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Revista de História da Arte e Arqueologia, número 22

revista de história da arte e arqueologia N. 22 / jul/dez de 2014 issN 1413-0874 brasil Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosoia e Ciências Humanas Departamento de História Pós-graduação em História da Arte Centro de História da Arte e Arqueologia Indexada em Bha – Bibliography of the history of art (Getty Center, EUA) Francis (INIST-CNRS, França) REVISTA DE HISTÓRIA DA ARTE E ARQUEOLOGIA 3 Editorial Artigos N. 22 / jul/dez de 2014 ISSN 2179-2305 (online) ISSN 1413-0874 (impresso) brasil Editores Responsáveis Jorge Coli Pedro Paulo a. Funari 5 Jean-Philippe Chimot 21 Secretária letícia Badan Palhares Knauer de Campos Martinho alves da Costa Junior Patrícia Freitas [email protected] Divulgação letícia Badan Palhares Knauer de Campos [email protected] Conselho Editorial Nacional Norberto luiz guarinello (Departamento de História – USP) vera d’horta (Museu Lasar Segall – São Paulo) renina Katz (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – USP) arno alvarez Kern (Departamento de História – UFRGS/PUCRS) Miriam andrade ribeiro de oliveira (UFRJ/RJ) andré Prous (Museu de História Natural – UFMG) haiganuch sarian (Departamento de Antropologia – USP) Fernanda Fernandes da silva (Fac. de Arquitetura e Urbanismo – USP) Conselho Consultivo Internacional Paola Barocchi (Scuola Normale Superiore de Pisa) else Maria Bukdahl (Academia de Belas Artes – Copenhague) robert Coustet (Universidade de Bordeaux) daniela gallo (Universidade Pierre Mendès – Grenoble 2) denise e Claude Jasmim (Universidade de Provença – Aix-en-Provence) Michel laclotte (Instituto Nacional de História da Arte – Paris) alexandros-Phaidon lagopoulos (Universidade Aristóteles de Tessalônica) gérard Monnier (Universidade de Paris I) Charles e. orser, Jr. (New York State Museum) José remensal (Universidade de Barcelona) Michel rowlands (University College – Londres) Philippe sénéchal (Universidade de Picardie Jules Verne – Amiens) anchise tempestini (Instituto Germanico di Storia dell’Arte – Florença) Águeda e denis vialou (CNRS – Paris) Indexada em Bha – Bibliography of the history of art (Getty Center, EUA) Francis (INIST-CNRS, França) Peinture et Histoire au 19º siècle: le Temps face à l’Espace A pagan display? The Gallery of Statues and the Vestibolo Rotondo of the Museo Pio Clementino daniela gallo 37 As primeiras imagens do Rei Breno Marques ribeiro de Faria 53 Cosmos, Body, and Aesthetics in Settlement Space and Architecture alexandros Ph. lagopoulos 83 Muralismo em São Paulo na década de 1950: dois painéis de Candido Portinari Patrícia M. s. Freitas 105 Um Giacomo Balla em São Paulo: a busca pela origem de Paisagem Marina Barzon silva 121 Francisco de Holanda e o retrato em Portugal raphael Fonseca Periodicidade e tiragem inicial Semestral / 600 exemplares Informe Impressão Gráica do IFCH, Unicamp Diagramação Luciana Miyuki Takara 149 Arqueologia e as ações de aproximação com a sociedade: a interface com a divulgação cientíica e a veiculação do conhecimento Revisão Josias A. Andrade vera regina toledo Camargo, Pedro Paulo Funari & glória tega-Calippo Capa Geertgen tot Sint Jans. “Os ossos de São Francisco”, 1485. Kunsthistorisches Museum, Viena. 153 Referências das imagens 155 Normas, permuta e estatuto dos conselheiros A RHAA tem o apoio do Programa de Pós-Graduação em História (IFCH-Unicamp) www.unicamp.br/chaa/rhaa Editorial a Revista de História da Arte e Arqueologia é uma publicação do Centro de História da Arte e Arqueologia, da Universidade Estadual de Campinas. O principal objetivo da RHAA é promover um maior desenvolvimento da História da Arte e Arqueologia no Brasil, relacionando-a com a produção internacional da área. É também a primeira revista cientíica brasileira que trata essas duas disciplinas de modo correlato. a RHAA tem por objetivo a publicação de trabalhos de especialistas brasileiros e estrangeiros sobre qualquer assunto de História da Arte e Arqueologia, e ainda alcançar um público amplo e interessado. A publicação de trabalhos em duas línguas – português e inglês, francês, italiano, espanhol ou alemão – possibilita o acesso a leitores brasileiros e estrangeiros. Documentos, textos de referência não traduzidos ainda para o português, resenhas críticas e informes também são incluídos. the Journal of Art History and Archaeology is published by the Center of art history and archaeolog y (Campinas state university). the main aim of the Journal is to promote a broader development in Brazil of both art history and archaeolog y, putting them in close contact with an international production in these ields. It is also the irst Brazilian Journal dealing with both disciplines in a related way. the Journal aims at publishing papers by Brazilian and foreign scholars about any subject within the scope of art history and archaeolog y, as well as at addressing a learned and interested larger audience. the publication of papers in two languages – Portuguese and english, French, italian, spanish or german – will enable Brazilian and foreign readers to be acquainted with the papers. documents and reference texts, still unavailable in Portuguese, reviews and news are also included. Os editores the Publishers Jorge Coli Pedro Paulo Abreu Funari Peinture et Histoire au 19° siècle: le Temps face à l’Espace Pintura e História no século XIX: o Tempo diante do Espaço JEAN-PHILIPPE CHIMOT* docteur de 3° cycle, a enseigné l'histoire de l'art à l'université Paris 1 (Panthéon-sorbonne) Doutor do 3º ciclo, ensinou história da arte na Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) On part ici d’une opposition entre Grande et petite Histoire (dans les faits et dans les récits), telle qu’elle se développe dans la peinture en France entre 1800 et 1850 environ. Le fait que les artistes aient peine à traiter le passé, soumis à mille contraintes internes et externes, peut en amener certains, parfois, à effacer les structures inculquées ou à relativiser au point de l’anéantir, dans la mise en scène, l’importance des événements évoqués. RÉSUMÉ MOTS-CLÉS Histoire, batailles (peinture de), geographie. Parte-se de uma oposição entre Grande e pequena História (nos fatos e nos relatos), tal qual se desenvolve na pintura na França entre 1800 e 1850, aproximadamente. O fato de que os artistas tenham diiculdades para lidar com o passado, sujeitos a mil restrições internas e externas, pode levar alguns, às vezes, a apagar as estruturas incutidas ou a relativizar, ao ponto de apagar na encenação a importância dos eventos evocados. RESUMO PALAVRAS-CHAVE História, batalhas (pintura de), geograia. * Jean-Philippe Chimot, ancien élève de l’Ecole normale supérieure, Agrégé d’Histoire, Docteur de 3° cycle, a enseigné l’histoire de l’art à l’Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) de 1971 à 2001. Il est spécialiste du 19° siècle. Il a enseigné à l’UNICAMP en 1997. / Jean-Philippe Chimot, ex-aluno da École normale supérieure, agrégé de história, doutor do 3º ciclo, ensinou história da arte na université Paris 1 (Panthéon-sorbonne) de 1971 a 2001. É especialista do século XiX. Ministrou aulas na uNiCaMP em 1997. RHAA 22 5 jean-Philippe Chimot Dans la 3° partie du génie du Christianisme, Chateaubriand étudie les rapports et les effets mutuels entre le christianisme et les artes liberales (littérature, éloquence, beaux-arts…). Consacrant quelques pages à l’Histoire, il négocie une position entre un passé qu’il faut solder et un avenir bien incertain. Entre ces deux in(dé) inis, navigation à vue et calcul (impossible) des risques… Chateaubriand veut montrer que le christianisme a encore de l’avenir, ce qui l’amène à limiter l’admiration obligatoire de l’Antiquité, à saper ce lieu commun de la pensée, que désormais l’on fait moins bien que les anciens; ainsi mentionne-t-il des exceptions au fait — reconnu? — que les peuples modernes ne fournissent pas à l’histoire cet ensemble de choses, cette hauteur de leçons qui font de l’histoire ancienne un tout complet et une peinture achevée.1 Cette formulation conviendrait aussi bien au domaine de l’art, ce qui n’est pas surprenant, car nous sommes encore dans l’ensemble aujourd’hui désintégré des artes — où histoire et art sont voisins et où l’osmose, ou la confusion, règnent entre les actes et leur description, entre l’action et l’écriture. Soucieux d’expliquer ce qui rend dificile le rapport des Français à l’Histoire, Chateaubriand se lance dans une sorte de tableau où tout est comparatif et relatif, où tout bouge! Fils aînés de l’antiquité, les Français, Romains par le génie, sont Grecs par le caractère. Inquiets et volages dans le bonheur, constants et invincibles dans l’adversité, formés pour les arts, civilisés jusqu’à l’excès, durant le calme de l’Etat; grossiers et sauvages dans les troubles politiques, lottant comme des vaisseaux sans lest au gré des passions; à présent dans les cieux, l’instant d’après dans l’abîme; enthousiastes et du bien et du mal, faisant le premier sans en exiger de reconnaissance, et le second sans en sentir de remords; ne se souvenant ni de leurs crimes, ni de leurs vertus; amants pusillanimes de la vie pendant la paix; prodigues de leurs jours dans les batailles; vains, railleurs, ambitieux, à la fois routiniers et novateurs, méprisant tout ce qui n’est pas eux; individuellement les plus aimables des hommes, en corps les plus désagréables de tous; charmants dans leur propre pays, insupportables chez l’étranger; tour à tour plus doux, plus innocents que l’agneau, et plus impitoyables, Essai sur les Révolutions (1798) Génie du Christianisme (1800) Edition de la Pléïade (1978), page 834. 1 6 RHAA 22 Na terceira parte do gênio do Cristianismo, Chateaubriand estuda as relações e os efeitos mútuos entre o cristianismo e as artes liberales (literatura, eloquência, belas-artes...). Consagrando algumas páginas à História, ele negocia uma posição entre um passado do qual é preciso concluir e um futuro bem incerto. Entre estes dois in(de)init(d)os, navega-se à vista e o cálculo dos riscos é impossível... Chateaubriand quer mostrar que o cristianismo ainda tem futuro, o que o conduz a limitar a admiração obrigatória da Antiguidade, a condenar esse lugar comum do pensamento, de que agora somos incapazes de fazer tão bem quanto faziam os antigos; assim menciona “exceções” ao fato — reconhecido? — de que “os povos modernos não fornecem à história esse conjunto de coisas, essa grandeza de lições que fazem da história antiga um todo completo e uma pintura acabada” .1 Essa formulação conviria igualmente bem ao domínio da arte, o que não é surpreendente, pois ainda estamos hoje no conjunto desintegrado das artes – em que história e arte são vizinhas e no qual a osmose, ou a confusão, reinam entre os atos e suas descrições, entre a ação e a escrita. Preocupado em explicar o que torna difícil a relação dos franceses com a História, Chateaubriand se lança em um tipo de quadro em que tudo é comparativo e relativo, em que tudo se mexe! “Filhos primogênitos da Antiguidade, os franceses, romanos pelo gênio, são gregos pelo caráter. Inquietos e volúveis na felicidade, constantes e invencíveis na adversidade, formados para as artes, civilizados em excesso, quando o Estado está em calma; grosseiros e selvagens nos problemas políticos, lutuando como navios sem lastro ao capricho das paixões; presentemente nos céus, um instante depois no abismo; entusiastas do bem e do mal, sendo o primeiro se exigir reconhecimento e o segundo sem sentir remorso; não se lembrando nem de seus crimes, nem de suas virtudes; amantes pusilânimes da vida durante a paz; pródigos de seus dias nas batalhas; vaidosos, debochados, ambiciosos, ao mesmo tempo rotineiros e inovadores, desprezando tudo o que não são eles mesmos; individualmente os mais amáveis dos homens, em grupo 1 Chateaubriand, essai sur les révolutions (1798), génie du Christianisme (1800), edition de la Pléïade (1978), página 834. Peinture et Histoire os mais desagradáveis de todos; encantadores em seu próprio país, insuportáveis no exterior; ora mais doces, mais inocentes que um cordeiro, ora mais impiedosos, mais ferozes que um tigre; tais foram os atenienses e tais são os franceses de hoje.” 2 Esse período opulento, essa longa respiração histórica, esse retrato desdobrado de um povo, Chateaubriand inscreveu em seu ensaio sobre as revoluções e retomou de forma quase idêntica no gênio do Cristianismo que teve função de guia, de referência intelectual para uma geração. O fundo do pensamento é que, bem governado, o povo francês é capaz de grandes coisas — e compreende-se que a aparição do gênio tenha sido apoiada e aprovada pelo Primeiro Cônsul —; mas a matéria do desenvolvimento expõe a que ponto os dez anos de Revolução fragmentaram a imagem histórica de uma sociedade, confundiram as referências, fragilizaram as análises convencionais. Essa fragmentação Chateaubriand formalizou em paralelo. Quais discursos, quais descrições, quadros, imagens nascerão dessa polissemia, desse polimorismo? As primeiras décadas do século veem artistas e historiadores se engajarem em uma multidão de pistas políticas. O tratamento histórico é o terreno de uma hibridação entre dados “objetivos”, ideologias, regras sociais e políticas, um sistema de formas em si em processo de transformação. Estaríamos em um “tudo é possível agora que o Rei morreu” — e que Deus foi bem atingido? Tentarei responder a esses questionamentos apenas considerando a pintura dita de história nos primeiros trinta ou quarenta anos do século dezenove. Como ela responde à desarticulação histórica no registro qualitativo (modos, épocas, regime dos afetos) e na encarnação quantitativa do qualitativo (grande, pequena, ou mesmo média tanto no espírito quanto no formato, dado que há objetos materiais, e comércio e preço)? Nos primeiros anos do século, marcados por uma retomada dos Salões, aparece sob a etiqueta agora admitida de estilo ou pintura “troubadour” uma série de obras de pequeno formato, tratando temas pouco políticos, antes, morais — sentimentais, selecionados em um passado estendido da Idade Média ao século XVII e tratados em uma escritura lisa, atentos à descrição reinada e clariicada. O exame por meio dos catálogos dos plus féroces que le tigre; tels furent les Athéniens, et tels sont les Français d’aujourd’hui.2 Cette opulente période, cette longue respiration historique, ce portrait dédoublé d’un peuple, Chateaubriand l’a inscrit dans son essai sur les révolutions et l’a repris à peu près tel quel dans ce génie du Christianisme qui a fait fonction de guide, de référence intellectuelle pour une génération. Le fond de la pensée c’est que, bien gouverné, le peuple français est capable de grandes choses — et l’on comprend que la parution du génie ait été soutenue et approuvée par le Premier Consul —; mais la matière du développement expose à quel point les dix années de Révolution ont fragmenté l’image historique d’une société, brouillé les repères, fragilisé les analyses conventionnelles. Cette fragmentation, Chateaubriand l’a formalisée en parallèle. Quels discours, quelles descriptions, tableaux, images naîtront de cette polysémie, de ce polymorphisme? Les premières décennies du siècle voient s’engager sur une multitude de pistes politiques artistes et historiens. Le traitement historique est le terrain d’une hybridation entre des données “objectives”, des idéologies, des contraintes sociales et politiques, un système de formes elles-mêmes en procès de transformation. Sommes-nous dans un “tout est possible puisque le Roi est mort” — et que Dieu a été bien atteint? Je n’essaierai de faire face à ces questionnements qu’en considérant la peinture dite d’histoire dans les trente ou quarante premières années du dix-neuvième siècle. Comment répond-t-elle à la désarticulation historique dans le registre qualitatif (modes, époques, régime des affects) et dans l’incarnation quantitative du qualitatif (grande, petite, voire moyenne tant dans l’esprit que dans le format, puisque objets matériels il y a, et commerce, et prix)? Dans les premières années du siècle, scandées par un redémarrage des Salons, apparaît sous l’étiquette désormais admise de style ou peinture “troubadour” une série d’œuvres de petit format, traitant de sujets peu politiques, plutôt moraux — sentimentaux, sélectionnés dans un passé étendu du Moyen-Age au 17° siècle et traités dans une écriture lisse, soucieux de description rafinée et clariiée. L’examen dans les catalogues des Salons3 des sujets abordés ne fait apparaître aucune homogénéité idéologique ni 2 2 ibid., páginas 842-43. 3 ibid., pages 842-43. Réédition des Salons en fac simile. RHAA 22 7 jean-Philippe Chimot même stylistique. Du pathétique au coquin en passant par le dévot et le familier, les tonalités affectives varient; le matériel de mise en scène peut être plus ou moins solidement historique, plus ou moins adapté à l’époque de référence… La fréquence des personnages invités donne des indices: Henri IV vient en tête devant François 1°, Saint-Louis, Jeanne d’Arc, Marie Stuart, Bayard. En milieu de classement on rencontre Du Guesclin, Charles Quint, Richelieu, Charles 1° d’Angleterre, Elizabeth 1°, Philippe Auguste, Louis XI, Louis XIII. Assez peu de Moyen Age, guère de I8° s. Les activités prêtées à ces personnages sont ciblées: Henri IV passe son temps à être “sympa” et amoureux, François 1°aussi, et un peu cuistre, Bayard montre sa bonne éducation, Marie Stuart et Jeanne d’Arc souffrent. Si Henri IV est en armure, ce n’est pas pour se battre, Philippe Auguste non plus…Saint Louis est bien élevé, et à la guerre, il meurt en martyr… Les sujets ne sont pas toujours idylliques, certains sont funèbres, voire macabres; mais ils sont tenus éloignés de la violence gestuelle et de la guerre “en direct”. Un code de retenue, de décence, de bonnes manières imprègne l’essentiel de cette production. Les sujets peuvent être graves (faire la charité, prier, respecter les morts, souffrir pour une juste cause) mais l’approche est de l’ordre de l’ “understatement”. Les recueils d’anecdotes, de “traits” tendres ou plaisants afleurent dans les programmes descriptifs des œuvres tels que souvent on peut les lire dans les livrets de Salons. Où verra-t-on cette violence redoutable des Français dans les périodes agitées? Elle a été montrée — et elle occupe encore les salles Denon au Louvre — entre 1800 et 1814 dans les grands formats éclaboussés de sang suscités par l’Empire et les accords plaqués par Gros, Girodet, Meynier et quelques autres, bourrés de détails, de contrastes et de dissonances. Le désaccord implicite avec l’art “troubadour” est trop net pour être l’effet du hasard. Grand contre petit, agité contre calme, démesuré contre retenu. C’est l’évocation, le récit de l’histoire qui est en jeu, et il est conlictuel, dans un espace-temps social où les contradictions sont traitées sous forme d’oppositions charpentées par la rhétorique des formes, verbales ou visuelles. L’exclamation de Michelet au moment où il cherche à caractériser l’Empire (en 1812): La guerre, et nulle idée!4 vient 4 8 J’utilise pour cet article l’édition de l’Echoppe: Jules Michelet Géricault 1991. RHAA 22 Salões3 dos temas abordados não faz aparecer nenhuma homogeneidade ideológica, nem mesmo estilística. Do patético ao travesso, passando pelo devoto e o familiar, as tonalidades afetivas variam; material de encenação pode ser mais ou menos solidamente histórico, mais ou menos adaptado à época de referência... A frequência dos personagens convidados dá indícios: Henrique IV lidera na frente de Francisco I, de São Luís, Joana d’Arc, Maria da Escócia, Bayard. No meio da classiicação, encontram-se Du Guesclin, Carlos V, Richelieu, Carlos I da Inglaterra, Elizabeth I, Filipe Augusto, Luís XI, Luís XIII. Muito pouca Idade Média, escasso o século XVIII. As atividades atribuídas a esses personagens são direcionadas: Henrique IV passa o tempo sendo “legal” e apaixonado, Francisco I também; e um pouco pedante, Bayard mostra sua boa educação; Maria da Escócia e Joana d’Arc sofrem. Se Henrique IV está de armadura, não é para lutar, tampouco Filipe Augusto... São Luís é bem educado e, na guerra, morre como mártir... Os temas não são sempre idílicos, alguns são fúnebres, ou até macabros; mas são mantidos longe da violência gestual e da guerra “ao vivo”. Um código de recato, de decência, de boas maneiras impregna o essencial dessa produção. Os temas podem ser graves (fazer caridade, orar, respeitar os mortos, sofrer por uma justa causa), mas a aproximação é da ordem do “understatement”. As coletâneas de anedotas, de “traços” ternos ou agradáveis aloram nos programas descritivos das obras, conforme é possível ler nos livretos dos Salões. Onde será vista aquela violência temível dos franceses nos períodos agitados? Ela foi mostrada — e ela ocupa ainda as salas Denon no Louvre — entre 1800 e 1814 nos grandes formatos salpicados de sangue suscitados pelo Império e os acordes tocados por Gros, Girodet, Meynier e alguns outros, cheios de detalhes, contrastes e dissonâncias. O desacordo implícito com a arte “troubadour” é muito claro para ser efeito do acaso. Grande contra pequeno, agitado contra calmo, desmedido contra contido. Isto é a evocação, o relato da história que está em jogo, e ele é conlituoso, em um espaço-tempo social em que as contradições são tratadas sob a forma de oposições determinadas pela retórica das formas verbais ou visuais. A exclamação de Michelet no momento em que 3 Reedição dos Salões em fac-símile. Peinture et Histoire procura caracterizar o Império (em 1812): “guerra e nenhuma ideia!” 4 vem se oferecer para provocar o estabelecimento de algumas relações: fuga para a frente, esterilização de uma cultura por procedimentos e urgência que conduzem ao desastre pela exacerbação. Aonde conduz esta História nesta monomania mortífera? Face a face, um abrolhamento nas “artes” — mas só consideramos aqui as artes igurativas — em que o desejo de escapar à pressão histórica estimula a curiosidade pelos tempos e espaços históricos passados, esquecidos, desconhecidos. Há um movimento em direção ao passado e este movimento é calmo, progressivo, limitado pela(s) conveniência(s), vigiado do exterior e do interior, direcionado a atos, atitudes aumentando o que eu chamarei de “uma moral de compensação” (no presente). Eu me proponho a condensar esses elementos de contraste e de embate acerca de duas obras: a Carga de cavalaria do general Murat em aboukir 5 de J.A. Gros, exposta no Salão de 1806 (578 x 968 cm) e um torneio6 de Pierre Révoil (133 x 174 m) exposta no Salão de 1812. A obra de Gros é evidentemente autorizada e bem vista, ela embeleza o personagem avantajado do cunhado espadachim. Esse reluzente oicial de cavalaria, como Ney ou Lassalle, presta serviços nas batalhas. A cavalaria constrói menos as vitórias que a artilharia, mas ela pode dar o golpe decisivo. Aqui as aparências são lisonjeiras e a imagem do perigo, evidente. Acrescenta-se que, a essa ocorrência, uma cavalaria que soubesse manobrar era o bastante contra os mamelucos desajeitados e mal equipados. A desigualdade do combate é complacentemente exposta: os adversários fogem ou sonham em se render, uma só igura fervorosa ilustrando a bravura do adversário dá algum valor ao combate. O efeito vem do arranjo muito animado de um entrelaçar de volumes coloridos ao qual se estava desacostumado desde Rubens, e se falaria em neobarroco, se as massas fossem construídas em mais profundidade, mas na verdade Gros não se afasta muito do esquema em frisa, enriquecido de alguns Utilizo para este artigo a edição da Echoppe: Jules Michelet, Géricault, 1991. 5 Gros, óleo sobre tela, 578 x 968cm. Museu do Louvre. 6 Révoil, óleo sobre tela, 133 x 174cm. Museu de Belas Artes de Lyon. 4 s’offrir pour provoquer quelques mises en rapport: fuite en avant, stérilisation d’une culture par des procédures d’urgence qui mènent au désastre par la surenchère. Où mène cette Histoire dans cette monomanie meurtrière? En vis à vis, un bourgeonnement dans “les arts” — mais nous ne considérons ici que les arts iguratifs — où le désir d’échapper à la pression historique stimule la curiosité pour les temps, les espaces historiques passés, oubliés, inconnus. Il y a mouvement vers le passé, et ce mouvement est calme, progressif, limité par la (les) convenance(s), surveillé de l’extérieur et de l’intérieur, ciblé sur des actes, des attitudes relevant de ce que j’appellerai une “morale de compensation” (au présent). Je me propose de condenser ces éléments de contraste et d’enjeu autour de deux œuvres: la Charge de cavalerie du général Murat à aboukir,5 de J.A. Gros, exposé au Salon de 1806 (578 x 968 cm) et un tournoi6 de Pierre Révoil (133 x 174 cm) exposé au Salon de 1812. L’œuvre de Gros est évidemment autorisée et bien vue, elle enjolive le personnage avantageux du beau-frère sabreur. Ce reluisant oficier de cavalerie, comme Ney ou Lassalle, rend des services dans les batailles. La cavalerie construit moins les victoires que l’artillerie, mais elle peut donner le coup décisif. Ici les apparences sont latteuses, l’image du danger évidente. On ajoutera qu’en cette occurrence, une cavalerie sachant manœuvrer était bien sufisante contre des Mamelouks brouillons et mal équipés. L’inégalité du combat est complaisamment étalée: les adversaires fuient ou songent à se rendre, une seule igure farouche illustrant la bravoure de l’adversaire donne quelque valeur au combat. L’effet vient de l’arrangement très animé d’un entrelacs de volumes colorés dont on avait perdu l’habitude depuis Rubens, et l’on parlerait de néo-baroque si les masses étaient construites plus en profondeur, alors qu’en fait Gros ne s’écarte guère du schéma en frise, enrichi de quelques premiers plans qui tirent l’œil par leur pathétique. Aboukir sur terre était facile à gagner, c’est la bataille navale qu’il ne fallait pas perdre, et dont l’issue condamna une entreprise militairement farfelue. La déclinaison jusqu’à la in de l’Empire de sujets pris à la campagne d’Egypte n’est rien d’autre qu’une opération d’aliénation de l’opinion qu’on infantilise en lui 5 6 Huile sur toile 578 x 968cm Musée du Louvre. Huile sur toile 133 x 174cm Musée des Beaux Arts de Lyon. RHAA 22 9 jean-Philippe Chimot montrant de beaux spectacles. Dans l’ordre de l’histoire des formes et du goût, Gros ne fait pas mieux que Le Brun dans la série d’Alexandre ou que les divers spécialistes du combat de cavalerie. Il savait qu’il aurait les moyens de faire grand,et le gigantisme est une manière de simuler l’importance historique; à nous de juger et l’histoire, et l’art. La France impériale a pesé sur l’Europe de toutes manières… Les effets colorés puissants sont mis au crédit de Gros — comme ensuite de Delacroix — par les historiens d’art dans la mesure où ils analysent la production du 19° siècle — début 20° comme un ensemble d’autonomisations des divers aspects de la composition, et de la perception. La métaphore de “libération” (ici, de la couleur) a gardé de l’aura. Elle soutient un certain progressisme esthétique non dénué d’ambiguïté. Gros a mené plusieurs fois cette opération de grandissement dramatique (plutôt qu’épique) d’événements de signiication simple et médiocre: dès 1804 avec les Pestiférés de Jaffa, au Salon de 1810 avec Napoléon au champ de bataille d’eylau. On y reviendra. un tournoi au Xiv° siècle, de Pierre Révoil est tenu pour un des leurons de la peinture “troubadour” — appellation désormais consacrée, un peu condescendante et ironique comme tant d’autres en histoire de l’art… Révoil, comme Fleury Richard, est de Lyon, ville qui a longtemps passé avec quelque raison pour l’anti-Paris, d’opinions plus conservatrices, qui vient de traverser des épisodes très durs de révolte et de répression pendant la Convention. Révoil est passé par l’atelier de David; rentré à Lyon il mène de front sa carrière de peintre et une activité de collectionneur d’objets médiévaux qu’il aura le souci de léguer à sa ville. L’écriture du tournoi est linéaire, la composition aligne les motifs bâtis et humains comme à la parade, et c’est d’une forme de parade qu’il s’agit, d’un jeu rituel de chevalerie. Les couleurs sont d’un pastel harmonieux, Révoil se tient à l’écart du bariolé que ses confrères mettront avec un bonheur inégal tant dans leur Orient que dans leur Moyen-Age. Bon ton, bon goût. L’artiste est si peu intéressé par (ou doué pour) le mouvement qu’il faut une notice pour comprendre la part d’anecdote: si un chevalier relève habilement la visière du heaume du juvénile personnage central dont le cheval se cabre sagement, c’est pour “révéler” qu’un futur héros précoce, Du Guesclin, a désobéi à son père en participant victorieusement à un tournoi. Un zéphyr aimable plane sur cette scène idyllique… 10 RHAA 22 primeiros planos que atraem o olhar pelo patético. Aboukir em terra irme era fácil de vencer; é a batalha naval que não podia ser perdida e cujo resultado condenou uma empreitada militarmente maluca. O declínio, até o im do Império, dos temas tirados da campanha do Egito não é nada mais que uma operação de alienação da opinião que se infantiliza ao se mostrarem belos espetáculos. Na ordem da história das formas e do gosto, Gros não faz melhor que Le Brun na série de Alexandre ou que os diversos especialistas do combate de cavalaria. Ele sabia que teria os meios de fazer em grande formato, e o gigantismo é uma maneira de simular a importância histórica; cabe a nós julgar tanto a história quanto a arte. A França Imperial pesou sobre a Europa de todas as maneiras... Os efeitos coloridos poderosos são postos ao crédito de Gros — como em seguida de Delacroix — pelos historiadores da arte na medida em que eles analisam a produção do século XIX, começo do século XX, como um conjunto de autodenominações de diversos aspectos da composição e da percepção. A metáfora de “liberação” (aqui, da cor) manteve a aura. Ela apoia certo progressismo estético não despido de ambiguidade. Gros conduziu diversas vezes essa operação de ampliação dramática (mais do que épica) de acontecimentos de signiicado simples e medíocre: desde 1804 com as vítimas da peste de Jaffa, no Salão de 1810 com Napoleão no campo de batalha de eyleau. Retornaremos a isto. um torneio no século Xiv, de Piere Révoil, é tido como um dos lorões da pintura “troubadour” — denominação agora consagrada, um pouco condescendente e irônica como muitas outras na história da arte... Révoil, como Fleury Richard, é de Lyon, cidade que por muito tempo se passou, com certa razão, por uma anti-Paris, de opiniões mais conservadoras, que acaba de atravessar episódios duros de revolta e de repressão durante a Convenção. Révoil passou pelo ateliê de David; de volta a Lyon, ele conduziu simultaneamente a carreira de pintor e uma atividade de colecionador de objetos medievais que terá o cuidado de legar à sua cidade. A escrita do torneio é linear, a composição alinha os motivos construídos e humanos como no desile, e é de uma forma de desile que se trata, de um jogo ritual de cavalaria. As cores são de um pastel harmonioso, Révoil se mantém distante do Peinture et Histoire colorido que seus confrades colocarão com felicidade inigualável tanto em seu Oriente quanto em sua Idade Média. Bom tom, bom gosto. O artista é tão pouco interessado por (ou dotado para) o movimento, que é necessária uma informação para se compreender a parte de anedota: se um cavaleiro retira habilmente a viseira do elmo do juvenil personagem central cujo cavalo se empina obedientemente, é para “revelar” que um futuro herói precoce, Du Gesclin, desobedeceu ao seu pai ao participar vitoriosamente de um torneio. Uma brisa amável plana sobre essa cena idílica... Révoil presta atenção ao detalhe das coisas, aos detalhes de uma cultura. Não é certamente desse tipo de trabalho que se encarregavam os aspirantes à grande pintura, à pintura de História. Acontece também que David, ou Vincent, Regnault não buscavam sistematicamente entravar as preferências de seus alunos; um ateliê era uma espécie de pequena empresa de onde saía toda uma gama de técnicos qualiicados... No Salão de 1812, o torneio, confrontado com os acontecimentos e com certas realizações corajosas ou mais berrantes (retrato equestre de Murat7 de Gros e Oicial de caçadores carregando8, de Géricault, das quais esses são os começos) toma o sentido de uma demonstração pacata e harmoniosa dos comportamentos lúdicos e pacíicos de uma ordem passada, a cavalaria. A antiga nobreza está dissoluta e dizimada, a guerra é onipresente e custa cada vez mais caro, os pintores não podem muito mostrar os gestos de morte a tempo e, durante esse período, Révoil e seus amigos semeiam os exemplos nostálgicos de comportamentos nobres e desinteressados de atores sociais desaparecidos. Pequena história que seja essa dos torneios, dos amores, das relações anedóticas entre os grandes daquele mundo (no mesmo Salão, Gros mostra Francisco I recebendo Carlos V em Saint Denis,9 festival de costumes do Renascimento), a distribuição nessas obras é bastante “vip”! O tempo dos anônimos simbólicos de base (em Millet, Courbet) não chegou. Dito isto, esses ilustres não testemunham menos o tempo em que viveram. Gros, óleo sobre tela, 348 x 280cm. Museu do Louvre. Gériacult, óleo sobre tela, 349 x 266cm. Museu do Louvre. 9 Gros, François 1° et Charles Quint visitent les tombeaux de Saint-Denis le 13 01. 1540, 269 x 167cm. Musée du Louvre. Révoil prête attention au détail des choses, aux détails d’une culture. Ce n’est certes pas à ce type de travail que l’on exerçait les aspirants à la grande peinture, à la peinture d’Histoire. Il se trouve aussi que David, ou Vincent, Regnault ne cherchaient pas systématiquement à entraver les préférences de leurs élèves; un atelier était une sorte de petite entreprise d’où sortait toute une gamme de techniciens qualiiés… Au Salon de 1812, le tournoi, confronté aux événements et à certaines réalisations encouragées ou plus voyantes (Portrait équestre de Murat7 de Gros, et Oficier de chasseurs chargeant8 de Géricault , dont ce sont les débuts ) prend le sens d’une démonstration paisible et harmonieuse des comportements ludiques paciiques d’un ordre révolu, la chevalerie. L’ancienne noblesse est dissoute et décimée, la guerre est omniprésente et coûte de plus en plus cher, les peintres ne peuvent guère montrer les gestes de mort à leur terme, et pendant ce temps, Révoil et ses amis sèment les exemples nostalgiques de comportements nobles et désintéressés d’acteurs sociaux disparus. Petite histoire que celle des tournois, des amours, des rapports anecdotiques entre grands de ce monde (au même Salon Gros montre François 1° recevant Charles Quint à Saint Denis,9 festival de costumes Renaissance), la distribution dans ces œuvres est assez “people”! Le temps des anonymes symboliques de base (chez Millet, Courbet ) n’est pas venu. Ceci dit, ces illustres n’en témoignent pas moins du temps où ils ont vécu. On avait déjà peint des anecdotes plus ou moins galantes ou morales entre le 16° et le 18° siècles. Ce qui est assez nouveau, c’est le glissement de ce qu’on nomme “passé” à ce qu’on est amené à nommer “histoire” à cause de la précision croissante du matériel qui à défaut d’être “authentique”, s’annonce au moins différent, voire spéciique d’intention. Si la grande histoire est — était — le récit de ce qui a été déterminant dans le passé, proche et lointain, tandis que la petite histoire serait une multiplication de détails agréables ou excitants qui en dernière analyse détourneraient de l’essentiel par le divertissement, l’opposition entre peinture d’Empire et peinture troubadour ne nous mènera pas loin. A l’enterrement de Girodet (1824) Antoine Quatremère de Quincy plaignait les peintres 7 8 Huile sur toile 348 x 280cm Musée du Louvre. Huile sur toile 349 x 266cm Musée du Louvre. 9 François 1° et Charles Quint visitent les tombeaux de Saint-Denis le 13 01 1540 269 x 167cm Musée du Louvre. 7 8 RHAA 22 11 jean-Philippe Chimot transformés en reporters de guerre pour avoir des commandes! L’Histoire et l’Art y gagnaient-ils? Il pouvait suggérer sans risques qu’il ne l’avait jamais cru… Une manière de peindre, cet “art régénéré” des années 70-80, qualiiée depuis de “néo-classique” demeurait dans les esprits. Il se peut que les artistes des années 1800-20, puis ceux de la génération suivante (celle des Delaroche, Delacroix etc…) aient conservé un désir, un idéal d’intervention sur l’Histoire indépendant sinon DU pouvoir (anachronisme!), du moins des servitudes qu’entraîne le métier pratiqué dans la proximité des puissants. Si les textes oficiels différenciaient peinture d’Histoire et sujets présentant un “intérêt national”, cela répondait à une distinction que Girodet et David, notamment, prenaient très au sérieux. En quoi le sacre de Napoléon est-il grand? Par l’importance de l’événement ou par la taille de la toile? Encore empereur (pas pour longtemps) Napoléon estime que David perd son temps à inir le léonidas aux thermopyles.10 Cependant, entre les énormes commandes du sacre et de la distribution des aigles, David s’obstinait. Etait-ce que — rappelons la phrase de Chateaubriand — Les peuples modernes ne fournissent pas à l’histoire cet ensemble de choses, cette hauteur de leçons qui font de l’Histoire ancienne un tout complet et une peinture achevée? (On notera l’ambiguïté du langage qui assimile l’histoire à une peinture, inscrivant bien les deux activités dans le même cosmos de culture). Où mène la leçon du léonidas? A admirer un fait d’héroïsme sacriiciel, sufisamment étrange et “à la limite” pour qu’un pouvoir soucieux d’eficacité répugne à s’y reconnaître? A quelles Thermopyles arrêter en 1814 l’Europe exaspérée? L’embarras du peintre ne se livrait-il pas dans l’intrication, la mollesse indécise de cette tapisserie de nudités masculines? Le léonidas est une “embrouille” où s’abîme la peinture d’Histoire exemplaire bousculée par l’opportunisme enlevé des peintures d’actualité historique. David aura marqué la peinture et l’époque par des histoires de sacriice de l’affectivité à la Loi (pour les horaces et le Brutus), de respect d’une loi injuste (le socrate). L’Histoire ne passe bien que dans la mesure où on la proile en morale sociale et politique. Si elle est trop inféodée à la mise en valeur d’exploits guerriers ou diplomatiques, elle tourne au carnaval ou à la mascarade de guignols chamarrés, ce qui ennuie tout le monde, car la servilité Já se haviam pintado anedotas mais ou menos galantes ou morais entre os séculos XVI e XVIII. O que é bastante novo é o permear do que se nomeia “passado” com o que somos conduzidos a nomear “história”, por causa da precisão constante do material que, em detrimento de ser “autêntico”, se anuncia ao menos diferente, ou mesmo especíico na intenção. Se a grande história é — era — o relato do que foi determinante no passado, próximo e longínquo, enquanto a pequena história seria uma multiplicação de detalhes agradáveis ou excitantes que em última análise desviaria do essencial pelo divertimento, a oposição entre pintura do Império e pintura troubadour não nos levará longe. No enterro de Girodet (1824), Antoine Quatremère de Quincy se queixava que os pintores haviam se transformado em repórteres de guerra para terem encomendas. A História e a Arte ganhavam com isso? Ele podia sugerir sem riscos que não acreditara nunca nisso... Uma maneira de pintar, essa “arte regenerada” dos anos 70-80, qualiicada depois de “neoclássico” permanecia nos espíritos. Pode ser que os artistas dos anos 1800-20, depois aqueles da geração seguinte (a dos Delaroche, Delacroix etc.) tenham conservado um desejo, um ideal de intervenção sobre a História independente senão do poder (anacronismo!), pelo menos das servidões em que implica o trabalho praticado na proximidade dos poderosos. Se os textos oiciais diferenciavam pintura de História e temas apresentando um “interesse nacional”, isso respondia a uma distinção que Girodet e David, notavelmente, levavam muito a sério. Em que a sagração de Napoleão é grande? Pela importância do acontecimento ou pelo tamanho da tela? Ainda imperador (não por muito tempo) Napoleão acredita que David perde seu tempo terminando o leônidas nas termópilas.10 No entanto, entre as enormes encomendas da sagração e da distribuição das águias, David se obstinava. Era porque — lembremos a frase de Chateaubriand — “Os povos modernos não fornecem à história esse conjunto de coisas, essa grandeza de lições que fazem da História antiga um todo completo e uma pintura acabada?” (notar-se-á a ambiguidade da linguagem que assimila a história a uma pintura, inscrevendo bem as duas atividades no mesmo David, Óleo sobre tela. 395 x 531cm. Salão de 1814. Musée du Louvre. 10 10 Huile sur toile 395 x 531cm Salon de 1814 Musée du Louvre. 12 RHAA 22 Peinture et Histoire cosmos de cultura). Aonde leva a lição do leônidas? A admirar um fato de heroísmo sacriicial, suicientemente estranho e “no limite” para que um poder preocupado com eicácia se oponha a se reconhecer nele? Em quais Termópilas parar em 1814 a Europa exasperada? O embaraço do pintor não se livra no entrelaçamento, na moleza indecisa dessa tapeçaria de nus masculinos? O leônidas é uma “embrulhada” em que se abisma a pintura de história exemplar perturbada pelo oportunismo elevado dos pintores de atualidade histórica. David terá marcado a pintura e a época por histórias de sacrifícios dos afetos à Lei (para os horácios e o Brutus), de respeito a uma lei injusta (o sócrates). A História só passa bem na medida em que é perilada na moral social e política. Se ela é demasiadamente enfeudada na valorização das conquistas bélicas ou diplomáticas, ela se torna carnaval ou mascarada de palhaços espalhafatosos, o que incomoda a todos, pois a servidão não torna estúpido... O problema é que mostrá-la grande não resiste à prova da experiência e da crítica. A entrevista de Napoleão e de Francisco ii diante de austerlitz11 é um abismo de tédio e de compunção, assim como a Capitulação de Madrid12 ... Os poderosos dançam uma pavana de paz, todo mundo dorme, mesmo o pintor... Semelhantemente, a exposição fria e precisa de sentimentos mais combinados do que contidos, o detalhe da vida íntima de criaturas nobres pode abrir regiões desconhecidas, fazer admitir o que há de grandeza na discrição, mas se expostos os limites em uma escrita convencional, o ascetismo pode conduzir à anemia... Como combinar a corpulência da grande história com a ineza de leitura da pequena história? Como sugerir que no que é representado se oferece algo de importante, ao que não se teria pensado na primeira abordagem? Responder a este questionamento pode, como veremos, fazer emergir uma coerência, um acordo entre a atenção dada às obras no momento e no espaço de sua aparição, a densidade histórica e o coeiciente de inventividade estética que podem ainda lhes ser reconhecidos hoje. as vítimas da peste de Jaffa e Napoleão no campo de Gros, 1812. Óleo sobre tela 380 x 522cm Museu de Versalhes. 12 Gros, 1810. Óleo sobre tela, 361 x 500cm Museu de Versalhes. ne rend pas stupide… Le problème est que la montrer grande ne résiste pas à l’épreuve de l’expérience et de la critique. L’entrevue de Napoléon et de François ii après austerlitz11 est un gouffre d’ennui et de componction, de même que la Capitulation de Madrid12… Les puissants dansent une pavane de paix, tout le monde dort, même le peintre… Semblablement, l’exposition froide et précise de sentiments convenus encore plus que contenus, le détail de la vie intime de créatures nobles peut ouvrir des régions inconnues, faire admettre ce qu’il y a de grandeur dans la discrétion, mais si l’on expose des limites dans une écriture conventionnelle, l’ascèse peut conduire à l’anémie… Comment combiner la carrure de la grande histoire avec la inesse de lecture de la petite histoire? Comment suggérer que dans ce qui est représenté est offert quelque chose d’important, à quoi l’on n’aurait pas pensé au premier abord? Répondre à ce questionnement peut, on le verra, faire émerger une cohérence, un accord entre l’attention portée aux œuvres dans le moment et l’espace de leur apparition, la densité historique et le coeficient d’inventivité esthétique qui peuvent encore leur être reconnus aujourd’hui. les Pestiférés de Jaffa et Napoléon sur le champ de bataille d’eylau13 ont eu dès leur exposition un succès considérable attesté, et comptent toujours par le choc visuel qu’ils impriment, par les audaces chromatiques et tonales. On a déjà eu l’occasion de dire que ces deux réalisations couvraient des “coups tordus” de l’administration des Beaux Arts, dans le but d’effacer par une brillante performance deux massacres et deux échecs. C’est qu’il ne s’agit pas de faire la guerre (et nulle idée!), mais de glisser à ses conséquences, la maladie et la mort. Ce que ces œuvres, leur programme, organisent, c’est certes l’apparition — l’apparence — positivée du héros et de son action compensatoire; cependant, ni la rhétorique de conirmation ni la rhétorique de “dénonciation” ne sont en place: perçues simultanément, elles s’annulent dans une complexité d’effets où le trouble, la perplexité du spectateur se prolonge dans le travail de l’historien. La guerre certes, le pouvoir sans doute mais aussi la maladie, la peur, la mort, la géographie dramatiquement “appliquée” (la chaleur, le froid), l’inscription 11 11 12 13 1812 Huile sur toile 380 x 522cm Musée de Versailles. 1810 Huile sur toile 361 x 500cm Musée de Versailles. Jaffa 523 x 715cm Salon de 1804 Eylau 521 x 874cm Salon de 1810. RHAA 22 13 jean-Philippe Chimot par le sang, le vermillon et le cinabre dans les sols syrien ou polonais, voilà une histoire qui, de grande par proclamation, est déchue et fragmentée par les armes de la critique. Petite par sa concentration sur le détail du lieu, du moment, du type d’activité, elle est relancée par tout ce qu’elle révèle des traumatismes subis et des audaces d’un praticien incertain mais passionné parfois débordé par son sujet, Gros. Histoire naviguant entre le Grand et le Petit, accédant et menant à une importance, une signiication troublantes…C’est évidemment à l’apparition et à la réception du Radeau de la Méduse14 de Géricault que cette…navigation nous mène. Favorable ou défavorable, la critique a été saisie de stupeur par la taille et le traitement de l’épisode, une fois prise en compte sa nature. A première vue, un fait divers tragique vieux de trois ans, un de ces accidents de la mer qui retiendraient de nos jours les medias pour une courte séquence. Qu’un jeune peintre y consacrât un format égal à celui des plus grandes machines commandées par l’appareil d’Etat pour des commémorations programmées plongeait dans la perplexité. Quelle importance historique, esthétique pouvait-on attribuer à l’œuvre, à l’événement qui du coup se trouvait investi de sens possibles mais non soumis aux barèmes admis? Comment réagir à ces musculatures dignes d’un Jugement Dernier (événement suprême) roulant dans ce milieu dramatiquement assombri? Comment la présentation de l’épisode inal d’un événement de signiication première limitée — et d’ailleurs correctement “liquidé” du point de vue pénal — peut-elle mener un historien de la trempe de Michelet à écrire: c’est elle, c’est la société tout entière du siècle, que Géricault embarque avec lui, à insister: le portrait (de la France) dans son ensemble était si cruellement vrai que l’original refusa de se reconnaître et s’en détourna avec dégoût, et à conclure, désignant le personnage juché sur un tonneau qui fait signe: son geste, pour vous une énigme, fait appel à quelqu’un que lui voit ce quelqu’un, c’est l’avenir!15 Cet élan de Michelet a ouvert des perspectives et fait quelques dégâts: on ne compte plus les étudiants (même très avancés…) “démontrant” en un ou plusieurs coups (selon leur classement…) que telle œuvre donne une image signiicative, sinon idèle ou exacte de “la société”. On reçoit en retour les sourires batalha de eylau13 tiveram desde sua exposição um sucesso considerável atestado e contam sempre com o choque visual que imprimem, pelas audácias cromáticas e tonais. Já tivemos a ocasião de dizer que essas duas realizações cobririam os “golpes rasgados” da administração das Belas Artes, no objetivo de apagar por uma brilhante performance dois massacres e dois malogros. É que não se trata de fazer guerra (e sem ideia!), mas de passar às suas consequências, a doença e a morte. O que essas obras, seu programa, organizam é certamente a aparição — aparência — positivada do herói e de sua ação compensatória; entretanto, nem a retórica de conirmação, nem a retórica de “denúncia” estão no lugar: percebidas simultaneamente, elas se anulam em uma complexidade de efeitos em que o transtorno, a perplexidade do espectador se prolonga no trabalho do espectador. A guerra certamente, o poder sem dúvida, mas também o medo, a doença, a geograia dramaticamente “aplicada” (o calor, o frio), a inscrição pelo sangue, o vermelhão e o cinábrio nos solos sírio ou polonês, eis uma história que, grande por proclamação, é decaída e fragmentada pelas armas da crítica. Pequena pela sua concentração no detalhe do lugar, do momento do tipo de atividade, ela é relançada por tudo o que ela revela dos traumatismos enfrentados e das audácias de um praticante incerto, mas apaixonado e às vezes sobrecarregado pelo seu tema, Gros. História navegando entre o Grande e o Pequeno, atingindo e conduzindo a uma importância e uma signiicação perturbadoras... É evidentemente à aparição e à recepção da Balsa da Medusa,14 de Géricault, que essa... navegação nos conduz. Favorável ou desfavorável, a crítica foi tomada por estupor pelo tamanho e o tratamento do episódio, uma vez levada em consideração a sua natureza. À primeira vista, um fato diverso, trágico e velho de três anos, um desses acidentes marítimos que hoje em dia reteriam a mídia para uma curta sequência. Que um jovem pintor consagrasse para isso um formato igual àquele das maiores máquinas encomendadas pelo aparelho do Estado para comemorações programadas os afundava em perplexidade. Qual importância histórica, estética podia-se atribuir à obra, ao acontecimento que asGros, Jaffa 523x715cm, Salão de 1804 Eylau, 521x874cm Salão de 1810 14 Géricault, Óleo sobre tela. 491 x 719cm. Salão de 1819. Musée du Louvre. 13 14 15 Huile sur toile 491 x 719cm Salon de 1819 Musée du Louvre. Cf. note 4 supra pour la référence. 14 RHAA 22 Peinture et Histoire sim se encontrava investido de sentidos possíveis, mas não submissos às escalas admitidas? Como reagir a essas musculaturas dignas de um Juízo Final (acontecimento supremo) rolando nesse meio dramaticamente escurecido? Como a apresentação do episódio inal de um acontecimento de signiicação primeira limitada — e aliás corretamente “liquidada” do ponto de vista penal — pode levar um historiador da envergadura de Michelet a escrever: “é ela, é a sociedade inteira do século que Géricault embarca consigo”, a insistir “o retrato [da França] em seu conjunto era tão cruelmente verdadeiro que o original recusou se reconhecer e virou as costas com nojo”, e conclui, designando o personagem empoleirado sobre um barril acenando “seu gesto, para vós um enigma, apela para alguém que ele vê, esse alguém é o futuro!”. 15 Este elã de Michelet abriu perspectivas e fez alguns estragos: não se contam mais os estudantes (mesmo muito avançados) “demonstrando” em um ou diversos golpes (segundo sua classiicação...) que tal obra dá uma imagem signiicativa, senão iel ou exata “da sociedade”. Recebem-se em retorno os sorrisos incomodados dos eruditos e dos amantes da “especiicidade da arte”. No momento em que avança essa interpretação, Michelet não faz trabalho de historiador stricto sensu. A lição no Collège de France, ele não a pôde pronunciar. O regime de Luís Filipe o nomeou, mas suportou mal a função profética de relexão sobre a sociedade francesa que Michelet e seus amigos exercem há algum tempo. A leitura de Géricault é, sem dúvida, a de um historiador, mas que se avança como analista das relações sociais globalizadas. É o que chamamos hoje de história do tempo presente. a Balsa seria um artefato intermediário entre o símbolo e o sintomal. A história social da arte e a sociologia retomarão disso elementos estimulantes. Nós estamos muito longe do espírito da pequena história que pode assegurar, familiarizar, dar autorização, apoia devaneios agradáveis, e desse fato proliferar nas práticas, impregnar, satisfazer... e desviar desaios mobilizadores. Não estamos também na Grande História, que visa de frente fenômenos que ela às vezes erradamente considera como decisivos, determinantes: a mas15 agacés des érudits et des amants de la “spéciicité de l’art”. Au moment où il avance cette interprétation, Michelet ne fait pas œuvre d’historien stricto sensu. La leçon au Collège de France, il n’a pas pu la prononcer. Le régime de Louis Philippe l’a nommé, mais supporte mal la fonction prophétique de rélexion sur la société française que Michelet et ses amis exercent depuis quelque temps. La lecture de Géricault est sans doute celle d’un historien, mais qui s’avance comme analyste des rapports sociaux globalisés. Ce qu’on nomme aujourd’hui histoire du temps présent. Le Radeau serait un artefact intermédiaire entre le symbole et le symptômal. L’histoire sociale de l’art, la sociologie y reprendront des éléments stimulants. Nous sommes très loin de l’esprit de la petite histoire qui peut rassurer, familiariser, donner de l’agrément, soutenir d’agréables rêveries, et de ce fait proliférer dans les pratiques, imprégner, satisfaire….et détourner d’enjeux mobilisateurs. Nous ne sommes pas non plus dans la Grande Histoire, qui envisage de front des phénomènes qu’à tort parfois elle considère comme décisifs, déterminants: la mascarade syncrétique appelée Sacre de Napoléon, conirmée par un gigantesque tableau, se décompose en signes d’évolution d’une classe dirigeante nouvellement installée, et inquiète. Si nous considérons le Radeau comme pièce notoire d’une production et d’une consommation continues — jusqu’à nos jours —, il se présente comme partiellement transgressif par rapport à l’élaboration et à l’usage des oeuvres d’art , sufisamment a-temporel, y compris dans sa réalisation (nudités michelangelesques) pour acquérir un éventuel fonctionnement élargi, mobile. Cette “histoire” peut être reçue comme “leçon”, ce qui ixe, hors de grandeur et de petitesse, de généralité et de détail, son importance, sa convertibilité. Le Radeau est en lui-même un événement historique fort limité dans l’ordre de l’Histoire générale du siècle, mais important dans l’histoire de la production des objets de culture, supports de symboles, arts. Avoir contribué à empêcher que les artistes soient considérés essentiellement comme d’habiles serviteurs n‘est pas un mince accomplissement. Chateaubriand, dans le passage du génie du christianisme que je citais au début de ce parcours faisait, au fond, tableau rhétorique de l’impossibilité de représenter uniment (en tableau…) les Cf. nota 4 supra para a referência RHAA 22 15 jean-Philippe Chimot Français. Il n’eût pas composé cette table de décomposition si la Révolution française n’avait pas laissé une empreinte ineffaçable sur le pays, le peuple, la société, lui ôtant sa igure de convention et mettant à nu les contrastes — voire les contradictions — décapés par les affrontements et la perception des enjeux: grossiers et sauvages dans les troubles politiques, lottant comme des vaisseaux sans lest au gré des passions, à présent dans les cieux, l’instant d’après dans l’abîme.16 Certes la métaphore de l’esquif humain sur les lots n’a été étrennée ni par Chateaubriand ni par Géricault et le récit historique, l’analyse ne font guère que s’en nourrir éventuellement, sans s’y identiier. Mais l’art existe par œuvres — à la différence de l’Histoire — et c’est par des œuvres qu’il acquiert du sens. L’importance des événements historiques à traiter peut susciter d’autres réponses non conventionnelles chez les peintres pour peu que leur pratique, une disposition critique les y poussent. Une toile d’Alexandre-Gabriel Decamps me paraît amener une tout autre forme de décentrement par rapport à l’insatisfaisante alternative entre (grande) Histoire et petite histoire. L’option choisie relativise l’événement historique sur un mode original. Je veux parler de la défaite des Cimbres17. Dans un format très supérieur à ses habitudes, Decamps a composé ce qui à première vue est un panorama, vaste paysage en perspective cavalière de la région d’Aix en Provence, premier plan de lits de cours d’eau asséchés, plateau, collines, montagnes basses à l’horizon. C’est ce que les géographes déiniraient comme une surface d’érosion, c’est à dire une portion de surface terrestre uniiée par l’époque et la modalité de l’usure causée par le temps et le climat. L’ensemble est dans une gamme de teintes terreuses, fortement modelé dans le détail par les valeurs plus que par la couleur. C’est cette portion de terre qui est énoncée et scrutée (que le repérage s’allie à beaucoup de métier de paysagiste va de soi, mais laisse une impression solide de présence terrestre). Dans les dépressions causées par l’érosion, une mêlée confuse avec hommes et chevaux justiie le titre: Decamps attire notre attention sur la défaite des Cimbres (et des Teutons?) par Marius en 102 av J C, mais de manière telle que Charles Blanc, parmi d’autres, estime que le théâtre de la bataille est plus cf note 2 supra. Huile sur toile 130 x 195cm Salon de 1834 Titre complet dans le catalogue du Salon: Marius défait les Cimbres ans la plaine située entre Belsannettes et la Grande Fugière. 16 carada sincrética chamada Sagração de Napoleão, conirmada por um gigantesco quadro, se decompõe em sinais de evolução de uma nova classe dirigente instalada e inquieta. Se considerarmos a Balsa como uma peça notória de uma produção e de um consumo contínuos — até os nossos dias —, ela se apresenta como parcialmente transgressiva em relação à elaboração e ao uso das obras de arte, suicientemente atemporal, inclusive na sua realização (nus michelangelescos) para adquirir um eventual funcionamento alargado, móvel. Essa “história” pode ser recebida como “lição”, o que ixa, fora de grandeza e pequeneza, de generalidade e de detalhe, sua importância, sua convertibilidade. a Balsa em si é um acontecimento histórico fortemente limitado na ordem da História geral do século, mas importante na história da produção dos objetos de cultura, suportes de símbolos e artes. Ter contribuído para impedir que os artistas sejam considerados essencialmente como hábeis servidores não é uma realização pequena. Chateaubriand, na passagem do gênio do cristianismo, que eu citava no princípio desse percurso, fazia, no fundo, um quadro retórico da impossibilidade de representar de forma unida (em quadro...) os franceses. Ele não teria composto este quadro de decomposição se a Revolução Francesa não tivesse deixado uma marca inapagável no país, no povo, na sociedade, lhe removendo sua igura de convenção e pondo a pelo os contrastes — ou mesmo as contradições — desvelados pelos confrontos e pela percepção dos desaios: “grosseiros e selvagens nos problemas políticos, lutuando como navios sem lastro ao capricho das paixões; presentemente nos céus, um instante depois no abismo”. 16 Certamente, a metáfora do esquife humano sobre as ondas não foi inaugurada nem por Chateaubriand, nem por Géricault, e o relato histórico, a análise, só se alimentam dela eventualmente, sem se identiicarem. Mas a arte existe por obras — diferentemente da História — e é por obras que adquire sentido. A importância dos acontecimentos históricos a serem tratados pode suscitar outras respostas não convencionais nos pintores, desde que sua prática, uma disposição crítica, os leve a isso. Uma tela de Alexandre-Gabriel Decamps me 17 16 RHAA 22 16 Chateaubriand, ibid. Peinture et Histoire parece trazer uma forma totalmente diferente de mudança de interesse em relação à insatisfatória alternativa entre (grande) História e pequena história. A opção escolhida relativiza o acontecimento histórico de um modo original. Quero falar de a derrota dos cimbros.17 Em um formato muito superior ao que emprega de hábito, Decamps compôs o que à primeira vista é um panorama, vasta paisagem em perspectiva plana da região de Aix-en-Provence, primeiro plano de leitos de rios drenados, planalto, colinas, montanhas baixas no horizonte. É o que os geógrafos deiniram como uma superfície de erosão, ou seja, uma porção de superfície terrestre uniicada pela época pela modalidade do desgaste causado pelo tempo e pelo clima. O conjunto está em uma gama de tintas terrosas, fortemente modelado no detalhe pelos valores, mais do que pela cor. É esta porção de terra que é enunciada e escrutada (que a locação se alia ao trabalho do paisagista é óbvio, mas deixa uma impressão sólida de presença terrestre). Nas depressões causadas pela erosão, uma mistura confusa de homens e cavalos justiica o título: Decamps chama nossa atenção para a derrota dos cimbros (e dos teutos?) por Mário em 102 a.C., mas de tal forma que Charles Blanc, entre outros, acredita que o “teatro da batalha seja mais espantoso, mais soberbo que a batalha em si”. Essa mudança pode ter diversas causas e diversos efeitos: Decamps buscava fazer uma paisagem histórica (gênero autorizado, referenciado e regulamentado), mas fora das convenções em que uma meia dúzia de iguras em roupa antiga circulassem gesticulando entre árvores notáveis, ruínas de colunas e rochedos azulados graças a uma perspectiva leonardesca. Poussin se saíra bem e, mais recentemente, Turner... Mas aqui, nada de verdura, nada de gestos notáveis, dois cadáveres em primeiro plano para “prevenir” e responder ao título, apenas efeitos de massa, como se as iguras só saíssem da pasta terrestre para retornarem após terem rolado na poeira e na lama. Existem outros procedimentos para representar confrontos panoramicamente. Na França, o mais atual e notório dos especialistas era o general– Decamps, Óleo sobre tela. 130 x 195cm. Salão de 1834. Título completo no catálogo do Salão: Marius défait les Cimbres ans la plaine située entre Belsannettes et la Grande Fugière. 17 étonnant, plus superbe que la bataille elle-même. Ce déplacement peut avoir diverses causes et divers effets: Decamps cherchait à faire un paysage historique (genre autorisé, référencé et réglementé) mais hors des conventions où une demi-douzaine de igures en costume antique circulaient en gesticulant entre arbres remarquables, ruines de colonnes et rochers bleutés par une perspective léonardesque. Poussin s’en était bien tiré, et plus récemment Turner… Mais ici, point de verdure, point de gestes remarquables, deux cadavres en premier plan pour “prévenir” et répondre au titre, seulement des effets de masse, comme si les igures ne sortaient de la pâte terrestre que pour y rentrer après avoir roulé dans la poussière et la boue. Il existe d’autres procédés pour représenter panoramiquement des affrontements. En France, le plus actuel et notoire des spécialistes était le général — peintre Louis-François Lejeune,18 qui avait “suivi” et mis en page les principales campagnes de Bonaparte de l’Italie à la Moskowa. La technique est éprouvée: il faut que l’on voie à la fois le terrain, le dispositif des troupes au moment retenu de l’affrontement, et l’état-major, le chef. Si les tournois empanachés de Le Brun ou de Gros ne sont pas faits pour comprendre une bataille, les toiles de Lejeune ne sont pas sans valeur documentaire: elles campent le terrain en perspective cavalière et rendent compte d’une partie des manœuvres: cet artiste, ce militaire est aussi ingénieur-géographe. Decamps ne s’en différencie pas complètement, notamment par la vision panoramique élevée. Mais ce sont des Barbares qui furent défaits voici bien longtemps, et il accomplit ce paradoxe de peindre un corps à corps de loin, ce qui a pour résultat d’associer la géologie et une forme de géo-politique de l’affrontement. L’option et la réalisation de Decamps sont, de l’avis général, exceptionnels sinon uniques dans leur temps, presque à l’égal du Radeau de la Méduse quinze ans plus tôt. On ne cherche ici à en tirer aucune “leçon” pour l’histoire de l’art. Dans le système de production-jugement-diffusion, les “originaux”, soupçonnés de mauvais esprit, n’étaient pas encouragés. Ils étaient, au contraire, laminés par l’usure et la nécessité de poursuivre leur carrière. Decamps n’a fait qu’une fois cette tentative extraordinaire. Même Une exposition a eu lieu au Musée de Versailles de Février à Mai 2012 sur l’œuvre de Lejeune. Elle a donné lieu à la publication d’un ouvrage collectif dirigé par Valérie Bajou: Les guerres de Napoléon. Louis-François Lejeune général et peintre 280 pages, abondamment illustré. 18 RHAA 22 17 jean-Philippe Chimot chose pour Géricault, à la vie brève. On se bornera à remarquer qu’en Décembre 1833 paraissent les deux premiers volumes de l’Histoire de France de Michelet, et que le tableau de la France19 forme la première partie du second volume. C’est Michelet qui, au début de son Tableau afirme: L’histoire est d’abord toute géographie, développant ainsi une conviction qui l’anime depuis son travail de traduction de Vico. Il parlera d’une géographie un peu géologique, une histoire de la terre qui amènerait à l’histoire humaine. Ce même Michelet, dans une lettre citée par Paul Viallaneix,20 s’avance plus: L’école pittoresque a été supericielle. Elle n’a rien dit de la vie intérieure… L’école philosophique a été sèche et ennuyeuse. Elle analyse toujours, elle ne raconte jamais… Les pittoresques m’assomment, les soi disant philosophes d’abstractions sans profondeur ni fécondité… Avant moi, personne n’a parlé de géographie en historien… Il ne s’agit pas de proclamer que Michelet aurait raison; il s’avance sur une voie nouvelle et prometteuse. L‘esquisse de critique des historiens pittoresques peut nous faire penser à la grosse masse de la peinture d’histoire; celle de l’histoire philosophe aux grands exemples du “néo-classicisme”. J’ignore si Decamps avait eu l’occasion de lire le tableau de la France tout frais paru tandis qu’il peignait sa défaite (des Cimbres ou des teutons) inscrite dans cette Provence dont Michelet écrit dans son tableau: un pays traversé par tous les peuples aurait dû, ce semble, oublier davantage. Sous plusieurs rapports il appartient, comme l’Italie, à l’Antiquité. Grande Histoire si l’on veut, phase avancée de la lutte des Nomades du Nord contre la romanitas; mince événement avec le recul, parmi des centaines d’affrontements dans cette région de passage et dans les siècles suivants. Combat un peu mythique, traité en gigantesque catastrophe humaine par Heim21 une vingtaine d’années plus tard, celui-ci est l’œuvre d’un “indépendant” — cependant terriblement dépendant, pour vivre, de son image construite de peintre expert en turqueries, colorées et charpentées plastiquement. Jules Michelet Tableau de la France édition de 1949 Collection Les textes français. Texte établi et présenté par Lucien Refort. 20 Paul Viallaneix Michelet, les travaux et les jours Gallimard 1998 pages 144-45. 21 On peut voir cette toile gigantesque de 1853 au Musée des Beaux Arts de Lyon. 19 18 RHAA 22 pintor Louis-François Lejeune18 que havia “seguido” e relatado as principais campanhas de Bonaparte da Itália ao rio Moscovo. A técnica é posta à prova: é preciso que se vejam ao mesmo tempo o terreno, a disposição das tropas no momento do confronto e o estado-maior, o chefe. Se os torneios emplumados de Le Brun ou de Gros não são feitos para compreenderem uma batalha, as telas de Lejeune não são sem valor documental: elas posicionam o terreno em perspectiva plana e dão cota de uma parte das manobras: este artista, este militar é também engenheiro-geógrafo. Decamps não se diferencia completamente disso, notavelmente pela visão panorâmica elevada. Mas são bárbaros que foram derrotados há bastante tempo e ele cumpre esse paradoxo de pintar um corpo a corpo de longe, o que tem por resultado associar a geologia a uma forma de geopolítica do confronto. A opção e a realização de Decamps são, segundo a opinião geral, excepcionais, senão únicas, em seu tempo, quase como a Balsa da Medusa quinze anos antes. Não se busca aqui tirar nenhuma “lição” para a história da arte. No sistema de produção-julgamento-difusão, os “originais”, suspeitos de mau espírito, não eram encorajados. Eles eram, pelo contrário, diminuídos pelo desgaste e pela necessidade de perseguirem suas carreiras. Decamps so fez uma vez esta tentativa extraordinária. Mesma coisa para Géricault, de vida breve. Limitaremo-nos a assinalar que em dezembro de 1833 aparecem os dois primeiros volumes da História da França, de Michelet, e que o quadro da França19 forma a primeira parte do segundo volume. É Michelet que, no pincípio de seu quadro airma: “A história é primeiramente toda geograia”, desenvolvendo assim uma convicção que o anima desde seu trabalho de tradução de Vico. Ele falará de “uma geograia um pouco geológica, uma história da terra que conduzirá à história humana”. Este mesmo Michelet, em uma Uma exposição que aconteceu no Musée de Versailles de fevereiro a maio de 2012 sobre a obra de Lejeune. Por ocasião, houve a publicação de uma obra coletiva dirigida por Valérie Bajou: Les guerres de Napoléon. Louis-François Lejeune général et peintre 280 páginas, abundantemente ilustrado. 19 Jules Michelet. tableau de la France, edição de 1949, coleção les textes français. Texto publicado e apresentado por Lucien Refort. 18 Peinture et Histoire carta citada por Paul Viallaneix,20 avança mais: “A escola pitoresca foi supericial. Ela não disse nada da vida interior... A escola ilosóica foi seca e tediosa. Ela analisa sempre, não conta nunca... Os pitorescos me entediam, os pretensos ilósofos de abstrações sem profundidade nem fecundidade... Antes de mim, ninguém falou de geograia enquanto historiador...” Não se trata de proclamar que Michelet teria razão; ele avança em uma direção a uma via nova e prometedora. O esboço de crítica dos historiadores pitorescos pode nos fazer pensar na grande massa da pintura histórica; e a da história que ilosofa nos grandes exemplos do “neoclassicismo”. Ignoro se Decamps tivera a oportunidade de ler o quadro da França recém-publicado enquanto pintava sua derrota (dos cimbros ou dos teutos) inscrita nessa Província que Michelet escreve em seu quadro: “um país atravessado por todos os povos deveria, parece, ter esquecido mais. Sob várias relações, ele pertence, como a Itália, à Antiguidade”. Grande História, se quisermos, fase avançada da luta dos Nômades do Norte contra a romanitas; magro acontecimento com o recuo, entre centenas de confrontos nessa região de passagem e nos séculos seguintes. Combate um pouco mítico, tratado como gigantesca catástrofe humana por Heim21 vinte anos mais tarde, este é a obra de um “independente” — no entanto terrivelmente dependente, para viver, de sua imagem construída de pintor especializado em turqueries orientalismos, coloridos e estruturados plasticamente. A experiência da paisagem em que é inscrito, gravado o fantasma do confronto histórico, procura seu equilíbrio no trabalho do pintor sobre esta matéria, o único trabalho que ele pode domar. Nós a propomos aqui para responder uma vez, de viés, de maneira precária e não reiterada ao exercício de anamnese anunciado por Chateubriand na entrada do século e no sair da revolução: os abalos do acontecimento teriam agitado, deslocado todos os compartimentos do conjunto espaço-temporal chamado França, e o restaurador vigilante duvidava que fosse possível encontrar um ponto de vista uniicador que formasse um quadro coerente. Uma aproximação geográica permite balançar L’expérience du paysage où est inscrit, gravé le fantôme de l’affrontement historique cherche son équilibre dans le travail du peintre sur cette matière, le seul matériau qu’il puisse dompter. On la propose ici pour répondre une fois, de biais, de manière précaire et non réitérée à l’exercice d’anamnèse annoncé par Chateaubriand à l’orée du siècle et au sortir de la Révolution : les secousses de l’Evénement avaient agité, déboîté tous les compartiments de l’ensemble spatio — temporel appelé France, et le restaurateur vigilant doutait qu’il fût possible de trouver un point de vue uniiant qui fît tableau. Une approche géographique permet de secouer fugacement les inévitables idéologies dont s’accompagne l’écriture, la délinéation surveillées de l’Histoire… L’histoire prend la dimension que ceux qui y travaillent sont capables de lui donner. Sortir des apparences demande souvent l’audace d’un changement de focale, que l’on plonge dans le drame comme Géricault ou que l’on prenne du recul comme Decamps; dans les deux cas, au risque de s’y perdre. Paul Viallaneix Michelet, les travaux et les jours. Gallimard 1998, páginas 144-45. 21 Esta tela gigantesca de 1853 pode ser vista no Museu de Belas Artes de Lyon. 20 RHAA 22 19 jean-Philippe Chimot fugazmente as inevitáveis ideologias das quais se acompanha a escrita e a delineação vigiadas da História. A História toma a dimensão que aqueles que trabalham com ela são capazes de lhe dar. Sair das aparências exige frequentemente a audácia de uma mudança de foco, que se mergulhe no drama como Géricault ou que se recue como Decamps; nos dois casos, com o risco de se perder nele. tradução: Felipe da silva Corrêa 20 RHAA 22 A pagan display? The gallery of statues and the Vestibolo Rotondo of the Museo Pio Clementino Uma exposição pagã? A galeria de estátuas e o Vestibolo Rotondo do Museu Pio Clementino DANIELA GALLO* Professor of early Modern art history at the université de lorraine in Nancy Professora de História da Arte (Idade Moderna) na Université de Lorraine em Nancy Realized in the Vatican between 1771 and 1793, the Museo Pio Clementino has always been considered as a model, as well for the choice of sculptures as for their display. This paper is focused on strategies of display. It wishes to renew the debate on the architectural choices made by Michelangelo Simonetti in the Vestibolo Rotondo and in the Gallery of Statues. As a matter of fact, printed views of these rooms made at the end of the 18th century prove that architectural models that Simonetti and his illustrious patrons had in mind were an heritage of the antique as well as of 17th- and 18th-century Rome. When we decipher better the strategies of display of marbles in these two rooms, we understand better how and why the perception of art changed so radically between the beginning and the end of the century. between study of visual tradition and history of taste, this article is a irst step of a larger research which wishes to rewrite some chapters of artistic historiography through the study of display and visual perception rather then through the study of texts. AbSTRACT KEywORdS Museo Pio-Clementino, display. RESUMO Instalado no Vaticano entre 1771 e 1793, o Museu Pio Clementino sempre foi considerado um modelo, tanto na escolha como na exibição das esculturas. Este trabalho analisa as estratégias de exibição do museu, com a intenção de renovar o debate sobre as opções de arquitetura feitas por Michelangelo Simonetti no Vestibolo Rotondo e na Galeria das Estátuas. Aliás, impressões feitas no inal do século XVII dessas salas provam que os modelos arquitetônicos que Simonetti e seus patronos ilustres tinham em mente eram herança da antiga Roma dos séculos XVII e XVIII. Ao decifrarmos as estratégias de exibição dos mármores nessas duas salas, compreendemos melhor como e por que a percepção da arte mudou tão radicalmente entre o início e o im do século. Entre o estudo da tradição visual e da história do gosto, este artigo é o primeiro passo de uma pesquisa maior, que pretende reescrever alguns capítulos da historiograia artística pelo estudo da exposição e da percepção visual, em vez do estudo de textos. PALAVRAS-CHAVE Museu Pio-Clementino, exibição. Daniela Gallo is currently professor of Early Modern Art History at the Université de Lorraine in Nancy. She is specialized in the reception of Antiquity from the Renaissance to the beginning of the 19th century and in neoclassical sculpture. Her latest books include Histoire de l'art dans l'Antiquité (2005), a new French edition of Winckelmann’s Geschichte der Kunst des Alterthums, and Modèle ou Miroir ? Winckelmann et la sculpture néoclassique (2008). / daniela gallo é atualmente professora de história da arte (idade Moderna) na université de lorraine em Nancy. É especialista na recepção da antiguidade, do renascimento ao começo do século XiX e na escultura neoclássica. seus últimos livros incluem histoire de l'art dans l'antiquité (2005), uma nova edição francesa de Winckelmann’s geschichte der Kunst des alterthums, e Modèle ou Miroir? Winckelmann et la sculpture néoclassique (2008). * RHAA 22 21 daniela Gallo The Museo Pio Clementino, one of the most famous museums of antiquities in the eighteenth century, and one of the last to have been inished, was installed in the Vatican, in the former small palace of Pope Innocent VIII between 1771 and 1793. It was, for the most part, the work of three architects, Alessandro Dori, Michelangelo Simonetti and Giuseppe Camporese, and of a family of antiquarians from Liguria, the Viscontis. Giovambattista Visconti and his two eldest sons, Ennio Quirino and Filippo Aurelio supervised the iconographical choices made for the pictorial decoration, chose and distributed the antiquities in the different rooms, whilst at the same time overseeing the restoration of the marbles and mosaics. Ennio Quirino was also the author of the extensive illustrated catalogue, which appeared in seven volumes between 1782 and 1810, whilst his brother Filippo Aurelio succeeded Giovambattista as director, in 1784. In his new post, Filippo Aurelio endeavoured, amongst other things, and on several occasions, to write a guide of the museum’s rooms, which, however, was never published.1 I have already had several opportunities to speak about the choices made by the Viscontis in the installation of the Pio Clementino, and about their contribution to the history of antique art;2 other scholars have more recently studied how the restoration workshops functioned.3 Antonella Gioli lately published an important article on views of galleries of the museum by Vincenzo Feoli.4 As for the architectural construction, this was the subject of a comprehensive analysis by Gian Paolo Consoli about twenty years ago.5 Jeffrey Collins, like Maria Antonietta De Angelis and Chiara Felicetti before him,6 reconsidered in his book Papacy and Politics in eighteenth-Century rome: Pius vi and the arts, published in 2004, and in further more recent essays7 the decoI set out the principal points of the present article at the international conference the display of art in eighteenth-Century europe, 1700-1830, organised by Thomas W. Gaehtgens at the Getty Research Institute in Los Angeles on February 3 and 4, 2011. I am currently preparing an edition of these different projects by Filippo Aurelio Visconti, which are kept in the archives of the Vatican Museums. I wish to express my deepest gratitude towards Elaine Williamson for her careful editing. 2 GALLO 1991; GALLO 1992-1993; GALLO 2006 [2007]; GALLO 2007; GALLO 2010a; GALLO 2014. 3 Especially PIVA 2007. 4 GIOLI 2012. 5 CONSOLI 1996. 6 de aNGelis 1998 ; FELICETTI 1998. 7 COLLINS 2008-2009; COLLINS 2012. 1 22 RHAA 22 O Museu Pio Clementino, um dos museus de antiguidades mais famosos do século XVIII, um dos últimos a ser concluído, foi instalado no Vaticano, no pequeno e antigo palácio do Papa Inocêncio VIII entre 1771 e 1793. Resultou, em grande parte, do trabalho de três arquitetos: Alessandro Dori, Michelangelo Simonetti, Giuseppe Camporese, e de uma família de colecionadores de Ligúria, os Viscontis. Giovambattista Visconti e seus dois ilhos mais velhos, Ennio Quirino e Filippo Aurelio, supervisionaram as escolhas iconográicas feitas para a decoração pictórica, escolheram e distribuíram as antiguidades em diferentes salas, ao mesmo tempo em que acompanhavam a restauração dos mármores e dos mosaicos. Ennio Quirino foi também o autor de um extenso catálogo ilustrado, em sete volumes publicados entre 1782 e 1810; seu irmão Filippo Aurelio sucedeu Giovambattista como diretor, em 1784. Em seu novo cargo Filippo Aurelio empenhou-se, entre outras coisas e em diversas ocasiões, em escrever um guia das salas do museu, que, no entanto, nunca foi publicado.1 Em várias outras oportunidades falei sobre as escolhas feitas pelos Viscontis na instalação do Pio Clementino e sobre a contribuição deles para a história da arte antiga;2 outros pesquisadores têm estudos mais recentes sobre como funcionaram as oicinas de restauração.3 Antonella Gioli recentemente publicou importante artigo sobre as Vistas de Vincenzo Feoli relativas às galerias do museu.4 Quanto à construção arquitetônica, foi objeto de uma análise abrangente feita por Gian Paolo Consoli há cerca de vinte anos.5 Jeffrey Collins, como Maria Antonietta De Angelis e Chiara Felicetti anteriormente,6 em seu livro Papacy and Politics in eighteenth-Century rome: Pius vi and Eu apresentei os principais pontos do presente artigo na conferência internacional the display of art in eighteenthCentury europe, 1700-1830, organizado por Thomas W. Gaehtgens no Getty Research Institute em Los Angeles de 3 a 4 de fevereiro de 2011. Estou atualmente preparando uma edição desses diferentes projetos de Filippo Aurelio Visconti, os quais encontram-se nos arquivos dos museus do Vaticano. Gostaria de expressar minha profunda gratidão a Elaine Williamson pela sua cuidadosa edição. 2 GALLO 1991; GALLO 1992-1993; GALLO 2006 [2007]; GALLO 2007; GALLO 2010a; GALLO 2014. 3 Especialmente PIVA 2007. 4 GIOLI 2012. 5 CONSOLI 1996. 6 DE ANGELIS 1998; FELICETTI 1998. 1 Museo Pio Clementino the arts, publicado em 2004, e em ensaios mais recentes,7 colocam a decoração e a apresentação das obras do Museu Pio Clementino dentro de uma análise muito mais abrangente da política cultural do último Papa do Antigo Regime, que se enxergava como um novo Apolo dos tempos modernos. Além disso, tanto Consoli quanto Collins nos lembram que, se as salas do museu do Papa Clementino XIV e Pio VI foram claramente inspiradas nos modelos arquitetônicos do Império Romano, citações do Renascimento, da arquitetura moderna romana, e em particular da arquitetura religiosa, são raras. Agora, gostaria de me concentrar nessa dupla herança romana. Mais especiicamente, acredito que uma análise das estratégias que determinaram a apresentação das estátuas e relevos no vestibolo rotondo e na galleria delle statue do Pio Clementino podem esclarecer certos pontos que nos permitirão situar melhor o Museu do Vaticano no contexto de outras coleções de antiguidades romanas. Seu papel inovador na museograia europeia do inal do século XVIII e, de maneira mais geral, sua importância para a história da arte antiga deste período, deve, por meio deste, ser visto sob uma nova luz. O fragmento no lugar da honra Como já mencionei, o Museu Pio Clementino levou cerca de vinte anos para ser concluído. O trabalho chegou a um impasse na morte de Clemente XIV, em setembro de 1774, e só foi retomado por seu sucessor dois anos mais tarde. O projeto foi continuado em três estágios: primeiro, de 1776 a 1778, ao redor do pátio octogonal [Fig. 1], a seguir de 1778 a 1784, na nova ala oeste. Após a morte de Simonetti, Giuseppe Camporese dirigiu as últimas fases durante os anos de 1787 a 1792, construiu um salão novo, independente, o atrio dei quattro Cancelli, acima do qual instalou a sala della Biga. ele também terminou a longa galleria dei Candelabri, cuja construção teve início em 1785. Se, em 1792, o trabalho mais pesado da construção pôde ser considerado concluído, os artistas do estuque e os pintores somente inalizaram seu trabalho no ano seguinte. Em paralelo a esses trabalhos, os Viscontis organizaram exibições nas galerias durante esse período, movendo, frequentemente, esculturas de uma sala para outra acompanhando o progresso 7 COLLINS 2008-2009; COLLINS 2012. ration and presentation of works at the Museo Pio Clementino by placing it within a much wider analysis of the cultural policy of the last Pope of the Ancien Régime, one who saw himself as a new Apollo of modern times. Furthermore, both Consoli and Collins have reminded us that, if the rooms of the museum of Popes Clement XIV and Pius VI are clearly inspired by Imperial Roman architectural models, quotations from Renaissance and modern Roman architecture, and religious architecture in particular, are not unusual. I would like to concentrate now on this twofold Roman heritage. More speciically, I believe that an analysis of the strategies that determined the presentation of statues and reliefs in the vestibolo rotondo and in the galleria delle statue of the Pio Clementino can illuminate certain points that allow us to better place the Vatican Museum in the context of other Roman collections of antiquities. Its innovating role in late eighteenth-century European museography and, more generally, its importance for the history of antique art history of this period, should, by way of this, be seen in a new light. The fragment in the place of honour As I have just recalled, it took around twenty years for the Museo Pio Clementino to be completed. Work came to a halt on the death of Clement XIV, in September 1774, and was only re-launched, under his successor, two years later. The project was continued in three stages: irst, from 1776 to 1778, around the octagonal courtyard [Fig. 1], then, from 1778 to 1784 on the new west wing. Following the death of Simonetti, Giuseppe Camporese directed the last phases during the years 1787 to 1792, constructing a new, independent hall, the atrio dei quattro Cancelli, above which he installed the sala della Biga. He also inished the long galleria dei Candelabri, upon which work had started in 1785. If, in 1792, the heavier constructional work could be considered inished, the stucco artists and painters only inalised their work the following year. In parallel to these works, the Viscontis installed exhibits in the galleries throughout this period, often moving sculptures from one room to another following the progress of the architectural works. This was the case, amongst others, for the vestibolo rotondo, one of the museum’s two vestibules, which, in 1785, housed four Egyptian statues in greywacke (found at Tivoli in the excavations of the villa of Cassius), a relief with Pluto, Proserpine and other divinities found at Ostia, and two large RHAA 22 23 daniela Gallo candelabras, which had come to the museum from the basilica of Sant’Agnese fuori le Mura in 1772.8 Five years later, in December 1790, everything had been changed, with the exception of the relief. The Belvedere torso could now be found in the middle of the gallery, and the Egyptian statues in the four niches had been replaced by four large fragments: a fragment of a draped statue thought to represent a philosopher, found at Hadrian’s Villa; a dressed Torso of a supposed barbarian, previously at the Pighini palace on the Piazza Farnese (where it had aroused Raphael’s admiration, who recorded it in a drawing); a fragment of a seated female statue (that Filippo Aurelio Visconti considered to be a Nymph); and a male, larger-than-life half-igure found in the Laterano.9 The installation was not, however, inished as it still lacked three reliefs over niches. Thus, in 1792, the same fragments were enumerated in the printed museum guide-book written by the keeper Pasquale Massi, which sometimes listed different provenances, but announced the disappearance of the Belvedere torso, which had meanwhile been transported to the centre of the irst vestibule, the vestibolo quadrato. It had been replaced by a large basin in pavonazzetto marble.10 Since it was reproduced by Vincenzo Feoli [Fig. 2], the state of play described by Massi must have been deinitive. We cannot fail to be struck by such a presentation, which, from 1785 onwards, called attention to the fragments, and unashamedly drew the eye towards the sex and nudity of the male igure, cut off at hip-level. It has been suggested that this fragment should be recognized as half of a statue of genius Populi romani.11 The contrast with the Catholic message of the painted decoration of the vault is even more surprising. Indeed, in the The above data on the planning of the vestibolo rotondo is drawn from one of Filippo Aurelio Visconti’s unpublished guides: Musei Vaticani, Archivio, busta IV, fasc. 2.2, “Descrizioni del Museo Pio Clementino”, c. 2v. 9 Musei Vaticani, Archivio, busta IV, fasc. 2.3, “Indicazione del sito, ove sono gli Antichi Monumenti nel museo Pio Clementino in Decembre 1790”, c. 2; and fasc. 2.4, “Descrizioni del museo Pio Clementino”, c. 9r and 9v. 10 MASSI 1792, pp. 16-19. Here, the fragment of a male draped statue with alla greca sandals is said to come from the excavations in Castronovo, in the locality Chiaruccia, near Civitavecchia (p. 16). Massi speciies that the relief with Pluto and Proserpina came from the archbishop’s palace in Ostia (p. 18) and considers that the large fragment of a naked statue with a large cornucopia at its feet — “le gambe del laterano” evoked by F. A. Visconti — was found in Roma Vecchia (ibid.). It is still possible today to admire all these sculptures in the vestibolo rotondo. See Spinola 1996, pp. 13-16. 11 SPINOLA 1996, p. 15, n. 7. 8 24 RHAA 22 da construção arquitetônica. Esse foi o caso, entre muitos outros, do vestibolo rotondo, um dos dois vestíbulos do museu que, em 1785, abrigou quatro estátuas egípcias em grauvaca (encontradas em Tivoli nas escavações da villa de Cassius), um relevo com Plutão, Proserpina e outras divindades encontradas na Ostia, e dois grandes candelabros, os quais vieram da basílica de Sant’Agnese fuori le Mura em 1772.8 Cinco anos mais tarde, em dezembro de 1790, tudo tinha sido mudado, com exceção do relevo. O Torso de Belvedere podia ser visto no meio da galeria, e as estátuas egípcias nos quatros nichos tinham sido substituídas por quatro grandes fragmentos: um fragmento de estátua drapejado, na posição de um pensador representando um ilósofo, que foi encontrado na Villa de Hadrian; um torso vestido de um suposto bárbaro, anteriormente do palácio de Pighini na Piazza Farnese (onde ele tinha despertado a admiração de Rafael que registrou em um desenho); um fragmento de uma estátua feminina sentada (que Filippo Aurelio Visconti considerou ser uma Ninfa) e uma estátua de metade de um corpo masculino — maior que o tamanho natural — encontrada em Latrão.9 Todavia a instalação não estava completa, pois ainda faltavam três relevos sobre nichos. Assim, em 1792, os mesmos fragmentos estavam enumerados no livro-guia impresso do museu escrito pelo mantenedor Pasquale Massi que, por vezes, listou diferentes proveniências, mas anunciou o desaparecimento do torso de Belvedere, que havia sido transportado para o centro do primeiro vestíbulo, o vestibolo quadrato. Foi substituído por uma grande bacia de mármore pavonazzetto.10 Como 8 Os dados acima sobre o planejamento do vestibolo rotondo foram retirados de um dos guias não publicados de Filippo Aurelio Visconti: Museu do Vaticano, Arquivo, envelope IV, fasc. 2.2, “Descrições do museu Pio Clementino”, c. 2v. 9 Museu do Vaticano, Arquivo, envelope IV, fasc. 2.3, “Indicação do local, onde estão em monumentos antigos museu Pio Clementino em Dezembro 1790”, c. 2; e fasc. 2.4, “Descrições do museu Pio Clementino”, c. 9r e 9v. 10 MASSI 1792, pp. 16-19. Aqui o fragmento de uma estátua masculina drapeada, com sandálias alla grec, acredita-se que veio das escavações de Castronovo localizado na Chiaruccia, próximo a Civitavecchia (p. 16). Massi especiica que o relevo de Plutão e Proserpina veio do palácio do arcebispo em Ostia (p. 18) e considera que o grande fragmento de uma estátua nua com uma grande cornucópia aos seus pés “le gambe del laterano” evocado por F. A. Visconti — foi encontrado na Roma Vecchia (ibid.). Ainda hoje é possível admirar todas essas esculturas no vestibolo rotondo. Ver SPINOLA 1996, pp. 13-16. Museo Pio Clementino middle of the hemispherical calotte of the vestibolo rotondo, Cristoforo Unterperger had painted in 1777 a medallion in grisaille representing the Church giving the Tiara to Rome, an allegory of the consecration of Rome as the seat of the Pope’s temporal power.12 If Rome is the city of the Pope, we also owe its pagan past to the Pontiff, who brought it back to life in the rooms of the new museum that he installed and decorated at the Vatican, the seat of Christianity.13 From his arrival onwards, the visitor to the Pio Clementino therefore learned that, in this shrine to antique art, the two histories of Rome converged to celebrate the glory of Pope Braschi. Furthermore, by isolating the fragments of nude and draped statues within rectangular niches surmounted by reliefs and lanked by pillars of the colossal order, he would also have noticed that, even though antique pieces continued to be restored, the fragment could now be admired for itself. The plinth and the niche bestowed a particular aura upon the fragment, and the relief installed above it must have contributed to the contrast with the gap, underlining its status as a “part of a greater whole”. tinha sido reproduzida por Vincenzo Feoli [Fig. 2] é provável que a situação descrita por Massi deve ter sido deinitiva. Não podemos deixar de nos impressionar com essa apresentação, que de 1785 em diante, deu atenção para os fragmentos e que desavergonhadamente atraiu o olhar para o sexo e a nudez da igura masculina, cortada ao nível do quadril. Tem sido sugerido que esse fragmento pode ser reconhecido como uma das metades da estátua do genius Populi romani.11 O contraste com a mensagem católica da pintura de decoração da abóbada é ainda mais surpreendente. De fato, no meio do teto hemisférico do vestibolo rotondo Cristoforo Unterperger pintou em 1777 um medalhão cinzento representando a Igreja dando a coroa a Roma, uma alegoria da consagração de Roma como sede do poder temporal do Papa.12 Se Roma é a cidade do Papa, também seu passado pagão foi resgatado pelo Pontíice, que o trouxe de volta à vida nas salas desse novo museu instalado e decorado no Vaticano, a sede do Cristianismo.13 O visitante, ao chegar ao Pio Clementino, aprende que, neste santuário de arte antiga, duas histórias de Roma convergiram para celebrar a glória do Papa Braschi. Além disso, por meio do isolamento dos fragmentos de estátuas nuas e drapeadas dentro de nichos retangulares encimadas por relevos e ladeadas por pilares da ordem colossal, ele também notaria que, apesar de peças antigas continuarem a ser restauradas, o fragmento poderia agora ser admirado por si. O plinto e o nicho conferiram uma aura especial ao fragmento, e o relevo instalado acima contribuiu para o contraste com o vazio, sublinhando o seu estatuto como uma “parte de um todo maior”. Quando o torso de Belvedere foi colocado no meio do salão, essa disposição funcionou como uma moldura, destacando a qualidade excepcional da peça, reconhecida como obra-prima pelo menos desde os anos de 1430; esse status nunca foi questionado.14 Uma vez que o Torso foi substituído pela bacia, que estava intacta e com uma cor avermelhada, a apresentação desses quatro fragmentos When the Belvedere torso was placed in the middle of the room, this installation had functioned as a framework, enhancing the exceptional quality of the masterpiece, recognised as such since at least the 1430s and never doubted.14 Once the torso was replaced by the basin, which was intact and of a red colour, the presentation of these four fragments must have seemed even more extraordinary, because if in Roman collections of the Renaissance, fragmentary statues had been placed in niches — the courtyard of the Sasso d’Amateschi House is doubtless the most famous example of this phenomenon15 —, they had never been so carefully presented, nor so perfectly and rhythmically distributed, as in the vestibolo rotondo of the Pio Clementino. In the courtyards of the sixteenth century, fragmentary marbles were the norm; at the Pio Clementino they were a novelty. But the four pieces of the vestibolo rotondo were of colossal dimensions, and were of a blameless pedigree, as the fragment of a female draped statue — which actually came from a colossal statue of SPINOLA 1996, p. 15, n. 7. DE ANGELIS 1998, p. 42; e CRISTOFORO UNTERPERGER 1998, p. 184, n. 74. 13 Sobre esta questão, ver as considerações de COLLINS 2010, pp. 207-209. 14 Para uma pesquisa sobre a questão do torso de Belvedere no século XV, ver G. AGOSTI, in ANTIQUARIE PROSPETTICHE ROMANE 2006, pp. 48-49. de aNGelis 1998, p. 42 ; and CRISTOFORO UNTERPERGER 1998, p. 184, n. 74. 13 On this issue, see the considerations of COLLINS 2010, pp. 207-209. 14 For a survey of the question of the Belvedere torso in the 15th century, see G. AGOSTI, in ANTIQUARIE PROSPETTICHE ROMANE 2006, pp. 48-49. 15 See, for example, the anonymous drawing dated around 1540, in the Kupferstichkabinett in Berlin (n. inv. Kdz 2783). CHRISTIAN 2010, p. 206, ig. 156. 11 12 12 RHAA 22 25 daniela Gallo the goddess roma from the early days of the Empire — had been in the Ciampolini collection, one of the most important in Quattrocento Rome.16 Visual Strategies Sculptures were also moved around in the Gallery of Statues. This long corridor [Fig. 3] is the result of a prior transformation of the loggia in the small palace of Innocent VIII, carried out from 1771-1772, and of an elongation by about ifty metres towards the west, under the papacy of Pius VI, when the Chapel of Saint John the Baptist, decorated by Mantegna, and the sacristy were both destroyed. In this new part of the building, the decoration of the vault celebrates the stories of the gods and demi-gods of mount Olympus, evokes the exploits of Alexander the Great, exalts the great saints of Christianity and recalls the artistic policy of Pope Braschi in Rome and in the pontiical state. In the side lunettes, Unterperger has painted trompe-l’œil allegories of the twelve most important divinities in Greco-Roman antiquity, as the gallery was designed above all for the presentation of the statues of these gods.17 At the end, behind a fake curtain, a trompe-l’œil landscape of the Nile stretches space into ininity. Laid down on a great sarcophagus underneath the serlian arch and framed by two seated statues, the Cleopatra-ariadne, formerly in the Belvedere Garden, was in this sense staged, as if in a theatre. The dominant colours of the Gallery of Statues were blue and ochre. In front of the colossal, slightly projecting pilasters painted as false marble, the full-length statues, both male and female, nude, draped or armoured, rhythmically marked out the bays above their plinths at almost equal height [Fig. 4]. These were more often than not constituted of antique inscriptions, cippi or altars re-employed as pedestals. The upright statues alternated with the half-length igures, seated or squatting statues as well as with groups of modest dimensions [Fig. 5], placed in the middle of the bays in front of smooth panels. In some very rare cases, standing igures were placed alongside those of an identical size. Reliefs, hung like pictures above some of the smaller igures, ensure the alignment with the heads of the larger statues along SPINOLA 1996, p. 13. On this decoration, see de aNGelis 1998, pp. 43-44; and FELICETTI 1998. 16 17 26 RHAA 22 deve ter parecido ainda mais extraordinária, pois se, em coleções romanas do Renascimento, estátuas fragmentadas eram colocadas em nichos — sendo o pátio da casa Sasso d’Amateschi, sem dúvida, o mais famoso exemplo deste fenômeno,15 elas nunca foram tão cuidadosamente exibidas, nem tão perfeita e ritmicamente distribuídas como no vestibolo rotondo do Pio Clementino. Nos pátios do século XVI, mármores fragmentários eram norma; no Pio Clementino eram uma novidade. Mas as quatro peças do vestibolo rotondo tinham dimensões colossais, e um estilo irrepreensível, como o fragmento de uma estátua feminina drapeado — que na verdade veio de uma estátua colossal da deusa roma originada do início do Império — havia pertencido à coleção Ciampolini, uma das mais importantes do quattrocento romano.16 Estratégias Visuais Esculturas também foram retiradas da Galeria de Estátuas. Esse longo corredor [Fig. 3] é o resultado de uma importante transformação anterior na galeria no pequeno palácio de Inocêncio VIII, realizada no período de 1771-1772, e de um alongamento por cerca de cinquenta metros para o oeste, durante o papado de Pio VI, quando a Capela de São João Batista, decorada por Mantegna, e a sacristia foram ambas destruídas. Nessa nova parte da construção, a decoração da abóbada celebra as histórias dos deuses e semideuses do Monte Olimpo, evoca as conquistas de Alexandre, o Grande, exalta os grandes santos do cristianismo e recorda a política artística do Papa Braschi em Roma e no Estado pontifício. Nas lunetas laterais, Unterperger pintou alegorias em trompe-l’œil das doze mais importantes divindades da antiguidade Greco-Romana, já que a galeria fora projetada, acima de tudo, para a apresentação das estátuas desses deuses.17 No inal, atrás de uma falsa cortina, uma paisagem em trompe-l’oeil do Nilo se estende até o espaço ininito. Deitada em um grande sarcófago debaixo do arco serliano e emoldurado por duas estátuas sentadas, a Cleopatra-ariadne, anteriormente no Jardim de Belvedere, foi neste Ver, por exemplo, o desenho anônimo por volta de 1540, no Kupferstichkabinett em Berlin (n. inv. Kdz 2783). CHRISTIAN 2010, p. 206, ig. 156. 16 SPINOLA 1996, p. 13. 17 Sobre essa decoração, ver DE ANGELIS 1998, pp. 4344; FELICETTI 1998. 15 Museo Pio Clementino sentido disposta, como se estivesse em um teatro. As cores dominantes da Galeria de Estátuas eram o azul e o ocre. Em frente às pilastras colossais, ligeiramente salientes, pintadas como falso mármore, as estátuas de corpo inteiro, masculinas e femininas, nuas, envoltas ou blindadas, ritmicamente marcavam as baías acima dos plintos quase na mesma altura [Fig. 4]. Estes eram frequentemente constituídos por antigas inscrições, cippi ou altares reempregados como pedestais. As estátuas verticais alternavam-se com torsos, sentados ou de cócoras, bem como com grupos de dimensões modestas [Fig. 5] colocados no meio da galeria em frente a painéis lisos. Em alguns raros casos, iguras em pé de tamanhos idênticos eram colocadas com outras de tamanho idêntico. Relevos, pendurados como quadros acima de algumas das iguras menores, garantiam o alinhamento com as cabeças das estátuas maiores ao longo do comprimento do corredor, preenchendo as partes superiores dos painéis. É possível notar ao passar, que o relevo colocado acima do Centocelle eros é a Pisa restaurata de Pierino da Vinci, trabalho que se pensava ser de Michelangelo, comprado de Cavaceppi em janeiro de 1772. A exemplo dos corredores da Galeria degli Ufizi, onde o Bacchus de Michelangelo e o Bacchus de Jacopo Sansovino foram colocados ao lado de estátuas antigas das antigas coleções Médici, também no Pio Clementino parecia perfeitamente natural que o antigo e o moderno também fossem apresentados lado a lado.18 Na parede cega da Galeria, a parte superior das baías foi articulada apenas por um suave painel quadrangular. Acima dos arcos, que conduzem para outras salas, encontram-se dois relevos coloridos representando a apoteose de homero da coleção de Collona e o brasão de armas de Pio VI, sustentados por dois putti pintados por Unterperger.19 Como no vestibolo rotondo, na Galeria das Estátuas a decoração foi projetada para atrair o olhar do visitante. No registro inferior os painéis vazios atuam como nichos; os relevos, apesar de estarem pendurados em diferentes níveis em duas salas, acentuam a presença da estátua que the length of the corridor, illing the upper parts of the panels. One notices in passing that the relief hung above the Centocelle eros is the Pisa restaurata by Pierino da Vinci, then thought to be the work of Michelangelo, bought from Cavaceppi in January 1772. As is the case in the corridors of the Ufizi Gallery, where the Bacchus by Michelangelo and the Bacchus by Jacopo Sansovino are placed alongside antique statues from ancient Médici collections, at the Pio Clementino, the antique and the modern are also very much at home together.18 On the blind wall of the Gallery, the upper part of the bays was articulated only by a smooth, quadrangular panel. Only above archways leading through to other rooms could two coloured reliefs be found, representing the apotheosis of homer from the Colonna collection and the coat of arms of Pius VI, upheld by two putti, paintings by Unterperger.19 As in the vestibolo rotondo, in the Gallery of Statues the decoration had been designed to hold the viewer’s eye. In the lower register, the empty panels acted as niches; the reliefs, despite being hung at different levels in the two rooms, accentuated the presence of the statue they surmounted. Guided by the colossal order, the presentation chosen for the sculptures imposed a vertical reading of the wall, focussing the viewer’s eye on only one work at a time. The gallery was not only a place to pass through, linking two parts of an ediice where the lord of the manor exhibited his artistic heritage. Thanks to the presentation devised by the architect Simonetti and his colleagues, in the Gallery of Statues and in the other rooms of the Pio Clementino, visitors were encouraged to concentrate on the antique sculpture before them.20 By spacing the sculptures out and thus making them more scarce, architects and antiquarians had granted a new, essential role to natural light. It went without saying that visitors would from now on discover new aspects of antique art, such as formal qualities and stylistic differences, and much in the same way as in contemporary picture galleries, they sought to recognize the differences between the various schools.21 The indisputable importance of iconography in the exegesis of Greco-Roman antique art was also being called into question. COLLINS 2012, p. 139 considers the depiction by Pierino da Vinci of Grand Duke Cosimo I de’ Médici revitalizing Pisa by chasing away enemy vices and introducing the sciences, arts and commerce as an allegory of Clement XIV’s analogous efforts in Rome. 19 see de aNGelis 1998, p. 39. 20 see COLLINS 2012, pp. 121-123. 21 see GALLO 2014. 18 18 COLLINS 2012, p. 139, considera a representação de Pierino da Vinci do Grão-duque Cosimo I de Médici e revitaliza Pisa afugentando vícios inimigos e introduzindo as ciências, as artes e o comércio como uma alegoria de Clemente XIV, esforços análogos em Roma. 19 Ver DE ANGELIS 1998, p. 39. RHAA 22 27 daniela Gallo There can be no doubt that Michelangelo Simonetti found his inspiration for the architectural decoration of the new part of the Gallery of Statues at the Pio Clementino in the fusion of two traditions. The irst is that of Roman princely galleries. Braschi, as a sovereign, links himself to this tradition and seeks to eclipse the memory of splendid, masterfully articulated enilades such as that of the galleria at the Colonna Palace.22 In this case however, instead of panels, we ind windows in the North wall; the bays are organised along two levels rather than three, and inally the pilasters in giallo antico are very different from those in the Vatican Gallery, constituted of two superposed pilasters, a straighter pilaster forming a projection in front of which the statue stands, which helps the eye to focus on the work of art. I do believe, however, that we can legitimately ask whether Simonetti had not also taken inspiration from the naves of Roman churches. The device of a vertical bay is highlighted by the colossal order, and rhythmically articulated, on the lower register, by statues surmounted by reliefs. In the upper register, meanwhile, nothing more than smooth panels lighten the wall. This device had already served to catch the eye and prompt the prayers of the faithful. We need only think of, for example, the Borrominian nave of San Giovanni in Laterano [Fig. 6], where the great statues of the saints in white marble are placed in high-plinthed niches, above which are reliefs, whilst, in the third, latter register, the space between luted pilasters is occupied by medallion-shaped pictures. In Rome, the route from the worship of saints to that of the artworks of pagan antiquity was never very long, nor winding. The challenge to be overcome was the same: to favour the concentration of the beholder. Other eighteenth-century architects and patrons prior to Simonetti and Pius VI had well understood this principle in Rome. The hanging of the reliefs of antinous as the genius of springtime and orpheus and eurydice as overmantels in the two salons neighbouring the Gallery at Villa Albani bears witness to this. As I have recently had the opportunity to write,23 the richness of marble and stucco framing, in bright polychromy, sanctiies these reliefs. At Villa Albani, under the inluence of Cardinal Alessandro, the antinous Winckelmann was so fond of had been transformed into a new, cult work, nourished by the encimam. Guiada pela ordem colossal, a escolha da apresentação das esculturas impunha uma leitura vertical da parede, convocando o olhar do visitante para uma obra de cada vez. A galeria não era apenas um local de passagem, unindo duas partes de um edifício onde o senhor da casa exibia sua herança artística. Graças à apresentação concebida pelo arquiteto Simonetti, seus colegas, na Galeria das Estátuas e nas outras salas do Pio Clementino, os visitantes eram encorajados a se concentrarem nas antigas esculturas diante deles.20 Espaçando as esculturas e, assim, tornando-as mais escassas, arquiteto e antiquário garantiram um novo papel essencial à luz natural. Desnecessário dizer que os visitantes a partir de agora buscavam descobrir novos aspectos da arte antiga, como as diferenças entre qualidades formais e estilísticas, da mesma forma que nas galerias contemporâneas o visitante procura reconhecer as diferenças entre várias escolas.21 A incontestável importância iconográica na exegese da arte antiga greco-romana também estava sendo questionada. Não há dúvida de que Michelangelo Simonetti encontrou sua inspiração para a decoração arquitetônica da nova parte da Galeria das Estátuas do Pio Clementino na fusão de duas tradições. A primeira é a das galerias romanas principescas. Braschi, como soberano, integra-se a esta tradição e procura eclipsar a memória das esplêndidas eniadas, magistralmente articuladas como na galleria no Palácio de Colonna.22 Nesse caso, contudo, ao invés de painéis, encontramos janelas na parede ao norte; as aberturas são organizadas ao longo de dois níveis, em vez de três, e inalmente as pilastras em giallo antico são bem diferentes das da Galeria do Vaticano, constituídas por duas pilastras sobrepostas, uma pilastra reta formando uma projeção em frente à qual a estátua se ergue auxiliando a focar o olhar na obra de arte. Acredito, no entanto, que podemos legitimamente perguntar se Simonetti não tinha também se inspirado nas naves das igrejas romanas. O dispositivo da abertura vertical é destacado pela ordem colossal, e ritmicamente articuVer COLLINS 2012, pp. 121-123. Ver GALLO 2014. 22 Ver a bonita aquarela ilustrando o Sul e o Norte da parede da Galleria Colonna de Roma, feita por Salvatore Colonelli Sciarra c. 1730, mantida na coleção do Príncipe de Colonna, Roma. S. WALKER, in LIFE AND THE ARTS IN THE BAROQUE PALACES OF ROME 1999, pp. 162-163, n. 34. 20 21 See the beautiful watercolour illustrating the South and North Wall of the Galleria Colonna in Rome made by Salvatore Colonelli Sciarra in c. 1730, kept in the collection of the Princes Colonna, Rome. S. Walker, in LIFE AND THE ARTS IN THE BAROQUE PALACES OF ROME 1999, pp. 162-163, n. 34. 23 GALLO 2010b, pp. 26-27. 22 28 RHAA 22 Museo Pio Clementino lado, no registro inferior, pelas estátuas encimadas por relevos. No registro superior, no entanto, nada mais há do que painéis lisos que clareiam a parede. Esse dispositivo já tinha sido utilizado para atrair o olhar e estimular as orações dos iéis. Basta pensar apenas na nave borrominiana da igreja de San Giovanni in Laterano [Fig. 6], onde se encontram as grandes estátuas dos santos de mármore branco em nichos e sobre altos plintos, acima dos quais estão dispostos relevos, enquanto, no terceiro, registro mais plano, o espaço entre as pilastras caneladas é ocupado por pinturas em formato de medalhões. Em Roma, a rota desde a adoração de santos até as obras de arte da antiguidade pagã nunca foi muito longa, nem sinuosa. O desaio a ser superado era o mesmo: favorecer a concentração do observador. Outros arquitetos e patronos do século XVIII anteriores a Simonetti e Pio VI entenderam bem esse princípio em Roma. A instalação dos relevos de antônio como o gênio da primavera e orfeu e eurídice em painéis sobre as lareiras nos dois salões contíguos à Galeria no Villa Albani é prova disso. Como escrevi recentemente,23 a riqueza do mármore e do enquadramento em estuque, em policromia brilhante, santiica esses relevos. Na Villa Albani, sob a inluência do Cardinal Alessandro, o antinous, do qual Winckelmann gostava tanto, foi transformado em um trabalho novo, cultuado, alimentado pela grande admiração pela arte antiga. Além disso, o paradigma religioso dos retábulos toscanos do Renascimento, pintados, ou em terracota esmaltada, e até mesmo algumas pale venezianas, foram fundamentais para essa transformação. Podemos agora compreender como os destinos temporais e religiosos foram inseparáveis na cidade papal. Quando, em junho de 1506, Júlio II criou, no Belvedere “a posta come una cappella” para o laocoonte, transformou o grupo recentemente descoberto em um ícone de beleza da Antiguidade, e o único equivalente encontrado para descrever os nichos do pátio foi o da capela.24 A veneração que o devoto iel tinha mostrado diante das estátuas dos santos poderia agora ser conferida a essa obra-prima redescoberta da arte da Roma antiga. No entanto, foi na Villa Albani e no Museu Pio Clementino que esta santiicação das obras-primas highest admiration for antique art. Furthermore, the religious paradigm of the Tuscan altarpieces of the Renaissance, either painted or in glazed terra-cotta, and even some Venetian pale, had been fundamental in this transformation. We can now understand how inseparable the temporal and religious destinies of the Papal City were. When, in June 1506, Julius II created, at the Belvedere, ‘a posta come una cappella’ for the Laocoon, he transformed the recently discovered group into an icon of antique beauty, and the only equivalent that was found to describe the niches of the court was that of the chapel.24 The veneration that the faithful servant had shown before the statues of the saints could now be bestowed upon this rediscovered masterpiece of the art of antique Rome. However, it was at Villa Albani and at the Museo Pio Clementino that this sanctiication of the sculpted, Greco-Roman masterpiece saw its greatest moments. It lived through its last days of splendour in the Musée Napoléon, where the apollo Belvedere was given a presentation worthy of a great saint, arousing, amongst other things, the passion of a young girl who, everyday, came to place lowers at the foot of the statue. She eventually lost her mind and died.25 With the arrival of the Elgin Marbles in London and with the discovery of other Mediterranean civilisations in the early decades of the nineteenth century, scholarly interest shifted momentarily away from the great Roman collections. The visual strategies that had been put into place at the Pio Clementino, favouring concentration and, consequently, the study of forms and styles, was a precedent which allowed for a critical approach towards these new works which entered brusquely into the European cultural ield. The qualitative hierarchies established by the Renaissance were now deinitively called into question. Bibliography AntiquArie ProsPettiche romAne 2006 antiquarie Prospettiche romane, G. Agosti, D. Isella ed., Parma 2006. The quotation is from a letter of June 1,1506 sent by Cesare Trivulzio to his brother Pomponio in Milan. See Maffei 1999, pp. 108-109, n. II.5 25 This event took place in 1806-1807. It is related by German travellers such as Helmina von Chézy. See CHÉzY 2009, pp. 377-381. On the sojourn of the Apollo Belvedere in Paris as a turning point, see Gallo 2009 and GALLO 2012. 24 GALLO 2010b, pp. 26-27. A citação é da carta de 1º de junho de 1506, enviada por Cesare Trivulzio para seu irmão Pomponio em Milan. Ver MAFFEI 1999, pp. 108-109, n. II.5 23 24 RHAA 22 29 daniela Gallo Chézy 2009 H. von Chézy, leben und Kunst in Paris seit Napoleon i., B. Savoy ed., Berlin 2009. Christian 2010 k.W. 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E acabou enlouquecendo e morreu.25 Com a chegada dos Mármores de Elgin a Londres e com a descoberta de outras civilizações no Mediterrâneo nas primeiras décadas do século XIX, o interesse acadêmico desviou-se momentaneamente das grandes coleções romanas. As estratégias visuais postas em prática no Pio Clementino, favorecendo a concentração e, consequentemente, o estudo de formas e estilos, foram precedentes que permitiram uma abordagem crítica em relação a essas novas obras que irromperam bruscamente no campo cultural europeu. As hierarquias qualitativas estabelecidas pela Renascença foram agora deinitivamente questionadas. tradução: aline Ferreira gomes. Collins 2012 J. Collins, Museo Pio-Clementino, vatican City: ideolog y and aesthetics in the age of the grand tour, in the First Modern Museums of art. the Birth of an institution in 18th- and the early-19th-Century europe, C. Paul ed., Los Angeles 2012, pp. 113-143. Consoli 1996 G.P. 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Gallo, il Museo Clementino tra novità e tradizione, in l’età di Papa Clemente Xiv. religione, politica, cultura, Atti del convegno (Santarcangelo di Romagna, Rocca Malatestiana, 7-8 ottobre 2005), M. Rosa, M. Colonna ed., Roma 2010, pp. 237-258. gallo 2010b D. Gallo, vivre à l’antique, in anticomania, Exhibition catalogue A. Kugel ed., Paris 2010, pp. 13-39. gallo 2012 D. Gallo, des manuels sur l’art et des guides pour un nouvel public, in stendhal, historien de l’art, D. Gallo ed., Rennes 2012, pp. 31-42. gallo 2014 D. Gallo, les antiquaires italiens du Xviiie siècle à l’épreuve du style, in l’héroïque et le Champêtre, M. Cojannot-Leblanc, C. Pouzadoux, É. Prioux ed., actes du colloque international (Paris, INHA, 1720 mars 2010), Nanterre 2014, vol. II, pp. 273-291, forthcoming. d. Gallo, Œuvrer pour la grandeur de rome au RHAA 22 31 daniela Gallo a. Gioli, le vedute del Museo Pio Clementino di vincenzo Feoli, “Bollettino dei Monumenti Musei e Gallerie Pontiicie”, XXX, 2012, pp. 221-340. Xviiie siècle. les collectionneurs d’antiques, in Collections et pratiques de la collection en suisse au Xviiie siècle, Actes du colloque (Bâle, 16-18 octobre 2003), B. Schubiger, D. Schwinn Schürman, C. Hurley ed., Geneva 2007, pp. 489-511. life and the arts in the Baroque PalaCes of rome 1999 gallo 2009 Life and the arts in the Baroque Palaces of rome. ambiente barocco, Exhibition catalogue, S. Walker, F. Hammond ed., New York 1999. D. Gallo, the galerie des antiques of the Musée Napoléon: a new perception of ancient sculpture?, in Napoleon’s legacy: the rise of National Museums in europe, 17941830, E. Bergvelt, D. J. Meijers, L. Tibbe, E. van Wezel ed., Berlin 2009 (“Berliner Schriftenreihe zur Museumsforschung”, 27), pp. 111-123. Gioli 2012 maffei 1999 s. maffei, la fama di laocoonte nei testi del Cinquecento, in s. settis, laocoonte. Fama e stile, Roma, 1999, pp. 85-230. Massi 1792 Indicazione antiquaria del Pontiicio Museo Pio-Clementino in Vaticano stesa da Pasquale Massi Cesenate custode del Museo stesso, Roma, presso i lazzarini, 1792. Piva 2007 gallo 2010a D. Gallo, il Museo Clementino tra novità e tradizione, in l’età di Papa Clemente Xiv. religione, politica, cultura, Atti del convegno (Santarcangelo di Romagna, Rocca Malatestiana, 7-8 ottobre 2005), M. Rosa, M. Colonna ed., Roma 2010, pp. 237-258. gallo 2010b C. Piva, restituire l’antichità. il laboratorio di restauro della scultura antica del museo Pio-Clementino, Roma 2007. D. Gallo, vivre à l’antique, in anticomania, Exhibition catalogue A. Kugel ed., Paris 2010, pp. 13-39. sPinola 1996 gallo 2012 G. sPinola, il Museo Pio Clementino, 1, Città del Vaticano 1996. D. Gallo, des manuels sur l’art et des guides pour un nouvel public, in stendhal, historien de l’art, D. Gallo ed., Rennes 2012, pp. 31-42. gallo 2014 D. Gallo, les antiquaires italiens du Xviiie siècle à l’épreuve du style, in l’héroïque et le Champêtre, M. Cojannot-Leblanc, C. Pouzadoux, É. Prioux ed., actes du colloque international (Paris, INHA, 1720 mars 2010), Nanterre 2014, vol. II, pp. 273-291, forthcoming. Gioli 2012 a. Gioli, le vedute del Museo Pio Clementino di vincenzo Feoli, “Bollettino dei Monumenti Musei e Gallerie Pontiicie”, XXX, 2012, pp. 221-340. life and the arts in the Baroque PalaCes of rome 1999 Life and the arts in the Baroque Palaces of rome. ambiente barocco, Exhibition catalogue, S. Walker, F. Hammond ed., New York 1999. m affei 1999 s. m affei, la fama di laocoonte nei testi del Cinquecento, in s. settis, laocoonte. Fama e stile, Roma, 1999, pp. 85-230. Massi 1792 Indicazione antiquaria del Pontiicio Museo Pio-Clementino 32 RHAA 22 Museo Pio Clementino in vaticano stesa da Pasquale Massi Cesenate custode del Museo stesso, Roma, presso i lazzarini, 1792. Piva 2007 C. Piva, restituire l’antichità. il laboratorio di restauro della scultura antica del museo Pio-Clementino, Roma 2007. sPinola 1996 G. sPinola, il Museo Pio Clementino, 1, Città del Vaticano 1996. RHAA 22 33 Museo Pio Clementino 1 2 3 1 M. CARLONI after M. SIMONETTI. Plan of the Museo Pio Clementino as expanded after 1776, 1782. 2 V. FEOLI after F. MICCINELLI. view of the vestibolo rotondo of the Museo Pio Clementino, 1792 ca. 3 L. DUCROS-G. VOLPATO. view of the gallery of statues of the Museo Pio Clementino, 17871792 RHAA 22 35 daniela Gallo 4 5 6 4 V. FEOLI after F. COSTA. view of the gallery of statues of the Museo Pio Clementino. First part of the right wall, 1792 ca. 5 V. FEOLI. view of the gallery of statues of the Museo Pio Clementino. second part of the right wall, 1792 ca. 6 G.P. PaNiNi. interior of the san giovanni in laterano in rome, Moscow, Pushkin Museum, 1750 ca. 36 RHAA 22 As primeiras imagens do rei First images of the king BRENO MARQUES RIBEIRO DE FARIA* Mestre em História da Arte pelo Instituto de Filosoia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas Master in Art History at IFCH, Universidade Estadual de Campinas Este artigo trata da pintura de retrato da família real portuguesa no século XVIII. O objeto em estudo é material privilegiado para observar certas características da cultura setecentista, nomeadamente a dimensão da pintura de retrato dentro da esfera do poder monárquico absolutista português. A função cultural destas representações visuais ica mais clara ao serem observadas suas condições de demanda e execução, bem como os locais para os quais elas se destinavam. Buscamos reconstituir a circulação das obras para ser possível apreender o desenvolvimento desta retratística. O foco deste trabalho é analisar alguns retratos, pinturas e gravuras, que foram executados no início do século XVIII, obras que foram produzidas no começo do reinado de Dom João V (1689-1750). RESUMO História da Arte, História da Pintura, Pintura de Retrato, Monarquia Portuguesa, Brasil Colônia. PALAVRAS-CHAVE This article deals with the Portuguese royal family portrait painting in the eighteenth century. The object in question is privileged material to observe certain characteristics of eighteenth-century culture, including the portrait painting dimension within the sphere of Portuguese absolutist monarchy. The cultural function of these visual representations becomes clearer when demand conditions and their execution are observed, as well as the locations for which they were intended. We try to reconstruct the circulation of works to be able to grasp the development of this portraiture. The focus of this work is to analyze some portraits, paintings and engravings, which were executed in the early eighteenth century, works that were produced in the early reign of Dom João V (1689-1750). AbSTRACT History of Art, History of Painting, Portrait Painting, Portuguese Monarchy, Colonial Brazil. KEywORdS Breno Marques Ribeiro de Faria é Graduado em História — habilitação: Bacharelado, pela Universidade Federal de Minas Gerais (2008). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História — Área de Concentração: História da Arte — do Instituto de Filosoia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (2012), bolsista da FAPESP. / Breno Marques ribeiro de Faria has degree in history, Bachelor degree — universidade Federal de Minas gerais (2008). Master in history, Concentration area: art history - by the iFCh, universidade estadual de Campinas (2012), scholarship of FaPesP. * RHAA 22 37 breno Marques ribeiro de Faria a deleitação dos olhos é a vista do sol, e a alegria do povo é a presença do rei. o sol difunde o calor com luz: o rei comunica com o aspecto o amor [...] o rei dá a vida com seu benigno semblante.1 Este trabalho analisa alguns retratos, pinturas e gravuras executados no início do século XVIII; essas obras foram produzidas no começo do reinado de Dom João V (1689-1750). O monarca a igurar nesta pesquisa foi o terceiro da dinastia de Bragança,2 ele reinou de 1707, quando foi aclamado aos dezessete anos, até sua morte, em 1750. Logo no início de seu reinado formatou a iconograia da monarquia lusitana, que permaneceu até o inal do século sem profundas alterações. Esses retratos são uma manifestação do poder do monarca, que diicilmente poderia ser deinido como algo material, tangível e palpável, sendo mais apropriado entendê-lo como uma força, uma prática ou um ato. O poder não é algo estático, mas uma relação de algo ou alguém com outro ser e, nesse sentido, pensamos na sua representação não somente como uma “ilustração”, mas como uma dimensão do mesmo. O fato de uma força dar-se a ver é parte constitutiva de sua existência, sendo assim impossível separar o poder de sua representação. Na estrutura das monarquias absolutistas a “imagem” do rei tem uma função proeminente, e ela se estende a todos os elementos do mundo material que dizem respeito à pessoa do monarca. “o patrono real comporta-se como o primeiro destinatário das obras que encomendou; quer que estejam à altura de sua grandeza, nelas quer ler a imagem sensível de seu poder.”3 Por essa relação do poder com o mundo material, o “fausto não é somente o sinal da soberania: é a expressão de um poder que se materializa sob espécies sensíveis e que é capaz the delectation of the eyes is the sight of the sun and the happiness of the people is the presence of the King. the sun diffuses the heat with light: the king communicates love with the aspect [...] the King gives life with his benign features.1 This paper analyzes some portraits, paintings and prints, which were executed in the early eighteenth century; these works were produced in the beginning of the reign of Dom João V (16891750). The monarch to appear in this research was the third of the dynasty of Braganza,2 he reigned from 1707, when he was acclaimed with 17 years old, until his death in 1750. Early in his reign he shaped the iconography of the Lusitanian monarchy, which remained until the end of the century without major changes. These portraits are a manifestation of the power of the monarch, who could hardly be deined as something material, tangible and palpable, being more appropriate to understand it as a force, a practice or an act. Power is not something static, but a relationship with something or someone and, in this sense, we think not only in its representation as an “illustration”, but as a dimension of it. The fact that a force is being shown is a constitutive part of its existence, so it is impossible to separate the power of its representation. In the structure of the absolutist monarchies the “image” of the king has a prominent role and it extends to all elements of the material world that relate to the person of the monarch. “the royal patron behaves as the irst receiver of commissioned works.; he wants them to be to the height of its greatness, he wants to VARELA, Sebastião Pacheco. Número vocal, exemplar, católico, e político, proposto no maior entre os santos o glorioso s. João Batista; para imitação do maior entre os príncipes o sereníssimo dom João v... Lisboa. Oicina de Manoel Lopes Ferreira, 1702. p. 407. apud.: MONTEIRO, Rodrigo Bentes. o rei no espelho. A monarquia portuguesa e a colonização da América 1640-1720. São Paulo: Hucitec, 2002. p. 167. (my translation) 2 The House of Braganza is the dynasty that succeeded to the throne of Portugal in 1640, after a coup called Restoration, uprising of Portuguese nobility headed by D. João IV (1604-1656), which was the eighth Duke of Braganza. It was at that moment he restored the sovereignty of Portugal after sixty years (1580-1640) of domain of the Habsburg dynasty of Spain, who took the throne after the Portuguese succession crisis triggered by the disappearance in battle of King Sebastian I (1555-1578). 1 VARELA, Sebastião Pacheco. Número vocal, exemplar, católico, e político, proposto no maior entre os santos o glorioso s. João Batista; para imitação do maior entre os príncipes o sereníssimo dom João v... Lisboa. Oicina de Manoel Lopes Ferreira, 1702. p. 407. apud.: MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O Rei no Espelho. A monarquia portuguesa e a colonização da América 1640-1720. São Paulo: Hucitec, 2002, p. 167. 2 A Casa de Bragança é a dinastia que assumiu o trono de Portugal em 1640, após um golpe de estado denominado Restauração, insurreição da nobreza lusitana liderada por Dom João IV (1604-1656), até então oitavo Duque de Bragança. Foi nesse momento que se restituiu a soberania de Portugal após sessenta anos (1580-1640) de domínio da dinastia dos Habsburgo da Espanha, que assumiu o trono português após a crise sucessória desencadeada pelo desaparecimento em batalha de Dom Sebastião I (1555-1578). 3 STAROBINSKI, Jean. a invenção da liberdade, 1700-1789. São Paulo, SP: Editora da UNESP, 1994, p. 21. 1 38 RHAA 22 imagens do rei read in them the sensible image of his power.”3 For this relationship of power with the material world “pomp is not only the sign of sovereignty: it is the expression of a power that materializes in sensitive species and is able to continuously renew the form in which it manifests itself.4 Therefore, everything and everyone around the monarchy are associated with it, as the center of a sphere. Organically the conception of that society was of a body, in which hierarchically the king occupied the position of the head, which it to command and guide. And each of the other groups, would perform the functions of the members of that body: the nobility its, as the arms and hands, the military force that defended them, and the vulgar its, as the legs and feet, support him with their work. The religion had its structure in parallel, a spiritual monarchy, in which the igure of Jesus Christ took the place of the king. Both dimensions of power - the earthly and spiritual - are mutually reinforcing. As a version of the other in their respective domain, they functioned as a mirror, serving to legitimize and give ideological support.5 These ideas are clearly represented in the frontispiece of leviathan 6 [Fig. 1], by Thomas Hobbes, published in 1651. The text deals with the structure of society and the legitimate government, based on the social contract theory, advocating absolute sovereign. And the picture shows in its upper part a human igure emerging from the landscape crowned, holding in his left hand a crosier and a sword with his right. His torso and arms are composed of numerous human igures toward the head. The phrase “Non est potestas super terram quae ei Comparetur” 7 completes the meaning, the state coincides with the Sovereign, and nothing is bigger than that. The Luso-Brazilian artistic production of almost all the eighteenth century is generically located within the categories of Art History in the Baroque, coexisting with the Rococo. In Portu3 STAROBINSKI, Jean. a invenção da liberdade, 1700-1789. São Paulo, SP: Editora da UNESP, 1994. p. 21. 4 ibidem. p. 22. (my translation) 5 KANTOROWICz, Ernst Hartwig. os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 6 Leviathan or The Matter, Forme and Power of a Common Wealth Ecclesiasticall and Civil. 7 There is no power on earth to be compared to him. Job 41:24. de renovar continuamente a aparência sob a qual se manifesta”.4 sendo assim, tudo e todos ao redor da monarquia estão associados a ela, como o centro de uma esfera. De maneira orgânica, a concepção dessa sociedade era como a de um corpo, no qual o rei ocupava hierarquicamente a posição da cabeça, à qual cabia comandar e orientar. E a cada um dos outros grupos, desempenharem as funções dos membros desse mesmo organismo: a nobreza cabia, como os braços e mãos, à força militar que o defendia; e ao vulgo cabia, como as pernas e pés, com seu trabalho, a sustentação dele. A religião tinha sua estruturação em paralelo, uma monarquia espiritual, na qual a igura de Jesus Cristo ocupava o lugar de rei. Ambas as dimensões do poder — a terrena e a espiritual — se reforçam mutuamente. Uma, como a versão da outra em seu respectivo domínio, funcionava como um espelho, servindo de legitimação e de suporte ideológico.5 Essas ideias estão claramente representadas no frontispício de leviatã6 [Fig. 1], de Thomas Hobbes, publicado em 1651. O texto trata da estrutura da sociedade e do governo legítimo, baseado na teoria do contrato social, defendendo o soberano absoluto. E a gravura mostra em sua parte superior uma igura humana coroada emergindo da paisagem, segurando com a mão esquerda um báculo e com a direita uma espada. Seu torso e braços são compostos por inúmeras iguras humanas em direção à cabeça. A frase “Non est potestas super terram quae Comparetur ei”7 completa o signiicado, o Estado coincide com o Soberano, e nada é maior que isso. A produção artística luso-brasileira de quase todo o século XVIII é, de forma genérica, situada dentro das categorias da História da Arte no Barroco, coexistindo com o Rococó. Na historiograia portuguesa da arte receberá, às vezes, a denominação de “Joanina” ou “Pombalina”, para algumas manifestações especíicas, respectivamente na talha e na arquitetura. Mesmo que tardiamente em relação a centros artísticos como a Itália e a França, é ainda assim pertinente tendo em vista a utilização desse conceito para além de uma categoria estética que tem existências ibidem, p. 22. KANTOROWICz, Ernst Hartwig. os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 6 Leviathan or The Matter, Forme and Power of a Common Wealth Ecclesiastical and Civil. 7 Não há poder na terra para ser comparado a ele. Jó, 41:24. 4 5 RHAA 22 39 breno Marques ribeiro de Faria várias no tempo e no espaço,8 mas também como o de uma “cultura”, cuja propagação se dá dos centros do poder em direção ao todo da sociedade, sendo produzida para ser consumida de modo “orientador” pelas “massas”, servindo à consolidação das formas de “dominação”. Sendo o Barroco uma cultura animada de um intento propagandístico, consegue-o, na forma mais abrangente, recorrendo à utilização simbólica, declaradamente política, do espetáculo, da festa e das artes. Nesse sentido pode-se dizer de uma concepção barroca da prática política aplicada à cultura visual.9 Como uma metonímia visual, as imagens, ou antes, os símbolos, longe de constituírem uma espécie de duplo do real, tornam-se uma dimensão estabelecida deste e um espaço imaginário cujos elementos remetem para múltiplos saberes. A repetição do símbolo estabelece um ritual que potencializa o próprio símbolo, que é, por sua vez, atualizado a cada execução do ritual de modo a criar um sistema circular. O espetáculo e a festa servem como “instrumento de uniicação” por cristalizarem as formas vigentes de compreensão do real.10 De forma teatral, estabelecem-se nas celebrações as distinções inerentes àquela sociedade. Essa época pretende, com a utilização da festa, não interromper a vida com o lúdico, mas antes teatralizar toda a existência. O poder político vai valorizar essa atividade, colocando-a a serviço da estabilização social, do controle das mentalidades, e da expansão da autoridade monárquica.11 O príncipe Há uma expressão creditada a Dom João V que diz: “Meu avô devia e temia; meu pai devia; eu não temo nem devo”.12 independentemente da veracidade do pronunciamento dessa máxima, de fato a situação desse monarca se diferenciava substancialmente da exA discussão teórica e historiográica acerca do Barroco e do Rococó tem vários autores de extrema importância para a História da Arte, como Eugénio D’ors, Pierre Charpentrat, Werner Weisbach, Victor Lucien Tapié, Helmult Hatzfeld, Heinrich Wölflin, Max Dvořák e Fiske Kimball. Eles não foram ignorados em nosso trabalho, mas tendo em mente o nosso estudo de caso, não consideramos necessário entrar no particular desses estudos. 9 MARAVALL, José Antonio. la cultura del Barroco: análisis de una estructura histórica. 6. Ed. Barcelona: Ariel, 1996. 10 DEBORD, Guy. a sociedade do espetáculo. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 11 BEBIANO, Rui. d. João v: poder e espetáculo. Aveiro: Estante, 1987, p. 59. 12 BOXER, Charles. o império Colonial Português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1981, p. 171. 8 40 RHAA 22 guese historiography of art, it receives sometimes the name “Johannine” or “Pombal” for some speciic events, respectively in the hoist and architecture. Even later in relation to art centers such as Italy and France is still relevant in view of the use of this concept beyond an aesthetic category that has several stocks in time and space,8 but also as a “culture” whose propagation is the centers of power towards the whole society, being produced for consumption of “guiding” the “masses” mode, serving the consolidation in the ways of “domination”. Being a lively baroque culture of a propagandistic intent, it can, in the most comprehensive manner, using symbolic use, avowedly political, the spectacle, the party and the arts. In this sense it can be said of a Baroque conception of political practice applied to the visual culture.9 As a visual metonymy the images, or before, the symbols, far from constituting a kind of double of reality become a dimension of this set and an imaginary space whose elements refer to multiple knowledge. The repetition of a ritual symbol establishes that leverages the symbol itself, which is in turn, updated every performance of the ritual to create a circular system. The show and party serve as a “tool of uniication” by crystallizing the prevailing ways of understanding the real.10 Theatrically, they settle the inherent distinctions in the celebrations of that company. This epoch intends to use the party not to stop life with the playful, but rather act out all existence. Political power will enhance this activity by placing it at the service of social stabilization, control of mentalities, and the expansion of monarchical authority.11 The Prince There is an expression credited to D. João V 8 The theoretical and historiographical discussion about the baroque and rococo has several authors of utmost importance for the history of art such as: Eugenio D’Ors, Charpentrat Pierre Werner Weisbach, Victor Lucien Tapié, Helmult Hatzfeld, Heinrich Wölflin, Max Dvořák, and Fiske Kimball. They were not ignored in our work, but keeping in mind our case study does not consider it necessary to enter these particular studies. 9 MARAVALL, Jose Antonio. la cultura del Barroco: análisis de una estructura histórica. 6. ed. Barcelona: Ariel, 1996. 10 DEBORD, Guy. a sociedade do espetáculo. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 11 BEBIANO, Rui. d. João v: poder e espetáculo. Aveiro: Estante, 1987. p. 59. imagens do rei which says: “My grandfather owed and feared; my father owed; i do not owe nor fear”.12 Regardless of the veracity of this statement, the situation actually differed substantially from the monarch experienced by his predecessors. His grandfather was John IV the Restorer, starting the dynasty and the war of independence against Spain. His father Pedro II (1646-1706) married the then Queen Maria Francisca of Savoy (1646-1683), who had her marriage to Alfonso VI (1643-1675) canceled, him who had been considered incapable of governing and away from power, and remarried to Maria Soia of Neuburgo (1666-1699) mother of John V. During the reign of his father peace with Spain was inally established in the Treaty of Madrid in 1668, and the irst discoveries of gold in the hinterland of Minas were made in the last years of the seventeenth century by the bandeirantes paulistas. This situation put the young monarch in very favorable position to start in his reign the construction of an “image”, unlike their predecessors, for himself and the country he ruled. The presentation of this monarch to the “world” began to be established even before his acclamation,13 which occurred on January 1st, 1707. A picture [Fig. 2] made in Paris, dated c.1705, is the irst efigy we have of the then future John V. It presents the prince standing in the countryside, in front of a tent armed with ornate fabrics. He BOXER, Charles. o império Colonial Português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1981. p. 171. (my translation) 13 The Portuguese monarchs are not crowned, are acclaimed “the Portuguese kings are in the “grace of god” and this is the foundation of his supreme legal power and moral justiication of his victories; however, this character of agent or servant of god does not hide the essentially civilian contents of royal power in Portugal where the “sanction of the people” takes on an unprecedented importance in all european countries. the King of Portugal, unlike the King of France, is not anointed. the royal institution is sacred, but venerability the royal person does not make it in thaumaturgist: vainly seek in medieval documents references to miracles done by kings, cures of diseases or rituals of the order of laying on of hands ceremony. there is also no King who is a source of relics and even in times when such an attitude would be part of a policy of prestige, and a loose rare attitude. on the other hand, the civilian component of the King’s power is strongly marked in Portugal, in particular legal form of acclamation; King, who is not crowned or anointed, and is acclaimed original aspect of medieval origin that does not fall into disuse during the period we are considering.” ALVES, Ana Maria, iconologia do Poder régio no Período Manuelino: a procura de uma linguagem perdida. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985. p. 22. (my translation) 12 perimentada por seus predecessores. Seu avô, Dom João IV, foi o restaurador, iniciando a dinastia e a guerra da independência contra a Espanha. Seu pai, Dom Pedro II (1646-1706), casou-se com a então rainha Dona Maria Francisca de Saboia (1646-1683), que teve seu casamento com Dom Afonso VI (16430-1675) anulado, esse que fora considerado incapaz de governar e afastado do poder. E casou-se novamente com Dona Maria Soia de Neuburgo (1666-1699), mãe de Dom João V. Durante o reinado de seu pai a paz com a Espanha foi inalmente estabelecida na assinatura do Tratado de Madri, em 1668, e foram feitas as primeiras descobertas do ouro no sertão das Minas nos últimos anos do século XVII pelos bandeirantes paulistas. Essa conjuntura colocou o jovem monarca em posição muito favorável para conduzir em seu reinado a construção de uma “imagem”, diferente da de seus antecessores, para si e para o país que governava. A apresentação desse monarca ao “mundo” começou a ser estabelecida antes mesmo de sua aclamação,13 que ocorreu em primeiro de janeiro de 1707. Uma gravura [Fig. 2] feita em Paris, datada de c. 1705, é a primeira efígie que temos do então futuro Dom João V. Apresenta o príncipe de pé numa paisagem campestre, em frente a uma barraca armada com tecidos ornamentados. Ele está apontando com o bastão14 na mão direita para o horizonte ao fundo, como se indicasse uma ação, onde se vê uma fortaleza à beira da água, da qual saem nuvens de fumaça. Sua mão esquerda se apoia no cabo da espada, que canhestramente Os monarcas portugueses não são coroados, são aclamados. “os reis portugueses são-no ‘pela graça de deus’ e é esta a fundamentação do seu poder jurídico supremo e a justiicação moral das suas vitórias; todavia, este carácter de mandatário ou ministro de Deus não oculta o conteúdo eminentemente civilista do poder régio em Portugal onde a ‘sanção dos povos’ assume um relevância inusitada no conjunto dos países europeus. o rei de Portugal, ao contrário do rei de França, não é ungido. a instituição régia é sagrada, mas a venerabilidade da pessoa régia não o torna em taumaturgo: em vão procuraremos nos documentos medievais referências a milagres feitos pelos reis, curas de doenças ou cerimónias rituais da ordem da imposição das mãos. Não há também nenhum rei que seja fonte de relíquias e o mesmo em épocas em que tal atitude faria parte de uma política de prestígio, uma atitude frouxa e rara. Por outro lado, a componente civilista do poder do rei é fortemente marcada em Portugal, designadamente na igura jurídica da aclamação; o Rei, que não é coroado nem ungido, é alevantado e aclamado, aspecto original de origem medieval que não cai em desuso no período que estamos considerando.” ALVES, Ana Maria, iconologia do Poder régio no Período Manuelino: a procura de uma linguagem perdida. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985, p. 22. 14 O bastão e suas variantes como cetro e vara são em Portugal os atributos régios. “[...] o atributo régio por excelência é o ceptro, que o rei traz na mão ainda antes de ser alevantado. os reis de Portugal não são coroados. em nenhuma descrição de alevantamento ou qualquer outra cerimônia se refere à existência de uma coroa. a palavra é sempre utilizada como sinónimo de reino ou Casa. assim, nas representações do rei de Portugal, o ceptro é um atributo, mas a coroa é um símbolo.” ibidem, p. 59. 13 RHAA 22 41 breno Marques ribeiro de Faria parece estar por baixo da roupa ou passar por trás de seu corpo pelo lado direito. Está ricamente vestido à moda francesa, com uma longa cabeleira encaracolada e chapéu de três cornos. Vira seu rosto para o lado esquerdo e ita o observador com um leve sorriso, é uma igura elegante. Essa gravura, além de um desenho modesto, apresenta pouca semelhança isionômica com a iconograia do monarca, provavelmente não foi baseada em um retrato posado. Mas o que interessa nela é a semelhança com outras representações de regentes em uma paisagem, em um intervalo de caça ou batalha, como o retrato de Carlos I, da Inglaterra, de Van Dyck. Esse retrato — que já se encontrava na França desde o século XVII — do artista lamengo, que tinha uma singular capacidade de transmitir elegância e soisticação por meio de poses altivas e meticuloso trato nas vestes suntuárias, é um dos protótipos da imagem de um monarca cortesão.15 Em ambas as efígies os pés estão na mesma posição; o retratado é visto pelo mesmo ângulo e encara o espectador da mesma maneira. Os cavalos e os pajens são substituídos pela barraca, assim trocam-se os elementos que remetem à posição social ocupada pela igura principal, mas permanece a aristocrática distinção. Tem-se o começo do discurso imagético que associou o monarca português com os outros “grandes” regentes da Europa. Como no caso dessa gravura francesa, que tem a legenda também em francês, da qual podemos deduzir sua função de circular em meios aristocráticos, como a própria corte francesa e outras com o intento de divulgar a pessoa do Príncipe do Brasil, ilho mais velho de Pedro ii, rei de Portugal.16 Nesse contexto, “ser” tem o status de “parecer” e vice-versa; logo, propagar uma “imagem” tem o mesmo sentido de corresponder a ela na “realidade”. O matrimônio Em 1708, com o casamento de Dom João e Dona Maria Um longo processo transcorreu desde o im da Idade Média até a Revolução Francesa de transformação dos nobres, que possuíam um caráter eminentemente militar e guerreiro, em homens “civilizados”, habitantes das cortes da Europa da Idade Moderna. Vários manuais de “etiqueta” e “conduta” foram publicados e republicados ao longo desse período e boa parte deles dedicados à educação dos príncipes, que deveriam ser os maiores cortesãos de seus reinos. O mais famoso destes é a obra do século XVI, o Cortesão, de Baldassare Castiglione, que conheceu enorme fortuna literária. 16 Tradução da legenda original: “Le Prince de Bresil, ils aîné de Pierre 2o roy de Portugal”. 15 42 RHAA 22 is pointing with his stick14 in the right hand to the horizon in the background, as indicating an action, where you see a fortress on the edge of the water, with forth clouds of smoke. His left hand rests on the hilt of his sword, which seems awkwardly underneath the clothing or goes behind his body on the right. He is richly dressed in the French fashion, with a long curly wig and a hat with three horns. His face is turned to the left side and he faces the viewer with a slight smile, he is an elegant igure. This engraving, plus a modest design, has little physiognomy resemblance to the iconography of the monarch, and probably was not based on a posed portrait. But what the interesting is the similarity with other representations of Regents in a landscape, in a range of hunting or battle, as the portrait of Charles I of England, by Van Dyck. This picture — which was already in France since the seventeenth century — the Flemish artist, who had a unique ability to convey elegance and sophistication through meticulous and haughty poses tract of sumptuary robes, is one of the prototypes of the image of a monarch courtier.15 In both efigies the feet are in the same position, the depicted is seen by the same angle and faces the viewer in the same manner. The horses and the pages are replaced by the tent, so it swaps the elements that refer to social position occupied by the main igure, but remains the aristocratic distinction. There is the beginning of imagistic discourse that linked the Portuguese monarch with the other “great” rulers of Europe. As in the case of this French picture, which has the subtitle also in The rod and its variants as rod and rod are in Portugal the royal attributes. “regal attribute par excellence is the scepter that King brings in hand even before the alevantado. the kings of Portugal are not crowned. in any description or any other ceremony alevantamento refers to the existence of a crown. the word is always used as a synonym for uK or home. thus, the representations of the king of Portugal, the scepter is an attribute, but the crown is a symbol.” ibidem. p. 59. (my translation) 15 A long process elapsed since the end of the Middle Ages to the French Revolution the transformation of the nobles, who possessed an eminently military and warlike character in “civilized” men, inhabitants of the courts of Europe in the Modern Age. Several manuals “label” and “conduct” was published and republished over that period and most of them dedicated to the education of princes, who should be the greatest courtiers of their kingdoms. The most famous of these is the work of the sixteenth century, the Courtier, of Baldassare Castiglione, who met huge literary fortune. 14 imagens do rei French, from which we can deduce its function of circulating in aristocratic spaces. As the French court and others with the intent to promote the person of the Prince of Brazil, eldest son of Pedro ii, King of Portugal itself.16 In this context “being” has the status of “seeming” and vice versa, hence to propagate an “image” has the same meaning as matching it in “reality”. Marriage In 1708 with the marriage of D. John and Maria Anna of Austria (1683-1754), daughter of the Germanic Holy Roman Emperor Leopold I (1640-1705), it was developed a palatial elaborate ritual. Tracking the collective life and, in particular, the royal day: waking up, dressing, eating, prayers, audiences, rides, hunts, ceremonies and public amusements. Everything is carefully regulated through principles and standards, often written, social etiquette and personal conduct. Which stipulate the exact order of the ceremony, the functions of each participant, the décor considered more appropriate for the time and the personalities present, the gestures that each should run and even moods that one should appear. “these rules, seeking essentially to protect and isolate the sacred person of the king, also aimed at building the ictional world picture exemplary, peaceful, orderly and perfectly happy.” 17 An engraving [Fig. 3] performed in Amsterdam in the year of the royal wedding is an allegory of this dynastic event. The main elements of the complex composition are the two portraits of newlyweds, who are above the scene of the landing and reception of Queen along the river and below the allegorical igures of Religion, Victory, Fame and Nobility.18 If read in ascending manner, there is an amalgam in the pattern between the way of arranging the igures and their semantic content. Below confronting the igures of chaos, there’s glory above, this occurs via the symbolically depicted marriage in the center. The composition is populated by igures, more Translation of the original caption: “Le Prince de Bresil, aîné ils Pierre Roy 2° of Portugal”. 17 BEBIANO, Rui. op. cit. pp . 99-100. (my translation) 18 PIMENTEL, Antônio Filipe. Os Pintores de D. João V e a Invenção do Retrato de Corte. In: Revista de História da Arte. o retrato. N. 5. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Universidade Nova de Lisboa. Edição: Instituto de História da Arte. 2008. p. 139. 16 Ana da Áustria (1683-1754), ilha do Sacro Imperador Germânico, Leopoldo I (1640-1705), desenvolve-se um elaborado ritual palaciano. Acompanhando a vida coletiva e, em especial, o dia régio: o despertar, o vestir, o comer, as orações, as audiências, os passeios, as caçadas, as cerimônias e os divertimentos públicos. Tudo é minuciosamente regulado por meio de princípios e de normas, muitas vezes escritas, de etiqueta e comportamento pessoal, os quais estipulam a ordem exata da cerimônia, as funções de cada participante, o décor considerado mais apropriado para o momento e para as personalidades presentes, os gestos que cada um deve executar e até os estados de espírito que deve aparentar. “tais regras, procurando essencialmente proteger e isolar a sagrada pessoa do rei, visam também à construção da imagem ictícia de mundo exemplar, calmo, perfeitamente ordenado e feliz.”17 Uma gravura [Fig. 3] executada em Amsterdã no ano do real matrimônio é uma alegoria desse evento dinástico. Os principais elementos da complexa composição são os dois retratos dos recém-casados, que estão acima da cena do desembarque e recepção da rainha no Tejo, e abaixo das iguras alegóricas da Religião, Vitória, Nobreza e Fama.18 Se lida de maneira ascensional, há na estampa um amálgama entre a forma de dispor as iguras e o conteúdo semântico delas. Abaixo, um combate às iguras do caos, acima há a glória, isto se dá via o casamento simbolicamente representado no centro. A composição é povoada por iguras, mais ou menos deinidas, inseridas numa espécie de galeria arquitetônica, que funciona como um palco para a cena central da união das duas personagens por meio de seus retratos. Suas molduras são, na verdade, uma só, pois onde entre elas se encontraria ao menos uma linha divisória não há delimitação, funcionando como a “dobradiça” de um medalhão com dois retratos. O busto do jovem rei de armadura tem como par o busto da jovem rainha com vestido decotado e muitas joias, ambos de fundo neutro. A celebração desse matrimônio é representada como expectativa de um futuro próspero para a nação lusitana. Uma coroa de louros é posta sobre dois corações enlaçados dos quais pende uma cortina que revela os retratos, que estão pousados sobre as asas de uma águia coroada. Essa ave simultaneamente aninha as BEBIANO, Rui. op. cit., pp. 99-100. PIMENTEL, Antônio Filipe. Os Pintores de D. João V e a Invenção do Retrato de Corte. In: Revista de História da Arte. o retrato. N. 5. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Universidade Nova de Lisboa. Edição: Instituto de História da Arte. 2008, p. 139. 17 18 RHAA 22 43 breno Marques ribeiro de Faria respectivas coroas com suas asas e aponta para os retratos com o atributo de cada um, para o rei com a espada, e para a rainha, com o cetro, segurando-os com as garras. Entre os retratos e a cortina, abaixo dos corações, um sol radiante é fundo para duas mãos dadas, por trás das quais uma ita faz uma volta. Essa ita passa pelos ombros da águia, e por baixo das almofadas onde estão as coroas, e tem suas duas pontas, uma em cada um dos dois brasões, um dos Bragança e o outro, dos Habsburgo. A união das duas dinastias por este casamento é assim demonstrada visualmente; o desenho é pouco preciso, mas resulta numa imagem de aspecto geral faustoso. O reinado começa associado às grandes pretensões de Dom João V, soberano que projeta uma “imagem” majestática de si para a Europa. Outras duas gravuras, que são retratos individuais do casal real e que foram impressas em Viena, são trabalhos de uma execução mais soisticada que a gravura anterior, mas iconograicamente similares. Nesta representação [Fig. 4], o rei está ainda muito jovem, com a aparência mais próxima da idade com que contraiu matrimônio com a arquiduquesa, seus dezoito anos. Aparece de armadura da cintura para cima, com uma farta e alta cabeleira encaracolada que faz seu rosto parecer desproporcionalmente pequeno. Mas é, ainda assim, verossimilhante o suiciente para supor que a gravura tenha sido feita com base em um retrato posado, que poderia ter sido enviado para as negociações do casamento. Ele encara o espectador com o tronco levemente torcido e o braço direito lexionado à frente do corpo, segurando o bastão que apoia em uma mesa ao seu lado na qual podemos ver parte da coroa. Seu fundo é completamente neutro, é um retrato simples, mas que transmite a imponência necessária. A legenda inserida em uma base arquitetônica, que está distribuída dos dois lados do brasão coroado, é o seu título até então completo19 em latim, seguido das datas de nascimento e coroação. O tratamento da luz expõe o metálico da armadura e destaca o rosto; a textura da cortina que serve de apoio e fundo dá a ideia de volume à composição. A gravura [Fig. 5] com o retrato da rainha, tendo sido feita pelo mesmo gravador, tem o mesmo tratamento da do rei. Ela está trajando um vestido ornamentado com várias joias e segurando o manto com a mão direita. Sua expressão facial é leve, e Pela Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d’Aquém e d’Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia etc. 19 44 RHAA 22 or less deined, inserted in a kind of architectural gallery, which functions as a stage for the central scene of the union of the two characters through their portraits. Their frames are actually one because of where they would ind at least one dividing line, there are none, functioned as the “hinge” of a locket with two pictures. The bust of the young king armor is to pair the bust of the young queen with low-cut dress and many jewels, both in neutral background. The celebration of this marriage is represented as the expectation of a prosperous future for the Lusitanian nation. A laurel wreath is laid on two hearts entwined which hangs a curtain that reveals the portraits, which are resting on the wings of a crowned eagle. Which simultaneously crowns their nests with their wings and points to the portraits with the attribute of each for the king with the sword and the queen with scepter, holding them with its claws. Among the portraits and the curtain below the hearts is a radiant sun background for two hands, behind which a ribbon makes a turn. This tape passes by the shoulders of the eagle, and under the cushions which are the crowns and have two ends, one in each of the two arms, one of Bragança and the other of Habsburg. The union of the two dynasties by this marriage is well demonstrated visually, the design is indistinct, but results in an image of stately general appearance. The reign begins associated with great pretensions of D. João V, sovereign designing a majestic “image” of himself to Europe. Two other prints, which are individual portraits of the royal couple and were printed in Vienna, are more sophisticated than the previous picture, but iconographically similar in its implementation. In this representation [Fig. 4] the king is still very young, with the nearest age appearance that contracted marriage with the archduchess, his eighteen years. He appears with his armor from the waist up, with a plentiful and high curly wig that makes his face look disproportionately small. But it is still credible enough to assume that the picture was taken from a posed picture, which could have been brought to the marriage negotiations. He stares at the viewer with his torso slightly twisted and theright arm lexed in front of the body, holding the stick that rests on a table next to him in which we can see a piece of the crown. His background is completely neutral, it is a simple portrait, but it conveys the grandeur required. The legend set in imagens do rei an architectural base that is spread on both sides of Arms crowned, is his title until then completed19 in Latin followed by the dates of birth and coronation. The treatment of light exposes the metal armor and highlights the face, the texture of the curtain that serves to support and fund gives the idea of the volume of the composition. The picture [Fig. 5] with the portrait of the queen was executed by the same engraver, and has the same treatment from the king. She is wearing a dress decorated with various jewels and holding the robe with her right hand. Her facial expression is light and the curly hair, ornamented with precious stones, drops to her shoulders rounding the neck and the left shoulder. Her legend, which tells of her double title of Archduchess of Austria by birth and Queen of Portugal by marriage, is also divided by the crowned coat, which is composed of the double and the Habsburg and Braganza arms. Despite the overall composition of the two are supposed to be a pair, the Queen is not “turned” to the king, an indication that the references to the pictures may have different origins. Both pictures are rendered as images representing portraits, in other words, the way the curtain falls on the frame that surrounds the pictures, it is deined that the images we see are not the people portrayed, but portraits of them. The igure is part of a picture, and that picture is that the composition of an architectural background and a curtain. The contrast between the shadow areas and is the largest outside the illuminated portraits in frame, curtains and base, than within the pictures. Thus it is suggested to be painted portraits from which these prints were made. Even without this being a necessary relationship, because the engraver could have opted for this composition. But we have two paintings in Portugal that could be used in preparing the portraits of these prints, or otherwise, because there is no precise dating for either couple. o cabelo cacheado, ornamentado com pedrarias, cai pelos ombros contornando o colo e o ombro esquerdo. Sua legenda, que diz de seu duplo título de arquiduquesa da Áustria por nascimento e rainha de Portugal por casamento, também está dividida pelo brasão coroado, que é duplo e composto pelo dos Bragança e dos Habsburgo. Apesar de a composição geral das duas gravuras formar um par, a rainha não está “virada” para o rei, um indício de que os retratos que foram referências para as gravuras podem ter procedências diferentes. Ambas as gravuras são compostas como imagens que representam retratos. Em outras palavras, pela maneira como a cortina cai sobre a moldura que envolve os retratos, ica deinido que as imagens que vemos não são as pessoas retratadas, mas retratos delas: a igura que está inserida em um retrato, e esse retrato que está na composição sobre uma base arquitetônica e uma cortina. O contraste entre as áreas de sombra e as iluminadas é maior fora dos retratos, na moldura, cortinas e base, do que dentro dos retratos. Desta maneira sugere-se haver retratos pintados, com base nos quais foram feitas essas gravuras. Mesmo não sendo essa uma relação necessária, pois o gravador poderia ter optado por essa composição. Mas, temos em Portugal duas pinturas que poderiam ser os retratos utilizados na elaboração dessas gravuras, ou o contrário, pois não há datação precisa para nenhum dos dois pares. O início The Beginning The paintings in question are attributed to Pompeo Girolamo Batoni (1708-1787) or copies of pictures executed by him. D. João V [Fig. 6] appears As pinturas em questão são atribuídas a Girolamo Pompeo Batoni (1708-1787) ou cópias de retratos por ele executados. Dom João V [Fig. 6] aparece em uma armadura negra e brilhante, segurando o bastão azul que termina atrás da coroa dourada em destaque sobre a mesa vermelha, iluminado de maneira frontal. O rosto bem jovem, mas com olhar expressivo, é coroado com uma grande cabeleira empoada e no pescoço um lenço de renda branca. No peito, pendente de uma faixa vermelha, a insígnia da Ordem de Cristo20 de formato atípico em comparação com outros que veremos. O fundo é algo que parece ser um céu noturno, com a lua através das nuvens, sendo possível ver a silhueta da base de uma coluna, algo talvez único na retratística lusitana desse By the Grace of God, King of Portugal and the Algarves, d’d’Behind and Beyond the Sea in Africa, Lord of Guinea and of Conquest, Navigation and Commerce of Ethiopia, Arabia, Persia and India, etc. A Ordem de Cristo era uma ordem religiosa-militar, da qual os reis de Portugal ocupavam o mais alto cargo, o de Grão-Mestre. Essa ordem foi criada em 1319 com os espólios da Ordem dos Templários após esta ter sido extinta pelo papa. 19 20 RHAA 22 45 breno Marques ribeiro de Faria período. A rainha [Fig. 7] se envolve com o manto vermelho forrado de arminho, que segura com a mão esquerda. A coroa aparece discretamente, num plano entre a igura e o fundo onde se vê a base de uma coluna. É interessante notar, em comparação com as gravuras anteriormente citadas, que o torso do rei gira no sentindo inverso, escondendo o cotovelo direito na pintura, que na gravura está em primeiro plano, invertendo a composição. E a rainha está acompanhada da coroa na pintura, que é ausente na gravura. Mas, além disso, a cortina, no caso da rainha, e o elemento arquitetônico em ambos passam para dentro dos retratos, situando os personagens em um ambiente palaciano, aberto para o exterior no caso do rei, e fechado no caso da rainha. E que mesmo sendo na realidade retangulares, sugerem um formato oval por terem uma “moldura” interna pintada, que deixa os cantos arredondados, iguais aos retratos das gravuras. Batoni, nascido em Lucca, já estava em Roma em 1727, e era membro da Academia de São Lucas desde 1741, da qual chegou a ser decano. Alcançou grande fama em seu tempo e recebia muitas encomendas de pinturas devocionais, mas foi por seus retratos que icou internacionalmente conhecido e extremamente procurado. Os visitantes do “Grand Tour”21 desejavam ter um retrato feito por ele, mas a partir de 1755, o preço das telas icou tão alto, que somente a Igreja e membros das casas reinantes e aristocráticas poderiam lhe encomendar um. Ele executará vários trabalhos de telas com temática religiosa para Portugal ao longo de sua carreira, e alguns dos últimos serão as telas encomendadas por Dona Maria I para a Basílica da Estrela, no inal do século XVIII.22 Desacreditamos a autoria dessas pinturas a Batoni ou mesmo que sejam cópias de um trabalho seu. Tendo em vista o período de atuação do pintor e a idade aparente dos retratados, torna quase impossível que ele tivesse executado essas obras. Independentemente disso, a iconograia dessas pinturas circulou e apareceu em outras representações. Há, por exemplo, duas in a shiny black armor, holding the blue bat that ends behind the golden crown highlighted on the red desk, illuminated in the front. The very young, but with expressive look, face is crowned with a large powdered wig and neck scarf of white lace. On the chest, pending with a red band, the insignia of the Order of Christ 20 atypical shape compared to others that we will see. The background is what looks like a night sky with the moon through the clouds, and you can see the outline of the base of a column, something perhaps unique in the Lusitanian portraiture of this period. The Queen [Fig. 7] engages with the red cloak lined with ermine, holding in her left hand. The crown appears discretely in a plane between the background and the igure which sees the base of a column. Interestingly, compared to the pictures mentioned above, the torso of the king rotates in reverse sensing, hiding his right elbow in the painting, which in the picture is in the foreground, reversing the composition. And the queen is accompanied by the crown in the painting that is missing in the picture. But beyond that, the curtain in the case of the Queen and the architectural element in both migrate into the portraits, placing the characters in one, open to the outside in the case of the King, and closed in the case of the Queen, giving a palatial setting. And even being rectangular in fact, it suggests an oval shape by having an inner “frame” painted, leaving the rounded corners, such as portraits of the engravings. Batoni, born in Lucca, was already in Rome in 1727, and was a member of the Academy of St. Luke since 1741, in which he became a dean. He achieved great fame in his time and received many orders of devotional paintings, but it was for his portraits that became internationally known and was highly sought after. Visitors to the “Grand Tour”21 wanted to have a portrait done by him, but from 1755 on, the price of the screens was so high that only the Church and members of the The Order of Christ was a religious-military order, which the kings of Portugal occupied the highest ofice, the Grand Master. This order was created in 1319 with the spoils of the Knights Templar after it has been extinguished by the Pope. 21 The “Grand Tour” was a trip that could last from months to years, usually taken by young aristocrats or wealthy seeking contact with the cultural tradition of the West. The script usually included major European capitals and in particular the Italian peninsula. 20 O “Grand Tour” era uma viagem, que poderia durar de meses a anos, feita normalmente por jovens aristocratas ou abastados em busca de contato com a tradição cultural do Ocidente. O roteiro incluía normalmente as grandes capitais europeias e em especial a Península Itálica. 22 QUIETO, Pier Paolo. Girolamo Pompeo Batoni (1708-1787). In: Joanni v Magníico: A Pintura em Portugal ao Tempo de D. João V, 1706-1750 / Galeria de Pintura do Rei D. Luis; Coord. Ana Mafalda Távora De Magalhães Barros; et. al., p. 403. 21 46 RHAA 22 imagens do rei ruling and aristocratic houses could order one. He would perform several works displays with religious themes to Portugal throughout his career, and one of the lasts, the screens would be commissioned by Queen Mary I to Estrela Basilica in the late eighteenth century.22 We discredit the authorship of these paintings as Batoni’s or even if they are copies of his work. Considering the period of operation of the painter and the apparent age of the depicted, makes it almost impossible that he had performed these works. Regardless, the iconography of these paintings circulated and appeared in other representations. There are two engravings, e.g. [Figs. 8 and 9], with the representation of the whole body of the monarchs, in which the scene is indoors and the igures stand in pose. The king of long cloak supports the right arm at bat, which in turn is supported on a bench with the crown and a feathered helmet. Interestingly, the lower part of the costume consists of a skirt and a hybrid of a footwear with a half-boots, and does not harmonize with the top which is an armor. The Queen has in her right hand a closed range and leans with her left hand on the arm of a chair. Probable versions of the pictures previously seen [Figs. 4 and 5], we ind the picture of the King in Brazil, and with the peculiarity of being part of the collection Diogo Barbosa Machado, it is mutilated. To insert the pictures in his albums, the abbot cut out and put in a picture of decorative frame, rarely leaving apparent the mark of the engraver or editor. But the picture of the Queen was found in the National Library of Portugal in its original format, allowing us to identify its authorship, as well as the King, the pictures of the same bust. The similarity is evident, especially in the face and trunk, despite the simpliications and adaptations of the igures of the composition that becomes wider. The partially watercolored engraving of the Queen reveals a possibility for other articles. Paintings could be more “precisely” excecuted with a picture like this as a model, because with the indication of colors, the new work would remain QUIETO, Pier Paolo. Girolamo Pompeo Batoni (1708 – 1787). In.: Joanni V Magníico: A Pintura Em Portugal Ao Tempo De D. João V, 1706-1750 / Galeria De Pintura Do Rei D. Luis; Coord. Ana Mafalda Távora De Magalhães Barros; et. al. p. 403. 22 gravuras [Figs. 8 e 9] com a representação em corpo inteiro dos monarcas, nas quais o cenário é um ambiente interno e as iguras posam de pé. O rei, de manto longo, apoia o braço direito no bastão, que por sua vez está apoiado em um banco onde está a coroa e um elmo emplumado. Interessante notar que a parte inferior do traje é composta por um saiote e um calçado híbrido de um sapato e meias com uma bota de cano longo, e não se harmoniza com a parte superior, que é uma armadura. Já a rainha tem em sua mão direita um leque fechado e apoia-se com a mão esquerda no braço de uma cadeira. Prováveis versões das gravuras vistas anteriormente [Figs. 4 e 5], encontramos a gravura do rei no Brasil, e que pela peculiaridade de fazer parte da coleção Diogo Barbosa Machado, está mutilada. O abade, para inserir as gravuras em seus álbuns, as recortava e as colocava sob uma gravura de moldura decorativa, raramente deixando a marca do gravador ou editor aparente. Mas a gravura da rainha foi encontrada na Biblioteca Nacional de Portugal em seu formato original, possibilitando identiicar sua autoria, bem como a do rei, a mesma das gravuras de busto. A semelhança é patente, principalmente no rosto e tronco, apesar das simpliicações das iguras e adaptações da composição que se tornam mais amplas. A gravura da rainha, parcialmente aquarelada, revela uma possibilidade para outras obras. Pinturas poderiam ser mais “precisamente” executadas tendo como modelo uma gravura como essa, pois com a indicação das cores, a nova obra permaneceria mais próxima da “matriz”. Outro exemplo que se relaciona com tais imagens é um retrato de Dom João V [Fig. 10] do qual não se tem nenhuma informação sobre o pintor ou datação. O monarca já não aparenta ser imberbe e a cabeleira está menos empoada; invertido em relação à pintura anterior, a coroa não aparece e o manto passa a envolver sua cintura na qual ele apoia a mão direita. A armadura agora tem detalhes dourados, insinuados por detalhes de relevo na gravura, e difere na cor do forro de vermelho para azul. O único predicado do poder régio presente nessa composição, o bastão na mão esquerda, está no último plano e apontado para o fundo dessa composição com o escorço mais acentuado das representações até agora expostas. Na extremidade oposta o cotovelo direito se projeta à frente, e assim vemos o corpo do monarca de peril e seu rosto quase de frente, encarando energicamente o espectador. RHAA 22 47 breno Marques ribeiro de Faria Essas primeiras representações formam um conjunto de imagens que são um ensaio do que se seguiu. É a sistematização das artes, voltada para a gloriicação da pessoa real, que produziu os retratos que se tornaram mais elaborados e passaram a articular mais referências na construção de uma imagem áulica. Considerações inais As representações daqueles que detêm o poder são um indício daquilo que está longe ou que não existe mais, mas que se conserva em uma realidade abstrata. A relação desenvolvida ao se contemplar um destes retratos é a de recriar a presença dos retratados. O que é ausente torna-se presente, o que é passado volta à atualidade e o que é morto revive. Os retratos apresentados nesta pesquisa foram uma ponte entre o centro do poder e os sujeitos a ele, conectando os dois extremos da relação, o rei e os seus súditos. Dom João V criou um aparato em torno da monarquia, uma sacralização desta monarquia, elevação à dimensão “espiritual” daquilo que tinha um caráter “terreno”. Sua imagem se espalhou por todos os territórios onde havia presença portuguesa, o sol que nunca deixava de brilhar. As riquezas saídas do fundo da terra, no interior da colônia americana, tornaram possível ao monarca lusitano “aparecer” para o mundo. 48 RHAA 22 closer to the “matrix”. Another example that relates to such images is a portrait of D. João V [Fig. 10] which does not have any information about the painter or dating. The monarch no longer appears to be beardless and this less powdered wig, inverted over the previous painting, the crown does not appear and passes the mantle to wrap his waist in which he supports the right hand. The armor now has gold accents, insinuated by details in relief printmaking, and differs in color from red to blue liner. The only predicate of royal power present in this composition, the baton in his left hand is on the top lat and pointed to the bottom of this composition with the more pronounced foreshortening of representations so far exposed. At the opposite end, the right elbow juts forward, and thus we see the body of the monarch in proile, his face almost opposite energetically facing the viewer. These early representations form a set of images that are a rehearsal of what followed. The systematization of the arts geared towards the gloriication of the royal person who produced portraits that have become more elaborate and began to articulate more references in building a Aulic picture. Final thoughts The representations of those who hold power are an indication of what is out there or not, but that is conserved in an abstract reality. The relationship developed to contemplate one of these portraits is to recreate the presence of the portrayed. What is absent becomes present, what is becomes current and what is dead, revives. The pictures presented in this research were a bridge between the center of power and the subjected to it, connecting the two ends of the relationship, the king and his subjects. D. João V created an apparatus around the monarchy, a sacralization of the same, a rise to the “spiritual” that had a “ground” character dimension. His image has spread all territories where there was Portuguese presence, the sun never stopped shining. Riches that had exit from the bottom of the earth, within the American colony, made possible to the Lusitanian monarch to “appear” for the world. imagens do rei 1 Abraham Bosse. Frontispício do leviatã, de thomas hobbes, 1651. 1 2 Le Prince de Bresil, ils ainé de Pierre 2º Roy de Portugal, 1707 (data provável). 3 Pieter van den Berge. Iohannes quintus lusitanorum rex et indiar [et] Maria anna lusitanorum regis excellens sponsa, 1708. 3 2 RHAA 22 49 breno Marques ribeiro de Faria 4 5 6 7 4 Christian Engelbrecht. ioannes v. dei gratia rex Portugaliae et algarbiorum..., 1730-1735. 5 I. A. Pfeffel et. C. Engelbrechtsculp. v. Maria anna Portugallae et algarbiorum regina.... 6 Pompeo Batoni (atribuição). d. João v., séc. XVIII, primeira metade. 7 Pompeo Batoni (atribuição). d. Maria ana de Áustria, séc. XVIII, primeira metade. 50 RHAA 22 imagens do rei 8 9 10 8 Joannes v. dei gratia Portugalia et algarbiorum rex..., séc. XVIII, primeira metade. 9 Christian Engelbrecht. Maria anna Portugaliae et algarbiorum regina nata archidux austriae, desponsata Joanni v..., 1710. 10 Autor desconhecido. d. João v, rei de Portugal, séc. XVIII, primeira metade. RHAA 22 51 Cosmos, Body, and Aesthetics in Settlement Space and Architecture Cosmos, corpo e estética no espaço e arquitetura de comunidades ALEXANDROS PH. LAGOPOULOS* Professor emeritus of urban Planning at aristotle university of thessaloniki, greece Professor emérito de Planejamento urbano na universidade aristóteles de tessalônica, na grécia This paper investigates the historical course of the projection of certain major cultural constructs on space, which will be investigated with the help of the metalinguistic concept of code. These codes are: the cosmic code (cosmogony and cosmology); the anthropomorphic code, referring to human, frequently bodily, traits; and the aesthetic code. Through two very different examples, one drawn from Africa and the other referring to traditional India, I argue that the cosmic and the anthropomorphic codes in their interrelation have been predominant for the meaningful investment of space, and more generally in the cultural universe, in historical or recent precapitalist societies. I challenge the persistent habit of extrapolating as of major importance an autonomous aesthetic code similar to ours to the cultures of the past and their spatial achievements. I argue that this habit follows from a Eurocentric approach informed by Kantian aesthetics and substantiate this position with historical evidence from ancient Greece as well as traditional India and China, all three cases showing that the very constitution of the “aesthetic” in these cultures depends on the combined dynamics of the two irst codes. After a brief reference to the fate of the three codes in modernity, I close with a discussion of certain AbSTRACT current philosophical theories defending the universality of aesthetic concepts. KEywORdS Semiotics of space, anthropology of space, aesthetic theory, cosmic symbolism, symbolic anthropomorphism. RESUMO Este artigo investiga o histórico da projeção de certas grandes construções culturais sobre o espaço, que será investigado com suporte no conceito metalinguístico de código. Esses códigos são: o código cósmico (cosmogonia e cosmologia); o código antropomórico, referindo-se a características humanas, frequentemente físicas; e o código estético. Utilizando dois exemplos muito diferentes, um encontrado na África e outro que se refere à Índia tradicional, argumento que os códigos cósmico e antropomórico foram, em sua inter-relação, predominantes para o investimento signiicativo do espaço e, de forma geral, no universo cultural das sociedades históricas ou pré-capitalistas recentes. Desaio o hábito persistente de extrapolar um código estético autônomo, semelhante ao nosso, como de grande importância para as culturas do passado e suas conquistas espaciais. Defendo que esse hábito segue uma perspectiva eurocêntrica, informada pela ética kantiana, e fundamento essa posição com evidências históricas da Grécia Antiga, assim como da Índia e China tradicionais. Os três casos mostram que a constituição da “estética” nessas culturas depende das dinâmicas combinadas dos dois primeiros códigos. Após uma breve referência sobre o destino dos três códigos na Modernidade, encerro com uma discussão de certas teorias ilosóicas correntes que defendem a universalidade dos conceitos estéticos. PALAVRAS-CHAVE Semióticas do espaço, antropologia do espaço, teoria estética, simbolismo cósmico, antropomorismo simbólico. Alexandros Ph. Lagopoulos is Professor Emeritus of Urban Planning at Aristotle University of Thessaloniki, Greece, Corresponding Member of the Academy of Athens and Honorary Doctor of Semiotics of the New Bulgarian University of Soia, Bulgaria. He holds a doctorate as Architect-Engineer (history of urbanism) and a postdoctoral academic title (Habilitation) in Urban and Regional Planning from the National Technical University of Athens, as well as a doctorate in Social Anthropology from the Sorbonne. / alexandros Ph. lagopoulos é Professor emérito de Planejamento urbano na universidade aristóteles de tessalônica, na grécia. Membro correspondente da academia de Atenas e Doutor Honorário de Semiótica da Nova Universidade Búlgara de Soia, Bulgária. Possui doutorado como Arquiteto-Engenheiro (História do Urbanismo) e título acadêmico de pósdoutorado (habilitação) em Planejamento urbano e regional pela universidade Politécnica Nacional de atenas, bem como doutor em antropologia social pela sorbonne. * RHAA 22 53 alexandros Ph. lagopoulos Introduction Cultural conceptions concerning the world, society, and the body do not operate only on the cognitive level, that is, they do not only constitute part of intellectual culture, but also become part of material culture, investing material objects with meaning. In this paper, I shall discuss the meaning of one aspect of material culture, that of built space, that is, the semiotics — or anthropology — of settlement space and architecture. I shall not discuss space as a socioeconomic or political phenomenon, but as a system of meaning. My central object of analysis will be the projection of certain major cultural constructs, or semantic ields, on space, which will be investigated with the help of the metalinguistic concept of code.1 The projection of cultural codes on space invests space with meaning, a connotative meaning which is superimposed on the simple denotative recognition of space and thus constitutes the symbolic dimension of space. I shall investigate below the historical trajectory of three codes as they have been projected on space: the cosmic code, including cosmogony and cosmology; the anthropomorphic code, referring to human, frequently bodily, traits; and the aesthetic code. I have chosen these codes for two reasons. First, as I hope will be substantiated below, the cosmic and the anthropomorphic codes have for centuries been closely interrelated and seem to have predominated in the investment with meaning of both space and the cultural universe as a whole in ancient or recent precapitalist societies.2 Second, I would like to challenge our persistent Western habit of extrapolating an autonomous aesthetic code similar to ours as of major importance in the cultures of the past and their spatial achievements. I shall argue that this habit follows from a Eurocentric approach informed by Kantian aesthetics, and try to substantiate this position with historical evidence from ancient Greece, as well as traditional India and China; all four cases show that the very constitution of the “aesthetic” in these cultures depends on, emerges from, the combined dynamics of these two non-aesthetic codes.3 Cf. GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS Joseph. sémiotique: dictionnaire raisonné de la théorie du langage. Paris: Hachette, 1979, “Champ sémantique”, “Classème”, “Isotopie”, “Micro-univers”, “Sème”. 2 On this matter, see for example LAGOPOULOS, Alexandros Ph. “Semiotic Urban Models and Modes of Production: A Sociosemiotic Approach”. semiotica, v. 45, n. 3/4, 1983, p. 275-296, on pp. 291-292. 3 The quotation marks around “aesthetic” indicate that, while the concept in these cultures overlaps to some extent with what we today understand as aesthetic, Introdução Concepções culturais relativas ao mundo, à sociedade e ao corpo não operam apenas no nível cognitivo, isto é, elas não apenas constituem parte da cultura intelectual, mas também se tornam parte da cultura material, conferindo signiicados a objetos materiais. Neste artigo, discutirei o signiicado de um aspecto da cultura material, do espaço construído, ou seja, semiótica — ou antropologia — do espaço e arquitetura de comunidades. Não discutirei o espaço como fenômeno socioeconômico ou político, mas como um sistema de acepção. Meu objeto central de análise será a projeção de certas grandes construções culturais, ou campos semânticos, sobre o espaço, que será investigada com suporte no conceito metalinguístico de código.1 A projeção de códigos culturais sobre o espaço aplica ao espaço signiicado um sentido conotativo, que é superimposto ao simples reconhecimento denotativo do espaço e, assim, constitui a sua dimensão simbólica. Investigarei abaixo a trajetória histórica de três códigos e a maneira como foram projetados no espaço: o código cósmico, incluindo a cosmogonia e a cosmologia; o código antropomórico, referindo-se a características humanas, frequentemente físicas; e o código estético. Escolhi esses códigos por duas razões. Primeira: como espero fundamentar adiante, os códigos cósmico e antropomórico têm sido inter-relacionados por séculos, e aparentam ter predominado no investimento de signiicados, tanto no espaço quanto no universo cultural como um todo, em sociedades antigas e pré-capitalistas recentes.2 Segunda: gostaria de desaiar nosso hábito ocidental persistente de extrapolar um código estético autônomo, similar ao nosso, como de grande importância nas culturas do passado e suas conquistas espaciais. Argumentarei que esse hábito segue uma abordagem eurocêntrica, informada pela estética kantiana, e tentarei fundamentar tal posição com evidências históricas da Grécia Antiga, assim como da Índia e China tradicionais. Os quatro casos mostram que 1 54 RHAA 22 Cf. GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS Joseph. sémiotique: dictionnaire raisonné de la théorie du langage. Paris: Hachette, 1979, “Champ sémantique”, “Classème”, “Isotopie”, “Micro-univers”, “Sème”. 2 Sobre essa questão, veja, por exemplo, LAGOPOULOS, Alexandros Ph. “Semiotic Urban Models and Modes of Production: A Sociosemiotic Approach”. semiotica, v. 45, n. 3/4, 1983, pp. 275-296, ver pp. 291-292. 1 space and aesthetics. a própria constituição da “estética” nessas culturas depende de e emerge das dinâmicas combinadas dos dois códigos não estéticos.3 Após uma breve referência sobre o destino desses três códigos na Modernidade, encerro com uma discussão do problema da estética nas sociedades pré-capitalistas. Cosmos e corpo nas culturas não ocidentais Dois exemplos retirados de sociedades pré-capitalistas mostrarão a conexão íntima entre os códigos antropomórico e cósmico, assim como suas relações com o espaço e arquitetura de comunidades. Iniciarei com o Fali de Kangu, no norte de Camarões. Para o Fali, de acordo com Jean-Paul Lebeuf, o cosmos surgiu de dois ovos: um masculino e um feminino (cada ovo signiicando um casal copulando), que rodam em direções opostas (horário/anti-horário); nos ovos havia duas Terras quadradas desiguais: a Terra dos humanos e a Terra selvagem; as duas Terras emergiram após a colisão dos ovos no centro do espaço. Conforme outro mito de criação Fali, To Dino, um herói da civilização que fora um caçador e primeiro ferreiro, desceu do céu junto a um pé de feijão (reconhecemos aqui uma concepção local do eixo cósmico, uma concepção muito difundida que se refere a um eixo unindo o centro da terra ao céu). Ele usou como habitação um baobá, cujos galhos tocavam o céu (outra concepção do eixo cósmico), e plantou uma semente de painço vermelho (teru) no centro da Terra dos humanos, que também era considerado o centro do cosmos. Essa Terra é quadrada, uma forma equivalente ao círculo para os Fali, e em contato com uma Terra selvagem menor, também quadrada. As águas correntes da Terra dos humanos eram organizadas em quatro grupos, e dessa maneira dividiam a Terra dos humanos em quatro partes, de acordo com os dois eixos formados pelas águas, que coincidem com as bissetrizes dos pontos cardeais. Para os Fali, a Terra como um todo é análoga, de fato idêntica, ao cosmos. Essa imagem cósmica é projetada nas aldeias Fali. A aldeia Fali é a representação da Terra dos humanos (código cósmico), e é do gênero masculino (código antropomórico); em outra dimensão, As aspas em “estética” indicam que, enquanto conceito nessas culturas, sobrepõe-se até certo ponto com o que hoje se entende por estética. Os dois não são idênticos. 3 After some brief comments on the fate of the three codes in modernity, I conclude with a discussion of the issue of aesthetics in precapitalist societies. Cosmos and body in non-Western cultures Two examples taken from pre-capitalist societies will show the intimate connection between the anthropomorphic and the cosmic codes, as well as their relation to settlement space and architecture. I shall start with the Fali of Kangu in North Cameroon. For the Fali, according to Jean-Paul Lebeuf, the cosmos originated from two eggs, one male and the other female (each egg also connoting a copulating couple), which rotated in opposite directions (clockwise/counter-clockwise); in the eggs were two unequal square earths, the earth of humans and the wild earth; the two earths emerged after the collision of the eggs in the centre of space. According to another Fali creation myth, To Dino, a culture hero who was a hunter and the irst blacksmith, descended from the sky along a beanstalk (we recognize here a local conception of the cosmic axis, a widespread concept referring to an axis uniting the centre of the earth with the heavens). He used as his dwelling a baobab tree, the branches of which touched the sky (another conceptualization of the cosmic axis), and planted a seed of red millet (teru) in the centre of the earth of humans, which is also considered as the centre of the cosmos. This earth is square, a form equivalent to the circle for the Fali, and in contact with the smaller wild earth, also square. The running waters of the earth of humans were organized in four groups and in this manner divided the earth of humans into four parts, according to the two axes formed by the waters, which coincide with the bisectors of the cardinal directions. For the Fali, the earth as a whole is analogous, in fact identical, to the cosmos. This cosmic image is projected onto the Fali villages. The village is a representation of the earth of humans (cosmic code), and is of male gender (anthropomorphic code; on another scale, the village with its ields, which are of female gender, is also a representation of this earth). The space surrounding the village connotes the wild earth (which is here conceived as concentric and not as a square adjacent to that of the earth of humans). Not only does the village connote the earth of humans (it actually the two are not identical. RHAA 22 55 alexandros Ph. lagopoulos is this earth), but it is also considered as the centre of the earth and the universe, a symbolism corroborated by the location of the village inside the ields of red millet, the plant that marks the centre of the cosmos. Actual space is shaped according to this ideal model, as is the case with the village Toro. Toro, located on a hilltop, had four traditional neighbourhoods and later acquired a ifth one; however, this new spatial organization was still interpreted according to the traditional cultural model of space. According to the anthropomorphic code of this model, the village is not just male in an abstract sense, but is speciically a human body: a cosmic body, since the earth is a man whose body is composed of head, trunk, arms and legs, all arranged around the genital organ as the central element. The Fali dwellings are also of the same nature as the cosmic and anthropomorphic Fali village. The dwelling compounds are connected to the opposite movements of the two primeval eggs and these movements are transferred to each of the two main social groups of the village. Each hut of the compound connotes a member of the human body and, simultaneously, the hut seen vertically connotes a copulating couple. Also, the hut is symbolically identiied with one of the primeval eggs, and with the universe.4 Thus, the anthropomorphic and cosmic codes invest the Fali village and its buildings with cultural meaning of prime importance for this society. The aesthetic code does not igure among the dominant codes of Fali culture. My second example comes from a very different culture, namely India. In the Indian tradition, there are two main images of the universe, or “cosmograms”. The irst is the lotus lower, encountered in all the main religious trends of India, Vedism, Brahmanism, and Buddhism. The lotus emerged from the primordial ocean. It is the womb of the divine and its golden petals shine like the sun. From the centre of the Great Lotus, located on the vertical cosmic axis passing through the summit of the universe, creation started with the emanation of the cardinal points. The four cardinal directions of space are identiied with four petals of the lotus, which may have either eight or a thousand petals. The emanation from the centre connotes the movement from the One to the many. The lotus is identiied with the earth, the universe, the sun, a wheel. The universe is a lotus, but also a See LEBEUF, Jean-Paul. l’ habitation des Fali, montagnards du Cameroun septentrional. Paris: Hachette, 1961, pp. 367-372, 414-416, 424-428, 434-435, 457-459, 470-471, 523-527. 4 56 RHAA 22 a aldeia com seus campos, que são do gênero feminino, também representa essa Terra. O espaço circunjacente da aldeia conota a Terra selvagem (que é aqui concebida como concêntrica e não como um quadrado adjacente à Terra dos humanos). A aldeia não conota apenas a Terra dos humanos (na realidade ela é essa Terra), mas também é considerada como o centro da Terra e do universo, um simbolismo corroborado pela localização da aleia dentro dos campos de painço vermelho, a planta que marca o centro do cosmos. O espaço atual é formado de acordo com esse modelo ideal, como no caso da aldeia de Toro. Toro, localizada no topo de uma colina, tinha quatro vizinhanças tradicionais e depois adquiriu uma quinta; entretanto, essa nova organização espacial ainda era interpretada segundo o modelo cultural tradicional de espaço. Conforme o código antropomórico desse modelo, a Terra é um homem cujo corpo é composto de cabeça, tronco, braços e pernas, todos dispostos em torno do órgão genital como elemento central. As habitações são também da mesma natureza cósmica e antropomórica da aldeia Fali. Os compostos das habitações são conectados aos movimentos opostos dos dois ovos primitivos, e esses movimentos são transferidos a cada um dos dois principais grupos sociais da aldeia. Cada cabana do complexo conota um membro do corpo humano e, de forma simultânea, a cabana vista de forma vertical conota um casal copulando.4 Assim, os códigos antropomórico e cósmico conferem signiicados culturais, que são de primordial importância para essa sociedade, a aldeia Fali e suas construções. O código estético não igura dentro dos códigos dominantes da cultura Fali. Meu segundo exemplo é de uma cultura muito diferente, que é a da Índia. Na tradição indiana existem duas imagens principais do universo, ou “cosmograma”. O primeiro é a lor de lótus, encontrada em todas as importantes tendências religiosas da Índia: Vedismo, Bramanismo e Budismo. O lótus emergiu do oceano primordial. Isso é o útero do divino, e suas pétalas de ouro brilham como o sol. Do centro do grande lótus, localizado no eixo cósmico vertical passando pela cúpula do universo, a criação começou com a emanação dos pontos cardeais. As quatro direções cardeais do espaço são Ver LEBEUF, Jean-Paul. l’habitation des Fali, montagnards du Cameroun septentrional. Paris: Hachette, 1961, pp. 367372, 414-416, 424-428, 434-435, 457-459, 470-471, 523-527. 4 space and aesthetics. identiicadas como as quatro pétalas de lótus, que podem possuir oito ou mil pétalas. A emanação do centro conota o movimento de Um para muitos. O lótus é identiicado como a Terra, o universo, o sol, e a roda. O universo é um lótus, mas também um homem. Por exemplo, no Jainismo, o universo é um gigante; a parte de cima de seu corpo é o céu, a parte do meio possui a Terra e a parte de baixo é habitada por demônios. O lótus encontra seu equivalente na mandala, um nome que em sânscrito signiica “disco” e “círculo”. Uma mandala é um desenho de uma área sagrada protegida por poderes profanos externos. Isso é circunscrito por uma montanha interna, que é outro círculo ou conjunto de círculos, seguidos por um quadrado com medianas e diagonais. A área mais sagrada da mandala é seu centro, onde as pétalas do lótus são iguradas. A mandala também tem uma segunda forma, que é a da grade de quadrados. Os lados do quadrado são subdivididos em partes iguais e através delas, o quadrado inicial é subdividido em quadrados menores. Um quadrado central, que conota o centro do universo, é ocupado por um lótus, e toda a mandala é organizada como uma sequência de quatro quadrados, um embutido no outro.5 A Índia possui vários tratados que abordam a arquitetura e o planejamento urbano; o mais importante é o Mānasāra Śilpaśāstra, uma compilação feita entre 500 e 700 d.C., embora a origem das ideias expressas nele remonte a tempos mais antigos. O sétimo capítulo do livro fornece uma descrição dos planos básicos de construções e dos estabelecimentos de comunidades. A construção se iniciava traçando um quadrado no chão, orientado pelos pontos cardeais, que diferem no número de suas subdivisões. Cada subdivisão, ou conjunto de subdivisões, é dedicado a uma deidade, e o mestre do quadrado central é Brahma. O plano também é organizado em quadrados embutidos, e o valor religioso das zonas arquitetônicas e urbanísticas é, de fato, construído como mandalas. zIMMER, Heinrich. Mythes et symboles dans l’art et la civilisation de l’inde. RENOU, M.-S. (Trad.). Paris: Payot, 1951 [1946], pp. 56, 90-91, 136-140, 192; TUCCI, Giuseppe. the theory and Practice of the Mandala, with special reference to the Modern Pyscholog y of the subconscious. BRODRICK, Alan Houghton (Trad.). London: Rider and Company, 1961 [1949], pp. 23-24, 27-28, 37-48, 85-87, 135; AUBOYER, Jeannine. le trône et son symbolisme dans l’inde ancienne. Paris: P.U.F., 1949, pp. 101-102, 221. man. For instance, in Jainism, the universe is a giant, the upper part of whose body is the sky, the middle part bears the earth and the lower one is inhabited by demons. The lotus inds its equivalent in the mandala, a name that in Sanskrit means “disc” and “circle”. A mandala is a drawing iguring a sacred area protected from the external profane powers. It is circumscribed by a circular mountain inside which is another circle or set of circles, followed by a square with its medians and diagonals. The most sacred area of the mandala is its center, where the petals of a lotus are igured. The mandala also has a second form, that of a square grid. The sides of the square are subdivided into equal parts and through them the initial square is subdivided into a set of smaller squares. A central square, that connotes the centre of the universe, is occupied by a lotus and the whole mandala is organized as a sequence of four squares, the one embedded within the other.5 India has several treatises dealing with architecture and town planning, the most important of which is Mānasāra Śilpaśāstra, a compilation made between 500 and 700 AD although the origin of the ideas expressed in it go back to more ancient times. The seventh chapter of the book gives the description of the basic plans of buildings and settlements. Construction starts by tracing on the ground a square orientated to the cardinal points, which is then subdivided into smaller squares. The text presents 32 named variations of the plan, which differ in the number of their subdivisions. Each subdivision or set of subdivisions is dedicated to a deity and the master of the central square is Brahma. The plan is also organized in embedded squares, and the religious value of the zones created by these squares decreases with the increase of the distance from this center. The architectural and urban plans are, in fact, constructed mandala. The site of the plan has its deity, Vāstu-purusha, who covers with his body the whole of the plan. He is lying face down and his head occupies the central section of the eastern (or north-eastern) part. His arms and legs coincide with the diagonals of 5 zIMMER, Heinrich. Mythes et symboles dans l’ art et la civilisation de l’ inde. reNOU, M.-S. (Trans.). Paris: Payot, 1951 [1946], pp. 56, 90-91, 136-140, 192; TUCCI, Giuseppe. the theory and Practice of the Mandala, with special reference to the Modern Psycholog y of the subconscious. BRODRICK, Alan Houghton (Trans.). London: Rider and Company, 1961 [1949], p. 23-24, 27-28, 37-48, 85-87, 135; AUBOYER, Jeannnine. le trône et son symbolisme dans l’ inde ancienne. Paris: P.U.F., 1949, pp. 101-102, 221. 5 RHAA 22 57 alexandros Ph. lagopoulos the plan, and his navel with the central part, that of Brahma. Purusha appears already in the Rigveda as the cosmic man from whom the universe emanated: the celestial vault was created from his skull, the earth from his legs, the atmosphere from his navel and the cardinal points from his ears. Thus, in the spatial Vāstupurusha mandala, the body, the universe, and the plan of buildings and settlements are fused into an integral whole.6 As we shall see, in India the aesthetic code is not absent, but is regulated by the cosmic and the anthropomorphic codes. Symmetria in ancient Greece After the above two examples, I shall turn, still within the context of pre-capitalist societies, to the Western tradition, starting with ancient Greece. I shall focus on the nature of the aesthetic code, which, as we shall see, helps us to better penetrate into the ancient Greek semiotics of space. The foundations for ancient Greek “aesthetic” theory were laid by Pythagorean philosophy. According to Pythagoras and the Pythagoreans, the source of all existence are the numbers, which are not simply abstract intellectual entities but also existing substances. Proportion, the relation between numbers, presides over all things and the spherical cosmos as a whole. It is because of this universal harmony that the universe was called by these philosophers “cosmos,” which means something ordered, harmoniously arranged, decorated. Each number corresponds to a dualist pair of concepts and the perfect number is 10, the tetraktys, which is the sum of the four irst integers; their proportions led to the basic intervals of the musical scale, which also governed the heavens.7 Forms such as the circle and the sphere were considered as perfect due to their order, regularity, and simplicity.8 ACHARYA, Prassana Kumar. Indian Architecture According to Mānasāra-Śilpaśāstra, trans. by the author. London, etc: Oxford University Press, 1928, pp. 36-38; MÜLLER, Werner. die heilige stadt: roma quadrata, himmlisches Jerusalem und die Mythe von Weltnabel. Stuttgart: W. Kohlhammer, 1961, p. 119-122; RYKWERT, Joseph. the idea of a town: the anthropolog y of urban Form in rome, italy and the ancient World. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1976, pp. 163-165. 7 POLLITT, J. J. the ancient view of greek art: Criticism, history, and terminolog y, student edition. New Haven and London: Yale University Press, 1974, pp. 15-18, 167; RAVEN, J. E. “Polyclitus and Pythagoreanism”. the Classical quarterly, v. 45 (v.1 n.s.) n. 3/4, 1951, p. 147-152, on pp. 147-148. 8 SCHLIKKER, Friedrich Wilhelm. hellenistische vorstellungen von der schönheit des Bauwerks nach vitruv. Berlin: Archäologisches Institut des Deutschen Reiches, 1940, p. 67. 6 58 RHAA 22 O lugar do plano tem sua deidade, Vāstupurusha, que cobre com seu corpo o plano todo. Ele está com a face virada para baixo, e sua cabeça ocupa a seção central da parte leste (ou nordeste). Seus braços e pernas coincidem com as diagonais do plano, e seu umbigo com a parte central da de Brahma. Purusha já aparece na Rigveda como o homem cósmico que emanou do universo: a cúpula celestial foi criada a partir de seu crânio; a Terra, de suas pernas; a atmosfera, de seu umbigo; e os pontos cardeais, de seus ouvidos. Assim, no especial Vāstu-purusha mandala, o corpo, o universo, e o plano de construções e espaço de comunidades são fundidos em um.6 Como veremos, o código estético na Índia não é ausente, mas é regulado pelos códigos cósmico e antropomórico. Simetria na Grécia Antiga Após os dois exemplos anteriores, direcionar-me-ei, ainda sob o contexto de sociedades pré-capitalistas, à tradição Ocidental, começando com a Grécia Antiga. Focarei na natureza do código estético, que, como veremos, nos ajuda a penetrar melhor na semiótica, grega antiga, de espaço. As fundações da teoria “estética” grega antiga têm suas bases na ilosoia pitagórica. De acordo com Pitágoras e os pitagóricos, a fonte de toda existência são os números, que não são simplesmente entidades intelectuais abstratas, mas também substâncias existentes. Proporção, a relação entre os números, preside sobre todas as coisas e o cosmos esférico como um todo. É por causa desta harmonia universal que o universo foi chamado por esses ilósofos de “cosmos”, que signiica algo ordenado, harmoniosamente arranjado, decorado. Cada número corresponde a um par dualista de conceitos, e o número perfeito é 10, o tetraktys, que é a soma dos quatro primeiros inteiros; suas proporções levaram aos intervalos básicos da escala musical, que também são governados pelos céus.7 Formas como ACHARYA, Prasanna Kumar. indian architecture according to Mānasāra-Śilpaśāstra, trans. pelo autor. London, etc.: Oxford University, Press, 1928, pp. 36-38; MÜLLER, Werner. die heilige stadt: roma quadrata, himmlisches Jerusalem und die Mythe von Weltnabel. Stuttgart: W. Kohlhammer, 1961, pp. 119-122; RYKWERT, Joseph. the idea of a town: the antropolog y of urban Form in rome, italy and the ancient World. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1976, pp. 163-165. 7 POLLIT, J. J. the ancient view of greek art: Criticism, history, and terminolog y, student edition. New Haven and 6 space and aesthetics. o círculo e a esfera eram consideradas perfeitas graças à sua ordem, regularidade e simplicidade.8 É da noção ilosóica pitagórica de ordem mundial que deriva a noção de symmetria. symmetria indicava a comensurabilidade, isto é, a relação proporcional entre as várias partes do trabalho da “arte” e entre elas como um todo; symmetria está ligada à deinição de uma unidade básica de medida, por exemplo, um módulo. Esse conceito era o núcleo de um conjunto de conceitos referentes à matemática, beleza, e às proporções do corpo humano.9 Na segunda metade do quinto século a.C., o escultor Policleto escreveu o Canon, um tratado que provê um sistema de proporções para a produção de trabalhos esculturais perfeitos. Policleto era um pitagórico, e suas visões participaram da formação da ilosoia pitagórica.10 Ele deu exemplo tangível ao seu sistema de symmetria com sua estátua doryphorus. A lógica matemática do cânone escultural encontra sua contrapartida nas ordens arquitetônicas. Os templos eram regulados, de maneira canônica, por sistemas de symmetria que ditavam as proporções entre elementos. Vitrúvio escreve que a symmetria (commensuratio) foi fundada pelos antigos com base na proporção do corpo, criada pela natureza, e compara a coluna dórica ao corpo masculino; e a coluna jônica, ao corpo feminino.11 Na pintura, a escola das quatro cores usadas como cores primárias, que correspondem aos quatro elementos primordiais, os quatro pontos cardeais e as quatro estações e suas combinações em diferentes proporções, produziu um número ilimitado de nuanças, assim como a combinação dos quatro elementos produziu todos os objetos materiais no cosmos. Deste modo, o ato de pintar era, por si mesmo, a recriação do cosmos.12 London: Yale University Press, 1974, pp. 15-18, 167; RAVEN, J. E. “Polyclitus and Pythagoreanism”. the Classical quarterly, v. 45 (v. 1 n. s.), n. 3/4, 1951, pp. 147-152, ver pp. 147-148. 8 SCHLIKKER, Friedrich Wilhelm. hellenistische vorstellungen von der schönheit des Bauwerks nach vitruv. Berlin: Archäologisches Institut des Deutschen Reiches, 1940, p. 67. 9 POLLITT, J. J., op. cit., pp. 14-23, 26, 88, 126, 162, 167169, 182, 187. 10 RAVEN, J. E., op. cit., pp. 50-52. 11 VITRUVIUS. on architecture. Vol. I. GRANGER, Frank (Ed. e trad.), Loeb Classical Library. Cambridge, MA: Harvard University Press and London: Heinemann, 1931, III.I: 2-5, IV. I: 6-7. 12 BRUNO, Vincent J. Form and Color in greek Painting. New York and London: W.W. Norton, 1977, pp. 56-58, From the Pythagorean philosophical notion of world order was derived the notion of symmetria. symmetria indicated the commensurability, that is, proportional relation between the various parts of a work of “art” and between them and the whole; symmetria is linked to the deinition of a basic unit of measurement, i.e., a module. This concept was the nucleus of a set of concepts referring to mathematics, beauty, and the proportions of the human body.9 In the second half of the ifth century B.C., the sculptor Polyclitus wrote the Canon, a treatise that provided a system of proportions for the production of perfect sculptural works. Polyclitus was a Pythagorean, and his views participated in the formation of Pythagorean philosophy.10 He gave tangible expression to his system of symmetria with his statue the doryphorus. The mathematical logic of the sculptural canon inds its counterpart in the architectural orders. Temples were canonically regulated by systems of symmetria that dictated the proportions of and between elements. Vitruvius writes that symmetria (commensuratio) was founded by the ancients on the proportions of the body, created by nature, and compares the Doric column to the male body and the Ionic to the female.11 In painting, the Four-Colour School used four primary colours, which corresponded to the four primordial elements, the four cardinal points and the four seasons, and their combination in different proportions produced an unlimited number of hues, just as the combination of the four elements produced all material objects in the cosmos. Thus, the act of painting was in itself a re-creation of the cosmos.12 We see the relation established by the Pythagoreans between cosmology and aesthetics. When the aesthetic aspect of the cosmic was expressed as symmetria, aesthetics and beauty, far from becoming autonomous, drew with them all their cosmic associations, incorporating into a work of art the order of the cosmos. It is because of this subordination that I have placed quotation marks around the terms “aesthetic” and “art”. In ancient POLLITT, J. J., op. cit., pp. 14-23, 26, 88, 126, 162, 167-169, 182, 187. RAVEN, J. E., op. cit., pp. 50-52. 11 VITRUVIUS, on architecture. Vol. I. GRANGER, Frank (Ed. and trans.), Loeb Classical Library. Cambridge, MA: Harvard University Press and London: Heinemann, 1931, III.I: 2-5, IV.I: 6-7. 12 BRUNO, Vincent J. Form and Color in greek Painting. New York and London: W.W. Norton, 1977, pp. 56-58, 63-64, 83, 96; POLLITT, J. J., op. cit., pp. 23, 111, 244; see also BOLLACK, Jean. empédocle. Vol. I. introduction à l’ancienne physique. Paris: Éditions de Minuit, 1965, pp. 238-239. 9 10 RHAA 22 59 alexandros Ph. lagopoulos Greece, aesthetics was not an autonomous domain of thought, but a quasi-aesthetics, and art was a quasi-art. Aesthetics was not autonomous even in the Hellenistic period, when there was a gradual modiication of symmetria in the direction of a subjectivism, starting towards the end of the ifth century and becoming apparent in the fourth, which focused on the viewers and their reactions, that is, on appearance as opposed to essence. This new trend revolved around the notion of eurythmia, the quality of being visually well-proportioned as evaluated personally by the creator of a work.13 symmetria was projected on urban space in various ways. From the end of the sixth century BC, the Greek city was conceptualized as a circle with a centre and according to four main codes: a cosmic, a political, an “aesthetic” and an anthropomorphic code. In the context of the irst code, the igure connotes a cosmogram, the circle being identiied with the conines of the cosmos and of the earth and the centre with their centre. For the political code — which for the irst time acquired a certain autonomy from religion — the centre denotes the agora and the circle alludes to the equidistance of all citizens from that centre, connoting the principle of isonomia, that is, equality of political rights between citizens, and thus the reciprocity of their relations and ultimately social equilibrium.14 Simultaneously, equidistance and equilibrium refer to symmetria, and thus to beauty. The fourth code ruling the ideological model of the city was the anthropomorphic one, because the centre is an omphalos, a navel. In fact, the whole of the city is permeated by this code, because isonomia is also related to bodily health and expresses the correct proportion and equilibrium of the elements of the body, thus operating as a symmetria of the abstract inside of the body.15 A prominent theoretical realization of the above abstract semiotic model is the Platonic city, the nature of which is clariied by Plato’s cosmic ideas. A fundamental text on the subject of the composition of the nature of humans and its relation to the cosmos is Plato’s timaeus. God created a mixture composed of On eurythmia, as well as phantasia (intuitive insight unrelated to the senses and able to capture divine essence and transcendental beauty, a classicizing and mystical theory of the second century BC), see POLLITT, J. J., op. cit., pp. 2731, 52-54, 82-85, 96, 153-154, 186-187, 204. 14 VERNANT, Jean Pierre. Mythe et pensée chez les grecs. Vol. II. Paris: Maspero, 1974, pp. 179-180, 183-186, 204, 206, 209-211. 15 Cf. RAVEN, J. E., op. cit., pp. 150. 13 60 RHAA 22 Nós enxergamos a relação estabelecida pelos pitagóricos entre cosmologia e estética. Quando o aspecto estético do cósmico era expresso como symmetria, estética e beleza, longe de se tornar autônomo, arrastou todos eles como associações cósmicas, incorporando a um trabalho de arte a ordem do cosmos. É por causa dessa subordinação que tenho colocado aspas nos termos “estética” e “arte”. Na Grécia Antiga, a estética não era um domínio autônomo do pensamento, mas uma quase estética, e a arte uma quase arte. A estética não era um domínio autônomo nem durante o período helenístico, quando houve uma modiicação gradual de symmetria em direção a um subjetivismo, iniciado em torno do quinto século e tornando-se aparente no quarto, que confundiu seus espectadores e suas reações, ou seja, a aparência oposta à essência. Essa nova tendência girava em torno da noção de eurythmia, a qualidade de ser visualmente bem proporcional como avaliado pessoalmente pelo criador de um trabalho.13 symmetria era projetada no espaço urbano de formas diversas. A partir do inal do sexto século a.C., a cidade grega era conceituada como um círculo com um centro e seguindo quatro códigos principais: um cósmico, um político, um “estético” e um antropomórico. No contexto do primeiro código, a igura conota um cosmograma, o círculo sendo identiicado com as fronteiras do cosmos e da Terra e seu centro com o centro do mesmo cosmos. Para o código político — que pela primeira vez adquiriu certa autonomia da religião — o centro denota a ágora, e o círculo alude à equidistância de todos os cidadãos do centro, conotando um princípio de isonomia, que é a igualdade de direitos políticos entre cidadãos, desta maneira a reciprocidade das relações e, por im, o equilíbrio social.14 Simultaneamente, equidistância e equilíbrio referem-se à symmetria e, desta forma, 63-64, 83, 96; POLLITT, J. J., op. cit., pp. 23, 111, 244. Ver também BOLLACK, Jean. empédocle. Vol. I. introduction à l’ancienne physique. Paris: Éditions de Minuit, 1965, pp. 238-239. 13 Sobre eurythmia, assim como phantasia (percepção intuitiva sem relação com os sentidos e capaz de capturar a essência divina e beleza transcendental, uma teoria mística e elitizante do século dois a.C.), ver POLLITT, J. J., op. cit., pp. 27-31, 52-54, 82-85, 96, 153-154, 186-187, 204. 14 VERNANT, Jean Pierre. Mythe et pensée chez les grecs. Vol. II. Paris: Maspero, 1974, pp. 179-180, 183-186, 204, 206, 209-211. space and aesthetics. à beleza. O quarto código, dominando o modelo ideológico de cidade, era o antropomórico, porque o centro é um omphalos, um umbigo. De fato, toda a cidade é permeada por esse código, pois isonomia é também relacionada à saúde física e expressa a proporção correta e o equilíbrio dos elementos do corpo operando, dessa forma, como symmetria do interior abstrato do corpo.15 Uma proeminente realização teórica do modelo semiótico acima é a cidade platônica, a natureza que é explicada pelas ideias cósmicas de Platão. Um texto fundamental sobre o assunto da composição da natureza e suas relações com o cosmos é timaeus, de Platão. Deus criou uma mistura composta de três substâncias, e essa mistura era a alma. Então Ele começou a extrair sete quantidades básicas com tamanhos ixos e continuou com um conjunto de outras quantidades, todas com relações numéricas ixadas umas às outras. Com essas quantidades, Deus formou uma banda que Ele dividiu ao meio de forma longitudinal. Ele, então, colocou uma parte na outra na forma de uma cruz (o X grego, de acordo com Platão), de modo que seus meios coincidissem, e curvavam um ao outro em uma forma circular. Nesta esfera criada, o círculo externo se transformou no equador celestial, e ao interno foi dada uma inclinação, formando a eclíptica solar, e dividiu entre sete desiguais círculos concêntricos às órbitas dos planetas.16 Tendo criado a alma, Deus criou o corpo. Ele fez os dois meios coincidirem e formou esse centro da alma estendido até as extremidades do céu, cercando-o. Platão dá, assim, uma explicação soisticada de uma relação íntima entre o cosmos e o homem, mostrando o cosmos como um macro-homem e, de maneira simultânea, o homem como um microcosmo. Essa doutrina inluenciou, de forma profunda, a Idade Média e o Renascimento. As iguras geométricas fundamentais da cosmogonia e cosmologia platônica são, portanto, o X, o círculo, os círculos concêntricos e a esfera; e essas iguras são signiicantes nos códigos conotativos cósmico e antropomórico. Esses dois códigos também estão relacionados ao espaço urbano. Um exemplo notável dessa relação é dado nas leis Ver também RAVEN, J. E., op. cit., p. 150. PLATO, timaeus. In BURY, R. G. (Ed. e trad.), timaeus, Critias, Cleitophon, Menexenus, epistles, Loeb Classical Library. London: Heinemann and Cambridge, MA: Harvard University Press, 1929, 34B-36E, 39A. 15 three substances, and this mixture was the soul. Then he started extracting seven basic quantities with ixed sizes and continued with a host of other quantities, all with ixed numerical relations to each other. With these quantities, God formed a band which he divided lengthwise down the middle. He then placed the one part on the other in the form of a cross (a Greek X, according to Plato), so that their middles coincided, and bent each part into a circular form. In the sphere thus created, the external circle became the celestial equator and the internal was given an inclination, forming the ecliptic of the sun, and split into seven unequal concentric circles, the orbits of the planets.16 Having created the soul, God then made the body. He made their two middles coincide and from this centre the soul extended to the extremities of the sky, encircling it. Plato thus gives a sophisticated account of an intimate relation between the cosmos and man, showing the cosmos as a macro-man and simultaneously man as a microcosm. This doctrine had a profound inluence on both the Middle Ages and the Renaissance. The fundamental geometrical igures of the Platonic cosmogony and cosmology are thus the X, the circle, the concentric circles and the sphere, and these igures are signiiers in the connotative cosmic and anthropomorphic codes. These two codes are also related to urban space. One striking example of this relation is given in Plato’s laws. The lawgiver must build the ideal city-state in the middle of its territory. He will divide the grounds, both of the city and the territory, into twelve unequal sectors, starting from a central acropolis with a circular wall, which should include the temples of Hestia, zeus and Athena; in the middle of the acropolis he should place the agora. Immediately outside the acropolis will be the dwellings of the high functionaries and the courts, which are sacred places; outside this circle he should place the irst of thirteen groups of craftsmen. Twelve villages, each located in the middle of a sector, surround the city, and these are inhabited by the remaining twelve sub-groups of craftsmen and farmers. The socio-geographical organization of the villages repeats the concentric organization of the city. It is evident that any geometrical division into twelve parts leads to the tracing of two central axes, which form a kind of X when the sectors are unequal, as Plato advises that they should 16 PLATO, timaeus. In BURY, R. G. (Ed. and trans.), timaeus, Critias, Cleitophon, Menexenus, epistles, loeb Classical library. London: Heinemann and Cambridge, MA: Harvard University Press, 1929, 34B-36E, 39A. 16 RHAA 22 61 alexandros Ph. lagopoulos be (an orthogonal cross if they were equal). Thus, the urban geometry of the ideal Platonic city-state is founded on the same geometrical igures that found his cosmogony and cosmology, the cross-like X and the circle, and in both the concentric circles are of major importance. Hence, we may conclude that his city is an image of the cosmos, a cosmogram. Plato is explicit on this matter, stating that each sector of the city must be seen as a divine gift — each sector is assigned to a god — and the sectors are related to the months and the rotation of the cosmos. The lawgiver divides the citizens into twelve tribes: the number of citizens is 5,040, a number divisible by 12; the quotient of this division is also divisible by 12, and the same number has further “symmetrical” arithmetical qualities.17 Through its geometry and the incorporation of numbers, the Platonic city becomes a cosmogram. Just as the cosmos is anthropomorphic and man is a microcosm, so also the city as microcosm incorporates the anthropomorphic code; its centre is marked by a “navel.” Also, symmetria and the perfection of the circle introduce the “aesthetic” code into the city. The general Greek semiotic model also inds spatial expression in a widely diffused and apparently incompatible urban form, namely the grid pattern, the main urban achievement of Greek antiquity. This pattern consists of a set of parallel streets crossed by another set of streets perpendicular to them, the whole forming blocks (cf. insulae) of the rectangular type. This pattern was attributed by modern scholars to the ifth-century Hippodamus. While Hippodamus was not the inventor of the plan (which already had a long history in the Greek colonies), he integrated it within a comprehensive philosophical system of Pythagorean origin. The ideal Hippodamian city is myriandros, that is, has 10,000 citizens, a number derived from the Pythagorean perfect number, the tetraktys, which thus imbues the city with its perfection. Hippodamus uses a tripartite classiication system and on this basis he organizes the citizens into three classes, soldiers, craftsmen and farmers (the same classes that we encountered in Plato), and divides the city with its surrounding area into three kinds of lots.18 PLATO, the laws. Vol. I. BURY, R. G. (Ed. and trans.), Loeb Classical Library. London: Heinemann and Cambridge, MA: Harvard University Press, 1926, V: 737E-738B, 745B-E; VI: 771A-C (see also Vol. II, VIII: 848C-E). 18 ARISTOTLE, Politics. RACKMAN, H. (Ed. and trans.), Loeb Classical Library. London: Heinemann and Cambridge, MA: Harvard University Press, 1972, II.v: 1267b 30-40, 1268a 10-15. See also VERNANT, Jean Pierre, op. cit., 17 62 RHAA 22 de Platão. O legislador deve construir a cidade-estado ideal no meio de seu território. Ele dividirá os terrenos, ambos da cidade e do território, em doze setores desiguais, começando da acrópole central com uma parede circular, que deve incluir os templos de Héstia, zeus e Atena; no meio da acrópole ele deve colocar a ágora. Imediatamente fora da acrópole, estarão as habitações dos altos funcionários e a corte, que são locais sagrados; fora desse círculo ele deve colocar o primeiro dos treze grupos de artíices. Doze aldeias, cada uma localizada no meio de um setor, circunjacente à cidade, e esses são habitados pelos doze subgrupos de artíices e fazendeiros restantes. A organização sociogeográica das aldeias repete a organização concêntrica da cidade. É evidente que qualquer divisão geométrica em doze partes conduz ao traçado de dois eixos centrais, que formam um tipo de X quando os setores são desiguais, como Platão aconselha que eles devem ser (uma cruz octogonal se forem iguais). Desse modo, a geometria urbana da cidade-estado ideal platônica é fundada nas mesmas iguras geométricas que fundaram sua cosmogonia e cosmologia, a cruz parecida com o X e o círculo, e ambos nos círculos concêntricos de importância primordial. Platão é explícito sobre esse assunto, declarando que cada setor da cidade deve ser visto como um presente divino — cada setor é atribuído a um deus — e os setores são relacionados aos meses e à rotação do cosmos. O legislador divide os cidadãos em doze tribos: o número de cidadãos é 5.040, um número divisível por 12; o quociente dessa divisão, também divisível por 12, e o mesmo número têm ainda qualidades “simétricas” aritméticas.17 Por meio de sua geometria e da incorporação de números, a cidade platônica torna-se um cosmograma. Assim como o cosmos é antropomórico e o homem é um microcosmo, então a cidade também como microcosmo, incorpora o código antropomórico; seu centro é marcado pelo “umbigo”. symmetria e a perfeição do círculo introduziram, também, o código “estético” na cidade. O modelo semiótico geral grego também encontra expressão espacial em uma forma urbana PLATO, the laws. Vol. I. BURY, R. G. (Ed. e trad.), Loeb Classical Library. London: Heinemann and Cambridge, MA: Harvard University Press, 1926, V: 737E-738B, 745B-E; VI: 771A-C (Ver também Vol. II, VIII: 848C-E). 17 space and aesthetics. — muito difundida e aparentemente incompatível —, nomeada padrão de grade, a maior façanha da Antiguidade Grega. Esse padrão consiste em um conjunto de ruas paralelas cruzadas por outro conjunto de ruas perpendiculares a elas, o todo formando blocos (cf. insulae) retangulares. Esse padrão foi atribuído, por estudiosos modernos, a Hipódamo de Mileto, que viveu durante o século V a.C. Hipódamo não foi o inventor do plano (que já tinha uma longa tradição nas colônias gregas), ele o integrou a um sistema ilosóico compreensivo de origem pitagórica. A cidade hipodamiana ideal é um myriandros, isto é, tem 10.000 cidadãos, um número derivado do número pitagórico perfeito, o tetraktys, que de fato imbui a cidade com sua perfeição. Hipódamo utiliza um sistema de classiicação triplo, e em sua base ele organiza os cidadãos em três classes: soldados, artíices e fazendeiros (as mesmas classes encontradas em Platão), e divide a cidade com sua área circunjacente em três tipos de lotes.18 Não são apenas os números que governam a cidade de Hipódamo. Nós podemos assumir, também, que ele usou uma organização geométrica muito estrita dos padrões de grade enquanto transportadora de signiicados. A ágora ocupa um lugar importante no centro do plano. Embora a cidade não tenha o formato de um círculo, ela roda de maneira orbicular ao redor da ágora. A uniformidade da insulae, lotes, e até casas projeta o princípio espacial de isonomia, expresso de modo geral pelo raio do círculo. Ao mesmo tempo, a cidade é gerada pelo (é múltipla de) módulo duplo acima — da insula e lote/casa — na qual o maior é múltiplo do menor e, portanto, é fundamentado em symmetria.19 Apesar dessas diferenciações, uma social, baseada em classes; e uma legal, de acordo com posses, a cidade com sua área constitui um todo social; e ela, por si mesma, um todo harmonioso e governado ARISTOTLE. Politics. RACKHAM, H. (Ed. e trad.), Loeb Classical Library. London: Heinemann and Cambridge, MA: Harvard University Press, 1972, II. v: 1267b 30-40, 1268a 10-15. Ver também VERNANT, Jean Pierre, op. cit., pp. 219-226; LÉVÊQUE, Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Clisthène l’athénien: essai sur la représentation de l’espace et du temps dans la pensée politique grecque de la in du vième siècle à la mort de Platon. Paris: Les Belles Lettres, 1964, pp. 124-128, 132. 19 Ver também HOEPFNER, Wolfram; SCHWANDNER, Ernst Ludwig. haus und stadt im klassischen griechenland: Wohnen in der classischen Polis. München: Deutscher Kunstverlag, 1994, pp. 302, 306, 308, 312. 18 It is not only numbers that govern the city of Hippodamus. We may also assume that he used the very strict geometrical organization of the grid pattern as a carrier of meaning. An important place in the center of the plan is occupied by the agora. Thus, although the city is not circular, it revolves in a circle-like manner around the agora. The uniformity of insulae, lots, and even houses projects onto space the principle of isonomia, expressed in the general model by the radius of the circle. Simultaneously, the city is generated by (is a multiple of) the above twofold module — of insula and lot/house — in which already the larger is a multiple of the smaller, and thus is founded upon symmetria.19 in spite of its differentiation — a social one into classes and a legal one according to ownership — the city with its area constitutes a social whole and the city itself a rule-governed and harmonious totality. Finally, symmetia and probably a desire to orient the city to the cardinal points integrate it into the cosmic order. Symmetria and naturalistic aesthetics: Alberti and the Renaissance In the Quattrocento, as in the whole of the Renaissance, cosmic ideas strongly inluenced the forms of the ideal city. A leading role among these ideas was played by the Vitruvian conception of the city, based on symmetria. For Vitruvius the city is a cosmogram incorporating two cosmic igures of man, the homo ad circulum and the homo ad quadratum. 20 These ideas generated all the main urban patterns of the period, such as the circular city extending around a sacred navel, or the quadripartite city organized around a centre and a central cross.21 According to Rudolf Wittkower, in Renaissance architecture the cosmos and the body still guide architectural design through symmetria: each part of a building, whether internal or pp. 219-226; LÉVÊQUE, Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Clisthène l’athénien: Essai sur la représentation de l’espace et du temps dans la pensée politique grecque de la in du vième siècle à la mort de Platon. Paris: Les Belles Lettres, 1964, p. 124-128, 132. 19 See also HOEPFNER, Wolfram; SCHWANDNER, Ernst Ludwig. haus und stadt im klassischen griechenland: Wohnen in der classischen Polis. Munich: Deutscher Kunstverlag, 1994, pp. 302, 306, 308, 312. 20 VITRUVIUS, op. cit., I.VI: 6-7, 12-13, III.I: 3-4. See also LAGOPOULOS, Alexandros Ph. “The Cosmic and the Aesthetic: Two Hidden Codes of the Vitruvian City”. In PELLEGRINO, Pierre (Ed.), l’espace dans l’image et dans le texte. Urbino: QuattroVenti, 2000, p. 132-141, on p. 137. 21 MARCONI, Paolo. “Il problema della forma della città nei teorici di architettura del rinascimento”. Palladio, n.s. v.22, 1972, p. 49-88. RHAA 22 63 alexandros Ph. lagopoulos external, must follow a uniied system of numerical proportions. The architects did not apply systems of proportions of their own invention, but established proportions anchored in the human body: given that man was created in the image of God, who established the proportions of the body, these proportions express the cosmic order. Thus, the macrocosm and the microcosm obey the same proportions, which were revealed by Pythagoras and Plato. This ideology is also the quintessence of de architectura and, while it was inluential already during the Middle Ages, it acquired new impetus from the Renaissance onwards. Wittkower also observes that numerical proportions were the common topos of the cosmos, the body and aesthetics. They were applied not only in architecture but also in music, since, following the Greeks, the musical system was founded on the proportions underlying musical consonances: proportions transpose into music the harmony that pervades the cosmos. The materialization of this harmony in architecture through proportions was the chief preoccupation of the Renaissance architects.22 I believe it is evident that the above canonical and anthropocentric aesthetics, an aesthetics inseparable from cosmology, was the common approach of the Renaissance to beauty. Beauty was not considered per se, but to the extent that its foundations were thought to lie in the cosmic order. From within this cultural ambience, however, a new aspect of aesthetics began to emerge, which announced the later autonomy of aesthetics as an intellectual domain. This tendency is already present in the Quattrocento, as witnessed by Alberti’s De re aediicatoria, the next landmark in architectural theory after Vitruvius. Françoise Choay argues that in this work there are two aesthetics that she considers as opposed. The irst is dogmatic, normative, and mathematical, is associated with a system of norms according to the ancient theory of the architectural orders and, deriving from the Pythagoreans through the mediation of Neoplatonism, represents a borrowing from the numerical interests of Greco-Roman antiquity. According to Choay, the main source of the beauty of a building is, for Alberti, initio, the proportions of the building, and initio is the equivalent of the Greek symmetria. Finitio is, for Choay, the nucleus of Alberti’s normative aesthetics. WITTKOWER, Rudolf. architectural Principles in the age of humanism. New York and London: W.W. Norton, 1971 [1962], pp. 101-104, 110-111, 116-117, 121, 126, 132. 22 64 RHAA 22 por regras. Finalmente, symmetria e provavelmente um desejo de orientar a cidade para os pontos cardeais integra-a na ordem cósmica. Simetria e estética naturalista: Alberti e o Renascimento Durante o Quatrocento, e como um todo do Renascimento, ideias cósmicas inluenciaram fortemente as formas da cidade ideal. A concepção vitruviana de cidade, baseada em symmetria, teve um papel de liderança entre essas ideias. Para Vitrúvio, a cidade é um cosmograma incorporando duas iguras cósmicas do homem, o homo ad circulum e o homo ad quadratum.20 Essas ideias geraram todos os padrões urbanos do período, como a cidade circular, que se estende em volta de um centro sagrado; ou a cidade quadripartida, organizada em volta de um centro e uma cruz central.21 Segundo Rudolf Wittkower, na arquitetura Renascentista o cosmos e o corpo ainda guiam o design arquitetônico por meio de symmetria: cada parte da construção, sendo interna ou externa, deve seguir um sistema uniicado de proporções numéricas. Os arquitetos não aplicavam sistemas de proporção de sua autoria, mas proporções estabelecidas e ancoradas no corpo humano: dado que o homem foi criado à imagem de Deus, que estabeleceu as proporções do corpo, essas proporções expressam a ordem cósmica. Assim, o macrocosmo e o microcosmo obedecem às mesmas proporções, que foram reveladas por Pitágoras e Platão. Essa ideologia é, também, a quintessência do de architectura e, enquanto foi inluente já na Idade Média, adquiriu novo ímpeto do Renascimento em diante. Wittkower também observa que as proporções numéricas são o comum topos do cosmos, do corpo e da estética. Eles eram aplicados não apenas na arquitetura, como na música, desde que, seguindo os gregos, o sistema musical foi fundado em proporções musicais harmônicas subjacentes: as proporções transferiram à música a harmonia que impregnava o cosmos. A materiaVITRUVIUS, op. cit., I.VI: 6-7, 12-13, III.I: 3-4. Ver também LAGOPOULOS, Alexandros Ph.“The Cosmic and the Aesthetic: Two Hidden Codes of the Vitruvian City”. In PELLEGRINO, Pierre (Ed.), l’espace dans l’image et dans le texte. Urbino: QuattroVenti, 2000, pp. 132-141, na p. 137. 21 MARCONI, Paolo. “Il problema della forma della città nei teorici di architettura del rinascimento”. Palladio, n.s. v.22, 1972, pp. 49-88. 20 space and aesthetics. lização dessa harmonia na arquitetura por meio de proporções era a principal preocupação dos arquitetos renascentistas.22 Acredito que está evidente que a estética canônica e antropocêntrica, uma estética inseparável da cosmologia, era a abordagem comum sobre beleza do Renascimento. Beleza não era considerada per se, mas na extensão que suas fundações tinham na ordem cósmica. Dentro desse ambiente cultural, no entanto, um novo aspecto de estética começou a emergir, que anunciou, mais tarde, a autonomia da estética como domínio intelectual. Essa tendência já está presente no Quatrocento, como testemunhado por Alberti em De re aediicatoria, a próxima referência na teoria arquitetônica após Vitrúvio. Françoise Choay argumenta que nesse trabalho existem duas estéticas que ela considera opostas. A primeira é dogmática, normativa e matemática e associada com um sistema de normas de acordo com a teoria antiga de ordens arquitetônicas e, derivando dos pitagóricos por meio da mediação do neoplatonismo, representa um empréstimo dos interesses numéricos da antiguidade greco-romana. Segundo Choay, a fonte principal da beleza de uma construção é, para Alberti, initio, as proporções da construção. Finitio, equivalente ao grego symmetria, é — para Choay — o núcleo da estética normativa de Alberti. Contudo, Choay considera essa estética como um desvio momentâneo da lógica de Alberti e contrasta como especulativa e “naturalista” a forma como ela denomina a estética que Alberti expressa em sua concepção de que “toda construção é um corpo”. Ela observa que a referência é a um corpo vivo e que essa relação estabelece estreitas analogias, implicando uma identidade de organização, entre construção e corpo, e vê a construção como substituto para o corpo. A estética naturalista é baseada nas relações encontradas entre o corpo humano e é, para Choay, uma teoria revolucionária da criatividade. Ela argumenta que a ideia central da estética naturalista é que a beleza é intrínseca à perfeita adaptação de uma construção à sua destinação e funções, como no caso do corpo. Isso é uma beleza adaptativa, natural ou orgânica, originária do “isiologismo” aristotélico. É desse nível de utilidade que a beleza emerge — nós reconheWITTKOWER, Rudolf. architectural Principles in the age of humanism. New York and London: W.W. Norton, 1971 [1962], pp. 101-104, 110-111, 116-117, 121, 126, 132. 22 However, Choay considers this aesthetics as a momentary deviation from Alberti’s logic and contrasts it to the speculative, “naturalistic” as she calls it, aesthetics that Alberti expresses in his conception that “every building is a body”. She observes that the reference is to a living body and that this relation establishes close analogies, implying an identity of organization, between building and body, and views the building as a substitute for the body. Naturalistic aesthetics is founded on the relations found in the human body and is, for Choay, a revolutionary theory of creativity. She argues that the central idea of naturalistic aesthetics is that beauty is inherent in the perfect adaptation of a building to its destination and functions, as is the case with the body. This is an adaptive, natural or organic beauty, originating in Aristotle’s “physiologism”. It is from the level of utility that beauty emerges — we recognize here the ancestor of the functionalist dictum of modernist architecture “form follows function”. Thus, beauty and adaptation are inseparable and both are achieved when the parts of a building are correctly related with each other and subordinated to the whole, as in living bodies. Architectural beauty creates pleasure involving the whole body, and the perceivers conceive the beautiful building as another body with proportions similar to their own.23 I believe that Choay is too hasty in drawing this sharp demarcation line between the two aesthetics she deines, because it is evident that Alberti’s naturalistic aesthetics, just as normative aesthetics, adopts as its model the body and its proportions, that is, is founded on symmetria. Of course there is an important difference between the two aesthetics, because both the generalization from the proportions of man to the structuring of an animal body and the functional dimension give to symmetria a more open and qualitative aspect (the latter as we saw was not unknown in ancient Greece, but eurythmia was considered as a by-product of symmetria). Finally, normative aesthetics is not a deviation, but the background against which a new aesthetics is emerging. This new aesthetics is deined by Choay: among the three constituent parts of ediication — necessitas, commoditas, and voluptas — there is a hierarchical relationship, through the CHOAY, Françoise. la règle et le modèle: sur la théorie de l’architecture et de l’urbanisme. Paris: Seuil, 1980, p. 89-90, 95, 116-118, 121-126, 130-136, 138 n. 4, 139, 156-157 and the rule and the Model: on the theory of architecture and urbanism. BRATTON, Denise (trans. from the above with revisions). Cambridge, MA and London: The M.I.T. Press, 1997, pp. 93-95, 111-115. 23 RHAA 22 65 alexandros Ph. lagopoulos integration from part to part, culminating in and serving beauty. We have here the precursor of eighteenth-century autonomous aesthetics. The religious “art” of India and China: The issue of pure aesthetics With the work of Alberti we witness the timid emergence in the West of pure aesthetic theory and of a desacralized, naturalistic concept of beauty. I believe I have shown above that the idea of pure beauty was unknown to both the Greeks and the Romans. I shall try to show below that it was also unknown to two other sophisticated ancient societies, India and China, which for me would be the prime candidates, after Greece, for producers of a pure aesthetic theory. I will extend my discussion from space to other semiotic systems, such as painting and music, since the dominant ideology animating them is common and thus the study of any one of them helps to illuminate the others. I shall also make reference to the insistent and elitist Eurocentric extrapolations of pure aesthetics to cultures of the past, an argument which has also been advanced by Pierre Bourdieu.24 Due to ideological habits, the use of Western classiications, even words, helps to reproduce Eurocentrism. The term “work of art” is such a classiication category. By deining a cultural object — a Hindu musical piece or a Chinese painting — as a “work of art”, we already enclose it within Western ideological categories. We may distinguish the theoretical approaches to Indian cultural objects, and more generally to all traditional cultural objects, into four categories. For the irst approach, they are purely aesthetic objects; this is what I shall call the “free beauty” model. This in the case, for example, with Rekha Jhanji, who argues that Indian art, including architecture, is wrongly considered as sacred or spiritual. Jhanji observes that scholars have identiied traditional Indian art with sacred art because of its close connection with religious practices, and that this view conceives of the rituals preceding the creation of a “work of art” as a “deprofanization” of the environment. There is indeed a process of deprofanization, according to Jhanji, but not for religious reasons; the process aims at the creation of an autoBOURDIEU, Pierre. “The Historical Genesis of a Pure Aesthetic”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 46, n. on analytic aesthetics, 1987, pp. 201-210. 24 66 RHAA 22 cemos aqui o ancestral do ditado funcionalista da arquitetura moderna “forma segue função”. Assim, beleza e adaptação são inseparáveis, e ambos são atingidos quando as partes de uma construção são corretamente relacionadas umas às outras e subordinadas ao todo como um corpo vivo. Beleza arquitetônica cria prazer envolvendo o corpo todo, e os apreensores concebem uma construção bonita como outro corpo com proporções similares às dele.23 Acredito que Choay se precipita ao traçar essa linha aiada demarcando as duas estéticas que ela deine, porque é evidente que a estética naturalista de Alberti, assim como a estética normativa, adota o modelo de corpo e suas proporções, ou seja, é encontrado em symmetria. É claro que é importante diferenciar as duas estéticas, pois ambas, a generalização das proporções do homem e a estruturação de um corpo animal e sua dimensão funcional, dão à symmetria um aspecto mais qualitativo e aberto (o último, como vimos, não era conhecido na Grécia Antiga, mas eurythmia era considerada um subproduto de symmetria). Finalmente, a estética normativa não é um desvio, mas uma prática contra a nova estética emergente. Essa nova estética é deinida por Choay: entre as três partes constituintes de uma ediicação — necessitas, commoditas, e voluptas — há uma relação hierárquica, por meio da integração de parte por parte, culminando em uma beleza servente. Nós temos aqui o precursor da estética autônoma do século XVIII d.C. A “arte” religiosa da Índia e China: o problema da estética pura Com o trabalho de Alberti, testemunhamos a tímida emergência da teoria da estética pura no Ocidente e um conceito “dessacralizado” e naturalista de beleza. Acredito ter mostrado acima que a ideia de beleza pura era desconhecida pelos gregos e romanos. Tentarei mostrar a seguir que isso também era desconhecido por outras duas sociedades soisticadas antigas: Índia e China que, para mim, são as principais candidatas, depois da CHOAY, Françoise. la règle et le modèle: sur la théorie de l’architecture et de l’urbanisme. Paris: Seuil, 1980, pp. 89-90, 95, 116-118, 121-126, 130-136, 138 n. 4, 139, 156-157 e the rule and the Model: on the theory of architecture and urbanism. BRATTON, Denise (traduzido do texto acima com revisões). Cambridge, MA and London: The M.I.T. Press, 1997, pp. 93-95, 111-115. 23 space and aesthetics. Grécia, como produtoras da teoria da estética pura. Estenderei minha discussão do espaço com base em outros sistemas semióticos como a pintura e a música, já que a ideologia dominante que os anima é comum ao estudo de qualquer um deles. Além do que, o estudo de um ajuda a iluminar os demais. Também farei referência às extrapolações elitistas e insistentes, eurocêntricas, de estética pura a culturas do passado. Um argumento que tem sido defendido, também, por Pierre Bourdieu.24 Devido aos hábitos ideológicos, o uso de classiicações ocidentais, até de palavras, ajuda a reproduzir o Eurocentrismo. O termo “trabalho artístico” é uma categoria de classiicação. Ao deinir um objeto cultural — uma música hindu ou uma pintura chinesa — como “trabalho artístico”, nós já aproximamos isso às categorias ideológicas ocidentais. Podemos distinguir as abordagens teóricas dos objetos culturais indianos, e de forma mais geral a todos os objetos culturais tradicionais, em quatro categorias. Para a primeira abordagem, eles são puramente objetos estéticos; isto é o que chamarei de modelo de “beleza livre”. Isso no caso, por exemplo, de Rekha Jhanji, que argumenta que a arte indiana, incluindo a arquitetura, é considerada de maneira incorreta como sagrada ou espiritual. Jhanji observa que estudiosos têm identiicado arte tradicional indiana com arte sacra graças à conexão com práticas religiosas e que essa visão concebe os rituais precedendo a criação de um “trabalho artístico” como a “desprofanização” do ambiente. Há, de fato, um processo de desprofanização, de acordo com Jhanji, mas não por razões religiosas; o processo visa à criação de um cenário autônomo para a recepção de um “objeto estético”. Essa “autonomia é comum a todos os trabalhos artísticos”, e “como qualquer outro artista” o artista indiano se esforça pela “sensação de prazer”. O artista sabe que, com seu ato de criação e por meio da coerência de seu trabalho, “ele transcende todas as considerações extraestéticas”. O pior da interpretação errada kantiana da arte indiana é o profundo mal-entendido e má utilização de Jhanji sobre a visão de Mircea Eliade. Inspirado — mas não apenas inspirado — pelo trabalho de Eliade, Jhanji concorda com ele que 24 BOURDIEU, Pierre. “The Historical Genesis of a Pure Aesthetic”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 46, n. analytic aesthetics, 1987, pp. 201-210. nomous setting for the reception of an “aesthetic object”. This “autonomy is common to all works of art” and “like any other artist” the Indian artist strives for “sensuous pleasure”. The artist knows that, with his act of creation and through the coherence of his work, “he transcends all extra-aesthetic considerations”. Worse than this Kantian misinterpretation of Indian art is Jhanji’s profound misunderstanding and misuse of Mircea Eliade’s views. Inspired — but just inspired — by Eliade’s work, he agrees with him that for traditional societies everything important in life is revealed ab origine by gods or heroes and that the reality of an object or act depends on the re-actualization of a mythical archetype, so that the model of every creation is the creation of the cosmos. On this basis, Jhanji rightly concludes that the imagination of the traditional artist is guided by the eternal myth, but quite oddly detaches this religious code as cause from its product, the aesthetic code, which is assumed to belong to the domain of pure aesthetics.25 Eliade’s views point in a totally different direction. According to him, the re-actualization of a model, which is archetypal in the sense of exemplary and considered to have a divine origin, implies, for traditional man, the suspension of the low of everyday, profane time and the projection of the participant into the primordial mythical time, in illo tempore. Such an approach does not leave any room for pure aesthetics, which is why Eliade considers that, for archaic aesthetics, human works of art imitate the divine ones, whence the conclusion that any possible aesthetic code is subordinate to the religious, more speciically the cosmic, code. For Eliade, traditional man is a homo religiosus, not (to use a neologism) a homo aestheticus.26 Ralph J. Hallman, who sets himself the task of analyzing Hindu aesthetics, also remains within Western aesthetic ideology, but he gets closer than Jhanji to the actual nature of the Hindu objects as a rule labeled “art” by Western scholars. His views are an example of the second approach to traditional cultural objects, revolving around the “adherent beauty” model, which attempts to preserve a pure aesthetics, while also acknowledging JHANJI, Rekha. “Creativity in Traditional Art”. British Journal of aesthetics, v. 28, n. 2, 1988, p. 162-172, on p. 163, 167. 26 See ELIADE, Mircea. Cosmos and history: the Myth of the eternal return. TRASK, Willard R. (Trans.). New York: Harper Torchbooks and Bollingen Foundation, 1954, p. ix, 21, 32, 54, 76, 85, 86, 95 and le sacré et le profane. Paris: Gallimard, 1965, pp. 41-42, 57-59, 137. 25 RHAA 22 67 alexandros Ph. lagopoulos that concepts of a different nature accompany these objects, thus proposing a composite or “additive” semiotic interpretation of them. For this approach, either the religious code occurs together with the aesthetic code as an addition to it, or the aesthetic code is given a spiritual meaning. According to Hallman, for Hindu aesthetics the art object is of a dual nature, because it consists of two parts: a part which is immediately present in perception, referred to as the primary object (cf. in semiotics “signiier”), and another part which is indirectly present through suggestion, the secondary object (cf. “connotative signiied”). Hindu aesthetics considers that the secondary object conveys a set of meanings important for human life and that it, as cause of the aesthetic experience, is superior to the primary one. This symbolic meaning is both aesthetic and religious. The author illustrates his views with certain examples. Thus, sounds are sacred and suggest religious and metaphysical meanings, and “each colour suggests a speciic rāsa, or aesthetic sentiment” and also symbolizes “deities, cosmic functions, and moral attributes”.27 Hallman’s approach leaves us with the major question on what grounds he isolates an autonomous aesthetic code, since, apart from his own aesthetic terminology, no pure aesthetic Hindu concept is presented, except presumably that of rāsa. The understanding of rāsa as a purely aesthetic emotion is persistent in the critical literature. Thus, Clay Lancaster considers it as the “equivalent of Beauty or Aesthetic Intuition”, but also adds that the only way to understand the Indian theory of art is to know Hinduism, “of which it is a part”.28 Susan Pratt Walton, who studies the music of Central Java and also refers to Indian dramatic performances, considers that it traditionally evokes rāsa as emotion, aesthetic enjoyment, but also a profound mystical experience, which is the prerequisite to “truly appreciate a work of art”. This experience leads to the ultimate reality, Absolute Being.29 One may wonder how such a conceptualization leaves space for a purely aesthetic emotion. With the same additive rationale, Kathleen Marie Higgins, who focuses on traditional HALLMAN, Ralph J. “The Art Object in Hindu Aesthetics”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 12, n. 2, 1954, pp. 493-498, on p. 496. 28 LANCASTER, Clay. “Keys to the Understanding of Indian and Chinese Painting: The ‘Six Limbs’ of Yasodhara and the ‘Six Principles’ of Hsieh Ho”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 11, n. 2, 1952, pp. 95-104, on p. 95, 98 n. 8. 29 WALTON, Susan Pratt. “Aesthetic and Spiritual Correlations in Javanese Gamelan music”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 65, n. 1, 2007, pp. 31-41, on pp. 31-32, 34, 37. para as sociedades tradicionais, tudo que é importante na vida é revelado ab origine pelos deuses ou heróis e que a realidade de um objeto ou ato depende da reatualização de um arquétipo mítico, de modo que a imaginação de um artista tradicional seja guiada pelo mito eterno, mas estranhamente destaca esse código religioso como causa de seu produto, o código estético, que é assumido por pertencer ao domínio da estética pura.25 A visão de Eliade aponta numa direção totalmente diferente. Segundo ele, a reatualização de um modelo, que é arquétipo, no sentido exemplar e considerada como tendo origem divina, implica, para o homem tradicional, a suspensão do luxo de todo dia, tempo profano e a projeção de um participante no primordial tempo mítico, in illo tempore. Tal abordagem não deixa espaço para a estética pura; é por isso que Eliade considera que, para a estética arcaica, trabalhos artísticos humanos imitam os divinos, daí a conclusão de que qualquer código estético possível é subordinado ao religioso, mais especiicamente, ao cósmico. Para Eliade, o homem tradicional é um homo religiosus, não (para usar um neologismo) um homo aestheticus.26 Ralph J. Hallman deiniu — por conta própria — a tarefa de analisar a estética hindu, e também mantém a ideologia estética ocidental, mas ele se aproxima mais do que Jhanji da natureza real dos objetos hindus como uma rotulação de “arte” pelos estudiosos ocidentais. Suas visões são um exemplo da segunda abordagem a objetos culturais tradicionais, girando em torno do modelo de “beleza aderente”, que tenta preservar a estética pura, enquanto também reconhece que o conceito de uma natureza diferente acompanha esses objetos; propondo, assim, uma interpretação semiótica compositiva ou “aditiva” deles. Para essa abordagem, ou o código religioso acontece com o código estético como uma adição a ele, ou o código estético recebe um signiicado espiritual. Segundo Hallman, para a estética hindu, um objeto de arte é de natureza dual, porque consiste em duas partes: uma parte que é imediatamente presente 27 68 RHAA 22 JHANJI, Rekha. “Creativity in Traditional Art”. British Journal of aesthetics, v. 28, n. 2, 1988, pp. 162-172, nas pp. 163, 167. 26 Ver ELIADE, Mircea. Cosmos and history: the Myth of the eternal return. TRASK, Willard R. (Trad.). New York: Harper Torchbooks and Bollingen Foundation, 1954, p ix, 21, 32, 54, 76, 85, 86, 95 e le sacré et le profane. Paris: Gallimard, 1965, pp. 41-42, 57-59, 137. 25 space and aesthetics. na percepção, referido como objeto primário (em semiótica, “signiicante”), e outra parte que está indiretamente presente por meio de sugestão, o objeto secundário (“signiicado conotativo”). A estética hindu considera que o objeto secundário transmite um conjunto de signiicados importantes para a vida humana e que ele, como causa da experiência estética, é superior ao primário. Esse signiicado simbólico é tanto estético quanto religioso. O autor ilustra suas visões com certos exemplos. Assim, sons são sagrados e sugerem signiicados religiosos e metafísicos, e “cada cor sugere uma rāsa, ou sentimento estético, especíica” e também simboliza “deidades, funções cósmicas e atributos morais”.27 A abordagem de Hallman nos deixa com uma grande questão sobre qual base ele isola um código estético autônomo, já que, à parte de sua própria terminologia estética, nenhum código estético hindu puro é apresentado, exceto — presumivelmente — o de rāsa. O entendimento do rāsa como uma emoção puramente estética é persistente na literatura crítica. Assim, Clay Lancaster considera isso como uma “intuição estética ou beleza equivalente”, mas também adiciona que a única maneira de entender a teoria indiana de arte é conhecendo o hinduísmo, “do qual isso faz parte”.28 Susan Pratt Walton, que estuda a música de Java (região central) e também refere-se a performances dramáticas indianas, considera que tradicionalmente evoca-se rāsa como emoção, gozo estético, mas também uma profunda experiência mística, que é pré-requisito para “apreciar verdadeiramente o trabalho de arte”. Essa experiência conduz à realidade inal, Ser Absoluto.29 Pode-se perguntar como tal conceituação deixa espaço para a emoção puramente estética. Com o mesmo raciocínio aditivo, Kathleen Marie Higgins, que foca nas performances dramáticas tradicionais indianas, declara que o mundo de HALLMAN, Ralph J. “The Art Object in Hindu Aesthetics”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v.12, n. 4, 1954, pp. 493-498, na p. 496. 28 LANCASTER, Clay. “Keys to the Understanding of Indian and Chinese Painting: The ‘Six Limbs’ of Yasodhara and the ‘Six Principles’ of Hsieh Ho”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 11, n. 2, 1952, pp. 95-104, nas pp. 95, 98 n. 8. 29 WALTON, Susan Pratt. “Aesthetic and Spiritual Correlations in Javanese Gamelan Music”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 65, n. 1, 2007, pp. 31-41, nas pp. 31-32, 34, 37. 27 Indian dramatic performances, states that the world of rāsa is emotion and is inseparable from aesthetic pleasure. According to her, the aesthetic experience leads to tranquillity and rāsa offers a foretaste of moksa, spiritual liberation, which for Śaivism implies identiication with the ultimate reality, the universal consciousness of Śiva. The author, while still defending the aesthetic emotion, concludes that traditional Indian aesthetics challenges Western philosophy, including Kant’s views, because it is founded on a psychology of emotions.30 A more carnal view, belonging to the “functional beauty” model, is held by Richard Shusterman, who also succumbs to the additive rationale. He argues that both Indian and Chinese thinking reveal aesthetics (as such) in the sexual performance. But he also identiies a connection in India between this performance and moksa and observes that it symbolizes the copulation between Purusha and Prakriti (mother nature, female creative energy). He inds that in China the same performance, while serving hygienic and other aims, refers to the interplay between yin and yang (see below) and that sexual pleasure embodies the “Supreme Way”.31 It seems to me that what follows in reality from the views above is not that the semiotic world of a cultural object is composed of an aesthetic code as we Westerners understand it plus a major religious-cosmic code, but that the latter produces and constitutes the former, transforming it into a non-Western “aesthetic” code. I shall conclude with an approach, the “cultural” approach, which exempliies this line of argument. The concept of rāsa is meticulously examined by W. G. Raffé, who focuses on Hindu music. His comprehension of it opens the way to the fourth approach to cultural objects. According to Raffé, the concept of rāsa is closely linked to two other concepts, namely rāga and bhāva. In music, rāga is the melodic form given by the musician and closely connotes rāsa, i.e., emotion, a desired mode of feeling. The man-created and man-controlled rāsa duplicates or even intensiies the rāsa caused by the impact upon humanity of bhāva, the mood of nature speciic to a particular time HIGGINS, Kathleen Marie. “An Alchemy of Emotions: Rasa and Aesthetic Breakthroughs”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 65, n.1, 2007, p. 4354, on pp. 43, 45, 49-51. 31 SHUSTERMAN, Richard. “Asian Ars Erotica and the Question of Sexual Aesthetics”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 65, n. 1, 2007, pp. 55-68, on pp. 56-57, 59, 61, 64, 65. 30 RHAA 22 69 alexandros Ph. lagopoulos and place.32 We should not, in this context, understand nature in Western terms. As Raffé explains, this Hindu view is linked to the disciplines of Yoga, because it shows the way through which man imitates the Deity, who is the Great Enjoyer, in his “Play of the Cosmos”. Hindu music, as well as architecture, symbolizes as far as possible, in sound and form respectively, the cosmic Brahma, the creator, and rāga is the symbol of vach, the Creative Sound (an anthropomorphic notion).33 I believe we may conclude from this discussion that rāsa is very far from being some kind of pure aesthetic feeling, but is in fact indissolubly associated to the cosmic and the anthropomorphic, something that we already encountered with Indian architectural and urban plans. In his comparative study of the fundamental theoretical principles of Indian and Chinese painting, Clay Lancaster argues that there is a close connection between two texts from these two cultures, the six limbs of Yasodhara, found in a twelfth-century commentary on the second-century Vātsāyana Kāmasūtra and probably written in the sixth or seventh century, and the six Principles of Hsieh Ho, formulated at the end of the ifth century. In China, according to Lancaster, the dominant view, found rāsa é emoção e é inseparável do prazer estético. Segundo ela, a experiência estética conduz à tranquilidade, e o rāsa oferece um antegosto de moksha, liberação espiritual, que para o Shaivismo implica identiicação com a realidade inal, a consciência universal de Shiva. A autora, enquanto defende a estética emocional, conclui que a tradição estética indiana enfrenta a ilosoia ocidental, incluindo a visão kantiana, pois isso se encontra na psicologia das emoções.30 Uma visão mais carnal, pertencente ao modelo de “beleza funcional”, é defendida por Richard Shusterman, que também sucumbe ao raciocínio aditivo. Ele argumenta que ambos, indianos e chineses, revelam estética (como tal) no desempenho sexual. Mas ele também identiica a conexão na Índia entre esse desempenho e moksha, e observa que isso simboliza a copulação entre Purusha e Prakriti (mãe natureza, energia feminina criadora). Ele veriica que na China o mesmo desempenho, enquanto serve à higiene e a outros objetivos, refere-se à ação recíproca entre yin e yang (ver abaixo) e que o prazer sexual incorpora a “Forma Suprema”.31 Parece-me que o que segue nas visões anteriores, na realidade, não é que o mundo semiótico de um objeto cultural seja composto por um código estético como nós, ocidentais, entendemos; é mais um grande código religioso-cósmico, mas este último produz e constitui o primeiro, transformando-o num código “estético” não ocidental. Devo concluir com uma abordagem, a abordagem “cultural”, que exempliica essa linha de argumentação. O conceito de rāsa é meticulosamente examinado por W. G. Raffé, que foca na música hindu. Sua compreensão disso abre caminho para a quarta abordagem dos objetos culturais. Segundo Raffé, o conceito de rāsa está intimamente ligado a dois outros conceitos: rāga e bhava. Na música, rāga é a forma melódica dada pelo músico e conota rāsa, por exemplo, emoção, um modo desejado de percepção. O rāsa criado e controlado pelo homem duplica ou mesmo intensiica o rāsa causado pelo HIGGINS, Kathleen Marie (op. cit., pp. 44-46) limits the interpretation of bhāva when she considers it as just an aesthetic emotion represented in the drama. 33 RAFFÉ, W. G. “Rāgas and Rāginīs: A Key to Hindu Aesthetics”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 11, n. 2, 1952, pp. 105-117. 34 RAFFÉ, W. G., op. cit., pp. 108-110, 114-115; see also LANCASTER, Clay, op. cit., pp. 97, 98-99, 104. HIGGINS, Kathleen Marie. “An Alchemy of Emotions: Rasa and Aesthetic Breakthroughs”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 65, n. 1, 2007, pp. 43-54, nas pp. 43, 45, 49-51. 31 SHUSTERMAN, Richard. “Asian Ars Erotica and the Question of Sexual Aesthetics”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 65, n. 1, 2007, pp, 55-68, nas pp. 56-57, 59, 61, 64, 65. Raffé refers to the Śrī-yantra, a mandala consisting of interlaced triangles within a double lotus, itself inscribed within a sacred four-gated city. The chief rāgas follow from the proportions of the yantra, an approach comparable to the Greek architectural canon, and there are derivatives of these rāgas, the rāginīs, which are variations of them. The 42 rāgas and rāginīs of North Hindu music correspond to 42 musical modes-moods of nature. According to Raffé, the same religious system is projected onto other Hindu cultural products. Proportions preside over architecture and sculpture from early Hindu times and, like those in music, are comparable to the Greek canon. The major ritual dance associated with the circle of the year is ras mandala and there is a close relationship between choreography and music. In painting, the mythical rāginīs are represented as women (Rāg mālās) in erotic embraces, visual forms that materialize musical forms, which thus results in a close parallelism of these two systems.34 30 32 70 RHAA 22 space and aesthetics. impacto sobre a humanidade do bhava, o humor da natureza especíico a um tempo e espaço particular.32 Não devemos, nesse contexto, entender natureza em termos ocidentais. Como Raffé explica, essa visão hindu está ligada às disciplinas da ioga, pois isso mostra a forma usada por cada homem, de interpretar a Deidade, que é o Grande Desfrutador, em seu “Jogo do Cosmos”. A música hindu, como a arquitetura, simboliza o mais longe possível, em som e forma — respectivamente — o Brahma cósmico, o criador e o rāga é o símbolo de vach, o Som Criativo (uma noção antropomórica).33 Acredito que podemos concluir dessa discussão que rāsa está longe de ser algum tipo de percepção estética pura, mas é de fato indissoluvelmente associado ao cósmico e antropomórico, algo que já havíamos encontrado na arquitetura indiana e planos urbanos. Raffé se refere ao Śrī-yantra, uma mandala que consiste em triângulos interlaçados com um lótus duplo, inscrito dentro de uma cidade sagrada de quatro portões. O chefe rāgas seguido pelas proporções de yantra, uma abordagem comparável ao arquitetônico grego canon; há derivados desses rāgas, os rāginis. Os 42 rāgas e rāginis da música hindu do norte correspondem aos 42 modos musicais da natureza. Segundo Raffé, o mesmo sistema religioso é projetado em outros produtos culturais hindus. Proporções presidem sobre a arquitetura e a escultura dos tempos primitivos hindus e, como os da música, são compráveis ao canon grego. O principal ritual de dança associado com o círculo do ano é ras mandala, e há uma estreita relação entre coreograia e música. Na pintura, os míticos rāginis são representados como mulheres (Rāg mālās) em abraços eróticos, formas visuais que materializam a forma musical, que assim resulta num paralelismo desses dois sistemas.34 Em seu estudo comparativo dos princípios teóricos fundamentais da pintura chinesa e indiana, Clay Lancaster argumenta que há uma forte conexão entre dois textos dessas duas culturas, os seis Membros de Yasodhara, encontrado em um coHIGGINS, Kathleen Marie (op. cit., pp. 44-46) limita a interpretação de bhava quando ela considera-o apenas como emoção estética representada no drama. 33 RAFFÉ, W. G. “Rāgas and Rāginīs: A Key to Hindu Aesthetics”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 11, n. 2, 1952, pp. 105-117. 34 RAFFÉ, W. G., op. cit., pp. 108-110, 114-115; ver também LANCASTER, Clay, op. cit., pp. 97, 98-99, 104. 32 in a fourth-century source, that painting must serve morality gradually declined up to the eighth century to give place to an approach to painting as “an aesthetic end in itself”. However, Lancaster also states that the six Principles of Hsieh Ho constituted the basis of the Chinese practice of painting and criticism from their irst formulation until his own days. We conclude, then, that this basis must have inluenced the displacement from ethics to aesthetics that he argues took place. Each one of the six principles, he points out, is expressed by four characters (four is a fundamental cosmological number in China, related to the cardinal points), the total number of characters thus amounting to 24. I shall limit myself to Lancaster’s account of the irst principle, which, he believes, “was considered the most important” and “is a guide to the interpretation of the other ive”. This principle is ch’i-yün shêng-tung, which translates literally as “spirit resonance (producing) lifelike animation” and has also been rendered as “resonance or vibration of the vitalizing spirit and movement of life”. Lancaster cites Osvald Sirén (from whom he quotes the second translation above) that ch’i is the life-breath (an anthropomorphic notion) of every existing thing, animate or inanimate, and may be rendered as spirit or as vitality following from the activity of the spirit. According to Lancaster, it is the vital consonance giving a painting “the animation of life itself”.35 Thus, Chinese painting attempts to transfer the vitalizing spirit to human painting, and this spirit is the Ultimate one, since, as Lancaster states, with a single exception, Hsieh Ho’s commentators related spirit-harmony and life motion either with the Tao or with the Confucian “Spirit of Heaven and Earth”. It is dificult to detect here any primacy of aesthetics.36 I would like LANCASTER, Clay, op. cit.; see also LOEHR, MAX, “The Question of Individualism in Chinese Art”. Journal of the history of ideas, v. 22, n. 2, 1961, pp. 147-158, on pp. 149, 150. 36 Colors had primarily a symbolic signiication. As in ancient Greece, the main colours corresponded to the primordial elements (four for Greece and ive for China), the four cardinal points with the addition of the centre of the earth and the cosmos for China, and the four seasons with the addition of the notion of “all seasons”. First in the hierarchy of colours was yellow, the colour corresponding to yin and the centre of the earth and cosmos, as well as that of the robe of the emperor-centre of the earth and the roof of his palace; red was related to yang. Thus, colour partakes of the organization and cycles of the cosmos, but also indicates the allocation of power: for example, in the Ch’in dynasty (221-206 BC) there was a hierarchy of colours associated with the hierarchy of nobility (YAU, Victoria, “Use of Colour in China”. the British Journal of aesthetics, v. 34, n. 2, 1994, pp. 151-162, on pp. 155, 157- 158, 159). 35 RHAA 22 71 alexandros Ph. lagopoulos to stress that it is exactly this same ch’i that supports Feng shui, the art of geomancy. Feng means the wind, the “waves” of the sky, while shui is the running waters, the “waves” of the earth.37 The rules of feng shui, k’an yu, aim at the spatial expression of ch’i, the all-pervading life-force of nature, the cosmic breath. The geomancer, k’an yu hia, “controls the situation” of yin and yang. It is he who examines the lux of waters, which is the mobile element yang, of the nature of the sky, as well as the “form of the dragon”, that is, the form of the mountains, the quiet element yin, of the nature of earth. The location, the detailed orientation, and speciic organization and form of Chinese cities and buildings follow from this inspection by the geomancer. Cities and buildings are cosmograms, and the cosmos was created, as we are informed by a sixth-century text, from the members of P’an-ku; he is the primordial man, the principle without origin, the oppositional unity of yin and yang, who rested in the primordial abyss, the nothingness.38 On the basis of the data discussed above, it needs a great effort of imagination not to conclude that pure aesthetic theory did not exist in India or China, any more than it did in ancient Greece and Rome. This conclusion, the result of a rather close analysis, does not conirm Stephen Davies’s view that in these and certain other cases, among which oddly Greece is not mentioned, art was contemplated for its own sake.39 As was the case in Greece and Rome, the aesthetic in India and China was subordinated to the cosmic and the anthropomorphic, the two key codes regulating urban and architectural space. History and the theory of aesthetics Let us briely examine the fate of our three codes in moP’ENG, Tso-Chih. Chinesischer städtebau unter besonderer Berücksichtigung der stadt Peking, unpublished Ph.D. thesis, Technical University of Aachen, 1959, pp. 6-7, 10; GRANET, Marcel. la pensée chinoise. Paris: Albin Michel, 1968, p. 103; WHEATLEY, Paul. the Pivot of the Four quarters: a Preliminary enquiry into the origins and Character of the ancient Chinese City. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1971, pp. 419-420; SICKMAN, Laurence. “Painting and Sculpture”. In SICKMAN, Laurence; SOPER, Alexander, the art and architecture of China, 2nd revised edition. Harmondsworth, Middlesex, etc.: Penguin Books, 1960, Part One, on p. 298 n. 2. 38 On Chinese urban planning and its symbolism, see LAGOPOULOS, Alexandros Ph. urbanisme et sémiotique dans les sociétés pré-industrielles. Paris: Anthropos, 1995, p. 99-148. 39 DAVIES, Stephen. Philosophical Perspectives on art. Oxford: Oxford University Press, 2007, pp. 3, 9, 54 n. 4, 64, 79. 37 72 RHAA 22 mentário do século XII no Vātsāyana Kāmasūtra, do século II, e provavelmente escrito no VI ou VII século, e os seis Princípios de hsieh ho, formulado no inal do século V. Na China, segundo Lancaster, a visão dominante, encontrada numa fonte do século IV, de que a pintura deve servir à moralidade diminuiu gradualmente até o século VIII para dar lugar a uma abordagem à pintura como “um im estético em si mesmo”. Contudo, Lancaster também declara que os seis Princípios de hsieh ho constituem a base da prática chinesa de pintura e criticismo da sua formulação iniciais até seus próprios dias. Concluímos, então, que essa base deve ter inluenciado o deslocamento de ética para estética que ele argumenta ter lugar. Cada um dos seis princípios, ele aponta, é expresso por quatro características (quatro é um número cosmológico fundamental na China, relacionado aos pontos cardeais), o número total de caracteres é de 24. Devo me limitar à narrativa de Lancaster sobre o primeiro princípio, que ele acredita ser “considerado o mais importante” e “um guia para a interpretação dos outros cinco”. Esse princípio é ch’i-yün shêng-tung, que é traduzido literalmente como “espírito ressonante (produzindo) animação natural” e também foi proferido como “ressonância ou vibração do espírito vitalizante e movimento da vida”. Lancaster cita Osvald Sirén (de quem ele cita a segunda tradução acima) que ch’i é a respiração da vida (uma noção antropomórica) de toda coisa existente, animada ou inanimada, e pode ser processado como espírito ou vitalidade seguido da atividade espiritual. Segundo Lancaster, isso é a consonância vital dando a uma pintura “a animação da vida”.35 Assim, a pintura chinesa tenta transferir o espírito vitalizante para a pintura humana, e esse espírito é o deinitivo, com, segundo Lancaster, uma única exceção. Os comentaristas de hsieh ho relacionaram o espírito-harmonia e o movimento da vida ao Tao ou ao “espírito do paraíso e Terra” confuciano. É difícil detectar aqui qualquer primazia estética.36 Gostaria de frisar que isso LANCASTER, Clay, op. cit.; ver também LOEHR, Max. “The Question of Individualism in Chinese Art” Journal of the history of ideas, v. 22, n. 2, 1961, pp. 147-158, nas pp. 149-150. 36 As cores têm, inicialmente, uma signiicação simbólica. Como na Grécia antiga, as cores principais correspondiam aos elementos primordiais (quatro para a Grécia e cinco para a China), os quatro pontos cardeais, com a adição de 35 space and aesthetics. é exatamente o mesmo ch’i que sustenta o Feng shui, a arte da geomancia. Feng signiica o vento, as “ondas” do céu enquanto que shui representa as águas correntes, as “ondas” da Terra.37 As regras do Feng shui, k’an yu, objetivam a expressão espacial de ch’i, a vida-força onipresente da natureza, o alento cósmico. O geomante, k’an yu hia, “controla a situação” do yin e yang. É ele que examina o luxo das águas, que é o elemento móvel yang da natureza do céu, assim como a “forma do dragão”, que é a forma das montanhas, o elemento sossegado yin da natureza da Terra. A localização, a orientação detalhada, a organização especíica e forma das cidades e construções chinesas são dadas por um geomante. Cidades e construções são cosmogramas, e o cosmos foi criado, como somos informados por um texto do século sexto, escrito por membro de P’na-ku; ele é um homem primordial, o princípio sem origem, a unidade oposicional do yin e yang, que repousava no abismo primordial, o nada.38 Baseado nas informações discutidas acima, é necessário um grande esforço de imaginação para não concluir que a teoria estética pura não existia na Índia ou China, não mais do que existiu na Grécia e Roma Antiga. Essa conclusão, resultado de uma análise próxima, não conirma a visão um centro da terra e do cosmos para a China, e com as quatro estações com uma adição da ideia de “todas as estações”. Primeiro, na hierarquia de cores, estava o amarelo, a cor correspondente ao yin e ao centro da terra e cosmos, bem como a do manto do imperador central da Terra e o teto de seu palácio; vermelho era relacionado ao yang. Assim, cores partilham da organização e ciclos do cosmos, mas também indicam a alocação de poder: por exemplo, na dinastia Ch’in (221-206 a.C.) havia uma hierarquia de cores associada à hierarquia da nobreza. (YAU, Victoria, “Use of Colour in China”. the British Journal of aesthetics, v. 34, n. 2, 1994, pp. 151-162, nas pp. 155, 157-158, 159). 37 P’ENG, Tso-Chih. Chinesischer städtebau unter besonderer Berücksichtigung der stadt Peking, não publicado, tese de doutorado. Ph.D. thesis, Technical University of Aachen, 1959, pp. 6-7, 10; GRANET, Marcel. la pensée chinoise. Paris: Albin Michel, 1968, p. 103; WHEATLEY, Paul. the Pivot of the Four quarters: a Preliminary enquiry into the origins and Character of the ancient Chinese City. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1971, pp. 419-420; SICKMAN, Laurence. “Painting and Sculpture”. In SICKMAN, Laurence; SOPER, Alexander, the art and architecture of China. 2a edição revisada. Harmondsworth, Middlesex, etc.: Penguin Books, 1960, Part One, na p. 298 n. 2. 38 Sobre planejamento urbano chinês e seu simbolismo, ver LAGOPOULOS, Alexandros Ph. urbanisme et sémiotique dans les sociétés pré-industrielles. Paris: Anthropos, 1995, pp. 99-148. dernity. In modernity, a biological-organicist code emerged, based on a new concept of function40 and referring no longer to its external form but to the internal anatomy of the body. This code shaped the (ideological) models of the city in the texts written by urban specialists of the nineteenth and twentieth centuries.41 Organicist urban metaphors survive in the professional jargon of today’s urban planners: the “diseased city,” the “arteries” of the city, the “heart” of the city, the “lungs” indicating green areas are current metaphors, though they no longer represent an anthropomorphic understanding of the city, since they have no operational character. Also, the concept of function, the common element of the naturalistic and the organicist codes, acquired a purely technical character and became the foundation of modern urban planning and architecture. The cosmic code, starting in the Renaissance, was gradually desacralized and eliminated from the city. The opposite happened with the aesthetic code. In modernist architecture, “form follows function,” and form, the aesthetic, was for architects the summit of their enterprise, as was the case with Alberti. However, the major inluence on architectural aesthetics came from elsewhere. This is the idea of the autonomy of the aesthetic, which was posited philosophically in the mid-eighteenth century by Baumgarten and was further elaborated by Kant at the end of the same century. Since my case studies have led me to question the universality of the aesthetic, it seems necessary to briely review both Kant’s approach and certain recent approaches that discuss precapitalist aesthetics, in order to support my positions. The perspective adopted in this paper is semiotic-anthropological in a historical framework and thus it is based on a paradigm in direct opposition to the biological paradigm and any quest for human universals, such as those, for example, of Ellen Dissanayake and Dennis Dutton. For Dissanayake’s “species-centred” or “bio-evolutionary” Darwinian perspective, art is not cultural, but a necessary biological and universal part of human nature, responding to a funFOUCAULT, Michel. les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris: Gallimard, 1966, pp. 276-279, 321, 366-369. 41 LAGOPOULOS, Alexandros Ph. “The Social Meaning of Space: Metaphor and Politics”. In MUNTAÑOLA THORNBERG, Josep (Ed.), el futur de l’arquitecte: Ment, territori, societat. Vol. 1. Barcelona: Edicions UPC, 2001, pp. 99-118, on pp. 102-107. 40 RHAA 22 73 alexandros Ph. lagopoulos damental human need. The main evolutionary context of art, “art-conjoined-with-ritual”, were activities related to survival. Art is a behaviour, an activity of “making special” (someone or something) belonging to a wider set of such activities. Art was related to the extraordinary, and in the activities of making special, that is, the natural tendency of shaping and elaborating, the result of the control exerted produced emotional satisfaction. The control of art over its natural material was equally fundamental with that exercised by tools or agriculture. Making special the body with ornaments having a ritual and magical aim enhanced individual reproductive potential and was a factor of integration into the social group; cooperation was in step with competitiveness. There are universal “empathetic” proto-aesthetic predispositions, which led to cognitive universals (such as circles or pure colors) that were invested with beauty. The perception of beauty and aesthetic pleasure are universal givens, although the deining characteristics of beauty vary culturally and individually. Aesthetic elements may appear in non-aesthetic contexts, and generally in premodern and unsophisticated modern societies detached aesthetic experience is absent and the emotional reactions are addressed to the signiicance of the subject.42 Here is not the place for a systematic critique of Dissanayake’s views, but I should like to point out two issues. First, I believe that the Fali example is quite typical of pre-capitalist cultures in showing the low importance of the aesthetic code in less complex societies. In these societies, the main mechanism of any ritual is the projection in illo tempore, and whatever the importance of art in this context, it is certainly not comparable in importance to the re-enacting of cosmogony. Second, a look at the history of science reminds us that attempts similar to Dissanayake’s have already been made. One of the bases of “classical” human ecology, which developed in the two decades before World War II, was animal and plant ecology, and it attempted to interpret the socio-spatial organization of urban space using the concepts of “competition” and “competitive cooperation”.43 a radical critique of this approach came from Milla Aïssa Alihan, who argued that the principle of a biological economy cannot DISSANAYAKE, Ellen. homo aestheticus: Where art Comes From and Why. Seattle and London: University of Washington Press, 1995, for example pp. IX, XVII, 11, 12, 19, 33, 34, 41, 42, 49, 54, 61, 76, 79, 92, 95, 107, 111-112, 130-135, 157, 162, 222-225. 43 See for example PARK, Robert Ezra. “Human Ecology”. the american Journal of sociolog y, v. 42, n. 1, 1936, pp. 1-15. 42 74 RHAA 22 de Stephen Davies de que, em tese outros casos, entre os quais a Grécia, não é — estranhamente — mencionada; pensava-se que a arte era a contemplação para sua própria causa.39 Como era o caso na Grécia e Roma, a estética na Índia e na China era subordinada ao código cósmico e ao antropomórico, dois códigos chave que regulavam o espaço urbano e arquitetônico. História e teoria da estética Vamos analisar brevemente o destino dos nossos três códigos na modernidade. Na modernidade, um código biológico-organicista emergiu, baseado em um novo conceito de função40 e referindo-se já não à sua forma externa, mas à anatomia interna do corpo. Esse código formou os modelos (ideológicos) da cidade nos textos escritos por especialistas urbanos dos séculos XIX e XX.41 Metáforas urbanas organicistas sobrevivem ao jargão dos planejadores urbanos de hoje: a “cidade doente”, as “artérias” da cidade, o “coração” da cidade, os “pulmões”, indicando áreas verdes, são metáforas correntes, embora elas não mais representem um entendimento antropomórico da cidade, já que não têm nenhum caráter operacional. Também, o conceito de função, o elemento comum do código naturalista e organicista, adquiriu um caráter puramente técnico e tornou-se a fundação do planejamento urbano e da arquitetura moderna. O código cósmico, começando no Renascimento, foi gradualmente dessacralizado e eliminado da cidade. O oposto aconteceu com o código estético. Na arquitetura moderna, “forma segue função”, e forma, a estética, era para os arquitetos o ápice de sua empreitada, como era o caso com Alberti. Entretanto, a principal inluência na estética arquitetônica veio de outro lugar. Essa é a ideia de autonomia da estética, que foi postulada, ilosoicamente, no meio do século XVIII por Baumgarten e elaborada, no im do mesmo século, por DAVIES, Stephen. Philosophical Perspectives on art. Oxford: Oxford University Press, 2007, pp. 3, 9, 54 n. 4, 64, 79. 40 FOUCAULT, Michel. les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris: Gallimard, 1966, pp. 276-279, 321, 366-369. 41 LAGOPOULOS, Alexandros Ph. “The Social Meaning of Space: Metaphor and Politics”. In MUNTAÑOLA THORNBERG, Josep (Ed.), el futur de l’arquitecte: Ment, territori, societat. Vol. 1. Barcelona: Edicions UPC, 2001, pp. 99-118, nas pp. 102-107. 39 space and aesthetics. Kant. Já que meus estudos de caso levaram-me a questionar a universalidade da estética, me parece necessário rever, de maneira breve, a im de embasar minhas posições, ambas as abordagens, a kantiana e outra mais recente, que discutem a estética pré-capitalista. A perspectiva adotada neste artigo é semióticoantropológica num quadro histórico e é, deste modo, baseada num paradigma oposto ao paradigma biológico e a qualquer busca por universais humanos, tais como aqueles, por exemplo, de Ellen Dissanayake e Dennis Dutton. Para a perspectiva “espécie centrada” ou “bioevolucionária” darwiniana de Dissanayake, arte não é cultural, mas uma necessidade biológica e parte universal da natureza humana, respondendo a uma ânsia humana fundamental. O contexto evolutivo principal de arte, “arte conjugada com ritual”, tratava-se de atividades relacionadas à sobrevivência. Arte é um comportamento, uma atividade de “fazer especial” (alguém ou algo) pertencendo a um conjunto mais amplo de tais atividades. Arte era relacionada ao extraordinário, e nessas atividades de fazer especial, isto é, a tendência natural de modelar e elaborar, o resultado do controle exercido produzia satisfação emocional. O controle de arte sobre seu material natural era igualmente fundamental com aquele exercido pelas ferramentas ou agricultura. Tornar especial o corpo usando ornamentos com objetivos ritualísticos e mágicos aprimorou o potencial reprodutivo individual e foi um fator de integração entre grupos sociais; cooperação estava em passo com competitividade. Há predisposições protoestéticas “enfáticas” universais, que levaram a universais cognitivos (como círculos ou cores puras) que foram investidos com beleza. A percepção de beleza e prazer estético são dados universais, embora as características deinidoras de beleza variem cultural e individualmente. Elementos estéticos podem aparecer em contextos não estéticos e, geralmente, em sociedades pré-modernas a simples experiência estética separada é ausente e as reações emocionais são endereçadas à signiicância de seu sujeito.42 Aqui não é lugar para uma crítica sistemática da DISSANAYAKE, Ellen. homo aestheticus: Where art Comes From and Why. Seattle and London: Universty of Washington Press, 1995, por exemplo, pp. ix, xvii, 11, 12, 19, 33, 34, 41, 42, 49, 54, 61, 76, 79, 92, 95, 107, 11-112, 130-135, 157, 162, 222-225. 42 be applied to economy in its social context, and more generally that it is not possible to transfer the logic of the physical sciences to the social sciences.44 The Darwinian perspective is also adopted by Denis Dutton. According to Dutton’s evolutionary aesthetics, the arts are evolutionary adaptations with survival and reproductive value (natural and sexual selection) dating from the Pleistocene, and artistic beauty follows from such sources. There is an art instinct, which is not a single genetic impulse but a complex set of impulses (sub-instincts). Dutton defends a series of universal essences: a stable human nature, innate aesthetic tastes and moral sentiments, and eternal themes of iction. As a result, the arts occur cross-culturally in similar forms and their cultural differences are supericial, though cultural traditions impose limits on them; consequently, the arts are not essentially religious, moral or political. One result of the Darwinian adaptation, according to Dutton, is the pleasure of storytelling, which is an instinct of very ancient origin, and its universal themes; the structure of stories follows from innate tendencies. Another result of adaptation is our innate artistic preferences for savannah-type landscapes, a fact explained by their survival value for Pleistocene humans, who had similar tastes; the savannah model also underlies the design of parks and golf courses.45 Dutton’s “universal human psychology”, quite close to Dissanayake’s views, projects us back to the universalizing tendencies of Sir James Frazer’s anthropology. To mention two brief points, it is surprising that Dutton in discussing plot “templates” selects as his starting point categories formulated by a journalist, Christopher Booker, ignoring both the seminal work of Vladimir Propp46 and the more sophisticated narratology of Algirdas Julien Greimas.47 Booker’s templates are empirical and heterogeneous: for example, the template “Overcoming the Monster” is a plot or theme, while “Tragedy” is a literary genre. Also, Dutton’s universals continuously encounter the resistance of history, as in ALIHAN, Milla Aïssa. social ecolog y: a Critical analysis. New York: Columbia University Press, 1938, for example pp. 69, 75, 82-87, 245-249. 45 DUTTON, Denis. the art instinct. Oxford: Oxford University Press, 2009, for example pp. 3-6, 19-20, 29, 86, 90-91, 100-101, 118, 127-128, 132, 134, 135, 152, 162, 223-226, 229-232. 46 PROPP, Vladimir. Morpholog y of the Folktale. 2nd revised edition. SCOTT, Laurence L. (Trans.). Austin TX: University of Texas Press, 1968. 47 See, for example, GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS Joseph, op. cit. 44 RHAA 22 75 alexandros Ph. lagopoulos the case of his landscape aesthetics:48 even if we limit ourselves to the Western tradition, the idea of landscape, far from being a universal concept, emerged historically for the irst time in the Renaissance. It became possible due to the invention by Alberti of linear perspective in his della pittura, which was applied both to painting and the surveying of the lands of the nobility.49 Generally, the biological or the bio-ecological and the sociological paradigms are asymptotic and irreconcilable, and any attempt to align a priori biological concepts with historical data leads to arbitrary mixings and overgeneralizations, resorts to devices such as sub-instincts or partial adaptations, and ends up in prescribing history. The result is an epistemological kitsch, unable to account for the speciics of the history of art. I do not necessarily discount biological explanations, provided they remain within their own sphere of legitimacy: they could provide a structural biological framework for the capacities of our species. But the universals that follow unavoidably from the Darwinian approaches end up being an excuse to extrapolate our own conceptions onto the past, with the double consequence of Eurocentrism and the naturalization of our own ideas, that is, a socio-politically conservative apology for the status quo. The reduction of culture to biology derives from an old and obsolete desire to anchor culture in the hard sciences, because of a belief that only the hard sciences incorporate the model of science, a reductionist position that was abandoned many decades ago. Such a reduction ignores that the irst level of recession beyond culture is not biology (or bio-ecology), but the rest of society, with its material components such as technology, the technical and social division of labor, and social stratiication, to which culture is indissolubly linked. Not only biological theories are in quest of universals. Universals and the autonomy of the aesthetic were bound together in the dawn of modernity in Kant’s aesthetic theory, a new ield of knowledge produced by the increasing intellectual division of knowledge. For Kant, the aesthetic ield is profane and detached from cosmology. It has embedded within it the This is a view to which Davies also adheres, though he disagrees with the exclusivity of the savannah habitat (DAVIES, Stephen. the artful species. Oxford: Oxford University Press, 2012, for example pp. 87, 91, 94-101). 49 COSGROVE, Denis. “Prospect, Perspective and the Evolution of the Landscape Idea”. transactions of the institute of British geographers, n.s. v. 10, n. 1, 1985, pp. 45-62. 48 76 RHAA 22 visão de Dissanayake, mas gostaria de apontar duas questões. Primeira: acredito que o exemplo Fali é bem típico de culturas pré-capitalistas ao mostrar a baixa importância do código estético em sociedades menos complexas. Nessas sociedades, o principal mecanismo de qualquer ritual é a projeção in illo tempore, e qualquer importância de arte naquele contexto é, certamente, incomparável em importância à reencenação da cosmogonia. Segunda questão: um olhar para a história da ciência nos lembra que tentativas similares às de Dissanayake já foram feitas. Uma das bases da ecologia humana “clássica”, que foi desenvolvida duas décadas após a Segunda Guerra Mundial, era a ecologia animal e de plantas que tentava interpretar a organização socioespacial do espaço urbano usando conceitos de “competição” e “cooperação competitiva”.43 Uma crítica radical dessa abordagem foi feita por Milla Aïssa Alihan, que argumenta que o princípio de uma economia biológica não pode ser aplicado à economia em seu contexto social, e de forma mais geral, que não é possível transferir a lógica das ciências físicas para as sociais.44 A perspectiva darwiniana também é adotada por Denis Dutton. Segundo a estética evolutiva de Dutton, as artes são adaptações evolutivas com valores de sobrevivência e de reprodução (seleção natural e sexual) datados do Pleistoceno, e a beleza artística decorre de tais fontes. Há um instinto artístico, que não é um simples impulso genético, mas um conjunto complexo de impulsos (subinstintos). Dutton defende uma série de essências universais: uma natureza humana estável, gostos estéticos inatos e sentimentos morais, e temas eternos de icção. Como um resultado, as artes ocorrem de forma transcultural em formas similares, e suas diferenças culturais são supericiais, embora tradições culturais imponham limites nelas; consequentemente, as artes não são essencialmente religiosas, morais ou políticas. O resultado de uma adaptação darwiniana, segundo Dutton, é o prazer do storytelling, que é um instinto de origem muito antiga, e seus temas universais; a estrutura das histórias segue de tendências inatas. Outro resultado de adaptação é nossa preferência Ver, por exemplo, PARK, Robert Ezra. “Human Ecology”. the american Journal of sociolog y, v. 42, n. 1, 1936, pp. 1-15. 44 ALIHAN, Milla Aïssa. social ecolog y: a Critical analysis. New York: Columbia University Press, 1938, por exemplo, pp. 69, 75, 82-87, 245-249. 43 space and aesthetics. artística inata por paisagens do tipo da savana, um fato explicado pelo valor de sobrevivência dos humanos do Pleistoceno, que tinham gosto similar; o modelo da savana também sublinha o design de parques e campos de golfe.45 A “psicologia universal humana” de Dutton, próxima das visões de Dissanayake, nos projeta de volta as tendências universalizadoras da antropologia de Sir James Frazer. Para mencionar dois rápidos pontos, é surpreendente que Dutton, quando discute “modelos” de enredo, seleciona como ponto inicial categorias formuladas por um jornalista, Christopher Booker, ignorando ambos o trabalho semial de Vladimir Propp46 e a narratologia mais soisticada de Algirdas Julien Greimas.47 Os modelos de Booker são empíricos e heterogêneos: por exemplo, o modelo “Superando o Monstro” é um enredo ou tema, enquanto “Tragédia” é um gênero literário. Além disso, os universais de Dutton encontram — continuamente — a resistência da história, como no caso de sua estética de paisagem:48 mesmo se nos limitarmos à tradição ocidental, a ideia de paisagem, longe de ser um conceito universal, emergiu historicamente pela primeira vez no Renascimento. Tornou-se possível graças à invenção da perspectiva linear por Alberti em seu della pittura, que foi aplicada à pintura e à agrimensura de paisagens da nobreza.49 Geralmente, os paradigmas biológicos, ou bioecológicos e sociológicos, são assintóticos e irreconciliáveis, e qualquer tentativa de alinhar a priori conceitos biológicos com dados históricos leva a generalizações e misturas arbitrárias, recorre a dispositivos como subinstintos ou adaptações parciais, e acaba prescrevendo a história. O resultado é um kitsch epistemológico, incapaz de contar os ideas of a fundamental, innate aesthetic faculty of the universal transcendental mind and of “real beauty”, a free, pure, contentless beauty. Kant also recognizes another kind of beauty, “adherent beauty”, beauty in a secondary sense, in which, starting from particular concepts, “aesthetic ideas” are elaborated which open an “undeveloped” and “immensurable ield of related representations”; these ideas can participate in aesthetic value, but as a result the aesthetic object loses its purity. In this case, the content should not distract from the form of the aesthetic object, that is, must not have an existence of its own.50 Most contemporary scholars believe that there are restrictions on the development of aesthetic ideas due to functional reasons. Referring to Kant’s views on architecture, Paul Guyer points out that judgments of adherent beauty presuppose knowledge of its intended function, but generally a work of art is not fully determined by concepts. The free play of imagination is deployed on the basis of content, form, and material,51 and thus architecture expresses, i.e., communicates aesthetic ideas, an expressivist view that Guyer considers a breakthrough in architectural theory; aesthetic ideas are part of the beauty of architecture.52 DUTTON, Denis. the art instinct. Oxford: Oxford University Press, 2009, por exemplo, pp. 3-6, 19-20, 29, 86, 90-91, 100-101, 118, 127-128, 132, 134, 135, 152, 162, 223-226, 229-232. 46 PROPP, Vladimir. Morpholog y of the Folktale. SCOTT, Laurence L. (Trad.). 2ª edição revisada. Austin, TX: University of Texas Press, 1968. 47 Ver, por exemplo, GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS Joseph, op. cit., “Sémiotique”. 48 Essa visão aderida por Davies, embora ele discorde com a exclusividade da savana (DAVIES, Stephen. the artful species. Oxford: Oxford University Press, 2012, por exemplo, pp. 87, 91, 94-101). 49 COSGROVE, Denis. “Prospect, Perspective and the Evolution of the Landscape Idea”. transactions of the institute of British geographers, n.s. v. 10, n. 1, 1985, pp. 45-62. KANT, Immanuel. Critique of the Power of Judgment. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, Introduction, section VII, 5: 188-189, section VIII, 5: 194, section IX, 5: 196, §16, 5: 229-230, §49, 5:315-316. See also zIMMERMAN, Robert L. “Kant: The Aesthetic Judgment”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 21, n. 3, 1963, p. 333-344; GRACYK, Theodore A. “Sublimity, Ugliness, and Formlessness in Kant’s Aesthetic Theory”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 45, n. 1, 1986, pp. 49-56, on pp. 49, 53. 51 This kind of formulation is close to Larry Shiner’s “moderate functionalism”, according to which aesthetic and practical (architectural) functions are interrelated to each other and to other functions, such as the social (SHINER, Larry. “On Aesthetics and Function in Architecture: The case of the ‘Spectacle’ Art Museum”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 69, n. 1, 2011, pp. 31-41). 52 GUYER, Paul. “Kant and the Philosophy of architecture”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 69, n. 1, 2011, p. 7-19, on pp. 7, 14-17. 45 It seems to me evident that free beauty is a modernist concept, unrelated to the case studies discussed; this is also the case with adherent beauty, because the “contents” I identiied are not subordinated to form or restricted by practical factors. They are cultural elaborations which, far from being an “undeveloped” nebula, represent coherent ideological systems. Davies, who generally rejects free beauty and considers adherent beauty as too limited, proposes “functional beauty”, which could seem a candidate for the explanation of my material, even more so since Davies addresses the issues of “irst art” and art in pre-capitalist 50 RHAA 22 77 alexandros Ph. lagopoulos societies. According to Davies, in artworks and artifacts generally, aesthetic and non-aesthetic goals interact. To the second category belong artistic properties, that is, conventional semiotic systems, including symbolism, and the art-related context (two unstable classes with elements moving between them according to the case), as well as practical function(s); artistic properties may even be more important than the aesthetic ones. Utilitarian objects with one or more primary practical non-aesthetic functions may have actual aesthetic features, provided these are determined by function and apply to the objects as a whole, with the result that the objects become functionally beautiful, a beauty that does not always coincide with formal beauty. Aesthetic and artistic properties are in this case secondary and separable from the primary practical function(s) of an object, but they are so essential and necessary for its shaping and realization, in order for it to be an artwork, that it cannot be evaluated independently from them; aesthetic properties constrain the mode of primary functioning. The concept of functional beauty – so close to Albertian and architectural functionalist theories – has the merit of introducing the practical function, religious, aesthetic, or other, as a component of any object considered as art. It is used by Davies for the interpretation of pre-capitalist societies: their art is generally utilitarian. However, Davies believes that pre-capitalist art is art as we Westerners understand it, which is why his argumentation ends up being a plea for aesthetic universals, a return to Kant’s aesthetics. There is a “human condition” and there are “deep-seated human needs and experiences”, to which art’s universality corresponds; the latter is due to universal aesthetic properties, directly available to perception, and not culturally arbitrary semiotic systems. Davies enumerates the aesthetic properties used by traditional aesthetics: beauty, elegance, grace, balance, serenity, vivacity, internal unity, energy, sensuous vibrancy, tension, which he considers as the common ground between traditional and non-Western aesthetics, i.e., as trans-cultural. Davies’s aesthetic universals, once again without any connection to the material dynamics of society, inevitably lead him to explanations of the Darwinian kind. Thus it does not come as a surprise that, in spite of his criticism of Dissanayake’s approach for not distinguishing art from play and religion or high from low art, Davies concedes that her approach applies to low art and generally formulates the “pre-theoretic, intuitive notion of art” common to all societies; all humans have a “common biological and environmental 78 RHAA 22 especíicos da história da arte. Eu, necessariamente, não desconto explicações biológicas, quando elas permanecem em sua própria esfera de legitimação: elas podem provisionar um panorama estrutural biológico para as capacidades de nossas espécies. Porém, os universais que seguem inevitavelmente das abordagens darwinianas acabam se tornando um pretexto para extrapolar nossos próprios conceitos para o passado, com a dupla consequência do Eurocentrismo e da naturalização das nossas próprias ideias, o que é uma apologia conservadora sociopolítica ao status quo. A redução da cultura à biologia deriva de um velho e obsoleto desejo de ancorar a cultura nas ciências duras, porque há uma crença de que só as ciências duras incorporam o modelo de ciência, uma posição reducionista que foi abandonada muitas décadas atrás. Tal redução ignora que o primeiro nível de recessão além da cultura não é a biologia (ou bioecologia), mas o resto da sociedade, com seus componentes materiais como a tecnologia, a divisão social e técnica do trabalho, e a estratiicação social, à qual a cultura é ligada indissoluvelmente. Não apenas teorias biológicas procuram pelos universais. Os universais e a autonomia da estética estavam unidos no alvorecer da modernidade na teoria estética de Kant, um novo campo do conhecimento produzido pela aumentada divisão intelectual do conhecimento. Para Kant, o campo da estética é profano e separado da cosmologia. Estão embutidas nisso as ideias de uma estética fundamental e inata, capacidade de uma mente universal transcendental e de “beleza real”, livre, pura, beleza sem conteúdo. Kant também reconhece outro tipo de beleza, “beleza aderente”, beleza num sentido secundário, em que, partindo de conceitos particulares, “ideias estéticas” são elaboradas, o que abre um campo “pouco desenvolvido” e “imensurável de representações relativas”; essas ideias podem participar ao valor estético, mas como um resultado o objeto estético perde sua pureza. Nesse caso, o conteúdo não deve afastar-se da forma do objeto estético, ou seja, não deve haver uma existência própria.50 A maior parte dos KANT, Immanuel. Critique of the Power of Judgment. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, Introduction, section VII, 5: 188-189, section VIII, 5: 194, section IX, 5: 196, §16, 5: 229-230, §49, 5: 315- 316. Ver também zIMMERMAN, Robert L. “Kant: The Aesthetic Judgment”. 50 space and aesthetics. estudiosos contemporâneos acredita que há restrições no desenvolvimento das ideias estéticas graças a razões funcionais. Referindo-se à visão de Kant sobre a arquitetura, Paul Guyer aponta que julgamentos de beleza aderente pressupõem conhecimento de sua função pretendida, porém geralmente um trabalho de arte não é totalmente determinado por conceitos. O jogo livre da imaginação é implantado na base do conteúdo, forma e material,51 e assim arquitetura se expressa, quer dizer, comunica ideias estéticas, como visão expressivista que Guyer considera um avanço na teoria arquitetônica; ideias estéticas são parte da beleza da arquitetura.52 Parece-me evidente que a beleza livre é um conceito modernista, não relacionado a esses estudos de caso discutidos; esse também é o caso da beleza aderente, porque os “conteúdos” que identiiquei não são subordinados à forma ou restritos por fatores práticos. Elas são elaborações culturais que, longe de ser uma nébula “subdesenvolvida”, representam sistemas ideológicos coerentes. Davies, que geralmente rejeita a beleza livre e considera a beleza aderente como muito limitada, propõe a “beleza funcional”, que parece ser um candidato para a explanação do meu material, tanto mais que Davies aborda as questões de “primeira arte” e arte em sociedades pré-capitalistas. De acordo com Davies, em obras de arte e artefatos, geralmente, os objetivos da estética e não estética interagem. À segunda categoria pertencem as propriedades artísticas, ou seja, sistemas semióticos convencionais, incluindo simbolismo, e o contexto relacionado à arte (duas classes instáveis com elementos movendo-se entre eles de acordo com o caso), assim como função(ões) prática(s); as propriedades artísticas podem até ser mais importantes que the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 21, n. 3, 1963, pp. 333-344; GRACYK, Theodore A. “Sublimity, Ugliness, and Formlessness in Kant’s Aesthetic Theory”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 45, n. 1, 1986, pp. 49-56, nas pp. 49, 53. 51 Esse tipo de formulação é próximo do “funcionalismo moderado”, de Larry Shiner. Segundo tal, estética e funções práticas (arquitetônica) e estéticas são inter-relacionadas mutuamente e a outras funções, como a social (SHINER, Larry. “On Aesthetics and Function in Architecture: The case of the ‘Spectacle’ Art Museum”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 69, n. 1, 2011, pp. 31-41). 52 GUYER, Paul. “Kant and the Philosophy of Architecture”. the Journal of aesthetics and art Criticism, v. 69, n. 1, 2011, pp. 7-19, nas pp. 14-17. inheritance”.53 The case studies I discussed offer a totally different account from that of all three views above. The ideological systems of pre-capitalist societies do not give any primacy to the aesthetic code. In less complex societies, the aesthetic holds a secondary position, while in the more sophisticated societies we examined it igures among their major codes, but as dependent on the cosmic-and-anthropomorphic complex. If art had a vital adaptive role, it is dificult to understand why, while social practices crucial for society’s survival are acknowledged in the mythological system (for example, To Dino: the irst hunter, farmer, and blacksmith), art is not. To do it justice to Davies’s aesthetic theory, it comes closer to my data, from one point of view, because it allows for the primary function of an object to be other than aesthetic (in my cases cosmic-religious) and accepts the existence of cultural data. But from another point of view we radically disagree. The cosmic and anthropomorphic codes would be for Davies “artistic”, which implies elaboration serving the form, while in my cases the form serves the varying cultural contents of these codes. Thus, in spite of his aesthetic relativity, he inally remains attached to aesthetic absolutes, denying cultural relativity. Even if these absolutes existed, I ind it much more interesting to discuss, instead of the repetitious mainstream concepts of aesthetic criticism, the ancient Greek concept of symmetria, the Indian rāsa, or the Chinese ch’i, a view that surfaces occasionally in Davies. My argument against this kind of universality does not imply that the phenomenon of art is not universal, but is directed against the attribution of universal meaning to art, because this has no meaning. A “perceptual” form, i.e., a signiier, has no meaning abstractly by itself, but only in conjunction with a content, a signiied; together they constitute a conceptual sign and the sign is an indivisible unity. In considering a formal trait of another culture as “aesthetic” or “art”, we Westerners create an imaginary abstraction, a pure signiier, and attach our own content, “aestheticity”, to it, instead of searching for its original cultural meaning; this is what is meant by Eurocentrism. My case studies indicate that this meaning varies culturally and derives DAVIES, Stephen, Philosophical Perspectives, for example pp. 3-11, 34, 51-55, 6061, 77, 79, 81, 87-100, 112, 114, 117; see also DAVIES, Stephen. the Philosophy of art. Malden, MA, etc.: Blackwell, 2006, for example pp. 53-58, 68-71, 202-204 and the artful species, for example pp. 7, 15-21, 24, 186. 53 RHAA 22 79 alexandros Ph. lagopoulos from meanings of a different order, from which it thus cannot be autonomized. I do not use the term “autonomy” only for free beauty, but for the idea that there is a universal content of the aesthetic code. I have used “aesthetic code” as a metalinguistic term, referring to the focusing in context on something for its own sake and covering the semantic ield of both our aesthetic (without quotation marks) and the “aesthetic” ields of other cultures, which are different from this and from each other. Every semantic ield is by its very nature structured as a whole. Functional beauty is a variant of the “additive” model (universal perceptual aesthetics in the Western manner immune to and interacting with (independent) cultural conceptual “artistic” and functional elements). But no semantics can accept an additive ield — that is, a ield with concepts on the same level, a part of which is unchangeable and immune to the existence of the other part — because it would cease to be the structural whole it should by deinition be.54 I ind it interesting to note that Shiner’s moderate functionalism also rejects the universality of the aesthetic on the basis of the unity of the aesthetic and the functional, that is, universals cannot survive in a uniied semantic ield (SHINER, Larry, op. cit., p. 34, 36). 54 80 RHAA 22 as estéticas. Objetos utilitários com uma ou mais funções práticas primárias não estéticas podem ter recursos estéticos reais, desde que esses sejam determinados pela função e aplicados ao objeto como um todo, com o resultado de que objetos se tornem funcionalmente belos, uma beleza que não coincide sempre com a beleza formal. As propriedades artísticas e estéticas são, nesse caso, secundárias e separáveis das funções práticas primárias de um objeto, mas elas são tão essenciais e necessárias para sua formação e realização, em ordem para isso ser um trabalho de arte, que isso não pode ser avaliado independentemente delas; propriedades estéticas compelem o modo de funcionamento primário. O conceito de beleza funcional — tão próximo das teorias de Alberti e do funcionalismo arquitetônico — tem o mérito de introduzir a função prática, religiosa, estética, ou outra, como um componente de qualquer objeto considerado como arte. É usado por Davies para interpretação de sociedades pré-capitalistas: sua arte é geralmente utilitária. Entretanto, Davies acredita que a arte pré-capitalista é arte como nós, ocidentais, entendemos isso, e é por isso que sua argumentação acaba sendo um apelo para os universais estéticos, um retorno à estética kantiana. Há uma “condição humana” e existem “experiências e necessidades humanas profundas”, para as quais o universalismo da arte corresponde; o último é devido às propriedades estéticas universais, diretamente disponíveis pela percepção, e não por sistemas semióticos culturalmente arbitrários. Davies enumera as propriedades estéticas usadas pela estética tradicional: beleza, elegância, graça, equilíbrio, serenidade, vivacidade, unidade interna, energia, vibração sensual, tensão, que considera terreno comum entre estética tradicional e não ocidental, ou seja, transculturais. Os estéticos universais de Davies, mais uma vez sem nenhuma conexão com as dinâmicas materiais da sociedade, inevitavelmente o levaram a explicações de tipos darwinistas. Assim, não é surpresa que, a despeito de seu criticismo à abordagem de Dissanayake, por não distinguir arte de jogo e de religião ou alta e baixa arte, Davies concede que sua abordagem se aplique à arte baixa e, geralmente, formula a “noção intuitiva, pré-teórica de arte” comum a todas as sociedades; todos os humanos têm uma “herança comum biológica e ambiental”.53 53 DAVIES, Stephen, Philosophical Perspectives, por exemplo, space and aesthetics. Os estudos de caso que discuti oferecem uma versão totalmente oposta das três apresentadas. Os sistemas ideológicos de sociedades pré-capitalistas não dão nenhuma primazia ao código estético. Em sociedades menos complexas, a estética tem uma posição secundária, enquanto que em sociedades mais soisticadas a examinamos como um dos principais códigos, mas dependente de um complexo cósmico e antropomórico. Se a arte teve um papel vital de adaptação, é difícil entender o motivo, enquanto práticas sociais cruciais para a sobrevivência da sociedade são reconhecidas no sistema mitológico (por exemplo, To Dino: o primeiro caçador, fazendeiro e ferreiro), arte não é. Para fazer justiça com a teoria estética de Davies, se aproxima de meus dados, partindo de um ponto de vista, porque isso permite que a função primária de um objeto seja outra que não estética (nos meus casos, cósmico-religioso) e aceita a existência de dados culturais. Porém, de outro ponto de vista nós discordamos radicalmente. Os códigos cósmico e antropomórico seriam “artístico” para Davies, o que implica a elaboração servindo a forma, enquanto em meus casos a forma serve conteúdos culturais variantes desses códigos. Assim, a despeito de sua relatividade estética, ele continua apenso aos absolutos estéticos, negando relatividade cultural. Mesmo se absolutos existissem, eu acharia mais interessante discutir, em vez dos conceitos repetitivos comuns do criticismo estético, o conceito grego de symmetria, o indiano rāsa ou o chinês ch’i, uma visão que aparece ocasionalmente no trabalho de Davies. Meu argumento contra esse tipo de universalismo não implica que o fenômeno de arte não é universal, mas é direcionado contra a atribuição de um sentido universal à arte, porque isso não tem sentido. Uma forma “perceptual”, quer dizer, um signiicante, não tem nenhum sentido abstrato por si só, mas apenas na conjunção com um conteúdo, um signiicado; juntos, eles constituem um signo conceitual, e o signo é uma unidade indivisível. Considerando um traço formal de uma outra cultura como “estética” ou “arte”, nós, ocidentais, criamos uma abstração imaginária, um signiicante puro, e pp. 3-11, 34, 51-55, 60-61, 77, 79, 81, 87-100, 112, 114, 117; ver também DAVIES, Stephen. the Philosophy of art. Malden, MA, etc.: Blackwell, 2006, por exemplo, pp. 53-58, 68-71, 202-204 e the artful species, por exemplo, pp. 7, 15-21, 24, 186. RHAA 22 81 alexandros Ph. lagopoulos ligamos nosso próprio conteúdo, “estético”, a isso, em vez de procurar por seu signiicado cultural original; é isso que signiica Eurocentrismo. Meus estudos de caso indicam que esse sentido varia culturalmente e deriva de sentidos de ordens diferentes, das quais não pode ser autonomizado. Eu não uso o termo “autonomia” apenas para beleza livre, mas para a ideia de que há um conteúdo universal do código estético. Usei o termo “código estético” como um termo metalinguístico, referindo-me ao foco no contexto em algo para seu próprio bem e cobrindo campo semântico de ambas as nossas estética (sem aspas) e o campo da “estética” de outras culturas, que são diferentes umas das outras. Cada campo semântico é, por sua própria natureza, estruturado como um todo. Beleza funcional é uma variante de um modelo “aditivo” (estética perceptual universal à maneira ocidental imune a e interagindo com [independentes] elementos “artísticos” culturais e conceituais e funcionais). Mas nenhuma semântica pode aceitar o campo aditivo — isso é um campo com conceito no mesmo nível, uma parte que é imutável e imune à existência de outra parte — porque isso pode cessar o todo estrutural que deveria, por deinição, ser.54 tradução: Felipe da silva Corrêa Acho interessante notar que o funcionalismo moderado de Shiner também rejeita o universalismo da estética na base da unidade da estética e sua funcionalidade, ou seja, universais não podem sobreviver em um campo semântico uniicado (SHINER, Larry, op. cit., pp. 34, 36). 54 82 RHAA 22 Muralismo em São Paulo na década de 1950: dois painéis de Candido Portinari Muralism in São Paulo in the 1950’s: two panels by Candido Portinari PATRÍCIA M. S. FREITAS* doutoranda em história da arte pela universidade estadual de Campinas Doctoral student in Art History at State University of Campinas RESUMO O painel Bandeirantes, feito por Candido Portinari em 1951, adornou por muitas décadas o restaurante do Hotel Comodoro, em São Paulo, até ser incorporado à coleção de arte do Banco Itaú, em 2005. Concomitante a este projeto, estava a encomenda de Niemeyer para que o mesmo artista decorasse uma grande parede da Galeria Califórnia, inaugurada em 1953. O estudo destes dois casos especíicos em paralelo, bem como o diálogo destas obras com propostas contemporâneas, nos permitem investigar certos aspectos do programa moderno de síntese das artes no Brasil. Com base na análise destes painéis, adentramos a problemáticas que tocam desde complicações de ordem prática, até questões de cunho estético, expondo a fragilidade de um programa decorativo importado de experiências internacionais, e de certa forma, adaptado às condições brasileiras. PALAVRAS-CHAVE Muralismo, Candido Portinari, Hotel Comodoro, Galeria Califórnia, Oscar Niemeyer, síntese das artes. The panel Bandeirantes, made by Candido Portinari in 1951, adorned for many decades the restaurant of the Hotel Comodoro in São Paulo, till it be incorporated into the art collection of the Banco Itaú, in 2005. Concomitant with this project, is the Niemeyer’s commission for the same artist to decorate a large wall into Galeria California, opened in 1953. The study of these two speciic cases in parallel, and the dialogue of these works with contemporary proposals, allows us to investigate certain aspects of the modern program of synthesis of arts in Brazil. From the analysis of these panels, we enter the issues touching since complications of practical nature, to questions of aesthetic nature, exposing the fragility of a decorative program imported from international experiences, and somehow adapted to Brazilian conditions. AbSTRACT Muralism, Candido Portinari, Hotel Comodoro, Galeria Califórnia, Oscar Niemeyer, synthesis of arts. KEywORdS * Patrícia M. S. Freitas é Mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas, e atualmente doutoranda em História da Arte pela mesma universidade, onde desenvolve a pesquisa “Muralismo em São Paulo: convergência das artes entre 195060”, sob orientação do Prof. Jorge Coli e inanciamento da FAPESP. / Patrícia M. s. Freitas é Master in history from the state university of Campinas, and currently a doctoral student in art history from the same university, where she develops the research “Muralism in são Paulo: arts convergence between 1950-60", supervised by Prof. Jorge Coli and funded by FaPesP. RHAA 22 83 Patrícia M. s. Freitas Durante a década de 1950, podemos atestar um volumoso e constante crescimento do muralismo em São Paulo, atrelado a um projeto arquitetônico especíico e atento a certas questões importantes da época, como a relexão acerca da identidade paulista, suscitada pelas comemorações do IV Centenário da cidade, em 1954. A efeméride paulista foi o estopim para uma série de projetos em arte e arquitetura, ligados à gloriicação do espírito paulista, iniciados anos antes do aniversário da cidade, e que frutiicaram, por sua vez, ainda durante os anos seguintes às festividades. Tais projetos giravam em torno de dois grandes eixos relexivos: eles ora evocavam o passado paulista, salientando personagens desbravadores, como os bandeirantes, tidos como origem da força de todo o estado e igura síntese das ideias de coragem e iniciativa; ora vislumbravam e enalteciam o futuro, concebido como progresso e atualização das formas arquitetônicas e artísticas na metrópole que crescia em ritmo frenético. Atrelados a estas propostas estão os temas abordados por grande parte dos painéis igurativos executados nesse período, dentre eles, o mural de pastilha vítrica Bandeirantes, feito por Portinari, em 1951. A obra foi encomendada pelo então luxuoso Hotel Comodoro, para adornar seu restaurante, no 1o andar. Recém-aberto, no entanto, o hotel não contava com a instalação do painel em seu projeto executivo, o que suscita discussões sobre possíveis adaptações na arquitetura para a colocação da obra. Como contraponto, na mesma época observamos o trabalho conjunto de Portinari com o escritório de Oscar Niemeyer, para a execução de um painel — desta vez de tema abstrato — na Galeria Califórnia, cujo projeto compreendeu o intervalo entre 1951 e 1953. A galeria era um prédio comercial, e na época de sua inauguração já ostentava a obra de Portinari na entrada de seu cinema. O mosaico de pastilha de vidro ocupa quase toda a extensão da parede estrutural direita do edifício e exibe, dentro de um gradil de linhas pretas, algumas manchas em tons de cinza e vermelho. Para além da comparação entre igurativismo e abstracionismo, o diálogo entre os painéis de Portinari traz diversas questões quanto ao projeto de convergência entre arte e arquitetura e sua execução. O debate sobre a função da síntese das artes e sua efetiva aplicação na arquitetura moderna brasileira é ainda enriquecido pela comparação com diversos exemplos contemporâneos aos painéis analisados. 84 RHAA 22 During the 1950s, we can attest a massive and steady growth of mural painting in São Paulo, linked to a speciic architectural design and observing certain important issues of the period, as the relection on the São Paulo identity, raised by the celebrations of the city IV Centenary, in 1954. The São Paulo ephemeris was the trigger for a series of projects in art and architecture, linked to the gloriication of São Paulo spirit, started years before the anniversary of the city, and fruitful, in turn, even during the years following the festivities. These projects revolved around two large relective areas: they either evoke the past São Paulo, emphasizing explorers, like the pioneers called Bandeirantes, taken as a source of strength throughout the state and igure synthesis of courage and initiative ideas; or envisioned and extolled the future, conceived as progress and update of the architectural and artistic forms in the metropolis growing at a frenetic pace. Linked to these proposals are the topics covered by most of the igurative panels executed in this period, among them is the glass mosaic mural Bandeirantes, made by Portinari, in 1951. The work was commissioned by the then luxurious Comodoro Hotel, to adorn his restaurant, on the 1st loor. Newly opened, however, the hotel did not have the panel installation on its executive project, which raises discussions on possible adaptations in architecture for making the work. As a counterpoint, at the same time one can observe the joint work of Portinari with Oscar Niemeyer’s ofice for the implementation of a panel — this time of abstract theme — at California Gallery, whose project was made between 1951 and 1953. The gallery was a commercial building, and at the time of its inauguration already displayed the work of Portinari at the entrance of its cinema. The glass mosaic occupies almost the entire length of the right wall of the building structure and exhibits within a cage of black lines, some stains on grayscale and red. In addition to the comparison between iguration and abstraction, the dialogue between Portinari’s panels brings several questions about the project of convergence between art and architecture and its implementation. The debate over the role of the synthesis of arts and its effective application in modern Brazilian architecture is further Muralismo em são Paulo enhanced by the comparison with many examples contemporary of the analyzed panels. The 1950s: identity and modernity in São Paulo Capital On May 25, 1952, a Sunday, the newspaper Folha da Manhã published a short note with a picture of Clovis Graciano and his sons, in his studio. The article made a tour of the artist’s life, highlighting his past detached from plastic arts, citing their jobs as a painter of rail cars and its function as a federal tax, and mention the participation of Graciano in the Constitutionalist Revolution of 1932. The reporter concludes the note stating that the artist “considerably improved his economic conditions and lives in an elegant apartment,” where he worked on his next project, a mural for the newspaper’s o estado de s. Paulo headquarters building. News of Graciano’s panel on the newspaper ofice1 closes the matter, while referring us to its own title: “Clovis, memory painter”. All text seems to build the image of an artist formed thanks to his personal struggle, on a path that did not spare him from distant works of his ultimate goal, but that endowed him with certain awareness of life and reality in São Paulo. This awareness is further supported by its politicized facet, expressed in his participation in the Revolution in 1932. This narrative was seeking to approach the painter and São Paulo’s identity and memory, placing him as a legitimate spokesman for its story, through his works in general, and in particular through his panels. Bandeirantes was delivered two years after being reported by the above article [Fig. 1]. Painted with oil and wax, gained the inner wall of the o estado de s. Paulo newspaper headquarters building lobb, designed by the german architect Adolf Franz Heep, at the time working in the ofice of Jacques Pilon2 [Fig. 2]. The reverse side In Rua Major Quedinho, 28, in the city center, where was the headquarters of the newspaper o estado de s. Paulo, currently runs the Novotel Hotel Jaragua. 2 The project to build the newspaper’s headquarters was made by the Mesquita family and presented to the French architect Jacques Pilon, still in 1946, and was approved by the Municipality of São Paulo in 1947, i.e. a few months before Heep arrival at Brazil. The collaboration of the German architect turned out to change completely the initial projection by inserting elements such as brises-soleil, panels of Clovis Graciano and Di Cavalcanti, and also reducing the 25 building to 21 loors. The Mesquita family adopted 1 Os anos de 1950: identidade e modernidade na Capital No dia 25 de maio de 1952, um domingo, o jornal Folha da Manhã publicou uma pequena nota, com uma foto de Clóvis Graciano e seus ilhos, em seu ateliê. O artigo fazia uma digressão pela vida do artista, salientando seu passado desvinculado das artes plásticas, citando seus empregos como pintor de vagões ferroviários e sua função como iscal federal, além de mencionar a participação de Graciano na Revolução Constitucionalista de 1932. O repórter conclui a nota airmando que o artista “melhorou consideravelmente suas condições econômicas e mora num apartamento elegante”, onde trabalhava em seu próximo projeto, um mural para o prédio sede do jornal o estado de s. Paulo. A notícia sobre o painel de Graciano na sede do jornal1 encerra a matéria, ao mesmo tempo em que nos remete ao seu próprio título: “Clóvis, pintor da memória”. Todo o texto parece construir a imagem de um artista formado graças à sua luta pessoal, em um trajeto que não o poupou de trabalhos muito distantes de seu objetivo inal, mas que o dotaram de certa consciência da vida e da realidade em São Paulo. Esta consciência é ainda corroborada pela sua faceta politizada, expressa na sua participação na Revolução, em 1932. Tal narrativa buscava aproximar o pintor da identidade e da memória paulista, colocando-o como um legítimo porta-voz desta história, por meio de suas obras em geral, e em especial, de seus painéis. Bandeirantes foi entregue dois anos após ser noticiado pela reportagem supracitada [Fig. 1]. Pintado com óleo e cera, ganhou a parede interna do hall de entrada do edifício sede de o estado de s. Paulo, projetado pelo arquiteto alemão Adolf Franz Heep, na época trabalhando no escritório de Jacques Pilon2 [Fig. Na Rua Major Quedinho, 28, no centro da cidade, onde era a sede do jornal o estado de s. Paulo, funciona atualmente o Hotel Novotel Jaraguá. 2 O projeto para a construção do edifício sede do jornal foi feito pela família Mesquita e apresentado ao arquiteto francês Jacques Pilon, ainda em 1946, e foi aprovado pela Prefeitura Municipal de São Paulo em 1947, isto é, alguns meses antes da chegada de Heep ao Brasil. A colaboração do arquiteto alemão acabou por modiicar por completo a projeção inicial, inserindo elementos como os brises, os painéis de Clóvis Graciano e Di Cavalcanti, e ainda reduzindo o edifício de 25 para 21 andares. A família Mesquita aprovou as novas alterações, e o edifício foi aclamado em diversos periódicos especializados da época como um exemplar da arquitetura moderna em São Paulo. Dentre os elogios ao prédio, ressaltam-se o ritmo empregado à fachada pelo uso dos brises, a monumentalidade da entrada, com pé-direito alto, e o uso total do terreno em V, além da inserção dos painéis de artistas nacionais. Em entrevista concedida à autora, a neta de Clóvis Graciano, Isabel Graciano, airmou que a encomenda do painel 1 RHAA 22 85 Patrícia M. s. Freitas 2]. O verso da parede que abriga o painel de Graciano expõe no exterior o painel de pastilhas vítricas a imprensa, de Emiliano Di Cavalcanti [Fig. 3]. Os dois artistas encontram um ponto de contato sutil, externo às obras, mas que as fazem correlatas: existe uma linha que liga os bandeirantes, espécie de ancestralidade da alma pioneira e trabalhadora do homem paulista, com o universo do trabalho que Di Cavalcanti retrata. Estas são as imagens que uma das famílias mais tradicionais da época — os Mesquita — escolheu para relacionar à sede de seu jornal, construída, por sua vez, de acordo com os mais modernos preceitos arquitetônicos. Deste modo, podemos observar a inserção do painel de Graciano na equação moderna da síntese das artes, na aliança entre a atualização arquitetônica e a relexão sobre o passado paulista. O tema escolhido por Graciano dialoga com os debates sobre a identidade paulista em torno da qual giravam as comemorações do IV Centenário de São Paulo. O mote das expedições coloniais, conhecidas como bandeiras paulistas, serviu como mito fundador da cidade e foi largamente explorado pela comissão de artistas, arquitetos e intelectuais vinculados às celebrações da efeméride. O esforço era também estabelecer um caráter cientíico que embasasse a vinculação entre passado e presente. Buscava-se associar historicamente, até mesmo com um propósito pedagógico, a igura do bandeirante à identidade paulista, ressaltando-lhe o empreendedorismo e a força. A vocação de prosperar se enunciava como evidente destino e era, então, fundamentada por larga pesquisa documental. Como resultado desta investigação, um vocabulário visual especíico foi consolidado em diálogo com a iconograia anterior, como a de Benedito Calixto [Fig. 4], mas também assentada em descrições como a feita, por exemplo, pelo historiador Afonso d’Escragnolle Taunay em sua consultoria para o ilme Bandeiras, de Humberto Mauro. As cartas trocadas entre o historiador e o Bandeirantes pode ter partido dos donos do próprio jornal, uma vez que o artista icou preso junto a Julio de Mesquita Filho, proprietário do jornal, durante a Revolução de 1932. Depois disso, ainda segundo Isabel, Graciano e Mesquita se tornaram amigos por longos anos. Após esta encomenda, Graciano e Heep trabalharam juntos ainda mais uma vez no projeto do Edifício Lausanne, na Avenida Higienópolis. Cf. BARBOSA, Marcelo Consiglio. a obra de adolf Franz heep no Brasil. Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, São Paulo, 2002. 86 RHAA 22 of the wall from Graciano’s panel exposes on its outside the glass mosaic panel a imprensa, made by Emiliano Di Cavalcanti [Fig. 3]. The two artists ind a subtle point of contact, external to the works, but related: there is a line connecting the bandeirantes, kind of ancestry of the pioneer and working soul of the São Paulo’s man, with the world of work that Di Cavalcanti portrays. These are the images that one of the most traditional families of the time — the Mesquitas — chose to relate to the headquarters of their newspaper, built in turn, according to the most modern architectural precepts. Thus, we can see the insertion of Graciano’s panel in the modern equation of the synthesis of the arts, the alliance between architectural update and relection on São Paulo’s past. The theme chosen by Graciano dialogue with discussions on São Paulo’s identity around which revolved the celebrations of the fourth centenary of the city. The motto of the colonial expeditions, known as São Paulo’s bandeiras (lags), served as the founding myth of the city and was widely exploited by the committee of artists, architects and intellectuals linked to the anniversary celebrations. The effort was also to establish a scientiic approach that could found the link between past and present. The intent was to associate historically, even with a pedagogical purpose, the igure of the pioneer to São Paulo’s identity, emphasizing its entrepreneurship and strength. The vocation to thrive enunciated itself as an obvious target and was then supported by a large historical research. the new changes, and the building was acclaimed in various specialized periodicals of the time as an example of modern architecture in São Paulo. Among the praise of the building, one can emphasize the rhythm to the facade applied for the use of brises-soleil, the monumentality of the entry, with high ceilings, and full use of the land on V in addition to integration of national artists panels. In an interview with the author, the granddaughter of Clovis Graciano, Isabel Graciano said that the order of the Bandeirantes panel may have come from the newspaper’s owners themselves, since the artist was arrested along with the Julio de Mesquita Filho, owner of the newspaper, during the Revolution of 1932. After that, according Isabel, Graciano and Mosque became friends for many years. After this order, Graciano and Heep worked together yet again in Lausanne building project at Avenida Higienópolis. See BARBOSA, Marcelo Consiglio. a obra de adolf Franz heep no Brasil. Master’s Thesis in Architecture and Urban Planning, Faculty of Architecture and Urbanism of USP, São Paulo, 2002. Muralismo em são Paulo As a result of this investigation, a speciic visual vocabulary was consolidated in dialogue with the previous iconography, such as Benedito Calixto [Fig. 4], but also seated on descriptions as made, for example, by the historian Alfonso d’Escragnolle Taunay in his advice to the movie Bandeiras of Humberto Mauro. The letters exchanged between the historian and ilmmaker consist of a long and detailed explanations of Taunay on the lags, as well as guidelines for Mauro to reproduce the frames from Museu Paulista in the scenes of his ilm.3 Hotel Comodoro Contemporary to Clovis Graciano’s panel and combining in the same way, the theme of the pioneers to the modern program of the IV Centenary of São Paulo, in 1951 is ordered to Portinari a panel for the Hotel Comodoro. Located on Avenida Duque de Caxias, the hotel was built in order to house the large inlux of people in the city, in 1950.4 It had luxurious and modern elements, like an electric latch allowing the guest to open the door without getting out of bed, in addition to the updated decor, which was highlighted in the pages of the magazine Habitat, signed by the architect Lina Bo Bardi, in 1952.5 Within this current and sophisticated decorative program, came the order for the work of Portinari, Bandeirantes [Fig. 5], which was installed in the irst loor restaurant [Fig. 6]. There are few studies that address both the Hotel Comodoro, as the order of the Portinari panel. One of the few articles published on the subject explains that the implementation of the work took place after the opening of the hotel. The documentation on the correspondence between Alfonso d'Escragnolle Taunay and Humberto Mauro is iled at the Museu Paulista, São Paulo (SP). 4 The hotel sector was the fastest to received inancial incentives that period, resulting from the large number of people who visited the city at the time of its 400th birthday. Along with the Hotel Comodoro, we can mention other projects for modern hotels: Hotel Cambridge and Hotel Paris, both by Francisco Beck; Hotel Copan, designed by Henry Midlin (not built); and the Jaragua Hotel, situated on the upper loors of the aforementioned newspaper’s ofice building o estado de s. Paulo, by Franz Heep. Cf. MONTEIRO, Ana Carla. os hotéis da metrópole: o contexto histórico e urbano da cidade de são Paulo através da produção arquitetônica hoteleira (1940-1960). Thesis. FAU-USP, São Paulo, 2006. 5 MONTEIRO, Ana Carla. op. cit., p. 165 3 cineasta consistem em longas e detalhadas explicações de Taunay sobre as bandeiras, além de orientações para que Mauro reproduza os quadros do Museu Paulista nas cenas de seu ilme.3 Hotel Comodoro Contemporâneo ao painel de Clóvis Graciano e aliando, da mesma forma, o tema bandeirantes ao programa moderno do IV Centenário de São Paulo, em 1951 é encomendado a Portinari um painel para o Hotel Comodoro. Localizado na Avenida Duque de Caxias, o hotel foi construído com a inalidade de abrigar o grande luxo de pessoas na cidade, em 1950.4 Possuía elementos luxuosos e modernos, como um trinco elétrico que permitia ao hóspede abrir a porta sem se levantar da cama, além da atualizada decoração, que ganhou destaque nas páginas da revista habitat, assinada pela arquiteta Lina Bo Bardi, em 1952.5 Dentro deste programa decorativo atual e soisticado, surgiu a encomenda para a obra de Portinari, Bandeirantes [Fig. 5], que foi instalada no restaurante do 1o pavimento [Fig. 6]. Existem poucos estudos que abordam tanto o Hotel Comodoro, como a encomenda do painel de Portinari. Um dos poucos artigos publicados sobre o assunto explica que a implantação da obra se deu posteriormente à inauguração do hotel. Segundo os autores, o local passou por uma adaptação de seu espaço, com a construção de uma parede de sustentação.6 Contudo, o telegrama enviado por Maurício Fernandes7 a Portinari, em setembro de 1951, convidava-o para a inauguração do hotel, citando já a presença do painel: “(...) Pretendo inaugurar A documentação sobre a correspondência entre Afonso d’Escragnolle Taunay e Humberto Mauro está arquivada no Museu Paulista, São Paulo (SP). 4 O setor hoteleiro foi um dos que mais receberam incentivos inanceiros nesse período, decorrentes do grande número de pessoas que visitavam a cidade à época de seu 400o aniversário. Juntamente com o Hotel Comodoro, podemos citar outros projetos para hotéis modernos: Hotel Cambridge e o Hotel Paris, ambos de Francisco Beck; o Hotel Copan, projetado por Henrique Midlin (e não construído); e o Hotel Jaraguá, situado nos andares superiores do já citado prédio sede do jornal o estado de s. Paulo, de Franz Heep. Cf. MONTEIRO, Ana Carla. os hotéis da metrópole: o contexto histórico e urbano da cidade de são Paulo através da produção arquitetônica hoteleira (1940-1960). Dissertação de mestrado. FAU-USP, São Paulo, 2006. 5 MONTEIRO, Ana Carla. op. cit., p. 165. 6 MARTIN, A. D. e TASSI, E. P. Mural “os Bandeirantes”, de Candido Portinari, obra de transposição e restauro. Revista Brasileira de Arqueometria, Restauração e Conservação, vol. 4, no 4, pp. 180-185. 7 Representante da Cia. Hotéis Comodoro. 3 RHAA 22 87 Patrícia M. s. Freitas sábado 26 hotel Comodoro para cuja beleza muito inluenciou seu grandioso mural bandeirantes (...)”.8 A documentação, no entanto, não permite concluir sobre a presença do painel no projeto executivo do hotel. Esta informação é a base para a crítica feita pelos arquitetos Arnaldo Sarasá e Eliane Tassi, ambos envolvidos no restauro da obra.9 Para Sarasá e Tassi, o pé-direito baixo e o espaço reduzido do salão comprometeram a monumentalidade do painel e prejudicaram sua pertinência no diálogo com a arquitetura. O ponto essencial para o debate da síntese das artes se torna ainda mais problemático pela ausência do nome de um arquiteto de peso, vinculado ao projeto.10 A falta da assinatura de um proissional renomado certamente contribuiu para que o painel de Portinari, bem como o próprio hotel, permanecessem no silêncio historiográico. Ao mesmo tempo, a presença de uma obra com o peril monumental dentro de um hotel moderno, mas de certa forma anônimo, demonstra certa rotinização deste modelo decorativo. Descolado de sua premissa moderna da convergência das artes e desprovido de teorias que o justiiquem, o painel passa a simplesmente adornar. Outra informação importante, trazida por uma carta, desta vez escrita por Portinari a Maurício, diz respeito à fatura do mural. O artista estabeleceu seis condições para o trabalho ser feito. Dentre elas, duas se destacam por esclarecer qual rotina poderia estar associada à demanda de grandes painéis. A primeira estabelece a técnica: “o mural — cuja maquete caber-me-á executar — será reproduzido em mosaico de cores diversas”.11 Telegrama de Maurício Fernandes a Candido Portinari, de 21 de janeiro de 1952. Acessada em www.portinari.org, em 05/05/2013. 9 Em alguns anos, a obra começou a mostrar sinais de problemas trazidos pela trepidação do maquinário da lavanderia industrial, localizada no andar logo acima, e a umidade de um cano de esgoto que passava rente às costas do painel. Com diiculdades de manter o grande mural, mas sem condições de vendê-lo por conta própria, o hotel então aceitou a oferta do galerista do Rio de Janeiro, Marcelo Pontual, que adquiriu e inanciou o restauro pelo Atelier Sarasá. Depois de restaurado, o painel foi a leilão, sendo adquirido pelo Banco Itaú em maio de 2005. Atualmente, a obra de 7,65 x 2,5m, e cerca de 850 quilos, está exposta na sede do Banco Itaú, no bairro da Conceição, em São Paulo. 10 Segundo informações retiradas da supracitada dissertação de Ana Carla Monteiro, o Hotel Comodoro é propriedade de F. R. de Aquino S.A.. Não há especiicação do arquiteto responsável. Cf. MONTEIRO, Ana Carla. op. cit., p. 171. 11 Carta de Candido Portinari à Companhia de Hotéis Comodoro (Maurício Fernandes), de 19 de setembro de 1951. Acessada em www.portinari.org, em 05/05/2013. 8 88 RHAA 22 According to the authors, the site has undergone an adaptation of its space, with the construction of a bearing wall.6 However, the telegram sent by Mauricio Fernandes7 to Portinari, in September, 1951, invited him to the opening of the hotel, already citing the presence of the panel: “(...) I want to open Saturday 26 Hotel Comodoro for whose beauty greatly inluenced your great mural Bandeirantes (…)”.8 The documentation, however, is not conclusive on the panel presence in the executive design of the hotel. This information is the basis for the criticism made by the architects Arnaldo Sarasa and Eliane Tassi, both involved in the restoration of the work.9 To Sarasa and Tassi, low ceilings and the reduced space of the hall undertook the monumental panel and harmed its relevance in dialogue with architecture. The essential point for discussion of the arts synthesis becomes even more problematic by the absence of the name of a weight architect, linked to the project.10 The lack of a renowned professional signature certainly contributed to the Portinari panel as well as the hotel itself, remain in historiographical silence. At the same time, the presence of a work with the monumental proile within a modern, but somewhat anonymous, hotel, shows some routinization of this decorative style. Taken off from its 6 MARTIN, A. D. e TASSI, E. P. Mural “os Bandeirantes”, de Candido Portinari, obra de transposição e restauro. Revista Brasileira de Arqueometria, Restauração e Conservação, vol. 4, no 4, pp. 180-185. 7 Employee from Hotel Comodoro. 8 Telegram from Maurício Fernandes to Candido Portinari, of January, 21, 1952. Accessed on www.portinari.org on 05/05/2013. 9 In some years, the work began to show signs of problems brought on by disturbance in the industrial laundry machinery, located on the loor just above, and the humidity of a sewer pipe that passed close to the back of the panel. Struggling to keep the great wall but unable to sell it on their own, the Hotel then accepted the Rio de Janeiro gallerist's offer, Marcelo Pontual, who purchased and inanced the restoration by Atelier Sarasa. After restored, the panel was auctioned, being acquired by Banco Itaú in May 2005. Currently, the work of 7.65 x 2.5 m, and about 850 kilos, is exposed at the headquarters of Banco Itaú, in the neighborhood of Conceição, in Sao Paulo. 10 According to information taken from the aforementioned thesis of Ana Carla Monteiro, Hotel Comodor is F. R. Aquino S.A. property. There is no speciication of the responsible architect. Cf. MONTEIRO, Ana Carla. op. Cit., p. 171. Muralismo em são Paulo modern premise of convergence of the arts and devoid of theories that justify it, the panel shall simply adorn. Other key information brought by a letter, this time written by Portinari to Mauricio concerns the mural making. The artist set six conditions for the work to be done. Among them, two stand out for clearing up which routine could be associated with the demand for large panels. The irst establishes the technique: “the mural — whose the design I shall carry out — will be reproduced on a mosaic of different colors.”11 The mosaic tile used an innovation in coatings technology, the glass mosaic, revealing here too its modernity. This support allowed the artist to draw up its creation by distance and in a small-scale. It is relatively common, as with Portinari, the artist not be present during the execution of the work. We can infer that a signiicant part of the panels, especially the glass mosaic, was performed by professionals of the mosaic factories. Often, the very company that received the models of the artists was responsible for transferring them to the wall installation in scale. Linked to the technical question is, then, the issue of authorship/execution.12 Based on this statement, it is possible to understand the second major Portinari clause: “As I said to them, I think it is quite possible to inish the part that competes me in time not exceeding ifteen (15) days from the date of acceptance.”13 Portinari made two models for the Bandeirantes panel, with little change between them [Figs. 07 and 08]. Only on conditions as the set out above, the artist — who was working on several projects and at his home in Rio de Janeiro — would be able 11 Candido Portinari letter to the Comodoro Hotels Co. (Maurício Fernandes) of 19 September 1951. Accessed on www.portinari.org on 05/05/2013. 12 This dimension may be even more complex in cases of restoration of some of these works. This is the case of the restoration of the work alegoria das artes, by Clovis Graciano, made for the Teatro João Caetano (Vila Clementino), in 1952. The panels were repainted in 1978 and, as stated by Vera Wilhelm, “the artist who repainted left recorded his speech at work, putting in the central area right out his name and the date of execution, as visible marking in the work ‘restoration Icarus 78’”. WILHELM, V. a arte mural e a prática da preservação. Dissertation, Faculty of Architecture and Urbanism at the University of Sao Paulo, 2011, p. 123. 13 Candido Portinari letter to the Comodoro Hotels Co. (Maurício Fernandes) of 19 September 1951. Accessed on www.portinari.org on 05/05/2013. O mosaico utilizava como tessela uma inovação na tecnologia de revestimentos, a pastilha de vidro, revelando também neste aspecto sua modernidade. Este suporte permitia ao artista elaborar sua criação a distância e em escala reduzida. É relativamente comum, como ocorreu com Portinari, que o artista não estivesse presente durante a execução da obra. Podemos aferir que uma parte signiicativa dos painéis, sobretudo os de pastilha vítrica, foi executada por proissionais das fábricas de pastilhas. Muitas vezes, a própria empresa que recebia as maquetes dos artistas era responsável por transferi-las para a parede de instalação, em escala. Atrelada à questão técnica está, então, a dimensão de autoria/execução.12 Com base nesta constatação, é possível compreender a segunda importante cláusula de Portinari: “Conforme lhes airmei, creio perfeitamente possível terminar a parte que me compete em prazo nunca superior a 15 (quinze) dias, a contar da data de sua aceitação”.13 Portinari fez duas maquetes para o painel Bandeirantes, com poucas alterações entre elas [Figs. 7 e 8]. Apenas diante de condições como as expostas acima, o artista — que trabalhava em diversos projetos e em sua residência no Rio de Janeiro — seria capaz de envolver-se na dispendiosa jornada dupla que abraçou, quando aceitou, quase simultaneamente à obra do Comodoro, a encomenda de Oscar Niemeyer para a Galeria Califórnia. A Galeria Califórnia A Galeria Califórnia é um prédio comercial, projetado em 1951 e entregue em 1953 para sua inauguração, já com o painel abstrato de Portinari na entrada do Cine Barão [Fig. 9]. O edifício foi construído em terreno com forma de “L” e tem abertura para as ruas Barão de Itapetininga e Dom José de Barros. A passagem interna para os pedestres, dentro de galerias comerciais, fazia Esta dimensão pode ser ainda mais complexa nos casos do restauro de algumas destas obras. Este é o caso do restauro da obra “alegoria às artes”, de Clóvis Graciano, feito para o Teatro João Caetano (Vila Clementino), em 1952. Os painéis foram repintados em 1978, e, como airma Vera Wilhelm, “o artista que realizou a repintura deixou registrada sua intervenção na obra, colocando na área central à direita seu nome e a data de execução, conforme inscrição visível na obra ‘restauração Ícaro 78’”. WILHELM, V. a arte mural e a prática da preservação. Dissertação de mestrado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2011, p. 123. 13 Carta de Candido Portinari à Companhia de Hotéis Comodoro (Maurício Fernandes), de 19 de setembro de 1951. Acessada em www.portinari.org, em 05/05/2013. 12 RHAA 22 89 Patrícia M. s. Freitas parte do investimento em uma nova tipologia de edifícios, que proporcionasse ao transeunte um espaço de mobilidade e fácil transposição entre os passeios e as áreas comerciais. O programa do Edifício Califórnia previa ainda treze andares de escritórios, que deveriam se erguer acima da galeria, além de um cinema no subsolo,14 e um painel, que foi pedido a Candido Portinari desde o início do projeto [Fig. 10]. Em entrevista à pesquisadora Daniela Leal, em 2002, Carlos Lemos airmou ser de extrema preocupação do arquiteto carioca que artistas como Portinari e Di Cavalcanti estivessem envolvidos em seus projetos. Nas palavras de Lemos: “Oscar sempre tentou a integração das artes”.15 Mas para Otávio Frias e José Escorel, ambos funcionários do Banco Nacional Imobiliário (BNI),16 os motivos da presença do painel de Portinari no edifício estavam vinculados a aspectos comerciais, reletindo outra faceta da união entre arte e arquitetura, no período. No entanto, embora neste caso esteja explícito certo uso comercial da síntese das artes, a presença constante dos painéis em projetos modernos na década de 1950 demonstra o esforço de se aplicar preceitos trazidos internacionalmente, de interligação entre as artes maiores: artes plásticas, escultura e arquitetura.17 Para além da discussão acerca das circunstâncias que levaram Niemeyer a pedir a colaboração de Portinari, destaca-se o peso das demandas do BNI na execução deste projeto. Apenas alguns dias antes da inauguração da galeria, os jornais da época Em visita ao edifício, realizada em fevereiro de 2012, observou-se que o espaço destinado ao cinema está fechado. 15 Para mais informações sobre a entrevista citada, ver: LEAL, Daniela Viana. op. cit. 16 O Banco Nacional Imobiliário (BNI) foi o empreendedor do projeto da Galeria Califórnia, juntamente com outros edifícios assinados pelo escritório-satélite de Niemeyer em São Paulo, tais como os edifícios Triângulo e Eiffel. Devido à intensa demanda de trabalho de Niemeyer neste período, o arquiteto decidiu abrir na cidade um escritório-satélite, a ser administrado por uma equipe cheiada por Carlos Lemos. Assim, Lemos icou responsável por gerenciar os projetos executados, muitas vezes simultaneamente, na cidade. Niemeyer iscalizava a distância as construções, vindo à capital esporadicamente para alguns estirões, em que cuidava, sobretudo, de questões administrativas na prefeitura. Pode-se airmar, desta forma que boa parte das decisões práticas eram tomadas por Lemos. Cf. LEAL, Daniela Viana. op. cit. 17 Vale ressaltar ainda que Niemeyer já tivera um contato anterior com Portinari no projeto do Ministério da Saúde e Educação, atual Edifício Capanema, entregue em 1947. Assessorando Lúcio Costa e Niemeyer estava o grande nome do Modernismo na época, Le Corbusier, que, dentre outras contribuições para o Modernismo, teorizou o conceito de síntese das artes. 14 90 RHAA 22 to engage such a costly double shift that he embraced when he accepted, almost simultaneously with the work of the Hotel Comodoro, the ordering from Oscar Niemeyer, to California Gallery. The Gallery California The Gallery California is an ofice building, designed in 1951 and delivered in 1953 to its opening, as with an abstract panel by Portinari at the entrance of Cine Barão [Fig. 9]. The building was built on a land in the shape of “L” and is open to the street Barão de Itapetininga and Dom José de Barros. The internal passage for pedestrians within department stores, was part of the investment in a new type of buildings, which would provide the passerby a mobility space and easy translocation between tours and shopping areas. The California Building program also provided for thirteen loors of ofices, which should rise above the gallery, as well as a cinema in the basement,14 and a panel, which was asked to Candido Portinari from the start of the project [Fig. 10]. In an interview with the researcher Daniela Leal in 2002, Carlos Lemos said to be of utmost concern of Niemeyer that artists like Portinari and Di Cavalcanti were involved in his projects. In Lemos words: “Oscar always tried integrating the arts.”15 But for Otavio Frias and José Escorel, both employees of National Real Estate Bank (NIB),16 the reasons for the presence of Portinari’s panel in the building were linked to commercial aspects, relecting another facet of the union between art and architecture in the period. However, although in this case is explicit certain commercial use of the synthesis of the arts, the constant presence of On a visit to the building, held in February 2012, it was observed that the space for the cinema is closed. 15 For more information on the aforementioned interview, see: LEAL, Daniela Viana. op. Cit. 16 The National Real Estate Bank (NIB) was the Gallery California project developer, along with other buildings designed by Niemeyer's satellite ofice in São Paulo, such as buildings and Triangle and Eiffel. Due to the high demand of Niemeyer's work in this period, the architect decided to open a satellite-ofice in the city, to be administered by a team led by Carlos Lemos. Thus, Lemos was responsible for managing the projects executed, often simultaneously in the city. Niemeyer oversaw the buildings, coming to the capital for some sporadic spurts, in which he took care mainly of administrative issues at City Hall. One can attest, so, that most of the practical decisions were taken by Lemos. See LEAL, Daniela Viana. op. Cit. 14 Muralismo em são Paulo panels in modern designs in the 1950s demonstrates the effort to apply precepts internationally brought of interconnection between the high arts: visual arts, sculpture and architecture.17 In addition to the discussion of the circumstances that led Niemeyer asking Portinari’s collaboration, there is the weight of the demands of NIB in implementing this project. Just days before the opening of the gallery, the newspapers of the period stamped on its pages the good qualities of Niemeyer’s modern design: The Building and Gallery California, for its architectural projection, will be known throughout São Paulo. [...] Located in the artery that is our art center, elegance and reinement, born of an architectural design of sharp relief, the Building and Gallery California, from the reception - in its hall majestically decorated by a large panel of Portinari representing the 'Epic of Piratininga Bandeiras', until the last loor, will be highlighted throughout Barão de Itapetininga, becoming its peak of assembly, attraction.18 For those who know the great abstract mural by Portinari, the shock is inevitable while reading the words: “hall majestically decorated by a large Portinari panel, representing the ‘Epic of Piratininga Bandeiras.’” Initially, the artist presented a panel project, under the “Epic of Bandeiras” title. However, the work was shown to be too complex to implement in the time required by the NIB, which pushed for a new deal to be agreed. Carlos Lemos traveled then to Rio de Janeiro in order to bring back with him the model card to the panel, whose advance of 50% of order had already been paid. The letter sent by Lemos to Portinari, on October 12, 1953, reported on this meeting: 17 It is worth mentioning that Niemeyer had had a previous contact with Portinari in the Ministry of Health and Education project, current Capanema building, delivered in 1947. Assisting Costa and Niemeyer was the big name of Modernism at the time, Le Corbusier, which, among other contributions to Modernism, theorized the concept of the synthesis of the arts. 18 Folha da Manha, 02.12.1953, session Assuntos Especializados, p. 7, consulted in LEAL, Daniela Viana. oscar Niemeyer e o mercado imobiliário de são Paulo na década de 1950: o escritório satélite sob direção do arquiteto Carlos lemos e os edifícios encomendados pelo Banco Nacional imobiliário. Master’s Thesis in History — Institute of Philosophy and Human Sciences, State University of Campinas, Campinas, 2003. estampavam em suas páginas as boas qualidades do moderno projeto de Niemeyer: O Edifício e Galeria Califórnia, pela sua projeção arquitetônica, será conhecido de toda São Paulo. [...] Localizado na artéria que é o nosso centro de arte, elegância e reinamento, nascido de uma concepção arquitetônica de nítido relevo, o Edifício e Galeria Califórnia, desde a recepção – no seu hall majestosamente decorado por um grande painel de Portinari, representando a ‘Epopeia das Bandeiras de Piratininga’, até o último pavimento, destacar-se-á ao longo de toda rua Barão de Itapetininga, constituindo-se o seu ponto máximo de reunião, de atração.18 Para os que conhecem o grande painel abstrato de Portinari, é inevitável o choque ao lerem-se as palavras: “hall majestosamente decorado por um grande painel de Portinari, representando a ‘Epopeia das Bandeiras de Piratininga’”. Inicialmente, o artista apresentou um projeto de painel, sob o título “Epopeia das Bandeiras”. No entanto, a obra mostrava-se complexa demais para a execução no tempo exigido pelo BNI, que pressionou para que um novo acordo fosse estabelecido. Carlos Lemos viajou, então, para o Rio de Janeiro com o objetivo de trazer de volta consigo o cartão para o painel, cujo adiantamento de 50% do valor pedido já havia sido pago. A carta enviada por Lemos a Portinari, em 12 de outubro de 1953, informa sobre esse encontro: Conforme havíamos combinado em nosso encontro em sua residência, encaminho as amostras do mosaico de vidro da ‘Vidrotil’. Estas amostras pertencem ao estoque atual, o qual já foi inteiramente reservado para o seu painel. Não há quantidade suiciente de pastilhas brancas para o fundo geral. Optei, então, pela pastilha cinza-claro. O branco entrará somente nos desenhos do painel propriamente dito.19 Folha da Manhã, 02/12/1953, caderno Assuntos Especializados, p. 7, consultado em LEAL, Daniela Viana. oscar Niemeyer e o mercado imobiliário de são Paulo na década de 1950: o escritório satélite sob direção do arquiteto Carlos lemos e os edifícios encomendados pelo Banco Nacional imobiliário. Dissertação de Mestrado em História — Instituto de Filosoia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003. 19 Carta de Carlos Lemos a Candido Portinari, de 12 de outubro de 1953. Acessada em www.portinari.org, em 05/05/2013. A carta é anterior à notícia publicada pelo jornal Folha da manhã, supracitado, levantando a hipótese de que a imprensa foi informada da mudança do tema do painel posteriormente a dezembro de 1953. 18 RHAA 22 91 Patrícia M. s. Freitas Alguns dias depois, Portinari respondeu à carta de Lemos com os seguintes dizeres: Estou lhe enviando a maquete para o mural de acordo com as cores que me enviou; apenas acrescentei algumas ilas de vidrotil vermelho. Espero que isso não cause transtorno e que nosso painel não sofra nenhuma modiicação.20 Por meio da análise das três maquetes que Portinari fez [Figs. 11, 12 e 13] — ao menos as que temos registro pelo raisonné do artista — e nos pautando nos trechos transcritos acima, podemos ter como hipótese que a primeira maquete apresentada tenha sido a da igura 11. O fundo branco e a larga faixa vermelha, posteriormente reduzida, corroboram esta sugestão. A segunda maquete [Fig. 12] tem, em comparação com a anterior, uma drástica redução na área vermelha. O fundo branco é invadido por largas manchas em tons de cinza, mantendo apenas como reminiscência do estudo anterior o gradil preto. Por im, aquela que parece ser a última prova [Fig. 13], devido à sua semelhança ao painel executado, mostra mais uniformidade na distribuição das tonalidades. As variações entre os cinzas diminuem e o desenho se torna mais contido dentro das linhas. As mudanças nas maquetes para o painel não estão explicadas em nenhuma correspondência, e a própria ordem delas é apenas uma hipótese. No entanto, algumas conclusões podem ser esboçadas com base no estudo das correspondências e das reproduções. A primeira delas diz respeito a uma questão técnica. Na carta de Lemos a Portinari há a menção sobre a falta de pastilhas brancas e este pode ter sido um dos fatores de mudança no desenho inal. Com os prazos curtos e a urgência de entrega, a escolha pode ter sido pela diminuição do espaço branco em detrimento de um aumento das áreas cinza. Além disso, outro aspecto importante sobre a fatura do painel é a escolha por pastilhas, que de acordo com outra carta, desta vez enviada pelo BNI a Portinari, pode não ter acompanhado o projeto desde o seu início. A correspondência, de maio de 1952, airma: [...] o pagamento de Cr$ 60.000,00 (sessenta mil cruzeiros), correspondente às 3 últimas parcelas para a pintura de um mural, Carta de Candido Portinari a Carlos Lemos, de 23 de outubro de 1953. Acessada em www.portinari.org em 05/05/2013. 20 92 RHAA 22 As we agreed in our meeting at your residence, I forward glass mosaic samples of ‘vidrotil’. These samples belong to the current stock, which was already fully booked for your panel. There is enough white tablets for general background. I chose then the light gray tablet. White will only in panel designs itself.19 A few days later, Portinari answered Lemos letter with the following statement: I am sending the model to the wall according to the colors that sent me; just added a few rows of red vidrotil. I hope this does not cause disorder and that our panel does not suffer any modiication.20 Through the analysis of the three models that Portinari did [Figs. 11, 12 and 13] — at least the ones we have record by artist’s raisonné catalogue —and guided in by the above transcript excerpts, we have hypothesized that the irst model presented was the Figure 11. The white background and the wide red band subsequently reduced, support this suggestion. The second model [Fig. 12] has a drastic reduction in the red area, compared with the previous one. The white background is invaded by large spots grayscale, keeping just like previous study reminiscent of the black fence. Finally, the one that seems to be the last test [Fig. 13], because of its similarity to the actual panel, shows more uniformity in the distribution of tones. Variations in the gray scale decreases and the the design becomes contained within the lines. Changes in models for the panel are not explained in any correspondence, and the very order of them is only a hypothesis. However, some conclusions can be drawn based on the study of correspondences and reproductions. The irst concerns a technical issue. In the letter of Lemos Portinari there is the mention of the lack of white tablets and this may have been one of the factors of change in the inal drawing. With short deadlines Letter from Carlos Lemos to Candido Portinari of October, 12, 1953. Accessed on www.portinari.org on 05/05/2013. The letter precedes the news published by the newspaper Folha da Manha, referred to above, raising the possibility that the press was informed of the panel theme change subsequent to December 1953. 20 Candido Portinari letter to Carlos Lemos, October, 23, 1953. Accessed on www.portinari.org on 05/05/2013. 19 Muralismo em são Paulo and delivery of urgency, the choice may have been the decrease of white space at the expense of an increase in gray areas. In addition, another important aspect of the panel making is the choice for tablets, which according to another letter, this time sent by BNI to Portinari, may not have followed the project since its inception. The correspondence from May 1952, states: [...] The payment of Cr$ 60,000.00 (sixty thousand cruises), corresponding to the last 3 plots for the painting of a mural, to be performed in Building and Gallery California, under construction in this city.21 Although the terms “paint of a mural” may have been used randomly, it raises the possibility that Portinari have prepared himself for a big wall, with what he had been worked with for at least a decade and a half. The only exception to this modus operandi would be the contemporary panel Bandeirantes, to the Hotel Comodoro, made, as seen in glass mosaic. The recent Portinari experience with the Hotel Comodoro may have set a new parameter for this type of work. The rapid placement of the pads, as well as the fact that the artist would be able to coordinate the project from a distance, may have been providential to the new conditions established to the work of art in late 1953.22 A dating problem should be exposed here: the project for Gallery California, as well as the ordering for Portinari's panel are from 1951 — year in which were listed in the artist raisonné catalog the models exposed and commented above. However, the analysis of the documentation for this panel, also brought by cataloging from the Portinari Project, leads us to believe that abstract studies can not be prior to the conversation between Lemos and Portinari, dated of October 1953. 21 Letter from National Real Estate Bank to Candido Portinari, May, 7, 1952. Accessed www.portinari.org.br on 05/05/2013. 22 The work performed in this way really allowed to speed up the invoice of the panels, as shown by Carlos Lemos, in a letter to Portinari (10.12.53): "[...] The wall is already being prepared and in a week ‘vidrotil' (the gloss mosaic company) shall perform the services that were ordered. "Letter from Carlos Lemos Candido Portinari the of 12 October 1953. Accessed on www.portinari.org on 05/05/2013. a ser efetuada no Edifício e Galeria Califórnia, em construção nesta Capital.21 Embora os termos “pintura de um mural” possam ter sido usados aleatoriamente, eles levantam a possibilidade de Portinari ter se preparado para um grande mural, com os quais já trabalhava havia pelo menos uma década e meia. A única exceção a este modus operandi seria o contemporâneo painel Bandeirantes, para o Hotel Comodoro, feito, como visto, de pastilhas vítricas. A recente experiência de Portinari com o Comodoro pode ter estabelecido um novo parâmetro para esse tipo de obra. A colocação rápida das pastilhas, bem como o fato de o artista poder coordenar o projeto a distância, podem ter sido providenciais às novas condições que se estabeleceram à obra no inal de 1953.22 Um problema de datação deve ser exposto aqui: o projeto da Galeria Califórnia, bem como a encomenda do painel de Portinari, são de 1951 — ano em que foram catalogadas no raisonné do artista as maquetes expostas e comentadas acima. Contudo, a análise da documentação referente a este painel, também trazida pela catalogação do Projeto Portinari, nos leva a crer que os estudos abstratos não podem ser anteriores à conversa entre Lemos e Portinari, datada de outubro de 1953. Do mesmo modo, existe ampla documentação, entre artigos de jornais, recibos, cartas e testemunhos, que atestam a pretensão do artista em fazer um painel sobre as bandeiras paulistas. O artista Luiz Ventura, assistente de Portinari na fatura dos murais, explicou, em depoimento ao Projeto Portinari: [...] E ele voltou a fazer toda essa série, e muitos outros projetos, como o de um bandeirante, para um edifício em São Paulo; no lugar do projeto original foi realizado um outro trabalho, o único trabalho abstrato dele que eu conheço, na entrada de uma galeria [...]. Na Barão de Itapetininga. O projeto dele, que ele queria pintar, eram uns bandeirantes a cavalo, aquele negócio todo. Depois acabou realizando um trabalho em pastilhas, é um trabalho abstrato.23 Carta do Banco Nacional Imobiliário a Candido Portinari, de 7 de maio de 1952. Acessado em www.portinari.org.br, em 05/05/2013. 22 Os trabalhos executados desta forma permitiam realmente agilizar a fatura dos painéis, como atesta Carlos Lemos, em carta enviada a Portinari (12/10/53): “[...] A parede já está sendo preparada e numa semana a ‘Vidrotil’ executará os serviços a ela encomendados”. Carta de Carlos Lemos a Candido Portinari, de 12 de outubro de 1953. Acessada em www.portinari.org, em 05/05/2013. 23 Depoimento de Luiz Ventura, 1983. Acessado no Projeto Portinari, Rio de 21 RHAA 22 93 Patrícia M. s. Freitas Além de corroborar a hipótese da mudança da pintura para as pastilhas, Ventura conirma ainda a opção pelo igurativismo, com o tema dos bandeirantes. A despeito das fontes nos permitirem assegurar que entre 1951 e 1953 Portinari trabalhou com a encomenda de um painel histórico,24 não há qualquer menção aos estudos que ele possa ter feito nas maquetes catalogadas pelo Projeto Portinari. Ainda assim, novamente algumas possibilidades podem ser avultadas. Embora o catálogo raisonné descreva a maquete Bandeirantes [Fig. 14] como “maquete para pintura mural ou painel ‘Bandeirantes’, não executada”, sem vinculá-la ao projeto da Galeria Califórnia, pela proximidade temporal dos estudos com o painel abstrato, é possível inferir serem estes projetos que ocupavam Portinari na época do painel encomendado por Niemeyer, em 1951. Além disso, a descrição de Ventura dos “bandeirantes a cavalo” bate com a maquete em questão, eliminando a possibilidade de este ser um estudo para o Hotel Comodoro, por exemplo. Em outro esboço homônimo, o artista projeta seu desenho em um plano inclinado, pintando uma extremidade maior do que a outra [Fig. 15]. Observando o espaço em que está o painel deinitivo, percebe-se a sugestão de diálogo que a inclinação do estudo estabelece com a rampa entre o andar térreo e o subsolo, no hall de entrada para o então Cine Barão [Fig. 16]. A mudança de tema pode, inclusive, ter gerado problemas quanto à adequação do novo esboço para a parede, uma vez que percebemos uma faixa entre o inal do painel de Portinari e a quina. Este espaço foi preenchido com pastilhas cinzas, mas ainda é possível notar claramente onde a obra termina [Fig. 17]. Por im, outra importante questão levantada pelo estudo do painel de Portinari é a opção do artista por um painel abstrato ainda no início da década de 1950. A escolha pelo abstracionismo na esfera dos painéis é tardia, e só ganhou força na década de 1960. Ainda assim, algumas exceções na década de 1950 podem ser somadas ao painel de Portinari, como o painel de Di Cavalcanti para o Ed. Montreal. Janeiro, maio de 2013. 24 Como o recibo datado de 1951, enviado por Portinari ao Banco Nacional Imobiliário atesta: “Recebi do Banco Nacional Imobiliário S.A., a importância de Cr$ 20.000,00 (vinte mil cruzeiros), como a 9ª prestação do pagamento para a execução de um mural de 18x5x3 representando cenas relativas à vida brasileira ou ao teatro. Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1951, Candido Portinari.” Recibo consultado no acervo do Projeto Portinari, Rio de Janeiro, maio de 2013. 94 RHAA 22 Likewise, there is ample documentation, newspaper articles, receipts, letters and testimonies that prove the claim of the artist to make a panel on the São Paulo Bandeiras. The artist Luiz Ventura, Portinari assistant in the making of the murals, said in testimony to the Portinari Project: [...] And he returned to make this whole series, and many other projects, like a bandeirantes, to a building in São Paulo; instead of the original project, was carried out another job, the only abstract work that I know, at the entrance of a gallery [...]. In Barão de Itapetininga. His project, he wanted to paint, were bandeirantes on horseback, that whole thing. Afterwards he ended up just doing a job in glass mosaic, is an abstract work.23 In addition to supporting the hypothesis of the changes from painting to glass mosaic, Ventura also conirms the choice of igurative, with the theme of the bandeirantes. Despite the historical sources allowing us to ensure that between 1951 and 1953 Portinari worked with the commissioning of a historical panel 24, there is no mention of studies that he may have made in the models cataloged by the Portinari Project. Yet again some possibilities can be substantial. Although the raisonné catalog describes the model Bandeirantes [Fig. 14] as “model for mural or panel ‘Bandeirantes’ not executed”, without linking it to the Gallery California project, due to the temporal proximity of studies with the abstract panel, one can infer that these projects occupied Portinari by the same time of the panel commissioned by Niemeyer, in 1951. In addition, the description of the Ventura “bandeirantes on horseback” matches the model in question, eliminating the possibility of this being a study for the Hotel Comodoro, for example. In another homonymous sketch, the artist projects his design on an inclined plane, painting a Luiz Ventura’s testimony, 1983. Accessed at the Portinari Project, Rio de Janeiro, May 2013. 24 As the receipt dated of 1951, sent by Portinari to the National Real Estate Bank attests: “I received the National Real Estate Bank SA, the importance of Cr $ 20,000.00 (twenty thousand cruises), as the 9th installment of the payment for the execution of a wall of 18x5x3 depicting scenes for the Brazilian life or the theater. Rio de Janeiro, November 19, 1951, Candido Portinari.” Receipt consulted in the collection of the Portinari Project, Rio de Janeiro, May 2013. 23 Muralismo em são Paulo higher end than the other [Fig. 15]. Noting the space in which is the inal panel, we see the suggestion of dialogue that the study slope down to the ramp between the ground loor and the basement, in the lobby for then Cine Barão [Fig. 16]. The change of topic may even have caused problems on the adequacy of the new draft to the wall, once we igured a range between the end of Portinari's panel and the corner. This space was illed with gray mosaic, but you can still clearly see where the work ends [Fig. 17]. Finally, another important issue raised by the Portinari panel study is the artist’s choice of an abstract panel still in the early 1950. The choice of abstraction in panels’ area is late, and only gained strength in the 1960s. Still, some exceptions in the 1950s can be added to the Portinari panel, as Di Cavalcanti panel for Ed. Montreal. Despite this, and the fact that Portinari himself already presented in his formal research an approach with geometrical forms, the work of the Gallery California can be regarded as exceptional in the artist’s career. Black fence, irm and superimposed on color bands ranging in shades of gray, in no way resembles the heavily populated panels that Portinari had done up to that point. The pure lines only return to occupy the artist's work in the 1960s, with the statement of abstract experiences in Brazil. As an example very close to California Gallery, and in turn, to Portinari’s panel itself, we can point to the work of the Italian Bramante Buffoni, at Nova Barão Gallery, a few meters from the Niemeyer building, still in Barão de Itapetininga Street. The information on this project, supposedly made by the architect Maria Bardelli, or Barelli,25 The name of the architect Maria Barelli on these projects, is controversial and requires further investigation, as it in the thesis of Maria Cristina André (FAU/USP, 1989), the architect responsible for the Nobel building would be Maria Bardelli not Maria Barelli. In the thesis of Elizabeth Ruas, (FAU/USP, 2000), the name linked to this project is that of Maria Barelli. For the Nova Barão Gallery project, the information is even more incomplete, and the note on the participation of Maria Barelli in the project appears in a journal of the period of the launch of the building, reproduced at http: //www.novabarao.blogspot. com.br/ (accessed 03/2012), a blog maintained by a former caretaker of Gallery. For more information, see: COELHO, Elizabeth RUAS. Painéis na arquitetura moderna paulista - 1945 - 1964. Master's thesis at the Faculty of Architecture and Urbanism at the University of Sao Paulo, 2000, p. 216. A despeito disso, e de Portinari já apresentar em sua pesquisa formal uma aproximação com as formas geometrizadas, a obra da Galeria Califórnia pode ser considerada excepcional dentro da carreira do artista. O gradil preto, irme e sobreposto às faixas de cores que variam em tons de cinza, em nada se assemelha aos altamente povoados painéis que Portinari já havia feito até aquele momento. As linhas puras só voltariam a ocupar as obras do artista na década de 1960, com a airmação das experiências abstratas no Brasil. Como um exemplo muito próximo à Galeria Califórnia, e por sua vez, ao próprio painel de Portinari, podemos apontar a obra do italiano Bramante Buffoni, na Galeria Nova Barão, a poucos metros do edifício de Niemeyer, ainda na Rua Barão de Itapetininga. As informações sobre este projeto, supostamente da arquiteta Maria Bardelli, ou Barelli,25 para uma galeria a poucos metros do Teatro Municipal, ainda guardam muitas lacunas. É certo que a dobradinha mais famosa entre Portinari e Niemeyer suscitou um volume maior de estudos, deixando a obra de Buffoni ainda pouco conhecida no Brasil. A Galeria Nova Barão possui a fachada frontal integralmente decorada com pastilhas cerâmicas coloridas em tons de azul, vermelho, amarelo e verde. Nas altas empenas laterais, o artista usou padrões geométricos, criando o efeito de grandes portões ornamentados, que emolduram a galeria e se abrem ao passante, a convidá-lo para que adentre [Fig. 18]. Embora a obra do artista italiano tenha quase uma década de distância do painel abstrato de Portinari, o diálogo se estabelece nas espessas linhas pretas e nos blocos cromáticos, escolhas de ambos os artistas. Interessante notar ainda que a opção de Portinari pelo abstrato não foi de modo algum ignorada pela crítica. A recepção da obra parece ter sido, de algum modo, uma preocupação 25 O nome da arquiteta Maria Barelli, ligado a estes projetos, é controverso e requer apuração, uma vez que na tese de Maria Cristina André (FAU/USP, 1989), a arquiteta responsável pelo Edifício Nobel seria Maria Bardelli e não Maria Barelli. Já na tese de Isabel Ruas, (FAU/USP, 2000), o nome vinculado a este projeto é o de Maria Barelli. Para o projeto da Galeria Nova Barão, as informações são ainda mais incompletas, e a nota sobre a participação de Maria Barelli no projeto aparece em um periódico da época do lançamento do edifício, reproduzido no site http://www.novabarao.blogspot.com.br/ (acesso em 03/2012), um blog mantido por um ex-zelador da Galeria. Para mais informações, ver: COELHO, Isabel Ruas. Painéis em mosaico na arquitetura moderna paulista – 19451964. Dissertação de Mestrado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2000, p. 216. 25 RHAA 22 95 Patrícia M. s. Freitas do artista e da construtora, como mostra a carta de Portinari à Companhia Nacional de Investimentos, em 23 de outubro de 1953: “Apesar do pouco tempo para concepção e realização, estou certo de que terá o mesmo acolhimento por parte do público de meus outros trabalhos”.26 A crítica mais contundente de seu trabalho veio do crítico de arte Mario Pedrosa, que, em artigo de março de 1954, acusou Portinari de não saber: [...] desgraçadamente resistir à melancólica faceirice de sair de saias acima dos joelhos27 para perpetrar também o seu grotesco ‘Mondrian’ em vidrotil numa parede deste aborto colossal de Niemeyer que é o prédio Califórnia da rua Barão de Itapetininga, em S. Paulo.28 A crítica mostra o incômodo de Pedrosa, diante de uma escolha demonstradamente não óbvia para o conjunto de obras do artista, mas também para um mural. Sem o intuito de nos apegarmos a esta ou àquela hipótese, na ânsia de encontrar respostas, cabe ressaltar o quanto as diversas reviravoltas em torno da execução destes painéis nos informam sobre o trabalho conjunto entre artistas e arquitetos. As decisões não eram unânimes. Nem tampouco os prazos dos pintores sincronizavam-se com os das empreiteiras. As adversidades surgidas deste projeto especíico ilustram como a integração do processo criativo de dois grandes campos das artes, como as artes plásticas e a arquitetura, poderia ser complexa. for a gallery just meters from the Municipal Theatre, still retains many gaps. Certainly the most famous double between Portinari and Niemeyer has led to a greater volume of studies, leaving the work of Buffoni still little known in Brazil. The Nova Barão Gallery has a full front facade decorated with colorful ceramic inserts in blue, red, yellow and green. In the high side gables, the artist used geometric patterns, creating the effect of large ornate gates that frame the gallery and open to the passer-by, inviting them to step inside [Fig. 18]. Although the Italian artist's work is nearly a decade away from abstract Portinari’s panel, the dialogue is established on the thick black lines and chromatic blocks, choices of both artists. It is interesting to notice that Portinari’s option for abstraction was by no means ignored by critics. The reception of the work seems to have been, in some way, a concern of the artist and builder, as shown in the letter from Portinari to the National Investment Company, on October 23, 1953: “Despite the short time to design and production, I am sure you will have the same reception by the public of my other works.”26 The major criticism of his work came from the art critic Mario Pedrosa, who in March 1954 wrote an article accusing Portinari of not knowing: [...] disgracefully how to resist to the melancholy coquetry of going out on skirts above the knees27 to also perpetuate his grotesque 'Mondrian' in glass mosaic on a wall of this colossal abortion by Niemeyer which is the California Building of Barão de Itapetininga, in São Paulo.28 The criticism shows the hassle of Pedrosa, before a demonstrably not obvious choice for the artist’s works set, but also for a mural. Without the purpose of holding on to this or that hypothesis, in the eagerness to ind answers, one point out how the various twists around the implementation of these panels tell us about the joint work between artists and architects. The decisions were not unanimous. Neither the terms of Carta de Portinari aos diretores da Companhia Nacional de Investimentos, de 23 de outubro de 1953. Acessada em www.portinari.org.br em 05/05/2013. 27 Referindo-se a certos modismos da época. 28 diário Carioca, 14 de março de 1954. 26 96 RHAA 22 Portinari letter to the directors of the National Investment Company, October 23, 1953. Accessed on www. portinari.org.br on 05/05/2013. 27 Referindo-se a certos modismos da época. 28 diário Carioca, 14 de março de 1954. 26 Muralismo em são Paulo painters were always in harmony with those of contractors. The adversities arising from this speciic project illustrate how the integration of the creative process of two major ields of the arts, such as ine arts and architecture, could be complex. RHAA 22 97 Muralismo em são Paulo 1 3 1 Clóvis Graciano. Bandeirantes, 1952/53. Edifício Hotel Jaraguá, antiga sede do jornal o estado de s. Paulo (Centro). Arquitetos: Adolf Franz Heep e Jacques Pilon. 2 Edifício Hotel Jaraguá, antiga sede do jornal o estado de s. Paulo (Centro). Arquitetos: Adolf Franz Heep e Jacques Pilon. 3 Emiliano Di Cavalcanti. sem título (a imprensa), 1952. Edifício Hotel 2 Jaraguá, antiga sede do jornal o estado de s. Paulo (Centro). Arquitetos: Adolf Franz Heep e Jacques Pilon. RHAA 22 99 Patrícia M. s. Freitas 4 Benedito Calixto. domingos Jorge velho e o loco – tenente antônio Francisco de abreu, 1903. 5 Candido Portinari. Bandeirantes, 1951. Obra executada originalmente para decorar um dos salões do Hotel Comodoro, São Paulo, SP. Atualmente exposta no edifício Itaú S.A., coleção do Banco Itaú, São Paulo, SP. 4 6 Painel Bandeirantes no restaurante do Hotel Comodoro. Imagem tirada do jornal o estado de s. Paulo, 9/11/1992, Caderno Cidades. 5 6 100 RHAA 22 Muralismo em são Paulo 7 8 9 7 Candido Portinari. Estudo para a pintura mural em mosaico Bandeirantes, 1951. 8 Candido Portinari. Cartão para a pintura mural em mosaico Bandeirantes, 1951. 9 Galeria Califórnia (Centro). Arquiteto: Oscar Niemeyer. RHAA 22 101 Patrícia M. s. Freitas 10 Candido Portinari. abstrato, c. 1954. 11 Candido Portinari. Maquete para o painel de pastilha de vidro para o painel abstrato, c. 1953. 12 Candido Portinari. Maquete para o painel de pastilha de vidro para o painel abstrato, c. 1953. 13 Candido Portinari. Maquete para o painel de pastilha de vidro para o painel abstrato, c. 1953 10 11 12 13 102 RHAA 22 Muralismo em são Paulo 14 15 16 14 Candido Portinari. Maquete para a pintura mural ou painel Bandeirantes, não executada, c. 1951. 15 Candido Portinari. Maquete para a pintura mural ou painel Bandeirantes, não executada, c. 1951. 16 Galeria Califórnia (Centro). Arquiteto: Oscar Niemeyer. Detalhe do desnível para entrada do antigo Cine Barão. RHAA 22 103 Patrícia M. s. Freitas 17 17 Galeria Califórnia (Centro). Arquiteto: Oscar Niemeyer. 18 Bramante Buffoni, sem título, 1962, mosaico de cerâmica esmaltada sobre parede. Edifício Galeria Nova Barão, (Centro). Arquitetos: Ermano Sifredi e Maria Barelli/Bardelli. 104 18 RHAA 22 Um Giacomo Balla em São Paulo: a busca pela origem de Paisagem A Giacomo Balla in São Paulo: he search of the origin of Landscape MARINA BARzON SILVA* Bacharelado em História em andamento na Faculdade de Filosoia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Undergraduate student of History at the Faculty of Philosophy, Letters and Human Sciences, University of São Paulo O artigo seguinte propõe uma análise da obra de Giacomo Balla, Paisagem, 1907, do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, desenvolvendo possíveis hipóteses que expliquem sua aquisição por Francisco Matarazzo Sobrinho no contexto da formação do antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo, considerando sua importância para a coleção de ambos os museus, bem como seu lugar na produção do artista e no ambiente artístico italiano e paulista. As relexões aqui apresentadas fazem parte da conclusão da pesquisa de iniciação cientíica desenvolvida pela autora sob orientação da Profa. Dra. Ana Gonçalves Magalhães. RESUMO Giacomo Balla, Arte Moderna Italiana, Divisionismo, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. PALAVRAS-CHAVE AbSTRACT The following paper proposes an interpretation of the work by Giacomo Balla, Landscape, 1907, in the collection of the Museum of Contemporary Art of the University of São Paulo, developing hypotheses to explain its acquisition by Francisco Matarazzo Sobrinho in the occasion of formation of the former Museum of Modern Art of São Paulo, searching its importance to the collection of both museums as well as its place on the production of the artist and in the São Paulo and Italian artistic context. The relections presented here are part of the conclusion of an undergraduate research developed by the author under the orientation of Prof. PhD. Ana Gonçalves Magalhães. Giacomo Balla, Italian Modern Art, Divisionism, Museum of Contemporary Art of the University of São Paulo. KEywORdS Marina Barzon Silva possui Bacharelado em História em andamento na Faculdade de Filosoia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, estagiária do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Desenvolveu iniciação cientíica com bolsa concedida pelo CNPq sobre a obra Paisagem de Giacomo Balla no acervo MAC-USP, sob a orientação da Profa. Dra. Ana Gonçalves Magalhães. / Marina silva Barzon is undergraduate student of history at the Faculty of Philosophy, letters and human sciences, university of são Paulo, intern at the Museum of Contemporary art of the university of são Paulo. developed an undergraduate research with scholarship granted by CNPq about the work landscape by giacomo Balla on the collection of MaC-usP, under the guidance of Professor ana gonçalves Magalhães. * RHAA 22 105 Marina barzon silva Este artigo é resultado de uma iniciação cientíica desenvolvida no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) sob orientação da Professora Doutora Ana Gonçalves Magalhães, que só foi possível graças à bolsa concedida à autora pelo CNPq. Em 1962, a dissolução do antigo MAM de São Paulo resultou na criação do MAC USP, um museu público criado para receber e administrar essa coleção de arte moderna. Em meio a essas obras estava Paisagem, 1907, de Giacomo Balla [Fig. 1], a obra mais recuada cronologicamente de toda a coleção do museu, pertencente à fase Divisionista do artista. Balla nasceu em Turim (Itália) em 1871, e no início de sua carreira, assim como muitos outros artistas italianos da virada do século, adotou o Divisionismo como técnica artística. O Divisionismo italiano nunca foi um movimento uniicado, unitário, mas foi a escola mais inluente no país no inal do ottocento. Em sua formação, além da importância de artistas italianos como Pellizza da Volpedo e Giovanni Segantini, Balla sofreu também a inluência de artistas franceses, perceptível especialmente em sua produção posterior à estada em Paris, em 1900, sendo as principais inluências as correntes impressionista e divisionista francesa. A denominação mais frequentemente encontrada na literatura para esse último movimento é o pontilhismo e não o divisionismo francês. A refuta ao termo mais comum neste artigo se dá por duas fontes relevantes ao tema tratado, sendo a primeira delas o livro d’eugène delacroix au Neo-impressionismme, no qual Paul Signac, artista e teórico do movimento, airma que o termo pontilhismo seria usado erroneamente por um público que acreditaria que esses artistas simplesmente pontilham a tinta sobre a tela, sendo que na realidade a unidade do movimento estaria na ação de dividir as cores da imagem para que essas se misturassem na retina do expectador. É também a denominação empregada ao referir-se a esses artistas na XXVI Biennale di Venezia, em 1952, edição que apresentou salas retrospectivas tanto do movimento francês quanto do italiano, nas quais duas das obras expostas eram de Giacomo Balla.1 Há uma clara diferença técnica entre o divisionismo italiano e o francês. Os franceses não misturavam os pigmentos em suas paletas, e construíam suas imagens apenas com pontos CatÁlogo – XXvi BieNNale di veNeZia. Veneza, Biennale Internazionale D’arte, 1952. 1 106 RHAA 22 This essay is the result of an undergraduate research developed at the Museum of Contemporary At of the University of São Paulo (MAC USP) under the supervision of Prof. Dr. Ana Gonçalves Magalhães and it was only possible thanks to the scholarship granted by CNPq. In 1962 the dissolution of the former Museum of Modern Art of São Paulo resulted in the foundation of the MAC USP, a public museum, created to house and administrate MAM’s collection of modern art. Among those works was landscape, 1907, by Giacomo Balla [Fig. 1], the oldest work of the museum’s collection, chronologically speaking, belonging to Divisionist phase of the artist. Balla was born in Turin in 1871 and in the beginning of his carrer adopted Divisionism as technique, like many other Italian artists of the turn of the century. The Italian Divisionism was never a uniied movement, but was the most inluential school in the country at the end of the ottocento. In his studies, besides the importance of Italian artists such as Pellizza da Volpedo and Giovanni Segantini, Balla was also inluenced by French artists, noticeable especially in his production after his stay in Paris, in 1900 the main inluences being that of French impressionism and divisionism movements. The most frequently used term found in the historiography for this last movement is Pointillism, not French Divisionism. The refusal to use this most common term in this article is given by two relevant sources to this research, the irst being the book d’ eugène delacroix au Neo-impressionisme, in which Paul Signac, artist and theoretician of the movement, states that the term Pointillism is misused by an audience who believes that these artists simply dot the paint on the canvas, whereas the unity of the movement is in dividing the colors of image to mingle in the retina of the viewer. This is also the term used to refer to these artists in the XXVI Biennale di Venezia, 1952, edition that presented retrospective rooms of both the French and the Italian movements, and in which two of the works exhibited were by Giacomo Balla.1 There is a clear technical difference between the Italian and French Divisionism. The French do not mix the pigments in their palettes, and build their images only with dots on the canvas, according to 1 Catalogo- XXvi BieNNale di veNeZia. Veneza, Biennale Internazionale D’arte, 1952. Giacomo balla: Paisagem Signac, who claims these artists: na tela, de acordo com Signac, que airma que os artistas Ensure all the beneits of lighting, coloring and harmony by: 1st - optical mixing of only pure pigments (all the inks of the prism and all its shades); 2nd - separation of various elements (local color, illumination color, their reactions, etc.).2 In turn, the Italians could also use premixed colors, and strokes, not just points in the composition of their igures, technique noticeable when observing landscape. There is, however, a history of comparison between such movements that legitimate the interpretation of the Italian Divisionism as a mere reflection of its French version, not as movement on its own. Argan points that from Romanticism the center of arts moved from Italy, which was prevalent for centuries, to France, which then began to occupy the position of dictator of stylistic tendencies in European art. This explains, therefore, the attempt to read the Italian art movements thereon in the framework of their French counterparts3. Argan points to that the most signiicant facts of Italian art of ottocento as a whole, including the Divisionism, are given entirely in relation to French Art, Asseguram-se todos os benefícios da luminosidade, da coloração e da harmonia através de: 1º – a mistura óptica dos pigmentos unicamente puros (todas as tintas do prisma e todos seus tons); 2º – a separação de diversos elementos (cor local, cor de iluminação, suas reações etc.).2 Já os italianos poderiam também utilizar cores previamente misturadas, além de pinceladas, e não apenas pontos na composição de suas iguras, técnica perceptível ao observar-se Paisagem. Há, no entanto, um histórico de comparações entre os movimentos que legitimariam a interpretação de que o divisionismo italiano é um mero relexo de sua vertente francesa e não um movimento próprio. Argan aponta que a partir do Romantismo o centro das artes plásticas se transferiu da Itália, onde foi predominante por séculos, para a França, que passou então a ocupar a posição de ditadora de tendências estilísticas na arte europeia. Isso justiicaria, portanto, a tentativa de tornar equivalentes os movimentos italianos aos franceses.3 Argan airma que os fatos mais signiicativos da arte italiana do ottocento como um todo, inclusive do Divisionismo, se dão inteiramente em relação com os da arte francesa. being that of direct contact or mere resonances, while retaining nonetheless an accent that, while reducing its importance characterizes as positive moments of a parallel of a cultural process to a political one, by the time Italy acquires dignity and function of an European nation.4 The idea of the Italian movement as a not successful out spring of the French, would be then according to the historiography of art for long in force, and that still has its consequences, which SIGNAC, Paul. d’eugène delacroix au Neo-impressionismme, Paris, 1889. Author’s translation, originally: “S’assurer tous les bénéices de la luminosité, de la coloration et de l’harmonie, par : 1° Le mélange optique de pigments uniquement purs (toutes les teintes du prisme et tous leurs tons); 2° La séparation des diver séléments (couleur locale, couleur d’éclairage, leurs réactions, etc.).” 2 ARGAN, Giulio Carlo. história da arte italiana, v.3 De Michelangelo ao Futurismo.São Paulo, Cosac & Naify, 2003, p. 161. 4 ibid., p. 424. 3 [...] trata-se de contato direto ou meras ressonâncias, conservando, todavia um acento que, enquanto reduz a sua importância, caracteriza-se como momentos positivos de um processo cultural paralelo ao da política mediante o qual a Itália adquire dignidade e função de nação europeia.4 A interpretação errônea do movimento italiano como uma ramiicação não bem-sucedida do francês seria então acordada pela historiograia da arte por muito tempo vigente, e que até hoje possui seus relexos, que buscaria uniformizar os modelos e então os encaixaria em uma teoria evolucionista e internacional, SIGNAC, Paul. d’eugène delacroix au Neo-impressionismme, Paris, 1889. Tradução da autora, no original: “S’assurer tous les bénéices de la luminosité, de la coloration et de l’harmonie, par: 1ère Le mélange optique de pigments uniquement purs (toutes les teintes du prisme et tous leurs tons); 2ème La séparation des divers éléments (couleur locale, couleur d’éclairage, leurs réactions, etc.)”. 3 ARGAN, Giulio Carlo. história da arte italiana, v.3 De Michelangelo ao Futurismo. São Paulo, Cosac & Naify, 2003, p. 161. 4 idem, p. 424. 2 RHAA 22 107 Marina barzon silva deixando de lado características e tendências mais locais mesmo dentro de seu centro, a Europa. Parte da diplomacia artística italiana no período do entreguerras, que teve como instituição fundamental o sindicato Nazionale Fascista de Belle arti, tentou, de forma não muito efetiva, reverter essa situação, buscando, por meio de exposições de arte italiana no exterior, mostrar como a arte italiana do século XVIII teve suas características particulares. Assim, o modo como o movimento é retomado em Veneza em 1952 é coerente com seu tratamento historiográico legitimado de até então, ao lado de seu “equivalente” francês. A retrospectiva, no entanto, é signiicativa, e as obras de Balla expostas nessa edição da Biennale são de certa forma uma síntese de seu trabalho Divisionista, representantes dos dois principais gêneros nos quais se dividem sua produção no movimento, sendo lavoro, 1902, um exemplo da pintura de vertente social, frequente na produção do movimento italiano como um todo, e apontado,5 inclusive, como uma diferença fundamental entre seu “respectivo” francês, e elisa a villa Borghese, também de 1902, um exemplo da pintura de gênero explorada por Balla durante toda a primeira década do século, vertente com a qual a obra do MAC-USP dialoga. Em Paisagem, observamos duas iguras: uma mulher e uma criança, possivelmente mãe e ilha, em um caminho cercado de árvores. As cores utilizadas pelo artista sugerem uma aproximação à obra ritratto – roesler Franz a villa d’este, de 1902, primeira obra de Balla a ser apresentada em uma Biennale di Venezia, na edição de 1903. Além dessa obra, o tríptico Maggio, 1906, e Modella tra due paesaggi, 1905, ou até mesmo o quadro la pazza, 1905, apresentam uma paleta e um tratamento de superfície que se aproximam da obra do MAC-USP. Balla utiliza, para essas obras, uma paleta de cores claras e suaves de ocres, rosas, azuis e verdes, que em Paisagem auxiliam na captura da luz natural adentrando através das árvores, uma luminosidade delicada que contrasta com a luz estridente que o artista representa do lado de fora do caminho. Uma breve análise do Catálogo Geral de obras do artista sugere que as iguras representadas seriam provavelmente a esposa do artista, Elisa, e uma de suas ilhas; se a datação do quadro estiver efetivamente correta, seria Luce, que teria entre dois e três anos na época. Segundo Maurizio Fagiolo dell’Arco, seek to standardize the models and then it into an evolutionary and international theory, leaving aside local trends and characteristics even within its center, Europe. Part of the Italian artistic diplomacy in the interwar period, which had as its fundamental institution the sindicato Nazionale Fascista de Belle arti, tried, not very effectively, to reverse this situation, seeking to show how Italian art of the 19th century had its own particular characteristics through exhibitions of Italian art abroad. Thus, the way the movement is echoed in Venice in 1952 is consistent with the historiography legitimized of that time, side by side with its French “equivalent”. The retrospective is, however, signiicant and works by Balla exhibited in this edition of the Biennale are somehow a synthesis of his Divisionist period, representative of the two main genres he worked with then, being lavoro, 1902, an example of the social painting, often in the production of the Italian movement as a whole (and even pointed out5 as a fundamental difference between its French “counterpart”), and elisa a villa Borghese, also of 1902, an example of genre painting explored by Balla throughout the irst decade of the century - with which the work of the MAC USP dialogues. in landscape we observe two igures: a woman and a child, possibly a mother and a daughter on a path surrounded by trees. The colors used by the artist suggests an approach to ritratto - roesler Franz villa d’este, 1902, the irst work by Balla to be exhibited in a Biennale di Venezia, in the edition of 1903. In addition to this work, the triptych Maggio, 1906 and Modella tra due paesaggi, 1905, or even the canvas la pazza, 1905, feature a similar palette and surface treatment to that of the work of MAC USP. For these paintings, Balla uses a palette of light colors and soft ochre, pinks, blues and greens, that in landscape helps to capture the natural light entering through the trees, a gentle luminosity that contrasts with the piercing light that the artist depicts outside the path. A brief analysis of the General Catalogue of the artist’s works suggests that the igures depicted would probably the artist’s wife Elisa, and one of his daughters (in case the dating of the frame is actually correct Luce, who would have been beTEDESCHI, Francesco. il Futurismo Nelle arti Figurative (dalle origini divisioniste al 1916). Milano, Pubblicazioni dell’I.S.U. Università Cattolica, 1995. 5 TEDESCHI, Francesco. Il Futurismo Nelle arti Figurative (dalle origini divisioniste al 1916). Milano, Pubblicazioni dell’I.S.U. Università Cattolica, 1995. 5 108 RHAA 22 Giacomo balla: Paisagem tween 2 and 3 years by the time). Maurizio Fagiolo dell’Arco states that; “in the irst decade of the century, in a work destined to culminate in the triptych affetti, Balla gives a particular attention to his family life”.6 Also for the sake of consistency it can be inferred that the place portrayed would be Villa Borghese, a neighborhood in Rome where Balla lived since his marriage in 1904, which still would be according to dell’Arco the Mont Sainte-Victoire in Balla’s production - alluding to the constant landscape in the work of Cézanne, stating that in the same decade “in Balla’s studio there was a myriad of canvases that had as subject-matter nature, on this date, Villa Borghese is his ‘Sainte-Victoire Mountain’”,7 it would be for Balla the place of the “last image of nature within an urban agglomeration increasingly crazy, the landscape you can see from the window”.8 On the back of landscape, there is a sketch of a woman, again most likely to be Elisa, composed in one color (green) [Fig. 2]. Especially in the period between 1902 and 1905 Balla produced several portraits of Elisa that for dell’Arco deepened the experiments of the artist that he calls “tecnica del monocromo” used to show light in the composition, besides being an index of the importance of photography for the artist, a constant throughout Balla’s production, which would have its origin through the inluence of his father, a chemist and amateur photographer.9 Photographic techniques on vogue not only inluenced Balla, but artistic movements in general since Impressionism, when artists would then start to assume a crop of the image and a framework for their canvas similar to those of photography, besides giving emphasis to the snapshot, in their works. Later artists inherited this dynamic of mutual inluence. Bellonzi states that the invention of photography substantially deines the contours of the yet to be in the arts.10 in landscape, the composition that the artist makes of the major iguDELL’ARCO, Maurizio Fagiolo (org.). giacomo Balla 1895-1911 – verso il Futurismo, Venezia, Marsilio Editori, 1998, p.24 7 ibid., p.21. 8 ibid., p. 23. 9 GIGLI, Elena. “Giacomo Balla 1871-1911 – Quarant’anni di vita pubblica e privata.”, in: ARCO, Maurizio Fagiolo dell’ op. cit., 1998, p. 133. 10 BELLONzI, Fortunato. il divisionismo nella pittura italiana. Milano, Fabbri, 1967. 6 “No primeiro decênio do século, em uma obra destinada a culminar com o tríptico affetti, Balla volta uma atenção particular à sua vida familiar”.6 Também por uma questão de constância pode-se inferir que o local retratado seria a Villa Borghese, bairro de Roma onde Balla morou desde seu casamento, em 1904, que ainda segundo dell’Arco seria o Mont Sainte-Victoire da produção de Balla, aludindo à paisagem constante na obra de Cézanne, airmando que nessa mesma década “no estúdio de Balla se multiplicavam os quadros que tinham como sujeito a natureza. Nessa data, Villa Borghese é sua ‘Montanha Sainte-Victoire’”.7 Seria, para Balla, o local da “última imagem da natureza dentro de uma aglomeração urbana cada vez mais louca, a paisagem que se pode ver da janela”.8 No verso de Paisagem há o esboço da pintura de uma mulher, novamente a aposta mais provável é de que seria Elisa, composta monocromaticamente em verde [Fig. 2]. Especialmente entre o período de 1902 e 1905, Balla produziu diversos retratos de Elisa que, para dell’Arco, aprofundavam os experimentos do artista no que nomeia como ‘técnica del monocromo’, utilizada para evidenciar o valor da luz na composição, além de ser um indicativo da importância da fotograia para o artista, uma constante em toda a produção de Balla, que teria sua origem por inluência de seu pai, um químico e fotógrafo amador.9 As técnicas fotográicas em voga inluenciaram não apenas Balla, mas movimentos artísticos em geral desde o Impressionismo, quando os artistas teriam então começado a assumir um recorte da imagem e um enquadramento de suas telas, semelhantes aos da fotograia, além de valorizar a captura do imediatismo e do instantâneo em suas produções. Essa dinâmica de mútua inluência foi herdada por artistas posteriores. Bellonzi diz que a invenção da fotograia deine sensivelmente os contornos do porvir nas artes plásticas.10 Em Paisagem, a composição que o artista faz das iguras principais, não centralizadas, a ausência de um horizonte bem deinido, a profundidade mais chapada da imagem, que cria uma perspectiva abrupta, e o recorte de certa forma anguloso, além da pose, em especial da criança, de costas DELL’ARCO, Maurizio Fagiolo (org.). giacomo Balla 1895-1911 – verso il Futurismo, Veneza, MarsilioEditori, 1998, p. 24. 7 idem, p. 21. 8 idem, p. 23. 9 GIGLI, Elena. “Giacomo Balla 1871-1911 – Quarant’anni di vita pubblica e privata.”, in: DELL’ARCO, Maurizio Fagiolo. op. cit., 1998, p. 133. 10 BELLONzI, Fortunato. il divisionismo nella pittura italiana. Milão, Fabbri, 1967. 6 RHAA 22 109 Marina barzon silva ao observador, são elementos explorados por técnicas fotográicas do período reletidas na obra. Bellonzi airma ainda que a invenção do “rile fotográico”, de Étienne-Jules Marey, que permitia diversos registros em uma única placa, seria sentido na produção futurista de Balla, como no caso da obra Bambina che Corre sul Balcone, 1912. Há diversos estudos a respeito da fase futurista de Giacomo Balla. Sua fase Divisionista, no entanto, muitas vezes é considerada de menor importância, apenas um prelúdio de sua produção signiicativa. Em geral, essa fase da arte italiana é, inclusive, deixada de fora dos grandes manuais; e até mesmo Argan, escrevendo sobre a Arte Italiana, em sua produção história da arte italiana, dividida em três volumes, dedica apenas alguns parágrafos ao Divisionismo, apontando que sua maior contribuição para a arte do país teria sido a de produzir os protagonistas do movimento futurista. Argan argumenta que: O limite da última geração lombarda do século, aquela de Previati e Segantini foi adotar programaticamente uma linguagem moderna (e precisamente o Divisionismo, próximo do Pontilhismo de Seurat e do Neoimpressionismo francês) para exprimir conteúdos tradicionais, literários ou simbólicos: o modernismo como programa escolhido e executado, é o que impede a sua pintura de tornar-se verdadeiramente moderna. A alternativa do modernismo (evidente também no caráter paracientíico da técnica divisionista) era de todo modo, um caminho mais aberto do que a reativação de uma linguagem antiga.11 Já o Futurismo se insere muito mais na lógica da tradicional narrativa da história da arte do que o Divisionismo, por dialogar diretamente com seu centro, Paris, onde seus manifestos foram publicados pela primeira vez no jornal le Figaro. O Divisionismo italiano é, então, considerado por muitos uma arte menor, tanto no quadro internacional quanto na própria Itália quando comparado a movimentos de outros períodos; e até mesmo os divisionistas que adotaram posteriormente o Futurismo, inclusive Balla, assumiram uma atitude depreciativa em relação à sua produção anterior. O artista sublinha essa atitude no leilão que faz para venda de obras de seu período divisionista e que batiza de “trabalhos do Falecido Balla”.12 Outro indicativo importante é o ARGAN, Giulio Carlo. op. cit., 2003, p. 426. SILK, Gerald D. Fu Balla e Balla Futurista. Art Journal, Vol. 41, No 4 Futurism (Winter, 1981). 11 res, not centralized, the absence of a well-deined horizon, the depth, latter image, which creates an abrupt perspective, and the somewhat angular crop, beyond the pose, especially that of the child that gives her back to the viewer, are elements exploited by photographic techniques of the period relected in the work. Bellonzi also claims that the invention of the “photographic rile” of Étienne Jules Marey, allowing multiple records on a single board, would be felt in Balla’s futuristic production, as in the case of the work Bambina che Corre sul Balcone, 1912. There are several studies about Giacomo Balla’s futurist period. His Divisionist phase is, however, often considered of minor importance, only a prelude of his main production. In general, this phase of Italian art is even left out of the great handbooks, and even Argan, writing about Italian Art, in his history of Italian Art, divided into three volumes, devotes only a few paragraphs to Divisionism, pointing out that its greatest contribution to the art of the country would have been to produce the main artists of the futurist movement. Argan says that: The limit of the last Lombard generation of the century, that of Previati and Segantini was to programmatically adopt a modern language (and precisely Divionism, near the Pointillism of Seurat and the French Neo-Impressionism) to express traditional content, literary or symbolic: modernism as a chosen and executed program, is what prevents their works to become truly modern. The alternative of modernism (also evident in the para-scientiic character of the divionist technique) was, in any case, a more open path than the reactivation of an ancient language.11 In the case of Futurism, it falls more on the logic of the traditional narrative of art history than Divisionism, for it relates directly with its center, Paris, where their manifestos were irst published in the newspaper le Figaro. The Italian Divisionism is then considered by many a minor art, both internationally and in Italy itself when compared to movements of other periods and even divionist artists that later adopted Futurism, including Balla, assumed a disparaging attitude towards their previous production. The artist highlights this attitude in the auction sales of works of his divionist period 12 110 RHAA 22 11 ARGAN, Giulio Carlo. op. cit., 2003. p. 426. Giacomo balla: Paisagem that he baptizes “Works of deceased Balla”.12 Another important index is the fact that Balla even changes his signature on his works, originally signed Balla and starts to sign futurballa.13 The denial of the past is a very strong feature of the Futurist movement as a whole. Anne Bowler says that according to Marinetti, the futurist art should act as “an incendiary device, upholding the new values of speed, destruction, and violence necessary for a new age of Italian national grandeur”.14 This position would be justiied, partly due to the fact that previous attempts to regain the glory days of Italian art were all unsuccessful. Argan, however, says that turning to the past was never the problem for which Italian art could not be modernized, and the real reason for the author, the social, cultural and economic conditions of the country. Futurism, as its name suggests, believed in building a better nation turning all energy to the future, a negative avant-garde, which like others, have had a strong political position, assuming the role of artistic leadership of fascist politics during a brief period. Divisionism has approximations with the Futurist movement, even in the technical Manifesto of Futurist Painting, 1910, signed by Umberto Boccioni, Carlo Carrà, Luigi Russolo, Giacomo Balla and Gino Severini, when they say: fato de que Balla chega, inclusive, a mudar sua assinatura em suas obras; originalmente assinava Balla e passa a assinar futurballa.13 A negação do passado é uma característica muito forte do movimento Futurista como um todo. Anne Bowler airma que, segundo Marinetti, a arte futurista deveria agir como “incendiária, sustentando os valores da velocidade, destruição e violência necessárias para uma nova era da grandeza nacional da Itália”.14 Essa posição seria, em parte, justiicável uma vez que tentativas anteriores de retomar os tempos de glória da arte italiana foram todas mal-sucedidas. Argan, no entanto, airma que voltar-se ao passado nunca foi o problema pelo qual a arte italiana não conseguia se modernizar, sendo o verdadeiro motivo, para o autor, as condições sociais, culturais e econômicas do país. O Futurismo, como o próprio nome sugere, acreditava construir uma nação melhor, voltando toda a sua energia para o futuro, uma vanguarda negativa, que assim como outras teria tido um forte posicionamento político, assumindo o papel de bandeira artística da política fascista durante um breve período. O Divisionismo possui aproximações com o movimento Futurista; no próprio Manifesto técnico da Pintura Futurista, de 1910, assinado por Umberto Boccioni, Carlo Carrà, Luigi Russolo, Giacomo Balla e Gino Severini, os artistas airmam: Nós concluímos que a pintura não pode existir hoje sem o Divisionismo. Isso não é um processo que pode ser aprendido ou aplicado a seu bel prazer. Divisionismo, para a pintura moderna, é uma complementação inata a qual nós declaramos ser essencialmente necessária.15 We conclude that painting cannot exist today without Divisionism. This is not a process that can be learned and applied to their pleasure. Divisionism for modern painting is an innate complement, which we declare to be essentially necessary.15 This placement is partly justiied by the divisionist origin of many of the futurist painters, but it goes beyond. The manifesto stated that “to paint a human igure you should not paint it, it must depict all its surrounding atmosphere.” ,16 and after that, SILK, Gerald D. Fu Balla e Balla Futurista. Art Journal, Vol. 41, No. 4 Futurism (Winter, 1981). 13 ibid. 14 BOWLER, Anne. Politics as Art: Italian Futurism and Fascism. Theory and Society, Vol.20, No 6 (Dec. 1991), p. 763. 15 BOCCIONI, Umberto; CARRÀ, Carlo; RUSSOLO, Luigi; BALLA, Giacomo; SEVERINI, Gino. Manifesto técnico da Pintura Futurista. Published by the newspaper Poesia di Milano in April 11, 1910. 16 ibid. Essa assertiva é, em parte, justiicável pela origem divisionista de muitos dos pintores futuristas, porém vai além. No manifesto, airmam que: “para pintar uma igura humana não se deve pintá-la; deve-se representar toda sua atmosfera circundante”,16 e posteriormente que: “assim que o resultado (por eles almejados) 12 13 idem. BOWLER, Anne. Politics as Art: Italian Futurism and Fascism. Theory and Society, Vol. 20, No 6 (Dec. 1991), p. 763. Tradução da autora, no original : “an incendiary device, upholding the new values of speed, destruction, and violence necessary for a new age of Italian national grandeur”. 15 BOCCIONI, Umberto; CARRÀ, Carlo; RUSSOLO, Luigi; BALLA, Giacomo; SEVERINI, Gino. Manifesto técnico da Pintura Futurista. Publicado pelo jornal Poesia de Milão, em 11 de abril de 1910. 16 idem. 14 RHAA 22 111 Marina barzon silva for alcançado, vai ser prontamente admitido que tintas marrons nunca foram amaldiçoadas por baixo de nossa pele; vai ser descoberto que o amarelo brilha em nossa carne, que o vermelho arde, e o verde, azul e violeta dançam sobre feitiços silenciosos”.17 Assim como a primeira airmação tem um core Impressionista, a segunda o tem Divisionista, que questionaria o uso de cores terrosas. Signac chega a airmar que a tristeza de toda pintura vem do cinza e das cores terrosas.18 Declaram, por im, que “o movimento e a luz destroem a materialidade dos corpos”,19 uma ilosoia coerente com a de ambos os movimentos. O Divisionismo e o Futurismo teriam então semelhanças além da coincidência de alguns de seus artistas, como a busca por um embasamento cientíico para seus trabalhos, sendo o Divisionismo mais inluenciado por estudos sobre a luz; e o Futurismo, principalmente por estudos sobre o movimento e velocidade. Argan airma que o entusiasmo pelo cientíico que ambos os movimentos demonstram é de certa forma um entusiasmo romântico, pois os artistas defendem uma ideologia do progresso pela ciência, progresso esse em desfalque na Itália quando comparado a outros países europeus no período. No Manifesto dos Pintores Futuristas airmam que “aos olhos dos outros países, a Itália continua a terra dos mortos, a vasta Pompeia, branca com sepulcros. Mas a Itália está renascendo. O seu ressurgimento político será seguido por um ressurgimento cultural”.20 Balla foi então um dos artistas que transitaram entre essas tendências e possui, ainda, uma produção pós-futurista abstrata que, assim como sua fase divisionista, não é muito mencionada. No entanto, a ênfase dada à luz na composição de uma pintura pontuou o trabalho de Balla durante toda a sua produção, ainda que a iluminação e até mesmo a luz como objeto surgissem para o artista de modos diferentes em cada uma de suas fases. Quando aderiu ao movimento Futurista, Giacomo Balla já era um artista célebre e multifacetado, mentor de Umberto Boccioni e Gino Severini, ambos com obras no acervo do museu, com uma vasta produção tanto como pintor quanto como ilustrador e caricaturista, produção essa que acaba sendo muitas vezes negligenciada. Em consequência dessa falta de estudos sobre a produção do “as soon as the result (they targeted) is reached, we will be prompt to admitted that brown inks were never cursed beneath our skin, we will discover that yellow shines in our lesh, that red blazes, and green, blue and violet dance upon spells silent”17. As the irst statement has a core Impressionist; the second is the Divisionist, which questions the use of earthly colors.18 Signac even states that the sadness of the whole painting is gray and earthly colors. He declares after all that “movement and light destroy the materiality of bodies”,19 a coherent philosophy to both movements. Divisionism and Futurism would then have similarities beyond the coincidence of some of its artists, such as the search for a scientiic basis for their work, being Divisionism more inluenced by studies on the light, and Futurism mainly by studies of movement and speed. Argan even says that the enthusiasm for science that both movements show is somewhat of a romantic kind, as the artists advocate an ideology of progress in science, progress in embezzlement in Italy compared to other European countries in the period. In the Manifesto of Futurist Painters, they claim that “in the eyes of other countries, Italy is still the land of the dead, a vast Pompeii, white with tombs. But Italy is being reborn. Its political resurgence will be followed by a cultural resurgence.” .20 Balla was then one of the artists who moved between these trends, and also had a post-futuristic production, of abstract nature that as well as his divisionist phase is not very much mentioned. However, the emphasis on light in the composition of a painting can be found throughout his production, although the lighting and even light as an object emerge for the artist in different ways in each of his phases. When he joined the Futurists, Giacomo Balla was already a well-known and multifaceted artist, mentor of Umberto Boccioni and Gino Severini, both with works in the museum’s collection, with a wide production as a painter and as an illustrator and caricaturist - the latter often being neglected. As a result to this lack of studies on the artist’s production in the period, and the lack of documentation in the collection on the 17 idem. SIGNAC, Paul. op. cit., 1889. 19 BOCCIONI, Umberto; CARRÀ, Carlo; RUSSOLO, Luigi; BALLA, Giacomo; SEVERINI, Gino. op. cit., 1910. 20 idem. 18 112 RHAA 22 17 ibid. SIGNAC, Paul. op. cit., 1889. 19 BOCCIONI, Umberto; CARRÀ, Carlo; RUSSOLO, Luigi; BALLA, Giacomo; SEVERINI, Gino. op. cit., 1910. 20 ibid. 18 Giacomo balla: Paisagem acquisition of the painting landscape, it was poorly studied, though often exhibited. This work is assumed to have entered the collections of the former MAM between 1951 and 1954. The irst inventory of the collection on deposit of the museum was made by Eva Lieblich (irst secretary of the former MAM), on the inventory, dated of c.1951,21 the work of Balla is not listed. December 1954 is the date of the irst exhibition in which the work is present, but this is not necessarily a proof that the work was actually acquired in this period. From the information collected in the assessions of the former MAM, compared to the old records charts of MAM and MAC, previous documentation of the old museum, the notebook of purchases of Yolanda Penteado, and the documentation available in the archives of both the Fundação Bienal de São Paulo, and the Museum of Art of São Paulo (MASP), four hypotheses have been raised about the acquisition of landscape. They seek to unite the two threads of the history of this work, the context of Modernism in São Paulo and of the making of the former MAM with the international environment of the revival of the interest on Balla and Divionism. The interwar period is marked in international art by the so-called Return to Order, widely present in the initial collections of MAC - USP, a trend in which stylistic features advocated by the European avant-garde would be refuted in some level. This concept of modern art would have begun in France and Italy and later spread to the rest of Europe. There wouldn’t be, at this time, the desire of the disruption of artistic tradition so strongly advocated by the avant-garde currents. At the same time, this context would be marked by the irst studies of Impressionist and Neo-Impressionist movements - though such tendencies were to be condemned by the more classic approach to painting, for instance, among the realist groups connected to the context of the Return to Order. Impressionism and Neo-Impressionism were resumed again in the post World War II, when Francisco Matarazzo Sobrinho made the irst acquisitions to the collection of the former MAM, According to information stated by Eva Lieblich in interview to the professor Ana Magalhães, on 17/06/2010, on the archive of Seção de Catalogação of MAC USP, in which the interviewee states having made the list a little while before leaving the institution, c.1951/1952 21 artista no período e da falta de documentação no acervo sobre a aquisição da obra, Paisagem foi, apesar de frequentemente exposta, pouco estudada. Estima-se que a obra tenha entrado para o acervo do antigo MAM entre 1951 e 1954. O primeiro inventário do acervo/ depósito do museu, realizado pela funcionária Eva Lieblich, no qual a obra de Balla não consta, é datado de c. 1951,21 e dezembro de 1954 é o mês da primeira exposição na qual a obra é apresentada, mas essa não é necessariamente uma comprovação de que a obra tenha sido de fato adquirida nesse período. Com base em informações levantadas por meio do cotejamento do livro de tombo do antigo MAM com as ichas catalográicas MAM e MAC da obra, e documentação anterior do antigo museu, como o caderno de aquisições de Yolanda Penteado, além da documentação disponível nos arquivos tanto da Fundação Bienal quanto do Museu de Arte de São Paulo (MASP), foram levantadas quatro hipóteses sobre a aquisição de Paisagem, que pretendem unir os dois ios da história dessa obra, o contexto do Modernismo paulista e da formação do antigo MAM com o ambiente internacional de produção e a retomada do artista e do movimento O período do entreguerras é marcado na arte internacional pelo chamado Retorno à Ordem, extensamente presente nas coleções iniciais do MAC-USP, tendência essa na qual as características estilísticas defendidas pelas vanguardas europeias seriam em certo nível refutadas. Esse conceito de arte moderna teria tido início na França e na Itália e posteriormente se espalhado pelo restante da Europa. Não haveria, nessa época, o desejo do rompimento da tradição artística tão fortemente defendido pelas vanguardas; nesse contexto é que seriam retomados pela primeira vez os movimentos impressionistas e neoimpressionistas. O Impressionismo e o Neoimpressionismo foram retomados novamente no pós-segunda Guerra Mundial, período das aquisições de Ciccillo, quando tendências artísticas das vanguardas também voltaram à voga, inluenciando as técnicas vigentes, o que signiicou uma revalorização dos artistas desses movimentos. Na XXIV Biennale di Venezia, edição de 1948, houve salas retrospectivas dedicadas ao Impressionismo e aos Macchiaioli De acordo com informação dada por Eva Lieblich em entrevista à Profª. Drª. Ana Gonçalves Magalhães, no dia 17/06/2010, arquivada na Seção de Catalogação do MAC-USP, na qual a entrevistada airma que realizou a lista pouco antes de deixar a instituição por volta de 1951-1952. 21 RHAA 22 113 Marina barzon silva (que produziam dentro de uma técnica de certa forma semelhante à do movimento francês, mas que segundo Argan “precede, mas não antecipa o Impressionismo”).22 Uma das obras impressionistas apresentadas na ocasião relaciona-se diretamente com o ambiente artístico brasileiro, a Canoa sobre o epte, de Claude Monet, pertencente ao acervo do MASP.23 Já na XXVI edição da Biennale di Venezia, de 1952, houve duas salas retrospectivas, anteriormente mencionadas, em homenagem ao Divisionismo, e a apresentação das duas obras de Balla, elisa a villa Borghese,24 pertencente, no período, à coleção Carlo Grassi; e lavoro,25 da coleção Umberto Spironello, atualmente em Birmingham, na Lydia and Harry Lewis Winston Collection.26 A Biennale di Venezia serviu como um modelo referencial para a criação da Bienal de São Paulo, e suas edições funcionavam, para Matarazzo, como um dos principais indicativos das tendências artísticas no âmbito internacional, tendo, portanto, papel fundamental na formação do acervo do antigo MAM. Além do costume de adquirir obras expostas na Biennale, Ciccillo, inclusive, chegou a patrocinar um prêmio das Indústrias Matarazzo,27 no qual a obra premiada era posteriormente depositada no acervo do antigo museu; portanto, as tendências lá preconizadas pautaram sua formação. Especiicamente na edição de 1952 foram adquiridas nove obras, que, assim como Paisagem, estão entre as 419 obras que constituem a Coleção Francisco ARGAN, Giulio Carlo. arte Moderna: do iluminismo aos Movimentos Contemporâneos. São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 162. 23 Como veriicado no Catálogo Geral do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. 24 Não se tem informações documentadas sobre o que aconteceu com a obra exposta na XXVI Biennale di Venezia elisa a villa Borghese; sabe-se (de acordo com o Catálogo da Bienal) que essa obra pertencia à Coleção Carlo Grassi que posteriormente foi doada à Galeria de Arte Moderna de Milão. No entanto, nessa coleção atualmente só há registro de uma obra chamada la Fidanzata a villa Borghese, de 1902, que poderia então ser a obra apresentada na ocasião. No catálogo geral da obra de Giacomo Balla não aparece nenhuma obra registrada com o nome de elisa a villa Borghese ou Fidanzata a villa Borghese; aparece, no entanto, uma obra que consta como exposta na Biennale, la Fidanzata al Pincio (Pincio é o nome da região em que a Villa Borghese se situa) provavelmente os três títulos referem-se à mesma obra. 25 CatÁlogo – XXvi BieNNale di veNeZia. Veneza, Biennale Internazionale D’arte, 1952. 26 BELLONzI, Fortunato. op. cit., 1967. 27 Como veriicado em correspondência, mantida no arquivo da Bienal de Veneza, entre o secretário do antigo MAM, Arturo Proili, e a secretaria geral da Biennale di Venezia, Giovanni Ponti, em janeiro de 1952, instituindo novamente um prêmio aquisição Francisco Matarazzo Sobrinho no valor de 500.000,00 liras. 22 114 RHAA 22 and when the avant-garde artistic tendencies also returned to vogue - which also led to a revaluation of the artists of these movements. In XXIV Biennale di Venezia, 1948 edition, there were special retrospective rooms devoted to Impressionism and the Macchiaoli (who were to be read as the Italian counterpart of French Impressionism, although anticipating it, according to Argan).22 One of Impressionist works presented at the time is directly related to the Brazilian artistic environment, the Canoe on the epte by Claude Monet, belonging to MASP23 collection. Already in the XXVI edition of Biennale di Venezia, 1952, there were two special rooms in honor of Divisionism, as mentioned before, and the exhibition of two works by Balla, elisa a villa Borghese,24 belonging then to the Carlo Grassi collection, and lavoro25 in the Umberto Spironello collection, currently in Birmingham, Lydia and Harry Lewis Winston collection.26 The Biennale di Venezia served as a reference model for the creation of the Bienal de São Paulo, and the editions were for Matarazzo an index of artistic trends internationally, and therefore had a key role in the making of the collection of the former MAM. Besides the usual purchasing of works exhibited in the Biennale, Ciccillo even came to sponsor a prize (by the Metalúrgica Matarazzo27), 22 ARGAN, Giulio Carlo. arte Moderna: do iluminismo aos Movimentos Contemporâneos. São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p.162 23 As veriied on the Catálogo Geral do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. 24 There is no documented information about what happened with the work exhibited on the XXVI Biennale di Venezia, elisa a villa Borghese. It is known (according to the biennale’s catalogue) that the work then belonged to the Carlo Grassi Collection that was latter donated to the Galleria di Arte Moderna di Milano. However, in this collection there is only the registration of a painting called la Fidanzata a villa Borghese, 1902, that could be the work presented on the occasion. On the general catalogue of Giacomo Balla’s work there are no paintings called elisa a villa Borghese or Fidanzata a villa Borghese, there is, nonetheless, a work marked as presented on the Biennale, la Fidanzata al Pincio (Pincio is the name of the region where Villa Borghese is situated). It is probable that all the three titles refer to the same work. 25 Catalogo- XXvi BieNNale di veNeZia. Veneza, Biennale Internazionale D’arte, 1952. 26 BELLONzI, Fortunato. op. cit.., 1967 27 As veriied in correspondence kept on the archives of Biennale di Venezia, between the secretary of the former MAM, Arturo Proili and the general secretary of the Biennale di Venezia, Giovanni Ponti, in January of 1952, estab- Giacomo balla: Paisagem which the awarded work was subsequently deposited in the collections of the former museum. Precisely on the edition of 1952 nine works were acquired that, like landscape, are among the 419 works that constitute the collection of Francisco Matarazzo Sobrinho at MAC. Another argument for Balla’s work would have been acquired on this occasion is the fact that the Museum of Modern Art (MoMA), which served as a model for the making of the Museum of Modern Art of São Paulo, acquired a canvas of Balla, the lampada ad arco, 1909, in 1953.28 This demonstrates that not only the movement but also the artist was being taken and appreciated in this period. There is a historiographical discussion on the reading of the work acquired by MoMA: some authors claim it to be a futurist work, which would have been completed in 1912, while others point to the painting as a work of transition between Divisionism and Futurism. The MoMA takes this work as completed between 1910 and 1911, despite the notation in the upper left corner indicate an. 1909. The date assumed by the institution is effectively a transition period of the artist’s output, when signing the Futurist manifesto, but also exhibiting for the irst time the already mentioned triptych affeti. The MoMA’s work, signed by the artist as Balla, not futurballa, presents a great resemblance to the work il sole, by Giuseppe Pelliza da Volpedo, 1904, a deinitely divisionist work. Bellonzi states that Balla turns to this work of Pellizza and modernizes it.29 The artist himself sends a letter to Alfred Barr Jr., at the time of purchase of the work at MoMA, which states that: “The canvas of the lamp was painted by me during Divisionism (1900-1910), in fact the brightness of the light is obtained by combining pure colors.”.30 The irst of the hypotheses developed is that the purchase has been made under the inluence, lishing once again a acquisition award Francisco Matarazzo Sobrinho, of 500.000,00 liras. 28 BARR, Alfred H. Jr. Painting and sculpture acquisitions June 1, 1953 through June 30, 1955. The Bulletin of the Museum of Modern Art, Vol. 23, No. 3, Painting and Sculpture Acquisitions June 1, 1953 through June 30, 1955, pp. 3-39. MoMA, 1956 29 BELLONzI, Fortunato. op. cit., 1967, p.23. 30 DELL’ARCO, Maurizio Fagiolo. op. cit., 1998, p. 23. Translated by the author. In the original: “Il quadro della lampada è stato da me dipinto durante il periodo divisionista (1900-1910); infatti il bagliore della luce è ottenuto mediante l’accostamento dei colori pure.” Matarazzo Sobrinho, do MAC. Outro indicativo de que a obra tenha sido adquirida nessa ocasião é o fato de que o Museum of Modern Art (MoMA), que teria servido de modelo para a formação do Museu de Arte Moderna de São Paulo, adquiriu, em 1953,28 um quadro de Balla, o lampada ad arco, de 1909, o que demonstra que não apenas o movimento, mas também o artista estava sendo retomado e valorizado nesse período. Há uma discussão historiográica quanto ao movimento a que o lampada ad arco pertenceria: alguns autores airmam ser uma obra futurista, que teria sido terminada em 1912, enquanto outros apontam o quadro como uma obra de transição entre o período Divisionista e Futurista. O MoMA assume essa obra como inalizada entre 1910 e 1911, apesar de a anotação no canto superior esquerdo indicar an. 1909. A data assumida pela instituição é, efetivamente, um período de transição da produção do artista, quando assina o manifesto futurista, mas também quando expõe pela primeira vez o já mencionado tríptico affeti. O quadro do MoMA, assinado pelo artista como Balla, e não futurballa, apresenta uma grande semelhança com a obra il sole, de Giuseppe Pellizza da Volpedo, de 1904, uma obra deinitivamente divisionista. Bellonzi argumenta que Balla se volta a essa obra de Pellizza e a moderniza.29 O próprio artista envia uma carta a Alfred Barr Jr. na ocasião da compra da obra pelo MoMA, na qual airma que: “O quadro da lâmpada foi pintado por mim durante o período Divisionista (1900-1910), de fato o brilho da luz é obtido mediante a combinação de cores puras”.30 A primeira das hipóteses desenvolvidas é a de que a compra tenha sido efetuada por inluência, e na ocasião, da Biennale di Venezia de 1952, suportada tanto por um contexto do ambiente artístico internacional, quanto pelo histórico do próprio MAM e das aquisições gradualmente efetuadas por Matarazzo Sobrinho. A segunda hipótese foi levantada na busca pela relação do Divisionismo como um todo com o ambiente artístico brasileiro. O MASP, que por algum tempo dividiu um andar do mesmo BARR, Alfred H. Jr. Painting and sculpture acquisitions June 1, 1953 through June 30, 1955. The Bulletin of the Museum of Modern Art, Vol. 23, No 3, Painting and Sculpture Acquisitions June 1, 1953 through June 30, 1955, pp. 3-39. MoMA, 1956. 29 BELLONzI, Fortunato. op. cit., 1967, p. 23. 30 ARCO, Maurizio Fagiolo dell’ op. cit., 1998, p. 23. Tradução da autora, no original : “Il quadro della lampada è stato da me dipinto durante il periodo divisionista (1900-1910); infatti il bagliore della luce è ottenuto mediante l’accostamento dei colori pure”. 28 RHAA 22 115 Marina barzon silva prédio com o antigo MAM, na Rua 7 de abril, região central de São Paulo, estabelecendo, portanto, um histórico de convivências entre as duas instituições, tem em acervo um quadro divisionista de Gaetano Previati, também intitulado Paisagem, com datação estimada entre 1900 e 1910 [Fig. 3]. Assim como no caso da obra de Balla, não há muita documentação a seu respeito, apenas que teria sido doada ao museu por Francisco Matarazzo Sobrinho, em 25 de novembro de 1949, além de uma notícia publicada no jornal ítalo-brasileiro Fanfulla, em 28 de julho de 1911, onde se lê: Um grande pintor italiano: Hoje será exposto na casa Garraux um quadro do divisionista italiano Gaetano Previati. O quadro exposto hoje em São Paulo representa um ângulo de campanha primaveril. As árvores, o verde da grama, o riacho que corre pela encosta, as três mulheres sentadas na erva, respiram a aura primaveril que exala do quadro, tudo se perde em um io de luz difusa por um céu disperso em inos vapores avermelhados pelos raios de sol matinais. Um quadro de vitalidade da qual jamais se viu em São Paulo.31 and on occasion, of the Biennale di Venezia 1952, supported both by the context of the international art scene, as the very history of MAM and the Matarazzo acquisitions. The second hypothesis was raised in the search for the relationship of Divisionism as a whole with the Brazilian artistic environment. MASP, which for a time shared a loor of the same building with the former MAM at Rua 7 de Abril, downtown São Paulo, thus establishing a history of cohabitation between the two institutions, has a divisionist painting in collection by Gaetano Previati, also entitled landscape with estimated dating between 1900 and 1910 [Fig. 3]. As in the case of Balla’s work, there is not much documentation about it, just that it would have been donated to the museum by Francisco Matarazzo Sobrinho, on November 25 1949, and a report in the Italo-Brazilian newspaper Fanfulla in July 28 1911, which reads: A great Italian painter: Today will be displayed a picture on casa Garraux of the Italian divisionist Gaetano Previati. The canvas exhibited today in São Paulo is an angle of spring campaign. The trees, the green grass, the stream that runs down the slope, the three women sitting on grass, breathing the aura that exudes spring from the frame, everything is lost on a light wire difusion by a sky dispersed in ine reddish vapors by the rays of morning sun. A picture of such vitality that has never been seen in São Paulo.31 A obra foi, portanto, provavelmente adquirida pela família Matarazzo, ou talvez pela família Penteado, da esposa de Ciccillo, Yolanda, na ocasião da exposição em São Paulo, o que leva à suposição de que a obra de Balla poderia ter vindo ao Brasil em ocasião semelhante, e já pertencer a um acervo pessoal, anteriormente às aquisições destinadas ao antigo MAM. Rejane Cintrão informa que a Casa Garraux, que funcionou de 1905 a 1922, foi um dos espaços alternativos para exposições de arte no início do século em São Paulo, airmando que: “era livraria e papelaria, além de contar em seu estoque com artigos de tipograia e vinhos. Vários pintores da época ali se apresentaram”,32 e durante seu funcionamento teve dezessete exposições anunciadas, e ao lado de magazines e salões, como Casa Aurora, Casa Mappin e Salão Mascarini, teria formado o Jornal Fanfulla, 28 de julho de 1911. Tradução da autora, no original: “Um grande pittore italiano: Oggi sarà esposto nella casa Garraux un quadro del grande divisionista italiano Gaetano Previati. Il quadro esposto oggi in S.P. rappresenta un angolo di campagna primaverile. Gli alberi, il verde del piano, il iumicello che scorre per la pendice, le tre donne sedute fra l’erba respirano l’aura primaverile che spira del quadro, tutto si perde in un iume di luce diffusa per um cielo sparso di sottili vapori rosseggianti pli raggi del sole mattinale. Um quadro di vita quale forse non si vide mai in S.P. 28 luglio 1911, FANFULLA”. 32 CINTRÃO, Rejane. algumas exposições exemplares – as salas de exposição na são Paulo de 1905 a 1930. Editora zouk, Porto Alegre, 2011. 31 116 RHAA 22 The work was therefore probably acquired by Matarazzo’s family, or maybe the family Penteado, of Ciccillo’s wife, Yolanda, on the occasion of the exhibition in São Paulo, which leads to the assumption that the work by Balla could have come to Brazil in a similar occasion, and belonged therefore to a personal collection, prior to the acquisitions of the former MAM. Art historian Rejane Cintrão claims that the Newspaper Fanfulla, July 28, 1911. Author’s translation, orinally: “Um grande pittore italiano: Oggi sarà esposto nella casa Garraux un quadro del grande divisionista italiano Gaetano Previati. Il quadro esposto oggi in S.P. rappresenta un angolo di campagna primaverile. Gli alberi, il verde del piano, il iumicello che scorre per la pendice, le tre donne sedute fra l’erba respirano l’aura primaverile che spira del quadro, tutto si perde in un iume di luce diffusa per um cielo sparso di sottili vapori rosseggianti pli raggi del sole mattinale. Um quadro di vita quale forse non si vide mai in S.P.28 luglio 1911, FANFULLA.” 31 Giacomo balla: Paisagem Casa Garraux, which ran from 1905 to 1922, was one of the alternative spaces for art exhibitions early in São Paulo, saying that: “It was a bookstore and a stationery, besides relying in its stock on items of typography and wines. Several painters of the time were there presented”,32 and during its operation, 17 exhibitions were realized that were announced alongside magazines and salons as Casa Aurora, Casa Mappin and Salão Mascarini, being thus both a commercial and art institution in São Paulo before the foundation of two main art museums of the city, MASP in 1947 and MAM in 1948. The third hypothesis emerged from the relationship between Matarazzo Sobrinho and Benedetta Marinetti, at the time the widow of F.T. Marinetti. Benedetta was a student of Balla, exhibited several times in the Biennale di Venezia, and was even the irst woman to have a work published in a catalog of the Biennale in 1930. In 1952, besides the works acquired by Ciccillo at the Biennale, two sculptures in plaster by Umberto Boccioni that belonged to the Marinetti collection were sold to Matarazzo. Benedetta irst offered the works to Bardi, who in turn informed her that despite having no interest in the works for the collection of MASP could indicate Ciccillo to purchase the works, as they would have been more suitable for the collection of the former MAM.33 They were acquired for the museum in 1952 in Rome. Simultaneously with the negotiations of the purchase, Benedetta Marinetti lent a futuristic work by Balla, “Injection of Futurism”, 1914, from her private collection,34 to be displayed next to four other works by the artist at the II Bienal de São Paulo, in 1953. This was the only occasion35 when Balla was exhibited in the São Paulo biennial. Finally, the last hypothesis was raised due to the presence of Italian critic Margherita Sarfatti as one of the consultants for Ciccillo for the Italian acquisitions to the collection then under construc- circuito comercial e institucional da arte em São Paulo antes da fundação de duas instituições posteriormente fundamentais, o MASP, em 1947; e o MAM, em 1948. A terceira hipótese surgiu do relacionamento entre Matarazzo Sobrinho e Benedetta Marinetti, na época já viúva de F. T. Marinetti. Benedetta foi aluna de Balla, expôs diversas vezes na Biennale di Venezia, e foi, inclusive, a primeira mulher a ter uma obra publicada em um catálogo da Biennale, em 1930. Em 1952, além das obras adquiridas por Ciccillo na Biennale di Venezia, duas esculturas de gesso de Umberto Boccioni, que pertenciam à coleção Marinetti, foram vendidas a Matarazzo. As obras foram primeiramente oferecidas por Benedetta a Bardi, que em resposta lhe informou que apesar de não ter interesse pelas obras para a coleção do MASP, poderia indicar Ciccillo para a compra. Por serem obras mais condizentes com a coleção do antigo MAM,33 assim as obras de Boccioni foram adquiridas para o museu em 1952, em Roma. Simultaneamente às negociações da compra, Benedetta Marinetti emprestou a obra futurista de Balla, injeção de Futurismo, 1914, de sua coleção particular,34 para ser exposta junto a outras quatro obras do artista na única35 ocasião em que foram apresentadas obras de Balla na Bienal de São Paulo, em sua segunda edição, de 1953. Por im, a última hipótese foi levantada devido à presença da crítica italiana Margheritta Sarfatti como orientadora das escolhas de Ciccillo para aquisições italianas para o acervo então em construção, especialmente nas compras de 1946-47.36 Sarfatti foi amante de Mussolini, além de ter convivido com intelectuais italianos socialistas no mesmo período em que Balla produzia suas obras de vertente social, escrevendo para a revista avanti!. Sarfatti foi também a criadora do grupo do Novecento Italiano, com diversos de seus representantes no acervo do museu, e em seu livro storia della Pittura Moderna dedica um capítulo aos futuristas; pode ter sido, portanto, outra personagem a fazer a ponte entre a produção de Balla e Matarazzo. POzzOLI, Viviana. relazioni tirocinio, sobre o período em que estudou a documentação sobre as aquisições de Matarazzo Sobrinho na Biennale di Venezia de 1952 e 1954. 34 Catálogo da I Bienal de São Paulo, 1953. 35 Banco de Dados de Arte da Fundação Bienal de São Paulo. 36 Para informações mais detalhadas a respeito do papel de Sarfatti nas aquisições, consultar: MAGALHÃES, Ana Gonçalves. “A Narrativa de Arte Moderna no Brasil e as Coleções Matarazzo, MAC USP” In: revista do Programa de Pós-graduação em Ciência da informação da universidade de Brasília. Vol. 1, jan/jul de 2012. 33 CINTRÃO, Rejane. algumas exposições exemplares – as salas de exposição na são Paulo de 1905 a 1930.Editora zouk, Porto Alegre, 2011. 33 POzzOLI, Viviana. relazioni tirocinio, regarding the time she spend researching the documentation on Matarazzo’s acquisitions on the Biennale di Venezia of 1952 and 1954. 34 Catálogo da I Bienal de São Paulo, 1953. 35 Banco de Dados de Arte da Fundação Bienal de São Paulo. 32 RHAA 22 117 Marina barzon silva A principal diiculdade para deinir a procedência da obra é a escassez de documentação. Nem os arquivos do museu nem os demais arquivos de instituições culturais ou arquivos públicos contêm documentos que se reiram diretamente à obra pesquisada, de modo que as fontes mais presentes são indiretas, relacionadas à atuação do artista, sua presença em exposições e mostras no possível período de compra, ou a outras obras divisionistas em ambiente brasileiro. tion, especially in the purchases of 1946/47.36 Sarfatti was Mussolini’s lover, and had contact with Italian socialist intellectuals in the same period in which Balla produced his works of social aspect, writing for avanti!. Sarfatti was also the creator of the Novecento Italiano group, with many of its representatives in the museum’s collection. In her book storia della Pittura Moderna, she devotes a chapter to Futurism, so she could have been another character to connect Balla’s production to Matarazzo. The main obstacle to establish the provenance of the piece was the lack of documentation. Neither the museum archives or other archives from public cultural institutions contain documents that relate directly to the work researched, so that most information are indirectly related, concerning the work of the artist, his presence at exhibitions and shows at the possible period of purchase, or other divisionist works in the Brazilian environment. For more information about Sarfatti’s role on the acquisitions see: MAGALHÃES, Ana Gonçalves. “A Narrativa de Arte Moderna no Brasil e as ColeçõesMatarazzo, MAC USP” In: revista do Programa de Pós-graduação em Ciência da informação da universidade de Brasília. Vol. 1, jan/jul de 2012. 36 118 RHAA 22 Giacomo balla: Paisagem 1 2 3 1 Giacomo Balla, Paisagem, 1907. 2 Giacomo Balla, verso de Paisagem, 1907. 3 Gaetano Previati. Paisagem, 1900-1910. RHAA 22 119 Francisco de Holanda e o retrato em Portugal Francisco de Holanda and the portrait in Portugal RAPHAEL FONSECA* doutorando em história da arte pela uerJ PHD candidate in Art History at State University of Rio de Janeiro Este artigo tem como ponto de partida os textos de Francisco de Holanda, artista português ativo entre o segundo quarto e o inal do século XVI. Esta análise tem como objeto os seus escritos no que diz respeito ao elogio de artistas portugueses no campo do retrato, como Nuno Gonçalves e seu pai, Antônio de Holanda, lidos nos seus textos “Da pintura antiga” (1548) e “Do tirar pelo natural” (1549). Junto a essas airmações, se fez necessário um cotejamento em conjunto com a produção de retratos em Portugal durante o Renascimento, além das obras da própria autoria de Francisco de Holanda. Pretende-se reletir sobre a relação imagem e texto dentro do campo da retratística nesse contexto histórico-cultural. RESUMO PALAVRAS-CHAVE Holanda, Francisco de (1517-1584), teoria do retrato, retratística, arte em Portugal, retrato em Portugal. This article has as a starting point the textual production of Francisco de Holanda, Portuguese artist that lived between the second quarter and the end of the XVIth century. The objects of analysis are the writings that praises Portuguese artists in the ield of portrait making, as Nuno Gonçalves and the author’s father, Antônio de Holanda, as written in the texts “Da pintura antiga” (1548) e “Do tirar pelo natural” (1549). Along with these afirmations, it was necessary to make a study about the relations between these writings and the production of portraits in Portugal during the Renaissance. It’s intended here to relect about the relation between image and text inside the portraiture ield in this cultural-historical context. AbSTRACT KEywORdS Holanda, Francisco de (1517-1584), portrait theory, portraiture, art in Portugal, portrait in Portugal. Raphael Fonseca é doutorando e graduado em História da Arte pela UERJ, mestre nesta área pela UNICAMP, professor do Colégio Pedro II, crítico de arte e curador. Contribui com as revistas Art Nexus e Das Artes. É integrante do grupo de pesquisa Unfolding Art History in Latin America, inanciado pela Getty Foundation e organizado pela UERJ. Reúne toda a sua produção textual no blog http://gabinetedejeronimo.blogspot.com. / raphael Fonseca is Phd candidate in art history (State University of Rio de Janeiro). Master (State University of Campinas) and undergraduated in the same ield (State University of Rio de Janeiro). teacher in Colégio Pedro ii. Works as critic, curator and art historian. Writes regularly for artNexus magazine. researcher of the group “Unfolding Art History in Latin America” inanced by the Getty Foundation. Organizes all his textual and curatorial production in the blog http://gabinetedejeronimo.blogspot.com * RHAA 22 121 raphael Fonseca Em “Da pintura antiga”, de 1548, após ditar os preceitos da boa arte da Antiguidade e de descrever seus quatro possíveis “Diálogos em Roma”, Francisco de Holanda escreve suas “Tábuas dos maiores artistas da Renascença”. Divididas em seis partes, estas listam grandes artistas ativos entre os séculos XIII e XVI, tal qual a abordagem cronológica de Giorgio Vasari em suas “Vidas”. Os segmentos estão divididos por técnica artesanal: pintura, iluminura, escultura em mármore, arquitetura, gravura em cobre e gravura feita com cornalina. O último artista (número vinte e um) citado dentro da primeira tábua, que é relativa aos “famosos pintores modernos, a que eles chamam ‘águias’”, é também o único português desta parte de seu texto. Holanda diz: “O pintor português, ponho entre os famosos, que pintou o altar de S. Vicente de Lisboa”.1 No capítulo XI de seu “Da pintura antiga”, intitulado “A diferença da Antiguidade”, novamente irá citar seu conterrâneo pintor: E neste capítulo quero fazer menção de um pintor português que sinto que merece memória, pois em tempo mui bárbaro quis imitar nalguma maneira o cuidado e a discrição dos antigos e italianos pintores. E este foi Nuno Gonçalves, pintor de el-Rei dom Afonso, que pintou na Sé de Lisboa o Altar de S. Vicente; e creio que também é da sua mão um Senhor atado à coluna, que dois homens estão açoitando, em uma capela do mosteiro da Trindade.2 Ao cruzar estas duas referências textuais, temos a possível identidade do pintor português celebrado por Holanda em suas “Tábuas”; trata-se de Nuno Gonçalves, artista ativo durante o reinado de Afonso V em Portugal (1438-1481). Nomeado pintor oicial do rei em 1450, não existem informações sobre o seu ano de nascimento, e um dos únicos dados oiciais é de que em 1492 já havia falecido.3 Sua formação artística e sua inluência em Portugal durante o século XV são igualmente obscuras. As duas citações de Francisco de Holanda acima são as únicas temporalmente próximas à realização do chamado “Políptico de São Vicente” (1460-80, Museu Nacional de Arte Antiga) que apontam Nuno Gonçalves como autor. Baseados nestas linhas, HOLANDA, Francisco de. diálogos em roma. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p. 90. 2 HOLANDA, Francisco de. da pintura antiga. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, pp. 37-38. 3 GUSMÃO, Adriano de. “Letters – Nuno Gonçalves”. the Burlington Magazine. Londres, vol. 98, no 638, 1956, pp. 166-167. 1 122 RHAA 22 In “On ancient painting”, from 1548, after dictating the commandments of the good ancient art and after describing his four possible “Dialogues in Rome”, Francisco de Holanda wrote his “Plates of the greatest artists from the Renaissance” (“Tábuas dos maiores artistas da Renascença”). Divided in six parts, these plates list great artists who were active between the thirteenth and sixteenth centuries, like the chronological approach of Giorgio Vasari in his “Lives”. The segments are divided by craft’s techniques: painting, illumination, marble sculptures, architecture, copperplate engraving and cornelian engravings. The last artist (number twenty one) mentioned in the irst plate, related to the “famous modern painters, whom they call ‘eagles’”, is also the only Portuguese in this part of his text. Holanda says: “The Portuguese painter, I put among the famous, who painted the altarpiece of Saint Vincent of Lisbon”.1 In the chapter eleven from his “On ancient painting”, entitled “The difference in Antiquity”, he will once again mention his fellow painter: And in this chapter I want to mention a Portuguese painter who I feel deserves memory, for in a very barbarian time he wished to imitate in a certain way the caution and the description of the ancient and Italian painters. And this was Nuno Gonçalves, painter to the King dom Afonso, who painted in the Holy See of Lisbon the Altar of S. Vicente; and I believe it is also from his hands a Lord tied to column, whom two men are whipping, in a chapel at the monastery of the Trinity.2 By crossing these two textual references, we have the possible identity of the Portuguese painter celebrated by Holanda in his “Plates”; it is Nuno Gonçalves, an artist active during the reign of Afonso V in Portugal (1438-1481). Named oficial painter of the king in 1450, there are no information about the year he was born and one of the few oficial data available is that in 1492 he had already died.3 His artistic education and his inluence in Portugal during the ifteenth century are equally HOLANDA, Francisco de. diálogos em roma. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p. 90. 2 HOLANDA, Francisco de. da pintura antiga. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, ps. 37-38. 3 GUSMÃO, Adriano de. “Letters – Nuno Gonçalves”. the Burlington Magazine. Londres, vol. 98, nº 638, 1956, ps. 166-167. 1 Francisco de Holanda unclear. This two passages above by Francisco de Holanda are the only ones temporally close to the painting of the so called “Polyptych of St Vincent” (1460-80, National Museum of Ancient Art) that point to Nuno Gonçalves as its author. Based on these lines, several art historians tried to conirm this authorship, but no one has, until now, found documentation that could determine it.4 [Fig. 1] The original place where the painting was exhibited, as mentioned by Francisco de Holanda, was the See of Lisbon. Until 1742 the panels were displayed side by side inside the church, although losing the grandiosity of being before the main altar, having lost this position for a picture commissioned in the beginning of the eighteenth century. In that year, by order from the cardinal Dom Tomaz de Almeida, the “Polyptych of St Vincent” was moved to the Palácio da Mitra, also in Lisbon. If it was not for this relocation, the end of this painting could have happened together with the famous earthquake from 1755, which destroyed a great deal of the collection of the See of Lisbon, including the painting that took its place in the main altar in the church.5 In the year of 1882, according to Edgar Prestage, the artwork probably by Nuno Gonçalves was already in another place, inside the Church of St Vincent de Fora. It was supposedly “rescued” by wish of the then famous painter Columbano Pinheiro.6 Because of him, therefore, the painting was restored, once more appreciated and started to receive attention from Portuguese art historians. In 1911, after the establishment of a decree that makes some of the Portuguese museum responsible for the turning into patrimony part of its artistic collection preserved in religious institutions, the already restored “Polyptych of St Vincent” was COOK, Herbert. “Some early Portuguese paintings”. the Burtlington Magazine. Londres, vol. 15, nº 76, 1909, ps. 232-237. DONY, Paul. “L’‘Infante en Gris’ de Nuno Gonçalves”. luso-Brazilian review. Madison, vol. 4, nº 2, ps. 3-16. PRESTAGE, Edgar. “Early Portuguese paintings”. the Burlington Magazine. Londres, vol. 17, nº 90, 1910, ps. 340-348. SARTON, George. “Preface to volume XXIV: Nuno Gonçalves”. isis. Chicago, vol. 24, nº 1, 1935, ps. 7-14. STEEGMANN, John. “Exhibition of Portuguese primitives, Lisbon”. the Burlington Magazine. Londres, vol. 77, nº 450. ps. 94-99. 5 PRESTAGE, Edgar. “Early Portuguese paintings”. the Burlington Magazine. Londres, vol. 17, nº 90. 1910, ps. 340348. 6 ibidem. 4 diversos historiadores da arte tentaram conirmar esta autoria, mas nenhum até o momento encontrou documentação para tal precisão.4 [Fig. 1] O lugar originário de exposição da pintura, assim como comentado por Francisco de Holanda, era a Sé de Lisboa. Até 1742 os painéis icaram expostos lado a lado dentro da igreja, porém perdendo a grandiosidade de estarem perante o altar-mor, sendo substituídos por uma pintura encomendada no início do século XVIII. Nesse ano, por ordem do cardeal Dom Tomaz de Almeida, o “Políptico de São Vicente” foi transferido para o Palácio de Mitra, também em Lisboa. Se não fosse por esta transferência, possivelmente o im desta pintura teria chegado com o famoso terremoto de 1755, que destruiu grande parte do acervo da Sé de Lisboa, inclusive a pintura que tomou seu lugar no altar-mor da igreja.5 Em 1882, segundo Edgar Prestage, a possível obra de Nuno Gonçalves já se encontrava em outro lugar, dentro da Igreja de São Vicente de Fora. Ela teria sido “resgatada” por vontade do então famoso pintor Columbano Pinheiro.6 Devido a Columbano, portanto, o quadro foi restaurado, novamente apreciado e ganhou a atenção de historiadores da arte portugueses. Em 1911, após a instauração de um decreto que responsabilizava alguns museus portugueses pela patrimonialização de parte do acervo artístico conservado em instituições religiosas, o já restaurado “Políptico de São Vicente” é transferido para o Museu Nacional de Arte Antiga, responsável por um acervo de obras realizadas entre a Antiguidade e o século XVIII. Desse momento em diante, os historiadores da arte portuguesa apontam o quadro como símbolo da dita “escola primitiva portuguesa”, colocando-o acima de outros expoentes do período, como Mestre da Lourinhã, Grão Vasco e Frei Carlos.7 COOK, Herbert. “Some early Portuguese paintings”. the Burlington Magazine. Londres, vol. 15, no 76, 1909, pp. 232-237; DONY, Paul. “L’‘Infante en Gris’ de Nuno Gonçalves”. luso-Brazilian review. Madison, vol. 4, no 2, pp. 3-16; PRESTAGE, Edgar. “Early Portuguese paintings.” the Burlington Magazine. Londres, vol. 17, no 90, 1910, pp. 340-348; SARTON, George. “Preface to volume XXIV: Nuno Gonçalves”. isis. Chicago, vol. 24, no 1, 1935, pp. 7-14; STEEGMANN, John. “Exhibition of Portuguese primitives, Lisbon”. the Burlington Magazine. Londres, vol. 77, no 450, pp. 94-99. 5 PRESTAGE, Edgar. “Early Portuguese paintings”. the Burlington Magazine. Londres, vol. 17, no 90. 1910, pp. 340-348. 6 ibidem. 7 Como exemplo recente, é possível destacar uma exposição realizada no próprio Museu Nacional de Arte Antiga, entre os dias 28 de outubro de 2010 e 6 de 4 RHAA 22 123 raphael Fonseca Trata-se de uma tentativa de organizar sob um mesmo rótulo obras portuguesas de pintura realizadas durante o século XV e que dialogavam diretamente com os chamados “primitivos lamengos”, representados pelas mãos de Jan van Eyck e Hugo van der Goes. Importante ter em mente que em 1428 o próprio Jan van Eyck esteve em terras portuguesas com a inalidade de retratar Isabel de Portugal. Mesmo não se comprovando documentalmente a ligação entre Gonçalves e van Eyck, alguns historiadores tentam relacionar suas obras e, consequentemente, as duas escolas nacionais de pintura.8 [Fig. 2] Ao observarmos pinturas das duas autorias, é visível a diferença de composição cênica. O “Altar Ghent: a adoração do cordeiro místico” (1432, Catedral de São Bavo, Ghent), foi realizado por Jan van Eyck e seu irmão Hubert van Eyck mediante uma encomenda de Jodocus Vijd, burgomestre de Ghent. Devido à sua importância singular dentro da obra dos irmãos e também por causa de sua proximidade temporal com a estada de Jan van Eyck em Portugal, pode-se relacioná-lo à obra atribuída a Nuno Gonçalves. No “Altar Ghent”, as iguras humanas se encontram organizadas a admirar o Cordeiro de Deus no centro da tela, estando todas situadas dentro de uma paisagem extensa. Já no “Políptico de São Vicente” inexiste a construção de uma ambiência externa às iguras humanas. O destaque na obra atribuída a Nuno Gonçalves é justamente a representação dos seis grupos de pessoas que constituem o painel. No que diz respeito ao detalhamento das vestimentas e dos rostos, além das cores e do brilho utilizados por ambos os artistas, há uma proximidade visível entre os dois polípticos. Quando destacamos um grupo de iguras do “Altar Ghent” é claro o diálogo visual que pode ser estabelecido com a obra portuguesa. As iguras são conjugadas lado a lado, mas não necessariamente se encontram absortas em uma ação. Em alguns trechos das pinturas elas parecem mais uma reunião de pessoas que estavam a posar para o pintor; co-habitam no espaço da pintura, mas não necessariamente se relacionam por meio do olhar e do corpo, ou mesmo junto a algum objeto representado. As mesmas características se aplicam à obra atribuída a Nuno Gonçalves, na qual a maior parte das iguras humanas fevereiro de 2011, intitulada “Primitivos portugueses (1450-1550) – o século de Nuno Gonçalves”. 8 DONY, Paul. “L’‘Infante en Gris’ de Nuno Gonçalves”. luso-Brazilian review. Madison, vol. 4, no 2, pp. 3-16. 124 RHAA 22 moved to the National Museum of Ancient Art, responsible for a collection of artworks made between Antiquity and the eighteenth century. From that moment on, the historians of Portuguese art pointed to this painting as the symbol of the so called “primitive Portuguese school”, holding it above other representatives of the period, like Mestre da Lourinhã, Grão Vasco and Frei Carlos.7 That is an attempt for organizing under the same label the Portuguese artworks that are paintings made during the ifteenth century and which conversed directly with the so called “Flemish Primitives”, represented by the hands of Jan van Eyck and Hugo van der Goes. It is important to bear in mind that in 1428 Jan van Eyck himself was in Portuguese lands with the purpose of portraying Isabella of Portugal. Even if the connection between Gonçalves and van Eyck is not proved with documents, some historians try to relate their work and, consequently, both national schools of painting.8 [Fig. 2] Observing the paintings by both painters, the difference in the composition is visible. The “Ghent Altarpiece: adoration of the Mystic Lamb” (1432, Saint Bavo Cathedral, Ghent) was painted by Jan van Eyck and his brother Hubert van Eyck after a commission from Jodocus Vijd burgomaster of Ghent. Due to his unique importance within the works of the two brothers and also due to its temporal proximity with the stay of Jan van Eyck in Portugal, we could relate it to the artwork attributed to Nuno Gonçalves. In the “Ghent Altarpiece” the human igures are organized to admire the Lamb of God in the center of the canvas, all of them located in a broad landscape. In the “Polyptych St Vincent” there is no external ambience in relation to the humans. The emphasis in the canvas attributed to Nuno Gonçalves is precisely the representation of six groups of people that constitute the panel. Regarding the details of clothing and faces, besides the colors and the glow used by both artists, there is a visible proximity between the two polyptychs. As a recent example, it is possible to stress an exhibition that was held in the very National Museum of Ancient Art, between October 28th 2010 and Februrary 06th 2011, entitled “Portuguese Primitives (1450-1550) – the century of Nuno Gonçalves (“Primitivos portugueses (1450-1550) – o século de Nuno Gonçalves”). 8 DONY, Paul. “L’‘Infante en Gris’ de Nuno Gonçalves”. luso-Brazilian review. Madison, vol. 4, nº 2, pp. 3-16. 7 Francisco de Holanda When we highlight a group of characters from the “Ghent Altarpiece”, the visual dialogue that can be established with the Portuguese painting is clear. The igures are set side by side, but not necessarily assort in an action. In some points of the picture they seem more like a reunion of people who were posing to the painter; they co-habit in the space of the painting, but do not necessarily relate through sight and body, or even together with some object represented. The same characteristics can be applicable to the piece attributed to Nuno Gonçalves, where most of the human igures either look at the observer, or assume a pose similar to the model who poses to the painter. The moments when it is integrated with the religious representation are clearer in the central panels, where the image of St Vincent interacts with some of the igures around him. In each of the side panels there is at least one kneeling character, praying against the enlightened saint igure. In any case, however, in both the plastic building of the bodies and its spatial organization, this artwork attributed to Nuno Gonçalves converses closely to Jan van Eyck’s production. In van Eyck’s painting, it is well known that the igures mentioned are not portraits, but representations of sacred religious (angels in the center) and laic (representatives of the Church power) 9 groups. In the “Polyptych St. Vincent” one question is posed: are these portraits of members of the court of D. Afonso V? Some igures are identiiable and based on other portraits of the ifteenth century. For example, the igure of the Infant D. Henrique in the third panel from left to right, the so called “Panel of the Infant”, with a turban in his head. In this same panel, other igures from the Portuguese court, as Prince D. João (the child beside D. Henrique and future King D. João II of Portugal), the king D. Afonso V (kneeling in the front) and his wife, Isabella of Portugal (in the direction of Afonso V, also kneeling, on the other side of the canvas) have already been identiied.10 On the other hand, the identity of most of the On the other hand, when closing the Polyptych, there is no doubt that we can see, in the side wings, to the extreme right and left, the portraits of the commissioners of the work, that is, Jodocus Vijd and his wife, Lysbette Borlutt. ou encara o observador ou assume uma postura semelhante ao modelo que posa para o pintor. Os momentos de integração à representação religiosa se dão de modo mais claro nos painéis centrais, onde a imagem de São Vicente interage com algumas iguras organizadas ao seu redor. Enquanto isso, em cada um dos painéis laterais, ao menos uma igura se coloca de joelhos e se põe a orar perante a iluminação da igura santa. De todo modo, porém, tanto no campo da construção plástica dos corpos, tanto no que diz respeito à sua organização espacial, esta obra atribuída a Nuno Gonçalves dialoga de modo próximo com a produção de Jan van Eyck. Na obra de van Eyck, é sabido que estas iguras citadas não são retratos, mas sim representações de grupos religiosos sagrados (anjos ao centro) e laicos (representantes do poder da Igreja).9 Enquanto isso, no “Políptico de São Vicente”, uma pergunta é feita: seriam estas imagens retratos de integrantes da corte de D. Afonso V? Algumas iguras são identiicáveis e baseadas em outros retratos do século XV, por exemplo a igura do Infante D. Henrique, no terceiro painel da esquerda para a direita, o chamado “Painel do Infante”, com um turbante na cabeça. Nesse mesmo painel, outras iguras da corte portuguesa, como o príncipe D. João (a criança ao lado de D. Henrique e o futuro rei D. João II), o rei D. Afonso V (ajoelhado, à frente) e sua esposa, Isabel de Portugal (na direção de Afonso V, também ajoelhada, do outro lado da tela) já foram identiicadas.10 Por outro lado, a identidade da maior parte das iguras inseridas nos outros painéis do políptico, como nos dois à esquerda e conhecidos por “Painel dos frades” e “Painel dos pescadores”, foi perdida e pode mesmo ser questionada. Trata-se de retratos, ou seja, representações de pessoas especíicas da sociedade portuguesa da época ou seriam iguras humanas portadoras de uma grande individualidade e detalhamento do rosto, mas não retratos? Seriam frades e pescadores especíicos, retratados ou seriam apenas meios de representação de um grupo? De todo modo, sendo ou não integralmente retratos, o fato de Francisco de Holanda apenas incluir um pintor português na sua “Tábua dos maiores artistas da Renascença”, e o fato de sua 9 DONY, Paul. “L’‘Infante en Gris’ de Nuno Gonçalves”. luso-Brazilian review. Madison, vol. 4, nº 2, ps. 3-16. 10 Por outro lado, ao se fechar o políptico, não resta dúvida que vemos nas asas laterais, à extrema direita e esquerda, os retratos dos comanditários da obra, ou seja, Jodocus Vijd e sua esposa, Lysbette Borlutt. 10 DONY, Paul. “L’‘Infante en Gris’, de Nuno Gonçalves”. luso-Brazilian review. Madison, vol. 4, no 2, pp. 3-16. 9 RHAA 22 125 raphael Fonseca obra mais importante, um “retrato de grupo”, ser, inclusive, citada por Holanda, nos leva a cogitar a hipótese de que este pintor português seria uma espécie de paradigma dentro da retratística para o autor de “Do tirar pelo natural”. Um dado interessante que soma à apreciação positiva feita por Holanda, de Nuno Gonçalves, é o fato de ele airmar que este “[...] em tempo mui bárbaro quis imitar nalguma maneira o cuidado e a discrição dos antigos e italianos pintores”.11 Holanda aponta, em primeiro lugar, que o período histórico de Gonçalves era “mui bárbaro”; não se tratava ainda do século XVI da tríade vasariana. Em segunda instância, novamente o autor prefere associar a arte realizada em Portugal com a arte italiana, em detrimento da “tradição nórdica”. Ao fazer tal associação ele intenciona atribuir um caráter mais nobre ao “Políptico de São Vicente”, colocando a provável autoria de Nuno Gonçalves em uma posição destacada dentro daquilo que futuramente viria a ser chamado de “pintura primitiva portuguesa”. Estes seis painéis deveriam mais a uma tradição do retrato em grupo que advém do “Norte da Europa” ou poderíamos relacioná-los também ao retrato dentro do dito “Renascimento italiano”? Tais argumentações rememoram o texto escrito por Alois Riegl, “Das holländische Gruppenporträt” (“O retrato em grupo holandês”), em 1902. O autor irá trabalhar nesta obra com os polos da narração e da descrição, ou melhor, da coordenação e subordinação nas iguras pintadas em retratos. Para Riegl, o que seria especíico da arte italiana é a necessidade de sempre haver um contexto narrativo para que as iguras existam, ou seja, a igura humana sempre estará subordinada à ação, mesmo dentro dos retratos em grupo, onde representariam vontades ou emoções. Devido a essa vontade narrativa da arte italiana, o retrato em grupo autônomo seria uma tipologia formal um tanto quanto rara dentro deste recorte geográico.12 [Fig. 3] Ao analisar, por exemplo, os retratos em grupo dentro da produção pictórica de Domenico Ghirlandaio, é perceptível como as iguras humanas encontram-se inseridas dentro da narrativa religiosa. Encomendada pelo papa Sisto IV, o afresco da “Chamada dos apóstolos” (1481, Capela Sistina, Roma) trata-se HOLANDA, Francisco de. da pintura antiga. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p. 37. 12 RIEGL, Alois. the group portraiture of holland. Los Angeles: The Getty Research Institute for the History of Art and Humanities, 1999, pp. 61-65. igures in the other panels from the polyptych, like two to the left known as “Panel of the monks” and “Panel of the ishermen”, were lost and can even be questioned. They are portraits, that is, representation of speciic people from the Portuguese society of the time, or would they be characters with a great individuality and detailed faces, but not portraits? Are they speciic monks and ishermen, portrayed, or are they only means of group representation? In any case, being complete portraits or not, the fact that Francisco de Holanda includes only one Portuguese painter in his “Plates of the greatest artists from the Renaissance”, and the fact that this artist’s main artwork, a “group portrait”, is also mentioned by Holanda, makes us believe that this Portuguese painter is a kind of paradigm within portraiture for the author of “To take from the natural”. An interesting fact that adds to Holanda’s positive appreciation for Nuno Gonçalves is that he states that he “... in a very barbarian time wanted to imitate in some manner the attention and discretion of the ancient and Italian painters”. 11 Holanda points, irst, that Gonçalves’s historic period was “very barbarian”; it was not yet the sixteenth century of the vasarian triad. Secondly, once again the author prefers to associate the art that is made in Portugal with Italian art, rather than with the “Northern tradition”. Through this association he intends to give a nobler aspect to the “Polyptych of St Vincent” putting the probable authorship of Nuno Gonçalves in a prominent position within what would later be called “Portuguese primitive painting”. These six panels owe more to a tradition of group portrait that comes from the “North of Europe” or could we relate them also to the so called “Italian Renaissance”? These discussions recall the text written by Alöis Riegl, “The Dutch group portrait” (“Das holländische Gruppenporträt”), in 1902. The author works in that book with the poles of narration and description, or better, of coordination and subordination in the igures painted in portraits. To Riegl, what is speciic in Italian art is the permanent need for a narrative context for characters 11 126 RHAA 22 HOLANDA, Francisco de. da pintura antiga. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p. 37. 11 Francisco de Holanda to exist, that is, the human igure will always be subordinated to the action, even in group portraits, where they represent wills and emotions. Because of this narrative will in Italian art, the autonomous group portrait would be a somewhat rare formal typology in this geographic frame.12 [Fig. 3] When analyzing, for example, group portraits from Domenico Ghirlandaio’s pictorial production, one notices that human igures are inside the religious narrative. Commissioned by Pope Sixtus VI, the fresco “The call of the apostles” (1481, Sistine Chapel, Rome) is, grosso modo, an artwork contemporary to the painting attributed to Nuno Gonçalves. Even if the people are grouped in the right side and somewhat detached from Jesus Christ and the apostles, the group of portraits is subdued to the narrative and even seem to admire the sacred scene happening next to them. Members of the family Soderini, Tornabuoni and Vespucci were portrayed. These people work like a chorus to the Christian narrative. Some of them, instead of looking to the internal part of the painting, regard the spectator. The relationship with the landscape here happens in a different manner than with Jan van Eyck: instead of introducing inside the landscape, Ghirlandaio transforms nature into a setting, background for the action. It is interesting to notice that in the rare occasions when the group portrait appears in the Italian ifteenth century art, it is inside a narrative. Meanwhile, in the Netherland and, by extension, in the “North of Europe”, the igures seem to be coordinated to the spectator. Even when gathered in groups, their existence seem single and it gives the impression that those bodies are there only to be observed, without the need to form a unit with the narrative. If in a painter like Frans Hals, the best group portraitist according to Riegl,13 these poles are balanced, his portraits being among coordination and subordination in relation to the spectator, in the “Dutch painting” of the ifteenth century, the ield of coordination would be clearer. For Riegl, the group portrait is, par excellence, a Northern artistic genre. RIEGL, Alois. the group portraiture of holland. Los Angeles: The Getty Research Institute for the History of Art and Humanities, 1999, pp. 61-65. 12 RIEGL, Alois. the group portraiture of holland. los angeles: The Getty Research Institute for the History of Art and Humanities, 1999, ps. 321-351. 13 de uma obra, grosso modo, contemporânea à pintura atribuída a Nuno Gonçalves. Mesmo que se encontrem agrupados à direita e de certo modo destacados das iguras de Jesus Cristo e dos apóstolos, o grupo de retratos está subjugado à narração e, inclusive, parece admirar a cena sacra que se sucede ao seu lado. Integrantes das famílias Soderini, Tornabuoni e Vespucci foram retratados. Estas pessoas funcionam como uma espécie de coro para a narrativa cristã. Algumas delas, no lugar de olhar para o espaço interno da pintura, lançam seu olhar para o espectador. A relação com a paisagem aqui se dá de modo diferente do que ocorre em Jan van Eyck: no lugar da inserção dentro da paisagem, Ghirlandaio transforma a natureza em cenário, pano de fundo para a ação. Interessante constatar que nas raras vezes em que o retrato em grupo aparece na arte italiana do século XV, ele se encontra inserido ao lado de uma construção narrativa. Enquanto isso, na Holanda, e por extensão, no “Norte da Europa”, as iguras parecem estar coordenadas para o espectador. Mesmo reunidas em grupo, suas existências parecem individuais e a impressão tida é de que aqueles corpos estão ali apenas para serem observados, sem necessidade de haver uma unidade junto à narrativa. Se em um pintor como Frans Hals, o melhor retratista em grupo segundo Riegl,13 estes polos serão equilibrados, estando seus retratos entre a coordenação e a subordinação em relação ao espectador, dentro da “pintura holandesa” do século XV o campo da coordenação seria mais claro. O retrato em grupo, para Riegl, seria um gênero artístico nórdico por excelência. [Fig. 4] Podemos observar isso na obra que Riegl analisa no primeiro capítulo de seu livro, de Geertgen tot Sint Jans, intitulada “Os ossos de São Francisco” (1485, Kuntshistorischesmuseum, Viena).14 Permeando a composição, em uma diagonal, temos três grupos de retratos dos comanditários da obra. Como Riegl airma em seu texto, o pintor aqui não narra um encontro entre esses homens, mas meramente descreve sua existência em conjunto. Mesmo agrupados, os homens não estão articulados nem pelo jogo de olhares, nem pela sua gestualidade. São existências individuais, mas agrupadas visualmente. Diferente da pintura de Domenico Ghirlandaio, aqui eles estão divididos em três pequenos grupos e, além disso, não apresentam nenhuma conexão direta com as cenas religiosas que se sucedem no priRIEGL, Alois. the group portraiture of holland. Los Angeles: The Getty Research Institute for the History of Art and Humanities, 1999, pp. 321-351. 14 ibidem, pp. 68-84. 13 RHAA 22 127 raphael Fonseca meiro plano e ao fundo. Devido a essa “autonomia” do retrato em grupo holandês durante o século XV, segundo Riegl, o mesmo se tornaria um gênero especíico dentro da pintura nórdica nos séculos XVI e XVII, não precisando sequer de uma justiicativa narrativa para sua existência. Geertgen tot Sint Jans seria a semente de uma tradição pictórica que desembocaria, por exemplo, na “Ronda noturna” (1642, Rijksmuseum, Amsterdã), de Rembrandt van Rijn. Ao enquadrar Nuno Gonçalves à “[...] discrição dos antigos e italianos pintores”, Francisco de Holanda nos remete também a escritos de historiadores da arte como Enrico Castelnuovo15 e, principalmente, John Pope-Hennessy.16 Estes apontam que a origem do retrato individual na Itália se dá, justamente, com a inserção de iguras cívicas em pinturas religiosas, tal qual na obra de Ghirlandaio citada acima, além de outros afrescos famosos do pintor, como os da Capela Sassetti e da Igreja Santa Maria Novella. Este seria o princípio do chamado “culto à personalidade”, título do capítulo primeiro de “The portrait in the Renaissance”, de Pope-Hennessy: retratos celebrativos não apenas da família dos comanditários da obra, mas também de outras famílias importantes e inluentes politicamente. Ao partirmos do princípio de que a pintura atribuída a Gonçalves tem também uma dimensão religiosa, vide a inserção da imagem de São Vicente, além, claro, de retratar a família de D. Afonso V e representar diversas camadas sociais portuguesas, não poderíamos iliá-la também a esta produção de afrescos lorentinos durante o século XV? Parece que não só a arte em Portugal, mas também os escritos de Francisco de Holanda estão em uma espécie de espaço limiar. Plasticamente, o “Políptico de São Vicente” estabelece um diálogo com Jan van Eyck, ao passo que quanto à organização das iguras enquanto retrato de grupo haveria uma proximidade maior com a tradição da retratística celebrada por Riegl. Por outro lado, especialmente após reler as palavras escritas por Holanda quanto à obra, poderíamos vinculá-lo também ao retrato inserido na narrativa religiosa. Estas diversas possibilidades de abordagem à obra atribuída a Nuno Gonçalves reforçam o cuidado que deve ser tomado ao se iliar CASTELNUOVO, Enrico. retrato e sociedade na arte italiana. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 43-47. 16 POPE-HENNESSY, John. the portrait in the renaissance. Nova York, Pantheon Books: 1963, pp. 3-63. 15 128 RHAA 22 [Fig. 4] We can observe that in the painting that Riegl analyses in the irst chapter of his book, by Geertgen tot Sint Jans, entitled “The bones of San Fracisco” (1485, Kuntshistorischesmuseum, Vienna).14 In the canvas there are, organized in a diagonal, three groups of portraits of the commissioners. As Riegl writes in his text, the painter here does not narrate an encounter among those men, but merely describes their existence in a whole. Even in a group, the men are neither articulated by the looks, nor by their gestures. They are single existences, but visually grouped. Different from Domenico Ghirlandaio’s paintings, here they are divided in three small groups and, besides, they do not present any direct connection with the religious scenes in the foreground and background. According to Riegl, due to this “independence” of the Dutch group portrait during the ifteenth century, the same would become a speciic genre within Northern painting in the sixteenth and seventeenth centuries, without the need for a narrative explanation for its existence. Geertgen tot Sint Jans would be the seed of a pictorial tradition that culminates, for example, with the “Night watch” (1642, Rijksmuseum, Amsterdam), from Rembrandt van Rijn. When framing Nuno Gonçalves with the “... description of the Ancient and Italian painters”, Francisco de Holanda brings us to writings from art historians such as Enrico Castelnuovo15 and particularly John Pope-Hennessy.16 They point out that the origin of the individual portrait in Italy starts precisely with the inclusion of civil igures in religious paintings, as in Ghirlandaio’s artwork mentioned above, besides other famous frescoes from the same painter like those in Capela Sassetti and the church of Santa Maria Novella. This would be the beginning of the so called “cult of the personality”, title of the irst chapter of “The portrait in the Renaissance”, from Pope-Hennessy: celebratory portraits, not only of the commissioner’s family, but also from other important and politically inluent families. If we assume that the painting attributed to Gonçalves also has a religious dimension — see ibidem, pp. 68-84. CASTELNUOVO, Enrico. retrato e sociedade na arte italiana. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 43-47. 16 POPE-HENNESSY, John. the portrait in the renaissance. Nova Iorque, Pantheon Books: 1963, pp. 3-63. 14 15 Francisco de Holanda the inclusion of the image of St Vincent — besides, of course, portraying D. Afonso V’s family and representing several Portuguese social levels, could we not relate it also to this production of Florentine frescoes during the ifteenth century? It seems that not only the art in Portugal, but also Francisco de Holanda’s writings are in a border line. Plastically, the “Polyptych of St Vincent” establishes a dialogue with Jan van Eyck. Yet, concerning the organization of the igures as a group portrait, there would be a closer proximity with the portrait tradition celebrated by Riegl. On the other hand, especially after rereading the words written by Holanda about the art piece, we could also connect him to the portrait included in the religious narrative. These many possibilities of approach regarding the painting attributed to Nuno Gonçalves reinforce the attention that should be given when relating a geographic unit to artistic shapes or models.17 [Fig. 5] Going back to Francisco de Holanda and to his appreciation of the possible “group portrait” made by Nuno Gonçalves, we should analyze the single group portrait of his authorship that has survived. Dated between 1552 and 1554, that is, inished a few years after having written “To take from the natural”, it is a representation of the “Annunciation of Our Lady of Bethlehem” (1552-54, National Museum of Ancient Art, Lisbon), possibly commissioned by João III and Catherine of Austria for the Jerónimos Monatery.18 Francisco de Holanda includes a religious narrative in the painting, as in Ghirlandaio’s example, and paints D. João III’s family to the left, as a As mentioned by Luiz Marques, “When admitting that the concept of model in the history of the art of the Renaissance remains as an indispensable mental tool, it will be the case of rethinking its determinations, avoiding, if possible, the logic of the circularity inherited from Burckhardt” (“Al admitirse que el concepto de modelo en la historia del arte del Renacimiento permanece como una herramiente mental imprescindible, será entonces el caso de repensar sus determinaciones, evitando si posible la lógica de la circularidad legada por Burckhardt”) in MARQUES, Luiz. “Una paradoja sobre las relaciones entre Italia y España en el Renacimiento y la hipótesis de un modelo español” in el modelo italiano en las artes plásticas de la Península ibérica durante el renacimiento. Valladolid: Universidade de Valladolid, 2004, p. 81. 18 ALVES, José da Felicidade. introdução ao estudo da obra de Francisco de holanda. Lisboa: Livros Horizonte, 1986, pp. 96-98. 17 uma unidade geográica a uma forma ou modelo artístico.17 [Fig. 5] Retornando à igura de Francisco de Holanda e à sua apreciação do possível “retrato em grupo” feito por Nuno Gonçalves, cabe analisarmos o único retrato em grupo de sua autoria que nos foi legado. Datada entre os anos de 1552 e 1554, ou seja, concluída poucos anos após o término da escrita de “Do tirar pelo natural”, temos aqui uma representação da “Anunciação da Nossa Senhora de Belém” (1552-54, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa), possivelmente encomendada por D. João III e Dona Catarina de Áustria para o Mosteiro dos Jerônimos.18 Francisco de Holanda insere na pintura uma narrativa religiosa, tal qual o nosso exemplo de Ghirlandaio, e pinta a família de D. João III à esquerda, dentro do modelo do retrato de comanditário ou retrato de doador. Do outro lado da tela, um grupo de religiosos louva de modo expansivo a igura da Virgem Maria. Enquanto isso, as pessoas que encomendaram a obra se encontram em oração/ admiração discreta da igura religiosa ao centro. Seus corpos, tomando os polos analíticos propostos por Alois Riegl, parecem estar entre a coordenação para o espectador e a subordinação à ação interna. A igura do papa Júlio III, à direita e quase integralmente de costas para nossos olhos, é o que mais movimenta seu corpo, chegando mesmo a se colocar de joelhos e a unir suas mãos no gesto da oração. O cardeal D. Henrique, trajando vermelho e ao fundo deste grupo, também coloca suas mãos à frente, assim como o infante D. Luís, ao seu lado. Já D. João III, à esquerda do papa, apenas volta seu olhar para a presença santa, abraçado ao príncipe D. João, que apenas ensaia um erguer de mãos. Que relações podem ser feitas entre esta obra de Francisco de Holanda e a obra atribuída a Nuno Gonçalves? Em ambas as obras há um esforço pelo retrato em grupo. O modo como Holanda tenta dar ritmo ao seu retrato por meio do jogo de diferentes ângulos dos rostos retratados lembra o modo como o Como diz Luiz Marques, “Al admitirse que el concepto de modelo en la historia del arte del Renacimiento permanece como una herramienta mental imprescindible, será entonces el caso de repensar sus determinaciones, evitando si posible la lógica de la circularidad legada por Burckhardt” in MARQUES, Luiz. “Una paradoja sobre las relaciones entre Italia y España en el Renacimiento y la hipótesis de un modelo español” in el modelo italiano en las artes plásticas de la Península ibérica durante el renacimiento. Valladolid: Universidade de Valladolid, 2004, p. 81. 18 ALVES, José da Felicidade. introdução ao estudo da obra de Francisco de holanda. Lisboa: Livros Horizonte, 1986, pp. 96-98. 17 RHAA 22 129 raphael Fonseca “Políptico de São Vicente” é pintado. Uma das maiores diferenças aqui, porém, é técnica: a obra atribuída a Nuno Gonçalves é uma pintura em escala monumental, medindo no total cerca de 207 x 504 cm e pintada a óleo e a têmpera. A “Anunciação”, de Holanda, é uma pequena obra de cerca de 32 x 45 cm, realizada também a óleo sobre madeira. A harmonia em grande escala vista na pintura do século XV é substituída por um grupo de retratos que é deveras inverossímil, seja pela falta de realce nos olhos destes homens e mulheres, seja pelo seu escalonamento de cabeças que parecem lutuar. As iguras pintadas por Holanda não parecem “respirar” como as iguras representadas por Nuno Gonçalves. Além disso, a utilização de palavras douradas que indicam as identidades dos retratados, se por um lado não deixa margem para dúvida de que as isionomias do “Políptico de São Vicente” nos legaram, por outro pode denotar um artifício arcaizante, relacionável, por exemplo, com a pintura religiosa produzida durante os séculos XIV e meados do XV. Se Francisco de Holanda elogia o “retrato em grupo” de Nuno Gonçalves, mas enquanto retratista não segue propriamente as trilhas de sua “águia”, com quais outras tradições de imagens ele estava a dialogar ao realizar este seu retrato da família de D. João III? Uma resposta plausível parece advir da própria escala desta pintura: se recortarmos apenas o retrato pintado por Holanda, teremos uma imagem de cerca de 18 x 14,5 cm, ou seja, uma imagem menor do que o tamanho de uma folha de papel A4. Parece, portanto, que se Holanda dialoga com alguma tradição imagética latente em Portugal, esta é a tradição da miniatura. [Figs. 6 e 7] Uma série de miniaturas a óleo (16 x 13 cm) da coleção da Galleria Nazionale di Parma foi atribuída a Francisco de Holanda pelos historiadores Giuseppe Bertini e Annemarie Jordan-Gschwend, que as dataram como sendo de meados do século XVI.19 Trata-se de vinte e quatro retratos que representam tanto a família Farnese, quanto a família de D. João III. Bertini20 localiza os modelos nos quais estão baseadas as efígies dos Farnese (Tiziano Vecellio), ao passo que Jordan-Gschwend estabelece alguns cruzamentos entre as miniaturas da família real portuguesa e a retratística aqui já comentada, de Anthonis Mor. A historiadora diz que é “[...] legítimo supor que as miniaturas JORDAN-GSCHWEND, Annemarie. o retrato de corte em Portugal – o legado de antonio Moro (1552-1572). Lisboa: Quetzal Editores, 1994, p. 43. 20 BERTINI, Giuseppe. “Le miniature farnesiane”. FMr. Milão, no 74, 1989, pp. 83-91. 19 130 RHAA 22 commissioned portrait or portrait of donor. In the other side of the canvas, a group of religious people expansively praises the igure of the Virgin Mary. Meanwhile, the people who commissioned the artwork meet while discretely admiring the religious igure in the center. Their bodies, considering the analytical poles suggested by Alöis Riegl, seem to be between the coordination to the spectator and the subordination to the internal action. The character of Pope Julius III, to the right and almost completely turning his back to the observer, is the one who most moves his body, even kneeling and putting his hands together in the gesture of praying. The Cardinal D. Henrique, wearing red and in the back of this group, also puts his hand in front of his body, as well as the Infant D. Luís, by his side. D. João III to the left of the Pope, only brings his gaze to the saintly presence, hugging prince D. João, who only starts to raise his hands. What relationships can be established between Francisco de Holanda’s artwork and the one attributed to Nuno Gonçalves? In both paintings there is an attempt to be a group portrait. The way through which Holanda tries to give rhythm to his portrait, playing with different angles in the portrayed faces, recalls the way the “Polyptych of St Vincent” is painted. One of the greatest differences here, however, is the technique: the art piece attributed to Nuno Gonçalves is a painting in monumental scale, measuring about 207 x 504 cm and painted in oil and tempera. Holanda’s “Annunciation” is a small artwork measuring only around 32 x 45 cm, also painted in oil on wood. The harmony in big scale seen in the ifteenth century painting is replaced by a group of portraits that is very implausible for the lack of highlight in the eyes of those men and women, or for the scaling of heads that seem to loat. The igures painted by Holanda do not seem to “breath”, as do the ones represented by Nuno Gonçalves. Besides, on one hand, if the use of golden words that indicate the identity of people portrayed do not let any doubt about the physiognomies in the “Polyptych St Vincent”, on the other hand they can denote an archaizing resource, relatable, for example, with the religious painting produced in the fourteenth and the middle of the ifteenth century. If Francisco de Holanda praises the “group portrait” of Nuno Gonçalves but, as a portraitist, does not follow properly the “tracks of his ‘eagle’”, with which other traditions of images was he convers- Francisco de Holanda ing when he made this portrait of D. João III’s family? A plausible answer seems to come from the very scale of the painting: if we cut only the portrait painted by Holanda, we will have an image of about 18 x 14,5 cm, that is, an image that is smaller than an A4 sheet paper. It seems, then, that if Holanda converses with a latent pictorial image in Portugal, it is the tradition of the miniature. [Figs. 6 and 7] A series of miniatures in oil (16 x 13 cm) from the collection of the Galleria Nazionale di Parma was attributed to Francisco de Holanda by the historians Giuseppe Bertini and Annemarie Jordan-Gschwend, who dated them from the middle of the sixteenth century.19 There are twenty-four portraits that represent the Farnese Family, as well as D. João III’s family. Bertini20 locates the models on which the Farnese efigies are based (Tiziano Vecellio), while Jordan-Gschwend establishes a few crossings between the miniatures of the Portuguese royal family and the portraiture of Anthonis Mor, formerly mentioned. The historian says that it is “legit to suppose that the Farnese miniatures had been commissioned in 1565 by the queen of Portugal as a wedding gift for her niece Maria of Portugal, future princess of Parma”.21 Eight are the portraits of the family of D. João III, including the efigy of Joanna of Austria, Charles V’s daughter and wife of the Prince João of Portugal (1550-70, Galleria Nazionale de Parma). Thinking about the relationship of this painting with other produced during the sixteenth century in Portugal, it inevitably comes to mind another portrait of Joanna of Austria, painted by the Portuguese Cristóvão de Morais (1533, Musée Royaux des Beaux-Arts de Belgique, Brussels). Also observing the portraits that Holanda made in miniature of João III and Catherine of Austria, the copies made after Anthonis Mor are evident. [Figs. 8, 9, 10 and 11] Regarding the two other miniatures, the ones of Maria of Portugal and Isabella of Braganza, we wonder if Holanda had in fact copied a painter or if he himself had made portraits “taken from the natural” of the two members of the court. Mor’s paintings that can have been Farnese tenham sido encomendadas em 1565 pela rainha de Portugal, como presente de casamento para sua sobrinha Dona Maria de Portugal, futura princesa de Parma”.21 JORDAN-GSCHWEND, Annemarie. o retrato de corte em Portugal – o legado de antonio Moro (1552-1572). Lisboa: Quetzal Editores, 1994, p. 43. 20 BERTINI, Giuseppe. “Le miniature farnesiane”. FMr. Milão, nº 74, 1989, ps. 83-91. 21 Idem to footnote 147. Com isso, ao apreciar novamente a “Anunciação”, de Francisco de Holanda, é possível ler esse grupo de pessoas como um 19 Oito são os retratos da família de D. João III, incluindo a efígie de Dona Joana de Áustria, ilha de Carlos V e esposa do Príncipe D. João de Portugal (1550-70, Galleria Nazionale di Parma). Pensando nas relações desta pintura com outras produzidas durante o século XVI em Portugal, é inevitável vir à mente outro retrato de Dona Joana de Áustria, pintado pelo português Cristóvão de Morais (1533, Musée Royaux des Beaux-Arts de Belgique, Bruxelas). Ao observarmos também os retratos que Holanda fez em miniatura de D. João III e Dona Catarina de Áustria, icam claras as cópias feitas de obras de Anthonis Mor. [Figs. 8, 9, 10 e 11] Quanto a outras duas miniaturas, as de Dona Maria de Portugal e Dona Isabel de Bragança, perguntamo-nos se Holanda efetivamente teria copiado algum pintor ou se ele mesmo teria realizado retratos “tirados pelo natural” das duas integrantes da corte. As obras de Mor que podem ter servido como modelos não foram encontradas, e a ausência dessas imagens nos leva a reletir sobre até que ponto uma interpretação que quase sempre vê a produção de Francisco de Holanda enquanto cópia (tal qual Jordan-Gschwend faz em seu livro) é válida para sua produção de imagens. [Figs. 12 e 13] Todos estes integrantes miniaturizados da corte de D. João III também foram incluídos dentro do retrato de família feito por Holanda em sua “Anunciação”. Dona Catarina é pintada com outra veste, mas com a mesma posição da cabeça e com um leve abrir de lábios que dá certo movimento à composição. Enquanto isso, Dona Maria de Portugal é representada de modo invertido, porém com a mesma expressão sonolenta nos olhos e as mesmas joias em seu cabelo. Ao fundo do retrato em grupo, enxergamos Dona Isabel de Bragança com o mesmo traje religioso. As letras douradas que apontam nas miniaturas as identidades dos retratos também estão na pequena pintura de Holanda, como já aqui comentado. Deste modo, podemos dar uma nova interpretação à inclusão destas palavras, para além de uma tradição arcaizante, inserindo o campo da miniatura e da iluminura em nossa interpretação. 21 idem a nota 147. RHAA 22 131 raphael Fonseca grupo de miniaturas, visto também a ileira de rostos em que esse retrato se transforma a partir do segundo plano de iguras, logo atrás de D. João III e do papa Júlio III. A pequena escala deste retrato, quando colocada ao lado das miniaturas de Parma, contribui para esta interpretação. [Figs. 14, 15 e 16] Os retratos iluminados por Francisco de Holanda para seu “Álbum de desenhos das antigualhas” (153840, Biblioteca do Mosteiro do Escorial) merecem destaque. Logo após a portada desta série de desenhos, como imagens introdutórias à obra, temos um retrato de Michelangelo Buonarroti e outro do então papa Paulo III. Ao observar esta segunda imagem, imediatamente a igura pintada por Holanda do papa Júlio III vem à mente. É como se Francisco de Holanda tivesse rotacionado a igura papal iluminada e a colocasse perante a Virgem Maria. Não apenas a estrutura do corpo é semelhante, como as mãos erguidas à frente (em oração na pintura e denotando a fala ou a bênção na iluminura) com seus dedos longos e inos aparecem em ambas as composições. As outras iguras que estendem suas mãos também lembram o modo como Holanda dá forma às mãos do papa Paulo III. Os tons dourados da vestimenta papal se repetem nessa iluminura e as palavras que informam quanto à identidade do retratado aqui aparecem em formato de circunferência, assim como o retrato em si. Ao olhar os dois outros retratos inseridos no “Álbum de desenhos das antigualhas”, ou seja, os de Michelangelo Buonarroti e do doge Pietro Lando, o formato circular também encontrado no retrato do papa Paulo III chama a atenção. Quando em dois dos três retratos percebemos que os homens são representados em peril, o primeiro modelo que nos vem à mente são as moedas romanas antigas que estampavam as efígies dos imperadores, generais e integrantes do governo da República e do Império Romano do Ocidente. Tais imagens podem ter sido apreciadas por Francisco de Holanda durante sua estada em Roma entre os anos de 1538 e 1540 ou mesmo poderiam existir dentro da corte de D. João III em coleções. Ao comparar estes retratos com, por exemplo, uma moeda celebrativa do imperador Tibério Cláudio (42 a.C.-37 d.C.), o rosto em peril é o primeiro elemento que merece destaque. Seguinte a isto, a opção por circundar o retrato com a identiicação em latim do retratado também está presente não apenas nos retratos em peril feitos por Holanda, mas também no retrato do papa Paulo III. Por outro lado, se nas moedas romanas geralmente 132 RHAA 22 models were not found, and their absence make us think to what extent an interpretation that almost always sees the production of Francisco de Holanda as a copy (as Jordan-Gschwend wrote in her book) is valid for his production of images. [Figs. 12 and 13] All the miniature members of the court of João III have also been included in the family portrait made by Holanda in his “Annunciation”. D. Catherine is painted with another vest, but with the head in the same position and with the lips slightly opened, which gives motion to the composition. On the other hand, D. Maria of Portugal is represented inverted, but with the same sleepy expression in her eyes and the same jewelry in her hair. In the back of the group portrait, we see Isabella of Braganza with the same religious garment. The golden letters that point out, in the miniatures, the identities of the portraits, are also in Holanda’s small painting, as previously mentioned here. Thus, we can provide a new interpretation to the inclusion of those words, further then an archaizing tradition, including the ield of miniature and illumination in our interpretation. Therefore, when observing once more Francisco de Holanda’s “Annunciation”, it is possible to read this group of people as a miniature group, also considering the line of faces in which the portrait turns to, from the second plane of igures on, right behind D. João III and the Pope Julius III. The small scale of this portrait, when put beside the miniatures from Parma, contributes to this interpretation. [Figs. 14, 15 and 16] The portraits illuminated by Francisco de Holanda for his “Album of Ancient drawings” [Álbum de desenho das antigualhas] (1538-40, Biblioteca do Mosteiro do Escorial) deserve to be highlighted. Right after the front of this series of drawings, as introductory images to the work, we have a portrait of Michelangelo Buonarroti and another of the then Pope Paul III. When observing this second image, the igure of Pope Julius III painted by Holanda comes to mind. It is as if Francisco de Holanda had turned the illuminated papal igure and put it in front of the Virgin Mary. It is not only the structure of the body that is similar, like the hands raised to the front (praying in the painting and denoting speech or blessing in the illumination) with its long and thin ingers appearing in both compositions. The other igures who raise their hands also remind us of the way Holanda gives shape to the hands Francisco de Holanda of Pope Paul III. The golden tons of the papal vesture repeat themselves in the illumination and the words that inform about the identity of the person portrayed here appear in the shape of a circumference, as well as the portrait itself. Looking to the other two portraits included in the “Album of Ancient drawings”, that is, those of Michelangelo Buonarroti and of doge Pietro Lando, the circular shape also seen in the portrait of Pope Paul III calls attention. When, in two of the portraits, we realize that the men are represented in proile, the irst models that comes to mind are the ancient Roman coins that used to show the efigies of the Emperors, generals and members of the government of the Republic and the Western Roman Empire. Such images can have been observed by Francisco de Holanda during his stay in Rome between the years 1538 and 1540, or even could have existed in collections inside the court of D. João III. Comparing these portraits with, for example, a celebrative coin of the Emperor Tiberius Claudius (42 B.C. – 37 A.D.), the face in proile is the irst element that deserves to be highlighted. Following that, the option of circling the portrait with the Latin identiication of the person portrayed is also present not only in the proile portraits made by Holanda, but also in the portrait of Pope Paul III. On the other hand, if in the Roman coins the Emperors are usually portrayed as turned to our right side, in Holanda’s portraits the proiles are turned to the left. While only one side of the face and the neck are represented in these coins, in Holanda’s illuminations one third of the body is showing and with the signiicant inclusion of the arms, as in the case of Michelangelo’s portrait. [Figs. 17 and 18] The laurel on Tiberius’s head are taken to the back of the composition and recoded as an attribute of Michelangelo Buonarroti. The same can be said about the crown of roses to his left and also about the keys of the church right above Paul III’s head. Such organization of the attributes of the portrait, without the need of putting them on a table or of being carried by the human igures, also occurs in the ancient Roman portraiture. This can be seen, for example, in a posthumous portrait of Pompey, the Great (106 – 48 B.C.), in which he is associated with Neptune due to his famous maritime campaigns. Being the Roman tradition that of portraying only he face of the Emperors, it is fair that their attributes os imperadores se encontram retratados virados para o nosso lado direito, nos retratos holandianos os peris voltam-se para a esquerda. Enquanto nestas moedas apenas um lado do rosto e do pescoço é representado, nas iluminuras de Holanda um terço do corpo está à mostra e com a inclusão signiicativa dos braços, como no caso do retrato de Michelangelo. [Figs. 17 e 18] Os louros que se encontram sobre a cabeça de Tibério são levados para o fundo da composição e são recodiicados como um atributo de Michelangelo Buonarroti. O mesmo pode ser dito da coroa de rosas ao seu lado esquerdo e também das chaves da Igreja logo acima de Paulo III. Tal organização de atributos dos retratos, sem a necessidade de colocá-los sobre uma mesa ou mesmo ser portados pelas iguras humanas, também ocorre dentro da retratística romana antiga. Isto pode ser visto, por exemplo, em um retrato póstumo de Pompeu, o Grande (106 a.C.-48 a.C.), em que ele é associado a Netuno devido às suas célebres campanhas marítimas. Sendo a tradição romana a de retratar apenas o rosto dos imperadores, é justo que seus atributos apenas possam repousar ao lado da efígie ou então no verso da moeda. As imagens de Francisco de Holanda parecem, portanto, uma releitura da antiguidade romana pelo viés da iluminura. Imagens que celebram o poder político (Pietro Lando), artístico (Michelangelo Buonarroti) e religioso (Paulo III) e que condizem com o projeto do “Álbum de desenhos das antigualhas” de sintetizarem obras, costumes e pessoas com quem Francisco de Holanda teve contato durante sua viagem à Itália. [Fig. 19] Não devemos nos esquecer de que o pai de Francisco de Holanda, Antônio de Holanda, era iluminador e pertencente à corte de D. Manuel. Não por acaso, voltando às suas “Tábuas dos maiores artistas da Renascença”, logo após a listagem das “águias” da “pintura moderna”, Francisco irá listar “os famosos iluminadores da Europa”. Seu pai igura em primeiro lugar: “A Antonio D’Ollanda, meu pai, podemos dar a palma e juízo, por ser o primeiro que fez e achou em Portugal o fazer suave de preto e branco, muito melhor que em outra parte do mundo”.22 Parte da produção de iluminuras de Antônio de Holanda diz respeito a árvores genealógicas. Quando são comparados os retratos inseridos dentro da “Genealogia de Manuel Pereira” HOLANDA, Francisco de. diálogos em roma. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p. 90. 22 RHAA 22 133 raphael Fonseca (1534, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa) com os retratos de seu ilho no “Álbum de desenhos das antigualhas”, a ponte anterior feita com as moedas romanas pode ser ampliada. Trata-se de uma árvore genealógica cujos retratos estão dentro de circunferências. Se destacarmos o retrato de D. Manuel no topo de uma página da obra, temos, inclusive, o mesmo desenho de círculo encontrado na obra de Holanda. Não apenas isso, mas o posicionamento de seu corpo é semelhante ao do papa Paulo III, além da inserção de uma sombra à sua direita, como no retrato de Pietro Lando. A mão de D. Manuel, que segura uma espada que em sua ponta tem uma esfera armilar, é tão lutuante e pouco verossímil quanto as mãos de Michelangelo que surgem da veste preta iluminada por Francisco de Holanda. [Figs. 20 e 21] A “Genealogia do Infante D. Fernando” (1530-34, British Museum, Londres), possuidora de um projeto genealógico que se inicia com o Tronco de Magog, perpassa os troncos de Leão, Castela e Hungria, até chegar aos troncos da família real portuguesa, sendo também realizada por Antônio de Holanda e em parceria com Simon Bening.23 Neste exemplo acima, o quinto fólio, relativo aos reis de Aragão, além de os retratos aparecerem circunscritos em uma espécie de janela, outros podem ser os pontos de contato com a produção de Francisco de Holanda. Encontramos as mesmas cores utilizadas na paleta de seu caderno de desenhos. Além disso, se ali as identidades dos retratos apareciam em círculo e se na “Anunciação” elas eram dadas por meio do dourado, aqui elas são inscritas dentro dos limites de seus enquadramentos, acima dos retratados. Aqui enquadrados em meio corpo, os modos como estas iguras são pintadas irão relembrar a forma como a família de D. João III é representada também na “Anunciação” de Francisco de Holanda. Se sobrepuséssemos alguns destes retratos teríamos mesmo uma espécie de inventário de poses que pode ser pensado como um ponto de partida para o retrato feito pelo ilho de Antônio de Holanda. Simon Bening, inclusive, é listado por Holanda entre os grandes iluminadores europeus: “Mestre Simão entre os lamengos foi o mais gracioso coloridor e que melhor lavrou as árvores e os longes”.24 Antônio de Holanda foi o responsável pelo projeto AGUIAR, Antônio de. a genealogia iluminada do infante dom Fernando por antônio de holanda e simão Bening. Lisboa, 1962. 24 HOLANDA, Francisco de. diálogos em roma. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p. 90. 23 134 RHAA 22 can only rest next to the efigy, or in the back of the coin. The images of Francisco de Holanda seem, therefore, to be a rereading of ancient Rome through illumination. Images that celebrate the political (Pietro Lando), artistic (Michelangelo Buonarroti) and religious power (Paulo III) and that are consistent with the project of the “Album of Ancient drawings” of synthesizing artworks, habits and people with whom Francisco de Holanda had contact throughout his trip to Italy. [Fig. 19] We should not forget that Francisco de Holanda’s father, Antônio de Holanda, was illuminator and belonged to the court of D. Manuel. It was not a coincidence that, returning to his “Plates of the greatest artists from the Renaissance”, right after listing the “eagles” of the “modern painting”, Francisco would list “the famous illuminators in Europe”. His father stands is the irst position: “To Antonio D’Ollanda, my father, we can give the palm and the wisdom, for being the irst one who made and found in Portugal the gentle did of the black and white, much better than in other parts of the world”.22 Part of Antônio de Holanda’s illumination production regards family trees. When the portraits included in the “Genealogy of Manuel Pereira” (“Genealogia de Manuel Pereira”) (1534, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisbon) are compared with the portraits of his son in the “Album of Ancient drawings”, the bridge previously made with Roman coins can be extended. It is a family tree whose portraits are inside circumferences. If we highlight the portrait of D. Manuel in the top of a page of that work, we will have the same circle as can be found in Holanda’s work. Not only that, but the position of his body is similar to that of Pope Paul III, besides a shadow included in the right, as in the portrait of Pietro Lando. The hand of D. Manuel, that holds a sword with an armillary sphere on the top, seems to be loating and is as little plausible as Michelangelo’s hands that appear from the black vest, illuminated by Francisco de Holanda. [Figs. 20 e 21] The “Genealogy of the Infant D. Fernando” (“Genealogia do Infante D. Fernando”) (1530-34, British Museum, London), which has a genealogical project that starts with the Trunk of Magog, runs through the Trunk of 22 HOLANDA, Francisco de. diálogos em roma. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p. 90. Francisco de Holanda Lion, Castilla and Hungary until the Trunks of the royal Portuguese family, also being made by Antônio de Holanda in collaboration with Simon Bening.23 In this example above, the ifth folio, regarding the kings of Aragon, besides having the portraits circumscribed in a kind of window, there can be other points of contact with Francisco de Holanda’s production. We ind the same colors that are used in the pallet in his sketchbook. Besides, if the identities of the portraits there appear in circles and if in the “Annunciation” they are present in gold, here they are inscribed within the limits of its frames, above the models. Framed in half body, the ways these igures are painted recall how the family of D. João III is represented, also in Francisco de Holanda’s “Annunciation”. If we could overlap some of these portraits, we would have a kind of inventory of poses that can be thought as a starting point for the portrait made by the son of Antônio de Holanda. Simon Bening is even listed by Holanda among the great European illuminators: “Master Simon among the Flemish was the most graceful colorist and who best plowed the trees and the far away”.24 Antônio de Holanda was the responsible for the drawing project of the “Genealogy of the Infant D. Fernando” (“Genealogia do Infante D. Fernando”) and Bening was the colorist. The poles “drawing and color” appear in between the lines of this phrase by Francisco de Holanda. Associating a “Flemish” with color is, once more, putting aside the artistic production of the “North of Europe”, while aiming to celebrate the good “drawing” of his own father, a Portuguese man. The art historian Rafael Moreira draws attention to the last two chapters of “On Ancient Painting” entitled “On all genre and manners of painting” (“De todos os gêneros e modos do pintar”).25 In these texts, Holanda makes a kind of summary of the existing types of painting, that is, of the painting techniques that he knows and admires. In the irst place he mentions the importance of the drawing: “The sketch produces the design, which is the proportion and order of the painting, and AGUIAR, Antônio de. a genealogia iluminada do infante dom Fernando por antônio de holanda e simão Bening. Lisboa, 1962. 24 HOLANDA, Francisco de. diálogos em roma. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p. 90. 25 idem. 23 em desenho da “Genealogia do Infante D. Fernando” e Bening, o colorista. Os polos “desenho e cor” surgem nas entrelinhas desta frase de Francisco de Holanda. Associar um “lamengo” com a cor é, mais uma vez, colocar em detrimento a produção artística do “Norte da Europa”, visando celebrar o bom “desenho” realizado por seu próprio pai, um português. O historiador da arte Rafael Moreira chama a atenção para os dois últimos capítulos de “Da pintura antiga”, intitulados “De todos os gêneros e modos do pintar”.25 Nestes textos, Holanda irá fazer uma espécie de resumo em torno dos tipos de pintura existentes, ou seja, das técnicas de pintura que ele conhece e admira. Em primeiro lugar, ele comenta a importância do desenho: “O esquisso produz o desenho que é a proporção e ordem da pintura, e a invenção e decoro dela”.26 Na sequência ele inicia seus comentários sobre os “modos de pintar” justamente com a iluminação: [...] aqui ponho eu a iluminação em que me eu criei, pela obra que com pincel se faz mais delicadamente e mais suave e divina; e que é grande parte e mui necessária o começar por ela, para a perfeição e paciência e para as misclas de todas as cores da pintura. [...] A iluminação de branco e preto sobre pergaminho virgem e toques de ouro moído: esta é minha própria arte, e esta é a própria celestial maneira de pintura em este mundo. E meu pai foi o primeiro que a fez em Portugal em perfeição e fora da rusticidade, e com muita suavidade [...]27 Só depois de comentar as técnicas e grandes iluminadores que Francisco de Holanda irá voltar suas relexões para a pintura a óleo, a pintura em afresco, a têmpera, a grotesca, o estuque, os mosaicos e vitrais, exatamente nesta ordem. Rafael Moreira chama a atenção, portanto, para o lugar privilegiado da iluminura dentro de um estatuto dos “modos de pintar” na teoria holandiana. O carácter perfeitamente subjectivo e original desta hierarquia das artes ressalta quando a confrontamos com a introdução às famosas Vidas dos Pintores de Jorge Vasari, de 1550. Vasari confere posição cimeira ao fresco, à têmpera e ao óleo (por esta ordem), e trata em seguida de uma dezena de outras técnicas menores, do 25 idem. HOLANDA, Francisco de. da pintura antigua. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, pp. 87-92. 27 HOLANDA, Francisco de. da pintura antigua. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, pp. 88. 26 RHAA 22 135 raphael Fonseca esgraito ao vitral e ao mosaico – porém sem dedicar uma linha sequer à iluminura!28 O próprio artista explicita sua iliação com a iluminura devido à sua educação artística dentro desta técnica e, como possível causa disso, à experiência de seu pai. Não apenas o texto “Da pintura antiga” aponta para esta sua relação com a pequena escala, mas quando o autor se coloca em diálogo junto a Brás Pereira em “Do tirar pelo natural”, esse tópico novamente vem à tona. Sabendo que este seu amigo, nascido no Porto, também era artista e conhecido precisamente por seu talento com a iluminura, novamente a formação de Francisco de Holanda pode ser rememorada. Mais do que isso, segundo John Bury, a portada de um “Livro de armas” seu, datado de 1575, seria justamente um autorretrato do artista dentro de seu gabinete.29 A iluminura aqui seria tanto a técnica de realização desta imagem, quanto seu tema, vide a representação do artista dentro de seu ambiente de trabalho. Segundo Sylvie Deswarte-Rosa30 e Francisco de Macedo,31 a iluminura durante o século XVI possuía um estatuto diferenciado em comparação com o restante da Europa. Em outros ambientes artísticos a invenção da imprensa e a gravura substituem a iluminura. As galerias de retratos na Itália, tal qual a que Giorgio Vasari acaba por criar em suas “Vidas” por meio de gravuras, ou que Paolo Giovio cria em Como, a im de organizar efígies de homens célebres, em Portugal eram representadas por iluminuras e árvores genealógicas. A produção de imagens iluminadas em Portugal, especialmente durante e após o reinado de D. Manuel, apaixonado pelos livros iluminados, é muito valorizada. Isto se justiica, segundo Deswarte-Rosa e Macedo, devido às trocas comerciais e artísticas entre Portugal, Flandres e França, territórios onde a produção de MOREIRA, Rafael. “Novos dados sobre Francisco de Holanda”. sintra. Lisboa, vol. I-II, 1982-1983, p. 649. 29 HOLANDA, Francisco de. del sacar por el natural – según la traducción de Manuel denis (1563). Edição de John Bury. Madri: Ediciones Akal, 2008, p. 20. 30 DESWARTE, Sylvie. les enluminures de la leitura Nova (1504-1552): étude sur la culture artistique au Portugal au temps de l’humanisme. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian; Centro Cultura Português, 1977. 31 MACEDO, Francisco de. “Breves considerações sobre a iluminura no período dos Descobrimentos”. a iluminura nos descobrimentos. Lisboa: Editora Figueirinhas, 1990. 28 136 RHAA 22 its invention and the decorum”.26 Following, he begins his comments about the “manners of painting” precisely with illumination: ... here I put illumination, in which I created myself, by the artwork that is more delicately and smooth and divine made with brush; and which is a great deal and very necessary to begin with it, for perfection and patience and for the mixtures of all the colors of painting. (...) The illumination in black and white on virgin parchment and touches of ground god: this is my own art, and this is the very celestial manner of painting in this world. And my father was the irst who made it in Portugal with perfection and out of rusticity, and with great gentleness...27 Only after commenting on the techniques and the great illuminators will Francisco de Holanda turn his considerations to oil, fresco and tempera painting, grotesque, stucco, mosaic and stained glass, precisely in this order. Rafael Moreira calls attention, therefore, to the privileged place of illumination within the “manners of painting” in Holanda’s theory. The perfectly subjective and original character of this hierarchy of the arts emerges when we confront them with the introduction to the famous Lives of the Artists by Giorgio Vasari, from 1550. Vasari grants prominent position to fresco, tempera and oil (in this order), and addresses next a dozen of other minor techniques, from sgrafito to stained glass and mosaic – however without even mentioning illumination!28 The artist himself clariies his iliation to illumination due to his artistic education within this technique and, as a possible cause, to his father’s experience. Not only the text “On Ancient Painting” points to this relationship in small scale, but when the author puts himself in dialogue with Brás Pereira in “To take from the natural”, the same topic comes out. Bearing in mind that his friend born in Porto was also an artist and known precisely for his talent with illumination, 26 HOLANDA, Francisco de. da pintura antigua. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, pp. 87-92. 27 HOLANDA, Francisco de. da pintura antigua. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, pp. 88. 28 MOREIRA, Rafael. “Novos dados sobre Francisco de Holanda”. sintria. Lisboa, vol. I-II, 1982-1983, p. 649. Francisco de Holanda once again the education of Francisco de Holanda can be remembered. More than that, according to John Bury, the frontispiece of one of his “Book of arms”, dated in 1575, would be precisely a selfportrait of the artist inside his cabinet.29 The illumination here would be both the technique of the image and its theme, vide the representation of the artist inside his work environment. According to Sylve Deswarte-Rosa30 and Francisco de Macedo,31 the illumination during the sixteenth century had a differentiated status if compared to the rest of Europe. In other artistic environments, the invention of press and engraving replaced illumination. The portrait galleries in Italy, such as the one Giorgio Vasari created in his “Lives” through engravings, or as the one Paolo Giovio created in Como, aiming to organize efigies of famous men, in Portugal, were represented as illumination and family trees. The production of illuminated images in Portugal, especially during and after the reign of D. Manuel – who loved illuminated books – is very valued. This is justiied, according to DeswarteRosa and Macedo, due to the commercial and artistic exchanges among the Portuguese, Flemish and French territories, where the production of illumination was still eminent.32 These books would 29 HOLANDA, Francisco de. del sacar por el natural – según la traducción de Manuel denis (1563). Edição de John Bury. Madri: Ediciones Akal, 2008, p. 20. 30 DESWARTE, Sylvie. les enluminures de la leitura Nova (1504-1552): étude sur la culture artistique au Portugal au temps de l’humanisme. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian; Centro Cultura Português, 1977. 31 MACEDO, Francisco de. “Breves considerações sobre a iluminura no período dos Descobrimentos”. a iluminura nos descobrimentos. Lisboa: Editora Figueirinhas, 1990. 32 “Starting the sixteenth century, Europe has begun to prefer printed books illustrated with engravings; conversely, in Portugal the preference for decorated manuscripts remained, which were considered more consistent with the greatness of an empire. This way, while illumination would agonize in the traditionally producing centers, it lourished among us vigorously and with the great novelty of spreading to aulic and secular books. These, when emulating and competing in splendor with the religious books follow, in a irst moment, their costumes. It is the expansion of the illumination into the laic culture that constitutes one of the fundamental vectors of its lourishing in the reign of D. Manuel” (“Entrado o século XVI, a Europa começou a preferir livros impressos e ilustrados com gravuras; inversamente em Portugal continuou a preferência pelos manuscritos decorados, considerados mais consentâneos com a grandeza de um império. Deste modo, enquanto iluminuras ainda era eminente.32 Estes livros estariam entre “o tesouro e o monumento”, sendo um dos mais famosos a série de sessenta livros intitulada “Leitura Nova”. Esta, inclusive, conta também com a autoria de Antônio de Holanda. Se por um lado algumas frases de Francisco de Holanda fazem coro ao nosso esforço por interpretar seus retratos junto à produção de iluminuras e miniaturas em Portugal, outras delas parecem advir de uma apreciação direta da pintura de retratos italiana. Ao analisar sua própria produção de retratos, muito do que é airmado enquanto preceito em “Do tirar pelo natural” não condiz com o que foi produzido por suas mãos. No retrato de Michelangelo Buonarroti, em seu “Álbum de desenhos das antigualhas”, já temos como principal dissonância a opção pelo retrato em peril. Segundo Holanda, a melhor forma de se retratar um indivíduo é de modo “treçado”, ou seja, com o rosto em três quartos.33 Ao optar por outra solução formal, o tão necessário “realço nos olhos”34 que Holanda defenderá ao inal de sua escrita, não é perceptível. Nem o traje colocado em Michelangelo tem a idedignidade que ele prega no capítulo “Do vestido”: “[...] que sempre prometa estar debaixo dele a pessoa escondida e coberta ielmente [...]”.35 No retrato de Pietro Lando encontramos os mesmos problemas de defasagem entre imagem e texto presentes no “Retrato de Michelangelo”. O único destes seus retratos que faz correspondência com “Entrado o século XVI, a Europa começou a preferir livros impressos e ilustrados com gravuras; inversamente em Portugal continuou a preferência pelos manuscritos decorados, considerados mais consentâneos com a grandeza de um império. Deste modo, enquanto a iluminura ia agonizando nos centros tradicionalmente produtores, loresceu entre nós de modo pujante e com a grande novidade de se ter alargado aos livros áulicos e laicos. Estes, ao rivalizarem e competirem em esplendor com os livros religiosos, seguem, num primeiro momento, o igurino daqueles. É a extensão da iluminura à cultura laica que constitui um dos vetores fundamentais do seu lorescimento no reinado de D. Manuel” in MACEDO, Francisco de. ibidem, pp. 16-17. 33 “Fernando – Qual destes TRÊS modos vos disse ser o melhor? E qual deles elegereis por melhor escolhido e mais perfeito, o FRONTEIRO, ou o MEIO, ou o TREÇADO? Bras Pereira – Sabido está que o treçado, por ser o que mais dos extremos foge, e o tem onde se há de ter.” in HOLANDA, Francisco de. do tirar pelo natural. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p. 23. 34 “Digo que o último primor que se pode encerrar nesta doutrina, e a última e inal mão ou lição, com que dareis perfeição a toda obra, é o REALÇO e a clareza ou Resplendor primeiro, que dá a luz no Rosto sobre o mais alto dele, o qual acaba a OBRA e este LIVRO” in ibidem, p. 42. 35 HOLANDA, Francisco de. do tirar pelo natural. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p. 38. 32 RHAA 22 137 raphael Fonseca seus pressupostos escritos é o do papa Paulo III. Além de estar composto sobre a forma “treçada”, possui certa movimentação de linhas, dada por seu traje detalhado. Uma maior gama de cores é utilizada e, como Holanda constrói no decorrer de seu texto, a veste representada parece com seu portador; detendo-nos apenas sobre suas vestimentas, conseguimos perceber que se trata de uma igura de alto escalão na hierarquia religiosa. Logo, Holanda consegue algo essencial para sua teoria: dar a posição social do retratado no primeiro olhar, deixando sua verossimilhança facial em segundo. Mesmo assim, o rosto treçado da igura não se encontra inclinado a seu lado direito, mesmo que sua mão direita encontre-se erguida. Quanto aos retratos inseridos em sua “Anunciação”, duas iguras saltam aos olhos: a de Dona Catarina de Áustria e a de uma criança, D. Antônio, ilho do infante D. Luís, que se encontra ao lado de Dona Maria de Portugal. Seus rostos estão virados para o lado direito, fazendo jus às palavras de Holanda e se destacando facilmente da composição, como se izessem parte de outra ordem compositiva, ausentes da tentativa de agrupamento de pessoas em louvor à Virgem Maria. Deste agrupamento de retratos em miniatura, aquele que corresponde quase objetivamente com o texto holandiano, além de ser semelhante à forma de retratar presente nas miniaturas de Parma, é o de Dona Catarina. É nesta série de retratos que as palavras de Holanda ecoam visualmente de modo mais preciso. Todas as iguras estão retratadas voltadas à sua direita. Por serem retratos em pequena escala, o tão importante destaque e cuidado com a representação do rosto, elemento primordial da composição que Holanda prega em “Do tirar pelo natural”, se faz presente. Mais do que isso, à imponência de suas expressões faciais vêm somar os seus vestuários que denotam nobreza. A sobriedade de seus trajes contribui com o destaque de suas faces, frisando algo dito por Holanda acerca da importância da pintura dos olhos, pois “[...] deles tem começo toda a luz, e eles são as janelas e portas por onde tudo tem a entrada”.36 O que não pode ser esquecido é que algumas dessas imagens são efetivamente cópias de obras de Anthonis Mor. Por consequência, estas últimas são imagens que também se encontram HOLANDA, Francisco de. do tirar pelo natural. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p. 25. 36 138 RHAA 22 be between “the treasure and the monument”, one of the most famous being the series of sixty books entitled “New Reading”. This, also counting with Antônio de Holanda’s authorship. If, on one side, some of Francisco de Holanda’s statements echoes our efforts of interpreting his portraits together with the production of illuminations and miniatures in Portugal, others seem to come from a direct appreciation of Italian portrait painting. When analyzing his own portrait production, a lot of what is said as precepts in “To take from the natural” does not agree with what was produced by his hands. In the portrait of Michelangelo Buonarroti in his “Album of Ancient drawings”, we have as a main dissonance the option for the proile portrait. According to Holanda, the best way of portraying a subject is “in third”, that is, with the face in three quarters.33 When choosing another formal solution, the very necessary “highlight in the eyes”34 that Holanda will defend in the end of his writing, is not noticeable. Not even the costume put on a iluminura ia agonizando nos centros tradicionalmente produtores, loresceu entre nós de modo pujante e com a grande novidade de se ter alargado aos livros áulicos e laicos. Estes, ao rivalizarem e competirem em esplendor com os livros religiosos, seguem, num primeiro momento, o igurino daqueles. É a extensão da iluminura à cultura laica que constitui um dos vetores fundamentais do seu lorescimento no reinado de D. Manuel”) in MACEDO, Francisco de. Ibidem, ps. 16-17. 33 “Fernando – Which of these three manners did I say to be the best one? And which one of them will you elect as the best chosen and the most perfect, the FACING, or the PROFILE, or the IN THIRD? Bras Pereira – It is well known that it is the in third, for being the one that escapes from the extremes, and which is where it should be.” (“Fernando - Qual destes TRÊS modos vos disse ser o melhor? E qual deles elegereis por melhor escolhido e mais perfeito, o FRONTEIRO, ou o MEIO, ou o TREÇADO? Bras Pereira - Sabido está que o treçado, por ser o que mais dos extremos foge, e o tem onde se há de ter.”) in HOLANDA, Francisco de. do tirar pelo natural. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p. 23. 34 “I say that the last perfection that one can have in this doctrine, and the last and inal painting or lesson with which one will give perfection to the work, is the HIGHLIGHT and the irst clarity or Brightness, which illuminates the Face upon the highest of it, which inished the WORK and this BOOK” (“Digo que o último primor que se pode encerrar nesta doutrina, e a última e inal mão ou lição, com que dareis perfeição a toda obra, é o REALÇO e a clareza ou Resplendor primeiro, que dá a luz no Rosto sobre o mais alto dele, o qual acaba a OBRA e este LIVRO”) in Ibidem, p. 42. Francisco de Holanda Michelangelo has the reliability he defends in the chapter “On the vest”: “... may it always promise to be under it the person faithfully hiding and covered...”.35 In Pietro Lando’s portrait, we ind the same problems of discrepancy between image and text that are present in the “Portrait of Michelangelo”. The only one of these portraits that corresponds to his written assumptions is that of Pope Paul III. Besides being composed in the “in third” manner, it has a certain movement of lines, given by his detailed clothes. A greater range of colors is used and, as Holanda builds throughout his text, the clothes represented look like his owner; considering only his costumes we can notice that it is a person of high ranking in the religious hierarchy. Soon, Holanda reaches something essential to his theory: giving the social position of the model portrayed in the irst gaze, living his facial verisimilitude to the second moment. Even then, the face of the model in third is not leaning to his right, even with his hand raised. As for the portraits in his “Annunciation”, two igures stand out: that of Catherine of Austria and that of a child, D. Antônio, son of the infant D. Luís, who is next to D. Maria of Portugal. Their faces are turned to the right, doing justice to Holanda’s words, and easily standing out in the composition, as if being part of another order, absent from trying to group people in honor of the Virgin Mary. From this grouping of miniature portraits, the one that corresponds almost objectively with Holanda’s text, besides being similar to the manner of portraying present in the miniatures of Parma, it is that of Catherine. It is in this series of portraits that Holanda’s words visually echo in a more precise manner. All the models are portrayed turned to the right. Because they are portraits in small scale, the very important highlight and care with the representation of the face, primary element in the composition that Holanda defends in “To take from the natural”, is present. More than that, to the grandiosity of their facial expressions, their clothes that denote nobility are added. The soberness of their costumes contributes to highlight their faces, stressing something said by Holanda about the importance of the painting of the eyes, for “... from 35 HOLANDA, Francisco de. do tirar pelo natural. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p. 38. baseadas enquanto modelo das pinturas realizadas por Tiziano Vecellio, assumindo paradigma do retrato para Francisco de Holanda dentro de seu “Do tirar pelo natural”. A proximidade com a teoria holandiana aqui é compreensível e justiicável. [Figs. 22, 23 e 24] Uma interpretação para esta discrepância entre imagem e texto no que toca aos retratos em Francisco de Holanda seria a posição social do pintor em Portugal em meados do século XVI. Como airma Vitor Serrão, o pintor a óleo se encontrava no alto de uma hierarquia das técnicas de pintura, porém sem ter o mesmo prestígio, respeito e visibilidade de um mesmo pintor a óleo ativo na Itália, por exemplo.37 Devido a isso, podemos concluir que além de ser uma possível preferência artística de Francisco de Holanda, frisar sempre que necessário o nome de um artista tão famoso como Tiziano Vecellio pode ser interpretado como um modo de incentivar uma maior valorização da arte em Portugal. Francisco de Holanda elogia a retratística seja a partir da apreciação dos “retratos de Estado” na obra de Tiziano,38 seja junto à apreciação da pintura em Portugal, representada por Nuno Gonçalves (em “Da pintura antiga”). Enquanto retratista, porém, não é dentro destas tradições que realiza suas obras. Mesmo bebendo de fontes imagéticas da tradição da pintura a óleo em grandes proporções, propagada em Portugal após a estada de Anthonis Mor, Francisco de Holanda produz retratos que ao mesmo tempo em que dialogam formalmente com as obras de Tiziano, se distanciam destas tanto pela escala, quanto pelos suportes escolhidos, quanto mesmo pelas intenções artísticas. A memória propagada por estes retratos de Holanda é a da pequena efígie, da delicadeza, e talvez dialogue mais com uma igura como Nicholas Hilliard, miniaturista de Elizabeth I da Inglaterra, do que com os retratos de Estado de Carlos V. Após estas aproximações entre imagens, parece claro o peso que a técnica da iluminura tem sobre sua produção visual. Holanda parece se encontrar em uma espécie de impasse entre a admiração de modelos italianos e o respeito pela tradição dos pequenos retratos em Portugal. Enquanto em alguns exemplos existe um claro esforço em SERRÃO, Vitor. o maneirismo e o estatuto social dos pintores portugueses. Lisboa, 1983. Para uma análise da relação entre Holanda e Tiziano, consultar FONSECA, Raphael. “Considerações acerca da fortuna crítica de Tiziano Vecellio na Península Ibérica durante o século XVI”. renascimento italiano – ensaios e traduções. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2010, pp. 166-185. 37 38 RHAA 22 139 raphael Fonseca emular grandes retratistas contemporâneos a ele, em outros momentos há uma proximidade maior com os retratos produzidos por Antônio de Holanda. Francisco de Holanda parece, em uma espécie de movimento pendular entre a relexão, a produção e o reconhecimento, nos legar uma tratadística e corpus artístico que nos impede de meramente rotulá-lo e ao mesmo tempo incita no historiador da arte o esforço por conjugar imagens e textos lado a lado. them begin all the light, and they are the windows and doors through which everything goes in”.36 What cannot be forgotten is that some of these images are in fact copies of paintings by Anthonis Mor. Consequently, these are images that are also based as models from Titian’s paintings, becoming a paradigm of the portrait for Francisco de Holanda in his “To take from the natural”. The proximity with Holanda’s theory here is both understandable and justiiable. [Figs. 22, 23 and 24] An interpretation for this discrepancy between image and text regarding Francisco de Holanda’s portraits would be the artist’s social position in Portugal in the mid-sixteenth century. As states Vitor Serrão, the oil painter was in the top of the hierarchy of painting techniques, however without the same reputation, respect and visibility of a similar oil painter active in Italy, for example.37 Thus, we can conclude that besides being a possible artistic preference for Francisco de Holanda, always stressing the name of such a famous painter as Titian Vecellio can be interpreted as a way of encouraging the appreciation of art in Portugal. Francisco de Holanda praises the portraiture, both by appreciating the “State portraits” in Titian’s work,38 and by appreciating the painting in Portugal, represented by Nuno Gonçalves (in “On Ancient Painting”). As a portraitist, however, it is not within those traditions that he accomplishes his own work. Even being inspired by imagery sources from the oil painting tradition, spread throughout Portugal in large scale after the stay of Anthonis Mor, Francisco de Holanda produces portraits that, at the same time that they formally converse with Titian’s works, are distant from them for the scale, the backing and even for the artistic intentions. The memory spread by these portraits by Holanda is that of the small efigy, the delicacy and it may converse better with a character like Nicholas Hilliard, the miniaturist of Elizabeth I from EngHOLANDA, Francisco de. do tirar pelo natural. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, p. 25. 37 SERRÃO, Vitor. o maneirismo e o estatuto social dos pintores portugueses. Lisboa, 1983. 38 For an analysis of the relationship between Holanda and Titian, consult FONSECA, Raphael. “Considerações acerca da fortuna crítica de Tiziano Vecellio na Península Ibérica durante o século XVI”. renascimento italiano – ensaios e traduções. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2010, ps. 166-185. 36 140 RHAA 22 Francisco de Holanda land, than with Charles V’s state portraits. After inding these proximities among images, the importance of the technique of illumination to the visual production seems evident. Holanda appears to ind himself in some kind of impasse between the admiration of Italian models and the respect for the tradition of small portraits in Portugal. While in some examples there is an evident effort to emulate great portraitists, contemporaries to him, in other moments there is a stronger proximity with portraits produced by Antônio de Holanda. Francisco de Holanda seems to be in a swinging movement among the relection, production and acknowledgement, leaving us treatises and an artistic corpus that prevent us from merely labeling him and, at the same time, encourages in the art historian the effort of combining images and texts side by side. RHAA 22 141 Francisco de Holanda 1 2 1 Nuno Gonçalves (atribuída a). Políptico de são vicente, 1460-80. 2 Jan van Eyck. altar ghent: a adoração do cordeiro místico, 1432. RHAA 22 143 raphael Fonseca 3 5 4 3 Domenico Ghirlandaio. Chamada dos apóstolos, 1481. 4 Jan Geertgen tot Sint Jans. os ossos de são Francisco, 1485. 5 Francisco de Holanda. anunciação de Nossa senhora de Belém, 1552-54. 144 RHAA 22 Francisco de Holanda 6 Francisco de Holanda. retrato de d. Joana de Áustria, 1550-1570. 7 Cristóvão de Morais. retrato de d. Joana de Áustria, 1533. 6 7 8 Francisco de Holanda. retratos de d. João iii, 1550-1570. 9 Francisco de Holanda. retratos de d. Catarina de Áustria, 1550-1570. 8 9 10 Anthonis Mor. retrato de d. João iii, 1552. 11 Anthonis Mor. retrato de d. Catarina de Áustria, 1552. 11 10 RHAA 22 145 raphael Fonseca 12 Francisco de Holanda. retratos de d. Maria de Portugal, 1550. 13 Francisco de Holanda. retratos de d. isabel de Bragança, 1550. 13 12 14 15 16 14 Francisco de Holanda. retrato do Papa Paulo iii, 1538-40. 15 Francisco de Holanda. retrato de Michelangelo Buonarroti, 1538-40. 16 Francisco de Holanda. retrato de Pietro lando, 1538-40. 17 Retrato de Tibério Cláudio. 36-37 d.C. 17 18 18 Retrato de Pompeu, o Grande. 40 a.C. 146 RHAA 22 Francisco de Holanda 20 19 21 19 Antônio de Holanda. genealogia de Manuel Pereira, 1534. 20 Antônio de Holanda e Simon Bening. genealogia do infante d. Fernando, 1530-34. 21 Antônio de Holanda e Simon Bening. genealogia do infante d. Fernando, 1530-34. 22 Francisco de Holanda. retrato do príncipe d. João de Portugal, 15501570. 23 Francisco de Holanda. retrato da imperatriz d. isabel de Portugal, 1550-1570. 24 Francisco de Holanda. retrato do infante d. duarte de Portugal, 15501570. 22 23 RHAA 22 24 147 INFORME Arqueologia e as ações de aproximação com a sociedade: a interface com a divulgação cientíica e a veiculação do conhecimento VERA REGINA TOLEDO CAMARGO doutora em Comunicação, pesquisadora do labjor/unicamp PEDRO PAULO FUNARI Professor doutor titular do iFCh/unicamp GLÓRIA TEGA CALIPPO Jornalista, Especialista em Divulgação Cientíica USP Mestre em Divulgação Cientíica e Cultural Labjor/IEL-Unicamp Neste informe, apresentamos as ações produzidas pelo projeto “Arqueologia e Divulgação Cientíica: Diálogos e Saberes”, desenvolvido pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por meio dos Laboratórios de Arqueologia Pública (LAP) e de Jornalismo (Labjor). Com base na relação entre a Divulgação Cientíica e a Arqueologia busca-se no referido projeto, difundir a Arqueologia para a sociedade, por meio de quatro minidocumentários, dois livros e um site, cujo tema central é a Arqueologia, além de ações que buscam aproximar os proissionais — arqueólogos — da mídia. RESUMO PALAVRAS-CHAVE Arqueologia, Divulgação Cientíica, mídia. les actions du projet “Arqueologia e Divulgação Cientíica: Diálogos e Saberes”, développé par Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), à travers de ses laboratoires d’archéologie publique (LAP) et de journalisme (Labjor), seront exposées dans ce texte. Basé sur la relation entre la vulgarisation de la science et l’Archéologie et avec l’objective de propager l’Archéologie dans la societé en general, le projet venant préparer quatre mini-documentaires, deux livres et un site. Également, le projet tient les actions qui visent à rapprocher les professionnels — les archéologues — des médias. RESUMÉ MOTS-CLÉS Archéologie, Diffusion Scientiique, les médias. RHAA 22 149 Vera regina Toledo Camargo, Pedro Paulo Funari & Glória Tega Calippo Introdução Este informe tem por objetivo apresentar, de forma breve, as atividades de divulgação cientíica da Arqueologia com base em um projeto agraciado com o apoio de um edital da Sociedade de Arqueologia Brasileira e da Petrobrás. O informe inicia-se com uma apresentação breve da disciplina, para tratar das especiicidades das ações efetuadas. A Arqueologia apresenta um campo de conhecimento complexo, já anteriormente associado à busca pelo tesouro, ao colecionismo, a grandes aventuras, dentre tantos outros signos. É uma ciência social que ultrapassa a concepção mais tradicionalista de recuperação de objetos antigos, chegando à esfera de compreensão de sociedades por meio de objetos deixados por elas. Segundo Funari1 (2010), a Arqueologia expande a área de atuação quando se deine como “o estudo da cultura material de qualquer época” e, também, quando busca “entender as relações sociais e as transformações na sociedade”. Ampliando essas concepções, a Arqueologia utiliza e desenvolve metodologias cientíicas para extrair outras informações dos objetos. Como ciência que estuda as sociedades, a aproximação da Arqueologia com o público é fundamental. Essa aproximação também pode ser obtida por meio da comunicação, permitindo, de um lado, que a sociedade conheça essa área do conhecimento, suas ações e pesquisas, e de outro lado, seja enfatizada entre os próprios arqueólogos a importância de divulgar o conhecimento. A Divulgação Cientíica e Cultural apresenta interconexões com a Arqueologia em diversos aspectos, tendo a possibilidade também de colaborar com as estratégias de Educação Patrimonial e nas discussões do contexto da Arqueologia Pública, que podem, por meio do suporte midiático, utilizar ferramentas da área da comunicação. Partindo da deinição de Divulgação Cientí- 1 FUNARI, Pedro Paulo, Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2010. 150 ica, formulada por Bueno,2 que airma ser este “[...] a utilização de recursos, técnicas, processos e produtos (veículos ou canais) para a veiculação de informações cientíicas, tecnológicas ou associadas a inovações ao público leigo” (BUENO, 2009, p. 162), o projeto “Arqueologia e Divulgação Cientíica: Diálogos e Saberes” cria uma série de ações de Divulgação Cientíica da Arqueologia, trabalhando diferentes vertentes e práticas dessa ciência, estimulando a relexão, interação e compreensão dessa pela sociedade. Concomitantemente, o projeto realiza ações diretas com os próprios arqueólogos, visando estreitar relações entre eles e os veículos midiáticos, facilitando a interação com os meios de comunicação de massa, incentivando, dessa maneira, um luxo de informações proativo, constante e preciso. O projeto foi o terceiro colocado dentre os oito ganhadores do Edital da SAB — Sociedade de Arqueologia Brasileira de 2011, contando com o inanciamento da Petrobrás (Petróleo Brasileiro S/A), por meio do “Programa de Apoio à Difusão do Conhecimento Arqueológico”. As ações O conjunto de materiais midiáticos (audiovisual e impresso) está possibilitando ao público o acesso às informações, tanto relativas ao próprio projeto (site), como àquelas que permitem compreender a atuação de diferentes tipos de proissionais no campo da Arqueologia. Documentários Os quatro minidocumentários (em fase de edição), com a duração de aproximadamente cinco minutos cada um, possuem os seguintes temas: BUENO, Wilson Costa, Comunicação Cientíica e Divulgação Cientíica: aproximações e rupturas conceituais / Comunicación cientíica y divulgación cientíica: aproximaciones y rupturas conceptuales. Informação & Informação, [S.l.], v. 15, pp. 1-12, dez. 2010. ISSN 1981-8920. 2 RHAA 22 informe mostrar as atividades práticas, como o trabalho de campo e as peças de museu. Primeiro documentário título: Prospectar — descobrindo a arqueologia O objetivo deste documentário é mostrar o que é Arqueologia. Percorreremos, então, de forma resumida, os assuntos relacionados à Arqueologia: História, técnicas e discussões. Segundo documentário título: sondar — arqueologia: passado e presente Tem por objetivo apresentar as trajetórias e campos conceituais da Arqueologia. Trataremos descobertas importantes (política, ações e trajetórias da Arqueologia no Brasil). Terceiro documentário título: escavar — Patrimônio arqueológico O objetivo deste documentário é apresentar as técnicas de investigação, imagens sobre a Arqueologia subaquática e imagens que ilustrem a Arqueologia Histórica e as diferentes técnicas de preparação. Quarto documentário título: gerir — ser arqueólogo Quero ser arqueólogo. No documentário “ser Arqueólogo” é importante RHAA 22 Livro O livro tem como público-alvo os próprios arqueólogos. Ele é composto por duas partes: na primeira, há orientações para que os arqueólogos possam entender e, dessa maneira, lidar melhor com a imprensa; na segunda parte, o livro contém artigos que retratam experiências de divulgação cientíica vivenciadas por arqueólogos. Site O projeto “Arqueologia e Divulgação Cientíica: Diálogos e Saberes” apresenta-se também por meio de um site, ao mesmo tempo, um repositório, um banco de dados, uma central de atendimento. O site dá visibilidade ao projeto, divulgando suas ações, além de disponibilizar informações sobre Arqueologia, úteis para o público em geral e também para jornalistas que buscam textos de apoio e possíveis fontes (entrevistados) para a elaboração de suas matérias (seção Arqueologia, “áreas da Arqueologia” e “Grupos de pesquisas no Brasil”). 151 Referências das imagens Museo Pio Clementino 1. M. CARLONI after M. SIMONETTI, Plan of the Museo Pio Clementino as expanded after 1776, from G.B.-E.Q.V. VISCONTi, Il Museo Pio Clementino, vol. I, Roma 1782. 2. V. FEOLI after F. MICCINELLI, View of the Vestibolo Rotondo of the Museo Pio Clementino, 1792 ca. 3. L. DUCROS-G. VOLPATO, View of the Gallery of Statues of the Museo Pio Clementino, Munich, Bayerische Staatbibliothek, 1787-1792. 4. V. FEOLI after F. COSTA, View of the Gallery of Statues of the Museo Pio Clementino. First part of the right wall, 1792 ca. 5. V. FEOLI, View of the Gallery of Statues of the Museo Pio Clementino. Second part of the right wall, 1792 ca. 6. G.P. PANINI, Interior of the San Giovanni in Laterano in Rome, Moscow, Pushkin Museum, 1750 ca. Imagens do Rei Abraham Bosse. Frontispício do Leviatã, de Thomas Hobbes. 1651. 2. Le Prince de Bresil, ils ainé de Pierre 2o Roy de Portugal [Visual gráico. — Paris: chez Berey, [ca 1705?]. — 1 gravura: água-forte, p&b; 34x22 cm. Data provável: aclamação do Rei em 1o de janeiro de 1707. — Dim. da matriz: 30x19,5 cm. — Inv. dufondsfrançais — séc. XVII, tomo 1, p. 359. — E. Soares — Dic. icon. no 1541 B). Biblioteca Nacional, Lisboa. 3. BERGE, Pieter van den, l. 1660-1710. Iohannes Quintus Lusitanorum Rex et Indiar [et] Maria Anna Lusitanorum Regis Excellens Sponsa [Visual gráico] / P.v.d Berge inventor exc del. Et fecit. — [S.l.]: P.v.d Bergeexc., [1708]. — 1 gravura: buril e água-forte, p&b; 58,5 x 49,5 cm (matriz). — Dim. fol.: 62x53 cm PTBN E. 55 R. — Soares, E. — Dic. de icon., no 1541–D). Biblioteca Nacional, Lisboa. 4. ENGELBRECHT, Christian, 1672-1735. Ioannes V. Dei Gratia Rex Portugaliae et Algarbiorum... [Visual gráico / C. Engelbrechtet I. A. Pfeffelsculp. Viennae. — [Viennae?: s.n., entre 1730 e 1735?]. — 1 gravura: maneira negra, p&b. — Dim. da matriz: 43 x 31 cm. – Soares, E. — Dic. icon., no 1541 2z). Biblioteca Nacional, Lisboa. 1. I. A. Pfeffel et. C. Engelbrechtsculp. V. MARIA ANNA PORTUGALLAE ET ALGARBIORUM REGINA.... Gravura. Coleção Diogo Barbosa Machado, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. 6. Pompeo Batoni (atribuição). D. João V. séc. XVIII, primeira metade. Óleo sobre tela. Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa. 7. Pompeo Batoni (atribuição). D. Maria Ana de Áustria. Séc. XVIII, primeira metade. Óleo sobre tela. Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa. 8. JOANNES V. DEI GRATIA PORTUGALIA ET ALGARBIORUM REX... Séc. XVIII, primeira metade. Gravura. Coleção Diogo Barbosa Machado, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. 9. ENGELBRECHT, Christian, 1672-1735. Maria Anna Portugaliae et Algarbiorum Regina nata Archidux Austriae, desponsata Joanni V... [Visual gráico / C. Engelbrechtscul, V. — Ausgburg?: s.n., ca 1710?]. — 1 gravura: água-forte, parcialmente aguarelada; 25 x 15,7 cm (matriz). Biblioteca Nacional, Lisboa. 10. Autor desconhecido. D. João V, Rei de Portugal. Séc. XVIII, primeira metade. Óleo sobre tela, 103 x 79 cm. Museu dos Biscaínhos, Braga. 5. Muralismo em São Paulo 1. Clóvis Graciano, Bandeirantes, 1952/53, óleo e cera sobre parede. Edifício Hotel Jaraguá, antiga sede do jornal o estado de s. Paulo (Centro). Arquitetos: Adolf Franz Heep e Jacques Pilon. 2. Edifício Hotel Jaraguá, antiga sede do jornal o estado de s. Paulo (Centro). Arquitetos: Adolf Franz Heep e Jacques Pilon. 3. Emiliano Di Cavalcanti, sem título (A imprensa), 1952, mosaico de pastilhas vítricas sobre parede. Edifício Hotel Jaraguá, antiga sede do jornal o estado de s. Paulo (Centro). Arquitetos: Adolf Franz Heep e Jacques Pilon. 4. Benedito Calixto, Domingos Jorge Velho e o Loco — Tenente Antônio Francisco de Abreu, 1903. Óleo sobre tela, 99 x 140 cm. Acervo Museu Paulista, São Paulo, SP. 5. Candido Portinari, Bandeirantes, 1951. Pastilha vítrica, 250 x 763 cm. Obra executada originalmente para decorar um dos salões do Hotel Comodoro, São Paulo, SP. Atualmente exposta no edifício Itaú S.A., coleção do Banco Itaú, RHAA 22 São Paulo, SP. Painel Bandeirantes no restaurante do Hotel Comodoro. Imagem tirada do jornal o estado de s. Paulo, 9/11/1992, Caderno Cidades. 7. Candido Portinari, estudo para a pintura mural em mosaico Bandeirantes, 1951. Óleo sobre tela, 27 x 82,5 cm. Rio de Janeiro, RJ. 8. Candido Portinari, cartão para a pintura mural em mosaico Bandeirantes, 1951. Óleo sobre cartão pardo, 35 x 83 cm. Rio de Janeiro, RJ. 9. Galeria Califórnia (Centro). Arquiteto: Oscar Niemeyer. Foto da autora em 09/03/12. 10. Candido Portinari, Abstrato, c. 1954, mosaico de pastilhas vítricas sobre parede. Galeria Califórnia (Centro), Arquiteto: Oscar Niemeyer. Foto da autora em 09/03/12. 11. Candido Portinari, maquete para o painel de pastilha de vidro para o painel Abstrato, c. 1953, pintura a guache e graite sobre papelão, 13 x 42 cm. Rio de Janeiro, Coleção Financiadora de Estudos e Projetos, Rio de Janeiro, RJ. 12. Candido Portinari, maquete para o painel de pastilha de vidro para o painel Abstrato, c. 1953, pintura a guache e graite sobre papelão, 12 x 41 cm. Rio de Janeiro, Coleção Financiadora de Estudos e Projetos, Rio de Janeiro, RJ. 13. Candido Portinari, maquete para o painel de pastilha de vidro para o painel Abstrato, c. 1953, pintura a guache sobre papel, 12,5 x 41 cm. Rio de Janeiro, Coleção Financiadora de Estudos e Projetos, Rio de Janeiro, RJ. 14. Candido Portinari, maquete para a pintura mural ou painel Bandeirantes, não executada, c. 1951, pintura a guache sobre papelão, 36 x 104,5 cm. Rio de Janeiro, Coleção Particular. 15. Candido Portinari, maquete para a pintura mural ou painel Bandeirantes, não executada, c. 1951, pintura a guache, suporte não identiicado, 21,8 x 61 cm. Rio de Janeiro, Coleção Desconhecida. 16. Galeria Califórnia (Centro). Arquiteto: Oscar Niemeyer. Foto da autora em 09/03/12. Detalhe do desnível para entrada do antigo Cine Barão. 17. Galeria Califórnia (Centro). Arquiteto: Oscar Niemeyer. Foto da autora em 09/03/12. Detalhe do espaço entre o inal do painel e a quina da parede. 18. Bramante Buffoni, sem título, 1962, mosaico 6. 153 de cerâmica esmaltada sobre parede. Edifício Galeria Nova Barão, (Centro). Arquitetos: Ermano Sifredi e Maria Barelli/Bardelli. Giacomo Balla: Paisagem 7. 1. Giacomo Balla, Paisagem, 1907. Óleo sobre tela. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. 2. Giacomo Balla, verso de Paisagem, 1907. Óleo sobre tela. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. 3. Gaetano Previati, Paisagem, 1900-1910. Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. 8. Francisco de Holanda. “Retrato de D. Joana de Áustria”, 1550-1570. Galleria Nazionale di Parma. Nuno Gonçalves (atribuída a). “Políptico de São Vicente”, 1460-80. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa. 2. Jan van Eyck. “Altar Ghent: a adoração do cordeiro místico”, 1432. Catedral de São Bavo, Ghent. 3. Domenico Ghirlandaio. “Chamada dos apóstolos”, 1481. Capela Sistina, Roma. 4. Geertgen tot Sint Jans. “Os ossos de São Francisco”, 1485. Kunsthistorisches Museum, Viena. 5. Francisco de Holanda. “Anunciação de Nossa Senhora de Belém”, 1552-54. Museu Nacional 1. 154 16. Francisco de Holanda. “Retrato de Pietro Lando”, 1538-40. In: “Álbum de desenhos das antigualhas”. Biblioteca do Mosteiro do Escorial. Cristóvão de Morais. “Retrato de D. Joana de Áustria”, 1533. Musée Royaux des Beaux-Arts de Belgique, Bruxelas. 17. Retrato Francisco de Holanda. “Retratos de D. João III”, 1550-1570. Galleria Nazionale di Parma. 18. Retrato 9. Francisco de Holanda. “Retratos de D. Catarina de Áustria”, 1550-1570. Galleria Nazionale di Parma. 10. Anthonis Mor. “Retrato de D. João III”, 1552. Fundación Lazaro Galdiano, Madri. Francisco de Holanda Escorial. de Arte Antiga, Lisboa. 6. 11. Anthonis Mor. “Retrato de D. Catarina de Áus- tria”, 1552. Museu do Prado, Madri. 12. Francisco de Holanda. “Retratos de D. Maria de Portugal”, 1550-1570. Galleria Nazionale di Parma. de Tibério Cláudio, 36-37 d.C. Musée de la Civilisation Gallo-Romaine, Lyon. de Pompeu, o Grande, 40 a.C. Musée de la Civilisation Gallo-Romaine, Lyon. 19. Antônio de Holanda. “Genealogia de Manuel Pereira”, 1534. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa. Antônio de Holanda e Simon Bening. “Genealogia do Infante D. Fernando”, 1530-34. British Museum, Londres. 20. 21. Antonio de Holanda e Simon Bening. “Genea- logia do Infante D. Fernando”, 1530-34. British Museum, Londres. Francisco de Holanda. “Retrato do príncipe D. João de Portugal”, 1550-1570. Galleria Nazionale di Parma. 13. Francisco 22. 14. Francisco de Holanda. “Retrato do Papa Paulo 23. Francisco de Holanda. “Retrato da imperatriz de Holanda. “Retratos de D. Isabel de Bragança”, 1550-1570. Galleria Nazionale di Parma. III”, 1538-40. In: “Álbum de desenhos das antigualhas”. Biblioteca do Mosteiro do Escorial. 15. Francisco de Holanda. “Retrato de Michelangelo Buonarroti”, 1538-40. In: “Álbum de desenhos das antigualhas”. Biblioteca do Mosteiro do RHAA 22 D. Isabel de Portugal”, 1550-1570. Galleria Nazionale di Parma. Francisco de Holanda. “Retrato do infante D. Duarte de Portugal”, 1550-1570. Galleria Nazionale di Parma. 24. The Journal of Art History and Archaeology is published by the Center of Art History and Archaeology (Campinas State University). The main aim of the Journal is to promote a broader development in Brazil of both Art History and Archaeology, putting them in close contact with an international production in these ields. It is also the irst Brazilian Journal dealing with both disciplines in a related way. The Journal aims at publishing papers by Brazilian and foreign scholars about any subject within the scope of art history and archaeology, as well as at addressing a learned and interested larger audience. The publication of papers in two languages — Portuguese and English, French, Italian, Spanish or German — will enable Brazilian and foreign readers to be acquainted with the papers. Documents and reference texts, still unavailable in Portuguese, reviews and news are also included. Publication Norms Those interested in publishing at RHAA, on any of the thematic sections, should submit texts in accordance to the Publication Norms and to the Formatting Parameters available at www.unicamp.br/chaa/rhaa. The merit of the proposed texts will be judged by the RHAA editors as well as by two or more specialists in the area, considering being most relevant criteria the originality of content and its compatibility to the studies in Art History and Archaeology. For e-mail contacts: rhaaunicamp@ gmail.com. Exchange, Interchange The Art History and Archaeology Center accepts exchanging and interchanging with universities, schools, research centers, libraries, foundations, publishing houses and periodicals committing itself to sending the RHAA volumes regularly. The exchange proposals should be forwarded to our “Secretaria do Departamento de História”, through the following e-mail address [email protected], with copy to [email protected], or to the following address: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosoia e Ciências Humanas Secretaria do Departamento de História Cidade Universitária “zeferino Vaz” Caixa Postal 6110 CEP 13081-970 – Campinas/SP – Brasil Chairmen Status Chairmen should follow the RHAA editorial policy by suggesting collaborators, references, and evaluating the quality of the published works. All chairmen should be at least “doctors” and also be renowned researchers on the respective areas and specialties of Art History and Archaeology. There is no deining limit for the participation period of the members of the Council, and the new ones will be chosen and invited under the established criteria and necessities of the RHAA editors. a Revista de História da Arte e Arqueologia é uma publicação do Centro de História da Arte e Arqueologia da Universidade Estadual de Campinas. O principal objetivo da RHAA é promover um maior desenvolvimento da História da Arte e da Arqueologia no Brasil, relacionando-as com a produção internacional da área. É também a primeira revista cientíica brasileira que trata essas duas disciplinas de modo correlato. a RHAA tem por objetivo a publicação de trabalhos de especialistas brasileiros e estrangeiros sobre qualquer assunto de História da Arte e Arqueologia, e ainda alcançar um público amplo e interessado. A publicação de trabalhos em duas línguas — português e inglês, francês, italiano, espanhol ou alemão — possibilita o acesso a leitores brasileiros e estrangeiros. Documentos, textos de referência não traduzidos ainda para o português, resenhas críticas e informes também são incluídos. Normas para publicação Os interessados em publicar na RHAA, em qualquer uma das seções temáticas, deverão enviar os seus textos de acordo com as Normas para publicação e os Parâmetros de formatação disponíveis em www.unicamp.br/chaa/rhaa. O mérito dos textos propostos será julgado pelos editores da RHAA e por dois ou mais pareceristas da área, tendo como critérios mais relevantes a originalidade do conteúdo e a sua compatibilidade com os estudos de História da Arte e de Arqueologia. Para contatos por e-mail: rhaaunicamp@ gmail.com. Permuta, intercâmbios O Centro de História da Arte e Arqueologia aceita fazer permuta e intercâmbios com universidades, escolas, centros de pesquisa, bibliotecas, fundações, editoras e demais periódicos, se comprometendo a enviar os volumes da RHAA regularmente. As propostas de permuta deverão ser encaminhadas à Secretaria do Departamento de História do nosso Instituto pelo e-mail rhaaunicamp@ gmail.com, com cópia para [email protected], ou ao seguinte endereço: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosoia e Ciências Humanas Secretaria do Departamento de História Cidade Universitária “zeferino Vaz” Caixa Postal 6110 CEP 13081-970 – Campinas/SP – Brasil Estatuto dos Conselheiros Os conselheiros devem acompanhar a política editorial da RHAA, sugerindo colaboradores, referências e avaliando a qualidade dos trabalhos publicados. Todos os conselheiros devem possuir no mínimo a titulação de “doutor” e ser pesquisadores reconhecidos nas devidas áreas e especialidades da História da Arte e da Arqueologia. Não há prazo determinado para o período de participação dos membros no Conselho, e os novos membros serão escolhidos e convidados sob os critérios e necessidades estabelecidos pelos editores da RHAA. Proibida a reprodução total ou parcial de qualquer artigo sem a prévia autorização dos editores. Todos os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não cabendo qualquer responsabilidade legal sobre seu conteúdo à revista ou à gráica do IFCH. Revista de História da Arte e Arqueologia / Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosoia e Ciências Humanas. n. 1 (1994) Campinas : UNICAMP/IFCH/CHAA, 1994. 210p. 2014(22) issN 1413-0874 1. Arte - História. 2. Arqueologia. I. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosoia e Ciências Humanas. Centro de História da Arte e Arqueologia. II. Título. CDD – 709.01 Catalogação na Fonte – Biblioteca do Instituto de Filosoia e Ciências Humanas – UNICAMP CRB nº 08/ 3387 / Cecília Maria Jorge Nicolau Consul Partial or full reproduction of any article is expressly forbidden without the editor’s previous authorization. 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