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O que se passa quando componho?

WHAT HAPPENS WHEN I COMPOSE? Abstract: report - from the composer's point of view - on some of the actions, attitudes and reflections generally present while he works through a piece. Keywords

O que acontece quando componho? Resumo: relato sobre ações, atitudes e reflexões geralmente presentes durante o trabalho de composição, do ponto de vista do compositor. Palavras-chave: composição, imagem sonora e imagem visual, referencialidade, escuta What happens when I compose? Abstract: report - from the composer's point of view - on some of the actions, attitudes and reflections generally present while he works through a piece. Keywords: composition, sound image and visual image, reference, listening ‘Compor’ é um verbo que anda meio proscrito na contemporaneidade, pela implicação que a palavra mantém com um ‘domínio da forma’ e com a ‘habilidade técnica’ (destreza, ou aptidão?) requerida para sua execução. No caso da música, isso ainda hoje se concentra na figura de seu personagem que, único no meio das artes, manteve o termo no nome de sua atividade - ‘compositor’. Este que, mesmo valendo-se agora de computadores e eventualmente de técnicos assistentes, precisa de uma prática - auxiliado por um saber daquela ordem. No caso da música que gosto de fazer, esse ‘dom’, porque não nasceu comigo, tive que exercitá-lo exaustiva e voluntariamente até poder praticá-lo. Fui mau aluno de matemática e física, mas aprendi a usar aquelas partes de que necessito: um tanto de aritmética, álgebra e trigonometria, outro de acústica. A escuta, que vem a ser a ferramenta mais importante nessa produção, também pode ser desenvolvida, mas, no que me diz respeito, acredito que isso não teria acontecido se, já na infância, eu não gostasse de escutar. Embora não esteja jamais me referindo aqui às deformações chamadas ‘talento’ ou ‘gênio’, essa aptidão é o instrumento que (me) permite atualizar uma idéia (na falta de outra palavra). Não é talento nem gênio porque qualquer um pode exercê-la. O que nos distingue é que a exercemos, e o que está por baixo do exercício, no meu caso, tenho o hábito de dizer que é o mero gostar de fazer, embora para outras pessoas possa haver outra explicação. Nem sempre a ‘idéia’ é anterior à operação que a ‘concretiza’. Isto é, trabalha-se em um campo em que linguagem não necessariamente precede material, nem vice-versa. No trabalho da composição muita coisa só aparece durante uma certa ‘improvisação’ (no sentido musical do termo), mesmo em se tratando de um trabalho executado com/ao/pelo computador. Mexendo com sons ‘ao vivo’ posso tateá-los ao ponto de descobrir sugestões antes ocultas para a imaginação. Este tatear acontece mediado pela escuta, que não só detecta, percebe, como também julga sobre procedimentos a serem seguidos, ou a abandonar. Ou seja: a síntese se confunde com a análise. O processo criativo não é, no meu caso, nem percebido como processo, e nem criativo: é um exercício disciplinar animado pelo prazer, que eventualmente resulta em algum produto. Parece uma mistura paradoxal, mas basta lembrarmos a mesma atitude/atividade, o ‘impulso lúdico’ que se observa em uma criança brincando, o Spieltrieb de Schiller (1794) (descartando-se dessa pulsão-ao-jogo qualquer ideal schilleriano de beleza). Infelizmente, a palavra brincar hoje adota uma carga de ‘felicidade’ que nem sempre pertence ao mundo infantil. O ‘brincar’ moderno foi psicologizado numa mistura de satisfação de desejos, libido, liberdade e euforia. Em geral a criança brinca seriamente concentrada, compenetrada em seu ‘trabalho’. A concentração não diminui se a brincadeira for feita sem a participação de outra(s) pessoa(s). Não entraria na discussão do campo dos brinquedos, tão bem visitado por Walter Benjamin, nem no da solidão, exposto por Blanchot. Mas a presença de uma criança-quenão-se-entedia está certamente em cada segundo do tempo que gasto ‘compondo’. A palavra processo impõe uma necessidade de explicação causal que, no meu trabalho, raramente é defensável. Explicamos um raio, ou um rio, ou um parto, como processos naturais, elétricos ou orgânicos. Fazer alguma coisa em música, para mim, não tem a mesma consistência. As pequenas vozes com quem dialogo enquanto componho sempre desviam o curso do rio, do raio, do parto, algumas vezes transformando um parto em rio, ou um raio em parto. Processo é aceitável se for para dizer que há algo acontecendo, algo em jogo, uma caminhada, etc. Então poderia usar igualmente caminhada, ou duração, etc. Já a palavra criativo, esta perdeu o sentido desde Lavoisier e Darwin, e nestes tempos de obscurantismo religioso é mais saudável guardá-la para outra ocasião. O que componho? Músicas. Com que ‘materiais’? (Na falta de outra palavra...) Quaisquer. Os limites tendo sido abolidos desde a década de 40, no século passado, por Cage, Schaeffer... que tipo de música resulta disso? ‘Tudo aquilo que soa, e o que não soa’, conforme Aylton Escobar (em seu programa OPUS, na TVE, 1978). Gosto até mesmo dessas que não soam (1), que, no meu caso, vieram de um conhecimento específico, porque foi graças a um determinado saber sobre a manipulação de freqüências e amplitudes que notei o campo de uma música silenciosa. Esse campo tem inicialmente dois vetores: o controle de baixas freqüências, e a noção de que a visualidade, quando temporalizada, solicita uma atenção análoga à que usualmente se dá à música. Ou seja: o limite entre os sentidos está comprometido: se a freqüência é baixa, seu campo perceptivo é visual ou tátil (2). Se a freqüência aumenta, passa gradativamente (por volta de 25 Herz) ao campo sonoro. Isso significa que a composição não é só uma arrumação de ‘sons’, mas de ‘imagens’ também. Vou precisar explicar essas aspas! Que imagens seriam essas? De que maneira elas se separam dos sons? Quem foi o responsável por essa separação? Desde quando a palavra imagem se atém aos dados visíveis? Fala-se de imagem & som como se os sons não fossem capazes de produzir, eles também, imagens... Ou melhor: é como se os sons não fossem imagens, ou como se as ‘imagens’ (visuais) não soassem. Não poderia excluir as imagens táteis, olfativas, etc... Em outros textos já evoquei como Noel Rosa transitou nesse território sem dono, estimulando em nossa mente um som específico por meio de uma palavra (imagem visual portada acusticamente). Isto é: uma imagem acústica brota embutida numa imagem visual, transportada por outra imagem acústica: a palavra (3). Uma boneca russa em que cada portadora pertence a outro sentido. Vive-se agora uma usurpação por parte da visualidade, implicada na compreensão atual da palavra imagem, verificável desde os setores produtivos, continuados por filosofias contemporâneas (cf. Deleuze/Bergson/Cinema, por exemplo). A indústria do cinema separou os sentidos conforme a folha de pagamento: respeitando os métiers de edição de som, edição de imagem, etc., fortalecendo a delimitação de dois dentre nossos cinco ou mais sentidos. Cada um desses métiers se diferencia apenas operacionalmente, porque se deixa manipular e se fixar em um suporte diferente - que curiosamente, na era digital cada vez mais se uniformiza - para diferentes tipos de imagem: o visual era o suporte fotográfico, e o sonoro era a fita magnética(4). Ora, quando componho desconfio dessa especificidade. E por isso me afasto da expressão ‘artista multimídia’, que apenas celebra a soma do produto de uma divisão industrial. Outro empecilho para a delimitação firme entre visualidade e sonoridade está na fala que, quando componho, devo inventar para designar tais ou tais ‘sons’. Pierre Schaeffer inventou um sistema chamado Morfo-tipologia (Traité des objets musicaux, 1966), baseado em critérios de percepção que tentam se afastar da referencialidade semântica e de causalidade presente nos sons. Não vamos mais falar de um estalar de dedos, mas dizer que se trata de um objeto sonoro de curta duração, com ataque e extinção rápidos, porém sem ímpeto, de massa complexa (sem a ‘tonicidade’ de uma altura definida), na região média, de calibre médio, sem perfil de massa, sem perfil dinâmico, etc. Um método que sem dúvida abalou o conhecimento da música que, na época, reconhecia somente os quatro parâmetros: altura, duração, timbre e dinâmica. Mas esse exercício funcionou como censor contra a referencialidade, esse vetor na direção de uma imagem muitas vezes visual (dedos), quando não tátil (sons granulosos, por exemplo). Como foi que a imagem visual se mesclou às imagens sonoras em meu trabalho? Foi um processo (e aqui a palavra ‘procede’) lento, gradual, sobretudo circunstancial. Idealmente, a música que faço é composta em estúdio, um ambiente acusticamente isolado que também separa o compositor do ambiente social (e, por conseguinte, familiar, urbano, histórico, político, etc.). O isolamento acústico é não só um espaço ‘ideal’ para a escuta, como também inibidor das superposições das diversas dimensões da experiência humana, da vida em geral. No silêncio construído do estúdio, o compositor pode se aproximar do som, sem as indesejadas perturbações (do tipo ruído exterior), para poder avaliar a qualidade do material sonoro. Isto se refere, principalmente, à ausência de ruído interno no som, ou, como nos tempos da gravação analógica em fita magnética, do chiado, ou hiss, ou souffle, um sibilar inicialmente pouco perceptível que se fixava na fita e que, a cada mixagem, somava-se ameaçadoramente aos das outras pistas. Muito além disso, o isolamento acústico convida à escuta des-referencializada de Schaeffer. A partir de 1991, quando a indústria me permitiu a aquisição de um micro, comecei a trabalhar em casa, sem qualquer isolamento acústico. Um acordo familiar permitia a interseção das esferas acústicas da vida cotidiana e do trabalho. Consequentemente, todos os sons audíveis no ambiente, inclusive os da rua, da vizinhança, do trânsito, dos animais, colégios nas proximidades, tudo se incorporou à esfera do trabalho, mesmo durante a captação microfônica. A mudança foi tão radical que hoje estranharia a idéia de voltar a trabalhar em estúdio. Fazendo uma analogia, é como se, de lá para cá, eu tivesse aprendido a evitar fazer fotos com fundo infinito, e revelasse minhas fotos em um quarto malvedado. Sempre se pode perceber a presença de personagens acidentalmente microfonados. Nesse momento da composição, a filtragem imagética, que tentava isolar o som de seu ambiente, integrou-o, a despeito da feiúra reinante no ambiente (o rádio do vizinho, a cachorrada ecoando pelas escadarias de Santa Teresa, o bem-te-vi estridente na janela às cinco e meia da manhã). Infelizmente, a miséria acústica se insinua aleatoriamente, ao contrário da visual, que podemos evitar com um simples movimento dos globos oculares ou das pálpebras. Assim, começou um exercício de aceitação quase budista. Como se operam as combinações desses materiais? O mundo das artes plásticas adora se referir ao escritor Raymond Roussel, que tanto influenciou Marcel Duchamp, etc. Mas para um músico, ler ‘Comment j’ai écrit mes livres’ é um modo interessante de reencontrar fórmulas que, no mundo da música, tinham sido antecipadas cinqüenta anos antes, duzentos anos antes, quatrocentos mesmo, se pensarmos que o contraponto inventado graças à escrita abriu a música à combinatória de materiais sonoros que Roussel reproduziu com palavras cujos sentidos passaram ao segundo plano. No séc. XVII, Bach brincava com as letras de seu nome (B = si bemol, A = lá, C = dó, H = lá). Para um músico, interessante em Roussel é sua crueldade, ou seja, uma emoção para além da referencialidade. Isso implica, para mim, que o trabalho de composição abrange um espaço infinito que vai desde as freqüências e amplitudes até o julgamento moral, a ética, a política, etc. Tanto poderia falar numa política cujo átomo é o Herz, quanto numa acústica cujas vibrações põem em movimento imagens, cheiros, asperezas, emoções, uma espiral de campos sobrepostos cujo fim eu sou, felizmente, incapaz de determinar. NOTAS: (1) Cf. Tristão & Isolda, 2006, http://sussurro.musica.ufrj.br/abcde/c/caesarrodolf/20062007/tamb ourbayle.htm (2) Como no caso da obra Sem Título (v.3) de 2008, de Felipe Vaz. (3) ‘Três apitos’. 1933. (4) Nem daria tempo p/começar a enunciar, aqui, sobre os efeitos da uniformização desses suportes na era digital. Friedrich Kittler escreveu obras de referência sobre o assunto.