MINISTÉRIO PÚBLICO
Em Defesa do Estado Laico
Coletânea de Artigos
Volume 1
Candido Portinari
Paz
1952-1956
FCO: 3798
CR: 3720
Painel a óleo / madeira compensada
1400 x 953 cm
Capa: Paz – tema social cultura brasileira.
Imagem gentilmente cedida pelo Projeto Portinari.
Obra datada de 1952, o painel Paz possui 14 x 9,53 m. A obra foi executada para decorar a
sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque, EUA.
O tema essencial da obra de Candido Portinari é o Homem. Seu aspecto mais conhecido
do grande público é a força de sua temática social. Embora menos conhecido, há também
o Portinari lírico. Essa outra vertente é povoada por elementos das reminiscências de
infância na sua terra natal: os meninos de Brodowski com suas brincadeiras, suas danças,
seus cantos; o circo; os namorados; os camponeses... o ser humano em situações de ternura,
solidariedade, paz.
Fonte: Projeto Portinari, disponível em www.portinari.org.br
Reprodução autorizada por João Candido Portinari.
Imagem do acervo do Projeto Portinari.
MINISTÉRIO PÚBLICO
Em Defesa do Estado Laico
Coletânea de Artigos
Volume 1
Brasília, 2014
© 2014, Conselho Nacional do Ministério Público
Permitida a reprodução mediante citação da fonte
Composição do CNMP:
Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais:
Rodrigo Janot Monteiro de Barros (Presidente)
Jarbas Soares Júnior (Presidente)
Alessandro Tramujas Assad (Corregedor Nacional)
Luiz Moreira Gomes Júnior (Conselheiro)
Luiz Moreira Gomes Júnior
Jeferson Luiz Pereira Coelho (Conselheiro)
Jeferson Luiz Pereira Coelho
Cláudio Henrique Portela do Rego (Conselheiro)
Jarbas Soares Júnior
Fábio George Cruz da Nóbrega (Conselheiro)
Antônio Pereira Duarte
Leonardo de Farias Duarte (Conselheiro)
Marcelo Ferra de Carvalho
Leonardo Henrique de Cavalcante Carvalho (Conselheiro)
Cláudio Henrique Portela do Rego
Alexandre Berzosa Saliba
Comissão Organizadora:
Fabiana Costa Oliveira Barreto (Membro Colaboradora)
Esdras Dantas de Souza
Jefferson Aparecido Dias (Membro Colaborador)
Leonardo de Farias Duarte
Juliano Napoleão Barros (Assessor-chefe/Coordenador executivo da CDDF)
Walter de Agra Júnior
Leonardo Henrique de Cavalcante Carvalho
Fábio George Cruz da Nóbrega
Luciano Coelho Ávila (Membro auxiliar/Coordenador geral da CDDF)
Márcia Regina Ribeiro Teixeira (Membro Colaboradora)
Myrian Lago Rocha (Membro Colaboradora)
Secretaria-Geral:
Equipe Técnica:
Blal Yassine Dalloul
Lília Milhomem Januário (Analista de Direito da CDDF)
Wilson Rocha de Almeida Neto (Adjunto)
Meiry Andrea Borges David (Assessora Especial da CDDF)
Supervisão Editorial: Assessoria de Comunicação Social do CNMP
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CDIJ - MPF)
Conselho Nacional do Ministério Público
Ministério Público em Defesa do Estado Laico / Conselho Nacional do Ministério
Público. – Brasília : CNMP, 2014.
300 p. il. v. 1
ISBN 978-85-67311-22-7
1. Ministério Público Federal. Atuação. 2. Ação Civil Pública. 3. Direitos Humanos. 4.
Estado Laico. I. Brasil. Conselho Nacional do Ministério Público.
CDD – 340
Sumário
A liberdade religiosa do professor de religião na Espanha: análise
da empresa de tendência..............................................................................9
A Defesa do Estado Laico pelo Ministério Público: uma respectiva
comparada a partir do direito estadunidense.........................................31
Os sabatistas e os concursos públicos: a liberdade religiosa em
face da igualdade.........................................................................................65
O uso de símbolos religioso em repartições públicas: uma análise
histórica sobre o alcance da laicidade...................................................103
Escola x religião: exclusão e preconceitos na rede pública do Rio
de Janeiro....................................................................................................137
O princípio da laicidade do Estado e a manutenção de símbolos
religiosos em espaços públicos: análise da decisão do Conselho
da Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul............161
Sobre as relações entre Igreja e Estado: conceituando a
Laiciade........................................................................................................177
Sete teses equivocadas sobre o Estado Laico.......................................205
Estudo de Caso: Datena x Ateus..............................................................227
Anexo: Sentença da Ação Civil Pública - Caso Datena x Ateus...........257
Sete Teses Equivocadas sobre o Estado Laico
Luiz Antônio Cunha108
Carlos Eduardo Oliva109
1. Introdução
A discussão pública sobre a laicidade do Estado é, no Brasil, rarefeita
! "#$%&"'$()! *(+,! -&%%".! $! /0"-123"! 4&4(&"5067#$! %"40 ! "! 8 ,$! $/ '$%!
recentemente vem ocupando a dimensão que sua relevância exige. Para se
8 0!1,$!&- &$!- %% !-0$,68&#"!-+7#&8!4&4(&"5067#".!4$%8$!'"%!( ,40$0,"%!- !
que só na primeira década do século XXI foi publicado o primeiro livro com
a expressão Estado Laico no título (BATISTA e MAIA, 2006).
Proposições110! 91&:"#$-$%! -&7#1(8$,! %"40 ,$' &0$! $! #",/0 '%3"!
dessa questão candente, na exata medida em que instituições religiosas
assumem protagonismo político inédito, no Brasil como em todo o mundo.
;- '8&7#$0.! <"#$(&=$0! ! #", '8$0! 8$&%! /0"/"%&2> %! <"&! '"%%"! /0"/?%&8"! $"!
redigir este texto.
Nessa empreitada, tivemos uma inspiração formal que vai desde logo
explicitada: o texto clássico Sete Teses Equivocadas sobre a América Latina
do sociólogo mexicano Rodolfo Stavenhagen, publicado pela primeira vez em
seu país em 1965, e reproduzido em vários outros países, inclusive no Brasil,
quatro anos depois. O autor discutiu teses em voga no início dos anos 1960,
que procuravam explicar o subdesenvolvimento latino-americano, a seu ver
equivocadas. Nosso objetivo é fazer o mesmo com respeito à laicidade do
Estado no Brasil de hoje.
108 Sociólogo, doutor em Educação e professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
109 Sociólogo, mestre em Ciência Política e professor do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro.
110 As proposições, objeto de nossa análise, podem assumir diversos status epistemológicos. Algumas
são teses, pelo caráter abrangente e sintético das formulações, ainda que errôneas. Outras são slogans
vinculados a conjunturas particulares, com claros propósitos de intervenção nas disputas políticas,
sem preocupação alguma com a adequação aos fatos. A distinção entre teses e slogans, bem como entre equívocos lógicos e propósitos enganosos é meramente analítica, e não deve prejudicar o entendimento de que prevalece a imbricação entre umas e outras. A despeito disso, optamos por tratar todas
as proposições focalizadas neste texto como teses e seu valor lógico como equívocos.
Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico 207
Para a análise das teses, valemo-nos, sobretudo, do material
conceitual e de análise conjuntural disponibilizado na internet pela página
do Observatório da Laicidade na Educação111.
2. Aproximações Conceituais
Na redação deste texto adotamos um ponto de vista sociológico, que
'3"! @#(1&! "180"%.! ,$%! /"- ! #",/( , '86A("%.! % B$,! 7("%?7#"%.! B10C-&#"%!
e outros. Partimos da teoria dos campos sociais de Pierre Bourdieu
(1974). Para o sociólogo francês, campo é o espaço social em que agentes e
instituições disputam o monopólio para seu capital cultural, seja político,
religioso, econômico, pedagógico, artístico, etc. O campo religioso é o espaço
em que agentes e instituições disputam o monopólio nas relações com o
%$50$-")!D.!/"08$'8".!1,!#$,/"!- !(18$.!- !#"'E&8"%.!'"!91$(!#$-$!0 (&5&3"!
se apresenta como verdadeira, autêntica, até mesmo como tendo sido criada
por alguma divindade. As demais, em consequência, são consideradas
frutos da ignorância ou do desvio do caminho julgado verdadeiro ou até
, %,"!80$2$-"!/"0!&'8 0 %% %!'3"!/0"/0&$, '8 !0 (&5&"%"%)!F%% %!#"'E&8"%!
aparecem claramente quando a militância religiosa é mais ostensiva.
Quando não, são dissimulados por discursos que enfatizam as semelhanças
entre os diversos valores e práticas religiosas, bem como a presumida busca
-"%!, %,"%!7'%!80$'%# '- '8 %.!$&'-$!91 !/"0!#$,&'G"%!-&< 0 '8 %)
Embora o campo religioso busque autonomizar-se dos demais
campos, ele tem entradas em outros. No campo político, ele pretende
impor a toda a sociedade, por meio da legislação e das políticas públicas, as
orientações de ordem moral da religião ou do grupo de religiões dominantes
ou hegemônicas,112 assim como assegurar privilégios, em especial os
#"'H,&#"A7'$'# &0"%.!"%!/"(C8&#"%.!"%! -1#$#&"'$&%! !"%!-$!#",1'&#$23"!
social. No campo econômico, umas instituições religiosas, mais do que
"180$%.! $#1,1($,! "%! 0 #10%"%! 7'$'# &0"%! 91 ! (G %! /0"/&#&$,! %1%8 '8$0!
suas atividades, tanto as propriamente religiosas quanto as de outro tipo.
No campo educacional, difundem suas crenças em escolas próprias e em
escolas públicas, mediante disciplinas do currículo nas quais desenvolvem
atividades que afrontam os conteúdos das demais. E formam elites dirigentes
em universidades e faculdades confessionais, com diplomas reconhecidos
pelo Estado e pelo mercado.
111 Ver www.edulaica.net.br.
112 Os conceitos de hegemonia e dominação são os de Gramsci (2000), de amplo emprego nas Ciências
Sociais.
208 Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico
Referida a perspectiva sociológica que nos orienta, convém fazer
$&'-$!$(51,$%!$/0"@&,$2> %!#"'# &81$&%!$'8 %!- !7'$(, '8 !/$%%$0,"%!I%!
proposições em foco.
Laico é o Estado imparcial diante das disputas do campo religioso,
que se priva de interferir nele, seja pelo apoio, seja pelo bloqueio a alguma
#"'7%%3"!0 (&5&"%$)!F,!#"'80$/$08&-$.!"!/"- 0! %8$8$(!'3"!+! ,/0 5$-"!/ ($%!
instituições religiosas para o exercício de suas atividades (BLANCARTE,
2008; FISCHMANN, 2008).
Leigo não concerne ao Estado nem a uma instituição, mas a um
indivíduo ou grupo de indivíduos que não dispõem de determinada
formação tomada como referência. Por exemplo, professor leigo é o que,
lecionando na educação básica, não fez curso normal ou licenciatura. Outro
exemplo é o do movimento católico leigo, nos anos 1920/30, que mobilizou
adeptos dessa religião, integrado por intelectuais que não haviam passado
/ ("%!/0"# %%"%!- !<"0,$23"! !# 08&7#$23"!91 !%1$!;50 B$!- 8 0,&'$:$!/$0$!
o clero. Em ambos os casos não importa o desempenho dos indivíduos, se
%3"!-"# '8 %!91$(&7#$-"%!"1!#0 '8 %!/& -"%"%.!,$%.!%&,.!$!# 08&7#$23"!-$!
burocracia que exerce seu poder em cada campo – o Ministério da Educação
num caso e a Santa Sé noutro (CUNHA, 2013).
Toda a luta pela laicidade, no Brasil, durante a segunda metade do
século XIX, que consistia basicamente na separação entre a Igreja Católica
e o Estado, foi feita, porém, com o conceito de Estado Leigo. Rui Barbosa o
empregou largamente, assim como a Constituição de 1891, que, no artigo
72, parágrafo 6º determinou: “Será leigo o ensino nas escolas públicas.”
Embora menos comum no Brasil, o Estado Laico também é chamado
de secular, expressão corrente na língua inglesa. Mais adiante mostraremos
a importância da distinção do processo de laicização, relativo ao Estado, e o
de secularização, relativo à cultura.113
De posse de tais observações, passemos às teses!
TESE 1 – O ESTADO LAICO É SINÔMINO
DE ESTADO ATEU
J0"/"%&23"! #",1,.! ,$%! 91&:"#$-$.! +! %8$! 91 ! /0"#10$! &- '8&7#$0!
Estado Laico a Estado ateu. Ora, o Estado Laico difere completamente do
113 Cientes da relevância dessa distinção conceitual, autores anglofônicos passam a empregar, de
modo crescente, a expressão de origem francesa Laïc State, assim como o advérbio concernente, laïcity.
Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico 209
F%8$-"!$8 1)!F%8 !+!"!91 !% !"/> !$!8"-$! !91$(91 0!0 (&5&3".!- %91$(&7#$-$!
como alienada ou alienante, em termos individuais ou sociais. O caso
típico de Estado ateu foi a Albânia do período Enver Hodja (1946-1985).
Em 1967, o governo desse país de população majoritariamente muçulmana
fechou todos os templos, as manifestações religiosas foram proibidas e as
escolas passaram a ensinar que as religiões (todas elas e sempre) eram
alienadas e alienantes. Hodja morreu em 1985, e seu sucessor Ramiz
Alia restabeleceu a liberdade religiosa, ao lado de outros direitos antes
reprimidos. As instituições religiosas reabriram os templos e recuperaram
o lugar anteriormente ocupado na Albânia, especialmente o islamismo.
Podemos nos apoiar em outro exemplo internacional para explicitar
a diferença entre um Estado Laico e um Estado ateu: Cuba, onde o
movimento revolucionário vitorioso, em 1959, nada tinha contra a Igreja
Católica enquanto instituição religiosa, embora a estreita ligação do clero
com o regime ditatorial de Fulgêncio Batista não lhe granjeasse simpatias
dos rebeldes de Sierra Maestra. A situação foi agravada em 1961, quando
a invasão da Praia Girón, apoiada pelo governo norte-americano, foi
comandada por um dirigente católico leigo, acompanhado por quatro
sacerdotes espanhóis. Além disso, escolas privadas católicas haviam
sido utilizadas como bases de preparação da sublevação popular que os
invasores pretendiam desencadear. Derrotada a invasão, a reação foi rápida
e profunda. Além de assumir o socialismo como ideologia e o partido único
de orientação comunista, o governo cubano estatizou todas as escolas
privadas, inclusive as católicas, expulsou padres e freiras estrangeiros.
*! &- "("5&$! "7#&$(! /$%%"1! $! % 0! ,$'&< %8$, '8 ! $'8&00 (&5&"%$.! "! 91 ! '3"!
corresponde à posição de um Estado Laico, mas antirreligioso.
A Constituição cubana de 1976 expressava esta rejeição. Apesar de
reconhecer a liberdade de consciência e prática religiosa, dizia que o Estado
%"#&$(&%8$! -1#$! "! /":"! '$! #"'# /23"! #& '8C7#$! ,$8 0&$(&%8$! -"! 1'&: 0%".!
além do que declarava ilegal e punível opor a fé ou a crença religiosa à
revolução, à educação ou ao cumprimento dos deveres de trabalhar, defender
a pátria com armas, reverenciar seus símbolos e aos demais deveres nela
estabelecidos. Não havia dúvida de qual era a religião visada – a católica
– pois os cultos afro-cubanos, muito populares na ilha, não opuseram
resistência ao regime. Faltou pouco para a caracterização de um Estado ateu
em Cuba.
Contudo, o informe de 1983 da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, da Organização dos Estados Americanos (organismo do qual
K14$!G$:&$!%&-"! @/1(%$! ,!LMNO.!("5"!$/?%!$!&'E @3"!%"#&$(&%8$!-"!0 5&, P.!
210 Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico
concluiu não haver perseguição religiosa no país. Embora existissem
-&7#1(-$- %!/068&#$%!/$0$!$%!&50 B$%!- % ':"(: 0 ,!%1$%!$8&:&-$- %.! %8$%!
seriam devidas mais às posições pessoais de certos ocupantes de cargos
públicos do que a posições políticas do governo ou do partido. Desde
então, a abertura do governo cubano à atividade religiosa cresceu bastante.
A visita do Papa João Paulo II a Havana, em 1998, levou a importantes
mudanças na orientação ideológica do Partido Comunista Cubano, que, no
seu IV Congresso, em 1991, decidiu que a crença religiosa não seria mais
"4%86#1("! /$0$! $! 7(&$23"! - ! 1,! &'-&:C-1")! *! /$08&0! -$C.! :60&"%! -&0&5 '8 %!
#$8?(&#"%!7(&$0$,A% !$"!/$08&-"! !<"0$,! ( &8"%!/$0$!$!*%% ,4( &$!Q$#&"'$()!
A própria Constituição do país, reformada e aprovada em plebiscito, em
2002, prescreve no artigo 55: “O Estado reconhece, respeita e garante
a liberdade de consciência e de religião, reconhece, respeita e garante,
também, a liberdade de cada cidadão de mudar de crenças religiosas e o de
não ter nenhuma, e a professar, dentro do respeito da lei, o culto religioso
de sua preferência. A lei regula as relações do Estado com as instituições
religiosas.”
Dessa maneira, Cuba revela a transição de uma situação de rejeição
da religião, especialmente da católica, para uma convivência Estado-Igreja,
com delimitação de atividades próprias a cada um deles. Assim, em Cuba
vemos a diferença, na prática, entre um Estado que teve um posicionamento
antirreligioso, próximo do ateísmo, e um Estado Laico.
Entender bem a diferença entre a laicidade e o ateísmo é de grande
importância, porque os partidários da (con)fusão política-religião sempre
proclamam, em tom de ameaça: “Estado Laico não é Estado ateu”. Essa é
1,$!$70,$23"!?4:&$.!,$%!91 !80$=!&,/(C#&8$!$!&- &$!- !91 !$!"/"%&23"!+! '80 !
o Estado ateu, de um lado, e o Estado religioso, de outro. Há quem até diga
aceitar a laicidade do Estado, desde que ela seja “autêntica” ou “positiva”,
nos termos que a propuseram o ex-presidente francês Nicolas Sarkozy e o
Papa Bento XVI.
Equívoco similar contém outra advertência: “laicidade não é
laicismo!” Embora este termo seja amplamente empregado no lugar daquele,
principalmente na Espanha e na Itália,114! "! -&%#10%"! "7#&$(! -"! R$8&#$'"!
&'%&%8 ! ,!91$(&7#$0!- !($&#&%8$%!$%!/"(C8&#$%!/S4(&#$%!91 !'3"!% !#"$-1'$,!
com seus interesses materiais e/ou simbólicos.
Embora menos enfáticos do que no passado, dirigentes evangélicos
114 A propósito, o verbete redigido por Valerio Zanone (1995) para o Dicionário de Política organizado
por Bobbio, Matteucci e Pasquino foi intitulado “Laicismo”, sem tal conotação negativa.
Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico 211
presbiterianos, metodistas, batistas, luteranos e espíritas kardecistas têm
se manifestado pela laicidade do Estado sem os condicionantes dos seus
homólogos católicos, em especial por ocasião da tramitação da Concordata
Brasil-Vaticano/Santa Sé. Mas, cumpre destacar a clareza e coragem das
manifestações das Católicas pelo Direito de Decidir em defesa do Estado
Laico115.
Para os afro-brasileiros, a liberdade religiosa garantida pelo Estado
Laico é condição mesma de sobrevivência, embora muitas vezes possa
parecer mais fácil para eles aceitarem a sedução da bandeira do Estado
multirreligioso, do que trataremos a seguir.
TESE 2 – O ESTADO LAICO É SINÔNIMO
DE ESTADO MULTIRRELIGIOSO
Muito repetida por agentes políticos e religiosos, esta é a saída mais fácil
-&$'8 !-$!G 5 ,"'&$T! ,!: =!- !1,$!%?!"1!$(51,$%!&50 B$%!% !4 ' 7#&$0 ,!
dos favores do Estado, essa tese defende que todas as instituições religiosas
sejam igualmente amparadas, em termos políticos e econômicos. No
entanto, dizer que o Estado Laico é ou pode ser um Estado multirreligioso
ou pluriconfessional corresponde a um sério equívoco. Se, como dissemos
ao tratar do propósito deste texto, o Estado Laico é imparcial em matéria de
religião, este deve respeitar todas as crenças religiosas, mas também a não
#0 '2$)!F,4"0$!'3"!-&7#1(8 !$!-&<1%3"!-$%!&- &$%!0 (&5&"%$%!"1!#"'8060&$%!I!
religião, o Estado Laico não apoia nenhuma delas, nem sequer um conjunto
delas, nem mesmo todas as religiões, caso isso fosse possível.
Ora, o campo religioso não é harmônico. Falar de religião, no Brasil,
#","! ,!91$(91 0!(15$0!-"!,1'-".!+!<$($0!- !#"'E&8".!- !-&%/18$! !$8+!- !
violência – ontem e hoje.
O campo religioso nasceu, no Brasil, com a conquista portuguesa do
território e da gente que nele habitava. A conquista lusitana se deu no bojo
do movimento da Contra-Reforma. Decidida a retomar a hegemonia perdida
com a Reforma Protestante, no século XVI, a Igreja Católica criou novas
organizações (das quais a mais importante foi a Companhia de Jesus) e
aumentou o empenho na conversão dos povos recém-incorporados aos seus
-",C'&"%)!U"&!$%%&,!91 !"!#$,/"!0 (&5&"%"!'$%# 1.!'"!V0$%&(.!#","!#"'E&8".!
ou melhor, como combate dos “Soldados de Cristo” contra a “ignorância”
dos indígenas e a dimensão religiosa de sua vida. A violência simbólica foi a
115 Ver www.catolicasonline.org.br.
212 Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico
8H'&#$!-$! :$'5 (&=$23"!40$%&( &0$.!91 !18&(&="1!<"0,$%!%"7%8&#$-$%.!#","!"!
8 $80"!-"%!,&%%&"'60&"%.! !7510$%!- !$(8$! 7#6#&$!%&,4?(&#$.!#","!$!&': '23"!
- ! W1/3.! /$0$! <$#&(&8$0! $! $%%&,&($23"! -$! 7510$! -"! X 1%! #0&%83")! K"'80$! "%!
africanos escravizados, a violência material que marcava sua condição
dispensou maiores esforços com a violência simbólica.
Quando comparado a outros países, o campo religioso é, no Brasil,
especialmente complexo, pois abrange religiões com diferentes graus de
institucionalização e de distintas tradições culturais. Encontramos no
país desde o monoteísmo judaico-cristão até o politeísmo indígena ou de
origem africana e as mais recentes incorporações de tradições orientais,
inclusive de religiões que não possuem a noção de deus. Os sincretismos
são muitos e variados: o Catolicismo popular e as religiões afro-brasileiras,
são todas fórmulas sincréticas. Não bastasse isso, as mudanças de religião
que os indivíduos experimentam durante sua vida são elementos adicionais
na complexidade desse campo. As religiões têm graus muito diferentes de
institucionalização, com a burocracia da Igreja Católica ocupando o grau
máximo. No extremo oposto estão as religiões indígenas e as afro-brasileiras,
desprovidas de organização formal, sem uma burocracia, no sentido
sociológico do termo. No meio do caminho, estão as Igrejas Evangélicas
Pentecostais, algumas com maior grau de institucionalização, outras menor,
pois a criação de nova igreja depende da iniciativa e da liderança do pastor
ou do ministro dissidente, inaugurando sua própria denominação.
J"0! &%%".! +! 91&:"#$-$! $! /0"/"%&23"! 91 ! &- '8&7#$! "! F%8$-"! Y$&#"! $!
um Estado multirreligioso, pela impossibilidade de harmonia nesse campo.
Alianças provisórias e pactos de não agressão fazem parte da luta pela
hegemonia, quando uns contendores estão em declínio, outros em ascensão,
"180"%!$&'-$! ,!(18$!/"0!1,!(15$0!$"!%"()!Z%!-&%#10%"%!91 !41%#$,!B1%8&7#$0!
tais acordos, para os “de dentro” e para os “de fora” não eliminam a natureza
dos interesses em disputa. Questões teológicas são outra coisa. Delas este
8 @8"!'3"!80$8$.! ,4"0$!0 #"'G 2$!%1$! %/ #&7#&-$- )
TESE 3 – O ESTADO É LAICO, MAS
O POVO É RELIGIOSO
Para apontarmos o equívoco encerrado nesta tese bastante repetida,
retornemos a algumas aproximações conceituais: foi o termo “secular”
que deu origem à “secularização”, expressão que designa o processo de
mudança pelo qual a cultura perde seu antigo caráter sagrado, baseado no
Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico 213
ritualismo e na tradição, tornando-se cada vez mais profana (ou secular),
4$% $-$! '$! &'-&:&-1$(&-$- .! '$! 0$#&"'$(&-$- ! ! '$! %/ #&7#&-$- )! J$0$!
certos sociólogos, o processo de secularização é mais abrangente do que a
laicização do Estado. Para outros, todavia, há uma relativa independência
entre esses processos, de modo que a laicização do Estado pode ir mais
longe do que a secularização da cultura – ou o contrário.
Há países que mantêm estreita relação com uma instituição religiosa,
havendo mesmo religião de Estado, mas onde a cultura é bastante
secularizada, como a Grã-Bretanha e a Dinamarca. Outros, por sua vez,
têm Estado Laico numa sociedade com instituições permeadas pelo
sagrado, como os Estados Unidos e a Índia. Outros, ainda, ocupam posições
intermediárias e transitivas. Na Argélia e na Turquia, o Estado Laico sofre
fortes pressões para fundir-se com o Islamismo dominante na sociedade e
assumir as prescrições corânicas para o campo político, inclusive no Direito.
No Brasil e na Itália, a secularização da cultura avança enquanto a laicidade
do Estado está freada.
Quais são, portanto, os interesses políticos que estão por trás desta
proposição equivocada? Passemos a alguns deles.
Um dos interesses centrais ao se defender que “o Estado é Laico,
mas o povo é religioso”, é o de manter a tutela religiosa sobre o povo.
Busca-se usar este argumento para assegurar que o Estado seja usado por
instituições religiosas para exercício desta tutela. Ela foi reduzida quando
% !&'%8&81&1!"!#$%$, '8"!#&:&(! .!/"0!#"'% 51&'8 .!$!( 5$(&=$23"!-"%!7(G"%!- !
1'&> %!0 $(&=$-$%!<"0$!-"![,4&8"!-$!0 (&5&3"!"7#&$(.! .!,$&%!0 # '8 , '8 .!
se legalizou o divórcio. E continua pela busca o reconhecimento legal da
união homossexual ou a retirada da tutela religiosa sobre a moral coletiva
em outras questões que dizem respeito ao direito dos cidadãos, como a
interrupção voluntária da gravidez. O que o Estado Laico garante é que
essas questões sejam debatidas por toda a sociedade, para que a legislação
seja mantida ou alterada, sem interdições que convêm a apenas parte dos
cidadãos, os adeptos de certas religiões.
Outro interesse defendido pela tese em foco é a de que a autoridade
religiosa de padres, bispos e pastores seja mantida, com aval do Estado,
e que votos possam ser canalizados para os candidatos apoiados pelas
instituições religiosas, prática comum nos meios católico e evangélicos.
\,! -"%! @ ,/("%! ,$&%! %&5'&7#$8&:"%! -$! @&%8]'#&$! - %% ! &'8 0 %% .! %"4! "!
pretexto de se defender a religiosidade popular, tem sido a explícita atuação
de líderes religiosos em períodos de eleições, em que abertamente declaram
214 Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico
apoio a candidatos mais sintonizados com os interesses dessas instituições
(sintonia traduzida em slogans como “católico vota em católico” e “irmão vota
em irmão”). É o reforço da tutela religiosa da moral coletiva, como vimos
acima, em uma espécie de reedição do chamado “voto de cabresto”, mas
% ,/0 !%"4!$!B1%8&7#$8&:$!- !91 !^"!F%8$-"!+!($&#".!,$%!"!/":"!+!0 (&5&"%"_`
Ainda de acordo com esse interesse, os parlamentares agentes
religiosos formam um bloco antilaico no Congresso Nacional, cujo efeito
se espraia para todos os campos: ética pública, currículo escolar, meios de
#",1'&#$23".! / %91&%$! #& '8C7#$.! 8#)! Z! 0 %1(8$-"! -$! ,&%810$! - ! 0 (&5&3"!
e política, como se vê em países onde isso acontece, é o pior possível –
preconceito, intolerância, discriminação, massacres e ditadura.
TESE 4 – O ESTADO LAICO É UM ESTRANGEIRISMO
QUE NÃO CONVÉM AO BRASIL
Para os partidários dessa tese, o Brasil é um país de tolerância
religiosa ímpar no mundo. Essa proposição não resiste ao menor confronto
com os fatos. Os afro-brasileiros, que já sofreram séculos de perseguição
pela Igreja Católica, hoje padecem a perseguição pelos evangélicos, que
-&%/18$,!% 1%!7+&%! !$8+!, %,"!% 1%!-&0&5 '8 %!0 (&5&"%"%)!Z%!$- /8"%!-"!
Catolicismo, por sua vez, reduzem seu contingente aceleradamente, desde o
K '%"!X ,"5067#"!- !LMNaT!/$%%$0$,!- !/"1#"!,$&%!- !Mbc!-$!/"/1($23"!
$!/"1#"!, '"%!- !Ndc!'"!- !OaLa)!W , 0"%$!- !8 0!% 1!#"'8&'5 '8 !- !7+&%!
empatado em número com os evangélicos, a Igreja Católica desenvolve
estratégias agressivas de retomada da antiga predominância na sociedade
e no Estado, do que a Concordata Brasil-Vaticano/Santa Sé, promulgada
em 2010, foi a culminância. Nem mesmo no período imperial, quando
"! K$8"(&#&%,"! 0$! 0 (&5&3"! "7#&$(.! G"1: ! 8$(! 8&/"! - ! 80$8$-".! 91 ! /0 :]!
privilégios políticos, econômicos, educacionais e outros a uma religião,
em ostensivo confronto com a Constituição brasileira, que, aliás, proíbe
alianças do Estado com instituições religiosas. Os cínicos dizem que o
Vaticano é um Estado com o qual o Brasil mantém relações diplomáticas,
mas omitem o fato de que há uma verdadeira simbiose dele com a Santa
Sé, a direção mundial da Igreja Católica. Os cínicos prosseguem, dizendo
91 !80$8$-"%!% , (G$'8 %!/"- 0&$,!% 0!70,$-"%!#",!"180"%!#0 -"%.!,$%!
omitem o fato de que a ambiguidade Estado/instituição religiosa existe
apenas para o Catolicismo. Nenhuma outra religião, nem mesmo as outras
monoteístas oriundas do Oriente Médio, dispõem dessa “dupla natureza”,
por não poderem se representar como um Estado.
Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico 215
E é justamente para evitar que o Estado brasileiro seja usado para a
disputa interna ao campo religioso, que a laicidade é imperiosa. Não se trata
de importar um modelo de Estado Laico, até porque não há tal modelo, a
laicidade não está pronta e acabada em lugar nenhum do mundo. Ela é um
processo, como, aliás, o conceito correlato de democracia. Ou seja: qualquer
- 7'&23"!- !F%8$-"!Y$&#"!% 06!% ,/0 !8 '8$8&:$.!$/0"@&,$8&:$.!/"091 ! ( !+!
uma construção histórica. Como a democracia, o processo de construção da
laicidade do Estado não se dá da mesma forma em todos os países (CUNHA,
2013).
No Brasil, tal processo começou com a luta pela liberdade religiosa num
Estado confessional católico, durante o Império; continuou pela separação
entre a Igreja Católica e o Estado, de modo a eliminar os privilégios dessa
instituição e a retirada das limitações que pesavam sobre as demais; e
prossegue com reivindicação da imparcialidade estatal diante do campo
religioso. Aliás, esse padrão é semelhante, em linhas gerais ao dos países
europeus, cujos Estados foram formados sobre a base da herança medieval
da estrita ligação entre poder político e poder eclesiástico cristão. No século
XVI, os países ibéricos transferiram o padroado para suas colônias na
América, que, independentes, o reproduziram.
Esse processo não é uma linha contínua, pois há contradições que
7#$,! $8 '1$-$%! "1! %3"! $#&00$-$%)! J"08$'8".! @&%8 ,! 0 #1"%! ! $:$'2"%!
no processo de construção da laicidade do Estado. A laicidade pode até
avançar nuns setores e recuar noutros. É o caso do Brasil de hoje: enquanto
a discussão da legislação sobre os direitos sexuais e reprodutivos se faz em
termos cada vez mais laicos, na educação pública ela segue permeada pela
presença religiosa.
Quando, porém, a proposição em foco é enunciada, muitas vezes o que
se busca é a “naturalização” da presença religiosa no Estado, como a entrada
do campo religioso no campo educacional, cuja autonomia tem diminuído
por conta da ofensiva de certas sociedades religiosas para exercerem o
controle do currículo da educação básica no setor público. Esse controle
vai do ensino religioso nas escolas públicas até o conteúdo das aulas de
Ciências e de Biologia, passando pela formação dos quadros do magistério.
Isso porque, lamentavelmente, as instituições religiosas hegemônicas em
nosso país lograram a mobilização de apoio político de toda a ordem, e
conseguiram inscrever na Constituição de 1988 o dispositivo da oferta do
ensino religioso no ensino fundamental das redes públicas, na forma de
disciplina facultativa para os alunos, a ser ministrada dentro do horário de
aulas. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, endossou
216 Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico
o dispositivo constitucional do ensino religioso nas escolas públicas. Com
"! $#&00$, '8"! -$! #0&% ! #"'H,&#$.! '"%! $'"%! LMea.! ! -"%! #"'E&8"%! %"#&$&%!
urbanos, a religião tornou-se um tipo de panaceia, que se pretende ministrar
em doses amplas nas escolas públicas, como um mecanismo de controle
individual e social supostamente capaz de acalmar os indisciplinados, de
conter o uso de drogas, de evitar a gravidez precoce e as doenças sexualmente
transmissíveis, capaz até mesmo de fornecer a presumida única base válida
para a ética e a cidadania, como se fosse uma espécie de educação moral e
cívica (CAVALIERE, 2006). E sempre, sob a argumentação de que o povo é
religioso ou de que a laicidade do Estado, como a defendemos no presente
texto, se trata de uma peculiaridade de outros países, como a França, o
Uruguai ou os “países comunistas”...
Busca-se, com essa tese, a manutenção da presença da religião em
espaços e no calendário públicos, vista por muitos como “natural”, como
se o povo fosse “naturalmente” religioso e a laicidade fosse uma ideia
^$08&7#&$(`! '80 !'?%)!K","! @ ,/("%!- %%$!/0 % '2$!0 (&5&"%$!91 !% !41%#$!
manter, podemos mencionar a própria Constituição da República, que
traz em seu preâmbulo a evocação da “proteção de Deus”, ou as notas da
nossa moeda corrente, que trazem a inscrição “Deus seja louvado”, mantida
mesmo diante de contestações como as do Ministério Público. Isso em um
país onde há cidadãos que não creem em Deus ou que creem em várias
-&:&'-$- %.! ! $8+! , %,"! /0"< %%$,! 0 (&5&> %! 91 ! '3"! /"%%1 ,! $! 7510$!
de Deus! Sem mencionarmos um dos exemplos mais manifestos dessa
/0 % '2$T!&,$5 '%!0 (&5&"%$%!f#","!"!#01#&7@"P! ,!80&41'$&%.!K[,$0$%!- !
Vereadores, Assembleias Legislativas ou repartições públicas de qualquer
8&/".!B1%8&7#$-$%!#","!^80$-&23"`!- !'"%%"!/$C%_
TESE 5 – O ESTADO LAICO É INSTRUMENTO DE LUTA
DE GRUPOS RELIGIOSOS EM ASCENSÃO
Como vimos, em termos sociológicos, o campo religioso é um campo
- ! #"'E&8"%.! - ! (18$! / ($! G 5 ,"'&$)! F%%$! #$0$#8 0C%8&#$! 7#$! ,$&%! :&%C: (!
quando se trata das religiões abraâmicas, isto é, o judaísmo e seus derivados,
o Cristianismo e o Islamismo – e até mesmo no interior de cada uma delas. A
G&%8?0&$! ( '#$!1,$!%+0& !&'7'-6: (!- !/ 0% 51&2> %!#0&%83%!$"%!B1- 1%! !$"%!
muçulmanos; de hinduístas contra muçulmanos; e destes contra cristãos.
As lutas políticas com aderência religiosa na Palestina/Israel, bem como
a de católicos e protestantes na Irlanda do Sul representam a versão mais
"%8 '%&:$!-"!#$068 0!&'80&'% #$, '8 !!#"'E&8&:"!-"!#$,/"!0 (&5&"%")
Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico 217
No âmbito do Cristianismo, a ortodoxia foi mantida a ferro e a fogo,
no sentido estrito da palavra. As lutas religiosas na Europa, logo após
a Reforma Protestante, duraram décadas, e só foram reprimidas pelos
chefes de Estado, pelo Tratado de Vestfália, em 1648.116 Além das visíveis
lutas fratricidas, a discriminação jurídico-política que a(s) religião(ões)
dominante(s) exercem mediante o poder que detém(êm) no Estado, não
- : ,!% 0! %91 #&-$%.!/ ($!%1$! 7#6#&$!,$8 0&$(! !%&,4?(&#$)!J"0! @ ,/(".!
a hegemonia que a Igreja Cristã Ortodoxa granjeou na Grécia propiciou aos
seus adeptos o monopólio do exercício de cargos públicos. E mais: que todos
os cidadãos gregos tivessem inscritos nos seus documentos de identidade
$! 0 (&5&3"! 91 ! % 51&$,.! $! "7#&$(! "1! $(51,$! "180$)! Z! &'50 %%"! - %% ! /$C%!
'$! \'&3"! F10"/ &$! 7#"1! #"'-&#&"'$-$! I! %1/0 %%3"! - %% ! %8&5,$! '"%!
documentos pessoais.
*!8 % ! ,!<"#"!0 < 0 A% .!&,/(&#&8$, '8 .!$!1,!8&/"!- !#"'E&8"!-&< 0 '8 !
dos mencionados acima. Esses tendem à conquista do monopólio, no limite,
à transformação da religião hegemônica em dominante, a partir do seu
0 #"'G #&, '8"! @/(C#&8"!"1!86#&8"!#","!0 (&5&3"!"7#&$()!Z1!% B$.!'$-$!$!: 0!
#",! "! F%8$-"! Y$&#")! g$%.! G6! #"'E&8"%! 0 (&5&"%"%! 8 '- '8 %! I! ($&#&-$- ! -"!
Estado, que é a luta dos dominados pelo direito de prática de seu credo sem
restrições. A luta que os afro-brasileiros travam durante séculos pelo pleno
direito ao culto não tem paralelo no país. Nem mesmo sabemos quantos
%3"! ( %)!*%!0 %/"%8$%!$"%!K '%"%!X ,"5067#"%.! ,!91 !'3"!% !&- '8&7#$,!
como tais os seguidores de religiões de matriz afro-brasileira, não revelam
a dimensão quantitativa dos seus adeptos. O Censo de 2010 revelou a
existência de apenas meio milhão de adeptos de cultos afro-brasileiros, em
todo o país, a despeito da propaganda de grupos vinculados a estes cultos,
que proclamavam “quem é de axé, diz que é”.
Os evangélicos, que no século XIX já sofreram violências policiais,
movidas pelo clero católico, hoje crescem a ponto de haver quem projete
para a próxima década seu número igualar o dos católicos reais e
presumidos (afro-brasileiros inclusive). Até a proclamação da República,
em 1889, os evangélicos sequer tinham o direito de erguer templos com
essas características, nada de sinos nem de símbolos religiosos na fachada
das casas particulares onde se reuniam. A existência do Catolicismo como
0 (&5&3"!"7#&$(!- % %8&,1("1!$8+!, %,"!$!:&'-$!/$0$!"!V0$%&(!- !&,&50$'8 %!
protestantes, principalmente da Alemanha, pois aqui não poderiam ter
LLN!F,!5 0$(.!"%!80$8$-"%!&'8 0'$#&"'$&%!8],!"!'", !-$!#&-$- !"'- !%3"!70,$-"%)!Q %% !#$%".!"!'", !
<"&!-$!0 5&3"!-$!*( ,$'G$.!/"&%!#$8?(&#"%! !/0"8 %8$'8 %!'3"!/"- 0&$,!7#$0!'$!, %,$!#&-$- T!"%!/0&meiros foram para Münster e os outros para Osnabrück.
218 Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico
<$,C(&$! ( 5$(, '8 ! #"'%8&81C-$.! % 1%! 7(G"%! 0$,! 8&-"%! #","! &( 5C8&,"%.!
quando morriam não podiam ser enterrados nos cemitérios públicos.
Portanto, os presbiterianos, metodistas e congregacionais desenvolveram
uma longa e silenciosa luta contra o monopólio religioso da Igreja Católica,
até que a laicidade republicana (plataforma de liberais, maçons e positivistas)
os liberou dos entraves jurídico-políticos existentes no Estado confessional
da monarquia.
Para mais um exemplo de como a laicidade do Estado pode ser do
interesse de grupos religiosos sem que isto represente seu uso como
instrumento de algumas religiões contra outras, mas apenas a favor de sua
liberdade religiosa, recorramos aos valdenses. Se no Brasil a discriminação
atingiu a todos os protestantes, a situação foi particularmente difícil para
os movimentos religiosos que anteciparam o cisma cristão do século XVI.
Três séculos antes, a secessão havia começado no norte da Itália com o
movimento liderado por Pedro Valdo, que não reconhecia a supremacia
papal, promovia a leitura individual da Bíblia na língua vernácula e
rejeitava as imagens nos templos e nos cultos. Os valdenses, como vieram
a ser conhecidos os adeptos desse movimento, foram excomungados pela
Santa Sé e perseguidos pelo Estado confessional. Em 1848 eles passaram a
usufruir de liberdade religiosa, pelo menos no Piemonte.
A migração de italianos para a América, nas últimas três décadas do
século XIX, trouxe valdenses para o Uruguai, onde formaram importante
colônia, que mantinha escolas próprias. Em 1909, quando foi aprovada lei
que vedava o ensino e a prática religiosa nas escolas públicas uruguaias,
duas posições opostas foram marcantes. A Igreja Católica manifestouse contrária a essa lei por representar a institucionalização da “escola
sem Deus”. Para os evangélicos, no entanto, a lei foi favorável à liberdade
religiosa e a suas próprias iniciativas educacionais. Como as escolas públicas
tornaram-se laicas, os valdenses foram mais longe do que seus confrades
de outras denominações e solicitaram a incorporação de suas escolas à
0 - ! "7#&$()! F,! #"'% 91]'#&$.! $%! $'8&5$%! %#"($%! #"'< %%&"'$&%! :$(- '% %!
transformaram-se em escolas e laicas, mantidas e geridas pelo governo
uruguaio.
Na Itália, atualmente, a Igreja Valdense tem uma ligação institucional
com a Igreja Metodista, e apoia materialmente, o movimento Itália
Laica.117
A luta pela liberdade religiosa, contra as tendências intrinsecamente
117 Ver www.italialaica.it.
Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico 219
#"'E&81"%$%! ! -&%#0&,&'$8?0&$%! -"! #$,/"! 0 (&5&"%".! +! "! /0&, &0"! /$8$,$0!
da luta pela laicidade do Estado, embora a ela não se reduza, uma vez que
pode haver tal liberdade mesmo em uma sociedade cujo Estado privilegie
certas religiões. É compreensível, embora não admissível, que os detentores
do monopólio ou da hegemonia religiosa imaginem que essa luta seja contra
eles: uma distorção de percepção explicada pelos interesses ameaçados.
TESE 6 – O ESTADO LAICO É DESTITUÍDO
DE MORAL OU DE ÉTICA
g"0$(! !+8&#$!%3"!8 0,"%!#"'80": 0%"%)!h6!91 ,!"%!&- '8&791 ! !91 ,!
os distinga. Para a redação deste texto, decidimos tomá-los como sinônimos.
!"#$% &'% ()!*+'% $% ,(-(.*+% /+0,(% $% 1"2$% 3,4!"#$'% $!,$1(//$2$% 3+,% 56(/!7(/% (%
dilemas relativos aos juízos acerca do bem e do mal.
A questão central é a seguinte: o Estado pode ser neutro, assumindo
uma ética independente de uma ou de várias religiões? Dito de outro modo:
o Estado pode assumir e impor uma pauta de valores éticos sem base
religiosa?
Com efeito, ninguém pode ser neutro em relação a valores, tampouco
os valores que dizem respeito a todos têm uma religião ou várias delas como
fundamento. O Estado não é neutro em relação à democracia, por exemplo.
89&:%2(%$;,:$,%$%2(:+#,$#"$'%1$9+,%56(%)(:%!+2$/%$/%,(9"<"7(/%,(#+)=(#(:%
>+6% )(:% /(:3,(% +% ,(#+)=(#(,$:?% 6:$% &!"#$% 9$"#$% $;,:$% $% 9"0(,2$2(% 2(%
crença, que não coincide com os valores de autorreferência da maioria das
religiões.
Têm razão os que chamam a atenção para a existência de um vazio
ético no ensino público. Mas, ao contrário do que se pretende, a religião não
é conteúdo adequado a preenchê-lo. A ética laica é o que faz falta, como,
aliás, apontam, implicitamente, os temas transversais dos Parâmetros
Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental, de 1997, e a Resolução
CNE/CP nº 1/2012 do Conselho Nacional de Educação, sobre as Diretrizes
Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. Num texto tão oportuno
quanto correto, o Conselho Pleno daquele órgão colegiado elencou os sete
princípios fundamentais da Educação em Direitos Humanos, não só em
termos laicos, como, também, explicitando a laicidade do Estado como
um deles. Os outros seis são os seguintes: dignidade humana; igualdade
de direitos; reconhecimento e valorização das diferenças e diversidades;
democracia na educação; transversalidade, vivência e globalidade; e
220 Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico
sustentabilidade socioambiental. A não ser o primeiro, nenhum desses
princípios pode ser creditado a religião alguma. A dignidade humana
sim, teve, na sua gênese histórica, protagonismo seminal do Cristianismo,
que, todavia, veio a contribuir fortemente para o seu contrário, mediante
o apoio e a prática da escravidão, da dominação sexual e de gênero, da
sujeição de povos e de religiões concorrentes, sem falar na repressão aos
dissidentes internos. E não são favas contadas! Não há como desconhecer
que a dignidade humana é, na atualidade, valor assumido e potencializado
por outras correntes de pensamento e ação, inclusive antirreligiosas, como
as libertárias, por exemplo. Pretender que a dignidade humana seja um
valor propriamente religioso é uma redução teórico-prática que não tem
fundamento teórico nem prático.
Concentremos nossa atenção na questão da ética tal como aparece
formulada como um dos Temas Transversais dos Parâmetros Curriculares
Nacionais do Ensino Fundamental. O desenvolvimento desse tema deve
/(% 3$6!$,% 3(9$% $6!+)+:"$% ")2"1"26$9'% #+)2"@*+% 3$,$% $% ,(-(.*+% &!"#$A% B$,$%
isso, foram eleitos como eixos do trabalho quatro blocos de conteúdo:
respeito mútuo, justiça, diálogo e solidariedade (Brasil, 2000, p.32). Os
valores escolhidos e a intenção de ensiná-los devem ser explicitados para
todos, principalmente para os alunos. O trabalho pedagógico deve incluir a
possibilidade de discussão e questionamento, assim como a não ocultação
!" #$%&'( )*+!,-" #$%.)&$," !" #$%/'$%&$,A% C"!+% 2(% +6!,+% :+2+'% +/% #+)-"!+/%
devem ser apresentados como inerentes aos processos democráticos, pois
são eles que fazem avançar, não sendo algo negativo que deva ser evitado
(Brasil, 2000, p.46-47).
Em lugar algum dos Parâmetros os valores éticos estão baseados
em textos sagrados ou em obras abstratas, mas encontram sua base
num texto político concreto, resultado da negociação de diversas forças
políticas: a Constituição Federal. Do art. 1º, os parâmetros destacam, como
fundamentos da República, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo
político. Do art. 3º, apontam os objetivos da República: construir uma
sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização, e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação. Do art. 5º, extraem diversas consignas: homens e mulheres
são iguais em direitos e obrigações; ninguém será submetido a tortura nem
a tratamento desumano ou degradante; é inviolável o direito de consciência
e de crença; e outras (Brasil, 2000, p.70-71). Em suma, a ética neste
documento é concebida como imanente à vida social, sendo a Constituição
Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico 221
a expressão dos valores acordados pelas diversas forças políticas em aliança
e confronto.
A tentativa de inserir a ética laica no ensino público merece o apoio
de todos os que rejeitam a pretensão de certos grupos de monopolizarem o
controle da consciência coletiva, seja o clero de alguma instituição religiosa,
o comissariado de algum partido político, a censura de algum governo ou
de grupo de interesse.
Os grupos empenhados em utilizar a escola pública para controlar
a consciência coletiva ou para resolver disputas próprias do campo
religioso estão na ofensiva, de modo que não cabe adiar essa explicitação.
No momento em que vivemos, quando as tenebrosas consequências dos
fundamentalismos, especialmente do ramo judaico-cristão-muçulmano,
são visíveis em todo o mundo, a defesa do ensino público laico – e de um
Estado Laico, antes de tudo – impõe-se como um item prioritário no ideal
democrático (CUNHA, 2009).
TESE 7 – O ESTADO LAICO É ANTÍDOTO CONTRA
FUNDAMENTALISMOS RELIGIOSOS
Chegamos à última das teses equivocadas, que tem sido amplamente
defendida inclusive por quem deseja defender a laicidade do Estado.
A presença de atores religiosos na política brasileira é tão antiga quanto
o próprio Estado nacional. O clero católico atuou nas diversas instâncias
dos Poderes Legislativo e do Executivo desde a Independência, e até mesmo
nos movimentos pela separação de Portugal e nas rebeliões que pontuaram
a história do Império. Segundo a fórmula antiga, a Igreja Católica era parte
2+% D/!$2+'% #+:+% ,(9"<"*+% +;#"$9'% :$)!"2$% !+2$% (% #+)!,+9$2$% (:% 3$,!(% 3+,%
ele. A República interrompeu essa simbiose tão íntima, mas não impediu a
participação política do clero. Padres e bispos reduziram sua participação
)+/%#$,<+/%3E09"#+/'%:$/%:$)!"1(,$:%F+,!(%")-6G)#"$%:(2"$)!(%#,(/#()!(%
participação política do movimento católico leigo, fosse via política
partidária, fosse via contato direto do clero com prefeitos e vereadores, com
governadores e presidentes, deputados e senadores.
Já com os evangélicos, a situação foi diferente. Ao contrário do clero
católico, que sempre esteve dentro dos palácios do poder, os evangélicos
tiveram de abrir caminhos para entrar num espaço já ocupado. A criação de
colégios de melhor qualidade do que os católicos foi uma estratégia vitoriosa,
nas últimas décadas do Império e nas primeiras da República – um aceno
222 Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico
ao qual a elite cultural brasileira respondeu positivamente. Mesmo assim,
os nada ameaçadores líderes evangélicos das igrejas tradicionais tiveram de
compor com o Catolicismo à medida que aumentavam sua base política. A
atuação de Guaraci Silveira nas Assembleias Constituintes de 1933/34 e de
HIJK%&%6:%0+:%(.(:39+%2"//+L%2(%2(/$;$2+,'%3$//+6%$%$9"$2+%2+/%2(36!$2+/%
apoiados pela Liga Eleitoral Católica.
M% 2(/$;+% :$"+,% /6,<"6% )$% 2&#$2$% 2(% HIKN'% 56$)2+% 2(/9$)#=+6% $%
expansão das Igrejas Evangélicas pentecostais, com base nas camadas
populares, caminhando para empatar com o contingente de adeptos
2$% #+);//*+% =(<(:O)"#$% 2(/2(% +/% !(:3+/% #+9+)"$"/A% P+:+% &% !Q3"#+% 2+/%
parvenus118, sua irrupção na cena política emprega procedimentos que
acabam por atrair sobre si tanto atenções antes indiferentes quanto rejeições
desnecessárias.
R6"!$/% 2$/% !4!"#$/% 2(% ")-6G)#"$% /+0,(% +% D/!$2+% (:3,(<$2$/% =+S(%
pelas Igrejas Evangélicas são as mesmas da Igreja Católica no passado: de
0$)#$2$%3$,9$:()!$,%T%<(/!*+%2+/%,(#6,/+/%;)$)#(",+/%3E09"#+/A%D:%!+2+/%
eles, os evangélicos são meros aprendizes quando comparados com os rivais,
veteranos nos campos religioso e político.
O impulso de crescimento e ação conjunta das Igrejas Evangélicas tem
limites. Não é sensato supor que ele seja permanente e que elas substituirão
o lugar da Igreja Católica na sociedade brasileira. Não se deve esquecer que
esta tem uma estrutura dotada de alto grau de centralização, a despeito
das dissensões internas, enquanto que aquelas têm nas cizânias teológicas
e políticas práticas a condição mesma de seu dinamismo. Por outro lado,
depois da eleição do papa Francisco quem mais duvida da capacidade de
aggiornamento da Igreja Católica em termos políticos e ideológicos?
Sem dúvida, há espaço para o crescimento da presença de líderes
evangélicos no campo político, mas, tampouco há dúvida de que esse
crescimento levará a sensíveis mudanças de suas plataformas e ideologias,
como aconteceu com Guaraci Silveira. Aliás, não se pode esquecer do
prognóstico de Reginaldo Prandi (2013), de que “em vez do Brasil virar
culturalmente evangélico, a religião evangélica pode bem se converter ao
Brasil”.
118 Expressão francesa que designa pessoas que chegam a situação social superior à de sua origem,
sem ter adquirido a cultura considerada apropriada à nova condição. O termo equivalente em português é arrivista (também ele derivado do verbo francês arriver = chegar, alcançar). Arrivista foi
dicionarizado no Brasil de modo preconceituoso: pessoa inescrupulosa que quer vencer na vida a todo
custo. Assim aparece no Novo Aurélio Século XXI e no Dicionário UNESP do Português Contemporâneo. Por isso, preferimos manter o termo francês.
Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico 223
O protagonismo político de líderes evangélicos nas diversas instâncias
do Poder Legislativo tem apavorado os setores laicos menos experientes na
análise política. Diante do que sentem como perigo evangélico – ou pentecostal
ou fundamentalista119 –, tais setores apressam-se a aliarem-se aos católicos,
em busca de um inter ou supra ou pluri ou multi-confessionalismo, que
dilua esse protagonismo. Assim fazendo, esses setores laicos acabam por
se transformar em novos atores do campo religioso, reforçando uns contra
outros – portanto, entram no jogo desse campo.
O Estado laico não é, por princípio, contra nem a favor de movimentos
fundamentalistas, já que não é ator do campo religioso. Nem quando entram
em acordo, como na mobilização de seus adeptos contra as políticas públicas
no tratamento do aborto como questão de saúde coletiva. Nem quando estão
em desacordo, como no caso da maior, menor ou nenhuma tolerância diante
das políticas públicas de combate à homofobia. O Estado Laico tampouco
está a favor dos aggiornati contra os fundamentalistas, ou dos “bons” contra
os “maus” religiosos, porque ele é imparcial nas disputas internas ao campo
religioso. O que o Estado Laico deve garantir, efetivamente, é um antídoto
às consequências deletérias da ação política dos religiosos fundamentalistas
e de seus opositores no campo religioso, em especial quando avançam sobre
+/% #+F,(/% 3E09"#+/% 3$,$% +% ;)$)#"$:()!+% 2(% /6$/% 3,4!"#$/% 3$,!"#69$,(/U% (%
quando constrangem as políticas públicas que dizem respeito à cidadania e
$+%2(/()1+91":()!+%#"()!Q;#+A
3. Em Defesa Do Estado Laico
Defender o Estado laico implica combater a disseminação de teses
equivocadas como as apresentadas e comentadas acima. A despeito das
superposições entre elas, como vimos, três são especialmente danosas para
a correta compreensão do que seja ou possa ser a laicidade do Estado no
Brasil de hoje: a suposição de que o Estado Laico seja sinônimo de Estado
ateu ou ao seu oposto lógico, o Estado multirreligioso, bem como venha a
ser o Estado laico o instrumento para combater os fundamentalismos.
P+:% (F("!+'% "2()!";#$,% 2+% D/!$2+% V$"#+% $+% D/!$2+% $!(6'% 3,(!()2GW9+%
expressar o condomínio das instituições religiosas, tanto quanto atribuir9=(%+%3$3(9%2(%#+:0$!(,%+/%F6)2$:()!$9"/:+/'%/"<)";#$%,(26X",%+%D/!$2+%$%
agente do campo religioso, exatamente o contrário da correta compreensão
119 Fundamentalista é entendido, aqui como o movimento ou a instituição que segue estritamente os
princípios e/ou as práticas do fundador, rejeitando como desvios ou heresias as mudanças realizadas
nos ritos, nos valores, assim como na interpretação dos textos sagrados.
224 Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico
do seu status, isto é, agente por excelência do campo político. Aliás, a
Constituição brasileira de 1988 determina, apropriadamente, no art. 19, que
é vedado a todas as instâncias do Estado estabelecer cultos religiosos ou
igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com
eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, mantendo a
ressalva da colaboração de interesse público, na forma da lei.
A defesa do Estado Laico depende, sobretudo, do próprio Estado para
o esclarecimento das teses equivocadas e a difusão do correto entendimento
do que ele seja. Para isso, é indispensável a atuação sintonizada, tanto
quanto possível, de várias e diferentes instituições sociais e políticas:
- Das diversas instâncias do Sistema Judiciário, com a correta
interpretação da legislação brasileira e a ágil contribuição para seu
aperfeiçoamento, mediante interpretação adequada, bem como da iniciativa
do Ministério Público. E evitar decisões judiciais nas quais, como tem
acontecido, juízes prescrevam práticas religiosas a pessoas condenadas por
crimes, como condição para a liberdade condicional; ou pretendam decidir
sobre o que é e o que não é religião.
- Da atuação coerente e consistente das instâncias governamentais, de
modo a evitar que os recursos públicos sejam empregados em detrimento
da implementação de suas próprias políticas, como acontece nos hospitais
;9$)!,Y3"#+/%#+)F(//"+)$"/%")!(<,$)!(/%2+%Z"/!(:$%[)"#+%2(%Z$E2(A%83(/$,%
2(% 0()(;#"$2+/% 3+,% <()(,+/$/% "/()@7(/% ;/#$"/% (% /60/Q2"+/% ;)$)#(",+/'% =4%
hospitais que se recusam a executar atos médicos, como o aborto nos casos
legalmente permitidos.
- Da reorientação política das instâncias legislativas, onde o
oportunismo e a leniência de senadores, deputados e vereadores facilitam a
atuação de devotos parlamentares como despachantes de suas agremiações
religiosas na elaboração das leis e nos próprios ritos inerentes a esse Poder.
- Dos meios de comunicação de massa, atualmente os educadores
políticos de facto%2+%3+1+%0,$/"9(",+A%D9(/%/(%0()(;#"$:%2(%6:$%#+)#(//*+%
do Estado, mas, na disputa pela audiência, seus programas, locutores e
animadores lançam mão de expedientes de sedução religiosa de ouvintes e
telespectadores, em detrimento de políticas públicas pautadas pela laicidade
do Estado, a exemplo do combate à homofobia.
- Dos sistemas públicos de ensino em todos os níveis e modalidades,
2(%:+2+%56(%+/%#+)!(E2+/%(%+/%3,+#(2":()!+/%/(S$:%2(;)"2+/%3+,%#,"!&,"+/%
pedagogicamente laicos. Para que isso ocorra, é indispensável que os
Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico 225
conselhos nacional, estaduais e municipais de educação deixem de ter vagas
cativas para instituições religiosas, ainda que de modo informal. A primeira
consequência objetiva dessa reorientação é eliminar a prática corrente nos
sistemas públicos de ensino, onde muitas escolas fazem do ensino religioso
disciplina obrigatória, a despeito de a Constituição determiná-la facultativa.
Nada disso impedirá a atuação de religiosos no campo político, mas
2(/2(%56(%/(S$%)$%2(F(/$%2(%39$!$F+,:$/%56(%0()(;#"(:%!+2$%$%3+369$@*+'%
S6/!";#$2$/% 3+,% 2"/#6,/+/% 56(% 2"<$:% ,(/3("!+% $% !+2+/% +/% #"2$2*+/'%
")2(3()2()!(:()!(% 2(% ;9"$@*+% ,(9"<"+/$% +6% :(/:+% $)!",,(9"<"+/$A% \$:$"/%
usando a força do Estado para impor a todos o que pretendem adequado
a seus próprios adeptos e com base nos textos e nos preceitos que lhe são
sagrados.
4. Referências
BATISTA, Carla e MAIA, Mônica (orgs.). Estado laico e liberdades
democráticas. Recife: Articulação das Mulheres Brasileiras/ Rede
Nacional Feminista de Saúde/ SOS Corpo-Instituto Feminista para a
Democracia, 2006.
BLANCARTE, Roberto. (Coord.). Los retos de la laicidad y la secularización
en el mundo contemporáneo. México, D. F.: El Colegio de México,
Centro de Estudios Sociológicos, 2008.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas, São Paulo:
Perspectiva, 1974.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental.
Parâmetros curriculares nacionais: apresentação dos temas
transversais: ética. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
CAVALIERE, Ana Maria. “Quando o Estado pede socorro à religião”, Revista
Contemporânea de Educação (Rio de Janeiro), nº 2, 2006.
CUNHA, Luiz Antônio. Educação e religiões: a descolonização religiosa da
Escola Pública, Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.
CUNHA, Luiz Antônio. “A luta pela ética no ensino fundamental: religiosa
ou laica?” Cadernos de Pesquisa (São Paulo) nº 137, maio/agosto 2009.
FISCHMANN, Roseli. Estado Laico, São Paulo: Memorial da América
Latina, 2008.
226 Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000.
012345678490":6";69<9:6:3"=6"3:><6?@0, acessado no endereço:
www.edulaica.net.br
PRANDI, Reginaldo. “A conversão do pentecostalismo”, Folha de São Paulo,
21/07/2013.
STAVENHAGEN, Rodolfo. “Sete Teses Equivocadas sobre a América Latina”,
In DURAND, José Carlos Garcia. Sociologia do Desenvolvimento - I,
Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1969.
ZANONE, Valério. “Laicismo”, IN: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI,
Nicola; PASQUINO Gianfranco, Dicionário de Política, Rio de
Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1995.
Ministério Público - Em Defesa do Estado Laico 227