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Merleau-Pontye a Psicologia'

2000

o objetivo deste trabalho é situar o método fenomenológico aquém das antinomias entre os métodos qualitativo e quantitativo de pesquisa, e mostrar aspectos da profícua relação da filosofia de Merleau-Ponty com as ciências para a revelação do sentido dos fenômenos. Palavras-chave: fenomenologia, Merleau-Ponty, métodos qualitativo e quantitativo de pesquisa.

IemUBIIPlicologiadaSBP·ZOOO,VoI8n'2,115·181 ISSNI413·JS9X Merleau-Pontye a Psicologia' Relnaldo Furlan Univenidode de Silo Paulo 8esulllo o objetivo deste trabalho セ@ situar o método fenomenológico aquém das antinomias entre os métodos qualitativo e quantitativo de pesquisa, e mostrar aspectos da proficua relaçlo da filosofia de MerJcau-l'onty com as ciências par" a revelação do sentido dos fenômenos. Pila"as·cbayt: fenomenologia, Merleau·Ponty, métodos qualitativo e quantitativo de pesquisa. Merleau·PontyandthaPsychology Abstmt The objective ofthis paper has been to situale the phenomenological method beyond lhe antinomies hetween qualitativc and quanlÍtalÍve mclhods ofreseareh. and to show I15pects ofthe profitable rdationship IJo,tween Mcrleau·Potlly·s philosophy and science for lhe disc10sUTe ofthe phenomena mcaning kjwordS: phenomenology, Merleau·Ponty, qualitative and quantitative melhods ofresearch Oobjetivodestetrabalhoéduplo: por um lado, afaslar alguns mal·entendidos que nos parecem mais comuns a respeito do método fenomenológico, prati cado sQbretudo porpcsquisadores de áreas afins à filosofia que encontram na fenomcnologia respostas a suas expeetalivas: quanto a isso, este trabalho limita-se a um breve relato do contato com esses pesquisadores (projetos de pesquisa, expo· sições metodológicas, participação em bancas de iniciação cientifica ou pós·graduação etc.,). Por outro lado, apreselllar pane da proticua relação de Merleau.Ponty com as ciências humanas em gera l, e em panicular com a Psicologia, que deve referendar algumas questões levantadas no ponto anterior, c mostraroquanto,naperspectivadeMerleau·Ponty,a ciência participa na elucidação do sentido do fcnômeno, que serevcla, portanto, de fomlamediata e de dificil 。」・ウNセッ@ Em relação ao primeiro ponto, o que mais chama a atenção em algumas pesquisas intituladas fenomenológicas é a distinção entre os métodos quantitativo e qualitativo de pesquisa, sendo a fcnomenologia aprcscntada como fazendo parte de umaaborrlagemqualitativadofenÔmeno.Oquecausa estranhCl..a, porque em Idéias J (Ideas relativos a una fenomenologi<l pura y ulla filosoftafellomenológica, 1913, 1949) por exemplo,llusserl fala em ontologias regionais entre as quais hã a do ser tisico, na qual a Fisica modcrna e o conceito de Narureza representam importantes conquistas na revelação do sentido do l",nômo:no do Ser. No:sse sentido, a fenomenologia, enquanto campo de descrição transcendental de sentido (no sentido kantiano do to:nno), também incorpora a fisica e seus métodos de medição do sentido dos fenômenos. Em outros termos, a fenomenologia não se propõe justamente a desvelar o I. Trabalho apresentado na Mesa redonda II quere/a dos métodos 110 psicologia na XXIX Reunião Anual dc Psicologia da Sociedade Brasileira de Psicologia, Campinas セ@ SP. outubro de 1999. Endereço para 」ッイ・セーョ、ゥ。Z@ e·mail: [email protected] rn sentido do fenômeno? E alguém duvida que a quantificação de um fenômeno possa revc:lar importantes aspectos do seu sentido? É claro que nem Husserl, nem Merleau-Ponty, entendem a notação e a quantificação de fatos como proçedimentos desvinculados de um campo de sentidos constituído conceitualrncnte; dai todo o esforço de Husserl na revisão de conceitos que ora se aplicam ou não a determinados campos de fenômenos. É essa a critica. por exemplo, que encontramos em A Filosofia como Ciência de Rigor (1965), em que Husscrl recusa a apropriação do ser p5iquico atraves de conceitos e procedimentos usados (apropriadamente) na reve· laçãodoserfisicoounatural.Husserldiz inclusive, aí, que éde direito a existência de uma psicofisica que estabeleça as regularidades na relação entre os fenômenos fisicos e os psíquicos (que situam o psíquico, portanto, no espaço e no tempo), desde que preservada a cspccifiddade do sentido do ser psíquico, desfeita quando simplesmente se incorpora o scr psíquico à nalureza do ser fisico. Isso significa, em outros tennos, que para Husserl a fenomenologia tem a larcfa de mostrar os fundamentos das ciências humanas e naturais - por isso o termo transcendental, que não se confunde, pois, com pesquisas empíricas - evitando, assim, confusõcs entre os sentidos de ser. Também poderiamos dizer que a fenomeno logia trata de uma investigação conceituai que remete o significado do conceito para o sentido do fenômeno que ele expressa, o que mostra ou não o seu acordo com o sentido visado. Daí a idéia de um retomo às coisas mesmas para expressá-Ias. Em Crisis (1954,1976), fmalmente, essa investigação assume uma conotação mais histórica, sem perder, por isso, a pretensão de fundar a razão humana na sua autonomia (contrária aos relativismos, portanto). Masissotudoporfimpressupõeumadesooberta fundamental que representa a origem da própria fenomenologia, e que parece representar um marco divisório na discussão dos nossos saberes e métodos: trata-se da noçil.o de consciência transcendental, que se contrapõe àquela de atitude natUral. Na atitude natural Lセ@ pressupomos as coisas como independentes da consciência, e tomamos a consciência como fazendo parte desse ffilllldo e efellO de suas relações. Com a reduçãolranscendental, Husserl descobre a consciência transcendcntalcomocampoefomcabsolutadescotido, com o que não se deve çonfundir a constituição da consciência humana ou do eu empírico de cada wn Husserlilustraessepontodizendo,porexemplo,"queé concebível uma consdência sem corpo e também uma consciência sem alma ... uma corrente de vivências em que não se constituem as unidades intenciooais de corpo, alma, eu empírico" (Idéias I, 1913, 1949, parágrafo 54). Ora, aidéiadeconsciênciatranscendental sera assumida pelas filosofias da existência através da analítica do Dasei/l, que mostra a abertura ao Ser como o campo transcendental de todo sentido, e que define, ao mesmo tempo, a dimensão ontológica como essencial à dimensão ônlÍca do homem. Dai a impossibilidade de se reduzir o ser ôntico do homem ao ser das coisas ou entes naturais, e o caralcr, ao mesmo tempo, de fundação das ciências humanas em geral Com Husserl ou com Heidegger, portanto, o movimento fenomenológico recusa a /loluralizaçao do fenômeno da "consciência", o que impõe detenninado$ limites ou direção às investigações da dênciana apreensão do sentido vivido. Mas o caráter fundamental das investigações fenomenológicas de Husserl e Heidegger visa a uma correção de perspectiva das investigações empiricasmal fundadas epistemologicamente, e não sua substituição. No caso de Merleau-Ponty, como veremos, a mesma pretensão encontra-se ao lado de um uso positivo das investigações científicas na revelação do sentido do fenômeno (indusive da consciência). E, é no bojo dessa interação de sua fenomenologia com as ciências em geral, que se revela claramente o quanto a revelaçilodosentidodosfcnômenosécustosaenãose confunde sempre com uma descrição imediata do sentido vivido, o que parece outro mal-entendido em algumas pesquisas empíricas que pretendem assumir o método frnOfllcnolÓgico. Com isso passamos ao 111 segundo ponto, em que procuramos mostrar que, mais do que um método,já que é possível vários métodos e perspectivas no desvelamento do sentido vivido (etnologia, materialismo histórico, psicanálise, psicopatologia etc.), a fenomenologia se caracteriza por uma atitude, marcada pela conversão da atitude natural na atitude transçendental. Devemos frisar, entretanto, que assumimos essa apresentação na perspectiva da fenomenologia de Merleau-Ponty, e não se trata, nesse momento, de discutir suas diferenças com os pensamentos de Husserl ou de Heidegger, ou suas conccpções diferentes de fenomenologia. Vamos nos servir, para nosso objetivo, de parte dos resumos de cursos de Mcrleau-Ponty na Sorbonne (Merleau-Ponty à la Sorhonne- Résumú de Cours. 1949-52, 19RR), cnl que se discute algumas questões metodol6gicas na relação da fenomenologia com as ciências humanas em geral, e a PsicologiH em particular. Um primeiro pomo destacaríamos de início, que marca por princípio o uso positivo quc Mcr1cau- Ponty faz das investigações científicas para uma fenomenologia. É quando se a[lll11a decisivamente, em As ciências do homem e afenomenolob>1a, a participação da ciência na intuição das essencias (Wesenschau) visada pela investigação fenome nológica. Mostra-se claramente. então, que para Merleau-Ponty a fenomenologia não se eonfunde com um primitivismo que busca um contato originário com o Ser independente das investigações da ci.:ncia, e portanto o caráter transcendental da psicologia eidética não pode ser desvinculado da história do pensamento. Mesmo n 'Ovisivel e v invisível (te visibleef l'Invisible. 1964não vamos discutir, nesse momento, em que sentido essa obra podeou não ser considerada fenomenológica) - em que Mcrleau- Ponty encontra-se afastado da linguagem das filosofias da existência (o que não é o caso em seus cun;os na Sorbonne), a presença da teoria da Gestalt e da Psicanálise para uma ontologia do Ser bruto não deixa dúvida quanto a isso. Não há, pois, apenas O recurso a uma descrição imediata do sentido vivido para a revelação da sua essência. Considere-se, nesse sentido, a observação de Merleau-Ponty, nos r・セGオュッ@ da Soroonne, a respeito de Sartre sobre o imaginário, onde a da ヲセョッュ・ャァゥ。@ essência da imagem é intuída como falsa presença do passado no presente. Mas essa análise é colocada em questão quando se depara com estados onde o percebido e o imaginário são indissolúveis, como é o caso, por exemplo, das alucinações. Poder-!le-ia simplesmente dizer, aqui, que Sartre não teria operado uma variação imaginária sufieiCllte para a aprecnsão de sua essência; Mas o fato é que para Merleau-Ponty a ciência também opera através de variações imaginárias da experiência, que se acrescentam a essas da experiência comum de mundo vivido; E, essa fenomenotécnica, para usar os tcnnos de l3achelard, mostra-se fundamental para o desvelamento do fenômeno do Ser. Alguns exemplos ilustram muito bem esse ponto. Com Marx c Freud, Merleau-Ponty assume, ai, o carnter enganoso da consciência comum. Para Marx, e natural à consciência assumir ponto de vista de sua classe social, c não apreender a natureza de suas relaçõcs sociaiS,eomoe natural assumir como ° parte da natureza humana o que é devido à história. Para Freud, osentido daeonduta humana está oculto. c Merleau-Ponty cita duas de suas análises que iluslram bem o eardter surpreendente que o conhecimento científico tem frente ao senso comwn, como dizia Politzer a respeito da própria psicanálise. Noprimeiro, o ciúme se apresenta como manifestação de homossexualidade: é no lugar do parceiro que o ciumento desejaria estar, ele é o seu rival, e não o oulro que o deseja. No segundo exemplo, as manifestações tradicionais de luto são apresentadas como reação à agressividade própria dirigida contra o defunto. Não importa a diseussão desses exemplos, que na verdade não ocorre aí. mas a aceitação do principio de que o sentido vivido não e dado explicitamente à consciência e pode mesmo se revelar contrário ã sua manifestação. Merleau-Ponty recl.lsa as explicações causais do marxismo e da psicanálise, bem como o caráter representacional do inconsciente freudiano, mas não intenciona recusar o sentido que trouxeram para a m Lセ@ elucidação do fenômeno vivido; trata-se, como dissemos, de assumi-los na perspectiva dos fundamentos revelados pela analítica do Dasein, ou de assumir a sexualidade e a economia como dimensões do ser no mundo, como diz Merleau-Ponty na Fenomenologia d(l PercepçJo (1945, 1994). O mesmo assistimos na sua apropriação da antropologia de Lévi-StTlIuss, da lingílístka de Saussurc c da teoria da Gestalt: não se recusa a idéia do social ouda lingua como formados por estruturas que mais nos têm do que nós a elas, muito menos a idéia do sentido da percepção enquanto estrutura figura-fundo, recusa-se apenas o ponto de ruptura com a estrutura fundamental do Dascin, a saber, o objetivismo da estrutura da Gestalt e o inconsçiente das estruturas simbólicas na antropologia de Lévi-Strnuss. Daí a idéia de quc todo sentido, mesmo velado, apresenta-se de alguma forma aconsciência vivida, fonte de toda significação. É possível viver com sentido, diz Mer1eau-Ponty na sua critica à noção freudiana de inconsciente doação sua ou não, e apontar para uma inlcn,ionalidade intema ao Ser, que apreenda, justamente, o movimento de fonnação das estruturas pcrçeptivas que não é dado à consciência. Uma idéia que jã se encontrava presente na Fenomenologia do Percepçaoquando,porexempl0.Mcrlcau-l'ontydiziaqueo verdadeiro problema da memória não é o de sua manutenção mas o da transformação temporal das estruturas atrnvés da qual se altera a percepçao do sentido presente. Ela também estava presente na idéia de síntese corporal de sentidos,prcsentedesdea EMrutllra do Comportamento (1942, 1972) através da qual um sentido se forma não pela intervençao do entendimento, mas do corpo: é o corpo que se reune para ver, que sai da diplopia para a visão ullÍea do objeto, e é o corpo que apreende a intencionalidade do outro na comunicação. através de um movimento cego pelo qual eu me junto a sua significação, que parece habitar meu próprio corpo, quando, de início, parecia que eu constituiria o signilieado do seu acompanhando Politur, mais do que sabemos por nossos pensamentos explicitos, com o que procura se afastar, ao mesmo tempo, das concepções intelectualistas da consciência. Essa consciência que encontramoscomofontede todasignificaçaoé,pois,a consciência encarnada, e o corpo se revelou para Merleau-Ponty como o "objeto" privilegiado para mostrnrrelaçõcs de sentido pré-téticas com omundo e componamento para mim - Uma idéia, aliás, que Merleau-Ponty aproveita do próprio Husserl, com sua noção de transgressão intencional. Tocamos nesse ponto para mostrar que os limites de investigação de sentido pela ciência, impostos por uma filosofia existencial de cunho fenomenológico, estreitam-se mais ainda com o recuo a uma região fundamental de sentido aquém do cogito tácito. Há, originariamente, o Ser, que rcprescnta diferenças de significações, que constituem dimensões cujo desdobramento não se fecha jamais. É desse jogo que a ciência participa. embora nonnalmente fixada na idéia de um mundo cm-si que a linguagern da ciênciaprocuratrazerpara-sí,fixada, pois, na idéia de uma linguagem de Deus sobre as coisas que cabe à ciência encontrar. Considere-se, nesse sentido, a obscrvaç1io de Merleau-Ponty sobre a noção de escala, na fisica: Ora, n'O visível e o invisivel (1964) MerleauPonty diz que a Fenomenologia da Percepção (1945, 1994) ainda estava presa às filosofias da consciência, e com essa critica ele visa sua noção de cogilo táciTO, esse contatoconsigo mesmo que representa o limite e o sustento de toda significação. Não se tratava, com essa noção, de pressupor que toda significação é obra de um ato de consciência, uma critica que ele tcrmina por dirigir a Husserl assumindo os limites da fenomenologia como revelação do sentido do Ser. Mas o que se enfatiza, então, é que é preciso ultrapassaranoçliodequetodosentidoparasertenha de se apresentar à consciência, nlio importa se como " ... ela e ultrapassamcnto da ontologia do Em si, - e exprime esse ultrapassamento em termos de cm si ... Dá-se um passo a mais Suprimindo o Em si mude/o: há apenas 111 representações em diferentes escalas ... Trata-sedecompreenderqueas'visõcs'em diferentes escalas não são projeçõcs sobre corporeidade:s-telasde W11 Em si inacessivel -, que elas e sua implicação lateral uma na outra são a realidade ... atrás dc1ashá apenas outras 'visões' ... Cada campo e uma dimensionalidade, e o Ser e a dimensionalidade mesma'" (Le Visible er I'Invisible, 1964, pp. 279-280). o que resta, emão, como fundamento da çiência após a ultrapassagem do cogilo taei/o? Com isso voltamos ao ponto em que falávamos do carnter positivo da ciência na revelação das essências dos fenômenos. Um parêntese: Mcrleau-Ponty nunca aceitou a idéia da possibilidade da apreensão definitiva de qualquer essência. Para tanlo, seria preciso sobrevoar a experiência, abandonar a temporalidade que é constitutiva do Ser e de nós mesmos para a possibilidade de uma variação completa do fenômeno. Com a citação seguinte retomamos o encontro com as ciências na c1ucidação do sentido vivido ou do próprio Ser e o que resta enquanto fundamento após a critica à idéia de cogilo lcicilo "A psicologia, a etnologia, a sociologia, sÓ nos ensinaram alguma coisa colocando a experiência mórbida ou arcaica, ou simplesmente outra, ao contato de nossa experiência, esclarecendo uma pela outra, criticando uma pela outra ... pratic3Jldoesta variação eidética que Husserl apenas cometeu o erro de reservar primeiro à imaginação e à visão solitária do filósofo, enqu3Jlto ela é o suporte e o lugar mesmo dessa opinio commullis que chama- mos ciência. Nesse caminho, pelo menos, é bem seguro que acedemos á objetividade, não penetrando em um Em Si, mas dcsvcl3Jldo, retificandoumpelooutro,odadoexteTÍoreo duplo interno que possuímos enquanto senscienles-sensiveis, arquétipos e variantes da humanidade e da vida, iSloe, enquanto somos intcriorcs á vida,aoserhumanoe ao Ser, tantoqu3Jltoele anós,equenósvivemos e conhecemos não a meio caminho de fatos opacos e de idéias límpidas, mas no ponto de encontro e de cruzamL'Tlto onde as familias de fatos inscrevem sua generalidade, seu parcmcsco"(Le Visibleetl"lnvisible, 1964, p. I 56). o que também poderíamos dizer lembrando outro texto de Merleau-Ponty, O olho e o espírito (1960, 1984) no momento em que se contrapõe 80 pensamento operatório da ciência, pensamento desenvolto que traia as coisas como se elas estivessem destinadas a ser o que pensamos delas. A filosofia cartesiana, dizia Merleau-ponty aí, ao menos guardava a "profundidade do mundo existente e a do Deus insondável", e "o desvio pela metafisica, que, apesar de tudo, Descartes fizera uma vez em sua vida, a ciência dispensa-se dele: ela parte daquilo que foi o seu pOnto de chegada" (p. 99). Ponanto, "mister se faz que o pensamenlo de ciência - pensamento de sobrevoo, pensamento do objeto em geral - tome a colocar-se num 'hã' prévio, no lugar, no solo do mundo sensível edomundo lavrado tais como são cm nossa vida,-para nosso corpo, não esse corpo possível do qual élícitosustentarque é uma máquina de informação, mas sim esse corpo atual que digo meu, a sentinela que se posta silenciosamente sob minhas palavras e sob meus atos. E preciso que, com meu corpo, despertem os corpos o$$ociado$, os 'outros', que não são meus congêneres como diz a zoologia, mas que me assediam, que eu assedio, com quem eu assedio um só Ser atual, presente, como jamais animal assediou os de sua espécie, seu território ou seu meio. Nesta historicidade primordial, o pensamento alegre e "' 1,1..... improvisador da ciência aprcndcráa insis- tir nas próprias coisas e em si meSmO, tomará a ser filosofia .. ,"(p. 86). Corno fundamento resta, portanto, o mundo da vida. Vamos destacar, agora, algumas considerações metodológicas de Medeau-Ponly nos Resumos da SorbOlllle, que mostram, segundo ele, a convergência da Psicologia contemporânea com a fenomenologia. Limitamo-nos àqueles que nos parecem mais cruciais para a nossa questão. O primeiro deles trata da superação da dicotomia entre os métodos quantitativo e qualitativo de pesquisa. O método quantitativo supostamenteseria aquele restrito à notação eà medição rigorosas dos fatos. Mas não há fato científico sem uma inlcrprclaçãoque participe intrinsecamente de sua configuração. Hoje, essa é uma idéia muito comum nafilosofiadadência, na crítica à concepçllo indutivista da ciência. Hempel(1981),porc:<cmplo, lembra corno as notações gráficas de qualquer experiênciapodemreccberdiferentcsintcrprctaçõcs, isto é, que a ligaçllo entre os pontos assinalados cm seus quadrantes pode receber configuraçõcs ou ser c:<pressa porequaçõcs muito difcrentes; ou seja, ser compatíveiscomteoriasdifcrcntcsnac:<plicaçllodos fatos observados Com Merleau-Ponty, vamos lembrar apenas que a ciência constrói modelos da e:<periênciapara a obtcnçllo do sentido da realidade. É com a própria Física que aprendemos isso: "Aleidaqued.adoscorposdcGalilcu nllo podc ser obtida por constatação simples. Ela se deline sobrc um processo idcal: ela é fundada sobre uma 'idealizaçllo' (Husserl). Parado:<o da ciência: para compreenderoconcrcto,éprcciso, em certo sentido, dar-lhe as costas. Galileu teve de recorlstroiros dados dos sentidos por um procedimento intelectual. Quando, ao contrário, quer-se notar diretamente o fato (Aristóteles: a ligaçllo. natural dos corpos pesados) chega-se aabstraçõcs. A ciência começa quando,ao invés de notar passiva, mente, reconstrói-se as Ilparéncias, dá-se 'modelos' da realidade" (Medem/- Pontyâ la Sorbonne, 1949-52, 1988, p.486). Ou ainda: "Husserl reage contra a teoria de Mi11,que define a induçllo: procedimento que, descobrindo na pluralidade de fatos, fatos em relação de sucessão ou de simultaneidade constante, apresenta-os como caracteristicas do conjunto dos fatos dos quais se partiu. Husserllevanta aqui uma critica análoga àquela de Brunschvicg (em Experiência humana e causlIlillade f/Sica. Alcan, 1922) sobre o exemplo de Galileu.Galileuchegaàidéiadaquedados corpos atravts da experiência de diferentes quedas de corpos? A lei que ele revela é antesumaconcepçlloidealdeumeasopuro da queda livre dos corpos, sem e:<emplona experiência onde a queda t sempre freada por atritos. Assim, os fatos tomam-se compreensíveis com o conceito puro da queda associado a outrosconccitos igualmente construídos. O fisico procede realizando 'ficçõcs idealizadoras',livremente criadas pelo espírito. A lei de Newton, diz Husserl, não se pronuncia sobre a existência de massas gravitacionais supostas. Esta induçllojâéuma Iciturade essêneia: Icionos fatos uma queda livre dos corpos, concebida e forjada pelo espírito. O que dá li. ficção idealizadora seu valor, não é o númerQ de fatos observados, mas a cfarezo intrínseca q/le eJ"laficçelo IrOIam' !OlQS" (ibid., pp.410-41 I). A frase final é o ponto de encontro entre os termos da falsa dicotomia entre os métodos quantitativo e quahtativo de pesquisa, paraoquala psicologia contemporânea e a fenomenologia convergem, segundo Merleau-Ponty É nesse sentido, diz ele, que se encaminha para o sentido da estrutura "interna" do componamento, que não se limita a simples anotações de fatos. Seria essa a inspiração fundamental do Behaviorismo, ql.le visava o sentido do componamento no embate do organismo com o meio. \Vatson propunha explicar o comportamento independente da fisiologia; entretanto, receoso de passar para as trevas da interioridade, termina fundando sua psicologia numa fisiologia mecanicista. Esse também seria o sentido da psicologia da Gestalt, que visava antes a especificidade do sentido do componamento diante do meio tisico em que ele se dá; dai a distinção entre meio geográfico c mcio comportamental (Koffk.a): nesse ultimo, o que conta para o organismo é o sentido que os estímulos têm para si, e não o estímulo enquanto fenômeno tisico apenas. Assim, por exemplo, 。セ@ experiências de Kõehler com os primatas mostram que a partir de um mesmo meio geográfico é preciso. cm dado momento, que o sentido de um caixote para sentar seja substituído pelo sentido de um caixote apoio de que o animal se servirá para alcançar a banana; o que conta para o animal não é o estímulo fisico cm si. mas o seu sentido no campo de componamento do animal. A Gestalt, entretanto. com sua noção de isomorfismo, também tennina fundando as estruturas de sentido da percepção em estruturas fisiológicas, que seriam, por sua vez, variações de estT\1lllras físicas. Essas seriam a explicação da ciência do componamento, e não as descrições de sentido do meio comportamental. Note-se aqui, mais uma vez, que o que MerleauPonty recusa dessas psicologias é a ontologia implícita de seus fundamentos, e não o sentido de suas experiências, propriamente. Dai sua insistência numa reforma das calegorias gerais com as quais pensamos II realidade, no ea:;o, as categorias da melafisicaclãssica. Ora, esse sentido que revela uma intencionalidade expressa na unidade do comportamento, rompe com mais uma dicotomia herdada pela psicologia no inicio do século, a oposiçao entre interior e exterior, ou subjetividade e objctividade. O objetivo, já dissemos, não é nunca uma simples notação de fatos, já que todo fato faz pane de um sentido para o homem. Agora pereebemos que a intencionalidade que é interna ao componarnento é a sua própria expressão, isto é, é dada no mundo percebido. Não há homem imerior, o homem est3 IOdo no mundo, diz Merleau-Ponty na Fenomenologia da Percepção (1945,1994). O que significa que o sentido da subjetividade não se encontra em uma interioridade inef:i.vel e ウッャゥーセエ。L@ nem é de acesso epistemológico privilegiado para o próprio sujeito. REFERENCIA BIBUOGRÁFICAS. Hempel. C. G. (1981). Filo.wfia da ciência nalural (3' cd.). Rio d" Janeiro: lahar Husserl, E. (1949). Ideas relati,as a unafenomen%gia pura y una fil()j'ofla fenvmenolág"'" (J. Gaos, Trad) México, Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica (Trabalho original publicado em 1913). Husscrl. E. (1965). A filosofia COm" ciência de rigor (2' ed.). (A.Alau. Trad) Coimbra: Atlântida Ilusserl, E. (1976). La cnsedes セ・ZョcBヲウ@ européennesel lo phénoménologie Iransclmdanfale (G. Granel, Trad) Paris: Gallimard (Trabalho uriginal publicado em 1954) Mcrlcau-Ponty. M. (1964). Le vüible el /"invi.<'-ble. Paris' Mcrlcau-Ponty, M. 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