IemUBIIPlicologiadaSBP·ZOOO,VoI8n'2,115·181
ISSNI413·JS9X
Merleau-Pontye a Psicologia'
Relnaldo Furlan
Univenidode de Silo Paulo
8esulllo
o objetivo deste trabalho セ@ situar o método fenomenológico aquém das antinomias entre os métodos
qualitativo e quantitativo de pesquisa, e mostrar aspectos da proficua relaçlo da filosofia de MerJcau-l'onty
com as ciências par" a revelação do sentido dos fenômenos.
Pila"as·cbayt: fenomenologia, Merleau·Ponty, métodos qualitativo e quantitativo de pesquisa.
Merleau·PontyandthaPsychology
Abstmt
The objective ofthis paper has been to situale the phenomenological method beyond lhe antinomies hetween
qualitativc and quanlÍtalÍve mclhods ofreseareh. and to show I15pects ofthe profitable rdationship IJo,tween
Mcrleau·Potlly·s philosophy and science for lhe disc10sUTe ofthe phenomena mcaning
kjwordS: phenomenology, Merleau·Ponty, qualitative and quantitative melhods ofresearch
Oobjetivodestetrabalhoéduplo: por um lado,
afaslar alguns mal·entendidos que nos parecem mais
comuns a respeito do método fenomenológico,
prati cado sQbretudo porpcsquisadores de áreas afins
à filosofia que encontram na fenomcnologia
respostas a suas expeetalivas: quanto a isso, este
trabalho limita-se a um breve relato do contato com
esses pesquisadores (projetos de pesquisa, expo·
sições metodológicas, participação em bancas de
iniciação cientifica ou pós·graduação etc.,). Por
outro lado, apreselllar pane da proticua relação de
Merleau.Ponty com as ciências humanas em gera l, e
em panicular com a Psicologia, que deve referendar
algumas questões levantadas no ponto anterior, c
mostraroquanto,naperspectivadeMerleau·Ponty,a
ciência participa na elucidação do sentido do
fcnômeno, que serevcla, portanto, de fomlamediata
e de dificil 。」・ウNセッ@
Em relação ao primeiro ponto, o que mais
chama a atenção em algumas pesquisas intituladas
fenomenológicas é a distinção entre os métodos
quantitativo e qualitativo de pesquisa, sendo a
fcnomenologia aprcscntada como fazendo parte de
umaaborrlagemqualitativadofenÔmeno.Oquecausa
estranhCl..a, porque em Idéias J (Ideas relativos a una
fenomenologi<l pura y ulla filosoftafellomenológica,
1913, 1949) por exemplo,llusserl fala em ontologias
regionais entre as quais hã a do ser tisico, na qual a
Fisica modcrna e o conceito de Narureza representam
importantes conquistas na revelação do sentido do
l",nômo:no do Ser. No:sse sentido, a fenomenologia,
enquanto campo de descrição transcendental de
sentido (no sentido kantiano do to:nno), também
incorpora a fisica e seus métodos de medição do
sentido dos fenômenos. Em outros termos, a
fenomenologia não se propõe justamente a desvelar o
I. Trabalho apresentado na Mesa redonda II quere/a dos métodos 110 psicologia na XXIX Reunião Anual dc Psicologia da
Sociedade Brasileira de Psicologia, Campinas セ@ SP. outubro de 1999.
Endereço para 」ッイ・セーョ、ゥ。Z@
e·mail:
[email protected]
rn
sentido do fenômeno? E alguém duvida que a
quantificação de um fenômeno possa revc:lar
importantes aspectos do seu sentido? É claro que nem
Husserl, nem Merleau-Ponty, entendem a notação e a
quantificação de fatos como proçedimentos
desvinculados de um campo de sentidos constituído
conceitualrncnte; dai todo o esforço de Husserl na
revisão de conceitos que ora se aplicam ou não a
determinados campos de fenômenos. É essa a critica.
por exemplo, que encontramos em A Filosofia como
Ciência de Rigor (1965), em que Husscrl recusa a
apropriação do ser p5iquico atraves de conceitos e
procedimentos usados (apropriadamente) na reve·
laçãodoserfisicoounatural.Husserldiz inclusive, aí,
que éde direito a existência de uma psicofisica que
estabeleça as regularidades na relação entre os
fenômenos fisicos e os psíquicos (que situam o
psíquico, portanto, no espaço e no tempo), desde que
preservada a cspccifiddade do sentido do ser
psíquico, desfeita quando simplesmente se incorpora
o scr psíquico à nalureza do ser fisico.
Isso significa, em outros tennos, que para
Husserl a fenomenologia tem a larcfa de mostrar os
fundamentos das ciências humanas e naturais - por
isso o termo transcendental, que não se confunde,
pois, com pesquisas empíricas - evitando, assim,
confusõcs entre os sentidos de ser. Também poderiamos dizer que a fenomeno logia trata de uma
investigação conceituai que remete o significado do
conceito para o sentido do fenômeno que ele
expressa, o que mostra ou não o seu acordo com o
sentido visado. Daí a idéia de um retomo às coisas
mesmas para expressá-Ias. Em Crisis (1954,1976),
fmalmente, essa investigação assume uma conotação
mais histórica, sem perder, por isso, a pretensão de
fundar a razão humana na sua autonomia (contrária
aos relativismos, portanto).
Masissotudoporfimpressupõeumadesooberta
fundamental que representa a origem da própria
fenomenologia, e que parece representar um marco
divisório na discussão dos nossos saberes e métodos:
trata-se da noçil.o de consciência transcendental, que se
contrapõe àquela de atitude natUral. Na atitude natural
Lセ@
pressupomos as coisas como independentes da
consciência, e tomamos a consciência como fazendo
parte desse ffilllldo e efellO de suas relações. Com a
reduçãolranscendental, Husserl descobre a consciência
transcendcntalcomocampoefomcabsolutadescotido,
com o que não se deve çonfundir a constituição da
consciência humana ou do eu empírico de cada wn
Husserlilustraessepontodizendo,porexemplo,"queé
concebível uma consdência sem corpo e também uma
consciência sem alma ... uma corrente de vivências em
que não se constituem as unidades intenciooais de
corpo, alma, eu empírico" (Idéias I, 1913, 1949,
parágrafo 54).
Ora, aidéiadeconsciênciatranscendental sera
assumida pelas filosofias da existência através da
analítica do Dasei/l, que mostra a abertura ao Ser
como o campo transcendental de todo sentido, e que
define, ao mesmo tempo, a dimensão ontológica
como essencial à dimensão ônlÍca do homem. Dai a
impossibilidade de se reduzir o ser ôntico do homem
ao ser das coisas ou entes naturais, e o caralcr, ao
mesmo tempo, de fundação das ciências humanas em
geral
Com Husserl ou com Heidegger, portanto, o
movimento fenomenológico recusa a /loluralizaçao
do fenômeno da "consciência", o que impõe
detenninado$ limites ou direção às investigações da
dênciana apreensão do sentido vivido. Mas o caráter
fundamental das investigações fenomenológicas de
Husserl e Heidegger visa a uma correção de
perspectiva das investigações empiricasmal fundadas
epistemologicamente, e não sua substituição. No caso
de Merleau-Ponty, como veremos, a mesma pretensão
encontra-se ao lado de um uso positivo das
investigações científicas na revelação do sentido do
fenômeno (indusive da consciência). E, é no bojo
dessa interação de sua fenomenologia com as ciências
em geral, que se revela claramente o quanto a
revelaçilodosentidodosfcnômenosécustosaenãose
confunde sempre com uma descrição imediata do
sentido vivido, o que parece outro mal-entendido em
algumas pesquisas empíricas que pretendem assumir
o método frnOfllcnolÓgico. Com isso passamos ao
111
segundo ponto, em que procuramos mostrar que, mais
do que um método,já que é possível vários métodos e
perspectivas no desvelamento do sentido vivido
(etnologia, materialismo histórico, psicanálise,
psicopatologia etc.), a fenomenologia se caracteriza
por uma atitude, marcada pela conversão da atitude
natural na atitude transçendental. Devemos frisar,
entretanto, que assumimos essa apresentação na
perspectiva da fenomenologia de Merleau-Ponty, e
não se trata, nesse momento, de discutir suas
diferenças com os pensamentos de Husserl ou de
Heidegger, ou suas conccpções diferentes de
fenomenologia.
Vamos nos servir, para nosso objetivo, de parte
dos resumos de cursos de Mcrleau-Ponty na Sorbonne
(Merleau-Ponty à la Sorhonne- Résumú de Cours.
1949-52, 19RR), cnl que se discute algumas questões
metodol6gicas na relação da fenomenologia com as
ciências humanas em geral, e a PsicologiH em
particular.
Um primeiro pomo destacaríamos de início, que
marca por princípio o uso positivo quc Mcr1cau- Ponty
faz das investigações científicas para uma fenomenologia. É quando se a[lll11a decisivamente, em As
ciências do homem e afenomenolob>1a, a participação
da ciência na intuição das essencias (Wesenschau)
visada pela investigação fenome nológica. Mostra-se
claramente. então, que para Merleau-Ponty a
fenomenologia não se eonfunde com um primitivismo
que busca um contato originário com o Ser
independente das investigações da ci.:ncia, e portanto o
caráter transcendental da psicologia eidética não pode
ser desvinculado da história do pensamento. Mesmo
n 'Ovisivel e v invisível (te visibleef l'Invisible. 1964não vamos discutir, nesse momento, em que sentido
essa obra podeou não ser considerada fenomenológica)
- em que Mcrleau- Ponty encontra-se afastado da
linguagem das filosofias da existência (o que não é o
caso em seus cun;os na Sorbonne), a presença da teoria
da Gestalt e da Psicanálise para uma ontologia do Ser
bruto não deixa dúvida quanto a isso. Não há, pois,
apenas O recurso a uma descrição imediata do sentido
vivido para a revelação da sua essência.
Considere-se, nesse sentido, a observação de
Merleau-Ponty, nos r・セGオュッ@
da Soroonne, a respeito
de Sartre sobre o imaginário, onde a
da ヲセョッュ・ャァゥ。@
essência da imagem é intuída como falsa presença do
passado no presente. Mas essa análise é colocada em
questão quando se depara com estados onde o
percebido e o imaginário são indissolúveis, como é o
caso, por exemplo, das alucinações. Poder-!le-ia
simplesmente dizer, aqui, que Sartre não teria operado
uma variação imaginária sufieiCllte para a aprecnsão
de sua essência; Mas o fato é que para Merleau-Ponty
a ciência também opera através de variações
imaginárias da experiência, que se acrescentam a
essas da experiência comum de mundo vivido; E, essa
fenomenotécnica, para usar os tcnnos de l3achelard,
mostra-se fundamental para o desvelamento do
fenômeno do Ser. Alguns exemplos ilustram muito
bem esse ponto. Com Marx c Freud, Merleau-Ponty
assume, ai, o carnter enganoso da consciência comum.
Para Marx, e natural à consciência assumir ponto de
vista de sua classe social, c não apreender a natureza
de suas relaçõcs sociaiS,eomoe natural assumir como
°
parte da natureza humana o que é devido à história.
Para Freud, osentido daeonduta humana está oculto. c
Merleau-Ponty cita duas de suas análises que iluslram
bem o eardter surpreendente que o conhecimento
científico tem frente ao senso comwn, como dizia
Politzer a respeito da própria psicanálise. Noprimeiro,
o ciúme se apresenta como manifestação de homossexualidade: é no lugar do parceiro que o ciumento
desejaria estar, ele é o seu rival, e não o oulro que o
deseja. No segundo exemplo, as manifestações
tradicionais de luto são apresentadas como reação à
agressividade própria dirigida contra o defunto. Não
importa a diseussão desses exemplos, que na verdade
não ocorre aí. mas a aceitação do principio de que o
sentido vivido não e dado explicitamente à consciência e pode mesmo se revelar contrário ã sua
manifestação.
Merleau-Ponty recl.lsa as explicações causais
do marxismo e da psicanálise, bem como o caráter
representacional do inconsciente freudiano, mas não
intenciona recusar o sentido que trouxeram para a
m
Lセ@
elucidação do fenômeno vivido; trata-se, como
dissemos, de assumi-los na perspectiva dos fundamentos revelados pela analítica do Dasein, ou de
assumir a sexualidade e a economia como dimensões
do ser no mundo, como diz Merleau-Ponty na
Fenomenologia d(l PercepçJo (1945, 1994). O
mesmo assistimos na sua apropriação da antropologia
de Lévi-StTlIuss, da lingílístka de Saussurc c da teoria
da Gestalt: não se recusa a idéia do social ouda lingua
como formados por estruturas que mais nos têm do
que nós a elas, muito menos a idéia do sentido da
percepção enquanto estrutura figura-fundo, recusa-se
apenas o ponto de ruptura com a estrutura fundamental do Dascin, a saber, o objetivismo da estrutura
da Gestalt e o inconsçiente das estruturas simbólicas
na antropologia de Lévi-Strnuss. Daí a idéia de quc
todo sentido, mesmo velado, apresenta-se de alguma
forma aconsciência vivida, fonte de toda significação.
É possível viver com sentido, diz Mer1eau-Ponty na
sua critica à noção freudiana de inconsciente
doação sua ou não, e apontar para uma inlcn,ionalidade intema ao Ser, que apreenda, justamente, o
movimento de fonnação das estruturas pcrçeptivas
que não é dado à consciência. Uma idéia que jã se
encontrava presente na Fenomenologia do Percepçaoquando,porexempl0.Mcrlcau-l'ontydiziaqueo
verdadeiro problema da memória não é o de sua
manutenção mas o da transformação temporal das
estruturas atrnvés da qual se altera a percepçao do
sentido presente. Ela também estava presente na
idéia de síntese corporal de sentidos,prcsentedesdea
EMrutllra do Comportamento (1942, 1972) através
da qual um sentido se forma não pela intervençao do
entendimento, mas do corpo: é o corpo que se reune
para ver, que sai da diplopia para a visão ullÍea do
objeto, e é o corpo que apreende a intencionalidade
do outro na comunicação. através de um movimento
cego pelo qual eu me junto a sua significação, que
parece habitar meu próprio corpo, quando, de início,
parecia que eu constituiria o signilieado do seu
acompanhando Politur, mais do que sabemos por
nossos pensamentos explicitos, com o que procura se
afastar, ao mesmo tempo, das concepções intelectualistas da consciência. Essa consciência que
encontramoscomofontede todasignificaçaoé,pois,a
consciência encarnada, e o corpo se revelou para
Merleau-Ponty como o "objeto" privilegiado para
mostrnrrelaçõcs de sentido pré-téticas com omundo e
componamento para mim - Uma idéia, aliás, que
Merleau-Ponty aproveita do próprio Husserl, com
sua noção de transgressão intencional.
Tocamos nesse ponto para mostrar que os
limites de investigação de sentido pela ciência,
impostos por uma filosofia existencial de cunho
fenomenológico, estreitam-se mais ainda com o
recuo a uma região fundamental de sentido aquém do
cogito tácito. Há, originariamente, o Ser, que
rcprescnta diferenças de significações, que constituem dimensões cujo desdobramento não se fecha
jamais. É desse jogo que a ciência participa. embora
nonnalmente fixada na idéia de um mundo cm-si que
a linguagern da ciênciaprocuratrazerpara-sí,fixada,
pois, na idéia de uma linguagem de Deus sobre as
coisas que cabe à ciência encontrar. Considere-se,
nesse sentido, a obscrvaç1io de Merleau-Ponty sobre
a noção de escala, na fisica:
Ora, n'O visível e o invisivel (1964) MerleauPonty diz que a Fenomenologia da Percepção (1945,
1994) ainda estava presa às filosofias da consciência,
e com essa critica ele visa sua noção de cogilo táciTO,
esse contatoconsigo mesmo que representa o limite e
o sustento de toda significação. Não se tratava, com
essa noção, de pressupor que toda significação é obra
de um ato de consciência, uma critica que ele tcrmina
por dirigir a Husserl assumindo os limites da
fenomenologia como revelação do sentido do Ser.
Mas o que se enfatiza, então, é que é preciso
ultrapassaranoçliodequetodosentidoparasertenha
de se apresentar à consciência, nlio importa se como
" ... ela e ultrapassamcnto da ontologia do
Em si, - e exprime esse ultrapassamento em
termos de cm si ... Dá-se um passo a mais
Suprimindo o Em si mude/o: há apenas
111
representações em diferentes escalas ...
Trata-sedecompreenderqueas'visõcs'em
diferentes escalas não são projeçõcs sobre
corporeidade:s-telasde W11 Em si inacessivel -, que elas e sua implicação lateral
uma na outra são a realidade ... atrás dc1ashá
apenas outras 'visões' ... Cada campo e uma
dimensionalidade, e o Ser e a dimensionalidade mesma'" (Le Visible er I'Invisible,
1964, pp. 279-280).
o que resta, emão, como fundamento da
çiência após a ultrapassagem do cogilo taei/o? Com
isso voltamos ao ponto em que falávamos do carnter
positivo da ciência na revelação das essências dos
fenômenos. Um parêntese: Mcrleau-Ponty nunca
aceitou a idéia da possibilidade da apreensão
definitiva de qualquer essência. Para tanlo, seria
preciso sobrevoar a experiência, abandonar a
temporalidade que é constitutiva do Ser e de nós
mesmos para a possibilidade de uma variação
completa do fenômeno.
Com a citação seguinte retomamos o encontro
com as ciências na c1ucidação do sentido vivido ou
do próprio Ser e o que resta enquanto fundamento
após a critica à idéia de cogilo lcicilo
"A psicologia, a etnologia, a sociologia, sÓ nos ensinaram alguma coisa
colocando a experiência mórbida ou arcaica,
ou simplesmente outra, ao contato de nossa
experiência, esclarecendo uma pela outra,
criticando uma pela outra ... pratic3Jldoesta
variação eidética que Husserl apenas
cometeu o erro de reservar primeiro à
imaginação e à visão solitária do filósofo,
enqu3Jlto ela é o suporte e o lugar mesmo
dessa opinio commullis que chama- mos
ciência. Nesse caminho, pelo menos, é bem
seguro que acedemos á objetividade, não
penetrando em um Em Si, mas dcsvcl3Jldo,
retificandoumpelooutro,odadoexteTÍoreo
duplo interno que possuímos enquanto
senscienles-sensiveis, arquétipos e variantes
da humanidade e da vida, iSloe, enquanto
somos intcriorcs á vida,aoserhumanoe ao
Ser, tantoqu3Jltoele anós,equenósvivemos
e conhecemos não a meio caminho de fatos
opacos e de idéias límpidas, mas no ponto de
encontro e de cruzamL'Tlto onde as familias de
fatos inscrevem sua generalidade, seu
parcmcsco"(Le Visibleetl"lnvisible, 1964,
p. I 56).
o que também poderíamos dizer lembrando
outro texto de Merleau-Ponty, O olho e o espírito
(1960, 1984) no momento em que se contrapõe 80
pensamento operatório da ciência, pensamento
desenvolto que traia as coisas como se elas estivessem destinadas a ser o que pensamos delas. A
filosofia cartesiana, dizia Merleau-ponty aí, ao
menos guardava a "profundidade do mundo existente e a do Deus insondável", e "o desvio pela
metafisica, que, apesar de tudo, Descartes fizera uma
vez em sua vida, a ciência dispensa-se dele: ela parte
daquilo que foi o seu pOnto de chegada" (p. 99).
Ponanto,
"mister se faz que o pensamenlo de ciência
- pensamento de sobrevoo, pensamento do
objeto em geral - tome a colocar-se num
'hã' prévio, no lugar, no solo do mundo
sensível edomundo lavrado tais como são
cm nossa vida,-para nosso corpo, não esse
corpo possível do qual élícitosustentarque
é uma máquina de informação, mas sim
esse corpo atual que digo meu, a sentinela
que se posta silenciosamente sob minhas
palavras e sob meus atos. E preciso que,
com meu corpo, despertem os corpos
o$$ociado$, os 'outros', que não são meus
congêneres como diz a zoologia, mas que
me assediam, que eu assedio, com quem eu
assedio um só Ser atual, presente, como
jamais animal assediou os de sua espécie,
seu território ou seu meio. Nesta historicidade primordial, o pensamento alegre e
"'
1,1.....
improvisador da ciência aprcndcráa insis-
tir nas próprias coisas e em si meSmO,
tomará a ser filosofia .. ,"(p. 86).
Corno fundamento resta, portanto, o mundo
da vida.
Vamos destacar, agora, algumas considerações metodológicas de Medeau-Ponly nos
Resumos da SorbOlllle, que mostram, segundo ele, a
convergência da Psicologia contemporânea com a
fenomenologia. Limitamo-nos àqueles que nos
parecem mais cruciais para a nossa questão.
O primeiro deles trata da superação da
dicotomia entre os métodos quantitativo e qualitativo de pesquisa. O método quantitativo supostamenteseria aquele restrito à notação eà medição
rigorosas dos fatos. Mas não há fato científico sem
uma inlcrprclaçãoque participe intrinsecamente de
sua configuração. Hoje, essa é uma idéia muito
comum nafilosofiadadência, na crítica à concepçllo
indutivista da ciência. Hempel(1981),porc:<cmplo,
lembra corno as notações gráficas de qualquer
experiênciapodemreccberdiferentcsintcrprctaçõcs,
isto é, que a ligaçllo entre os pontos assinalados cm
seus quadrantes pode receber configuraçõcs ou ser
c:<pressa porequaçõcs muito difcrentes; ou seja, ser
compatíveiscomteoriasdifcrcntcsnac:<plicaçllodos
fatos observados
Com Merleau-Ponty, vamos lembrar apenas
que a ciência constrói modelos da e:<periênciapara a
obtcnçllo do sentido da realidade. É com a própria
Física que aprendemos isso:
"Aleidaqued.adoscorposdcGalilcu
nllo podc ser obtida por constatação
simples. Ela se deline sobrc um processo
idcal: ela é fundada sobre uma 'idealizaçllo'
(Husserl). Parado:<o da ciência: para
compreenderoconcrcto,éprcciso, em certo
sentido, dar-lhe as costas. Galileu teve de
recorlstroiros dados dos sentidos por um
procedimento intelectual. Quando, ao
contrário, quer-se notar diretamente o fato
(Aristóteles: a ligaçllo. natural dos corpos
pesados) chega-se aabstraçõcs. A ciência
começa quando,ao invés de notar passiva,
mente, reconstrói-se as Ilparéncias, dá-se
'modelos' da realidade" (Medem/- Pontyâ
la Sorbonne, 1949-52, 1988, p.486).
Ou ainda:
"Husserl reage contra a teoria de
Mi11,que define a induçllo: procedimento
que, descobrindo na pluralidade de fatos,
fatos em relação de sucessão ou de
simultaneidade constante, apresenta-os
como caracteristicas do conjunto dos fatos
dos quais se partiu. Husserllevanta aqui
uma critica análoga àquela de Brunschvicg
(em Experiência humana e causlIlillade
f/Sica. Alcan, 1922) sobre o exemplo de
Galileu.Galileuchegaàidéiadaquedados
corpos atravts da experiência de diferentes
quedas de corpos? A lei que ele revela é
antesumaconcepçlloidealdeumeasopuro
da queda livre dos corpos, sem e:<emplona
experiência onde a queda t sempre freada
por atritos. Assim, os fatos tomam-se
compreensíveis com o conceito puro da
queda associado a outrosconccitos igualmente construídos. O fisico procede
realizando 'ficçõcs idealizadoras',livremente criadas pelo espírito. A lei de
Newton, diz Husserl, não se pronuncia
sobre a existência de massas gravitacionais
supostas. Esta induçllojâéuma Iciturade
essêneia: Icionos fatos uma queda livre dos
corpos, concebida e forjada pelo espírito.
O que dá li. ficção idealizadora seu valor,
não é o númerQ de fatos observados, mas a
cfarezo intrínseca q/le eJ"laficçelo IrOIam'
!OlQS" (ibid., pp.410-41 I).
A frase final é o ponto de encontro entre os
termos da falsa dicotomia entre os métodos
quantitativo e quahtativo de pesquisa, paraoquala
psicologia contemporânea e a fenomenologia
convergem, segundo Merleau-Ponty
É nesse sentido, diz ele, que se encaminha para
o sentido da estrutura "interna" do componamento,
que não se limita a simples anotações de fatos. Seria
essa a inspiração fundamental do Behaviorismo, ql.le
visava o sentido do componamento no embate do
organismo com o meio. \Vatson propunha explicar o
comportamento independente da fisiologia;
entretanto, receoso de passar para as trevas da
interioridade, termina fundando sua psicologia numa
fisiologia mecanicista. Esse também seria o sentido
da psicologia da Gestalt, que visava antes a
especificidade do sentido do componamento diante
do meio tisico em que ele se dá; dai a distinção entre
meio geográfico c mcio comportamental (Koffk.a):
nesse ultimo, o que conta para o organismo é o
sentido que os estímulos têm para si, e não o estímulo
enquanto fenômeno tisico apenas. Assim, por
exemplo, 。セ@
experiências de Kõehler com os
primatas mostram que a partir de um mesmo meio
geográfico é preciso. cm dado momento, que o
sentido de um caixote para sentar seja substituído
pelo sentido de um caixote apoio de que o animal se
servirá para alcançar a banana; o que conta para o
animal não é o estímulo fisico cm si. mas o seu
sentido no campo de componamento do animal. A
Gestalt, entretanto. com sua noção de isomorfismo,
também tennina fundando as estruturas de sentido da
percepção em estruturas fisiológicas, que seriam, por
sua vez, variações de estT\1lllras físicas. Essas seriam
a explicação da ciência do componamento, e não as
descrições de sentido do meio comportamental.
Note-se aqui, mais uma vez, que o que MerleauPonty recusa dessas psicologias é a ontologia
implícita de seus fundamentos, e não o sentido de
suas experiências, propriamente. Dai sua insistência
numa reforma das calegorias gerais com as quais
pensamos II realidade, no ea:;o, as categorias da
melafisicaclãssica.
Ora, esse sentido que revela uma intencionalidade expressa na unidade do comportamento,
rompe com mais uma dicotomia herdada pela
psicologia no inicio do século, a oposiçao entre
interior e exterior, ou subjetividade e objctividade. O
objetivo, já dissemos, não é nunca uma simples
notação de fatos, já que todo fato faz pane de um
sentido para o homem. Agora pereebemos que a
intencionalidade que é interna ao componarnento é a
sua própria expressão, isto é, é dada no mundo
percebido. Não há homem imerior, o homem est3
IOdo no mundo, diz Merleau-Ponty na Fenomenologia da Percepção (1945,1994). O que significa
que o sentido da subjetividade não se encontra em
uma interioridade inef:i.vel e ウッャゥーセエ。L@
nem é de
acesso epistemológico privilegiado para o próprio
sujeito.
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