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Introdução Geral. Oswaldo Aranha

INTRODUÇÃO GERAL Rogério de Souza Farias Oswaldo Aranha foi um dos maiores estadistas brasileiros. Liderou a Revolução de 1930, ocupou a cheia de três ministérios (Justiça, Fazenda e Relações Exteriores), além da embaixada brasileira em Washington. Por pelo menos seis vezes foi cogitada seriamente a sua candidatura à Presidência da República. Do início de sua ação política, ainda como estudante, em 1910, até sua morte, em 1960, é possível traçar a evolução da história política nacional, em suas dimensões doméstica e internacional. Em toda essa trajetória, Oswaldo Aranha foi orador profícuo. Tal fato foi registrado pelos seus contemporâneos e por especialistas. Na edição de 1958 do clássico volume de melhores discursos da história, Lewis Copeland e Lawrence W. Lamm adicionaram o proferido pelo brasileiro no encerramento da II Sessão da Assembleia Geral da ONU (1947), ocasião em que não só liderou a delegação brasileira como presidiu os trabalhos. Entrara, assim, no seleto grupo, ladeado por grandes iguras históricas – de Péricles, Sócrates e Cícero, na antiguidade, a Winston Churchill, Franklin Delano Roosevelt e Martin Luther King Jr., no mundo contemporâneo. Foi o único brasileiro a entrar no volume (Copeland, Lamm et al.: 1973, 621-3). Em 29 de novembro de 2017, serão celebrados setenta anos do histórico discurso. Considerando a efeméride, a Fundação Alexandre de Gusmão (Funag) e seu Instituto de Pesquisa de 37 Rogério de Souza Farias Relações Internacionais (Ipri) oferecem uma seleção de seus pronunciamentos, conferências, depoimentos, entrevistas e artigos. O momento é oportuno para tal iniciativa. O Brasil passa por instabilidades e crises não tão distintas daquelas atravessadas por Aranha e sua geração. É relevante, nesse ambiente, recuperar as ideias e a ação de um homem de estado defensor da prevalência das ideias sobre os interesses, do inefável otimismo sobre a grandeza brasileira (Aranha: 1994m). Decisões editoriais A Funag já homenageara Oswaldo Aranha com a publicação de um volume de discursos e conferências por ocasião do centenário de seu nascimento em 1994. Foram selecionados, na ocasião, vinte e cinco pronunciamentos, apresentados em sequência cronológica e antecedidos por um prefácio, redigido pelo embaixador Gelson Fonseca Júnior, então presidente da Funag, pelo discurso de Celso Amorim, então ministro das Relações Exteriores, além de breve biograia. A análise desse material indicou que sete dos vinte cinco documentos eram de 1939 – seis pronunciados entre fevereiro e junho; outros cinco, do crucial ano de 1947, quando Aranha cheiou a delegação brasileira na Organização das Nações Unidas (ONU) e presidiu os trabalhos da II Assembleia Geral da organização. Três anos durante a Segunda Guerra Mundial, quando exerceu atividades estratégicas à frente da diplomacia brasileira, não foram abrangidos por qualquer material. Havia espaço, portanto, para reapreciar sua vida pública em uma nova seleção. Ao preparar o novo volume, os editores planejaram, primeiramente, extrair o minério primário para depois lapidar a ganga bruta, tirando o que não luziria mais, para inalmente poder apresentar um texto limpo, signiicativo e representativo de seu pensamento e ação, inclusive no importante tópico da inserção 38 Introdução Geral econômica internacional do país, tópico não examinado no volume de 1994. Convém detalhar tal processo. A primeira decisão foi a de abranger temas de economia e política internacional, privilegiando a projeção do Brasil no hemisfério e no multilateralismo. A segunda foi o exaustivo levantamento de pronunciamentos, discursos, entrevistas e conferências que abrangessem o período de sua posse no Ministério da Justiça até a sua morte, em 1960. Esse esforço resultou na reunião de mais de cento e cinquenta novos documentos, muitos deles inéditos para o leitor contemporâneo. A documentação veio de várias fontes. A primeira foi o volume de 1994, confrontando-os ocasionalmente com outras versões. As outras vieram de periódicos publicados no Rio de Janeiro, em especial o Correio da Manhã, além da documentação do próprio Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty). Os pronunciamentos de debates parlamentares foram retirados dos Anais do Congresso Nacional. O apoio da família Aranha Corrêa do Lago foi crucial na complementação desse material, oferecendo não só manuscritos raros como sua respectiva contextualização. Os editores são especialmente gratos pelos esforços do professor Luiz Aranha Corrêa do Lago. No caso da existência de duas ou mais versões, optou-se pela referência à fonte de mais fácil acesso, geralmente às publicadas em periódicos. A terceira etapa foi realizar uma escolha representativa dos grandes temas nos quais Oswaldo Aranha atuou, utilizando para tanto as biograias e os manuais de política externa brasileira mais referenciados, além da bibliograia de história econômica. A quarta foi manter um padrão cronológico dividido em fases que correspondem, grosso modo, à sua evolução proissional; optou-se, contudo, por agregar todos os pronunciamentos relacionados a temas econômicos em uma parte separada. Observou-se a 39 Rogério de Souza Farias necessidade de redigir introduções para cada parte, como forma de contextualizar o leitor no material selecionado, ressaltando como o conjunto encaixa-se na sua trajetória intelectual. Em decorrência de muitas referências não familiares, os editores redigiram notas de rodapé explicativas para orientar o leitor contemporâneo, apresentando também bibliograia primária e secundária relevante para aprofundamento. Todo esse esforço foi conduzido pela equipe do Ipri. Assim como a excelente fotobiograia editada por Pedro Corrêa do Lago (Lago: 2017), cujo estudo foi muito útil em todo o processo, optamos pela criação do que pode ser considerado como um título jornalístico para cada texto, representando a ideia central, mas, ao mesmo tempo, preservando, nos subtítulos, a denominação original da fonte, com local e data, quando cabível. O objetivo dessa decisão editorial foi focar a atenção do leitor e permitir uma leitura casual e segmentada. Esses recortes metodológicos apresentam certas arbitrariedades. Uma delas foi a decisão de não incluir uma seleção sistemática de sua correspondência ativa na coletânea. Tais documentos, em especial os direcionados a Getúlio Vargas, constituem, talvez, a troca epistolar mais importante da política brasileira no século XX. São instrumentos relevantes para contextualizar os pronunciamentos públicos. Sua exclusão, com algumas exceções, decorreu da necessidade de manter a organicidade do volume. Tentou-se intervir o menos possível na transcrição dos originais. Mesmo assim, algumas modiicações foram necessárias. Primeiro, a adaptação da ortograia ao padrão atual. Assim, “Ruy Barbosa” foi grafado como “Rui Barbosa”; “cousas”, como “coisas” – a não ser que a referência esteja no título de alguma publicação. Segundo, a transformação dos sublinhados em itálicos. Por im, foi conduzida a edição dos textos, retirando-lhes alguns vocativos e 40 Introdução Geral os trechos não pertinentes do ponto de vista editorial da obra ou ilegíveis. Essas lacunas sempre foram indicadas pelo símbolo (...). Outra decisão foi a de apresentar alguns discursos de natureza doméstica – como o pronunciado no Comício das Quatro Liberdades, em 1945, e aquele que talvez seja o mais lembrado, pronunciado no enterro de Getúlio Vargas, em São Borja, em 1954. Eles foram consolidados na última parte do volume, dedicado a Oswaldo Aranha como estadista nacional. O leitor poderá identiicar, nesses casos, associação direta com os princípios defendidos por Aranha em seus esforços diplomáticos. As fronteiras que dividiam o interno e o externo, desse modo, não cingiam a universalidade de suas crenças na democracia, na capacidade humana de empatia ao próximo e na necessidade de uma estrutura econômica equitativa para alcançar a paz e a prosperidade. No momento da euforia e da tristeza, sua preocupação gravitava sempre para o “futuro de nossa pátria”, de maneira a “integrar o Brasil em si mesmo”, no espírito de o país caminhar para tomar seu lugar “entre as maiores nações do mundo”, como falou, de forma comovente, ao lado da lápide de Vargas, em 26 de agosto de 1954. A retórica da liderança: o discurso na formação política de Oswaldo Aranha O discurso é exercício fundamental e cotidiano do homem público, geralmente voltado para o convencimento. Aranha exerceu tal poder com maestria. Ele parecia seguir a observação de Dean Acheson, de que “[the] task of a public oicer seeking to explain and gain support for a major policy is not that of the writer of a doctoral thesis” (Acheson: 1969, 375). Essa foi, de forma geral, a ilosoia do político brasileiro em sua carreira pública e esteve intimamente associada à sua crença na democracia. O mecanismo fundamental de tal ação era a manifestação pública. Nesses ambientes, a oratória era fundamental. 41 Rogério de Souza Farias Desde o Império, como indica Andrew J. Kirkendall, a oratória era habilidade apreciada na constituição do corpo estudantil brasileiro (“oratory linked the skills valued in extracurricular student life with the abilities necessary for public lives in provincial or national legislatures or, if all else failed, in the courtroom”). Seguia-se à máxima de que a liderança estava vinculada à habilidade na sustentação oral (Kirkendall: 2002, 50 e 4). Na República Velha, a alocução pública continuou a ser um mecanismo de sinalização social (Borges: 2011, 74). Era por intermédio dela que se forjava a liderança dentro de movimentos políticos. O discurso era o meio de propagação de ideias e de posicionamentos políticos. Como grande parte da população era analfabeta, ele alcançava, portanto, amplo público. Sua transcrição em jornais e a consequente leitura em outros ambientes ajudava a sua propagação, assim como, a partir da década de 1920, o uso do rádio. O marco fundamental da expansão do discurso político na República Velha foi a campanha civilista de 1910, que mobilizou a sociedade a favor de Rui Barbosa, combatendo a candidatura do militar Hermes da Fonseca ao cargo de presidente da República (Felizardo: 1980, 96). Foi nesse ambiente político que Oswaldo Aranha se formou. Em novembro de 1912, tornou-se sócio honorário da Sociedade Literária do Colégio Militar. No ano seguinte, era já ativo participante do Centro de Estudantes da Faculdade do Rio de Janeiro. Em 10 de novembro de 1913, há o registro de um discurso seu exaltando “as vantagens do contrato integral sobre os regimes da indissolubilidade e do divórcio e vínculo”. Esse tipo de oração técnica logo deu lugar a pronunciamentos de cunho político. A maioria estava longe de atrair público signiicativo. Isso pode ser observado em julho de 1915, no Largo de São Francisco, quando, na posição de representante das “escolas superiores”, atuou em 42 Introdução Geral esvaziado comício contra a diplomação de Hermes da Fonseca ao Senado Federal (O Paiz: 1915; Hilton: 1994, 8). Na sua formatura, em 1916, foi escolhido como orador da turma. A comemoração deu-se em setembro, quando um grupo de amigos lhe ofereceu um jantar no famoso restaurante Assírio. O repórter anotou que sua oração, “um lindo improviso”, foi proferida em tom “cheio de emoção e sinceridade”. No mesmo ano, foi um dos que discursaram na cerimônia de recepção de Rui Barbosa no Rio de Janeiro, quando o eminente baiano retornara de Buenos Aires, onde proferira histórica oração sobre o dever dos países neutros. Importante ressaltar a atuação de Aranha na Liga da Defesa Nacional nesse momento, algo que lembraria quase trinta anos depois, em pronunciamento na própria Liga (Aranha: 1994i; Lago: 2017, 48; O Paiz: 1916a; O Paiz: 1916b). Ele retornou ao Rio Grande do Sul em janeiro do ano seguinte, onde deu continuidade à sua formação como homem público (Lago: 1996, 65-384). Oswaldo Aranha fez da palavra seu instrumento de batalha política, sua ferramenta para modernizar o Brasil e sua trincheira de defesa contra os totalitarismos de esquerda e de direita. A irmeza de princípios e a habilidade na articulação política deram substância aos seus dons de oratória. A população e as lideranças políticas e sociais naturalmente gravitavam para sua presença, especialmente nos momentos críticos – o que lhe rendeu velados ciúmes por parte de Getúlio Vargas, seu amigo e a quem devotava idelidade, atenção e respeito nunca reciprocados de forma equivalente. Isso é possível observar, por exemplo, em 18 de agosto de 1943, após notícias do afundamento de mais embarcações brasileiras por submarinos alemães. De acordo com um jornalista que acompanhou o cotidiano do Rio de Janeiro no dia, o povo viveu “um dos seus momentos supremos de exaltação patriótica”. Os populares aglomeraram-se na Galeria Cruzeiro e a multidão espraiou-se pela 43 Rogério de Souza Farias Avenida Rio Branco, aclamando o nome de Oswaldo Aranha. Desde as 15:00 da tarde, uma “massa popular se comprimia em frente ao Palácio Itamaraty”, onde exigiram o pronunciamento do ministro das Relações Exteriores. Da sacada do primeiro andar, Aranha discursaria uma hora depois, interrompido a todo tempo por “palmas delirantes” (Correio da Manhã: 1942). O crescimento de seu prestígio faria uma sombra no Palácio do Catete, o que levaria a um pretexto para forçá-lo a se afastar do cargo em 1944. Os discursos de Oswaldo Aranha apresentam um homem culto e cosmopolita, um leitor voraz que absorve e reestrutura o pensamento, antigo e moderno, para compreender o mundo. Sua biblioteca, tanto na residência na Ladeira do Ascurra, em Cosme Velho, como, posteriormente, na rua Campo Belo, nas Laranjeiras, estaria sempre atualizada com os últimos volumes publicados em Londres, Paris e Nova York, sem contar com os clássicos da literatura ocidental. O discurso em homenagem a Roosevelt, proferido em Recife, em 1945, tinha quinze citações em suas 9.293 palavras – de Goethe a Bergson, de Nietzsche a Emerson, de Carlyle a Lincoln, de Terêncio ao apóstolo Paulo. Importante notar que esse amplo conhecimento não diminuía sua humildade. Repetidamente reconhecia que sua audiência tinha mais conhecimentos sobre o assunto a palestrar, mesmo quando esse não era o caso; apresentava trabalhos bem preparados como “leitura enfadonha de ideias mal alinhadas” (ver Aranha: 1958a). Entre suas maiores admirações e inspirações estava um brasileiro: Rui Barbosa, considerado por ele como um “imenso e insondável oceano humano” (Aranha: 1950). A inluência de Rui não estava só no seu estilo de tribuno soisticado e na ocasional retórica loreada. Aranha celebrou as “tradições de imparcialidade histórica e cultura jurídica” do Brasil, enriquecidas pelo grande tribuno baiano, algo que credenciava o país a desempenhar papel de relevo na administração da ordem internacional (Aranha: 1947e). 44 Introdução Geral Ao leitor deste volume não escapará, contudo, a avaliação de que Aranha era homem de seu tempo, inclusive em sua linguagem. Nesse último aspecto, cabe salientar sua crença de que todos povos cumpriam um ciclo que passava pela independência, pela igualdade e pela democracia (ver, por exemplo, Aranha: 1957c). Isso pode ser visto, por exemplo, como concebia os termos “raça”, “povo” e “civilização”. Ele utilizava tais termos como sinônimos de sociedade, do ponto de vista cultural e político. Era por essa via, por exemplo, que celebrava a “obra civilizadora no trópico”, em retórica celebratória semelhante à utilizada pela sua geração, admiradora de Gilberto Freyre e outros intelectuais com ideias semelhantes. O que o diferenciou foi a forma como aproximou o pan-americanismo dessa crença. A América, “o continente da paz”, nesse contexto, era um farol para a humanidade. Como airmou em 1947: “We Brazilians envisage just one solution for the world: its Americanization” (Aranha: 1947d; Aranha: 1994p). O termo “civilização” também é comumente utilizado, em seu discurso, como sinônimo de desenvolvimento. Assim, na conferência realizada na Faculdade de Direito de Porto Alegre, indicou que uma nação será “mais civilizada” de acordo com a adaptação de seu espaço à política mundial – uma situação diferente da anterior, quando os avanços dependiam somente da situação doméstica (Aranha: 1949b). Aranha tinha talentos naturais na formulação do discurso político. Não se deve olvidar, contudo, que era estudante aplicado. Na sua trajetória proissional, recorrentemente estudava a oratória dos grandes tribunos. Essa dedicação pode ser observada no seu exame do discurso inaugural da administração do presidente americano Franklin Delano Roosevelt: A sua oração inaugural é uma das peças mais notáveis dos anais oratórios. A sua eloquência não era tribunícia, feita 45 Rogério de Souza Farias de arrebatamentos e conclamações, capazes de dominar, pela retórica e pelos arroubos, as massas e as assembleias. A sua voz era suave demais para esses arremetimentos e a sua consciência, provada na dor, serena demais para o jogo político da exacerbação das paixões populares. Ele era um orador familiar, cheio de emoção, cioso do fundo e da forma, para quem a palavra era uma ideia, a oração quase uma prece, pois terminava sempre numa invocação a Deus. Não quero com isso dizer que não haja ele, por vezes, elevado a voz aos tons mais altos e nobres da eloquência humana. Mas o traço dominante da sua oratória é o apostolar. Ele não fazia discursos, predicava com a dialética iluminada dos convencidos e reformadores. Creio, mesmo, que criou uma “forma rooseveltiana” de falar, que irá para a história como uma das mais belas e nobres conquistas da sensibilidade e do pensamento político de nossos dias. A sua predicação foi constante e cada vez mais inspirada, porque a vigilância do destino do seu povo ele a exerceu como um catequista na obra missionária de conversões. Ele usou a linguagem de um reformador que prega, defende e exalta a sua doutrina com a lógica da verdade adquirida, do pensamento puro, das ideias humanizadas pelos sentimentos (Aranha: 1945e). Alguns textos, principalmente os do período em que ocupava posições formais no governo, foram claramente formulados por assessores por inteiro ou em trechos relevantes. Não é difícil a identiicação destes. Mesmo a leitura de textos proferidos décadas atrás não deixam de indicar características centrais de Oswaldo Aranha: sua erudição, sua facilidade em compor apresentações, sua altivez, seu domínio escorreito da língua, sua afabilidade na crítica, seu idealismo e seu otimismo. O improviso não signiicou 46 Introdução Geral orações desestruturadas, ideias desconexas. Não relia e corrigia exaustivamente seus rascunhos. Tal transparência demonstra como foram arriscadas – e certeiras – suas avaliações sobre a evolução da política internacional: da decadência do comunismo à ascensão da China, do avanço da democracia à coniança na capacidade brasileira de enfrentar com denodo seus problemas internos e externos. PENSAMENTO INTERNACIONAL DE OSWALDO ARANHA Muitos poderiam julgar Aranha como pouco talhado para atividades diplomáticas. Assis Chateaubriand, por exemplo, deiniu-o, em 1944, como “o sangue borbulhante do espanhol, o estouvamento do guerrilheiro da luta civil, a capa do espadachim, o estilo nervoso, indomável do homem do continente sul” (Chateaubriand: 1944). Virgílio de Mello Franco, seu grande aliado político, acreditava que seu colega era “mais guerreiro que apóstolo” (apud Lago: 2017, 100). Era homem de batalhas e não de conciliábulos. A crença na incompatibilidade, contudo, seria apressada. Aranha apreciava a ordem jurídica, pré-requisito relevante da atividade diplomática, tendo lecionado direito internacional em Porto Alegre em 1924. No cruento choque entre chimangos e maragatos da década de 1920, a despeito de militar nas hostes de Borges de Medeiros, manteve diálogo franco e aberto com seus adversários. Era irme e bravo nos embates, mas cordial e magnânimo nas vitórias. Sabia reconhecer os valores do campo oposto, ainda que mantivesse a deferência junto à sua formação familiar e ao seu grupo político. Mesmo sendo a “estrela da revolução”, demonstrou ter espírito moderado, conciliador e circunspecto na construção da ordem nacional. 47 Rogério de Souza Farias Havia, ainda, outro fator a ajudá-lo no exercício diplomático: seu idealismo e até uma visão romântica da realidade. Essa foi a percepção de vários contemporâneos. Gilberto Freyre, após a morte de Aranha, airmou: “nunca deixou de todo de ser o brasileiro um tanto romântico dos seus dias de jovem e dos seus sonhos, talvez difusos, de revolucionário” (Freyre: 1961). O gaúcho aproximava-se, desse modo, mais do liberalismo americano do que da realpolitik europeia. Como o presidente americano Woodrow Wilson, desejava nada menos do que uma revolução na forma como se operava a política internacional; tal sentimento chegou ao seu auge em 1947, durante suas atividades junto à ONU. Aranha acreditava aproximar-se “uma humanidade com a qual sonharam os utopistas” (Aranha: 1994f). Seu otimismo não era retórica vazia de coquetéis e encontros diplomáticos; foi característica que lhe seguiu até o im da vida. Em um de seus últimos discursos, disse: “Direis, agora,(...) que ouvistes um velho e impenitente sonhador. Eu vos direi que o sono, sem sonho, é a morte, a vida uma noite sem o dia e o mundo uma luta sem fé e sem paz” (Aranha: 1958a). Esse idealismo, assim como outras características, merece ser estudado para compreender a seleção de discursos, entrevistas e conferências apresentada nesta obra e, mais importante, para compreender o impacto na atividade diplomática brasileira do período. O primeiro ponto a examinar é que, no imediato pós-guerra, muitos analistas propunham um divórcio material e analítico entre o plano doméstico e a política internacional. No primeiro, viver-se-ia sob uma ordem soberana conduzida por um estado com o monopólio do uso legítimo da força; no segundo, a anarquia do sistema internacional imperaria. O intrigante de Oswaldo Aranha é sua crença na inviabilidade de se divorciar os dois domínios. Na ligação entre esses dois planos está sua crença na íntima interconexão entre o poder de agência do indivíduo, o papel transformador das ideias e a força dos regimes democráticos. 48 Introdução Geral Ter adotado tal conjunto de valores, considerando o ambiente predominantemente determinista e autoritário do período que vai da República Velha até o Estado Novo, é intrigante. Uma razão talvez decorra das teorias em voga chocarem-se com o seu inveterado otimismo, tornarem irrelevante a capacidade de agência do cidadão e decretarem a decadência do regime democrático. De qualquer forma, há grande consistência em seus pronunciamentos sobre a capacidade do indivíduo de superar seu meio e fortalecer a democracia ao longo de sua carreira pública. Em 1945, por exemplo, airmou: “É falsa a concepção fatalista que faz do ser humano uma resultante exclusiva de fatores naturais e biológicos” (Aranha: 1945e). Ele tinha fé na capacidade de agência humana, daí sua preocupação com a “resignação fatalista” que parecia ser uma “fraqueza do homem contemporâneo” (Aranha: 1994t). Mesmo nas profundezas do Estado Novo, não teve menoscabo em defender a centralidade do indivíduo e da opinião pública na conformação da ação estatal (Aranha: 1994j; Aranha: 1994j; Aranha: 1994e). Seu pensamento político, porém, não era o de simples liberal. Isso pode ser observado na forma como concebia o indivíduo nos destinos da sociedade. A despeito de a liberdade e o individualismo serem aspectos essenciais da ordem americana que tanto apreciava, Aranha tinha certas restrições sobre a forma como os ilósofos políticos liberais de seu tempo defendiam o segundo aspecto. Para ele, a celebração inconteste do indivíduo poderia descambar para uma excessiva adoração do “grande homem”, algo trágico para uma comunidade política. Em 1945, por exemplo, apreciou o tema ao indicar que gostava dos que cumpriam “o seu próprio destino” e não daqueles “que se acreditam predestinados”, que arrastavam multidões para quase subverter “a civilização com a loucura e a crueldade de suas ideias e ambições” (Aranha: 1945e). Oswaldo Aranha acreditava no poder revolucionário das ideias. No imediato pós-guerra, julgou que, além da reestruturação 49 Rogério de Souza Farias material de um mundo destruído por um conlito sem precedentes, era necessária uma reestruturação moral da humanidade – “a luta que se segue às guerras é de caráter espiritual”, disse na abertura da II Assembleia Geral da ONU (Aranha: 1994f; Aranha: 1994n). Somente sob a égide de um novo código de conduta a humanidade poderia sobreviver ao pós-guerra. Esses valores, em sua opinião, deveriam ser aqueles propalados pela experiência democrática americana, no plano doméstico e pelo paciismo jurisdicista pan-americano, no plano regional. O seu idealismo também pode ser observado na sua coniança sobre o futuro do Brasil e da humanidade. Em seu pronunciamento de agradecimento ao receber o título de doutor honoris causa da Universidade do Rio Grande do Sul, esse otimismo icou claro quando disse: “um futuro melhor, mais humano, igual e feliz, para todas as criaturas, parece aproximar-se das gerações que nos irão suceder” (Aranha: 1949b). Essa sua coniança decorria da forma como deinia o ser humano e a sociedade e da coniança no poder revolucionário da tecnologia de resolver os grandes problemas da humanidade. Como será apreciado nas introduções setoriais, sua crença na democracia era inabalável. Sua proissão de fé iniciara com seus primeiros passos na vida pública e sedimentara já no primeiro cargo que ocupou, de intendente em Alegrete, quando celebrou a “nivelação democrática dos direitos” (Aranha: 1925). Mesmo o Estado Novo não conseguiu abalar seus princípios de que uma vida democrática e liberal era fato central na experiência política brasileira. Em março de 1938, por exemplo, escreveu para seu amigo Sumner Welles: O povo brasileiro continua a ser absolutamente o mesmo, mantendo inalteradas a sua vida e tradições democráticas e liberais. A democracia não é um governo, uma lei ou uma constituição: é uma prática. Esta é a razão pela qual existem 50 Introdução Geral no mundo monarquias consideradas democráticas e liberais e repúblicas que são verdadeiras autocracias. As formas de governo são, por vezes, e nas mais das vezes, meras aparências, ou, mesmo, necessidades momentâneas, que em nada modiicam o sentimento, o espírito, a tendência e a vida dos povos. O Brasil foi sempre democrático, quer no Império, quer na República, porque o seu povo, desde a Independência, não compreendeu nem poderá compreender outra forma de viver (Aranha: 1938b). Esse seu idealismo não o levou a ser nefelibata, pairando no mundo das nuvens e abraçando expectativas irreais. Aranha sabia que o mundo era abundante em “ambição egoísta e conlitos irreconciliáveis” (Aranha: 1994n). Mas coniava na capacidade dos indivíduos de transcenderem essa armadilha e das instituições, nas quais estavam inseridos, de amparar o diálogo da cooperação. A criação da ONU, em 1945, fortaleceria seus princípios. Ele não teve menoscabo em airmar, da tribuna da organização, ser “a democracia (...) um imperativo da civilização e da cultura”. Ele acreditou ser aquele ambiente uma escola e um aprendizado de prática democrática, um parlamento do mundo, no qual regras de procedimento e ritos processuais permitiam dirimir conlitos e criar uma era de paz e prosperidade. Essa crença decorria da percepção de que não era mais possível, após a sua criação, “na sociedade das nações, como na dos indivíduos, o predomínio exclusivo de um sobre todos os demais”. Para ele, a nova “realidade mundial” restringia “cada dia mais a faculdade e a possibilidade de fazer e até de aceitar a guerra” (Aranha: 1949b). Isso reletia até nas responsabilidades da diplomacia proissional, pois, na sua opinião, a missão daqueles que representavam o bloco ocidental deveriam ter como tarefa central a defesa da democracia (Aranha: 1950). 51 Rogério de Souza Farias A vitória sobre os países totalitários, a criação da ONU e a redemocratização levaram-no a acreditar que, no imediato pós-guerra, o momentum da aliança ocidental, especialmente a composição de forças para vencer o totalitarismo, poderia ser suiciente para conter a expansão soviética – era a “força invencível da recuperação democrática dos povos” (Aranha: 1994t). Deve-se salientar, contudo, que não acreditava na imposição desses valores à força. Cada país tinha uma caminhada própria e não cabia a nenhum ente, inclusive as Nações Unidas, forçar soluções. Para ele, era inaceitável a intervenção na soberania alheia, mesmo que fosse com o propósito bem intencionado de promover a democracia, ainal, “o regime político de cada povo é, em última análise, o resultado de sua própria cultura moral” (Aranha: 1994e). Essa era uma sinalização de que acreditava no poder do exemplo e não da força na expansão do liberalismo democrático. Outro aspecto da oratória de Aranha associado ao idealismo e à defesa da democracia foi a admiração dos Estados Unidos como nação, especialmente após 1934, algo que progressivamente destoaria da opinião geral, principalmente no núcleo político doméstico ao qual estava associado. Se, em 1943, estar ao lado de Washington signiicava a defesa da liberdade diante dos países totalitários, na década de 1950, essa posição e até a admiração aberta dos americanos era criticada por amplos setores da opinião pública no mínimo como ingenuidade. Convém observar, porém, que Aranha nunca abraçou acriticamente a política externa americana, havendo nuances que devem ser exploradas. Na década de 1930, durante sua gestão como embaixador em Washington, adotara certa celebração retórica e sentimental das duas sociedades e suas relações bilaterais. Aranha argumentou que Brasil e Estados Unidos herdaram a aliança de suas respectivas ex-metrópoles (Aranha: 1994p). A despeito desse legado, em sua opinião, as relações entre os dois países sempre foram difíceis. 52 Introdução Geral A cooperação era “obra de um sacrifício recíproco de interesses próprios para colimar objetivos comuns” (Aranha: 1994a). Sua otimista visão das Américas foi transformada para um julgamento de vulnerabilidade diante de um mundo cada vez mais complexo, além de certa decepção com a política externa americana, em especial o abandono da política da boa vizinhança. Ainda que tenha deinido a aliança como “uma fatalidade irrecusável”, argumentou que não deveriam os brasileiros icar “resignados a um destino que não pudemos ou não queremos escolher” (Aranha: 1958b). Ele adicionava que as “tradicionais e excelentes relações” do Brasil com os Estados Unidos não deveriam anular o “nosso direito de iniciativa e a nossa capacidade de discernimento na orientação da nossa conduta entre as nações” (Aranha: 1958c). Após 1954, quando não mais ocuparia cargos na administração pública federal, Oswaldo Aranha teve mais liberdade para estudar a política internacional e a política externa brasileira. Sua argúcia analítica é evidente nos pronunciamentos desse último período, sendo impressionante seus acertos. Sua boa percepção não o trairia. Em um mesmo discurso, proferido em 1958, vaticinaria a vitória do Ocidente na Guerra Fria, a ascensão da China como potência mundial, e algo muito semelhante ao que hoje denominamos de internet. O im da Guerra Fria, o primeiro ponto acima, era algo que previra em 1948. Na ocasião, considerou que o conlito seria transformado vagarosamente em uma “paz fria”. Seria “obra vagarosa, paciente, tenaz e eicaz, da persuasão sobre a força”. Uma das fontes de tal percepção era sua identiicação do trabalho russo como “de pouco rendimento e deiciente a organização econômica do país”. Mais importante para a derrocada soviética, contudo, estava a “oposição comunista à natureza humana” (Aranha: 1994m). Isso levou Aranha a airmar, que, “mais dia menos dia”, o império russo 53 Rogério de Souza Farias acabaria (Aranha: 1949b). Ele reforçaria tal airmação logo após o lançamento do satélite Sputnik, em 1958, prevendo a abertura do sistema soviético e a vitória do ocidente na Guerra Fria – fenômeno, julgado como decorrente da “força invencível dos povos democráticos” (Aranha: 1958a). No segundo tópico, Aranha indicou que a incorporação de Pequim à ONU signiicaria “uma nova era para a política internacional”. Ele acreditava que o país teria grande papel no futuro da política internacional. Por im, estava o que ele denominou de “máquina fantástica da nova inteligência”, um “cérebro eletrônico”, produto de “todos os elementos e recursos de informação” que descortinaria “os horizontes”. Para os que hoje vivem no mundo pervasivo da internet, a descrição é surpreendente. Para Aranha, o mundo viveria “à luz de um sol sinistro, criado pelo engenho humano, que faz ver sem se deixar ver”; se antes violavam-se fronteiras, chegava a era de avanços sobre “as consciências e as ideias”. Tal descrição assemelha-se à hodierna realidade, onde a intimidade padece de proteção no mundo virtual. Essa intepretação nasceu da forma como concebia a informação como elemento central na condução da política internacional. Seriam os serviços de inteligência e não exércitos em marcha que deiniriam o resultado dos conlitos futuros. Daí a importância que dava ao que hoje se denomina de “indústrias culturais” (Aranha: 1958b). Em pelo menos um caso, suas palavras tiveram efeito direto sobre o resultado previsto, ainda que não estivesse mais vivo para presenciar: o reatamento das relações diplomáticas entre o Brasil e a União Soviética em 1961. Esse foi um tema que abraçou no segundo semestre de 1957 e que teria formatação mais completa no artigo que publicou na Revista Brasileira de Política Internaci­ onal, em 1958. A argumentação que desenvolveu teria implicações gerais para a política externa brasileira nos próximos quinze anos. Para Aranha, 54 Introdução Geral [o] reconhecimento da existência de um governo estrangeiro é, e não pode deixar de ser, mera questão de fato. Ele de nenhum modo importa em aprovação quer aos processos que levaram esse governo ao poder, quer à sua ilosoia política ou às suas inovações no direito interno. (...) Temos que pensar em termos de comércio regular e contínuo com todos os países do mundo, inclusive os soviéticos, a im de comprarmos em melhores condições, não importa onde, e de vendermos o mais que pudermos, a quem pagar melhor preço. Não devemos limitar­nos a pensar apenas em sair de diiculdades atuais, vendendo uma parcela do café que temos armazenado. Devemos programar para o futuro, pensando numa política de diversiicação de nossas exportações que, a longo termo, nos leve à venda dos produtos manufaturados (Aranha: 1958c). O argumento demonstra, primeiramente, seu soisticado conhecimento da tradição diplomática brasileira e da disciplina de direito internacional público. Um segundo aspecto a ser relevado é como ele adianta conceitos que se tornariam centrais na política externa brasileira, em especial a noção de universalismo e diversiicação de exportações. Por im, deve-se notar seu foco mais econômico, principalmente no tema da composição da pauta exportadora do país. Não pode se dizer que Oswaldo Aranha acertou todas as suas opiniões sobre o futuro. Sua grande admiração à ONU levou-o a cogitar que o processo de descolonização seria conduzido pela organização, provavelmente em processo semelhante ao que comandara sobre a questão do mandato da Palestina; também não acreditou na continuidade da expansão soviética na periferia (Aranha: 1958a). Havia, também, certo afastamento com relação à nova geração. Ele aprendeu a ver o Brasil como uma potência em ascensão, não gostando de se associar a blocos que não fossem o das democracias ocidentais. 55 Rogério de Souza Farias Não me iliei jamais aos que querem apresentar o Brasil como um pedinte, um necessitado, quase esmolér. Não acreditei nunca nas vantagens da subserviência diplomática nem nas invocações sentimentais para a obtenção do outras vantagens, além das que considerei justas e devidas ao Brasil. Nunca me apresentei como enviado de um país “subdesenvolvido”, mas do um povo consciente de seus direitos e deveres (Aranha: 1958a). Oswaldo Aranha acreditava que a sociedade brasileira deveria ter papel proeminente na política internacional. Era, assim, extremamente crítico não só à associação à periferia como à possibilidade de o país icar “à margem das decisões mundiais, espectador pacíico e paciista dos acontecimentos internacionais” (Aranha: 1994l). Isso decorria, em sua opinião, tanto das características da formação histórica brasileira como da capacidade de seus estadistas e diplomatas. Por isso exortou uma jovem turma formada no Instituto Rio Branco, em 1950, a ter um papel “mundial” (Aranha: 1950). Em sua visão, logo após a Segunda Guerra Mundial, o Brasil, de mero colaborador na ordem diplomática, política e jurídica do mundo será, agora, chamado, na paz ou na guerra, a intervir e a desempenhar uma ação efetiva na ordem mundial. Toda vez que esta ordem vier a ser ameaçada, terá o Brasil de exercer, em todos os campos das atividades mundiais, uma intervenção direta e responsável (Aranha: 1994l). A globalização dos interesses brasileiros em sua política externa e a defesa da proeminência do país na construção ordem internacional seriam, assim, contribuições centrais para seus sucessores. Essas concepções, assim como a defesa do multilateralismo e da democracia, constituíram o legado duradouro do pensamento diplomático de Oswaldo Aranha, algo que persiste até os dias de hoje (Almeida e Araújo: 2013). 56