Masculinidades queer no voleibol - revisitando the
iron ladies
Leandro Teofilo de Brito1
Vanessa Silva Pontes2
Erik Giuseppe Barbosa Pereira3
Resumo
Trazemos neste artigo discussão sobre a película tailandesa The Iron Ladies, que mostrou em
sua história o caso real de uma equipe que na década de 1990 disputou a liga nacional de
voleibol masculino na Tailândia, composto por atletas com performatizações de gênero não
normativas, que designamos no texto como masculinidades queer. Para tal, nos utilizamos dos
estudos queer e operacionalizamos análise fílmica pela metodologia pós-estruturalista etnografia
de tela. Reconhecemos que o longa-metragem tailandês problematizou importantes
deslocamentos de sentidos sobre o masculino no esporte, através da performatização queer dos
jogadores de voleibol, ponto principal da película que se utilizou de deboche e ironia como
alavanca para a ruptura.
Palavras-chave: masculinidades, queer, voleibol, esporte, cinema
Queer masculinities in volleyball - revisiting the iron ladies
Abstract
We analyze in this article the Thai film The Iron Ladies, that showed in its history the real case
of a team that played in the 90s the national volleyball league in Thailand composed by athletes
with unregulated gender performances, which we call in the text as queer masculinities. For this,
we use the queer studies and film analysis by post-structuralist ethnography of the screen
methodology. We recognize that the Thai film discussed important displacement of senses about
the masculine in sports by queer performance of the volleyball players, main point of the film,
using mockery and irony as a lever for break.
Keywords: masculinities, queer, volleyball, sports, cinema
1 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro e membro do Grupo de Estudos sobre Diferença, Desigualdade e Educação Escolar
da Juventude. Professor EBTT Colégio Pedro II.
2 Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Especialista em
gênero e sexualidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Laboratório de
Estudos e Pesquisas sobre Corpo, Esporte e Sociedade (GECOS/LabCoeso - EEFD/UFRJ).
3 Doutor em Ciências do Exercício e Esporte pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Professor Adjunto da Escola de Escola de Educação Física e Desportos - UFRJ. Líder do
Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Corpo, Esporte e Sociedade (GECOS/LabCoeso –
EEFD/UFRJ).
Textura
Canoas
v. 18 n.38
p. 178-194
set./dez. 2016
AQUECENDO
O campo do esporte durante décadas performatizou-se como um espaço
heterocentrado e generificado, em especial no que concerne às masculinidades,
significadas pelos modelos mais normalizadores, tais como virilidade, força,
agressividade, coragem dentre outros atributos essencializados que se
afastassem de qualquer aproximação com um suposto feminino. Entretanto,
sujeitos não enquadrados em tais premissas, que escapam das normas e que
buscam desestabilizar os sentidos mais estáveis do masculino, embora, muitas
vezes invisibilizados e silenciados, não podem ser considerados inexistentes
nas diferentes modalidades, em específico no voleibol, esporte que colocamos
em discussão neste artigo, através do longa metragem tailandês The Iron
Ladies.
Com o título brasileiro As Damas de Ferro, o filme, datado do ano 2000
e com direção de Yongyooth Thongkonthun, trouxe em seu enredo a história de
uma equipe de voleibol masculina do distrito tailandês de Lampang, composta
por atletas que, por nosso olhar, se autoidentificavam como homossexuais
(Mona, Jung e Nong), bissexual (Wit), transgênero (Pia) e heterossexual
(Chai), com uma treinadora mulher e lésbica (Bee), e que venceu a liga
nacional da Tailândia, no ano de 1996. Cabe colocar que, embora tenhamos
feito o enquadramento das personagens4 em identificações de gênero e
orientação sexual, há certa fluidez que desloca sentidos mais estáveis em
algumas destas identificações e que explanaremos de modo mais claro ao
longo das análises do filme. Baseado em fatos reais, The Iron Ladies foi um
longa-metragem pioneiro em mostrar a circulação de pessoas LGBTs no
espaço do voleibol, e, mesmo o filme sendo classificado como comédia e
considerado “excessivamente caricatural”, em resenha publicada por Rojo &
Melo (2006, p.1), problematizou de maneira inédita, especialmente naquela
época, a presença de masculinidades não normativas e alternativas no contexto
do esporte, questão chave que nos motivou ao revisitarmos a película
tailandesa.
Adentrando nesta discussão, enfatizamos que aqui no Brasil o voleibol
também tem sido o principal esporte em que se observam frequentes
deslocamentos de sentidos fixos e estabilizados sobre as masculinidades. O
4
Ao longo do texto estaremos nos referindo às personagens, jogadores do time de Lampang,
tanto no feminino como no masculino, parafraseando Beatriz Preciado, na busca por dinamitar a
verdade do sexo e do gênero a um binômio (AMELA, 2008), posição explicitamente assumida por
The Iron Ladies em sua história.
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primeiro caso de um atleta de voleibol brasileiro a se anunciar como
homossexual foi em 1995, o jogador Lilico: o atleta criou polêmica no meio do
esporte, pois afirmou diversas vezes em entrevistas que não era convocado
para seleção principal – embora tenha participado de seleções de base – por ser
gay. O atleta faleceu ainda jovem, aos 30 anos, em 2007, por complicações
causadas por um AVC - acidente vascular cerebral (MARTINS, 2011). No
decorrer da temporada 2010/2011, mais especificamente no primeiro jogo do
playoff semifinal entre os times do Sada/Cruzeiro e do extinto Vôlei Futuro, a
Superliga Masculina de Vôlei também foi palco de um caso de homofobia que
envolveu o atleta Michael, jogador do Vôlei Futuro, e a torcida do
Sada/Cruzeiro. Michael, durante o jogo, foi hostilizado pela torcida do time
adversário, que atuava em casa, na cidade de Contagem/MG, com os
xingamentos de “bicha” e “viado”. Logo após o episódio, Michael, com o
apoio dos companheiros e da equipe, assumiu-se publicamente como gay, com
o objetivo de divulgar de forma ampla a questão da homofobia no esporte
brasileiro. O fato causou muita repercussão na mídia brasileira e internacional,
gerando também pesquisas acadêmicas sobre o fato (BANDEIRA, 2013;
ANJOS, 2015). Outro atleta brasileiro profissional, Vinicius Santos, com
passagens pela seleção brasileira e que hoje atua no voleibol italiano,
publicizou recentemente sua orientação como homossexual na mídia e fez
pequeno relato sobre ser gay e negro no espaço do voleibol em um blog
LGBT5, no ano de 2015.
Um dos casos mais recentes e notórios é o da atleta brasileira transgênero
Tiffany Abreu, atualmente jogadora de uma equipe masculina na Bélgica.
Tiffany, que se chamava Rodrigo Pará quando jogava no Brasil, durante a
temporada 2013/2014 atuava numa equipe em Amsterdã onde começou sua
transição de gênero, sendo apoiada pelo clube holandês nesse processo de
mudança (BRITO; PONTES, 2015). Torneios e campeonatos de voleibol,
voltados especificamente para o público gay, também têm ocorrido
constantemente aqui no Brasil, na Região Norte. A Liga Amazonense Gay
(DANTAS, 2015), já denominada anteriormente de Superliga Gay (SERRÃO,
2011), ocorre anualmente em Manaus de forma oficial desde 1992, mas há
registros de sua existência desde os anos de 1970, período da ditadura militar
no país. Outro torneio é o Grand Prix LGBT (CASTRO, 2015), que teve sua
quinta edição no ano de 2015, também em Manaus. Entretanto, a existência de
5
Blog Universo AA. Disponível em: <http://www.universoaa.com.br/opiniao/parada-uaa-um-jogador-devolei-carioca-que-deu-certo-na-italia-conta-como-venceu-no-esporte-mesmo-gay-e-negro/>. Acesso em: <9
de junho de 2016>.
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180
ligas de voleibol para o público gay não se restringe apenas ao Brasil e países
como República Dominicana6 e EUA7 também organizam campeonatos e
torneios.
No contexto desta discussão, Coelho (2009), antropóloga que realizou
pesquisas em jogos de vôlei e etnografias virtuais em grupos que discutiam o
esporte nas redes sociais, afirma que o voleibol se constitui como um espaço
de socialização híbrida e homoerótica. Considerando o futebol como um
esporte que historicamente excluiu mulheres e homossexuais de seu universo,
a autora afirma que o voleibol absorveu tanto a presença de mulheres como de
masculinidades não normativas entre torcedores/as e praticantes. Nas palavras
da antropóloga: “O voleibol estaria mais aberto à pluralidade, ou seja, daria a
estrutura simbólica para que a feminilidade feminina, a feminilidade
masculina, a masculinidade masculina, a masculinidade feminina e outras
combinações possíveis tivessem seu espaço esportivo” (p.91).
Deste modo, para análise e discussão de The Iron Ladies/As Damas de
Ferro, tomamos como base teórica a perspectiva queer. Buscando questionar a
heterossexualidade como norma, assim como o binarismo presente nas
categorias masculino/feminino e heterossexual/homossexual, a teoria queer
emerge de uma aliança, segundo Salih (2012), até certo ponto incômoda entre
teorias feministas, pós-estruturalistas e psicanalíticas na desconstrução da
categoria sujeito, pouco se importando com definição, fixidez e estabilidade
nas questões identitárias. A teoria queer pode ser considerada uma escola de
pensamento com visão bastante heterodoxa de disciplina, pois abarca um leque
diverso de práticas, tais como análises das relações de poder, sociais e políticas
da sexualidade, críticas ao sistema sexo-gênero, estudos sobre pessoas
transgêneros, assim como também leituras da representação do desejo pelo
mesmo sexo em textos literários, filmes, músicas, imagens, dentre outros
(SPARGO, 2006).
O termo queer considerado xingamento, palavrão e injúria aos
homossexuais no contexto estadunidense foi ressignificado durante o
surgimento da epidemia de aids, na segunda metade da década de 1980,
quando o movimento gay e lésbico Queer Nation se apropriou do termo como
6
Gay Volleyball league in Dominican Republic. Disponível em: <http://new-jerseynets21.blogspot.com.br/2011/07/gay-volleyball-league-in-dominican.html>. Acesso em: 21 de Junho de
2016.
7
North American Gay Volleyball Association. Disponível em: <http://www.nagva.org/>. Acesso em:
21 de Junho de 2016.
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181
uma forma radical de oposição à rejeição sofrida naquele período. “A ideia por
trás do Queer Nation era a de que parte da nação foi rejeitada, foi humilhada,
considerada abjeta, motivo de desprezo e nojo, medo da contaminação. É
assim que surge o queer, como reação e resistência a um novo momento
biopolítico instaurado pela aids” (MISKOLCI, 2013, p.24).
Essa ressignificação do termo queer, de um xingamento para uma
posição política de contestação, é nomeada por Sedgwick (1993), tomando
como referência Judith Butler, de performatividade queer. A força
performativa do queer, segundo a autora, permite que pessoas LGBTs
apropriem-se do termo através da inversão de um xingamento para uma
posição política e epistemológica que abarque a afirmação de suas identidades,
até então tidas como abjetas e excluídas. Butler (2015a), ao enunciar o gênero
como performativo, aponta que a repetição de atos, gestos, atuações e
encenações, permeados por aspectos linguísticos-discursivos, busca normatizar
os sujeitos como masculinos ou femininos. Entretanto, o caráter contingente da
performatividade permite tanto possibilidades de repetição das normas como
de descolamentos de sentidos, pois, em suas palavras: “[...] seria um equívoco
entender a operação das normas de maneira determinista. Os esquemas
normativos são interrompidos um pelo outro, emergem e desaparecem
dependendo de operações mais amplas de poder [...]” (BUTLER, 2015b, p.17).
A noção de performatividade queer será importante para discussão que
propomos sobre The Iron Ladies.
Destacamos que a interlocução da teoria queer com o campo de estudos
dos esportes ainda é incipiente e relativamente recente aqui no Brasil, mas já
foi problematizada por autoras/es que colocaram em evidência identificações
de gênero e sexualidades não normativas no contexto das diferentes práticas
esportivas (CAMARGO, 2014; GRESPAN; GOELLNER, 2014; FRANCO,
2016), como também em análises de filmes que discutiam especificamente
sexualidade e esportes (CHAVES; ARAÚJO, 2015a; CHAVES; ARAÚJO,
2015b).
Para operacionalizar análise fílmica de The Iron Ladies à luz da
perspectiva queer, utilizamos a proposta metodológica de Balestrin & Soares
(2014) denominada etnografia de tela. Como um recurso metodológico que
busca pesquisar com e sobre imagens em movimento, considerando filmes e
programas de TV como telas a serem etnografadas, a etnografia de tela tece
um olhar de múltiplos sentidos sobre seu alvo de análise, pois reconhece,
através da perspectiva pós-estruturalista, uma leitura plural, dinâmica e até
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mesmo conflitiva, o que a diferencia de outras abordagens de análise de
imagens.
Essa estratégia discursiva é interessante para uma leitura de
filmes ou mesmo de outras imagens, como de programas
televisivos. Em vez de imaginarmos o que seria real ou mentira,
poderíamos pensar que são citações que põem em campo
determinados significados. A tela seria uma das possibilidades
concretas de apresentar e constituir a chamada realidade. A tela
torna-se uma teia de discursos. Discursos esses que fazem as
realidades existirem, persistirem e, por vezes, modificarem-se.
Entre as possibilidades do fazer etnográfico a partir de uma tela,
consideramos que o cinema é um campo fértil para analisarmos
os diferentes processos de significação envolvidos na
manutenção, na construção e na desconstrução de determinados
discursos (BALESTRIN; SOARES, 2014, p.92).
Empreendendo a proposta de etnografia de tela no referido filme,
realizamos os seguintes procedimentos, tomando como base algumas das
proposições das autoras: observação sistemática e variada sobre o filme,
assistindo-o com o mínimo de interrupções, apenas com pausas para registro;
uso de caderno de campo para registro de cenas, questões e pontos
potencialmente relevantes para análises; e por fim, escolha das cenas. Sendo
assim, após a imersão profunda na tela, selecionamos cenas que nos
permitissem discutir como as personagens centrais do filme, atletas da equipe
de Lampang, deslocavam/repetiam os sentidos mais normativos do masculino,
ao performatizarem masculinidades que designamos neste artigo como queer.
Pensar as masculinidades pela perspectiva queer, além da ruptura com
qualquer estabilização identitária, significa reconhecer a infinitude nas
identificações dos sujeitos para além da pluralidade e multiplicidade de
sentidos atribuídos ao masculino. Ao nomearmos as masculinidades como
queer, apontamos para a potencialização performativa de infinitas e
incontáveis masculinidades nos processos de identificação dos sujeitos.
MASCULINIDADES QUEER EM QUADRA E EM CENA
A primeira cena do filme apresenta um teste para uma equipe de
voleibol e Mona, preterida da lista, questiona o treinador após a divulgação
dos nomes: “Não fui escolhido porque sou gay, certo?”. Sem a resposta do
treinador, que desvia o olhar, o filme segue-se para a próxima cena, na
apresentação de Jung, que, assim como Mona, vende bolinhos de arroz numa
espécie de feira tailandesa. Em diálogo com Mona, Jung aborda o corte do
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amigo da equipe de voleibol: “Você ainda não superou, não é Mona? Você
devia saber que esses clubes idiotas não aceitam gays nos times! No máximo
pegam uns enrustidos e é só isso”. Tanto Mona como Jung (talvez até mais
Jung que Mona) apresentam no filme uma performatização de gênero que se
aproxima do feminino, e, neste sentido, estas cenas retratam a dificuldade de
aceitação de tal identificação não só no contexto do esporte, mas na sociedade
de uma maneira geral. O enquadramento destas personagens em uma
identificação de gênero mais estável (feminino ou feminilidade masculina, por
exemplo) acreditamos não ser viável no que o filme busca problematizar em
sua história e, neste sentido, parafraseando Beatriz Preciado em entrevista a
Carrillo (2010), os deslocamentos identitários de Mona e Jung desestabilizam
a naturalização da filiação e da diferença sexual, que sujeitos queer promovem
com seus corpos através de suas performatizações subversivas. Ainda em
Preciado (2011), a autora afirma que: “Desidentificação surge das ‘sapatas’
que não são mulheres, das bichas que não são homens, das trans que não são
homens nem mulheres” (p. 15). É por este movimento de queerização das
(des) identificações, que The Iron Ladies promove rupturas nos sentidos mais
normativos do masculino.
As cenas e as falas das personagens, descritas acima, também
evidenciam a presença da heteronormatividade no contexto do esporte, seja
pelo corte de Mona, no teste para a equipe, seja também pela fala naturalizada
de Jung, que justifica a dificuldade de inserção de masculinidades não
normativas nas equipes de voleibol. Miskolci (2013) afirma que a sociedade
não nega por completo a homossexualidade, porém a mesma ainda exige o
cumprimento das expectativas em relação ao gênero e a um estilo de vida em
que a heterossexualidade seja um modelo inquestionável. Também analisamos
a fala de Jung pelo que o autor nomeia de “regimes de normalização”
(MISKOLCI, 2013, p. 45), pois sua fala repete e naturaliza a norma social que
exclui masculinidades alternativas do meio esportivo, como se as mesmas, de
fato, não pudessem estar presentes no espaço do voleibol.
Chai, único atleta do grupo que se identifica como heterossexual e
escolhido, posteriormente, como capitão do time é apresentado no filme pela
sua participação em um treino de vôlei, quando o mesmo é rechaçado por um
integrante misógino e homofóbico do time, Mann, em um erro de
levantamento. O atleta, nesta cena, é interpelado com a afirmação homofóbica
de que é melhor sair rebolando do que jogar vôlei. Em cena posterior, Chai
afirma que a vinda da treinadora Bee para a equipe pode ensinar algo bom para
o time e novamente é interpelado por Mann: “parece que você quer ser amigo
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184
da ‘sapata’”. No teste para a reformulação da equipe, mais uma vez Chai é
interpelado com adjetivações homofóbicas por Mann e seus amigos, por
compor a mesma equipe que Mona e Jung, que também estão inscritos no
teste. Estas cenas iniciais de Chai mostram como os efeitos da
heteronormatividade, muitas vezes, cerceiam os sujeitos independente de sua
orientação sexual. O atleta, no primeiro momento, apresenta resistência em
fazer parte de uma equipe com sujeitos que performatizam masculinidades não
normativas, mas ao longo do filme tal questão mostra ser superada, em
especial pelos diversos embates com Mona, que se mostra sempre incomodada
com a postura do colega, mas que consegue fazê-lo refletir sobre variados
pontos nas discussões que travam no filme. Problematizamos a mudança de
comportamento de Chai, a partir do que Schlichter (2007) nomeia de
heterossexuais queer: sujeitos que se identificam como heterossexuais e
envolvem-se na crítica e subversão de práticas heteronormativas, em coligação
com gays, lésbicas e pessoas transgêneros, tornando-se afiliados de um projeto
queer. Chai, neste contexto, ao jogar em um time composto por sujeitos que
encenam performatizações queer, assumindo ao longo do filme sua posição de
parceria com os companheiros, engaja-se politicamente não só na luta pela
visibilidade das diferenças de pessoas LGBTs no contexto do esporte, mas na
sociedade como um todo.
Os outros componentes da equipe de Lampang: Nong, Wit e Pia, serão
escolhidos após debandada de Mann e alguns de seus amigos, inicialmente
selecionados no teste por Bee, depois de constatarem que Mona e Jung
também farão parte do time para a disputa do campeonato nacional tailandês.
Mann não admitia fazer parte de um time composto por “bichas”, como ele
mesmo afirma, e abandona o time com outros jogadores. Assim, ao
conversarem com Bee, Mona e Jung tem a ideia de convidar colegas de um extime da faculdade para compor a equipe de Lampang.
O militar do exército Nong é o primeiro a ser convidado, e, na primeira
cena, fica evidente sua performatização de masculinidade queer: alto e forte,
chega a estourar uma bola numa cortada em um jogo de vôlei, ao mesmo
tempo que está com maquiagem no rosto, a unha grande e pintada com esmalte
verde, o cabelo com um desenho de um coração feito à máquina e duas
trancinhas. Em uma de suas primeiras falas, se coloca no feminino “estou toda
machucada”, após ser ovacionado e jogado para o alto pelos outros militares
ao fim do jogo de vôlei. Complementamos que Mona, Jung e Pia também,
assim como Nong, dialogam identificando-se pelo feminino em grande parte
do filme, além de que os termos “bicha”, “drag queen”, “travesti”, “gay” e
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“viado”, enunciações queer que tanto as personagens se nomeiam como as
pessoas se referem a elas (como uma injúria), mostram-se como sinônimos na
película. A performatização queer dos jogadores de voleibol da equipe de
Lampang é a tônica do filme que, em tom de deboche, desestabilizam os
sentidos mais normatizadores e regulatórios do gênero, que se fazem presentes
no esporte, promovendo rupturas.
Para Butler (2015c):
O termo queer emerge como uma interpelação que levanta a
questão do lugar que ocupa a força e a posição, a estabilidade e a
variabilidade dentro da performatividade. O termo “queer” opera
como uma prática linguística com o propósito de envergonhar o
sujeito que nomeia, ou melhor, produz um sujeito através dessa
interpelação humilhante. A palavra “queer” leva sua força
justamente da invocação repetida que ligou o termo à acusação, à
patologização e ao insulto (p.318, tradução nossa8).
Pia, a próxima jogadora a ser convidada para a equipe de Lampang,
apresenta de forma mais explícita a identificação feminina e, por suas falas
iniciais, enfatizando as mudanças que fez em seu corpo, pode ser identificada
como uma pessoa transgênero. A personagem reluta inicialmente em dar
resposta sobre sua participação na equipe de vôlei, já que no momento atual de
sua vida dança em um cabaré, mas no fim aceita. Enfatizamos que, de acordo
com decisão do Comitê Olímpico Internacional9, a partir dos Jogos Olímpicos
de 2016, atletas transgêneros já podem competir no naipe (masculino e
feminino) com o qual se identificam, sem a necessidade de cirurgia de
readequação sexual. Até recentemente, uma pessoa que nasceu biologicamente
homem e que passa a se identificar como mulher, para atuar em uma equipe
esportiva feminina, era obrigada a passar pela terapia de hormonização (para
readequação dos níveis de testosterona), além da cirurgia de
transgenitalização. No contexto do filme, Pia, em momento algum
reinvindicava sua participação em uma equipe feminina de vôlei ou mesmo se
8
“El término queer emerge como uma interpelación que plantea la cuestión del lugar que ocupan
la fuerza y lá oposición, la estabilidade y la variabilidade, dentro de la performatividad. El término
‘queer’ opero como uma práctica lingüística cuyo propósito fue avergonzar al sujeito que nombra
o, antes bien, producir um sujeito a través de esa interpelación humillante. La palavra ‘queer’
adquire su fuerza precisamente de lá invocación repetida que terminó vinculándola com la
acusación, lá patologización y el insulto”.
9
Disponível
em:
https://stillmed.olympic.org/Documents/Commissions_PDFfiles/Medical_commission/201511_ioc_consensus_meeting_on_sex_reassignment_and_hyperandrogenism-en.pdf. Acesso em:
26 de junho de 2016.
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186
mostrava constrangida em jogar torneios masculinos, ficando naturalizado que,
mesmo identificando-se como mulher, sua inserção no esporte continuaria a
ser com homens. Reconhecemos que no período do filme, início dos anos
2000, a luta de pessoas transgêneros por inclusão social visibilidade era bem
mais silenciada que no momento atual. De todo modo, a presença de Pia
compondo uma equipe masculina de voleibol em The Iron Ladies produziu
deslocamentos importantes dentro de um espaço que se reconhece como
reduto de masculinidades normativas, como é o campo do esporte.
[...] certos tipos de identidades de gênero parecem ser meras
falhas do desenvolvimento ou impossibilidades lógicas,
precisamente por não se conformarem às normas da
inteligibilidade cultural. Entretanto, sua persistência e
proliferação criam oportunidades críticas de expor os limites e os
objetivos reguladores desse campo de inteligibilidade e,
consequentemente, de disseminar, nos próprios termos dessa
matriz de inteligibilidade, matrizes rivais e subversivas de
desordem de gênero (BUTLER, 2015a, p.44).
O último jogador convidado a integrar a equipe é Wit, que na primeira
cena de aparição no filme está ficando noivo de uma moça. O futuro atleta da
equipe de Lampang recebe na festa de noivado, além de Pia, a presença de
Jung, Mona e Nong, que nas imagens apresentam performatizações normativas
de masculinidade, possivelmente para não chocar sua família que encontra-se
presente no evento. Os amigos aparecem na festa justamente para lhe fazer o
convite de voltar a jogar voleibol. No decorrer da história, fica mais claro que
Wit performatiza a identificação heterossexual para sua família, possivelmente
por não ter coragem de se assumir como homossexual/bissexual publicamente.
A cena final de Wit apresenta como informação a seguinte frase: “E Wit
finalmente decidiu viver sua própria vida”, enfatizando que o atleta seguiu seu
caminho sem se preocupar com as pressões familiares. Neste sentido, Butler
(2015a) afirma que incoerências das práticas heterossexuais, homossexuais e
bissexuais operam como lugares de intervenção, denúncia e deslocamentos das
repetições mais normativas da sexualidade, colocando em evidência seu
caráter não naturalístico. Wit é mais um atleta da equipe de Lampang que
desestabiliza uma identificação fixa, neste caso de orientação sexual,
transitando entre as identificações hetero-homo-bissexual, mesmo que dentro
de um contexto de pressão da sociedade.
A treinadora Bee ainda completa a equipe com os reservas nomeados
como Abril, Maio e Junho, que também performatizam masculinidades não
normativas ou alternativas. A equipe inicia os treinamentos dirigidos por Bee e
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187
tornam-se logo conhecidos na cidade local, em alguma medida até por certo
escárnio, quando, pelas cenas, se vê as pessoas rindo e debochando das
performatizações de gênero dos atletas, o que parece não ser um problema para
os mesmos. Como afirma Sedgwick (1993) pessoas que se autoidentificam
como queer são aquelas cuja sua subjetividade se coloca contrária tanto à
autoridade do Estado, à lógica do suplemento heterossexual e, principalmente,
à aceitação dos outros.
O primeiro torneio disputado e vencido pela equipe, antes da
participação no campeonato nacional, causou grande repercussão na mídia e
em entrevista concedida à televisão, Bee é interpelada pelo repórter com a
seguinte pergunta: “Mas eles venceram 3 times realmente masculinos. Isso diz
algo sobre seu talento?”. A treinadora responde: “Fisicamente são todos
homens. Não há nenhuma diferença. Mentalmente meus garotos deram tudo
de si em quadra”. Discutimos tal questão, a partir de Anderson (2005), que
aponta o campo do esporte como um local marcado por questões relacionadas
à homofobia e, neste contexto, a homossexualidade é reiterada como sinônimo
de fraqueza e fragilidade emocional entre atletas, fato, justamente, que causa
espanto ao repórter, quando o mesmo afirma que o time de Lampang venceu
times “realmente masculinos”. A situação também se repete em reunião de
treinadores no campeonato nacional, quando Bee ouve dos técnicos: “Não
vamos ser duros com eles”; “Ou eles vão sair todos machucados”; “Por que
não transferem o time para a liga feminina? Assim podem ter a chance de
ganhar”. Anderson (2005) também levanta que a homofobia cultural e
institucionalizada, presente no esporte, possui estreita ligação com a
misoginia. Há neste contexto, para o autor, certo policiamento de
comportamentos tidos como femininos nos atletas, pelo entendimento binário
e hierarquizado de que o que é feminino contrapõe-se ao masculino no esporte.
Entretanto, Anderson reconhece que o coming out de atletas gays de diferentes
modalidades tem sido um ponto de contestação e resistência em relação aos
efeitos gerados pela homofobia e pela misoginia no campo esportivo.
Se a suavização da masculinidade continuar, a forma
conservadora mais antiga da masculinidade talvez se torne
menos sedutora, e o contexto masculinizante do esporte pode ter
que se ajustar para uma nova versão da masculinidade ou
arriscar perder seu efeito sobre a socialização de meninos e
homens na cultura como um todo. Em outras palavras, se tudo
muda em torno do esporte, o esporte terá de mudar ou vai perder
a sua importância social e ser visto como um vestígio de um
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modelo arcaico de masculinidade (ANDERSON, 2005, p.16,
tradução nossa10).
O campeonato nacional masculino tailandês de vôlei, disputado na
cidade de Nakhon Jawam, apresenta a equipe de Lampang vivenciando
diversos desafios em quadra e extra quadra: a primeira rodada com três jogos
disputados no mesmo dia, conflitos que surgem no convívio pessoal com o
decorrer dos jogos, pressão dos dirigentes esportivos com a performatização de
gênero não normativa dos atletas e problemas pessoais e familiares que
ocorrem com Pia (término de relacionamento) e Wit (que o pai exige que saia
da equipe ao descobrir sua orientação sexual).
Conseguindo superar tais questões quadra e extra quadra, ao seguir no
campeonato, uma das cenas mais emblemáticas se dá no jogo de semifinal,
quando a equipe perdia por dois sets a zero e após pedido de tempo de Bee,
Chai permite que todos se maqueiem (o capitão do time havia imposto, após
divergência com a equipe em uma derrota, que o time se “comportaria” mais
nas partidas) ocorrendo assim a virada no placar, com consequente vitória e
ida para a final do campeonato nacional tailandês. Há, nesta cena,
deslocamentos importantes na mudança de pensamento de Chai: o capitão
reflete rapidamente sobre sua tentativa de regulação das masculinidades de
seus companheiros de equipe ao analisar o placar do jogo e constatar que a
imposição da repetição de sentidos normativos do masculino, pela consequente
negação da performatização queer dos integrantes de sua equipe, poderia leválos a derrota. A superação e a ressignificação dessa concepção normativa por
Chai¸ ainda que ocorrida em um momento decisivo do jogo, não foi apenas um
ato de desespero. O capitão do time percebeu que não poderia exigir a fixidez
e estabilidade nas performatizações de gênero de seus colegas de equipe,
situação que perdura em sua relação com os jogadores até as cenas finais do
filme - sobretudo com Mona, de quem ficou amigo e com quem dividiu a
intimidade de sua família nos anos que se seguiram (imagem final das
personagens no filme). Tomando como base Schlichter (2007), Chai
performatizou a identificação heterossexual queer quando se permitiu à
parceria com os companheiros de equipe, desconstruindo assim suas
concepções discriminatórias com pessoas LGBTs.
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“If the softening of masculinity continues, the older conservative form of masculinity may be less
alluring, and the masculinizing context of sport may have to adjust to the new version of
masculinity or risk losing its effect on socializing boys and men in the culture as a whole. In other
words, if everything changes around sport, sport will either have to change or it will lose its social
significance and be viewed as a vestige of an archaic model of masculinity”.
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O jogo final é marcado, inicialmente, pela resistência de um dirigente em
tentar desclassificar a equipe, situação que é contornada, em grande parte, pelo
apoio da torcida com o time, que ovacionada grita “Damas de ferro! Damas de
ferro!”. Desde o início do campeonato, quando o time começou a se destacar e
ter visibilidade, houve um esforço do dirigente da liga tailandesa em prejudicar
a equipe de Lampang, explicitamente pelo incomodo com as performatizações
de gênero subversivas dos atletas. A equipe de voleibol consegue conquistar a
torcida, em parte pelo seu carisma, em parte pela performatização queer, que
naquele contexto, “diverte” a torcida, mas que também promove
ressignificações nos sentidos mais estabilizadores que permeiam o esporte.
Conforme aponta Sedgwick (1993), os efeitos gerados pela performatividade
podem ser tanto hegemônicos como subversivos, reafirmando o caráter
contingente do gênero performativo pelas proposições de Judith Butler,
potencializando assim o imprevisível pelas performatizações queer assumidas
pelos atletas de voleibol.
O ponto final no jogo se dá por um bloqueio em um ataque de Mann.
Esse ponto também representou uma resposta às provocações que Mann fez na
partida inteira e que deu o título do campeonato nacional tailandês às Damas
de Ferro. Os créditos finais do filme mostram cenas reais da equipe de voleibol
tailandesa em jogos e em programas de TV, já que os atletas ficaram famosos
em seu país após toda a visibilidade que tiveram.
FINALIZANDO O JOGO
Nosso olhar sobre o longa-metragem tailandês The Iron Ladies aponta,
principalmente, para deslocamentos de sentidos sobre o masculino no espaço
do esporte, através da performatização queer dos jogadores de voleibol da
equipe do distrito de Lampang, ponto principal da película, que se utilizou do
deboche e da ironia como alavanca para a ruptura. Tal questão permitiu que
desestabilizações dos sentidos mais normatizadores e regulatórios do gênero
masculino, fortemente presentes no esporte, pudessem ser problematizados
pelo enredo do filme.
Todavia, a dificuldade de aceitação das identificações queer dos atletas,
que fogem do masculino normativo, também foi evidenciada na película
através da resistência que o time de voleibol sofreu até se sagrar campeão
tailandês. Repetições nas performatizações dos atletas não estiveram ausentes
em suas encenações, porém acreditamos que, em alguma medida,
estabilizações normativas do masculino, em especial no contexto do esporte,
também foram colocadas em questão e discutidas ao longo do filme.
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The Iron Ladies promoveu deslocamentos importantes nos modos de
reconhecimento e classificação dos sujeitos em esquemas heteronormativos,
potencializando o desvio como uma forma de desconstrução das imposições
sociais. Uma produção cinematográfica queer que não só deu visibilidade aos
sujeitos LGBTs no campo do esporte, como também trouxe resistência aos
modos regulatórios que aprisionam os sujeitos em essencializações e
classificações tidas como sedimentadas.
As masculinidades queer, performatizadas pelos atletas tailandeses de
voleibol, potencializam como incontáveis (para além da pluralidade e
multiplicidade, conforme afirmado anteriormente) as identificações do gênero
e do desejo sexual, assim como qualquer fixidez identitária não contingente,
colocando a heteronormatividade em xeque. A subversão queer das
masculinidades opera como possibilidade teórico-política de contestação das
normatizações e regulações sociais, promovendo abertura para o
questionamento de estabilizações que pairam sobre os sentidos do que é “ser
homem”. Preferimos pensar em “desidentificações” como uma forma radical
de reconhecimento das diferenças de gênero e orientação sexual, que The Iron
Ladies trouxe ao queerizar as masculinidades em um campo tão normativo
como o espaço do esporte através do cinema.
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FILMOGRAFIA
The Iron Ladies. Direção: Youngyooth Thongkonthun. Produção: Visute
Poolvoralaks. Roteiro: Visuthichai Bunyakamjana, Jira Malikul, Youngyooth
Thongkonthun. Tailândia: Tai Entertainment Co. Ltd., 2000. 100 min, son.,
color.,1 DVD.
Recebido em 05/07/2016
Aprovado em 12/09/2016
Textura, v. 18 n.38, set./dez.2016
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