LITERATURA E MITO: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE
| VOLUME 15 NÚMERO 30 | JUL/DEZ 2023 | DOSSIÊ
Utopia e Quinto Império
em Antônio Vieira
Utopia and the Portuguese Fifth Empire in Antonio Vieira
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v15i30p31-46
Roberto Nunes Bittencourt I
RESUMO
ABSTRACT
Antônio Vieira é conhecido por ser um escritor entre
dois mundos, em uma zona limítrofe tanto cultural
quanto literária. Sua produção, bem como as influências
que geralmente são apontadas em seus textos, se
inscrevem no Barroco. Uma das perguntas que surge daí
é justamente como se faz uma leitura de seus trabalhos.
Acontece muito de suas obras serem imediatamente
rejeitadas, uma vez que se costuma acreditar que elas
são de uma linha estética que pouco pode atrair a
atenção de um leitor do nosso tempo. Em seu livro
História do Futuro, encontramos um Vieira bem distinto
do que se pode supor a partir dessas notas biográficas e
análises parciais de suas obras. Esse texto tanto nos
evidencia que seu autor era capaz de romper com certos
traços estilísticos do Barroco, fugindo do tão aversivo
cultismo, quanto inovar em alguns dos aspectos mais
fundamentais de seu material, fazendo inclusive uma
aproximação com obras excepcionais de seu tempo, que
marcaram tanto a literatura dos séculos XV e XVI quanto
posteriores. Sendo assim, o objetivo deste trabalho é, ao
se deter em um exame sobre a História do Futuro
identificar, dentre outros aspectos, algumas marcas mais
curiosas sobre Veira em sua produção artística, relvando
que o Quinto Império português era uma idealização
que estava ancorada no pensamento daquele período.
Antônio Vieira is known for being a writer between two
worlds, in a cultural and literary border zone. His
production, as well as the influences that are generally
pointed out in his texts, are part of the Baroque period.
One of the questions that arises from this is precisely how
one reads his works. It happens that many of his works
are immediately rejected, since it is customary to believe
that they are of an aesthetic line that can hardly attract
the attention of a reader of our time. In his book History
of the Future, we find a Vieira quite different from what
can be assumed from these biographical notes and partial
analyzes of his works. This text shows us both that its
author was capable of breaking with certain stylistic traits
of the Baroque, fleeing the so aversive cultism, and
innovating in some of the most fundamental aspects of his
material, even making an approximation with
exceptional works of his time, which marked both the
literature of the 15th and 16th centuries and later.
Therefore, the objective of this work is, by focusing on an
examination of the History of the Future, to identify,
among other aspects, some of the most curious marks
about Veira in his artistic production, stating that the
Portuguese Fifth Empire was an idealization that was
anchored in the thought of that period.
PALAVRAS-CHAVE
KEYWORDS
Utopia; Antonio Vieira; Baroque; Portugal; Philosophy.
Utopia; Antônio Vieira; Barroco; Portugal; Filosofia.
I
Centro Universitário Internacional Signorelli, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
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Utopia e Antônio Vieira
É preciso, antes de tudo, esclarecer que a proposta deste estudo
consiste em contextualizar a obra do Padre Antônio Vieira, História do
Futuro, com o padrão estético então vigente na Europa, o Barroco, e extrair
dela os conceitos utopistas em paralelo com o arcabouço cultural do
período em que ela se inscreve. Além disso, não se pode esquecer o
momento histórico-político no qual ela foi desenvolvida, por entender que
toda a produção literária de Vieira está perfeitamente conectada com os
fatos históricos de seu período de vida. A obra de Antônio Vieira é um
fruto da estética barroca e seria impensável separá-la de todas as
transformações que surgiram na sociedade ocidental do século XVII.
Ademais, mesmo em um contexto que o deslocava parcialmente de
sua terra natal, Vieira sempre esteve com os pés fincados em Portugal e de
sua tessitura social, política e cultural. Sua obra, sobretudo a que se coloca
aqui como objeto de investigação, está nessa zona limítrofe entre a terra da
qual saiu e a na qual estava atuando, exercendo tanto suas inclinações
clericais quanto artístico-literárias. Em sua História do Futuro, Vieira faz
alusão a um Portugal que ele considera espaço de alcance de projetos
superiores, com uma forte conotação do espírito e das inclinações
sociopolíticas e estéticas daquela nação. Mas ele também não esquece que
está além dos trópicos, em uma terra que Portugal assinala como extensão
de seus domínios, de sua carga identitária.
A História do Futuro é fruto de reflexões, distanciamentos e
aproximações que podemos situar como um texto de cunho literário e
ensaístico de Vieira em toda a sua plenitude estética, mas também técnica.
Ele desponta nessa obra como um autor de vulto enciclopédico, tanto nas
linhas de cruzamento entre os temas e referências quanto em sua maneira
de imprimir tantas percepções, teorizações e tópicos narrativos em torno
de uma problemática que não se escapa da nação portuguesa. Portugal, em
toda sua dinâmica política impulsionada pelas Grandes Navegações,
sempre se voltará para uma espécie de utopia, uma outra Portugal, que
foge aos seus elementos concretos, que sua trajetória econômica pode
permitir um vislumbre.
Assim, quando Viera escreve sua História do Futuro, ele tem em
mente as paixões também desse Portugal diáfano, que é tratado em outras
obras tanto por artistas quanto por teóricos, inclusive da área da história
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da civilização. Temos, então, em seu texto, dentro da estética que marca
essa transição do medieval para o moderno, uma fuga de um ideário que
não se coaduna mais com a nação que se ergue a partir do século XVI em
uma tentativa, mesmo dentro da visão do autor, de criar uma outra
perspectiva de si, de seu povo, de sua pátria. Dito de outro modo, Viera
aspira escrever sua própria obra de inclinação idealista, mesmo fazendo
uso de uma plástica que não se configura muito adequada ao que seu
material se revela a partir de uma ótica comparativa.
Padre Antônio Vieira nasceu em Portugal, no ano de 1608. Veio
para o Brasil quando ainda estava em tenra idade e aqui iniciou seus
estudos na Companhia de Jesus, que naquele contexto era uma importante
instituição da Igreja atuando em todo o mundo colonial português. Isso
notavelmente marca a visão que Vieira tem tanto da América Portuguesa
quanto de si mesmo, de seu trabalho missionário e de Portugal enquanto
sua pátria, com seu destino entrevisto, tão esquivo e imponente quanto o
das Treze Colônias inglesas. Seus estudos foram desde a lógica, passando
pela metafísica até a economia (Melo, 2005). Isso, de fato, revela sua
inclinação a uma envergadura polímata, embora não tamanha quanto de
outros estudiosos do mesmo período. É fato que Viera é um homem de seu
tempo, essa zona que se encontra no limiar de uma modernidade nascente,
com os ideais renascentistas e os influxos de uma estética inteiramente
nova no campo das artes e ofícios.
Nesse sentido, cabe também uma breve consideração sobre a
contextualização histórica de sua História do Futuro, bem como de sua
própria noção de história, futuro e utopia, conceito que perpassa essa
produção de forma insofismável. Essa obra de Antônio Vieira foi publicada
pela primeira vez em 1718, em pleno contexto de ideias do se
convencionou como Iluminismo. Mas, para além disso, também estava
inscrita nos eixos paradigmáticos do Renascimento e de toda produção
filosófica, cultural e artística desse movimento que, para muitos
estudiosos, se prolongou até justamente o Século das Luzes. Assim, em seu
texto, Viera se associa exemplarmente ao Barroco, mas está também com
sua temática fincado no ideal clássico, sobretudo se enxergado a partir de
uma vertente de outros trabalhos do mesmo período e no mesmo contexto
sociopolítico e cultural.
A Utopia, de Thomas More, publicada em 1516, e A Cidade do Sol, de
Tommaso de Campanella, publicada em 1602, são duas obras em torno das
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quais gira a História do Futuro. Se não em sua forma, de maneira categórica
em seu mote. Desde Campanella temos esse ideal de uma sociedade sem
os vícios e sem os defeitos do mundo de então, um vislumbre de um futuro
pródigo e benfazejo. Foi também perseguindo essas ideias que Thomas
More escreveu sua Utopia, uma descrição sumária de uma espécie de
império onde o sol nunca se põe, na mesma senda trilhada por
Campanella. Não importa como denominamos essas sociedades justas,
igualitárias, perfeitas, em que todos os seus membros vivem em plenitude,
elas são modelos que todos sonham, que todos acreditam que podem ser
fundados em sua terra natal. Vieira achava que sua cidade do sol, sua
utopia, estava em Portugal, e ela se materializava em um Quinto Império.
Como podemos ver, Viera está nesse intermezzo entre ideias que são
difundidas de forma muito tenaz e suas próprias convicções, que nascem
de um sentimento lusitano muito demarcado. A tradição filosófica nesse
contexto já está voltada para uma certa utopia, é daí que nasce a ideia, o
conceito tal qual conhecemos hoje, e toda a cultura e arte dos séculos XVII
e XVIII se inscrevem nesse corpo de percepção do tempo, dos ciclos, das
paixões humanas e da necessidade de um recorte fora do próprio território
em que a política e as razões de uma sociedade europeia se presentificam.
É fácil notar que a própria propagação desses valores e ideais só foi
possível por conta do próprio momento em que Vieira está inserido. Temos
aqui a veiculação de ideias de forma mais acentuada, mesmo que leve mais
tempo. Livros como o de Campanella e More não estavam mais presos ao
universo local, eles avançavam para além das fronteiras nacionais. De
forma homóloga, algumas ideias fervilhavam em toda a Europa, de um
país para outro. A própria noção de arte e de uma estética nova estava se
disseminando de forma mais pungente, contaminando intelectuais,
artistas, homens de letras e de ciência. Não teria como ficar alheio a tudo
isso, Vieira escreve sua História do Futuro em cima de uma espécie de
vanguarda do seu tempo, mas fazendo suas introduções, deslocamentos,
fusões e fissões com conceitos, com uma morfologia do que pretende
apontar em seu texto.
Temos, aqui, então, não uma utopia qualquer, mas a utopia de
Portugal, que nasce dentro de uma corrente, mas de forma muito
particular. Seu texto, inserido no Barroco, também traz toda a carga poética
e toda a formalização dessa prosa que se distancia e se aproxima do tempo
vivido pelo seu autor. É uma prosa que foge do Classicismo em alguns
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elementos essenciais, mas que em outro momento o resgata em seu
conteúdo, quando as longas e quase extenuantes divagações de Vieira em
seu texto se sustentam dentro do ideal clássico de toda a visão dos
renascentistas. Tanto em seu modo de fazer alusão a outras obras, textos e
ideias quanto sua recorrente aplicação de fórmulas explicativas
apologéticas, são, sem qualquer vestígio de dúvida, uma incorporação
dessa estética, que Vieira busca refletir como homem de seu tempo,
também com laços invioláveis a Portugal, a toda a Europa.
Portanto, o que se esboça diante de nós nesse conjunto que traz
Vieira e sua obra de cunho especulativo de uma espécie de filosofia
teológico-política é um desdobramento de sua experiência enquanto autor
em uma tentativa nítida de consolidar um estilo que ele mesmo tinha
ciência de sua problemática. Não nos parece ser o caso de Vieira se
preocupar com questões estilísticas, mas ele tem claramente uma filiação
estética nessa obra que é fruto de uma temporalidade muito demarcada.
Talvez seja o caso de pensarmos em escolhas que refletiam mais os influxos
do autor, suas leituras e tentativas de participar do movimento coevo que
qualquer outra preocupação em termos de forma que para nós se torna tão
imperativo. Seguindo esse caminho, incorremos no risco de anacronismo
pueril, mas não se pode deixar de lado os traços de uma intencionalidade
narrativa e estética dentro do livro, como pode ser facilmente percebido
em alguns excertos particulares logo nos primeiros capítulos.
Uma vez que nos propomos a examinar em linhas gerais sua
História do Futuro como fruto de seu trabalho dentro do Barroco e com os
pés fincados em uma ensaística filosófico-literária, nos propomos a seguir
um esboço de síntese dessa obra monumental, expoente de um estilo que
se confunde e que por si só pode ser tratado em um estudo
individualizado. Em seguida, retomaremos o mote da utopia que se
constrói nessa obra de Vieira e seu diálogo com a estética do período, mas
também com as demais referências culturais que grassavam pela Europa
no contexto dos séculos XVII e XVIII.
Esboço de uma síntese da História do Futuro
É preciso lembrar que o estilo barroco nasceu da crise dos valores
renascentistas ocasionadas pelas lutas religiosas surgidas através da
Contrarreforma e pelas crises econômicas vividas consequentemente pela
falência do comércio com o Oriente. O artista barroco vivia num estado de
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tensão e desequilíbrio, do qual tentou evadir-se pelo culto exagerado da
forma, sobrecarregando a poesia de figuras de linguagem, como a
metáfora, a antítese, a hipérbole e a alegoria. O rebuscamento que aflora
na arte barroca é reflexo do dilema, do conflito entre o mundo terreno e o
celeste, o homem e Deus (antropocentrismo e teocentrismo), o pecado e o
perdão, a religiosidade medieval e o paganismo renascentista, contrastes
que impulsionaram a genialidade dos artistas barrocos.
O livro História do Futuro, escrito pelo padre Antônio Vieira,
constitui-se como uma das mais grandiosas obras da língua portuguesa,
devido à importância do tema abordado, além da eloquência na qual se
desenvolve a narrativa. É uma obra concebida nos moldes barrocos,
adotando um estilo denominado por Conceptismo, marcado pelo jogo de
ideias e de conceitos, seguindo um raciocínio lógico, utilizando ainda uma
retórica aprimorada e consistente. O Conceptismo rivalizava com uma
outra tendência estilística, o Cultismo, caracterizado por uma linguagem
culta, extravagante, além da valorização do pormenor mediante jogos de
palavras. Vieira se opunha ferozmente à essa última tendência, por ser
desfavorável ao virtuosismo poético que caracterizava os escritores
partidários do Cultismo, uma vez que utilizariam as belas palavras como
forma de impressionar, e não como forma de educar. Embora pertencesse
a uma época em que predominasse o rebuscado excessivo das palavras e
do estilo, Vieira não segue a tendência geral dos escritores, empenhandose sempre em ser claro através da simplicidade.
A obra de Vieira é uma significativa testemunha da transição do
espírito do Renascimento para o espírito Barroco, enredado numa nova
angústia e numa nova maneira de estar no mundo. É um espaço de
meditação, que desde logo se transforma num discurso visionário e
profético sem que, todavia, perca de vista o recorte da realidade histórica
e conjuntural.
Vieira alude a respeito do dom de se decifrar enigmas ou profecias
deveras enigmáticas, afirmando que estas requerem uma grande dedicação
ao estudo das Escrituras Sagradas, pois muitos textos tornam-se obscuros
por muito tempo aos olhos dos que se submetem a leitura dos versículos
sagrados, mas que no devido momento, por obra da Iluminação Divina,
tornar-se-iam esclarecidos e límpidos, permitindo a revelação do sentido
oculto contido nas palavras componentes das profecias. Segundo São Paulo,
“a palavra mata, o espírito vivifica”. Essa frase esclarece bem o que Vieira
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afirmava, pois é na essência do sentido transcendente da palavra que se
revelariam os mistérios, não em palavras vazias. Vieira alude ainda ao
profeta Daniel quando cita um relato bíblico, no qual o anjo divino ordenalhe que oculte o sentido das profecias nas quais Deus lhe iluminou a mente,
para que no devido momento, estas se tornem conhecidas e entendidas por
todos. A História do Futuro deve falar não de algo novo por si mesmo, mas
de um novo que estaria implícito na humanidade, que não fora decifrado ao
longo dos tempos pelos sábios estudiosos. Nessa passagem, percebem-se
ecos da tendência conceptista de Vieira.
A História do Futuro foi concebida por Vieira tendo por finalidade a
justificação da crença na possibilidade hipotética da instauração do
aguardado V Império do Mundo, segundo a interpretação de Vieira acerca
das profecias de Daniel, dirigidas ao rei Nabucodonosor. Essas profecias
narram o futuro surgimento de poderosos impérios temporais do mundo,
nos quais os quatro primeiros, de acordo com sua interpretação a respeito
da história das civilizações do mundo Antigo seriam, nesta ordem, o
Assírio, o Persa, o Grego e o Romano, que se sucederam continuamente,
estando o IV Império, o Romano, segundo Vieira, em plena vigência no
período em que essa obra foi escrita, em meados do século XVII,
apresentando-se na figura do poderosos Sacro Império RomanoGermânico, um dos impérios europeus que surgiu a partir da queda do
Império Romano do Ocidente.
O aguardado V Império do Mundo envolve-se numa grandiosa
aura de mistério, passível das mais diversas especulações teológicas.
Vieira, baseando-se nas suas interpretações da profecia de Daniel, afirmará
que o V Império será o de Portugal, para justificar tal afirmação, utilizará
uma série de estudos comparados por um paralelismo entre a história
religiosa contida nas Escrituras Sagradas, e a história temporal até então
vigente no seu tempo. Assim, compara o domínio do Império Persa,
comandado por Ciro, com o domínio hispânico sobre Portugal ficou sob o
jugo espanhol, de 1580 a 1640.
É importante situarmos o contexto histórico desse momento. A
União Ibérica, foi a aglutinação do Reino de Portugal ao de Espanha, uma
vez que o primeiro, sofrendo a decadência militar, decorrente de graves
crises econômicas, uma vez que sua balança comercial portuguesa,
característica tipicamente mercantilista, apresentava um constante déficit
na relação com outros países, sobretudo Inglaterra.
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Em 1578, o rei português D. Sebastião desapareceu
misteriosamente na Batalha de Alcácer-Quibir, lutando contra os árabes,
no Norte da África. Por não deixar descendentes, o trono de Portugal foi
ocupado por seu tio-avô, o velho Cardeal D. Henrique, que, no entanto,
falece em 1580. Com a morte deste último, extinguia-se a Dinastia de Avis,
que se encontrava no trono desde 1385, com a ascensão de D. João I, Mestre
de Avis. Vários pretendentes reivindicaram ao trono vago: D. Catarina,
Duquesa de Bragança; D. Antônio, Prior de Crato, além do poderoso
monarca espanhol Filipe II, que descendia, pelo lado materno, em linha
direta, do rei D. Manuel, o Venturoso, que reinou nos tempos de Cabral.
Vieira afirma que Portugal estaria sob dominação espanhola por
uma necessidade de expiar as faltas de seu povo, da mesma maneira pela
qual Israel sucumbiu perante o exército de Ciro. Segundo o relato do Velho
Testamento, após um período de setenta anos, Ciro, submetendo-se aos
imperativos de Jeová, concedeu a liberdade para os hebreus.
Aproveitando-se desse fato histórico e de uma profecia do célebre São
Bernardo de Claraval, na qual se narrava a dominação de Espanha sobre
Portugal por um prazo de sessenta anos, fim do qual os lusos obteriam a
antiga autonomia, Vieira faz outra comparação dos fatos históricos, de
maneira que se concedesse uma aura de intervenção divina pelo término
da União Ibérica. Vieira afirma que o Reino de Espanha, por ser um reino
fiel ao Cristianismo, não cometeria a insolência de se revoltar contra os
desígnios divinos, pois sofreria como pena o peso da cólera divina que se
insurge contra os infiéis.
Vieira, utilizando da autoridade de várias profecias do Velho
Testamento, afirma que estas legitimariam a expansão de Portugal pelo
mundo, impondo um jugo santo sobre os povos de diversos continentes,
como se o Império de Portugal conduzisse junto com suas armas o
estandarte de Cristo, trazendo para os povos gentílicos a civilização
através do legado da civilização europeia, representando a Luz de Cristo a
guiar os povos.
Segundo sua interpretação de uma profecia de Isaías, afirmava que
na colônia do Brasil encontrar-se-iam um povo cujos habitantes estariam
próximos ao estado de pureza e inocência como no Jardim do Éden, que
teve em Adão o primeiro homem. Essa região seria localizada numa região
do atual estado do Maranhão, na região Nordeste do Brasil. Assim,
podemos constatar a grande preocupação de Vieira para com os indígenas,
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uma vez que considerava estes como descendentes diretos de Adão, mas
que, no entanto, viveriam em total estado de pureza, por não sofrerem do
mal oriundo do pecado original.
Portugal, representando a sede do V Império do Mundo,
sucedendo aos quatro já citados, há de ser mui diferente destes, pois esses
quatro impérios passaram pelas etapas de ascensão, apogeu e queda,
enquanto o glorioso Império de Portugal há de se perpetuar até o Segundo
Advento de Cristo, quando então não haveria mais tempo, somente a
eternidade. Vieira estava profundamente vinculado ao pensamento
milenarista, de tendência escatológica, caracterizado pela crença num
período de paz e harmonia de 1000 anos até a volta de Cristo à Terra,
quando haveria a grande batalha contra as forças do Mal, além da
separação entre justos e injustos. Para o advento do Império de Cristo na
Terra, seria necessária a realização da fórmula que obsidia o pensamento
milenarista, “unum ovile unus pastor”: a conversão universal e a redução de
todas as religiões, heresias e seitas a uma única religião. Essa síntese,
logicamente, incluía o povo judaico, motivo aproveitado pelo Santo Ofício
para perseguir ferozmente Vieira, principalmente, por em meados do
século XVII a perseguição aos judeus ser absolutamente feroz.
Vieira especula ainda a respeito do âmbito do V Império, se será de
caráter temporal, somente espiritual ou simultaneamente temporal e
espiritual. Essa questão sempre despertou as mais diversas controvérsias
entre teólogos e estudiosos dos textos sacros ao longo do tempo. Mais uma
vez Vieira se utiliza de seu estilo conceptista, ao apresentar as três teses e
comparando cada uma com o texto bíblico, de forma que por fim são
refutadas as duas primeiras hipóteses, enquanto a terceira é considerada a
verdadeira. Unindo os caracteres temporais e espirituais, baseando-se no
testemunho bíblico “a ele foi concedido o poder sobre céus e Terra”, Vieira
afirma que o V Império se expressará de duas formas, sendo cedido a D.
João IV o poder temporal, e ao Papa o poder espiritual. Vieira acreditava
piamente na ressurreição de El-Rei D. João IV, restaurador da monarquia
portuguesa, e toda a possibilidade da aparição do V Império, está
vinculado na crença de, um dia, D. João IV renascer para guiar os povos
enquanto chefe temporal ruma ao Fim dos Tempos. O V Império do
Mundo colocaria D. João IV como imperador dos Últimos Dias, que
restauraria a glória de Portugal, fundado o Reino dos Mil Anos,
preparando a segunda descida de Cristo aos homens.
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A História do Futuro reflete as esperanças do Padre Antônio Vieira
no ressurgimento do Império de Portugal como grande potência militar,
uma vez que no século XVII era um Estado decadente, muito distante da
dignidade e da grandeza que o caracterizaram no período das Grandes
Navegações e descobertas de territórios. O sonho de Vieira era reconduzir
Portugal ao posto de vanguarda entre os reinos da Europa, como um
império santo que demonstrasse todo o esplendor da glória de Cristo entre
os homens. Vieira se recorda nostalgicamente, portanto, do passado
expansionista de Portugal e a importância dele nas Cruzadas, onde muitos
lusitanos tombaram em defesa do baluarte cristão.
A obra, o artista, o ideal
Logo de início, Vieira deixa claro que sua História do Futuro é, em
síntese, a história de um Quinto Império do mundo. É, portanto, uma visão
teológico-política sobre a ordenação de uma sociedade com todos os
predicados de uma utopia, nos mesmos moldes de toda a tradição que trata
desse mesmo tema. Não se configurando como uma cidade do sol, como
no texto de Campanella, em sua estrutura, mas de forma muito incisiva em
seus ideais. Ele recorre a uma explanação consistente, de natureza
catequética, como não poderia deixar de ser, para apresentar suas ideias
que levam o leitor à conclusão esperada pelo próprio autor. O Quinto
Império é Portugal, o que se desdobra ao longo da obra é uma
demonstração disso em termos muito persuasivos.
O tom assumido por Vieira em seu texto é de uma homilia, mas não
se prende a isso de forma intransigente. Ele escreve em uma linha muito
limítrofe entre o ensaístico familiar e o ficcional, uma vez que traz diversos
elementos alusivos a uma narrativa, nos mesmos termos em que More
escreve sua Utopia. Se trata, pois, de uma descrição, mas em corpo
narrativo, dessa sociedade perfeita que deve se impor ao mundo e lhe
assegurar um sentido outro. Podemos notar, no excerto a seguir, que ele
usa ao mesmo tempo um viés persuasivo, como seria em um discurso
eclesiástico, mas também faz uso de uma descrição sumária, que tenta
apresentar todos os elementos que permitam uma visualização cabal por
parte do leitor do que ele está tentando pintar com suas palavras:
E em quantas províncias achou o Evangelho fechadas as portas e,
depois que o comércio bateu a elas, as teve abertas e francas? O
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primeiro rei de Portugal que se intitulou rei do comércio da Etiopia,
Arábia, Pérsia e dia foi o que introduziu a Fé na Índia, na Pérsia, na
Arábia e na Etiópia. Se não houvesse mercadores que fossem buscar a
umas e outras Índias os tesouros da terra, quem havia de passar lá os
pregadores que levam os do Céu? Os pregadores levam o Evangelho,
e o comércio leva os pregadores. S. Tomé, que levou do Brasil à Índia
o Evangelho, quando não havia comércio, houve de caminhar (como é
tradição) por cima das ondas, porque não teve quem o levasse; e o
segundo Apóstolo do Oriente, querendo pregar na China, traçou que
o pregador entrasse como negociante, para que a Fé tivesse lugar como
mercadoria (Vieira, 2022, p. 41).
O uso de indagações para conduzir o raciocínio do leitor é
característico do gênero argumentativo, que ele adota de forma muito
incisiva em todo o texto. Sempre recorrendo a estratégias de validação de
suas ideias, uma vez que trata de um tema polêmico, sobre o qual muitas
outras impressões podem se sobrepor, o autor tenta comprovar que seus
apontamentos estão seguindo a lógica mais exata e insofismável. Sua
sintaxe, por sua vez, é muito tênue, sem apegar-se a formulações
gongóricas, o que pode ser encarado também como um recurso adotado
por ele para deixar ainda mais nítido o corpo de demonstração de suas
teses, que aparecem desde o início da obra, quando ele assevera que o
Quinto Império pode ser descrito em linhas muito elucidativas, restando a
cada um concluir por si mesmo se tais premissas são válidas ou não.
O Conceptismo se torna evidente por meio de seu jogo de ideias,
pelas analogias e o pensamento lógico. No excerto acima, estamos diante
de uma mostra inequívoca tanto desse jogo de ideias quanto do uso de uma
linguagem racionalizada, que busca a comprovação de maneira
sofisticada. Por outro lado, como já afirmamos aqui, Vieira não se apega a
um léxico marcado pelo preciosismo nem pelo gongorismo, como era o
caso de outros autores do Barroco, que se registravam nessas escolas com
uma pompa exacerbada para o texto em si. Seu estilo é muito mais conciso,
enxuto e límpido, com uma sutileza na construção das frases e do período,
com um vocabulário que não exige essa inclinação a uma norma
essencialmente rebuscada.
Como sermonista, Viera tinha uma forte predisposição a usar em
seu texto uma série de recursos estilísticos que fosse possível contribuir de
forma decisiva para a aceitação de seu argumento, de sua tese. Ao
olharmos com mais cuidado o material que ele apresenta em sua História
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do Futuro, também notamos essa sua estrutura básica de compor seu tecido
comunicativo. A engenharia de seu texto é inconfundível, até mesmo no
registro de escolha lexical, que marca um uso mais fluido de seu projeto
expressivo. Ele não foge do uso do latim em algumas passagens, como
podemos acompanhar em todo o documento, mas isso não faz com que
sua morfologia se torne estranha ou se desvirtue do conjunto. Ainda,
apesar do latim, estamos diante de uma composição muito clara e lúcida,
com um poder de compreensão muito elevado, distanciando de forma
contundente do gongorismo que prevalecia, por exemplo, na poesia de
autores da mesma escola.
Em seu livro A Cidade do Sol, Campanella faz a seguinte descrição
de seu mundo utópico:
Apresentamos, pois, a nossa república, não como dada por Deus, mas
como uma descoberta filosófica e da razão humana para demonstrar
que a verdade do Evangelho é conforme à natureza. Se, em algumas
coisas, nos afastamos do Evangelho, ou parece que nos afastamos, isso
não se deve atribuir à impiedade, mas à fraqueza humana, que, à falta
de revelação, julga justas muitas coisas que à luz da mesma não o são,
como podemos dizer da comunidade dos matrimônios. Foi por isso que
imaginamos a nossa república no gentilismo que espera a revelação de
uma vida melhor e que, vivendo segundo os ditames da razão, merece
possuí-la. Além disso, são catecúmenos da vida cristã, razão que levou
Cirilo (90) a dizer, contra Juliano (91), que a filosofia foi dada aos gentios
como catecismo para a fé cristã (Campanella, 2022, p. 29).
O autor deixa muito evidente que sua república, ou seja, sua utopia,
não é em termos religiosos. Ela se trata de uma construção social, política,
filosófica. Está fundada em um pensamento lógico-social, que tem como
alvo a construção de um mundo ideal a todos os indivíduos. Se impõe,
assim, como o resultado dos esforços da humanidade para superar suas
limitações, para criar as bases de um novo mundo. Diferencia-se, por sua
vez, da descrição que faz Vieira de sua utopia, que está fundada no
Evangelho, não em termos muito precisos, mas de forma bastante
transversal. Em seu texto, Vieira não se furta a afirmar que o Quinto
Império, sua república ou mundo utópico, é o resultado de uma conjuntura
não apenas social e política, mas sobretudo religiosa, fazendo parte de um
plano supremo.
Já em sua Utopia, Thomas More traz a seguinte descrição, que nos
ajuda a entender como ele concebeu seu utopismo de uma sociedade ideal
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e que tipo de conjuntura e estrutura prevalece nesse cenário de adequação
aos anseios da humanidade pela perfeição: “Os utopianos aprendem as
ciências em sua própria língua, rica e harmoniosa, intérprete fiel do
pensamento; ela é difundida, mais ou menos alterada, sobre uma grande
extensão do globo” (MORE, 2022, p. 36).
Em sua construção de um mundo ideal, de uma sociedade com
todos os traços de uma perfeição material, More traz a ciência, o
conhecimento estruturado, como parte desse construto social e político. Se
trata, pois, de uma conjuntura que atende aos anseios e ideais filosóficos,
científicos. Em termos comparativos, podemos levar esse raciocínio ao do
Iluminismo, que desponta desse mesmo contexto que se inicia com o
Renascimento Cultural ainda no século XVI. É a partir disso que More cria
seu mundo exemplar, de um ideal do pensamento racional sobre as
crendices, sobre o pensamento fantasioso. Não é, portanto, uma sociedade
que surge da volição divina, como é o caso da utopia de Vieira, que ele
deixa claro sua tessitura no seguinte excerto de sua História do Futuro:
E basta que nesta última idade, como decrépita, daquela estátua ou
daqueles reinos se haja de levantar o Quinto Império, para que com
toda a verdade e com toda a propriedade se verifique havê-lo Deus de
levantar nos dias daqueles reinos; in diebus regnorum illorum. Assim
que o Império que promete Daniel não é império já passado, senão que
ainda está por vir (Vieira, 2022, p. 13).
Em Vieira, a república ideal, que na verdade é tida como um reino,
como um império em sua organização sociopolítica, ou apenas
terminológica, uma vez que não temos elementos para crer que se trate de
um império no modelo historiográfico contemporâneo ou dentro da teoria
mais aceita nesse sentido, se constrói em função da determinação de um
conjunto de forças que encontra sua inspiração na divindade. Portanto, não
se trata de uma sociedade secular, fruto das ambições e achaques dos
homens e suas paixões, mas resultado de um plano teológico que impõe
essa ordem ao mundo de uma forma ou de outra, que deve se cumprir
como toda profecia.
É por isso que o tom homilético de Vieira em seu texto se superpõe
ao descrito e de teor mais literário, como se fosse de fato um ensaio sobre
um mundo outro, utópico, que denota uma percepção social de seu tempo
e de seu povo em relação ao que Portugal deveria se tornar em um futuro
próximo ou distante. Ele tenta, na verdade, tecer as linhas de uma
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comprovação teológica, em cima do Evangelho, não na acepção apenas dos
textos canônicos sobre a vida e obra de Jesus, mas de todas as Escrituras
Sagradas. O estilo, portanto, se coaduna a seus propósitos, sobretudo o de
validar seu ponto de vista. Mesmo aderindo ao Barroco, Vieira escreve
para os leigos, para lhes dirigir o pensamento, como se seu texto fosse um
mantra, daí sua predileção nessa sua História do Futuro pelo Conceptismo.
São os raciocínios cuidadosamente elaborados, as comparações, analogias
e jogos de ideias que darão sustentação a suas ideias teológica um tanto
surpreendentes.
Nesse sentido, podemos afirmar que a obra de Vieira entra em uma
ruptura com A Cidade do Sol de Campanella e a Utopia de Thomas More,
não apenas em seu elemento coesivo de apresentação do cenário utopista,
mas também em sua visão sobre como se edificam essas sociedades ideais
e como elas devem ser apresentadas e ratificadas para todas as pessoas. Se
More e Campanella optam pelo discurso filosófico, recorrendo inclusive a
tradição pregressa, remontando aos gregos, Vieira segue por um caminho
diametralmente oposto, partindo da própria forma e estruturação do texto
canônico para compor seu material elucidativo e comprobatório. Seu
mundo utópico é um que surge da volição de Deus, que foi predito por
seus seguidores, por seus fiéis, e ele, que se enquadra nessa mesma
categoria, é o responsável por demonstrá-lo em seu mescla de ensaio
familiar e narrativa teológica. Nesse âmbito em especial é muito difícil se
apegar a definições muito precisas e classificações que não sejam tão
polissêmicas, a obra não permite tais incursões.
Em toda a sua dimensão estilística, a História do Futuro se encaixa
nesse movimento Barroco que desponta tanto em Portugal quanto no Brasil,
com suas devidas nuances. Como já afirmamos, seguida de uma análise
parcial, a própria linguagem usada por Vieira nos permite chegar a essa
ilação muito facilmente. A temática, o que ele tenta descrever com sua obra,
também é um mote muito caro à corrente literária. Além disso, seu jogo de
palavras, a forma como ele, mesmo em um texto de cunho mais teológico,
faz referência a elementos racionais, em uma acepção clássica que remonta
à Renascença. Tudo isso, de forma muito visceral, nos evidencia sua filiação
ao movimento Barroco e ao Conceptismo de forma particular, mas também
fazendo um gancho inviolável com nossa abordagem sobre sua inclinação a
escrever sua própria utopia dentro desse parâmetro que se fixa em toda a
Europa nesse contexto dos séculos XVI e XVII.
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Rumo ao epílogo
Quando nos deparamos com um autor como o Padre Antônio
Vieira temos um certo distanciamento de sua produção literária. Talvez
pelo fato de ser um clérigo que escrevia majoritariamente em um tom
catequético. Hoje nós acreditamos, quase sempre erroneamente, que
estamos diante desse tipo de literatura, se é que podemos empregar a
palavra literatura nessa acepção. Isso nos leva a ter certa aversão à obra de
Vieira e a seus principais trabalhos, sempre encarados como muito avessos
ao que estamos mais habituados em nossa sociedade globalizada, pósmoderna, repleta de uma coletânea de textos muito mais convidativos do
ponto de vista estético e formal.
Assim, livros como sua História do Futuro são quase sempre
largados de lado. Quando muito são alvo de estudos e pesquisas na
academia, que não interessam a nenhum público específico. Mas temos
motivos para acreditar que esse se trata de um texto verdadeiramente
curioso para uma leitura, mesmo que ela inicialmente possa não parecer
muito otimista. Não estamos diante de um romance balzaquiano, nem
mesmo de um lirismo camoniano. Não se trata de nada disso, mas a obra
de Viera pode ter um contraponto e ao mesmo tempo uma convergência
com outros trabalhos que são muito apreciados mesmo nesse contexto do
nosso cenário mais atual.
Em nosso estudo, que agora tentamos finalizar com algumas
considerações nada conclusivas, tentamos demonstrar justamente sua
vinculação ao Barroco enquanto escola literária em evidência no tempo de
Vieira e sua aproximação com um estilo muito mais popularesco mesmo
dentro de uma corrente tão dada ao cultismo. Aliás, cultismo nada mais é
que um sinônimo para o Barroco, também evidenciado de maneira muito
precisa em seus elementos primordiais. A tentativa de Vieira era, pode-se
supor, mas não comprovar de fato, parecer compreensível e ao mesmo
tempo enquadrado em um movimento que imperava em seu momento de
cultivo das letras.
Por outro lado, tanto a História do Futuro é um livro que se pode
dizer não foge do emblema catequético como tem um traço muito mais
instigante, o que pode render bons frutos em termos de leitura e
apreciação. Sua aproximação com outros textos, desta feita filosóficos, que
foram escritos dentro do mesmo período, e, portanto, em uma mesma
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historicidade, pode nos dizer muito sobre que tipo de pensamento
grassava pela Europa nesses conturbados séculos XVI e XVII, em uma zona
muito limítrofe entre Renascença e Iluminismo, que seria tema mais
apropriado para os historiadores da civilização que para nós aqui.
Por isso, talvez, este seja um texto que se intitula rumo ao epílogo. Há
muito a ser considerado sobre a História do Futuro e sua associação direta e
indireta com outros textos da tradição filosófica e literária da Europa,
Portugal e o que se escrevia também aqui no Brasil. Não temos como
examinar em detalhes tudo isso em nosso trabalho aqui, ele soa mais como
uma nota de rodapé de um produto muito mais denso. Apresentamos,
portanto, de forma sucinta, suas bases teóricas e metodológicas. Temos os
instrumentos para verificar tais influxos em Viera e a forma como seu texto
transita nessa linguagem e dentro de uma temática tão soberba. Vieira,
assim, nos leva à sua própria utopia, escrita em caracteres teológicos, mas
sem o costumeiro pedantismo e toque longínquo que a igreja empregava
em seus sermões.
REFERÊNCIAS
CAMPANELLA, Tommaso. A cidade do sol. Brasília: Domínio Público, 2022.
MELO, Sangia de. Argumentação e persuasão: o Sermão da Sexagésima do Padre
Antônio Vieira. 2005. Dissertação (Mestrado em Literatura e Crítica
Literária) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005.
MORE, Thomas. Utopia. Brasília: Domínio Público, 2022.
VIEIRA, Antônio. História do Futuro vol. 1. Brasília: Unama, 2022.
VIEIRA, Antônio. História do Futuro vol. 2. Brasília: Unama, 2022.
Recebido em 4 de janeiro de 2023
Aprovado em 2 de outubro de 2023
Licença:
Roberto Nunes Bittencourt
Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Expressão
Portuguesa) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Estudos de Literatura pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Graduado em Letras pela Universidade Gama
Filho.
Contato:
[email protected]
: https://orcid.org/0000-0002-9022-2963
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