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Roda da Fortuna
Revista Eletrônica sobre Antiguidade e Medievo
Electronic Journal about Antiquity and Middle Ages
Reche Ontillera, Alberto; Souza, Guilherme Queiroz de; Vianna, Luciano José (Eds.).
Anna Beatriz Esser dos Santos1
Representações do Clero em Os Contos da Cantuária
Representations of the Clergy in the Canterbury Tales
Resumo:
Os Contos da Cantuária de Geoffrey Chaucer foram um marco para a Língua
Inglesa, pois têm o objetivo de ser um extrato da vida dessa sociedade do final
do século XIV. A partir deste, serão verificadas as transformações sociais
ocorridas no período e como os ideais cristãos foram articulados pelo autor da
obra. Deste modo, será analisado o discurso dos narradores em O Conto do
Frade, O Conto do Beleguim, O prólogo do Vendedor de Indulgências e O Conto do
Criado do Cônego, no que diz respeito à atuação do clero e seu espaço na
sociedade medieval e em como a historiografia aborda os valores de conduta
presentes nesses Contos, comparando-os com a crítica social presente em
Chaucer.
Palavras-Chave:
Inglaterra; Idade Média; Chaucer.
Abstract:
The Canterbury Tales written by Geoffrey Chaucer are considered a milestone
for the English Language; they have the goal of being an extract of this
society’s life in the late fourteenth century. We will verify the social changes
and how the Christian ideals were articulated by the author. We will analyze
the speech of the narrators in The Friar’s Tale, The Summoner’s Tale, The
Pardoner’s Prologue and The Canon’s Yeoman regarding to the role of clergy and
their place in medieval society and how the values of conduct are discusses in
these tales comparing them with the social critique presented in Chaucer’s
work.
Keywords:
England; Middle Ages; Chaucer.
1
Graduanda em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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Santos, Anna Beatriz Esser dos.
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1. Introdução
O presente trabalho pretende analisar como as relações de poder e o
discurso permeiam a fonte por nós trabalhada, tentando perceber como a
Igreja como instituição estava presente nas relações discursivas. Assim, iremos
estudar alguns dos Contos da Cantuária (The Canterbury Tales) de Geoffrey
Chaucer no que diz respeito à conduta do Clero e como o discurso do autor
inglês acaba por representar suas críticas e percepções sobre a sociedade em
que vivia.
Quando utilizamos o termo representação, referimo-nos ao conceito
desenvolvido por Roger Chartier em A História Cultural – Entre Práticas e
Representações, que define tipos de “práticas” capazes de articular e dar sentido a
tudo que permeia o campo das práticas culturais.
As representações, de fato, fornecem sentido ao conjunto das práticas
sociais, mas se diferenciam a partir do grupo que as veicula. Coexistindo uma
gama de representações que são diferentes e também divergentes entre si, em
uma luta constante, onde estas servem a interesses de grupos particulares
dentro da sociedade. Estas lutas se dão no nível simbólico e, muitas vezes, não
são facilmente identificáveis.
E como nossa fonte trata de um texto literário, entendemos que este
contribui para a construção de identidades sociais, de relações sociais e de
sistemas de conhecimento e crença, cuja reprodução e cujas transformações
(possíveis) cabem às práticas discursivas, de que a literatura é um veículo. E
neste sentido, podem representar e/ou reproduzir ideologias, que entendemos
como:
“[...] significações/construções da realidade (o mundo físico, as
relações sociais, as identidades sociais), que são construídas em
várias dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e
que contribuem para a produção, a reprodução ou a
transformação das relações de dominação” (Fairclough, 2001: 117)
E como nessa construção textual o aspecto da linguagem é essencial, esta
pode ser entendida, por um lado, a partir de sua função na sociedade, um meio
de comunicação através do qual mensagens e informações são construídas e
passadas; mas também se pode compreender a linguagem como a própria
comunicação, que é constituída na sociedade, a linguagem reflete e é
representada pela própria sociedade.
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A respeito de como a linguagem é essencial ao se pensar as relações de
poder no campo discursivo, ao longo de nossa pesquisa entendemos também
que as considerações de Bourdieu em O poder simbólico são úteis para a análise
de nossa fonte. Ele explica que se pode conferir uma eficiência propriamente
simbólica de construção da realidade, isto porque estrutura a noção que os
agentes sociais têm do mundo, e como se opera as relações nesse mundo.
Assim, a língua e, por extensão, a linguagem pode ser compreendida como um
sistema simbólico que constitui instrumentos de conhecimento e de
comunicação, e de visões de mundo, de percepção do mundo social. E afirma:
“A percepção do mundo social é produto de uma dupla
estruturação social: do lado objetivo, ela está socialmente
estruturada porque as autoridades ligadas aos agentes ou às
instituições não oferecem à percepção de maneira independente,
mas em combinações de probabilidade muito desigual [...]; do lado
subjetivo, ela está estruturada porque os esquemas de percepção e
de apreciação, [...] são produtos das lutas simbólicas anteriores e
exprimem, de forma mais ou menos transformada, o estado das
relações de força simbólica” (Bourdieu, 2004: 139; 140)
As considerações de Bourdieu são pertinentes para essa discussão, pois
através delas pode-se precisar, de que forma a linguagem exerce um poder e se
constitui em um instrumento que age sobre o mundo. É através desse poder
simbólico percebido na linguagem e que reafirmam o caráter social da
linguagem. A força das palavras se exerce na sua ação comunicativa, pois elas
propagam valores, significados, ideologias que perpassam os agentes sociais, e
se configuram formas de dominação e exercício de poder.
Assim, na análise de nossa fonte e entendemos como as palavras estão
inseridas nas relações de poder e como estas perpassam na forma como o
Clero era percebido pelos homens medievais e como Chaucer, por
conseguinte, o representou e explorou as nuances destas caracterizações.
2. Chaucer e seus Contos
Sobre o autor2, sabemos que nasceu em Londres em 1340. Era filho de
uma comerciante de vinhos, John Chaucer. Foi pajem do Príncipe Lionel, filho
do rei Eduardo III e desta forma, teve acesso ao estudo de autores da
Antiguidade Clássica e de seu tempo e também, ao estudo das línguas francesa
e latina. Casou por volta de 1366, com Philipa de Roet, que era dama da
2 Como verificado em Gardner, J. C (1977). The life and times of Chaucer. Nova York: Alfred A.
Knopf, p. 48-50.
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rainha. Este casamento possibilitou ao escritor o estreitamento de suas
ligações com a nobreza. Isto favoreceu que o escritor fosse nomeado a cargos
diplomáticos na França e na Itália.
A obra de Chaucer é geralmente dividida em três períodos: o francês, o
italiano e o inglês. No primeiro, que se inicia com a tradução do Roman de la
rose, ele imitou os modelos da poesia francesa. As melhores obras dessa fase
foram O livro da duquesa e O parlamento das aves. No período seguinte (13701384), Chaucer inspira-se em Dante e Boccaccio. A influência de Dante esta
presente em A casa da fama. Fez uma coletânea incompleta de histórias trágicas
em tomo de mulheres famosas do passado, The legend of good women. Finalmente,
ao último período (1384-1400) pertence a sua obra, máxima, Os contos de
Cantuária.
Os Contos da Cantuária começaram a ser redigidos em 1386, em um
período em que Chaucer estava passando por dificuldades financeiras, porque
havia perdido recentemente a proteção do Rei Ricardo II3. Quando o Rei foi
destronado, em 1399, o poeta perdeu praticamente todos os recursos que
recebia da Coroa. Logo depois, em 1400, o autor veio a falecer.
Na verdade, Os contos de Cantuária constituem uma pintura da sociedade
da época e, pela variedade dos gêneros em que se enquadram os diferentes
contos, apresenta um panorama da literatura medieval. Mais que tudo isso,
porém, é uma análise da natureza humana.
Quanto à estrutura narrativa, os Contos da Cantuária têm como ponto de
partida, uma peregrinação composta por vinte e nove peregrinos, que incluem
o próprio Chaucer entre eles. Estes peregrinos rumam à cidade da Cantuária,
para visitar o túmulo de São Thomas Beckett. 4 Quando param em Southwark,
reúnem-se na Taberna do Tabardo, onde o Albergueiro sugere aos peregrinos
que cada um conte uma história, o melhor narrador ganharia um jantar como
prêmio.
Como foi possível verificar em The Cambridge Chaucer Companion, de Jill
Mann e Piero Boitan; a peregrinação que é um evento religioso, e também
social, abre a possibilidade de interações de indivíduos, que agirão de acordo
Como verificado no livro: Boitan, P; Mann, J (1986). The Cambridge Chaucer Companion.
Londres: Cambridge University Press, p. 03-08.
3
Arcebispo da Cantuária, assassinado durante o reinado de Henrique II, em 1170, por ter
jurado fidelidade ao Papa quando dos conflitos entre o poder da Coroa e o do Papado.
Maurois, A (1975). A História da Inglaterra. Trad. Carlos Domingues. Rio de Janeiro: Pongetti,
p 82-87.
4
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com suas perspectivas sociais exprimidas pela sua vocação e classe social
(Boitan; Mann, 1986: 104).
Em A civilização do Ocidente Medieval, de Jacques Le Goff, é possível
verificar que a taberna também funcionava como um grande centro social seja
em áreas urbanas ou rurais; essas tabernas, como no caso dos Contos da
Cantuária também serviam de albergue para visitantes estrangeiros. “Ali se
propagavam as notícias, portadoras de realidades longínquas, de lendas e de
mitos. Ali se formavam, na conversa, as mentalidades” (Le Goff, 1984: 74). E
é exatamente isso que é entendido nos Contos; na taberna os personagens
estarão juntos reunindo diferentes estamentos sociais para uma troca de suas
realidades.
Os Contos estão precedidos por um Prólogo onde são apresentados, todos
os 21 narradores; que competem membros da aristocracia como o Cavaleiro e
o Escudeiro; membros do clero como a Prioresa, o Monge, o Frade, a Freira e
seu Secretário, o oficial de Justiça Eclesiástica, o Pároco, o Vendedor de
Indulgências e o Estudante de Oxford; da burguesia temos o Mercador, o
Médico, o Advogado, a Mulher de Bath (fabricante de tecidos) e o proprietário
de terras alodiais; das classes populares temos o Feitor, o Moleiro, o
Carpinteiro e o Camponês. Os personagens que narram são tão ou até mais
importantes que os personagens das histórias que serão contadas. O prólogo
funciona como um guia para os contos, já que explica a motivação por trás de
cada narrador.
Chaucer, nas descrições, tem como intenção inicial mostrar cada um dos
peregrinos com boas qualidades, especialmente no que diz respeito aos ofícios
destes; porém há no meio dessa caracterização um leve tom de crítica. As
caracterizações do autor no prólogo fazem o leitor ter uma ideia inicial de
como os personagens são apresentados e, sobretudo como o autor vê cada um
desses indivíduos, de acordo com suas características pessoais e seus
estamentos; contendo neste diversos tipos de preconceitos.
Por exemplo, caracteriza como inescrupuloso o Feitor que roubava
secretamente de seu patrão; assim como o Provedor de uma escola de direito
de Londres, que conseguia ludibriar e levar vantagem sobre vários homens
instruídos; e o Moleiro que roubava para si três vezes mais farinha do que
deveria de seus clientes.
A forma como são retratados os membros do clero. O Frade é retratado
com moral duvidosa, chegando inclusive a enumerar os diversos pecados dele
(vender perdão, seduzir mulheres, preferir bebidas ao trabalho clerical, etc.),
inclusive Chaucer caracteriza mais o Frade como uma pessoa que busca lucro
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a todo custo do que o próprio Mercador que, para o autor, é uma pessoa que,
conduzia seus negócios com respeito, mas estas opiniões devem-se muito mais
à posição anticlerical do autor e ao clima de descontentamentos de sua época.
Outros membros do clero têm descrições pouco generosas, como no
caso da Prioresa, que trabalharemos especificamente em outro capítulo, e no
caso do Beleguim. Este oficial de justiça eclesiástica tinha a característica de
perdoar uma excomunhão, se o pecador pagasse por isso. Cavalgando com
este, estava um Vendedor de Indulgências, um clérigo que lia muito bem o
versículo do dia, sabia cantar o ofertório, mas levava fronhas que garantia ser o
véu de Nossa Senhora.
No prólogo, ainda se percebe que as descrições são feitas com base na
posição que o peregrino tinha na sociedade. Por exemplo, o autor considera o
Cavaleiro um homem digno, valente e amante das guerras, descrevendo as
conquistas deste em diversas regiões. Estas qualidades, inclusive, são
estendidas ao seu filho, um jovem Escudeiro e ao seu criado. Descreve o
Magistrado como sensato e organizado; elogia as qualidades da profissão do
Médico; a experiência de vida do Homem do Mar, do Cozinheiro e da Mulher
de Bath; a perspicácia do Armarinheiro, do Carpinteiro, do Tecelão, do
Tintureiro e do Tapeceiro; e a boa recepção do Albergueiro.
De maneira geral, nota-se que Chaucer, estando inserido nas
transformações e nos eventos que abordamos acima, constrói um relato que
demonstra sua visão de como a sociedade de sua época absorvia os novos
tempos e as mudanças de ordem política, religiosa e social.
3. O Conto do Frade
A narrativa do Frade funciona como um ataque a um Oficial de Justiça
Eclesiástica (chamado de Beleguim em português medieval), também
participante da peregrinação. No século XIII, a organização eclesiástica das
dioceses era bastante complexa. Os bispos as governavam assessorados pelos
Cônegos da Catedral e por vários membros do Alto Clero, que os ajudavam a
administrar as igrejas, a controlar o clero a vigiar os bons costumes dos leigos
e assegurar os estudos em escolas urbanas. Os tribunais eclesiásticos
examinavam as más condutas do clero e dos leigos, as dispensas de casamento,
os crimes de heresia e outros assuntos. Os beleguins, que eram eclesiásticos,
mas nem sempre ordenados ainda, estavam a serviço desses tribunais como
Oficiais de Justiça.
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Ainda no prólogo do Conto, o Frade ressalta em seu discurso a antipatia
que nutre por estes clérigos:
“Por isso, se for do agrado desta comitiva, eu gostaria agora de
narrar um caso engraçado que se deu com um Oficial da Justiça
Eclesiástica. Deus do Céu, pelo próprio nome vocês já sabem e
não se pode dizer nada de bom de um beleguim. Peço, portanto,
que ninguém me leve a mal. O fato é que o Beleguim não passa de
um sujeito que vive correndo para baixo e para cima a levar
intimações para os fornicadores e a apanhar nas saídas das
cidades” (Chaucer, 1988: 157)
O conto em si trata de um destes Oficiais de Justiça que trabalhava para
o Arcebispo de uma cidade inglesa, tendo por função levar intimações a
pecadores para comparecerem a audiências nos Tribunais da Igreja. Conforme
o narrador, o Arcebispo preocupava-se, sobre tudo, em punir pessoas
consideradas libertinas. Contudo, o Oficial costumava extorquir vantagens dos
supostos pecadores para livrá-los das supostas acusações e o fazia com o
auxílio de prostitutas que denunciavam ao Oficial todo e qualquer homem
com quem tivessem contato. Além disto, o Oficial não entregava, como
devido, a seu superior grande parte do dinheiro que obtinha dos acusados.
Em um dado momento do Conto, o protagonista encontra-se com um
demônio do qual se torna amigo. Quando ele iria empreender mais uma de
suas práticas de extorsão contra uma viúva pobre, o demônio revela que esta
era a oportunidade esperada para castigar o Oficial levando-o para o inferno.
O que fica mais evidente, ao fazer uma leitura mais atenta ao Conto do
Frade, é a clara intenção do narrador em denegrir a figura do Oficial, que era
um membro da Igreja, integrante do clero secular. Por essa razão, o Frade
sustenta que o Oficial presente na comitiva não poderia fazer nada em relação
à sua pessoa por ser um frade: “E mesmo que este beleguim aqui ao nosso
lado fique louco furioso, não vou omitir nada a respeito da sua devassidão,
pois essa gente não tem poder sobre nós. Nós, os Frades, estamos, e sempre
estaremos fora de sua jurisdição” (Chaucer, 1988: 158).
Isto acontecia porque desde o século XI, as ordens monásticas possuíam
isenção canônica, ou seja, estavam fora da jurisdição dos bispos locais, estando
subordinadas somente ao superior de Ordem e ao Papa. A partir do século
XIII, tal concessão foi estendida também às ordens mendicantes, caso do
narrador do Conto (Richards, 1988: 40).
Verificamos também com Jeffrey Richards, que a prática ilustrada no
conto – a preocupação do Arcebispo em denunciar e punir os fornicadores –
já era a muito institucionalizada pela sociedade inglesa:
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“Na Inglaterra, a partir do século XIII, os párocos eram
encarregados de comunicar a existência de fornicadores notórios
ao arquidiácono, que os convocava e os multava e censurava, ou
os convencia a casar. Nos casos estudados, a maioria dos registros
de tribunais de Igreja parece dizer respeito ao adultério e à
fornicação” (Richards, 1988: 44)
Porém, o Conto ressalta, no discurso de Geoffrey Chaucer, em diversos
momentos, que a conduta moral do beleguim não primava pela idoneidade
necessária para alguém que tinha por função perseguir os supostos pecadores,
já que a preocupação do personagem não estava na conduta moral daqueles,
mas sim com a obtenção de lucros para a extorsão dos mesmos:
“Aquele ladrão traiçoeiro, o beleguim, - continuou o frade –
dispunha da ajuda de muitas prostitutas, seus chamarizes para os
falcões desta Inglaterra; e elas descobriam todos os segredos para
ele. Era uma colaboração antiga, visto que havia muito elas
funcionavam como suas agentes particulares. Assim procedendo,
auferia lucros consideráveis, e o próprio patrão não tinha ideia de
quanto o seu servo amealhava. Mesmo sem ordem superior,
costumava intimar ao tribunal da Inquisição, com ameaças de
excomunhão, os pobres ignorantes, que, para se safarem,
alegremente recheavam a sua bolsa [...]” (Chaucer, 1988: 158)
Outro ponto importante da narrativa é o momento em que o
protagonista se encontra com o Demônio, pois é durante este diálogo que o
Beleguim justifica as suas atitudes:
“‘Pois é o que eu também faço’, ajuntou o beleguim. ‘Juro por
Deus’ que levo tudo o que posso. Só não carrego o que é pesado
ou quente demais. E também não vejo por que ter escrúpulos em
procurar estes ganhos por fora. Se não fosse pela extorsão, como
é que eu iria viver? Nunca hei de arrepender-me dos golpes que
aplico por aí; não tenho dor de consciência nem estomago
delicado; e para os padres confessores, mando uma grande figa!’”
(Chaucer, 1988: 160)
Percebe-se, portanto, que Chaucer enfatiza o fato de seu personagem
obter lucros devido à sua posição dentro da Igreja, aproveitando-se da
preocupação do Clero com delitos desta natureza. Além disto, o beleguim não
demonstrava remorso algum por enganar seu superior ou pessoas humildes. A
leitura desta narrativa também ajuda a visualizar o quanto que a conduta moral
e sexual dos fiéis acabava por escapar ao controle da Igreja, já que existiam, em
realidade, diversos subterfúgios para fugir aos Tribunais Eclesiásticos.
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Vê-se que a crítica de Chaucer não se restringe somente à moral
combalida do Clero secular em fins da Idade Média, já que, no conto em
sequência, a narração do Beleguim participante da peregrinação acaba por
discorrer acerca do grau de cobiça que, na visão do poeta inglês, também era
característica marcante das Ordens Mendicantes, O Conto do Beleguim
funciona, dentro da estrutura narrativa dos Contos, tanto como uma réplica ao
discurso do frade como o espaço necessário para que Chaucer apresentasse os
erros cometidos pelo Clero regular.
4. O Conto do Beleguim
Conforme já foi destacado anteriormente, o conto do Beleguim
funciona, dentro da estrutura narrativa dos Contos, como um revide elaborado
pelo Oficial de Justiça aos ataques que lhe haviam sido dirigidos pelo Frade no
conto anterior. A narrativa de Chaucer, através da discussão dos referidos
personagens, leva-nos ao entendimento do atrito existente entre membros do
Clero regular e secular.
O caso narrado pelo Beleguim, já no Prólogo, destaca o inferno como
principal moradia dos frades:
“O frade aqui esta se gabando de conhecer o inferno. Deus do
céu, o que há de surpreendente nisso? Não existe muita diferença
entre frades e diabos. Por minha alma, acho que todos aqui já
conhecem o caso daquele mendicante que, durante uma visão, foi
arrebatado em espírito ao inferno. Ao ser conduzido para cá e
para lá pelo anjo encarregado de mostrar-lhe todos os castigos,
encontrou pessoas das mais diversas condições, mas não viu
nenhum frade em parte alguma. Perguntou então a seu guia:
‘Diga-me senhor: são tão bem-aventurados os frades, que nenhum
de nós vem a este lugar?’ ‘Pelo contrário’, respondeu o outro, ‘há
milhões de vocês aqui’”(Chaucer, 1988: 164)
O Conto do Beleguim trata de um frade, John, que percorria uma
pequena cidade do norte da Inglaterra exortando os fiéis a fazerem todo e
qualquer tipo de donativo para os frades em troca de orações. Contudo, o
narrador salienta, em inúmeros momentos do conto, características como
hipocrisia, bajulação e falsidade que assinalavam a conduta do religioso.
Em um dado momento do conto, o frade se dirige à casa de um homem
muito doente, chamado Thomas, supostamente à beira da morte, na tentativa
de adquirir uma parte da herança para sua ordem. Para entender o motivo da
presença do frade na residência do doente, é necessário pensarmos no
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contexto da Reforma Gregoriana. A Igreja passou a normatizar certos
comportamentos em relação às práticas fúnebres, entre elas a obrigatoriedade
de estar que os Concílios de Latrão (século XII e XIII) impuseram a todo
aquele que tinha bens a deixar como herança. A prática do testamento, agora
obrigatória, exigia igualmente a presença de um clérigo como testemunha e o
legado de uma parte dos bens em questão para a Igreja e para os pobres
(Balard, 1996: 310).
A história tem um desfecho irônico, pois Thomas, irritado com
constante exposição a que o frade o submetia, resolve se vingar do
mendicante, diz que há um tesouro embaixo de sua cama para os frades, e
quando frei John vai verificar, o doente libera uma flatulência na direção de
seu rosto. O frade, irado, tenta se queixar da suposta blasfêmia a um nobre
(senhor da aldeia em que se passa o conto), porém este, sua esposa e um
criado, acabam elogiar e defender a atitude jocosa do doente, sem dar muita
atenção ao apelo do frade.
Para compreendermos as críticas feitas por Geoffrey Chaucer no tocante
à conduta moral dos frades, temos que nos remeter às origens e às propostas
das ordens mendicantes. A autonomia que a Igreja adquiriu no decorrer dos
séculos XI e XII ocasionou o surgimento de criticas e questionamentos em
relação ao enriquecimento e ao poder do Clero. Muitas vezes, estas críticas
eram oriundas de grupos que não pretendiam se afastar de ortodoxia.
A forma que tais grupos encontraram para expressar suas expectativas
era a busca pela pobreza e pela penitência, tal como afirma Hilário Franco
Júnior:
“Todas essas correntes baseavam-se na pobreza e na penitencia,
forma de criticar o enriquecimento e a institucionalização da
Igreja. Mas aquelas que não desejavam afastar-se da ortodoxia
com o tempo viam-se influenciadas pelo mesmo enriquecimento e
institucionalização. Deturpados os propósitos iniciais de Cister,
eles foram recuperados e levados adiante por um burguês que, por
estar colocado no centro da nova economia comercial, sentia seus
efeitos sobre a vida espiritual do cristão. Não se tratava de negar
as riquezas de forma geral, e sim de criar mecanismos para a
burguesia enriquecida aplacar sua consciência através de esmolas.
Por isso, os beneficiários não poderiam ser monges isolados, mas
leigos que, tendo abraçado a pobreza continuavam nas cidades.
Esta é a raiz do sucesso e da importância de São Francisco (11821226) [...]” (Franco Júnior, 2001: 79)
Ainda de acordo com a obra citada, surgiu, em 1216, a Ordem dos
Dominicanos, fundada pelo religioso espanhol São Domingos. Os
dominicanos, contudo, tinham maior preocupação com o combate à heresia,
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tanto que o papa Gregório IX lhes encarregou de dirigir a Inquisição Papal,
criada no século XIV.
A Ordem Franciscana, por sua vez, adquiriu cargos importantes em
universidades e outros centros culturais ligados à Igreja, fato que dividiu os
franciscanos, que sustentava que este envolvimento dos frades com a
hierarquia e com os estudos ia de encontro com as proposições iniciais de São
Francisco.
A diferença entre os objetivos das ordens monásticas já existentes e as
mendicantes é que nas ordens de monges e cônegos o objetivo principal era a
santificação pessoal dentro de uma estrutura de observação litúrgica e
conventual, nas Ordens dos frades, os superiores se empenhavam em
distribuir seus súditos de acordo com as necessidades do estudo, da pregação e
das atividades missionárias. “Os monges e cônegos eram estáticos, ao passo
que os frades eram dinâmicos; podiam ser deslocados e organizados em
corpos de tropa em vista de algum objetivo” (Knowles; Obolensky, 1973:436).
Retornando às situações ilustradas por Geoffrey Chaucer em seu Conto,
notamos o quanto a conduta materialista do religioso que protagoniza o conto
do poeta inglês se distancia, e muito, das propostas iniciais das Ordens
mendicantes, que priorizavam a pobreza e a simplicidade. Na verdade, o
personagem preocupava-se somente com a obtenção de lucros:
“E assim se comportava toda vez que o povo na igreja lhe dava o
que queria: sem esperar nem mais um minuto, punha-se logo a
caminho. Com suas anotações e seu cajado alto e pontudo, ia
espionando e bisbilhotando de casa em casa, a pedir farinha ou
queijo ou cereais. Seu companheiro mendicante, sempre postado a
seu lado com um bastão em ponta de chifre, duas tabuinhas de
marfim e um estilete artisticamente polido, ia registrando os
nomes de todos os que faziam alguma doação, como se o frade
fosse depois rezar por eles. [...] E a primeira coisa que o frade
fazia, assim que se afastava de um lugar, era apagar todos os
nomes que havia escrito nas tabuinhas, sem pena de enganar o
povo com engodos e promessas” (Chaucer, 1988: 165)
Em outro trecho do conto, vemos como o frade justifica sua atitude de
pedir esmolas em troca de orações, comparando a pobreza em que vivem as
Ordens mendicantes com a opulência do clero secular:
“Mas ouça, Thomas, o que vou dizer. Embora, suponho, não
exista um texto declarado sobre o assunto, acho, no meu modo de
interpretar, que nosso meigo Senhor Jesus Cristo estava pensando
em nós quando disse: ‘Bem aventurados os pobres de espírito’. E
assim, no Evangelho inteiro, você pode facilmente verificar quem
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é que está mais perto da virtude: nós do clero regular, ou esses
padres seculares que nadam em dinheiro. Que vergonha a sua
pompa e a sua gula! E como detesto a sua devassidão!” (Chaucer,
1988: 168)
Há diversos momentos da narrativa em que a hipocrisia do frade é
claramente apresentada, pois ele continua a pedir donativos para o idoso
doente de forma abusiva, dizendo que o homem não melhora de saúde pelo
fato de suas doações serem insuficientes:
“É por isso que continua doente: são muito poucos os donativos
que tem feito a nós. [...] Que vale um centil dividido por doze?
Todos sabem que o que está unido é mais forte que o que está
disperso. Não, Thomas, sinceramente, não vejo como elogiar a
sua conduta. Na verdade o que você quer é ter os frutos do nosso
trabalho sem nada nos dar em troca” (Chaucer, 1988: 169)
A forma irônica e extremamente critica com que Chaucer discorre acerca
das atitudes escusas do frade deve ser observada com base na conjuntura
religiosa da Inglaterra tardo-medieval, onde a crise atravessada pela Igreja
acarretou em um relaxamento na observância das regras inicialmente
propostas para o clero regular em seus vários tipos de vida (Knowles;
Obolensky, 1973: 437).
Tal fato ocasionou grande descrédito em relação a estes religiosos por
parte de diversos setores da Cristandade, o que acaba por se refletir em obras
literárias, como é o caso do trabalho de Chaucer, que criticam a opulência e o
mundanismo destes clérigos, tal como os autores acima sustentam:
“Os monges sempre foram objeto de sátiras, principalmente em
épocas de maior atividade literária. Seu luxo, seu mundanismo, a
opulência de suas vestes e de sua mesa, tudo isso serviu e continua
a servir de inspiração a numerosos escritores, [...]; mas a crítica se
tornou mais violenta e ameaçadora, torna-se difícil distinguir as
críticas dirigidas contra de terminadas situações, das que se
levantavam contra os próprios fundamentos da vida monástica.
Uma crítica repetida por todos que observam a sociedade do temo
é que os frades eram numerosos demais e onipresentes; na
observação de Chaucer, eles ‘eram tão numerosos como as
partículas de poeira num raio de sol’” (Knowles; Obolensky, 1973:
436)
Com estas observações, verificamos que a crítica de alguns dos
personagens do conto aqui trabalhado em relação à conduta do frade deve ser
inserida no conjunto de críticas e expectativas, provenientes de vários grupos
sociais, no tocante ao modo ideal de como um frade deveria se comportar.
Nota-se assim que, por mais que estes religiosos tivessem conhecimento do
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discurso bíblico e da maneira como, teoricamente, deveriam desempenhar suas
tarefas acabavam, muitas vezes, agindo de forma diferente na realidade.
5. O Vendedor de Indulgências
Para esta análise, diferentemente das anteriores, utilizaremos as falas
deste narrador durante o Prólogo, pois é neste espaço que Chaucer expõe,
através do discurso do Vendedor, quais eram os erros cometidos pelo
personagem, bem como as suas justificativas para tais atos. O conto em si é
uma fábula sobre três jovens desordeiros que matam um ao outro na disputa
de um tesouro, cuja moral é sobre os excessos da ambição, mostrando assim
uma contradição entre o discurso e a prática do Vendedor. No entanto, o
discurso proferido pelo clérigo no decorrer do Prólogo se mostra mais
proveitoso para a apreensão do comportamento e dos posicionamentos do
personagem em relação a seu modo de viver e agir.
O narrador é uma pessoa autorizada pela Igreja para vender indulgências.
Uma indulgência era tecnicamente a remissão da pena temporal imposta por
um pecado cometido, cuja culpa já tenha sido perdoada. Para melhor
compreendermos, contudo, a prática ilustrada neste Conto, se faz necessária
uma introdução a esta prática. No decorrer do século XI, disseminou-se o uso
das absolvições gerais concedidas pelo papa ou pelos bispos. Na maioria das
vezes, consistiam em uma verdadeira remissão das penas penitenciais em
função de serviços prestados para a Igreja. Por exemplo, durante o período das
Cruzadas a Igreja concedia uma absolvição geral para aqueles que
participassem do empreendimento de defender a Terra Santa, por considerar
que lutar nestes confrontos era uma maneira de se redimir das penas impostas
pelos pecados. Estas práticas seriam a origem da venda de indulgências. A falta
de critério em tais concessões feitas pela Igreja acarretou em uma série de
abusos por parte dos clérigos (Regidor, 1988: 205).
Ao longo do século XIII, em decorrência do recrudescimento do
comércio e da vida urbana, a Igreja estendeu a concessão das indulgências com
a finalidade de angariar fundos utilizados em obras públicas, incluindo a
construção de igrejas, a assistência aos enfermos e pobres, a conservação de
estradas, a construção de pontes e a educação. Loyn destaca o quanto esta
prática se tornou abusiva ao longo da Baixa Idade Média:
“A extensão dos abusos era cada vez mais gritante, e
reformadores desde João de Salisbury em diante advertiram sobre
os perigos dessa prática. Sob crescente pressão financeira, várias
autoridades eclesiásticas, incluindo o papado, recorreram a
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práticas duvidosas, sobretudo no emprego de monges vendedores
de indulgências, assim se concretizando os piores temores dos
partidários da Reforma” (Loyn, 1990: 205)
É esta a realidade que se aproxima do que está ilustrado no prólogo de
Chaucer, pois o Vendedor relata ao grupo de peregrinos com os quais viaja a
sua prática de oferecer a absolvição àqueles que fizessem donativos para ele,
após terem confessado os seus pecados:
“Meus bons amigos e amigas, tenho, porém que fazer-lhes uma
advertência: se alguém nesta igreja cometeu um pecado tão
horrível que se envergonha de confessá-lo, ou se alguma mulher,
jovem ou velha, pôs chifres no marido, é bom que saiba que não
está em estado de graça para oferecer donativos às relíquias aqui
expostas. Mas quem não estiver contaminado por essas mazelas
que se aproxime, e, em nome de Deus, faça a sua oferta, que eu o
absolverei com a autoridade que esta bula me concede” (Chaucer,
1988: 243)
No entanto, uma leitura mais atenta nos leva ao entendimento de que o
personagem de Chaucer é passível de crítica, por parte do autor, por não dar a
menor importância para a remissão dos pecados dos fiéis, mas sim para a
aquisição de lucros através do incentivo para as doações:
“Ano após ano, graças a essa artimanha, já devo ter ganhado por
volta de cem marcos, desde que passei a vender indulgências. [...]
A minha prédica toda é contra a avareza [...] para ensinar os fiéis a
serem generosos com o seu dinheiro. [...] Afinal, meu interesse
não é castigar os seus pecados, mas obter lucros. Pouco me
importa se, depois de enterrados, eles vaguem pelo mundo como
almas penadas!’” (Chaucer, 1988: 243)
Outro ponto de interesse a ser destacado no discurso do Vendedor de
Indulgencias é o momento no qual ele admite a existência de um paradoxo
entre as suas atitudes ambiciosas e as pregações por ele realizadas, que incidem
justamente sobre a condenação do materialismo e da cobiça. O personagem
também justifica suas atitudes afirmando que, embora reconheça que a moral
cristã preconize a busca pela simplicidade, assume a comodidade de lucrar
com suas pregações e vendas de indulgências:
“Acham que, enquanto posso pregar e ganhar ouro e prata no
meu ministério vou viver voluntariamente na pobreza? Isto não
meus amigos, aí está uma coisa que nunca me passou pela cabeça.
Enquanto eu for capaz de ensinar e esmolar por este mundo, não
tenho pretensão alguma de fazer serviços manuais, [...]. Quero
dinheiro, trigo, queijo e lãs, mesmo que os obtenha às custas do
mais pobre pajem ou da viúva mais pobre de uma aldeia, com seus
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filhinhos a morrer de fome. Não, o que eu quero é o néctar de um
vinho e uma bela garota em cada cidade” (Chaucer, 1988: 244).
Entendemos que na visão de Chaucer, a hipocrisia e a falta de ética que
permeia o caráter do Vendedor de Indulgência, devem ser entendidas dentro
da conjuntura de decadência e crise moral que acometiam a Igreja no tempo
de Chaucer. Possivelmente a mundanização, o materialismo e o
comprometimento do Clero com assuntos seculares ocasionaram em um
grande número de clérigos (ou auxiliares como o Vendedor) cuja formação
religiosa e espiritual era deficitária, até porque, na época, era comum pessoas
optarem pela vida religiosa sem ter efetivamente a vocação necessária para tal
fim.
Assim como o personagem de Chaucer, certamente existiram muitos
religiosos que, apesar de terem conhecimento de qual era o comportamento
que a Igreja e a sociedade esperavam que tivessem, sua preocupação estava no
dinheiro e no lucro que poderiam adquirir no exercício de suas funções, sem
se importarem com questões éticas ou morais. Tal como nos dois primeiros
contos discutidos neste capítulo, a hipocrisia, a ambição e o materialismo são
os principais aspectos contra os quais o poeta inglês demonstra sua crítica.
6. O Conto do Criado do Cônego
Diferentemente dos outros Contos trabalhados anteriormente, o aspecto
que mais se destaca na escolha deste conto é que, ao passo que, nos contos
trabalhados anteriormente, os personagens principais eram membros do baixo
clero, neste conto o protagonista é um Cônego. Os Cônegos eram padres do
Clero secular que prestavam serviço litúrgico na Sé ou Catedral. Era entre eles
que, muitas vezes, os bispos escolhiam pessoal para assessorá-los. Durante a
Reforma Gregoriana, sobretudo a partir do século XII, os cônegos da Catedral
passaram a formar uma espécie de conselho ou senado do Bispo, com funções
de aconselhamento, de controle de determinados gastos das dioceses e colégio
eleitoral dos Bispos.
Ainda no Prólogo, a fala do Albergueiro nos leva a perceber a alta
posição que este clérigo teria naquela sociedade:
“Ao ouvir isso nosso albergueiro exclamou: ‘Bendito seja! O que
me deixa passado é que, tendo, o seu patrão tamanha sabedoria, e
sendo por isso mesmo, merecedor do respeito de todos, ele não
parece importar-se nem um pouco com a sua aparência. Para um
homem de tão alta condição, usa um manto que, - Deus me livre!
– está uma vergonha, todo sujo e rasgado! Diga-me: por que o seu
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patrão anda nesse relaxo, se tem recursos para se vestir melhor?
[...]” (Chaucer, 1988: 264)
Após esta colocação, podemos notar que o foco deste Conto não se
situa, necessariamente, na condenação da Alquimia enquanto prática científica,
tendo em vista que a sabedoria e a inteligência do clérigo foram elogiadas no
trecho supracitado, e a alquimia era muito considerada enquanto um saber
respeitável. Na realidade, o aspecto do caráter do Cônego passível de
condenação é o fato de que diversas pessoas foram lesadas financeiramente
por alquimista. No conto em si, o Criado discorre justamente acerca das
pessoas que foram arruinadas material, financeira e moralmente graças às
artimanhas do Cônego.
Ainda no prólogo, o Criado atesta que a alquimia, se usada para a
obtenção de lucro, é uma prática que se revela extremamente danosa:
“Assim mesmo, iludimos muita gente de quem tomamos dinheiro
emprestado (seja uma libra ou duas ou dez ou doze ou muitas
somas mais) e a quem fazemos acreditar que, na pior das
hipóteses, podemos transformar uma libra em duas. É claro que é
mentira. Mas nós não perdemos a esperança, e continuamos a
tatear em busca desse resultado. Só que essa tal ciência se acha tão
a nossa frente que, malgrado os nossos juramentos, não logramos
alcançá-la, pois ela depressa se esquiva. Ela ainda vai nos reduzir a
mendigos” (Chaucer, 1988: 265)
Com a finalidade de compreender o modo como Geoffrey Chaucer
apresenta a Alquimia neste conto, é preciso elaborar uma contextualização
desta área do conhecimento e como foi praticada no período medieval. A
alquimia praticada na Europa em fins da Idade Média era uma ciência com
suas leis próprias, e uma arte secreta e mística que gravitava em torno da
transmutação de metais em ouro e prata (Loyn, 1990: 267).
O caráter sigiloso deste campo de conhecimento é ilustrado no
momento em que o Cônego fica extremamente irritado e constrangido pelas
revelações de seu empregado, fato que o leva a se afastar da comitiva e isto
ocorre tanto porque o caráter desonesto do religioso é trazido a tona, quanto
pela intenção do criado em revelar todos os segredos que envolviam a
Alquimia. De qualquer forma, percebe-se que o próprio narrador dói também
uma vítima dos golpes do patrão:
“Quem quer que se aproxime da Alquimia acaba se dando mal!
Essa atividade, além de tudo, me estragou a vista. Eis aí o que se
ganha quando se quer multiplicar! Essa ciência enganosa me
deixou tão limpo que não sobrou nada para o meu sustento; na
verdade, ando tão cheio de dividas que vou morrer sem pagar o
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ouro que tive que tomar emprestado. Por isso, é que todo cuidado
é pouco! Ai daquele que se arrisca nesse campo: se persistir,
garanto que há de arruinar-se, pois, palavra de honra, não só não
vai lucrar coisa alguma como ficará de bolsa vazia e de miolo
mole” (Chaucer, 1988: 266)
O criado do cônego faz o possível para salientar para os seus
companheiros em que medida o seu patrão era desonesto e cheio de
artimanhas e truques para enganar as pessoas:
“Creio que, mesmo que pudesse viver mil anos, ninguém seria
capaz de relatar todas as artimanhas e sua infinita falsidade. No
mundo da desonestidade não tem mesmo rival; tanto é assim que,
quando conversa com alguém, enrola tanto o seu jargão e usa
palavras com tamanha astúcia, que simplesmente atordoa o seu
interlocutor (a menos que seja um demônio igual a ele). Quantas
pessoas não enganou até agora! E enquanto tiver vida, vai tapear a
muitas outras mais” (Chaucer, 1988: 269).
É interessante constatar que Chaucer, através da fala do Cônego, faz
uma ressalva mostrando que sua crítica se restringe apenas a um Cônego e não
a todos os cônegos em geral. Ao final do Conto, vem à luz o fato de que a
intenção do poeta inglês é, acima de tudo condenar a cobiça e o materialismo,
que são os principais causadores de ruína financeira e moral dos que se
envolveram com a Alquimia, salientando também que a ambição é uma falha
passível de ser cometida por qualquer pessoa, de qualquer grupo social:
“Reflitam bem, senhores, como sempre há conflito entre os
homens e o ouro, não importa a condição social. É um conflito
tão violento que dificilmente pode ser evitado. Essa mania de
multiplicar cegou a tantos que, sinceramente, eu acho que acabou
se tornando a principal causa da miséria que existe por aí”
(Chaucer, 1988: 276)
A leitura do conto do Criado do Cônego nos leva ao entendimento de
que, na opinião do poeta, os dissabores dos praticantes da Alquimia estão
condicionados à ambição que conduziu estas pessoas a exercer tal arte. Na
época de Chaucer, os alquimistas eram vistos com medo e suspeição (Loyn,
1988: 20). E o conto descreve a penúria e o desespero a que a obsessão com a
alquimia poderia levar.
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7. Conclusão
As temáticas dos contos analisados giraram em torno das situações em
que os clérigos de vários níveis são representados no tocante a seu
comportamento, que nos fazem perceber que Chaucer criticava as relações e
as posturas de alguns membros do clero em relação ao dinheiro e ao poder.
Os protagonistas tem a conduta descrita por Chaucer com ênfase na
hipocrisia que apresentam, na medida em que alguns dos personagens tem
conhecimento do ideal de conduta preconizado pela Igreja e pela sociedade, e
inclusive, em diversos momentos se valem justamente do discurso bíblico e
das pregações religiosas para comover os fiéis e obter todo e qualquer tipo de
lucro. Observamos também que a necessidade de sobreviver e ganhar seu
sustento, que estes membros do clero descritos por Chaucer afirmam, dão
margem a atitudes que se mostram passíveis de reprovação para o autor dos
Contos.
Notamos também que Chaucer, ao apresentar seus questionamentos em
relação ao Clero de seu tempo, não pretende desqualificar a Igreja como um
todo. Muitas das questões abordadas e discutidas nesta obra devem ser
entendidas sob a conjuntura de descrédito moral que, como já foi afirmamos
ao longo deste trabalho, perpassava a instituição da Igreja no final da época
medieval e acabava por se fazer presente na produção literária da época.
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