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Utopia e Quinto Império em Antônio Vieira

2023, Revista Desassossego

Antônio Vieira é conhecido por ser um escritor entre dois mundos, em uma zona limítrofe tanto cultural quanto literária. Sua produção, bem como as influências que geralmente são apontadas em seus textos, se inscrevem no Barroco. Uma das perguntas que surge daí é justamente como se faz uma leitura de seus trabalhos. Acontece muito de suas obras serem imediatamente rejeitadas, uma vez que se costuma acreditar que elas são de uma linha estética que pouco pode atrair a atenção de um leitor do nosso tempo. Em seu livro História do Futuro, encontramos um Vieira bem distinto do que se pode supor a partir dessas notas biográficas e análises parciais de suas obras. Esse texto tanto nos evidencia que seu autor era capaz de romper com certos traços estilísticos do Barroco, fugindo do tão aversivo cultismo, quanto inovar em alguns dos aspectos mais fundamentais de seu material, fazendo inclusive uma aproximação com obras excepcionais de seu tempo, que marcaram tanto a literatura dos séculos XV e XVI quanto posteriores. Sendo assim, o objetivo deste trabalho é, ao se deter em um exame sobre a História do Futuro identificar, dentre outros aspectos, algumas marcas mais curiosas sobre Veira em sua produção artística, relvando que o Quinto Império português era uma idealização que estava ancorada no pensamento daquele período.

LITERATURA E MITO: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE | VOLUME 15 NÚMERO 30 | JUL/DEZ 2023 | DOSSIÊ Utopia e Quinto Império em Antônio Vieira Utopia and the Portuguese Fifth Empire in Antonio Vieira http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v15i30p31-46 Roberto Nunes Bittencourt I RESUMO ABSTRACT Antônio Vieira é conhecido por ser um escritor entre dois mundos, em uma zona limítrofe tanto cultural quanto literária. Sua produção, bem como as influências que geralmente são apontadas em seus textos, se inscrevem no Barroco. Uma das perguntas que surge daí é justamente como se faz uma leitura de seus trabalhos. Acontece muito de suas obras serem imediatamente rejeitadas, uma vez que se costuma acreditar que elas são de uma linha estética que pouco pode atrair a atenção de um leitor do nosso tempo. Em seu livro História do Futuro, encontramos um Vieira bem distinto do que se pode supor a partir dessas notas biográficas e análises parciais de suas obras. Esse texto tanto nos evidencia que seu autor era capaz de romper com certos traços estilísticos do Barroco, fugindo do tão aversivo cultismo, quanto inovar em alguns dos aspectos mais fundamentais de seu material, fazendo inclusive uma aproximação com obras excepcionais de seu tempo, que marcaram tanto a literatura dos séculos XV e XVI quanto posteriores. Sendo assim, o objetivo deste trabalho é, ao se deter em um exame sobre a História do Futuro identificar, dentre outros aspectos, algumas marcas mais curiosas sobre Veira em sua produção artística, relvando que o Quinto Império português era uma idealização que estava ancorada no pensamento daquele período. Antônio Vieira is known for being a writer between two worlds, in a cultural and literary border zone. His production, as well as the influences that are generally pointed out in his texts, are part of the Baroque period. One of the questions that arises from this is precisely how one reads his works. It happens that many of his works are immediately rejected, since it is customary to believe that they are of an aesthetic line that can hardly attract the attention of a reader of our time. In his book History of the Future, we find a Vieira quite different from what can be assumed from these biographical notes and partial analyzes of his works. This text shows us both that its author was capable of breaking with certain stylistic traits of the Baroque, fleeing the so aversive cultism, and innovating in some of the most fundamental aspects of his material, even making an approximation with exceptional works of his time, which marked both the literature of the 15th and 16th centuries and later. Therefore, the objective of this work is, by focusing on an examination of the History of the Future, to identify, among other aspects, some of the most curious marks about Veira in his artistic production, stating that the Portuguese Fifth Empire was an idealization that was anchored in the thought of that period. PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS Utopia; Antonio Vieira; Baroque; Portugal; Philosophy. Utopia; Antônio Vieira; Barroco; Portugal; Filosofia. I Centro Universitário Internacional Signorelli, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. 31 LITERATURA E MITO: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE | VOLUME 15 NÚMERO 30 | JUL/DEZ 2023 | DOSSIÊ Utopia e Antônio Vieira É preciso, antes de tudo, esclarecer que a proposta deste estudo consiste em contextualizar a obra do Padre Antônio Vieira, História do Futuro, com o padrão estético então vigente na Europa, o Barroco, e extrair dela os conceitos utopistas em paralelo com o arcabouço cultural do período em que ela se inscreve. Além disso, não se pode esquecer o momento histórico-político no qual ela foi desenvolvida, por entender que toda a produção literária de Vieira está perfeitamente conectada com os fatos históricos de seu período de vida. A obra de Antônio Vieira é um fruto da estética barroca e seria impensável separá-la de todas as transformações que surgiram na sociedade ocidental do século XVII. Ademais, mesmo em um contexto que o deslocava parcialmente de sua terra natal, Vieira sempre esteve com os pés fincados em Portugal e de sua tessitura social, política e cultural. Sua obra, sobretudo a que se coloca aqui como objeto de investigação, está nessa zona limítrofe entre a terra da qual saiu e a na qual estava atuando, exercendo tanto suas inclinações clericais quanto artístico-literárias. Em sua História do Futuro, Vieira faz alusão a um Portugal que ele considera espaço de alcance de projetos superiores, com uma forte conotação do espírito e das inclinações sociopolíticas e estéticas daquela nação. Mas ele também não esquece que está além dos trópicos, em uma terra que Portugal assinala como extensão de seus domínios, de sua carga identitária. A História do Futuro é fruto de reflexões, distanciamentos e aproximações que podemos situar como um texto de cunho literário e ensaístico de Vieira em toda a sua plenitude estética, mas também técnica. Ele desponta nessa obra como um autor de vulto enciclopédico, tanto nas linhas de cruzamento entre os temas e referências quanto em sua maneira de imprimir tantas percepções, teorizações e tópicos narrativos em torno de uma problemática que não se escapa da nação portuguesa. Portugal, em toda sua dinâmica política impulsionada pelas Grandes Navegações, sempre se voltará para uma espécie de utopia, uma outra Portugal, que foge aos seus elementos concretos, que sua trajetória econômica pode permitir um vislumbre. Assim, quando Viera escreve sua História do Futuro, ele tem em mente as paixões também desse Portugal diáfano, que é tratado em outras obras tanto por artistas quanto por teóricos, inclusive da área da história 32 LITERATURA E MITO: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE | VOLUME 15 NÚMERO 30 | JUL/DEZ 2023 | DOSSIÊ da civilização. Temos, então, em seu texto, dentro da estética que marca essa transição do medieval para o moderno, uma fuga de um ideário que não se coaduna mais com a nação que se ergue a partir do século XVI em uma tentativa, mesmo dentro da visão do autor, de criar uma outra perspectiva de si, de seu povo, de sua pátria. Dito de outro modo, Viera aspira escrever sua própria obra de inclinação idealista, mesmo fazendo uso de uma plástica que não se configura muito adequada ao que seu material se revela a partir de uma ótica comparativa. Padre Antônio Vieira nasceu em Portugal, no ano de 1608. Veio para o Brasil quando ainda estava em tenra idade e aqui iniciou seus estudos na Companhia de Jesus, que naquele contexto era uma importante instituição da Igreja atuando em todo o mundo colonial português. Isso notavelmente marca a visão que Vieira tem tanto da América Portuguesa quanto de si mesmo, de seu trabalho missionário e de Portugal enquanto sua pátria, com seu destino entrevisto, tão esquivo e imponente quanto o das Treze Colônias inglesas. Seus estudos foram desde a lógica, passando pela metafísica até a economia (Melo, 2005). Isso, de fato, revela sua inclinação a uma envergadura polímata, embora não tamanha quanto de outros estudiosos do mesmo período. É fato que Viera é um homem de seu tempo, essa zona que se encontra no limiar de uma modernidade nascente, com os ideais renascentistas e os influxos de uma estética inteiramente nova no campo das artes e ofícios. Nesse sentido, cabe também uma breve consideração sobre a contextualização histórica de sua História do Futuro, bem como de sua própria noção de história, futuro e utopia, conceito que perpassa essa produção de forma insofismável. Essa obra de Antônio Vieira foi publicada pela primeira vez em 1718, em pleno contexto de ideias do se convencionou como Iluminismo. Mas, para além disso, também estava inscrita nos eixos paradigmáticos do Renascimento e de toda produção filosófica, cultural e artística desse movimento que, para muitos estudiosos, se prolongou até justamente o Século das Luzes. Assim, em seu texto, Viera se associa exemplarmente ao Barroco, mas está também com sua temática fincado no ideal clássico, sobretudo se enxergado a partir de uma vertente de outros trabalhos do mesmo período e no mesmo contexto sociopolítico e cultural. A Utopia, de Thomas More, publicada em 1516, e A Cidade do Sol, de Tommaso de Campanella, publicada em 1602, são duas obras em torno das 33 LITERATURA E MITO: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE | VOLUME 15 NÚMERO 30 | JUL/DEZ 2023 | DOSSIÊ quais gira a História do Futuro. Se não em sua forma, de maneira categórica em seu mote. Desde Campanella temos esse ideal de uma sociedade sem os vícios e sem os defeitos do mundo de então, um vislumbre de um futuro pródigo e benfazejo. Foi também perseguindo essas ideias que Thomas More escreveu sua Utopia, uma descrição sumária de uma espécie de império onde o sol nunca se põe, na mesma senda trilhada por Campanella. Não importa como denominamos essas sociedades justas, igualitárias, perfeitas, em que todos os seus membros vivem em plenitude, elas são modelos que todos sonham, que todos acreditam que podem ser fundados em sua terra natal. Vieira achava que sua cidade do sol, sua utopia, estava em Portugal, e ela se materializava em um Quinto Império. Como podemos ver, Viera está nesse intermezzo entre ideias que são difundidas de forma muito tenaz e suas próprias convicções, que nascem de um sentimento lusitano muito demarcado. A tradição filosófica nesse contexto já está voltada para uma certa utopia, é daí que nasce a ideia, o conceito tal qual conhecemos hoje, e toda a cultura e arte dos séculos XVII e XVIII se inscrevem nesse corpo de percepção do tempo, dos ciclos, das paixões humanas e da necessidade de um recorte fora do próprio território em que a política e as razões de uma sociedade europeia se presentificam. É fácil notar que a própria propagação desses valores e ideais só foi possível por conta do próprio momento em que Vieira está inserido. Temos aqui a veiculação de ideias de forma mais acentuada, mesmo que leve mais tempo. Livros como o de Campanella e More não estavam mais presos ao universo local, eles avançavam para além das fronteiras nacionais. De forma homóloga, algumas ideias fervilhavam em toda a Europa, de um país para outro. A própria noção de arte e de uma estética nova estava se disseminando de forma mais pungente, contaminando intelectuais, artistas, homens de letras e de ciência. Não teria como ficar alheio a tudo isso, Vieira escreve sua História do Futuro em cima de uma espécie de vanguarda do seu tempo, mas fazendo suas introduções, deslocamentos, fusões e fissões com conceitos, com uma morfologia do que pretende apontar em seu texto. Temos, aqui, então, não uma utopia qualquer, mas a utopia de Portugal, que nasce dentro de uma corrente, mas de forma muito particular. Seu texto, inserido no Barroco, também traz toda a carga poética e toda a formalização dessa prosa que se distancia e se aproxima do tempo vivido pelo seu autor. É uma prosa que foge do Classicismo em alguns 34 LITERATURA E MITO: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE | VOLUME 15 NÚMERO 30 | JUL/DEZ 2023 | DOSSIÊ elementos essenciais, mas que em outro momento o resgata em seu conteúdo, quando as longas e quase extenuantes divagações de Vieira em seu texto se sustentam dentro do ideal clássico de toda a visão dos renascentistas. Tanto em seu modo de fazer alusão a outras obras, textos e ideias quanto sua recorrente aplicação de fórmulas explicativas apologéticas, são, sem qualquer vestígio de dúvida, uma incorporação dessa estética, que Vieira busca refletir como homem de seu tempo, também com laços invioláveis a Portugal, a toda a Europa. Portanto, o que se esboça diante de nós nesse conjunto que traz Vieira e sua obra de cunho especulativo de uma espécie de filosofia teológico-política é um desdobramento de sua experiência enquanto autor em uma tentativa nítida de consolidar um estilo que ele mesmo tinha ciência de sua problemática. Não nos parece ser o caso de Vieira se preocupar com questões estilísticas, mas ele tem claramente uma filiação estética nessa obra que é fruto de uma temporalidade muito demarcada. Talvez seja o caso de pensarmos em escolhas que refletiam mais os influxos do autor, suas leituras e tentativas de participar do movimento coevo que qualquer outra preocupação em termos de forma que para nós se torna tão imperativo. Seguindo esse caminho, incorremos no risco de anacronismo pueril, mas não se pode deixar de lado os traços de uma intencionalidade narrativa e estética dentro do livro, como pode ser facilmente percebido em alguns excertos particulares logo nos primeiros capítulos. Uma vez que nos propomos a examinar em linhas gerais sua História do Futuro como fruto de seu trabalho dentro do Barroco e com os pés fincados em uma ensaística filosófico-literária, nos propomos a seguir um esboço de síntese dessa obra monumental, expoente de um estilo que se confunde e que por si só pode ser tratado em um estudo individualizado. Em seguida, retomaremos o mote da utopia que se constrói nessa obra de Vieira e seu diálogo com a estética do período, mas também com as demais referências culturais que grassavam pela Europa no contexto dos séculos XVII e XVIII. Esboço de uma síntese da História do Futuro É preciso lembrar que o estilo barroco nasceu da crise dos valores renascentistas ocasionadas pelas lutas religiosas surgidas através da Contrarreforma e pelas crises econômicas vividas consequentemente pela falência do comércio com o Oriente. O artista barroco vivia num estado de 35 LITERATURA E MITO: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE | VOLUME 15 NÚMERO 30 | JUL/DEZ 2023 | DOSSIÊ tensão e desequilíbrio, do qual tentou evadir-se pelo culto exagerado da forma, sobrecarregando a poesia de figuras de linguagem, como a metáfora, a antítese, a hipérbole e a alegoria. O rebuscamento que aflora na arte barroca é reflexo do dilema, do conflito entre o mundo terreno e o celeste, o homem e Deus (antropocentrismo e teocentrismo), o pecado e o perdão, a religiosidade medieval e o paganismo renascentista, contrastes que impulsionaram a genialidade dos artistas barrocos. O livro História do Futuro, escrito pelo padre Antônio Vieira, constitui-se como uma das mais grandiosas obras da língua portuguesa, devido à importância do tema abordado, além da eloquência na qual se desenvolve a narrativa. É uma obra concebida nos moldes barrocos, adotando um estilo denominado por Conceptismo, marcado pelo jogo de ideias e de conceitos, seguindo um raciocínio lógico, utilizando ainda uma retórica aprimorada e consistente. O Conceptismo rivalizava com uma outra tendência estilística, o Cultismo, caracterizado por uma linguagem culta, extravagante, além da valorização do pormenor mediante jogos de palavras. Vieira se opunha ferozmente à essa última tendência, por ser desfavorável ao virtuosismo poético que caracterizava os escritores partidários do Cultismo, uma vez que utilizariam as belas palavras como forma de impressionar, e não como forma de educar. Embora pertencesse a uma época em que predominasse o rebuscado excessivo das palavras e do estilo, Vieira não segue a tendência geral dos escritores, empenhandose sempre em ser claro através da simplicidade. A obra de Vieira é uma significativa testemunha da transição do espírito do Renascimento para o espírito Barroco, enredado numa nova angústia e numa nova maneira de estar no mundo. É um espaço de meditação, que desde logo se transforma num discurso visionário e profético sem que, todavia, perca de vista o recorte da realidade histórica e conjuntural. Vieira alude a respeito do dom de se decifrar enigmas ou profecias deveras enigmáticas, afirmando que estas requerem uma grande dedicação ao estudo das Escrituras Sagradas, pois muitos textos tornam-se obscuros por muito tempo aos olhos dos que se submetem a leitura dos versículos sagrados, mas que no devido momento, por obra da Iluminação Divina, tornar-se-iam esclarecidos e límpidos, permitindo a revelação do sentido oculto contido nas palavras componentes das profecias. Segundo São Paulo, “a palavra mata, o espírito vivifica”. Essa frase esclarece bem o que Vieira 36 LITERATURA E MITO: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE | VOLUME 15 NÚMERO 30 | JUL/DEZ 2023 | DOSSIÊ afirmava, pois é na essência do sentido transcendente da palavra que se revelariam os mistérios, não em palavras vazias. Vieira alude ainda ao profeta Daniel quando cita um relato bíblico, no qual o anjo divino ordenalhe que oculte o sentido das profecias nas quais Deus lhe iluminou a mente, para que no devido momento, estas se tornem conhecidas e entendidas por todos. A História do Futuro deve falar não de algo novo por si mesmo, mas de um novo que estaria implícito na humanidade, que não fora decifrado ao longo dos tempos pelos sábios estudiosos. Nessa passagem, percebem-se ecos da tendência conceptista de Vieira. A História do Futuro foi concebida por Vieira tendo por finalidade a justificação da crença na possibilidade hipotética da instauração do aguardado V Império do Mundo, segundo a interpretação de Vieira acerca das profecias de Daniel, dirigidas ao rei Nabucodonosor. Essas profecias narram o futuro surgimento de poderosos impérios temporais do mundo, nos quais os quatro primeiros, de acordo com sua interpretação a respeito da história das civilizações do mundo Antigo seriam, nesta ordem, o Assírio, o Persa, o Grego e o Romano, que se sucederam continuamente, estando o IV Império, o Romano, segundo Vieira, em plena vigência no período em que essa obra foi escrita, em meados do século XVII, apresentando-se na figura do poderosos Sacro Império RomanoGermânico, um dos impérios europeus que surgiu a partir da queda do Império Romano do Ocidente. O aguardado V Império do Mundo envolve-se numa grandiosa aura de mistério, passível das mais diversas especulações teológicas. Vieira, baseando-se nas suas interpretações da profecia de Daniel, afirmará que o V Império será o de Portugal, para justificar tal afirmação, utilizará uma série de estudos comparados por um paralelismo entre a história religiosa contida nas Escrituras Sagradas, e a história temporal até então vigente no seu tempo. Assim, compara o domínio do Império Persa, comandado por Ciro, com o domínio hispânico sobre Portugal ficou sob o jugo espanhol, de 1580 a 1640. É importante situarmos o contexto histórico desse momento. A União Ibérica, foi a aglutinação do Reino de Portugal ao de Espanha, uma vez que o primeiro, sofrendo a decadência militar, decorrente de graves crises econômicas, uma vez que sua balança comercial portuguesa, característica tipicamente mercantilista, apresentava um constante déficit na relação com outros países, sobretudo Inglaterra. 37 LITERATURA E MITO: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE | VOLUME 15 NÚMERO 30 | JUL/DEZ 2023 | DOSSIÊ Em 1578, o rei português D. Sebastião desapareceu misteriosamente na Batalha de Alcácer-Quibir, lutando contra os árabes, no Norte da África. Por não deixar descendentes, o trono de Portugal foi ocupado por seu tio-avô, o velho Cardeal D. Henrique, que, no entanto, falece em 1580. Com a morte deste último, extinguia-se a Dinastia de Avis, que se encontrava no trono desde 1385, com a ascensão de D. João I, Mestre de Avis. Vários pretendentes reivindicaram ao trono vago: D. Catarina, Duquesa de Bragança; D. Antônio, Prior de Crato, além do poderoso monarca espanhol Filipe II, que descendia, pelo lado materno, em linha direta, do rei D. Manuel, o Venturoso, que reinou nos tempos de Cabral. Vieira afirma que Portugal estaria sob dominação espanhola por uma necessidade de expiar as faltas de seu povo, da mesma maneira pela qual Israel sucumbiu perante o exército de Ciro. Segundo o relato do Velho Testamento, após um período de setenta anos, Ciro, submetendo-se aos imperativos de Jeová, concedeu a liberdade para os hebreus. Aproveitando-se desse fato histórico e de uma profecia do célebre São Bernardo de Claraval, na qual se narrava a dominação de Espanha sobre Portugal por um prazo de sessenta anos, fim do qual os lusos obteriam a antiga autonomia, Vieira faz outra comparação dos fatos históricos, de maneira que se concedesse uma aura de intervenção divina pelo término da União Ibérica. Vieira afirma que o Reino de Espanha, por ser um reino fiel ao Cristianismo, não cometeria a insolência de se revoltar contra os desígnios divinos, pois sofreria como pena o peso da cólera divina que se insurge contra os infiéis. Vieira, utilizando da autoridade de várias profecias do Velho Testamento, afirma que estas legitimariam a expansão de Portugal pelo mundo, impondo um jugo santo sobre os povos de diversos continentes, como se o Império de Portugal conduzisse junto com suas armas o estandarte de Cristo, trazendo para os povos gentílicos a civilização através do legado da civilização europeia, representando a Luz de Cristo a guiar os povos. Segundo sua interpretação de uma profecia de Isaías, afirmava que na colônia do Brasil encontrar-se-iam um povo cujos habitantes estariam próximos ao estado de pureza e inocência como no Jardim do Éden, que teve em Adão o primeiro homem. Essa região seria localizada numa região do atual estado do Maranhão, na região Nordeste do Brasil. Assim, podemos constatar a grande preocupação de Vieira para com os indígenas, 38 LITERATURA E MITO: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE | VOLUME 15 NÚMERO 30 | JUL/DEZ 2023 | DOSSIÊ uma vez que considerava estes como descendentes diretos de Adão, mas que, no entanto, viveriam em total estado de pureza, por não sofrerem do mal oriundo do pecado original. Portugal, representando a sede do V Império do Mundo, sucedendo aos quatro já citados, há de ser mui diferente destes, pois esses quatro impérios passaram pelas etapas de ascensão, apogeu e queda, enquanto o glorioso Império de Portugal há de se perpetuar até o Segundo Advento de Cristo, quando então não haveria mais tempo, somente a eternidade. Vieira estava profundamente vinculado ao pensamento milenarista, de tendência escatológica, caracterizado pela crença num período de paz e harmonia de 1000 anos até a volta de Cristo à Terra, quando haveria a grande batalha contra as forças do Mal, além da separação entre justos e injustos. Para o advento do Império de Cristo na Terra, seria necessária a realização da fórmula que obsidia o pensamento milenarista, “unum ovile unus pastor”: a conversão universal e a redução de todas as religiões, heresias e seitas a uma única religião. Essa síntese, logicamente, incluía o povo judaico, motivo aproveitado pelo Santo Ofício para perseguir ferozmente Vieira, principalmente, por em meados do século XVII a perseguição aos judeus ser absolutamente feroz. Vieira especula ainda a respeito do âmbito do V Império, se será de caráter temporal, somente espiritual ou simultaneamente temporal e espiritual. Essa questão sempre despertou as mais diversas controvérsias entre teólogos e estudiosos dos textos sacros ao longo do tempo. Mais uma vez Vieira se utiliza de seu estilo conceptista, ao apresentar as três teses e comparando cada uma com o texto bíblico, de forma que por fim são refutadas as duas primeiras hipóteses, enquanto a terceira é considerada a verdadeira. Unindo os caracteres temporais e espirituais, baseando-se no testemunho bíblico “a ele foi concedido o poder sobre céus e Terra”, Vieira afirma que o V Império se expressará de duas formas, sendo cedido a D. João IV o poder temporal, e ao Papa o poder espiritual. Vieira acreditava piamente na ressurreição de El-Rei D. João IV, restaurador da monarquia portuguesa, e toda a possibilidade da aparição do V Império, está vinculado na crença de, um dia, D. João IV renascer para guiar os povos enquanto chefe temporal ruma ao Fim dos Tempos. O V Império do Mundo colocaria D. João IV como imperador dos Últimos Dias, que restauraria a glória de Portugal, fundado o Reino dos Mil Anos, preparando a segunda descida de Cristo aos homens. 39 LITERATURA E MITO: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE | VOLUME 15 NÚMERO 30 | JUL/DEZ 2023 | DOSSIÊ A História do Futuro reflete as esperanças do Padre Antônio Vieira no ressurgimento do Império de Portugal como grande potência militar, uma vez que no século XVII era um Estado decadente, muito distante da dignidade e da grandeza que o caracterizaram no período das Grandes Navegações e descobertas de territórios. O sonho de Vieira era reconduzir Portugal ao posto de vanguarda entre os reinos da Europa, como um império santo que demonstrasse todo o esplendor da glória de Cristo entre os homens. Vieira se recorda nostalgicamente, portanto, do passado expansionista de Portugal e a importância dele nas Cruzadas, onde muitos lusitanos tombaram em defesa do baluarte cristão. A obra, o artista, o ideal Logo de início, Vieira deixa claro que sua História do Futuro é, em síntese, a história de um Quinto Império do mundo. É, portanto, uma visão teológico-política sobre a ordenação de uma sociedade com todos os predicados de uma utopia, nos mesmos moldes de toda a tradição que trata desse mesmo tema. Não se configurando como uma cidade do sol, como no texto de Campanella, em sua estrutura, mas de forma muito incisiva em seus ideais. Ele recorre a uma explanação consistente, de natureza catequética, como não poderia deixar de ser, para apresentar suas ideias que levam o leitor à conclusão esperada pelo próprio autor. O Quinto Império é Portugal, o que se desdobra ao longo da obra é uma demonstração disso em termos muito persuasivos. O tom assumido por Vieira em seu texto é de uma homilia, mas não se prende a isso de forma intransigente. Ele escreve em uma linha muito limítrofe entre o ensaístico familiar e o ficcional, uma vez que traz diversos elementos alusivos a uma narrativa, nos mesmos termos em que More escreve sua Utopia. Se trata, pois, de uma descrição, mas em corpo narrativo, dessa sociedade perfeita que deve se impor ao mundo e lhe assegurar um sentido outro. Podemos notar, no excerto a seguir, que ele usa ao mesmo tempo um viés persuasivo, como seria em um discurso eclesiástico, mas também faz uso de uma descrição sumária, que tenta apresentar todos os elementos que permitam uma visualização cabal por parte do leitor do que ele está tentando pintar com suas palavras: E em quantas províncias achou o Evangelho fechadas as portas e, depois que o comércio bateu a elas, as teve abertas e francas? O 40 LITERATURA E MITO: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE | VOLUME 15 NÚMERO 30 | JUL/DEZ 2023 | DOSSIÊ primeiro rei de Portugal que se intitulou rei do comércio da Etiopia, Arábia, Pérsia e dia foi o que introduziu a Fé na Índia, na Pérsia, na Arábia e na Etiópia. Se não houvesse mercadores que fossem buscar a umas e outras Índias os tesouros da terra, quem havia de passar lá os pregadores que levam os do Céu? Os pregadores levam o Evangelho, e o comércio leva os pregadores. S. Tomé, que levou do Brasil à Índia o Evangelho, quando não havia comércio, houve de caminhar (como é tradição) por cima das ondas, porque não teve quem o levasse; e o segundo Apóstolo do Oriente, querendo pregar na China, traçou que o pregador entrasse como negociante, para que a Fé tivesse lugar como mercadoria (Vieira, 2022, p. 41). O uso de indagações para conduzir o raciocínio do leitor é característico do gênero argumentativo, que ele adota de forma muito incisiva em todo o texto. Sempre recorrendo a estratégias de validação de suas ideias, uma vez que trata de um tema polêmico, sobre o qual muitas outras impressões podem se sobrepor, o autor tenta comprovar que seus apontamentos estão seguindo a lógica mais exata e insofismável. Sua sintaxe, por sua vez, é muito tênue, sem apegar-se a formulações gongóricas, o que pode ser encarado também como um recurso adotado por ele para deixar ainda mais nítido o corpo de demonstração de suas teses, que aparecem desde o início da obra, quando ele assevera que o Quinto Império pode ser descrito em linhas muito elucidativas, restando a cada um concluir por si mesmo se tais premissas são válidas ou não. O Conceptismo se torna evidente por meio de seu jogo de ideias, pelas analogias e o pensamento lógico. No excerto acima, estamos diante de uma mostra inequívoca tanto desse jogo de ideias quanto do uso de uma linguagem racionalizada, que busca a comprovação de maneira sofisticada. Por outro lado, como já afirmamos aqui, Vieira não se apega a um léxico marcado pelo preciosismo nem pelo gongorismo, como era o caso de outros autores do Barroco, que se registravam nessas escolas com uma pompa exacerbada para o texto em si. Seu estilo é muito mais conciso, enxuto e límpido, com uma sutileza na construção das frases e do período, com um vocabulário que não exige essa inclinação a uma norma essencialmente rebuscada. Como sermonista, Viera tinha uma forte predisposição a usar em seu texto uma série de recursos estilísticos que fosse possível contribuir de forma decisiva para a aceitação de seu argumento, de sua tese. Ao olharmos com mais cuidado o material que ele apresenta em sua História 41 LITERATURA E MITO: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE | VOLUME 15 NÚMERO 30 | JUL/DEZ 2023 | DOSSIÊ do Futuro, também notamos essa sua estrutura básica de compor seu tecido comunicativo. A engenharia de seu texto é inconfundível, até mesmo no registro de escolha lexical, que marca um uso mais fluido de seu projeto expressivo. Ele não foge do uso do latim em algumas passagens, como podemos acompanhar em todo o documento, mas isso não faz com que sua morfologia se torne estranha ou se desvirtue do conjunto. Ainda, apesar do latim, estamos diante de uma composição muito clara e lúcida, com um poder de compreensão muito elevado, distanciando de forma contundente do gongorismo que prevalecia, por exemplo, na poesia de autores da mesma escola. Em seu livro A Cidade do Sol, Campanella faz a seguinte descrição de seu mundo utópico: Apresentamos, pois, a nossa república, não como dada por Deus, mas como uma descoberta filosófica e da razão humana para demonstrar que a verdade do Evangelho é conforme à natureza. Se, em algumas coisas, nos afastamos do Evangelho, ou parece que nos afastamos, isso não se deve atribuir à impiedade, mas à fraqueza humana, que, à falta de revelação, julga justas muitas coisas que à luz da mesma não o são, como podemos dizer da comunidade dos matrimônios. Foi por isso que imaginamos a nossa república no gentilismo que espera a revelação de uma vida melhor e que, vivendo segundo os ditames da razão, merece possuí-la. Além disso, são catecúmenos da vida cristã, razão que levou Cirilo (90) a dizer, contra Juliano (91), que a filosofia foi dada aos gentios como catecismo para a fé cristã (Campanella, 2022, p. 29). O autor deixa muito evidente que sua república, ou seja, sua utopia, não é em termos religiosos. Ela se trata de uma construção social, política, filosófica. Está fundada em um pensamento lógico-social, que tem como alvo a construção de um mundo ideal a todos os indivíduos. Se impõe, assim, como o resultado dos esforços da humanidade para superar suas limitações, para criar as bases de um novo mundo. Diferencia-se, por sua vez, da descrição que faz Vieira de sua utopia, que está fundada no Evangelho, não em termos muito precisos, mas de forma bastante transversal. Em seu texto, Vieira não se furta a afirmar que o Quinto Império, sua república ou mundo utópico, é o resultado de uma conjuntura não apenas social e política, mas sobretudo religiosa, fazendo parte de um plano supremo. Já em sua Utopia, Thomas More traz a seguinte descrição, que nos ajuda a entender como ele concebeu seu utopismo de uma sociedade ideal 42 LITERATURA E MITO: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE | VOLUME 15 NÚMERO 30 | JUL/DEZ 2023 | DOSSIÊ e que tipo de conjuntura e estrutura prevalece nesse cenário de adequação aos anseios da humanidade pela perfeição: “Os utopianos aprendem as ciências em sua própria língua, rica e harmoniosa, intérprete fiel do pensamento; ela é difundida, mais ou menos alterada, sobre uma grande extensão do globo” (MORE, 2022, p. 36). Em sua construção de um mundo ideal, de uma sociedade com todos os traços de uma perfeição material, More traz a ciência, o conhecimento estruturado, como parte desse construto social e político. Se trata, pois, de uma conjuntura que atende aos anseios e ideais filosóficos, científicos. Em termos comparativos, podemos levar esse raciocínio ao do Iluminismo, que desponta desse mesmo contexto que se inicia com o Renascimento Cultural ainda no século XVI. É a partir disso que More cria seu mundo exemplar, de um ideal do pensamento racional sobre as crendices, sobre o pensamento fantasioso. Não é, portanto, uma sociedade que surge da volição divina, como é o caso da utopia de Vieira, que ele deixa claro sua tessitura no seguinte excerto de sua História do Futuro: E basta que nesta última idade, como decrépita, daquela estátua ou daqueles reinos se haja de levantar o Quinto Império, para que com toda a verdade e com toda a propriedade se verifique havê-lo Deus de levantar nos dias daqueles reinos; in diebus regnorum illorum. Assim que o Império que promete Daniel não é império já passado, senão que ainda está por vir (Vieira, 2022, p. 13). Em Vieira, a república ideal, que na verdade é tida como um reino, como um império em sua organização sociopolítica, ou apenas terminológica, uma vez que não temos elementos para crer que se trate de um império no modelo historiográfico contemporâneo ou dentro da teoria mais aceita nesse sentido, se constrói em função da determinação de um conjunto de forças que encontra sua inspiração na divindade. Portanto, não se trata de uma sociedade secular, fruto das ambições e achaques dos homens e suas paixões, mas resultado de um plano teológico que impõe essa ordem ao mundo de uma forma ou de outra, que deve se cumprir como toda profecia. É por isso que o tom homilético de Vieira em seu texto se superpõe ao descrito e de teor mais literário, como se fosse de fato um ensaio sobre um mundo outro, utópico, que denota uma percepção social de seu tempo e de seu povo em relação ao que Portugal deveria se tornar em um futuro próximo ou distante. Ele tenta, na verdade, tecer as linhas de uma 43 LITERATURA E MITO: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE | VOLUME 15 NÚMERO 30 | JUL/DEZ 2023 | DOSSIÊ comprovação teológica, em cima do Evangelho, não na acepção apenas dos textos canônicos sobre a vida e obra de Jesus, mas de todas as Escrituras Sagradas. O estilo, portanto, se coaduna a seus propósitos, sobretudo o de validar seu ponto de vista. Mesmo aderindo ao Barroco, Vieira escreve para os leigos, para lhes dirigir o pensamento, como se seu texto fosse um mantra, daí sua predileção nessa sua História do Futuro pelo Conceptismo. São os raciocínios cuidadosamente elaborados, as comparações, analogias e jogos de ideias que darão sustentação a suas ideias teológica um tanto surpreendentes. Nesse sentido, podemos afirmar que a obra de Vieira entra em uma ruptura com A Cidade do Sol de Campanella e a Utopia de Thomas More, não apenas em seu elemento coesivo de apresentação do cenário utopista, mas também em sua visão sobre como se edificam essas sociedades ideais e como elas devem ser apresentadas e ratificadas para todas as pessoas. Se More e Campanella optam pelo discurso filosófico, recorrendo inclusive a tradição pregressa, remontando aos gregos, Vieira segue por um caminho diametralmente oposto, partindo da própria forma e estruturação do texto canônico para compor seu material elucidativo e comprobatório. Seu mundo utópico é um que surge da volição de Deus, que foi predito por seus seguidores, por seus fiéis, e ele, que se enquadra nessa mesma categoria, é o responsável por demonstrá-lo em seu mescla de ensaio familiar e narrativa teológica. Nesse âmbito em especial é muito difícil se apegar a definições muito precisas e classificações que não sejam tão polissêmicas, a obra não permite tais incursões. Em toda a sua dimensão estilística, a História do Futuro se encaixa nesse movimento Barroco que desponta tanto em Portugal quanto no Brasil, com suas devidas nuances. Como já afirmamos, seguida de uma análise parcial, a própria linguagem usada por Vieira nos permite chegar a essa ilação muito facilmente. A temática, o que ele tenta descrever com sua obra, também é um mote muito caro à corrente literária. Além disso, seu jogo de palavras, a forma como ele, mesmo em um texto de cunho mais teológico, faz referência a elementos racionais, em uma acepção clássica que remonta à Renascença. Tudo isso, de forma muito visceral, nos evidencia sua filiação ao movimento Barroco e ao Conceptismo de forma particular, mas também fazendo um gancho inviolável com nossa abordagem sobre sua inclinação a escrever sua própria utopia dentro desse parâmetro que se fixa em toda a Europa nesse contexto dos séculos XVI e XVII. 44 LITERATURA E MITO: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE | VOLUME 15 NÚMERO 30 | JUL/DEZ 2023 | DOSSIÊ Rumo ao epílogo Quando nos deparamos com um autor como o Padre Antônio Vieira temos um certo distanciamento de sua produção literária. Talvez pelo fato de ser um clérigo que escrevia majoritariamente em um tom catequético. Hoje nós acreditamos, quase sempre erroneamente, que estamos diante desse tipo de literatura, se é que podemos empregar a palavra literatura nessa acepção. Isso nos leva a ter certa aversão à obra de Vieira e a seus principais trabalhos, sempre encarados como muito avessos ao que estamos mais habituados em nossa sociedade globalizada, pósmoderna, repleta de uma coletânea de textos muito mais convidativos do ponto de vista estético e formal. Assim, livros como sua História do Futuro são quase sempre largados de lado. Quando muito são alvo de estudos e pesquisas na academia, que não interessam a nenhum público específico. Mas temos motivos para acreditar que esse se trata de um texto verdadeiramente curioso para uma leitura, mesmo que ela inicialmente possa não parecer muito otimista. Não estamos diante de um romance balzaquiano, nem mesmo de um lirismo camoniano. Não se trata de nada disso, mas a obra de Viera pode ter um contraponto e ao mesmo tempo uma convergência com outros trabalhos que são muito apreciados mesmo nesse contexto do nosso cenário mais atual. Em nosso estudo, que agora tentamos finalizar com algumas considerações nada conclusivas, tentamos demonstrar justamente sua vinculação ao Barroco enquanto escola literária em evidência no tempo de Vieira e sua aproximação com um estilo muito mais popularesco mesmo dentro de uma corrente tão dada ao cultismo. Aliás, cultismo nada mais é que um sinônimo para o Barroco, também evidenciado de maneira muito precisa em seus elementos primordiais. A tentativa de Vieira era, pode-se supor, mas não comprovar de fato, parecer compreensível e ao mesmo tempo enquadrado em um movimento que imperava em seu momento de cultivo das letras. Por outro lado, tanto a História do Futuro é um livro que se pode dizer não foge do emblema catequético como tem um traço muito mais instigante, o que pode render bons frutos em termos de leitura e apreciação. Sua aproximação com outros textos, desta feita filosóficos, que foram escritos dentro do mesmo período, e, portanto, em uma mesma 45 LITERATURA E MITO: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE | VOLUME 15 NÚMERO 30 | JUL/DEZ 2023 | DOSSIÊ historicidade, pode nos dizer muito sobre que tipo de pensamento grassava pela Europa nesses conturbados séculos XVI e XVII, em uma zona muito limítrofe entre Renascença e Iluminismo, que seria tema mais apropriado para os historiadores da civilização que para nós aqui. Por isso, talvez, este seja um texto que se intitula rumo ao epílogo. Há muito a ser considerado sobre a História do Futuro e sua associação direta e indireta com outros textos da tradição filosófica e literária da Europa, Portugal e o que se escrevia também aqui no Brasil. Não temos como examinar em detalhes tudo isso em nosso trabalho aqui, ele soa mais como uma nota de rodapé de um produto muito mais denso. Apresentamos, portanto, de forma sucinta, suas bases teóricas e metodológicas. Temos os instrumentos para verificar tais influxos em Viera e a forma como seu texto transita nessa linguagem e dentro de uma temática tão soberba. Vieira, assim, nos leva à sua própria utopia, escrita em caracteres teológicos, mas sem o costumeiro pedantismo e toque longínquo que a igreja empregava em seus sermões. REFERÊNCIAS CAMPANELLA, Tommaso. A cidade do sol. Brasília: Domínio Público, 2022. MELO, Sangia de. Argumentação e persuasão: o Sermão da Sexagésima do Padre Antônio Vieira. 2005. Dissertação (Mestrado em Literatura e Crítica Literária) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005. MORE, Thomas. Utopia. Brasília: Domínio Público, 2022. VIEIRA, Antônio. História do Futuro vol. 1. Brasília: Unama, 2022. VIEIRA, Antônio. História do Futuro vol. 2. Brasília: Unama, 2022. Recebido em 4 de janeiro de 2023 Aprovado em 2 de outubro de 2023 Licença: Roberto Nunes Bittencourt Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Estudos de Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Graduado em Letras pela Universidade Gama Filho. Contato: [email protected] : https://orcid.org/0000-0002-9022-2963 46