Ana Rojas Acosta, Maria Amalia Faller Vitale (organizadoras)
Família
Família
Redes, Laços e Políticas Públicas
6ª edição
Sumário
6
Prefácio à sexta edição 11
Prefácio à quinta edição 14
Prefácio à quarta edição 16
Prefácio à segunda edição 17
Prefácio 18
Apresentação à sexta edição 23
Apresentação 24
Nota da Coordenadoria de Estudos e Desenvolvimento
de Projetos Especiais – CEDEPE/PUC‑SP – à 6a edição 27
Parte 1
Vida em família 29
Famílias enredadas
CYNTHIA A. SARTI
31
Família e afetividade: a coniguração de uma práxis
ético‑política, perigos e oportunidades 51
BADER B. SAWAIA
Ser criança: um momento do ser humano
HELOIZA SZYMANSKI
O jovem e o contexto familiar
SILVIA LOSACCO
75
Homens e cuidado: uma outra família?
JORGE LYRA
LUCIANA SOUZA LEÃO
DANIEL COSTA LIMA, PAULA TARGINO,
AUGUSTO CRISÓSTOMO, BRENO SANTOS
Avós: velhas e novas iguras da
família contemporânea 107
MARIA AMALIA FALLER VITALE
65
91
Parte 2
Trabalhando com famílias 121
Metodologia de trabalho social com famílias
NAIDISON DE QUINTELLA BAPTISTA
123
Relexões sobre o trabalho social com famílias
ROSAMÉLIA FERREIRA GUIMARÃES
SILVANA CAVICHIOLI GOMES ALMEIDA
Famílias beneiciadas pelo
Programa de Renda Mínima em
São José dos Campos/SP:
aproximações avaliativas 155
ANA ROJAS ACOSTA
MARIA AMALIA FALLER VITALE
MARIA DO CARMO BRANT DE CARVALHO
RELATO DE CASO
Programa de Garantia de Renda
Mínima e de Geração de Emprego
e Renda de São José dos Campos/SP
APARECIDA VANDA FERREIRA E SILVA
ODILA FÁTIMA T. DERRIÇO
REGINA HELENA SANTANA
185
143
7
Sumário
Famílias: questões para o
Programa de Saúde da Família (PSF)
REGINA MARIA GIFFONI MARSIGLIA
8
191
RELATO DE CASO
Experiência do Programa de Saúde
da Família de Nhandeara/SP 199
SOLANGE APARECIDA OLIVA MATTOS
FABIANA REGINA SOARES
RELATO DE CASO
Experiência do Programa de Saúde da
Família de Itapeva/SP: horta comunitária,
uma experiência em andamento 209
ROSA PIEPRZOWNIK
VANILDA FÁTIMA RIBEIRO HATOS
Sistema de Informação de Gestão Social:
monitoramento e avaliação de programas
de complementação de renda 217
ANA ROJAS ACOSTA
MARCELO AUGUSTO SANTOS TURINE
RELATO DE CASO
Programa Mais Igual de Complementação de Renda
Familiar da Prefeitura de Santo André/SP 235
CID BLANCO
VALÉRIA GONELLI
RELATO DE CASO
Políticas públicas de atenção à família
LUCI JUNQUEIRA
NELSON GUIMARÃES PROENÇA
243
Parte 3
Famílias e políticas públicas 255
Formulação de indicadores de
acompanhamento e avaliação de
programas socioassistenciais 257
DENISE BLANES
Índice de Desenvolvimento da Família (IDF)
MIRELA DE CARVALHO
RICARDO PAES DE BARROS
SAMUEL FRANCO
Famílias e políticas públicas 297
MARIA DO CARMO BRANT DE CARVALHO
RELATO DE CASO
Programa Bolsa‑Escola Municipal
de Belo Horizonte/MG: educação,
família e dignidade 307
AFONSO CELSO RENAN BARBOSA
LAURA AFFONSO DE CASTRO RAMO
A economia da família
LADISLAU DOWBOR
323
269
9
Parte 1
Vida em família
Famílias enredadas
CYNTHIA A. SARTI*
■ Introdução
Falar em família neste começo do século XXI, no Brasil, como alhu‑
res, implica a referência a mudanças e a padrões difusos de relaciona‑
mentos. Com seus laços esgarçados, torna‑se cada vez mais difícil deinir
os contornos que a delimitam. Vivemos uma época como nenhuma outra,
em que a mais naturalizada de todas as esferas sociais, a família, além
de sofrer importantes abalos internos tem sido alvo de marcantes inter‑
ferências externas. Estas diicultam sustentar a ideologia que associa a
família à ideia de natureza, ao evidenciarem que os acontecimentos a ela
ligados vão além de respostas biológicas universais às necessidades hu‑
manas, mas coniguram diferentes respostas sociais e culturais, disponí‑
veis a homens e mulheres em contextos históricos especíicos.
Desde a revolução industrial, que separou o mundo do trabalho do
mundo familiar e instituiu a dimensão privada da família, contraposta
ao mundo público, mudanças signiicativas a ela referentes relacionam‑se
ao impacto do desenvolvimento tecnológico. Mais recentemente, desta‑
cam‑se as descobertas cientíicas que resultaram em intervenções tec‑
nológicas sobre a reprodução humana (Scavone, 1993).
A partir da década de 1960, não apenas no Brasil, mas em escala
mundial, difundiu‑se a pílula anticoncepcional, que separou a sexuali‑
dade da reprodução e interferiu decisivamente na sexualidade feminina.
Esse fato criou as condições materiais para que a mulher deixasse de
ter sua vida e sua sexualidade atadas à materni‑
* Antropóloga, doutora em
dade como um “destino”, recriou o mundo subje‑
Antropologia Social pela
tivo feminino e, aliado à expansão do feminismo,
Universidade de São Paulo e
professora do Departamento de
ampliou as possibilidades de atuação da mulher
Medicina Preventiva da
Universidade Federal de São
Paulo/Escola Paulista de Medicina.
31
VIDA EM FAMÍLIA
PARTE 1
32
FAMÍLIAS ENREDADAS
CYNTHIA A. SARTI
no mundo social. A pílula, associada a outro fenômeno social, a saber,
o trabalho remunerado da mulher, abalou os alicerces familiares, e am‑
bos inauguraram um processo de mudanças substantivas na família, o
qual foi extensamente analisado, sob distintos ângulos, especialmente
na literatura sobre gênero (Moraes, 1994; Romanelli, 1995; Sarti, 1995,
entre tantos outros).
Desde então, começou a se introduzir no universo naturalizado da
família a dimensão da “escolha”. Mais tarde, a partir dos anos 1980, as
novas tecnologias reprodutivas — seja inseminações artiiciais, seja
fertilizações in vitro1 — dissociaram a gravidez da relação sexual entre
homem e mulher. Isso provocou outras “mudanças substantivas”, as quais
novamente afetaram a identiicação da família com o mundo natural,
que fundamenta a ideia de família e parentesco do mundo ocidental
judaico‑cristão (Strathern, 1995).
As distintas intervenções tecnológicas, entretanto, atingem dife‑
rentemente a concepção de família. A pílula abala o valor sagrado da
maternidade e a identiicação entre mulher e mãe, ao permitir a auto‑
nomia da sexualidade feminina sem sua inexorável associação com a
reprodução. As técnicas de reprodução assistida caminham em direção
inversa. Várias pesquisas argumentam que os avanços tecnológicos nes‑
ta área reforçam a maternidade e seu valor social, sobretudo no que se
refere à manutenção do padrão de relações de gênero (Scavone, 1998;
Barbosa, 1999 e 2000).
Scavone (1993) chama a atenção para as modiicações no discurso
feminista francês em resposta às tecnologias médicas. Na década de
1970, dadas as possibilidades de contracepção,
1
O artigo de Barbosa mostra as
reivindicava‑se o direito à livre escolha da ma‑
várias modalidades das
ternidade;2 na década seguinte, reivindica‑se sua
tecnologias reprodutivas, deinidas
como “o conjunto de técnicas
não imposição,3 diante da pressão social exerci‑
médicas voltadas para o
tratamento de situações de
da pelas novas tecnologias reprodutivas como
infertilidade” (2000, p. 212).
expressão do controle médico sobre a família.
2
“Un enfant, si je veux, quand je
veux” (uma criança, se eu quiser,
Não obstante, ambas as intervenções tec‑
quando eu quiser), segundo
nológicas — relativas à anticoncepção ou à
Scavone (1993, p. 52). Cabe
ressaltar a exacerbação do
reprodução assistida — implicam, pelo menos
discurso individualista presente
em algum nível, a introdução da noção de “es‑
nesta máxima feminista.
3
“Les enfants que je veux, si je
colha”, seja para evitar a gravidez, seja para
peux” (as crianças que eu quiser,
se eu puder), como cita Scavone
(ibidem, p. 52).
As tecnologias de
provocá‑la por meios “não naturais”. Nesse
anticoncepção e de
sentido, a ruptura com a concepção naturali‑
reprodução assistida
zada da família, reforçada pelas tecnologias,
[…] não lograram
pelo menos contribui, ainda que não garanta,
dissociar a noção de
para se pensar os eventos familiares, desde os
família da “natureza
mais cotidianos, como passíveis de indagações
biológica do ser
e de negociações, permitindo a emergência
humano”.
de uma “nova intimidade”, como argumenta
Giddens (1993).
Sabemos que o mundo de signiicações humano não tem uma rela‑
ção mecânica com as possibilidades materiais da existência, sendo
mediado pelas “traduções” sociais, culturais e psíquicas dessas possibi‑
lidades, ou seja, dependem de como são incorporadas pela sociedade e
internalizadas pelos sujeitos.
Assim, as intervenções tecnológicas sobre a reprodução humana
introduzem uma tensão no imaginário social, entre o caráter “natural”
33
atribuído à família e a quebra da identiicação desta com a natureza,
que a tecnologia produz. No imaginário atual relativo à família, pelo
menos no amplo espectro do mundo ocidental, opera uma tensão entre
escolha e destino (Fonseca, 2001). A família constitui‑se em um ter‑
reno ambíguo. Ainda que as tecnologias de anticoncepção e de repro‑
dução assistida tenham de fato aberto espaço para novas experiências
no plano da sexualidade e da reprodução humana, ao delagrar os
processos de mudanças objetivas e subjetivas, que estão atualmente
em curso, não lograram dissociar a noção de família da “natureza bio‑
lógica do ser humano”.
As mudanças são particularmente difíceis,
4
uma vez que as experiências vividas e simboli‑
Sabe‑se que a obra de Michel
Foucault foi fundamental no
zadas na família têm como referência, a respeito
impulso à relexão crítica acerca
dessas instituições. Os trabalhos de
desta, deinições cristalizadas que são socialmen‑
Scavone (1993 e 1998) e de
te instituídas pelos dispositivos jurídicos, médi‑
Barbosa (1999 e 2000) argumentam
que as novas tecnologias
cos, psicológicos, religiosos e pedagógicos, enim,
reprodutivas reforçam a
pelos dispositivos disciplinares existentes em
normatização médica da família e
seu controle sobre o corpo da
nossa sociedade, os quais têm nos meios de
mulher, secundando, a partir de
comunicação um veículo fundamental, além de
outras questões, o trabalho de
Costa (1979) sobre a sociedade
suas instituições especíicas.4 Essas referências
brasileira. Sobre a medicina e a
construção da diferença de gêneros,
ver também Rohden (2001).
constituem os “modelos” do que é e como deve ser a família, ancorados
numa visão que a considera como uma unidade biológica constituída
segundo leis da “natureza”, poderosa força simbólica.
PARTE 1
VIDA EM FAMÍLIA
■ A paternidade, conhecida?
34
FAMÍLIAS ENREDADAS
CYNTHIA A. SARTI
Na década de 1990, o processo de mudanças familiares ganha novo
impulso, com a difusão do exame do DNA (Fonseca, 2001), que permi‑
te a identiicação da paternidade. A dúvida quanto à paternidade e a
certeza da maternidade deixaram, em princípio, de ser o suposto fun‑
damento “natural” que servia de pretexto a costumes, pactos familiares
e relações de gênero, que estruturaram a família durante tanto tempo
(Bilac, 1998).
Essa forma de intervenção tecnológica é fundamental no que se
refere a laços e responsabilidades familiares, porque ela diz respeito ao
homem, em seu lugar de pai, e introduz tensões no lugar masculino
dentro da família, que até então continuava razoavelmente preservado
nas suas bases patriarcais.5 A comprovação da paternidade abre o cami‑
nho para que esta seja reivindicada, causando forçosamente um impac‑
to na atitude tradicional de irresponsabilidade masculina em relação aos
ilhos, o que signiica um recurso de proteção para a mulher, mas so‑
bretudo para a criança. Não à toa, Bilac (1998) argumenta que os homens
nunca foram tão responsáveis por sua reprodução biológica como no
momento atual de nossa história (Fonseca, 2001).
Paralelamente, mudanças incidem também sobre o plano jurídico e
alteram o estatuto legal da família, como produto da ação de inúmeras
forças sociais, entre elas dois movimentos sociais fundamentais para as
transformações familiares: o movimento feminista e a luta em favor dos
direitos das crianças.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 institui duas profundas
alterações no que se refere à família: 1. a quebra da cheia conjugal
masculina, tornando a sociedade conjugal compartilhada em direitos e
deveres pelo homem e pela mulher; 2. o im da diferenciação entre ilhos
legítimos e ilegítimos, reiterada pelo Estatuto da
5
A literatura mostra o quanto o
Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em
corpo feminino tem sido o foco
das intervenções tecnológicas
(Barbosa, 1999).
Os homens
1990, que os deine como “sujeitos de direitos”.
nunca foram tão
Com o exame do DNA, que comprova a pater‑
responsáveis por
nidade, qualquer criança nascida de uniões
sua reprodução
consensuais ou de casamentos legais pode ter
biológica como no
garantidos seus direitos de iliação, por parte
momento atual de
do pai e da mãe.
nossa história.
Ambas as medidas foram um golpe, de uma
extensão desconhecida até então, desferido
contra o pátrio poder. O ECA dessacraliza a família a ponto de introduzir
a ideia da necessidade de se proteger legalmente qualquer criança contra
seus próprios familiares, ao mesmo tempo em que reitera “a convivência
familiar” como um “direito” básico dessa criança. É importante destacar
esse aspecto por contribuir para a “desidealização” do mundo familiar,
ainda que se saiba que esse recurso legal é frequentemente utilizado para
estigmatizar as famílias pobres, deinidas como desestruturadas, “inca‑
pazes de dar continência a seus ilhos”, sem a devida consideração do
lugar dos ilhos no universo simbólico dessas famílias pobres.
Embora a família continue sendo objeto de profundas idealizações,
a realidade das mudanças em curso abalam de tal maneira o modelo
idealizado que se torna difícil sustentar a ideia de um modelo “adequa‑
do”. Não se sabe mais, de antemão, o que é adequado ou inadequado
relativamente à família. No que se refere às relações conjugais, quem
são os parceiros? Que família criaram? Como delimitar a família se as
relações entre pais e ilhos cada vez menos se resumem ao núcleo con‑
jugal? Como se dão as relações entre irmãos, ilhos de casamentos, di‑
vórcios, recasamentos de casais em situações tão diferenciadas? Enim,
a família contemporânea comporta uma enorme elasticidade.
Sabemos que houve, no Brasil, uma drástica redução do número de
ilhos em todas as camadas sociais (Goldani, 1994), principalmente
entre os pobres, por serem os que apresentavam maiores taxas de fe‑
cundidade. A difusão dos anticoncepcionais teve impacto em toda a
sociedade, o que não quer dizer que essa difusão teve o mesmo signi‑
icado em todos os segmentos nos quais se manifestou, porque a ma‑
ternidade e o ilho têm signiicados distintos para cada um. O mesmo
acontece em relação ao exame do DNA, que tem sido solicitado em
todas as camadas sociais (Fonseca, 2001).
35
VIDA EM FAMÍLIA
PARTE 1
36
Não temos ainda suiciente informação, fundamentada em pesqui‑
sas, sobre o que mobiliza as mulheres pobres a comprovar a paternida‑
de de seus ilhos. Que sentidos têm, para elas, a partilha inanceira,
mesmo num contexto de parcos recursos? Dado o alto índice de mães
solteiras e, portanto, de crianças sem registro de paternidade, parece
haver um desejo do nome do pai na certidão de nascimento, a marca
da origem. Qual o sentido da busca da identiicação do pai, pelo ilho,
e do pai do ilho, pela mãe, entre aqueles que socialmente têm seus
direitos não reconhecidos e tantas oportunidades negadas? Tais pergun‑
tas emergem também pela alta incidência de ilhos que solicitam o
exame do DNA (Fonseca, 2001), na busca do pai desconhecido.
As mudanças familiares têm, assim, sentidos diversos para os dife‑
rentes segmentos sociais, e seu impacto incide de formas distintas sobre
eles, porque o acesso a recursos é desigual numa sociedade de classes.
Portanto, para abordar o tema das famílias e das políticas sociais, não
se pode partir de um único referencial.
FAMÍLIAS ENREDADAS
CYNTHIA A. SARTI
■ Fios esgarçados...
Pela perda de referências rígidas no que se refere à família, assim
como pela lexibilidade de suas fronteiras, algumas diiculdades se im‑
põem no trabalho a ela voltado. Em primeiro lugar, a diiculdade de
romper com o modelo idealizado e naturalizado acerca dessa instituição
e, além disso, a diiculdade de nos estranharmos em relação às nossas
próprias referências. A esse respeito, tende‑se a ser ainda mais etno‑
cêntrico do que habitualmente se é em outros assuntos, tão forte é sua
identiicação com o que somos (Sarti, 1999).
Pode‑se pensar a noção de família como uma “categoria nativa”, ou
seja, de acordo com o sentido a ela atribuído por quem a vive, conside‑
rando‑o como um ponto de vista. Embora nunca estejamos inteiramente
seguros de que o que atribuímos ao outro corresponde ao que ele atribui
a si mesmo — diiculdade inerente às relações intersubjetivas —, pode‑se
ao menos buscar uma abertura tendo em vista essa aproximação.
Pretende‑se sugerir, assim, uma abordagem de família como algo
que se deine por uma história que se conta aos indivíduos, ao longo
Qual a concepção de
do tempo, desde que nascem, por palavras,
família segundo os
gestos, atitudes ou silêncios, e que será por
“pobres” — aqueles
eles reproduzida e ressigniicada, à sua manei‑
a quem se dirigem
ra, dados os seus distintos lugares e momentos
as políticas sociais?
na família. Dentro dos referenciais sociais e
Qual a concepção
culturais de nossa época e de nossa sociedade,
de pobreza dessas
cada família terá uma versão de sua história,
políticas?
a qual dá signiicado à experiência vivida. Ou
seja, trabalhar com famílias requer a abertura
para uma escuta, a im de localizar os pontos de vulnerabilidade, mas
também os recursos disponíveis.
Partimos, então, da ideia de que a família se delimita simbolicamen‑
te, baseada num discurso sobre si própria, que opera como um discurso
oicial. Embora culturalmente instituído, ele comporta uma singularidade:
cada família constrói sua própria história, ou seu próprio mito, entendido
como uma formulação discursiva em que se expressam o signiicado e a
37
explicação da realidade vivida, com base nos elementos objetiva e subje‑
tivamente acessíveis aos indivíduos na cultura em que vivem.
Pensar a família como uma realidade que se constitui pelo discur‑
so sobre si própria, internalizado pelos sujeitos, é uma forma de buscar
uma deinição que não se antecipe à sua própria realidade, mas que nos
permita pensar como ela se constrói, constrói sua noção de si, supondo
evidentemente que isto se faz em cultura, dentro, portanto, dos parâ‑
metros coletivos do tempo e do espaço em que vivemos, que ordenam
as relações de parentesco (entre irmãos, entre pais e ilhos, entre ma‑
rido e mulher). Sabemos que não há realidade humana exterior à cultu‑
ra, uma vez que os seres humanos se constituem em cultura, portanto,
simbolicamente.
Quando ouvimos as primeiras falas, não aprendemos apenas a nos
comunicar; captamos, acima de tudo, uma ordem simbólica, ou seja,
uma ordenação do mundo pelo signiicado que lhe é atribuído segundo
as regras da sociedade em que vivemos. O componente simbólico,
apreendido na linguagem, não é apenas parte integrante da vida huma‑
na, é seu elemento constitutivo.
Nesse jogo entre o mundo exterior e o mundo subjetivo, as cons‑
truções simbólicas operam numa relação especular. Assim acontece na
VIDA EM FAMÍLIA
PARTE 1
família. O discurso social a seu respeito se relete nas diferentes famílias
como um espelho. Em cada caso, entretanto, há uma tradução desse
discurso, e cada uma delas, por sua vez, devolverá ao mundo social sua
imagem, iltrada pela singularidade das experiências vividas. Assim, cada
uma constrói seus mitos segundo o ouve sobre si, do discurso externo
internalizado, mas devolve um discurso sobre si mesma que inclui tam‑
bém sua elaboração, objetivando sua experiência subjetiva.
Na tentativa de escutar a história que as famílias contam sobre si
mesmas, no quadro de mudanças familiares descrito, como pensar na
formulação de políticas sociais, uma vez que essas políticas se dirigem
àquelas consideradas pobres?
Gostaria de atentar para duas questões, na tentativa de reletir
sobre as nossas práticas: a concepção de família, segundo aqueles a
quem se dirigem as políticas sociais, os “pobres”; e a concepção de
pobreza subjacente a essas políticas, que faz do pobre um “outro”.
38
FAMÍLIAS ENREDADAS
CYNTHIA A. SARTI
■ Os nós atados: a família em rede
A primeira característica a ressaltar sobre as famílias pobres é sua
coniguração em rede, contrariando a ideia corrente de que esta se
constitui em um núcleo.6 Assim, cumpre desfazer a confusão entre fa‑
mília e unidade doméstica, a casa, imprecisão que têm consequências
nas ações a ela pertinentes, uma vez que leva a desconsiderar a rede
de relações na qual se movem os sujeitos em família e que provê os
recursos materiais e afetivos com que contam.
No universo simbólico dos pobres, existe uma divisão complemen‑
tar de autoridades entre o homem e a mulher na família, que correspon‑
de à diferenciação que fazem entre casa e família. A casa é identiicada
com a mulher, e a família com o homem. Casa e família, como mulher
e homem, constituem um par complementar, mas hierárquico.
Em consonância com a precedência do homem sobre a mulher e da
família sobre a casa, o homem é considerado o
6
As relexões sobre a família
chefe da família e a mulher, a chefe da casa. O
entre os pobres, aqui
apresentadas, baseiam‑se em uma
homem corporiica a ideia de autoridade, como
experiência de pesquisa na
periferia de São Paulo, cujos
uma mediação da família com o mundo externo.
resultados aparecem em trabalho
anterior, recentemente reeditado
(Sarti, 2003).
Cumpre desfazer a
Ele é a autoridade moral, responsável pela
confusão entre
respeitabilidade familiar. À mulher cabe outra
família e unidade
importante dimensão da autoridade: manter a
doméstica, a casa,
unidade do grupo. Ela é quem cuida de todos
pois essa imprecisão
e zela para que tudo esteja em seu lugar. Scott
desconsidera a rede
(1990) observou o mesmo padrão em famílias
de relações na qual
pobres no Recife, ao analisar as diferentes
se movem os sujeitos
percepções da casa pelo homem e pela mulher.
Mostra que, no discurso masculino, a casa deve
em família.
estar “sob controle”, enquanto as mulheres
ativamente a controlam.
Ainda que em nível ideal o projeto de casar venha junto com o de
ter uma casa, como núcleo independente, os vínculos com a rede fami‑
liar mais ampla não se desfazem com o casamento, pelas obrigações que
continuam existindo em relação aos familiares, sobretudo diante da
instabilidade das uniões conjugais entre os pobres. Nos casos das fre‑
39
quentes uniões instáveis, que se devem às diiculdades de atualizar o
padrão conjugal, ressalta‑se a importância da diferenciação entre a casa
e a família para se entender a dinâmica das relações familiares (Fonse‑
ca, 1987; Woortmann, 1982 e 1987).
Além disso, as famílias pobres diicilmente passam pelos ciclos de
desenvolvimento do grupo doméstico, sobretudo pela fase de criação
dos ilhos sem rupturas (Neves, 1984, Fonseca, 1987 e Scott, 1990), o
que implica alterações muito frequentes nas unidades domésticas. As
diiculdades enfrentadas para a realização dos papéis familiares no núcleo
conjugal, diante de uniões instáveis e empregos incertos, desencadeiam
arranjos que envolvem a rede de parentesco como um todo, a im de
viabilizar a existência da família.
A vulnerabilidade da família pobre ajuda a explicar a frequência de
rupturas conjugais, diante de tantas expectativas não cumpridas. Dada
a coniguração das relações de gênero, o homem se sente fracassado, e
a mulher vê rolar por água abaixo suas chances de ter alguma coisa
através do projeto do casamento.
Se a vulnerabilidade feminina está em ter sua relação com o mundo
externo mediada pelo homem — o que a enfraquece em face deste mun‑
do, que, por sua vez, reproduz e reitera as diferenciações de gênero —,
VIDA EM FAMÍLIA
PARTE 1
40
FAMÍLIAS ENREDADAS
CYNTHIA A. SARTI
o lugar central do homem na família, como trabalhador/provedor, tor‑
na‑o também vulnerável, porque o faz dependente de condições externas
cujas determinações escapam a seu controle. Este fato torna‑se parti‑
cularmente grave no caso da população pobre, exposta à instabilidade
estrutural do mercado de trabalho que a absorve.
Nos casos em que a mulher assume a responsabilidade econômica
do lar, ocorrem modiicações importantes no jogo de relações de auto‑
ridade, e ela pode de fato assumir o papel do homem como “chefe de
família” e deinir‑se como tal. A autoridade masculina é seguramente
abalada se o homem não garante o teto e o alimento dos seus, funções
masculinas, porque o papel de provedor a reforça de maneira decisiva.
Entretanto, a desmoralização ocorrida pela perda da autoridade ineren‑
te ao papel de provedor, abalando a base do respeito que lhe devem
seus familiares, signiica uma perda para a família como totalidade, que
tenderá a buscar uma compensação, ou seja, a substituição da igura
masculina de autoridade por outros homens da rede familiar.
Cumprir o papel masculino de provedor não conigura, de fato, um
problema para a mulher, já acostumada a trabalhar. Para ela, o proble‑
ma está em manter a dimensão do respeito, que é conferida pela pre‑
sença masculina. Mesmo quando sustentam economicamente suas
unidades domésticas, elas podem continuar designando, em algum nível,
um “chefe” masculino. Isso signiica que, mesmo nos casos em que a
mulher assume‑se como provedora, a identiicação do homem com a
autoridade moral que confere respeitabilidade à família não necessa‑
riamente se quebra.
A sobrevivência dos grupos domésticos das mulheres “chefes de
família” é possibilitada pela mobilização cotidiana de uma rede familiar
que ultrapassa os limites da casa. Tal como acontece o deslocamento
dos papéis masculinos, os papéis femininos, na impossibilidade de serem
exercidos pela mãe‑esposa‑dona de casa, são igualmente transferidos
para outras mulheres, de fora ou de dentro da unidade doméstica.
A comunicação dentro da rede de parentesco mostra que a mãe tem
um papel crucial, conforme observa Woortmann (1987), mas isso não
signiica sua “centralidade” na família, mas o cumprimento de seu papel
de gênero, como mantenedora da unidade familiar, numa estrutura que
inclui o papel complementar masculino, deslocado para outros homens
Os papéis femininos,
na ausência do pai/marido. A centralidade está,
na impossibilidade
portanto, no par masculino/feminino.
de serem exercidos
Dentro desse universo simbólico, ressurge
pela mãe‑esposa‑
entre os pobres urbanos a clássica igura do
‑dona de casa, são
“irmão da mãe”. Sobretudo nos momentos do
transferidos para
ciclo de vida em que o pai da mulher já tem
outras mulheres, de
uma idade avançada e não possui mais condições
fora ou de dentro da
de lhe dar apoio, o irmão surge como a igura
masculina mais provável de ocupar o lugar da
casa.
autoridade masculina, mediando a relação da
mulher com o mundo externo e garantindo a
respeitabilidade de seus consanguíneos. Woortmann (1987) e Fonseca
(1987) reconhecem também obrigações do irmão de uma mulher para
com ela, como uma espécie de substituto do marido, assumindo parte
das responsabilidades masculinas quando esta é abandonada.
Nas famílias que cumpriram sem rupturas os ciclos de desenvolvi‑
41
mento da vida familiar, o pai/marido tem papel central numa relação
complementar e hierárquica com a mulher, concentrada no núcleo con‑
jugal, ainda que essa situação não exclua a transferência de atribuições
à rede mais ampla, em particular quando a mãe trabalha fora; nas que
são desfeitas e refeitas, os arranjos deslocam‑se mais intensamente do
núcleo conjugal/doméstico para a rede mais ampla, sobretudo para a
família consanguínea da mulher.
Esse deslocamento de papéis familiares não signiica uma nova
estrutura, respondendo, antes, aos princípios estruturais que deinem a
família entre os pobres, a hierarquia homem/mulher e a diferenciação
de gênero, com a divisão de autoridades que a acompanha.
Não é, portanto, o controle dos recursos internos do grupo domés‑
tico que necessariamente fundamenta a autoridade do homem, mas seu
papel de intermediário entre a família e o mundo externo, como guardião
da respeitabilidade — lugar masculino que corresponde à representação
social de gênero que identiica o homem como a autoridade moral da
família. Diz respeito à ordem moral que a organiza, que se reatualiza
nos diversos arranjos feitos pelas famílias com seus parcos recursos.
A família pobre, constituindo‑se em rede, com ramiicações que
envolvem o parentesco como um todo, conigura uma trama de obriga‑
VIDA EM FAMÍLIA
PARTE 1
42
FAMÍLIAS ENREDADAS
CYNTHIA A. SARTI
ções morais que enreda seus membros, num duplo sentido, ao diicultar
sua individualização e, ao mesmo tempo, viabilizar sua existência como
apoio e sustentação básicos.
Entre as relações familiares, é sem dúvida a que ocorre entre pais
e ilhos que estabelece o vínculo mais forte, em que as obrigações mo‑
rais atuam de forma mais signiicativa. Se, na perspectiva dos pais, os
ilhos são essenciais para dar sentido a seu projeto de casamento, “fer‑
tilizando‑o” — para não serem uma árvore seca e outras tantas metá‑
foras que exempliicam a analogia da família com a natureza —, dos
ilhos espera‑se o compromisso moral da retribuição dos cuidados.
Para entender o lugar das crianças nas famílias pobres, é necessá‑
rio, mais uma vez, diferenciar as que cumpriram as etapas do seu de‑
senvolvimento sem rupturas, cujos ilhos tendem a se manter no mesmo
núcleo familiar, e as que se desizeram nesse caminho, alterando a or‑
denação da relação conjugal e a relação entre pais e ilhos.
Nos casos de instabilidade familiar por separações e mortes, aliada
à instabilidade econômica estrutural e ao fato de que não existem ins‑
tituições públicas que substituam de forma eicaz as funções familiares,
as crianças passam a não ser uma responsabilidade exclusiva da mãe ou
do pai, mas de toda a rede de sociabilidade em que a família está en‑
volvida. Fonseca (2002) argumenta que há uma coletivização das res‑
ponsabilidades pelos menores dentro do grupo de parentesco, caracte‑
rizando uma “circulação de crianças”. Essa prática popular inscreve‑se
dentro da lógica de obrigações morais que caracteriza a rede de paren‑
tesco entre os pobres.
Em novas uniões conjugais, quando há ilhos de uniões anteriores,
os direitos e os deveres no grupo doméstico icam abalados, na medida
em que estes não são do mesmo pai e da mesma mãe, levando a ampliar
essa rede para fora desse núcleo. Nessa situação, os conlitos entre as
crianças e o novo cônjuge podem levar a mulher a optar por dar seus
ilhos para criar, ou algum deles, ainda que temporariamente.
A criança será coniada a outra mulher, em geral da rede consan‑
guínea da mãe. Nas famílias desfeitas por morte ou separação, no mo‑
mento de expansão e criação dos ilhos ocorrem rearranjos a im de
garantir o amparo inanceiro e o cuidado necessários. Embora se conte
fundamentalmente com a rede consanguínea, as crianças podem ser
A circulação de
recebidas por não parentes, dentro do grupo
crianças, que
de referência dos pais.
acontece mesmo em
Nos casos de separação, pode haver
famílias que não se
preferência da mãe pelo novo companheiro,
romperam, pode ser
prevalecendo o laço conjugal, circunstancial‑
interpretada como
mente mais forte que o vínculo mãe‑ilho.
padrão legítimo de
Uma nova união tem implicações na relação
relação com os
da mulher com os ilhos da união anterior,
que expressam o conlito entre conjugabili‑
ilhos.
dade e maternidade. Dadas as diiculdades
que uma mulher pobre enfrenta para criar
seus ilhos, a tendência será lançar mão de soluções temporárias a
im de contornar a situação, entre as quais está a possibilidade de
que os ilhos iquem com o pai (o que aconteceu, de fato, entre os
casos que acompanhei).
A instabilidade familiar, embora seja um fator importante, não
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esgota o signiicado da circulação de crianças, que pode acontecer
mesmo em famílias que não se romperam. Essa circulação, como padrão
legítimo de relação com os ilhos, pode ser interpretada como um padrão
cultural que permite uma solução conciliatória entre o valor da materni‑
dade e as diiculdades concretas de criá‑los, levando as mães a não se
desligarem deles, mas a manterem o vínculo por meio de uma circulação
temporária. Assim, mantêm‑se os vínculos de sangue com os de criação,
ambos deinindo os laços de parentesco, juntamente com a presença, no
mundo da criança, de várias “mães”: a que me criou, a que me ganhou
etc. (Fonseca, 2002).
Quanto às obrigações morais dos ilhos com relação aos pais, os
que criam e cuidam são merecedores de profunda retribuição, sendo um
sinal de ingratidão o não reconhecimento dessa contrapartida.
As adoções temporárias — ou circulação de crianças — criam uma
forma de apego, uma afetividade distinta das relações estáveis e duradouras.
O sentimento de uma mãe ao dar seu ilho para criar, como uma questão
de ordem sociológica, diz respeito a um padrão cultural segundo o qual as
crianças fazem parte da rede de relações que marca o mundo dos pobres,
constituindo “dádivas”, como observou Fonseca (2002). Assim, criar ou
dar uma criança não é apenas uma questão de possibilidades materiais,
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FAMÍLIAS ENREDADAS
CYNTHIA A. SARTI
inscrevendo‑se dentro do padrão de relações que os pobres desenvolvem
entre si, caracterizadas por um dar, receber e retribuir contínuos.
A rede de obrigações que se estabelece conigura, assim, para os
pobres, a noção de família. Sua delimitação não se vincula à pertinên‑
cia a um grupo genealógico, uma vez que a extensão vertical do paren‑
tesco restringe‑se àqueles com quem convivem ou conviveram, raramen‑
te passando dos avós. Para eles, a extensão da família corresponde à da
rede de obrigações: são da família aqueles com quem se pode contar,
quer dizer, aqueles em quem se pode coniar.
A noção de família deine‑se, assim, em torno de um eixo moral.
Suas fronteiras sociológicas são traçadas segundo o princípio da obri‑
gação, que lhe dá fundamento, estruturando suas relações. Dispor‑se às
obrigações morais recíprocas é o que deine a pertinência ao grupo
familiar. A argumentação deste trabalho vai ao encontro da de Woortmann
(1987), para quem, sendo necessário um vínculo mais preciso que o de
sangue para demarcar quem é parente ou não entre os pobres, a noção
de obrigação torna‑se central à ideia de parentesco, sobrepondo‑se aos
laços consanguíneos. Essa dimensão moral do parentesco, a mesma que
indiferencia os ilhos de sangue e os de criação, delimita também sua
extensão horizontal. Como airma Woortmann (1987), a relação entre
pais e ilhos constitui o único grupo em que as obrigações são dadas,
que não se escolhem. As outras relações podem ser seletivas, dependen‑
do de como se estabeleçam as obrigações mútuas dentro da rede de
sociabilidade. Não há relações com parentes de sangue, se com eles não
for possível dar, receber e retribuir, enim, coniar.
Se, em toda a sociedade brasileira, a família é um valor alto, entre
os pobres sua importância é central, e não apenas como rede de apoio
ou ajuda mútua, diante de sua experiência de desamparo social. A fa‑
mília, para eles, vai além; constitui‑se em uma referência simbólica
fundamental, que organiza e ordena sua percepção do mundo social,
dentro e fora do mundo familiar.
Nesse sentido, é importante, na formulação de políticas sociais,
manter o foco na família — homens, mulheres e crianças —, entendida
em sua dimensão de rede. No mundo simbólico dos pobres, a família
tem precedência sobre os indivíduos, e a vulnerabilidade de um de seus
membros implica enfraquecer o grupo como um todo. É evidente que é
A diiculdade em
necessário e urgente considerar as desigualda‑
relativizar os pontos
des de gênero, socialmente instituídas e agra‑
de vista parece ser
vadas nos grupos sociais desfavorecidos, bem
uma das questões
como desenredar os ios, mas sempre levando
mais relevantes a
em conta que desigualdades se coniguram em
serem enfrentadas na
relações, dentro de um mundo de signiicação
implementação de
próprio que precisa ser levado em conta. Sen‑
políticas sociais.
do assim, no que se refere às famílias pobres,
como escutar o discurso daqueles a quem se
dirigem as políticas sociais — os pobres — e situá‑lo no contexto que
lhe dá signiicado, ou seja, o contexto de quem emite o discurso (e não
o de quem o analisa)?
■ Considerações inais
Soa óbvio mencionar a importância de se perguntar como a própria
família deine seus problemas, suas necessidades, seus anseios e quais
são os recursos de que ela mesma dispõe. Menos óbvio é pensar como
ouvimos suas respostas e o estatuto que atribuímos ao que se diz.
Pensar as políticas sociais implica pensar a relação entre si e o
outro. O problema reside na concepção de família que subjaz à grande
parte das “intervenções” em famílias, o que inibe a possibilidade de
elaboração dos problemas individuais e coletivos conforme os recursos
que podem estar no próprio âmbito familiar.
Duas ordens de questões estão em jogo: de um lado, a idealização
da família, projetada num dever ser (e da própria afetividade como um
mundo que exclui o conlito); de outro, está a idealização de si, por
parte dos proissionais, expressa na tendência a atribuir‑se exclusiva‑
mente um saber, com base em sua formação técnica, e negar que a
família assistida tenha um saber sobre si própria.
Ouve‑se o discurso das famílias como “ignorância”, negando que
este possa ser levado em conta como um diálogo entre pontos de vista.
Essa tendência à desqualiicação do outro será tanto mais forte quanto
mais a família assistida pertencer aos estratos mais baixos da hierarquia,
reproduzindo os mecanismos que instituem a desigualdade social.
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FAMÍLIAS ENREDADAS
CYNTHIA A. SARTI
À diiculdade que o tema da família apresenta, por sua forte iden‑
tiicação com nossas próprias referências e pelo esforço de estranhamen‑
to que a aproximação ao outro exige, soma‑se o problema do estatuto
que atribuímos ao nosso próprio discurso e, consequentemente, ao
discurso do outro. Considerar o ponto de vista alheio envolve o con‑
fronto com nosso ponto de vista pessoal, o que signiica romper com o
estatuto de verdade que os proissionais, técnicos e pesquisadores ten‑
dem a atribuir a seu saber. Esse estranhamento permite relativizar seu
lugar e pensá‑lo como um entre outros discursos legítimos, ainda que
enunciados de lugares socialmente desiguais.
A diiculdade de relativização dos pontos de vista parece ser uma
das mais relevantes questões a serem trabalhadas na implementação de
políticas sociais, assim como em todo trabalho que envolva algum tipo
de ajuda não apenas aos pobres, mas a quem quer que seja, deicientes
ou doentes, físicos ou mentais.
Finalizando, nas políticas sociais trata‑se de transformar o lugar
do outro na sociedade. No entanto, como condição prévia a essa trans‑
formação, trata‑se de mudar o lugar em que nos colocamos perante os
demais.
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FAMÍLIAS ENREDADAS
CYNTHIA A. SARTI
Nos últimos anos, observou-se uma proliferação de programas e
projetos dirigidos ao atendimento das famílias. A família, no entanto, não pode ser vista apenas como estratégia dessas políticas.
Neste sentido, tem-se questionado se essas iniciativas são eficientes e eficazes para o fortalecimento das competências familiares,
se respondem às necessidades das próprias famílias atendidas e se
contribuem para o processo de inclusão e proteção social desses
grupos. Por estas razões, as problemáticas concernentes à esfera
familiar, as redes de sociabilidade passam a ser centrais no trato
das políticas sociais.
A reflexão sobre esses e outros desafios certamente interessa a todos que pesquisam ou trabalham com a temática da família e das
políticas sociais, nas diferentes organizações públicas ou privadas.
R E A L I Z A Ç Ã O
APOIO
ISBN 978-85-249-2312-8
Família
Pensar e repensar a família é uma exigência. A família tem sido
percebida como base estratégica para condução de políticas públicas, especialmente aquelas voltadas para a garantia de direitos.