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Familia redes e lacos

Pensar e repensar a família é uma exigência. A família tem sido percebida como base estratégica para condução de políticas públi-cas, especialmente aquelas voltadas para a garantia de direitos. Nos últimos anos, observou-se uma proliferação de programas e projetos dirigidos ao atendimento das famílias. A família, no en-tanto, não pode ser vista apenas como estratégia dessas políticas. Neste sentido, tem-se questionado se essas iniciativas são eecien-tes e eecazes para o fortalecimento das competências familiares, se respondem às necessidades das próprias famílias atendidas e se contribuem para o processo de inclusão e proteção social desses grupos. Por estas razões, as problemáticas concernentes à esfera familiar, as redes de sociabilidade passam a ser centrais no trato das políticas sociais. A reeexão sobre esses e outros desaaos certamente interessa a to-dos que pesquisam ou trabalham com a temática da família e das políticas sociais, nas diferentes organizações públicas ou privadas. O País vive uma rica discussão sobre políticas públicas capazes de fazer frente ao seu imenso abismo social. A polêmica que contrapõe políticas uni-versais versus focalizadas é apenas a parcela visível das amplas reflexões produzidas por um número cada vez maior de instituições e pesquisadores que têm as questões sociais como objeto de intervenção ou tema de estudo. O seminário cujas principais conclusões estão registradas neste livro, é um exemplo da profundidade a que chegaram essas reflexões. A própria escolha de se abordar as questões sociais com ênfase no tema família já demonstra a evolução que esse debate experimenta na sociedade brasileira. Instituições e pesquisadores aprofundam conhecimentos, atualizam teorias, constroem metodologias e buscam ações de intervenção não mais orientadas para o indivíduo, mas para a família , hoje o ponto de partida das reflexões e das ações de intervenção social mais promissoras. Mas essa salu-tar reorientação se depara com uma dificuldade: a família, sobretudo aquela pertencente aos estratos mais pobres da população, não é uma entidade estática. Ao contrário, são intensas e nem sempre claramente delineadas as transformações pelas quais ela passa. Algumas das indagações suscitadas no seminário têm como eixo exata-mente a dinâmica atual da família brasileira contemporânea. Que tipo de família é objeto da abordagem? Nuclear intacta? Reconstituída? Monopa-rental feminina? Quais as metodologias para o trabalho com famílias? Quais teorias compreendem e refletem as transformações econômicas, culturais e emocionais na constituição das famílias? Quais os papéis que desempe-nham mães, pais e filhos hoje, em particular nas camadas mais empobrecidas? Como atuar em programas de intervenção em face da violência, exclusão e desemprego que as alcançam? Ou como construir instrumentos de monito-ramento e avaliação de programas sociais que as têm como objeto? O leitor poderá constatar que as pesquisas apresentadas no seminário, as experiências relatadas de trabalhos de intervenção e as produções teóricas expostas trazem ao debate questões conceituais, práticas e metodológicas fundamentais para que os esforços de inclusão e extensão de garantias de proteção social às famílias pobres resultem em políticas efetivas e eficazes.

Ana Rojas Acosta, Maria Amalia Faller Vitale (organizadoras) Família Família Redes, Laços e Políticas Públicas 6ª edição Sumário 6 Prefácio à sexta edição 11 Prefácio à quinta edição 14 Prefácio à quarta edição 16 Prefácio à segunda edição 17 Prefácio 18 Apresentação à sexta edição 23 Apresentação 24 Nota da Coordenadoria de Estudos e Desenvolvimento de Projetos Especiais – CEDEPE/PUC‑SP – à 6a edição 27 Parte 1 Vida em família 29 Famílias enredadas CYNTHIA A. SARTI 31 Família e afetividade: a coniguração de uma práxis ético‑política, perigos e oportunidades 51 BADER B. SAWAIA Ser criança: um momento do ser humano HELOIZA SZYMANSKI O jovem e o contexto familiar SILVIA LOSACCO 75 Homens e cuidado: uma outra família? JORGE LYRA LUCIANA SOUZA LEÃO DANIEL COSTA LIMA, PAULA TARGINO, AUGUSTO CRISÓSTOMO, BRENO SANTOS Avós: velhas e novas iguras da família contemporânea 107 MARIA AMALIA FALLER VITALE 65 91 Parte 2 Trabalhando com famílias 121 Metodologia de trabalho social com famílias NAIDISON DE QUINTELLA BAPTISTA 123 Relexões sobre o trabalho social com famílias ROSAMÉLIA FERREIRA GUIMARÃES SILVANA CAVICHIOLI GOMES ALMEIDA Famílias beneiciadas pelo Programa de Renda Mínima em São José dos Campos/SP: aproximações avaliativas 155 ANA ROJAS ACOSTA MARIA AMALIA FALLER VITALE MARIA DO CARMO BRANT DE CARVALHO RELATO DE CASO Programa de Garantia de Renda Mínima e de Geração de Emprego e Renda de São José dos Campos/SP APARECIDA VANDA FERREIRA E SILVA ODILA FÁTIMA T. DERRIÇO REGINA HELENA SANTANA 185 143 7 Sumário Famílias: questões para o Programa de Saúde da Família (PSF) REGINA MARIA GIFFONI MARSIGLIA 8 191 RELATO DE CASO Experiência do Programa de Saúde da Família de Nhandeara/SP 199 SOLANGE APARECIDA OLIVA MATTOS FABIANA REGINA SOARES RELATO DE CASO Experiência do Programa de Saúde da Família de Itapeva/SP: horta comunitária, uma experiência em andamento 209 ROSA PIEPRZOWNIK VANILDA FÁTIMA RIBEIRO HATOS Sistema de Informação de Gestão Social: monitoramento e avaliação de programas de complementação de renda 217 ANA ROJAS ACOSTA MARCELO AUGUSTO SANTOS TURINE RELATO DE CASO Programa Mais Igual de Complementação de Renda Familiar da Prefeitura de Santo André/SP 235 CID BLANCO VALÉRIA GONELLI RELATO DE CASO Políticas públicas de atenção à família LUCI JUNQUEIRA NELSON GUIMARÃES PROENÇA 243 Parte 3 Famílias e políticas públicas 255 Formulação de indicadores de acompanhamento e avaliação de programas socioassistenciais 257 DENISE BLANES Índice de Desenvolvimento da Família (IDF) MIRELA DE CARVALHO RICARDO PAES DE BARROS SAMUEL FRANCO Famílias e políticas públicas 297 MARIA DO CARMO BRANT DE CARVALHO RELATO DE CASO Programa Bolsa‑Escola Municipal de Belo Horizonte/MG: educação, família e dignidade 307 AFONSO CELSO RENAN BARBOSA LAURA AFFONSO DE CASTRO RAMO A economia da família LADISLAU DOWBOR 323 269 9 Parte 1 Vida em família Famílias enredadas CYNTHIA A. SARTI* ■ Introdução Falar em família neste começo do século XXI, no Brasil, como alhu‑ res, implica a referência a mudanças e a padrões difusos de relaciona‑ mentos. Com seus laços esgarçados, torna‑se cada vez mais difícil deinir os contornos que a delimitam. Vivemos uma época como nenhuma outra, em que a mais naturalizada de todas as esferas sociais, a família, além de sofrer importantes abalos internos tem sido alvo de marcantes inter‑ ferências externas. Estas diicultam sustentar a ideologia que associa a família à ideia de natureza, ao evidenciarem que os acontecimentos a ela ligados vão além de respostas biológicas universais às necessidades hu‑ manas, mas coniguram diferentes respostas sociais e culturais, disponí‑ veis a homens e mulheres em contextos históricos especíicos. Desde a revolução industrial, que separou o mundo do trabalho do mundo familiar e instituiu a dimensão privada da família, contraposta ao mundo público, mudanças signiicativas a ela referentes relacionam‑se ao impacto do desenvolvimento tecnológico. Mais recentemente, desta‑ cam‑se as descobertas cientíicas que resultaram em intervenções tec‑ nológicas sobre a reprodução humana (Scavone, 1993). A partir da década de 1960, não apenas no Brasil, mas em escala mundial, difundiu‑se a pílula anticoncepcional, que separou a sexuali‑ dade da reprodução e interferiu decisivamente na sexualidade feminina. Esse fato criou as condições materiais para que a mulher deixasse de ter sua vida e sua sexualidade atadas à materni‑ * Antropóloga, doutora em dade como um “destino”, recriou o mundo subje‑ Antropologia Social pela tivo feminino e, aliado à expansão do feminismo, Universidade de São Paulo e professora do Departamento de ampliou as possibilidades de atuação da mulher Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina. 31 VIDA EM FAMÍLIA PARTE 1 32 FAMÍLIAS ENREDADAS CYNTHIA A. SARTI no mundo social. A pílula, associada a outro fenômeno social, a saber, o trabalho remunerado da mulher, abalou os alicerces familiares, e am‑ bos inauguraram um processo de mudanças substantivas na família, o qual foi extensamente analisado, sob distintos ângulos, especialmente na literatura sobre gênero (Moraes, 1994; Romanelli, 1995; Sarti, 1995, entre tantos outros). Desde então, começou a se introduzir no universo naturalizado da família a dimensão da “escolha”. Mais tarde, a partir dos anos 1980, as novas tecnologias reprodutivas — seja inseminações artiiciais, seja fertilizações in vitro1 — dissociaram a gravidez da relação sexual entre homem e mulher. Isso provocou outras “mudanças substantivas”, as quais novamente afetaram a identiicação da família com o mundo natural, que fundamenta a ideia de família e parentesco do mundo ocidental judaico‑cristão (Strathern, 1995). As distintas intervenções tecnológicas, entretanto, atingem dife‑ rentemente a concepção de família. A pílula abala o valor sagrado da maternidade e a identiicação entre mulher e mãe, ao permitir a auto‑ nomia da sexualidade feminina sem sua inexorável associação com a reprodução. As técnicas de reprodução assistida caminham em direção inversa. Várias pesquisas argumentam que os avanços tecnológicos nes‑ ta área reforçam a maternidade e seu valor social, sobretudo no que se refere à manutenção do padrão de relações de gênero (Scavone, 1998; Barbosa, 1999 e 2000). Scavone (1993) chama a atenção para as modiicações no discurso feminista francês em resposta às tecnologias médicas. Na década de 1970, dadas as possibilidades de contracepção, 1 O artigo de Barbosa mostra as reivindicava‑se o direito à livre escolha da ma‑ várias modalidades das ternidade;2 na década seguinte, reivindica‑se sua tecnologias reprodutivas, deinidas como “o conjunto de técnicas não imposição,3 diante da pressão social exerci‑ médicas voltadas para o tratamento de situações de da pelas novas tecnologias reprodutivas como infertilidade” (2000, p. 212). expressão do controle médico sobre a família. 2 “Un enfant, si je veux, quand je veux” (uma criança, se eu quiser, Não obstante, ambas as intervenções tec‑ quando eu quiser), segundo nológicas — relativas à anticoncepção ou à Scavone (1993, p. 52). Cabe ressaltar a exacerbação do reprodução assistida — implicam, pelo menos discurso individualista presente em algum nível, a introdução da noção de “es‑ nesta máxima feminista. 3 “Les enfants que je veux, si je colha”, seja para evitar a gravidez, seja para peux” (as crianças que eu quiser, se eu puder), como cita Scavone (ibidem, p. 52). As tecnologias de provocá‑la por meios “não naturais”. Nesse anticoncepção e de sentido, a ruptura com a concepção naturali‑ reprodução assistida zada da família, reforçada pelas tecnologias, […] não lograram pelo menos contribui, ainda que não garanta, dissociar a noção de para se pensar os eventos familiares, desde os família da “natureza mais cotidianos, como passíveis de indagações biológica do ser e de negociações, permitindo a emergência humano”. de uma “nova intimidade”, como argumenta Giddens (1993). Sabemos que o mundo de signiicações humano não tem uma rela‑ ção mecânica com as possibilidades materiais da existência, sendo mediado pelas “traduções” sociais, culturais e psíquicas dessas possibi‑ lidades, ou seja, dependem de como são incorporadas pela sociedade e internalizadas pelos sujeitos. Assim, as intervenções tecnológicas sobre a reprodução humana introduzem uma tensão no imaginário social, entre o caráter “natural” 33 atribuído à família e a quebra da identiicação desta com a natureza, que a tecnologia produz. No imaginário atual relativo à família, pelo menos no amplo espectro do mundo ocidental, opera uma tensão entre escolha e destino (Fonseca, 2001). A família constitui‑se em um ter‑ reno ambíguo. Ainda que as tecnologias de anticoncepção e de repro‑ dução assistida tenham de fato aberto espaço para novas experiências no plano da sexualidade e da reprodução humana, ao delagrar os processos de mudanças objetivas e subjetivas, que estão atualmente em curso, não lograram dissociar a noção de família da “natureza bio‑ lógica do ser humano”. As mudanças são particularmente difíceis, 4 uma vez que as experiências vividas e simboli‑ Sabe‑se que a obra de Michel Foucault foi fundamental no zadas na família têm como referência, a respeito impulso à relexão crítica acerca dessas instituições. Os trabalhos de desta, deinições cristalizadas que são socialmen‑ Scavone (1993 e 1998) e de te instituídas pelos dispositivos jurídicos, médi‑ Barbosa (1999 e 2000) argumentam que as novas tecnologias cos, psicológicos, religiosos e pedagógicos, enim, reprodutivas reforçam a pelos dispositivos disciplinares existentes em normatização médica da família e seu controle sobre o corpo da nossa sociedade, os quais têm nos meios de mulher, secundando, a partir de comunicação um veículo fundamental, além de outras questões, o trabalho de Costa (1979) sobre a sociedade suas instituições especíicas.4 Essas referências brasileira. Sobre a medicina e a construção da diferença de gêneros, ver também Rohden (2001). constituem os “modelos” do que é e como deve ser a família, ancorados numa visão que a considera como uma unidade biológica constituída segundo leis da “natureza”, poderosa força simbólica. PARTE 1 VIDA EM FAMÍLIA ■ A paternidade, conhecida? 34 FAMÍLIAS ENREDADAS CYNTHIA A. SARTI Na década de 1990, o processo de mudanças familiares ganha novo impulso, com a difusão do exame do DNA (Fonseca, 2001), que permi‑ te a identiicação da paternidade. A dúvida quanto à paternidade e a certeza da maternidade deixaram, em princípio, de ser o suposto fun‑ damento “natural” que servia de pretexto a costumes, pactos familiares e relações de gênero, que estruturaram a família durante tanto tempo (Bilac, 1998). Essa forma de intervenção tecnológica é fundamental no que se refere a laços e responsabilidades familiares, porque ela diz respeito ao homem, em seu lugar de pai, e introduz tensões no lugar masculino dentro da família, que até então continuava razoavelmente preservado nas suas bases patriarcais.5 A comprovação da paternidade abre o cami‑ nho para que esta seja reivindicada, causando forçosamente um impac‑ to na atitude tradicional de irresponsabilidade masculina em relação aos ilhos, o que signiica um recurso de proteção para a mulher, mas so‑ bretudo para a criança. Não à toa, Bilac (1998) argumenta que os homens nunca foram tão responsáveis por sua reprodução biológica como no momento atual de nossa história (Fonseca, 2001). Paralelamente, mudanças incidem também sobre o plano jurídico e alteram o estatuto legal da família, como produto da ação de inúmeras forças sociais, entre elas dois movimentos sociais fundamentais para as transformações familiares: o movimento feminista e a luta em favor dos direitos das crianças. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 institui duas profundas alterações no que se refere à família: 1. a quebra da cheia conjugal masculina, tornando a sociedade conjugal compartilhada em direitos e deveres pelo homem e pela mulher; 2. o im da diferenciação entre ilhos legítimos e ilegítimos, reiterada pelo Estatuto da 5 A literatura mostra o quanto o Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em corpo feminino tem sido o foco das intervenções tecnológicas (Barbosa, 1999). Os homens 1990, que os deine como “sujeitos de direitos”. nunca foram tão Com o exame do DNA, que comprova a pater‑ responsáveis por nidade, qualquer criança nascida de uniões sua reprodução consensuais ou de casamentos legais pode ter biológica como no garantidos seus direitos de iliação, por parte momento atual de do pai e da mãe. nossa história. Ambas as medidas foram um golpe, de uma extensão desconhecida até então, desferido contra o pátrio poder. O ECA dessacraliza a família a ponto de introduzir a ideia da necessidade de se proteger legalmente qualquer criança contra seus próprios familiares, ao mesmo tempo em que reitera “a convivência familiar” como um “direito” básico dessa criança. É importante destacar esse aspecto por contribuir para a “desidealização” do mundo familiar, ainda que se saiba que esse recurso legal é frequentemente utilizado para estigmatizar as famílias pobres, deinidas como desestruturadas, “inca‑ pazes de dar continência a seus ilhos”, sem a devida consideração do lugar dos ilhos no universo simbólico dessas famílias pobres. Embora a família continue sendo objeto de profundas idealizações, a realidade das mudanças em curso abalam de tal maneira o modelo idealizado que se torna difícil sustentar a ideia de um modelo “adequa‑ do”. Não se sabe mais, de antemão, o que é adequado ou inadequado relativamente à família. No que se refere às relações conjugais, quem são os parceiros? Que família criaram? Como delimitar a família se as relações entre pais e ilhos cada vez menos se resumem ao núcleo con‑ jugal? Como se dão as relações entre irmãos, ilhos de casamentos, di‑ vórcios, recasamentos de casais em situações tão diferenciadas? Enim, a família contemporânea comporta uma enorme elasticidade. Sabemos que houve, no Brasil, uma drástica redução do número de ilhos em todas as camadas sociais (Goldani, 1994), principalmente entre os pobres, por serem os que apresentavam maiores taxas de fe‑ cundidade. A difusão dos anticoncepcionais teve impacto em toda a sociedade, o que não quer dizer que essa difusão teve o mesmo signi‑ icado em todos os segmentos nos quais se manifestou, porque a ma‑ ternidade e o ilho têm signiicados distintos para cada um. O mesmo acontece em relação ao exame do DNA, que tem sido solicitado em todas as camadas sociais (Fonseca, 2001). 35 VIDA EM FAMÍLIA PARTE 1 36 Não temos ainda suiciente informação, fundamentada em pesqui‑ sas, sobre o que mobiliza as mulheres pobres a comprovar a paternida‑ de de seus ilhos. Que sentidos têm, para elas, a partilha inanceira, mesmo num contexto de parcos recursos? Dado o alto índice de mães solteiras e, portanto, de crianças sem registro de paternidade, parece haver um desejo do nome do pai na certidão de nascimento, a marca da origem. Qual o sentido da busca da identiicação do pai, pelo ilho, e do pai do ilho, pela mãe, entre aqueles que socialmente têm seus direitos não reconhecidos e tantas oportunidades negadas? Tais pergun‑ tas emergem também pela alta incidência de ilhos que solicitam o exame do DNA (Fonseca, 2001), na busca do pai desconhecido. As mudanças familiares têm, assim, sentidos diversos para os dife‑ rentes segmentos sociais, e seu impacto incide de formas distintas sobre eles, porque o acesso a recursos é desigual numa sociedade de classes. Portanto, para abordar o tema das famílias e das políticas sociais, não se pode partir de um único referencial. FAMÍLIAS ENREDADAS CYNTHIA A. SARTI ■ Fios esgarçados... Pela perda de referências rígidas no que se refere à família, assim como pela lexibilidade de suas fronteiras, algumas diiculdades se im‑ põem no trabalho a ela voltado. Em primeiro lugar, a diiculdade de romper com o modelo idealizado e naturalizado acerca dessa instituição e, além disso, a diiculdade de nos estranharmos em relação às nossas próprias referências. A esse respeito, tende‑se a ser ainda mais etno‑ cêntrico do que habitualmente se é em outros assuntos, tão forte é sua identiicação com o que somos (Sarti, 1999). Pode‑se pensar a noção de família como uma “categoria nativa”, ou seja, de acordo com o sentido a ela atribuído por quem a vive, conside‑ rando‑o como um ponto de vista. Embora nunca estejamos inteiramente seguros de que o que atribuímos ao outro corresponde ao que ele atribui a si mesmo — diiculdade inerente às relações intersubjetivas —, pode‑se ao menos buscar uma abertura tendo em vista essa aproximação. Pretende‑se sugerir, assim, uma abordagem de família como algo que se deine por uma história que se conta aos indivíduos, ao longo Qual a concepção de do tempo, desde que nascem, por palavras, família segundo os gestos, atitudes ou silêncios, e que será por “pobres” — aqueles eles reproduzida e ressigniicada, à sua manei‑ a quem se dirigem ra, dados os seus distintos lugares e momentos as políticas sociais? na família. Dentro dos referenciais sociais e Qual a concepção culturais de nossa época e de nossa sociedade, de pobreza dessas cada família terá uma versão de sua história, políticas? a qual dá signiicado à experiência vivida. Ou seja, trabalhar com famílias requer a abertura para uma escuta, a im de localizar os pontos de vulnerabilidade, mas também os recursos disponíveis. Partimos, então, da ideia de que a família se delimita simbolicamen‑ te, baseada num discurso sobre si própria, que opera como um discurso oicial. Embora culturalmente instituído, ele comporta uma singularidade: cada família constrói sua própria história, ou seu próprio mito, entendido como uma formulação discursiva em que se expressam o signiicado e a 37 explicação da realidade vivida, com base nos elementos objetiva e subje‑ tivamente acessíveis aos indivíduos na cultura em que vivem. Pensar a família como uma realidade que se constitui pelo discur‑ so sobre si própria, internalizado pelos sujeitos, é uma forma de buscar uma deinição que não se antecipe à sua própria realidade, mas que nos permita pensar como ela se constrói, constrói sua noção de si, supondo evidentemente que isto se faz em cultura, dentro, portanto, dos parâ‑ metros coletivos do tempo e do espaço em que vivemos, que ordenam as relações de parentesco (entre irmãos, entre pais e ilhos, entre ma‑ rido e mulher). Sabemos que não há realidade humana exterior à cultu‑ ra, uma vez que os seres humanos se constituem em cultura, portanto, simbolicamente. Quando ouvimos as primeiras falas, não aprendemos apenas a nos comunicar; captamos, acima de tudo, uma ordem simbólica, ou seja, uma ordenação do mundo pelo signiicado que lhe é atribuído segundo as regras da sociedade em que vivemos. O componente simbólico, apreendido na linguagem, não é apenas parte integrante da vida huma‑ na, é seu elemento constitutivo. Nesse jogo entre o mundo exterior e o mundo subjetivo, as cons‑ truções simbólicas operam numa relação especular. Assim acontece na VIDA EM FAMÍLIA PARTE 1 família. O discurso social a seu respeito se relete nas diferentes famílias como um espelho. Em cada caso, entretanto, há uma tradução desse discurso, e cada uma delas, por sua vez, devolverá ao mundo social sua imagem, iltrada pela singularidade das experiências vividas. Assim, cada uma constrói seus mitos segundo o ouve sobre si, do discurso externo internalizado, mas devolve um discurso sobre si mesma que inclui tam‑ bém sua elaboração, objetivando sua experiência subjetiva. Na tentativa de escutar a história que as famílias contam sobre si mesmas, no quadro de mudanças familiares descrito, como pensar na formulação de políticas sociais, uma vez que essas políticas se dirigem àquelas consideradas pobres? Gostaria de atentar para duas questões, na tentativa de reletir sobre as nossas práticas: a concepção de família, segundo aqueles a quem se dirigem as políticas sociais, os “pobres”; e a concepção de pobreza subjacente a essas políticas, que faz do pobre um “outro”. 38 FAMÍLIAS ENREDADAS CYNTHIA A. SARTI ■ Os nós atados: a família em rede A primeira característica a ressaltar sobre as famílias pobres é sua coniguração em rede, contrariando a ideia corrente de que esta se constitui em um núcleo.6 Assim, cumpre desfazer a confusão entre fa‑ mília e unidade doméstica, a casa, imprecisão que têm consequências nas ações a ela pertinentes, uma vez que leva a desconsiderar a rede de relações na qual se movem os sujeitos em família e que provê os recursos materiais e afetivos com que contam. No universo simbólico dos pobres, existe uma divisão complemen‑ tar de autoridades entre o homem e a mulher na família, que correspon‑ de à diferenciação que fazem entre casa e família. A casa é identiicada com a mulher, e a família com o homem. Casa e família, como mulher e homem, constituem um par complementar, mas hierárquico. Em consonância com a precedência do homem sobre a mulher e da família sobre a casa, o homem é considerado o 6 As relexões sobre a família chefe da família e a mulher, a chefe da casa. O entre os pobres, aqui apresentadas, baseiam‑se em uma homem corporiica a ideia de autoridade, como experiência de pesquisa na periferia de São Paulo, cujos uma mediação da família com o mundo externo. resultados aparecem em trabalho anterior, recentemente reeditado (Sarti, 2003). Cumpre desfazer a Ele é a autoridade moral, responsável pela confusão entre respeitabilidade familiar. À mulher cabe outra família e unidade importante dimensão da autoridade: manter a doméstica, a casa, unidade do grupo. Ela é quem cuida de todos pois essa imprecisão e zela para que tudo esteja em seu lugar. Scott desconsidera a rede (1990) observou o mesmo padrão em famílias de relações na qual pobres no Recife, ao analisar as diferentes se movem os sujeitos percepções da casa pelo homem e pela mulher. Mostra que, no discurso masculino, a casa deve em família. estar “sob controle”, enquanto as mulheres ativamente a controlam. Ainda que em nível ideal o projeto de casar venha junto com o de ter uma casa, como núcleo independente, os vínculos com a rede fami‑ liar mais ampla não se desfazem com o casamento, pelas obrigações que continuam existindo em relação aos familiares, sobretudo diante da instabilidade das uniões conjugais entre os pobres. Nos casos das fre‑ 39 quentes uniões instáveis, que se devem às diiculdades de atualizar o padrão conjugal, ressalta‑se a importância da diferenciação entre a casa e a família para se entender a dinâmica das relações familiares (Fonse‑ ca, 1987; Woortmann, 1982 e 1987). Além disso, as famílias pobres diicilmente passam pelos ciclos de desenvolvimento do grupo doméstico, sobretudo pela fase de criação dos ilhos sem rupturas (Neves, 1984, Fonseca, 1987 e Scott, 1990), o que implica alterações muito frequentes nas unidades domésticas. As diiculdades enfrentadas para a realização dos papéis familiares no núcleo conjugal, diante de uniões instáveis e empregos incertos, desencadeiam arranjos que envolvem a rede de parentesco como um todo, a im de viabilizar a existência da família. A vulnerabilidade da família pobre ajuda a explicar a frequência de rupturas conjugais, diante de tantas expectativas não cumpridas. Dada a coniguração das relações de gênero, o homem se sente fracassado, e a mulher vê rolar por água abaixo suas chances de ter alguma coisa através do projeto do casamento. Se a vulnerabilidade feminina está em ter sua relação com o mundo externo mediada pelo homem — o que a enfraquece em face deste mun‑ do, que, por sua vez, reproduz e reitera as diferenciações de gênero —, VIDA EM FAMÍLIA PARTE 1 40 FAMÍLIAS ENREDADAS CYNTHIA A. SARTI o lugar central do homem na família, como trabalhador/provedor, tor‑ na‑o também vulnerável, porque o faz dependente de condições externas cujas determinações escapam a seu controle. Este fato torna‑se parti‑ cularmente grave no caso da população pobre, exposta à instabilidade estrutural do mercado de trabalho que a absorve. Nos casos em que a mulher assume a responsabilidade econômica do lar, ocorrem modiicações importantes no jogo de relações de auto‑ ridade, e ela pode de fato assumir o papel do homem como “chefe de família” e deinir‑se como tal. A autoridade masculina é seguramente abalada se o homem não garante o teto e o alimento dos seus, funções masculinas, porque o papel de provedor a reforça de maneira decisiva. Entretanto, a desmoralização ocorrida pela perda da autoridade ineren‑ te ao papel de provedor, abalando a base do respeito que lhe devem seus familiares, signiica uma perda para a família como totalidade, que tenderá a buscar uma compensação, ou seja, a substituição da igura masculina de autoridade por outros homens da rede familiar. Cumprir o papel masculino de provedor não conigura, de fato, um problema para a mulher, já acostumada a trabalhar. Para ela, o proble‑ ma está em manter a dimensão do respeito, que é conferida pela pre‑ sença masculina. Mesmo quando sustentam economicamente suas unidades domésticas, elas podem continuar designando, em algum nível, um “chefe” masculino. Isso signiica que, mesmo nos casos em que a mulher assume‑se como provedora, a identiicação do homem com a autoridade moral que confere respeitabilidade à família não necessa‑ riamente se quebra. A sobrevivência dos grupos domésticos das mulheres “chefes de família” é possibilitada pela mobilização cotidiana de uma rede familiar que ultrapassa os limites da casa. Tal como acontece o deslocamento dos papéis masculinos, os papéis femininos, na impossibilidade de serem exercidos pela mãe‑esposa‑dona de casa, são igualmente transferidos para outras mulheres, de fora ou de dentro da unidade doméstica. A comunicação dentro da rede de parentesco mostra que a mãe tem um papel crucial, conforme observa Woortmann (1987), mas isso não signiica sua “centralidade” na família, mas o cumprimento de seu papel de gênero, como mantenedora da unidade familiar, numa estrutura que inclui o papel complementar masculino, deslocado para outros homens Os papéis femininos, na ausência do pai/marido. A centralidade está, na impossibilidade portanto, no par masculino/feminino. de serem exercidos Dentro desse universo simbólico, ressurge pela mãe‑esposa‑ entre os pobres urbanos a clássica igura do ‑dona de casa, são “irmão da mãe”. Sobretudo nos momentos do transferidos para ciclo de vida em que o pai da mulher já tem outras mulheres, de uma idade avançada e não possui mais condições fora ou de dentro da de lhe dar apoio, o irmão surge como a igura masculina mais provável de ocupar o lugar da casa. autoridade masculina, mediando a relação da mulher com o mundo externo e garantindo a respeitabilidade de seus consanguíneos. Woortmann (1987) e Fonseca (1987) reconhecem também obrigações do irmão de uma mulher para com ela, como uma espécie de substituto do marido, assumindo parte das responsabilidades masculinas quando esta é abandonada. Nas famílias que cumpriram sem rupturas os ciclos de desenvolvi‑ 41 mento da vida familiar, o pai/marido tem papel central numa relação complementar e hierárquica com a mulher, concentrada no núcleo con‑ jugal, ainda que essa situação não exclua a transferência de atribuições à rede mais ampla, em particular quando a mãe trabalha fora; nas que são desfeitas e refeitas, os arranjos deslocam‑se mais intensamente do núcleo conjugal/doméstico para a rede mais ampla, sobretudo para a família consanguínea da mulher. Esse deslocamento de papéis familiares não signiica uma nova estrutura, respondendo, antes, aos princípios estruturais que deinem a família entre os pobres, a hierarquia homem/mulher e a diferenciação de gênero, com a divisão de autoridades que a acompanha. Não é, portanto, o controle dos recursos internos do grupo domés‑ tico que necessariamente fundamenta a autoridade do homem, mas seu papel de intermediário entre a família e o mundo externo, como guardião da respeitabilidade — lugar masculino que corresponde à representação social de gênero que identiica o homem como a autoridade moral da família. Diz respeito à ordem moral que a organiza, que se reatualiza nos diversos arranjos feitos pelas famílias com seus parcos recursos. A família pobre, constituindo‑se em rede, com ramiicações que envolvem o parentesco como um todo, conigura uma trama de obriga‑ VIDA EM FAMÍLIA PARTE 1 42 FAMÍLIAS ENREDADAS CYNTHIA A. SARTI ções morais que enreda seus membros, num duplo sentido, ao diicultar sua individualização e, ao mesmo tempo, viabilizar sua existência como apoio e sustentação básicos. Entre as relações familiares, é sem dúvida a que ocorre entre pais e ilhos que estabelece o vínculo mais forte, em que as obrigações mo‑ rais atuam de forma mais signiicativa. Se, na perspectiva dos pais, os ilhos são essenciais para dar sentido a seu projeto de casamento, “fer‑ tilizando‑o” — para não serem uma árvore seca e outras tantas metá‑ foras que exempliicam a analogia da família com a natureza —, dos ilhos espera‑se o compromisso moral da retribuição dos cuidados. Para entender o lugar das crianças nas famílias pobres, é necessá‑ rio, mais uma vez, diferenciar as que cumpriram as etapas do seu de‑ senvolvimento sem rupturas, cujos ilhos tendem a se manter no mesmo núcleo familiar, e as que se desizeram nesse caminho, alterando a or‑ denação da relação conjugal e a relação entre pais e ilhos. Nos casos de instabilidade familiar por separações e mortes, aliada à instabilidade econômica estrutural e ao fato de que não existem ins‑ tituições públicas que substituam de forma eicaz as funções familiares, as crianças passam a não ser uma responsabilidade exclusiva da mãe ou do pai, mas de toda a rede de sociabilidade em que a família está en‑ volvida. Fonseca (2002) argumenta que há uma coletivização das res‑ ponsabilidades pelos menores dentro do grupo de parentesco, caracte‑ rizando uma “circulação de crianças”. Essa prática popular inscreve‑se dentro da lógica de obrigações morais que caracteriza a rede de paren‑ tesco entre os pobres. Em novas uniões conjugais, quando há ilhos de uniões anteriores, os direitos e os deveres no grupo doméstico icam abalados, na medida em que estes não são do mesmo pai e da mesma mãe, levando a ampliar essa rede para fora desse núcleo. Nessa situação, os conlitos entre as crianças e o novo cônjuge podem levar a mulher a optar por dar seus ilhos para criar, ou algum deles, ainda que temporariamente. A criança será coniada a outra mulher, em geral da rede consan‑ guínea da mãe. Nas famílias desfeitas por morte ou separação, no mo‑ mento de expansão e criação dos ilhos ocorrem rearranjos a im de garantir o amparo inanceiro e o cuidado necessários. Embora se conte fundamentalmente com a rede consanguínea, as crianças podem ser A circulação de recebidas por não parentes, dentro do grupo crianças, que de referência dos pais. acontece mesmo em Nos casos de separação, pode haver famílias que não se preferência da mãe pelo novo companheiro, romperam, pode ser prevalecendo o laço conjugal, circunstancial‑ interpretada como mente mais forte que o vínculo mãe‑ilho. padrão legítimo de Uma nova união tem implicações na relação relação com os da mulher com os ilhos da união anterior, que expressam o conlito entre conjugabili‑ ilhos. dade e maternidade. Dadas as diiculdades que uma mulher pobre enfrenta para criar seus ilhos, a tendência será lançar mão de soluções temporárias a im de contornar a situação, entre as quais está a possibilidade de que os ilhos iquem com o pai (o que aconteceu, de fato, entre os casos que acompanhei). A instabilidade familiar, embora seja um fator importante, não 43 esgota o signiicado da circulação de crianças, que pode acontecer mesmo em famílias que não se romperam. Essa circulação, como padrão legítimo de relação com os ilhos, pode ser interpretada como um padrão cultural que permite uma solução conciliatória entre o valor da materni‑ dade e as diiculdades concretas de criá‑los, levando as mães a não se desligarem deles, mas a manterem o vínculo por meio de uma circulação temporária. Assim, mantêm‑se os vínculos de sangue com os de criação, ambos deinindo os laços de parentesco, juntamente com a presença, no mundo da criança, de várias “mães”: a que me criou, a que me ganhou etc. (Fonseca, 2002). Quanto às obrigações morais dos ilhos com relação aos pais, os que criam e cuidam são merecedores de profunda retribuição, sendo um sinal de ingratidão o não reconhecimento dessa contrapartida. As adoções temporárias — ou circulação de crianças — criam uma forma de apego, uma afetividade distinta das relações estáveis e duradouras. O sentimento de uma mãe ao dar seu ilho para criar, como uma questão de ordem sociológica, diz respeito a um padrão cultural segundo o qual as crianças fazem parte da rede de relações que marca o mundo dos pobres, constituindo “dádivas”, como observou Fonseca (2002). Assim, criar ou dar uma criança não é apenas uma questão de possibilidades materiais, VIDA EM FAMÍLIA PARTE 1 44 FAMÍLIAS ENREDADAS CYNTHIA A. SARTI inscrevendo‑se dentro do padrão de relações que os pobres desenvolvem entre si, caracterizadas por um dar, receber e retribuir contínuos. A rede de obrigações que se estabelece conigura, assim, para os pobres, a noção de família. Sua delimitação não se vincula à pertinên‑ cia a um grupo genealógico, uma vez que a extensão vertical do paren‑ tesco restringe‑se àqueles com quem convivem ou conviveram, raramen‑ te passando dos avós. Para eles, a extensão da família corresponde à da rede de obrigações: são da família aqueles com quem se pode contar, quer dizer, aqueles em quem se pode coniar. A noção de família deine‑se, assim, em torno de um eixo moral. Suas fronteiras sociológicas são traçadas segundo o princípio da obri‑ gação, que lhe dá fundamento, estruturando suas relações. Dispor‑se às obrigações morais recíprocas é o que deine a pertinência ao grupo familiar. A argumentação deste trabalho vai ao encontro da de Woortmann (1987), para quem, sendo necessário um vínculo mais preciso que o de sangue para demarcar quem é parente ou não entre os pobres, a noção de obrigação torna‑se central à ideia de parentesco, sobrepondo‑se aos laços consanguíneos. Essa dimensão moral do parentesco, a mesma que indiferencia os ilhos de sangue e os de criação, delimita também sua extensão horizontal. Como airma Woortmann (1987), a relação entre pais e ilhos constitui o único grupo em que as obrigações são dadas, que não se escolhem. As outras relações podem ser seletivas, dependen‑ do de como se estabeleçam as obrigações mútuas dentro da rede de sociabilidade. Não há relações com parentes de sangue, se com eles não for possível dar, receber e retribuir, enim, coniar. Se, em toda a sociedade brasileira, a família é um valor alto, entre os pobres sua importância é central, e não apenas como rede de apoio ou ajuda mútua, diante de sua experiência de desamparo social. A fa‑ mília, para eles, vai além; constitui‑se em uma referência simbólica fundamental, que organiza e ordena sua percepção do mundo social, dentro e fora do mundo familiar. Nesse sentido, é importante, na formulação de políticas sociais, manter o foco na família — homens, mulheres e crianças —, entendida em sua dimensão de rede. No mundo simbólico dos pobres, a família tem precedência sobre os indivíduos, e a vulnerabilidade de um de seus membros implica enfraquecer o grupo como um todo. É evidente que é A diiculdade em necessário e urgente considerar as desigualda‑ relativizar os pontos des de gênero, socialmente instituídas e agra‑ de vista parece ser vadas nos grupos sociais desfavorecidos, bem uma das questões como desenredar os ios, mas sempre levando mais relevantes a em conta que desigualdades se coniguram em serem enfrentadas na relações, dentro de um mundo de signiicação implementação de próprio que precisa ser levado em conta. Sen‑ políticas sociais. do assim, no que se refere às famílias pobres, como escutar o discurso daqueles a quem se dirigem as políticas sociais — os pobres — e situá‑lo no contexto que lhe dá signiicado, ou seja, o contexto de quem emite o discurso (e não o de quem o analisa)? ■ Considerações inais Soa óbvio mencionar a importância de se perguntar como a própria família deine seus problemas, suas necessidades, seus anseios e quais são os recursos de que ela mesma dispõe. Menos óbvio é pensar como ouvimos suas respostas e o estatuto que atribuímos ao que se diz. Pensar as políticas sociais implica pensar a relação entre si e o outro. O problema reside na concepção de família que subjaz à grande parte das “intervenções” em famílias, o que inibe a possibilidade de elaboração dos problemas individuais e coletivos conforme os recursos que podem estar no próprio âmbito familiar. Duas ordens de questões estão em jogo: de um lado, a idealização da família, projetada num dever ser (e da própria afetividade como um mundo que exclui o conlito); de outro, está a idealização de si, por parte dos proissionais, expressa na tendência a atribuir‑se exclusiva‑ mente um saber, com base em sua formação técnica, e negar que a família assistida tenha um saber sobre si própria. Ouve‑se o discurso das famílias como “ignorância”, negando que este possa ser levado em conta como um diálogo entre pontos de vista. Essa tendência à desqualiicação do outro será tanto mais forte quanto mais a família assistida pertencer aos estratos mais baixos da hierarquia, reproduzindo os mecanismos que instituem a desigualdade social. 45 VIDA EM FAMÍLIA PARTE 1 46 FAMÍLIAS ENREDADAS CYNTHIA A. SARTI À diiculdade que o tema da família apresenta, por sua forte iden‑ tiicação com nossas próprias referências e pelo esforço de estranhamen‑ to que a aproximação ao outro exige, soma‑se o problema do estatuto que atribuímos ao nosso próprio discurso e, consequentemente, ao discurso do outro. Considerar o ponto de vista alheio envolve o con‑ fronto com nosso ponto de vista pessoal, o que signiica romper com o estatuto de verdade que os proissionais, técnicos e pesquisadores ten‑ dem a atribuir a seu saber. Esse estranhamento permite relativizar seu lugar e pensá‑lo como um entre outros discursos legítimos, ainda que enunciados de lugares socialmente desiguais. A diiculdade de relativização dos pontos de vista parece ser uma das mais relevantes questões a serem trabalhadas na implementação de políticas sociais, assim como em todo trabalho que envolva algum tipo de ajuda não apenas aos pobres, mas a quem quer que seja, deicientes ou doentes, físicos ou mentais. Finalizando, nas políticas sociais trata‑se de transformar o lugar do outro na sociedade. No entanto, como condição prévia a essa trans‑ formação, trata‑se de mudar o lugar em que nos colocamos perante os demais. ■ Referências bibliográicas BARBOSA, R. M. Desejo de ilhos e infertilidade: um estudo sobre a reprodu‑ ção assistida no Brasil. São Paulo, 1999. Tese de Doutorado. Departamen‑ to de Sociologia — Universidade Federal de São Paulo. (Mimeo.) ______. Relações de gênero, infertilidade e novas tecnologias reproduti‑ vas. Estudos Feministas, v. 8, n. 1, p. 212‑228, 2000. BILAC, E. D. Mãe certa, pai incerto: da construção social à normatização jurídica da paternidade e da iliação. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS — GT FAMÍLIA E SOCIEDADE, 10., Caxambu/MG, 1998. (Mimeo.) COSTA, J. F. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979. (Biblioteca de Filosoia e História das Ciências, v. 5.) DERRIDA, J.; Roudinesco, E. Familles desordonnées. In: DERRIDA, J.; ROUDINESCO, E. 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Neste sentido, tem-se questionado se essas iniciativas são eficientes e eficazes para o fortalecimento das competências familiares, se respondem às necessidades das próprias famílias atendidas e se contribuem para o processo de inclusão e proteção social desses grupos. Por estas razões, as problemáticas concernentes à esfera familiar, as redes de sociabilidade passam a ser centrais no trato das políticas sociais. A reflexão sobre esses e outros desafios certamente interessa a todos que pesquisam ou trabalham com a temática da família e das políticas sociais, nas diferentes organizações públicas ou privadas. R E A L I Z A Ç Ã O APOIO ISBN 978-85-249-2312-8 Família Pensar e repensar a família é uma exigência. A família tem sido percebida como base estratégica para condução de políticas públicas, especialmente aquelas voltadas para a garantia de direitos.