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raciocício jurídico e economia

Introdução * O objetivo deste texto é discutir a possível compatibilidade do raciocínio jurídico com a economia ou raciocínio econômico. Pressuponho que o direito e a economia são duas disciplinas diferentes, e assim vêm sendo tratadas na tradição romano-canônica há muito tempo. A economia desenvolveu-se nos últimos dois séculos com um campo autônomo, embora tenha nascido da ética ou da política (ciência da política, ou da polícia) e neste sentido ganhou autonomia dentro do largo campo da filosofia prática. 1 Dentro do mesmo campo, o da filosofia prática, encontra-se o direito, que tem uma carreira acadêmica muito mais longa, datada do século XII em Bolonha (para o caso do direito ocidental moderno). Ao contrário, porém, do que sucedeu com a economia, o direito nunca teve sucesso na formalização e construção de modelos, a despeito dos esforços historicamente famosos, principalmente o de Leibniz, no século XVIII.

1 Raciocínio jurídico e economia José Reinaldo de Lima Lopes Faculdade de Direito da USP Escola de Direito de São Paulo (EDESP-FGV) Introdução * O objetivo deste texto é discutir a possível compatibilidade do raciocínio jurídico com a economia ou raciocínio econômico. Pressuponho que o direito e a economia são duas disciplinas diferentes, e assim vêm sendo tratadas na tradição romano-canônica há muito tempo. A economia desenvolveu-se nos últimos dois séculos com um campo autônomo, embora tenha nascido da ética ou da política (ciência da política, ou da polícia) e neste sentido ganhou autonomia dentro do largo campo da filosofia prática.1 Dentro do mesmo campo, o da filosofia prática, encontra-se o direito, que tem uma carreira acadêmica muito mais longa, datada do século XII em Bolonha (para o caso do direito ocidental moderno). Ao contrário, porém, do que sucedeu com a economia, o direito nunca teve sucesso na formalização e construção de modelos, a despeito dos esforços historicamente famosos, principalmente o de Leibniz, no século XVIII. A discussão que proponho tem seu contexto próprio, institucional e economicamente falando. Em primeiro lugar acontece em um sistema jurídico, no caso do Brasil, fundado em uma constituição escrita, rígida, orientada para o estabelecimento de um Estado social, democrático e de direito. Em segundo lugar, dá-se no momento da globalização da economia, cujo traço principal, para os propósitos deste trabalho, é a expansão geográfica (no espaço-mundo) e social (em todas as esferas da vida social) da racionalidade econômica * Agradeço a leitura de uma versão prévia desse texto feita por Elisa Reis, que me chamou a atenção para pontos aqui incorporados, tais como a questão da reciprocidade inerente ao raciocínio jurídico em contraste com o econômico, que permite à economia formalizar o pensamento de um mundo de Robinson Crusoe. Agradeço igualmente a leitura atenta de meu assistente Thiago Acca, cujo resultado, espero, é um texto mais claro. Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no seminário promovido pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, em março de 2004 (Economic and social regulation, accountability and democracy). 1 Entendo a filosofia prática como a disciplina que investiga a deliberação e os processos de tomada de decisão de forma não empírico-comportamental (como, por exemplo, a psicologia comportamentalista), mas de forma propriamente especulativa, voltada para a racionalidade possível da ação humana. 2 (ou de mercado). Finalmente, dá-se em um país que já conta com uma longa tradição de cultura jurídica e com instituições estabelecidas, gostemos ou não de seus traços dominantes. O direito não nasce em árvores, mas na imaginação coletiva e esta não pode ser tomada levianamente. Logo, o debate dá-se em um sistema jurídico existente, pelo qual e no qual as pessoas (juristas ou leigos) já orientam suas ações, exercem suas crenças e se comportam. As regras do sistema jurídico brasileiro existem há já bastante tempo. A cultura jurídica brasileira é marcada por uma forte proteção do interesse privado, como aliás revela a pesquisa de Castro sobre o Supremo Tribunal Federal (Castro 1997). Um pressuposto geral deste texto é a crença de que mesmo sem ter sido reconhecido pela prática jurídica, a economia tem um caráter prático e uma aplicabilidade de seus raciocínios em certas questões que já ofereceram, há muito tempo, regras que os juristas aplicam. Por isto, a regulação pública do mercado não é, do ponto de vista teórico estritamente falando, uma novidade completa para o raciocínio jurídico. Pode-se mostrar uma série não pequena de exemplos em que o “raciocínio” prático econômico já vive no campo do direito. Tais exemplos, a despeito de freqüentes e mesmo cotidianos, não são os que moldam a mente dos juristas. Este texto procura mostrar como o raciocínio econômico entra no direito. Ao fazer isto, porém, pretendo reconhecer simultaneamente que o direito mantém sua autonomia e em vários casos as regras do raciocínio econômico serão superadas pela racionalidade legal. Com isto, este texto presume que o direito e a economia não podem substituir a filosofia prática totalmente, embora ambos sejam disciplinas derivadas da aplicação do raciocínio prático antecedido por fundamentação especulativa. O texto também pressupõe que o tema é relevante já que se houve falar que a regulação econômica é uma espécie de interferência indevida nas liberdades dos particulares e que é inaceitável o uso de considerações econômicas para decidir disputas jurídicas. Cresceu a tensão entre tribunais de diferentes graus, com algumas acusações, ainda que veladas, de que os tribunais superiores fazem política, enquanto os tribunais inferiores são mais 3 técnicos. Este confronto político é alimentado por se subestimar o que realmente fazem os juristas e o que o direito permite realmente que eles façam. Dividi o trabalho em três partes. Na primeira lido com as diferenças e semelhanças entre raciocínio jurídico e raciocínio econômico, pressupondo que ambas disciplinas diferem quanto aos sentidos das ações que assumem respectivamente como dados. A segunda parte procede historicamente com uma série de exemplos da existência de conceitos econômicos na prática jurídica e afirma a necessidade de se recuperar a distinção analítica entre conflitos comutativos e conflitos distributivos. Uma terceira parte analisa um caso exemplar por envolver um debate entre os ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento da constitucionalidade da Medida Provisória 2.152-2 (crise energética de 2001, cobrança de tarifas diferenciadas segundo os níveis de consumo). 1. Tipos ideais e raciocínio 1.1. A razão, o motivo e o sentido da ação como elementos do tipo-ideal Sentido e propósito são conceitos importantes ao tratar da ação humana. Ao falar de propósito, assumimos que certo comportamento não é o resultado puro e simples de reação cega. Ele envolve alguma escolha ou intenção. Ao falar de sentido pressupomos que a pessoa poderá dar razões para sua ação. Sentido e propósito ajudam a responder a questão “por que?” A ela podemos responder “porque...”, “com o fim de...”, “para....” A questão do “porquê” exige que a resposta seja dada em termos de entendimento, compreensão. “Compreensão equivale a: apreensão interpretativa do sentido ou conexão de sentido.” (Weber 1977, 9) A resposta à pergunta “por que?” pode ser dada em níveis diferentes. (1) Pode dar-nos a indicação (apreensão) do sentido real de uma ação individual (ponto de vista histórico – a intenção concreta de um sujeito determinado em circunstâncias determinadas). (2) Pode ser uma generalização que dê conta do que as pessoas normalmente fazem, seria um resumo ou generalização empírica do que “normalmente” as pessoas fazem. (3) Pode ser dada de um 4 ponto de vista ideal, de modo que toma o agente não como alguém que realmente existe, nem como uma média das pessoas, mas como um tipo. Claro, estou aqui apenas dizendo o que Weber disse sobre a diferença entre explicação histórica, generalização empírica e tipoideal. É um modo interessante de começar, pois avança uma primeira idéia: o direito e a economia dão conta das ações humanas de modo diferente. São duas disciplinas que se referem a dois sentidos diferentes da ação. Tomam os indivíduos como tipos, mas como tipos-ideais. Por isso não são históricas nem empíricas no sentido mais banal do termo. São disciplinas que explicam, pela interpretação dos sentidos, as ações humanas. Weber diz mesmo que nos tempos modernos a economia foi a mais bem-sucedida das disciplinas a construir tipos-ideais. É que a economia assume apenas um aspecto isolado da racionalidade humana e desenvolve suas leis a partir deste tipo, o homo economicus. Ela converte toda conduta em seus próprios termos e constrói um critério de comensurabilidade e quantificação (a partir da moeda, por exemplo). Com isto ela analisa “esta forma especifica de conduta, se fosse levada integralmente a sério e destinada a um só propósito, sem perturbação alguma de erros ou afetos, dirigida a um fim exclusivo (o fim econômico). Mas a ação real só em poucos casos (na bolsa), e só de modo aproximado, ocorre como foi concebida no tipo ideal” (Weber 1977, 9). A economia ganhou enorme prestígio dentro da academia a despeito de sua pouca capacidade preditiva. Ela é eficaz em certos campos, mas em outros é ainda muito limitada e tudo o que pode dizer é que as coisas tendem a acontecer caeteris paribus. Se forem criadas novas modalidades de crédito, se mudar a organização do trabalho, se surgir nova invenção ou nova fonte de energia, então...é possível que as coisas divirjam muito do esperado. 1.2. Tipo-ideal da economia e tipo-ideal do direito Ora, o tipo ideal na economia é um racionalidade, que explica e interpreta as ações “de um ponto de vista econômico”. O ponto de vista econômico pode ser o ponto de vista do custo e do benefício. O preço, ou o custo, e os benefícios esperados são legitimamente levados em conta para justificar e dar razão de ser (racionalidade) do juízo econômico. A economia 5 pode dizer, portanto, o que custa e quanto custa, no curto, no médio, no longo prazo, para um agente, ou vários e assim por diante. Já o direito, como disciplina acadêmica, pode explicar e interpretar ações “do ponto de vista jurídico”. Creio, pois, que o direito também desenvolveu um tipo-ideal e nisto teve sucesso. O ponto de vista jurídico é essencialmente o de cumprir uma regra. Se voltarmos à doutrina romana, elaborada ao longo da Idade Média, lê-se no Digesto: “A virtude das leis é obrigar, proibir, permitir ou punir” (D.1.3.7, legis virtus haec est imperare, vetare, permittere, punire). O direito permite, pois, dizer o proibido, o permitido, o obrigatório, segundo uma regra jurídica. O tipo-ideal do raciocínio jurídico não é conseguir um bem, a menos que bem seja definido de forma amplíssima. Mas se a definição de bem for assim tão ampla, como se referindo a tudo aquilo que se deseja, ou como o resultado final de qualquer ação, ou o fim (telos), então a economia mesma volta ao grande mar indiferenciado da filosofia moral ou filosofia prática, como antes do século XVIII, antes de Smith ou dos fisiocratas.2 Vale a pena distinguir, portanto, o pensamento teleológico em geral (aquele que conduz uma ação, tendo em vista um fim qualquer) das espécies de pensamento teleológico que podem ser tanto o cumprimento do dever (dever moral ou jurídico), quanto a obtenção de alguma coisa materialmente desejável. Os dois maiores juristas do século XX, Hart e Kelsen, divergiram, parece, exatamente neste ponto, ou seja, na construção do tipo ideal jurídico. Para Kelsen, o raciocínio jurídico constrói-se a partir da perspectiva do sujeito que quer evitar a sanção. Para Hart, o raciocínio jurídico constrói-se da perspectiva do sujeito que quer cumprir as regras para cooperar socialmente. Para o primeiro a pergunta principal é: “o que devo fazer para evitar 2 Se for assim definida a economia e o direito vão realmente digladiar outra vez, pois a economia poderá pretender, como parece ser o caso de Gary Becker, dar uma interpretação completa de toda ação voltada para um fim (bem). Cf. Mercado Pacheco 1994, 77). A amplitude desta pretensão leva a concluir que qualquer ação voltada para um fim, mesmo que um fim não quantificável ou não monetizável, nem fungível e transferível é parte do objeto da economia. Esta era, na verdade, a extensão que antigamente se atribuía à ética. Ao separar uma parte das razões para a ação em um grupo determinado, a economia pôde constituir-se autonomamente. Pode-se, pois, falar do pensamento aplicado à ação que é, de um modo geral, sempre teleológico (isto é, começa sempre por um fim a alcançar), distinto mais especificamente em campos de ação: a moral, o direito, a economia, por exemplo. Este trabalho presume a pertença do direito e da economia a esta grande esfera da ‘razão prática’, a despeito de suas diferenças. São estas, e não só as semelhanças, que importam neste texto. 6 a sanção?”. Para o segundo a pergunta principal é: “como se fazem estas coisas aqui?”3 Ambos, porém, tinham em vista a racionalidade do cumprimento das regras.4 Regras são simultaneamente critérios de ação (orientam a ação, como máximas, normas, princípios) e elementos de crítica da ação (permitem a avaliação da ação e o julgamento do sujeito e dos resultados).5 1.3. Eficiência, autoridade, temporalidade e resultado Ao fazer a comparação do direito com a economia vemos que os respectivos raciocínios divergem também porque as decisões serão avaliadas (criticadas) diferentemente. Isto porque o sentido que se pode dar como resposta é diferente em cada um dos campos. No campo da economia a crítica e a avaliação podem ser feitas em termos de eficiência ou custo. No campo do direito a crítica dá-se pela legalidade. Isto quer dizer que a eficiência não pode ser o critério primeiro ou último de uma decisão jurídica, ela não dá sentido a uma questão jurídica. Pode ser que seja mais eficiente economicamente abandonar parte da população à própria sorte, eliminar sujeitos não desejados, impedir o acesso de etnias a certos lugares e assim por diante. Mas à pergunta sobre a obrigatoriedade ou não de tais ações não se pode responder com o critério do custo. Em certas circunstâncias o custo não pode ser a razão (ou sentido) da ação. Algumas coisas simplesmente não se fazem.6 3 Ao criticar a teoria que explica o direito como um sistema de sanções, e tomando Kelsen como o autor mais exemplar desta teoria, diz Hart: “Argumenta-se por vezes em favor de teorias, como a que está em discussão, no sentido de que, reformulando a regra em termos de uma diretiva para aplicar sanções, se obtém um progresso em clareza, porque esta forma torna simples tudo aquilo que o ‘homem mau’ quer saber acerca do direito. Tal pode ser verdade, mas não deixa de parecer uma defesa inadequada da teoria. Por que razão não deverá o direito preocupar-se tanto ou mais com o ‘homem confuso’, ou com o ‘homem ignorante’ que está disposto a fazer o que lhe é exigido, desde que lhe digam o que é? Ou com o ‘homem que deseja resolver os seus assuntos’ desde que lhe digam como?” (Hart 1986 48). 4 A ética é também uma disciplina das regras. Não é surpresa, pois, que ao longo da história ocidental os juristas sempre debatem qual a posição de sua disciplina em relação à ética: como se distingue? o quanto se distingue dela? etc. Para alguns a ética é a disciplina das regras que nos conduz à felicidade, logo seu objeto principal são as regras que ensinam a virtude. Para outros (como no idealismo alemão) é a disciplina das regras não técnicas, isto é categóricas e, portanto, regras de dever antes que de virtude. 5 Como se vê, para os dois o que está em jogo é o cumprimento das regras, muito embora para Kelsen o sentido de cumprimento da norma liga-se diretamente à sua concepção de norma jurídica (um imperativo hipotético, ligado a sanções), o que o leva a ver o agente como um sujeito que age movido por uma razão instrumental (evitar o mal-sanção). No caso de Hart, a concepção de regra jurídica não se define pela sanção mas pela existência dos dois graus do comando (regras primárias – que mandam algo, regras secundárias – que organizam o próprio sistema de regras). 6 Um caso em que isto é particularmente evidente é o das cláusulas contratuais no direito do consumidor. Embora as cláusulas contenham regras que distribuem o custo de forma racional do ponto de vista da empresa 7 Nestes termos, regras de direito funcionam realmente como limites e obstáculos à extensão universal da racionalidade de meios e fins a todos os objetos de interesse na vida. Isto é especialmente visível em casos-limite, o mais exemplar deles sendo a própria vida humana. Cada sujeito humano é infungível, insubstituível do ponto de vista moral. Esta é, aliás, a diferença que Kant encontra entre o preço e a dignidade. O preço é o valor das coisas que se trocam, a dignidade é o valor das coisas que não se trocam. Há no direito tanto regras a respeito dos preços quanto da dignidade. Conforme o caso o direito (o sistema normativo) determina possibilidades diferentes. Se tudo puder converter-se em preço, desaparece a noção de direito fundamental. Mas se, ao contrário, tudo for considerado parte dos direitos fundamentais, ou da dignidade, processos de redistribuição e reforma social não serão possíveis. Outra característica que distingue direito e economia é a autoridade.7 O tipo-ideal do raciocínio jurídico à moda de Kelsen pressupõe uma autoridade, que é afinal quem pode impor a sanção ou determinar a validade. Para Hart, a autoridade determina a fonte, a ordem em oposição à força. A ‘regra de reconhecimento’ é objetiva. Tanto em Kelsen quanto em Hart a autoridade não é a força bruta ou empírica em si mesma, os dois distinguem potentia (força) de potestas (autoridade). Para efeitos do sentido jurídico dizer que se faz algo porque há uma autoridade (como a lei) é dar uma resposta sensata. Daí fornecedora, pode ser que do ponto de vista do consumidor elas não se possam justificar por razões outras. Assim, o fato de haver publicidade feita com ‘reserva mental’, ou feita para instigar o consumo de certo produto (mesmo de crédito) pode ser uma razão jurídico-normativa para impedir que alguma cláusula ou condição seja suspensa, revogada, alterada, mesmo que isto implique aumento de custo individualmente para a empresa ou socialmente para o ‘coletivo’ dos consumidores. 7 Não se pode confundir a autoridade jurídica com uma autoridade indiviual (empírica). A autoridade não é um sujeito empírico que manda alguém fazer alguma coisa. Autoridade é regra, e seguir uma regra é seguir uma autoridade. A isto se chama o limite da justiça formal (MacCormick), o princípio da unidade (Canaris), a justiça estática (Agnes Heller). Wittgenstein afirmava que a noção de regra implica a noção de igualdade e vice-versa. Por isso toda norma, diz ele, refere-se ao que acontece exemplarmente, em todos os casos. Não há exemplos (regras) de um caso só. O Digesto também continha expressão desta idéia (D.1.3.3 e 4 – ex his quae forte uno aliquo casu accidere possunt iura non constitutur). Autoridade em direito implica a noção de regra, pois só se pode dar um sentido normativo para uma ação apelando-se para uma regra. Se o sentido dado for apenas o do temor (a obediência à pessoa, e não à norma) a interpretação da ação será empírica (psicológica, talvez) antes que jurídica. O sentido da norma (proibir, permitir, obrigar) dá-se para os tipos, não para os eventos. Em resumo, a idéia de norma (e autoridade que não é poder) implica igualdade. Igualdade requer que em casos iguais haja iguais padrões ou normas. Justiça é igualdade e injustiça é desigualdade. Desigualdade é também “inconsistência”, ou absurdo (Hobbes, Molina). A idéia de justiça (igualdade formal) é, pois, um elemento logicamente necessário de um sistema de regras. 8 haver uma sofisticada dogmática em torno das fontes do direito, ou seja, uma racionalização em torno da autoridade e daquilo que pode ser invocado como razão para ação ou sentido, do ponto de vista jurídico. Responder à questão do ‘por que’ agir, na esfera do direito, é sempre invocar uma autoridade (uma fonte).8 As fontes variam na história e nas sociedades: podem ser fontes as leis escritas, os costumes, os princípios do direito ou da razão moral (tema de grandes debates contemporâneos, como se vê nas polêmicas que envolvem a obra de Ronald Dworkin, cujos fundamentos finais de um sistema jurídico, na boa linha kantiana, são também fundamentos éticos). Já na esfera da economia, uma boa razão não se vale da noção de autoridade da mesma maneira. Invocar a “autoridade” de um bom professor de economia, de um perito econômico, é apenas invocar, por vias indiretas, a mesma razão econômica: “isto é uma boa razão econômica”. Nunca se pode dizer, em resposta a uma pergunta econômica que se faz certa coisa “porque alguma autoridade validamente constituída assim o determinou.” A resposta econômica não invoca a autoridade, senão o custo, a eficiência econômica da ação.9 É certo que a racionalização pressuposta no tipo ideal da economia pode levar a várias conseqüências propriamente práticas, especialmente se o raciocínio econômico for tomado como o tipo-ideal de todo raciocínio prático sem ressalvas. Pode-se, por exemplo, tratar os casos de não conformidade com a racionalidade do custo-benefício, como casos de irracionalidade. Se isto se der, pode ocorrer que os que estiverem em posição de comando queiram corrigir ou educar a sociedade, isto é, dar-lhe mais racionalidade. Haverá aí uma colonização de toda a racionalidade por apenas um dos sentidos possíveis da razão. Pode parecer a alguém que os laços de afeição ou as formas não ‘modernas’ de ação sejam irracionais. Neste momento a ‘economia’ estaria desempenhando um papel realmente 8 Para além da doutrina das fontes, entraria aqui em jogo também a teoria da interpretação, para saber o que as fontes dizem. Este é outro vasto e importante campo tanto da teoria do direito quanto da dogmática jurídica mais estritamente. 9 Importante ressalta a simplificação contida no texto, pois há dentro da economia uma grande discussão metodológica sobre a unidade de análise ou o sentido do raciocínio econômico (exemplarmente conduzida, por exemplo, por Amartya Sen). 9 moral, pois desqualificaria outros motivos para a ação.10 O lado prático da economia tentaria colonizar o resto das ações e outras esferas da ação, com pretensões evidentemente morais (de fundamento último). Outro ponto existe em que direito e economia podem ser confrontados. Diz respeito à dimensão temporal. Regras podem voltar-se para o passado ou para o futuro. Pode-se olhar para o passado e neste caso ‘julgá-lo’ e pode-se olhar para o futuro e neste caso pensar sobre os ‘resultados da ação’. As normas ou regras servem para estas duas tarefas. Quanto ao passado as normas podem ‘qualificar’ o fato. Quanto ao passado, as regras permitem ‘avaliar’ ou ‘julgar’ o que foi feito, saber se foi bom, se foi justo, se foi eficiente.11 Quanto ao futuro, as regras permitem-me fazer planos e imaginar resultados, que vão desde o resultado técnico (a construção de uma ponte) como resultados mais genéricos (a finalidade da minha vida, a sociedade justa). Nestes termos, as regras (técnicas, morais ou jurídicas) ‘orientam’, ‘norteiam’, ou ‘conduzem’ à ação. O direito tem com o passado uma relação de imputação: qualifica o ocorrido como proibido, permitido, obrigatório. O direito define o ‘certo’ e o ‘errado’, o ‘bom’ ou o ‘mau’ de maneira contra-fatual e lança, o mais das vezes, um olhar retrospectivo sobre a realidade. Esta imputação e julgamento do passado é uma dimensão essencial da vida humana. Saber se vamos ou não retribuir o mal, se é necessário vingar o mal ou pagar o bem exige algum julgamento do passado. Assim, uma resposta jurídica sobre algo que 10 Um exemplo clássico de análise deste fenômeno é nada mais nada menos que A Ética protestante e o espírito do capitalismo, de Weber. Ali Weber demonstra que o capitalismo não é apenas uma estrutura material mas um estrutura de crenças. Do ponto de vista do capitalismo, certas respostas são sensatas, outras não. Quando descreve o credo moral de Franklin e a lista das virtudes que ele prescreve, Weber destaca o quanto esta ‘racionalidade’ seria incompreensível para alguém que estivesse imerso na busca da felicidade que o dinheiro não pode comprar, seria mesmo uma verdadeira lista de ‘vícios’ a serem evitados por alguém que vivesse em outra civilização. 11 Note-se que é isto justamente o que diz Tomás de Aquino ao dizer que a lei está de duas formas na ação: uma como orientação, outra como critério de julgamento. De certo modo também a tensão entre passado e futuro aparece em dois tipos de “decisão” que se submete à retórica em Aristóteles. Uma é a deliberação forense, que precisa de provas específicas para saber o que houve (prova dos fatos passados) e então julgar o réu. Outra é a deliberação política da assembléia, que precisa de provas que permitam a previsão (de eventos futuros) para saber o que é melhor fazer dali para a frente. 10 ocorreu é sensata em função da proibição, permissão ou obrigatoriedade jurídica.12 É assim que se entende de maneira geral a decisão jurídica, a decisão do conflito perante um juiz. O julgamento ou adjudicação vale-se do direito como regra para julgar fatos e condutas. O passado não é, em primeiro lugar, algo que ‘ensina’ o julgador. Examinando um caso de homicídio, o julgador não pode ‘aprender’ com ele e, sem razão jurídica, deixar de condenar o homicida. Evidentemente pode deixar de condenar se houver regras que lhe permitam desqualificar o fato como homicídio (excludentes de criminalidade) ou desqualificar a conduta como sancionável (excludentes de responsabilidade ou de imputabilidade). Claro também que as regras se fazem para todos os casos e para os casos futuros. De forma que na feitura das regras, na decisão sobre o futuro, se quisermos, o direito cria um tipo (os tipos contratuais, os as cláusulas-padrão, os tipos penais, e assim por diante), isto é, cria classes de atos e condutas, sobre os quais vai recair certa ‘qualificação’. Tais ou quais classes de condutas, cláusulas, negócios, relações serão obrigatórias, proibidas ou permitidas. Mas é na adjudicação que se ‘verifica’ a proibição daquele fato concreto e se imputam as conseqüências jurídicas (invalidade, responsabilidade etc.). A economia, por seu lado, não se volta para o passado para julgá-lo, mas para aprender dele. Os eventos do passado podem sim ser avaliados (‘julgados’) como boas ou más decisões econômicas. Este julgamento se faz, porém, num quadro de aprendizado. A decisão econômica equivocada, e equivocada pelos resultados que gerou, pode indicar que o agente não se havia dado conta de todos os fatores, ou por ignorância empírica ou por ignorância teórica, ou seja, ou porque não sabia dos fatos, ou porque não possuía à época modelos de explicação que considerassem adequadamente os fatos. A economia considera racional a resposta do agente econômico quando ele pesou adequadamente os custos e benefícios (econômicos) e afinal escolheu o resultado que lhe traz maior benefício com menor custo, consideradas todas as circunstâncias. Eventualmente pode-se tomar esta forma de análise como exemplar para toda deliberação. John Rawls diz expressamente que ‘o conceito de racionalidade deve ser tomado [para os fins da sua teoria da justiça] o quanto 12 Tomo aqui os termos obrigatório, proibido e permitido em homenagem á tradição jurídica. Do ponto de vista da lógica jurídica fala-se hoje apenas da obrigação (obrigatório sim = obrigatório, obrigatório não = proibido) e permissão. 11 possível no sentido estrito que a teoria econômica lhe dá, de valer-se dos meios mais eficientes para fins determinados’ (Rawls 1992, 14). Como se vê, o que interessa aqui é o modelo do raciocínio, não se discutindo os custos e os benefícios em concreto.13 Em todo caso, a racionalidade da economia é avalidada em primeiro lugar pelo resultado externo à ação, ao produto exterior. Resultado que pode ser apenas individual (micro-economia) ou agregado e social (macro-economia). Claro que a aplicação de regras morais e jurídicas, que poderia ser apenas julgamento de eventos dados, mantém alguma relação com o futuro, com o que se espera..14 A finalidade, o produto da ação conta e conta muito em certas deliberações jurídicas. Apenas para ressaltar as possíveis conexões da economia e do direito com a ética, cito aqui um exemplo clássico da deliberação concreta a partir de regras e o papel que a justiça e a finalidade (ou resultado) da ação joga em tais momentos. Refiro-me à hipótese indicada por Tomás de Aquino – um exemplo tornado clássico - das relações que há entre as regras e os resultados esperados das regras. É obrigatório fechar os portões da cidade a tal hora da noite. A obrigação explica-se por um resultado que se quer alcançar: a segurança dos habitantes. Mas pode acontecer que algum cidadão fique fechado do lado de fora dos portões e ali se veja exposto a ladrões e bandidos ou inimigos. Deve-se, então, abrir as portas, pois o fim visado pela norma (salvar as vidas) poderá ser cumprido (salvar aquele cidadão, sem expor os outros) pela desobediência aparente.15 O cumprimento sensato da regra implica a avaliação do resultado. Tradicionalmente, os juristas chamam esta espécie de interpretação 13 Esta forma de conceber a racionalidade econômica como exemplar de toda a racionalidade prática tem sua importância histórica comprovada. O temor que alguns revelam do movimento law and economics procede daí, parece-me. Na origem da economia política moderna houve uma interessante disputa. Os clássicos, como Ricardo, tentaram dar à economia um campo estrito de reflexão: apenas a produção da riqueza material, a dinâmica da moeda e da mercadoria, seriam objeto da economia. Marx, ao contrário, tratava a economia como o campo total (a produção da vida, material e institucional). Seria irônico que hoje um movimento tido como conservador (por muitos) tenha a pretensão de converter toda a racionalidade da ação em racionalidade econômica formal? 14 Lembro aqui dois autores que sustentam, na tradição da escola analítica, que mesmo em Kant o cumprimento do dever poderia ser levado em última instância visando um resultado ou visando evitar um resultado que se considera mau em si (a morte de alguém, o engano de alguém etc.). É o caso de Richard Hare (2003, 201-223) e de Nino (1995, 192-204). 15 O exemplo encontra-se na Suma de Teologia (II, II ae, q. 57). A seu favor Tomás cita Modestino (D. 1, 3, 25), para quem nenhuma razão de direito ou de eqüidade pode aceitar que aquilo que foi criado para salvar os homens seja interpretado de tal modo que venha fazê-los perecer. Rawls, ao explicar o que significa sua teoria deontológica da justiça, ressalta também que nenhuma teoria ética, mesmo deontológica, pode ser indiferente aos resultados da ação, pois neste caso seria insensata. 12 de interpretação finalista. Ela é bastante comum e vale-se, freqüentemente, de uma outra interpretação auxiliar, a interpretação histórica. Muitas vezes para se determinar o sentido de uma norma é preciso contrastá-la com a norma anterior sobre a mesma matéria. O contraste pode indicar o ‘porquê’ (para que fim) a norma foi mudada. Uma interpretação que destrua a razão de ser da mudança pode ser uma má interpretação. No discurso de apresentação do projeto de Código Civil, em 1804, Portalis fez uma curiosa observação sobre as relações entre o direito e outras disciplinas. ‘Há coisas sobre as quais a justiça é clara e manifesta. Um sócio, por exemplo, quer participar de todos os lucros sem participar dos riscos. A pretensão é ultrajante: não é necessário outro exame além do contrato mesmo para ver uma iniqüidade criada pelos próprios termos do contrato. Há coisas, porém, em que a questão da justiça é complicada por outras, estranhas à jurisprudência. Assim, é em nosso conhecimento da agricultura que deveríamos buscar a justiça ou injustiça, utilidade ou perigo de certas cláusulas contidas em certos contratos de arrendamento de terras. Foi nosso conhecimento do comércio que pôs fim a certas disputas infindáveis a respeito dos juros nos empréstimos, dos monopólios, da legitimidade de certas condições nos contratos marítimos e em tantos outros negócios semelhantes. Podemos ver que nestas questões a matéria jurídica está subordinada a questões de cálculo e administração.” (Portalis 1999, 51) Do ponto de vista de Portalis, a adjudicação de certas matérias dependeria claramente de saber ‘técnico’ e haveria a possibilidade de a autoridade, encarregada de decidir, valer-se de informações – descobertas – fornecidas por técnicos. Esta parte do processo decisório seria a determinação ou investigação dos fatos, com uma importante diferença: os fatos a serem averiguados não seriam só passados, mas também futuros, previsões, cenários possíveis.16 16 Há várias maneiras de levar o resultado em consideração. Surpreende que os juristas não se dêem conta de que isto é parte do processo decisório. Nos anos 80, Robert Alexy voltou ao tema na sua teoria dos direitos fundamentais. Ao traçar a diferença entre os direitos de defesa (direitos civis tradicionais, de não interferência do Estado) e os direitos de proteção (direitos a uma prestação do Estado para impedir que outros particulares violem o direito de um indivíduo), dizia que os primeiros exigem a proibição de todas as ações que possam violá-los. Os segundos (direitos de proteção) pode haver várias ações adequadas e então o Estado pode 13 Outra característica que pode ser apontada encontra-se na forma como os outros sujeitos entram no raciocínio. A economia – conforme entendida modernamente – pode desenvolver um tipo ideal em que o sujeito deliberante é um ser por definição isolado: o mundo, que inclui as pessoas, é apenas o limite empírico de suas decisões. No pensamento jurídico, por definição, o que está em jogo é o outro. A propriedade, como observam os teóricos do direito, não é uma relação de um sujeito com uma coisa, mas uma relação de um sujeito com todos os outros sujeitos do ordenamento; a obrigação contratual é sempre uma relação com outro sujeito do ordenamento. E na falta de um outro determinado, a noção mesma de validade da norma quer expressar que ‘qualquer um’ que tome o sistema jurídico com guia de sua ação levará em conta a mesma norma que todos os outros. As normas convertem-se, assim, em mediadoras da cooperação. O raciocínio jurídico toma a ação do outro como referência, considerando o outro como sujeito e não como objeto da ação. O direito implica reciprocidade, isto é, o sujeito de direito, por definição, confronta-se com outros sujeitos de direito: à obrigação de um corresponde o crédito de outro; ao poder de um corresponde a imunidade de outro, e assim por diante. Há um grau inescapável de reflexividade no modelo da regra jurídica. Com este ponto já se coloca a questão: afinal de contas esta diferença de olhar entre o direito e a economia permite algum diálogo? Será que o direito, julgando o passado segundo a lei, pode de alguma maneira dialogar com a economia, voltada para garantir resultados futuros? Pode a expectativa de fatos e eventos futuros servir alguma vez como fundamento, razão ou sentido de decisões ou raciocínios jurídicos? Este é o ponto da segunda parte deste texto. 2. A racionalidade econômica na prática e teoria do direito escolher qual delas tomará. Neste caso – de vária ações possíveis e eficazes – há um ‘campo de ação cognitivo’ que não é normativo mas empírico. Não se trata, diz ele, de ponderar (deliberar sobre a adequação da regra, digo eu) mas de fazer prognósticos sobre a melhor solução empírica (não sobre a melhor regra). A exigibilidade judicial fica, pois, subordinada a juízos normativos (ponderação) e técnico-empíricos (prognósticos) ao mesmo tempo. (Alexy 1993, 446-450) 14 Para examinar a relação entre raciocínio econômico e raciocínio jurídico abordo em primeiro lugar a experiência histórica brasileira. Indico inicialmente que as relações entre direito e economia têm uma história já longa, que se pode dividir em dois momentos principais: a fase de Vargas (1930-1954) e a fase do regime militar (1964-1984). Em segundo lugar aponto para os casos tradicionalmente conservados no direito em que se aceitam regras de justiça distributiva e, finalmente casos em que a análise ‘econômica’ (ou de custo-benefício) é parte integrante do processo decisório e dos fundamentos da decisão. 2.1. Relações entre direito e economia no Brasil na recente história Há duas fases a destacar nas relações entre economia e direito no Brasil das últimas décadas. A primeira corresponde de modo geral ao regime de Vargas; o que esteve em jogo foi o uso instrumental do direito para interferir no processo econômico em geral e mais especificamente para proceder à redistribuição de poder e riqueza. O direito foi percebido como instrumento de engenharia social. Para tanto era preciso superar a tradição liberal de (a) não intervenção nos contratos, e (b) separação de poderes de modo rígido, muito especialmente de isolamento do legislativo e do judiciário. Nessa primeira fase, o debate jurídico envolveu duas diferentes escolas. De um lado liberais, tais como Waldermar Ferreira, criticaram a criação de autarquias com poderes quase judiciais e quase legislativos. Ferreira era um liberal republicano fiel aos ideais de 1891. Acreditava que a separação de poderes era uma condição essencial da liberdade e insistia na separação estrita, à moda do século XIX. No campo oposto, Francisco Campos e Oliveira Vianna, duas figuras de liderança no regime varguista, favoreciam a transformação dos comissões de conciliação trabalhista em tribunais administrativos vinculados ao Ministério do Trabalho, como vieram de fato a ser até 1946. Diziam que a Justiça do Trabalho mais conciliava e mediava do que propriamente adjudicava os conflitos entre patrões e empregados. Campos e Vianna favoreciam também a criação de autarquias capazes de conduzir o desenvolvimento econômico. Waldemar Ferreira era contrário a essas iniciativas não apenas por favorecer estratégias mais liberais para o crescimento 15 econômico, como também pelo temor de que as autarquias viessem a escapar da tripartição de poderes. O executivo, para ele, não deveria ter mais este instrumento de poder. De certa maneira, as autarquias poderiam reintroduzir no Brasil o contencioso administrativo, experiência confundida com o Império e o autoritarismo. Os partidários de Vargas, à época, traziam muitos exemplos americanos para ilustrar seus argumentos. Citavam as autarquias criadas por Roosevelt no seu New Deal. Isto revelava, segundo eles, que intervenção estatal na economia e instituições liberais eram compatíveis, já que conviviam na própria pátria de origem do modelo de nossa Constituição republicana de 1891. Se os americanos mudavam o perfil do seu executivo mantendo a Constituição de 1787 em pleno vigor, não haveria porque temer. A segunda fase do debate ocorreu no período desenvolvimentista. Nele o centro deslocouse para o problema do planejamento. Aceitos os fatos – e o direito – da intervenção do Estado nos contratos (exemplarmente no contrato de trabalho) e da existência de órgãos do Executivo com poderes de regulamentação (para-legislativos, as autarquias, hoje ditas agências), a novidade foi o direito do planejamento.17 Desde os anos 50, os cepalinos acreditavam que uma abordagem global, estrutural e geral da economia brasileira era indispensável. Nestas circunstâncias, a experiência norte-americana, desde o New Deal, era de menor relevância, pois o tema do planejamento global da economia era juridicamente irrelevante. Voltaram-se então os juristas para a experiência européia, francesa sobretudo. A Europa consolidava um estado reconhecido juridicamente como planejador, por meio da social-democracia. Da França os administrativistas brasileiros voltaram a importar muito. Uma distinção teórica de origem francesa tornou-se comum no Brasil: planos econômicos eram indicativos para os particulares e obrigatórios para o setor público. Novas classificações foram feitas, distinguindo as leis medida e leis de efeitos concretos. Alguns perceberam que dois ramos distintos do direito precisavam ser juntados, respectivamente o direito financeiro e o direito administrativo. A importação do modelo francês e europeu não poderia ser simples. Na Europa, todos os países contavam ainda com um sistema de tribunais administrativos separados dos tribunais 17 Para uma visão história sumária do planejamento, ver Bercovici 2003. 16 ordinários e o controle de constitucionalidade era – e continua sendo – concentrado e não difuso. O sistema brasileiro era um misto: do ponto de vista da carreira e da máquina judiciária era – e ainda é – franco-europeu (carreira burocrática, ingresso por concurso, ascensão por meio de promoções, etc.). Do ponto de vista do controle da constitucionalidade o sistema era americano. As chances de confronto institucional entre Executivo e Judiciário eram exponenciadas. Juízes de carreira, treinados para deliberar sobre questões privadas e comutativas, eram no Brasil obrigados a arbitrar questões públicas e administrativas. Além disso, ao contrário do sistema norte-americano, em que vigora o princípio do stare decisis, pelo qual os juízes inferiores ficam vinculados às decisões dos tribunais superiores, no Brasil os juízes gozavam de uma autonomia incomparável no exame das questões. O choque entre a mentalidade desenvolvimentista e o tradicionalismo judiciário era previsível e inevitável. A história do diálogo entre direito e economia foi, porém, uma história de fracasso tragada pelo fracasso do próprio modelo de desenvolvimento do regime militar. Não houve tempo para que a doutrina se consolidasse e influísse sobre outros campos além do direito financeiro e parte do direito administrativo. Não se reconheceu a natureza dos problemas de planejamento como algo comum a outras áreas. A crise final do regime militar, que se prolongou pelos anos 80 e que desaguou na crise monetária dos anos 90 pegou os juristas despreparados. No auge da crise de estabilidade da moeda, em 1990, o Supremo Tribunal Federal não encontrou um ambiente jurídico suficientemente preparado para poder arbitrar a reforma monetária do Plano Collor. Esperou que a crise passasse naturalmente, com a liberação programada dos depósitos particulares, para depois arbitrar os custos da estabilização. Desta experiência fracassada procede em parte o desconforto dos juristas com a economia. 2.2. Conflitos distributivos e direitos subjetivos A distinção tradicional entre justiça distributiva e comutativa explica que algumas regras aplicam-se à partilha dos bens comuns ou de bens escassos, enquanto outras aplicam-se à troca de bens ou mercadorias. Em termos contemporâneos e mais familiares, a justiça 17 distributiva dirige as regras de um jogo de soma não-zero, a justiça comutativa os jogos de soma zero. Até o século XVII os juristas consideravam-se peritos nas duas justiças e nas respectivas regras, já que ambas dependiam de regras, e regras eram o assunto por excelência dos juristas. Ao longo do século XVIII a forma da política e os propósitos do direito mudaram. A mudança mais significativa foi a separação progressiva das esferas de raciocínio entre a política e o direito baseada especialmente naquilo que se considerava o objeto da disputa. França e Prússia foram, no âmbito do direito continental de tradição romano-canônica dois casos exemplares, embora a mudança tenha se operado em toda parte. Em ambas tradições tribunais regulares seriam encarregados de processar conflitos jurídicos enquanto tribunais administrativos tomariam para si os conflitos políticos. O jurídico confundiu-se com o comutativo, o político confundiu-se com o distributivo. Na França a mudança foi mais difícil no Antigo Regime e mais acelerada e clara após a Revolução, como salientou Alexis de Tocqueville no famoso O Antigo Regime e a Revolução. Na Prússia, a transformação deu-se mesmo sob o absolutismo ilustrado. Juristas e políticos reformadores tentaram separar com certa clareza matérias políticas de matérias jurídicas. Direito e direito subjetivo foram definidos como interesses protegidos. A política era o âmbito do interesse puro e simples, o interesse não protegido. O que era o interesse não protegido? Aquilo que dizia respeito ao bem-estar geral, à prosperidade da sociedade, aos interesses sociais, o que estava por distribuir. O que era o interesse protegido ou direito subjetivo? Aquilo que caísse sob o domínio do particular, aquilo que era individualizado e, portanto, já havia sido distribuído. A doutrina do direito administrativo era bastante clara quanto a tais distinções, que se repetem em todos os autores brasileiros do século XIX. O interesse público era claramente tudo o que dizia respeito aos bens coletivos ou, mais precisamente, aos bens indivisíveis (coisas comuns, por natureza). Nestes termos, o político identificou-se com a justiça distributiva (das partilhas), e o jurídico com a justiça comutativa (das trocas). 18 Uma grande novidade do século XX foi a volta das disputas distributivas ao primeiro plano do discurso jurídico, por força do constitucionalismo social. A doutrina jurídica, acostumada a duzentos anos de silêncio sobre as distribuições, viu-se obrigada a incorporar outra vez – coisa ainda não feita adequadamente – a teoria dos bens coletivos, a teoria da proporção nas partilhas, a teoria das atividades finalísticas, temas todos exilados do pensamento jurídico desde o século XVIII. A doutrina jurídica tradicional havia incorporado vários destes temas, que permanecem hoje semi-ocultos na doutrina ou dogmática jurídica. Um deles é a teoria dos bens divisíveis. O Código Civil brasileiro é apenas um exemplo: “Bens divisíveis são os que se podem fracionar sem alteração na sua substância, diminuição considerável de valor, ou prejuízo do uso a que se destinam.” (art. 87) O Código Civil de 1916 tem redação diferente, embora também trate dos bens divisíveis: “Coisas divisíveis são as que se podem partir em porções reais e distintas, formando cada qual um todo perfeito.” (art. 52) Logo, em sentido contrário, são indivisíveis os que não podem ser fracionados, e quando fracionados (ou apropriados individualmente) mudam de natureza, substância ou valor. Além dos bens indivisíveis por natureza (o ar que respiramos, a água do mar ou dos rios etc.) os particulares podem criar ‘coisas indivisíveis’. O estabelecimento comercial, que tanta doutrina e discussão gerou entre os comercialistas, é um exemplo bastante atual. A ‘empresa’ (Konzern) é outro caso exemplar. O conceito de bem indivisível é muito útil, mas eu diria que tem sido praticamente ignorado no dia a dia. Por isso tantas regras a respeito da distribuição são tratadas como se não fossem ‘direito mesmo’. A propriedade em comum (comunhão ou condomínio) permite ver que nem sempre é possível adjudicar em forma comutativa os conflitos entre condôminos. O Código Civil prevê (art. 1.320 a 1.322) que haverá casos em que o acordo entre os condôminos será impossível e então será desfeita comunhão, com a venda da coisa. O problema é que nem sempre será possível desfazer a comunhão de uma sociedade política inteira. Para os juristas, os bens coletivos cederam lugar aos bens públicos que nada mais são do que os bens de propriedade do Estado. Bens públicos opõem-se, pois, a bens privados, enquanto na verdade a discussão realmente importante hoje em dia seja a dos bens 19 coletivos, comuns ou difusos. Tudo isto, creio, é o resultado da hegemonia do imaginário comutativo no raciocino jurídico, sem ser um problema de estrutura real do raciocínio jurídico mesmo. Os economistas, por seu lado, mantiveram vivas a teoria e a discussão a respeito de ações e bens coletivos, os quais jogam um papel importante na análise econômica.18 2.3. Racionalidade econômica no direito – alguns exemplos Os exemplos a seguir sugerem, porém, que o raciocínio de custo-benefício, ou pela eficiência, é bem mais comum do que á primeira vista se poderia admitir. Em diversos casos, o direito (a lei) obriga a que se fundamente uma decisão tanto no cálculo de eficiência quanto nos resultados esperados, o que identifica raciocínio jurídico e raciocínio econômico. Um primeiro exemplo é o caso das obrigações de meio, que se distinguem das obrigações de resultado. A diferença entre uma obrigação de meios e outra de resultados está em que a avaliação do cumprimento ou não da obrigação depende da definição da relação entre meios e fins. Empregados os meios necessários (e bons, aceitáveis), o devedor pode ser isentado de responsabilidade mesmo que o resultado esperado não tenha sido atingido. Se a obrigação é de resultado, porém, a falta deste gera responsabilidade para o devedor. Claro que a própria avaliação das provas em cada um dos casos é diferente, como será diferente a possibilidade de invocar caso fortuito, força maior, ou outras excludentes de responsabilidade. A distinção é atribuída a Demogue, e foi incorporada no direito civil por ser útil na distribuição das responsabilidades (Pereira 2002, 33-34, Gomes 1988 451). 18 Joseph Roemer afirma que muitos economistas que trabalham na área da escolha social (social choice) e na teoria do bem-estar não estão familiarizados com a discussão filosófica contemporânea a respeito da justiça distributiva (Roemer 1996, 1). Isto, creio eu é também verdade para os juristas. Como diz Roemer houve um renascimento do interesse filosófico no assunto desde a publicação da Teoria da Justiça de Rawls. Mesmo assim, o tratamento dos bens coletivos, sua provisão e sua distribuição – pelo menos em termos de custos – é bem conhecido na teoria econômica. Wilhelmsson também mostra como um campo do direito (o direito do consumidor) só pode ser adequadamente entendido se houver um ponto de vista definido a respeito da teoria da justiça distributiva. 20 No direito societário há também exemplos do uso do raciocínio fundado em custobenefício. Deveres dos sócios devem ser avaliados a partir da cooperação recíproca, não a partir de contatos ou trocas episódicos. A própria relação de base no direito societário é de distribuição. Ascarelli, por isso, via no contrato de sociedade um contrato plurilateral, antes que bilateral (Ascarelli 1949). Além disso a distribuição dos dividendos no final de cada exercício pode ser legitimamente feita tendo em vista deliberações de caráter econômico. Até mesmo o dividendo obrigatório pode não ser distribuído, se houver prejuízos (Lei no. 6.404/76 art. 202, II e III). O direito ao dividendo é um direito do acionista, mas só pode ser exercidos se cumpridas certas condições de possibilidade e de universalidade. O custo benefício entra outra vez em jogo na sociedade anônima quando a Assembléia Geral pode voltar atrás em suas deliberações quando a decisão gerar direito de recesso e os custos de indenização dos acionistas dissidentes forem excessivamente elevados (Lei no. 6.404/76, art. 138). Outro exemplo importante encontra-se no instituto da falência. Independentemente da lei que especificamente trata da questão, é certo que o estado de falência é tipicamente de escassez, tema central da teoria econômica. O falido, por definição, não consegue saldar suas dívidas: aí o direito vale-se de saberes ‘auxiliares’ que lhe fornecem a tipificação de fatos. A situação do falido pode ser de iliqüidez ou de insolvência propriamente dita, mas tanto uma quanto outra autorizam a declaração de sua falência, e podem ter, no curso do processo conseqüências distintas. Assim, se o problema é de liqüidez, pode ser que o negócio do falido possa continuar, mesmo que o falido seja dele afastado (art. 74, DL 7661/45), de maneira mais fácil do que se o problema for de insolvência (patrimônio líquido negativo, expressão corrente em contabilidade). A falência é também um exemplo importante pela estrutura processual. No caso da lei brasileira há duas sentenças diferentes no processo. Não vem ao caso saber da natureza processual das sentenças, porque para os fins que me interessam basta considerá-las decisões segundo a lei. A primeira é a sentença de declaração (art. 14). Esta sentença muda o status do falido e atinge o seu negócio (os bens e contratos, ou seja, as obrigações e o patrimônio do falido) e dá início à administração da falência. A importância de se entender 21 isto é enorme, pois no meio dos muitos processos em que a função do juiz é apenas sentenciar, aparece um especificamente em que sua função é administrar. O falido sai de cena como sujeito do negócio, o seu negócio propriamente dito passa a ser administrado por outros. Quem são estes outros? O juiz e o síndico. No caso brasileiro a lei é expressa: quem tem a responsabilidade de dirigir esta administração é o juiz (art. 59) e quem a executa é o síndico. Assim, a direção é judicial e a execução é delegada. A segunda sentença (art. 132) põe fim justamente a este processo de administração e também ela afeta o status e os negócios (se ainda houver) do falido. A administração da falência, entre a sentença de quebra e a sentença de encerramento, é toda regrada, mas não se pode confundir este regramento com a burocracia pura e simples, ou com um processo em que o juiz é inerte. Há muitas decisões que podem, e eu enfatizaria, que devem ser tomadas pelo juiz levando em conta custos e benefícios para os credores do negócio. Uma primeira decisão é a própria escolha do síndico. Diz a lei que o novo gestor da massa (bens e obrigações), ou do negócio, deve ser um dos maiores credores (art. 61). O que está em jogo aí é justamente a idéia de que o maior credor tem o maior interesse em receber o máximo possível e representa o interesse dos credores por excelência (se quisermos, como o ideal-típico do credor). Na falta dele, o síndico poderá ser um estranho à falência, mas, recomenda a lei, é melhor que seja um comerciante (art. Art. 61, parágrafo 2º.) e por uma boa razão: porque a função do síndico é gerir um negócio, ainda que gerir um negócio para fazê-lo desaparecer (liqüidá-lo). O art. 73 permite a venda antecipada dos bens por motivos econômicos: porque perecem, porque sua guarda gera excessiva despesa ou risco. Não é o direito que diz qual a despesa, o risco ou a facilidade de perecimento dos bens, são os ‘saberes auxiliares’. É justamente em seguida a este artigo tão importante da lei que fica aberta a possibilidade de o negócio continuar (art. 74). A massa pode e até mesmo deve ser encarada como estabelecimento, como empresa, como um going-concern o quanto possível. Isto significa claramente, a meu ver, que se está diante da consideração da massa como um negócio que é tanto mais economicamente viável quanto mais for tratado economicamente. 22 Outro dispositivo da lei bastante esclarecedor é o art. 116: ele prevê que os bens sejam vendidos englobada ou separadamente. Isto significa que se os juízes (como responsáveis pela direção da falência) perceberem que o negócio vale mais como empresa do que como bens singulares, esta é a escolha que se impõe a eles. Para isto é necessário, porém, que tenham sido informados – preferencialmente no seu curso de direito – que um negócio (estabelecimento, azienda, empresa) tem um valor distinto dos valores dos bens singularmente considerados. Quem virá em seu socorro na hora de decidir? Em primeiro lugar uma boa dogmática que não olvide o caráter de bem universal e indivisível que tem uma empresa. Em segundo lugar virão as técnicas de auditoria, finanças e contabilidades contemporâneas, que desenvolveram mais de um método de avaliação de empresas englobadamente. O valor da empresa não é pura e simplesmente o do seu capital (uma parte de seu passivo), não é necessariamente o da soma de seus bens (ativo fixo) e por isto mesmo a venda pulverizada das ‘coisas’ pode ter um efeito economicamente perverso. Dizse hoje que várias empresas viram ‘sucata’ durante o processo falimentar e todos sabemos que as chances de pagamento integral são remotas em qualquer falência. O que a leitura atenta da lei mostra é que isto não precisaria ser necessariamente assim. Mas para que fosse diferente seria – e é – indispensável que os juristas percebessem que o saber de outras disciplinas (economia, contabilidade, etc.) são indispensáveis para sua decisão e não apenas opções sub-ótimas na falta de uma regra processual burocrática. O processo falimentar é, pois, uma espécie de conflito distributivo judicializado e regrado. Há regras fundamentais espalhadas pela lei falimentar que visam garantir a par conditio creditorum, ou seja, o tratamento igual, que no caso significa tratamento proporcionalmente igual ou distributivamente igual. O direito processual civil admite, no art. 620, que na execução de dívidas o juiz procure a maneira menos custosa para o devedor. O mesmo código prevê (art. 244) que a anulação de atos processuais deve levar em conta prejuízos e custos: se os atos tiverem alcançado seus objetivos, não devem ser anulados. O mesmo raciocínio de custo-benefício nota-se no art. 563 do Código do Processo Penal: sem prejuízo para a defesa, os atos processuais não são anulados. 23 No direito de família o cálculo de custo-benefício é essencial na definição da obrigação de alimentar. O juiz está obrigado a determinar os alimentos de maneira tal que leve em conta simultaneamente as necessidades do credor e as possibilidades reais do devedor (art. 1694, par. 1º. CCv). O juiz decide caso a caso determinando ‘quanto’. Havendo mudança na situação das partes, o juiz pode rever os valores (art. 1699 do CCv). Em vários casos, o dever é fixado considerando que há mais de um devedor dos alimentos ou mais de um credor (art. 1698 do CCv). Os pais separados contribuem ‘proporcionalmente’ para a alimentação do menor (art. 1703 CCv). Em casos rotineiros de separação ou de disputas em certa faixa social, os tribunais estabeleceram certos patamares e tetos (por exemplo: um terço dos rendimentos líquidos do alimentante vão para o alimentado). Mas em casos de grandes fortunas ou de grandes penúrias é sempre muito mais difícil decidir e é aceitável que a decisão jurídica se faça levando em conta os dados do caso singular. Outro exemplo tirado do direito de família encontra-se na guarda de menores ou incapazes. A guarda (ou poder familiar) é deferida a quem tem melhores condições de dar mais bemestar à criança (art. 1637 e 1638 do CCv). Para dizer isto, o juiz vê-se obrigado a fazer um prognóstico de onde a criança estará melhor e computar coisas eventualmente incomensurárveis (dinheiro, afeto, estímulos, conforto,etc.). A lei, porém, permite – ou obriga – quem decide a levar em conta os interesses e o futuro. Mais um caso está na legislação anti-truste, ou direito da concorrência. Atos ditos de concentração econômica devem ser examinados pela autoridade da concorrência e podem ser autorizados – e deixarem de ser considerados ilícitos, portanto – em função dos resultados previstos, previsíveis ou mesmo prometidos (art. 54, par. 1º., c/c art. 58, Lei no. 8.884/94). De modo muito semelhante (em termos lógico-normativos) ao que se encontra nos casos de alimentos, a aprovação dos atos de concentração fica pendente do desempenho e dos resultados: descumpridos os compromissos e promessas ou não alcançados os resultados, a aprovação poderá ser revista (art. 55, Lei no. 8.884/94). 24 Nos casos acima, de alimentos e direito da concorrência, o princípio da res iudicata é matizado porque a legalidade, a proibição, a obrigatoriedade ou a permissão dos atos, condutas e atividades depende de uma avaliação contínua de resultados. Tanto no caso dos alimentos quanto dos atos de concentração econômica não se dá a coisa julgada material. Ao se revisitar a legislação e também a doutrina do planejamento econômico a mesma tensão temporal se verificava de modo que os juristas afirmavam que os planos deveriam ser flexíveis e poderiam ser revistos pela Administração. Ninguém em sã consciência poderia aceitar que mudadas as circunstâncias, ou a conjuntura econômica, os planos pudessem ser mantidos como uma espécie de pacto de suicídio. Por isto mesmo, diziam, a alteração da lei do plano ou mesmo da execução concreta do plano não poderia enquadrarse nas formas mais rígidas de responsabilidade objetiva do Estado. Esta forma de encarar a questão jurídica encontra-se, a meu ver, em muitos outros pontos do ordenamento. No direito administrativo a Lei no. 8.666/93 refere-se à manutenção do equilíbrio econômico financeiro do contrato, em caso de alteração unilateral de suas condições. Nas leis que regulam concessões de serviços públicos (Lei no. 9.074/95) existem também dispositivos regulando a alteração de preços, tarifas, remuneração. No direito do consumidor foi introduzida a possibilidade, inexistente no sistema contratual estritamente liberal, de revisão judicial dos contratos pois é possível pedir judicialmente a manutenção do contrato com alteração de alguma cláusula (art. 6º., V, c/c art. 51, par. 4º da Lei no. 8.078/90). Neste ponto é preciso reconhecer duas coisas. Primeiro, os casos citados implicam incorporar no direito considerações propriamente econômicas (relações de custo-benefício, digamos) e considerações de proporcionalidade (ou de justiça distributiva, se quisermos). Em segundo lugar, há graus diferentes de complexidade na determinação dos custos e da proporção. Em alguns casos, o que está em jogo é algo que se pode determinar com mais precisão ou que afeta apenas as partes envolvidas no processo judicial propriamente dito. Em outros casos, o que está em jogo é algo que só se pode determinar de forma aproximada e provável (caeteris paribus) e diz respeito a partes não envolvidas na ação. Muitas vezes o 25 que se coloca para ser decidido é uma questão que afeta o mercado, isto é, um conjunto amplo de agentes e de relações. Mesmo o mercado pode ser dividido (há mercados relevantes). Finalmente, é sempre bom lembrar, que mercados são conjuntos de relações. Um mercado é o conjunto dos agentes que se relacionam pela troca de mercadorias em torno de determinados bens. Ora, não há grupos ou conjuntos de agentes que existam de forma natural, bruta, ou físico-molecular. Os grupos – e os mercados – são instituídos. Grupos existem em funções de regras constitutivas que os tornam grupos: regras que determinam quem está dentro, quem está fora, qual o objetivo que os reúne e assim por diante. Estas regras não são regras de comportamento: são chamadas regras de organização ou regras constitutivas. Mais importante do ponto de vista jurídico é a consideração, em certos casos, de resultados agregados. O caso mais exemplar, dos citados acima, é o da legislação anti-truste, pois ela obriga o julgador a levar em consideração resultados agregados. De fato, ao falar dos consumidores em diversos dispositivos do art. 54, a Lei no. 8.884/94 está certamente falando do interesse agregado e médio dos consumidores. Creio que também a Lei no. 8.078/90 fala de resultados agregados de benefício aos consumidores em alguns de seus dispositivos, mas não em todos. A harmonia nas relações de consumo, do art. 4º do CDC, presta-se a um entendimento agregado e médio. O mesmo não acontece em outros casos, quando o que está em jogo é o direito individual de cada consumidor. Este ponto coloca uma difícil questão: a de saber em que casos o direito de um consumidor ou agente em particular pode ser ‘sacrificado’ no altar do bem comum. Defesas intransigentes dos direitos podem chocar-se , e de fato chocam-se com políticas de reforma ou de justiça social. O caso histórico mais evidente na tradição jurídica brasileira foi o longo debate sobre a escravidão, em que os juristas se opuseram quase que até o final do processo abolicionista, à abolição sem indenização. Diziam que, a despeito de a escravidão não ser compatível com o regime liberal que se pregava no Brasil, os senhores eram legítimos proprietários da força de trabalho escravo e dela não poderiam ser privados sem prévia e justa indenização. Se cada sujeito de direitos não pode ter seus direitos sacrificados em nome do benefício coletivo, a dinâmica social conduzirá à consolidação de injustiças. A 26 regra de que o Estado deve indenizar perdas dos particulares por meio de indenização significa que os ônus das mudanças devem ser repartidos entre todos os beneficiados. Desta forma, o sacrifício de uns é compensado pelo sacrifício de outros. Na imensa maioria dos casos isto é difícil de fazer, mas isto é especialmente difícil de fazer por meio do aparelho judiciário. Daí os problemas institucionais com que vem se deparando a justiça toda vez que é chamada a lidar com os casos de distribuição, como estes de que falei até aqui. O ponto relevante sempre é este: podem direitos presentes de sujeitos individuais ser sacrificados em nome de direitos futuros de outros sujeitos, entre os quais estarão incluídos os sujeitos ‘prejudicados’? Em outras palavras, é possível redistribuir os direitos? O importante é destacar, pois, que a legalidade da decisão depende intrinsecamente em diversos casos já conhecidos do sistema jurídico de resultados previsíveis e desejáveis e desta forma os resultados concretos que se podem esperar e prever não são coisa pouca e nem podem ser tomados levianamente. 3. Um caso exemplar Em 2001, no auge da crise de abastecimento de energia elétrica, o Supremo Tribunal Federal foi provocado a manifestar-se sobre a constitucionalidade da Medida Provisória no. 2.152-2, de 1º de junho daquele ano. A discussão mais importante travou-se na Medida Cautelar na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC no. 9-6) no dia 28 de junho de 2001. Naquele acórdão foram discutidas diversas questões, embora o debate principal estivesse centrado em duas questões: a possibilidade de cobrança de sobretarifa dos usuários19 de energia elétrica que não cumprissem sua meta de consumo e a constitucionalidade do corte de fornecimento, em casos de descumprimento reiterado da meta. A ação direta foi proposta e o Tribunal unanimente reconheceu seu cabimento, visto que havia já naquela altura diversas ações propostas em vários foros do País, estaduais e 19 Uso a expressão usuário, porque as medidas aplicavam-se além de aos consumidores residenciais, aos comerciais, industriais e rurais, ou seja, a empresas que, do ponto de vista estrito do direito do consumidor, não são consumidores finais e não gozam, pois, do estatuto de proteção instituído pela lei 8.098/90. 27 federais, nas quais haviam sido deferidas medidas liminares suspendendo os efeitos do plano previsto pelo governo federal. Havia, portanto, uma variedade de usuários de energia elétrica que escapavam das medidas gerais de economia. No mérito, porém, o Tribunal dividiu-se. Dois ministros (o relator, Min. Néri da Silveira, e o presidente do STF, Min. Marco Aurélio) consideraram inconstitucional a medida provisória naqueles dois pontos. Sete ministros (Ellen Gracie, Nelson Jobim, Maurício Correia, Carlos Velloso, Sepúlveda Pertence, Sidney Sanches e Moreira Alves) votaram pela constitucionalidade da Medida. Os ministros que reconheceram a inconstitucionalidade do plano decidiram com base em uma certa concepção do direito subjetivo (e dos direitos fundamentais dos cidadãos), mas também com uma certa concepção do que é legítimo usar para fundamentar decisões jurídicas. Os outros ministros, como veremos, valeram-se de outros critérios. O primeiro ponto discutido foi o da sobretarifa. A Media Provisória havia instituído um prêmio para os usuários que poupassem energia, e uma tarifa mais elevada para os que superassem as metas estabelecidas. Questionava-se em diversas ações judiciais a constitucionalidade da sobretarifa, pois o preço aumentado não se destinava a remunerar o serviço (pois quem cumprisse as metas de poupança não a pagaria) nem sua melhoria. O sobrepreço serviria, segundo se alegava, a ser distribuído aos consumidores que ultrapassassem suas metas de poupança e que fariam jus a um bônus. Assim, para determinar se era ou não constitucional a sobretarifa seria preciso qualificar os fatos, e os fatos econômicos de quem seria afinal o beneficiário do novo preço. Poder-se-ia dizer, como o faz o ministro relator, Néri da Silveira que “a tarifa tem como marca indelével ser contraprestação de serviço”. Se não há ampliação, melhora ou diferenciação no serviço, é incabível tarifa aumentada para alguns usuários. Isto a desqualificaria como simples pagamento do serviço, que deveria ser. O voto do relator tem, pois uma definição jurídica de tarifa e por ela seria impossível haver a sobretarifa. Se não se trata de pagamento estrito do serviço, diz o relator que se trata de alguma forma de tributo, e por isso mesmo não poderia objeto de medida provisória. Na sua opinião o valor arrecadado a mais dos usuários que excedessem suas metas formaria de fato (não de direito, 28 pois a medida provisória não dizia isto) um fundo cujo resultado positivo seria usado para beneficiar (conceder bônus) aos usuários que poupassem mais do que os 20% em geral estabelecidos como metas de economia. Contra este argumento, encaminhando a opinião que se tornou majoritária, aparecem dois votos. O da Ministra Ellen Gracie postula uma outra definição jurídica e tarifa. Diz que “a tarifa especial (...) é, também, como a tarifa ordinária, forma de contraprestação pela entrega do serviço. Seu resultado não é carreado aos cofres públicos nem, no caso, a qualquer fundo”.Nestes termos, a ministra Gracie entendeu que a medida provisória nem de direito e nem de fato criara fundo algum: “Os valores arrecadados como sobretarifa permanecem com as distribuidoras de energia e (...) o que os mais gastadores pagarem – a maior – será utilizado para custear as despesas adicionais...” Juridicamente, para a ministra, o fato de os valores permanecerem sempre com as fornecedoras de energia elétrica descaracterizava o sobrepreço como tributo. Trata-se, como se vê, de uma qualificação dos fatos. Para o ministro relator, a qualificação é feita da seguinte maneira: o preço deve remunerar o serviço; não havendo mudança do serviço não deve haver mudança no preço; não sendo remuneração de serviço, trata-se de tributo. Para a ministra Gracie, visto que o valor não vai para o Estado e nem se constitui em fundo autônomo do tesouro, trata-se ainda assim de preço. E completa dizendo que o benefício que se pode dar aos usuários mais poupadores não será em dinheiro e nem será direto: “Os bônus (...) estão previstos para se concretizarem na forma de compensações (...). Não serão percebidos em espécie pelos contribuintes poupadores”. O voto da ministra Gracie acrescenta outro argumento: o art. 175, parágrafo único, III da Constituição Federal autoriza o poder público concedente do serviço a fixar “política tarifária”. Nestes termos, uma tarifa pode remunerar serviços e ter outras finalidades, de política ou direção do mercado. Ampliando o argumento acima, o ministro Carlos Velloso une mais estreitamente os dois lados da questão. O voto é curto, mas diz essencialmente que a tarifa especial (sobretarifa) 29 continua sendo tarifa porque visa “remunerar custos ampliados das concessionárias” e realiza “a redistribuição, de forma isonômica, de custos, sob condições de escassez: financiamento de bônus, por exemplo, aos que poupam mais...” O ministro reconhece expressamente que a tarifa realiza uma redistribuição dos custos. A inexistência da sobretarifa deixaria os custos como estavam, a medida provisória redistribui estes custos. Redistribui, porém, dentro da própria unidade produtiva: não se apropria da tarifa. Autoriza – ou melhor, obriga as unidades produtivas a redistribuírem entre os usuários o custo da crise de energia. No voto do ministro Velloso, o art. 175, parágrafo único, III autoriza o uso da tarifa para fazer ‘política tarifária’ que ele entende ser o uso finalístico ou instrumental da tarifa para além da remuneração de uma mercadoria. Segundo o ministro, a situação de escassez – o fato da escassez e da seca – criam a condição para que o Poder Público sirvase da tarifa para orientar o mercado, especificamente os usuários. O ministro Moreira Alves insiste também neste ponto: as tarifas, na Constituição de 1988, pelo mesmo artigo citado pela Ministra Gracie, converteram-se em preços públicos políticos. Ele confronta a redação da Constituição anterior (1967-69) com a redação atual, em que a expressão ‘política tarifária’ autoriza justamente o uso extrafiscal ou político dos preços de serviços públicos. Sobre o mesmo ponto é curioso destacar o voto do Ministro Marco Aurélio. O ministro termina por acompanhar o voto do relator, ou seja, nega que a tarifa especial seja constitucional, já que caracteriza um tributo. Inicia seu voto dizendo expressamente que não pode votar “sob o ângulo sociológico” e nem pode abandonar a Constituição para “potencializar a correção de um mal maior, existente no Brasil, que diz respeito à distribuição da riqueza, em si, lato sensu”.Na verdade, o ministro Marco Aurélio mostra que tomará sua decisão sem considerar o resultado distributivo que inevitavelmente terá. Ele não desconhece que sua decisão terá um resultado econômico qualquer, mas diz que não pode considerar o resultado potencial ou possível para qualificar como constitucional ou inconstitucional a medida provisória. 30 Para considerá-la inconstitucional, o ministro deve dizer que a ‘compensação’ é uma ‘devolução’ e que o ‘bônus’ previsto é ‘para inglês ver’ e não será nunca concedido, visto que ninguém conseguirá poupar o suficiente. Prevê que ninguém alcançará economia maior do que os 20% e, por isso, ninguém fará de fato jus ao bônus. Para qualificar a tarifa aumentada para os maiores ‘gastadores’ o ministro faz uma projeção de caráter empírico. Diz ele que o bônus ou prêmio para os ‘poupadores’ não chegará nunca a ser pago, já que é impossível chegar aos níveis de poupança previstos na medida provisória. Se os usuários não fizerem jus ao bônus, conclui o ministro, ele será devolvido na forma prevista no art. 20, parágrafo 2º: “será compensado integralmente nas tarifas, na forma a ser definida pela ANEEL”.Já que o sobrepreço deveria ser afinal compensado, Marco Aurélio considerou a compensação como verdadeira devolução. Como sua afirmação é de caráter empírico, ele sofre um aparte do ministro Jobim: diz que a previsão é fora da realidade e que suas ‘previsões econômicas são infundadas’ e termina perguntando ao ministro Marco Aurélio se ele tem os dados a respeito do consumo de energia no Brasil e se os havia ‘trabalhado’. Jobim dizia que o mecanismo do art. 20 não configurava empréstimo compulsório algum, pois se tratava compensação dentro das tarifas. Pelo mecanismo do bônus a concessionária deixaria de cobrar certos valores dos usuários e passaria a ter direito de compensar tais valores com o sobrepreço pago pelos que mais gastassem. O debate é, portanto, de qualificação da situação de fato prevista. O ministro Jobim insistia em que não haveria devolução – o que indicava não ser empréstimo compulsório – mas uma compensação geral a partir de um ‘agregado de poupança’. A discussão então centra-se, portanto, no papel que o resultado do julgamento pode ter. De um lado Nelson Jobim insiste que a maneira de decidir a questão tem uma implicação econômica e que esta conseqüência deve ser levada em consideração. Ela é que fará a medida provisória constitucional ou inconstitucional, pois, no fundo, é ela que permite avaliar se há ou não isonomia e se o resultado do aumento de tarifa para uns será ou não distribuído aos outros. Se o resultado for distribuído entre todos os consumidores (“compensado na tarifa no futuro”), ou utilizado para compensar as fornecedoras pelo ‘bônus’, não haveria inconstitucionalidade. De outro lado, Marco Aurélio afirma que a 31 decisão deve ser tomada independentemente do resultado previsível, pois o resultado (a distribuição final dos custos e benefícios) não permite determinar juridicamente se há ou não empréstimo compulsório. Esta última posição não pôde ser mantida integralmente, porque, como se viu, o próprio ministro para dizer que haveria empréstimo compulsório (inconstitucional) viu-se obrigado a fazer uma previsão: os ‘gastadores’ pagariam, mas os ‘poupadores’ não receberiam nada (o bônus era ‘para inglês ver’, disse o ministro). Logo, mesmo aquele que pretende decidir de forma ‘exclusivamente jurídica’ não pode fugir de alguns juízos sobre a realidade. O problema da qualificação é central em qualquer raciocínio jurídico. Dizer se um fato A ou B é, juridicamente, um negócio X ou Y é justamente o ato mais importante de predicação jurídica e é determinante para o resultado da decisão. Trata-se de classificar, ou seja, inserir um fato em uma determinada classe definida juridicamente. O embate entre Nelson Jobim e Marco Aurélio é bastante típico do processo de qualificação. A despeito de o Ministro Marco Aurélio insistir que não está raciocinando sociologicamente, não pode deixar de ‘entender’ de os fatos de algum modo, ou seja, de classificá-los ou qualificá-los. Jobim acusa-o justamente de não entender os fatos, ou seja, o ‘mecanismo’ do art. 20. A discussão entre os ministros prossegue com uma curiosa afirmação do ministro Jobim: “Isso é um cálculo matemático, financeiro, contábil. Não é uma invenção de academia de direito. Isso é contabilidade, é ciência contábil”.O ministro diz que este ‘fato’ da compensação não é definido pelo direito: o direito toma-o emprestado de outra disciplina. Há, porém, um problema no argumento do Ministro Jobim, pois dizer que o mecanismo do art. 20 é um “cálculo matemático, financeiro, contábil” não ajuda a responder se ele é legal ou ilegal. De fato, a contabilidade das empresas deveria espelhar as operações realizadas, e estas é que precisam ser juridicamente qualificadas. Seu argumento levanta a questão das conseqüências da decisão e destaca que certas regras jurídicas podem ser feitas visando exatamente à obtenção de um resultado, um estado de coisas. O que o Ministro Marco Aurélio vê é que o adicional da tarifa constitui provisão para custos adicionais: ou seja, entra como pagamento (da parte de alguns consumidores) e sai 32 como ‘remuneração’ do bônus. Ocorre que, segundo seu entendimento da medida provisória, é certo que haverá consumidores que pagarão o ônus, enquanto é incerto – por motivos empíricos – que venha a haver consumidores beneficiados pelo bônus. Assim, a operação contábil ou matemática apenas descreve, do seu ponto de vista, uma transferência de algum consumidor para outro, uma compensação, um ‘fundo’. A contabilidade apenas ‘expressa’ a compensação; por si mesma, ela não pode legitimar a compensação. Logo, o que realmente se debate, no caso específico, é a qualificação das relações criadas pela medida provisória: são lícitas ou ilícitas? Constitucionais ou inconstitucionais? Sua constitucionalidade ou licitude depende de se aceitar, ou não, que a tarifa seja usada como instrumento de distribuição isonômica de custos, de uma isonomia proporcional e não aritmética. Para o ministro Jobim parece que a qualificação dos fatos é em primeiro lugar contábil: e a contabilidade que dá ao direito uma classe que será convertida em classe jurídica (compensação). Já para o ministro Marco Aurélio, é a qualificação jurídica que precede a qualificação contábil. De fato, foi isto que o voto da Ministra Ellen Gracie, acompanhada por outros ministros, colocou como foco da qualificação jurídica: o ‘política’ tarifária, autorizada pela constituição, pode incluir a diferenciação da tarifa em função das diferenças de consumo e pode, juridicamente, incluir os resultados desejados e previsíveis entre as razões que justificam sua juridicidade. O voto do Ministro Marco Aurélio, ao se apoiar também em elementos empíricos (partindo da previsão de que o ‘bônus’ não seria factível, pela dificuldade de ultrapassar as metas de consumo fixadas) abre, porém, uma dúvida: e caso o bônus fosse empiricamente mais fácil de se obter, mudaria a qualificação jurídica? Isto não é algo teoricamente impensável, já que pode haver casos em direito em que a licitude ou ilicitude é determinada por valores: pagar pensão alimentícia é um caso exemplar, nestes termos. Pois não pagar nenhum valor a títulos de alimento é diferente de pagar um pouco, mas não demais. O outro ponto relevante nos votos foi também a consideração do ‘estoque’ de energia elétrica um bem coletivo, sobre o qual seria possível estabelecer regras de acesso, valendose do incentivo econômico. Nisto, especificamente, dissentiu o Ministro Néri da Silveira: 33 “o racionamento é uma coisa; a imposição de sanções é outra”. Pelo seu raciocínio o racionamento seria aceitável juridicamente, mas não poderia ser diferenciado em função de quem gastou mais ou menos. Na mesma ordem de idéias ela dirá também que o debate deveria ser feito em termos de consumidor, indiferenciado com relação ao respectivo consumo: “Não vamos discutir nestes termos de classe média. Estamos discutindo em termos de consumidor”. Aparteado pelo Ministro Jobim, que chamou sua atenção para o resultado previsível de sua decisão (“o perdulário da classe média é que está em jogo, e V. Exa. Protegerá com esta solução”), o Ministro Néri da Silveira respondeu: “Não vou proteger ninguém. Na minha vida, nunca pratiquei nenhum ato para proteger nem para defender quem quer que seja, mas apliquei a Constituição, como juiz”. A posição de Néri da Silveira parece rejeitar a possibilidade de se aplicar, neste caso, a igualdade proporcional. Esta seria necessária justamente se o estoque de energia fosse tomado em seu conjunto, como um objeto ‘em comunhão’ ou ‘em condomínio’. Se fosse assim considerado, o estoque de energia poderia ser utilizado por cada usuário em geral, desde que não violasse o uso igual e simultâneo dos outros. Mas parece mais certo que é o fato da escassez o que conta diferentemente entre os ministros. E é este o ponto em que a discussão jurídica deveria estar propriamente centrada.Visto que a escassez introduz uma dificuldade nesse uso e gozo simultâneo, tornando possível que alguns usassem sem respeitar a uso alheio, duas alternativas foram colocadas nas decisões dos ministros: ou se deixa o mal comum (o fim do estoque de energia) atingir a todos, ou se distribui proporcionalmente (pela diferença de tarifa) esse mesmo mal. Vê-se que o debate, portanto, em diversos momentos gira em torno da legitimidade do raciocínio que leva em conta o resultado da decisão, ou ainda, de se saber se os resultados são ou não um elemento a ser considerado juridicamente. Observações finais Um rápido olhar sobre a legislação das agências reguladoras no Brasil, no final dos anos 1990 – mas também de outras autarquias - fornece uma perspectiva instigante para pesquisa no direito na medida em que incorporam-se ali objetivos econômicos (de 34 resultados agregados) cuja consecução depende de meios jurídicos. Tanto a Lei no. 9.472/97 (criadora da ANATEL – Agência Nacional das Telecomunicações) quanto a Lei no. 9.478/97 (criadora da ANP – Agência Nacional do Petróleo) definem objetivos de modo amplo, larguíssimo: assegurar o interesse nacional, promover o desenvolvimento, ampliar o mercado de trabalho, proteger o meio-ambiente e assim por diante. Muitos, senão todos esses objetivos são potencialmente contraditórios e nem sempre podem ser perseguidos simultaneamente sem que haja a avaliação de custos a serem distribuídos em diferentes proporções. Naturalmente, precisam ser compreendidos tendo em vista os dois pontos de partida entre os quais se equilibra a regulação jurídica do mercado, dois pressupostos de conciliação sempre delicada: (a) em primeiro lugar a idéia de que os mercados idealmente considerados (como modelo) são estruturas eficientes na alocação de recursos produtivos (de mercadorias e capital) e em segundo lugar (b) a idéia de que os mercados, concretamente considerados, não são mecanismos eficientes para a distribuição proporcional dos custos e benefícios. Sobretudo, os mercados parecem ineficientes para prover, por sua lógica própria, os bens coletivos (indivisíveis) e a inclusão social (solidariedade). É claro que a definição de proteção do meio-ambiente é muito difícil em indústrias extrativas e potencialmente poluidoras, como é claramente a do petróleo. Desta forma, conciliar exploração com proteção ao meio-ambiente requer a aceitação do fato de que toda atividade humana sobre o meio-ambiente tem impacto e que certas atividades, no longo prazo e em níveis industriais de exploração crescente são, em última instância, insustentáveis. Já que o modelo energético do capitalismo industrial e pós-industrial destruirá recursos, a proteção ao meio-ambiente, do ponto de vista da lei, será sempre matizada por alguma concessão. Por outro lado é um objetivo da própria regulação, estabelecer limites à dinâmica natural do mercado, ou seja, ao predomínio exclusivo da análise de custo benefício na tomada das decisões pela autoridade pública. Desta forma, a despeito de um real aumento de custos – tanto para o capital quanto para o consumo – haverá necessidade de serem impedidas determinadas práticas ou decisões. A lei não pode, pela sua própria natureza de regra (ou seja, de imperativo abstrato e universal) dizer qual a solução para cada caso. 35 Problemas desta natureza eram menores no tempo dos Planos Nacionais de Desenvolvimento, quando o Congresso Nacional, por iniciativa do Executivo, aprovava os planos e as políticas econômicas (industriais) gerais, sancionava orçamentos plurianuais com metas bem ou mal definidas. A dogmática de então, que pouco se firmou no Brasil, abria as válvulas de escape para a realidade (flexibilidade, normatividade de conjuntura etc.). A atual legislação das agências reguladoras inclui de modo muito geral uma cláusula de desenvolvimento, mas não parece ser sua atribuição fazer uma política nacional integrada, nem mesmo uma política necessariamente ‘desenvolvimentista’. No máximo, o desenvolvimento será parte de cláusulas ‘negociadas’ entre a Agência e os agentes do respectivo setor regulado. Isto traz para as Agências, apresentadas com órgãos ‘técnicos’, ou seja, exclusivamente preocupados com critérios de eficiência reguladora, questões eminentemente políticas. Por isso mesmo, pela própria definição legal de suas atribuições e pela estrutura dos mercados e da sociedade na qual atuam, seus problemas de legitimação política se multiplicam e o esperado ‘isolamento’ que se esperava não chega a acontecer. Neste contexto pergunta-se: devem elas conservar autonomia? Por quais critérios poderia o Judiciário interferir na regulação das agências? Como o caso exemplar do ‘apagão’ mostra, na decisão jurídica insinuam-se saberes técnicos e ‘dados’ empíricos. Este é um problema inevitável, do qual compete ao jurista ter consciência. Ferraz Jr. (1982) apontava já para esta questão ao dizer que há duas técnicas de validação de decisões a serem consideradas: a validação condicional e a validação finalística. Condicional é a validação que legitima uma decisão desde que esta tenha cumprido as condições previstas em lei. Finalística é a validação que legitima a decisão em função dos fins atingidos ou a serem atingidos. No sistema erigido ao longo de dois séculos pelo direito liberal, o sistema político ficou, em princípio, encarregado de decisões finalísticas (validação pelos objetivos), enquanto o sistema jurídico ficou encarregado das decisões condicionadas. A legislação das agências introduz justamente esta racionalidade finalística e pode, por isso mesmo, gerar muitas polêmicas com o raciocínio jurídico tradicionalmente estabelecido no direito liberal. 36 Problemas gerados pela disciplina econômica e jurídica dos mercados são vários. O Estado se vale do direito para produzir resultados empíricos no mercado, mas o mercado considerado como um todo, não como uma somatória de indivíduos. Isto, como foi dito, pode gerar dificuldades para uma teoria do direito que se volte exclusivamente para a disciplina das relações comutativas entre indivíduos singulares. De outra parte, os problemas de qualificação jurídica de ‘fatos’ institucionais, como são as relações econômicas, também pode gerar polêmica, como mostra o debate entre os ministros do Supremo Tribunal Federal. De fato, às vezes as relações do mercado são percebidas como fatos brutos (as ‘forças’ do mercado) e não se dá a atenção devida a sua natureza de relações institucionais, ou seja, de expectativas garantidas ou da natureza mesma do mercado como instituição. Da mesma maneira, pode ser polêmico o uso de um pensamento finalístico – crítica feita pelo Ministro Marco Aurélio ao Ministro Jobim – embora não sejam poucos os exemplos em que o direito tradicionalmente permite o uso de justificação das decisões pelo resultado previsível. O argumento central e final deste trabalho talvez possa ser resumido nos seguintes termos: o raciocínio jurídico e a boa dogmática jurídica não são surdos aos saberes alheios e se dão conta de que vários objetos constituídos por outras disciplinas são a matéria prima sobre a qual decidem. Embora decidindo segundo regras, o jurista sabe que o objeto de sua decisão, o caso sobre o qual ele quer aplicar as regras, não são as regras mesmas, mas as relações entre pessoas e estas são explicadas e constituídas por muitos saberes que não apenas o direito. Referências Bibliográficas AQUINO, Tomás de. (1999) Summa Theologiae. 3a. ed. Roma: San Paolo. ALEXY, Robert. (1993) Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. ASCARELLI, Tullio. (1949) Il Contratto plurilaterale, in Saggi Giuridici. Milano: Giuffré. BERCOVICI, Gilberto. (2003) O Planejamento e a Constituição de 1988. Constitucionalizando Direitos – 15 anos da Constituição brasileira de 1988. 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