MACHADO DE ASSIS QUASE-MACABRO1
por Marcelo J. Fernandes2
RESUMO
Este trabalho levanta e analisa o fantástico nos contos de Machado de Assis. Entre os
quinze contos coligidos, verifica-se, em sua maioria, um padrão típico das narrativas
fantásticas de Théophile Gautier, ambientadas no espaço onírico. Para efeitos de classificação,
as obras foram divididas em gautierianas e não-gautierianas. Por diluir, desfazer ou
racionalizar invariavelmente o inexplicável no desfecho das narrativas, a produção fantástica
machadiana pode ser classificada como "quase-macabra", conforme o explicita, em seus
aspectos técnicos e conceituais, o presente trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: MACHADO DE ASSIS; CONTO FANTÁSTICO; ANÁLISE
LITERÁRIA.
ABSTRACT
This work is a survey and an analysis of the fantastic in the stories of Machado de
Assis. The fifteen collected stories reveal a pattern typical of Théophile Gautier's fantastic
tales taking place ina dreamlike setting. For classification purposes, the works were divided
into gautierian and non-gautierian ones. Because of the invariable diluting, subverting and
rationalizing of the inexplicable in the tales' denouement, the fantastic in the machadian
stories can be classified as “semi-macabre”, as argued by the present thesis on the strenght of
the analysis of the stories technical and conceptual aspects.
KEYWORDS: MACHADO DE ASSIS; FANTASTIC STORIES; LITERARY CRITICISM.
1
Resumo da dissertação de Mestrado apresentada na UFRJ, em dezembro de 1999, com o título
“Quase-macabro – o fantástico nos contos de Machado de Assis”.
2
Mestre e Doutorando em Letras Vernáculas (UFRJ), coordenador da Pós-Graduação em Letras da
UCP, Diretor-Geral do Colégio de Aplicação da mesma instituição; Avaliador Institucional do
MEC/INEP para Instituições de Ensino Superior, docente do Colégio Estadual D. Pedro II e Membrotitular da Academia Brasileira de Poesia (cadeira n° 17).
1
O ponto de partida para que levantássemos, a partir de toda a produção de contos
machadianos – cerca de duzentos -, a ocorrência de um fantástico mitigado, diferenciado,
quase sempre ambientado em sonhos e na maioria das vezes, explicável, foi um “apelo” tácito
de Raymundo Magalhães Jr. – o de “que a crítica pouco tinha atentado para essa faceta da
obra de Machado”3.
Influenciado por Ernst Theodor Amadeus Hoffmann, Edgar Allan Poe e Théophile
Gautier, aos quais se referia com frequência, Machado diluiu o fantástico - o “quasemacabro”, que designamos – ao longo da auspiciosa carreira literária, razão talvez do
desconhecimento de alguns ou da pouca atenção de outros.
Havíamos, então, colhido criteriosamente doze contos, quando vimos, com surpresa, o
surgimento tardio de um possível “atalho” acadêmico: o relançamento, pela editora Bloch, da
obra Contos Fantásticos de Machado de Assis4, do mesmo Raymundo Magalhães Júnior, livro
originalmente publicado em 1973, onde o autor reunia onze narrativas. Entre as duas seletas, a
nossa e a do acadêmico, há oito coincidentes. Acrescentamos quatro, “O país das quimeras”
(O Futuro, 1862); “O anjo das donzelas” (Jornal das Famílias, 1864); “Marianna” (Jornal
das Famílias, 1871); “Um sonho e outro sonho” (A Estação, 1892), e incorporamos outras
três da antologia de Magalhães Jr., que nos passaram despercebidas, perfazendo um total de
quinze contos de teor fantástico, a saber: “O país das quimeras” (O Futuro, 1862) (ou “Uma
excursão milagrosa”, Jornal das Famílias, 1866); “O imortal” (Jornal das Famílias, 1862)
(ou “Rui de Leão”, Jornal das Famílias, 1872); “O Anjo Rafael” (Jornal das Famílias, 1869);
“O Capitão Mendonça” (Jornal das Famílias, 1870); “A vida eterna” (Jornal das Famílias,
1870); “Marianna” (Jornal das Famílias, 1871); “Decadência de dois grandes homens”
(Jornal das Famílias, 1873); “A chinela turca” (1a versão, A Época, 1875; 2a versão, Papéis
Avulsos, 1882); “Os óculos de Pedro Antão” (Jornal das Famílias, 1874); “Um esqueleto”
(Jornal das Famílias, 1875); “Sem olhos” (Jornal das Famílias, 1876); “A mulher pálida“ (A
Estação , 1881); “A segunda vida” (Gazeta de Notícias, 1884) e “Um sonho e outro sonho”
(A Estação, 1892).
Por uma simples questão metodológica, excluímos previamente desta lista os contos
consagrados “A causa secreta” (Várias histórias, 1896) e “O enfermeiro” (idem), por vezes
agrupados como da mesma linha temática dos demais.
3
4
In: Prefácio a Contos fantásticos de Machado de Assis. Bloch, Rio de Janeiro, 1998
MAGALHÃES JR., Raymundo. Contos Fantásticos – Machado de Assis. RJ, Bloch Ed., 1998.
2
A título de justificativa, em “A causa secreta”, observamos sobretudo a apresentação
de uma personagem com elevado grau de sadismo (Fortunato), em uma narrativa bem
articulada; entretanto, em nenhum momento o tom do conto se inclina, estruturalmente, para
o gênero fantástico, ainda que a cena da imolação de uma cobaia, com requintes de crueldade,
cause forte impressão. Da mesma forma, em “O enfermeiro”, outro notável conto, apesar da
grande complexidade da relação patética entre o protagonista (Procópio) e o paciente
(Coronel Felisberto), também não se verifica traço nítido que obrigasse à rotulação do gênero
fantástico.
Da mesma forma, “Sereníssima República”, por tratar de uma república de aranhas, é,
a nosso ver, uma fábula – tal como “Um apólogo” – que talvez interceptasse, levemente, o
subgênero maravilhoso.
Procedemos, então, ao exame desses quinze contos fantásticos e, ao observar certas
reincidências temáticas, verificamos determinados padrões, que serão classificados no
decorrer do trabalho. É possível que haja um número maior de narrativas deste teor;
entretanto, a metodologia foi exaustiva: partimos de um pequeno grupo de contos já rotulados
e esquadrinhamos, conto a conto, a série dessas obras organizadas pelo onipresente
Raymundo Magalhães Jr. para a Ediouro, que incluía também as histórias machadianas
publicadas sob pseudônimo, a saber: Contos consagrados; Contos recolhidos; Contos
avulsos; Contos esparsos; Contos esquecidos; e Contos sem data. Das demais edições,
consultamos: Contos fluminenses (I); Histórias da meia-noite; Papéis avulsos; Histórias sem
data; Páginas recolhidas; Várias histórias; Relíquias de casa velha (I); Histórias
românticas; Contos fluminenses (II); e Relíquias de casa velha (II).
CONCEITOS
Conceituar o fantástico e definir seus limites é tarefa laboriosa e complexa, uma vez
que há diversos subgêneros e variantes. Louis Vax, por exemplo, situa as fronteiras do
fantástico entre o “feérico”, as “superstições populares”, a “poesia”, o “horrível e macabro”, a
“literatura policial”, o “trágico”, o “humor”, a “utopia”, a “fábula”, o “ocultismo”, a
3
“psicanálise” e a “metapsíquica”5. Tzvetan Todorov define o fantástico como o terreno
fronteiriço entre o estranho e o maravilhoso. Segundo o autor, o fantástico “dura apenas o
tempo de uma hesitação: hesitação comum ao leitor e à personagem, que devem decidir se o
que percebem depende ou não da ‘realidade’, tal qual existe na opinião comum. [...] Se ele
[leitor] decide que as leis da realidade permanecem intactas e permitem explicar os
fenômenos descritos, dizemos que a obra se liga a outro gênero: o estranho. Se, ao contrário,
decide que se devem admitir novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode ser
explicado, entramos no gênero do maravilhoso” 6.
Cabe ainda frisar a impropriedade comum de se utilizar, em Machado, as
terminologias “realismo mágico” ou “realismo maravilhoso”, cunhadas, respectivamente, por
Arturo Uslar Pietri, em 1948, e Alejo Carpentier, no ano seguinte, ambas para designar uma
modalidade de “realismo irrealista”, aparentado com o maravilhoso, no romance hispanoamericano do século XX.
O modelo proposto por Todorov, estruturalista, e, portanto, já encontrando restrições
por ser também “datado” (1968), é passível de verificação/aplicação nos tipos de conto que
encontraremos em Machado, mas de forma parcial: a fórmula todoroviana equilíbrio inicial –
irrupção de um fator desagregador/perturbador – desequilíbrio não perene – equilíbrio final
( do equilíbrio inicial) funciona apenas no espaço onírico da narrativa.
Nos contos fantásticos machadianos, não há a justificativa/explicação para os
“fenômenos” narrados; são dissolvidas, quase sempre, pelo simples despertar da personagem.
Portanto, nos contos que são objeto deste ensaio, a aparição de um espectro fantástico,
aventuras absurdas e rocambolescas, ameaças de morte, encontros com cientistas insanos e
aéticos ou viagens astrais, isto é, todos sucessos extraordinários ( = extra-ordem, fora de
ordem) estarão justificados no espaço onírico; o fantástico opera no plano inconsciente,
exatamente na fresta crepuscular entre a vigília e o sono. Desta forma, a retomada do
equilíbrio inicial coincide com a própria retomada de consciência.
Em um primeiro exame deste conjunto de narrativas, verifica-se que o autor cultivou o
gênero antes mesmo de sua incipiente estreia poética (Crisálidas, 1864), até as proximidades
de seu, por assim dizer, apogeu literário (Dom Casmurro, 1900).
Antes de abordá-los propriamente, salientemos que alguns contos não constam da
bibliografia “oficial” de Machado de Assis, por serem assinados por pseudônimos diversos.
5
6
VAX, Louis. A arte e a literatura fantásticas. Ed. Arcádia, Lisboa, 1972, págs. 7-32.
Introdução à literatura fantástica. Ed. Perspectiva, Col. Debates, 1975, págs. 47-48.
4
Entretanto, baseamo-nos, confiantes, nos desveladores estudos que procederam J. Galante de
Sousa7 e o mesmo R. Magalhães Jr., de cuja série Contos de Machado de Assis, editada
originalmente pela Civilização Brasileira e posteriormente reeditada pela Ediouro, também
extraímos os objetos de estudo.
A fusão entre a parte real e uma parte sonhada é recorrente na obra machadiana; o
universo onírico em Machado de Assis já seria um belo mote para se iniciar um ensaio, uma
vez que é quase sempre pelo universo onírico que o “Bruxo” estabelece sua conexão com o
fantástico. O célebre conto "A chinela turca" talvez seja o mais lembrado neste "leitmotiv",
em que o sonho se sobrepõe à realidade. Nesta mesma linha situa-se a “visão esfumaçada” 8
em “O anjo das donzelas” , onde um ente fantástico protege a virgindade da heroína, mas
depois tudo se explica pela mera fantasia romântica da moça que estabelece uma confusão
prosaica entre sonho/realidade. Aliás, eventos similares se dão em “Marianna”, em que o
protagonista tem um rêve éveillé, ao ver a estampa da antiga noiva crescer, sair da moldura,
animar-se e vir ter com ele; e também em “O Capitão Mendonça”, “O país das quimeras”, “A
vida eterna”, “A mulher pálida”, “O anjo Rafael”, “Decadência de dois grandes homens” e
“Um sonho e outro sonho”, e ainda em "Uma excursão milagrosa" - reaproveitamento da
narrativa "O país das quimeras", publicada em 1o de novembro de 1862, que apresentou de
forma singular entre todos os contos o subtítulo "um conto fantástico". Poderíamos afirmar,
desde já, que se trata de um padrão de fantástico machadiano, como situaremos adiante.
Registre-se também o delírio de Brás Cubas (o hipopótamo que se metamorfoseia, enfim, num
simples gato, em Memórias Póstumas de Brás Cubas), os "sonhos acordados" de Bentinho,
em Dom Casmurro, apenas para citarmos casos na prosa extensa. Cabe lembrar ainda que
Machado também cultivou outros temas obsessivos, tais como heranças, vocação sacerdotal,
viuvez/solidão, adultérios e um bizarro pendor pela descrição de anatomias, como a dos
narizes (!).
O conto fantástico de Machado de Assis se alinha, em forma e teor, ao conto fantástico
francês do século XIX, diferindo totalmente da vertente inglesa, onde despontaram Lord
Halifax, Lord Dunsany, M.R. James, Walpole e os norte-americanos Ambrose Bierce e Henry
James, que criaram os intraduzíveis termos uncanny e eerie para qualificar o estado de
angústia e pavor suscitados em suas narrativas. Os dicionários dão como equivalentes
“misterioso”, “pavoroso” ou “atemorizado”; entretanto, Jorge Luis Borges sustenta, com
7
8
Fontes para o estudo de Machado de Assis, INL, RJ, 1958
MACHADO DE ASSIS. Contos avulsos. Ediouro, Rio, s/d. pág. 15
5
muita propriedade, que talvez a soma dos três não nos dê o matiz exato do sentido daquelas
palavras9. Tem-se então uma angústia indefinível, causada por episódios intangíveis,
fantásticos, sobrenaturais ou simplesmente inexplicáveis, que, nesta forma, os franceses e os
latinos, por extensão, os desconhecem, visto que não solucionaram o problema com um termo
que lhes desse tradução à altura.
Os autores do fantástico francês – Viliers de L’Isle Adam, Alphonse Daudet, Charles
Nodier, Théophile Gautier, Jules Junin, Pierre Louÿs, Paul Féval, Charles Asselineau, Guy de
Maupassant, Gérard de Nerval, Henri Rivière, e Jean Lorrain para citar os mais famosos –
abarcam temas que não apresentam o mesmo horror opressivo e inefável dos ingleses, tais
como a loucura, desdobramentos, vampirismo, licantropia, pactos demoníacos, trocas de
identidade, crimes com castigos sobrenaturais, além de óbvias aparições de monstros e
espectros, quase sempre exigidos pelo(a) leitor(a) romântico (a) – mon semblable, mon frère
– a exemplo das mesmas machadianas leitoras do Jornal das Famílias.
O crítico Alfredo Bosi, em seu recente O enigma do olhar, onde estuda Dom
Casmurro e aspectos da obra machadiana, reivindica para Machado uma posição
desvinculada das ideologias que o cercavam, em pleno final do século XIX. Segundo Bosi,
“A sua cultura de eleição não era, como já disse anteriormente, a do
progressismo linear nem a do positivismo filosófico nem a do naturalismo dominantes
no século XIX. Era feita de reflexões desenganadas, algumas do senso comum, esse
misto de cinismo e estoicismo que se espalha nas racionalizações de um cotidiano
cheio de assimetrias; outras muito provavelmente vindas da tradição moralista
analítica dos seiscentos ou do ceticismo galhofeiro dos setecentos. As reações de
Machado ao estreito mundo da burguesia patriarcal foram permeadas e estilizadas
por essas vertentes de pensamento e gosto filtradas por prosadores da envergadura
de Stendhal, Leopardi e Schopenhauer.” 10
Esta observação pode nos levar a entender a presença obrigatória de moralidades
nesses contos fantásticos. Como grande leitor dos contos filosóficos franceses do século
XVIII – Voltaire, Sterne, Montesquieu, Maïstre, Diderot, Machado transpõe, de certa
maneira, a finalidade fabuladora – e portanto moralizante – em seus contos quase-macabros.
9
“El arte narrativo y la magia” In: Discusión. Emecé, 1957, Buenos Aires, Argentina.
BOSI, Alfredo. “Decifração do tempo” In: Caderno Mais! Folha de S.Paulo, 28/3/99, pág.5
10
6
Exame e proposta de tipologia dos contos
"Rui de Leão" pertence ao pequeno grupo de contos fantásticos de Machado que não
se estabelece no universo onírico. É a primeira versão da narrativa posteriormente refeita com
o título de "O imortal". Machado já refizera outras versões, em razoável espaço de tempo,
provavelmente para suprir os leitores do "Jornal das Famílias" de histórias mais longas. Por
outro lado, é o único de seus trabalhos em prosa que mostra a influência da primeira geração
romântica (sobretudo de Gonçalves Dias), a temática indianista com guerreiros corajosos e
virgens aborígines, cuja forte impregnação tanto se apresenta em "As Orizes", "A visão de
Jaciúca", "A cristã nova", "Potira", "A flor do embiraçu" entre outras poesias de Americanas.
Esta influência "nacionalista" se intensificou entre 1872 e 1875, portanto, até o ano anterior à
publicação de "Helena". Ao refazer "Rui de Leão", em 1882 (e aí já posteriormente a
Memórias Póstumas de Brás Cubas), Machado despojou a narrativa dos traços mais
acentuadamente indianistas, já sob o forte influxo realista.
O autor também refez a narrativa "Uma excursão milagrosa" (originalmente "O país
das quimeras, publicada quando Machado contava vinte e três anos de idade), alterando-a
sensivelmente quatro anos mais tarde. A modificação fundamental é a que consiste em fazer
com que a viagem maravilhosa ao “país das Quimeras” seja narrada pelo poeta Tito, na
primeira do singular; na versão anterior, era na terceira. Machado adverte, na última versão,
que uma viagem "quimérica" como aquela ficaria melhor se contada pelo próprio poeta que a
sonhara. Apôs também uma introdução, (ou "nariz-de-cera", como chamavam) e uma
moralidade final.
Além disso, incluiu no meio da narrativa uma breve passagem, a do filósofo que faz
aos "quiméricos" a conferência que redunda em franca apologia do autoelogio. Destinando o
autor "Uma excursão milagrosa" ao Jornal das Famílias, tais adendos se fizeram necessários
à divisão do texto em dois folhetins. Enquanto que em O Futuro saiu de um só jato, aquela
publicação o repartiu em dois com inevitáveis ganchos, como se costumava fazer com as
narrativas mais longas, a fim de obrigar leitoras e leitores ávidos a procurar a edição seguinte
e acompanhar os seus feuilletons favoritos. Sendo "Uma excursão milagrosa", que saiu em
abril de 1868, a versão definitiva de "O país das quimeras", era a que devia ter sido preferida
para a publicação do segundo tomo de Relíquias de Casa Velha, volume póstumo de contos
7
organizado por Lúcia Miguel-Pereira e Afrânio Coutinho, em 1946, para a W.M. Jackson
Editora. Da nota introdutória, sublinhamos:
"Demos-lhe, como fizemos no segundo volume dos CONTOS FLUMINENSES, o
mesmo título de RELÍQUIAS DE CASA VELHA, por existir entre estes e os contos das
RELÍQUIAS certa afinidade de época e estilo. O autor, se ainda não atingira a perfeição de
D. CASMURRO, assentava contudo a mão para escrever BRÁS CUBAS"11.
Naquela ocasião, contudo, mesmo as pessoas supostamente bem informadas sobre
Machado de Assis ignoravam a existência dessa versão, assinada apenas com a letra "A" e só
identificada por Galante de Sousa em 1958 (Fontes para o estudo de Machado de Assis, INL,
RJ).
Com uma maior inclinação ao horror propriamente, dito temos "Sem olhos" (de
Relíquias de casa velha) e "Um esqueleto", ainda que apresentem a mesma receita: a
realidade, prosaica, em contraponto ao fantasmagórico, arrepiante. Há nestas narrativas
alguma influência dos autores fantásticos de seu tempo, como E. T. A. Hoffmann e Edgar
Allan Poe, ainda que Machado desfaça os efeitos suscitados pelo insólito com uma brusca
retomada da realidade. Com relação a Hoffmann, são explícitas as citações de Machado, e
observamos também, sobretudo, uma mais do que expressiva influência do escritor francês
Théophile Gautier (Tarbes, 1811 – Neuilly-sur-Seine, 1872). Partidário do romantismo,
chegou, no entanto, sem renegar suas primeiras admirações, ao Parnasianismo (Esmaltes e
camafeus, 1852). Devem-se-lhe também romances (Capitão Fracasso, 1863) e em grande
parte de suas obras o onirismo, muito presente, situa o fantástico no plano irracional, com um
tom abertamente irônico, parecendo zombar dos quadros aterradores que estrutura nas
narrativas, para nos epílogos desfazer a possibilidade do sobrenatural, “despertando” os
protagonistas e trazendo-os de volta à realidade. Ao cotejarmos Machado e Gautier,
verificamos que havia um padrão comum aos dois, e por isso, achamos conveniente a
denominação “conto gautieriano” para a modalidade de “fantástico onírico”, vertente usual
em Machado.
Entre as quinze narrativas submetidas a este estudo, em função da estrutura dos
contos, dividimos esse conjunto de contos entre os gautierianos e os não-gautierianos. Por
definição, os primeiros seriam aqueles cujas estruturas fantásticas se apoiariam em
ambientação onírica, onde a tessitura da trama é detonada pelo sono – e devidamente balizada
11
MIGUEL-PEREIRA, Lúcia e COUTINHO, Afrânio. Relíquias de Casa Velha, RJ, W.M. Jackson
Editora, 1946
8
entre o estado de torpor e o despertar – e aí se processam os eventos sobrenaturais. Um
elemento notoriamente gautieriano e reforçado por Machado de Assis é o incômodo causado
pela mescla de situações entre sonho e realidade. Tanto em Gautier quanto em Machado há
duas alternativas finais: uma, para mitigar o incômodo da dubiedade entre os fatos – e a esta
altura com um leitor totalmente absorto e contaminado pela sobrenaturalidade dos eventos, há
um desenlace dissimulador; outra, para acentuar o teor fantástico dos sonhos, traz uma prova
física desse outro “meio” – nesse caso alinham-se, por exemplo, “O pé da múmia”, de
Gautier, e “O anjo das donzelas”, de Machado.
É exatamente o que parece suceder com "Sem olhos", outro conto que pertence ao
mesmo grupo de “Rui de Leão”, em que a tragédia acaba sendo uma "pura ilusão dos
sentidos, simples invenção de um alienado"12. Esse mesmo drama de ciúmes, complicado com
outros elementos ainda mais macabros, é o elemento central do conto "Um esqueleto".
Segundo Magalhães Jr., o tema foi baseado em fato real, e
“...o tal esqueleto seria o de uma cantora lírica francesa, a bela Eugênia
Mege, que ao chegar ao Brasil se apaixonara por um médico de grande clínica da
antiga capital do Império, o Dr. Antônio José Peixoto. Assassinada pelo marido
ciumento, seu corpo fora depois roubado da sepultura pelo amante, que lhe armara o
esqueleto e o colocara, numa vitrina, em seu consultório, como um caçador ardente
que colecionasse os seus troféus”13.
O louco que protagoniza a narrativa é ainda mais insano que o de "Sem olhos",
desenrolando-se a trama entre peripécias medonhas que devem ter feito correr um calafrio
pelas alvas e castas espinhas das leitoras do Jornal das Famílias. O epílogo é, entretanto,
abrandado pelo mesmo artifício das outras narrativas: o nefasto personagem Dr. Belém, um
doente mental, seria realmente um louco. Se tivesse existido... "Mas o Dr. Belém não existiu
nunca – pondera Machado – eu quis apenas fazer apetite para o chá...". E o autor reduz a
narrativa, aterradora até então, aos “cestos de costuras”.
Entre os contos que tipificamos como não-gautierianos, estão os que designamos
como insólitos, nesta dupla definição dicionarizada: “Insólito, adj. – 1 (...) desusado; contrário
ao costume, ao uso, às regras; inabitual. 2. Anormal; incomum; extraordinário (...)” 14. A
característica comum a todas as narrativas aqui reunidas é a estrutura de “causo”, ou seja, uma
12
MAGALHÃES Jr., op. cit, pág. 34
MAGALHÃES JR., Raymundo., idem. P. 07.
14
FERREIRA, Aurélio B. de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio, Nova Fronteira, 2a
ed., 1986. Págs. 951-952
13
9
história dentro de outra, contada por um narrador-personagem, que assume uma experiência
inverossímil, quer como testemunha, ou quer como protagonista. Um homem imortalizado
por um elixir aborígine, um louco que se julga o arcanjo Rafael, um outro louco que guarda a
ossada da mulher, um poeta byroniano que deseja desposar a própria Morte, um louco que
chora o martírio da amada, e um homem que se lembra da última encarnação – eis o bastante
para romper as cadeias das aparências, dissolvendo o mundo das formas tangíveis.
Na narrativa insólita não se trata de comprovar o que é real e o que é irreal, verificar
quais os limites da realidade e onde se iniciam as brumas do sonho e da ilusão – as “balizas do
sono” que designamos nos contos gautierianos. Por mais que se tente captar, narrar e
descrever estes episódios, só a hesitação, equilibrando-se no gume da verossimilhança, pode
revelar o insólito em seu mistério mais íntimo, impenetrável, perante todos os nossos sentidos
desarmados.
Conclusões
Os quinze contos examinados podem ser classificados e agrupados, de acordo com a
temática preponderante, ocorrência fantástica e tipologia proposta:
Gautierianos:
a) Sonhos/ Delírios : “Decadência de dois grandes homens”; “A chinela turca”; “Capitão
Mendonça”; “A vida eterna”; “O anjo das donzelas”; e “O país das quimeras”.
b) Sonho/ Rêve éveillé: “Marianna”.
c) Sonho/ Conte d’avertissement: “Um sonho e outro sonho”.
Não-gautierianos/ insólitos:
a) Narrativas insólitas: “Um esqueleto”; “O imortal”; “O anjo Rafael”; “A mulher pálida”; e
“A segunda vida”
b) Fantástico-policial (à maneira de Poe): “Os óculos de Pedro Antão”.
c) Fantástico (propriamente dito): “Sem olhos”.
À exceção de “Sem olhos”, observamos, na totalidade dos contos analisados, a
ocorrência do fantástico “quase-macabro”, ou seja, o horror diluído, desmanchado no final da
narrativa,
10
Sublinhamos também uma grande similaridade entre os contos “Capitão Mendonça”,
“Um esqueleto” e “O anjo Rafael”; pareceu-nos que o autor apenas procedeu a um novo
arranjo de episódios: os três protagonistas são envolvidos por insanos militares, que conhecem
seus pais, também companheiros de farda.
Outro item recorrente em algumas das narrativas em apreço é a caracterização similar
das personagens desvariadas, que são várias: o próprio capitão Mendonça; o Dr. Belém, de
“Um esqueleto”; o matemático Tobias, em “A vida eterna”; Jaime, em “Decadência de dois
grandes homens”; o esquisito Pedro Antão, no conto homônimo; o major Tomás, em “O anjo
Rafael”; o poeta byroniano Máximo, em “A mulher pálida” e o “reencarnado” José Maria, em
“A segunda vida”.
Também similar é a caracterização das “heroínas”, quase todas, curiosamente, aliás,
órfãs de mãe: Augusta, de “Capitão Mendonça”; Marcelina, de “Um esqueleto”; Cecília, de
“A chinela turca”; Eusébia, de “A vida eterna”; Celestina, de “O anjo Rafael”; Cecília,
também, de “O anjo das donzelas”; Cecília, novamente, de “Os óculos de Pedro Antão” e
Eulália, de “A mulher pálida”.
Nas narrativas que chamamos de “insólitas”, conferimos que Machado também recorre
ao “quase-macabro”. Em “Um esqueleto”, a situação é macabra até os últimos parágrafos,
narrada com “marcas de veracidade”; no entanto, é desfeita no final, e a história não passa de
um embuste. “O imortal” (ou “Rui de Leão”) é narrado também como “causo”, e termina
com um “acredite se quiser”. “A mulher pálida” possui um final pós-moderno, diríamos,
interativo: fica a critério do leitor a explicação do desfecho – fantástico, alegórico ou
nenhuma das duas hipóteses. Em “O anjo Rafael” observa-se uma significativa “hesitação
todoroviana” na personagem Antero, transmitida naturalmente ao leitor; no entanto, ao optar
pelo viés “quase-macabro” em uma estrutura não-gautieriana, Machado conduz a narrativa
insólita rumo à fronteira com o absurdo.
Na única narrativa “fantástica/policial” observada, “Os óculos de Pedro Antão”, com
uma flagrante semelhança com as histórias “extraordinárias” de Edgar Allan Poe – de quem
era admirador confesso ( Cf. o conto “Só”) – Machado também desloca o sobrenatural para o
eixo lógico e racional, à maneira do autor de “O corvo”, e acresce à narrativa a sua corrosiva
“pena da galhofa”, reduzindo-a, também, ao “quase-macabro”.
Com base em O enigma do olhar, do crítico literário Alfredo Bosi, de onde citamos
excerto e que propõe Machado encontrar-se intelectualmente distanciado das concepções
11
coetâneas, e portanto mais próximo do moralismo seiscentista incorporado pela vertente
cética dos Oitocentos, entendemos a preferência pelo “quase-macabro”: Machado tenta
transpor – grosso modo – para seus contos sobrenaturais o racionalismo iluminista,
circunscrevendo-os a uma possível verossimilhança. O inverossímil é justificado pelo viés do
sonho ou do acontecimento insólito.
O apreço de Machado pelas fábulas filosóficas do século XVIII de autores já citados
leva, neste sentido, em seus contos quase-macabros, uma moralidade final, quase sempre
folhetinesca e piegas, como se pode indicar nas seguintes narrativas: “O capitão Mendonça”:
Muitas vezes o melhor drama está no espectador e não no palco; “A chinela turca”: idem; “A
vida eterna”: As grandes peripécias estão nos sonhos, não na realidade; “O anjo das
donzelas”: Não se deve dar crédito aos sonhos; “Decadência de dois grandes homens”: Não
se deve acreditar nos insanos; “Marianna”: Os amores são como as peças teatrais: há as que
ficam no repertório, há as que caem; “Um sonho e outro sonho”: Não se deve crer em
sonhos; “O país das Quimeras”: Não se deve desprezar um dom divino; “Um esqueleto”: O
amor ultrapassa a própria razão; “O imortal”: ‘Similia similibus curantur’: o semelhante se
cura com os semelhantes (a propósito, lema da Homeopatia); “Os óculos de Pedro Antão” :
Não se deve julgar nem interpretar nada pelas aparências; “O anjo Rafael”: O amor tudo
supera; “A mulher pálida”: A fortuna não traz felicidade; “A segunda vida”: ‘Carpe diem’;
“Sem olhos”: Os olhos delinqüiram, os olhos pagaram.
Por fim, entendemos que a preferência de Machado pelo “quase-macabro”
que designamos e estabelecemos, é também justificada pelo seu público, essencialmente
feminino e romântico – onze das quinze narrativas são d’ O Jornal das Famílias. Como tal, o
objetivo das histórias era o entretenimento leve, como convinha à estrutura folhetinesca, e,
portanto as narrativas apavorantes não eram de bom alvitre, em se tratando de um suplemento
voltado para tal segmento. O bom Machado, ao adotar o seu “quase-macabro”, talvez não
tenha desejado maltratar os róseos nervos ou desalinhar as tranças de suas fiéis leitoras...
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