dos direitos humanos.
Ações por software livre
Os governos da região começam a intervir em questões de software,
tanto a partir da gestão governamental como em políticas e marcos legais.
Todos os países da AL&C encontram-se em pleno processo de regularização desses marcos legais, sob fortes demanda e pressões da sociedade civil.
O exemplo mais recente vem do Uruguai, país pioneiro em âmbito
mundial no desenvolvimento e aprovação da lei do software livre e de formatos abertos (dezembro de 2013). Esta lei contempla, entre outros, três
pontos importantes e inter-relacionados: formatos abertos e padronizados
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em todos os âmbitos da administração pública; a preferência pelo licenciamento do software livre ao invés do privativo; a formação de educandos na
utilização do software livre através das instituições educacionais públicas.
Também na Bolívia, o estado plurinacional sancionou, no ano de
2012, a Lei de Telecomunicações e das TICs. Nela há um capítulo dedicado integralmente a Governo Eletrônico e Software Livre, adjudicando aos
órgãos de governo a promoção e priorização do uso do software livre e de
padrões abertos no nível central do Estado.
Quanto ao Brasil, desde 2009 encontra-se em debate no legislativo
o projeto de lei Marco Civil da Internet, proposta que deine os direitos e
deveres dos usuários e das empresas que navegam na rede. O projeto visa
proteger a privacidade do usuário assim como sua liberdade de expressão.
Segundo os defensores do projeto, o Marco Civil garante uma internet livre, democrática, aberta, com a garantia de neutralidade da rede,
permitindo ao usuário decidir aquilo que deseja ler e a que ter acesso, e
não que uma empresa faça isso em seu lugar. Em seu artigo segundo, o
projeto de lei reconhece a escala mundial da rede, o exercício da cidadania
em meios digitais, os direitos humanos, a pluralidade, a diversidade, a
abertura, a livre iniciativa, a livre concorrência, a colaboração. O projeto ainda não foi debatido e tem passado por modiicações consideradas
cruciais pelas organizações sociais que o promovem, as quais denunciam
fortes pressões, por parte das empresas de telecomunicações, para que não
se aprove o projeto de lei na forma em que está proposto.
Na Argentina, discute-se uma lei nacional de uso obrigatório do software
livre nos três poderes do Estado, a qual já foi aprovada em nível provincial
em Rio Negro, Entre Rios e Missiones. Em 2011, foi criado o Programa
Unidade de Software Público Argentino, visando a que o software de propriedade pública possa ser desenvolvido, utilizado, modiicado e distribuído
para facilitar o cumprimento de objetivos governamentais e sociais.
Mais recentemente, emerge o projeto Software Público para o Desenvolvimento (SPD), como um conjunto de políticas orientadas à promoção
e ao desenvolvimento do software argentino. O SPD colocaria à disposição
das administrações e dos cidadãos e cidadãs os aplicativos e programas
desenvolvidos neste âmbito, os quais teriam código aberto.
Essas ações são consideradas insuicientes pelas organizações da sociedade argentina que promovem o software livre. A mobilização continua,
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com o emprego de diversas ações, estratégias e iniciativas inovadoras no
momento de trabalhar de forma colaborativa.
Em defesa do modelo colaborativo
A mobilização das organizações da sociedade foi o que colocou a questão do software livre na agenda pública. O objetivo principal é conseguir
marcos legais que preservem múltiplas iniciativas de diferentes atores, tanto no plano da produção intelectual como no do trabalho colaborativo.
Seria impossível mencionar a totalidade das ações que vêm sendo
realizadas nos últimos anos. Para destacar apenas as mais signiicativas,
podemos apontar:
• O XV Workshop de Software Livre (WSL 2014) – evento cientíico que
se realiza no âmbito do Fórum Internacional Software Livre (FISL). Desde
2000, o WSL e o FISL se realizam anualmente em Porto Alegre, Brasil.
• O Festival Latino-Americano de Instalação de Software Livre (Flisol) que ocorre há vários anos. A última edição, de 2013, foi realizada simultaneamente em mais de 200 cidades de todo o continente,
com sedes na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa
Rica, Cuba, Equador, Espanha, El Salvador, Guatemala, Honduras,
México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.
• Os Encontros de Software Livre e Economia Social na Argentina, organizados pela cooperativa de trabalho de software livre Gcoop, cujo último
evento (2013) reuniu oito cooperativas de trabalho dedicadas ao software
livre e às tecnologias. Em 2012, foi criada a Federação Argentina de Cooperativas de Trabalho de Tecnologia, Inovação e Conhecimento.
Entre outras iniciativas realizadas por militantes do software livre e da
cultura livre, vale a pena mencionar o LibreBus, um projeto que nasceu
na América Central, com o objetivo de estabelecer um diálogo entre as
diferentes comunidades de software e cultura livres, de compartilhar experiências e de fortalecer redes regionais. Em 2011, um grupo de ativistas
vinculados ao movimento de cultura livre (conhecimento, software, arte,
biodiversidade) viajaram a bordo de um ônibus percorrendo Costa Rica,
Nicarágua, Honduras, El Salvador e Guatemala. A versão Cone Sul do LibreBus aconteceu em 2012, percorrendo quatro países: Argentina, Chile,
Paraguai e Uruguai, com princípios e objetivos similares.
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Ao mesmo tempo, os princípios do software livre começam a vincular-se a novas formas de produção, uma das quais denominada de produção
entre pares (P2P). Esta se caracteriza pela ausência de uma diretriz única,
por esquemas de trabalho tendentes à horizontalidade, deinição de papéis
de lógica voluntária e trabalho em redes distribuídas.
As plataformas web colaborativas são uma forma de apropriação das
ferramentas digitais, que implica a existência de colaboração em todos os
níveis de aplicação. Isso produz inovações na forma de conseguir recursos
para sustentar a plataforma, na forma de produzir valor (conteúdos na
produção intelectual) e na forma de distribuir este valor. Alguns exemplos do P2P são encontrados na Wikipedia, na P2P Foundation, na Open
Source Ecology e na RedPanal, entre outras.
A Red Panal, por exemplo, é a primeira comunidade de música colaborativa do mundo hispânico e está entre as primeiras experiências deste tipo
em âmbito global. A rede conta com mais de 4 mil músicos, que residem
nos países ibero-americanos, produzindo conteúdos de forma permanente.
A cultura livre
Como observamos no relato precedente, quanto mais restritivo se torna o acesso à produção intelectual, mais resistência é gerada, e, com ela,
emergem estratégias para escapar às limitações.
Neste ponto da controvérsia, produz-se um encontro de sujeitos coletivos e de tecnologias em uma rede tecnossocial que conigura simultaneamente suas práticas sociais, suas formas de interação e de ação coletiva,
linguagens e usos diversos das tecnologias digitais. Os recursos e as ferramentas para produzir em modos de colaboração intelectual criativa e
aberta são inventados e recriados na internet, onde, a partir da expansão
da banda larga e da web 2.0, apresentam-se possibilidades ininitas.
Este movimento é formado por sujeitos coletivos oriundos de múltiplas práticas sociais e culturais. Ancorados nos princípios do software livre,
eles promovem a liberdade de distribuir e modiicar produções e obras
criativas, mediante o livre acesso à comunicação e à cultura e questionando o modelo atual de direitos de autor.
Essas múltiplas expressões foram criadas pelos próprios atores, ativistas da “cultura livre” que, em seu agir coletivo, coniguram resistên182
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cias no cenário da produção cultural. O princípio “cultura livre” se opõe
às indústrias culturais “privativas”. Esta corrente transversal de criadores,
intelectuais, músicos, artistas, editores, programadores, videoativistas, fotógrafos2 persegue o objetivo de proteger a criação compartilhando-a e
distribuindo-a livremente, redeinindo, assim, na prática, os direitos de
autor e de propriedade (Lessig, 2005). Trata-se de uma ética coletiva no
uso de ideias, imagens e pensamentos diversos situados em lugares distantes (Lago Martínez, 2012).
À guisa de conclusão
As controvérsias em âmbito governamental e intelectual sobre o acesso ao conhecimento e aos bens culturais na sociedade contemporânea são
superadas pelas forças sociais que se apropriam desses princípios e fazem
frente, cotidianamente, às formas de controle do luxo da informação, circulação e produção intelectual e cultural. As estratégias adotadas podem
parecer medidas de curto alcance, mas esta luta permanente obriga as indústrias culturais, assim como a legislação vigente, a reforçar os controles
e repensar novos modelos de negócios. Como airma Lazzarato (2006),
no circuito de valorização do conhecimento no capitalismo cognitivo,
produzem-se incoerências que dão lugar a espaços de liberdade, a partir
dos quais se podem produzir transformações sociais. A apropriação da
internet contribuiu para a ressigniicação da noção de bem comum, que
não é jurídica nem econômica, mas sim social.
Os governos e as instituições cientíicas da América Latina e Caribe
estão frente ao desaio de gerar canais e mecanismos institucionalizados
para que as ações incluam as demandas sociais de democratização. A intervenção governamental implicaria, como um primeiro passo, a consolidação do Acesso Aberto à produção intelectual. Isso provoca reações diversas, que vão da ampla aceitação à resistência ferrenha.
Em um segundo momento, estabelecer e garantir o livre acesso à internet, sem restrições quanto ao tráfego, serviços e conteúdos, em condições
técnicas adequadas; consolidar a legislação sobre software livre; observar a
Refere-se a grupos e coletivos estudados na pesquisa “Internet, cultura digital e contra-hegemonia: novas formas de intervenção militante”, credenciada e inanciada pela Universidade de
Buenos Aires e dirigida por Silvia Lago Martínez.
2
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relação entre empresas e software livre, de modo a apoiar e expandir modelos
de produção entre pares e o programa Software Público. Por último, revisar
a legislação dos direitos de autor na produção cientíica e educativa.
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Ciência, tecnologia, inovação
e a universidade em ambientes democráticos
Michelangelo Giotto Santoro Trigueiro
Introdução
Este capítulo pretende abordar os principais desaios e oportunidades
para as universidades no contexto atual do desenvolvimento cientíico-tecnológico e inovativo, em ambientes crescentemente democráticos.
Concentrar-se-á a atenção na realidade brasileira, embora as relexões
aqui desenvolvidas, em grande parte, possam se aplicar a outras sociedades latino-americanas, uma vez que se tenciona imprimir ao texto um
caráter crítico, relativamente ao que se considera o padrão hegemônico de
produção de ciência, tecnologia e inovação, que, muitas vezes, negligencia
particularidades regionais ou locais, implicando a perda de alternativas
importantes para os países da América Latina. Isso não signiica, obviamente, assumir posição dicotômica do tipo centro-periferia, por exemplo,
ou discurso refratário ao padrão mencionado anteriormente.
Ao se colocar em uma perspectiva crítica quanto à maneira como as
universidades de nosso contexto latino-americano levam adiante o empreendimento cientíico-tecnológico e inovativo, o presente texto quer se colocar, sobretudo, no campo do questionamento a respeito de nossas especiicidades, ao mesmo tempo que quer evitar fórmulas ou receitas prontas,
mormente as que se baseiam nos países considerados mais avançados, por
exemplo, os Estados Unidos e outros da Europa ocidental. Esse olhar, que
procura chamar a atenção para a importância de se ressaltarem as diversi-
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dades e as dinâmicas próprias de cada realidade latino-americana, mesmo
que venha a se ater mais especiicamente à realidade brasileira, sem descuidar de considerar o processo de geração de ciência, tecnologia e inovação,
em termos globais, é a principal contribuição que este trabalho almeja
alcançar. Isso e o convite para que venhamos a aprofundar tal discussão,
mediante novas pesquisas e questionamentos teóricos, em diferentes espaços, em nossas sociedades; o que se evidencia como não apenas necessário,
mas urgente à luz das grandes transformações na esfera do conhecimento
e no modo como este tem sido organizado socialmente.
Em termos de sua divisão interna, este capítulo será subdividido em
três seções, inter-relacionadas. A primeira apresentará o que se está entendendo, aqui, por ambientes democráticos para a produção de ciência, tecnologia e inovação. A segunda tratará das interfaces da ciência, tecnologia e
inovação com as universidades. A esse respeito, não serão abordados vários
outros papéis que cabem às universidades, como atividades de ensino, as
práticas de extensão, os serviços públicos oferecidos pelos hospitais a elas
vinculados e outros, como os relacionados às bibliotecas. O que se tenciona nessa segunda parte é destacar a universidade como um ator importante na produção cientíica, tecnológica e de inovação. Finalmente, a última
seção, à guisa de conclusão, buscará destacar o que podem ser importantes
desaios para a sociedade brasileira e a América Latina, diante das grandes
transformações que vêm se dando na esfera do conhecimento e que se
impõem às universidades.
Ambientes democráticos para
a produção de ciência, tecnologia e inovação
A discussão na presente seção é central neste trabalho, pois tudo o mais
dependerá desse conceito básico: ambientes democráticos. Conquanto seja
uma expressão bastante utilizada no cotidiano de diferentes públicos, não é
algo evidente por si mesma. É sabido tratar-se de uma expressão polissêmica,
a depender de diferentes contextos sócio-históricos e culturais.
Aqui, a noção de ambientes democráticos para a produção de ciência,
tecnologia e inovação é bastante especíica e tem sua inspiração na obra de
Philip Kitcher, Science, truth and democracy, sobre o que ele designou well-ordered science, discutida em profundidade no livro de Trigueiro (2012,
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p. 133-152) Ciência, verdade e sociedade. Aqui será feita apenas uma apresentação sumária das ideias expostas na obra.
Na verdade, Kitcher (2001, p. 211) reconhece que a formulação do
conceito de well-ordered science tem um débito com John Rawls, em suas
obras A theory of justice e Outline of a decision procedure for ethics. Kitcher
também explicita ter sido inluenciado pelas ideias de Robert Dahl, em
seu A preface to democratic theory, e por Amy Gutmann e Dennis hompson, em Why deliberative democracy. Em resumo, há muita discussão a
montante da expressão que abre e que deve orientar a relexão nesta seção.
As diiculdades para encontrar uma tradução mais próxima ao termo
ordered, em well-ordered science, e o que parecem aspectos mais especíicos
na proposta deste capítulo a esse respeito, em contraste com as formulações originais de Kitcher, levaram a se optar pela expressão ciência bem
articulada ou ciência, tecnologia e inovação bem articuladas. É este sentido
geral, a ser mais bem explicitado mais adiante, que se pretende adotar para
caracterizar os ambientes democráticos referidos anteriormente.
Do ponto de vista de uma tradução mais literal, o termo ordered tem
duas acepções mais corriqueiras, ligadas à ideia de encomendar ou de arrumar, esta última expressão no sentido de colocar em ordem ou de organizar. Não se pretende discorrer sobre os sentidos mais adequados para
se traduzir ordered. Contudo, seja na primeira dessas duas acepções, seja
na segunda, percebe-se, na leitura do texto de Kitcher, que não são exatamente esses os sentidos visados pelo autor, e, se os fossem, não seriam
adequados para os argumentos que se tenciona sustentar, aqui.
Primeiro, uma ideia de “ciência bem encomendada” (na primeira das
tentativas de tradução) de longe não signiicaria nada para os aspectos que
se espera ressaltar ao abordar a produção de ciência, tecnologia e inovação,
bem como suas interfaces com as universidades. Uma ciência bem encomendada sugeriria que ela deveria atender a um pedido e que o izesse
bem, ou algo nessa direção. Insiste-se: não é esse o sentido da discussão
que se tenciona realizar aqui. A segunda tentativa de tradução, “ciência
bem arrumada”, embora mais próxima daquilo que se pretende discorrer, também não é precisamente o que se tem em mente sobre o assunto.
Este trabalho não defenderia a ideia de uma “ciência (ou tecnologia, ou
inovação) bem arrumada”, tampouco “bem organizada”. Essas expressões
não fazem nenhum sentido, na medida em que se entende a ciência, a
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tecnologia e a inovação como determinadas atividades humanas, dentro
de uma dinâmica própria, repleta de tensões, controvérsias e interesses de
todo o tipo, os quais, ao inal, produzem certos resultados – uma teoria,
um artefato ou um novo processo produtivo, por exemplo. O que seria,
então, nesse caso, “bem organizada”? Ou “bem arrumada”? Essas expressões certamente não se aplicam à atividade cientíica.
Se pensarmos em algo mais próximo, como a expressão “regulada” ou
“bem regulada”, em nosso idioma, soaria como “bem ajustada”, ou mesmo como algumas ideias relacionadas a algum comando de “fora” ou de
“cima”. Igualmente, não é nada disso que se tenciona desenvolver aqui. A
autonomia cientíica e a liberdade para criar e buscar conhecimentos objetivos e bem demonstrados são valores indissociáveis do que se entende,
hoje, por ciência. Esta tem sua dinâmica própria, seus procedimentos e
códigos bem deinidos, e isso é algo que precisa ser mantido em sociedades
democráticas como as que vivemos. O mesmo se diz quanto às atividades
de geração de novas tecnologias e de inovação.
Contudo, a autonomia cientíica e a liberdade de pesquisa não são
os únicos valores em questão para a ciência, a tecnologia e a inovação,
nas sociedades contemporâneas, conforme tem sido reiterado pelo autor
mencionado antes, bem como por James Robert Brow, em seu Who rules
in Science, e por Hugh Lacey, em Valores e atividades cientíicas 1, segundo diferentes percursos argumentativos. Ao focalizarem mais especiicamente na ciência, cada um a seu modo, perguntam o que ela tem feito
para os menos favorecidos nas sociedades. O presente texto pretende
ampliar esse escopo de preocupações, ao tempo em que concorda, grosso
modo, com as inquietações desses autores. Na verdade, questiona-se não
apenas o que a ciência, a tecnologia e a inovação têm feito pelos menos
favorecidos, mas para as mais diferentes demandas prementes nas sociedades contemporâneas, sejam estas relacionadas às áreas consideradas
estratégicas para o desenvolvimento de um país, economicamente falando, sejam aquelas ligadas a necessidades sociais básicas, como as que
concernem ao acesso e à qualidade de moradia, à saúde, à segurança, à
educação e aos transportes públicos, por exemplo.
Esse é um questionamento inadiável, sobretudo em sociedades como
as nossas, que, historicamente, têm carregado grande peso em termos de
desigualdades, precariedade no atendimento médico e hospitalar, elevados
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índices de evasão escolar – em todos os níveis –, e moradias sem o mínimo
de salubridade, sem energia elétrica e sem infraestrutura de ruas adequada.
No caso brasileiro, somam-se a esses os recorrentes problemas de seca no
semiárido, estradas sem condições mínimas de trânsito seguro, infraestrutura aeroportuária incompatível com as demandas de escoamento da
produção e das importações e tantos outros temas.
Nada disso é novidade no Brasil e em todo o contexto da América
Latina. Um ou outro país tem conseguido equacionar melhor e com maior
celeridade seus problemas, e outros ainda permanecem em fases bastante
preliminares para o seu encaminhamento devido, o que requer grandes
aportes de recursos inanceiros, mas não só, também muita criatividade,
decisões irmes e muita ciência, tecnologia e inovação (C,T&I).
Certamente que os problemas aqui mencionados e que têm feito parte, de um modo geral, das agendas dos políticos e do poder executivo, em
seus diferentes níveis, não se limitam ao circuito do conhecimento cientíico, tecnológico e inovativo. Mas é inegável que tais conhecimentos são
indispensáveis para se chegar aos destinos esperados, para sociedades mais
justas e com melhor qualidade de vida para todos. Contudo, a questão que
se coloca, ecoando as preocupações apontadas anteriormente por autores
de sociedades mais desenvolvidas, é: nós, sociedades latino-americanas,
temos obtido respostas consequentes, e em que medida, da C,T&I, para
obtermos as esperadas soluções para esse grande espectro de agudas necessidades? O que nossas ciências, tecnologias e inovações têm feito, ao longo
de nossa história, para diminuir ou contribuir para tais soluções? Vivendo em pleno contexto de uma revolução na esfera do conhecimento, em
diferentes setores, a ponto de ser caracterizada por alguns autores como a
sociedade do conhecimento, é evidente que se sobressai a importância da
C,T&I para cumprir, ademais, esse papel social.
Em suma, o valor verdade e a “ética da convicção” – conforme preconizada por Max Weber, em seus ensaios Ciência e política: duas vocações – não podem mais ser os únicos a orientar a conduta dos pesquisadores. Temas relacionados, por exemplo, às novas biotecnologias – como
o Diagnóstico Genético Pré-Implantação (DGPI), a utilização de células
de embriões humanos para pesquisa envolvendo células-tronco e a introdução de novas variedades de plantas engenheiradas em laboratório para
a alimentação humana – são altamente controvertidos e têm requerido
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nova orientação de conduta por parte dos especialistas. Eles são instados
a responder sobre as eventuais consequências, para os indivíduos e para
as sociedades, devido à adoção dos novos conhecimentos, tecnologias e
produtos gerados nos laboratórios; bem como a esclarecer e a desmistiicar
certas visões eventualmente distorcidas a respeito desses novos conhecimentos – o que requer que a linguagem hermética e muito técnica da
pesquisa seja traduzida adequadamente para o grande público.
Em resumo, tais fatos, para citar apenas uma área de ponta do desenvolvimento cientíico e tecnológico, passam a pressionar os pesquisadores
por maior compromisso com os destinos de suas pesquisas, o que ressalta
o âmbito dos princípios éticos e da moral que deverá legitimar a produção
de C,T&I. Isto é: algo inusitado surge no horizonte do padrão de comportamento que tem guiado os cientistas e tecnólogos. Nesse sentido, a ética
da convicção deve se compor com uma “ética da responsabilidade” – pensada originalmente por Weber como da alçada especíica da política: pesar
bem as consequências das ações, suas implicações para os mais diferentes
indivíduos e grupos sociais, e agir com muito cuidado e ponderação.
Diante dessas considerações, faz-se mister insistir na importância de se
ampliar o espaço de relexão e discussão sobre o questionamento a respeito
da máxima que estabelece que “à ciência cabe apenas a investigação dos fenômenos”, eximindo-a de um compromisso com a realidade concreta, em
termos de sua intervenção e em prol de sua transformação. Isso coloca em
xeque, certamente, o paradigma weberiano que estabelece rígida separação
entre “juízo de valor” e “juízo de realidade”, ou entre ciência e política.
O que os autores anteriormente mencionados argumentam, com
uma robusta fundamentação ilosóica, é que é plenamente possível desenvolver um conhecimento objetivo acerca da realidade sem deixar de
se comprometer com as necessárias transformações na realidade concreta.
Pensando com base na perspectiva de um pesquisador da América Latina,
e muito preocupado com os destinos de nossas ciências, tecnologias e inovações, em face aos imperativos sociais e econômicos que se lhe apresentam, essa linha de relexão soa como alvíssara.
É com esse pano de fundo que se coloca a presente relexão. A considerar o padrão hegemônico que tem orientado a formação de nossos
pesquisadores, mormente balizado pelas realidades das sociedades norte-americana e europeia, é bastante razoável esperar a reprodução dos valores promanados dessas realidades na cultura acadêmica latino-americana,
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amplamente reforçada pelas sistemáticas de avaliação de suas agências de
fomento e de demais órgãos do executivo. O resultado é um presumível
distanciamento das demandas prementes de nossas sociedades, na medida
em que passa a valer, fundamentalmente, a produtividade dos pesquisadores, medida, principalmente, em termos de publicação em periódicos,
especialmente nos internacionais, com uma consequente provável obnubilação do foco nas questões que atingem mais diretamente nossas realidades e especiicidades. Se a qualidade da ciência, da tecnologia e da inovação de nossas sociedades é medida, fundamentalmente, pelos critérios
predominantes dos países que as dominam internacionalmente, é óbvio
que qualquer esforço que venha a divergir de tais critérios implica certo
descrédito por parte da chamada “comunidade cientíica internacional”.
Não se trata aqui de criar falsas dicotomias do tipo qualitativo versus
quantitativo, tampouco de negar a importância de determinados indicadores, como o número de publicações, a taxa de produtividade de artigos
cientíicos, o número de patentes e assim por diante. Porém quer-se chamar a atenção para que tais critérios não sejam reiicados a um ponto de
inviabilizar o exame pertinente de questões que dizem respeito mais de
perto ao contexto da América Latina e de suas múltiplas diversidades. Por
exemplo, por que não valorizar o grau de conectividade entre os ambientes
acadêmicos e de inovação às indústrias locais, a sua realidade rural, aos
seus movimentos sociais e a demais esferas da sociedade? Indicadores que
venham a incentivar tais interfaces poderão ter um peso muito maior em
nossas sistemáticas de avaliação de C,T&I, com consequências compensadoras em todas essas esferas, em termos de benefícios econômicos e sociais.
Outro exemplo a considerar é o de um critério que estabeleça forte
valorização aos projetos e conhecimentos que efetivamente produzam resultados positivos na economia e na sociedade – na educação, na saúde,
nos transportes públicos e na segurança, entre outros. Tudo isso requer
uma reorientação em determinados padrões de conduta dos pesquisadores
para ampliar os horizontes de intervenção na realidade. E projetos que
também ampliem as possibilidades de integração entre diferentes países
da América Latina e que possam trocar informações e compartilhar experiências práticas enriquecedoras e bem-sucedidas também é outro aspecto
a ser considerado numa reorientação de nossas sistemáticas de avaliação.
É a esse esforço combinado, de gerar novos conhecimentos em maior
articulação com a sociedade e com suas demandas concretas e urgentes,
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que se está chamando de ambientes democráticos de produção de C,T&I;
ou, como se designou anteriormente, uma ciência, uma tecnologia e uma
inovação bem articuladas. Isto é, bem respaldadas socialmente, mais bem
legitimadas pela sociedade.
Desse modo, a expressão “articulada” ou “bem articulada” para a
C,T&I é adequada para esses propósitos de argumentação, na medida em
que: de um lado, preserva a autonomia cientíica e valores considerados
relevantes para os cientistas (não se estaria a falar de ordenada, regulada,
comandada ou qualquer coisa que signiicasse diminuir o que esses indivíduos consideram valioso para eles próprios em suas atividades proissionais), e, de outro lado, não dá à ideia de autonomia caráter absoluto,
soberano, que não precisasse também estar bem sustentada por outros
indivíduos, os cidadãos comuns – legitimada, como costumamos dizer.
Na linguagem corriqueira da sociedade brasileira, quando dizemos
que “alguém é bem articulado”, queremos dizer, por exemplo, “que se
expressa bem”, ou que “tem bons contatos”, “especialmente políticos”,
enim, que é uma pessoa “inluente e sociável”. Pois todos esses sentidos são os que se pretende aqui ao se referir à C,T&I bem articulada.
Assim, essa noção signiica a ideia de uma C,T&I que é tanto bem
articulada internamente, no âmbito das várias comunidades cientíicas
e de pesquisadores, entre si, ou entre as várias áreas e subáreas do conhecimento – que se “expressam bem”, se comunicam bem entre si –,
quanto é bem articulada com o seu ambiente externo, com a sociedade
de um modo geral – com a qual, igualmente, deve se expressar e se
comunicar bem – e com o contexto internacional.
Na linha das formulações de Max Weber, a noção de uma C,T&I
bem articulada seria um tipo ideal. Rigorosamente, precisaria explicitar,
antes de qualquer coisa, a medida do que se poderia considerar bem articulada, ou seja, os critérios para se dizer o quão bem C,T&I estariam,
ou não, articuladas. Porém não se tenciona avançar, no momento, nessa
discussão. Talvez agora isso não seja relevante para os propósitos do ensaio.
Poderíamos não chegar a nada ou a nenhum conjunto de indicadores factíveis, dada a enorme complexidade do fenômeno cientíico, tecnológico
e inovativo e de suas múltiplas possibilidades de realização, que deve se
originar de debates mais ampliados com os atores mais diretamente ligados ao tema, os pesquisadores e os formuladores de políticas para a C,T&I.
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Contudo, ainda assim, a noção de uma C,T&I bem articulada pode ser
útil para identiicarmos problemas que apontem para graves bloqueios de
comunicação ou de articulação interna e externa dessas atividades; para
aquilo que alguns autores da área da administração chamam de problemas
de falta de “sinergia” ou de conectividade, como referido anteriormente,
ou que os cientistas sociais chamariam de “problemas de integração”.
Nesse sentido, uma C,T&I bem articulada é aquela que possui boa
sinergia interna e externa; no extremo oposto, a que apresenta graves problemas de articulação, comunicação e integração. No entendimento de
Kitcher (2001) e de Brown (2001), há grande débito da ciência moderna
para com o que eles chamam “menos favorecidos” da sociedade, como se
comentou brevemente no início da seção.
Muitos autores poderiam discordar radicalmente da ideia de que
a ciência, a tecnologia e a inovação contemporâneas, de um modo
geral, não estejam bem articuladas (segundo a acepção apresentada
há pouco), reunindo argumentos em favor do apoio cotidiano e do
prestígio aparente da ciência, da tecnologia e da inovação, no interior
da sociedade, em razão de sua contínua demonstração de capacidade
realizadora, e em razão do fascínio que exercem na consciência dos indivíduos (próximo à linha das discussões de Herbert Marcuse e Jürgen
Habermas sobre a ideia de que ciência e tecnologia se constituem, no
atual estágio do capitalismo, em fundamento de legitimação da própria dominação tecnocrática). Mas pretende-se insistir na necessidade
de um pouco mais de ceticismo quanto a isso, pois o mundo social,
a vida real, sempre tende a nos surpreender, como temos assistido no
Brasil às manifestações de rua, nos últimos anos.
Em meio a inúmeras reivindicações, muitas vezes difusas, há sinais evidentes de um desconforto generalizado com o “sistema”. Cabe perguntar:
em que medida esses fatos se relacionam com o tema deste trabalho? Que
sinais nos enviam as ruas de que algo precisa mudar em nossas atividades
de produção de C,T&I? Será necessário esperar que esses reclamos cheguem mais perto dessas atividades e passem a questionar mais seriamente
o destino do dinheiro público para tais atividades? Como sua legitimidade
poderia ser mais duramente abalada? Um dos propósitos desta relexão é
chamar a atenção para esses questionamentos, que somente fazem sentido em ambientes e em sociedades que têm se empenhado seriamente em
aprimorar suas democracias.
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Esses questionamentos estão relacionados ao que se tem chamado de exercício de uma cidadania mais ativa ou atuante, nos países da
América Latina, no que concerne aos rumos de sua C,T&I. Isso ressalta
o papel das grandes mídias, abrindo espaços e programas que possam
esclarecer melhor sobre diferentes aspectos da C,T&I contemporânea,
como informações mais idedignas e claras sobre os novos resultados das
pesquisas – separando o que é mito do que é realidade, por exemplo,
quanto aos “transgênicos”, às pesquisas sobre células-tronco, à educação a
distância e ao diagnóstico genético pré-implantação (DGP) –, seus riscos
e também seus reais benefícios.
Nesse contexto de uma cidadania ativa acerca da C,T&I, as escolas
também assumem grande importância na formação das crianças e dos adolescentes sobre o atual contexto de revoluções cientíicas e tecnológicas, ao
não se limitar, meramente, a apresentar os conteúdos das matérias de física,
química, biologia e sociologia, por exemplo, mas ampliar as discussões sobre
as várias relações entre essas áreas do conhecimento e o papel que assumem
no desenvolvimento das sociedades, bem como os compromissos éticos para
com os diferentes públicos que integram a sociedade.
Finalmente, os governos, as organizações não governamentais e as
próprias empresas privadas podem estimular e criar muitos fóruns de discussão, no interior da sociedade, visando se articular melhor aos esforços
desenvolvidos pelos cientistas e demais pesquisadores, sem deixar de contar, obviamente, com a necessidade de maior aporte de recursos inanceiros, não apenas para a própria pesquisa, mas para toda essa gama de novas
atividades que precisam ser fomentadas.
Na próxima seção, será discutido mais especiicamente o papel das
universidades diante desse cenário de produção consequente de C,T&I,
ao se ressaltar as suas muitas interfaces.
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As interfaces da ciência, tecnologia
e inovação com as universidades
Não é nenhuma novidade a importância que as universidades e as
demais instituições de ensino superior têm ganhado no contexto atual
do desenvolvimento cientíico, tecnológico e inovativo. Isso não se deve
apenas à maior procura de jovens e adultos por esse nível de ensino, seja
para a formação proissional, seja para a maior qualiicação dos egressos,
mediante os cursos de especialização e de pós-graduação. Deve-se, também, ao fato de que é de lá que tem se originado parte substancial dos
resultados cientíicos, tecnológicos e inovativos, indispensáveis ao avanço
do conhecimento e fundamentais para o próprio desenvolvimento econômico e social. As inovações – que são produtos e processos inseridos no
âmbito da atividade econômica, nas indústrias, na agricultura e no setor
dos serviços e que dependem, muitas vezes, dos conhecimentos cientíicos
e tecnológicos – são o fator crucial para a maior competitividade e crescimento econômico das empresas e dos países.
Não obstante, há ainda muito o que se fazer para aumentar a conectividade entre as universidades e a C,T&I, nas sociedades latino-americanas, a julgar pelos inúmeros estudos produzidos a esse respeito, como os
realizados pelo Centro de Estudos e Gestão Estratégica (CGEE) do Brasil.
No caso brasileiro, um conjunto de situações distintas, comparativamente a um período de 30 anos atrás, passa a fazer parte do atual contexto
de desenvolvimento cientíico-tecnológico e inovativo, condicionando
muitos ambientes e realidades culturais. De um momento mais verticalizado, dirigido, concentrado (no contexto do regime militar), passa-se a
um cenário de globalização e maior democratização dos processos de produção, difusão e acesso aos conhecimentos especializados. Novos critérios
de qualidade – que ultrapassam o domínio exclusivo do meio acadêmico,
envolvendo a qualidade de vida, valores de uso, o custo do acesso a novos
produtos e processos, bem como as inúmeras questões éticas, relativas ao
controle do conhecimento – fazem parte, agora, de intensas e ampliadas
redes de relações e negociações entre atores tradicionais e novos, implicando aumento considerável da complexidade do processo decisório.
Esse fato compõe cenário importante a considerar na busca para
construir uma C,T&I bem articulada, conforme formulação na seção
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anterior, no Brasil. Tudo isto tende a ressaltar a atuação política do Estado e de suas agências, bem como o papel de produtor de conhecimentos
e de formação de recursos humanos das universidades e das instituições
de ensino superior. Ademais, veriicam-se mudanças importantes nos
padrões de antigas proissões e nos peris de trabalho, que demandam
maior capacidade inovadora e empreendedora. De um lado, a sociedade
brasileira aponta para a valorização do conhecimento e para a possibilidade de ampliação de novos serviços, e, de outro, antigas visões de
estabilidade no emprego e de crescente “terceirização” de inúmeras atividades, antes desenvolvidas pelas próprias empresas ou órgãos públicos,
levam os indivíduos a buscar o aprimoramento pessoal, a atualização de
conhecimentos e a realização de novas ideias para aumentar suas chances
de sucesso em ambiente crescentemente competitivo.
Grandes conglomerados passam a dividir espaços com pequenas empresas; pesadas indústrias relacionam-se com inúmeras redes de microempreendedores e serviços proissionais inéditos; grandes mudanças nos
processos produtivos, nas fábricas e nas empresas agrícolas diminuem o
tempo de trabalho e favorecem a proliferação das atividades ligadas ao
lazer, ao turismo e a outras iniciativas no gênero, ampliando as possibilidades de contratação de pessoal e de atuação autônoma.
Desse modo, seja para preparar novos proissionais para esse cenário,
seja para desenvolver importantes conhecimentos cientíicos e tecnológicos, em sua relação com os processos econômicos, e para responder a novas demandas sociais por qualidade nos serviços públicos, bem como a um
conjunto grande de problemas e preocupações que passam a fazer parte do
cotidiano das sociedades, o papel das instituições de ensino superior e das
universidades é consideravelmente destacado.
Antigas formas de gestão acadêmica e pedagógica passam a ser confrontadas com a necessidade de agilidade e lexibilidade administrativa.
As pressões sociais se fazem sentir mais irmes e decisivas nos seus setores
representativos e nas instâncias políticas e decisórias da sociedade. Os governos passam a questionar mais a qualidade dos resultados provenientes
das universidades e das instituições responsáveis pela formação de recursos
humanos para o mercado de trabalho, repercutindo cobranças da sociedade.
As instituições de ensino superior são instadas a mudar processos,
rotinas, currículos e a sua própria forma tradicional de inserção e rela-
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cionamento com a sociedade. Tudo isto ocorre num momento em que se
veriicam a ampliação de novas vagas, cursos e estratégias de competição
entre essas instituições, redirecionando antigas formas de disputa, envolvendo o setor público/estatal e o setor privado.
No conjunto dessas novas demandas e pressões sociais pelo ensino
superior de qualidade, a pesquisa e a extensão ganham novos contornos e
passam a apontar para outros signiicados e para um papel diferenciado,
envolvendo as instituições públicas e aquelas comandadas pelos grupos
privados. Ou seja, não se trata, hoje, de meramente aplicar a mesma concepção, entendimento e prática em relação à pesquisa e à extensão que
dominam os ambientes universitários públicos e o segmento privado do
ensino superior brasileiro; ao contrário, cabe buscar formas mais adequadas a diferentes contextos organizacionais.
Os espaços que se abrem à iniciativa privada, no campo do ensino superior brasileiro, são inúmeros. Porém ainda persistem a lógica dominante
das instituições públicas e o tratamento cientiicista que preside as suas práticas de ensino, pesquisa e extensão, que acabam por inluenciar e nortear
toda a política desse setor da educação no país, atingindo as sistemáticas de
avaliação e o reconhecimento de novos cursos. Nesse sentido, ao minimizar
ou desconhecer as especiicidades das organizações privadas, suas trajetórias
históricas e peculiaridades, as avaliações e demais medidas lançadas pelo
nível federal, tendem a produzir nivelamento problemático no conjunto das
instituições de ensino superior, diicultando o aparecimento de formas mais
criativas de ensino, pesquisa e extensão, bem como de funcionamento e gestão dessas organizações – o que acaba por limitar o atendimento adequado
à formação de recursos humanos para C,T&I, no país.
Se, de um lado, as universidades públicas têm concentrado o esforço
de pesquisa e desenvolvimento tecnológico no país, de outro lado, pela sua
natureza, cultura e estrutura interna, têm apresentado maior diiculdade
de adaptação às demandas e transformações operadas no contexto atual do
avanço cientíico-tecnológico, comparativamente a algumas instituições
particulares congêneres.
Se considerarmos que no contexto dos próximos dez anos torna-se
indispensável um aumento considerável no acesso da população aos resultados dos novos conhecimentos, a im de garantir mão de obra condizente
com os desaios trazidos pelo desenvolvimento cientíico-tecnológico, a
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baixa proporção de estudantes no ensino superior, relativamente à população jovem e em vias de ingressar no mercado de trabalho, é um dos
fatos mais preocupantes quando se trata de pensar a formação de recursos
humanos para a C,T&I no Brasil.
Outro aspecto a ser considerado é o descompasso entre o ritmo de elevação nos indicadores referentes ao aumento do acesso ao ensino superior
brasileiro e a demanda, em velocidade muito superior, proveniente das indústrias e dos setores produtivos mais dinâmicos, por proissionais qualiicados e muito especializados. Percebe-se, ainda, desarticulação entre as políticas setoriais – da educação, indústria e comércio com a ciência, tecnologia
e inovação –, levando a que muitos dos resultados esperados pelas iniciativas
já em curso não conluam para os objetivos requeridos pela sociedade.
Veriica-se crescente interesse por novos conhecimentos e maior facilidade de acesso a esses saberes, bem como a forte disposição dos setores
produtivos para adaptação de novos conhecimentos às necessidades locais,
além da existência de ampla força de trabalho. Porém constata-se a insuiciência de centros de formação proissional e uma grande dependência do
que se designa “conhecimento tácito”.
Outro aspecto importante a considerar, além da necessidade de se
intensiicarem medidas para melhorar a qualidade e os indicadores de
pessoal formado nas instituições de ensino superior, é a importância de
se aprofundar a discussão e se buscar novas sistemáticas de certiicação
proissional, a im de se poder responder adequadamente aos novos problemas, em tempo, na competição que deverá se intensiicar daqui para
frente, em nível internacional.
Com o maior intercâmbio cientíico e tecnológico, no contexto da
globalização, a certiicação e a revalidação de diplomas são temas cruciais,
e extremamente complexos de serem acertados entre as várias partes interessadas, pois envolvem atores com histórias e peris muito diferentes, no
mais das vezes, se colocando como inconciliáveis, entre estes, empresários,
pesquisadores, jovens talentos e hierarquias acadêmicas tradicionais. Na
perspectiva da consolidação de uma C,T&I bem articulada, este é um
aspecto especialmente sensível na realidade brasileira, dado o intrincado
jogo político (e muitas resistências) entre associações proissionais e comunidades cientíicas, para avançar em perspectivas consideradas “ousadas”,
como a da certiicação e da revalidação de diplomas.
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O chamado “novo modo de produção do conhecimento” aponta para
a ênfase no “enfoque transdisciplinar”, em maior diversiicação e heterogeneidade quanto aos tipos de atores e interesses que condicionam o atual
contexto cientíico-tecnológico e inovativo, no surgimento de novas formas
de articulação entre as organizações que integram a atividade cientíico-tecnológica e inovativa, em maior interação entre universidades e indústrias, e
na formulação de novos critérios e indicadores de qualidade dos produtos
gerados pela prática cientíico-tecnológica – não se restringindo apenas a
cânones e expectativas de pares de cientistas –, e, de outro lado, ainda se
constata, no Brasil, a prevalência de determinadas estruturas burocráticas
emperradas e de organização do conhecimento com padrões de funcionamento que diicultam progredir na linha das novas possibilidades de articulação com os muitos atores mais diretamente envolvidos com a C,T&I.
Na busca de se construir uma nova maneira de organizar e orientar as
ações nas interfaces entre as universidades e a C,T&I, no Brasil, é bastante
evidente uma distância entre o que é apontado como necessário para o
país avançar em seu esforço de superação de barreiras para um desenvolvimento mais amplo e efetivo em suas diferentes áreas, bem como para
vencer mazelas sociais persistentes, e o que é existente hoje.
Os temas da melhoria da qualidade das instituições, da formação de
recursos humanos e da adequação da base técnico-cientíica e inovativa
brasileira aos grandes e imediatos desaios de sua sociedade trazem, centralmente, a problemática da avaliação institucional e dos programas e
cursos de graduação e pós-graduação para o debate. Hoje, os órgãos governamentais brasileiros precisam avançar bem mais na discussão e readequação das atuais sistemáticas de avaliação da pós-graduação e da C,T&I.
No momento em que se discutem questões de grande impacto, como a
aproximação da universidade com o setor produtivo e com demais setores e
movimentos da sociedade e a busca de novos indicadores de qualidade para
os processos inovativos e de transferência de tecnologia, que contemplem
também novas formas de organização e de produção do conhecimento, faz-se necessário repensar alguns aspectos presentes nesses modelos.
O argumento básico é que as abordagens tradicionais de avaliação, calcadas, fundamentalmente, em uma perspectiva “disciplinar”, são inadequadas para dar conta da complexidade da produção atual de C,T&I, que se
constitui, tipicamente, como um “fenômeno de redes”. Em outras palavras,
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as abordagens tradicionais de avaliação de programas de C,T&I, no país,
não são suicientes para mensurar satisfatoriamente aspectos e realidades
importantes em áreas de ponta do desenvolvimento cientíico-tecnológico e
inovativo contemporâneo; ou não são adequadas para dar conta de responder aos novos questionamentos e demandas provenientes de vários setores
da sociedade, não apenas os que repercutem interesses dos setores produtivos, mas também do grande público e das necessidades sociais prementes,
apontadas na primeira seção. Assim, a discussão a respeito das sistemáticas
de avaliação da ciência, tecnologia e inovação e dos programas de graduação
e de pós-graduação constitui aspecto central na construção de nova agenda
para essas áreas, na realidade brasileira e, quiçá, em outros países latino-americanos, dadas as várias semelhanças, em inúmeros aspectos.
À guisa de conclusões:
desafios para a sociedade brasileira e a América Latina
Diante do que se discutiu nas seções anteriores, são muitos os desaios
que estão à frente das universidades e de suas interfaces com a produção
de C,T&I em ambientes democráticos, a exemplo da sociedade brasileira.
São algumas questões de difícil conciliação, pois envolvem atores com
perspectivas ideológicas e políticas bem arraigadas, que precisam ser consideradas, para não se cair nas discussões puramente tecnocráticas. A ideia
de uma C,T&I bem articulada fortalece a arena política de decisões e a
necessidade de se ampliar consideravelmente o grau de informação sobre
os mais variados assuntos para o grande público.
Tudo isso passa por questões muito complexas, mas inadiáveis. Por
exemplo, como enfrentar o desaio referente ao descompasso entre o ritmo de crescimento do número de estudantes em universidades e demais
instituições de ensino superior e a demanda por proissionais qualiicados
e muito especializados nos setores produtivos? Como ampliar o número
de vagas nas instituições de ensino superior, sem comprometer a qualidade
dos cursos e dos proissionais formados? Como enfrentar as resistências
históricas nas relações entre diferentes atores das universidades com demais setores da sociedade? Particularmente, as relações entre empresários
e pesquisadores? Como estes últimos, envolvidos nas atividades de C,T&I
reagiriam diante da necessidade, aqui defendida, de novos valores para
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suas orientações de conduta, como o maior compromisso com a transformação da realidade concreta e da superação de problemas históricos de
suas sociedades?
Enim, um dos principais desaios a constar de uma agenda consequente para a formação de recursos humanos e para o aumento das sinergias entre as universidades e a produção de C,T&I, diante dos imperativos do setor produtivo e de muitos outros setores da sociedade, menos
aquinhoados, é, certamente, o da “gestão para a qualidade”, e da mudança
em suas sistemáticas de avaliação de C,T&I. Veriica-se que o país dispõe
de boa capacidade cientíica instalada e que apresenta bons indicadores
de publicação, porém níveis muito baixos em termos de patentes e de
conhecimentos aplicados nos processos produtivos, e de transferência de
conhecimentos para a melhoria de muitas demandas sociais, na educação,
na saúde, na segurança e nos transportes públicos, por exemplo. Esses são
os grandes desaios para a produção de C,T&I em sua articulação com
as universidades, na sociedade brasileira, e que se estima, também, com
maior ou menor proximidade em outros países da América Latina.
Referências
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Inovação, cooperativismo
e desenvolvimento inclusivo: repensar
a mudança tecnológica e a inclusão social
Hernán homas
Lucas Becerra
O presente capítulo tem por objetivo analisar criticamente um conjunto
de sentidos estabelecidos relacionados ao tipo e ao caráter das unidades
produtivas que devem ser privilegiadas como reguladoras de um sistema
de inovação e produção.
De modo sucinto, a teoria econômica sobre mudança tecnológica e
inovação considera: i) a inovação como resultado da competição dinâmica entre empresas maximizadoras de lucro; ii) que essa competição,
geradora de novas mercadorias e de novas técnicas de produção, traduz-se necessariamente em maiores taxas de crescimento econômico; e iii)
uma vez que (por deinição) os loci da inovação são as empresas maximizadoras de lucro, estas devem ser consideradas como o ator chave das
políticas públicas de inovação.
Partindo da avaliação crítica desses enunciados, este capítulo pretende
posicionar, através de exposição teórica, as cooperativas de trabalho como
atores dinamizadores de processos de inovação e de desenvolvimento social. Busca-se aqui, particularmente, hierarquizar estas unidades produtivas no âmbito de ação das políticas públicas de Ciência, Tecnologia e
Inovação (CT&I).
Assim, a hipótese de trabalho trata de mostrar que mudar o centro
de atenção para as cooperativas de trabalho pode ativar um conjunto de
dinâmicas de aprendizagem, circulação de conhecimentos e geração de
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capacidades técnico-produtivas que revertem em processos mais democráticos de apropriação do conhecimento e de geração de valor agregado.
Nesse sentido, o capítulo apresenta uma revisão focada na literatura
econômica relativa ao papel da empresa em termos de inovação, para em
seguida questionar esses princípios.
Do ponto de vista metodológico, utiliza-se uma abordagem conceitual que combina conceitos da sociologia da tecnologia, em especial da
análise sociotécnica (homas, 2008a; 2008b; e 2009) e da economia da
aprendizagem (Lundvall, 1992). As principais ferramentas teóricas utilizadas são: co-construção, relações problema-solução, funcionamento/
não-funcionamento, aliança sociotécnica e sociedade da aprendizagem.
Finalmente, como resultado desse exercício, apresenta-se um conjunto de relexões relacionadas às políticas públicas de ciência, tecnologia e
inovação orientadas ao desenvolvimento inclusivo.
Economia, tecnologia e desenvolvimento:
do status teórico às implicações analíticas
A tecnologia (enquanto artefatos, processos e formas de organização), em
suas distintas variantes,1 foi uma questão essencial no desenvolvimento da teoria econômica. Desde os clássicos de Adam Smith e de Karl Marx, as formas
como a tecnologia, o capital e o trabalho se vinculam entre si têm atraído
interesse no sentido de caracterizar os determinantes da geração de valores
de mudança e da geração-acumulação da riqueza (MacKenzie, 1984). Esses
determinantes foram codiicados e sintetizados (e, a partir daqui, tem início
um extenso trajeto teórico) por Robert Solow (1956; 1962) na seguinte tese:
“Em longo prazo (isto é, com uso pleno dos recursos), a taxa de crescimento
de uma economia é igual à sua taxa de progresso técnico”.
Já no nível da irma (isto é, em termos microeconômicos), o enfoque
neoclássico voltou-se para a análise da relação entre os preços relativos dos
fatores e as modiicações na função de produção.
Diferentes escolas de pensamento econômico, em diferentes momentos históricos, atribuíram um
conjunto diverso de signiicados e signiicantes à dimensão tecnológica: “progresso técnico”, “desenvolvimento das forças produtivas”, “modiicação da técnica”, “mudança tecnológica”, “inovação,” etc.
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Esta escola trabalha com o pressuposto de que o capital constitui
uma unidade homogênea que pode adquirir diferentes formas de artefatos (maquinarias) e de processos (técnicas) que permitem plena
lexibilidade das taxas de participação dos fatores capital e trabalho no
processo de produção.
Nesse sentido, se as relações capital/trabalho sofrem alteração a partir de modiicações nas taxas de salários e de benefícios, os empresários
podem escolher entre um conjunto de técnicas disponíveis, ou desenvolver novas, com o objetivo de aumentar a eiciência em termos de
economia de uso dos fatores de produção.2
Metodologicamente, a plena permutabilidade dos fatores, a qual
possibilita a escolha de distintas técnicas, formaliza-se com a construção de uma “função de produção”. Dada uma certa função de produção, a tecnologia se reduz a um conjunto de informação codiicada e
disponível que pode ser ordenada de forma contínua em função das
diferentes relações capital/trabalho.
No entanto, na discussão que deu origem à “Controvérsia de Cambridge”, Srafa (1960), Pasinetti (1969) e Robinson (1953) inverteram
o argumento neoclássico. Para esses autores, a relação de causalidade
não se dá do vetor de taxas de salários e lucros para a seleção do tipo
de técnica, mas ao contrário. Os neo-ricardianos sustentam que é a
escolha da técnica que determina a distribuição da receita, e não esta
última que determina a escolha da técnica.
Esta mudança de enfoque possibilita a existência do reswitching de técnicas. O valor de um determinado bem de capital, em um dado momento,
é a soma do valor do trabalho acumulado (tempo de trabalho multiplicado
pelo salário médio) correspondente a diferentes períodos, com a taxa de
lucro correspondente. Assim, quando aumenta a taxa de lucro (o que por
extensão implica uma diminuição da taxa de salário), o valor de uma merEmbora prima facie possa parecer que a posição neoclássica é monolítica, há uma controvérsia
relacionada às dinâmicas de tomada de decisão sobre a mudança nos processos de produção. A
primeira perspectiva sustenta que mudanças nos preços relativos dos fatores estimulam modiicações na técnica de produção com um viés para a economia daquele fator de produção (capital ou
trabalho) que encareceu relativamente (Hicks, 1932). A segunda posição argumenta que, frente a
um aumento nos preços de um fator produtivo, buscam-se ou adotam-se modiicações na técnica,
as quais tendem a reduzir o custo total de produção, independentemente do fator que essa nova
técnica economiza (Salter, 1960).
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cadoria (ou, neste caso, de um bem de capital) sofrerá tensões: aumentará o
valor relativo do trabalho correspondente a períodos anteriores e diminuirá
relativamente o valor do trabalho correspondente a períodos mais recentes.
Desse modo, sendo o capital uma categoria heterogênea (e não homogênea
como sustentam os neoclássicos), é possível que se utilize uma mesma técnica intensiva em capital, escolhida para uma taxa de salários elevada, quando os salários baixam (o que, na visão neoclássica, implicaria a necessária
mudança para uma técnica intensiva em trabalho). Isso é o que a economia
neo-ricardiana denomina reswitching de técnicas.
Vale observar que, se uma técnica intensiva em capital (portanto, econômica em trabalho) pode ser utilizada também quando a taxa de salários
diminui, então o resultado inal é uma distribuição da riqueza gerada pelo
sistema que favorece os proprietários do capital. Portanto, o tipo de técnica
escolhida viabiliza processos de concentração funcional da renda em favor
dos proprietários de um tipo de fator. O inverso também é válido: se uma
técnica intensiva em trabalho pode ser utilizada quando os salários sobem,
então se produz uma concentração da riqueza em favor dos assalariados.
O enfoque proposto pela economia da mudança tecnológica (Schumpeter, 1928; Usher, 1955; Nelson, 1995; Freeman, 1987) constitui uma
forma de pensar todo um conjunto de fenômenos econômicos, na medida
em que se busca abrir a “caixa preta” da tecnologia (Rosemberg, 1982).
Para a assim chamada escola neo-schumpeteriana, a mudança tecnológica é entendida tanto como uma modiicação da técnica (orientada à
melhoria da eiciência) quanto como o desenvolvimento de novos produtos que permitem a criação de novos mercados e a obtenção de ganhos
suplementares pela geração de monopólios naturais. Assim, as empresas
já não concorrem apenas com base nos preços, mas também em termos
dinâmicos, buscando não icar “ultrapassadas” no desenvolvimento tecnológico. Nesse sentido, na medida em que a atividade das empresas se
desenvolve em ambientes competitivos, existe um incentivo à inovação,
pois as mesmas asseguram sua própria continuidade mediante a acumulação do capital, produto da obtenção de rendas crescentes.
Em outras palavras, para esta escola, a inovação é própria de um sistema
em que a competição comanda as normas sociais de convivência entre as irmas. Mas quais são os processos ou mecanismos que viabilizam a inovação?
A economia evolucionista sustenta que a inovação se assenta em processos auto-organizados que envolvem não só fatores tecnológicos, mas
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também do “contexto ou ambiente” no qual se desenvolvem os processos
de inovação. A introdução do conceito de processos auto-organizados permite incorporar ao corpus conceitual-analítico a possibilidade de mudança
na conduta dos agentes, os incentivos a adotar novas tecnologias e as capacidades para utilizar uma inovação de modo eiciente (Yoguel, 2000). A
inovação e a difusão são partes constitutivas de um mesmo processo. Nesse
sentido, as inovações podem alterar-se em função de melhoras incrementais, de sua própria difusão. Para López (1998, p. 10, tradução nossa):
Durante a etapa de difusão, as irmas apresentarão distintos comportamentos – algumas serão adaptadoras precoces, outras preferirão esperar, etc. –, e, em função não só de fatores tecnológicos, mas fundamentalmente do ambiente em que se desenvolve o processo, as diversas
estratégias receberão recompensas diferenciadas, com perdedores e ganhadores. Embora essa diversidade possa, evidentemente, ter consequências negativas para certas irmas, no nível sistêmico ela é essencial
para materializar o potencial do processo de desenvolvimento coletivo.
Na mesma linha, Lundvall (1992) desenvolve o conceito de Sistemas
Nacionais de Inovação (SNI). Os SNI se fundam sobre duas estruturas
básicas – a da produção e a institucional. Segundo Johnson e Lundvall
(1994, p. 697), um SNI contém:
[...] todos os elementos que contribuem para o desenvolvimento, introdução, difusão e uso de inovações, incluindo não só universidades,
institutos tecnológicos e laboratórios de pesquisa e desenvolvimento,
mas também elementos e relações aparentemente distantes da ciência
e da tecnologia.
A abordagem de Lundvall (1992) está centrada na consideração da
sociedade como um ator coletivo do processo de inovação, que desenvolve
ações de aprendizagem constantes, diversas e complexas, associadas a atividades rotineiras de produção, distribuição e consumo, as quais se constituem em insumos para o processo de inovação. Tais atividades incluem
diversas aprendizagens learning-by-doing (Arrow, 1962), learning-by-using
(Rosenberg, 1982) e learning-by-interacting (Lundvall, 1988).
Por essa via e com base nos conceitos de learning society e learning economy, Lundvall chega à identiicação de um novo modelo explicativo para
a dinâmica inovativo-produtiva (Christensen; Lundvall, 2004).
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O enfoque de Lundvall (1992) sobre os SNI sustenta-se essencialmente no pressuposto de que a atividade inovadora reside no sistema e
não é redutível a suas partes componentes: “O importante no SNI não é
tanto a característica individual de cada componente, mas sim as relações
e o tipo e grau de integração entre os mesmos” (homas; Gianella, 2008,
p. 44, tradução nossa).
Mas então, se a competição constitui a força motriz da inovação empresarial e se as empresas capitalistas necessitam instrumentos jurídico-normativos para apropriarem-se da riqueza gerada pela inovação, tal dinâmica não entra em contradição com o processo coletivo mais geral, em
que a geração e circulação de conhecimento se dão no nível das sociedades?
Modelo interativo sociocognitivo:
inovação inclusiva e sociedade da aprendizagem
Quando se transfere o foco analítico das empresas para outros tipos de
organizações, detectam-se outras formas de inovação em outros âmbitos:
instituições (públicas e privadas) de pesquisa e desenvolvimento (P&D),
organismos governamentais, instituições de base social, ONGs e cooperativas. Normalmente, esses tipos de organizações não iguram nos estudos
de caso e tampouco nas discussões teóricas dos economistas da inovação e
da mudança tecnológica.
Pensado na perspectiva de um modelo analítico-explicativo, este conjunto heterogêneo de organizações pode ser entendido em termos de um
sistema complexo de interações sociocognitivas em que se desenvolvem
dinâmicas de geração e circulação de aprendizagens, conhecimentos, relações problema-solução e capacidades.
Um modelo sistêmico como esse exige a combinação de aportes teóricos da economia da aprendizagem e da sociologia da tecnologia. Os
trabalhos sobre as dinâmicas e mecanismos de aprendizagem (Lundvall,
1992; Johnson e Lundvall, 1994) centram sua atenção sobre os processos
de tipos learning-by-doing, learning-by-using e learning-by-interacting. Essas três “formas” de aprendizagem estão relacionadas a diferentes tipos de
interação: a) no learning-by-doing, as aprendizagens resultam de uma interação entre um ator (com seu respectivo acervo de conhecimentos, informação e práticas), com relação a novas práticas tecnológicas, institucionais
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e sociais, e conhecimentos codiicados e tácitos relativos a um artefato,
atividade produtiva e/ou uso social; b) por sua vez, no learning-by-using
as aprendizagens resultam da interação entre atores e coisas, mediante a
qual, em um processo dinâmico, conigura-se a capacidade do ator para
utilizar, transformar e dispor do artefato de forma plena; e inalmente,
c) o conceito de learning-by-interacting busca dar conta dos processos de
aprendizagem resultantes das interações entre os atores (instituições) que
compõem um sistema nacional de inovação e produção.
De modo similar, a sociologia da tecnologia concentra-se mais nas
interações do que nas acumulações (Callon, 1992; homas, 2008a;
2008b) e, em particular, pensa os fenômenos em que as sociedades e seus
dotes tecnológicos são co-construídos (Bijker, 1995; homas, 2008b).
Os artefatos são co-construídos com seus usuários, os produtores com os
usuários, as sociedades com as tecnologias que utilizam. Porque, no mesmo processo sociotécnico em que tecnologias são concebidas, produzidas e utilizadas, constroem-se relações sociais de produção, de trabalho,
de comunicação, de convivência.
A resultante da “hibridação” de ambos os aportes é o que neste capítulo se denomina “modelo interativo sociocognitivo” (ver Gráico 1).
Esse modelo busca, a partir de uma perspectiva sistêmica, dar conta das
interações entres atores heterogêneos (universidades, empresas, cooperativas, institutos de P&D, ONGs, organismos públicos e usuários inais),
processos (relações problema-solução e aprendizagens) e práticas (conhecimento e capacidades). A partir do enfoque construtivista, os processos
e práticas são produto da interação entre os atores, mas esses atores, por
sua vez, constituem suas identidades, conformam ideologias, ativam ou
impedem processos de inovação e mudança sociotécnica em função da
ativação de processos particulares e da produção, reprodução e circulação
de práticas concretas.
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Gráico 1. Modelo interativo sociocognitivo: caso geral
Fonte: Elaboração própria
O modelo geral pressupõe livre circulação de conhecimentos, luidez nas interações entre os diferentes atores que conformam o sistema, o
que em termos ideais possibilita a geração de aprendizagens e capacidades baseada na participação ampla e aberta da construção dos problemas
e na democratização das soluções. Em sua versão ideal, a maximização
dos processos de interação garante a geração de novas aprendizagens e,
por extensão, processos inovadores e de mudança tecnológica sustentáveis
ao longo do tempo, orientados à satisfação das necessidades e exigências
técnico-cognitivas das sociedades.
No entanto, na prática, os sistemas podem apresentar nós ou elementos-chave que deinem um “estilo” sistêmico. Nesse sentido, um sistema
pode girar em torno de um conjunto particular de instituições, como as
empresas maximizadoras de lucros. Qual a implicação disto? A coniguração das relações problemas-solução, a geração de conhecimento, o aumento de capacidades e o rumo das aprendizagens se orientam quase exclusivamente à potencialização do papel da empresa como “agente inovador”.
A matriz material que conigura a trama de relações institucionais confere
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a base necessária para que a ideologia enraizada na política pública (neste
caso, de ciência e tecnologia orientadas à geração de novos produtos e
mercados), as atividades dos grupos de pesquisa (assumindo a “evolução
da ciência e da tecnologia” e a neutralidade da “verdade” cientíica) e a legislação (garantindo irrestritamente a apropriação privada dos benefícios
da aprendizagem) reproduzam, em longo prazo, um estilo sistêmico em
que a produção sociocognitiva é apropriada individualmente.
Ainda mais signiicativo é entender que este estilo restringe (ao invés
de potencializar) as possibilidades de aprendizagem e, por extensão, de
formação de novas dinâmicas inovadoras. Isto se explica porque a dinâmica de gestão do conhecimento que detém uma empresa padrão maximizadora de lucros faz com que a mesma tente apropriar-se daquele, preservando-o para si, por meio de propriedade intelectual, ou silenciando-o
através do segredo industrial (ver Gráico 2). Para a empresa capitalista,
isto se dá necessariamente desse modo, dado que em seu entorno sistêmico o conhecimento e a aprendizagem são formas de obter vantagens
competitivas dinâmicas. As empresas se veem impelidas a apropriar-se da
“renda da aprendizagem” por ser esta sua forma de sobreviver em um ambiente regido pelo princípio da concorrência. Assim, sob um estilo centrado na empresa maximizadora de lucros, o resultado inovador esperado
das interações é menor do que o resultado esperado daqueles estilos que
proporcionam maior luidez às interações.
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Gráico 2. Modelo interativo sociocognitivo: centralidade da empresa maximizadora de lucros
Fonte: Elaboração própria
Contudo, sob a lógica cooperativista subjaz um princípio oposto ao da
competição. A mesma racionalidade que rege o interior das unidades produtivas cooperativistas pode ser aplicada (e na prática isso ocorre com as federações
ou as cooperativas associadas, como no caso de Mondragón e SanCor) entre
cooperativas. As empresas cooperativas podem (e tendem concretamente a)
interagir mais entre si e compartilhar mais conhecimento do que empresas
capitalistas comuns. Desse modo, se na raiz da inovação está o conhecimento
compartilhado, as cooperativas de trabalho podem ser atores geradores de inovação local mais eicazes do que as empresas capitalistas.
A lógica normal de uma rede de cooperativas de trabalho e serviços,
ao contrário, é socializar saberes. Assim é, porque sua constituição organizacional a conduz a racionalidades para as quais cooperar é o modo
normal de ser de uma cooperativa. Isso permite uma interação mais luida
no plano cognitivo. O estilo do sistema muda em seu conjunto se a centralidade repousa nas cooperativas de trabalho, em lugar de nas empresas
maximizadoras de lucros (ver Gráico 3).
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Gráico 3. Modelo interativo sociocognitivo: centralidade da cooperativa de
trabalho e produção
Fonte: Elaboração própria
Com base nisso, pode-se imaginar (e construir) outra forma de desenvolvimento cognitivo, na qual diferentes instituições – muito mais luidas
do que as empresas maximizadoras de lucros – vinculam-se a outras instituições públicas e, além disso, trocam conhecimentos em outras dinâmicas, como as universidades, os institutos de P&D, as cooperativas, os
usuários, as organizações não governamentais e os órgãos públicos.
Uma tal esfera de circulação de conhecimentos é viável na medida em
que uma unidade produtora não se aproprie exclusivamente do conhecimento gerado pelo sistema; só assim é possível pensar essas dinâmicas.
Nesse nível, as cooperativas podem socializar o conhecimento melhor do
que outras empresas que são focadas unicamente no lucro.
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Do modelo analítico à dimensão explicativa:
uma comparação entre empresas maximizadoras
de lucros e cooperativas de trabalho e produção
Uma vez exposto o modelo, é possível produzir análises complementares pela dimensão explicativa. Para a comparação entre empresas
maximizadoras de lucro e cooperativas, empregam-se quatro conceitos:
co-construção, relações problema-solução, funcionamento/não-funcionamento e aliança sociotécnica (homas, 2008a; 2008b).
A noção de co-construção sustenta que a sociedade é tecnologicamente construída, assim como a tecnologia é socialmente conformada. Tanto
a coniguração material de um sistema como a atribuição de sentido de
funcionamento a uma tecnologia (artefato, organização ou processo produtivo) produzem-se como derivação contingente das disputas, pressões,
resistências, negociações e convergências que vão conformando a articulação heterogênea entre atores, conhecimentos e artefatos materiais.
As dinâmicas de inovação e mudança tecnológica constituem processos de co-construção sociotécnica, o que signiica que as alterações em
algum desses elementos produzem mudanças tanto no sentido e funcionamento de uma tecnologia como nas relações sociais vinculadas a ela.
Nesse sentido, os “problemas” e as relações de correspondência “problema-solução” constituem construções sociotécnicas. Nos processos de
co-construção sociotécnica, a participação relativa do funcionamento
problema-solução alcança um caráter dominante de tal monta que condiciona o conjunto de práticas socioinstitucionais e, em particular, as dinâmicas de aprendizagem e a geração de instrumentos organizacionais.
O conhecimento gerado nesses processos problema-solução é em
parte codiicado e em parte tácito (só parcialmente explicitado: determinado por práticas cotidianas, desenvolvido no marco do processo de
tomada de decisões).
O “funcionamento” ou “não-funcionamento” de um artefato é resultado de um processo de construção sociotécnica no qual intervêm, normalmente de forma auto-organizada, elementos heterogêneos: condições materiais, sistemas, conhecimentos, regulações, inanciamento, prestações, etc.
O “funcionamento” (Bijker, 1995) dos artefatos não é algo dado, “intrínseco às características do artefato”, mas antes uma contingência que se
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constrói social, tecnológica e culturalmente. Supõe processos complexos
de adequação de respostas/soluções tecnológicas a articulações sociotécnicas concretas e especíicas historicamente situadas.
O “funcionamento” ou “não-funcionamento” de uma tecnologia é
uma relação interativa: é resultado de um processo de construção sociotécnica no qual intervêm elementos heterogêneos – sistemas, conhecimentos,
regulações, materiais, inanciamento, prestações, etc. É possível sugerir
que se constrói funcionamento no marco de processos de adequação sociotécnica: processos auto-organizados e interativos de integração de um
conhecimento, artefato ou sistema tecnológico em uma trajetória sociotécnica, sócio-historicamente situada. O funcionamento/não-funcionamento de uma tecnologia advém do sentido construído nesses processos
auto-organizados de adequação/inadequação sociotécnica: a adequação
gera funcionamento (homas; Buch, 2008).
A noção de aliança complementa, como mecanismo de análise, a articulação entre artefatos, materiais, conhecimentos e atores, conformando
a rede que viabiliza ou restringe as possibilidades de funcionamento/não-funcionamento de uma tecnologia.
É possível deinir uma aliança sociotécnica como uma coalizão
de elementos heterogêneos, implicados no processo de construção de
funcionamento/não-funcionamento de uma tecnologia. As alianças se
constituem dinamicamente, em termos de movimentos de alinhamento e coordenação de artefatos, ideologias, regulações, conhecimentos,
instituições, atores sociais, recursos econômicos, condições ambientais,
materiais, etc., que viabilizam ou impedem a estabilização da adequação
sociotécnica de uma tecnologia e a atribuição de sentido de funcionamento/não-funcionamento. Assim, as alianças sociotécnicas permitem
descrever e analisar as relações entre atores e sistemas tecnológicos, entre
grupos sociais relevantes e artefatos.
Dito isso, é possível utilizar esses conceitos para explicar as implicações sistêmicas que tem um sistema de inovação e produção centrado na
empresa maximizadora de lucros vis-a-vis as cooperativas de trabalho.
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Co-construção
Nesse aspecto, o que uma empresa maximizadora de lucros co-constrói? Em princípio, seleciona e promove normas vinculadas com o reforço
da apropriação dos ganhos e, portanto, da apropriação do conhecimento.
Como resultado, promove um modelo de acumulação baseado na noção
de renda capitalista e de concentração de renda, bem como na concorrência entre empresas.
No caso cooperativista, considera-se que, compartilhando e socializando, as coisas icarão melhores para todos em termos de solidariedade, igualdade e equidade, de cooperação e coordenação entre instituições, e que,
dessa forma, talvez se produza uma trama social capaz de incluir todos.
Relações problema-solução
Além disso, as relações problema-solução são distintas, caso se tratem
de empresas maximizadoras de lucro ou de cooperativas. Em princípio,
nas primeiras, registram-se como relações problema-solução, e em particular como solução válida para todo tipo de problemas, aquelas que têm a
ver com a maximização da renda.
Em primeiro lugar, está a construção do problema. Qual é o problema? Problema é tudo aquilo que impede o aumento da produtividade e/
ou da competitividade e impossibilita o aumento da taxa de lucro. Esse
é o problema para uma empresa capitalista. O problema não se constrói
em torno do tipo de qualidade do emprego, das necessidades das famílias
que integram a comunidade da empresa, ou da produção de bens (com
qualidade e em quantidade suiciente) necessários à melhoria da qualidade
de vida de uma comunidade. Para resolver este tipo de problemas, seria
preciso ter participação no poder do construtor do problema. A empresa
capitalista trata de fazer com que poucos participem da construção do
problema e, menos ainda, do desenho da solução correspondente.
No caso das cooperativas, é inevitável que os que constroem o problema e participam do benefício da solução sejam os mesmos. Isso é
muito mais aberto e democrático; ao mesmo tempo, é muito mais eiciente em termos técnico-produtivos e muito mais aberto em termos de
processo de aprendizagem.
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Funcionamento/não-funcionamento
Quando uma tecnologia funciona, na prática isso tem a ver com o
fato de que ela é compatível não só com outras tecnologias, mas também
com sua dotação inicial de fatores, com a capacidade dos trabalhadores
para operarem essa tecnologia, com o gosto dos usuários e seu nível de
conhecimentos para utilizá-la, entre outras coisas. Isto é, algo funciona,
não porque esteja “bem” ou “mal” construído, mas porque se conecta
bem com tudo o que existe previamente, e porque alguns grupos decisores
participam do processo de construção de seu funcionamento (homas,
2008a; 2008b; 2009).
A questão, então, é: a que se adéquam as tecnologias geradas por empresas maximizadoras de lucros? Estas empresas geram dinâmicas sociotécnicas nas quais – metaforicamente – tudo o que se conecta com o resto
do sistema gera renda.
Para uma empresa capitalista, o que funciona é tudo aquilo que serve
para maximizar os ganhos do capital, e tudo o que não serve para isso não
é útil, não funciona. É, de fato, por essa razão que algumas tecnologias
“evoluem” mais rapidamente do que outras; as empresas focam algumas
delas, não todas. Esse é o motivo pelo qual algumas estratégias em termos
de terapias clínicas, por exemplo, são fomentadas por algumas empresas, e
há outras que evidentemente são pouco exploradas.
Por outro lado, as cooperativas constroem – ou pelo menos deveriam
construir – os problemas de outro modo; problemas que têm a ver com
a vida das pessoas que trabalham nas tecnologias do processo, problemas
dos beneiciários ou usuários inais das tecnologias de produto.
Alianças sociotécnicas
Finalmente, conforme a teoria construtivista da tecnologia, as tecnologias (em suas dimensões organizacional, de artefato e de processo) funcionam através de alianças complexas e heterogêneas. Em alianças entre
atores e actantes. Por exemplo, promulga-se uma regulação beneiciando
certo setor técnico-produtivo que utiliza determinado tipo de tecnologia,
com engenheiros capazes de desenvolver certas máquinas, as quais, por sua
vez, dão sentido a determinados trabalhadores que possuem certas capacidades – máquinas e trabalhadores geradores de produtos que são consumi-
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dos por determinados consumidores. Por trás do automóvel de combustão
interna há uma gigantesca aliança internacional que envolve desde aquele
que troca os pneus das empresas Pirelli ou Goodyear, passando pela rede
de abastecimento de combustíveis, por siderúrgicas que fabricam a chapa,
consumidores de automóveis, a necessidade de percorrer médias e longas
distâncias, até a política energética exterior estadunidense. Isto é o que se
deine como uma aliança sociotécnica.
É por isso que é tão problemático fazer uma aliança alternativa: para
poder colocar em funcionamento um veículo de tecnologia alternativa –
vale lembrar que o funcionamento é uma construção sociotécnica –, é preciso outra aliança, não basta desenvolver um motor elétrico e baterias de lítio.
Quando se pensam estratégias públicas em que o desenvolvimento
técnico-produtivo e social está associado à incorporação de grandes empresas transnacionais mediante inversão externa direta (seguindo a lógica
tradicional da economia da mudança tecnológica antes enunciada), invisibilizam-se as consequências geradas pelas alianças sociotécnicas das quais
já fazem parte.
Nesse contexto, as cooperativas de trabalho são atores privilegiados
em uma estratégia de mudança tecnológica, desenvolvimento local e inclusão social. Assim, as cooperativas de trabalho podem viabilizar outro
tipo de alianças que seriam impossíveis caso fossem estruturadas em torno
das empresas maximizadoras de lucros.
Evidentemente, a pergunta que surge de imediato é sobre os recursos
necessários para tornar estas novas alianças suicientemente fortes para
disputar poder em relação às já existentes.
Observando-se as dinâmicas políticas e econômicas vigentes, ica claro
que atualmente os governos da região privilegiam as inversões e subsídios
destinados a radicar empresas transnacionais, a assegurar a subsistência
das grandes empresas nacionais e, em muito pequena medida, estabelecem um fundo para gerar novas dinâmicas locais. As grandes irmas locais
existem, porque o Estado gera as condições adequadas para sua existência
e permanência. Em outras palavras, formulam-se políticas ativas para promover o uso de tecnologias maximizadoras de lucro. Portanto, é possível
pensar políticas alternativas orientadas à geração de processos de desenvolvimento inclusivo, reorientando os fundos públicos que hoje constroem o
funcionamento das grandes empresas capitalistas.
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Aportes para uma política de C&T orientada ao desenvolvimento
inclusivo: rumo à geração de sistemas tecnológicos sociais
Em primeiro lugar, não se pode ser ingênuo. Não se trata de uma tecnologia singular, não se trata de fazer um automóvel, um computador, um
software, um medicamento; trata-se, sim, de gerar sistemas tecnológicos
sociais completos – a base material de novas alianças sociotécnicas – que
tenham outra orientação, que se retroalimentem entre si, que sejam mutuamente compatíveis.
Entendem-se tais sistemas tecnológico-sociais como sistemas sociotécnicos heterogêneos (de atores e artefatos, de comunidades e sistemas
tecnológicos) voltados à geração de dinâmicas de inclusão social e econômica, democratização da tomada de decisões tecnológicas e desenvolvimento sustentável. Eles implicam ações de concepção de produtos,
processos produtivos e tecnologias de organização focalizadas em relações
problema/solução inclusivas, adequadas para:
• a socialização dos bens e serviços
• a democratização do controle e das decisões
• o empoderamento das comunidades de produtores e usuários
Porque uma tecnologia singular não é suiciente para mudar uma dinâmica sociotécnica.
A noção de alianças sociotécnicas permite pensar em termos estratégicos. Suscita perguntas do tipo: O que se vai admitir? De que modo
será desenvolvido? Que tecnologias serão consideradas no estado em que
se encontram e quais serão modiicadas? Como se irá operar sobre elas?
Todas essas questões são operacionalizáveis; não são racionalizações ideais.
Pode-se começar, por exemplo, conferindo utilidade social ao conhecimento cientíico e tecnológico produzido localmente. A maior parte do
conhecimento produzido na região é conhecimento aplicável não aplicado (CANA) (Kreimer; homas, 2002). Conhecimento que, no entanto,
se “aplica” em outros lugares, é utilizado por outros atores, em outras regiões,
mas não é utilizado para resolver os problemas sociais locais.
Em segundo lugar, é preciso ter em conta, em termos das políticas
públicas no plano sociocognitivo, que existe uma contradição entre apropriação e socialização do conhecimento. Não se trata aqui de uma socialização ingênua do conhecimento: conceber o conhecimento como um
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bem público não signiica declará-lo de “livre uso”. Existem diferentes
formas de licenciar conhecimento para deinir quais usuários, quais grupos sociais e quais empresas podem ou não fazer uso dele. Trata-se simplesmente de colocar em ação um Estado um pouco mais perspicaz em termos
de escolhas e de legislações.
Nesse sentido, as cooperativas de trabalho podem constituir o novo
locus da inovação ou, pelo menos, um dos loci privilegiados da inovação.
Para tanto, seria preciso criar novas formas de inanciamento: créditos para
desenvolvimento e aprendizagem, subsídios para inovação. Em lugar de
ver a relação universidade-empresa em termos não especíicos, considerar
a relação universidade-cooperativas em termos estratégicos. Tal vinculação
interinstitucional, na verdade, já está ocorrendo.
Ampliação do espaço público
Em termos socioeconômicos, é necessário pensar dinâmicas de economia e aprendizagem e abrir novos espaços públicos. Em termos de inovação tecnológica, o território do público pode expandir-se. Há potencial
para o desenvolvimento de tecnologias em saúde pública e educação pública. As estruturas públicas de transporte, habitação e alimentação podem – e devem – ser melhoradas.
No plano sociopolítico, esta ampliação do espaço público vincula a
governabilidade dos países da região à produção de bens comuns: bens
que compartilhamos entre todos e que podemos governar conjuntamente.
A ampliação do espaço público permitiria melhorar nossa qualidade de
vida: o acesso a bens e serviços, ao conhecimento e às culturas, o desenvolvimento de novas formas de existência e de convivência. No momento atual,
alguém está escolhendo e deine o que, de um modo geral, não convém à
sociedade em seu conjunto; escolhe o caro e não o acessível, escolhe para
poucos e não para muitos; escolhe o exclusivo e não o inclusivo. Ampliar
o espaço público, enim, não é mais do que recuperar esferas de cidadania.
Cidadania sociotécnica
Quando se pensa em cidadania sociotécnica, é inevitável reletir sobre
“Quem toma as decisões tecnológicas em nossos países?” Em favor de
quem? De acordo com quais interesses? Com que níveis de risco aceitáveis? Neste âmbito, socializar a apropriação das tecnologias é uma questão
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não secundária, não trivial. Não se trata apenas de um problema ambiental ou produtivo, local ou empresarial, é um problema de sobrevivência.
Os sistemas tecnológicos sociais podem ser a forma mais democrática
de conceber, desenvolver, produzir, implementar, gerir e avaliar a matriz
material do futuro. Porque é disso que trata a tecnologia: do matriz material que possibilita às sociedades humanas se manter vivas. Nesse aspecto,
as cooperativas de trabalho e outras articulações sociais (como empresas
públicas, universidades e institutos de P&D) – que não passam pela empresa maximizadora de lucros – podem ser os loci mais adequados para
conceber e produzir esses sistemas tecnológicos sociais.
O destino das sociedades futuras, em se tratando de igualdade de direitos, geração de espaços de liberdade, qualidade de vida da população,
consolidação das democracias e preservação do meio ambiente, depende
da base material sobre a qual elas se desenvolvem.
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A produção de conhecimento sobre
os movimentos sociais na América Latina
Maria da Glória Gohn
Sabe-se que, no campo teórico para a análise sobre movimentos sociais,
nas últimas cinco décadas, houve grande inluência do referencial de produção de conhecimento cientíico construído nos países do Norte, nas
análises e explicações sobre os movimentos e mobilizações ocorridas no
Sul no mesmo período. Indaga-se neste texto: Quais as especiicidades dos
movimentos sociais latino-americanos em relação aos movimentos que
ocorrem no Norte, em diferentes tempos históricos? Por que muitos pesquisadores tratam movimentos e outros fenômenos sociais do Sul com um
referencial teórico advindo do Norte? É possível falar de uma teoria dos
movimentos sociais do Sul?
Para uma melhor compreensão de possíveis respostas, temos de contextualizar as indagações. Retrocedendo na História, tomo como exemplo
três momentos signiicativos na América Latina relativos à ocorrência de
movimentos e análises a respeito. Estes momentos localizam-se nas décadas de 1960, inal dos anos 70 e parte dos 80, e na atualidade.
Movimentos sociais nos anos de 1960
Sabe-se que a década de 1960 foi uma década de movimentos, mudanças e transformações em várias partes do mundo. Alguns movimentos tinham matrizes temáticas similares em várias regiões do mundo, tais
como o movimento dos estudantes. Entretanto eles se desenvolveram de
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variadas formas segundo as conjunturas política, social e econômica dos
países. Assim, Maio de 68 na França, Alemanha ou Estados Unidos foi
muito diferente de Maio de 68 no Brasil ou em Córdoba/Argentina, países então sob regimes militares. No Brasil, por exemplo, as rebeliões estudantis cerraram ileiras contra o regime militar. As passeatas e manifestações nas ruas foram enfrentamentos com a polícia e órgãos de repressão.
Entretanto uma boa parte da interpretação que se fez sobre o período, no
Sul, adveio de análises que tomaram como foco eventos centrados no Norte. Destaco dois autores que tiveram papel importante a respeito: Alain
Touraine e Herbert Marcuse, além da inluência de Jean Paul Satre. Eles
destacaram que as manifestações, no seu nascedouro, buscavam muito
mais uma mudança nos costumes, nos comportamentos, na cultura universitária tradicional vigente, do que uma mudança de regime político. A
sequência dos acontecimentos tomou vulto e trouxe questionamentos a
respeito do poder político também.
Olhando para América Latina nos anos de 1960, observa-se que tivemos, além dos estudantes, vários outros movimentos que se explicam como
heranças de nosso passado colonial, escravocrata e opressor dos povos indígenas. No meio rural, teve-se, por exemplo, as Ligas Camponesas no Brasil;
nas cidades, houve muitas greves operárias. Enquanto no mundo urbano o
repertório era moderno e se expressava por meio de marchas, demonstrações
e greves, no mundo agrário, predominante na maioria da América Latina
de então, os protestos foram focalizados, com uso de violência, de duração limitada, com ações diretas contra os oponentes, responsáveis por atos
de injustiças. Vários autores latino-americanos buscaram entender aquelas
manifestações segundo teorias da modernização, contrapondo o rural ao urbano nos moldes dos processos históricos ocorridos na Europa, numa visão
etapista e linear, ou utilizando-se de teorias da marginalidade social, algumas
em versões criadas ou desenvolvidas nos Estados Unidos.
Registre-se, entretanto, que na América Latina ocorreram vários esforços, nas décadas de 1960 e 1970, para entender as especiicidades das lutas e
movimentos latino-americanos, a exemplo de Rodolfo Stavenhagen, Lúcio
Kowarick, Aníbal Quijano, André Gunder Frank e outros latino-americanos. A teoria da dependência, com Enzo Falleto e Fernando Henrique
Cardoso (1972), também pontuou especiicidades do processo latino-americano. Entretanto a produção mais notável nesse período, no sentido
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de captar diferenças entre olhares, adveio de autores que reletiram sobre
as relações de opressão contribuindo para as bases de um pensamento do
Sul, ainda que eles tivessem vivido experiências no Norte. Como exemplo
cito Frantz Fanon (1968), autor que eu considero o verdadeiro criador de
uma Pedagogia do Oprimido (Paulo Freire parece ter-se inspirado nele).
A seguir, reproduzo longa citação de artigo de Wallerstein (2008, p. 4) a
respeito da vida e da principal obra de Fanon, Os condenados da terra (Les
damnés de la terre, 1961):
O livro traz um prefácio famoso da autoria de Jean-Paul Sartre, que
Fanon achava brilhante. O título, evidentemente, era tirado do primeiro verso da Internacional, o hino do movimento operário mundial.
Foi este livro, e não o primeiro, que granjeou a Fanon uma reputação
mundial, incluindo, é claro, nos Estados Unidos. O livro tornou-se
quase uma bíblia para todos os que estavam envolvidos nos muitos e
diversos movimentos que culminaram na revolução mundial de 1968.
Depois de as labaredas de 1968 se terem extinguido, a obra de Fanon
retirou-se para um canto menos turbulento. E, no inal dos anos oitenta, os vários movimentos identitários e pós-coloniais descobriram
o primeiro livro, a que prodigalizaram a sua atenção, em grande parte
sem entenderem o que Fanon queria dizer com ele. Fosse o que fosse
que Fanon era, ele não era um pós-modernista. Em vez disso, podia
ser caracterizado como tendo uma parte de freudiano marxista, uma
parte de marxista freudiano e, no fundamental, como estando inteiramente empenhado em movimentos revolucionários de libertação. [....]
Também me chama a atenção, como chamou a Sartre, o grau em que
estes livros não se dirigem de modo nenhum aos poderosos do mundo,
mas antes aos “condenados da terra”, uma categoria que, para o autor,
e largamente coincidente com “as pessoas de cor”. Fanon está sempre enfurecido com os poderosos, que são, ao mesmo tempo, cruéis
e condescendentes. Mas está ainda mais enfurecido com as pessoas de
cor cujo comportamento e atitudes contribuem para manter o mundo
de desigualdades e de humilhação e que, muitas vezes, se comportam
assim apenas para obter umas migalhas para si próprias.
O que se pode concluir provisoriamente até aqui é que a chave para
o entendimento da questão da dominação na produção de saberes não é
dada pelo território onde a teoria é produzida ou pela nacionalidade de seu
produtor ou reprodutor. O que importa é qualiicar a natureza destes sa-
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beres quanto aos seus pontos de vista já que, como disse Bof, todo ponto
de vista parte de um ponto. Que interesses, grupos, sujeitos, valores e processos sociais este ponto de vista privilegia? Esta chave também pode ser
observada na literatura. Nos anos 60, foram lançadas as principais obras
de autores que se tornaram referência para as gerações, a exemplo de Julio
Cortázar (História de cronópios e das famas), Alejo Carpentier (O século das
luzes), Mario Vargas Llosa (A cidade e os cachorros), Gabriel Garcia Márquez (A má hora) e outros. Estes autores foram inluenciados por James
Joyce, Wiliam Faulkner, Franz Kafka e outros. Mas todos eles, em diferentes contextos nacionais, buscaram trazer e reconstruir perspectivas para o
universo latino-americano.
Movimentos sociais dos direitos civis nos Estados Unidos,
teorias norte-americanas e influências na América Latina
Nas décadas de 50-60 do século passado, igualmente teve-se um
movimento vigoroso por direitos civis nos Estados Unidos, que levou à
construção de várias teorias explicativas, a exemplo da Teoria de Mobilização de Recursos (Olson) ou as teorias de Mobilização Política (TMP)
(Tilly, MacAdam e Tarrow). Alguns autores denominam esta última
abordagem como Teoria do Processo Político (TPP). A TMP dá à ênfase aos ciclos e processos de mobilizações sociopolíticas e o foco nas
organizações e nos processos de institucionalização das ações coletivas
(Gohn, 2012c). Foi construída a partir de debates com outras teorias,
a exemplo da Teoria da Escolha Racional dos anos de 1960 de Mancur
Olson, reconstruída pela TMP; a Teoria da Mobilização de Recursos de
John McCarthy e Mayer Zald e outros, dos anos de 1970, bastante criticada na TMP; críticas às velhas abordagens sobre o collective behavior,
herança das abordagens psicossociais que predominaram na primeira
metade do século XX (ver Smelser, 1963). A TMP dialogou também
com as teorias culturais e identitárias de autores europeus, tais como a
dos Novos Movimentos Sociais (A. Touraine, A. Melucci), e com a produção norte-americana sobre os movimentos sociais nos debates sobre as
questões: estruturas x ações dos atores (J. Cohen).
As abordagens clássicas norte-americanas predominantes até a década
de 60 nos Estados Unidos assinalavam que os movimentos sociais tinham
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suas raízes nas noções da psicologia social, especialmente na questão da
privação social das multidões (Gohn, 2012c). Elas viam “as ações de massas como expressão do colapso da sociedade e da anomia social; era frequente considerar-se que os seus dirigentes agiam levados por impulsos
psíquicos inconscientes, e que os que nelas participavam iam atrás de uma
ideologia irracional” (Flacks, 2005, p. 49). Mas a partir dos anos 1960,
esta abordagem passou a ser criticada no seio da própria comunidade de
acadêmicos que viviam nos Estados Unidos, surgindo deste processo outras interpretações. As teorias da Mobilização de Recursos e da Mobilização Política surgiram deste debate crítico.
Várias dessas teorias têm sido utilizadas e proclamadas na atualidade,
especialmente no Brasil, como inovações no campo analítico. Elas foram
construídas para explicar realidades e tempos históricos completamente
diferentes da América Latina. Em relação à onda de movimentos sociais
de base ocorrida na América Latina, especialmente no Brasil, a partir dos
anos 1970, esta abordagem tem um ponto em comum: o pragmatismo,
o desejo de que a pesquisa estivesse a serviço dos pesquisados e não do
pesquisador. Segundo Flacks, “a nova visão” dos movimentos sociais pós
anos sessenta passava por uma ênfase nos movimentos enquanto “política
por outros meios”, encarando-os como esforços coletivos no sentido da
prossecução de determinados interesses através de estratégias inteligíveis e
apontando objetivos racionais. Para compreender os movimentos não era
preciso fazer a psicanálise dos participantes, mas antes que se explicassem
os modos como o surgimento e a evolução de um dado movimento estavam relacionados com as oportunidades, as ameaças e os recursos disponíveis para atingir os respectivos ins. Ainal, a participação em movimentos
explicava-se melhor através da análise dos modos como os participantes se
achavam inseridos nas comunidades e redes do que com base no pressuposto de que se tratava de gente desenraizada ou socialmente alienada. Em
vez de ver os movimentos como forças irracionais ou destrutivas, era mais
iel à verdade histórica reconhecer o seu papel constitutivo no moldar das
sociedades modernas (Flacks, 2005, p. 49).
A TMP foi muito pouco utilizada no Brasil nas décadas de 1980 e
1990, na análise dos movimentos que aqui ocorriam, quando surgiram
vários estudos e publicações sobre a “era movimentalista” dos movimentos
sociais no Brasil. Neste novo século, a abordagem de Tilly e colaboradores
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tem sido “redescoberta” e utilizada por vários pesquisadores e professores
de universidades brasileiras. Foi traduzido para o português um dos livros
mais conhecidos do grupo que é Power in Movement, de Sidney Tarrow
(publicado nos Estados Unidos em 1994, edição revista em 1998, a qual
foi a base para a tradução para o português em 2009). A abordagem de
Tarrow focaliza as relações entre as ações coletivas e o estado, buscando reconstruir seus “frames”– quadros e repertórios de atuação, localizando-as
no tempo em termos de média ou longa duração, destacando os processos
de oportunidades políticas construídos, assim como priorizando a dimensão cultural dos atores em cena.
A abordagem dos novos movimentos sociais
nas décadas de 1970-1980
Na década de 1970 e parte de 1980, loresceu na América Latina o
que se denominou “novos movimentos sociais”. Foram movimentos organizados em periferias urbanas, articulados com pastorais cristãs e intelectuais engajadas na luta contra o regime militar. Estes movimentos eram
muito diferentes dos movimentos identitários de mulheres, afrodescendentes ou indígenas, assim como diferentes dos movimentos ambientalistas que se iniciavam no Brasil, por exemplo. No conjunto estes movimentos diferenciavam-se dos movimentos europeus da época, lá focados mais
em questões ambientais, da mulher, dos imigrantes etc. Mas a maioria
deles, tanto na Europa como na América Latina, foram analisados sob o
paradigma dos “novos movimentos sociais”, tendo Alberto Melucci, Alain
Touraine, Manuel Castells, Claus Ofe, etc. como principais referenciais
teóricos, além de Gramsci e suas formulações sobre a sociedade civil. Na
ocasião, a preocupação principal era apontar as novidades que estes movimentos traziam em relação aos movimentos operários, até então vistos
por várias abordagens como os “sujeitos históricos por excelência”. Claus
Ofe demarcou o debate da época entre as novas e as velhas formas de
movimentos sociais. O antigo debate do período pós 1945, “revolução” e
“reforma” icou para trás porque não se tratava mais de discutir a nação,
o modelo econômico; a própria classe operária tinha se modernizado. No
Brasil lutavam contra o regime militar via contestação das políticas de
arrocho salarial, criando formas novas de sindicalismo no ABCD paulista,
que logo se difundiram por todo país.
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A partir de 1980 impera uma nova era de organização dos movimentos sociais na América Latina: os movimentos identitários. No Brasil, após
a Constituição de 1988, políticas públicas reforçaram esta hegemonia,
com o reconhecimento de vários direitos sociais das mulheres, afrodescendentes, crianças/adolescentes, idosos, homossexuais, etc. Esta nova era cria
novos peris ao associativismo civil, menos organizado via movimentos
sociais de reivindicações, lutas e pressão diretas, e mais focalizadas em organizações sociais que visam ao desenvolvimento de projetos e programas
sociais em parceria com órgãos estatais. De um lado pode-se fazer uma
leitura: conquista e exercício de direitos, vivência da cidadania. De outro,
um olhar mais preciso e acurado verá que, na maioria das vezes, trata-se
de uma cidadania tutelada, outorgada, onde autonomia transigura-se em
sustentabilidade – viver com recursos gerados pelos próprios grupos, a
partir de estruturas de apoio de ONGs e associações civis, estando estas
plugadas em editais, apoios e auxílios governamentais, e em projetos de
extensão universitários. Esta participação institucionalizada se contrapõe
a movimentos que lutam por direitos, pela emancipação, localizados mais
no plano rural e nos territórios dos povos originários indígenas. Autores
europeus também foram fundamentais no debate e na análise da nova fase
dos movimentos e associativismo civil, a exemplo de Axel Honneth e a
Teoria do Reconhecimento, além de N. Bobbio e H. Arendt na questão
do espaço público (com ênfase nas formas não estatais).
Abordagens teóricas contemporâneas
sobre movimentos na América Latina contemporânea
A abordagem humanista
A abordagem humanista/holística pode ser observada no caso dos povos indígenas da Bolívia. Dentre os princípios que dão suporte à nova
Constituição e à lei boliviana de Participação e Controle Social de 2010
está o do vivir bien, ou Suma Kamana – que envolve a ideia holística
de viver bem e em equilíbrio entre os seres humanos e com a natureza.
A incorporação desta categoria no universo de reconstrução do Estado e
nação boliviana (a qual foi também incorporada na nova Constituição do
Equador) promove uma mudança paradigmática por promover a interculturalização no país. A população é convidada a pensar e agir com prin233
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cípios de seus ancestrais, num movimento de descolonização de ideias e
práticas. O eixo articulatório desta abordagem é dado por uma concepção
de desenvolvimento – antes associada a desenvolvimento e crescimento
econômico – voltada para uma visão humanista, que enfatiza o indivíduo
e a qualidade de vida, denominada por alguns como “desenvolvimento
humano integral e sustentável”.
As teorias pós-coloniais na análise dos movimentos sociais
As teorias pós-coloniais também são denominadas por alguns como
das racionalidades alternativas. Incluem autores da Europa, Estados Unidos, América Latina e Ásia. O leque de autores é vasto destacando-se: Boaventura de Souza Santos, Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Walter Mignolo, Spivak, S. Hall, P. Gilroy, Édouard Glissant, Serge Gruzinski etc.,
além de precursores como F. Fanon , Orlando Fals Borda, H. Bhabha, E.
Said, Darcy Ribeiro, etc. (ver Gohn, 2012b).
O enfoque pós-colonial não foi construído para explicar especiicamente mobilizações sociais, mas ele tem sido uma das vertentes que têm
revitalizado o debate teórico sobre os movimentos sociais porque foca
pontos centrais nas lutas e movimentos sociais da América Latina: a apropriação do saber dos povos nativos, a expropriação de suas terras e cultura
e os processos de dominação que as metrópoles impuseram aos colonizados. Os oprimidos desenvolveram culturas de resistência – ora se calam,
ora se insurgem, porque a situação se perpetua, com mudanças históricas
no cenário político e econômico. A teoria pós-colonial teve sua elaboração
inicial na Europa em relação ao tema da colonização, especialmente na
África e as formas coloniais ainda lá existentes (ver Spivak, 2009).
Segundo Wallerstein (2008, p. 10):
[...] em torno da questão da identidade cultural, da identidade nacional, encontramos o dilema fundamental que assolou todo o pensamento anti-sistêmico no último meio século e, provavelmente, assolará
também o meio século seguinte. A rejeição do universalismo europeu é
fundamental para a rejeição do domínio pan-europeu e da sua retórica
do poder na estrutura do sistema-mundo moderno, aquilo que Aníbal
Quijano designou por colonialidade do poder.
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Na América Latina os adeptos das teorias pós-coloniais recuperam,
do período de sua formação histórica, a matriz do poder colonial no século
XVI. A fundamentação deste poder está no controle do conhecimento,
fazendo deste controle as bases do domínio político, econômico, cultural e
social. O saber dominante, colonial, desqualiicou outros conhecimentos
e saberes que não o do colonizador, europeu, do hemisfério Norte, advindo dos brancos, etc. Com isto, o problema central da América Latina
seria a descolonização do saber e do ser (enquanto repositório de práticas
e valores que mantêm e reproduzem subjetividades e conhecimentos), saberes estes que “são mantidos por um tipo de economia que alimenta as
instituições, os argumentos e os consumidores” (Mignolo, 2009, p. 254).
Na mesma linha de argumentos, Sirvent (2008) airma que um dos grandes problemas sociais contemporâneos é o fenômeno da naturalização da
injustiça, da exploração e da pobreza nas mentes da população, inibindo
o desenvolvimento do pensamento crítico. Com isto, o poder dominante
foi se transformando em nosso sentido comum. Sirvent preconiza a necessidade de se construir poder por meio do conhecimento, e isso implica
“construir categorias para pensar a realidade que possam gerar ações de
mobilização coletiva em confrontação com os signiicados que desmobilizam e paralisam” (Sirvent, 2008, p. 22).
Dussel (2002) contribui para novos olhares sobre os movimentos sociais ao analisar uma pedagogia crítica que contribui para a emancipação
dos oprimidos, numa abordagem que une Paulo Freire, a Escola de Frankfurt – especialmente Marcuse –, análises de Freud, Nietzsche e Lévinas,
etc. para criar uma “ética da libertação” a partir da construção da identidade das vítimas. A ética da libertação realiza-se com a consciência ética
de ser vítima, ela se transforma em sujeito pela comunidade. O comunitarismo e o neocomunitarismo são um veio analítico utilizado em algumas
vertentes das teorias da descolonização.
As interpretações contemporâneas sobre os movimentos sociais que se
apoiam nas teorias pós-coloniais reforçam o questionamento dos paradigmas e teorias hegemônicas.
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Interpretações atuais
A partir dos efeitos dos movimentos sociais da década de 1960 – direitos civis (Estados Unidos), estudantes (França, Alemanha, a ex-Checoslováquia, Estados Unidos, América Latina, etc.) – o campo dos movimentos
sociais se amplia e airma-se como estudo de movimentos e não apenas
ações coletivas. Destacamos que a América do Norte, a Europa e a América Latina possuem contextos históricos especíicos e lutas e movimentos
sociais correspondentes a estes contextos. Europa e América do Norte formularam teorias próprias. Na América Latina, as posturas metodológicas
foram híbridas, geraram muitas informações, mas o conhecimento produzido foi orientado basicamente por teorias criadas em outros contextos,
diferentes de suas realidades nacionais, como a teoria europeia dos novos
movimentos sociais. Poucos estudos dedicam-se às questões teóricas envolvidas, embora todos eles sejam realizados sob um dado prisma no leque
das abordagens teórico-metodológicas existentes.
Resistência e autonomia são categorias chaves, especialmente nas abordagens sobre os movimentos dos povos indígenas, camponeses, etc. Entretanto, o desenvolvimento do processo democrático em vários países tem
levado a políticas públicas formuladas a partir de diálogos e parcerias com
a sociedade civil organizada, de forma despolitizada, deixando muitos movimentos sociais com pouco espaço para suas ações. Neste cenário, as abordagens advindas das teorias da Mobilização Política, com suas categorias,
estruturas de oportunidades, contentious politics, frames, etc. têm ganhado
espaço porque elas focalizam menos os conlitos, e mais as negociações, a
“engenharia do social” tecida nas estruturas institucionalizadas. O movimento dos afrodescendentes, especialmente no Brasil, tem sido analisado
sob este enfoque (aliado à teoria do reconhecimento), dada a atuação do poder público na última década em questões como a dos quilombolas (terras
de ex-escravos), cotas para acesso a universidades, públicas e privadas (essas
últimas com o Prouni-Programa Universidade para Todos).
Os novos movimentos sociais da contemporaneidade, especialmente
as mobilizações Primavera Árabe, Indignados na Europa, Occupy Wall Street
nos Estados Unidos e em várias regiões do mundo, e estudantes (Chile e
outros) têm alterado profundamente o cenário das mobilizações transnacionais: passou da antiglobalização (ou alterglobalização) para a negação
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da globalização e seus efeitos sobre a economia e o social. Pensando em
termos de uma Sociologia dos Movimentos Sociais (vide Gohn, 2013c),
concluímos que os atuais movimentos estão operando uma renovação nas
lutas sociais da magnitude que os novos movimentos sociais operaram
nas décadas de 1960, 1970 e parte de 1980 (América Latina). Eles estão
reformulando a pauta das demandas e repolitizando-os de forma nova, na
maioria das vezes independente das estruturas partidárias.
A nova etapa das lutas sociais se faz aliando inovações tecnológicas
e retorno às teorias do século XIX, totalmente revisadas. De um lado, os
neomarxistas, de outro, o socialismo libertário e o humanismo holístico,
em certos segmentos dos povos indígenas da realidade latino-americana
como a teoria do “buen vivir”. No plano das análises, não se trata mais de
contrapor os novos movimentos sociais – nucleados em torno de questões
identitárias, tais como sexo, etnia, raça, faixa etária, etc. – aos “velhos”
movimentos, dos trabalhadores, como Clauss Ofe e outros izeram na década de 1980, por exemplo. Não se trata, portanto, de contrapor tipos de
movimentos ou ações coletivas e nem paradigmas teóricos interpretativos
como mais ou menos adequados, até porque todos eles continuam a coexistir com os novos. Trata-se de reconhecer a diversidade de movimentos e
ações civis coletivas, suas articulações e os marcos interpretativos que têm
lhes atribuídos sentidos e signiicados novos, o que eles têm trazido à luz
no campo da investigação de uma Sociologia dos Movimentos Sociais.
Resulta do novo cenário que movimentos sociais voltaram a ter visibilidade e centralidade na nova década do século XXI, como atores que
pressionam por processos de mudança social e reinventam as formas de fazer
política. Eles também se transformaram bastante, realizaram deslocamentos
em suas identidades e incorporaram outras dimensões do pensar e agir social. Alteram seus projetos políticos. Mas como são muitos e heterogêneos,
parte deles fragmentou-se, perdeu ou redeiniu sua identidade, ideias e pontos de vistas centrais, alterando o projeto e a cultura política existente. Outros se redeiniram segundo as mudanças de outros atores sociais em cena.
Outros ainda aproveitaram brechas e se conectaram com as possibilidades
dadas pela globalização, econômica (geradora de resistências e protestos) e
cultural (geradora de novas sociabilidades, novas interações e aprendizagens
baseadas na pedagogia do exemplo – aprender via observação – nos grandes
eventos transnacionais, ou via conexão na rede internet). O peril dos parti-
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cipantes alterou-se de militante para um ativista. As Marchas tornaram-se o
modelo básico de protesto. As redes sociais substituíram os “muros de Paris”
como divulgadora das demandas e das palavras de ordem e articuladora das
ações em si, lembrando e comparando com 1968.
Segundo Flacks (2005, p. 59):
Doug Bevington e Chris Dixon, estudantes de pós-graduação em sociologia e ativistas da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, izeram recentemente um inquérito informal junto de ativistas antiglobalização, com
vista a fazer um levantamento dos recursos intelectuais e dos discursos
teóricos que os norteavam. As conclusões a que chegaram conirmam a
crítica que aqui faço: a bibliograia atualmente existente sobre a sociologia
dos movimentos sociais não ocupa um lugar prioritário nas listas de leitura
dos ativistas, ao contrário do que sucede com obras como os estudos de
caso históricos e contemporâneos, as biograias e os livros de memórias.
Mais importante do que isso, no entanto, é o inventário esboçado por
Bevington e Dixon da discussão teoricamente relevante disponível em
“websites” de ativistas e em publicações vocacionadas para a relexão sobre
os movimentos. Para além de se centrarem em questões relativas à estratégia, à táctica e à construção dos movimentos, estas discussões revelam uma
grande preocupação com o modo de assegurar a sua permanente democratização. [...] Perante este quadro, de imediato se reconhece que os ativistas
de hoje continuam a debater-se com questões que são centrais para a teoria
social dos acadêmicos há pelo menos um século.
Concluindo
Se considerarmos como “teoria” um determinado quadro intelectual
que nos fornece explicações para a compreensão dos fenômenos analisados
assim como extrair possibilidades para delinear rumos sobre o futuro do
estudo em tela, nos países do Sul temos elementos para várias teorias sobre
os movimentos sociais, mas nenhuma completamente consolidada nos
marcos das especiicidades locais. O que dispomos é de um grande acervo
de narrativas acerca de uma série de acontecimentos históricos onde os
movimentos participaram, de forma que podemos falar de paradigmas
do Sul. Um grande desaio é construir categorias teóricas para pensar as
especiicidades de nossa realidade, categorias que relitam o movimento
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real desta realidade, que capte seus signiicados. Este desaio inscreve-se
nos marcos de um diagnóstico que diz ser um dos problemas da América
Latina: a descolonização do saber e do ser (enquanto repositório de práticas e valores que mantêm e reproduzem subjetividades e conhecimentos).
Saberes estes que são mantidos por um tipo de economia que alimenta as
instituições, as representações sobre a vida sociocultural de seu povo e os
argumentos sobre os caminhos a seguir.
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Autores
Adelia Miglievich-Ribeiro
Mestre em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Ciências Humanas – Sociologia
(PPGSA/IFCS), Universidade Federal do Rio de Janeiro, com pós-doutorado
em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo.
Docente-pesquisadora dos programas de pós-graduação em Ciências Sociais
(PGCS) e em Letras (PPGL) na mesma universidade.
Anete Brito Leal Ivo
Mestre em Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco, é professora do Programa
de Pós-Graduação em Sociologia (PPGCS) da Universidade Federal da Bahia.
Pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades da Faculdade
de Filosoia e Ciências Humanas da mesma universidade. Atua também como
pesquisadora do CNPq.
Fabrício Monteiro Neves
Mestre em Políticas Sociais, Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy
Ribeiro. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, é professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade de Brasília.
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Fernanda Antônia da Fonseca Sobral
Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília, com pós-doutorado na
École des Hautes Études en Sciencies Sociales, em Paris, na França. É professora/pesquisadora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia
na Universidade de Brasília. Membro do Conselho Superior da Fundação de
Apoio a Pesquisa do Distrito Federal e do Conselho da Sociedade Brasileira para
o Progresso da Ciência.
Hernán homas
Doutor em Política Cientíica e Tecnológica pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), com pós-doutorado na mesma instituição. É professor titular na Universidade Nacional de Quilmes, na Argentina, e também diretor do
Instituto de Estudos sobre Ciência e Tecnologia na mesma universidade. Atua
como pesquisador principal do Conselho Nacional de Investigações Cientíicas
e Técnicas (Conicet), na Argentina.
Hugo Cadenas
Mestre em Antropologia e Desenvolvimento pela Universidade do Chile. Doutor em Sociologia, Universidade Ludwig Maximilian de Munique, na Alemanha. Na Universidade do Chile, é professor do Departamento de Antropologia
e coordenador do Mestrado em Análise Sistêmica Aplicada à Sociedade, na Faculdade de Ciências Sociais.
Lucas Becerra
Mestre em Estudos Internacionais, Universidade Torcuato Di Tella, Buenos Aires, Argentina. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires.
Professor adjunto do Departamento de Economia e Administração da Universidade Nacional de Quilmes, na Argentina. Na mesma universidade, participa do
grupo de pesquisas do Instituto de Estudos sobre Ciência e Tecnologia.
Maíra Baumgarten
Mestre e doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS. Coordenadora do Laboratório de Divulgação de Ciência, Tecnologia e Inovação
Social (LaDCIS-UFRGS). Além de editora da Revista Sociologias, é co-editora
no Conselho Editorial da Associação Latino-Americana de Sociologia. Membro
da diretoria da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Marcelo Arnold-Cathalifaud
Mestre em Ciências Sociais na área de Sociologia da Modernização Social, Universidade do Chile. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bielefeld,
Alemanha, é professor titular da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade
do Chile.
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Maria da Gloria Gohn
Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Doutora em Ciência
Política pela mesma universidade, com pós-doutorado na New School of University, em Nova Iorque, nos Estados Unidos. É professora titular da Faculdade
de Educação da Universidade Estadual de Campinas; pesquisadora do CNPq
e membro do conselho do Research Committee on Social Classes and Social
Movements, da Associação Internacional de Sociologia.
Michelangelo Giotto Santoro Trigueiro
Mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Fez um pós-doutorado no Instituto de Filosoia, Lógica e Filosoia da Ciência, na Universidade
Ludwig Maximilian de Munique, na Alemanha; outro no Centre for Social and
Economic Research on Innovation in Genomics (Innogen), na Inglaterra; e um
terceiro pós-doutorado no Departamento de Política Cientíica e Tecnológica
da Unicamp. É professor titular e pesquisador do Instituto de Ciências Sociais,
Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília.
Paulo Henrique Martins
Mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de Paris I (Pantheon-Sorbonne), na França. No mesmo país, fez pós-doutorado na Universidade de Paris-Nanterre. Professor titular de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor e pesquisador dos programas de pós-graduação em
Sociologia e Saúde Coletiva da UFPE. Pesquisador de produtividade do CNPq
nível 1B.
Silvia Beatriz Lago Martínez
Socióloga, realizou estudos de Pós-Graduação em Política e Gestão de Ciência
e Tecnologia na Universidade de Buenos Aires, na Argentina. Professora da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires e pesquisadora
do Instituto Gino Germani, onde é codiretora do Programa de Pesquisa sobre
Sociedade de Informação. Atualmente coordena a pesquisa “Políticas públicas
para a inclusão digital na Argentina e no Cone Sul”.
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Este livro foi composto na tipologia Adobe Garamond Pro, em corpo 12
e impresso no papel Ofset 75 g/m2 na Gráica da UFRGS
Editora da UFRGS • Ramiro Barcelos, 2500 – Porto Alegre, RS – 90035-003 – Fone/fax (51) 3308-5645 –
[email protected] – www.editora.ufrgs.br • Direção: Alex Niche Teixeira • Editoração: Luciane Delani (coordenadora), Carla M. Luzzatto, Clarissa Felkl Prevedello, Cláudio Marzo da Silva, Cristina humé Pacheco, Fernanda
Kautzmann, e Lucas Ferreira de Andrade • Administração: Aline Vasconcelos da Silveira, Cláudio Oliveira
Rios, Gabriela Campagna de Azevedo, Getúlio Ferreira de Almeida, Janer Bittencourt, Jaqueline Trombin e
Laerte Balbinot • Apoio: Luciane Figueiredo
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