O BOBO LEAR
Leandro Mello Ferreira
Justificação de uma ousadia.
Entre o céu e a terra existem muitas coisas, de fato, mas não uma
interpretação inédita, original, das peças de Shakespeare. Certamente tudo
já foi dito, ainda que algo muito importante se encontre temporariamente
esquecido na imensidão inabarcável dos seus admiradores. Isso vale
mesmo para uma obra como “Rei Lear”, cuja variedade de personagens e
temas é uma de suas características mais diferenciadoras, instigando
interpretações e ênfases as mais variadas, e mesmo díspares, parecendo-me
muitas vezes que estamos, seus leitores, a olhar para um horizonte de
nuvens, cada um apreendendo o que mais lhe apraz da dinâmica dos
elementos.
Em literatura, não há dúvida, o exercício da imaginação é uma de suas
grandes funções pedagógicas, além de um deleite, chegando a reconhecerse como critério positivo de uma obra sua capacidade de despertar a
inteligência do leitor pelo incentivo à busca das suas intenções mais
importantes, dos seus sentidos, mais ou menos disfarçados.
Porém, por mais que existam memoráveis exemplos, como a da traição de
Capitu, é difícil aceitar que um autor ficcionista buscasse justamente criar
um enredo completamente aberto à imaginação dos leitores, equilibrando
as pistas em diversos sentidos. Na verdade, é só porque acreditamos existir
“um” significado subjacente pretendido pelo próprio autor, instigando
nosso espírito de Sherlock Holmes, que nos dedicamos ao estudo
aprofundado de uma obra ou de um aspecto seu - ainda que cientes da
provável frustração, antevendo que ao fim da jornada continuaremos no
humilde reconhecimento de que encontramos apenas nossa própria
interpretação. É natural, pois, a variação entre a euforia de um sentido
descoberto, “o” sentido, e a melancolia de sua relatividade, seu
subjetivismo.
Independentemente disso, se puder ressaltar uma perspectiva sobre “Rei
Lear” que, a despeito de somente esquecida ou mesmo questionável,
desperte no leitor verdadeiro interesse intelectual pela peça, por sua força
formativa e significação histórica, estará plenamente justificado que venha
a público o presente ensaio neste ano de celebração dos quatro séculos da
morte de William Shakespeare.
Pois bem, o “eureka” com a interpretação que ora apresento só veio após
uma sequência de decepções.
A decepção com as primeiras leituras: eu já havia me admirado com outras
peças de Shakespeare; também me era familiar a apreciação geral dos seus
méritos: profundo conhecedor das mais diversas experiências humanas e
seu mais genial retratista – imaginem, então, minha empolgação quando li,
num rápido relance sobre a apresentação do grande tradutor Carlos Alberto
Nunes, estas suas incontidas palavras:
“O Rei Lear é, no consenso geral, a mais estupenda criação de
Shakespeare, apesar de ser tecnicamente defeituosa e, como tal,
inferior às outras grandes tragédias do mesmo autor: Hamlet,
Macbeth e Otelo. A. C. Bradley justifica essa aparente contradição
com observar que, ao concedermos a primazia a essa tragédia, não a
consideramos, a rigor, como uma peça teatral, mas a igualamos às
grandes criações do espírito humano, Prometeu acorrentado, A divina
comédia, e também às grandes sinfonias de Beethoven e às estátuas
da Capela dos Médicis.”
Marcaram-me vivamente nessa primeira leitura os excessos de Lear, que já
me pareciam quase cômicos, mas também seu intenso sofrimento de efeitos
cósmicos, as reflexões e maldades de Edmundo, a defesa da sinceridade por
Cordélia e Kent, a repetição da tragédia em Gloster – tudo muito
interessante. Faltava, contudo, o arrebatamento, aquela admiração
boquiaberta ante o “Davi” de Michelangelo, que mantive a fé de que viria
até a leitura do último verso. Ao final, senti-me enganado como Gloster por
Edgar – a cada cena me imaginava estar escalando o mais alto cume
literário, aguardando ansiosamente para o grande momento, tudo preparado
para minha exclamação triunfante: “genial! Shakespeare é inigualável!”
O que aconteceu, porém, foi justamente o contrário – após a “cura” de Lear
e sua derrota, tudo começou a se desarticular, perder o sentido que parecia
unir progressivamente os acontecimentos até o embaraçoso final. Antes de
fazer esquentar as orelhas de Shakespeare, retornei diversas vezes às
passagens principais, depois fui avidamente à referida apresentação do
Carlos Alberto Nunes, esperando um alento. Em vão: ele via a suprema
perfeição em tudo o que eu não entendia.
Estrategicamente,
“subconsciente”
resolvi
aquelas
ler
“Macbeth”,
inquietações.
Que
deixando
diferença!
no
Tudo,
fértil
em
“Macbeth”, é claro e imediatamente impactante. Os famosos níveis de
interpretação de Dante podiam ser explorados quase concomitantemente ao
ritmo da leitura. O contraste fez-me retornar a “Rei Lear”, não sem antes
me munir da crítica mais consagrada- ela, sem dúvida, não me deixaria ao
relento.
A decepção com a crítica: fiquei feliz ao ver Otto Maria Carpeaux apontar
e aderir ao “consenso” em torno da primazia de “Macbeth” – contrariando
o referido “consenso” do Carlos Alberto Nunes -, pois significava a
possibilidade de minhas dificuldades com “Rei Lear” não serem
exclusividade minha. Entretanto, o que se destacava para o grande crítico
austro-brasileiro em “Rei Lear” não me satisfazia de modo algum: “King
Lear é a peça de dimensões cósmicas, na qual a Natureza inteira começa a
girar em torno da crueldade incompreensível da existência humana.”
1
Northrop Frye, mesmo mostrando as fraquezas de Lear, reiterava sua
“figura gigantesca” 2. Nessa mesma linha Harold Bloom, que via no
desgraçado Rei a manifestação do sentimento do bem e da “grandeza
patriarcal” na luta contra a maldade fria encarnada em Edmundo3.
Nem mesmo uma leitura esotérica quebrou o tom de unanimidade em torno
da admiração a Lear. Pelo contrário, Martim Lings concluiu que Lear, após
passar por um processo iniciático de purgação, atingiu ao final a bemaventurança, cuja visão do outro mundo estaria expressa nas suas
aparentemente despretensiosas últimas interjeições: “Vede, vede, seus
lábios...” 4. Já a historiadora Francis Yates, embora trabalhando também
com as correntes esotéricas à época influentes na Europa, não vê glória
celeste alguma no final de “Rei Lear”, interessando-se mais em encontrar
nessa tragédia um análogo intencional com a ascensão e queda do
“cabalista cristão” John Dee, influente na sociedade elisabetana e
contemporâneo de Shakespeare5.
Renné Girard, como sempre sagaz e muito mais realista, denuncia as
mortes e a guerra como decorrência da vaidade inicial de Lear, que
manipulara perigosamente as filhas, mas, também como frequentemente o
faz, o genial antropólogo peca na insistência em reduzir os demais
acontecimentos à mecânica do contágio mimético6.
1
História da literatura ocidental. 3.ed. Brasília: Senado Federal, 2008, p. 812.
Sobre Shakespeare. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. p. 146.
3
O Cânone Ocidental. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 92.
4
A Arte Sagrada de Shakespeare: o mistério do homem e da obra. São Paulo: Polar,
2004. p. 225.
5
La filosofia oculta em la época isabelina. 2.ed.México: Fondo de Cultura Económica,
2001. p. 267.
6
Shakespeare: Teatro da inveja. São Paulo: É Realizações, 2010. p. 345.
2
Todos esses epítetos em torno de Lear, acompanhadas de minuciosas
análises do texto, me pareceram inspiradores, mas simplesmente não
conseguiam dar à obra, quando observada a dinâmica dos personagens
determinada por seu autor, um sentido, isto é, um nexo que resolvesse ao
menos algumas patentes contradições, como aquela, para ficarmos por ora
num único exemplo, nas palavras de Lear na última cena, quando uma
profunda e colérica dor pela morte da filha é interrompida por uma
nostálgica lembrança de suas habilidades guerreiras.
Voltei ao texto, fazendo um esforço para imaginar o que representava à
época de Shakespeare a posição de um Rei, quase divina, de modo que eu
sentisse alguma simpatia com os atos de Lear, sua revolta contra as filhas,
suas obsessões, sua dor. Assisti, graças à internet, algumas encenações e
filmes, aceitando, sem pudores, a impotência de minha imaginação. Foi-me
bastante valioso conferir essas produções para ter certeza que meu
problema com “Rei Lear” não era um problema com suas traduções (além
da do Carlos Alberto Nunes, aqui utilizada, consultei a do Millôr Fernandes
e excertos da Barbara Eliodoro, bem como sondei o original em Inglês),
porque essas produções ressaltam ainda mais as proporções cósmicas do
sofrimento de Lear, elevam à beatitude o seu reencontro com Cordélia e
apresentam seu final como uma inexplicável tragédia, sem qualquer
questionamento. Enquanto isso, eu, como diria Cordélia: nada! Quanto
mais buscava ver a “grandeza” ou a evolução espiritual nos atos de Lear,
mais sentia violentar o que me vinha do texto, a peça inteira se
desarticulava, pois nenhum dos outros personagens tampouco poderia
unificá-la.
Foi quando resolvi aceitar minhas próprias impressões, anacrônicas e
preconceituosas que fossem, e aprofundá-las. O resultado foi a descoberta
de “o” tal sentido de “Rei Lear”: a implacável vaidade de Lear, o apego
obsessivo a uma autoimagem gloriosa, que, entretanto, não mais se afirma
na realidade dos seus atos, e que o impede de se arrepender de suas faltas.
Antes que você desista de continuar a leitura deste ensaio, carregado que
está da sensação de que foi ludibriado, pois a vaidade de Lear é um lugarcomum - e dos óbvios!, escancarado que está logo na cena inicial, com o
velho exigindo a bajulação das filhas -, deixe-me fazer duas considerações,
que talvez refreie seu impulso, caro leitor: as primeiras frases que escrevi
aqui me inocentam de qualquer acusação de propaganda enganosa, pois ali
abdiquei de qualquer pretensão de originalidade; segunda, creio que a
vaidade de Lear tem de ser explorada com mais atenção do que a habitual,
pois estou convencido, sendo o que pretendo mostrar aqui, que a peça toda
é desenvolvida em torno de sua explicitação e de seus efeitos, estando seus
principais acontecimentos diretamente relacionados com ela, inclusive seu
final.
Assim como se considera “Hamlet” a peça da vingança, “Macbeth” ficaria
bem com o epíteto cobiça e “Medida por medida” poderia ser vista, mais
do que uma sátira do puritanismo sexual, como um maravilhoso elogio ao
perdão – “Rei Lear” é o retrato da vaidade, levada aos mais absurdos
extremos7.
A essa altura, será oportuno esclarecer que a noção de vaidade aqui referida
é bem elástica, englobando tanto a de soberba – que é a fascinação
desmedida pelos próprios méritos, isto é, uma vaidade qualificada pela
realidade das virtudes que, por autoglorificadas, acabam sendo corrompidas
-,
situação bastante pertinente a Lear, admirado pelos melhores
personagens provavelmente em razão do seu histórico de bom Rei; como a
7
Se de fato há essa correspondência entre o plano das obras de Shakespeare e um
sistema de teologia moral, só um grande especialista nos dois assuntos poderia
demonstrar, ultrapassando infinitamente as minhas capacidades e pretensões.
acepção mais moderna de egocentrismo -expressão que, apesar do
anacronismo, bem expressa esse fenômeno percebido e explorado por
Shakespeare: o eu que se absolutiza, seja para se exaltar, adulando-se, seja
para se defender, apiedando-se.
Também merece ser destacado que em nenhum momento pretendo reduzir
a complexidade de temas que compõem “Rei Lear” ao egocentrismo, seria
risível. Quem poderia negar o trabalho de Shakespeare, por exemplo, para
abordar os problemas da senilidade e da loucura? Mas se essas questões
fossem as determinantes da peça, Lear deixaria necessariamente de ser o
personagem principal, passando a tragédia exclusivamente para o lado dos
bons personagens (como Kent e Gloster), os quais, então, imprudentemente
teriam se mantido subservientes a um Rei condenado desde o início à
incapacidade. Enfim, creio que o Bobo bem resolveu como enquadrar a
senilidade e a loucura no sentido geral da peça nesta admoestação a Lear:
“Não devias ter envelhecido antes de ficares sábio.”8Assim, o que
apresento como o sentido unificador da obra é justamente a ausência de
sabedoria em Lear, não no seu aspecto mais superficial sugerido pelo Bobo
(erro em partilhar as posses com as filhas), pois esse é mero efeito da
relutância do Rei em reconhecer suas próprias injustiças e veleidades como
causa dos males que sucedem - sem essa sincera confissão e
arrependimento, de nada adianta clamar aos céus a salvação da loucura.
Seria tedioso transcrever todas as passagens que suscitam minha tese. Se
puder demonstrar sua pertinência nos momentos reconhecidamente cruciais
de “Rei Lear”, qualquer um poderá explorá-la por conta própria numa
completa releitura. Embora analisadas separadamente, estão as passagens
“Bobo: Se tu fosses o meu bobo, tio, eu te daria uma/ sova por teres ficado velho
antes do tempo./Lear: Como assim?/ Bobo: Não devias ter envelhecido antes de
ficares/ sábio./ Lear: Não quero ficar louco, céu bondoso!/ Mantém-me o juízo; tudo
menos louco!” Ato I, Cena V; p. 680.
8
destacadas, obviamente, interligadas, o que alguma vez exigirá repetições.
Seguindo a ordem da peça, analisarei os seguintes momentos: a) a
bajulação como condição para divisão do reino; b) a revolta contra as
filhas; c) a tempestade na Charneca; d) o reencontro de Lear e Cordélia e
suas prisões; e) o drama paralelo de Gloster; f) a cena final; g) valerá,
ainda, sondar as relações de Lear com o Bobo.
Por fim, peço a gentileza dos leitores de me permitirem justificar o título
deste ensaio mais ao final, evitando antecipar em demasia as conclusões
que pretendo sejam vistas emergir da obra-prima de William Shakespeare.
Dividir para aparecer.
Lear organiza um campeonato de bajulação entre as filhas, supostamente
para decidir como dividir seu reino. O paradoxo entre o interesse no prêmio
prometido e a contrapartida esperada pelo cansado pai – a manifestação do
amor delas por ele -, denuncia a falsidade da disputa, pois o amor é, como
nada mais neste mundo, desinteresse ao bem próprio pela dedicação ao
bem de outro. É também a tese de Shakespeare, materializada em Cordélia,
cuja resistência em participar da encenação revela seu pudor pela
sinceridade dos seus sentimentos – pudor no sentido de Max Scheler, isto é,
a proteção de algo tido como valioso da sua banalização.
Também ilustra a farsa o fato de que antes da manifestação de Cordélia já
ser anunciado o resultado: o reino estava programado para ser dividido em
três partes, a melhor para a caçula e preferida, as outras duas, iguais em
“renda, graça e extensão”, para Regane e Goneril. O teatro é montado,
pois, apenas para Lear afagar o seu ego - coerentemente, ele pretende reter,
após abdicar de seus deveres, nada menos que o nome e as dignidades de
Rei, além de um ocioso séquito a sua disposição.
Ante a primeira resistência, Lear insiste com Cordélia, qualquer pequeno
agrado seu será suficiente para manter a querida encenação pública. Mas
nem mesmo a espirituosa justificativa de Cordélia9 é capaz de aplacar a
frustração de Lear – não lhe interessa saber que é amado, ele quer ouvir,
ainda mais diante de tão excelsos convidados, a exaltação de sua pessoa.
Kent, corajosamente, mesmo ameaçado, diz claramente o que vê: “Que
estás fazendo, velho? Acaso pensas/ que o dever tenha medo de falar,/
quando o poder se abaixa até a lisonja?” Contra esse rebaixamento moral
do Rei, não receia em se sacrificar.
Cordélia não tem vergonha de sua sinceridade, com a qual conquistará o
respeito de França, e sabe muito bem o que lhe falta para ser bem quista
pelo pai: “o olhar adulador/ e língua que não ter muito me alegra/muito
embora essa falta seja a causa de me fazer perder vossa amizade”. Nisso
Lear concorda: “Melhor te fora nunca ter nascido,/ do que deixares de
agradar-me agora”. 10
Ante esse triste espetáculo, não é sem razão, pois, que as até então
amorosas Regane e Gorneril já se imaginem prejudicadas em breve pelos
caprichos do velho Lear.
Meu orgulho por um afago.
Cordélia sabia que Lear precisaria de um asilo verdadeiramente amoroso
para recuperar-se, mas que dificilmente o encontraria nas maliciosas irmãs.
“Por que têm maridos/ minhas irmãs, se dizem que vos amam/ sobre todas as coisas?
Se algum dia/ vier a casar, há de seguir o dono/ do meu dever apenas a metade/ de meu
amor, metade dos cuidados/ e das obrigações. Certeza é nunca/ vir a casar-se como as
duas manas./ para amar a meu pai desse modo.” Ato I, Cena I; p. 668.
10
Ato I, Cena I.
9
Contudo, Shakespeare tem bastante cuidado em evitar que elas, ante o
público, absorvam a culpa do que aconteceu, e também do que sucederá, e
o faz de forma magistral, por duas vias. Por um lado, dá-lhes justificativas
(expressadas sempre de forma polida, equilibrada) bastante razoáveis para
seus atos. Por outro, destrói o último resquício de nobreza que Lear
possuía, ainda que deturpado, e que sustinha nossa simpatia com sua dor –
o orgulho Real. Vemos essa postura logo no início, que Lear registra de
forma solene a propósito do pedido do Duque de Burgúndia para que
retomasse a oferta inicial do dote de Cordélia: “Nada, sou firme; fiz um
juramento.”11
Se estivéssemos simulando um exercício jurídico, o que não era de todo
estranho a Lear12, poderíamos fazer a sua defesa perante as filhas
invocando a natureza de condição resolutiva dos encargos impostos aos
beneficiários das suas doações, isto é, as filhas não poderiam restringir o
séquito de cem cavaleiros ou a moradia dele em suas casas sem se
arriscarem a ver seus reinos retornando às mãos de Lear.
Mas nem precisaríamos ir tão longe, pois o respeito que se deve a um Rei,
imaginemos, principalmente um admirado e velho Rei, exige acima das
obrigações jurídicas que se seja fiel às condições que ele estabeleceu, e
foram livremente aceitas, ainda que sejam arbitrárias e inconvenientes como poderia realmente ser desagradável, custosa e perigosa a presença de
cavaleiros ociosos no paço. A palavra do Rei deve prevalecer e, junto com
ele, não podemos fazer qualquer concessão... a não ser que ele mesmo o
faça: ao invés de orgulhosamente exigir o respeito devido ao que
estabelecido, ele passe a implorar de joelhos por compaixão; ao invés de
11
Ato I, Cena I; p. 670.
“Lear: Instituí-vos/minhas depositárias e tutoras,/ reservando-me apenas uma
escolta/desse número.” Ato II, Cena IV; p. 689.
12
ser intransigente nas suas condições(cem cavaleiros), aceite barganhá-las –
como sabemos, é exatamente o que Lear faz!
É verdade que o Rei parece se importar sobretudo com seu orgulho, haja
vista que, após ser instado por Regane que regressasse à casa de Gorneril,
ele reage:
“Jamais, Regane; ela cortou-me o séquito/ de metade dos homens,
dirigiu-me/ olhares carrancudos, alcançando-me/ o coração com a
língua viperina./ Que em sua fronte ingrata caiam todas/ as vinganças
que o céu guardado tenha./ Insuflai-lhe nos ossos jovens, ares/
pestilenciais, humores deformantes!”13
Obviamente que tal desproporção entre as faltas da irmã e as pragas
lançadas não sensibilizam Regane. Ela sabe que os agrados e momices que
Lear agora lhe defere logo passarão a ultrajes, assim que ela falte nesse
jogo de reciprocidade vaidosa – afinal, foi o que aconteceu com Cordélia e
com Gorneril, embora com méritos completamente distintos.
O golpe final na reputação de Lear é a sua venalidade, sendo capaz de
redimir a anteriormente demonizada Gorneril para não ver o número de
seus cavaleiros novamente cortado pela metade:
“Certas criaturas/ boa aparências apresentar conseguem,/ quando
outras em maldade as sobrepujam./ Não sendo as piores, cabem-lhe
elogios./ Contigo ficarei; os teus cinquenta/ o dobro são dos vinte e
cinco dela, e o seu amor tu vales duas vezes.”14
Pior para Lear que ainda tentou justificar suas veleidades, ante o avanço
triunfante das filhas, que aproveitaram seu recuo para abolir de uma vez o
séquito, porque teve de reconhecer que sua exigência era tão digna quanto
o uso que elas faziam de “vestes luxuosas que em matéria de aquecimento
em nada te protegem” – ou seja, meus desejos são superficiais, mas os seus
também...
13
14
Ato II, Cena IV; p. 687.
Ato II, Cena IV; p. 689.
Depois desse show, embora um certo ar cômico nos tenha distraído,
começamos a perceber quem é Lear: não é um Rei poderoso com meros
problemas temperamentais decorrente da senilidade – é um fraco, inseguro
de si, obcecado com sua imagem real sem ser capaz de honrá-la e defendêla. Não só nós, espectadores, descobrimos essa triste mas incontornável
verdade. Ela choca o próprio Lear, mas ele só vê seu sofrimento, se
considera apenas como vítima sem forças próprias para se vingar.
Shakespeare não se esquece, contudo, de nos dar um pouco mais também
de Regane e Goneril, fazendo-as saírem da pose de senhoras polidas e
sensatas - alegadamente, até então, apenas preocupadas com a ordem em
seus lares -, para revelarem, ainda de forma dissimulada, seu desprezo pelo
pai. Primeiro Goneril, a respeito do abandono do velho Lear na tempestade:
“É só dele/ toda a culpa. Privou-se do conforto,/ tendo, assim, de provar da
própria insânia.” Na sequência, Regane ante as preocupações de Gloster
com a integridade do Rei: “Ora, senhor! os teimosos aprendem com os
incômodos/ que a si mesmos procuram.” Pilatos “redivivus” em dose
dupla!
Ai de mim!
É possível ver a descrição da tempestade na Charneca como um símbolo do
poder Real de Lear, a conexão estreita dele, de sua fúria, com a ordem
cósmica. A associação não é arbitrária, pois Shakespeare já havia
preparado o terreno com as preocupações astronômicas de Gloster: “Esses
últimos eclipses do sol e da lua não/ nos anunciam nada bom.”15 A
convincente
refutação
dessa
“ótima
escapatória”
de
nossas
responsabilidades é feita, no entanto, por Edmundo, cuja perfídia já
15
Ato I, Cena II; p. 673.
conhecida quase nos obriga a um julgamento ad hominem: concordamos
com a veracidade de suas palavras, mas as recusamos por provir de sua
pessoa. Shakespeare camuflou o tema central da peça na boca do seu maior
falsário16.
Deve-se ter em conta, ainda, a maior verossimilhança dessas relações
cósmicas para o público londrino de 1600, além das impressões causadas
pelos prováveis efeitos cênicos bem sincronizados com as exclamações.
Seja como for, os efeitos desse jogo conseguem afetar também a nós,
modernos, o suficiente, ao menos, para nos impressionar a retórica de Lear
na Charneca:
“[...] Não vos acuso/ de ingratos, elementos. Nunca um reino/ vos dei,
nem vos chamei sequer de filhos./ Não me deveis nenhuma
obediência./ [...] No entanto, declaro-vos ministros/ servis, pois com
duas filhas perniciosas,/ tratais vossas batalhas de alta origem/
contra uma fronte tão encanecida/ e tão velha como esta. Oh! Que
vergonha!”17
De certa humildade Lear de repente avança para sugerir um complô das
forças naturais contra sua velha fronte – nem uma palavra sobre suas
injustiças com Cordélia e Kent, sua descompostura perante as filhas... Será
que esses erros o afligem? Um pouco mais e já se considera apto a dirigir
os “grandes deuses” em busca dos verdadeiros inimigos, os criminosos de
“Edmundo: Essa é a maravilhosa tolice do mundo:/ quando as coisas não nos corre
bem – muitas/ vezes por culpa de nossos próprios excessos -/ pomos a culpa de nossos
desastres no sol, na lua/ e nas estrelas, como se fôssemos celerados por/ necessidade,
tolos por compulsão celeste, velhacos,/ ladrões e traidores pelo predomínio das
esferas;/ bêbados, mentirosos, adúlteros, pela obediência/ forçosa a influências
planetárias, sendo toda/ nossa ruindade atribuída a influência divina.../ Ótima
escapatória para o homem, esse mestre/ da devassidão, responsabilizar as estrelas por
sua/ natureza de bode. Meu pai se juntou a minha mãe/ sob a cauda do Dragão e minha
natividade se deu sob a Grande Ursa: de onde se segue que eu tenho/ de ser violento e
lascivo. Pelo pé de Deus! Eu teria/ sido o que sou, ainda que a mais virginal estrela do/
firmamento houvesse piscado por ocasião de minha/ bastardização. Edgar...” Ato I,
Cena II; p. 673.
17
Ato III, Cena II; p. 691.
16
todos os tipos cujas atrocidades estão ocultas – por alguma razão,
entretanto, não pode deixar de ressaltar que “quanto a mim, sou mais vítima
de culpa/ do que culpado mesmo. ” Kent, que vira desde o início o caminho
de perdição a que Lear se precipitara, não se impressiona –ao contrário de
nossa habitual reação - com essa versão parcialíssima da trama: “Oh! que
tristeza! Cabeça descoberta!”18
A tempestade na mente de Lear se intensifica, ele se vê às portas da
loucura, pensa em vingança, mas precisa mesmo é se lisonjear: “Ah
Goneril! Regane! Vosso velho/ pai, tão bondoso, que vos dera tudo/ com
franco coração!” Por um momento, porém, sua atenção ao Bobo desperta-o
de si mesmo, finalmente enxergando o drama dos próximos, dos pobres de
seu reino – é-lhe uma revelação:
“Onde quer que estejais, pobres sem roupa,/ que os golpes suportais
desta impiedosa/ tempestade, dizei-me: de que modo/ vossos flancos
mirrados e as cabeças/ desprotegidas, vossos trapos ricos/ em furos e
janelas hão de o corpo/ vos proteger numa estação como esta?/ Oh!
muito pouco me ocupei com isso!/ Cura-te, fausto! Vai sentir o
mesmo/ que os miseráveis sentem, porque possas/ sobre eles derramar
o teu supérfluo/ e os céus mostrar mais justos.”
O momento é grandioso, sem dúvida. É emocionante imaginar o público do
Teatro Globe, que era o palco principal das peças de Shakespeare à época,
em grande parte formada por pessoas pobres e desgraçadas de toda espécie,
vendo sua triste realidade reconhecida de forma tão passional por um Rei.
Creio que boa parte da admiração que até hoje temos por Lear decorre
dessa passagem, influenciando toda nossa compreensão por seus demais
atos, ao ponto de não percebermos a reviravolta, ou melhor, a regressão
imediata de Lear ao seu mundinho de autopiedade.
18
Ato II, Cena II; p. 692.
De fato, após fazer juras de amor aos pobres em geral, surge-lhe à frente o
pobre Tom, um mendigo de carne e osso – sabermos que se tratar de Edgar
é irrelevante aqui. Qual, então, a atitude de Lear? Persiste sua compaixão?
Mais ou menos. Lear reconhece plenamente a pobreza de Tom, mas não
consegue deixar de associá-la bizarramente ao seu infortúnio, obviamente
para recolocar a si próprio no centro das atenções: “Deste às tuas duas
filhas tudo o que tinhas, para ficares desse jeito?” Tom está com frio e
pede alguma caridade. Lear não quer mudar de assunto: “Como! Suas filhas
o trouxeram a isso? Nada te reservaste? Deste tudo?” E se a miséria do
pobre Tom está a milhas desses problemas Reais, como bem reconhece
Kent sem precisar de uma única palavra do coitado para tanto, sugerindo
assim que hajam situações tão ou mais degradantes que a de Lear, pior para
ele: “Morre, traidor! Pois nada poderia/ rebaixar as misérias de tal modo
a natureza,/ senão filhas ingratas.”19
Recebemos um balde de água fria tão impactante com essa terrível
demonstração de egoísmo que somos forçados a invocar o álibi da loucura
– há pouco, Lear estava são quando declamou em favor dos pobres; agora,
não mais sabe o que diz. De certa forma é assim, mas não é uma questão
tecnicamente de sanidade e loucura, mas de abertura para a realidade, dos
outros e sua própria, e fechamento na sua autoimagem.
Não parecia possível, mas Lear consegue ser ainda mais cruel com Gloster,
que, mesmo desfigurado, por ter tido os olhos arrancados brutalmente, lhe
aparece com toda a reverência e se inclina para beijar-lhe a mão. Lear não
perde a chance de mostrar sua etiqueta: “Primeiro deixai que a limpe;
cheira a/ mortalidade.” Tudo bem, foi um mau começo nesse reencontro.
Certamente alguma consideração e pesar por seu antigo e fiel conselheiro
19
Ato III, Cena IV; p. 694.
deverá demonstrar o Rei. Digam-me, caros leitores, o que acham disto:
“Lembro-me perfeitamente de teus olhos./ Estás piscando para mim? Não,
Cupido cego; por/ mais que faças, não chegarei a amar-te. [...]”. Lear,
pois, percebe claramente os ferimentos de Gloster, mas, talvez, não o esteja
reconhecendo, sabe como é, a senilidade, a loucura... Só que Shakespeare após certo suspense em torno da pergunta de Gloster: “Reconheces-me?”,
induzindo-nos a acreditar que a resposta tácita era negativa - não quer
deixar dúvida e faz Lear falar, como poucas vezes, na ordem direta e em
sentido literal: “Sei de sobra quem és. Teu nome é Gloster”.20
A raiz dessa insensibilidade pode ser resumida em uma frase; claro, do
próprio Lear, dirigida ao mutilado Gloster: “Toma meus olhos, se chorar
desejas/ minha infelicidade”. Além do egocentrismo de que já falei
bastante, mas não tudo, parece-me marcante dessa e doutras passagens
semelhantes o tom de humor que ela parece exigir para que não nos
provoque imediata repulsa - humor negro certamente.
Ser desrespeitado pelas filhas deve ser realmente ruim; elevando-se o
drama exponencialmente por se tratar de um bom Rei que lhes doara tudo;
mas será razoável sua completa indiferença ao mal físico horrível de
Gloster?
Parece-me sugestivo demais o contraste das situações para ser casual –
Gloster realmente cego, percebe seu erro perante Edgar, arrepende-se ao
ponto de desesperar-se, mas nunca perde suas preocupações com o Rei;
Lear enxerga tudo claramente, distingue as pessoas e as coisas, mas não vê
nada a não ser sua realeza aviltada. Voltarei a analisar esse paralelo mais
detidamente em breve.
20
Ato IV, Cena VI; p. 708.
Estratagema de autodefesa ainda mais radical, e absurdo, será a abdicação
de Lear de toda a moral, quando anuncia em viva voz que ninguém comete
crimes ou pecados – aliás, declaração surpreendente vinda de um Rei que
se sente profundamente injustiçado. Antes, na Charneca, Lear invocara os
elementos para punir os que praticaram “atrocidades ocultas”, bastando o
adendo, por precaução, de que ele “era mais vítima de culpa/ do que
mesmo culpado”. A situação, agora, mudou muito, uma iminente guerra se
anuncia, morte e destruição que se precipitam diretamente decorrentes de
sua pessoa, de seus atos – essa realidade é muito densa para ser contornada
com os habituais queixumes. Terá de teorizar:
“Nisso poderás/ contemplar a grande imagem da autoridade:/ um
cachorro no desempenho de suas funções é/ obedecido./ Oficial de
justiça desonesto, suspende a mão sangrenta! Por que açoitas/ essa
pobre rameira? Vira contra/ ti próprio essa chibata. Estás ardendo/
de desejos de com ela realizares/ o ato por que a castigas. O
onzeneiro/ põe na forca o ladrão. As faltazinhas se deixam ver nos
furos dos andrajos;/ mas as togas e as peles tudo encobrem. Forra de
ouro o pecado, e a forte lança/ da Justiça se quebra sem feri-lo;/
cobre-o de trapos, e uma simples palha/ vibrada por pigmeu vai
transpassá-lo.”
Se acabasse aqui o discurso, poder-se-ia considerar que Lear está tendo
mais uma epifania do bem - como a que teve na Charneca ante a pobreza de
seus súditos -, denunciando a hipocrisia das convenções sobre os pecados,
os crimes, muito convenientes aos protegidos por togas e ouro que podem
contornar as consequências de suas faltas. Mas se assim fosse, teria de
afirmar uma ordem transcendente de Justiça a partir da qual condenava este
mundo, com o desagradável corolário de sua espada também recair sobre a
cabeça do próprio Lear.
Foi para fugir disso, em verdade, que revelou a tirania da autoridade como
árbitro do certo e do errado. O oficial de justiça que lhe intima, sua
consciência que tanto o perturba, foi desmoralizado. Mais um passo,
absolve todos, em especial si mesmo: “Ninguém comete falta, é o que te
afirmo;/ ninguém. A todos sirvo de fiador./ Podes acreditar-me, amigo;
fala-te/ quem força tem para fechar a boca/ da acusação.” Aquele
“realismo político” não era senão a preparação, como para atenuar o
impacto, de sua impressionante confissão: “Arranja umas lunetas/ e, como
vil político, imagina/ ver as coisas que não vês.”21
No original: “Get thee glass eyes, and like a scurvy politician, seem to see
the things thou dost not.” Encontre um disfarce, você é livre para ver, e se
ver, como quiser! Jamais na literatura ocidental fora tão claramente
demonstrada a relação direta entre o niilismo e as utopias políticas. O
grande mestre da filosofia política no século XX, Eric Voegelin, deve ter
tido em mente essa passagem quando lecionou:
“[...] Então, quem quer que, como estúpido, num lugar da sociedade
em que não poderia estar, dá ordens ou tenta instruir outros, é um
estúpido criminoso, mesmo que ele próprio não entenda assim de
maneira nenhuma.
Existe atualmente toda uma série de estudos sobre essa estupidez
criminosa, e deveis realmente conhecê-los em minúcias. Todo
estudante de Ciência Política deveria lê-los. Um dos mais antigos
estudos clássicos de estupidez criminosa é o Rei Lear, de
Shakespeare. É um excelente estudo.”22
21
Ato IV, Cena VI; p. 708.
Hitler e os Alemães. São Paulo: É Realizações, 2008.p. 143. Foi com muita satisfação
que encontrei essa contundente referência do Eric Voegelin a “Rei Lear” quando
buscava no meu exemplar grifado e surrado a passagem citada mais a frente, já
praticamente concluído este estudo. Muito mais do que essa referência específica, da
qual não me restava lembrança alguma, a preocupação central dos estudos do Voegelin a abertura da alma à realidade como condição fundamental do humano e as
consequências de sua perda -, somada à ênfase do filósofo Olavo de Carvalho na
sinceridade – efetivada por meio da “técnica da confissão”, é a sinceridade o
fundamento da integridade da consciência individual e do conhecimento, e
autoconhecimento, verdadeiro (conferir, “A Filosofia se reconhece: reflexões sobre a
definição da filosofia por Olavo de Carvalho”) -, são sem dúvida as fontes diretas da
interpretação geral que tentei aqui apresentar.
22
Cordélia espera...
Agripino Grieco nos conta como seus amigos se afoitavam, segundo ele em
vão, tentando lhe mostrar a genialidade da “Teoria do Medalhão” de
Machado de Assis: “A ‘Teoria do Medalhão’, ária muito elogiada, para a
qual nos previnem: ‘É agora... preste atenção... ouça direito...’, prende,
mas não é bem o que se espera.”23
Não posso concordar com o ceticismo do famoso polemista quanto a esse
conto, mas entendo o impasse – é mais ou menos o meu ante ao reencontro
de Lear e Cordélia. Diversos indícios atiçam meus sentimentos para um
grande momento de arrependimento, perdão e amor - justamente como
podemos ver nas produções cinematográficas e na habitual visão da crítica
-, que se desiludem na medida em que as frases saem vagarosamente dos
lábios do combalido Lear. O grande momento da cena, belíssimo sem
dúvida – “Nenhuma causa! Não; nenhuma causa!” -, não é dele, mas de
Cordélia, de quem, contudo, já sabíamos o valor, portanto não nos
surpreende.
É verdade que Lear mostra sinais de progresso. Logo que acorda parece
perceber seu labirinto interior: “És uma alma/ da bem-aventurança; eu,
porém, me acho/ a uma roda de fogo sempre atado,/ que minhas próprias
lágrimas escaldam/ como chumbo fundido.” Mas a autopiedade não tarda,
exagerada como sempre: “Oh! Procederam muito mal comigo;/ morrer de
compaixão eu poderia,/ se visse alguém tratado desse modo.”Cordélia
pede-lhe benção e ele inesperadamente se lança a seus pés, porém ainda
sem confessar que a reconhece. Ao final, de forma contida, talvez
profundamente intensa, talvez seca, uma lacônica retratação, acompanhada
23
Machado de Assis. Agripino Grieco. p. 63. 2.ed. Conquista: Rio de Janeiro, 1960.
de nossas conhecidas atenuantes: “Esquecei e perdoai-me, por obséquio.
Estou velho e caduco.”
Suspeito que Shakespeare quisesse mesmo frustrar a expectativa que ele
próprio nos insuflara quanto à derradeira reconciliação de pai e filha, uma
que fizesse jus à potente loquacidade de Lear, deixando no ar, assim, uma
possibilidade não concluída, dispondo o público a aguardar ansiosamente
até o próximo e último Ato - por enquanto Lear se cinge a avisar, a
Cordélia e a nós: “Precisareis comigo ter paciência.”
Transcorre a guerra, Cordélia e Lear são feitos prisioneiros e levados à
presença de Edmundo, agora comandante do exército de suas prometidas
amantes, Regane e Goneril. Surge aqui uma nova oportunidade de Lear
mostrar suas credenciais Reais.
Ao serem enviados à prisão por Edmundo, Cordélia, preocupada
principalmente com o pai, interpela legitimamente pela presença das irmãs
- estratégia bastante razoável considerando não serem quaisquer
prisioneiros, sendo mesmo surpreendente que providência semelhante fosse
determinada por um insignificante súdito, como virá a ressaltar Albânia24.
Por outro lado, nós leitores sabíamos da intenção desse de “dar-lhes
tratamento conforme o próprio mérito o exigir”, haja vista que receava
terem o Rei e seus defensores se rebelado “por motivos mui justos e de
peso”25.Teria sido uma boa oportunidade, portanto, para Lear mostrar sua
nobreza, resistindo espalhafatosamente com seus discursos blasfemos,
exigindo a presença dos seus, retribuindo a generosidade da filha
oferecendo-se em sacrifício, suplicando pela libertação dela, etc.
“Albânia: [...] Tendes os prisioneiros que adversários/ nossos foram na luta deste
dia./ De vós os requeremos, para dar-lhes/ tratamento conforme o próprio mérito/ o
exigir e, assim, nossa segurança.” Ato V, Cena III; p. 714. “Albânia: Não vos
desagrade, senhor, mas nesta guerra considero-vos súdito, não irmão.” Ato V, Cena
III, p. 715.
25
Ato V, Cena I; p. 712.
24
Todavia, Lear é vítima de uma inusitada crise possessiva – “Não, não, não,
não! Levai-nos para o cárcere” -; tudo o que deseja, agora, é ter junto a si
sua querida filha, seja onde for, mesmo na prisão – “nós dois, sozinhos,
cantaremos como/ pássaros na gaiola” -, onde poderiam ter sublimes
momentos de devoção e contemplação de variegadas borboletas, além de se
entreterem com as fofocas mais quentes do palácio real. Num primeiro
momento pensamos que Lear, enfim!, percebeu a superficialidade das
dignidades Reais por que tanto lutou e sofreu, renegando-as em benefício
de uma vida simples mas cheia de sentido, de amor verdadeiro com sua
filha desde sempre preferida. Talvez, para um velho mais pra lá do que pra
cá não fosse tão ruim passar seus dias restantes nessas condições - mas e
para Cordélia, bela, jovem e bem casada, que tal essa perspectiva de
longíssimo prazo? As lágrimas dela são uma eloquente resposta.
Lear busca consolá-la, mas só consegue elevar-se ao cume da estupidez:
“Sobre um sacrifício destes,/ minha boa Cordélia, os próprios deuses/
jogam incenso.” Não há sacrifício algum! Cordélia está sendo arrastada ao
calabouço - por ordem de Edmundo, é verdade, porém com a pronta
colaboração de Lear! Nenhuma hesitação do Rei em trazê-la consigo, nem
uma gota daquele ímpeto de autosacrifício paternal que a Graça distribuí
em quase todos os lares. Retoma a virilidade, só para escoltá-la: “Tenho-te
bem presa?/ Quem quiser separar-nos há de um facho/ trazer do céu, para
tocar-nos, como/ a raposas.”26
Não compreendo como pode essa passagem ter sido tantas vezes incensada
- não pelos deuses, claro, mas pela crítica – sob a ideia de que se
manifestara finalmente o amor de Lear. Causa-me muito maior admiração
quando a concebo como o retrato de mais um aspecto do fenômeno
egocêntrico, que é a ânsia pela posse de alguém, ou coisa, ainda que isso
26
Ato V, Cena III; p. 714.
lhe cause mal. No caso, Lear somente abandona sua cruzada pela
integridade de sua autoimagem Real para se agarrar em Cordélia, tê-la à
disposição de seus interesses. Segundo me parece, Shakespeare mostra que
Lear, mesmo recuperado da “loucura”, não conseguiu ainda desatar-se da
sua “roda de fogo”, quebrando a expectativa do público em torno do seu
progresso contínuo. Mas ainda não acabou, talvez, na última hora...
Tarde demais.
“Uivai, Uivai, Uivai! Sois empedrados!” Lear está furioso com a
indiferença dos personagens ante o corpo morto de Cordélia. Para ele, são
“traidores todos! [...] assassinos.” Quem são esses monstros ali presentes?
Kent (Caius), Albânia – logo aqueles cuja nobreza se afirmara por toda
peça! - e alguns oficiais alheios ao drama. Esse despropósito só se
justificaria pela loucura – mas se a há, não é total, pois Lear sabe a verdade:
“Poderia [ele, Lear] tê-la salvo, mas foi-se para sempre.” Definitivamente,
não estamos vendo um louco, mas a luta final entre o delírio voluntário, o
mergulho no mundo em que os outros são sempre os culpados, seu ego é a
medida de todas as coisas, e a dolorosa sanidade da consciência moral.
Vimos que até Edmundo tivera seu momento de sincero arrependimento27 –
é agora ou nunca, Lear!
A autoconfiança do Rei oscila: “[...] Foi-se/ para sempre! Conheço muito
bem/ quando alguém está morto ou quando vive./ Morta está como terra.
Ide buscar-me um espelho.” Uma esperança - real ou imaginária, não
importa – “a pluma está a mexer! Ela está viva!”! Que faz ele, agradece
aos céus, pede ajuda, faz-lhe juras, ou simplesmente sorri de alegria como
“Edmundo: A vida já me foge, mas quisera fazer ainda algum bem, embora contra
minha própria feição. Mandai depressa, bem depressa, ao castelo. Meu escrito ameaça
a vida de Cordélia e Lear. Não percais tempo.” Ato V, Cena III; p. 718.
27
Gloster? Nada disso, “habemos ego”: “Oh! Se for assim mesmo, é uma
ventura/ que recompensa todos os pesares/ por que tenho passado.”
Talvez, um sussurro?! Emociona-se com a lembrança da doce voz de sua
princesa, ali, morta... De repente, está a falar de seus feitos da mocidade:
“Já houve tempo/ em que com minha espada de bom gume/ os fazia
dançar. Ora estou velho/ e estes trabalhos todos me deprimem.” Não podia
faltar sua comiseração habitual. Conversa desembaraçadamente com Kent,
que lhe revela o disfarce e, depois, precisa retomar o luto já esquecido pelo
Rei: “Ninguém é bem-vindo./ Tudo é sem alegria, escuro e morto.” Mas
não há mais tempo, o Rei se entrega à ilusão, “já não sabe o que diz”, vê
Albânia, e morre fazendo-se de desentendido: “Por que causa terá vida um
cavalo, um cão, um rato, e tu, fôlego algum?”
Que causa?!
O sorriso de Glouster.
Se fosse o caso de apontar um único aspecto de “Rei Lear” para o qual os
críticos têm sido displicentes além de qualquer medida razoável,
certamente escolheria o drama de Gloster:
Primeiro, porque quase tudo o que se diz a esse respeito se resume a indicar
sua similitude com o drama principal de Lear: ambos são traídos pelos
filhos. A explicação para esse paralelo seria a intenção de Shakespeare de
reforçar o tema da peça, dar-lhe verossimilhança, mostrando se tratar de
situação mais comum do que normalmente se imagina, pois a Fortuna não
distingue entre Reis e plebeus;
Em
segundo
lugar,
uma
maior
atenção
às
peculiaridades
dos
acontecimentos em torno de Gloster deve ser feita independentemente da
interpretação global que se dê a “Rei Lear”, não importando, pois, se se a
considera como uma tragédia ou comédia, se Lear é um monumento ou
monstro. Entretanto, pretendo mostrar que as diferenças patentes entre os
itinerários percorridos por Lear e Gloster são percebidas com maior nitidez
quando apreciadas à luz da tese aqui esboçada.
Diferentemente do entendimento consagrado, pois, considero que o
denominador comum relevante das sagas de Lear e Gloster não está na
traição filial, pois aquele se fez de tonto para acreditar nas forçadas
declamações de Regane e Gorneril, enquanto Gloster foi enganado a sua
completa revelia por Edmundo, sendo culpado, nisso, somente de excessiva
ingenuidade28– aliás, transmitida geneticamente a Edgar; Lear, por seu
lado, é sumamente injusto com Cordélia e Kent, sem atenuantes, sendo
essas atitudes a causa de todos os males que se sucederam. Podemos
afirmar sem pudor: ao contrário de Gloster, o Rei é muito mais culpado do
que vítima.
Em verdade, o grande ponto de contato entre esses personagens é
justamente o sentimento de culpa, reagindo cada qual, no entanto, e isso é
fundamental, em sentidos opostos: o escotoma moral em Lear; o
arrependimento profundo em Gloster. Tão logo Gloster descobre a trama de
seu filho bastardo, brada: “Oh! Que tolo que fui! Então Edgar foi
caluniado! Deuses bons, perdoai-me.”29 O arrependimento é imediato.
Arrancaram-lhe os olhos, mas isso não é o que o consome: “Oh meu
querido/ filho Edgar, alimento da iludida/ cólera de teu pai, se eu tiver
vida/ para te ver ainda, pelo tato,/ direi que achei os olhos.”30. Seu pesar é
É o diagnóstico de Edmundo: “Um pai simplório e um mano em tudo nobre/ que, pela
própria condição, tão longe/ se acha de qualquer mal, que nem suspeitas/ sobre isso
pode ter e em cuja tola/ probidade montar vai facilmente/ minha velhacaria. A coisa é
clara;/ terras vou ter, ganhando-as com finura;/ falhando o berço, o espírito as
segura.” Ato I, Cena II; p. 674.
29
Ato III, Cena II; p. 699.
30
Ato IV, Cena I; p. 700.
28
exclusivamente por Edgar, e tão sincero que buscará o suicídio no
penhasco. Já Lear, fugindo incessantemente de suas culpas, atormentado
por sua consciência moral – bem, é a minha tese -, passa toda a estória
externando seu sofrimento, sentindo muita pena de si mesmo, conseguindo,
quando muito, balbuciar parcas retratações.
Esse contraste me fez lembrar de uma imagem magistral que abre “A
Presença Total” de Louis Lavelle, que talvez possa iluminar mais uma
peça do quebra-cabeça “Rei Lear”:
“[Em épocas conturbadas a] consciência busca uma amarga fruição
nestes estados violentos e dolorosos, onde o amor-próprio está bem
vivo, que pelo próprio impulso que imprimem ao corpo e à
imaginação, nos dão, por fim, a ilusão de termos penetrado na raiz
mesma do real. Não é senão aparentemente que se aspira a sair do
seu cativeiro; temer-se-ia antes que não fossem suficientemente
agudos, como um punção cujo movimento se quedasse incompleto.”31
Nessa linha, o sofrimento que Lear nos informa tantas vezes, o qual
ninguém nega certo fundamento, é, de algum modo, calculado, está dentro
do limite que ele pode aceitar, um meio subterfúgio à confrontação da
verdadeira dor que lhe adviria, cuja antevisão já se insinua insuportável,da
assunção completa de suas responsabilidades. Gloster mesmo não
conseguiria superar tal desgosto de si senão com a intervenção amorosa de
Edgar.
Pois bem, no caminho que cada um seguiu a partir do “erro comum”,
conforme as circunstâncias próprias, distintas, e as respostas morais
livremente seguidas, forjaram-se os modos como cada um iria se despedir
de sua prole querida e do mundo, marcando-lhes o destino final.
31
Segui a tradução de Américo Pereira, que não faz muito estava disponível no site
www.lusosofia.net.
Mostrei anteriormente que mesmo com o corpo de Cordélia em seus braços
Lear não se desapega de seu ego, embora pareça tentar reagir, morrendo
desgraçadamente indigno da filha e da realeza que tanto amava. No caso da
morte de Gloster, só ficamos sabendo de como se passou pela posterior
narração de Edgar:
“Tratando delas, meu senhor, apenas./ Ouvi uma história curta, e
logo que ela/ tiver sido contada, oh! Que me estale/ de dor o coração.
Da sanguinária/ proclamação porque escapar pudesse,/ que tão de
perto os passos me seguia - / Oh doçura da vida, que nos fazes/
preferir morrer de hora em hora as dores/ da morte a de uma vez
morrer de todo! -/ precisei disfarçar-me com os andrajos/ de um
demente, assumindo uma aparência/ que até mesmo os cachorros
repelia./ Com essas vestes fui achar meu pai,/ cujos anéis sangrentos
as preciosas/ pedras tinham perdido. Transformei-me/ em seu guia,
pedi para ele esmola,/ por toda parte o conduzi, salvei-o/ do
desespero, sem que nunca – oh falta!/ lhe houvesse revelado que eu
era,/ senão há cerca de meia hora, quando/ já me encontrava armado.
Não me achando/ seguro de vencer, pedi-lhe a benção/ e minha
peregrinação contei-lhe,/ do começo até ao fim. Mas seu rachado/
coração, ah! Muito fraco porque a luta/ pudesse suportar dos dois
extremos/ da paixão, alegria e sofrimento,/ sorrindo arrebentou.”32
Podem ter sido as mais diversas as razões para Shakespeare não representar
no palco essa duplamente emocionante revelação e despedida, inclusive a
economia de tempo, embora certamente não seja para ressaltar a agonia de
Edmundo, como sugere Harold Bloom – crítico tão exageradamente
aficionado na maldade do bastardo que se esquece até de sua tentativa de
redenção: “quisera fazer ainda algum bem”. Contudo, vejam vocês que não
faria sentido Edgar fazer todo o relato de sua trajetória se não fosse para
nos contar justamente aquele seu momento derradeiro com o pai – ora, tudo
o mais já sabíamos!; e Albânia poderia ser informado longe de nossas
vistas sem problema algum para o enredo. Justifica-se conjecturar, pois,
sobre a importância desse relato para a peça. É claro, de algum modo teria
32
Ato V, Cena III; p. 717.
de nos ser dada informações sobre Gloster, sendo já suficientemente
estranho o desaparecimento do Bobo, mas não seria Shakespeare se fosse
dada de qualquer maneira – e, como já está claro, não hesito mais em
reconhecer um Shakespeare inspiradíssimo em “Rei Lear”!
De fato, parece-me ter ele encontrado um maravilhoso equilíbrio: por um
lado, evitou que o final verdadeiramente redentor de Gloster gerasse um
clímax fora de hora, ofuscando a história principal; por outro, reforçou no
público a expectativa dessa emoção referente a Lear, servindo de superfície
de contraste para a decepção fúnebre que se seguiria.
De fato, as breves palavras de Edgar são suficientes para nos emocionar,
rememorando-nos o sofrimento físico de Gloster, seus momentos de
arrependimento sufocante e fraqueza, desgraças suplantadas pela boa nova:
o filho injustiçado estava vivo e o perdoara, tudo e apenas o que precisava
para morrer com o coração sorrindo.
O bobo Lear.
As declarações de Lear são normalmente interpretadas num tom grave,
sério, às vezes sombrio, como que o ressoar de trovões que prendessem
nossa atenção por admiração e medo. Esse tom está presente, sem dúvida,
quando ele pragueja suas filhas, o cosmo e o destino. Porém, isso não
permite que se impute a “Rei Lear” uma monocórdia tenebrosa que, além
de contribuir para o olvido de todas as nuances psicológicas e morais acima
apresentadas, é incompatível com outros elementos expressivos que
claramente contemporizam a seriedade de Lear naqueles momentos.
Bastante significativas são as contradições performáticas em que incorre
Lear. Já me referi acima (i) ao momento em que Lear, tendo
expansivamente praguejado Gorneril, aceita retornar a sua casa em razão da
proposta de nova redução do seu séquito por Regane, quem, ademais, passa
a ser ultrajada pouco depois de Lear garantir-lhe que “jamais terás minha
maldição”; (ii) a profundidade da declamação arrependida de Lear para os
pobres do reino e o imediato retorno da obsessão por seus problemas ante o
pobre Tom; (iii) mesmo no Ato final - quando a filha jazia falecida em seus
braços - as oscilações escandalosas de Lear não desapareceram.
Essas mudanças abruptas, estereotipando a discrepância entre a imagem
grandiosa que Lear tem de si e a sua pequenez moral efetiva, são
verdadeiras autodenúncias, porém dentro da sua linha semiconsciente, ou
consciente em negação, cuja comicidade é patente, só não descarrilando em
hilaridade porque sentimos também tristeza pela realeza que Lear vai
abandonando - é como se diz, “seria cômico se não fosse trágico”.
Não é fortuita, portanto, a relação harmoniosa de Lear com o Bobo. Lear
diversas vezes participa de bom grado e até estimula o Bobo em suas
enigmáticas piadas. Além disso, é Lear quem inicia diversas “brincadeiras”
com outros personagens, como o “julgamento” fantasiosamente montado
das filhas33, o diálogo em rápidas tiradas com Kent34 e a já referida péssima
piada com as mutilações sofridas por Gloster. Isso mostra que Lear não era
alguém absolutamente impenetrável ao humor, pelo contrário, depende dele
para manter alguma empatia, para não ser logo julgado como um perverso.
São significativas as participações do Bobo nas Cenas IV e V do Ato I,
logo na sua primeira aparição, oportunidade em que afirma ser o Rei um
bobo, o “bobo amargo” que dá a si mesmo maus conselhos. Depois, ao
desaparecimento inexplicado do Bobo da peça se segue a entrada em cena
de Lear fantasiado, manejando impropérios e tiradas incompreensíveis.
33
34
Ato III, Cena VI; p. 697.
Ato II, Cena IV; p. 685.
Lear parece assumir o papel de bobo justamente quando a gravidade dos
acontecimentos atinge seu auge com o conflito armado.
Em “Jacob e o Anjo”, o grande romancista, poeta, dramaturgo e crítico
literário português José Régio nos apresenta um bobo que é inegavelmente
a manifestação da consciência cristã no seio da pervertida burocracia real –
sobretudo admoestando o Rei de suas fraquezas e abusos35. Aproveitando a
sugestão de quem entende do assunto, ademais ante o que já expresso
textualmente por Shakespeare, é possível com bastante proveito considerar
que também o Bobo de “Rei Lear” era parte da consciência de Lear, a mais
sã dela, aquela que definhara “desde que a minha jovem senhora/ partiu
para a França”36 e que tanto criticava satiricamente sua cegueira perante as
filhas - tudo isso, claro, misturado entre enigmas e piadas. No momento
máximo da crise mental, é como se Lear, livrando-se do Bobo, buscasse se
esconder no “bobo amargo” para poder virar completamente as costas à
realidade.
A consciência-Bobo de Shakespeare é, em comparação à de Régio, tanto
mais confusa quanto mais próxima de seu funcionamento “natural”, porque
de fato nossa consciência moral está ancorada no tênue eixo de nossas
experiências verdadeiras, em torno do qual giram um mundo de
Irresistível ao menos uma breve citação: “Bobo (devagar, imóvel, num tom cuja
calma contrasta com a intensidade de algumas expressões): Num momento se pode
transpor imensas distâncias, Rei, quando esse momento vem preparado... Também eu te
garanto que também tu não tens muito tempo diante de ti. Mas numa hora, num minuto,
num segundo, podes andar mais que em toda a vida. Até esse instante, a minha obra
está no começo: Tudo pode ser deitado a perder... O teu sofrimento é de barro... não
presta! O que em ti sofre é o teu orgulho, a tua vaidade, a tua dignidade, a tua
futilidade, a tua humanidade mesquinha. O que te dilacera é a opinião do mundo.
Respeitas a sua vileza e temes os seus juízos. Os apelos que ainda ouves são os do teu
sacerdote prostituído ao poder da Terra; os do general que te entregou; os do teu juiz
conivente cora os crimes rendosos; os do teu poeta babado em sons ocos. Ora isto
quando a Glória te chama, rei dos cegos! Como queres que eu esteja satisfeito?” Obra
Completa: Teatro I. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. pp. 175-76.
36
Ato I, Cena IV; p. 675.
35
associações fortuitas, desejos, temores e esquecimentos; depende, portanto,
de um contínuo e árduo esforço de confissão dessas verdades, muitas vezes
comprometedoras, a eficiência da consciência para orientar a vida de cada
qual – como diz o Bobo, “a verdade é um cachorro que se mete na casinha
e precisa ser chibateado para sair”. A plena lucidez do Bobo de “Jacob e o
Anjo” se justifica porque nele está retratado o próprio Cristo37.
Assim, quando Lear abdica da realidade, das responsabilidades por seus
atos, a consciência-Bobo desaparece, restando ao “bobo amargo” somente
o gracejo, associado inicialmente à loucura; passado o estardalhaço, a
sanidade retorna, mas o cômico estereótipo permanece, disfarçando o
endurecimento de Lear em seu autoengano.
Em inglês “fool” preserva melhor o sentido de tolo, enquanto em português
bobo se associa diretamente com abobalhado. Por sua vez, Eric Voegelin
nos ensinou como identificar com precisão o tolo encenado por Lear:
“Esse fenômeno sempre foi reconhecido nas civilizações antigas. O
tolo [fool], o nabal, em hebraico, que por causa de sua tolice, nebala,
cria desordem na sociedade, é o homem que não é um crente, nos
termos israelitas da revelação. O amathes, o homem irracionalmente
ignorante, é para Platão o homem que simplesmente não tem a
autoridade da razão ou que não pode curvar-se a ela. O stultus para
Tomás é o tolo, no mesmo sentido da amathia de Platão e do nebala
dos profetas israelitas. Este stultus agora sofreu a perda da realidade
e age com base numa imagem defeituosa da realidade e, assim, cria a
desordem.38[...]”
Foi a impressionante consonância entre a ambiguidade semântica de
bobo/“fool”e a oscilante caracterização na peça de um Lear abobalhado e
de um Lear tolo que sugeriu o título deste ensaio.
“Bobo – Bem sabes que a tua vida sou eu, rei dos cegos!” Obra Completa: Teatro I.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 196.
38
Hitler e os Alemães. São Paulo: É Realizações, 2008.p. 121
37
Enfim, fim.
O egocentrismo de Lear revela nuances ainda mais dramáticas dessa
festejada obra porque permite ver a dinâmica conflituosa da consciência
moral de Lear e suas relações com o desenrolar da tragédia, muito diferente
do simples rótulo da loucura ou da senilidade que o absolve
antecipadamente, ou da magnanimidade Real que tudo atenua e justifica.
A exposição pública da soberba do Rei possui ainda adequação com a
situação histórica retratada em “Rei Lear”, como nos ensina Johan
Huizinga:
“A soberba é o pecado da era feudal e hierárquica, em que
propriedade e riqueza eram pouco móveis. O poder não está
incondicionalmente ligado à riqueza: o poder é mais pessoal e, para
ser reconhecido, deve se manifestar em grandes demonstrações, em
séquitos numerosos, em aparato. A sensação de superioridade é
alimentada continuamente no pensamento feudal e hierárquico por
formas vívidas: vênias e homenagens, juras de fidelidade e pompa
impostada, que, juntas, dão a ver a preeminência como alguma coisa
de real e justificada.
A soberba é um pecado simbólico e teológico, que está na raiz das
concepções de vida e mundo. A soberba era a origem de todo o mal; a
soberba de Lúcifer fora o começo e a causa de sua perdição. Assim
pensara Santo Agostinho, e todos os que o sucederam: a soberba é a
fonte de todos os pecados, eles brotam dela como a raiz e o tronco.”39
Sabe-se muito bem, hoje, que o talento inigualável de Shakespeare não
estava na composição do enredo de suas peças - que quase sempre era
aproveitado de histórias previamente existentes, algumas inclusive já
trabalhadas teatralmente -, mas na minuciosa caracterização da linguagem
dos personagens, vultosa criação de expressões, neologismos, e,
principalmente, a inserção de oportunidades de introspecção no palco,
cujos exemplos mais famosos são os solilóquios de Hamlet, passando seus
39
O Outono da Idade Média: estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos
séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. Editora Cosacnaify. p 38.
personagens a explicitarem vivamente os conflitos que marcam a
consciência humana40. Nesse sentido, Shakespeare aprofundou aquele
desenvolvimento cultural que Bruno Snell apresenta em “A descoberta do
espírito”, no qual se mostra que certo automatismo de ações e reações dos
personagens típicos dos mitos gregos mais antigos - onde mesmo as
reviravoltas se justificavam pelas intervenções dos deuses – cede aos
poucos à tomada de consciência da liberdade humana e da consequente
responsabilidade por nossas condutas.
Na linha do que aqui defendido, Lear não sofreu em vão, pelo contrário,
estrelou peça com papel de relevo nessa revolução literária em que o drama
da consciência moral do indivíduo passa a primeiro plano. Revolução
“A sensação de interiorização que Shakespeare cria nos permite ouvir um
personagem tão inteligente quanto Hamlet lutar contra seus pensamentos, e é algo que
nenhum dramaturgo jamais conseguira até então. Ele escrevera solilóquios desde o
começo de sua carreira, mas, por mais poderosos que fossem, não chegavam perto da
intensa percepção de si mesmo que encontramos nos de Hamlet.” (p. 329). Por essas e
muitas outras lições merece toda atenção o sensacional estudo de James Shapiro. 1599:
Um ano na vida de William Shakespeare. Editora Planeta do Brasil: São Paulo, 2010. O
período de transição cultural em que se insere a inovação shakespeariana é ressaltado
por Otto Maria Carpeaux: “As modificações são tão profundas quanto intensas:
concentração da técnica dramatúrgica em torno de assuntos da violência mais crassa,
escurecimento da atmosfera, pessimismo cínico, abalo dos standards morais. O mundo
de Marlowe e Chapman e das comédias renascentistas de Shakespeare já está longe.
Mas o próprio Shakespeare pertence, pela segunda metade de sua carreira literária, ao
teatro jacobeu: Macbethe Antony and Cleopatra, Measure for Measure e Timon, são
peças das mais poderosas do novo estilo; as últimas comédias fantásticas de
Shakespeare nasceram mesmo sob a influência dos dramaturgos jacobeus Beaumont e
Fletcher. O que antigamente se considerava como mudança psicológica no indivíduo
Shakespeare é na verdade um dos sintomas da modificação radical do teatro inglês, em
transição para a época jacobeia. Alegou-se a impressão penosa do caso de Essex em
1601. Em vez do fato político prefere-se agora salientar o fato social: de 1600 é a
primeira “Poor Law”, medida brutal contra o chômage, consequência da inflação e
outros distúrbios econômicos. A estrutura social da Inglaterra elisabetana, a
comunidade nacional da “Merry Old England”, abala-se. O teatro jacobeu é um
fenômeno de dissociação: de separação entre política e povo, espírito aristocrático e
espírito popular, cuja unidade constituíra o espírito elisabetano. A separação não é
completa: isto acontecerá somente mais tarde, na época da revolução puritana contra a
monarquia aristocrática do Stuarts. Por enquanto, continua uma síntese precária,
convivência de aristocratismo e grosseria, romantismo e obscenidade, dentro das
mesmas obras, dos mesmos autores: uma antítese típica do Barroco.” História da
literatura ocidental. Vol. II. p. 826.
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literária com fundamento in re, porque está claro que Shakespeare
denuncia, desde o cume da vida cristã, os subterfúgios mentais que em sua
sociedade eram comumente empregados para fuga dessa confrontação
interior – nada muito diferente dos que hoje ainda vemos a todo tempo.
Paulatinamente, Shakespeare abandona a função catártica das encenações,
que Aristóteles já indicara, e passa a exigir mais do seu público, a
participação reflexiva no drama vivenciado pelo personagem – o que não
prejudica, obviamente, a capacidade recreativa da obra, o grande interesse
da maioria, pois tudo depende da disposição de cada espectador em se
aprofundar nessa experiência, discernindo e mantendo na memória a
vaidade de Lear para saber reconhecer em si as próprias faltas e
autoenganos.
Nesse sentido, pois, “Rei Lear”, juntamente com outras peças41 de
Shakespeare, não mais seria uma “tragédia”, como costuma ser
classificada, mas propriamente um “romance”, a narração da luta moral do
indivíduo num mundo, como diria Lavelle, de obstáculos e instrumentos de
realização – o gênero que, pari passu com o aprofundamento da
importância da individualidade em diversas esferas, dominaria a literatura
do Ocidente a partir de então.
De forma magistral, René Girard mostra como “A Tempestade” é a declaração pública
de Shakespeare sobre o esgotamento das formas clássicas da “tragédia”, incompatíveis
com o nível de discernimento e moralidade exigidos por uma cultura cristã. Conferir o
último capítulo da já referida obra Shakespeare: Teatro da inveja.
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