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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Eliane de Freitas Leite - Bibliotecária - CRB 8/8415
O Catolicismo no mundo contemporâneo
[livro eletrônico] : debatendo
o intransigentismo no Brasil / organização
Ana Rosa Cloclet da Silva,Philippe RoyLysencourt, Rodrigo Coppe Caldeira. -Campinas, SP : Editora Saber Criativo, 2024.
PDF
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-87446-83-7
1. Cristianismo 2. Igreja Católica 3. Igreja
Católica - Influência 4. Modernidade I. Silva,
Ana Rosa Cloclet da. II. Roy-Lysencourt, Philippe.
III. Caldeira, Rodrigo Coppe.
24-243115
CDD-282.09
Índices para catálogo sistemático
1. Igreja Católica : Interculturalidade : História
282.09
Sumário
Prefácio
9
Douglas F. Barros
A intransigência católica como
resposta à modernidade
17
Ana Rosa Cloclet da Silva
Philippe Roy-Lysencourt
Rodrigo Coppe Caldeira
O Catolicismo intransigente
37
Gilles Routhier
Pensar o catolicismo intransigente
para o Brasil do século XIX
73
Ítalo Domingos Santirocchi
Os católicos tradicionalistas e a
recepção do Concílio Vaticano II
99
Philippe Roy-Lysencourt
Catolicismo intransigente: análises
das disputas ao redor da construção
da Constituição Pastoral Gaudium et Spes
135
Tiago Tadeu Contiero
Integrais na fé católica: o integrismo
doutrinário e operativo da Sociedade
Brasileira de Defesa da Tradição,
Família e Propriedade (TFP)
Gizele Zanotto
165
Navegando em águas turvas:
a recepção tefepista do Concílio Vaticano II
193
Víctor Almeida Gama
Campos dos Goytacazes:
uma diocese atípica na história
do catolicismo brasileiro
227
Vinícius Couzzi Mérida
Autoras e Autores
253
Lista de Quadros
259
Índice Remissivo
261
Prefácio
Douglas F. Barros
O conceito de intransigência envolve a ideia de rigidez
e inflexibilidade. Quando pensado sob o prisma dos
historiadores, a noção encarna-se numa tensão. O estudo
da História supõe investigar o movimento, a transição entre
períodos no tempo, entre valores, costumes, moedas, grupos
e o entrelaçamento de indivíduos em uma dada sociedade,
para impulsionar e engendrar novas formas sociais e políticas.
A História investiga a transitividade e a transformação.
Intransigente na História é o ato que tenciona conter a
afluência destruidora da passagem do tempo.
Os estudos do catolicismo romano referidos ao
intransigentismo remetem à investigação de tensões
assumidas pela Igreja e seus representantes em face às
mudanças gestadas pela e na modernidade. As crises
que precederam o grande evento transformador da
história europeia e mundial no século XVIII alteraram,
definitivamente, a nossa compreensão acerca do telos da
história. A ordem do tempo, ensinou-nos Agostinho,
envolve a percepção humana acerca da memória, intenção
e espera (passado, presente e futuro). As criaturas em sua
finitude instransponível encaminham-se à salvação apenas
no reencontro com Deus na eternidade: o tempo escoa em
uma só direção.
10
A Revolução Francesa impôs um desarranjo completo
na compreensão sobre as possibilidades de passagem do
tempo. A ordem do tempo secular é atravessada pelas forças
políticas em sintonia com a projeção de transformações
vinculadas a grupos específicos. Na História, são gestadas
tanto uma ordem política, que incorpora estratos sociais
excluídos dos jogos do poder, como a ruptura da influência
da Igreja sobre os negócios do Estado. Além disso, forjase outra compreensão acerca do cidadão, vinculando a esse
novo personagem uma nova acepção acerca dos direitos e da
própria condição humana.
A reação natural de certas correntes do catolicismo
romano foi a de responder na forma de intransigência a
essa imposição transformadora oriunda no tempo secular.
Observado em perspectiva histórica, esse posicionamento
intransigente foi, por um lado, multifacetado e, por outro,
permeado por contradições. Como dissemos, a postura
intransigente envolve a inflexibilidade. Contudo, a
investigação dos documentos do catolicismo europeu e
do que se enraizou nas Américas desde o século XIX nos
autoriza a concluir que o intransigentismo adquiriu uma
multiplicidade tamanha que dificulta, quando não impede,
o emprego da terminologia rígida ao caso.
Sabe-se que as reações do catolicismo à modernidade
liberal, que se ergue após a Revolução, originaram-se em
várias frentes. Algumas delas são claramente antimodernas,
outras alinham-se a uma reação tradicionalista acerca dos
costumes, restauracionista em relação ao protagonismo
social e político da Igreja, mas afeita e identificada aos
novos horizontes abertos pela economia de mercado. O
11
intransigentismo refere-se tanto a uma reação frontal e
programática ao liberalismo como à incorporação de novos
ventos que modulam a nascente sociedade civil desde antes
da Revolução, a qual se tornou, no geral, cada vez menos
instruída, segundo os princípios doutrinários católicos.
O catolicismo da reação intransigente na Europa
do século XIX apresentou-se como uma barreira. Em sua
origem, ele visava conservar as prerrogativas da Igreja diante
da influência dos poderes terrenos. Desde o século XVI, em
inúmeras regiões, alastrou-se uma movimentação política,
indicando e exigindo o desgarramento dos novos atores,
alheios ao poder monárquico, em face do poder religioso.
A elaboração filosófica em defesa da liberdade política e
individual, desde a publicação das obras de Maquiavel,
alimentou o espírito insurgente, até a eclosão da grande
Revolução. O combate ao cânone eclesiástico traduziu-se
na crítica, na confrontação teórica e na desmontagem das
hierarquias afiançadas pelas tradições hereditárias. Emergiu
o cidadão livre e aquele que luta pela emancipação e conquista
de direitos. A disputa política constituiu-se em torno de
demandas pela ampliação de direitos civis e humanos
fora do abrigo eclesiástico. A reação de intransigência não
admitia a conciliação com os novos tempos: parte da Igreja
reafirmava-se como a matriz e moldura insubstituível – a
forma e o conteúdo – do todo social.
Incapaz de resistir à força dos eventos transformadores,
a barreira representada pelo intransigentismo modelou-se
para atuar seja como voz de oposição a essa nova realidade
originada pelo liberalismo político, seja observando, na
recente configuração social e política europeia, um novo
12
lócus de atuação. A sociedade de perfil mais horizontal se
abria para a agência eclesiástica por meio de organizações
sociais mensageiras das doutrinas assentadas na tradição do
catolicismo e resistentes à aceitação (liberal) do pluralismo
religioso e do Estado laico.
As novas feições da reação intransigente ajustaramse ao século XX. Expoentes da atuação religiosa secular
fortaleceram-se e fincaram raízes além das fronteiras
europeias, com a estratégica de manter acesa a chama
da integridade doutrinária e da restauração dos valores
tradicionais. Na travessia para as Américas, a muralha
reivindicou a manutenção da imunidade da Igreja aos ideais
liberalizantes de valores morais tradicionais, questionadores
da infalibilidade papal e refratários à obediência hierárquica
eclesial, entre outros aspectos. Tais posições foram
suficientes para manter o intransigentismo influente, social
e politicamente.
A mudança doutrinária que caracterizou no Concílio
Vaticano II, já nos anos de 1960, reacendeu o espírito de
combate intra e extra eclesial. A Igreja em transformação
tornou-se um alvo da reação intransigente. A resistência
às mudanças na ritualística e no modo de ser e de agir do
catolicismo pulverizou-se. Diferentes grupos e tendências
do catolicismo assumiram posições que vão desde a negação
da legitimidade conciliar até os que se alinham e endossam
pontos nevrálgicos das novas diretrizes doutrinárias.
A oposição às decisões e às transformações após o
Concílio Vaticano II atualizou a resistência modernizadora.
Ademais, o clamor migrou para os apoiadores conciliares e da
Doutrina Social, que cobraram dos católicos e da Igreja uma
13
adesão intransigente à causa dos pobres no Brasil, na América
Latina e no restante do mundo. A opção intransigente pelos
excluídos de todos os matizes apresentou-se como o mote
transformador e pilar sustentador da Igreja Católica, desde
a Conferência de Puebla. A reivindicação intransigente
difundiu-se em várias frentes, inclusive no cristianismo
protestante. O fato de o intransigentismo apresentarse contemporaneamente como desafio ao escrutínio dos
estudiosos deve-se tanto ao prolongamento de sua influência
no tempo como à variada atuação no âmbito eclesial e na
sociedade como um todo.
O conceito de intransigência adquire, assim,
pertinência e atualidade a ponto de constituir, desde o século
XIX, um tema incontornável aos estudos do catolicismo.
Compreender o intransigentismo hoje exige do estudioso
a investigação de uma diversidade de fenômenos, que só
podem ser descritos cada qual em sua singularidade. A
avaliação da sua abrangência semântica é uma chave de
acesso ao estudo das transformações do catolicismo e do
cristianismo, em sentido amplo, desde o seu enraizamento
local na Europa, após a Revolução Francesa, e nas Américas
desde o século XIX, até a sua difusão e atuação global no
século XX e na atualidade.
É valiosa a contribuição do livro “O catolicismo no
mundo contemporâneo: debatendo o intransigentismo no
Brasil” para os estudos em Ciências da Religião, História
das Religiões e Teologia, em curso tanto na Europa como
nas Américas. O livro ora apresentado é resultado de
investigações desenvolvidas por vários autores. Resulta,
particularmente, de cooperação nacional e internacional
14
entre pesquisadores em Ciências da Religião, Teologia,
História e Filosofia da PUC-Campinas e da PUC Minas
(Brasil) e da Université Laval (Canadá).
O Colóquio Internacional “História do catolicismo
no Brasil: debatendo as múltiplas faces do intransigentismo
(séculos XIX-XXI)”, realizado entre os dias 8 e 12 de maio de
2023, acolheu pesquisadores e especialistas das Universidades
acima e da Universidad de Buenos Aires (Argentina, apoiados
pelo Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y
Técnicas – Conicet), da PUC-SP, da Universidade Federal
do Maranhão (UFMA), da Universidade de Passo Fundo
(RS) e do Centro Universitário Claretiano. No decorrer
dos debates, avaliou-se desde a pertinência e atualidade do
conceito até suas ramificações e abrangência semântica na
história contemporânea. Além disso, o tema foi aprofundado
no curso “Tópicos em Ciências da Religião”, voltado a
discentes da pós-graduação, da graduação e convidados
da comunidade acadêmica interessados, ministrado pelos
professores Dr. Gilles Routhier (Université Laval), Dr.
Philippe Roy-Lysencourt (Université Laval), Dra. Ana
Rosa Cloclet da Silva (PUC-Campinas) e Dr. Rodrigo
Coppe Caldeira (PUC Minas). A realização de Seminários
Temáticos no evento possibilitou o debate junto aos pósgraduandos, distribuídos em Grupos de trabalho segundo
os temas: “Catolicismo e Protestantismo”; “Religião, Política
e Teologia no espaço público”; “Mística e Espiritualidade”;
“Religião e Arte” e “Perspectivas de pesquisa em Ciências
da Religião”.
O leitor encontrará no livro um mapeamento da disputa
conceitual em torno do intransigentismo. É cristalina a intenção
15
dos autores de abrir o debate entre nós e desafiar os limites das
formulações que circunscrevem o tema a um episódio perdido
na poeira das estantes, que costuma enfocar o catolicismo
francês e o italiano no século XIX. O estudo qualificado e
abrangente acerca da intransigência religiosa, do século XIX
aos dias atuais, joga luz sobre as matrizes teóricas e doutrinárias
das várias manifestações, oposições e alinhamentos estratégicos
do catolicismo e do cristianismo contemporâneos.
Ótima leitura!
Campinas, setembro de 2024
A intransigência católica como
resposta à modernidade
Ana Rosa Cloclet da Silva
Philippe Roy-Lysencourt
Rodrigo Coppe Caldeira
O estudo da Igreja Católica contemporânea, bem como
das várias manifestações do catolicismo nas sociedades
seculares, envolve um debate conceitual que, nas últimas
décadas, tem buscado dar conta da complexa relação
entre religião e modernidade.1 Um desses conceitos é o de
1
LAGRÉE, Michel. Religion et modernité, France, XIXeXXe siècles. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2015;
LAGRÉE, Jacqueline; PORTIER, Philippe Portier (org.).
La Modernité contre la religion ? Pour une nouvelle approche
de la laïcité. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010;
LIBÂNIO, João Batista. Igreja contemporânea: encontro com a
modernidade. São Paulo: Edições Loyola, 2000; SILVA, Ana
Rosa Cloclet da; COSTA, Estela Maria Frota da. A Igreja
perante a modernidade: uma análise das encíclicas papais
no século XIX. Estudos de Religião, v. 35, p. 331-358, 2021;
SILVA, Ana Rosa Cloclet da; CARVALHO, Thais Rocha.
A Cruzada ultramontana contra os erros da modernidade.
Revista Brasileira de História das Religiões, v. 35, p. 9-42, 2019;
SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. O paradigma tridentino
e a Igreja Católica no Brasil oitocentista: modernidade
e secularização. Reflexão, v. 42, n. 2, p. 169-181, 2017;
CALDEIRA, Rodrigo Coppe. Os Baluartes da Tradição: o
conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II.
Curitiba: CRV, 2011.
18
“intransigência”, que se refere a uma das respostas da Igreja
aos desafios desencadeados – ou no mínimo acentuados –
pela Revolução Francesa (1789). De forma resumida, podese afirmar que este evento de inegáveis proporções – que
“afetou o mundo inteiro, extensivamente, e todos os homens,
intensivamente” –2 acelerou consideravelmente um processo
que já estava em curso há séculos: a secularização.
Catalisada pelo liberalismo, que pôs em evidência
a autonomia do sujeito e a liberdade de consciência, a
secularização gradualmente se tornou a nova norma nas
sociedades contemporâneas. Por um lado, acentuouse a oposição entre o espiritual e o secular – que esteve
na origem do sentido canônico e político-jurídico do
conceito –,3 acelerando a perda do poder temporal da
Igreja diante da emergência de novos Estados pautados nos
atributos conferidos pela soberania popular, que já podiam
2
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise. Tradução: Luciana
Castelo-Branco. Rio de Janeiro: EDUERJ/Contraponto,
1999, p. 10.
3
Quanto ao sentido eclesiástico-jurídico, o conceito de
secularização foi usado primeiramente em francês, ainda no
século XVI, para designar a transferência de um clérigo regular
para o status secular. Fora dos muros da Igreja, comportou uma
conotação político-jurídica desde a Paz de Vestfália (1648),
referindo-se ao processo jurídico de expropriação de posses e
confisco de bens eclesiásticos pelos Estados modernos. Sobre
este sentido histórico do termo, diversos autores concordam
que não há como hesitar, sendo esta a acepção originalmente
presente na obra de Max Weber. PIERUCCI, Antônio Flávio.
Secularização em Max Weber: da contemporânea serventia de
voltarmos a acessar aquele velho sentido. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, v. 13, n. 37, 1998.
19
prescindir dos fundamentos religiosos do poder.4 Por outro,
simultaneamente a esse processo, a secularização adquiriu
uma dimensão histórico-filosófica, em que todos os esquemas
interpretativos do mundo passaram a ser submetidos ao
imperativo da “temporalização”. Segundo Koselleck, a
categoria “temporalização” traduz a mudança subjetiva na
percepção do tempo, característica da modernidade: um
tempo acelerado, ditado por processos inerentes ao mundo
– em nível político, tecnológico, demográfico – que, desde
a Revolução Francesa, autonomizou-se em relação às
expectativas escatológicas cristãs, implicando que a solução
para os problemas e desafios do tempo histórico passasse a
ser buscada “dentro do próprio tempo histórico”.5
O dinamismo imposto por mudanças incessantes
e sem precedentes – que remontam ao nascimento de
uma Europa liberal e positivista, convulsionada por
transformações qualitativas na ordem política, pelo avanço
das ciências naturais e pela cosmovisão que trazia em seu
bojo, somado ao desenvolvimento industrial e dos meios
de comunicação – e a imprevisibilidade dele resultante
implicaram uma sensação generalizada de ruptura com
a continuidade. Surgiu, então, a pretensão de rejeitar a
tradição, visto que as experiências passadas tornavam-se
4
HAUPT, Heinz-Gerherd. Religião e nação na Europa no
século XIX: algumas notas comparativas. Estudos Avançados,
v. 22, n. 62, p. 77-94, 2008.
5
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do Tempo: Estudo sobre
História. Tradução: Marcus Hediger. Rio de Janeiro:
Contraponto; PUC-RJ, 2014, p. 182-183.
20
cada vez menos pertinentes para pautar o presente e projetar
expectativas para futuro.6
Inevitavelmente, estas transformações acarretaram
impactos profundos nas religiões, que precisaram ajustar-se
a fenômenos produzidos em esferas que delas começavam
a se diferenciar. No âmbito institucional, a Igreja católica
enfrentou a perda de seu poder temporal e de seu papel
social na nova configuração dos espaços públicos na
Europa ocidental, além de atestar o enfraquecimento de
sua capacidade normativa e formadora das consciências.
Do ponto de vista dos sujeitos sociais vinculados à
nova ordem, as classes dirigentes, influenciadas pelo
imaginário burguês do progresso constante e sem limites
e das liberdades civis – entre elas a liberdade intelectual e
perspectivas francamente hostis à religião – criaram uma
conjuntura desafiadora para a Igreja romana. A ofensiva
do laicismo anticlerical, que grassava desde a Revolução
Francesa,7 foi agravada pelo rápido progresso da descrença
entre as elites intelectuais. Sob a dupla inspiração liberal
e secularista, em pouco mais de cem anos (1789-1905),
a França assistiu à desconfessionalização do Estado, à
6
Segundo Koselleck, “só se pode conceber a modernidade como
um tempo novo a partir do momento em que as expectativas
passam a distanciar-se cada vez mais das experiências
feitas até então”. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado:
Contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução:
Wilma Patrícia Maas, Carlos A. Pereira. Rio de Janeiro:
Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006, p. 314.
7
MENOZZI, Danielle. Cristianesimo e rivoluzione francese.
Brescia: Queriniana, 1977.
21
expulsão das referências religiosas do espaço público e à
laicização do ensino.8
Alguns católicos aceitaram essa nova situação e
tentaram lidar com ela, resultando em reconfigurações
complexas da religião em sociedades que continuaram a
reivindicá-la como condição para se pensarem autônomas
em relação aos sistemas religiosos hegemônicos.9 Emergiu
desse contexto um catolicismo liberal, cujos representantes
passaram a ver na secularização “uma oportunidade para
a Igreja construir um novo tipo de posição dentro da
sociedade, mais respeitadora da distinção entre o temporal
e o espiritual, bem como da liberdade dos indivíduos e,
portanto, mais evangélica”.10 Entretanto, outros recusaram
essa postura, defendendo a orientação e a posição tradicional
da Igreja, sendo denominados de intransigentes.
Émile Poulat argumenta que toda a história do
catolicismo desde a Revolução Francesa resume-se à
oposição entre essas duas tendências centrais na Igreja:
uma que defende os direitos da Igreja e outra que reclama
o direito à conciliação e à adaptação, levando à constituição
de “ideologias de adaptação, de assimilação, de integração
8
MERCIER, Charles. Permanence d’un catholicisme
intransigeant? Études, v. 419, n. 10, p. 353-361, 2013.
9
Daniéle Hévieu-Léger nos mostra isso a partir do panorama
religioso francês, no contexto da modernidade. HERVIEULÉGER, Daniéle. El peregrino y el convertido: La religión en
movimiento. México: Ediciones del Helénico, 2004, p. 37.
10 MERCIER, Permanence d’un catholicisme intransigeant?,
op. cit., p. 354. (tradução nossa)
22
e às contra-ideologias de recusa”.11 No caso francês, os
embates no interior do catolicismo – entre aqueles que
defendiam maior autonomia da Igreja nacional e os que se
mantinham subordinados ao papa – desdobravam-se desde
o século XVII e culminaram em um verdadeiro espírito
antirromano, que se desenvolveu nas franjas do jansenismo
e do galicanismo acarretou tensões por todo o século XIX.12
Tais embates levaram, às vésperas do Concílio Vaticano I
(1869), Roma a experimentar três traumas: o galicanismo,
o controle da Igreja pelo Estado e, por fim, o liberalismo e
o racionalismo.13 Contra essas tendências, a Igreja pautou
sua ênfase no princípio da autoridade e dos valores da
11
POULAT, Émile. Église contre bourgeoisie: Introduction au
devenir do catholicisme actuel. Tournai: Casterman, 1977, p.
91. (tradução nossa)
12 Vale frisar que estes movimentos se reconfiguraram desde
o início do século XIX. Além disso, mesmo postulando a
superioridade do Concílio em relação ao papa, o galicanismo
revelou-se “romano” sob muitos aspectos. Segundo
Catherine Maire, “Os movimentos jansenistas e galicanos
refletiriam assim o mesmo paradoxo francês que pode ser
esquematicamente caracterizado como o desenvolvimento
da liberdade e da autonomia na procura da manutenção
da hierarquia e da subordinação, sendo o efeito paradoxal
deste ideal de moderação encorajar o aparecimento de
‘extremismos de moderação’, se ousamos dizer”. MAIRE,
Catherine Laurence. Quelques mots piégés en histoire
religieuse moderne : jansénisme, jésuitisme, gallicanisme,
ultramontanisme. Annales de l’Est, v.1, p. 13-45, 2007.
(tradução nossa)
13 POTTMEYER, Hermann J. Towards a papacy in communion:
perspectives from Vatican Councils I & II. New York: Herder
and Herder, 1998, p. 36; CALDEIRA, R. Coppe. O Concílio
Vaticano I (1869-1870). Os cardeais respondem à consulta
de Pio IX. Caminhos, v. 21, n. 1, p. 275-285, 2023.
23
tradição. Como consequência, uma das características
principais da situação eclesiástica naquele período foi a
predominância de uma teologia apologética, cujo objetivo
central era levantar-se contra o liberalismo e outros “erros
modernos”, reivindicando os direitos da Santa Sé contra
seus inimigos externos e internos.14 Em resumo, tratavase, “a partir do patrimônio legado pelos séculos anteriores,
de barrar a modernidade conquistadora”.15 E tratava-se de
fazê-lo no duplo sentido assumido pela secularização desde
a Revolução Francesa: o político-jurídico – mediante o
qual a Igreja católica continuará resistindo à perda de seu
poder temporal – e o histórico-filosófico, visando conter a
aceleração do tempo histórico, por meio da reivindicação de
uma tradição ancorada no “paradigma tridentino”.
Na definição do historiador Paolo Prodi,16 tratavase de reabilitar esse projeto de longa duração, que teria
marcado a história da Igreja desde a crise do Medievo
até a segunda metade do século XX, por meio do qual o
Magistério procurava estabelecer e fortalecer uma soberania
paralela e universal, representada por um corpo eclesiástico
supranacional e supraestatal, em concorrência com outros
projetos de modernidade em voga. Esse paradigma encontrou
seu apogeu durante o pontificado de Pio IX (1848-1878) e
orientou dois documentos publicados em dezembro de 1864:
14 AUBERT, Roger. Storia dela Chiesa. Il pontificato di Pio IX
(1846-1878). 2. ed. Torino: San Paolo, 1976, p. 10-12.
15 MERCIER, Permanence d’un catholicisme intransigeant?,
op. cit., p. 354. (tradução nossa)
16 PRODI, Paolo. Il paradigma tridentino, un’epoca della storia
della Chiesa. Brescia: Morcelliana, 2010.
24
a Encíclica Quanta Cura e seu anexo, o Syllabus errorum, que
listava oitenta supostos “erros da modernidade”.17
Portanto, a discussão sobre o conceito de
“intransigência católica” não se produz em um vazio histórico.
Ao contrário, apresenta-se como uma perspectiva de ação
da instituição eclesiástica profundamente conectada ao
Zeitgeist do período, marcado pela marcha da secularização.
Essa dinâmica não se reduziu a uma disputa de poder entre
Igreja e Estado, mas comportou “uma significação de ordem
espiritual”, que traduziu as divergências em verdadeiras
“batalhas de princípio”: de um lado, a tradição regalista, que
defendia o direito do Estado de interferir nos assuntos da
Igreja e regulamentar a política de cultos; de outro, a tradição
de fidelidade incondicional à Igreja romana, que reivindicava
sua independência total em relação ao poder secular. Ao
longo do século XIX, essa última tendência encontrou
“uma expressão sistemática no intransigentismo católico e
obteve um dinamismo incomparável no ultramontanismo”,18
cujo antiliberalismo teve como contrapartida a defesa da
romanidade papal como baluarte da ordem e da estabilidade,
abaladas pela Revolução Francesa.
A intransigência designa a atitude daqueles que, no seio
do mundo católico, rejeitam categoricamente a secularização
17 PIO IX. Encíclica Quanta Cura: condenação e proscrição dos
graves erros do tempo presente. 1864. Disponível em: https://
www.vatican.va/content/pius-ix/it/documents/encyclicaquanta-cura-8-decembris-1864.html.
18 RÉMOND, René. Réligion et Société em Europe: La sécularisation
au XIXe et XXe siècles (1789-2000). Paris: Édition du Seuil,
2001, p. 107-109.
25
e o pensamento liberal, permanecendo “aferrados à defesa de
posições tradicionais”.19 Contudo, se em nível institucional
representou a resposta ortodoxa da Igreja à sociedade
contemporânea, tal atitude não se limitou a uma série de
batalhas contra seus inimigos externos ou internos. Ao
contrário, representou uma recomposição profunda da própria
instituição, após sua marginalização do quadro institucional
das sociedades modernas, além de novas estratégias de atuação
para manter sua influência em algum nível. Se a intransigência
defende princípios considerados indiscutíveis, ela não implica,
necessariamente, em posições imutáveis. Isso permite concordar
que uma das características do intransigentismo católico foi sua
“capacidade de adaptação tática”,20 de tal forma que,
[…] no confronto com os movimentos
revolucionários e com os avanços da secularização, a
Igreja Católica esteve obrigada a mudar seus métodos,
estratégias e conteúdos, levando seus representantes
a compartilharem muitas das características e
ferramentas de seus oponentes […].21
É nesse sentido que,compreender as respostas da religião
a fenômenos produzidos em esferas que dela começavam a se
19 MERCIER, Permanence d’un catholicisme intransigeant?,
op. cit., p. 354. (tradução nossa)
20 Segundo Charles Mercier: “O intransigente, que não desistiu
de mudar a sociedade global, está pronto para usar certos
aspectos da modernidade, especialmente a nível tecnológico,
para melhor combatê-la” (ibid., p. 355).
21 MARTÍNEZ, Ignácio; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos.
Iglesia Atlântica. Iglesia Universal. Iglesia Romana. Escenario
de la Modernidad Católica en el siglo XIX. Almanack, n. 26,
p. 1-8, 2020, p. 4. (tradução nossa)
26
diferenciar e que atestavam a perda de sua influência e sua
tutela sobre a sociedade, exige um distanciamento crítico
da lógica dicotômica de certas abordagens que tenderam a
conceber tal dinâmica a partir da dialética entre clericalismo
e anticlericalismo, Igreja e sociedade, poder temporal e poder
espiritual, razão e fé. Tais abordagens, além de ofuscarem os
“fenômenos híbridos” que daí resultaram – “como as origens
religiosas da Revolução Francesa, o catolicismo revolucionário
ou o liberalismo católico” –, acabaram por cunhar a imagem
do catolicismo como um elemento atávico no processo de
construção das sociedades modernas e seculares. Por sua vez,
a Igreja foi “representada sob a aparência da imobilidade, seja
como guardiã da tradição, seja como obstáculo ‘anacrônico’
ao progresso”.22 Entretanto, é preciso considerar que, “sob
esta mesma aparência de imobilidade, a religião muda, se
reestrutura, se adapta, toma a iniciativa e enfrenta as provações
da modernidade. É neste sentido que ela é moderna”.23
Como a própria história da modernidade – que
deve ser compreendida como a história da constituição
e reconstituição contínua de uma multiplicidade de
programas culturais, que assumem formas institucionais e
ritmos variados –,24 a reação católica a ela implica abordar
22 SOLANS, Francisco Javier Ramón. Le triomphe du SaintSiège (1799-1823). Une transition de l’Ancien Régime à
l’ultramontanisme? Siècles, v. 43, p. 1-12, 2016. (tradução nossa)
23 Ibid.
24 Segundo Eisenstadt, tal compreensão da modernidade desdobrase em duas evidências: a primeira delas “é que modernidade e
ocidentalização não são idênticas”; a segunda é “o reconhecimento
de que essas modernidades não são ‘estáticas’, encontrando-se
27
um processo complexo e não linear. Esse processo resulta
“da evolução de relações de força entre tendências atuais e
tradições” e que “não pararam de variar segundo o tempo, de
um país a outro, e em função dos embates”.25
No Brasil, por exemplo, essa tendência do catolicismo
encontrou condições concretas para sua ascensão apenas ao
longo da segunda metade do século XIX. Compartilhando
uma experiência comum a outros países latino-americanos
– onde a secularização teve lugar a partir da crise das
metrópoles coloniais –, a transição para a “modernidade
política”26 não podia prescindir da religião como ingrediente
civilizatório e elemento coesivo indispensável à formação
da nação. Aliás, esse foi um ponto comum entre regalistas
e ultramontanos, que, embora rivalizassem em modelos
distintos de Igreja – episcopalista versus curialista –,
operaram uma transição relativamente pacífica e consensual
para o regime constitucional, garantindo ao catolicismo
o status de religião oficial do Império sob o regime do
padroado.27 Dessa forma, embora a independência e a
subsequente formação do Estado nacional brasileiro
em constante mutação. EISENSTADT, Shmuel N. Multiple
Modernities. Daedalus, v. 129, n. 1, p. 1-29, 2000.
25 RÉMOND, Réligion et Société en Europe, op. cit., p. 110.
(tradução nossa)
26 GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independencias:
ensayos sobre las revoluciones hispánicas. Madrid:
Encuentro, 2009.
27 SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Do regalismo pombalino
ao regalismo imperial: herança e ruptura na formação do
Estado nacional brasileiro. In: OLIVEIRA, Luiz Eduardo
et al. (org.). Pombal e os Projetos de Brasil – reflexões em
28
tenham implicado reconfigurações profundas da religião
em reposta às transformações operadas em outros planos
– configurando contextos de “modernidade religiosa” –,28
o ultramontanismo neste país só assumiria uma postura
mais intransigente, combativa e a antiliberal na segunda
metade do século XIX, quando essa vertente do catolicismo
foi respaldada pelas diretrizes da Santa Sé, combatendo o
regalismo do Estado, a liberdade religiosa e de consciência,
bem como outros supostos “erros da modernidade”.29
Assim, é possível afirmar que, no Brasil da segunda
metade do século XIX, verificou-se algo semelhante ao que
ocorreu em países europeus: a Igreja local, respondendo às
transformações provocadas pelos avanços da secularização,
torno do Bicentenário da Independência. Aracajú: Criação
Editora; Lisboa: Theya, 2023, p. 27-48.
28 Conceito que remete às transformações operadas nas
“formas como os individuos se relacionavam com o sagrado
e com as instituições que o administravam”; as “funções e
a organização dessas instituições”, bem como “os vínculos
que estabeleciam até então com um poder civil, cujos
fundamentos já não remetiam à religião herdada”, embora
dela não pudessem prescindir. DI STEFANO, Roberto.
Modernidad religiosa y secularización en la Argentina del
siglo XIX. In: MARANHÃO FILHO, Eduardo Meinberg
de Albuquerque (org.). Política, Religião e diversidades:
Educação e Espaço Público. v. 1. Florianópolis: ABHR/
Fogo, 2018, p. 135
29 Para tanto, representantes do ultramontanismo, clérigos e
leigos adaptaram taticamente suas estratégias de combate,
valendo-se, por exemplo, dos recursos proporcionados pela
imprensa periódica. SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Imprensa
católica e identidade ultramontana no Brasil do século XIX:
uma análise a partir do jornal O Apóstolo. Horizonte, v. 18, p.
542-569, 2020.
29
buscou inserir-se na soberania paralela e universal
representada pelo poder pontifício. No entanto, enquanto
na Europa essa soberania paralela surgiu em razão da
incapacidade da Igreja de competir com os Estados no
plano dos ordenamentos jurídicos, no caso brasileiro,
onde vigorava o regime do padroado, o fortalecimento da
autoridade pontifícia serviu para intensificar sua capacidade
de concorrer com outros projetos de modernidade em voga.30
Em ambos os casos, é possível afirmar que, em resposta
às transformações revolucionárias operadas desde o final
do século XVIII, o catolicismo, em diversas circunstâncias,
precisou transigir com a modernidade. Embora essa dinâmica
já estivesse em curso anteriormente,31 foi a Revolução
Francesa o marco fundamental que deflagrou a intransigência
católica, a qual continuou a se desenvolver posteriormente.
30 SILVA, Ana Rosa Cloclet da; SANTIROCCHI, Ítalo
Domingos. O século da secularização e a contribuição
brasileira para a universalização do catolicismo. Rivista di
Storia del Cristianesimo, v. 17, n. 2, p. 351-366, 2020.
31 Segundo Fantappiè, as estratégias de universalização do
catolicismo no contexto da modernidade estavam em curso
desde antes da Revolução Francesa, o que obrigou a própria
Igreja romana a moldar suas relações jurídicas e institucionais
com os Estados-nações e as respectivas igrejas nacionais. Para
tanto, além da normatização – implementada por meio de figuras
e instrumentos informativos específicos, representados pelas
nunciaturas e os núncios, assim como pelas bulas, cartas encíclicas
etc. –, a cúria pontifícia valeu-se de estratégias de “flexibilização”
– que passavam por “adaptação” e “disciplinamento” –, de modo
a conter as tensões entre os diferentes contextos e sua estrutura
central e a normativa. FANTAPPIÈ, Carlo. La Santa Sede e
il mondo in prospettiva storico-giuridica. Rechtgeschichte Legal
History, n. 20, p. 332-335, 2012.
30
Contudo, até quando a perturbação causada pela propagação
da onda revolucionária justificaria o intransigentismo?
Que outros eventos posteriores, direta ou indiretamente
relacionados à Revolução Francesa, reconfiguraram seu
escopo? E qual a relação desse movimento com outras
tendências do catolicismo, especialmente as propagadas
após o Concílio Vaticano II (1962-1965)?
O debate em torno da permanência de um catolicismo
intransigente é complexo e divide opiniões. Émile Poulat, cuja
obra permanece uma das principais referências para o caso
francês, enxerga na intransigência o modelo estruturante do
catolicismo ainda no pontificado de João Paulo II. Segundo ele,
Contrariamente ao que usualmente se crê, o
Vaticano II não remiu na causa nem modificou
substancialmente este modelo [isto é, aquele
estruturado em torno da centralização romana].
Ele, antes, procedeu a reequilíbrios, justificando
aquisições, podando seus galhos secos, cujos efeitos
os padres conciliares não eram capazes de supor.
E, além disso, ele libertou energias, suscitou novas
esperanças, tal como em 1891, a encíclica Rerum
Novarum. Bem mais, por seu apelo à abertura, à
renovação, pareceu legitimar e encorajar diretivas
que tinham sido sempre consideradas suspeitas, se
não condenáveis. Um período de turbulência e de
confusão deveria seguir-se, dando a impressão de
que tudo estava mudado, isto é, ou permitido, ou
desatualizado, ou possível.32
Por outro lado, René Rémond considera que o
catolicismo sempre foi plural, e “se o modelo intransigente foi
32 POULAT, Église contre bourgeoisie, op. cit., p. 292. (tradução nossa)
31
dominante de Pio IX a Pio XII, ele evoluiu progressivamente
antes de ser abandonado pelos bispos no curso do Vaticano
II”.33 Segundo o historiador,
As instituições eclesiais não aceitaram à altura a
convulsão provocada pela Revolução Francesa
nas suas relações com a sociedade. Um século
depois, já não se conformavam com os avanços
da secularização, extravagantes ou rastejantes, que
iam gradualmente desgastando a sua posição no
Estado e na comunidade. Seguros como estavam
de possuir a verdade de todas as coisas, como
poderiam ter consentido em perder o status que
lhes dava a sua eminente especificidade? Ficaram
ainda menos tentados porque sentiram que a
sociedade também teria tudo a perder: não são
as Igrejas os princípios de uma organização
harmoniosa do corpo social? […] No início
do século XX, as Igrejas também continuaram
a opor-se com toda a sua força às medidas que
tendem dissociar sociedade e religião e apelar aos
fiéis para se mobilizarem para a restauração da
ordem tradicional.34
Nesse sentido, assim como a Revolução Francesa
pode ser vista como a condição da intransigência católica
no século XIX, o Concílio Vaticano II, por meio de sua
proposta de aggiornamento da Igreja, acabou por suscitar
uma nova forma de intransigentismo, que começou a se
manifestar na resistência do Coetus Internationalis Patrum
33 MERCIER, Permanence d’un catholicisme intransigeant?, op.
cit., p. 357. (tradução nossa)
34 RÉMOND, Réligion et Société en Europe, op. cit., p. 215-216.
(tradução nossa)
32
(CIP) às orientações tomadas por esse Concílio convocado
pelo Papa João XXIII, que tentou oficialmente conciliar a
Igreja católica com o mundo moderno.35 No período pósconciliar, dois bispos continuaram a se opor frontalmente a
esse espírito de conciliação: o bispo francês Mons. Marcel
Lefebvre e o brasileiro Mons. Castro Mayer, da diocese
fluminense de Campos de Goytacazes, dando origem a um
tradicionalismo católico composto por diversos movimentos
e que, hoje, ganha numerosos adeptos.36
Atualmente, alguns desses movimentos – “cuja
ideologia não coincide necessariamente com o catolicismo
intransigente” anterior ao Vaticano II –37 distinguem-se
pelo teor conservador de seus alinhamentos políticos com
governos de extrema direita.38 É este o caso no Brasil, onde
há a atuação da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição,
Família e Propriedade (TFP) e, mais recentemente, do
Centro Dom Bosco (CDB), organizações formadas por
católicos leigos que se autodefinem como “tradicionalistas”.
35 ROY-LYSENCOURT, Philippe. O Coetus Internationalis
Patrum no Concílio Vaticano II: apresentação e resultados de
uma pesquisa. Horizonte, v. 13, n. 38, p. 1051-1079, 2015.
36 CALDEIRA, Rodrigo Coppe. Os baluartes da tradição:
o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano
II. Curitiba: CRV, 2011.
37 Tendência esta que não se reduz ao caso do Brasil.
MERCIER, Permanence d’un catholicisme intransigeant?, op.
cit., p. 361. (tradução nossa)
38 BARSALINI, Glauco. Religião, Política e Violência no
Brasil: vivemos em uma Democracia ou em um Estado de
Exceção? Interações, v. 15, n. 1, p. 108-120, 2020.
33
Além disso, o catolicismo intransigente é composto
por uma multiplicidade de movimentos, cujas relações com a
Santa Sé também variam. Embora para todos eles importe a
questão litúrgica – sobretudo no que toca à defesa da missa
tridentina –, alguns movimentos continuam seguindo a linha
do arcebispo Marcel Lefebvre, que reconhece o Papa e a Santa
Sé sem, contudo, obedecê-los em orientações opostas à tradição
católica. Outros “realinham-se” com Roma e inserem-se no
seio da própria Igreja, mesmo não estando profundamente de
acordo com as orientações dela emanadas. Há, ainda, posturas
francamente sedevacantistas, que não reconhecem a legitimidade
dos pontificados desde Paulo VI, traduzindo-se atualmente em
fortes oposições ao programa de reformas do Papa Francisco.
Portanto, dadas as suas reconfigurações e dinâmicas
diferenciadas, que se desdobram desde início do século XIX
e que acompanham as variadas experiências históricas da
secularização e os diferentes modelos de laicidade em cada
país, o tema do intransigentismo demanda aproximações de
caráter histórico, capazes de fornecer fundamentos empíricos
para a compreensão de suas múltiplas manifestações, formas
de presença nas sociedades contemporâneas e conexões
internacionais. Diríamos mais: demanda uma radical
historicização, que rejeita os usos normativos do próprio
conceito de “intransigência”, obrigando-nos a proceder
segundo o exercício de “flexibilização” pelo qual, segundo
Antoine Prost, os conceitos e categorias analíticas “perdem
seu rigor, cessam de ser utilizados sob a forma absoluta para
receberem imediatamente uma especificação”.39
39 PROST, Antoine. Doze Lições sobre a História. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2008, p. 127.
34
Nesse sentido, justifica-se a proposta da coletânea
presente, fruto da interlocução e parceria entre pesquisadores
vinculados a duas Pontifícias Universidades Católicas
brasileiras (PUC-Campinas e PUC Minas) e à Université
Laval, de Quebec (Canadá). Os autores que contribuem
com seus respectivos capítulos participaram das mesas e
conferências que compuseram o Colóquio Internacional
“História do Catolicismo no Brasil: debatendo as múltiplas
faces do intransigentismo”, sediado pelo Programa de PósGraduação em Ciências da Religião da PUC-Campinas, em
maio de 2023, evento que deu ensejo a um debate profícuo
e imprescindível aos estudos sobre o catolicismo no Brasil.40
Afinal, aborda um tema que, embora tornado objeto de
estudos nos últimos cinquenta anos, especialmente na
França e na Itália, revela-se ainda incipiente na historiografia
brasileira, marcada pela chave interpretativa proveniente
da “Teologia da Libertação” e sua “opção preferencial pelos
pobres”, que representou uma das formas de recepção do
Concílio Vaticano II na América Latina. Tal viés tendeu a
realçar as forças progressistas do catolicismo, deixando de
fora – talvez propositalmente – outras tendências designadas
pelos conceitos de ultramontanismo, tradicionalismo,
conservadorismo, integrismo, reacionarismo etc. Dessa forma,
para além de alguns trabalhos cronológica e geograficamente
40 Deste evento resultou o dossiê “A Igreja católica perante
o mundo Moderno: debatendo o intransigentismo”, cujo
editorial constitui uma versão preliminar do texto ora
apresentado no formato de Introdução. SILVA, Ana Rosa
Cloclet da; CALDEIRA, Rodrigo Coppe. A intransigência
católica como resposta ao mundo moderno. Revista Reflexão,
v. 48, p. 1-8, 2023.
35
circunscritos, nenhuma síntese global foi produzida sobre
o tema até o momento, justificando esforços no seu estudo
comparado, a partir de escalas que vão do local ao global.
Nas páginas que seguem, os leitores encontrarão
uma primeira iniciativa no sentido de preencher esta
lacuna, seja por meio dos dados empíricos que embasam
pesquisas em curso no Brasil, Canadá e França, seja pelas
referências bibliográficas com as quais cada autor dialoga
criticamente. Embora esse “movimento pendular entre
o que se tem por sabido e as evidências empíricas da sua
incompletude”41 não constitua exatamente uma novidade
na produção do conhecimento histórico, permanece como
condição imprescindível para aquele exercício de “elucidação
historiográfica”, definido por Dominique Julia como a
“ferramenta por meio da qual é possível assumir a herança
que pesa sobre o domínio preciso de que nos ocupamos e
traçar os seus limites”.42
41 JANCSÓ, István. Brasil e brasileiros – Notas sobre
modelagem de significados políticos na crise do Antigo
Regime português na América. Estudos Avançados, v. 22, n.
62, 2008, p. 257.
42 JULIA, Dominique. A religião: história religiosa. In: LE
GOFF, Jacques; NORA, Pierre (org.). História: novas
abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 125.
O Catolicismo intransigente
Gilles Routhier
Mais conscientes das exigências éticas do que costumavam
ser, os investigadores agora são frequentemente solicitados a
declarar seus interesses quando realizam pesquisas, assim como
a explicitar seus preconceitos. Sinto a mesma exigência quando
faço uma apresentação sobre o catolicismo intransigente.
A expressão não é neutra. Designa uma postura
na qual algumas pessoas reconhecem-se, ou pode ser
tomada como uma categoria que nos permite classificar
um grupo pessoas que consideramos afiliadas a essa forma
de catolicismo. É grande o risco de se desenvolver uma
narrativa maniqueísta, em que há “bons” e “maus”. O risco
é aumentado em um mundo e em uma Igreja polarizados,
como é o caso na atualidade. Mesmo se quisesse dar um
passo atrás, estou inevitavelmente falando a partir de um
contexto e, mesmo que quisesse ser o mais sereno, matizado,
benevolente e neutro possível em minha descrição, não
posso escapar de algumas preferências. Mesmo que não
tenhamos a intenção de fazer isso, ainda assim arriscamos
dizer coisas que ofendam ou magoem quem as ouve,
pois nossas palavras chegam a um leitor excessivamente
sensível, de uma sensibilidade prejudicada por brigas ou
exclusões passadas.
38
O tema da recepção já foi exaustivamente por mim
trabalhado; não pude ignorar que sempre há uma distância
não apenas entre as intenções do orador e o que ele diz,
mas, acima de tudo, entre o que é dito e o que é recebido e
compreendido. Por isso, estou caminhando na ponta dos pés
por esse controverso e polêmico objeto: o intransigentismo
católico. Tentarei descrevê-lo e, sobretudo, entendê-lo nas
páginas que seguem.
Cabe distinguir a intransigência do radicalismo,
dois termos que podem ser facilmente confundidos. A
radicalidade pertence ao cristianismo e, de modo mais amplo,
às religiões. Não é um fenômeno excepcional e, sobretudo,
não deve ser vista como uma perversão do cristianismo,
especialmente se entendermos que seguir Cristo exige
uma escolha clara, decisiva, franca e radical. Neste sentido,
o cristianismo é intransigente. Esse radicalismo pode ser
encontrado em toda a sua história, ilustrado, por exemplo,
pelo movimento monástico e pelos vários movimentos de
reforma. Por outro lado, Cristo não é duro, rígido, inflexível,
intratável ou intolerante, sinônimos estes de uma pessoa
intransigente. Cristo e, seguindo seus passos, o cristianismo
não são intransigentes. Assim, precisamos ser claros quanto
ao que queremos dizer com intransigência. Portanto, no que
se constitui a intransigência católica?
Uma relação conflituosa com o mundo moderno
Um primeiro marcador, de natureza genética, na
esperança de que ele possa lançar alguma luz, é uma resposta à
questão: quais são as circunstâncias que tornam o catolicismo
intransigente? A primeira resposta é simples, mesmo que
39
precise ser complementada: é no desenvolvimento de sua
relação com o mundo (o Estado, a sociedade, a cultura, a
ciência etc.) que o cristianismo desenvolve uma forma de
intransigência e é, sobretudo, quando está em minoria e
quando é atacado, que tende a se tornar intransigente. O
cristianismo é colocado em uma situação de alteridade
radical pelo encontro com o outro, pela exposição à
diferença, pelo confronto com o que é distinto, e é por meio
do confronto com o estrangeiro que o cristianismo arrisca
tornar-se intransigente.
Até agora, não analisei as coisas do ponto de vista
da personalidade ou da psicologia dos atores intransigentes,
mas sim do ponto de vista da situação social e cultural que
favorece o desenvolvimento da intransigência. Confrontado
com a diferença, especialmente quando é ameaçado
e desafiado, o cristianismo, como outros movimentos
religiosos, sociais, políticos ou culturais, tem o potencial de
se tornar intransigente, endurecer-se, tornar-se intolerante
e afirmar-se por meio de estratégias de exclusão e do
desenvolvimento de uma identidade polêmica, que parece
ser uma medida de proteção.
A situação social em que uma pessoa ou um grupo
encontra-se é caracterizada por três aspectos: 1) um
encontro com a alteridade, que questiona sua identidade,
sua visão de mundo e sua forma de entendê-los, de entender
suas referências, suas convicções e seu lugar na sociedade; 2)
a situação de minoria em que se encontra para enfrentar essa
nova situação; e 3) o fato de se sentir ameaçado, rejeitado, à
margem, pressionado ou atacado por esse “novo mundo” que
desestrutura seu universo. Esses três elementos cruzam-se e
40
apoiam-se mutuamente. Todavia, a combinação entre eles
não é suficiente para desenvolver uma postura intransigente.
A situação deve provocar insegurança em um indivíduo ou
grupo, ou ser subjetivamente percebida como uma ameaça à
identidade e à sobrevivência do grupo ou indivíduo que deve
ser combatida. Os indivíduos ou grupos que perceberem essa
nova situação como uma agressão, uma declaração de guerra
ou o início de hostilidades endurecerão sua posição e tornarse-ão intransigentes. Quando o inimigo for identificado,
não hesitarão em lutar.
Entretanto, outra atitude é possível, e, provavelmente,
várias outras atitudes e estratégias são possíveis. Um
exemplo disso é a leitura sapiencial que João XXIII fez da
situação mundial no início da década de 1960. Cito apenas
duas passagens; a primeira delas é da Constituição Apostólica
Humanae Salutis, de 25 de dezembro de 1961, em que ele
dedica um parágrafo às convulsões dos tempos modernos,
intitulado “Averiguações dolorosas”:
A Igreja assiste, hoje, à grave crise da sociedade.
Enquanto para a humanidade surge uma era
nova, obrigações de uma gravidade e amplitude
imensas pesam sobre a Igreja, como nas épocas
mais trágicas da sua história. Trata-se, na verdade,
de pôr em contacto com as energias vivificadoras e
perenes do evangelho o mundo moderno: mundo
que se exalta por suas conquistas no campo da
técnica e da ciência, mas que carrega também as
consequências de uma ordem temporal que alguns
quiseram reorganizar prescindindo de Deus.1
1
JOÃO XXIII. Constituição Apostólica Humanae Salutis. 1961. §
3. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-xxiii/pt/
41
Angelo Guiseppe Roncalli ( João XXIII) certamente
estava ciente de que o mundo de sua infância em Bérgamo
era coisa do passado e de uma era passada. Sabia disso pela
sua experiência de alteridade e pela diferença que desafiava
o catolicismo de sua infância. Todavia, tendo vivido durante
duas guerras mundiais, na Bulgária e depois na Grécia e na
Turquia – ou seja, fora do Ocidente católico –, enfrentou
esse desafio à tradição católica de uma maneira diferente.
De fato, João XXIII é o único papa do século XX que teve
a experiência de viver, como católico, em uma situação de
minoria em mundos não católicos, na fronteira entre o
Oriente e o Ocidente. Primeiramente, foi Vigário Apostólico
na Bulgária (1925-1934), em um mundo ortodoxo que
nunca havia conhecido antes; esteve em missão em um
complexo país dos Bálcãs, às portas, de um lado, da Turquia
secular – embora marcada pela presença do islamismo – e, de
outro, da Rússia ortodoxa, bolchevique e oficialmente ateia.
Em seguida, serviu como delegado apostólico na Grécia e
na Turquia (1934-1944), onde entrou em contato com um
Estado ortodoxo confessional (Grécia) e com o secularismo
do regime de Atatürk (Turquia).
Embora fizesse parte de uma minoria e fosse um
estrangeiro, seus cadernos de anotações nos dizem que
Roncalli estava longe de viver à margem da vida desses países,
especialmente durante a guerra. Ao contrário, participou
da vida local, comprometendo-se totalmente, como pastor
e irmão, com o seu povo. Muitas vezes informalmente e
à margem do protocolo, seus contatos frequentes com a
apost_constitutions/1961/documents/hf_j-xxiii_apc_19611225_
humanae-salutis.html.
42
hierarquia ortodoxa na Turquia e na Grécia, em uma época
em que as relações entre católicos e ortodoxos estavam
em baixa, já anunciavam o Vaticano II. Seu respeito pelas
leis destes dois Estados – o primeiro secular e o segundo
confessional, nos quais a Igreja Católica representava uma
minoria insignificante, e onde Roncalli tivera uma posição
marginal, tendo, inicialmente, o estatuto de bispo católico
e representante não reconhecido da Santa Sé na Bulgária –
marcou uma experiência única que lhe permitiu repensar a
posição da Igreja na sociedade e em relação ao Estado.
Portanto, João XXIII enfrentava um novo mundo e
estava ciente de que “a Igreja hoje está testemunhando uma
grave crise na sociedade humana, que está caminhando para
grandes mudanças”.2 Viver em contato com o comunismo,
nas fronteiras do bloco soviético, em uma sociedade secular
(Turquia) dominada pelo islamismo e em um país onde
a religião ortodoxa é a religião oficial do Estado (Grécia)
provavelmente tornou-o consciente de sua condição de
minoria, relegado às margens da sociedade, o que desafiava
seu universo católico, com suas referências e sua visão de
mundo. Na nova sociedade que se desenvolvia às vésperas
do Concílio – essa “nova era”, como a chamou –, ele estava
bem ciente de que “vastas tarefas aguardam a Igreja, como
tem sido o caso em todos os períodos difíceis”. Assim, ele
não era desatento, nem ingênuo.
Entretanto, essa situação perturbadora não fez de João
XXIII um homem de combate, em oposição ao contexto
que encontrou. Era um homem que havia sido treinado no
2
Id.
43
catolicismo social, que representava a ponta de lança do
catolicismo intransigente, sob o episcopado de seu mestre,
Radini-Tedeschi. Ele entendeu que
o que é exigido dele agora é infundir as energias
eternas, vivificantes e divinas do Evangelho nas
veias do mundo moderno, um mundo que se
orgulha de suas últimas conquistas técnicas e
científicas, mas que está sofrendo as consequências
de uma ordem temporal que alguns tentaram
reorganizar ignorando Deus.3
O que ele tem em mente é o Evangelho “nas veias do
mundo moderno”, marcado pela ciência e pela tecnologia,
um mundo que alguns querem reorganizar sem Deus. Em
suma, João XXIII não quer restaurar a velha ordem, mas
infundir o Evangelho na modernidade.
O próximo parágrafo de sua Constituição Apostólica,
intitulado “Motivos de confiança”, é ainda mais revelador.
Embora nos lembrem da necessidade de vigilância, as
“dolorosas averiguações” do parágrafo anterior não criam a
angústia que ele observou em muitos de seus contemporâneos:
Estas dolorosas averiguações conclamam ao
dever da vigilância e despertam o senso da
responsabilidade. Almas sem confiança veem apenas
trevas tomando conta da face da terra. Nós, porém,
preferimos rearmar toda a nossa confiança em nosso
Salvador, que não se afastou do mundo, por ele remido.
Antes, mesmo, apropriando-nos da recomendação
de Jesus, de saber distinguir “os sinais do tempo”
(Mt 16,3), pareceu-nos vislumbrar, no meio de tanta
treva, não poucos indícios que dão sólida esperança de
3
Id.
44
tempos melhores para a Igreja e a humanidade. Pois
mesmo as guerras sangrentas que se seguiram
em nossos tempos, as ruínas espirituais causadas
por tantas ideologias e os frutos de experiências
tão amargas, não se processaram sem deixar úteis
ensinamentos. E o progresso científico, que deu
ao homem a possibilidade de criar instrumentos
catastróficos para a sua destruição, fez com que se
levantassem interrogações angustiosas: obrigou os
seres humanos a se tornarem mais ponderados, mais
conscientes dos próprios limites, mais desejosos de paz,
atentos à importância dos valores do espírito; acelerou
o processo de mais estreita colaboração e mútua
integração entre os indivíduos, classes e nações, à qual,
embora entre mil incertezas, parece já encaminhada
a família humana. Tudo isto facilita, sem dúvida,
o apostolado da Igreja, pois muitos que ontem
não percebiam a importância de sua missão, hoje,
ensinados pela experiência, estão mais dispostos a
acolher suas advertências.4
Sua leitura sapiencial e espiritual da História opõese à leitura apocalíptica ou catastrófica que era comum
na época em que a Igreja sentia-se como uma “fortaleza
sitiada”. João XXIII não ignorava os males que afligiam o
mundo, mas queria olhar para além deles, ver a história no
plano de Deus e a confiança que sentia nele. Em um nível
mais profundo, sua visão do mundo o levou a discernir os
“sinais dos tempos”, uma expressão que se tornou popular
no Concílio.5 Em sua opinião, o progresso técnico e as
4
Ibid., § 4. Grifos do autor.
5
ROUTHIER, Gilles. “Les signes des temps”. Fortune et
infortune d’une expression du concile Vatican II. Transversalités,
n.118, p. 79-102, 2011.
45
perturbações estariam causando ansiedade e levando as
pessoas a se questionarem. O que as tornava propensas a
uma nova abertura para os bens espirituais, representando
uma oportunidade para a Igreja.
O discurso de abertura do Concílio, em 11 de
outubro de 1962, foi na mesma linha. Aqui, também, João
XXIII distanciou-se de uma leitura apocalíptica do mundo
moderno. Sua passagem sobre os profetas da desgraça foi
citada e comentada com frequência:
No exercício cotidiano do nosso ministério
pastoral ferem nossos ouvidos sugestões de almas,
ardorosas sem dúvida no zelo, mas não dotadas de
grande sentido de discrição e moderação. Nos tempos
atuais, elas não veem senão prevaricações e ruínas; vão
repetindo que a nossa época, em comparação com as
passadas, foi piorando; e portam-se como quem nada
aprendeu da história, que é também mestra da vida,
e como se no tempo dos Concílios Ecumênicos
precedentes tudo fosse triunfo completo da ideia e
da vida cristã, e da justa liberdade religiosa.
Mas parece-nos que devemos discordar desses profetas
da desventura, que anunciam acontecimentos sempre
infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo.
No presente momento histórico, a Providência
está-nos levando para uma nova ordem de relações
humanas, que, por obra dos homens e o mais das
vezes para além do que eles esperam, se dirigem para
o cumprimento de desígnios superiores e inesperados;
e tudo, mesmo as adversidades humanas, dispõe para
o bem maior da Igreja.6
6
JOÃO XXIII, Discurso na abertura solene do SS. Concílio Gaudet
Mater Ecclesia. 1962. § 2-4. Disponível em: https://www.vatican.
46
O que está em jogo é, acima de tudo, uma “maneira de
ver as coisas”, uma maneira que João XXIII considera mal
ajustada (a “falta de correção e equilíbrio”no modo das pessoas
verem as coisas), que levaria a uma interpretação errônea
do tempo presente. Em suma, seria uma maneira particular
de ler a situação atual que levaria à posição representada
pelo catolicismo integral. Segundo ele, o problema não
era a situação atual em si, mas o que era visto e percebido
“na situação atual da sociedade” pelos representantes
desta vertente do catolicismo: “Eles veem apenas ruína e
calamidade”, sem “reconhecer os misteriosos desígnios da
Divina Providência [que] organizam tudo sabiamente para
o bem da Igreja, até mesmo eventos contrários”.7
Enfim, é no diagnóstico que os católicos divergirão e
dividir-se-ão, acabando por formar dois campos opostos. Eles
dividir-se-ão, especialmente, sobre como denominar o presente
e quais as estratégias a serem adotadas no mundo moderno.
Experiência histórica como linha divisória
Apresso-me a fazer uma advertência aqui, porque
acho execrável dividir o mundo em dois campos e aplicar
um esquema explicativo binário que constrói dois grupos
opostos. Meus estudos sobre o Concílio Vaticano II muitas
vezes me permitiram identificar outros fatores explicativos,
e resisto, como é feito com frequência, a classificar alguns no
grupo conservador e outros no grupo progressista. Mostrei,
va/content/john-xxiii/pt/speeches/1962/documents/hf_j-xxiii_
spe_19621011_opening-council.html. Grifos do autor.
7
Id.
47
por exemplo, que o debate sobre liberdade religiosa obedece
a uma lógica diferente.
Quis ilustrar isso em um livro que editei, intitulado
Le Concile au risque de l’histoire et des espaces humains.8 Por
exemplo, se os bascos favoreciam mais do que os espanhóis
o uso do vernáculo na liturgia, isso não se devia ao fato de
os primeiros serem progressistas e os últimos conservadores,
mas estava ligado à militância nacionalista e estava baseada
na identidade dos primeiros. Também mostrei, com base em
dois casos, que as linhas divisórias não estão simplesmente
no relacionamento com a tradição.9 Isso fica claro em uma
análise das intervenções dos bispos na discussão sobre
liberdade religiosa, o principal documento do catolicismo
intransigente. Pode-se pensar que todo o debate baseiase na fidelidade à tradição – as condenações dos séculos
XVIII e XIX – como as posições tomadas por Siri, Morcillo,
Velasco e muitos outros parecem indicar. Contudo, no final,
o que é decisivo parece estar em outro lugar. Os bispos
americanos, por exemplo, notadamente Spellman, que em
outras questões poderia ser classificado como intransigente
e conservador, leem os mesmos textos do passado, mas
chegam a conclusões diferentes. Então, em que base os
dois grupos diferem? Identifiquei o critério da experiência
histórica, embora ele não seja o único.
8
ROUTHIER, Gilles (org.). Réceptions de Vatican II: Le
Concile au risque de l’histoire et des espaces humains.
Leuven: Peeters, 2004.
9
ROUTHIER, Gilles. L’élaboration de la doctrine sur la liberté
religieuse et de l’enseignement conciliaire sur l’Église dans le
monde de ce temps. Ephemerides theologicae lovanienses, v. 82, n.
4, 2006, p. 333-371.
48
Enquanto os oponentes da liberdade religiosa
apelam constantemente para a autoridade da tradição,
aqueles que falam a favor da declaração frequentemente
apelam para a autoridade da experiência.10 De fato, o
forte argumento a favor da liberdade religiosa apresentado
pelo cardeal Conway (Irlanda), defendido no terceiro dia
do debate, foi baseado na experiência. Seu relato sobre
a privação, por quase dois séculos, do direito à liberdade
religiosa na Irlanda não é único, e ele fala com base na
experiência daqueles que foram privados deste direito na
época, especialmente os fiéis das Igrejas que viviam atrás
da Cortina de Ferro. Todo o episcopado polonês pareceu
concordar, como demonstrado pela forte intervenção do
bispo Baraniak.11 Os representantes dos episcopados
da Iugoslávia e da Tchecoslováquia também apelaram
para a experiência. O cardeal Seper (Iugoslávia) afirmou
explicitamente refletir sobre a questão a partir de
specif icis experientiis [experiências específicas]. Com base
nisso, a liberdade religiosa parecia-lhe uma necessidade
fundamental.12 O cardeal Beran (Tchecoslováquia), que
dedicou seu primeiro discurso conciliar ao debate sobre
liberdade religiosa após sua libertação da prisão alguns
meses antes, também falou “ex experientia” [a partir da
experiência] e “ex historia” [a partir da história]. De acordo
10 Distingui vários tipos de autoridade em “Introduction”, em:
ROUTHIER, Gilles; JOBIN, Guy (org.), L’Autorité et les
Autorités. L’herméneutique théologique de Vatican II. Paris:
Cerf, 2010, p. 7-9.
11 Ver também os discursos de Wojtyla (AS, IV/2, p. 11-13) e de
Wyszynski (AS IV/1, p. 387-390).
12 AS IV/1, p. 292.
49
com sua experiência, qualquer restrição à liberdade de
consciência levaria à hipocrisia e corromperia a fibra moral
e o espírito de um povo.13
Outro bispo da Europa Oriental, o cardeal
Wyszynski (Varsóvia),14 também reivindicou a autoridade
da experiência. Embora tenha apoiado francamente o
objetivo da declaração “ut huiusmodi libertas salvetur”
[que a liberdade possa ser preservada], ele pediu que ela
fosse precedida por uma introdução que ajudasse a evitar
a confusão, a má compreensão e a interpretação errônea
que são frequentemente atribuídas a textos magisteriais
na Europa Oriental. Entre os bispos ocidentais, o bispo de
Oslo, D. Gran, que vivia em um país onde a religião luterana
estava estabelecida e era oficialmente reconhecida, também
fala explicitamente ex experientia.15 Da mesma forma, o
discurso do cardeal Cardijn, um homem que teve o benefício
de sessenta anos de experiência de trabalho com jovens em
13 Referindo-se à condenação de John Hus, ele mostra como a
história de sua terra natal nos ensina que o recurso ao braço
secular para fazer valer os direitos da Igreja, longe de servir ao
progresso da desta instituição, instila um trauma duradouro
na mente das pessoas que impede todo o progresso religioso.
Com base nesses dois fundamentos, sua conclusão é vigorosa:
“Sic historia quoque nos admonet, ut in hoc Concilio principium
libertatis religiosae et libertatis conscientiae claris verbis et sine
ulla restrictione, quae ex rationibus opportunisticis proflueret”
[Assim, a história recorda-nos também que neste Concílio o
princípio da liberdade religiosa e da liberdade de consciência
foi expresso em termos claros e sem qualquer restrição que
derivasse de razões oportunistas].
14 AS, IV/1, p. 387-390.
15 Ver seu discurso, Ibid., p. 411-413.
50
todo o mundo, foi autoritário em virtude do conhecimento
experimental que trouxe.16
Portanto, não há tradicionalistas e conservadores
de um lado, e liberais progressistas de outro. Spellman,
Conway, Wyszynski e muitos outros não são monumentos
do progressismo, embora se manifestem a favor da liberdade
religiosa. A influência de diferentes contextos políticos e
diferentes experiências históricas na compreensão das pessoas
sobre um problema doutrinário – o dos direitos da Igreja
Católica na sociedade – torna-se, portanto, decisiva. As
posições adotadas basearam-se em contextos locais e situações
políticas específicas, como estados confessionais (muçulmanos
ou cristãos, católicos ou não católicos), regimes de concordata
ou separação onde a liberdade religiosa está consagrada na lei
fundamental do país, estados totalitários e assim por diante.
Enquanto os bispos espanhóis, que viviam sob o
regime de concordata da Espanha de Franco, opunhamse à liberdade religiosa com a maior energia, os bispos da
Europa Oriental, perseguidos pelas medidas de Stálin
contra o catolicismo, exigiam-na, com quase tanto ardor,
mas por motivos diferentes, quanto os bispos dos Estados
Unidos, onde os católicos viviam em um país pluralista,
cuja constituição garantia a liberdade em questões
religiosas em seu primeiro artigo. Enquanto o esquema foi
16
Em uma carta para Bruxelas, datada de 14 de julho de 1965,
Cardijn pediu ao padre Congar que o ajudasse a preparar um
documento sobre o esquema (Fundo: Congar pro 1285). Ver
também a outra correspondência entre Congar e Cardijn
sobre liberdade religiosa e o Esquema XIII, Fundo: Congar
pro 1279-1284.
51
apoiado timidamente pelos bispos da Europa Ocidental
e com certa tibieza – se não com hostilidade total – pelo
episcopado italiano,17 os bispos que viviam em países
muçulmanos abraçaram a causa e não hesitaram em
defendê-la. Considerada perigosa para as Igrejas da bacia do
Mediterrâneo (especialmente Itália e Espanha) e para vários
bispos latino-americanos, a Declaração sobre a Liberdade
Religiosa [Dignitatis humanae] foi vista sob uma luz
diferente em países com experiências históricas e estruturas
políticas diversas. A maioria a favor do texto parecia ter que
ser construída a partir de uma nova base e não deveria mais
se apoiar no bloco de países europeus.
Essa divisão é evidente em vários pontos em
discussão, principalmente na questão do reconhecimento
de uma religião específica ou de um estado confessional.
Monsenhor Lourdusamy (de Bangalor, na Índia) estava
convencido de que seria melhor remover qualquer referência
a esse reconhecimento do esquema. Ele estava falando
a partir de contexto político forte. Posições semelhantes
foram tomadas pelos bispos do Líbano (Ziade e Doumith),18
falando em nome de mais de setenta bispos da África e da
Ásia. Todos esses bispos viviam em países com forte presença
e influência muçulmana.
Sobre outra questão, a dos limites legítimos que os
Estados podem impor à liberdade religiosa, as posições
17 Entretanto, houve algumas reservas notáveis, especialmente
por parte do Cardeal Urbani.
18 Para a contribuição da Ziade, ver AS IV/1, p. 272-273, e para
Doumith, AS IV/2, p. 13-14.
52
também variam de acordo com situações políticas específicas.
A este respeito, o cardeal Wyszynski, em nome de todo o
episcopado polonês, insistiu, até o fim, sobre o fato de que
a concessão que permitia aos Estados restringir a liberdade
religiosa, quando a ordem pública e a segurança assim o
exigissem, deveria ser limitada.19
Portanto, torna-se claro que os diferentes contextos
políticos tiveram uma grande influência sobre as posições
tomadas. Alguns dos padres viram isso claramente, como
o cardeal Jäger, que enfatizou muito o peso dos contextos
históricos na avaliação dessa questão, lembrando de
passagem que a sociedade medieval havia desaparecido e
que, diante de novas circunstâncias históricas, a Igreja não
podia resolver a questão apenas com base no ensinamento
clássico, mas tinha que tratar em termos que agora eram
diferentes. Essa questão dos contextos históricos também
foi abordada por Meouchi e Slipyi, para citar apenas alguns.
Como o cardeal Journet diria mais tarde, em sua
tentativa de resumir as diferentes correntes que foram
expressas na assembleia, o problema foi apreciado de forma
diferente, dependendo da situação pastoral. A liberdade
religiosa era vista como uma necessidade pastoral em
países pluralistas, era claramente necessária em países sob
19 Ver carta a De Smedt (28 de outubro de 1965) e seu modus
operandi sobre esse tema, bem como a resposta de De Smedt (5
de novembro), FDS 1651, 1653, 1654. Wyszinski resolveu votar
contra o texto se ele não fosse emendado de forma satisfatória.
Além disso, ele pediu que a observação que ele havia feito na
aula sobre a distinção entre o vocabulário ocidental e marxista
sobre essa questão fosse inserida no esboço. Ver FPRgn 1614
(14.11.65), p. 1.
53
o domínio do totalitarismo, era fortemente desejada em
países de missão onde os católicos eram minoria (Índia,
países muçulmanos, Oriente) e parecia suspeita em países
mediterrâneos sob o regime da concordata (Itália, Espanha).
Intransigente porque teórico
Se alguns padres viram claramente a determinação
histórica do debate, ligada a situações particulares e
contextos específicos, esse fator escapa a muitos outros.
Pouquíssimos bispos admitiram que suas posições estavam
ligadas às suas respectivas experiências históricas ou aos
seus contextos particulares. Isso demonstra o quanto
levamos o debate para o nível doutrinário, sugerindo que a
doutrina é a-histórica e universal, sobretudo nas vezes que
pretendemos universalizar nossa posição. É neste sentido
que, até o fim, o episcopado espanhol pressionou para que
a Declaração sobre a Liberdade Religiosa fosse retirada da
agenda conciliar. Mesmo após o encerramento do debate,
em 17 de outubro, um grupo de bispos espanhóis enviou
uma carta a Paulo VI denunciando a Declaração, não por
motivos políticos, mas por motivos doutrinários. De acordo
com estes bispos, a Declaração representou uma nova
direção no Magistério doutrinário da Igreja Católica. Essa
nova doutrina realmente constituía uma ruptura inaceitável,
e o ensinamento dos pontífices romanos não podia ser
abandonado ou contradito.20 Em 30 de outubro, J. Guerra
20 O número exato de signatários não é conhecido. Entre eles
estão Arriba y Castro e o Cardeal Larraona, que, embora
fosse cardeal da Cúria, juntou-se ao episcopado espanhol
pela causa. Esse texto pode ser encontrado em IRIBARREN,
Jesús. Papeles y memorias: medio siglo de relaciones Iglesia-
54
enviou algumas observações sobre o textus recognitus [texto
revisado], observações que correspondiam, segundo ele, às
preocupações fundamentais de um número bastante grande
de padres, particularmente do episcopado espanhol.21
No segundo dia do debate, o patriarca maronita de
Antioquia expôs o problema imediatamente: “Centum annis
post illas condemnationes errorum saeculi praeteriti, contra veram
notionem libertatis religiosae, a Pio IX, […], nostrum Concilium,
in idem problema libertatis arduum, attentionem dirigit, sed cum
mentalitatum et circumstantiarum historicarum diversitate”.22 A
discussão, então, concentra-se menos na questão específica da
liberdade religiosa e mais no desenvolvimento da doutrina,
ou melhor, na natureza histórica dos desenvolvimentos
Estado en España (1936-1986). Madrid: Biblioteca de
Autores Cristianos, 1992.
21 FDS 1630 e o modus FDS 1631. Mais ou menos na mesma
ocasião, os católicos catalães, a maioria deles ligados aos
movimentos da Ação Católica, estavam fazendo ouvir uma
voz diferente em sua “Mensagem dos Católicos de Barcelona
aos Padres do Concílio” (28 de outubro de 1965, 2 páginas).
A situação religiosa espanhola não foi apresentada como
ideal, mas como um catolicismo em crise (um processo de
descristianização, especialmente entre intelectuais, jovens
e trabalhadores), caracterizado por uma “absoluta falta de
respeito pelos direitos e liberdades da pessoa humana na vida
pública e política” e pela opressão, especialmente com relação
ao idioma, à cultura e às instituições catalãs.
22 “Cem anos depois das condenações dos erros do século
passado, contra o verdadeiro conceito de liberdade religiosa,
por Pio IX, […], o nosso Concílio volta a sua atenção para o
mesmo difícil problema da liberdade, mas com mentalidades
e em circunstâncias históricas diferentes” (AS, IV/1, p. 233).
(tradução livre).
55
doutrinários. Eles estão sujeitos à evolução, conforme as
mudanças de mentalidade e as circunstâncias históricas? Essa
é a questão em jogo neste debate.
Eu poderia continuar a demonstração submetendo
outros dossiês para exame, em particular aquele sobre a
linguagem litúrgica, que foi uma questão submetida a
três comissões preparatórias, dedicadas, respectivamente,
à liturgia, às missões e às Igrejas orientais. A primeira,
dominada pelos ocidentais, que apesar de estarem na
vanguarda da renovação litúrgica, propusera que o latim
fosse mantido, especialmente para a oração eucarística.
Os orientais eram abertamente a favor do uso de línguas
vernáculas, assim como a Comissão de Missões. Assim,
pode-se concluir que, quanto mais afastados da cultura
ocidental, menos favoreciam o latim.
A divisão da assembleia conciliar sobre a declaração
Nostra Aetate [Nossa Era],23 sobre religiões não cristãs,
também não se baseou na divisão entre progressistas e
tradicionalistas. Os “orientalistas”, em particular o atriarca
Maximos IV, que tinha a reputação de ser aberto em várias
questões, estavam unidos em sua oposição ao projeto.
A mesma divisão pode ser vista em alguns capítulos da
segunda parte da Constituição Gaudium et Spes [Alegria
e Esperança], especialmente quando se trata de discutir
questões econômicas ou guerra e paz.
Em suma, não faz sentido resolver tudo com base em
uma grade interpretativa que divide o mundo em um grupo
23 Ou Declaração sobre a Relação da Igreja com as Religiões
Não-Cristãs. (N.E.)
56
de tradicionalistas e um grupo de progressistas. Concordo
com a observação do historiador francês Jean-Marie
Mayeur, que escreve:
Observadores,
ensaístas
e
historiadores
concordam prontamente que, no catolicismo
contemporâneo, há um choque entre duas escolas
de pensamento e duas tradições: intransigente
e liberal, conservadora e progressista, direita
e esquerda, a última preocupada em adaptar a
Igreja ao mundo moderno, a primeira hostil a
qualquer transformação. Os jornalistas que, há
alguns anos, descreveram os debates conciliares
adotaram esse esquema de interpretação, para o
qual não faltaram referências históricas. De fato,
há uma boa dose de verdade em tal representação.
Para nos convencermos disso, precisamos apenas
pensar na intensidade dos conflitos que colocaram
duas tradições espirituais uma contra a outra por
mais de um século. Veuillot e Montalembert,
l’Action Française e le Sillon, l’Aube e l’Écho de
Paris, Témoignage chrétien e la France catholique
– esses pares antagônicos simbolizam, até hoje,
um confronto que, muito além do político e do
social, refere-se a mentalidades e psicologias,
espiritualidades e teologias que são singularmente
diferentes. Como todas as explicações dualistas, tal
esquema exige, para ser aceitável, uma preocupação
constante com as nuances e a complexidade da
realidade. Tampouco é óbvio que esse esquema
de explicação, que é válido para a compreensão
da história da Igreja após a Revolução Francesa,
possa ser aplicado fora do universo mental em
que nasceu, ou que permita uma compreensão
adequada das mudanças e crises da Igreja pósconciliar. Mas essa é outra história […] a validade
de um sistema de explicação […] pode não ser
57
suficiente para dar conta de todos os aspectos de
uma realidade cuja riqueza ainda não foi esgotada
pela investigação histórica.24
Doutrina, tradição e história
Gostaria de voltar brevemente ao debate conciliar
sobre liberdade religiosa, uma questão que estava no
centro da rejeição do Concílio Vaticano II pelos católicos
intransigentes. Para me limitar ao debate do primeiro
dia (que contou com oito contribuições), podemos dizer
que a polêmica partiu de dois a priori e duas estruturas
epistêmicas diferentes. Por um lado, os discursos dos bispos
estadunidenses (Spellman e Cushing) são baseados em
solicitações atuais: “Cum praesertim in hodiernis…”; “est
hodie necessitas pastoralis primi ordini”.25 Ambos referemse ao contexto pastoral: a credibilidade da Igreja com os
Estados Unidos e com os não católicos, para Spellman, e
a credibilidade da Igreja na proclamação do Evangelho,
para Cushing; ambos referem-se ao mundo concreto, à
24 MAYEUR, Jean-Marie. Catholicisme intransigeant,
catholicisme social, démocratie chrétienne. Annales.
Économies, sociétés, civilisations, 27ᵉ année, n. 2, p. 483-499,
1972. René Rémond destacou com veemência as dimensões
desse conflito, mencionado por Mayeur. Ver RÉMOND,
René. Droite et gauche dans le catholicisme français
contemporain. Revue française de science politique, v. 8, n. 3, p.
529-544; 803-820, 1958.
25 “Visto que, sobretudo hoje em dia […], existe hoje uma
necessidade pastoral de primeira ordem”. O discurso de
Spellman havia sido preparado por John Courtney Murray
(AS IV/2 p. 200). As várias formas de “hodie” são mencionadas
cinco vezes no discurso de Cushing (AS IV/2 p. 215-216).
58
vida da Igreja e à vida das pessoas na sociedade, bem como
às expectativas dos contemporâneos.26 Por outro lado, as
intervenções de Ruffini e Siri, em particular, estão em outro
nível: o da defesa do “ordo divinus” e da “lex divina” (Siri),
um argumento mais tarde retomado pelo arcebispo Marcel
Lefebvre. A primeira abordagem é concreta e histórica,
baseando-se na pragmática do discurso, enquanto a outra
é metafísica e não histórica. Também podemos considerar
que, em um caso, há as pessoas – as quais são sujeitos de
direito –, enquanto, no outro, há a verdade, a qual é objeto
de um direito.
Somos levados de volta à História, o que significa
contexto,situação,pessoas concretas etc.Não há simplesmente
doutrina de um lado e situações de outro, porque em ambos
os casos estamos proclamando nossa fidelidade à doutrina.
Isso é evidente nas intervenções dos bispos americanos,
na maioria inspirados por John Courtney-Murray, que se
esforçaram para demonstrar que o esquema não se opunha
à doutrina tradicional da Igreja. A intervenção do cardeal
Sehan (Baltimore) é exemplar nesse aspecto. Seu objetivo
era destruir um dos principais argumentos dos oponentes do
esquema explicativo: o da falta de fidelidade da Declaração
sobre a Liberdade Religiosa à doutrina católica tradicional.27
Em uma argumentação firme e sistemática, Shehan analisa
26 A questão da credibilidade da Igreja será recorrente em intervalos
regulares nesta discussão. Ela será abordada novamente no
terceiro dia da discussão por Heenan e Baldassari.
27 AS, IV/1, p. 396-399. Ele afirma em sua introdução que essa
doutrina também é confirmada pelas Escrituras, o que ele
não tem como desenvolver em seu discurso.
59
os ensinamentos de Leão XIII, Pio XI, Pio XII e João XXIII,
colocando em perspectiva os desenvolvimentos que podem
ser observados durante um longo período e corrigindo
as afirmações incorretas dos detratores do esquema. A
demonstração é rigorosa e muito factual. A conclusão
cai como uma fruta madura: “Doctrina… quæ invenitur
in schemate est sana et salutifera et cum corpore doctrinae ab
Ecclesia traditae omnino congrua”.28
Portanto, a questão não é se devemos recorrer à
tradição, mas, na verdade, diz respeito ao caráter histórico
da tradição e sua hermenêutica. Isso nos leva de volta
ao problema de como ler a tradição em um contexto
diferente – sem mencionar o fato de que a Declaração não
se propõe a responder à mesma pergunta que os Papas de
períodos anteriores. O problema subjacente é o da relação
com a História, sobretudo a historicidade da tradição e a
condição histórica do leitor, que naturalmente remete à sua
experiência. Em suma, a linha divisória entre os dois grupos
é traçada pelo tipo de relação com a tradição: uma tradição
reificada, descontextualizada e desvinculada de seus acervos
históricos, ou uma tradição relida a partir de uma história,
contextos e experiências particulares.
A tensão sobre a tradição na época do Concílio
tornou-se uma questão central no momento de sua recepção
e no desenvolvimento de um novo movimento de catolicismo
intransigente. Já em 1969, a implementação do Concílio foi
28 “A doutrina […] encontrada no esquema é sólida e salutar e
inteiramente consistente com o corpo de doutrina transmitido
pela Igreja”. (tradução livre)
60
atacada, porque o novo Ordo missae não era fiel à tradição, com
base no fato de que a teologia que ele incorporava não estava
conforme o ensinamento de Trento.29 Para os opositores do
Concílio, o ensinamento do Vaticano II representou uma
séria ruptura com a tradição, entendida como um conjunto
de declarações magisteriais, particularmente com relação aos
ensinamentos pontifícios da segunda metade do século XIX e
da primeira metade do século XX.30 Essa oposição ao Concílio
e às reformas conciliares em nome da tradição foi expressa
em um texto-manifesto de rara violência, publicado pelo
arcebispo Lefebvre apenas alguns dias após a visita apostólica
ordenada pela comissão de cardeais criada por Paulo VI para
lidar com o problema levantado pela Sociedade de São Pio
X,31 que foi um prelúdio para o suspense a divinis, que ocorreu
em 22 de julho de 1976:
29 Ele inclui o Breve esame critico del Novus Ordo Missae dirigido a
Paulo VI pelos cardeais Ottaviani e Bacci, em 25 de setembro
de 1969. O texto foi publicado na revista “tradicionalista”
Itinéraires. Chroniques et Documents, v. LXVII, n. 138, p. 22-24,
1969. Para conhecer a história desse texto, consulte SENÈZE,
Nicolas. La crise intégriste. Vingt ans après le schisme de
Mgr Lefebvre. Paris: Bayard, 2008, p. 75-76. Ver também
MALLERAIS, Bernard Tissier de. Marcel Lefebvre, une
vie. Étampes: Clovis, 2002, p. 420. Ele foi inspirado, se não
escrito, por Gérard des Lauriers, um colaborador próximo do
arcebispo Lefebvre, que participou do projeto.
30 Ver, em particular, sua apresentação sinóptica de algumas
das “proposições afirmadas pelo Vaticano II em Dignitatis
humanae”, em comparação com algumas das “proposições
condenadas por Pio IX em Quanta Cura em LEFEBVRE,
Marcel. Ils l’ont découronné. Du libéralisme à l’apostasie. La
tragédie conciliaire. Escurolle: Fideliter, 1987, p. 183-184.
31 O texto foi publicado em 21 de novembro de 1974.
61
Aderimos de todo o coração, com toda a nossa alma,
à Roma católica, guardiã da fé católica e de suas
tradições necessárias para a manutenção dessa fé,
à Roma eterna, mestra da sabedoria e da verdade.
Por outro lado, nós nos recusamos e sempre nos
recusaremos a seguir as tendências neomodernistas
e neoprotestantes de Roma, que se manifestaram
claramente no Concílio Vaticano II e, depois do
Concílio, em todas as reformas que dele resultaram.32
Essa maneira de se cobrir com o manto da tradição
e fazer dela a bandeira de sua cruzada contra o Concílio
rendeu Lefebvre uma severa repreensão de Paulo VI, na qual
a noção de Tradição ocupa um lugar central (13 ocorrências)
no argumento:
Você afirma estar sujeito à Igreja, fiel à Tradição,
pelo simples fato de obedecer a certas normas do
passado, ditadas pelos predecessores daquele a quem
Deus agora conferiu os poderes dados a Pedro.
Isso significa que, também nesse ponto, o conceito
de “Tradição” que você invoca está distorcido A
Tradição não é um fato fixo ou morto, uma espécie
de fato estático que bloquearia, em um determinado
momento da história, a vida desse organismo ativo
que é a Igreja, ou seja, o corpo místico de Cristo.
Cabe ao papa e aos concílios fazer um julgamento
para discernir, nas tradições da Igreja, o que não
é possível renunciar sem infidelidade ao Senhor
e ao Espírito Santo – o depósito da fé – e o que,
32 Ver também sua homilia nas ordenações em junho de 1976,
que levou ao suspense a divinis: “Essa nova missa é um símbolo,
uma expressão de uma nova fé, uma fé modernista”. Ou ainda,
como afirmava: “O concílio, dando as costas à Tradição e
rompendo com a Igreja do passado, é um concílio cismático”.
MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 513-514.
62
ao contrário, pode e deve ser atualizado, a fim de
facilitar a oração e a missão da Igreja através da
variedade de tempos e lugares, para melhor traduzir
a mensagem divina na linguagem de hoje e para
melhor comunicá-la, sem comprometimentos
indevidos. Portanto, a Tradição não pode ser
separada do Magistério vivo da Igreja, assim como
não pode ser separada da Sagrada Escritura […].33
Paulo VI não apenas critica o arcebispo Lefebvre por
operar com um conceito distorcido de Tradição – uma ideia
à qual o papa retorna mais tarde em sua carta –,34 como
também especifica de que forma esse conceito é errôneo.
Segundo ele, o erro consiste em identificar a “Tradição”
com “certas normas do passado” ou com “tradições”; em
outras palavras, consiste em identificá-la com uma forma
de expressão histórica e contingente da “Tradição”. Essa
concepção fixista não deixa espaço para a Igreja ser o sujeito
da Tradição, o que Paulo VI afirma.
Pouco depois de sua eleição, João Paulo II recebeu
o arcebispo Lefebvre, em 18 de novembro de 1978.
Repetindo um trecho do discurso do papa ao consistório
em 5 de novembro, Lefebvre disse estar pronto para “aceitar
o Concílio lido à luz da Tradição”.35 Aqui, mais uma vez,
33 Ver a carta de Paulo VI ao arcebispo Lefebvre, de 11 de
outubro de 1976. Disponível em: https://lacriseintegriste.
typepad.fr/weblog/1976/10/lettre-de-paul.html.
34 De acordo com Paulo VI, fazer uma concessão disciplinar
em questões litúrgicas “seria para nós aceitar a introdução de
uma concepção seriamente errônea da Igreja e da Tradição”.
35 Em 5 de novembro, em seu discurso na abertura do consistório, João
Paulo II declarou que não poderíamos “correr presunçosamente
63
revisitou a noção de Tradição. Seguiu-se uma fase de
conversações, que culminou com o envio, pelo arcebispo
Lefebvre, de uma minuta de acordo a João Paulo II (16
de outubro de 1980). Nessa minuta, o arcebispo Lefebvre
escreveu que estava preparado para aceitar “o Concílio à luz
da tradição”.36 Como aponta o biógrafo do bispo de Écône,
D. Lefebvre pretendia aplicar “o critério da tradição aos
vários documentos do Concílio para saber o que deveria ser
mantido, o que deveria ser esclarecido e o que deveria ser
rejeitado”.37 Mais tarde, ele esforçar-se-ia para mostrar que,
interpretado “à luz de toda a Sagrada Tradição”, o Concílio
não deveria conter nada de novo.
Nas discussões que se seguiram com o novo Prefeito
da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Ratzinger,
a noção de tradição era onipresente. Assim, em sua resposta
ao papa João Paulo II, em 5 de abril de 1983, D. Lefebvre
voltou à sua concepção da interpretação do Concílio à luz da
tradição, afirmando:
Quanto ao primeiro parágrafo relativo ao Concílio,
concordo prontamente em assiná-lo no sentido de
que a Tradição é o critério para a interpretação dos
à frente […] em direção a formas de ser cristão […] que não se
abrigam sob o ensino integral do Concílio; integral, isto é, entendido
à luz de toda a Sagrada Tradição e com base no magistério constante
da Igreja”.
36 “Declaro também que concordo com as palavras de Sua
Santidade João Paulo II sobre o assunto do Concílio Vaticano
II, em 6 de novembro de 1979: “que ele deve ser interpretado
à luz de toda a Sagrada Tradição e com base no magistério
constante da Igreja”.
37 MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 529.
64
documentos, que é, além disso, o significado da
nota do Concílio sobre a interpretação dos textos.
Pois está claro que a Tradição não é compatível
com a Declaração sobre Liberdade Religiosa […].38
Entre as soluções apresentadas, ele pediu “uma
reforma das afirmações ou expressões do Concílio que são
contrárias ao Magistério oficial da Igreja, especialmente
na Declaração sobre Liberdade Religiosa, na Declaração
sobre a Igreja e o Mundo e no Decreto sobre Religiões
Não Cristãs etc.”. Não apenas a Tradição não é distinguida
aqui do Magistério da Igreja, mas é identificada com um
conjunto de declarações e proposições que são expressões
datadas, contidas no ensinamento dos papas. Ela é um
objeto, e a Igreja não é seu sujeito.
Poderíamos continuar essa discussão, chegando até o
discurso do papa Bento XVI à Cúria, em 22 de dezembro de
2005, no qual ele faz uma clara distinção entre expressões da
Tradição e a própria Tradição.39 Nesse caso, é mais uma vez
concebível que a Igreja seja o sujeito da tradição.
Em suma, mais uma vez, na recepção do Vaticano II, a
oposição não se dá entre tradicionalistas e progressistas, que
constituem categorias inadequadas para descrever ambos
os lados. De fato, seria uma honra muito grande dedicar
a categoria de tradição e tradicionalistas aos cismáticos ou
38
Disponível em: https://lacriseintegriste.typepad.fr/weblog/1983/04/
lettre-de-mgr-lefebvre-%C3%A0-jeanpaul-ii.html
39
Ver ROUTHIER, Gilles. Sull’interpretazione del Vaticano
II. L’ermeneutica della riforma, compito per la teologia, I e
II. La Rivista del Clero italiano, v. XCII, n. 11-12, p. 744759; 827-841, 2011.
65
dissidentes de todos os tipos que não subscrevem o Concílio
Vaticano II. Esse Concílio, ao contrário, é a expressão da
tradição no sentido pleno do termo, transmitindo a fé que
vem dos apóstolos em um novo contexto cultural. Durante
esse Concílio, como foi o caso durante as outras assembleias
conciliares, a Igreja tornou-se o sujeito da tradição.
Émile Poulat escreveu que o catolicismo social
e integral promovido por Leão XIII desfez-se sob Pio
X, quando confrontado com problemas concretos de
organização e orientação, particularmente no que toca à
questão dos sindicatos.40 Em suma, tratava-se de situar as
coisas na história. Elas não podiam ser abordadas de forma
puramente teórica.
Conclusão
Isso nos aproxima de uma solução para nossa pergunta
inicial: como nos tornamos intransigentes? Como dissemos,
a situação social em que alguém ou algum grupo encontrase41 pode continuar sendo insuficiente para que a pessoa ou o
grupo de pessoas torne-se intransigente. Juntamente com René
Rémond, também enfatizamos os fatores psicológicos. Por fim,
40
POULAT, Émile. Église contre bourgeoisie: Introduction au devenir
du catholicisme actuel. Tournai: Casterman, 1977, p. 109-134.
41 Uma situação que caracterizamos de três maneiras: 1) um
encontro com a alteridade que questiona sua identidade,
sua visão de mundo e sua forma de compreendê-lo, suas
referências, suas convicções, seu lugar na sociedade; 2) a
situação de minoria na qual ele é colocado para enfrentar essa
nova situação; e 3) o fato de se sentir ameaçado, rejeitado à
margem, pressionado ou atacado por esse “novo mundo” que
desestrutura seu universo fornece um terreno fértil favorável.
66
insistimos na relação com a história concreta, com as realidades
e com a historicidade das coisas, inclusive das doutrinas.
Como Poulat ressalta, um mesmo movimento
(catolicismo integral e social) desfez-se por causa de
questões concretas e situacionais. Da mesma forma, em nível
intelectual, sem cair no modernismo, algumas pessoas, como
o padre Congar, quiseram concretizar na Igreja as exigências
justas e legítimas feitas por certos pensadores que queriam
integrar o pensamento moderno. Eles foram chamados de
progressistas, por falta de uma categoria melhor. De certa
forma, não estamos diante de uma nova disputa entre os
antigos e os modernos, mas diante de ideólogos, no sentido
definido pelo dicionário Larousse – “pessoa que vive no
mundo das ideias, que ignora as realidades” –,42 e de realistas,
no sentido de pessoas que levam em conta as realia, as
situações concretas, o mundo real. Provavelmente, não se
trata simplesmente de situar-se na linha de continuidade ou
na linha de progresso, para usar as categorias de De Smedt
em sua relatio que inaugurou o debate sobre Dignitatis
humanae. É mais uma questão de situar a doutrina na
história, como Bento XVI tentará fazer:
É claro que em todos estes sectores, que no seu
conjunto formam um único problema, podia
emergir alguma forma de descontinuidade que,
de certo modo, se tinha manifestado, de facto
uma descontinuidade, na qual, todavia, feitas as
diversas distinções entre as situações históricas
concretas e as suas exigências, resultava não
abandonada a continuidade nos princípios facto
42 Le Petit Larousse illustré. Paris, Larousse, 2024, p. 526.
67
que facilmente escapa a uma primeira percepção.
É exatamente neste conjunto de continuidade e
descontinuidade a diversos níveis que consiste na
natureza da verdadeira reforma. Neste processo
de novidade na continuidade devíamos aprender
a compreender mais concretamente do que antes
que as decisões da Igreja em relação às coisas
contingentes por exemplo, certas formas concretas
de liberalismo ou de interpretação liberal da
Bíblia deviam necessariamente ser essas mesmas
acidentais, justamente porque referidas a uma
determinada realidade em si mesma mutável.
Era preciso aprender a reconhecer que, em tais
decisões, somente os princípios exprimem o
aspecto duradouro, permanecendo subjacente e
motivando a decisão a partir de dentro. Não são,
por sua vez, igualmente permanentes as formas
concretas, que dependem da situação histórica e
podem, portanto, ser submetidas a mutações.43
O papa, portanto, distingue entre contextos, situações
históricas concretas, fatos contingentes e formas concretas,
por um lado, e princípios, por outro. Sem a história e o
reconhecimento da historicidade da doutrina, o catolicismo
integral, portador de um certo radicalismo, transforma-se
em intransigência.
De uma forma mais sutil, poderíamos retomar a
caracterização de duas tendências na teologia observadas
43 BENTO XVI. Discurso do papa Bento XVI aos cardeais,
arcebispos e prelados da cúria romana na apresentação dos votos
de Natal, 22 de dezembro de 2005. Disponível em: https://
www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2005/
december/documents/hf_ben_xvi_spe_20051222_romancuria.html.
68
por Gerard Philips, durante a primeira sessão do Concílio.44
A primeira está “mais preocupada com a fidelidade à
declaração tradicional, a outra está mais preocupada em
divulgar a mensagem ao homem contemporâneo”. A
primeira, poderíamos dizer, para usar as categorias do cardeal
Suhard, vê tudo como “imutável e atemporal”, enquanto a
segunda está mais atenta a pessoas em situações concretas.
Em seus cadernos conciliares, Gerard Philips distinguiu
entre “a teologia jurídica nocional e uma teologia aberta da
revelação que leva em conta o trabalho científico moderno”,
ou entre duas concepções: “a concepção angustiada que quer
preservar as posições estabelecidas a todo custo, e a tendência
que quer levar a mensagem do Evangelho à humanidade”.45
De sua parte, Henri de Lubac distinguiu os grupos da
seguinte forma:
Podemos dizer […] que há dois tipos de teólogos;
alguns dizem: vamos reler as Escrituras, São Paulo
etc.; vamos examinar a Tradição; vamos ouvir
os grandes teólogos clássicos; não vamos nos
esquecer de prestar atenção aos gregos; não vamos
negligenciar a História; vamos situar os textos
eclesiásticos nesse vasto contexto e entendê-los de
acordo com ele; não vamos deixar de nos informar
sobre os problemas, as necessidades, as dificuldades
de hoje etc. Os outros dizem: releiamos todos
os textos eclesiásticos dos últimos cem anos,
encíclicas, cartas, discursos, decisões tomadas
44 PHILIPS, Gerard. Les deux tendances dans la théologie
contemporaine, NRT, v. LXXXV, n. 3, p. 225-238, 1963.
45 Ver SCHELKENS, Karim (org.). Carnets conciliaires de Mgr
Gérard Philips secrétaire adjoint de la Commission doctrinale.
Leuven: Peeters, 2006, p. 114.
69
contra esta ou aquela pessoa, monita [avisos] do
Santo Ofício etc.; a partir de tudo isso, sem deixar
que nada se perca ou corrigir a menor palavra,
façamos uma marchetaria, levemos o pensamento
um pouco mais longe, demos a cada afirmação um
valor mais forte. Acima de tudo, não vamos olhar
para o mundo exterior. Não nos percamos em
novas pesquisas sobre as Escrituras ou a Tradição,
ou a fortiori sobre o pensamento recente, o que
nos levaria a arriscar relativizar nosso absoluto.
Somente o segundo tipo de teólogo é considerado
“seguro” em um determinado meio.46
Outra testemunha, P. Vallain, distinguiu entre uma
“teologia conceitual, racional, até mesmo racionalista” e uma
“teologia viva, renovada pelas suas fontes… consistente com
a mentalidade de hoje, mais tradicional…”.47 Finalmente, R.
Laurentin fez distinção entre duas escolas teológicas:
A primeira pensa em termos de noções e
normas, e toma muito cuidado para torná-las
irrefragavelmente claras e, se possível, inequívocas.
Para ele, a tarefa da teologia é promover fórmulas
dogmáticas irreformáveis, para reduzir as áreas
de obscuridade onde a discussão teológica ainda
é livre. Ela se ressente dessas hesitações, que são
inconsistentes com a natureza monolítica da
verdade. Portanto, ela está inclinada a definir e
condenar. […] A outra escola pensa em termos
da História da Salvação e da proclamação da
“Boa Nova”, ou seja, do Evangelho, à humanidade.
Ela insiste em manter contato, acima de tudo,
com essa fonte jorrante e inesgotável. Daí a
46
LUBAC, Henri de. Carnets du concile. v. 1. Paris: Cerf, 2007, p. 53.
47 VALLAIN, P. Rythmes du monde, v. 1, 1963, p. 53.
70
importância que atribui ao […] reabastecimento,
ou seja, o culto do retorno às fontes […] Quanto
à raiz da divergência, ela é dupla. Há aqueles que
tomaram o caminho da renovação e aqueles que
não o tomaram.48
Refletindo sobre a teologia praticada pelo Concílio
Vaticano II, Yves Congar observou que o Concílio
tinha ido além da “mentalidade conceitualista”, com seu
“ideal de definir exatamente os contornos de uma noção
cuidadosamente isolada de outras e considerada em um
contexto atemporal”. Em sua opinião, “o Concílio seguiu um
caminho diferente, buscou uma abordagem mais concreta
da realidade, uma abertura para as perguntas dos outros;
muitas vezes, os fatos precederam e guiaram as ideias”.49 Ele
continua esclarecendo seu pensamento:
O conhecimento da verdade pode ser alimentado e
enriquecido a partir de dentro, menos pelo raciocínio
a partir de conceitos e palavras, como faziam os
teólogos anteriores, do que pela contemplação e
experiência da realidade da qual estamos falando,
pela releitura das fontes que falam dela – a Sagrada
Escritura em particular – com base nas perguntas
das pessoas. No fundo, a diferença entre as duas
atitudes era entre uma abordagem mais conceitual
e uma abordagem real das coisas.50
48 LAURENTIN, René. L’enjeu du concilie: Bilan de la première
session. Paris: Seuil, 1963, p. 29-34.
49
CONGAR, Yves. La théologie depuis 1939. In: CONGAR,
Yves. Situation et tâches présentes de la théologie. Paris: Cerf,
1967, p. 21.
50 CONGAR, Yves. La théologie au Concile. Le ‘théologiser’
du Concile, em CONGAR, Situation et tâches présentes de la
71
Portanto, não se trata de criar um grupo de
tradicionalistas ou conservadores, de um lado, e um grupo
de progressistas ou liberais, de outro. A linha divisória está
em outro lugar: entre aqueles que vivem no mundo concreto
da história e aqueles que vivem no mundo dos conceitos e
normas. A esse grupo pertencem os intransigentes.
théologie, op. cit., p. 43.
Pensar o catolicismo intransigente para o
Brasil do século XIX
Ítalo Domingos Santirocchi
Yo vengo de una república, yo soy republicano,
y también católico, apostólico y romano,
¡miradme!, soy también ultramontano.1
A frase foi dita pelo Bispo de Conceptíon, no Chile,
Hipólito Sales, em 1870, na sessão de 24 de maio do Concílio
Vaticano I, defendendo o seu voto pela infalibilidade
papal. Algo parecido poderia ter sido dito por Zacarias
de Góis e Vasconcelos, no senado imperial brasileiro. Ele
foi um importante político, constitucionalista, liberal,
católico apostólico romano e ultramontano.2 Fatos como
1
Bispo de Conceptíon, no Chile, Hipólito Sales, em 1870,
na sessão de 24 de maio do Concílio Vaticano I. (apud
SOLANS, Francisco Javier Ramón. ¿Una historia conceptual
del ultramontanismo? Reflexiones en torno a la obra de Ítalo
Domingos Santirocchi. Debates de Redhisel, v. 3, n. 2, 2019, p. 53.
2
Zacarias de Góis e Vasconcelos era um advogado e importante
político brasileiro nascido na capitania do Rio de Janeiro, em
1815. Inicialmente, filiou-se ao partido conservador, ocupando
muitos cargos eletivos e de nomeação imperial. Nos anos
de 1860, alinhou-se, juntamente com uma dissidência dos
conservadores, ao novo Partido Liberal, fundado oficialmente
em 1870. Escreveu uma das mais duras crítica ao poder
moderador de D. Pedro II, “Da natureza e limites do poder
moderador”, de 1861. Católico e convicto ultramontano, atuou,
74
esse, de um liberal ou republicano declarando-se também
católico ultramontano, são importantes para ilustrar
como diferentes contextos criam dificuldades sérias aos
conceitos, que não podem simplesmente ser transplantados.
Também demonstram que, quando ampliamos a escala de
análise, para além daquelas nacionais ou continentais, os
conceitos precisam abarcar uma variedade de situações e
complexidade maiores.
Enquanto na América Latina a conivência do
ultramontanismo com os constitucionalismos, liberalismos
políticos e repúblicas foi algo constitutivo de sua formação,
na Europa isso deu-se no combate a tais ideias. Essa
variedade deveria ser mascarada no discurso ortodoxo da
alta hierarquia católica, que buscou unificar as práticas. No
presente texto, faremos o exercício de demonstrar os limites
de determinados conceitos, não com a intenção de refutálos, mas para ampliar os debates que buscam aprimorá-los
como instrumentos eficientes de análise historiográfica.
O tema desta coletânea é o conceito que utilizaremos
como objeto de reflexões no texto: “catolicismo intransigente”.
A historiografia brasileira o tem utilizado pouco para analisar
o catolicismo no Brasil do século XIX, diferentemente do
XX. O conceito mais recorrente para aquele contexto é o
de “catolicismo romanizado”, seguido pelo de “catolicismo
em 1874, como advogado de defesa, do bispo D. Frei Vital
Maria Gonçalves de Oliveira no Supremo Tribunal de
Justiça, numa “Questão Religiosa” entre a Igreja Católica e
a Maçonaria, a qual resultou na prisão do referido bispo
Vital Maria, em 1872. OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles.
Zacarias de Góis e Vasconcelos. São Paulo: Editora 34, 2002.
75
ultramontano”. Buscaremos, portanto, discutir sobre
as possíveis contribuições que o conceito “catolicismo
intransigente” pode trazer para a compreensão do catolicismo
no Brasil oitocentista, bem como buscaremos perceber as
suas similaridades e diferenças com os outros dois conceitos
aqui citados. Primeiramente, buscaremos traçar as diferenças
entre ultramontanismo e intransigência, focando o debate nos
contextos da França e Itália. Em seguida, demonstraremos
como o ultramontanismo é mais amplo e capaz de englobar
em seu seio o catolicismo intransigente. Para tanto, traçaremos
uma definição esquemática entre dois grupos: o catolicismo
liberal e o catolicismo intransigente na Europa, demarcando
suas diferenças. Isso é importante para demonstrarmos a
nossa hipótese: que o episcopado ultramontano brasileiro
oitocentista possuía não só características de ambos os grupos,
mas, também, suas próprias.
Nas tramas dos conceitos
O conceito de catolicismo intransigente é muito pouco
utilizado pela historiografia para analisar o catolicismo no
Brasil do século XIX, tornando-se um pouco mais presente
nos estudos sobre o período republicano. Mesmo assim,
essa presença não é tão marcante, pois conceitos como
restauração católica e integrismo são mais recorrentes.
Existem algumas exceções, principalmente por parte de
alguns historiadores formados na França, como é o caso, por
exemplo, de Francisco José Silva Gomes (1991),3 que teve
3
GOMES, Francisco José Silva. Le Système de Néo Chrétienté dans
le diocèse de Rio de Janeiro (1869-1915). 1991. Tese de doutorado
– Université de Toulouse Le-Mirail, Toulouse, 1991.
76
um maior contato com a historiografia desse país e dialogou
com ela, enquanto outros enfocaram o debate na tradição
historiográfica luso-brasileira.4
Podemos dizer que, ao contrário de outros campos
historiográficos, a História da Igreja no Brasil desenvolveuse de modo contextualizado com o debate histórico e
historiográfico, por um lado, luso-brasileiro, desde o século
XIX, a partir das polêmicas entre os ditos regalistas e
ultramontanos, e, por outro, latino-americano, a partir de
meados do século XX. Todavia, isso não deixou a História
da Igreja no Brasil imune, é claro, a todo o influxo teóricoconceitual europeu dos anos de 1970 até a atualidade, que foi
sendo absorvido pela historiografia do catolicismo; o influxo
consistia, por exemplo, nas influências da sociologia weberiana,
da História Social Inglesa, da nova História Cultural, da
Micro-História, da História Conectada, entre outras.
O conceito mais utilizado no Brasil para tratar da
História da Igreja Católica no século XIX é o de “catolicismo
romanizado”, seguido por aquele de “catolicismo
ultramontano”. O segundo é um conceito utilizado desde o
século XIX, que fazia parte da contenda política. O primeiro,
apesar de também presente nesse período, desenvolveu-
4
O historiador brasileiro com formação alemã Sergio da
Mata prefere utilizar o conceito de “fundamentalismo” ou
“xiitismo papal”, defendendo que o Kulturkampf seria um
fenômeno “histórico-universal” vinculado a Ranck, que se
aplicaria a América Latina. MATA, Sergio da. Entre Syllabus
e Kulturkampf: revisitando o “reformismo” católico na Minas
Gerais do Segundo Reinado. In: CHAVES, Cláudia Maria das
Graças; SILVEIRA, Marco Antonio (org.). Território, conflito
e identidade. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2007, p. 225-244.
77
se fortemente nos anos de 1970 e 1980, sob o influxo da
Teologia da Libertação e da História vista de baixo, com
influência da História Social Inglesa, principalmente de E.
Hobsbawm, e da sociologia weberiana.5
A romanização aproxima-se mais do conceito de
catolicismo intransigente, focado no discurso antimoderno,
sendo os ultramontanos executores fiéis das diretrizes
romanas e empenhados em uma luta contra o catolicismo
popular. Parte da recente historiografia6 crítica a esse
5
SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Uma questão de revisão
de conceitos: romanização, ultramontanismo, reforma.
Temporalidades, v. 2, n. 2, p. 24-33, 2010; AQUINO, Maurício.
O conceito de romanização do catolicismo brasileiro e a
abordagem histórica da Teologia da Libertação. Horizonte, v.
11, n. 32, p. 1485-1505, 2013.
6
VIEIRA, Dilermando Ramos. O processo de Reforma e
reorganização da Igreja no Brasil (1844-1926). Aparecida: Editora
Santuário, 2007; DUTRA NETO, Luciano. Das terras baixas
da Holanda às montanhas de Minas. Uma contribuição à história
das missões redentoristas, durante os primeiros trinta anos de
trabalho em Minas Gerais. 2006. Tese (Doutorado em Ciência
da Religião) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade
Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2006; MARTÍNEZ,
Ignacio. Uma nación para la Iglesia argentina: construcción del
Estado y jurisdicciones eclesiásticas en el siglo XIX. Buenos
Aires: Academia Nacional de la Historia, 2013; AQUINO, O
conceito de romanização do catolicismo brasileiro e a abordagem
histórica da Teologia da Libertação, op. cit.; SANTIROCCHI,
Ítalo Domingos. Questão de Consciência: os ultramontanos no
Brasil e o regalismo do Segundo Reinado (1840-1889). Belo
Horizonte: Fino Traço, 2015; SOLANS, Francisco Javier
Ramón. Más allá de los Andes: los orígenes ultramontanos de
una Iglesia latinoamericana (1851-1910). Bilbao: Universidad
del País Vasco Servicio Editorial, 2020; SILVA, Ana Rosa
Cloclet da. Imprensa católica e identidade ultramontana no
78
conceito ressalta as diferenças entre o discurso e a prática
ultramontana, que não provêm somente de cima (Santa
Sé), mas também foram frutos de uma demanda vinda dos
contextos locais, devido aos conflitos com o poder do Estado.
Tal historiografia ressalta a circularidade dessas ideias, bem
como as adaptações dos institutos religiosos a fim de se
inserirem em meio às populações mais pobres e como os
ultramontanos foram acolhidos pelos fiéis,7 tornando-se
hegemônicos na segunda metade do século XIX.8
Sobre o catolicismo liberal e intransigente na França,
Sylvain Milbach (2013),9 no texto Cattolicesimo intransigente
e cattolicesimo liberale nel XIX secolo [Catolicismo intransigente
e catolicismo liberal no século XIX], afirma que essas duas
respostas não afetaram diretamente o catolicismo vivido pela
maioria dos fiéis, mas sim aquele vivido pelas elites católicas,
Brasil do século XIX: uma análise a partir do jornal O Apóstolo.
Horizonte, v. 18, p. 542-569, 2020; entre outros.
7
SANTIROCCHI,
Pryscylla
Cordeiro
Rodrigues.
“Evangelizare pauperibus misit me”: ortodoxia e ortoprática
dos padres lazaristas nas missões do Ceará (1870-1877).
2019. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal do
Maranhão, São Luís, 2019; SANTIROCCHI, Pryscylla
Cordeiro Rodrigues; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Os
desafios para a universalização da Congregação da Missão
no superiorato do pe. Jean-Baptiste Étienne (1843-1874).
Almanack, n. 26, p. 1-52, 2020.
8
AZEVEDO, Ferdinand. A inesperada trajetória do
ultramontanismo no Brasil império. Perspectiva Teológica, v. 20, n.
51, p. 201-218, 1988.
9
MILBACH, Sylvain. Cattolicesimo intransigente e cattolicesimo
liberale nel XIX secolo. In: VINCENT, Catherine; TALLON,
Alain (org.). Storia religiosa della Francia. v. II. Milão: Centro
Ambrosiano, 2013, p. 491.
79
sejam leigas ou clericais. Além disso, ele destaca que as
definições de católicos “liberais” e “intransigentes” raramente são
reivindicadas por aqueles que as representam, pois, segundo ele,
os termos adquiriram conotações pejorativas no oitocentos. No
Brasil, o ultramontanismo teve impacto no catolicismo vivido
por grande parte dos fiéis, o que gerou um debate historiográfico
envolvendo o chamado “catolicismo popular”.10 Enquanto a
teoria da romanização defende que o ultramontanismo combatia
este último, pesquisas atuais vêm destacando uma identificação
do catolicismo popular com o ultramontanismo e uma adaptação
deste para se aproximar da população.11
10
Especialmente a partir da segunda metade do século XX,
abordagens das Ciências Humanas e Sociais propuseramse a classificar a prática católica do Brasil, denominando de
popular o catolicismo que se constituiu a partir das demandas
socioculturais próprias do “povo”, originado a partir das
particularidades presentes na vivência religiosa da Colônia.
Ou ainda um catolicismo rústico, característico dos espaços
interioranos, notadamente rurais, oposto àquele desenvolvido
nos centros urbanos. Se referem também a expressões
religiosas que, à revelia da Igreja, reelaboram o que é
emanado por seus quadros institucionais. É possível perceber
a existência de múltiplas definições para a religiosidade tida
como espontânea e originária do povo, das camadas ditas
populares, em diferentes períodos da História do Brasil. Cf.
SOUSA, Emerson José Ferreira de. O catolicismo popular
brasileiro: notas em torno da sua invenção historiográfica.
Temporalidades, v. 13, n. 2, p. 724-745, 2021.
11 AZEVEDO, A inesperada trajetória do ultramontanismo
no Brasil império, op. cit.; SANTIROCCHI, Questão de
Consciência, op. cit.; SANTIROCCHI; SANTIROCCHI,
Os desafios para a universalização da Congregação da Missão
no superiorato do pe. Jean-Baptiste Étienne (1843-1874), op.
cit.; SANTIROCCHI, Pryscylla, “Evangelizare pauperibus
misit me”, op. cit.
80
Na França, a intransigência tende a ser confundida
com o “ultramontanismo”, que era utilizado na década de
1820 para denunciar as tentativas de ingerência do poder
espiritual no poder temporal. No entanto, Milbach ressalta que
o ultramontanismo inclui várias realidades, como diferentes
formas de piedade, eclesiologia, bem como alguns aspectos da
teologia moral e dogmática. Esses diferentes elementos têm
uma coerência entre si, embora os confundir fez parte do uso
polêmico de ultramontanismo no século XIX, principalmente
no âmbito político12. Já Giacomo Martina (1998),13 na
organização do seu livro clássico Storia della Chiesa da Lutero ai
nostri giorni [História da Igreja de Lutero aos nossos dias], define
primeiramente o ultramontanismo para, em seguida, apresentar
os católicos intransigentes e liberais. Essa sequência leva ao
entendimento de que estas duas últimas correntes (ou parte
delas) poderiam estar contidas na primeira, até porque o autor
adota a mesma lógica quando trabalha com os intransigentes,
dividindo-os em grupos que ele chama de “extrema esquerda”,
“moderados” e “extrema direita”. Tais grupos abrangem desde
aqueles que tinham uma maior abertura prática ao liberalismo
até os que negavam totalmente a modernidade e defendiam
um retorno ao Antigo Regime.
A intransigência refere-se às posições da Igreja em
relação ao mundo contemporâneo. Nesse sentido, Milbach14
12
MILBACH, Cattolicesimo intransigente e cattolicesimo liberale
nel XIX secolo, op. cit., p. 493.
13 MARTINA, Giacomo. Storia della Chiesa da Lutero ai nostri
giorni. vol. 3, L’età del liberalismo. Brescia: Morcelliana, 1998.
14
MILBACH, Cattolicesimo intransigente e cattolicesimo liberale
nel XIX secolo, op. cit., p. 493.
81
afirma que a assimilação polêmica entre ultramontanismo e
intransigência não convence, já que esta última não seria um
atributo exclusivo da Santa Sé, pois, como destaca Gérard
Gengembre,15 as condenações feitas pelo Syllabus, de 1864,
foram essenciais para o intransigentismo e encontraram
terreno fértil na França.16 Portanto, o que é ressaltado pelos
autores é uma matriz francesa do intransigentismo, enquanto
o ultramontanismo teria laços mais fortes com a Santa Sé.
Milbach também menciona a forte herança filosófica
contrarrevolucionária presente em parte da elite católica francesa,
constituída pela influência dos pensadores como Louis de
Bonald, Joseph de Maistre e Félicité de Lamennais.17 Os bispos
brasileiros, inclusive os ultramontanos, nunca questionaram
os princípios liberais de 1820 (Revolução do Porto) e nem o
constitucionalismo,18 conforme veremos em seguida em seguida.
O Syllabus e a Quanta Cura foram adotados por
porta-vozes fervorosos da intransigência francesa, que
regularam suas condutas com base nesses documentos
nas décadas seguintes. Todavia, a intransigência já vinha
desenvolvendo-se na França desde o tradicionalismo
católico do início do século, que, segundo Paul Bénichou
15 GENGEMBRE, Gérard. La Contre-Révolution ou l’Histoire
desesperante. Paris: Imago, 1989.
16 Este documento foi baseado em um inventário de erros
contemporâneos elaborado pelo bispo de Perpignan, Mons.
Gerbet, e enviado ao Papa, em 1860.
17
MILBACH, Cattolicesimo intransigente e cattolicesimo liberale
nel XIX secolo, op. cit., p. 493.
18 Todavia, esses autores são muito citados por alguns dos
ultramontanos brasileiros e em seus jornais.
82
(1997),19 era caracterizado pelo anticonstitucionalismo:
nenhum contrato social seria possível se não fosse
permitido por Deus. É uma filosofia da história antitética
à filosofia das Luzes, que condena especialmente o
papel histórico da livre investigação, nascida do cisma
protestante, e que era tida como a origem distante da
Revolução. Tal característica não se encontra, de um modo
geral, no episcopado brasileiro, que apoiou o Triênio
Liberal português, o constitucionalismo e a independência
do Brasil.
Em uma pastoral de janeiro de 1822, D. Romualdo
Coelho, bispo de Belém do Pará, pauta-se exatamente em
um diálogo com as “Luzes”, para, em seguida, apresentar o
conceito de pacto social, no qual ele apoia-se para defender
o constitucionalismo. Segundo o bispo,
à medida que o espírito humano se adianta em
conhecimentos, preenche mais dignamente os
seus deveres, e ofícios com relação a Deus, a si,
e aos seus semelhantes; ninguém pode duvidar,
que o estado progressivo de luzes, em que nos
achamos, fará cada vez mais indissolúveis os
sagrados vínculos da Religião, e por consequência
mais sólidos os fundamentos da Sociedade Civil.20
19
BÉNICHOU, Paul. Il tempo dei profeti: dottrine dell’età romantica.
Bologna: Il Mulino, 1997.
20 COELHO, Romualdo de Sousa. Pastoral do bispo do Pará dom
Romualdo de Souza Coelho: prevenindo os seus diocesanos contra
opiniões abusivas e sediciosas sobre a verdadeira inteligência do
sistema constitucional que a nação tem adoptado, para manter a
sua segurança, e prosperidade. Com aditamento de hum edital
análogo. Lisboa: Na Tipográfica Patriótica, 1822, p. 4.
83
Não houve resistência por parte do episcopado
brasileiro à Revolução do Porto; somente dois bispos, o
do Maranhão e o da Bahia, resistiram à independência
do Brasil e foram destituídos. Portanto, a Igreja no Brasil
Independente não nasceu antirrevolucionária, embora tenha
sido fruto da revolução, como a própria nação da qual faz
parte. Após a independência, bispos e padres de diferentes
matizes foram eleitos deputados e senadores durante
todo o Período Imperial e atuaram dentro do espectro
constitucionalista, sem nunca o questionar.21
Para a intransigência europeia, o princípio de
autoridade encarnado pela Igreja, em resposta ao liberalismo
e ao individualismo, condena a Revolução como expressão
do orgulho e, mais precisamente, da razão e da arrogância.
A tradição era considerada elemento constitutivo da ordem
social e política: a ordem social não seria decretada, mas
seria fruto da revelação e da história que dela procede. Os
ultramontanos no Brasil condenaram, em seus escritos,
o “orgulho e arrogância” da razão liberal, e a tradição era
21 SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. “É constitucional, é
católico romano, é justo e virtuoso”: A Igreja Católica e o
processo de Independência. In: PIMENTA, João Paulo;
SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. A Independência do Brasil
em perspectiva mundial. São Paulo: Alameda, 2022, p. 145170; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Cartas Pastorais
Constitucionais no contexto da Independência do Brasil:
dioceses setentrionais (1822). Revista Brasileira de História,
v. 42, p. 77-10, 2022; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos.
As independências do Brasil e a Igreja. In: OLIVEIRA,
Kelly Eleutério Machado; FERNANDES, Renata Silva. A
Independência do Brasil: temas de pesquisa ensino de história.
Belo Horizonte: Fino Traço, 2022, p. 201-236.
84
fonte de conhecimento para a atuação no presente, guiando
suas ações no ambiente constitucional, mas não contra ele.22
Portanto, por mais conservadores que fossem, eram-no
dentro do constitucionalismo político oitocentista.
Assim, os intransigentes europeus possuíam
solidariedade com correntes mais conservadoras e
reacionárias em questões políticas, confrontando as ideias
nascidas da Revolução e defendendo a religião como
fundamento da ordem social. Milbach23 resume quatros
pontos que a intransigência francesa rejeitava: a Reforma, o
Iluminismo, a Revolução e o Estado liberal.
É difícil ver todos esses aspectos no episcopado
brasileiro. Talvez um ou outro bispo possa aproximar-se
deles em certos momentos; ou alguns, acusados de serem
excessivamente zelosos, como era o caso do bispo de
Pernambuco, D. Vital (1844-1878), poderiam realmente ser
intransigentes em um estilo próximo ao francês. Contudo,
no geral, como já referido, viviam e aceitavam a monarquia
22 Pode-se perceber isso nas obras de Candido Mendes de
Almeida, um dos maiores intelectuais ultramontanos do
século XIX no Brasil. Ver ANGELELLI, Gustavo. Cândido
Mendes de Almeida: Um jurista-historiador no Brasil oitocentista.
São Paulo: Almedina, 2022.
23 MILBACH, Cattolicesimo intransigente e cattolicesimo
liberale nel XIX secolo, op. cit., p. 496. Pontos também
destacados por BOUTRY, Philippe. Ce catholicisme qu’on
pourrait dire intransigeant. In: SACQUIN, Michèle. Entre
Bossuet et Maurras: L’antiprotestantisme en France de 1814
à 1870. Paris: École des Chartes, 1998; BOUTRY, Philippe.
Le mouvement vers Rome. In: RÉMOND, René; LE GOFF,
Jacques; JOUTARD, Philippe (org.). Histoire de la France
religieuse, XVIIIe-XIXe siècle. v. 3. Paris: Seuil, 1991, t. 3.
85
constitucional liberal como forma de governo, faziam política
jogando o seu jogo e as suas regras, inclusive utilizando autores
iluministas em seus jornais, para defenderem suas posições
em relação ao que chamavam de liberdade ou autonomia da
Igreja perante o Estado. Certamente condenavam a Reforma
Protestante e certos aspectos do ocidente pós-revolucionário,
os quais definiam como excessivos, principalmente aqueles
que atacavam a soberania papal sobre os estados pontifícios ou
diminuíam a influência da Igreja sobre a sociedade brasileira
e sobre o controle dos fiéis. Todavia, não se viam como
antimodernos, mas tinham uma proposta de modernidade
concorrente, uma modernidade católica.24
No outro campo, temos o catolicismo liberal, que,
segundo Marcel Prélot e Françoise Gallouédec-Genuys
(1969),25 cresceu em defesa do direito de a Igreja possuir suas
próprias escolas na França. Tais limitações são consideradas,
por esse grupo, como um abuso de poder do Estado.
Segundo Milbach, “leigos e clérigos se organizam para
reivindicar as liberdades religiosas em relação a um Estado
que estende suas prerrogativas além de suas competências e
em desrespeito aos direitos da consciência (especificamente,
o direito dos pais de escolherem a educação de seus filhos)”.26
24 ANGELELLI, Cândido Mendes de Almeida, op. cit.;
SANTIROCHI, Ítalo Domingos. O paradigma tridentino
e a Igreja Católica no Brasil oitocentista: modernidade e
secularização. Revista Reflexão, v. 42, n.2, p. 161-181, 2018.
25 PRÉLOT, Marcel; GALLOUÉDEC-GENUYS, Françoise.
Le Libéralisme catholique. Paris: Colin, 1969.
26 MILBACH, Cattolicesimo intransigente e cattolicesimo
liberale nel XIX secolo, op. cit., p. 497.
86
O jornal “L’Avenir” era o maior defensor do catolicismo
liberal. Com base em Milbach e Jean-René Derré,27 podemos
resumir da seguinte maneira as ideias do periódico: afirmava
que a monarquia legítima estava morta e não era capaz de
servir aos interesses católicos; condenava o galicanismo,
ainda predominante no alto clero, por comprometer os
interesses religiosos, subordinando a Igreja ao poder do
Estado; reconhecia as liberdades adquiridas pela Revolução
como meio de restaurar a influência do catolicismo e, em
nome disso, defendia as mesmas liberdades para todos os
cidadãos, inclusive os católicos, que deveriam ser capazes
de se organizar de maneira completamente independente
em questões escolares e associativas (ordens religiosas e
congregações); e, por fim, defendia que a influência da religião
também dependia de seu impacto nas ciências modernas.
Mesmo os grupos menos radicais acreditavam que
a Igreja deveria inserir-se na modernidade para poder
influenciá-la, que os católicos deveriam aprender a utilizar as
novas liberdades em vantagem própria e que era necessária a
independência do poder da Igreja em relação ao do Estado,
mesmo se isso significasse a separação. Encontramos
muitas características dos bispos brasileiros oitocentistas
na descrição acima: condenação ao regalismo do Estado (às
vezes até mesmo ao regime do padroado); reconhecimento,
pelo menos na prática, de algumas liberdades adquiridas
após as revoluções, utilizando-as com o intuito de manter
e ampliar a influência do catolicismo; uso do discurso da
27 Ibid., p. 498; DERRÉ, Jean-René. Le renouvellement de la
pensée religieuse em France de 1824 à 1834: Essai sur les origines
et la signification du mennaisianisme. Paris: Klincksieck, 1962.
87
liberdade individual e associativa, para defender os interesses
da Igreja; diálogo com as ciências modernas; e, até mesmo,
na segunda metade do século XIX, alguns setores do clero
chegaram a cogitar que a separação entre o Estado e a Igreja
seria o melhor para a conquista da liberdade desta última.
Tanto é assim, que encontramos ultramontanos
brasileiros no partido liberal. Esses traços do catolicismo
liberal francês também se aproximam muito do chamado
“ liberalismo eclesiástico” no Brasil, que teve como um dos
seus principais representantes o Pe. Diogo Feijó. Todavia,
existia um traço fundamental que os diferia: os brasileiros
eram fortemente regalistas, apoiando a ingerência do Estado
na Igreja; já os franceses eram antigalicanos e buscavam a
autonomia em relação aos governos civis.
Então, por que não enquadrar o episcopado brasileiro,
ou parte dele, dentro do conceito europeu de “catolicismo
liberal”? Porque os ultramontanos abraçaram, pelo menos no
discurso, os documentos oficiais como o Syllabus – defenderam
veementemente a infalibilidade papal, dialogaram com autores
tradicionalistas e intransigentes franceses, espanhóis e italianos,
enquanto o clero liberal, como dito antes, era fortemente
regalista. Mesmo assim, ambos os grupos acolheram na sua
maioria a República, em 1889, e a separação entre Igreja e
Estado. Grande número de ultramontanos entendia que, apesar
dos riscos, esse caminho fortaleceria a autoridade pontifícia e
favoreceria a liberdade de ação dos bispos e do clero.
O episcopado ultramontano no Brasil
Nosso episcopado ultramontano não fez como
Dupanloup, bispo de Orléans (1849-1878), que escreveu
88
uma interpretação menos rigorosa do Syllabus, utilizando
da velha estratégia da tese e da hipótese – interpretação
que, inclusive, não foi condenada pela Santa Sé. Contudo,
o grupo fez uso prático disso, ao adotar o discurso ortodoxo
como tese e, nas ações, ao se adaptar à modernidade, no que
era possível ou estratégico. Essa atitude também nunca foi
condenada pela Santa Sé, mesmo, quando por vezes, divergiu
de suas orientações.
Os conceitos de intransigência e de catolicismo
liberal, como entendidos na Europa, podem ser importantes
contrapontos para nos ajudar a refletir sobre o catolicismo
no Brasil, sobretudo para pensar sobre quem ou o que
enquadramos em noções como liberalismo eclesiástico e
ultramontanismo. Como vimos, ambos têm aproximações e
distinções em relação aos dois grupos na França e na Itália.
São importantes para compreender, também, a atuação dos
bispos e suas cisões internas, pois vários deles fizeram sua
formação, ou parte dela, na França e na Itália oitocentista,
como podemos ver a seguir, restringindo-nos ao episcopado
mais identificado com o ultramontanismo:
89
Quadro 1
Principais bispos ultramontanos durante o Segundo Reinado
Bispo
Antônio
Ferreira
Viçoso
Antônio
Joaquim de
Mello
José
Afonso
de Morais
Torres
Luís
Antônio
dos Santos
João
Antônio
dos Santos
Nascimento
Peniche
(Portugal)
Formação
Condição
Eclesiástica
Seminário da
Congregação
da Missão
(Portugal)
Regular
(Lazarista)
Itu (SP)
Convento de
S. Francisco;
Aulas
Episcopais (SP
- Brasil)
Secular
Rio de
Janeiro
Seminário de
Jacuecanga
(RJ); Seminário
do Caraça
(MG - Brasil)
Regular
(Lazarista)
Angra dos
Reis (RJ)
Seminário de
Jacuecanga
(RJ - Brasil);
Seminário do
Caraça (MG Brasil); Colégio
Romano
(Itália)
Secular
S. Gonçalo
do Rio
Preto (MG)
Seminário
do Caraça;
Congonhas do
Campo (MG Brasil); Colégio
Romano
(Itália); S.
Sulpício
(França)
Secular
90
Pedro
Maria de
Lacerda
Rio de
Janeiro
Seminário
do Caraça,
Congonhas
do Campo;
Seminário
Episcopal
de Mariana
(MG - Brasil);
Colégio
Romano
(Itália)
Antônio
Cândido de
Alvarenga
S. Paulo
Seminário de S.
Paulo (Brasil)
Secular
Joaquim J.
Vieira
Itapetininga
(SP)
Seminário de S.
Paulo (Brasil)
Secular
Engenho
do Rosário
(BA)
Seminário
Salvador (BA Brasil); Colégio
S. Celestino
(Bourges),
Seminário de
S. Sulpício
(França);
Academia de
S. Apolinário
(Itália)
Secular
Aracati
(CE)
Seminário
de Olinda
(PE - Brasil);
Seminário de
S. Sulpício
(França); Univ.
Sapienza
(Itália)
Secular
Antônio
de Macedo
Costa
Manuel
do Rego
Medeiros
Secular
91
Recife (PE)
Univ. Sapienza
e Seminário
de Strezza
(Itália); Colégio
de Ratcliffe
e Rugby
(Inglaterra)
Regular
(Rosminiano)
Vital Maria
G. de
Oliveira
Pedras de
Fogo (PE)
Seminário
de Olinda
(PE - Brasil);
Seminário
S. Sulpício,
Convento
de Versalhes,
Perpignan
e Toulouse
(França)
Regular
(Capuchinho)
Manuel
Joaquim da
Silveira
Rio de
Janeiro
Seminário
São José (RJ Brasil)
Secular
Campos
(RJ)
Mosteiro de
S. Bento e
Seminário de
S. José (RJ Brasil)
Secular
Turiaçù
(PA, depois
incorporada
ao MA)
Seminário
Episcopal de
Belém (PA Brasil)
Secular
Salvador
(BA)
Seminário da
Congregação
dos Padres
das Missões
(França)
Regular
(Lazarista)
Francisco
Cardoso
Aires
Antônio
Maria C.
de Sá e
Benevides
Joaquim
Gonçalves
de Azevedo
Cláudio
José G.
Ponce de
Leão
Carlos Luís
D’Amour
S. Luís
(MA)
Seminário de S.
Antônio (MA Brasil)
Secular
92
Lino
Deodato
R. de
Carvalho
S. Bernardo
das Russas
(CE)
Seminário de
Olinda (PE Brasil)
Secular
Feliciano
José
Rodrigues
de Araújo
Prates
Aldeia
dos Anjos
(Gravataí,
RS)
Seminário N.
S. Lapa (RJ Brasil)
Secular
Caetité
(BA)
Seminário
de Salvador
(BA - Brasil);
Univ. Sapienza
(Itália)
Secular
Sebastião
Dias
Laranjeiras
Fonte: SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Questão de Consciência: os
ultramontanos no Brasil e o regalismo do Segundo Reinado (1840-1889).
Belo Horizonte: Fino Traço, 2015, p. 208-210. Adaptado pelo autor.
No Quadro 1, levamos em consideração quatro
aspectos para análise: local de nascimento, formação,
locais de formação e condição eclesiástica, ou seja, secular
ou regular. O primeiro quesito não nos interessa para essa
análise; por isso, vamos começar pelo último quesito. Entre
os vinte bispos listados, a grande maioria (quinze deles)
pertenceu ao clero secular, e somente cinco eram religiosos,
sendo três lazaristas, um rosminiano e um capuchinho. Fica
clara a importância dos lazaristas no processo de reforma,
mas, também, a preferência pela nomeação do clero secular
para ocupar as cadeiras episcopais.
Para compreender as conexões internacionais, os locais
de formação podem dar algum indício. Para isso, no Quadro
2 são informados os locais por onde os bispos passaram
durante sua formação, já que muitos deles começaram no
Brasil e, posteriormente, foram para o exterior, sendo que
93
alguns passaram por mais de um país, como pode ser visto
no Quadro 1.
Quadro 2
País de formação
Local
Brasil
Itália
França
Portugal
Inglaterra
Quant.
17
7
5
1
1
Fonte: SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Questão de Consciência: os
ultramontanos no Brasil e o regalismo do Segundo Reinado (1840-1889).
Belo Horizonte: Fino Traço, 2015, p. 211. Adaptado pelo autor.
Podemos notar que, dos vinte bispos, somente
três não tiveram formação religiosa no Brasil, sendo
feita totalmente no exterior. A grande maioria iniciou
sua formação eclesiástica em território nacional e foi
complementá-la na Europa. O país mais frequentado foi a
Itália, com sete bispos passando por lá. Roma foi a cidade que
teve a maior concentração, sendo que o Colégio Romano/
Pontifícia Universidade Gregoriana, dirigido pelos jesuítas,
e a Universidade Sapienza foram as instituições mais
procuradas. Logo em seguida encontramos a França, com
cinco prelados, com a concentração de bispos estudando
em Paris, principalmente no Seminário de São Sulpício.
Temos um prelado em Portugal e outro na Inglaterra.
Podemos notar também que, ao mesmo tempo em que
três bispos tiveram formação totalmente estrangeira, oito
tiveram formação exclusivamente nacional, ou seja, quase
a metade.
94
Quadro 3
Formação em seminários dirigidos por Ordens Religiosas
Ordens
Lazarista
Capuchinho
Sulpiciano
Quant.
6
4
4
Ordens
Jesuíta
Rosminiano
Carmelita
Quant.
3
1
1
Ordens
Beneditino
Franciscanos
Quant.
1
1
Fonte: SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Questão de Consciência: os
ultramontanos no Brasil e o regalismo do Segundo Reinado (1840-1889).
Belo Horizonte: Fino Traço, 2015, p. 213. Adaptado pelo autor.
Este último quadro (3), juntamente com os demais,
confirma a importância da Congregação dos Padres da
Missão para o ultramontanismo no Brasil, sendo que a
maioria dos bispos ultramontanos no Segundo Reinado
passou por um dos seus seminários. Em seguida, temos
os capuchinhos e sulpicianos, também tendo significativa
presença os jesuítas. Essas quatro ordens influíram
diretamente na reforma ultramontana da Igreja durante o
Império, por meio de sua atuação educativa. Se atentarmos
para o fato que a grande maioria dos lazaristas que vieram
para o Brasil eram franceses, tendo muitos deles entre
os capuchinhos, e que a formação sulpiciana era feita
toda em Paris, notaremos que o influxo do catolicismo
francês sobre o ultramontanismo brasileiro é marcante,
vindo os italianos logo em seguida. Tal fato reforça a
importância de termos escolhido esses dois países com
pontos de comparação e diálogo, devido ao papel da Itália
95
e da França na formação final de parte significativa de
nossos bispos.
Destacamos, conforme o Quadro 1, os três bispos mais
diretamente envolvidos na Questão Religiosa. O primeiro,
D. Pedro Maria de Lacerda, bispo do Rio de Janeiro, deu
início a ela e, em seguida, abaixou os tons. Em um segundo
momento, no final dos anos 1870, resistiu às ordens da
Santa Sé para reformar as irmandades religiosas, para não
entrar em conflito com o Estado novamente. Foi um dos
únicos bispos que adotaram um posicionamento reticente
em relação a Proclamação da República e que tinham
fortes tendências monarquistas. O segundo, D. Antônio de
Macedo Costa, bispo de Belém do Pará, transformou-se no
líder da ala mais radical do ultramontanismo, opondo-se
fortemente ao que considerava intervencionismo do Estado
Imperial nos assuntos da Igreja. Acolheu a República e foi
o principal interlocutor da Igreja com o governo nos seus
primeiros anos, vindo a falecer em 1891. O terceiro, D.
Vital Maria G. de Oliveira, bispo de Pernambuco, foi o
mais ativo e mais radical na Questão Religiosa. Investiu
todas suas forças nesse conflito, vindo a falecer em seguida,
em 1878. Era constantemente acusado de ser zeloso ao
extremo (fora as acusações que eram comum a todos os
ultramontanos, como a de serem jesuítas disfarçados,
papistas, romanistas etc.).
D. Lacerda, de formação lazarista e italiana, foi o
menos radical dos três. Apesar de ter iniciado o conflito,
logo se retraiu e buscou manter uma relação pacífica com
o Estado monárquico. D. Macedo, com formação na
França e na Itália, ao mesmo tempo que foi um grande
96
defensor da doutrina e da autonomia da Igreja, também
foi um hábil político, capaz de estabelecer diálogos e
negociações com uma nascente República com fortes
traços positivistas e até anticlericais. D. Vital, o mais
feroz combatente católico na Questão Religiosa, teve
sua formação na França, no Seminário São Sulpício,
Convento de Versalhes, Perpignan e Toulouse, sendo
muito influenciado pelo catolicismo ultramontano francês
e, provavelmente, pelo intransigentismo.
Conclusão
Refletir sobre a noção de intransigência pode auxiliar
a compreender certos aspectos das ações e ideias do clero
brasileiro, como o zeloso D. Vital na Questão Religiosa, ou
o monarquismo e a resistência à República de D. Lacerda,
ou, até mesmo, a rigidez doutrinária de D. Macedo. O tema
do intransigentismo no século XIX nos ajuda a trazer novos
elementos para o debate teórico e historiográfico sobre a
Igreja no Brasil oitocentista, bem como o desdobramento
desse movimento no contexto brasileiro poderá ajudar a
aprofundar o debate europeu e norte-americano.
Essa necessidade de redimensionar os conceitos para
o continente americano também é defendida pelo colega
Francisco Solans, no livro Más allá de los Andes, quando diz:
El hecho de que las tendencias ultramontanas
intransigentes de corte legitimista fueran
hegemónicas en la Europa continental del siglo
XIX ha distorsionado la percepción que tenemos
de este movimiento. Si extendernos nuestro marco
de estudios a Reino Unido, Estados Unidos,
97
Canadá y Latinoamérica, el claro compromiso
intransigente se desdibuja notablemente.28
Nos últimos anos, muitos de nós temos sentido a
necessidade de um debate teórico-conceitual mais profundo,
que ajude a melhorar o nosso instrumental de análise.
Contudo, podemos concluir que o conceito de intransigência
católica, do modo que é pensado na Europa, apresenta limites
teóricos para sua aplicação à realidade brasileira específica
do século XIX. Neste sentido, continuar refletindo sobre
ele, a partir de bases empíricas, revela-se fundamental para
entender o nosso contexto em perspectivas globais.
28 SOLANS, Más allá de los Andes, op. cit., p. 24.
Os católicos tradicionalistas e a recepção
do Concílio Vaticano II
Philippe Roy-Lysencourt
A recepção do Concílio Vaticano II pelos católicos
tradicionalistas é um tema pouco explorado no campo das
pesquisas acadêmicas. Embora existam alguns estudos,1
os trabalhos sobre a questão encontram-se em seus
primeiros passos, longe, portanto, de cobrir toda a temática
e de oferecer uma visão global e sintética do assunto.
Ao contrário, convidam à realização de investigações
aprofundadas, que só poderão fornecer resultados
convincentes após investigação exaustiva. Desse modo,
1
Ver, particularmente, ROY-LYSENCOURT, Philippe. La
première réception du concile Vatican II par les catholiques
traditionalistes (1965-1969). In: QUISINSKY, Michael;
SCHELKENS, Karim; AMHERDT, François-Xavier
(org.). Theologia semper iuvenescit: Études sur la réception de
Vatican II offertes à Gilles Routhier. Fribourg: Academic Press
Fribourg, 2013, p. 53-98; ROY-LYSENCOURT, Philippe.
Les catholiques traditionalistes et la première réception
de Vatican II. In: SORREL, Christian (org.). Renouveau
conciliaire et crise doctrinale: Rome et les Églises nationales
(1966-1968). Actes du colloque international de Lyon (1213 mai 2016). Lyon: Laboratoire de Recherche Historique
Rhône-Alpes, 2017, p. 99-113; ROY-LYSENCOURT,
Philippe. La première réception du concile Vatican II par les
catholiques traditionalistes (1965-1969). Archives de sciences
sociales des religions, n. 175, p. 319-339, 2016.
100
não pretendemos oferecer aqui uma síntese conclusiva,
mas apresentar um primeiro inventário da situação atual,
cujos limites estamos plenamente conscientes.2 Vale dizer
que o presente texto está longe de ser exaustivo; o mundo
tradicionalista é uma galáxia complexa, e os indivíduos,
movimentos e redes a serem considerados são numerosos
demais para que seja possível abordar sua totalidade no
espaço de algumas páginas. Desse modo, trata-se aqui da
exposição dos primeiros resultados de uma investigação
histórica que merece ser consideravelmente aprofundada.
Salientemos que não vamos entrar, neste capítulo,
nos detalhes da história do tradicionalismo pós-conciliar;
centraremos nossa análise na questão da recepção do
Vaticano II e de sua evolução, contentando-nos em relatar
os eventos essenciais para a compreensão de nosso propósito,
sem analisar conjunturas, pessoas ou grupos que se formaram
ao longo do tempo e das circunstâncias. As fontes utilizadas,
de língua francesa e italiana, podem parecer privilegiadas.
Isso não se deve a uma escolha deliberada ou restrição
do assunto, mas ao fato de estarmos situados em uma
história de ideias em relação às quais as reflexões teóricas
desenvolveram-se principalmente nessas zonas geográficas.
Uma história do tradicionalismo católico3 teria implicado
2
O presente texto é uma versão ligeiramente modificada de
capítulo de coletivo já publicado: ROY-LYSENCOURT,
Philippe. The Reception of the Second Vatican Council by
Traditionalist Catholics, In: CLIFFORD, Catherine E.;
FAGGIOLI, Massimo Faggioli (org.). The Oxford Handbook of
Vatican II. Oxford: Oxford University Press, 2023, p. 360-378.
3
Sobre este assunto,ver CHIRON,Yves. Histoire des traditionalistes.
Paris: Éditions Tallandier, 2022.
101
um desdobramento geográfico diferente de uma história da
recepção do Vaticano II.
No estado atual da pesquisa, se excluirmos a recepção
que ocorreu durante o próprio Concílio e partirmos do
encerramento do evento, podemos considerar que a recepção
do Vaticano II pelos tradicionalistas ocorreu em três grandes
fases que comporão as partes deste capítulo. Em primeiro
lugar, podemos distinguir uma primeira recepção que durou
de 8 de dezembro de 1965 a 30 de novembro de 1969, ou
seja, desde o encerramento do evento até a entrada em vigor
das prescrições da Constituição apostólica Missale romanum,
de 3 de abril de 1969. A partir dessa data, a recepção do
Vaticano II pelos opositores ao Concílio entrou em uma nova
fase, que durou até o ano 2000, quando a Fraternidade São
Pio X organizou uma peregrinação a Roma por ocasião do
Ano Santo. Este evento deu origem a discussões doutrinais
entre a referida Fraternidade e a Santa Sé e abriu ao mesmo
tempo um novo período, o terceiro, na recepção do Vaticano
II pelos tradicionalistas.
Primeira fase (1965-1969):
uma recepção à luz da Tradição
Estudar a recepção do Concílio Vaticano II pelos
tradicionalistas implica considerar a história e as lutas do
Coetus Internationalis Patrum (CIP), que foi o principal
grupo de opositores no Concílio.4 Chefiado por Mons.
4
Sobre esse tema, ver ROY-LYSENCOURT, Philippe. Le
Cœtus Internationalis Patrum, un groupe d’opposants au sein du
concile Vatican II. 2011. 2331 p. Tese de doutorado – Faculté
de théologie et de sciences religieuses, Université Laval;
102
Lefebvre, esse “comitê” opôs-se à orientação do Concílio,
já que seus membros e simpatizantes o consideravam em
oposição à doutrina tradicional da Igreja. O antagonismo
desses conservadores começou na primeira sessão do
Concílio, em um “piccolo comitato”, e prosseguiu durante
todo o evento. O que deve ser considerado aqui é que as
posições e lutas pós-conciliares dos católicos tradicionalistas
têm sua origem em grande parte nas lutas do CIP e na
inflexibilidade doutrinária de seus principais membros.
Desse modo, é necessário examinar inicialmente a primeira
recepção do Conselho pelos antigos membros deste grupo, o
que será feito em uma primeira subseção, antes de se estudar
a recepção do evento por outras personalidades e grupos.
Antigos membros do Coetus Internationalis Patrum
O que se pode ver ao estudar a recepção do Concílio
Vaticano II junto aos antigos membros do CIP é que,
a princípio, nenhum deles criticou publicamente os
Faculté des Lettres et Civilisations, Université Jean Moulin
Lyon 3, Lyon, 2011; ROY-LYSENCOURT, Philippe, Les
membres du Cœtus Internationalis Patrum au concile Vatican II:
Inventaire des interventions et souscriptions des adhérents
et sympathisants. Liste des signataires d’occasion et des
théologiens. Leuven: Peeters, 2014; ROY-LYSENCOURT,
Philippe. Les vota préconciliaires des dirigeants du Cœtus
Internationalis Patrum. Strasbourg: Institut d’Étude du
Christianisme, 2015; ROY-LYSENCOURT, Philippe.
Recueil de documents du Coetus Internationalis Patrum pour
servir à l’histoire du concile Vatican II. Strasbourg: Institut
d’Étude du Christianisme, 2019; ROY-LYSENCOURT,
Philippe. O Coetus Internationalis Patrum no Concílio
Vaticano II: apresentação e resultados de uma pesquisa.
Horizonte, v. 13, n. 38, p. 1051-1079, 2015.
103
textos promulgados. Pelo contrário, eles os defenderam
interpretando-os e pedindo que fossem interpretados de
acordo com a doutrina tradicional da Igreja. Existem muitos
exemplos. Em 1966, Mons. Geraldo de Proença Sigaud
publicou um artigo em La Pensée catholique, no qual propunha
uma linha de conduta a ser adotada pelo “padre tradicional”
diante das “forças que sonhavam com um ‘ConcílioRevolução’” e que, “decepcionadas com os textos conciliares”,
procurariam “manter a confusão” e “fazer crer que os textos
dos decretos conciliares são ruins”.5 Segundo ele, “o padre
tradicional” não deve ignorar o Vaticano II ou opor-se a ele,
mas “colaborar com a hierarquia, e à sua frente o papa, para a
aplicação sábia, generosa e sobrenatural do Concílio, sempre
fiel à legítima tradição da Igreja”. Segundo o arcebispo de
Diamantina, “[…] opor-se ao Concílio seria, para ‘o sacerdote
tradicional’, uma traição ao seu passado e um suicídio”, seria
também “fazer o jogo dos inimigos da Igreja” e, finalmente,
“seria opor a voz do Espírito Santo, ao sopro de sua ação, ser
um obstáculo à ação de Deus em sua Igreja”.6
No mesmo ano, La Pensée catholique publicou um
artigo de outra figura importante do CIP, Mons. Luigi
Maria Carli, que buscava nos documentos do Concílio “a
resposta solene da Igreja às dúvidas, às ansiedades suscitadas
pela questão da obediência sacerdotal”.7 Na mesma edição,
a revista publicou uma homilia pronunciada por Mons.
5
SIGAUD, Geraldo de Proença. Le Concile et le prêtre
traditionnel. La Pensée catholique, n. 100, 1966, p. 17.
6
Ibid., p. 19-20.
7
CARLI, Luigi Maria Carli. L’obéissance du prêtre à la
lumière de Vatican II. La Pensée catholique, v. 102, 1966, p. 9.
104
Lefebvre em 7 de maio de 1966, na qual convidava seus
ouvintes a uma renovação interior em nome do Concílio.8
Em 24 de julho de 1966, o cardeal Alfredo
Ottaviani, prefeito da Congregação para a Doutrina da fé,
dirigiu uma carta aos presidentes das conferências episcopais e
aos superiores das congregações religiosas. Oito meses após o
encerramento do Vaticano II, ele relatou “notícias alarmantes
sobre crescentes abusos na interpretação da doutrina do
Concílio” e deplorou o aparecimento de “opiniões estranhas
e audaciosas que […] perturbam demasiado as mentes de
muitos fiéis”. O cardeal especificou tratar-se de “numerosas
afirmações que, ultrapassando facilmente os limites da mera
opinião ou hipótese, parecem minar de alguma forma o
próprio dogma e os fundamentos da fé”. Deu dez exemplos
dessas opiniões e erros, pediu aos diferentes membros do alto
clero que se esforçassem para contê-los ou evitá-los, bem
como para tratá-los e relatá-los à Santa Sé antes do Natal.9
Como superior dos Espiritanos (Congregação dos
Padres do Espírito Santo), Mons. Lefebvre respondeu à carta
do cardeal Ottaviani, em 20 de dezembro de 1966.10 Sua
resposta é valiosa para se conhecer sua apreciação íntima
8
LEFEBVRE, Marcel. Le concile Vatican II, appel à la
saintété. La Pensée catholique, v. 102, 1966, p. 38.
9
OTTAVIANI, Alfredo. Epistula ad venerabiles praesules
conferentiarum episcopalium. Roma, 24 jul. 1966, em Acta
Apostolicae Sedis, v. LVIII, n. 30, p. 659-661, 1966. (Tradução
francesa em La Pensée catholique, n. 103, p. 14-16, 1966)
10 Archives du Séminaire d’Écône (ASE), E02-19, 001, carta do
Mons. Marcel Lefebvre ao cardeal Alfredo Ottaviani, Roma,
20 dez. 1966. Reproduzida em LEFEBVRE, Marcel. J’accuse le
Concile!. Martigny: Éditions Saint-Gabriel, 1976, p. 107-111.
105
do Concílio, um ano após seu fechamento. Escreveu ao
cardeal que, “quando o Concílio inovou, abalou a certeza
das verdades ensinadas pelo Magistério autêntico da Igreja
como definitivamente pertencentes ao tesouro da Tradição”.
Segundo ele, “o Concílio favoreceu de forma inconcebível
a disseminação de erros liberais”. Acrescentou ainda: “A
fé, a moral e a disciplina eclesiástica são abaladas em seus
alicerces, de acordo com as previsões de todos os papas”.11
Poucos meses depois, em 19 de março de 1967, Lefebvre
escreveu ao padre Victor-Alain Berto, que havia sido seu
teólogo particular no Vaticano II, que o Concílio havia
sido falsificado e corrompido por “falsos teólogos”, e que
aqueles que compuseram os esquemas queriam introduzir
doutrinas contrárias ao magistério eclesiástico”.12 Pouco mais
de um ano e meio depois, em outubro de 1968, escreveu
ao mesmo correspondente: “Enquanto a Igreja se fechar
nos textos conciliares, ela estará minada”. Na mesma carta,
afirmou que a Igreja que emergiu do Concílio era uma “nova
religião”.13 Apesar de tudo, Lefebvre ainda não rejeitava
o Vaticano II, como evidencia um artigo que publicou na
revista Itinéraires em novembro de 1968: “Os textos do
Concílio […] foram assinados pelo papa e pelos bispos,
por isso não podemos duvidar de seu conteúdo”. Todavia,
interrogava-se: “E, no entanto, como interpretar, por exemplo,
11 Ibid., p. 109-110.
12 Archives des Dominicaines du Sant-Esprit (ADSE), Fonds
Victor-Alain Berto, dossier “Le deuxième Concile du
Vatican”, carta do Mons. Marcel Lefebvre ao abade VictorAlain Berto, 19 mar. 1967.
13 Ibid., Roma, 29 out. 1968.
106
o texto sobre a liberdade religiosa que traz em si uma certa
contradição interna? […] O que devemos fazer em última
análise?”.14 Seus confrades e amigos brasileiros, os bispos
Geraldo de Proença Sigaud e Antônio de Castro Mayer,
também se questionavam, como evidenciado por uma carta
que este último enviou a Mons. Lefebvre, em junho de 1968.15
No plano psicológico, os textos do Concílio e a evolução
da Igreja conciliar colocam em profundo transtorno os antigos
membros do CIP, pelo menos os mais convencidos. Algumas
freiras dominicanas da comunidade fundada pelo abade Berto
afirmam que seu fundador morreu como resultado deste
Concílio,16 o que parece plausível à luz da correspondência do
abade.17 No entanto, como escreveu explicitamente, o abade
aceitou o Vaticano II em sua totalidade.18 Os beneditinos
de Solesmes, mesmo os ex-alunos do Seminário francês
que colaboraram com o CIP, igualmente aceitaram todos os
textos do Vaticano II. As comunicações que fizeram sobre
o assunto, em particular as de Mons. Prou,19 confirmam tal
14 LEFEBVRE,Marcel.Lueurs d’espérance. Itinéraires. Chroniques
et documents, n. 127, 1968, p. 105.
15
ASE, E05-01, carta do Mons. Antônio de Castro Mayer ao
Mons. Marcel Lefebvre, Campos, 29 jun. 1968.
16 Depoimento dado ao autor por uma freira da comunidade.
17 Veja a correspondência conciliar e pós-conciliar no ADSE.
18
ADSE, Fonds Victor-Alain Berto, dossier “Le deuxième
Concile du Vatican”, esboço de carta (não enviada) do abade
Victor-Alain Berto ao abade Harang, 3 jul. 1968.
19
Archives de l’abbaye Saint-Pierre de Solesmes (AASPS),
dossier “Dom Jean Prou – Sur le Concile. Le regard de la foi
sur le Concile Vatican II”. Ver também AASPS, Fonds dom
Georges Frénaud.
107
fato, bem como a evolução subsequente da Congregação. Da
mesma forma, Mons. Carli, que permaneceu conservador
e tradicionalista, aceitou os textos do Concílio e mais tarde
se tornou arcebispo de Gaeta. Os cardeais Ottaviani, Siri e
Ruffini tiveram a mesma posição.20
A recepção do Vaticano II por outras personalidades e grupos
A recepção do ConcílioVaticano II por tradicionalistas que
não eram antigos membros do CIP não foi fundamentalmente
diferente dos primeiros, mas se pode identificar posições mais
radicais entre eles. Pensemos em particular no abade Georges
de Nantes que, entre os sacerdotes, foi provavelmente o
primeiro a resistir publicamente ao Vaticano II. Em uma de
suas famosas Lettres à mes amis, publicou uma carta datada de
16 de julho de 1966, que havia escrito ao cardeal Ottaviani.
Nela, argumentava que “um Concílio reunido para reconciliar a
Igreja com o mundo moderno parece uma contradição em seus
próprios termos”, que os Padres do Concílio traíram sua missão
e caíram no modernismo.21
Outra figura que deve ser considerada é a do dominicano
Roger-Thomas Calmel.22 Este religioso sustentava que o
20 Service des Archives de l’Archidiocèse de Sherbrooke (SAAS),
P43/7.1 1937-1969 60, carta do Mons. Antonino Romeo ao
Mons. Georges Cabana, 29 mar. 1967.
21 Lettre de l’abbé de Nantes au cardinal Ottaviani. Disponível em:
http://crc-resurrection.org/notre-pere-fondateur/la-situationcanonique-de-labbe-de-nantes/lettre-de-labbe-de-nantes-aucardinal-ottaviani/
22 FABRE, Père Jean-Dominique. Le père Roger-Thomas
Calmel 1914-1975. Un fils de saint Dominique au XXe siècle.
Suresnes: Clovis, 2012.
108
Vaticano II poderia ser pura e simplesmente ignorado: “Quanto
à autoridade do Concílio … ele não definiu nada; assim, não
somos obrigados – em virtude da fé – a levar a sério o que
eles nos dizem”.23 Até sua morte, em 1975, escreveu artigos
sobre teologia e espiritualidade na revista Itinéraires. Fundada
em 1956 por Jean Madiran, esta revista tradicionalista deu
a conhecer sua posição sobre o Vaticano II em seu primeiro
número de 1966. Em um editorial intitulado “Recevoir les
décisions du Concile”, pode-se ler: “[…] recebemos todas as
decisões conciliares e […], na medida em que dependeria de
nós, convidamos nossos leitores a recebê-las”. Especificava-se,
porém, que esta recepção era feita “em conformidade com as
decisões dos Concílios anteriores” e que, se um ou outro texto
parecesse suscetível a várias interpretações, “a interpretação
justa é fixada precisamente pelos Concílios anteriores e com o
conjunto dos ensinamentos do Magistério”.24
Durante o período que nos preocupa, deve-se
igualmente mencionar as lutas do abade Louis Coache.
Em fevereiro de 1968, fundou a publicação mensal
Le Combat de la Foi para divulgar suas lutas contra a
“heresia modernista”. Naquele ano, publicou seu famoso
Vade Mecum do católico f iel, assinado por 170 padres
principalmente da França, mas, também, de vários outros
países. Esses padres não se manifestaram contra o Concílio,
mas contestavam o “‘espírito pós-conciliar’ denunciado
por Paulo VI, que tende a suprimir toda adoração externa”.
Em matéria de liturgia, eles lembravam aos padres “que
23 Lettre de Roger-Thomas Calmel, 10 fev. 1966, em Ibid., p. 318.
24
Editorial II. Recevoir les décisions du Concile. Itinéraires, n. 99,
p. 21-26, 1966.
109
as regras anteriores ao Concílio Vaticano II permanecem
em vigor, a menos que expressamente derrogadas por leis
posteriores”. Em nome do Concílio, insistiam no uso do
latim na liturgia, sublinhando o fato de que “os sacerdotes
que conservam o latim para a celebração da Missa não são
[…] contra o Concílio”.25
Esse documento permite identificar a grande
preocupação dos católicos tradicionalistas no final dos anos
1960, que seria determinante na recepção do Concílio: a
reforma litúrgica e sua aplicação.
Segunda fase (1969-2000):
no caminho da rejeição do Concílio
Após a promulgação (3 de abril de 1969) e a
implementação (30 de novembro de 1969) das prescrições
da constituição apostólica Missale Romanum,26 a recepção
do Concílio Vaticano II pelos tradicionalistas entrou em
uma nova fase. As questões doutrinais não foram ocultadas,
mas a nova missa e os abusos litúrgicos tornaram-se um dos
principais pontos de discórdia dos oponentes ao Concílio,
como veremos em uma primeira subseção. Em seguida, nos
deteremos na evolução da visão adotada por Mons. Lefebvre
e pela Fraternidade Sacerdotal São Pio X sobre o Concílio
Vaticano II, bem como das comunidades Ecclesia Dei, após
as consagrações de 1988.
25 Vade Mecum du catholique fidèle. Face à la destruction concertée
de l’Église 170 prêtre rappellent les principes essentiels de la vie
chrétienne. Paris: Imp. Ferrey, 1968, p. 5-7.
26 PAULO VI. Constitutio apostolica Missale Romanum. Acta
Apostolicae Sedis, v. LXI, n. 4, p. 217-222, 1969.
110
A questão litúrgica
Os católicos tradicionalistas criticaram a reforma litúrgica
conciliar antes de 1969. De fato, vários deles já haviam expressado
reservas sobre isso e sobre a forma como era aplicada tal reforma
nas dioceses e paróquias. Desde 1964, a pedido de Borghild
Krane, uma psicóloga norueguesa, vários católicos organizaramse em associações nacionais para defender a liturgia tradicional.
Em 1965, após uma primeira reunião feita em Roma com
delegados de seis dessas associações, foi criada em Zurique, em 8
de janeiro de 1967, uma Foederatio Internationalis Una Voce.27 Foi
nas instalações desta associação, apoiada por Mons. Lefebvre, que
se redigiu o famoso Bref examen crítique du Nouvel Ordo Missae,
de 5 de junho de 1969, e co-assinado pelos cardeais Ottaviani e
Bacci. Na carta que acompanhava este documento, está escrito
que o novo rito “se afasta de forma impressionante, no geral e nos
detalhes, da teologia católica da santa missa, tal qual formulada
na XXa sessão do concílio de Trento”. Esta carta terminava com
uma súplica na qual se pedia ao papa que “não […] fosse vetada
a possibilidade de recorrer ao íntegro e fecundo Missal romano
de Saint Pie V”.28
Os ataques tradicionalistas contra a nova missa
vieram de todos os lados: de Mons. Antônio de Castro
Mayer, bispo da dioceses fluminense de Campos, no Brasil,
e antigo membro do comitê diretor do CIP, que escreveu
a Paulo VI para expressar as preocupações que afligiam
27 Foederatio internationalis Una Voce, “Bref historique”.
Disponível em: http://www.fiuv.org/p/fr-who-we-are.html
28 “Bref Examen critique de la nouvelle messe”. Itinéraires, n.
141, p. 216-218,1970.
111
seu coração como sacerdote e bispo diante da reforma
da missa, e lhe implorava a “autorizar que continuasse a
usar o Ordo missae de Saint Pie V”;29 do abade Raymond
Dulac que, em um artigo que se tornou referência entre
os tradicionalistas,30 fez uma crítica extremamente severa
ao novo ordo e afirmou explicitamente que se recusava a
aplicá-lo;31 do abade de Nantes que, em sua revista Contreréforme catholique, denunciou “a substituição fraudulenta da
Ceia luterana e de uma celebração progressista do Santo
Sacrifício da missa católica”;32 de Jean Madiran, a quem
parecia “absolutamente impossível, em plena consciência,
que a aceitação da nova missa […] nunca vá além de uma
reservada aceitação prudente, circunspecta e desolada”;33 do
padre Calmel, que “considera seu dever como sacerdote
recusar-se a celebrar a missa em um rito equívoco”;34 do
padre Guérard des Lauriers – o futuro bispo sedevacantista
– que declarou “não poder usar o novo Ordo missae”;35 do
29 MAYER, Antônio de Castro. “Carta ao papa Paolo VI,
Considerações sobre o ‘Novus ordo missae’”. Ontem Hoje
Sempre, v. 56, 2000.
30 VAQUIÉ, Jean. La Révolution liturgique. Chiré-enMontreuil: Diffusion de la Pensée Française, 1971, p. 182.
31 DULAC, Raymond. Courrier de Rome, n. 49, 25 jun. 1969
apud VAQUIÉ, La Révolution liturgique, op. cit., p. 171.
32 NANTES, Georges. Contre-réforme catholique, n. 27, dez.
1969 apud VAQUIÉ, La Révolution liturgique, op. cit., p. 184.
33 MADIRAN, Jean. Sous réserve, pas plus. Itinéraires, n. 139,
1970, p. 28.
34 Déclaration du P. Calmel O. P. Itinéraires, n. 139, 1970, p. 74.
35 LAURIERS, Michel-Louis Guérard. Déclaration. Itinéraires, n.
142, 1970, p. 50.
112
abade Coache, que convidou “de maneira expressa todos os
fiéis, preocupados com a verdadeira fé e união com Deus,
a se absterem desta nova Missa”;36 de Paul Scortesco, que
afirma que “esta é a missa da Revolução”, sendo que ela “não
é mais um sacrifício, mas um sacrilégio”;37 de Jean Vaquié,
que, em 1971, escreveu um livro intitulado La Révolution
Liturgique, no qual denunciava a nova missa como um passo
de uma conspiração e como uma protestantização do culto
católico38 etc.
Quanto ao Mons. Lefebvre, este aceitou as primeiras
reformas litúrgicas de 196539 e, a princípio, teve uma atitude
bastante hesitante em relação ao Novus Ordo. Em 1970,
afirmou que era “um exagero dizer que a maioria dessas missas
são inválidas” e que era melhor assistir à nova missa do que se
abster.40 No início da reforma, aconselhava os padres a manterem
ao menos o ofertório e o cânone de antes.41 Inicialmente, ele
não compartilhava do radicalismo de algumas das personagens
mencionadas acima. No entanto, seu julgamento evoluiu com
o tempo. Em 1971, quando o uso do novo missal tornou-se
36 COACHE, Louis. Combat de la foi, 1 dez. 1969, p. 5 apud
VAQUIÉ, La Révolution liturgique, op. cit., p. 188.
37 SCORTESCO, Paul. Messe: sacrifice ou sacrilège. Lumière,
15 ago. 1970, p. 10 apud VAQUIÉ, La Révolution liturgique,
op. cit., p. 188.
38 VAQUIÉ, La Révolution liturgique, op. cit., p. 141-142.
39 MALLERAIS, Bernard Tissier de. Marcel Lefebvre, une vie.
Étampes: Clovis, 2002, p. 440.
40 Carta do Mons. Marcel Lefebvre a Gérald Wailliez, 17 fev. 1970
apud MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 442.
41 MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 489.
113
obrigatório, ele claramente o rejeitou.42 Diante dos abusos
litúrgicos e do agravamento da crise pós-conciliar, ele se tornou
cada vez mais severo. Em 1975, afirmou que a nova missa
“não obriga ao cumprimento do dever dominical”43 e, em
1977, disse que era necessário evitar “quase que radicalmente,
toda a participação na nova missa”.44 Mais tarde, em 1981,
ele qualificou a nova missa como “missa envenenada”.45 Há,
portanto, uma evolução no julgamento e na atitude de Mons.
Lefebvre em relação à nova liturgia, o que igualmente aconteceu
em relação à sua posição quanto ao Concílio.
Vaticano II visto por Mons. Lefebvre e pela Fraternidade
Sacerdotal São Pio X
Nas décadas de 1970 e 1980, Mons. Lefebvre viajou
pelo mundo exortando os fiéis e estabelecendo em diferentes
locais a Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX), que
fundara em 1970. Ele criticava cada vez mais fortemente o
Concílio, comparando suas principais doutrinas aos ideais
da Revolução Francesa: a liberdade religiosa corresponderia
à Liberdade; a colegialidade, à Igualdade; o ecumenismo, à
Fraternidade.46 Em 1974, escreveu um manifesto que causou
42
Ibid., p. 487-488. Depoimento do abade Paul Aulagnier. Fideliter, n.
59, p. 118-119, 1987.
43 Carta do Mons. Marcel Lefebvre à M. Lenoir, 23 nov. 1975
apud MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 490.
44
COSPEC (Conférences spirituelles à Ecône) 42 B, 21 mar. 1977.
45 COSPEC 86 A e B, 24 e 25 jun. 1981.
46 Por exemplo, LEFEBVRE, Marcel. Un évêque parle, Mgr
Lefebvre: Écrits et allocutions, v. 1, 1963-1974. Jarzé: Éditions
Dominique Martin Morin, 1974, p. 196-197.
114
grande comoção, contribuindo para federar pessoas ao seu
redor e que teve consequências em suas relações com a Santa
Sé. Nesse documento, datado de 21 de novembro, declarou
em particular que se recusava a “seguir a Roma de tendência
neomodernista e neoprotestante que se manifestou
claramente no Concílio Vaticano II e depois do Concílio
em todas as reformas que dele resultaram”.47 Após esta
declaração contundente, foi convocado a seguir para Roma
e exigido que se explicasse, o que fez em 13 de fevereiro e 3
de março de 197548. Em 22 de julho de 1976, foi atingido
por suspensão a divinis,49 ao que ele respondeu: “Pedem-me
que obedeça à ‘Igreja Conciliar’, como o arcebispo Benelli
a chama. Mas esta Igreja conciliar é uma Igreja cismática,
porque rompe com a Igreja Católica de todos os tempos”.50
Em 29 de agosto de 1976, a pedido das “Associações
tradicionais”, Mons. Lefebvre celebrou uma missa na feira
comercial de Lille, onde se encontravam cerca de 7 mil
pessoas.51 Nesta ocasião, declarou: “[…] o que a Revolução
fez não é nada comparado ao que o Concílio Vaticano II
fez, nada! Teria sido melhor se os 30, 40, 50.000 padres que
abandonaram suas batinas, que abandonaram seu juramento
diante de Deus, tivessem sido martirizados, ido para o
47 Déclaration de Mgr Marcel Lefebvre. Itinéraires, n. 189, p.
5-8, 1975.
48 MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 507.
49 Ibid., p. 514.
50 LEFEBVRE, Marcel. Quelques réflexions à propos de la
‘suspense a divinis’”, 29 jul. 1976 apud MALLERAIS, Marcel
Lefebvre, une vie, op. cit., p. 514.
51 MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 516.
115
cadafalso, eles teriam pelo menos ganhado suas almas. Agora
eles correm o risco de perdê-las”.52 Naquele ano, ele também
publicou um livro intitulado J’accuse le Concile, um título que
ele justificou escrevendo “que o espírito que dominou o
Concílio e inspirou tantos textos ambíguos e equívocos e até
francamente errôneos não é o Espírito Santo, mas o espírito
do mundo moderno, um espírito liberal, teilhardiano,
modernista, oposto ao reino de Nosso Senhor Jesus Cristo”.53
Sedevacantismo
Paralelamente às críticas de Mons. Lefebvre, da
Fraternidade Sacerdotal São Pio X e das comunidades amigas
que o cercavam, desenvolveu-se um movimento radical em
suas conclusões, o sedevacantismo. Em 1971, o jesuíta mexicano
Joaquín Sáenz y Arriaga publicou um livro no qual afirmava
que Paulo VI havia fundado uma nova religião e, portanto, não
poderia ser papa da Igreja Católica.54 Mais tarde, em 1973, ele
publicou outra obra na qual concluiu que a Sé de Pedro estava
vaga por causa das heresias de Paulo VI.55 Esses dois livros irão
contribuir para o desenvolvimento do sedevacantismo, que foi
implantado pela primeira vez no México, Estados Unidos e
52 LEFEBVRE, Marcel. Lille – 29 août 1976. Homélies “Été
chaud 1976”. Textes officiels – Fraternité Saint-Pie X. Martigny:
Éditions Saint-Gabriel, [s.d.], p. 28.
53 LEFEBVRE, J’accuse le Concile!. Martigny: Éditions SaintGabriel, 1976, p. 9ss.
54 SÁENZ Y ARRIAGA, Joaquín. La nueva iglesia
montiniana. Palmdale: The Christian Book Club of
America, 1971.
55 SÁENZ Y ARRIAGA, Joaquín. Sede Vacante. “Paulo VI no
es legitimo papa”. México: Editores Asociados, 1973.
116
Espanha, assim como na França, com o dominicano MichelLouis Guérard des Lauriers, que também esteve muito
envolvido na redação do Bref examen crítique du nouvel Ordo
Missae. Em 1979, em um estudo intitulado Le siège apostolique
est-il vacant?, ele desenvolveu uma tese segundo a qual Paulo
VI seria papa “materialiter”, mas não “formaliter”, porque ele
não tem mais o “propósito usual, real e efetivo” de “promover
o Bien Fin que compete à Igreja”. Em consequência, escreveu:
“não há mais nenhuma Comunicação procedente do Cristo,
nem Autoridade realmente exercida”.56 Desde então, os
movimentos sedevacantistas desenvolveram-se em múltiplos
grupos desunidos (sedeprivatistas, católicos Semper Idem,
conclavistas), mas que estão ligados por um ponto em comum:
a rejeição do Concílio Vaticano II e de todas as reformas que
se seguiram, bem como a afirmação de que a Sé de Pedro está
vaga desde a morte de Pio XII, devido às heresias formuladas
pelos papas que o sucederam. Neste aspecto, há um profundo
ponto de divergência com a Fraternidade Sacerdotal São Pio
X e as comunidades próximas a ela.
Da rejeição do Concílio à excomunhão
Em 1983, diante da “autodestruição da Igreja”, Mons.
Lefebvre e Mons. Castro Mayer redigem uma carta aberta
ao papa, seguida de um “Bref résumé des principales erreurs de
l’écclésiologie conciliaire”, na qual denunciavam os principais
erros que deram origem à situação em que a Igreja encontrava-
56 GUÉRARD DES LAURIERS, Michel-Louis. Le Siège
apostolique est-il vacant?. Cahiers de Cassiciacum, n. 1, 1979, p. 57.
117
se.57 Mais tarde, em agosto de 1985, antes da realização do
sínodo extraordinário dos bispos por ocasião do vigésimo
aniversário do encerramento do Concílio, os dois prelados
escreveram novamente a João Paulo II para expressar suas
apreensões e anseios. Em particular, denunciavam a liberdade
religiosa e suas consequências, afirmando que “se o próximo
Sínodo não retornar ao magistério tradicional da Igreja em
matéria de liberdade religiosa, mas confirmar este grave erro,
fonte de heresias, [eles estarão] no direito de pensar que os
membros do Sínodo não professam mais a fé católica”.58
Em 25 de janeiro de 1986, João Paulo II anunciou a
realização de “um encontro especial de oração pela paz que
seria realizado na cidade de Assis”, “com representantes não
apenas das várias Igrejas e comunhões cristãs, mas também
de outras religiões do mundo”.59 Para Mons. Lefebvre, foi
“um insulto a Nosso Senhor Jesus Cristo”.60 Em 27 de
agosto de 1986, escreveu a oito cardeais para lhes pedir
que protestassem contra “o cortejo de religiões planejado
na cidade de São Francisco”.61 Após o congresso, Mons.
Lefebvre e Mons. Castro Mayer protestaram publicamente
e com extremo vigor contra esta reunião, em uma declaração
conjunta datada de 2 de dezembro de 1986:
57 ASE, Fonds Marcel Lefebvre, E 03-17, carta aberta de Mons.
Marcel Lefebvre e de Mons. Antônio de Castro Mayer a
João Paulo II, Rio de Janeiro, 21 nov. 1983.
58 Solennelle mise en garde de Mgr Lefebvre et de Mgr de Castro
Mayer au Pape Jean-Paul II. Fideliter, n. 49, 1986, p. 4-6.
59 La Documentation catholique, n. 1913, 1986. col. 235.
60 COSPEC 117 B, 28 jan. 1986.
61 MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 565.
118
O ápice desta ruptura com o magistério anterior
da Igreja realizou-se em Assis, depois da visita à
Sinagoga. O pecado público contra a unicidade
de Deus, contra o Verbo Encarnado e a sua
Igreja faz-nos estremecer de horror: João Paulo
II encorajando as falsas religiões a orar aos seus
falsos deuses: um escândalo sem medida e sem
precedentes […] somos forçados a notar que esta
religião modernista e liberal da Roma moderna e
conciliar está se afastando cada vez mais de nós,
que professamos a fé católica dos onze papas que
condenaram [“desde 1789 a 1958”] esta falsa
religião. A ruptura, portanto, não vem de nós,
mas de Paulo VI e João Paulo II, que rompem
com seus predecessores. […] Consideramos
assim, nulo e sem efeito tudo o que foi inspirado
por esse espírito de negação: todas as Reformas
pós-conciliares e todos os atos de Roma que são
realizados nessa impiedade.62
Além disso, em 1987, Mons. Lefebvre recebeu da
Santa Sé a resposta às dubia [dúvidas] sobre a liberdade
religiosa que havia submetido em outubro de 1985 à
Congregação para a Doutrina da Fé.63 Tal resposta o
decepcionou enormemente, e ele a considerou ainda mais
grave do que o encontro inter-religioso de Assis: “Uma coisa
62 Déclaration de Mgr Lefebvre et de Mgr Antônio de Castro
Mayer faisant suite à la visite de Jean-Paul II à la Synagogue et
au congrès des religions à Assise, Fideliter, n. 55, 1987, p. 19-20.
63 Publicada e intitulada como Mes doutes sur la liberté religieuse.
Étampes: Clovis, 2000 (com primeira edição de 1987 com o
título Dubia sur la déclaration conciliaire sur la liberté religieuse
présentés à la S.C.R. pour la Doctrine de la Foi par S. Exc. Mgr
Marcel Lefebvre, archevêque-évêque émérite de Tulle, fondateur
de la Fraternité Sacerdotale Saint-Pie X).
119
é simplesmente realizar uma ação grave e escandalosa, outra
é afirmar princípios falsos e errôneos, que consequentemente
têm conclusões desastrosas na prática”.64 Naquele ano,
publicou um livro intitulado Ils l’ont découronné. Du
libéralisme à l’apostasie. La tragédie conciliaire.65 Nessa obra,
ele denunciava o que chamava de “banditismo do Vaticano
II”, em referência ao “banditismo de Éfeso”. Encontra-se
igualmente na obra um dos argumentos que será cada vez
mais usado pelos tradicionalistas para rejeitar o Concílio,
ou pelo menos para não aplicá-lo, o do caráter pastoral do
evento: “Declarando este concílio ‘pastoral’ e não dogmático,
enfatizando o aggiornamento e o oecumenismo, esses papas
imediatamente privaram o Concílio e a si mesmos da
intervenção do carisma da infalibilidade que os teria
preservado de todo erro”.66
Depois de Assis, após a resposta às suas dubia sobre
a liberdade religiosa e diante do fracasso de uma tentativa
de acordo com Roma, Mons. Lefebvre tomou a decisão de
consagrar bispos, o que fará com Mons. Castro Mayer, em
30 de junho de 1988,67 incorrendo em excomunhão latae
sententiae [sentença automática]. Essas consagrações geraram
uma profunda divisão dentro do mundo tradicionalista e
tiveram consequências sobre a recepção do Concílio. Para
64 Mgr Lefebvre: Rome est dans les ténèbres. Fideliter, n. 5,
1987, p. 2.
65
LEFEBVRE, Marcel. Ils l’ont découronné. Du libéralisme
à l’apostasie. La tragédie conciliaire. Escurolles: Éditions
“Fideliter”, 1987.
66 Ibid., p. 163.
67 Sobre esse assunto, ver Fideliter, n. 64, 1988.
120
aqueles que permaneceram no rebanho da FSSPX, a rejeição
foi cada vez mais acentuada e total, e os laços com Roma
enfraqueciam-se; para aqueles que se recusaram a seguir
Mons. Lefebvre, ocorreu de modo diferente.
As Comunidades Ecclesia Dei
Em 2 de julho de 1988, imediatamente após as
consagrações, João Paulo II publicou o Motu Proprio Ecclesia
Dei, que instituia uma comissão com o mesmo nome, cuja
proposta era
colaborar com os bispos, os dicastérios da Cúria
romana e os grupos interessados, com o objetivo de
facilitar a plena comunhão eclesial de sacerdotes,
seminaristas, comunidades religiosas ou religiosos
individuais que até então tinham vínculos com a
Fraternidade fundada por Mons. Lefebvre e que
desejam permanecer unidos ao sucessor de Pedro
na Igreja Católica preservando suas tradições
espirituais e litúrgicas.68
No dia das consagrações, uma quinzena de padres e
outra de seminaristas deixaram a FSSPX. Em 2 de julho,
no mesmo dia da criação da comissão Ecclesia Dei, esses
sacerdotes assinaram em Paris uma declaração de intenções
na qual expressavam
o desejo de poderem ser canonicamente erigidos
novamente pelas autoridades eclesiásticas
competentes para a realização de sua vocação
específica, para poderem se consagrar ao cuidado
dos fiéis, e especialmente, à formação dos sacerdotes
68 JOÃO PAULO II. Motu proprio Ecclesia Dei, 2 jul. de 1988,
em Acta Apostolicae Sedis, v. LXXX, n. 12, p. 1495-1498, 1988.
121
em um espírito autenticamente católico… e poder
celebrar o culto divino segundo as diretrizes de
uma tradição incontestavel.69
Dentre eles, alguns foram recebidos em Roma dias
depois e foram encorajados a fundar uma associação de vida
apostólica que tomou o nome de Fraternidade São Pedro.70
Tal associação foi oficialmente estabelecida em 18 de julho
de 1988 na Abadia de Hauterive e canonicamente erigida em
18 de outubro de 1988.71 Esta dependia da Comissão Ecclesia
Dei, até esta segunda ser desfeita em 17 de janeiro de 2019.72
Vários outros atores do tradicionalismo juntaram-se à
Santa Sé por meio desta Comissão. Pensemos, por exemplo,
em Dom Gérard Calvet, fundador e primeiro abade de
Sainte-Madeleine du Barroux, que se distanciou de Mons.
Lefebvre a partir das consagrações e que assinou um acordo
com Roma em 29 de julho de 1988.73 Essa formalização
implicava numa recepção mais positiva por parte do Concílio,
bem como um reconhecimento da validade da missa e dos
sacramentos promulgados pelos papas pós-conciliares.74
69 Declaração publicada em BOUCLIER, Thierry. L’abbé
Denis Coiffet. Zélé serviteur de l’Église. Boulogne: Terra
Mare Éditions, 2016, p. 110-111.
70 Ibid., p. 115.
71 Ibid., p. 121.
72 PAPA FRANCISCO. Motu proprio Da oltre trent’anni. 19
jan. 2019.
73 CHIRON, Yves. Dom Gérard, Tourné vers le Seigneur. Le
Barroux: Éditions Sainte-Madeleine, 2018, p. 399-400.
74 Carta do cardeal Mayer a D. Gérard, 10 set. 1988, em CHIRON,
Dom Gérard, Tourné vers le Seigneur, op. cit., p. 498-499.
122
Mons. Lefebvre guardava um julgamento severo
contra aqueles que se aliavam à Roma: “É evidente que,
colocando-se nas mãos das atuais autoridades conciliares,
eles admitem implicitamente o Concílio e as reformas
que dele resultaram, mesmo que recebam privilégios que
permanecem excepcionais e provisórios”.75
As chamadas comunidades Ecclesia Dei trilharão o
caminho do compromisso. No que diz respeito à recepção
do Concílio Vaticano II, é difícil propor uma análise precisa
no estado atual da pesquisa, especialmente porque os estudos
sobre o tema são extremamente reservados, não estando em
uma situação como a da Fraternidade São Pio X, que não
tem, por assim dizer, mais nada a perder. De um modo geral,
remarca-se uma aceitação mínima do Vaticano II, uma
ocultação ou, a partir do discurso de Bento XVI em 2005,
uma adesão à “hermenêutica da reforma na continuidade do
único tema-Igreja”.76
Após as consagrações de 1988, testemunhamos uma
fratura importante no mundo tradicionalista, que conduziu
a uma recepção diferente do Vaticano II. A partir dessa
data, deve-se distinguir entre a recepção do Concílio pelas
comunidades Ecclesia Dei, que “recebiam” o Concílio sem
entusiasmo ou que se calavam sobre o que pensavam, e a
recepção do evento por aqueles que seguiram Mons. Lefebvre
e que continuaram a rejeitar o Concílio como antes.
75 Carta do Mons. Lefebvre ao abade Daniel Couture, 18 mar. 1989
apud MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 600.
76 BENTO XVI. Discours du pape Benoît XVI à la curie
romaine à l’occasion de la présentation des vœux de Noël, 22
dez. 2005.
123
Terceira fase (2000-): aprofundamento
teológico e reflexão crítica
Após as consagrações de 1988, as discussões entre
a FSSPX e Roma foram praticamente inexistentes, apesar
de alguns contatos não oficiais e esporádicos. O jubileu do
ano 2000 mudará o contexto. Para tal ocasião, a FSSPX
organizou uma grande peregrinação a Roma que reuniu
mais de 6 mil pessoas. Tendo tomado conhecimento deste
evento pela imprensa, o cardeal Castrillón Hoyos, presidente
da Comissão Ecclesia Dei, tomou a iniciativa pessoal de se
encontrar com os bispos da Fraternidade São Pio X. Seguiuse a abertura oficial das discussões doutrinais com vistas à
reconciliação, discussões para as quais, visando assegurar
sua continuidade, a FSSPX exigiu dois pré-requisitos : 1)
que a Santa Sé permitisse que todos os padres católicos
celebrassem a missa de acordo com o chamado rito de São
Pio V e 2) que as excomunhões pronunciadas contra os
quatro bispos da FSSPX fossem suspensas.77 Embora a Santa
Sé tenha cedido a esses pedidos, em 7 de julho de 2007 para
o primeiro78 e em 21 de janeiro de 2009 para o segundo,79
as discussões estagnaram-se por razões doutrinárias, exceto
para a União Sacerdotal Saint-Jean-Marie-Vianney, fundada
pelo Mons. Castro Mayer em 1982, que havia sido associada
77 Lettre du cardinal Darío Castrillón Hoyos à Mgr Bernard
Fellay. Éstado do Vaticano, 5 abr. 2002.
78 BENTO XVI. Motu Proprio Summorum pontificum. Acta
Apostolicae Sedis, v. XCIX, n. 9, p. 777-781, 2007.
79 BATTISTA RE, Giovanni, Décret de la Congrégation pour
les évêques. Rome, 21 jan. 2009. Acta Apostolicae Sedis, v. CI,
n. 2, p. 150-151, 6 fev. 2009.
124
às discussões: ela foi elevada à condição de Administração
Apostólica em 18 de Janeiro de 2002.80 As necessidades de
discussões doutrinais, no centro das quais estava o Vaticano
II, levaram a recepção do Concílio pelos tradicionalistas da
FSSPX a uma nova fase envolvendo estudos muito mais
aprofundados sobre os pontos do Concílio que funcionavam
como obstáculos.
Discussões da FSSPX com Roma
e aprofundamento da reflexão
As discussões doutrinárias entre Roma e a FSSPX deram
origem a colóquios e publicações produzidos pela Fraternidade,
que tinham por objetivo preparar os intercâmbios e constituir
um fundo doutrinário para as reuniões.
É fundamental enfatizar a organização pela FSSPX
de quatro simpósios teológicos sobre o Concílio em 2002,
2003, 2004 e 2005, ocorridos em Paris. Tais eventos foram
intitulados, respectivamente: La religion et le Vatican II, La
conscience dans la religion de Vatican II, L’unité spirituelle du
genre humain dans la religion de Vatican II e Autorité et réception
du concile Vatican II.81 Entre os participantes, estavam tanto
80 BATTISTA RE, Giovanni, Decretum de Administratione
Apostolica personali “Sancti Ioannis Mariae Vianney” condenda.
Roma: Congrégation pour les évêques,18 jan. 2002, em Acta
Apostolicae Sedis, v. XCIV, n. 4, p. 305-308, 2002.
81 La religin de Vatican II. Études théologiques. Premier symposium
de Paris, 4-5-6 octobre 2002. Paris: Les Cercles de Tradition
de Paris éditeurs, 2003; La conscience dans la religion de Vatican
II. Études théologiques. Deuxième symposium de Paris, 9-10-11
octobre 2003. Avrillé: suplemento da revista Le Sel de la terre, n.
50, 2004; L’unité spirituelle du genre humain dans la religion de
125
sacerdotes da FSSPX e vários professores universitários como
membros de comunidades amigas, como os dominicanos de
Avrillé e a Fraternidade da Transfiguração. Nas palavras de
D. Richard Williamson (um dos quatro bispos consagrados
em 1988) em seu discurso de abertura do primeiro simpósio,
tratava-se de tirar “os ensinamentos em vista do diálogo com
as autoridades romanas”.82 Segundo outros oradores, tratase de uma “batalha teológica”,83 de uma preparação “para
os confrontos futuros”.84 A ideia é construir “um pequeno
arsenal que contribuirá […] para colocar em evidência a
responsabilidade irrefutável do Vaticano II na crise da Igreja”.85
Ao término desse simpósio, os sessenta conferencistas
produziram uma “declaração final” que se entendia síntese da
recusa do Concílio por parte da FSSPX após quarenta anos de
resistência, assim como um “esforço de clarificação e de unidade”,
tanto por tais membros como em relação à “Igreja oficial”.86 Esse
documento, que condensa o pensamento da Fraternidade São
Vatican II. Études théologiques. Troisième symposium de Paris,
7-8-9 octobre 2004. Paris: edição especial da revista Vu de haut,
2005; Autorité et réception de Vatican II. Études théologiques.
Quatrième symposium de Paris, 6-7-8 octobre 2005. Paris: edição
especial da revista Vu de haut, 2006.
82 WILLIAMSON, Richard. Allocution d’ouverture. In: La
religion de Vatican II, p. 5.
83 SÉLEGNY, Arnaud Sélégny. Préface. In: La conscience dans
la religion de Vatican II, p. 4.
84 CACQUERAY, Régis. Allocution d’ouverture. In: Autorité et
réception de Vatican II, p. 10.
85 Ibid., p. 8.
86 MALLERAIS, Bernard Tissier de. Préface. In: La religion de
Vatican II, p. 1.
126
Pio X e daqueles que lhe são próximos no que tange ao Vaticano
II, comporta oito pontos nos quais é claramente afirmado que o
Concílio “elabora um novo cristianismo”, uma “religião diferente”
ao “serviço do homem”. Segundo os autores da declaração,
a Igreja conciliar não se vê como tão somente um “sinal da
presença invisível de Deus entre os homens”; ela renuncia “a
ser a única sociedade da salvação” e sua pastoral “negligencia
o pecado original e a degradação da natureza humana”. Nesse
documento, deplora-se igualmente que a ideia de cristianismo
mostre-se ultrapassada e que a Igreja associe-se “oficialmente à
visão liberal da laicidade do Estado, como sendo a única apta a
favorecer a unidade do gênero humano”. No que tange à liturgia
pós-conciliar, os assinantes do documento denunciavam que “a
celebração se apresente como um memorial, não da cruz, mas da
ceia na qual a assembleia se oferece ela mesma”. Na conclusão de
tal documento, afirmou-se que o Vaticano II surgia “em ruptura
radical com a Tradição católica […] totalmente centralizada em
Deus, seu louvor e seu serviço”, enquanto que “o Concílio fundou
as bases de uma nova religião destinada principalmente a exaltar
a pessoa humana e a realizar a unidade do gênero humano”.
Consequentemente, os conferencistas do simpósio reafirmavam
“sua ligação inquestionável à religião católica tal qual ela foi
vivida pelos fiéis e ensinada por todos os papas até o dia anterior
ao Vaticano II”.87
A Hermenêutica de Bento XVI e suas
repercussões no mundo tradicionalista
Além da FSSPX, um evento dará origem a muitos
trabalhos no mundo tradicionalista em seu sentido amplo.
87 Déclaration finale. In: La religion de Vatican II, p. 357-359.
127
Trata-se do discurso pronunciado por Bento XVI na
Cúria romana em 22 de dezembro de 2005, por ocasião
da apresentação dos votos de Natal e dos quarenta anos do
encerramento do Vaticano II. Referindo-se à recepção e à
hermenêutica do Concílio, o papa desenvolveu a ideia de
que a recepção do Vaticano II era difícil porque
duas hermenêuticas contrárias foram confrontadas
e entraram em conflito. Uma causou confusão,
a outra, silenciosamente mas mais visivelmente,
gerou e continua dando frutos. Por um lado, há
uma interpretação que eu gostaria de chamar de
“hermenêutica da descontinuidade e da ruptura”;
esta pôde contar muitas vezes com a simpatia dos
meios de comunicação de massa, e também de
uma parte da teologia moderna. Por outro lado,
há a “hermenêutica da reforma”, da renovação na
continuidade do único tema-Igreja, que o Senhor
nos deu; é um tema que cresce com o tempo e se
desenvolve, mas permanece sempre o mesmo, o
único tema do Povo de Deus em movimento.88
Em 2009, no contexto do debate provocado por
esse discurso, Mons. Gherardini, que foi professor de
eclesiologia e de ecumenismo na Pontifícia Universidade
Lateranense até 1995, publicou um livro intitulado Le
Concile Œcuménique Vatican II. Un débat à ouvrir.89 Nessa
obra, o autor deplorava que o enraizamento do Vaticano II
no Magistério precedente não tenha sido suficientemente
88 BENTO XVI. Discours du pape Benoît XVI à la curie
romaine à l’occasion de la présentation des vœux de Noël, 22
dez. 2005.
89 GHERARDINI, Brunero. Le Concile Œcuménique Vatican
II: Un débat à ouvrir. Frigento: Casa Mariana Editrice, 2009.
128
desvendado, à exceção, escreveu ele, dos ensaios de Mons.
Agostino Marchetto.90 Ele insurgia-se igualmente contra
a Histoire du concile Vatican II publicada sob a direção de
Giuseppe Alberigo, “que tem por objetivo exclusivo criar as
bases de uma única ideia: o Concílio-evento, para ultrapassar
o conflito entre a Igreja pré-conciliar e a modernidade”.91
Segundo ele, “uma reflexão histórica e crítica sobre os textos
conciliais impõe-se atualmente pela necessidade: uma
reflexão que busque as ligações desses textos (no caso de
efetivamente tais ligações existirem) com a Tradição católica
em sua continuidade”.92 Deplorava “que o Magistério, os
teólogos e os responsáveis pastorais fizeram do Vaticano II
um absoluto”. Segundo ele, havia ali “um erro fundamental
[…] contra o qual torna-se imperativo reagir”.93 O autor
solicitava assim um trabalho “de revisão e de reavaliação” dos
textos conciliais por uma equipe de especialistas.94
Nos anos que se seguiram, Mons. Gherardini,
que alimentava claramente uma simpatia cada vez mais
90 Ver particularmente MARCHETTO, Agostino. Il
Concilio ecumenico Vaticano II: Contrappunto per la sua
storia. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana,
2005. Depois da publicação da obra de Mons. Gherardini,
Mons. Agostino Marchetto publicou ainda o seguinte
livro sobre o Vaticano II: Il Concilio Ecumenico Vaticano
II: Per una sua corretta ermeneutica. Città del Vaticano:
Libreria Editrice Vaticana, 2012.
91
GHERARDINI, Le Concile Œcuménique Vatican II, op. cit., p. 17.
92 Ibid., p. 19.
93 Ibid., p. 26.
94 Ibid., p. 27.
129
marcada pela Fraternidade São Pio X,95 tornou-se gradual
e explicitamente crítico em relação ao Concílio. Em 2011,
publicou novo livro em continuidade ao primeiro, intitulado
Concile Vatican II. Un débat qui n’a pas eu lieu.96 No ano
seguinte, publicou o livro Il Vaticano II. Alle radici d’un
equivoco,97 no qual respondia às críticas que lhe haviam
sido feitas e resumia o problema do Concílio ao seu
antropocentrismo.98 É interessante notar que a tradução
francesa de seu livro Concilio Vaticano II, Il discorso mancato
foi publicada pelo Courrier de Rome, associação que, a partir
de 2004, toma a iniciativa de organizar vários colóquios
sobre o Concílio Vaticano II, entre os quais se notam
especialmente os seguintes: “Penser Vatican II quarante ans
après” (de 2 a 4 de janeiro de 2004);99 “Vatican II : un débat
à ouvrir” (de 8 a 10 de janeiro de 2010),100 na trilha da obra
de Mons. Gherardini; “Vatican II, 50 ans après, quel bilan
95 GHERARDINI, Brunero. Quod et tradidi vobis: La
Tradizione, vita e giovinezza della Chiesa. Frigento: Casa
Mariana Editrice, 2010.
96 GHERARDINI, Brunero. Concilio Vaticano II: Il discorso
mandato. Torino: Lindau, 2011. (Traduzido em francês no
mesmo ano, com o título: Concile Vatican II. Un débat qui n’a
pas eu lieu. Versailles: Courrier de Rome, 2011)
97 GHERARDINI, Brunero, Il Vaticano II: Alle radici d’un
equivoco. Torino: Lindau, 2012.
98 Ibid., p. 367.
99 Penser Vatican II quarante ans après. Actes du VIe Congrès
Théologique de Sì Sì No No. Rome – Janvier 2004. Versailles:
Publications du « Courrier de Rome », 2004.
100 Vatican II : Un débat à ouvrir. Actes du IXe Congrès
Théologique du Courrier de Rome. Paris, les 8-9 et 10 janvier
2010. Versailles: Publications du « Courrier de Rome », 2011.
130
pour l’Église” (de 4 a 6 de janeiro de 2013)101 e “1914-2014,
la réforme de l’Église selon saint Pie X et selon Vatican II”
(de 9 a 11 de janeiro de 2015).102
Após a publicação do livro do Mons. Gherardini
em 2009, os Franciscanos da Imaculada organizaram um
colóquio (de 16 a 18 de dezembro de 2010), cujo objetivo
era fazer uma análise histórica, filosófica e teológica do
Concílio.103 A perspectiva desse grupo é amplamente a
mesma de Mons. Gherardini, ou seja, que o problema
vem essencialmente da interpretação do Concílio e da
dogmatização da dimensão pastoral do evento. Em 2012,
o padre Serafino Lanzetta, dos Franciscanos da Imaculada,
publicou um livro, Iuxta Modum. Il Vaticano II riletto alla
luce della Tradizione della Chiesa,104 no qual ele argumenta
que o Vaticano II deve ser considerado como um “momento”
da Tradição e não como contendo toda a Tradição, enquanto
afirma que o Vaticano II, em sua linguagem pastoral, nem
sempre foi suficientemente claro.
101 Vatican II, 50 ans après, quel bilan pour l’Église. Actes du
XIe Congrès Théologique du Courrier de Rome, 4-5-6 janvier
2013. Versailles: Publications du « Courrier de Rome », 2013.
102 1914-2014, la réforme de l’Église selon saint Pie X et selon
Vatican II. Actes du XIIe Congrès Théologique du Courrier
de Rome, 9-10-11 janvier 2015. Versailles: Publications du «
Courrier de Rome », 2016.
103 MANELLI, Stefano Maria; LANZETTA, Serafino M.
(org.). Concilio Ecumenico Vaticano II. Un Concilio Pastorale.
Analisi storico-filosofico-teologica. Frigento: Casa Mariana
Editrice, 2011.
104 LANZETTA, Serafino. Iuxta Modum. Il Vaticano II riletto
alla luce della Tradizione della Chiesa. Siena: Cantagalli, 2012.
131
Conclusão
Estas poucas páginas mostram que a recepção do
Concílio Vaticano II pelos católicos tradicionalistas é um
fenômeno extremamente complexo, comportando evoluções,
bem como diferenças de interpretação e de reações, de
acordo com os períodos e conjunturas. Tentamos abordá-lo
por meio de uma periodização em três tempos, que exige
aperfeiçoamentos e que se considera discutível, mas que
permite oferecer uma visão geral da questão.
Em um primeiro momento, podemos perceber junto
à maioria dos tradicionalistas e particularmente junto
aos antigos membros do CPI uma recepção dos textos
intepretados à luz da Tradição, acompanhada da rejeição do
espírito do Concílio, julgado contrário à Tradição. Assim,
por exemplo, contra aqueles que interpretavam Vaticano II
segundo sua “lógica” ou seu “espírito”, o abade Luc J. Lefèvre
insistia sobre o fato de que se deveria guardar exclusivamente
os textos.105 No entanto, tal posição não foi mantida
por longo tempo, já que os textos do Vaticano II eram
impregnados do famoso “espírito do Concílio”. Durante esse
primeiro período, podemos igualmente constatar a gradual
implantação de três atitudes junto aos tradicionalistas: 1)
alguns deles aceitavam integralmente os textos conciliais
e aderiam progressivamente ao “espírito do Concílio”; 2)
outros, como Mons. Lefebvre, interrogavam-se sobre o valor
dos ensinamentos do Vaticano II e sobre a aceitação que
deveriam lhe dar diante da crise que se intensificava; e 3)
105 LEFÈVRE, Luc J. Y a-t-il un concile Vatican II ? oui ou
non… La Pensée catholique, n. 121, 1969, p. 7.
132
outros ainda – e não se trata aqui de membros antigos do CIP
– já se opunham radicalmente ao evento. Dois outros pontos
devem ser evidenciados. Em primeiro lugar, globalmente, a
reação não parece assentar-se sobre uma reflexão intelectual
e teológica de grande profundidade (seria necessário aqui
um estudo mais aprofundado para confirmação), mas,
sobretudo, assenta-se sobre constatações concretas ligadas
à crise pós-conciliar e a seus efeitos. Em seguida, os
tradicionalistas são a descendência intelectual e espiritual
desses “romanos” tão diferentes em relação ao papado e ao
Magistério antes do Concílio. Eles encontraram-se assim
totalmente desamparados e atormentados diante dos textos
do Vaticano II, que julgavam em oposição à doutrina
tradicional da Igreja.
Em 1969, a promulgação e implementação da
constituição apostólica Missale Romanum abriu uma nova
fase na qual a questão da recepção do Vaticano II foi
amplamente cristalizada pela recepção do novo missal.
Durante esse período, testemunhou-se o estabelecimento
gradual das três grandes tendências do tradicionalismo
pós-conciliar: 1) a de Mons. Lefebvre, da FSSPX e de suas
comunidades amigas, que gradualmente evoluíram para uma
rejeição totalmente assumida do Concílio como um todo,
bem como de uma grande parte do Magistério pós-conciliar
(na medida em que este foi julgado contrário ao Magistério
anterior e à Tradição) e que culminou nas consagrações de
1988; 2) a das chamadas comunidades Ecclesia Dei, que
fizeram da rejeição da nova missa a principal ponta de lança
de sua luta e evitaram pronunciar-se publicamente sobre o
Vaticano II; e 3) a dos mais radicais, os sedevacantistas, que
133
apoiavam a ideia de que a Sé apostólica estaria vacante desde
a morte de Pio XII devido às heresias professadas pelos
papas desde o Concílio Vaticano II, cujos ensinamentos
eles rejeitavam totalmente. Com exceção das comunidades
Ecclesia Dei, a recepção é caracterizada por uma rejeição
formal do Concílio e por reações negativas e fortes. Para
esses movimentos, o Concílio é um corpo estranho na vida
da Igreja, como um câncer a ser combatido.
A partir do ano 2000, as discussões entre a Santa Sé e
o movimento fundado por Mons. Lefebvre levaram a recepção
do Concílio pelos tradicionalistas a uma nova fase. Para afirmar
sua posição em Roma, a FSSPX viu-se obrigada a preparar suas
armas e aprofundar suas reflexões teológicas sobre o Concílio,
o que fez especialmente por meio de congressos e publicações,
entre os quais devem ser destacadas as obras sobre o valor
magisterial do Vaticano II. Além disso, essas discussões puseram
fim ao consenso interno da FSSPX, pois deram origem a um
movimento de “resistência” caracterizado pela recusa de qualquer
relacionamento com Roma até que ela se “convertesse”. Para
alguns, não é apenas o princípio dos acordos que deve ser revisto,
mas também o das próprias discussões. Deve-se notar que,
após a supressão da Comissão Ecclesia Dei, em janeiro de 2019,
todas as ações devem agora ocorrer dentro da Congregação
para a Doutrina da Fé. Durante esse período, devem ainda ser
destacadas as consequências do discurso pronunciado por Bento
XVI, em 22 de dezembro de 2005. Pela primeira vez, pessoas
em perfeita comunhão com a Santa Sé, algumas delas próximas
à antiga escola romana de teologia, expressaram oficialmente
reservas sobre o Concílio, aproximando-se não apenas das ideias
da FSSPX, mas da própria FSSPX.
134
A recepção do Concílio Vaticano II para católicos
tradicionalistas é assim feita de evoluções e de rupturas, de
divisões e de reaproximações, de renúncias e de radicalismos.
Em consequência, estabelecer uma periodização do
fenômeno torna-se uma operação extremamente complexa
e, forçosamente, um tanto artificial. Como em história de
modo geral a periodização é uma construção do historiador,
um novo período comporta frequentemente uma quantidade
maior de elementos de continuidade que aqueles de ruptura.
Desse modo, se a data de 1969 marca certamente uma fratura
e permite propor o início de uma nova fase na recepção do
Concílio, 1988 – com as consagrações – poderia igualmente
justificar a abertura de uma nova fase, com a cisão que ela gera
no mundo tradicionalista e a criação da Comissão Ecclesia Dei.
Todavia, embora se sugira a existência inegável de uma ruptura
na história do tradicionalismo, não parece que tenha realmente
havido tal fratura se olharmos o fenômeno unicamente sob
o ângulo da recepção. De fato, tal gesto não traz qualquer
mudança fundamental no discurso da FSSPX ou de suas
comunidades amigas, e não parece igualmente ter provocado –
em todo caso, não de imediato – uma evolução do pensamento
dos membros das comunidades Ecclesia Dei, naquele momento
ainda nascente. O silêncio que se observa em relação ao tema
Vaticano II, junto aos movimentos ditos “aliados” à Roma,
parece ser muito mais uma estratégia para guardar seus
privilégios que uma real adesão ao Concílio. Porém, trata-se
aqui de uma questão que mereceria um estudo aprofundado,
como aliás mereceriam muitos outros aspectos da recepção do
Concílio Vaticano II por católicos tradicionalistas.
Catolicismo intransigente: análises das
disputas ao redor da construção da
Constituição Pastoral Gaudium et Spes
Tiago Tadeu Contiero
Na proximidade de comemorarmos os sessenta anos do
encerramento do Concílio Vaticano II (1962-1965), não
há dúvidas de que ele se revela como um marco no que
diz respeito à relação da Igreja Católica com o mundo
moderno, sendo responsável por reposicionar o catolicismo
na sociedade contemporânea após séculos de embates.
Tendo sido convocado de maneira inesperada pelo
papa João XXIII, o Concílio teve como principal finalidade
justamente realizar um aggiornamento do catolicismo, ou seja,
atualizar a Igreja e alinhá-la ao novo contexto no qual estava
inserida. De suas Declarações, Decretos e Constituições,
destaca-se aqui o último documento aprovado pela
Assembleia Conciliar: a Constituição Pastoral Gaudium et
Spes (GS).
Sendo o último dos documentos aprovados, a GS
pode ser entendida como a materialização do “espírito”
conciliar e dos ideais almejados por João XXIII. Mais do
que isso, a análise detalhada de sua elaboração, bem como do
documento final, permite-nos contemplar a disputa existente
136
por detrás do Vaticano II, que se refletiu posteriormente nos
embates pela interpretação do Concílio como um todo.
Ao longo desse capítulo, faremos uma análise do
processo de elaboração da GS, destacando de maneira
pormenorizada como ela reflete essas disputas internas pela
condução do Concílio, com a forte influência desempenhada
por setores da Igreja tidos como “conservadores” ou
intransigentes. Fundamentando-se na análise de fontes
primárias, como os diários dos Padres Conciliares, bem como
em obras de referência sobre o tema, é possível constatar
como a ação dos conservadores não foi capaz de impedir a
promulgação da GS, mas contribuiu para que o documento
final tivesse um tom mais alinhado aos seus interesses,
possibilitando diversas interpretações e uma disputa pelo
seu real sentido, que segue até os dias atuais.
Os antecedentes do Concílio Vaticano II
e sua convocação
Sempre que se aborda a Constituição Pastoral Gaudium
et Spes, faz-se necessário uma rápida contextualização, a
fim de situá-la no interior do Concílio Vaticano II, sendo
essa Constituição o último dos documentos aprovados e
promulgados pela Assembleia Conciliar, já em 1965.
Para entender esse documento, bem como as disputas
que marcaram toda a sua elaboração, temos que retornar
até o ano de 1958, quando se encerrou o longo e complexo
pontificado de Pio XII. Os quase vinte anos durante os quais
ocupou o Trono de Pedro foram marcados, principalmente
em seu início, pelo desenrolar da Segunda Guerra Mundial e,
na sequência, por todo o desenvolvimento da Guerra Fria e da
137
reconstrução da Europa. Tratou-se de um período de intensas
transformações sociais e culturais que alteraram as estruturas
políticas, econômicas e religiosas da época e lançaram as
bases para o desenvolvimento de uma nova sociedade, que
se consolidaria nos anos seguintes e que se mostrava, de
certa maneira, cada vez mais desalinhada em relação aos
ensinamentos e doutrinas emanados pelo catolicismo.
Com a morte de Pio XII, o Conclave que elegeu
seu sucessor foi claramente dividido entre dois lados
marcados por visões distintas da Igreja e do papel que
esta teria frente a essa nova sociedade, que se desenhava
já nos anos 1950. Desse modo, um grupo de cardeais, que
poderíamos chamar hoje de “progressistas”, entendiam
a necessidade de uma Igreja mais aberta ao mundo
moderno, que dialogasse com as novas realidades sociais,
inserida no interior delas.
Um outro grupo de cardeais, por sua vez, seguiu o
caminho oposto, compreendendo a necessidade de manter
a Igreja no rumo já estabelecido pelos pontífices até então
e consolidado por Pio XII, ou seja, de mantê-la afastada
do mundo moderno, com concessões pontuais em alguns
aspectos que não afetassem o catolicismo como um todo.1
1
São inúmeros os autores que abordam as aberturas tidas
como pontuais efetuadas pela Igreja Católica na fase final
do século XIX, aberturas essas que não comprometiam todo
o arcabouço doutrinário desenvolvido para fazer frente ao
mundo moderno. Destaca-se, nesse sentido, o estabelecimento
de uma Doutrina Social da Igreja, a partir do pontificado do
papa Leão XIII e seu posterior desenvolvimento ao longo
das primeiras décadas do século XX. Tais avanços podem ser
138
Frente ao longo pontificado de Pio XII e ao impasse
estabelecido entre os dois grupos, a opção direcionou-se
para um cardeal de consenso, que fizesse um pontificado
curto, considerado como um “Papa de Transição”. A partir
desse posicionamento, o nome do cardeal de Veneza, Angelo
Roncalli, começou a ganhar força.
Eleito Papa, o cardeal Roncalli assumiu para si o
nome de João XXIII. Pouco tempo depois de sua eleição,
em 25 de janeiro de 1959, João XXIII anunciou ao mundo
um audacioso projeto de pontificado, que consistia na
realização de um Sínodo para a Diocese de Roma, na
atualização do Código de Direito Canônico e, o mais
complexo, em um Concílio Ecumênico para a Igreja.
Não seria um Concílio como os demais que marcaram a
História da Igreja. O primeiro aspecto distintivo deu-se
pela sua convocação, que se mostrou como um fruto da
ação individual de João XXIII e não de profundos estudos
sobre algum aspecto doutrinário específico.
Tampouco é possível afirmar que a convocação
coincidisse com alguma grande crise dogmática, ou a
consequência de algum cisma que fosse decorrente de
interpretações variadas do ensinamento da Igreja. Desse
modo, o Vaticano II já se afastava irreversivelmente dos dois
grandes Concílios que o antecederam: Trento (1545-1563)
e o Vaticano I (1869-1870), mesmo que em seu anúncio,
o Sumo Pontífice não tenha esclarecido quais seriam os
objetivos específicos do novo Concílio.
constatados em CAMACHO, Ildefonso. Doutrina Social da
Igreja: abordagem histórica. São Paulo: Loyola, 1995.
139
Objetivos do Concílio Vaticano II
Os objetivos almejados pelo Concílio estão presentes
na primeira Encíclica de João XXIII, Ad Petri Cathedram.
Nela, o papa afirma:
Profundamente animados por esta suavíssima
esperança, anunciamos publicamente o nosso
propósito de convocar um Concílio Ecumênico,
em que hão de participar os sagrados pastores do
orbe católico para tratarem dos graves problemas
da religião, principalmente para se conseguirem o
incremento da fé católica e a saudável renovação
dos costumes no povo cristão e para a disciplina
eclesiástica se adaptar melhor às necessidades dos
nossos tempos.2
O excerto acima possibilita a compreensão dos
objetivos de João XXIII. O primeiro deles seria o incremento
da fé católica. Em seguida, a saudável renovação dos
costumes cristãos e, por fim, adaptar a disciplina eclesiástica
para atender às necessidades e exigências do tempo. Os três
objetivos elencados indicam, na verdade, um único caminho:
a atualização da mensagem cristã para a modernidade.
Por ocasião da abertura dos trabalhos das comissões
preparatórias, o papa expressa sua consciência da unicidade
do Vaticano II. João XXIII resgata a história dos vinte
Concílios anteriores, demonstrando os motivos pelos quais
foram convocados e as medidas fundamentais que foram
2
JOÃO XXIII. Ad Petri Catedram, 1959. Disponível em:
http://w2.vatican.va/content/johnxxiii/pt/encyclicals/
documents/hf_j-xxiii_enc_29061959_ad-petri.html. Acesso
em: 15 jul. 2024. (Tradução nossa)
140
tomadas por eles. É nesse aspecto que diferencia o Vaticano
II, afirmando que:
Na época moderna, com um mundo de
fisionomia profundamente mudada e que se
sustenta com dificuldades em meio aos atrativos
e aos perigos da busca quase exclusiva dos bens
materiais, ante o esquecimento ou debilidade
dos princípios de ordem espiritual e sobrenatural
que caracterizaram a implantação e a expansão
da civilização cristã através dos séculos; na época
moderna, digo, melhor do que levar um ou outro
ponto doutrinário ou disciplinar até as fontes
da Revelação e da Tradição, trata-se de renovar
em seu valor e esplendor a substância do pensar
e do viver humano e cristão, do qual a Igreja é
depositária e mestra pelos séculos.3
Tratava-se, portanto, de um Concílio que se
reconhecia enquanto distinto dos demais, preocupando-se
não em levar às fontes os ensinamentos ou doutrinas, mas
sim efetuar uma verdadeira renovação no conjunto de vida
humana-cristã. Observemos que todas essas considerações
eram oriundas do Papa.
De modo ainda mais claro, os objetivos do Concílio
são expostos na Sacrae laudis, Exortação Apostólica de
João XXIII proferida no dia 6 de janeiro de 1962. O papa
conclama que os sacerdotes rezem para que Concílio seja
3
JOÃO XXIII. Alocucíon del Santo Padre Juan XXIII a los
membros de las comissiones pontifícias y secretariados preparatórios
del Concílio Ecuménico Vaticano II, 1960. Disponível em:
http://w2.vatican.va/content/john-xxiii/es/speeches/1960/
documents/hf_j-xxiii_spe_19601114_commissionipreparatorie.html. Acesso em: 9 abr. 2024. (Tradução nossa)
141
uma nova Epifania, ou seja, uma nova manifestação de Deus
no meio do mundo. Além dessa afirmação, essa mesma
exortação indica o caminho que o Concílio deveria seguir.
Nesse sentido, João XXIII afirma:
Este corresponderá tanto mais perfeitamente à
sua finalidade e à expectativa geral, quanto mais
comportar, além de um revigoramento da fé
católica e uma adaptação da legislação da Igreja
conforme às circunstâncias hodiernas, também
um esforço coletivo, decisivo e unânime, de
santificação geral.4
Podemos afirmar que a finalidade do Concílio seria o
revigoramento da fé católica e uma adaptação da legislação
da Igreja que atendesse às circunstâncias de seu tempo.
Além disso, objetivava uma santificação geral. Observa-se
claramente que João XXIII não intencionava um Concílio
que tivesse condenações aos “erros modernos” tampouco,
que promulgasse novos dogmas. O objetivo era claramente
atualizar a mensagem da Igreja, a fim de proporcionar um
revigoramento da fé católica.
A santificação geral, presente também na Exortação
do Papa, poderia tranquilamente ser compreendida não
apenas como uma santificação da Igreja e de seu clero,
mas de toda a sociedade, de toda a humanidade. Fazer-se
compreender por essa nova humanidade era tarefa essencial
4
JOÃO XXIII. Sacrae Laudis. Sacrae Laudis, 1962. Disponível em:
https://w2.vatican.va/content/john-xxiii/pt/apost_exhortations/
documents/hf_j-xxiii_exh_19620106_sacrae-laudis. Acesso em:
15 jul. 2024. (Tradução nossa)
142
do Concílio e parte integrante da proposta que João XXIII
expressava desde seu anúncio.
A Gaudium et Spes
Por que reforçarmos todos esses aspectos antes de
tratarmos da Gaudium et Spes? Nossa perspectiva é que
a Gaudium et Spes consolida justamente a finalidade do
Concílio e consiste na tentativa de se consolidar, por meio
de uma Constituição Pastoral, o “espírito conciliar” que
conduziu João XXIII e deveria inspirar os padres conciliares.
Para que o ideal de João XXIII predominasse no
Concílio, foi necessária uma virada que ocorreu na primeira
sessão e rompeu com o predomínio prévio da Cúria Romana
sobre os trabalhos conciliares, mudando o eixo de forças na
Igreja para as Conferências Episcopais. Tratou-se, de fato,
de uma vitória das forças mais progressistas, o que abriu
espaço para que o Concílio seguisse o rumo pensado pelo
papa em sua convocação e que se materializaria, ao menos
em parte, na Gaudium et Spes.
João XXIII deixara claro que o Concílio, ao menos
em sua concepção, deveria preocupar-se em tratar da relação
entre Igreja e mundo moderno. O tão sonhado aggiornamento
passaria, necessariamente, pelo modo como a Igreja e o
mundo relacionavam-se. Entretanto, Kloppenburg, tratando
da gênese da Constituição, afirma que, durante a fase de
preparação, não se pensou em um esquema que abordasse
os problemas do mundo moderno e que colocasse a Igreja
positivamente frente a eles, indo no sentido contrário do
que o papa esperava. Evidentemente, isso ocorreu devido ao
clima ainda bastante tradicional que predominou durante
143
toda a fase preparatória do Vaticano II, sendo rompido nos
primeiros dias do Concílio.5 Desse modo, a Gaudium et Spes
não foi um documento tratado nos momentos de preparação
do Concílio, não tendo sido desenvolvida antes da grande
transformação ocorrida com a primeira sessão.
Foi apenas na Aula Conciliar, que os padres formaram
consciência da necessidade de se analisar os problemas
da Igreja para além dos seus limites, ou seja, indo além
do ad intra que tanto havia sido abordado nos esquemas
preparatórios e que, naquele momento, mostravam seus
limites para com os interesses reais do Concílio. Era isso
que o cardeal Suenens tinha em mente, ao propor um novo
documento abordando a relação Igreja-mundo.
É na Gaudium et Spes, é no pensar ad extra que
realmente o Concílio voltar-se-ia às questões do homem
contemporâneo, deixando de lado aspectos estritamente
doutrinais ou sistemáticos, inserindo-se efetivamente
nos problemas sofridos pela humanidade – não apenas os
católicos, mas toda a humanidade – e refletindo efetivamente
a partir da realidade terrestre.
Após o término da Primeira Sessão, João XXIII sentiu
a necessidade de uma maior organização dos trabalhos
e instalou uma Comissão Coordenadora para conduzir
o Concílio. Coube a essa comissão a reorganização dos
esquemas pré-conciliares, que de setenta foram reduzidos a
dezessete, sendo que o último fora denominado De praesentia
Activa Ecclesiae in Mundo (Da presença ativa da Igreja
5
KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II. Vol. III:
Segunda Sessão. Petrópolis: Vozes, 1964.
144
no Mundo). Não se tratava mais apenas de uma presença
pautada em princípios teológicos e doutrinários, mas, sim, na
aplicação destes junto à realidade social, fundamentando-se
na teologia das realidades terrestres, detalhada mais adiante.
Para a construção desse documento, a Comissão
Coordenadora estabeleceu uma Comissão Mista, formada
pela Comissão Teológica e pela Comissão para o Apostolado
dos Leigos. A eles foi confiada a elaboração do chamado
Esquema XVII, cujo relator eleito fora o próprio cardeal
Suenens. Segundo McGrath, o cardeal Suenens havia
sugerido um esquema fundamentado em seis capítulos
partindo da “admirável vocação do homem” e explorando
temas como: direitos da pessoa, família, cultura, ordem
socioeconômica, entre outros mais. Trata-se, portanto, de
uma temática bastante vasta e intensa de ser trabalhada.6
Apesar da lentidão inicial, justificada pela necessidade
de se refazer um documento chave para o Concílio, um
primeiro esboço do Esquema XVII fora confeccionado, e
a Comissão Mista entregou à Comissão Coordenadora o
texto previsto em seus seis capítulos.
Vale ressaltar que o esquema apresentado a João
XXIII em maio era, na verdade, o segundo texto produzido.
O primeiro deles, conforme nos diz Camacho, fora
elaborado no mês de março de 1963. Esse primeiro esboço
foi reestruturado pela Comissão Mista, contando ainda com
6
MCGRATH, Marcus Gregorio. Notas históricas sobre a
Constituição Pastoral “Gaudium et spes”. In: BARAÚNA,
Guilherme. A Igreja no mundo de hoje. Petrópolis: Vozes, 1967.
145
a presença de diversos observadores leigos. Elaborou-se,
então, uma segunda versão, concluída no mês de maio.7
No mês de setembro, ainda antes da abertura da
Segunda Sessão, uma terceira versão do texto foi composta
por um grupo de especialistas conduzidos pelo cardeal
Suenens. Segundo Camacho,
Nele se destaca o tema da Igreja, que se sente
inserida no mundo e, ao mesmo tempo, enviada a
ele: essa missão não esgota a intervenção de Deus na
história (daí a importância de discernir os sinais dos
tempos) e, além do mais, é ultrapassada pela própria
realidade do mundo e sua autonomia (a Igreja não
tem resposta para todos os seus problemas).8
Essa terceira versão do texto já deixava claro que uma
das chaves de leitura mais condizentes para compreensão do
Esquema XVII seria, justamente, a teologia das realidades
terrestres. Camacho destaca isso no excerto acima, ao afirmar
que a realidade do mundo e sua autonomia ultrapassam a
missão da Igreja.
Entretanto, Paulo VI, no discurso de abertura da
Segunda Sessão, não faz menção específica ao documento,
mas, ao reforçar os quatro objetivos do Concílio, enfatiza que
um deles é o estabelecimento de uma ponte entre a Igreja
e o mundo, algo que viria a se concretizar com a Gaudium
et Spes.
Apenas ao final dessa segunda sessão é que se voltou
a ter notícias do Esquema XVII. Entretanto, o documento
7
CAMACHO, Doutrina Social da Igreja, op. cit.
8
Ibid., p. 269.
146
não chegou às mãos dos Padres Conciliares, uma vez que
a Comissão Coordenadora do Concílio, agora denominada
de Conselho da Presidência, considerou que o texto
apresentado ainda não estava apto a ser levado aos debates
na Aula Conciliar, devendo, portanto, ser reelaborado.
Essa decisão tomada pela Comissão fora justificada
a partir de vários aspectos. Um deles, segundo McGrath,
consiste no fato do primeiro capítulo ter sido considerado
bastante deficitário, o que por si só já justificaria a necessidade
de revisões antes de sua apresentação.9 Camacho concorda,
entendendo que a Comissão Coordenadora concluiu que o
texto apresentado possui um tom excessivamente teológico,
distante da finalidade esperada para esse documento.10
Evidentemente, essa concepção fundamenta-se no fato de
que o texto fora construído tendo por base justamente o
esquema da fase preparatória, conservando diversos aspectos
doutrinários – algo que prova a força de setores tradicionais
nos bastidores do Concílio.
Coube novamente ao cardeal Suenens preparar o novo
Esquema a partir das considerações feitas pela Comissão
Coordenadora. O trabalho teve início ainda em 1963, na
cidade belga de Malines. Nesse momento, ocorreram os
primeiros debates intensos acerca do tom a ser adotado pelo
Esquema. Segundo McGrath,
Sucedeu um verdadeiro debate entre aqueles
que argumentavam que a verdadeira abordagem
9
MCGRATH, Notas históricas sobre a Constituição Pastoral
“Gaudium et spes”, op. cit., p. 140.
10 CAMACHO, Doutrina Social da Igreja, op. cit., p. 270.
147
conciliar de questões sociais deveria ser
especificamente teológica, no sentido de partir dos
dados da revelação e ir até as conclusões doutrinais,
e a outra escola, que, baseada no profundo impacto
causado no mundo pelas duas grandes encíclicas
sociais do papa João XXIII (Mater et Magistra e
Pacem in Terris), defendia ardentemente a ideia de
que todo documento destinado a falar ao mundo
moderno devia partir de uma consideração dos
problemas do mundo, e falar aos homens com
uma linguagem e argumentos compreensíveis e
aceitáveis para eles.11
O excerto de Mcgrath nos mostra a divisão existente
no interior da comissão mista, que seria responsável pela
elaboração do Esquema que, por volta dessa época, já era
denominado de Esquema XIII, nome definitivo que seria
mantido até a fase final de sua aprovação pelos Padres
Conciliares. Essa divisão, como já era de praxe, refletia a
divisão interna existente no próprio Concílio.
No caso específico da discussão desse Esquema,
colocado o ineditismo da temática proposta, os debates
assumiriam um aspecto ainda mais intenso do que vinha
ocorrendo nas Aulas Conciliares. O problema maior é que
esses debates estavam acontecendo no interior do grupo
responsável pela elaboração do texto e não na assembleia
do Concílio. Na visão de quase todos os membros da
Comissão, isso estava ocorrendo pela quantidade grande
de membros que compunham o grupo – eram cerca de
sessenta membros, assessorados por aproximadamente mais
11 MCGRATH, Notas históricas sobre a Constituição Pastoral
“Gaudium et spes”, op. cit., p. 140.
148
cinquenta teólogos. Desse modo, caso seguissem no ritmo
que vinham demonstrando, somando-se ainda a necessidade
já comprovada de refazer o trabalho que anteriormente
havia sido desenvolvido, havia grande chance de se manter
o impasse e de o texto não ficar em condições de ser
apresentado e votado.
A solução foi a criação de uma subcomissão mista
central, constituída por apenas seis membros, sendo três
da Comissão Doutrinal e outros três da Comissão do
Apostolado Leigo. Os seis eleitos eram europeus, motivo
pelo qual foi requerido que outros dois bispos, um norteamericano e um africano, fossem acrescentados.
A primeira decisão desse pequeno grupo foi trabalhar
mais intensamente o capítulo primeiro, que assumiria
uma posição mais doutrinal; os demais seriam publicados
em forma de “anexos”, ou seja, não seriam debatidos nas
Aulas Conciliares, uma vez que se entendia que eram temas
particulares e temporais e que poderiam comprometer
muito tempo em debates.
Essa decisão, segundo McGrath, era bemintencionada, mas não foi bem-vista por parte dos Padres
Conciliares, e, dado que o próprio Concílio preocupou-se
cada vez mais em tratar de temas particulares, os anexos
foram reincorporados ao texto principal, assumindo forma
de capítulos.12
Passados os momentos iniciais, quando o documento
ainda não tinha uma forma explícita, e os debates deixavam
12 Ibid., p. 141.
149
claro que não havia sequer um rumo específico a ser
adotado por ele, a formação de uma subcomissão reduzida
marcaria o início de uma segunda fase no processo histórico
da construção do texto, em que o documento tomou uma
forma mais concreta. Isso ocorreu a partir de uma reunião
da subcomissão em Zurique, no começo de 1964. Conforme
nos diz McGrath, nessa elaboração já era possível ter uma
maior convicção dos conteúdos que seriam abordados no
documento, bem como do seu estilo e do método a ser
efetivamente utilizado. Dado o local onde ele foi produzido,
o documento ficou conhecido como o Texto de Zurique.13
Foram substanciais os avanços trazidos por essa
subcomissão. Segundo Delhaye,
A perspectiva da exposição está completamente
mudada. Passaram da teologia à pastoral, dos
princípios aos fatos. Não se trata mais dos
fundamentos teológicos ou metafísicos da
dignidade humana. O que se põe na vanguarda são
as situações psicológicas ou sociais […].14
Aqui, constatamos que ocorreu uma mudança na
maneira como o documento estava sendo construído,
posto que a ala ligada aos setores mais tradicionais perdeu
espaço para os setores mais progressistas. Ao mesmo tempo,
a Comissão alterou o foco do documento, que seguia
sendo abordar o ser humano em sua realidade. O que foi
transformado foi o modo como isso dar-se-ia: deixava-se
13 Ibid., p. 142
14 DELHAYE, Philippe. A dignidade da pessoa humana.
In: BARAÚNA, Guilherme. A Igreja no mundo de hoje.
Petrópolis: Vozes, 1967, p. 268.
150
de lado os aspectos teológicos para se favorecer uma análise
de cunho pastoral, preocupada não apenas em teorizar sobre
a pessoa, mas, sim, em refletir sobre sua prática, sobre sua
realidade social a partir do mundo no qual o ser humano
insere-se. Esse texto fora encaminhado à Comissão Mista
que o analisou e, juntamente com as opiniões dos teólogos
observadores, propôs algumas alterações que seriam
atendidas por parte da subcomissão.
Alberigo ressalta que a expectativa criada ao redor do
Esquema XIII foi ampliando-se com o passar do tempo e,
então, teria oportunidade de se concretizar ou não. Segundo
o autor,
Talvez seja realmente difícil dar-se conta hoje da
amplitude da expectativa que rodeava então esse
esquema. Falava-se da “obra prima” do Concílio, da
obra acabada. Muitos pensavam de verdade que fosse
chegado o momento para a Igreja, depois de se ter
definido a si mesma, empenhar-se pelos problemas
do mundo com clareza e generosidade, exatamente à
medida que estava segura de ser distinta do mundo,
mas co-responsável por sua salvação.15
Esse esperado documento foi apresentado no dia 20
de outubro de 1964. Nesse momento, D. Guano ressaltou:
[…] a urgente necessidade deste esquema como
sendo o esforço da Igreja em transpor o hiato da
ignorância mútua, desconfiança, indiferença ou
aparente hostilidade, muitas vezes evidente, entre
a Igreja e o mundo da idade moderna. […], ele deu
15 ALBERIGO, Giuseppe. Breve história do Vaticano II.
Aparecida: Santuário, 2006, p. 128.
151
ênfase ao esquema como veículo e sinal do novo
diálogo da Igreja com o mundo.16
A apresentação do texto alinhou-se às expectativas,
ao ressaltar seus objetivos de superar o abismo criado entre a
Igreja e o mundo moderno, abismo marcado pela desconfiança
e hostilidade de ambas as partes e pelo fechamento da Igreja.
Ressaltava a vontade da Igreja de estabelecer um novo diálogo
com o mundo, superando essas diferenças.
Entretanto, antes mesmo que o texto fosse aprovado
para ser discutido, constatou-se que algumas expressões
e conceitos necessitariam de um maior aprofundamento
teológico/doutrinal. Ainda assim, o Concílio aprovou
o Esquema com uma maioria absoluta de 1.576 votos
favoráveis contra apenas 296 contrários. Essa aprovação
garantiria que o texto fosse analisado de modo aprofundado e
que seus capítulos fossem igualmente estudados e debatidos
na Aula Conciliar.
Sobre o texto em si, McGrath afirma que esse
consistia em um pequeno prólogo identificando a Igreja
com as alegrias e tristezas do mundo moderno e ressaltando
a vontade do Concílio em falar a todos os fiéis. Seguiam-se
três capítulos que versavam sobre a vocação do homem, o
compromisso da Igreja a serviço do homem e o modo como
os cristãos deveriam comportar-se no mundo. O quarto
capítulo abordava os problemas da atualidade e era seguido
por uma conclusão.17
16 MCGRATH, Notas históricas sobre a Constituição Pastoral
“Gaudium et spes”, op. cit., p. 144.
17 Ibid. p. 143.
152
Efetivamente, havia problemas na construção textual,
que não tardaram a aparecer. Até mesmo o cardeal Cento, ao
apresentar o documento aos Padres Conciliares, reconheceu
a existência de lacunas. Em seus diários do Concílio,
Kloppenburg afirma que o cardeal Cento teria apresentado
o documento nos seguintes termos:
Não nos poupamos ao trabalho e, por isso,
pedimos a vossa benevolência, embora o texto
que apresentamos à vossa consideração contenha
imperfeições e lacunas. Mas contamos com a
contribuição das vossas observações e pareceres
para o seu aperfeiçoamento definitivo, de
modo que ele possa ser dado ao conhecimento
de todos os homens, católicos ou acatólicos,
crentes ou ateus, como mensagem de esperança
num futuro melhor em que reine a paz de Cristo
entre os homens.18
Além do reconhecimento dos problemas existentes
no texto, a apresentação do cardeal Cento reforça o caráter
ecumênico que o texto deveria ter e sua intenção de falar a
todos os homens, transmitindo, da parte do Concílio e da Igreja
como um todo, uma mensagem de esperança à humanidade.
Kloppenburg indica que, após a apresentação
do cardeal Cento, D. Guano, relator responsável pelo
documento, tomou a palavra para proferir uma “longa e
minuciosa” explicação do texto.19 Segundo Kloppenburg,
D. Guano teria afirmado sobre o Esquema:
18 KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II. Vol. IV:
Terceira Sessão. Petrópolis: Vozes, 1965, p. 199.
19 Id.
153
Trata-se de promover sempre mais o diálogo
com todos os homens, para ouvi-los falar do
que pensam, das condições em que vivem e dos
problemas que os afligem e, ao mesmo tempo,
para fazê-los conhecer o que a Igreja pensa sobre
as condições, orientações e problemas principais
do nosso tempo; para revelar-lhes de que modo
a Igreja participa da evolução do nosso tempo e
como os cristãos devem contribuir para a solução
dos grandes problemas da hora presente.20
Observemos novamente o reforço do relator em
destacar a finalidade universal do Esquema. Para que essa
finalidade seja alcançada, D. Guano ressalta que o texto foi:
“[…] redigido num estilo consentâneo ao modo de pensar e
de falar do homem de hoje, sem, contudo, sacrificar a pureza
e a plenitude da mensagem evangélica”.21 Justificava-se,
desse modo, uma mudança de estilo que seria uma marca
do documento final. D. Guano tratou das dificuldades que
a Comissão encontrou ao longo de seu trabalho, destacando
aqui a complexidade do tema e a multiplicidade de aspectos
teológicos que poderiam embasá-lo. Fora isso, ressaltou a
dificuldade em equilibrar a mensagem evangélica com
as condições do mundo em que essa mensagem seria
aplicada além das rápidas e intensas transformações sociais
que alteram as condições que o texto poderia apresentar.
Por fim, afirmou que a expectativa criada ao redor do
Esquema também demandou uma grande exigência, a fim
de corresponder a tudo que se espera do texto, o que gerou
certas dificuldades até mesmo pelo fato do trabalho ter
20 Id.
21 Id.
154
partido do zero, não tendo passado por nenhuma Comissão
preparatória, mesmo que sua primeira versão tenha trazido
elementos de documentos emanados nessas fases anteriores.
No nosso entender, esse último aspecto é deveras
relevante e pode ser analisado a partir de dois pontos
distintos. O primeiro deles é a dificuldade destacada por
D. Guano, uma vez que a produção do Esquema não tinha
uma fundamentação prévia definitiva. Por outro lado, tendo
em vista a mesma premissa, o Esquema pode desenvolverse a partir do espírito do Concílio, sem ter passado pelas
instâncias burocráticas anteriores. Trata-se, certamente, de
uma “vantagem” quando comparado a outros Esquemas e
documentos que tiveram que lidar com esses aparatos da
burocracia curial.
Dado que o Esquema apresentava problemas e que
esses eram reconhecidos até mesmo pelos seus relatores,
os debates mostraram-se bastante extensos. Kloppenburg
ressalta que ocorreram 171 discursos, sem contar as
intervenções e sugestões escritas. Tudo isso somado,
gerou um total de 830 páginas de observações dos Padres
Conciliares. Evidentemente, constatou-se que era necessária
uma retomada em diversos aspectos que levariam ainda a
uma nova redação do documento.22
De modo geral, os problemas relacionavam-se a
questões de redação, como o uso deficitário do latim ou
repetições do mesmo assunto em diversos momentos do
texto. Fora isso, notou-se que diversas citações bíblicas
22 KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II. Vol. V:
Quarta Sessão. Petrópolis: Vozes, 1966.
155
estavam incorretas ou ao menos imprecisas. A pressa em
produzir o texto, conjuntamente a outros documentos,
comprometia sua redação.
A partir de então, caberia à comissão a reorganização
dos trabalhos, a fim de sanar os problemas indicados pelos
padres e atender às observações coletadas. É válido ressaltar
que, com esse debate, o próprio papel da Comissão seria
alterado, uma vez que agora deveriam levar em consideração
os apontamentos feitos na Aula Conciliar para adaptar o
texto àquilo que fora sugerido.
Para tanto, McGrath indica que foram tomadas
quatro medidas. A primeira delas foi a ampliação da
subcomissão (ou comitê orientador). Além dos oito
membros que efetivamente haviam trabalhado no Texto
de Zurique, acrescentaram outros oito, sendo a maioria
de fora da Europa, ampliando assim a possibilidade de se
elaborar um texto que englobasse “toda a humanidade”.23 A
segunda medida foi a indicação de seis peritos para compor
um grupo de redatores. Caberia a eles a redação do novo
texto, tendo a supervisão de D. Guano. O terceiro ponto
consistia na elaboração de um texto introdutório, que
fizesse uma exposição geral do mundo. Por fim, a quarta
medida determinava que os anexos ainda restantes fossem
retrabalhados e efetivamente incorporados ao texto.
Entretanto, não se pode ignorar que, apesar dos
problemas, os Padres Conciliares concordaram que o texto
apresentado tinha condições de servir ao menos como base
23 MCGRATH, Notas históricas sobre a Constituição Pastoral
“Gaudium et spes”, op. cit., p. 146.
156
para o seguimento do trabalho. Assim, o ponto de partida
havia sido definido pelo Texto de Zurique, mas ainda não
se tratava da versão definitiva daquela que viria a ser a
Gaudium et Spes. Kloppenburg afirma que a nova redação do
texto deveria ter como base o Texto de Zurique, porém, caso
se mostrasse necessário adequá-lo ou refazê-lo para atender
ao que os Padres haviam indicado, isso deveria ocorrer.24 A
fim de dinamizar a atividade, foi definido que cada parte do
documento seria trabalhada por uma subcomissão específica,
o que se mostrou bastante produtivo e trouxe resultados
interessantes em termos da produção, que fora executada
em um tempo relativamente curto. Além disso, a grande
inovação dessa equipe reunida em Ariccia foi mostrarse mais atenta para as necessidades do documento, que já
haviam sido destacadas ao longo da primeira discussão.
Segundo Delhaye, o novo texto, chamado então de
Texto de Ariccia – elaborado entre os dias 31 de janeiro e
06 de fevereiro de 1965 –, exaltava os valores humanos e
a dignidade da pessoa em suas diversas dimensões como o
corpo, alma, consciência; também se dava devida atenção ao
valor da liberdade e uma ênfase especial sobre o problema
do ateísmo. Aspectos de cunho mais teológicos, como, por
exemplo, a abordagem do homem enquanto imagem de Deus,
faziam-se presentes, mas ocupavam um segundo plano.25
Havia inúmeras correções a serem feitas, e a Comissão
Mista seguiu em um ritmo acelerado para concluir tudo até
o mês de maio. Finalmente, no dia 11 de maio, o Esquema
24 KLOPPENBURG, Concílio Vaticano II. 1966, op. cit., p. 57.
25 DELHAYE, A dignidade da pessoa humana, op. cit., p. 269.
157
foi aprovado pela Comissão Coordenadora do Concílio e
enviado aos Padres Conciliares para que pudessem discutilo na última sessão do Concílio.
O texto que foi encaminhado aos Padres Conciliares
trazia algumas especificações que o marcariam de modo
definitivo. Como exemplo, podemos indicar que já se
apresentava explicitamente como sendo uma Constituição
Pastoral, algo até então desconhecido no meio conciliar
e que, finalmente, estabelecia o caráter que o documento
deveria ter. O Esquema XIII não seria um Decreto,
mas ocuparia uma nova categoria de Constituição, não
doutrinária, mas preocupada em aplicar a doutrina a partir
de princípios pastorais.
Quanto ao conceito de “Pastoral”, justifica-se na
medida em que o documento reconhece que sua finalidade
não é doutrinal, mas sim versar sobre a aplicação da
doutrina nos tempos atuais. Esse aspecto pastoral refletirse-ia ainda no estilo assumido pelo texto, uma vez que se
propôs a falar com toda a humanidade. Isso implicaria na
necessidade de não fazer uso de linguagem eclesiástica
mais rebuscada e não se fundamentar apenas nas Sagradas
Escrituras. Podemos afirmar, desse modo, que se tratava
de um ineditismo de estilo. Isso deu-se pelo fato de os
redatores entenderem que o texto do Esquema XIII
deveria ser simples e estabelecido a partir dos fatos vividos
pela humanidade em sua totalidade, independentemente
de suas verdades serem ou não condizentes com os
ensinamentos do Magistério católico. Assim, a Igreja falava
à humanidade e esperava que o documento fosse lido não
apenas por seus fiéis, mas por todos.
158
Após passar para a Comissão Mista, alguns outros
ajustes foram feitos em Ariccia e prorrogaram-se de
fevereiro a julho. Mas, de modo geral, podemos considerar
que fora esse o texto enviado aos Padres Conciliares e cuja
discussão estabelecer-se-ia na Quarta e última Sessão do
Concílio. Acreditava-se que o texto já atenderia a todas
as recomendações feitas por ocasião da exposição e do
debate na Terceira Sessão do Concílio. Contudo, isso não
se concretizou, uma vez que os debates foram novamente
intensos na Aula Conciliar, expondo opiniões radicalmente
opostas. Segundo Kloppenburg, vários Padres Conciliares
exaltaram não apenas o documento, mas, também, o trabalho
vigoroso desenvolvido pela Comissão em um período
relativamente curto, entre a Terceira e a Quarta Sessões.26
As críticas à Gaudium et Spes
Por outro lado, não foram poucas as críticas ao
documento apresentado. Delhaye afirma que as críticas
acentuadas da Quarta Sessão podem ser compreendidas
como sendo uma grande surpresa, uma vez que o texto
fora reescrito tendo como base as solicitações e indicações
emanadas na sessão anterior.27 Kloppenburg afirma que a
crítica mais intensa veio de D. Geraldo de Proença Sigaud,
bispo de Diamantina e vinculado a setores mais tradicionais
do catolicismo. Para ele, o documento apresentado, além de
favorecer a fenomenologia existencialista, ainda se alinhava
perigosamente ao marxismo.28
26 KLOPPENBURG, Concílio Vaticano II. 1966, op. cit., p. 58-59.
27 DELHAYE, A dignidade da pessoa humana, op. cit., p. 270.
28 KLOPPENBURG, Concílio Vaticano II. 1966, op. cit., p. 59.
159
A crítica de D. Sigaud precisa ser contextualizada com
maior atenção, principalmente quanto ao grupo ao qual ele
pertenceu. D. Sigaud era membro do Coetus Internationalis
Patrum (CIP), grupo que foi formado ao longo do Concílio,
tinha em suas fileiras diversos bispos e cardeais que seguiam
uma linha tradicionalista e que, de maneira geral, mostravamse profundamente críticos a qualquer possibilidade de abertura
da Igreja, incluindo aqui um diálogo mais franco com o
mundo moderno que, na visão deles, já havia sido condenado
pelo Magistério pontifício desde os séculos anteriores.29
Ainda de acordo com Kloppenburg, na concepção de D.
Sigaud, os problemas da Gaudium et Spes começavam já
pela sua designação de “Constituição”. Nesse sentido, o uso
do termo “Constituição” seria inapropriado, uma vez que
daria ao documento um peso de lei, o que, na concepção do
bispo brasileiro, era altamente inapropriado, uma vez que
não era esse o objetivo do texto.30 Ademais, para fazer frente
ao alinhamento à fenomenologia moderna e ao marxismo,
D. Sigaud propôs que o documento aderisse ao espírito da
Escolástica, bem como aos seus métodos e princípios.
De modo geral, a intervenção de D. Sigaud está
atrelada aos princípios pré-conciliares que se mostravam
ultrapassados pelos avanços promovidos pelo próprio
Concílio e que se materializariam definitivamente na
29 Para maiores informações sobre o Coetus, sugerimos a leitura
de ROY-LYSENCOURT, Philippe. Les membres du Coetus
Internationalis Patrum au Concilie Vatican II. Inventaire des
interventions et souscriptions des adhérents et sympathisants.
Liste des signataires d’occasion et des théologiens. Leuven:
Peeters, 2014.
30 KLOPPENBURG, Concílio Vaticano II. 1966, op. cit., p. 59-60.
160
Gaudium et Spes. Talvez esse tenha sido um dos motivos
pelos quais suas considerações não foram levadas adiante.
Ainda assim, é evidente que o grupo de oposição ao
documento, representado nas proposições de D. Sigaud,
constituía um percentual da Assembleia Conciliar que,
mesmo se mostrando mais reduzido do que era esperado
inicialmente, ainda indicava a existência de uma parte do
alto clero vinculado à antiga tradição católica.
Ao mesmo tempo, ocorreram críticas mais
construtivas, que partiam normalmente da indicação dos
aspectos positivos do documento, antes de apontar para
o que entendiam que teria que ser melhorado. Diversos
Padres Conciliares indicaram que a Constituição ainda não
tinha devidamente esclarecido o uso do termo “mundo”
e da expressão “povo de Deus”. O problema mais sério a
ser tratado era a ausência de um maior aprofundamento
teológico, que se refletia em uma compreensão deficitária
sobre o mundo e sobre a ação da Igreja. Coube aos redatores
a tarefa de corrigir o documento de acordo com aquilo que
vinha sendo proposto, mantendo a estrutura do documento
que estava sendo analisado. Segundo McGrath, “conforme
os discursos e as observações escritas invadiam o secretariado,
iam sendo lançadas em fichas, de acordo com a arte a que
se referiam. Cada subcomissão tinha uma semana para
reescrever sua sessão, seguindo as novas observações”.31 Essa
nova versão do texto seria denominada de Textus recognitus
e foi apresentada para nova votação no mês de novembro.
Ressalta-se que, nesse momento, já não seria mais debatido,
31 MCGRATH, Notas históricas sobre a Constituição Pastoral
“Gaudium et spes”, op. cit., p. 150.
161
apenas votado, uma vez que o Concílio caminhava para seu
encerramento, e entendia-se que todos os debates anteriores
já haviam sido suficientes.
Finalmente, em 7 de dezembro de 1965, a Constituição
era aprovada com apenas setenta e cinco votos contrários.
McGrath indica que a sensação do momento era que um
milagre havia acontecido, uma vez que o texto havia sido
reformulado e ainda teve centenas de pontos modificados
após essa reformulação e, tudo isso, em apenas dois meses,
podendo ser votado e aprovado.32
Após anos de trabalho, a Comissão Mista responsável
pela elaboração do Esquema XVII, que veio a se tornar
o Esquema XIII, finalmente concluiu seu trabalho. O
Esquema XIII agora seria chamado oficialmente a partir
das duas primeiras palavras que o compõem: Gaudium et
Spes (Alegria e Esperança), nome bastante apropriado não
apenas pelo conteúdo em si, mas, também, por fechar o
Concílio retomando a alegria preconizada por João XXIII
na sua abertura.
Válido destacar que Roy-Lysencourt afirma que a
força do CIP fez-se presente no documento final da GS,
posto que o grupo conseguiu inserir uma nota sobre as
condenações prévias feitas pela Igreja Católica contra o
comunismo. Ainda assim, uma vitória pequena, posto que
a intenção desse grupo era que o documento explicitasse a
condenação ao comunismo, algo que não ocorreu.33
32 Id.
33 ROY-LYSENCOURT, Les membres du Coetus Internationalis
Patrum au Concilie Vatican II, op. cit.
162
Conclusão
Esse breve esboço do caminhar histórico que conduziu
à elaboração da Gaudium et Spes expôs as dificuldades
que o documento teve desde suas primeiras proposições.
Muitas dessas dificuldades são próprias da elaboração de
um documento durante a própria realização do Concílio,
uma vez que não havia sido pensado nenhum documento
nesse teor durante a preparação do Vaticano II. Por outro
lado, a presença de grupos contrários aos avanços propostos
pelo Concílio e estabelecidos desde sua convocação marcou
também um movimento de oposição ao documento,
exigindo que este, no seu diálogo com o mundo, se voltasse
às condenações já efetuadas no passado.
A força desse grupo mostrou-se evidente, também,
quanto aos ajustes na maneira como o documento
apresentava-se, a começar pela crítica quanto à sua definição
enquanto Constituição, passando pela composição da
escrita mais acessível que os demais textos produzidos
pelo Concílio. Na realidade, é evidenciado que, durante
todos os movimentos de sua elaboração, a Constituição
passou pela dura oposição de setores da Igreja que
observavam com preocupação os rumos que o documento
adotava. Essas preocupações fundamentavam-se nas
transformações teológicas em curso, muitas das quais não
foram compreendidas pelo setor intransigente que buscava
adequar a GS a um modelo de Igreja que caminhava para
seu final no próprio evento conciliar. Contudo, as forças ditas
163
conservadoras mostraram-se menores e menos influentes
do que era esperado ou imaginado antes do Concílio, o que
pôde ser comprovado desde as constantes viradas e avanços
obtidos como vitória pelos setores liberais. Quanto à GS,
essa mostrou-se como sendo a consolidação do Espírito
Conciliar e dos avanços idealizados por João XXIII, quando
da convocação do Vaticano II. Mas sua elaboração não deixa
de evidenciar a força conservadora em ação que, mesmo de
forma reduzida, mostrou-se capaz de influenciar em diversos
aspectos do documento final.
Integrais na fé católica: o integrismo
doutrinário e operativo da Sociedade
Brasileira de Defesa da Tradição, Família e
Propriedade (TFP)
Gizele Zanotto
Os princípios católicos não mudam porque os
anos passam, porque os países são diferentes,
por causa das novas descobertas ou por questões
de utilidade. Os princípios católicos ainda
são os mesmos que Cristo ensinou, que a
Igreja proclamou, que os papas e os concílios
definiram, que os santos mantiveram, que os
doutores defenderam. Convém tomá-los como
são ou deixá-los como são. Quem os aceita em
sua plenitude e rigor é católico; quem hesita,
tergiversa, se acomoda aos tempos, cede, poderá
dar a si mesmo o tempo que quiser, porém,
diante de Deus e da Igreja, trata-se de um
rebelde e traidor.1
Em 1899, o periódico Civiltá Cattolica, revista de cultura
italiana fundada por jesuítas em abril de 1850, em Nápoles,
trazia em suas páginas um “manifesto” pela adesão aos
1
SCHLEGEL, Jean-Louis. Fundamentalistas e Integristas
ante a modernidade. In: AÇÃO DOS CRISTÃOS PELA
ABOLIÇÃO DA TORTURA (ACAT). Fundamentalismos,
integrismos: Uma ameaça aos direitos humanos. São Paulo:
Paulinas, 2001, p. 142.
166
“princípios católicos” referendados pelos papas e Concílios,
adesão essa sem concessões. A publicação segue ativa,
todavia, com sede em Roma, para onde foi transferida ainda
no século XIX. Incentivada por Pio IX, justamente no
contexto de defesa da civilização católica ante o avanço do
liberalismo, o Civiltá Cattolica prestou-se à reafirmação da
autoridade papal e condenava os que rejeitavam o catolicismo
e os católicos que não se alinhavam à sua autocompreensão
de Igreja.
Eleito pontífice em 1846, Giovanni Maria MastaiFerretti adotou o nome de Pio IX (1846-1878), em um
cenário de conflitos entre os chamados católicos “liberais”
– que entendiam a necessidade de a Igreja renovar-se –
e os ultramontanos – conservadores, que defendiam a
manutenção do poder temporal e sacral da Igreja e a adesão
total ao papado. O novo pontífice, movimentando-se entre
esses dois grupos, logo promoveu estudos para implantação
de uma estrada de ferro nos Estados pontifícios, instalou
iluminação a gás nas ruas de Roma, criou um instituto
agrícola para aumentar a produtividade e auxiliar os
agricultores, promoveu uma reforma nas tarifas para
estimular o comércio, anistiou revolucionários dos Estados
papais, enfim, articulou várias ações que fizeram dele, em
seus anos iniciais, um importante gestor – inclinado a
concessões democráticas – e pastor.2
A alteração da postura de Pio IX para a austeridade
conservadora deu-se a partir de 1848, tempo da chamada
2
DUFFY, Eamon. Santos & Pecadores. História dos Papas. São
Paulo: Cosac & Naify, 1998.
167
“terceira onda” das revoluções liberais, quando das lutas
que visavam à unificação italiana e à expulsão austríaca
de territórios ao norte. Naquele contexto, o papa acabou
eximindo-se de declarar guerra a uma nação católica –
a Áustria –, angariando, com isso, a pecha de “traidor”
dos peninsulares ao se refugiar no território napolitano.
Anos depois, em 1850, o pontífice retornou a Roma com
apoio de tropas francesas e manteve-se no poder com esse
amparo, unido ao de tropas austríacas. Progressivamente,
seu poder temporal diminuía, dada a perda dos territórios
pontifícios e a ampliação do movimento de unificação.
Entretanto, seu papel como líder religioso aumentava.
No mesmo contexto, os adeptos ao intransigentismo ou
ultramontanismo3 ampliavam seus quadros de adesão,
bem como as manifestações de piedade. Nesse cenário,
têm destaque o culto mariano, com a declaração da
Imaculada Concepção de Maria (tornada dogma em 8 de
dezembro de 1854), o culto ao Sagrado Coração de Jesus
e a devoção ao papa.4
3
O ultramontanismo designa a tendência do catolicismo no
século XIX de buscar o fortalecimento do papado, tanto no
governo como no Magistério da Igreja. Por consequência, os
católicos deveriam ver no Papa o principal líder e o mediador
entre a sociedade e o mundo espiritual. Os leigos e os religiosos
deveriam ser submissos às iniciativas e diretrizes da Santa Sé.
SANTOS, Patrícia Teixeira. Ultramontanismo. In: SILVA,
Francisco Carlos Teixeira; MEDEIROS, Sabrina Evangelista;
VIANNA, Alexander Martins (org.). Dicionário Crítico do
pensamento de direita: idéias, instituições e personagens. Rio de
Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2000, p. 444-445.
4
Id.
168
A adesão de Pio IX ao conservadorismo católico
intransigente ficou consagrada com a publicação da encíclica
Quanta Cura (1864), adida do Sillabo dei principali errori
dell´età nostra, che son notati nelle allocuzioni consistoriali,
nelle encicliche e in altre letter apostoliche del SS Signor
Nostro Papa Pio IX,5 documento com oitenta proposições
derivadas de pontífices anteriores e reiteradas pelo papa em
exercício, condenando os supostos “erros da modernidade”.
Em 1864, o papa convocou um Concílio para enfrentar a
descrença e o racionalismo e, certamente, fortalecer a Igreja
contra sociedades e Estados hostis. Conforme Raimundo,
retomando os estudos de Jedin, foram os Concílios de
Trento (1545-1563) e Vaticano I (1969-1870), este último
interrompido pelos episódios da guerra de unificação dos
reinos italianos, que estabeleceram a “definição solene do
poder jurisdicional supremo, bem como da infalibilidade do
Romano Pontífice, o processo de centralização dogmática
e disciplinar que resultou na consolidação dos quadros
hierárquicos da Igreja”.6 Não à toa, Civiltá Cattolica, ainda
em fins do século XIX, repercutia a tensão entre os católicos
adeptos de sinais da modernidade e os antimodernistas7.
5
PIO IX. Enciclica Quanta Cura, Roma, 8 dez. 1864. Disponível em:
https://www.vatican.va/content/pius-ix/it/documents/encyclicaquanta-cura-8-decembris-1864.html. Acesso em: 20 maio 2024.
6
JEDIN, Hubert apud RAIMUNDO, Mariana de Matos
Ponte. Concílio Vaticano I (1869-1870): textos e contextos,
tradição e representação. 2019. 201f. Tese (Doutorado em
Ciência da Religião) – Universidade Federal de Juiz de Fora,
Juiz de Fora, 2019, p. 29.
7
Uma discussão mais detida sobre o integrismo pode ser
acessada em ZANOTTO, Gizele. O integrismo tefepista da
segunda metade do século XX. Reflexão, n. 48, p. 1-17, 2023.
169
O integrismo, como movimento de ideias e ações
que reforçou a posição intransigente do catolicismo,
consolidou-se na virada do século XIX para o XX, a
partir de uma ruptura do movimento intransigente que
condenava a conciliação da Igreja Católica com a sociedade
moderna. Buscando as “verdades da fé” no “ultramontes”
(além dos Alpes, na península itálica, em alusão a Roma
e ao papado), religiosos intransigentes sistematizaram a
doutrina de um processo maléfico, que há mais de cinco
séculos vinha destruindo a cristandade e que deveria contar
com um movimento opositor, caracterizado pela defesa
incondicional e absoluta do papado e pela intervenção
política para a “recristianização” social. Embora fileiras
tenham sido cerradas ante os católicos ditos liberais, os
intransigentes acabaram por se fragmentar por ocasião
da interpretação da encíclica Rerum Novarum (Das coisas
novas, 1891) do papa Leão XIII (1878-1903). A encíclica
foi recebida pelos intransigentes como uma condenação da
moderna sociedade burguesa. A interpretação dos religiosos
vinculados ao chamado catolicismo social foi outra.8 A
partir dessa ruptura interna no campo intransigente católico,
nasceu o chamado integrismo, batizado dessa forma no
século XIX na Espanha9 e definido como “corrente política
8
PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da Diferença. São Paulo:
USP, Curso de Pós-Graduação em Sociologia; Editora 34, 1999.
9
Ver ainda SANZ DE DIEGO, Rafael Maria. Una aclaración
sobre los orígenes del integrismo: la peregrinación de 1882.
Estudios Eclesiasticos, n. 53, p. 91-122, 1977;| MONTEIRO,
Feliciano. El peso del integrismo en la Iglesia y el catolicismo
español del siglo XX. Mélanges de la Casa de Velázquez, n. 44-1,
p. 131-156, 2014.
170
que pretendia impregnar com catolicismo intransigente
toda a vida da nação e recusava qualquer tipo de separação
entre profano e sagrado, entre laico e confessional”.10
Tôrres lembra que o integrismo funda-se em dois
fatos emblemáticos, quais sejam: o caráter perfeito da
revelação, que, como palavra de Deus dirigida aos homens,
é perfeita e plenamente realizada, o que deriva na crença de
que “sendo o ensinamento da Igreja verdadeiro, e a Verdade
imutável, o ensinamento da Igreja deve ser imutável”;11 de
outra parte, o caráter catastrófico da história, iniciada com
o pecado original e que estabeleceria para o homem uma
luta entre contrários que o levaria à redenção ou à danação.12
Assim, sintetiza o autor, o integrismo conforma-se como
uma posição que considera imutáveis os dogmas e as formas
pelas quais a religião apresenta-se. Émile Poulat, por sua vez,
enfatiza que a gênese do mal depreende-se da contestação
protestante, da Revolução Francesa, do Iluminismo e das
transformações políticas, culturais e sociais decorrentes. Se,
a princípio, o movimento era contra a sociedade moderna,
lembra o autor, acabou por configurar-se em movimento
10 FOUILLOUX, Étienne. Integrismo católico e direitos
humanos. In: AÇÃO DOS CRISTÃOS PELA ABOLIÇÃO
DA TORTURA (ACAT). Fundamentalismos, integrismos:
Uma ameaça aos direitos humanos. São Paulo: Paulinas,
2001, p. 11-12.
11 TÔRRES, João Camilo de Oliveira. História das Idéias
Religiosas no Brasil. São Paulo: Editorial Grijarbo, 1968, p. 220.
12 Ibid., p. 222.
171
contrário às mudanças internas na instituição católica, à
defesa de valores religiosos e à “autêntica tradição”.13
Apesar de ganhar novos adeptos, adversários e
bandeiras, a pugna de católicos integristas contra as
transformações do período moderno manteve-se ao longo
do século XX e chegou ao XXI, revigorada e atualizado,
não só em sua retórica e meios de ação, mas também nas
tecnologias e apelos que lhe angariam novos neófitos
para o “combate”. Neste capítulo, pretendemos avaliar
uma das sintetizações do integrismo católico, elaboradas
pelo brasileiro Plinio Corrêa de Oliveira (1908-1995) na
primeira metade do século XX e publicada, em sua primeira
versão, como ensaio intitulado Revolução e Contrarrevolução
(1959), nas páginas do mensário Catolicismo (1951-).
Oliveira ascendeu no meio católico paulista na
década de 1920 como congregado mariano. Posteriormente,
destacou-se entre os membros da juventude católica
de São Paulo, atuando como diretor do periódico O
Legionário (1933-1947), o que o levou a ser indicado como
um dos candidatos da Liga Eleitoral Católica (LEC)
para a Assembleia Nacional Constituinte (1934-1937),
cargo para o qual foi eleito como um dos representantes
das demandas católicas. Oliveira seguiu ativo na Igreja,
sagrando-se presidente da junta Arquidiocesana da
Ação Católica Paulista (1940-1943). Para Souza, a Ação
Católica Brasileira (ACB), capitaneada a partir do Rio
13
POULAT, Émile. Intégrisme. In: ENCYCLOPAEDIA
UNIVERSALIS. v. 9. Paris: Encyclopaedia Universalis,
1985, p. 1249.
172
de Janeiro, foi palco de várias disputas de orientação. Seu
presidente nacional foi Alceu Amoroso Lima, converso
ao catolicismo em 1928, ligado ao neotomismo, criticado
pelos conservadores católicos; em São Paulo, o dirigente da
ACB era Oliveira. No entendimento de Souza, de “um lado
era um esforço para entender o mundo contemporâneo,
repensar o problema da liberdade, da democracia e da
participação social e de outro a atitude de rejeição a tudo
o que era moderno e considerado anticristão”.14 A postura
combativa de Oliveira como defensor do catolicismo ante
as transformações e adaptações litúrgicas do movimento
católico, dos chamados “progressismos”, consagrou-o
como referência, sobretudo pela sua posição de poder em
O Legionário e na Ação Católica Paulista, de onde foi
progressivamente afastado quando da ascensão de líderes
leigos mais comprometidos com o catolicismo social e com
as transformações eclesiais.15
O ano de 1947 marcou o deslocamento de Oliveira
e do grupo de redatores de O Legionário da condução
do jornal. Daí em diante, o grupo – articulado em
14 SOUZA, Luiz Alberto Gomes. Ação Católica Brasileira: O
despertar da consciência histórica na preparação de Medellín.
In: SCHÜHLY, Gunther; KÖNIG, Hans-Joachim;
SCHNEIDER, José Odelso (org.). Consciência Social: A
história de um processo através da Doutrina Social da Igreja.
São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1994, p. 184.
15 Sobre aspectos biográficos de Oliveira, ver INTROVIGNE,
Massimo. Uma battaglia nella notte: Plinio Corrêa de Oliveira
e la crise del secolo XX nella Chiesa. Milano: Sugarco
Edizioni, 2008; MATTEI, Roberto de. O Cruzado do Século
XX: Plinio Corrêa de Oliveira. Porto: Livraria Civilização
Editora, 1997.
173
torno a Oliveira e ampliado com outros membros –
seria o promotor da criação, inicialmente do mensário
Catolicismo, em 1951, avalizado pela Diocese de Campos
de Goytacazes/RJ, visto que D. Antônio de Castro Mayer
(bispo de campos e futuro participante do Vaticano II)
alinhava-se ao grupo. Já a partir de 1960, o grupo passou a
atuar como associação civil católica de caráter confessional
nomeada Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição,
Família e Propriedade (TFP), cujo instrumento norteador
de interpretação da realidade e de sua operatividade foi
o ensaio Revolução e Contrarrevolução (doravante R:CR),
como dito, publicado inicialmente em 1959 (Introdução;
partes I e II, conclusão), ampliada em 1976 (parte III) e
atualizada em 1992, quando também adida de posfácio.
Conforme nos informam os seguidores do pensamento
pliniano (em referência ao autor, Plinio C. de Oliveira),
atualmente, a publicação tem traduções para castelhano,
francês, italiano, inglês, romeno, alemão, polonês, bielorusso, húngaro, russo, lituano, ucraniano, letão, estoniano,
finlandês e japonês, totalizando 51 edições e a produção
de 174.995 exemplares, dados esses de março de 2020.16
Esses números ainda são multiplicados pelas edições
on-line e gratuitas disponíveis em inúmeros sites e pela
miríade de instituições católicas de matiz integrista
configuradas no Brasil e no mundo, algumas delas, como
a Associação Internacional de Direito Pontifício Arautos
16
OLIVEIRA, Plinio Corrêa. Revolução e Contra-Revolução.
Disponível em: http://www.pliniocorreadeoliveira.info/RCR_0000_
indice.htm#.Y-9qJ3bMJhE. Acesso em: 25 maio 2024.
174
do Evangelho (AE), dentro do espectro institucional da
Igreja Católica.
Com base em R:CR e em fontes europeias de
compreensão do mundo e de Igreja a partir da “eterna”
luta entre o bem e o mal, Oliveira produziu essa obra,
a qual se tornou referência para grupos católicos
conservadores mundo afora, sobretudo aqueles reunidos
nas TFPs criadas pelos cinco continentes e lideradas
pelo autor no período de 1960 a 1995, quando de seu
falecimento.17 Revolução e Contrarrevolução estabeleceu
uma linhagem de sentidos, consolidou-se como fonte
explicativa, informativa e operativa para os católicos.
Nesse sentido, evidencia-se o poder simbólico derivado
deste ensaio, que, “como poder de constituir o dado pela
enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de
transformar a visão do mundo, e deste modo a ação sobre
o mundo”,18 segue atual e mobilizador.
A gênese da Revolução e suas metamorfoses
17 Pelo mapeamento realizado pela autora até aqui, existem ou
existiram entidades da rede TFP nos seguintes países, por
continentes: América (Argentina, Bolívia, Brasil, Canadá,
Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, EUA, Paraguai,
Peru, Uruguai, Venezuela), Europa (Alemanha, Áustria,
Bélgica, Croácia, Espanha, Estônia, França, Holanda,
Hungria, Irlanda, Itália, Lituânia, Polônia, Portugal, Reino
Unido), África (África do Sul), Oceania (Austrália, Nova
Zelândia) e Ásia (Filipinas).
18 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 3. ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2000, p 14.
175
Abril de 1959. Na centésima edição do mensário
Catolicismo, é publicado o ensaio Revolução e
Contrarrevolução, por Plinio Corrêa de Oliveira. A proposta
da publicação é pedagógica, pois explica didaticamente os
fatores da decadência da cristandade; analítica, pois avalia
suas raízes, características, intenções e resultados; e, por
fim, operativa, já que traz orientações de como combatê-la
em seus diferentes âmbitos de atuação. Na interpretação de
Pinto, podemos filiar-nos à ideia de que R:CR mostra-se
como um discurso político, enquanto tipologia geral, visto
ser ele uma peça de linguagem alinhada ao discurso de um
sujeito que, por excelência, tem poder e saber, e que, em
suas interlocuções (sejam orais, escritas, imagéticas etc.),
pretende impor verdades sobre um tema específico. Além
disso, é um discurso de visões de mundo no qual o princípio
é a polêmica – que o retroalimenta –, e a deslegitimação do
outro.19 Nessa linha, afirma a autora que:
A característica fundamental do discurso político
é que este necessita para sua sobrevivência
impor a sua verdade a muitos e, ao mesmo
tempo, é o que está mais ameaçado de não
conseguir. É o discurso cuja verdade está sempre
ameaçada em um jogo de significações. Ele sofre
cotidianamente a desconstrução, ao mesmo
tempo só se constrói pela desconstrução do outro.
É portanto, dinâmico, frágil e, facilmente, expõe
sua condição provisória.20
19 PINTO, Céli Regina Jardim. Elementos para uma análise de
discurso político. Barbarói, v. 24, p. 78-109, 2006, p. 92.
20 Ibid., p. 89.
176
A posição de discurso político tem na própria
organização da obra outra forma de reforço. A estrutura da
publicação, original e com suas atualizações, evidencia um
texto que se quer didático, entremeado de capítulos com
títulos autoexplicativos que guiam a leitura e marcam as
ideias principais defendidas pelo autor.
177
Quadro 4
Estrutura de Revolução e Contra-Revolução (1998)
PARTE/ANO
CAPÍTULOS
Introdução (1959)
Parte I
A REVOLUÇÃO (1959)
Parte II
A CONTRA-REVOLUÇÃO
(1959)
Capítulo I. Crise do homem
contemporâneo
Capítulo II. Crise do homem
ocidental e cristão
Capítulo III. Caracteres dessa crise
Capítulo IV. As metamorfoses do
processo revolucionário
Capítulo V. As três profundidades
da Revolução: Nas tendências, nas
idéias, nos fatos
Capítulo VI. A marcha da
Revolução
Capítulo VII. A essência da
Revolução
Capítulo VIII. A inteligência,
a vontade e a sensibilidade na
determinação dos atos humanos
Capítulo IX. Também é filho
da Revolução o “semi-contrarevolucionário”
Capítulo X. A cultura, a arte e os
ambientes, na Revolução
Capítulo XI. A Revolução, o
pecado e a Redenção. A utopia
revolucionária
Capítulo XII. Caráter pacifista e
antimilitarista da Revolução
Capítulo I. Contra-Revolução é
reação
Capítulo II. Reação e imobilismo
histórico
Capítulo III. A Contra-Revolução
e o prurido de novidades
178
Parte II
A CONTRA-REVOLUÇÃO
(1959)
Parte III
REVOLUÇÃO E
CONTRA-REVOLUÇÃO
- Vinte anos depois
(1976 e 1992)
Capítulo IV. O que é um contrarevolucionário?
Capítulo V. A tática da ContraRevolução
Capítulo VI. Os meios de ação da
Contra-Revolução
Capítulo VII. Obstáculos à
Contra-Revolução
Capítulo VIII. O caráter
processivo da Contra-Revolução e o
“choque” contra-revolucionário
Capítulo IX. Força propulsora da
Contra-Revolução
Capítulo X. A Contra-Revolução,
o pecado e a Redenção
Capítulo XI. A Contra-Revolução
e a sociedade temporal
Capítulo XII. A Igreja e a ContraRevolução
Capítulo I. A Revolução, um
processo em transformação
contínua
Capítulo II. Apogeu e crise da III
Revolução
Capítulo III. A IV Revolução que
nasce
Conclusão (1959)
Posfácio (1992)
Fonte: OLIVEIRA, Plinio Corrêa. Revolução e Contra-Revolução. 4. ed.
São Paulo: Artpress, 1998. Quadro elaborado pela autora.
Há, ainda, em muitos capítulos, a separação em
letras, números ou outras formas de divisão e marcação de
ideias e conteúdo. Esse tipo de configuração estrutural é
bastante comum em obras que buscam alcançar público
amplo, o que se dá pela facilidade com que as informações
179
são apresentadas, pelo recurso a textos curtos, pelo reforço
de informações por meio de títulos sintetizadores, além
do fato de que se trata de uma obra também referencial,
permeada de citações de santos, papas e padres da Igreja.
O apelo à autoridade, à legitimidade do sujeito enunciador
ou mencionado é, em grande parte, responsável pela
adesão aos enunciados ou pela intenção de filiação a eles,
pelo mecanismo de projeção. Como lembra Costa, ao
estudar discursos católicos, “quem não se identifica com
os enunciados estará se reconhecendo como não-católico,
colocando-se em posição adversa”.21
Ainda pensando em R:CR como um todo, antes de
adentrarmos o seu conteúdo e alinhamento ao integrismo,
destacamos outras questões quanto à sua forma. Orlandi
nos lembra que os textos (peças de linguagem) podem ser
tidos por “bólidos de sentidos”, pois são essencialmente
multidimensionais; um texto “parte em inúmeras direções,
em múltiplos planos significantes”.22 Entendendo a
significação como resultado de nossas concepções,
conhecimentos, visões de mundo, mas, também, como
resultado da materialidade que possibilita diferentes
“gestos de significação”, compreendemos a atenção de
uma obra como R:CR com seu “embasamento” em figuras
de autoridade, bem como pela tentativa de barrar o que
Chartier denomina de “invenção criadora no processo de
21 COSTA, Eleonora Z. Sobre o acontecimento discursivo.
In: SWAIN, Tânia Navarro. História no Plural. Brasília: Ed.
UNB, 1994, p. 197.
22 ORLANDI, Eni Puccinelli. Interpretação: autoria, leitura e efeitos
do trabalho simbólico. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 14.
180
interpretação”,23 pois se entende o leitor como sujeito ativo
na interpretação e na ressignificação de mensagens. Nessa
linha, visando conter o “espaço de interpretação”, Orlandi
trata das notas de rodapé como instrumentos que aparecem
quando há possibilidade de “fuga dos sentidos”, “onde a
alteridade ameaça a estabilidade dos sentidos”. Assim, segue
a autora, as notas manifestam-se como “aparato de controle”,
de “administração da polissemia”.24
O livro Revolução e Contrarrevolução inicia-se com
uma contextualização articulada à justificativa da obra. Na
Introdução, é explicitada a situação incongruente do cenário
católico brasileiro, no qual estatisticamente teríamos 94%
da população adepta da religião, mas cuja vivência fiel deixa
a desejar. No que concerne à indicação de que possíveis
causas dessa situação pudessem ser vislumbradas no
espiritismo, protestantismo, ateísmo ou comunismo, o autor
é contundente em afirmar que não. Esse “terrível inimigo”,
segue Oliveira, chama-se Revolução (com R maiúsculo),
definida como “um movimento que visa a destruir um poder
ou uma ordem legítima e pôr em seu lugar um estado de
coisas (intencionalmente não queremos dizer ordem de
coisas) ou um poder ilegítimo”.25 Esse movimento, explica
Oliveira, pode ser cruento ou incruento, e objetiva destruir
a civilização católica, entendida como “a estruturação de
todas as relações humanas, de todas as instituições humanas,
23 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e
representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988, p. 136.
24 ORLANDI, Interpretação, op. cit., p.13.
25 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. Revolução e Contra-Revolução. 4.
ed. São Paulo: Artpress, 1998, p. 55.
181
e do próprio Estado, segundo a doutrina da Igreja”.26 Como
universal, una, total, dominante e progressiva, a Revolução
visa a atingir a cultura, as artes, as leis, os costumes e as
instituições, enfim, todos os domínios da atividade humana.
A causa profunda desse processo revolucionário seria
identificada no orgulho e na sensualidade. Para Oliveira,
O orgulho leva ao ódio a toda superioridade, e, pois,
à afirmação de que a desigualdade é em si mesma,
em todos os planos, inclusive e principalmente nos
planos metafísico e religioso, um mal. É o aspecto
igualitário da Revolução.
A sensualidade, de si, tende a derrubar todas as
barreiras. Ela não aceita freios e leva à revolta
contra toda autoridade e toda lei, seja divina ou
humana, eclesiástica ou civil. É o aspecto liberal
da Revolução.27
Dessas causas profundas, segue o autor na versão
de 1959, derivaram três grandes revoluções, quais sejam: a
“Pseudo-Reforma”, que implantou o liberalismo religioso, o
igualitarismo eclesiástico e o espírito de dúvida; a Revolução
Francesa, que consolidou o igualitarismo religioso (ateísmo)
e político (“pela falsa máxima de que toda desigualdade é
uma injustiça, toda autoridade um perigo, e a liberdade o bem
supremo”);28 e o comunismo, que adequou o igualitarismo
aos âmbitos social e econômico. Embora se tenha legado a
Oliveira – pelo seu séquito de tefepistas (os assim chamados
aderentes à TFP) e neófitos, durante sua vida e agora, pelos
26 Ibid., p. 60.
27 Ibid., p. 13-14.
28 Ibid., p. 14.
182
adeptos do pensamento pliniano articulados em TFPs ou
em outras associações dedicadas ao intelectual (a exemplo,
no Brasil, do Instituto Plinio Corrêa de Oliveira – IPCO)
– a indicação do “profetismo” e da “inerrância”,29 há que se
destacar que sua sistematização de momentos específicos
em que a ruptura de uma ordem cristã cristalizou-se
é ponto pacífico no pensamento católico conservador
e, especificamente, integrista. Fouilloux referenda essa
compreensão ao afirmar:
A resposta da Igreja ao mundo que surgiu com
a Reforma e principalmente com a Revolução
Francesa ou com os seus êmulos, com a agressão
laica ou anticlerical veiculada por estes, veio por
meio da construção de um modelo de catolicismo
integral e ao mesmo tempo intransigente. Integral
porque rejeita qualquer forma de liberalismo que
separe o público do privado e tenda a repelir a
religião para o domínio do privado por intermédio
do processo de laicização. O catolicismo integral
reivindica para a religião o direito de instruir todas
as atividades humanas, sejam elas quais forem.30
A edição ampliada de R:CR, produzida em 1976,
trouxe a discussão do apogeu e crise da denominada terceira
29 Ver CASTRO, Marcelo Lúcio Ottoni de. Política e Imaginação:
Um estudo sobre a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição,
Família e Propriedade (TFP). 1991. 202f. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade de Brasília, Brasília,
1991; ZANOTTO, Gizele. Tradição, Família e Propriedade
(TFP): as idiossincrasias de um movimento católico no Brasil
(1960-1995). Passo Fundo: Méritos, 2012.
30 FOUILLOUX, Integrismo católico e direitos humanos, op.
cit., p. 14-15.
183
revolução, a comunista, enfatizando que a Revolução Russa
de 1917 encetou um movimento que seguiria ativo e que
teria atingido seu apogeu pela extensão e população das
nações comunistas, pelas “dimensões da máquina vermelha”.
Oliveira adverte que “se o curso do processo revolucionário
continuar como até aqui, é humanamente inevitável que o
triunfo geral da III Revolução acabe se impondo ao mundo
inteiro”.31 Já na atualização de 1992, com o declínio do
mundo soviético e o esfacelamento da União Soviética, ante
às políticas que antecederam esse cenário – quais sejam: a
glasnost (transparência) e perestroika (reestruturação) –, o
que estaríamos vivenciando não era o fim do comunismo,
mas sua metamorfose, sua atuação sob outras vias, menos
mobilizadoras de opositores por estar camuflada. Ainda
antes desse processo de transformação, outra revolução, a
quarta, nasceria, estabelecendo um modelo de sociedade
tribal, tendo como auge a liberdade individual e o coletivismo
consentido.32 Seria a face cultural e das tendências da
Revolução, que teria como um dos marcos a Revolução
Cultural de 1968, e que teria instaurado uma “guerra
revolucionária psicológica total”.33
A gênese da Revolução, como vimos, derivaria
do orgulho e da sensualidade, fatores fragilizados na
natureza humana corrupta e que capitaneariam não só
ideias, mas ações deletérias, inspiradas pelas forças do
mal, pois que sua “inspiradora e fautora suprema” […] é
31 OLIVEIRA, Revolução e Contra-Revolução, op. cit., p. 152.
32 Ibid., p. 181.
33 Ibid., p. 164.
184
a Serpente”, já vencida por Maria, que, portanto, é tida
como padroeira dos contrarrevolucionários. Sobretudo
pela invocação de Nossa Senhora de Fátima, os adeptos
do combate à Revolução mantêm sua esperança, pois que
“Ela já lhes deu a certeza da vitória, quando anunciou
ainda que, ainda mesmo depois da um eventual surto de
comunismo no mundo inteiro, ‘por fim meu Imaculado
Coração triunfará’”.34
Criada a sistematização da Revolução por Oliveira,
estabelecida uma linhagem de sentidos ancorada no
integrismo católico e materializada nas fileiras da TFP
brasileira e nas congêneres mundo afora, a pugna estava
sendo organizada. Para tanto, a constituição da TFP como
entidade civil não dependente da hierarquia eclesiástica
é, para nós, fundamental. Com um lócus organizativo,
estruturante e operativo, a ação contrarrevolucionária
encetada pelas TFPs mirava católicos e acatólicos, agindo
nos campos político-social e no campo religioso, sobretudo
ao adotar (mesmo como grupo civil) formas rígidas e
atemporais de catolicismo (sobretudo o tridentino); ao se
propiciar a constituição de sentidos ímpares aos quais se
adere total e acriticamente; ao fomentar o dogmatismo
seletivo; ao crer no profetismo e na inerrância do líder;
a adotar comportamento moral e austero; ao promover
o exclusivismo; e ao compreender sua posição como
“a verdade”. Em sua defesa, não se aceitam concessões,
uma vez que estas são interpretadas como erros e como
evidências do avanço da própria Revolução.
34 Ibid., p. 192.
185
Uma reação específica e direta contra a Revolução
O integrismo, além de destacar o combate aos
inimigos do catolicismo, fora do campo da Igreja, destaca-se
pela vigilância, pela oposição, pela crítica e pela denúncia
de “inimigos internos”. Atuando por uma lógica binária,
do bem contra o mal, o integrismo consolidou-se também
como ferrenho opositor das adesões e adaptações ao mundo
moderno pelas lideranças, religiosos e leigos que atuam
em todo mundo sob as hostes do catolicismo, que, como
sabemos, é múltiplo em suas formas de autocompreensão,35
doutrinas e práticas, configurando o próprio catolicismo
como plural, embora com hegemonia específica de alguma
autocompreensão. Nessa linha, situa-se a proposta pliniana
da contrarrevolução, como “uma re-ação, isto é, uma ação
dirigida contra outra ação”.36
Oliveira entende que a contrarrevolução visa a restaurar
a ordem, a civilização cristã, mas, para tanto, precisa adaptarse à modernidade da luta à qual se propõe. Nessa linha, um
contrarrevolucionário seria o conhecedor da Revolução,
de suas doutrinas e métodos; seria alguém que ama a
35 Ao alinharmo-nos ao entendimento da Igreja Católica como
um universo múltiplo, ou seja, ao compreender que há uma
multiplicidade de formas de entendimento do que é a Igreja,
estamos aderindo à proposta de Saucerotte, que defende
que a história da Igreja é das sucessivas autocompreensões
que se tornam hegemônicas em cada papado, adequandose à realidade dos tempos e à proposta de seus líderes, em
cada contexto específico. SAUCEROTTE, Antônio. As
sucessivas autocompreensões da Igreja vistas por um marxista.
Concilium, n. 7, p. 906-914, 1971.
36 OLIVEIRA, Revolução e Contra-Revolução, op. cit., p. 91.
186
contrarrevolução e que faz desse amor o eixo de seus ideais,
preferências e atividades.37 Oliveira entende que, do mesmo
modo que a Revolução, a sua oposição deriva de uma “potente
força propulsora”; todavia, essa resultaria do “vigor da alma
que vem ao homem pelo fato de Deus governar nele a razão,
a razão dominar a vontade, e esta dominar a sensibilidade”.38
Visando a dar conta da teodiceia – ou seja, da bondade
de Deus ante a catástrofe e a existência do mal no mundo –, os
seguidores do pensamento pliniano prospectam a expectativa de
uma vida de graças no futuro, ou, em outras palavras, na vitória
da contrarrevolução, prometida, segundo sua interpretação,
por Nossa Senhora de Fátima. Além disso, com base na
interpretação milenarista pliniana de um futuro reino de glória
para os “eleitos” e de danação sofrimento aos infiéis,39 esperam o
futuro Reino de Maria. Na tentativa de participar desse reino dos
virtuosos, os fiéis intensificam suas atividades religiosas sempre
que o advento do reino pareça iminente. Essa espera milenarista
também está ligada à noção de um tempo idealizado, localizado
temporalmente no passado e que teria sido arruinado no curso
da história. Seu tempo ideal seria vinculado ao mito da “idade
de ouro”, que seria a própria imagem de uma ordem, de uma
sociedade, de um tipo de civilização. Nessa linha, Pio X (19031914) assim definia seu ideal a restaurar:
[…] a civilização não mais está para ser inventada,
nem a cidade nova para ser construída nas nuvens.
37 Ibid., p. 99.
38 Ibid., p. 123.
39 DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma história do
paraíso. São Paulo: Cia das Letras, 1997.
187
Ela existiu, ela existe; é a civilização cristã, é a cidade
católica. Trata-se apenas de instaurá-la e restaurála sem cessar sobre seus fundamentos naturais e
divinos contra os ataques sempre nascentes da
utopia malsã, da revolta e da impiedade.40
Restaurar a civilização cristã, austera e hierárquica seria
então restaurar uma ordem política, social e econômica em
consonância com os princípios da lei natural e da lei de Deus;
implicaria reconhecer a Igreja Católica Apostólica Romana
como a única verdadeira e acreditar no seu Magistério como
infalível; e restaurar a reta disposição das coisas conforme seu
fim natural e sobrenatural. Assim, assevera Oliveira,
[…] a Contra-Revolução não é destinada a salvar a
Esposa de Cristo. Apoiada na promessa de seu Fundador,
não precisaria Esta dos homens para sobreviver.
Pelo contrário, a Igreja é que dá vida à ContraRevolução, que, sem Ela, nem seria exeqüível, nem
sequer concebível.
A Contra-Revolução quer concorrer para que se
salvem tantas almas ameaçadas pela Revolução, e
para que se afastem os cataclismos que ameaçam a
sociedade temporal. […] Se a Contra-Revolução
é a luta para extinguir a Revolução e construir a
Cristandade nova, toda resplendente de Fé, de humilde
espírito hierárquico e de ilibada pureza, é claro que isto
se fará sobretudo por uma ação profunda nos corações.
Ora, esta ação é obra da própria Igreja, que ensina a
doutrina católica e a faz amar e praticar. A Igreja é,
pois, a própria alma da Contra-Revolução.41
40 PIO X. Notre Change Apostolique, Roma, 25 ago. 1910 apud
OLIVEIRA, Plinio Corrêa de. Auto-Retrato Filosófico.
Catolicismo, São Paulo, n. 550, 1996, p. 6.
41 OLIVEIRA, Revolução e Contra-Revolução, op. cit., p. 136-137.
188
Desse modo, apesar do discurso vinculado e embora
alinhada ao que seria a ortodoxia católica, como vimos, a ação
tefepista, de inspiração pliniana, entende que a “verdadeira
Igreja” é representada na entidade fundada por Oliveira, ou seja,
a TFP. Essa narrativa deriva da interpretação de que o erro e
o mal infiltraram-se na “Esposa de Cristo”, fazendo com que
a apostasia reinasse na instituição que deveria ser a ponta de
lança de seu combate. Como “evidência” dessa situação, apontase a expressão de Paulo VI42 de que a “fumaça” teria penetrado
o templo de Deus, numa alusão – em termos tefepistas – à
Revolução em si, atuando entre os religiosos. Como lembra
Malimacci, o catolicismo intransigente encontra-se “en la
convicción concreta, visible, palpable, real, de que la fe cristiana es el
principio de verdad absoluta, que todo valor verdadero proviene de
ella”.43 Além disso, ainda que o intransigentismo ou integrismo
tenha sido “reduzido a contragosto ao estatuto de grupo de
pressão minoritário, ou de oposição, em razão da rejeição
parcial da Igreja ao modelo anterior”, é preciso reconhecer
que “é um grupo de pressão que luta para reconduzir a Igreja à
intransigência que a caracterizou durante séculos”.44
42 Oliveira destacou tal interpretação no próprio R:CR: “a
evidência dos fatos nos aponta, nesse sentido, o Concílio
Vaticano II como uma das maiores calamidades, se não a
maior, da História da Igreja. A partir dele, penetrou na Igreja,
em proporções impensáveis, a “fumaça de Satanás”, que se vai
dilatando dia a dia mais, com a terrível força de expansão dos
gases”. Ibid., p. 167-168.
43 MALLIMACI, Fortunato. El catolicismo integral en la
Argentina (1930-1946). Buenos Aires: Editorial Biblos,
1988, p. 5.
44
FOUILLOUX, Integrismo católico e direitos humanos, op.
cit., p. 17.
189
Ainda em 1959, o texto de R:CR enfatizava a urgente
necessidade de luta contra a Revolução. Para tanto, além da
formação de um “corpo de tropa”, preparado doutrinária,
ritual e fisicamente, via TFPs, havia que se dedicar
espiritualmente à causa que, embora prenunciada como
ganha, demandaria um esforço continuado de membros da
elite católica. Conformada como grupo de pressão, atuando
como entidade civil confessional, mobilizando seus recursos
humanos e financeiros na luta contrarrevolucionária, os
tefepistas marcaram o cenário público brasileiro com
campanhas públicas acusatórias dos “desvios” do catolicismo.
Desde sua formação, em 1960, foram muitas as bandeiras e
as campanhas realizadas pelo país e exterior em prol do que
consideram valores positivos da civilização cristã, sempre
frágil e ameaçada.
Ante a incompreensão social – mesmo porque os
tefepistas são um grupo reduzido, declaradamente adepto
do elitismo –, fazem da ridicularização social ou mesmo da
oposição pública que recebem a ressignificação de que são
combatidos porque estão corretos. Junto a isso, entendem
que sua espera milenarista por um novo reino, onde, enfim,
serão tidos por especiais, fiéis de fato, auxilia na coesão e na
fortaleza com que defendem seus ideais.
Como lembra Rémond, os integristas convivem
com paradoxos. O primeiro liga-se ao apego à tradição,
ao Concílio Vaticano I e à infalibilidade papal, que, por
um lado, são tidos como âncoras para denunciar o que
denominam de “infiltração” do espírito do livre exame na
Igreja, e, por outro, são argumentos utilizados para ir contra
papas tidos por representantes do erro. O segundo paradoxo
190
seria justamente o apego à autoridade para se revoltar contra
ela. E, por fim, o terceiro seria a defesa da tradição ante as
mudanças da própria instituição, ou seja, a vinculação a uma
ideologia da repetição que tem na imutabilidade uma prova
da “verdade”.45 Baseando-se em divisões dualistas, lembra o
autor, o integrismo entende que, de um lado, está a verdade
e, de outro, o erro, e tudo o que não adere explicitamente à
primeira deve ser denunciado e combatido.46
Conclusão
Retomando uma terminologia de Neil Datta,47
adaptada de termos internos à TFP, seus membros, os
“cruzados modernos”, seguem atuando como “arautos dos
últimos tempos” em defesa das bandeiras tradicionais,
conservadoras e mesmo reacionárias, que se estabeleceram
na dogmática integrista sistematizada por Oliveira. Para
tanto, enfatiza Datta, a própria análise de sua conformação
institucional auxilia no entendimento de como tais grupos
disseminaram-se, cresceram, dividiram-se e multiplicaramse em fins do século. Nessa linha, o autor entende que a
TFP passou por quatro fases. A primeira deu-se no
período marcado pela fundação da TFP brasileira em
1960 e estendeu-se até o início dos anos 1990, tempo da
expansão para múltiplos países do continente americano,
45 RÉMOND, René. L’integrisme catholique.
intellectuel. Études, n. 1, p. 95-105, 1989, p. 95-97.
Portrait
46 Ibid., p. 100.
47 DATTA, Neil. Modern-day crusaders in Europe. Tradition,
Family and Property: analysis of a transnational,ultra-conservative,
catholic-inspired influence network. Političke perspektive: časopis
za istraživanje politike, v. 8, n. 3, p. 69-105, 2018.
191
de ênfase na luta anticomunista, contra a reforma agrária,
progressismo político e católico. A segunda fase seria a de
reconfiguração derivada da derrubada do muro de Berlim
em 1989, da subsequente fragmentação da União Soviética
e da pretensa vitória do modelo capitalista liberal, quando
o foco das campanhas detém-se em questões como aborto
e direitos humanos, sexuais e reprodutivos, com destaque
para a atuação de movimentos da TFP e afins na Europa.
A terceira fase inicia-se com a morte do fundador, em
1995, gerando uma crise de carisma e a fragmentação dos
membros em dois blocos mais visíveis: um que hoje está
representado pelo IPCO e outro pelos AE impactantes no
Brasil. Já a quarta e última fase, denominada por Datta de
renascimento na Europa, vê instaurar uma maior autonomia
em relação à liderança brasileira e tem como características
a expansão e a consolidação expressiva no cenário europeu.
Findamos este capítulo reforçando que é dessa
atualização tefepista, ora mais vigorosa, ora menos,
que estamos tratando. Embora a doutrina tenha sido
sistematizada a partir do século XIX, remetendo a
elementos de base anteriores, o mundo contemporâneo
contou e conta com uma obra que sustenta inúmeros grupos
e movimentos mundo afora, reforçando o intransigentismo
católico que vigora com força em muitos países, sobretudo
americanos e europeus. Desde a publicação de Revolução e
Contrarrevolução, o mundo como um todo transformou-se
intensamente; as formas de organização social, econômica,
política e cultural pluralizaram-se e conformaram a
perspectiva da diversidade como marca de nossa era.
Assim, ainda que tais transformações sejam amplamente
192
aceitas, grupos como o de seguidores de Oliveira seguem
ativos, intermitentemente surgindo no cenário público de
países ocidentais, levantando bandeiras que, para muitos,
parecem anacrônicas, como a defesa da monogamia, o
casamento indissolúvel, a ilegalidade do aborto e de direitos
reprodutivos, o armamento de civis, a desigualdade de
riquezas, a estrutura hierárquica de mando, o governo das
elites etc. Defendendo que sua “verdade” está na perenidade,
tefepistas e outros integristas seguem arrogando-se o
direto da “correta e única” leitura possível do catolicismo,
reforçando sua adesão e salvação, ante a danação de quem
com eles não se identifica.
Navegando em águas turvas: a recepção
tefepista do Concílio Vaticano II
Víctor Almeida Gama
A Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e
Propriedade (TFP) inscreve-se em um amplo quadro de
tendências muito comuns no ambiente do laicato católico,
a partir da década de 1920, que podemos denominar de
forma arbitrária de “direita católica”. Arbitrária porque
muitos desses intelectuais e organizações posicionados
neste quadrante – incluídos a própria TFP e seu líder,
Plinio Corrêa de Oliveira – não se reconheciam como
tais. Influenciados pelo pensamento de Bergson e de
Farias Brito, assumiram posição reacionária, tanto
religiosa como politicamente. Essa qualificação, por isso
mesmo, não é puramente pessoal e subjetiva, mas ressalta
a característica mais externa e saliente da organização
tefepista, que é seu caráter de grupo de pressão política
alinhado a valores conservadores. Este nos parece ser, no
entanto, um corte transversal na história da organização,
que deixa escapar o lado mais interno, religioso, e que
não identifica em sua ação política a motivação religiosa
subjacente, que no caso da TFP entendemos como sua
característica fundamental.
Neste sentido, torna-se crucial apresentar a TFP
como uma organização eminentemente religiosa, que
194
adota um modelo de catolicismo pré-conciliar, alinhado
com sua visão de mundo politicamente reacionária. Este
estudo visa a destacar o impacto do Concílio Vaticano
II em uma organização laical sem um estatuto canônico
regular no interior do catolicismo institucional. A
partir dos elementos teóricos da História das Ideias,
discutiremos as expectativas e imagens criadas pela TFP
sobre o Concílio, desde sua convocação até seu término, em
1965, e descreveremos a reconfiguração da vida religiosa
da organização e de seus membros, em consequência das
reformas e determinações da Igreja Católica Romana
após o Vaticano II, sobretudo por meio dos documentos
produzidos pela organização.1
Antes de adentrarmos na análise proposta, cabe
ressaltar que a TFP, fundada pelo advogado paulistano
Plinio Corrêa de Oliveira, em 1960, aparece no cenário
religioso e político brasileiro da segunda metade do século
XX como uma instituição civil de inspiração católica,
empenhada na defesa e promoção das formas tradicionais
do catolicismo romano em sua teologia, moral e liturgia.
A TFP é conhecida por suas campanhas públicas contra
o comunismo, publicações e ações de mobilização em
defesa do que compreende ser a herança cristã presente
na sociedade brasileira. Suas atividades frequentemente
incluem a publicação de livros e artigos, a organização
de eventos e conferências, bem como a realização de
campanhas de rua para promover suas ideias.
1
Os documentos utilizados neste trabalho são transcrições de
reuniões destinadas aos membros da organização e relatórios
produzidos pelos mesmos membros.
195
Na historiografia especializada, ainda persiste uma
percepção parcial do que é a TFP, referida exclusivamente
como um movimento de pressão política e sua inspiração
católica como um fundo pálido. Destacou-se na história
política brasileira recente por sua intensa oposição à
reforma agrária, à “esquerda católica” e pela defesa de
pautas moralizadoras, como a condenação do divórcio,
do aborto e da “imoralidade televisiva”. Internamente, a
TFP autodefinia-se como uma confraternitas laicalis,2
organizando-se nos moldes de institutos de vida consagrada
católicos, ou mesmo como as sociedades privadas de fiéis,
embora praticando os votos de obediência, castidade e
pobreza. Suas atividades e vida religiosa eram centradas
na figura do fundador, visto como dotado de atributos
especiais, tais como o poder de exorcizar, o discernimento
dos espíritos e, principalmente, o dom do profetismo.3
Embora tendo aspectos de ordem religiosa, não tinha
personalidade canônica regular, criando assim um formato
único, que combinava contemplação e ação, fora dos
domínios institucionais da Igreja Católica Romana. Cria,
desse modo, um formato próprio: organiza-se como ordem
religiosa, com uma vida mista de contemplação e ação, e
que centra não apenas suas atividades, mas até mesmo sua
vida religiosa, na figura do fundador.
2
O termo diz respeito à forma como a TFP se compreende diante
do ordenamento canônico: movimento leigo, que se ordena a
um fim religioso, sem com isso estabelecer uma vinculação
formal com a hierarquia católica, nem um enquadramento nos
formatos dispostos na legislação canônica.
3
GUIMARÃES, Átila Sinke. Servitudo ex caritate. São Paulo:
Artpress, 1985.
196
As expectativas tefepistas sobre o Concílio Vaticano II
Parece-nos, portanto, que a TFP deve ser encarada
– em suas atividades e pensamento, embora se situe nos
quadrantes mais conservadores como um grupo de pressão
política –, como uma organização essencialmente religiosa,
mas que mantém com o catolicismo institucional uma relativa
distância, a fim de garantir sua independência de ação.
A TFP olha para o Concílio Vaticano II de forma
ambivalente, projetando, a princípio, uma expectativa de
um Concílio de tendências reacionárias, um prolongamento
do Vaticano I, condenando o mundo moderno. O próprio
discurso de abertura do evento pelo papa João XXIII indicava,
ao mesmo tempo em que evocava o ensinamento da “verdade
do Senhor que permanece sempre”, que o mesmo Concílio
pretendia mais apresentar a validade dos ensinamentos
católicos para o momento presente da humanidade que
proferir sentenças de condenação.4 Ao ver sua expectativa
reacionária não concretizada, posiciona-se como uma das
primeiras organizações tradicionalistas,5 que reage não
4
JOÃO XXIII. El principal objetivo del concilio. In:
GONZÁLEZ, Casimiro Morcillo. Concilio Vaticano II:
constituciones. Decretos. Declaraciones. Documentos
pontifícios complementários. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1965.
5
Adotamos o termo para designar o conjunto de organizações
que, de alguma forma, opõem-se ao Concílio Vaticano II
e às determinações pós-conciliares – como o ecumenismo,
tal qual proposto no decreto Unitatis Redintegratio (1964) e,
sobretudo, na declaração Nostra Aetate (1965), os novos ritos
de celebração dos sacramentos como o novo texto da missa
(1969) ou os novos ritos de ordenação sacerdotal e sagração
episcopal (1968) e o novo Código de Direito Canônico
197
apenas ao Concílio e suas determinações, mas, sobretudo, às
autoridades eclesiásticas oficiais da Igreja Católica.
É a partir de uma série de documentos produzidos pela
própria organização ao longo de aproximadamente quarenta
anos, que podemos perceber mais claramente os elementos
que mostram uma representação ambivalente do Vaticano II,
dos papas conciliares e do catolicismo pós-conciliar, a saber:
produtores de uma confusão e crises sem precedentes, omissos
e coniventes com desvios em matéria de fé, mas ao mesmo
tempo garantidores de maiores atuação e independência
de atividade para o laicato, que permitiam, por exemplo, a
instituição de ministros leigos para distribuição da Eucaristia,
e que produziam documentos que endossavam o discurso
moral tefepista, como a Humanae Vitae (1968).
Os documentos utilizados neste capítulo são: as
conferências proferidas por Plinio de Oliveira aos membros
da TFP, ao longo do recorte compreendido entre 1959 e 1995;
relatórios sobre o problema do Novus Ordo Missae, elaborados
por comissões teológicas internas da organização; e as obras La
Nouvelle Messe de Paul VI: qu’en penser? (1975)6 e In the murky
waters of Vatican II (1997),7 de autoria, respectivamete, de
(1983), entre outros temas – e adotam práticas e disciplinas
anteriores ao Vaticano II, como forma de resistência, de
não-reconhecimento do Concílio ou simplesmente como
expressão de uma sensibilidade pré-conciliar.
6
SILVEIRA, Arnaldo Vidigal Xavier da. La nouvelle messe de
Paul VI: Qu’en penser? Chiré-en-Montreuil: Difusion de la
Pensée Française, 1975.
7
GUIMARÃES, Átila Sinke. In the murky waters of Vatican II.
Metairie: Maeta, 1997.
198
Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira e Átila Sinke Guimarães,
dois integrantes da TFP e membros de comissões internas
especializadas no tema do Vaticano II.
A periodização desse processo de recepção conciliar
tefepista leva em conta três critérios principais, elencados
por Gilles Routhier,8 para se pensar a história da recepção:
1) a própria história do movimento, que neste contexto está
relacionada à história geral do movimento tradicionalista;
2) a evolução da própria Igreja Católica ao longo desse
período; e 3) o contexto histórico, político e social dos
acontecimentos que, no caso tefepista, deve ser considerado
o período da Guerra Fria como determinante para se
compreender sua recusa conciliar, uma vez que o comunismo
era compreendido como o grande mal da modernidade, o
qual a Igreja deveria ter combatido no Concílio.
Em um trabalho anterior, intitulado “A recepção
tefepista do Concílio Vaticano II (1959-1988)”,9 abordamos
as representações construídas pela organização antes,
durante e no período imediato pós-Concílio. O presente
estudo é um desdobramento daquele, e adaptamos o título
como referência ao livro do diretor da TFP brasileira, Átila
Sinke Guimarães, The Murky Waters of Vatican II (1997). A
obra, desenvolvida ao longo de décadas sob a orientação de
Plinio Corrêa de Oliveira, visa a denunciar as consequências
8
ROUTHIER, Gilles. La réception d’un concile. Paris: CERF,
1993, p. 81.
9
GAMA, Víctor Almeida. As Representações Tefepistas do
Concílio Vaticano II (1959-1988). Dissertação (Mestrado em
Ciências da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2020.
199
do Vaticano II para a Igreja e a sociedade. Ela argumenta que
a decadência moral e espiritual do Ocidente teria raízes na
crise instalada após o Vaticano II. O livro carrega prefácio de
Malachi Martin, expoente do sedevacantismo, corrente que
considera que os papas conciliares e pós-conciliares carecem
de legitimidade e autoridade, estando por isso a Igreja sem
seu chefe visível.
Ao mesmo tempo em que a TFP pretendia denunciar
as águas turvas do Vaticano II, com suas doutrinas com
“odor de heresia” e suas ambiguidades, aproveita-se de certas
condições, oferecidas pelo próprio Concílio e suas decisões
posteriores, para organizar a vida religiosa da entidade de
forma cada vez mais independente.
Às vésperas do Concílio Vaticano II, a TFP projeta
grandes expectativas sobre o evento, esperando que ele
atuasse como um novo Concílio Vaticano I, condenando a
modernidade, seus valores e ideias consideradas perniciosas,
como o comunismo. Vale destacar que, para os movimentos
tradicionalistas, a doutrina católica revestir-se-ia de um
aspecto transhistórico, e apresentava-se em um quadro de
permanência, estabilidade e fixidez. A TFP posiciona-se
no contexto do Vaticano II como uma difusora de valores
tradicionais – ou seja, valores e crenças comunicados
como imutáveis – e, para isso, coordena uma reação aos
avanços teológicos que ameaçavam a rigidez da disciplina
tridentina.10 O Concílio deveria ser reduzido a um resultado
óbvio segundo concepções tefepistas, o que dispensaria,
na prática, a própria participação do episcopado. Essas
10 Doutrina do Concílio de Trento (1545-1563).
200
expectativas e a percepção das mudanças como ameaçadoras
são brevemente mencionadas no livro They Have Uncrowned
Him: From Liberalism to Apostasy, the Conciliar Tragedy
(2003),11 de Marcel Lefebvre, e mais detalhadamente em O
Concílio Vaticano II: Uma História Nunca Escrita (2012),12 de
Roberto de Mattei.
Essa expectativa revela-se de forma clara no registro
de um diálogo entre Plinio Corrêa de Oliveira e o arcebispo
de Diamantina Geraldo de Proença Sigaud:
“Está tudo resolvido: o Santo Padre agora vai pôr
em ordem todas as cabecinhas dos bispos e o caso
da Igreja estará resolvido.” – O papa era João XXIII.
Eu pensei o contrário: “São os Estados gerais da
Igreja, o começo da Revolução na Igreja”. Eu quis
dizer isto a ele, mas notei que não encontraria a
menor ressonância. Eu via a Revolução Francesa,
ele via o Reino de Maria.13
A expectativa revelada pelo fragmento acima, de que
o Papa executasse uma intervenção objetiva e condenatória,
não se realizou. Ela parte de uma concepção de poder quase
absoluto do papado e da máquina governativa da Igreja, que
naquele momento já não se mostrava mais tão enraizada na
consciência católica. Ela também está presente em quase
todos os artigos do jornal editado pela TFP, Catolicismo,
11 LEFEBVRE, Marcel. They uncrowned him: from liberalism to
apostasy, the conciliar tragedy. Kansas City: Angelus Press, 2003.
12 DE MATTEI, Roberto. O Concílio Vaticano II: uma história
nunca escrita. Lisboa: Caminhos Romanos, 2012.
13 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. Minha vida pública: compilação
de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira. São
Paulo: Artpress, 2015, p. 481-482.
201
encontrados entre o anúncio do Concílio, em junho de 1959,
e a primeira sessão de trabalhos, em 1962. Particularmente
sensível era a expressão do desejo de que a nova teologia fosse
definitivamente condenada pelas deliberações conciliares,
afastando a perspectiva da colegialidade – entendimento
segundo o qual o papa governaria a Igreja não como um
monarca absoluto, mas em composição com os demais
bispos – e com a recusa da verticalidade da Igreja, da ideia
de um sacerdócio em relação de proximidade com o laicato e
da resistência às influências do setor progressista. Até 1963,
quando os trabalhos conciliares já estavam em curso, toda a
expectativa apresentada aos leitores do jornal Catolicismo é
de um triunfalismo das teses conservadoras.14
Toda essa esperança manifestada neste jornal
considera, no entanto, a proposta dialogal de João XXIII:
No Vaticano II não há notícias de que alguma heresia
especial será condenada. Mas todo o liberalismo,
todo o modernismo, todo o existencialismo, todo
o socialismo serão, por certo, alvo das decisões do
Concílio. Estas heresias sairão dele feridas de morte,
assim o esperamos, e a Hierarquia inteira voltará a
suas circunscrições orientada para a realização de
um Catolicismo sempre mais autêntico e total,
que impregne todos os aspectos da vida individual,
familiar e social. Encontramo-nos em plena heresia
laicista, que ignora o reinado social do Sagrado
Coração. O Concílio mobilizará as almas para a
grande tarefa da penetração e do domínio de todos os
14 CATOLICISMO. O Concilio mobilizará as almas para a
grande tarefa da erradicação da heresia laicista. Catolicismo, n. 142,
1962, p. 7. Disponível em: https://catolicismo.com.br/Acervo/
Num/0142/P06-07.html. Acesso em: 15 de junho de 2024.
202
aspectos da vida social pelo Evangelho, de sorte que
Jesus Cristo seja o Rei dos corações e da sociedade.
Mobilizar a Hierarquia e o laicato para a construção
do reinado social do Sagrado Coração e do reino de
Maria, será a grande tarefa e o grande fruto do II
Concílio Ecumênico do Vaticano. Ele assim terá
levantado a bandeira da luta contra o comunismo
em todas as suas formas, contra o comunismo que
é a negação total do reinado do Sagrado Coração
sobre a vida humana, mormente sobre a vida
social, e que afirma e impõe como único dono
dos destinos humanos e das instituições humanas
o Estado sem Deus e o Estado contra Deus. Na
santíssima Assembleia que está para se inaugurar
será decidida a sorte do comunismo e será selada a
sua derrota total; em vez de uma humanidade sem
Deus, cimentada no ódio e na inveja, o Concílio
gerará uma humanidade segundo Deus e firmada
na caridade e na fraternidade, brotadas da chaga do
sacrossanto lado de Cristo, transpassado na Cruz.15
A TFP espera a condenação de um conjunto de ideias
que considera nefastas no mundo moderno, tais como as
teorias evolucionistas de Teilhard de Chardin (1881-1955),
a Nouvelle Théologie e, principalmente, o comunismo. É
neste último que residiria o principal problema com o qual
a Igreja teria que lidar em seu tempo e enviar sua energia às
atividades de colaboração com os bispos conservadores no
Coetus Internationalis Patrum (CIP),16 visando, pelo menos,
uma condenação formal do comunismo, tal como havia sido
15 Id.
16 Grupo formado pela parcela conservadora do episcopado
presente no Vaticano II, que reuniu cerca de 250 bispos em
torno da figura do arcebispo francês Marcel Lefebvre, do
203
feito por Pio XI (1937) e Pio XII. Renovar uma condenação
já feita por um papa e ratificada por seu sucessor, que poderia
parecer uma redundância desnecessária, apresentava-se,
naquele contexto de apogeu de Guerra Fria, como uma
urgência para a TFP.
É durante a Primeira Sessão do Concílio Vaticano
II, em 1962, que a TFP começa a atuar nos bastidores do
CIP, um grupo formado pelo episcopado conservador com
o objetivo de influenciar os debates conciliares e promover
uma interpretação conservadora dos temas debatidos. Ela
trabalhou como articuladora das forças integristas, buscando
um giro conservador no Concílio para obter a condenação
do comunismo, seu principal alvo. Além das atividades nos
bastidores, a TFP promoveu ações práticas como abaixoassinados contra o comunismo, liderados pelos bispos D.
Geraldo de Proença Sigaud e D. Antônio de Castro Mayer.
No entanto, essas iniciativas não tiveram resultados práticos
e não foram discutidas no Concílio.
Consideramos, em um trabalho anterior,17 que a vida
religiosa da TFP e de seus membros passa a ser fortemente
impactada pela não consecução de seus objetivos no Vaticano
II. Se ele recusava-se a expedir uma denúncia solene contra
o que o grupo de leigos entendia ser o problema mais grave
do mundo moderno, que visava a atingir inclusive a Igreja
Católica limitando seu campo de ação e liberdade, este
arcebispo brasileiro Geraldo de Proença Sigaud e outros, a
fim de frear as inserções do setor progressista do episcopado.
17 GAMA, As Representações Tefepistas do Concílio Vaticano II
(1959-1988), op. cit.
204
Concílio passava a representar uma contra-Igreja que nascia
ali, alinhada com valores e correntes de pensamento que até
então o catolicismo combatia. Em conversa com membros da
TFP, em 1993, dirá Plinio de Oliveira, recordando a presença
de seu movimento em Roma no período do Concílio:
A questão é a seguinte: é que eu acho, tenho como
certo, inclusive pelo exemplo de D. Mayer, D.
Sigaud e Mons. Lefebvre, que ao concílio faltou
liberdade. Paulo VI não deu aos padres conciliares
a liberdade de discutir e de decidir.
[…] Isso corresponde à seguinte pergunta: qual o grau
de culpa que tem o indivíduo que aprovou aquilo?
Não é o nosso caso, o nosso caso é outro: qual o
grau de convicção última que ele tinha quando
ele aprovou aquilo? Porque ele deveria ter votado
segundo a sua convicção. Se ele sofreu uma
pressão que a fraqueza dele podia ceder, ele não
foi livre. Se ele não foi livre, ele não tem expressão
de vontade.18
O texto demonstra um contraste com o diálogo entre
Plinio Corrêa de Oliveira e o bispo Geraldo de Proença
Sigaud, já relatado anteriormente. Ao mesmo tempo em que
esperavam do papa a intervenção decisiva e imposta desde
a autoridade de sua cátedra, também aguardavam a plena
participação ativa nas decisões conciliares do episcopado
que, na visão tefepista, teria sido coagido pelo mesmo papa
a assumir posições mais progressistas.
Os choques entre a expectativa não realizada e
o desejo de manter uma forma de religiosidade que o
Concílio Vaticano II procurava superar, com as atualizações
18 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. Reunião almoço, 13 dez. 1993, p. 5.
205
efetivamente impostas à Igreja, resultaram, em nossa análise,
em uma nova formatação da vida religiosa da TFP e de seus
integrantes. Observa-se uma mudança de direção, inclusive
discursiva, operada pela TFP após as reiteradas tentativas
fracassadas do episcopado conservador de condenar o
comunismo no Concílio. Isso fixou uma nova perspectiva
de atuação para o movimento. Reforçou-se, internamente,
o sentimento de autonomia em relação às autoridades
eclesiásticas, ao mesmo tempo em que a figura de Plinio
Corrêa de Oliveira passou a acumular, além das atribuições
de liderança política, também a de líder religioso.19
A TFP atribui a si mesma autonomia decisória em
questões religiosas, progressivamente transferindo a função
diretiva do clero católico, considerado apóstata, para a figura
de seu fundador. Externamente, isso manifesta-se no que
Antônio de Castro Mayer, bispo de Campos dos Goytacazes
(RJ), classificou como anticlericalismo entre os membros da
TFP.20 Esse anticlericalismo não passou despercebido pela
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que,
em 1985, emitiu uma nota desaconselhando a filiação de
19 GAMA, Víctor Almeida. Os ardis da seita comunista: a
construção das representações religiosas no anticomunismo
da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e
Propriedade (TFP). 2024. Tese (Doutorado em Ciências
da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2024.
20 MAYER, Antônio de Castro. Carta de Dom Antônio de Castro
Mayer sobre a TFP. 1984. Associação Cultural Montfort.
Disponível em: http://www.montfort.org.br:84/dom-mayeradverte-o-anti-clericalismo-habitual-da-tfp-faz-dela-umaseita-heretica/. Acesso em: 15 jun. 2024.
206
católicos à TFP, citando a notória falta de comunhão entre
a TFP, a Igreja no Brasil, sua hierarquia e o Santo Padre.21
Rejeitar para preservar: a reconfiguração da vida
religiosa tefepista no pós-Concílio
É neste terceiro momento, que compreende o período
que vai do encerramento do Concílio até as sagrações
episcopais operadas pelo arcebispo Lefebvre, em 1988, que
a TFP busca conformar-se com a realidade pós-conciliar,
embora mantendo-se numa posição de resistência e operando
como um dos primeiros grupos tradicionalistas a organizar
uma resistência ao Novus Ordo Missae de Paulo VI, em 1969
– com o estudo La nouvelle messe de Paul VI: qu’en penser? –, e à
própria figura do Papa, com a série de seis artigos publicados
por Arnaldo Vidigal no jornal Catolicismo naquele ano,
aventando a possibilidade de defecção de um papa – guardião
da fé. Também seria inserido no livro um capítulo destinado a
trabalhar a ideia de possibilidade de um papa cair em heresia.
Neste estudo, focaremos especificamente quando
as ambivalências da TFP tornam-se mais evidentes, isto
é, no imediato pós-Concílio, até o ano de 1988, com as
sagrações episcopais realizadas pelo arcebispo Lefebvre, sem
a autorização do Papa. No período de implementação das
normativas conciliares, a organização adota uma vida religiosa
mais idiossincrática, buscando preservar sua visão de mundo
e suas práticas baseadas no modelo tridentino, em explícita
recusa à nova consciência católica surgida do Vaticano II.
Por exemplo, os membros começam a se ausentar das missas
21 CNBB. Nota sobre a TFP. Folha de São Paulo, 20 abr. 1985, p. 3.
207
dominicais das paróquias. O bispo de Campos, que apoiou
a TFP até 1981, oferece então um sacerdote de sua diocese
para conduzir os serviços religiosos segundo os antigos rituais.
Analisamos, a partir de agora, esta reconfiguração do contexto
religioso tefepista a partir de três exemplos: a dependência
religiosa da figura do fundador, a recusa em adotar os ritos
dos sacramentos reformulados segundo as determinações
do documento conciliar Sacrossantum Concilium (1963)22 e a
resistência formal à política diplomática do Vaticano, a partir
do Manifesto da Resistência (1974).
Propomos, a partir de uma hipótese explorada em
outro trabalho,23 que a TFP confere progressivamente mais
autoridade a seu fundador, o que é inversamente proporcional ao
reconhecimento da autoridade dos papas pós-conciliares. Plinio
Corrêa de Oliveira, percebido como profeta, dotado de atributos
divinos e inspiração para identificar e denunciar os erros do
mundo moderno, evolui de líder leigo a profeta escolhido, “varão
da destra de Maria”. A historiadora Gizele Zanotto observa
que o perfil tefepista transforma-se, de modo que os membros
passam de atuantes em um movimento político católico para
seguidores do profeta. Segundo ela, “a doutrina da organização
consolidaria uma nova orientação principal para os tefepistas: de
leigos atuantes na sociedade temporal para sequazes do profeta”.24
22 PAULO VI, Sacrossantum Concilium. Disponível em:
https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_
council/documents/vat-ii_const_19631204_sacrosanctumconcilium_po.html. Acesso em: 15 jun. 2024.
23 GAMA, Os ardis da seita comunista, op. cit.
24 ZANOTTO, Gizele. Tradição, Família e Propriedade (TFP):
as idiossincrasias de um movimento católico no Brasil (1960-
208
Surge no interior da organização um modo de viver
o catolicismo que prescinde das autoridades eclesiásticas,
transferindo a autoridade do Papa, guardião da doutrina, para
o fundador da TFP, considerado um profeta e o canal pelo
qual Deus expressaria Sua vontade. Desenvolve-se, assim, um
catolicismo idiossincrático, livre das limitações e controles
impostos pela hierarquia católica e pelo direito canônico, mas
que ainda reivindica uma fidelidade irredutível a esses elementos.
A figura da autoridade máxima do catolicismo é
reduzida a um personagem que existe para sustentar o
princípio consagrado no Concílio Vaticano I, na Constituição
Apostólica Pastor Aeternus (1871),25 que estabelece a
existência de sucessores perpétuos na cátedra de Pedro. A
negação explícita da legitimidade de um papa resultaria em
um problema teológico que a TFP, como sociedade laical e
sem teólogos autorizados em seu meio, não poderia resolver.
No entanto, o sedevacantismo prático sempre esteve presente
entre os membros da TFP, resultando em uma formulação
sui generis, segundo a qual a autoridade máxima é transferida
da figura do papa para seu fundador.26
Em uma reunião interna destinada aos membros
mais antigos de seu movimento, ao relatar a conversa entre
o arcebispo francês Marcel Lefebvre e o papa Paulo VI
1995). Passo Fundo: Méritos, 2012.
25 PIO IX. Pastor Aeternus. Disponível em: https://www.vatican.
va/archive/hist_councils/i-vatican-council/documents/
vat-i_const_18700718_pastor-aeternus_it.html. Acesso em:
15 jun. 2024.
26
GAMA, As Representações Tefepistas do Concílio Vaticano II
(1959-1988), op. cit.
209
sobre os rumos do movimento tradicionalista que Lefebvre
liderava, Plinio de Oliveira revela a tendência sedevacantista
de seu pensamento:
Na audiência, Monsenhor Lefebvre, a julgar pelo
“Estado”, não cedeu nada, a não ser no seguinte:
que ele reconheceu de todas as maneiras Paulo VI
como Papa ainda reinante. Não tanto porque ele
chamou Paulo VI de Paulo VI, de Santo Padre, etc.,
porque se Paulo VI é um Papa duvidoso, a cortesia
manda tratá-lo como se ele fosse certamente Papa.
Isso se poderia conceber. Mas por outro lado, a
própria démarche dele junto a Paulo VI, para se
esclarecer naqueles termos e naquela forma, indica
que ele reconhece Paulo VI como juiz da Fé e,
portanto, podendo exercer validamente as funções
de poder julgar em matéria de Fé, que são funções
inerentes ao Papado.
Isso seria um reconhecimento que à minha
consciência teria sido extremamente duro prestar,
porque eu não tenho essa certeza se ele é Papa.
Eu não teria prestado. Vamos imaginar que Paulo
VI me concedesse uma audiência. Eu aceitaria?
Sem dúvida: ele me chamou. Eu converso com
qualquer pessoa. Eu o teria tratado como se deve
tratar o Papa. Mas eu teria dado a ele um título de
cortesia, porque não estou certo de que ele é Papa.
Tenho certa dúvida […].27
Nesta tendência sedevacantista que Plinio Corrêa
de Oliveira imprime à TFP, pode estar a origem do
anticlericalismo denunciado pelo bispo Castro Mayer e a
autoridade espiritual que exerce sobre seus discípulos. Esta
autoridade leva todo um movimento que, na década de
27 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. Santo do dia, 14 jun. 1976.
210
1970, contava com 1.500 membros, segundo números da
própria organização,28 recusava um Concílio Ecumênico e
fazia a opção por um modo de espiritualidade já superada
pelo aggiornamento conciliar. Tal fenômeno demonstra a
força que a figura de Plinio de Oliveira exercia sobre os
integrantes da TFP, capaz de levar um grupo coerentemente
a aderir ao rito da missa substituído pelo Missale Romanum,
de 1969.
Essa mudança ocorre em dois níveis: no das ideias
e no das práticas. No primeiro, a TFP organiza uma
resistência intelectual ao Vaticano II. Produz obras críticas
de robustez teológica, sendo o livro La nouvelle messe de Paul
VI: qu’en penser?, de 1975, o ponto de partida de muitos
tradicionalistas em sua crítica à nova missa instituída por
Paulo VI. O próprio bispo Castro Mayer usará o livro como
documento que fundamentaria a posição teológica assumida
por si e por parte significativa de seu clero, na resistência
conciliar. Já o segundo nível é uma manifestação da
reação anticonciliar, que consiste na recusa do Novus Ordo
Missae, promulgado pelo papa Paulo VI em 1969. Com
essa legislação de caráter universal, o pontífice estabelece
que o rito romano, a partir de então, deveria celebrar os
sacramentos segundo um novo formato. Com um novo
texto da missa e dos ritos sacramentais em língua vernácula e
com o sacerdote celebrante voltado ao povo, essa nova missa
parece à TFP uma ruptura e um contraste com a própria
proposta conciliar expressa por João XXIII em seu discurso
de abertura do Vaticano II, quando, evocando a sucessão
28 TFP. E o anticristo, já veio? 1999.
211
dos vinte Concílios Ecumênicos precedentes, afirmava
a vinculação da proposta conciliar a uma longa tradição
doutrinária e litúrgica da Igreja.29
Num simpósio interno ocorrido em 1998 sobre a obra
(já citada) de Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira, expõe-se a
razão pela qual Plinio de Oliveira e seu movimento aderiam
ao antigo rito da missa:
Em vista das considerações apresentadas, impõese a conclusão de que não se pode aceitar a nova
Missa. Fazemos essa afirmação com sumo pesar,
tendo bem presente a gravidade das conseqüências
que dela decorrem; mas fazemo-la também com
plena convicção. Não é necessário retomar aqui
todas as razões que nos levaram a esta conclusão;
queremos, entretanto, salientar uma, que a nosso
ver não tem sido devidamente focalizada em
anteriores debates sobre “Ordo” de Paulo VI. Tratase do princípio de que um rompimento formal
com os costumes fundados em Tradição apostólica,
sobretudo em matéria de culto, envolve cisma. Ora,
uma liturgia tendente à “dessacralização” não tem
base alguma na Tradição; pelo contrário, constitui
uma ruptura formal e violenta de todas as regras
que até hoje orientaram o culto católico.
A fim de evitar mal-entendidos que poderiam
falsear nossa posição, é mister deixar bem claro que
as restrições que fazemos aos diversos tópicos da
nova Missa não são todas de igual importância.30
A anuência de Plinio Corrêa de Oliveira às teses do
livro é evidente: “Com o livro do Arnaldo Xavier, ninguém
29 Id.
30 Id.
212
dentro do Grupo fez tantos elogios quanto eu”.31 E continua
afirmando: “Eu tinha certeza absoluta da iliceidade desta
missa, muito mais pelo ambiente péssimo que dela reina, e o
manifesto mal espírito que a domina por assim dizer de ponta
a ponta, do que por uma consideração teológica do assunto”.32
O alinhamento das ideias tefepistas com as teses
tradicionalistas é inegável. Contudo, o movimento parece
manter uma certa distância desses grupos, especialmente
após o rompimento institucional provocado pelo arcebispo
Lefebvre, em 1988, com a sagração de quatro bispos sem
autorização papal, resultando na excomunhão dele, do
bispo cossagrante Antônio de Castro Mayer e dos bispos
consagrados. A condição laical da TFP e a falta de um
estatuto canônico regular conferem-lhe a liberdade de
abordar temas da teologia católica sem se comprometer
com as autoridades eclesiásticas, evitando, assim, as penas
disciplinares que recaem sobre os tradicionalistas que
rompem com a institucionalidade católica.
No território da Arquidiocese de São Paulo, onde
se instalava o núcleo central da entidade, foi criada uma
comissão de estudos composta, da parte da TFP, por Arnaldo
Vidigal Xavier da Silveira, autor do livro em questão, Paulo
Corrêa de Brito Filho e Gregório Vivanco Lopez como
secretário. Da parte da Arquidiocese, dois padres assumiram
o papel de analisar as teses tefepistas. Um abandonou
o sacerdócio, outro tornou-se bispo, inviabilizando a
continuidade dos trabalhos da comissão que visava discutir
31 DIAS, João Scognamiglio Clá. Reunião Jour le Jour, 5 out. 1997.
32 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. Grafonena, 15 fev. 1993.
213
e esclarecer a postura da organização diante da aplicação das
leis litúrgicas.33
Em um relato deixado pelo secretário da mesma
comissão, observa-se a profunda preocupação de Plinio
Corrêa de Oliveira com o princípio da lex orandi, lex credendi,
isto é, a ideia de que a oração da Igreja, particularmente a
missa, expressa sua fé. Plinio temia que uma liturgia que se
afastasse da compreensão tradicional do sacrifício litúrgico
católico representasse uma nova fé emergente após o
Concílio Vaticano II. O secretário relata:
O Sr. Dr. Plinio chamou este escravo de Maria
e disse [mais ou menos o seguinte]: “Olha, eu
estou muito preocupado com o pontificado de
Paulo VI, porque com esse pós-concílio, estou
vendo que as coisas vão para a heresia, elas vão
indo para o pior que possa haver. Então eu quero
que se façam estudos para ver quais são os limites
da infalibilidade, para ver até onde pode ir um
Papa herege ou não. Até onde as coisas podem
caminhar dentro da Igreja, e que papel um simples
fiel pode resistir a essa onda que está vindo. Mas
resistir com base na doutrina da Igreja. Então, eu
encarreguei o Dr. Arnaldo para fazer uns estudos,
e eu quero que você ajude ele nisso, em tudo o que
for necessário. […] Nós estamos caminhando para
uma trombada com Paulo VI. E nós precisamos
ter todo o nosso arsenal doutrinário superafiado,
superestudado, superpronto”.34
33 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. Reunião de Recortes, 26 nov. 1973.
34 LOPEZ, Gregório Vivanco. Reunião no auditório Nossa
Senhora Auxiliadora, 18 set. 1997.
214
A partir desta movimentação, começam a surgir
artigos no jornal Catolicismo, liderado pela TFP, sobre a
possibilidade de um papa cair em heresia, até que ponto
um fiel é herege ou não, até que ponto gestos, insinuações,
caracterizam ou não caracterizam um herege etc.35 De fato,
no ano de 1969, o jornal Catolicismo foi responsável por uma
série de artigos, já mencionados, que levantavam o problema
da possibilidade de um papa herege, fundamentado
especialmente nas teses do cardeal Belarmino (1642-1621),
um dos poucos a tratar desta possibilidade teológica. Aqui
se manifesta, mais uma vez, a recepção seletiva do Concílio
Vaticano II por parte desse movimento laical. A missa,
maior manifestação do dogma católico, tendo sido alterada
na sua expressão estética e até mesmo nos fundamentos
teológicos, seria inaceitável de contemporizar. Uma missa
que sintetizava em si cerca de 500 anos de tradição agora
seria substituída por uma nova missa, despida de muitos de
seus aspectos simbólicos e teológicos mais significativos.
A renovação litúrgica significava, para a TFP e para
os demais grupos que se mantiveram resistentes ao chamado
Novus Ordo, a materialização de uma nova Igreja, cujas
características centrais seriam heranças do modernismo:
“Tudo o que toca na missa toca, pois, no que a religião
tem de mais nobre, sensível e vital”.36 A preocupação com
35 Id.
36 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. O direito de saber. Folha de São
Paulo, São Paulo, 25 jan. 1970. Disponível em: https://www.
pliniocorreadeoliveira.info/o-direito-de-saber-folha-de-spaulo-25-de-janeiro-de-1970/#gsc.tab=0. Acesso em: 15
jun. 2024.
215
a preservação da fé herdada de uma Igreja considerada
imutável está sempre presente. No mesmo relato, diz
Gregório Lopez:
Em 3 de Abril de 69, Paulo VI promulga uma
constituição apostólica instituindo o “Novus Ordo
Missae”para entrar em vigor em 30 de novembro […]
Como medida provisória, antes de qualquer estudo,
[Dr. Plinio] declarou que, a partir de novembro de
69, quando entrava em vigor a Nova Missa, nós
deveríamos assistir Missa de São Pio V com algum
padre amigo nosso, ou ir [à igreja dos] Melquitas.
Mas que, provisoriamente, antes de qualquer coisa
não se devia participar da nova Missa.37
Em 1970, após a conclusão do livro, Plinio Corrêa
de Oliveira organizou um simpósio de estudos para revisar
a obra. Posteriormente, outro simpósio foi realizado com a
presença do bispo Antônio de Castro Mayer, que, juntamente
com Plinio, revisou e propôs emendas teológico-litúrgicas
ao texto. Após essas revisões, e ciente de que o debate sobre
a reforma litúrgica ganhava ampla repercussão na Europa,
especialmente devido à resistência liderada pelo arcebispo
Marcel Lefebvre, Plinio decidiu informar o público
brasileiro sobre o crescente problema litúrgico que causava
grandes preocupações ao papa Paulo VI, diante da adesão
crescente de católicos ao movimento lefebvrista.
Em um artigo intitulado “O direito de saber”, Plinio
de Oliveira trouxe ao público brasileiro não apenas os debates
ocorridos na imprensa secular sobre a questão, mas, também,
mencionou as objeções levantadas pelos cardeais Alfredo
37 Id.
216
Ottaviani (1890-1979) e Antonio Bacci (1885-1971), que
foram reconhecidos como autores do “Breve Exame Crítico
sobre o Novus Ordo Missae”, embora o texto tenha sido de
fato escrito pelo monge dominicano Gérard des Lauriers.38
Uma conduta assumida por muitos integrantes foi
a de esperar nas portas das igrejas para apenas receber a
comunhão nas missas celebradas segundo o Novus Ordo
Missae e, logo em seguida, ausentarem-se, a fim de não
reduzirem a nenhuma sua participação nos sacramentos onde
não havia a disponibilidade de um sacerdote amigo da TFP.
O bispo da diocese de Nova Friburgo, D. Clemente Isnard
(1917-2011), também presidente da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB) entre 1979 e 1983, emitiu
um comunicado proibindo a distribuição da Eucaristia aos
membros da TFP, devido a este comportamento. A CNBB,
em 1985, emitirá um comunicado desaconselhando os
católicos do Brasil a filiação à TFP, visto a falta de sintonia
e submissão ao episcopado brasileiro.
O terceiro ponto central para nossa análise é a
resistência da TFP à autoridade dos papas conciliares e
pós-conciliares. A figura do papa Paulo VI, responsável pela
maior parte do Concílio Vaticano II e pela implementação
das reformas, é crucial para se entender as movimentações
do pensamento tefepista sobre o papado. O historiador
Rodrigo Coppe Caldeira39 destaca em sua dissertação de
38 Id.
39 CALDEIRA, Rodrigo Coppe. O influxo ultramontano
no Brasil e o pensamento de Plinio Corrêa de Oliveira. 2005.
Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião) – Instituto
217
mestrado o caráter ultramontano da TFP, que se autodefinia
como defensora do papado e de seus direitos, conforme a
constituição dogmática Pastor Aeternus (1871) do Concílio
Vaticano I, que estabeleceu o dogma da infalibilidade
papal em matéria de fé e moral. Na visão ultramontana, a
referência ao papa transcendia esses pontos, abrangendo
orientação em política, ciência, filosofia, entre outros. No
entanto, essa tendência ultramontana parece enfraquecida
após o Vaticano II.
Baseando-se nos estudos de Arnaldo Vidigal Xavier
da Silveira sobre a possibilidade de um papa cair em heresia, a
TFP ajusta sua percepção sobre o papado. Tradicionalmente,
o papa era visto como pastor e mestre infalível em teologia
católica. Se um papa cair em heresia, sua infalibilidade,
proclamada como dogma, seria defeituosa. Este dilema
entre a tese de possível heresia papal e a crença fundamental
do catolicismo romano é compatível com a postura de
resistência da TFP e sua recusa em aceitar o Vaticano II
como um Concílio legítimo.
Dois exemplos que ilustram a resistência ao clero
católico são os livros publicados pela TFP, entre final da
década de 1970 e início dos anos de 1980. A Igreja ante a ameaça
da escalada comunista (1977)40 trazia um arsenal de imagens
de padres e freiras atuando em guerrilhas, mostrando-os
como fundamentais articuladores das resistências armadas
de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal de Juiz
de Fora, Juiz de Fora, 2005.
40 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. A Igreja ante a ameaça da escalada
comunista. São Paulo: Vera cruz, 1977.
218
às ditaduras de direita pela América Latina. A segunda
obra, denominada Sou católico: posso ser contra a reforma
agrária? (1981),41 que trazia uma evidente resposta positiva
ao questionamento que a nomeava, assumia o episcopado
como adversário ao se opor claramente ao apoio oferecido
pelo episcopado nacional, reunido em Itaici (SP), à reforma
agrária, por meio do documento “Igreja e problemas da
Terra” (1980). Por fim, selando os conflitos públicos com o
clero católico em razão de seu anticomunismo, temos o livro
As CEBS… das quais muito se fala, pouco se conhece: a TFP
as descreve como são (1982),42 que acusa as Comunidades
Eclesiais de Base (CEB)43 de serem, ao invés de núcleos
de leitura e estudo bíblicos, focos de insurreição dos mais
simples, alimentando neles o ideal de luta de classes. A luta
anticomunista, tornada eixo de atuação da TFP, a partir
da década de 1960, é vista, assim, como pura emanação do
Magistério católico. Ela é transposta para novo campo de
ação. Não é apenas na sociedade temporal que esta luta deve
ser executada, mas, também, dentro da Igreja, que neste
momento já estaria penetrada por tais ideias.
Até o ano de 1974, data da publicação do que ficou
conhecido nos ambientes internos da TFP como Manifesto
41 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. Sou católico: posso ser contra a
reforma agrária? São Paulo: Artpress, 1981.
42 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. As CEBS… das quais muito se
fala, pouco se conhece: a TFP as descreve como são. São Paulo:
Vera Cruz, 1982.
43 Muito populares a partir da década de 1970 na América
Latina, as Comunidades Eclesiais de Base (ou CEBs), eram
grupos de pessoas que se reuniam para a leitura da Bíblia
articulada com as realidades político-sociais locais.
219
da Resistência, o movimento tradicionalista católico
internacional, do qual a TFP faz parte, não tinha ainda
manifestado formalmente e por escrito o que poderíamos
chamar de doutrina da resistência ao Papa. Em novembro
do mesmo ano, o arcebispo francês Marcel Lefebvre publica
uma declaração, na qual expressa sua inconformidade com
as reformas pós-Vaticano II: “A única atitude de fidelidade
à Igreja e à doutrina católica, para bem da nossa salvação, é
uma negativa categórica à aceitação da Reforma”.44 O gesto
da TFP, que não recebeu nenhuma censura pública por sua
desobediência, pode ter aberto as portas para as muitas
manifestações públicas de resistência por parte dos católicos
tradicionalistas, ainda com poucos deles avançando a ponto
de pôr em dúvida a legitimidade da autoridade de um
pontífice romano.
O manifesto tefepista insere-se em um contexto
de múltiplas publicações da organização acusando o clero
católico de ser, após o Vaticano II, não apenas condescendente,
mas canal de veiculação do comunismo na Igreja Católica.
Sob o título A política de distenção do Vaticano com os governos
comunistas. Para a TFP: omitir-se? ou resistir? (1974), a TFP
acusa a Paulo VI de uma política de aproximação com o
bloco soviético, traindo a longa tradição de condenações do
Magistério católico ao comunismo:
44 LEFEBVRE, Marcel. Declaração de 1974. Fraternidade
Sacerdotal São Pio X. Disponível em: https://www.fsspx.com.br/
declaracao-de-1974/#:~:text=%C3%89%2C%20pois%2C%20
imposs%C3%ADvel%20para%20todo,categ%C3%B3rica%20
%C3%A0%20aceita%C3%A7%C3%A3o%20da%20Reforma.
Acesso em: 15 jun. 2024.
220
Aí o que fazer? As laudas da presente declaração
seriam insuficientes para conter o elenco de
todos os Padres da Igreja, Doutores, moralistas
e canonistas – muitos deles elevados à honra dos
altares – que afirmam a legitimidade da resistência.
Uma resistência que não é separação, não é revolta,
não é acrimônia, não é irreverência. Pelo contrário,
é fidelidade, é união, é amor, é submissão.45
No Manifesto da Resistência, a TFP afirma que sua
posição fundamentalmente anticomunista resultaria das
convicções católicas de seus membros e, em nome desses
princípios católicos, que os diretores, sócios e militantes
da TFP seriam anticomunistas.46 O anticomunismo é
constituído não apenas como posição ideológica em sintonia
colateral com o mais puro pensamento da Doutrina Social
católica, mas como a própria doutrina da Igreja. A denúncia
sistemática do clero católico pela TFP é, a um só tempo,
uma forma de indicar a distância que se estabelece entre ela
– organização de inspiração católica, mas sem personalidade
canônica – e uma forma de responsabilizar ante a opinião
pública este mesmo clero pelo avanço dos ideais comunistas,
uma vez que ele estaria operando desde o Concílio Vaticano
II, na visão tefepista, como quem oferecia estruturas de
articulação para essas ideias nos ambientes eclesiais.
Conclusão
Embora a TFP possua um estatuto de organização
civil e careça de personalidade canônica, não se abstém
45 Id.
46 Id.
221
de abordar temas teológicos, construindo suas próprias
interpretações. Desde a convocação do Concílio Vaticano II,
a TFP adota duas posturas distintivas: 1) uma manifestação
pública de adesão às determinações papais, expressas em
livros e publicações da organização, e 2) um assentimento
seletivo interno às normas e determinações conciliares e
pós-conciliares. Esta ambivalência é evidente na rejeição
de certas mudanças, como a reforma litúrgica de 1969 e a
declaração Dignitatis Humanae sobre liberdade religiosa.
Os documentos conciliares são vistos pela TFP como
ambíguos e repletos de concessões, pois não fornecem
fundamentos claros para suas práticas e visão de mundo. A
TFP alerta a opinião pública sobre as consequências dessas
ambiguidades. Um exemplo significativo é o abaixo-assinado
de 1968 dirigido ao papa Paulo VI, que ganhou repercussão
internacional e registrou a TFP no Livro dos Recordes,
solicitando ações contra a infiltração comunista na Igreja. A
TFP rejeita a concessão do Concílio a outras religiões. A ideia
de que a Igreja Católica é portadora da verdade integral é
considerada implícita, mas não explícita, em documentos como
a Lumen Gentium (1964).47 Uma das principais ambiguidades
identificadas pela TFP nos documentos conciliares refere-se
ao texto do novo rito da missa. Na primeira parte do livro La
Nouvelle Messe de Paul VI: Qu’en penser?, a ausência de termos
definitivos que reafirmassem a doutrina católica sobre a missa
é considerada uma debilidade condenável no documento
47 PAULO VI. Lumen Gentium. 1964. Disponível em: https://
www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/
documents/vat-ii_const_19641121_lumen-gentium_
po.html. Acesso em: 15 jun. 2024.
222
Sacrossanctum Concilium,48 onde o papa Paulo VI determina
a reforma da liturgia romana, e no Institutio Generalis Missalis
Romani,49 que introduziu as modificações litúrgicas.
As omissões e ambiguidades teriam como consequência
uma crise disciplinar na Igreja, resultando, segundo a TFP, em
profundas crises de fé e moral, tese sustentada por Átila Sike
Guimarães em The Murky Waters of Vatican II.50 Em resposta,
a TFP manteve a prática da missa segundo o rito do papa
São Pio V em suas sedes. Apesar de ser uma organização
civil de militância política, suas sedes passaram a se organizar
cada vez mais como mosteiros paralelos, com uma intensa
vida religiosa, embora não estivessem sob o controle das
autoridades oficiais da Igreja Católica.
A recepção seletiva do Vaticano II pela TFP não se
restringiu à organização, mas se expandiu para uma diocese
inteira, refletindo os mesmos pressupostos religiosos. No
entanto, a TFP aproveitou-se de certas oportunidades
oferecidas pela Igreja no pós-Concílio, como a instituição
dos “ministros extraordinários de distribuição da Eucaristia”
estabelecida pelo papa Paulo VI, em 1972, por meio do
48
PAULO VI. Sacrossantum Concilium. 1965. Disponível em:
https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/
documents/vat-ii_const_19631204_sacrosanctum-concilium_
po.html. Acesso em: 11 set. 2024.
49
PAULOVI.InstruciónGeneraldelMisalRomano.1969.Disponível
em: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/ccdds/
documents/rc_con_ccdds_doc_20030317_ordinamentomessale_sp.html. Acesso em: 15 jun. 2024.
50 GUIMARÃES, In the murky waters of Vatican II, op. cit.
223
Motu Proprio Ministeria Quaedam.51 Esta prática permitiu
à TFP evitar a frequência às igrejas onde a “missa nova” era
celebrada, transformando suas sedes em mosteiros paralelos.
Todas essas atitudes são tomadas ao mesmo tempo em
que se colocam numa posição de resistência ao papa reinante.
Cabe destacar que Plinio Corrêa de Oliveira, embora
manifestasse em círculos mais próximos sua desconfiança
acerca da legitimidade dos papas pós-conciliares, não
deixava de apelar à figura dos pontífices para abalizar as
posições tefepistas sobre os mais variados assuntos. Em
1968, ao organizar seu abaixo-assinado ao papa Paulo VI
pedindo medidas contra a infiltração comunista na Igreja,
reconhece indiretamente a figura do papa reinante.
Embora estejamos limitados ao período em recorte,
que vai de 1959 a 1988, pode-se dizer que a recepção
tefepista do Concílio Vaticano II ainda está em pleno
processo de desenvolvimento nos ambientes tefepistas e
naqueles que surgiram após a divisão da organização em
dois ramos distintos. Os episódios internos da organização
após a morte do fundador, como a divisão ocorrida em 1998
em que um dos pontos-chave foi precisamente a adesão ao
Novus Ordo Missae por parte importante da organização,
demonstra a dinâmica deste processo de recepção em curso.
O numeroso grupo levanta suas objeções às posições
defendidas publicamente por Plinio ao longo de décadas, bem
51 PAULO VI. Ministeria Quaedam. 1972. Disponível em: https://
www.vatican.va/content/paul-vi/es/motu_proprio/documents/
hf_p-vi_motu-proprio_19720815_ministeria-quaedam.html.
Acesso em 15 jun. 2024.
224
como pela TFP e a integralidade de seus membros até então.
Reclamam uma nova interpretação das relações do movimento
com a hierarquia eclesiástica, provocando uma fissura no tecido
até então aparentemente homogêneo da doutrina tefepista. A
coerência interna que até então caracterizava o movimento,
que se dava em razão do carisma profético de Plinio de
Oliveira, compreendido como o ato de emitir “formulações de
hipóteses adequadas a respeito dos acontecimentos futuros - o
que supunha um auxílio da graça”,52 passa a não existir com
o desaparecimento do fundador, possibilitando múltiplas
interpretações sobre o seu legado.
O setor dissidente da organização requisita um
estatuto que antes a TFP não possuía. Constituem, então,
os Arautos do Evangelho, como uma associação privada
internacional de fiéis de direito pontifício, alcançando uma
aprovação de seus estatutos pela Igreja e a consequente
regularização canônica que a TFP não possuía, por se tratar
de uma associação civil. Criou-se, também, duas sociedades
de vida apostólica, que compreendem o ramo feminino da
organização (que até o momento da morte de Plinio Corrêa
de Oliveira não havia) e um setor eclesiástico, constituindose na sua maioria por ex-membros da TFP que se
ordenaram sacerdotes católicos nos Arautos do Evangelho.
Essa condição de instituto secular ou societas laicalis fora
anteriormente rejeitada pela TFP, que o descreve como uma
ação “imprudente fazer qualquer transformação na TFP,
levando-a a depender da autoridade eclesiástica”.53
52 GUIMARÃES, Servitudo ex caritate, op. cit., p. 41-42.
53 TFP. Reunião do Conselho Nacional, 5 fev. 1976.
225
Ao apresentar as tensões estruturais, o imaginário
tridentino e a redefinição da vida religiosa de uma organização
complexa e que escapa às configurações de uma Igreja local,
acreditamos ter oferecido uma reflexão sobre a possiblidade
de se perceber a recepção conciliar numa circunstância em
que se ultrapassa os limites do mero debate teológico, ao
trazer este conceito para analisar uma organização civil de
inspiração católica. O objetivo principal foi identificar as
ambivalências tefepistas em relação ao Concílio Vaticano
II e ao Magistério pós-conciliar, que aparece na Igreja
do século XX como uma tentativa de modernização do
Catolicismo. Temos, portanto, um cenário em que a TFP,
no período imediatamente a seguir ao encerramento do
Concílio, intensifica um processo que está em sua gênese,
que é o da automarginalização no interior do catolicismo
institucional, reconfigurando a vida religiosa da entidade e
seus membros.
A TFP se torna uma pioneira na criação de uma
trincheira anticonciliar no Brasil, fornecendo elementos
importantes para a criação de um imaginário negativo em
relação ao Concílio, ao episcopado nacional e ao clero, que
ainda hoje persiste em muitos grupos da direita católica
brasileira. Ao mesmo tempo em que se posicionava como
resistência, a TFP não deixava de desfrutar de possibilidades
construídas no bojo do pós-Concílio, que garantiam à
organização certa independência religiosa. Essa posição
ambivalente, a nosso ver, propiciou as transformações
profundas pelas quais passou a organização após a morte
do fundador, resultando numa aderência ao menos parcial
226
ao Concílio Vaticano II, ao Novus Ordo Missae e aos papas
pós-conciliares.
Desse modo, pode-se inferir que a história da recepção
conciliar pela TFP, assim como para toda a Igreja Católica,
está em pleno andamento, não tendo se esgotado. É um
processo que está ainda em seu desdobramento, acenando
sempre para mudanças, rupturas, permanências e regresso
às tradições.
Campos dos Goytacazes:
uma diocese atípica na história
do catolicismo brasileiro
Vinícius Couzzi Mérida
Nos séculos XIX e XX, alguns acontecimentos históricos
trouxeram mudanças muito profundas para o pensamento
ocidental. Por isso, no final da década de 1958, no pontificado
de João XXIII (1881-1963), a Igreja Católica Romana viu
a necessidade de um novo Concílio que respondesse às
questões pertinentes ao homem contemporâneo, uma vez
que as respostas trazidas pelo Concílio Vaticano I (18691870) já não eram mais suficientes para responder às novas
demandas do século XX, que em função da complexidade
dos eventos históricos, caracterizou-se como “impossível de
definir e possível apenas de tentar entender”.1
Assim sendo, diante da complexidade do mundo
contemporâneo, João XXIII propôs o aggiornamento da
Igreja.2 Por essa medida, o papado demonstrava seu interesse
em dialogar com a sociedade contemporânea por meio
do Concílio Vaticano II (1962-1962), que foi anunciado
1
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX.
1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
2
POULAT, Émile. Une Église ébranlée: changement, conflit et
continuité de Pio XII à JeanPaul II. Paris: Casterman, 1980.
228
por João XXIII em 25 de janeiro de 1959.3 O anúncio foi
inesperado e criou algumas incertezas dentro do clero. Por
isso, o Vaticano II teve sua fase preparatória em um mundo
tensionado; afinal, tratava-se de um evento que teria lugar em
meio aos conflitos da Guerra Fria entre os Estados Unidos e
a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.4
Os conflitos do mundo externo também aconteceram
no interior da Igreja e na própria estrutura eclesiástica,
porque os padres conciliares dos quatro cantos do globo
levaram para Roma diferentes visões de mundo, que se
chocaram já na fase preparatória do Concílio. Por isso, as
aulas conciliares foram momentos de tensão, marcados por
ideologias opostas que colidiram a fim de dar o tom que iria
governar a Igreja nas décadas seguintes.5
Entre os nomes do conservadorismo católico que se
colocaram contra os movimentos reformistas, havia o nome
do bispo de Campos dos Goytacazes, Antônio de Castro
Mayer (1904-1991). Esse personagem se destaca na história
do catolicismo romano do Brasil, porque, durante o Concílio,
compôs a mesa diretora do principal grupo conversador, o
Coetus Internationalis Patrum (CIP), e, após o Concílio, ele
recusou-se a implementar na Diocese de Campos as reformas
conciliares, como era o projeto da Santa Sé. Este fato conferiu
a Campos uma realidade atípica no catolicismo romano,
devido à postura conservadora e intransigente do seu bispo
3
LIBÂNIO, João Batista. Concílio Vaticano II: em busca de
uma primeira compreensão. São Paulo: Loyola, 2005.
4
HOBBSBAWM, Era dos Extremos, op. cit., p. 152
5
LIBÂNIO, Concílio Vaticano II, op. cit., p. 59.
229
diocesano, que rompeu com a cúpula do catolicismo romano,
a ponto de chegar à sua excomunhão pelo papa João Paulo II,
em 1988, configurando uma situação singular na história do
catolicismo no século XX.
O Concílio Vaticano II
João XXIII (1881-1963) tornou-se papa em 1958, após
a morte de Pio XII (1876-1958). De forma surpreendente,
ele anunciou ao mundo, em janeiro de 1959, sua intenção de
realizar um Concílio Ecumênico e o tornou oficial no Natal
de 1961, pela bula Humanae Salutis.6 A necessidade de um
Concílio já rondava a Igreja há algumas décadas. Entretanto,
ela atravessou a primeira metade do século XX hesitando
sobre esta decisão. As tensões ideológicas da primeira
metade do século XX, o fim da Segunda Guerra Mundial,
o advento da Guerra Fria, as revoluções políticas, culturais e
sociais vivenciadas por aquele século promoveram mudanças
na mentalidade do Ocidente. Foi nesse contexto que a Igreja
viu-se impelida a promover um evento de caráter global,
cujo intuito seria posicionar o catolicismo romano nesse
cenário complexo.7
Assim, o Concílio Vaticano II foi aberto em 11 de
outubro de 1962 e encerrado em 8 de dezembro de 1965
por Paulo VI (1897-1978), em virtude do falecimento do
papa João XXIII em 1963. Coube ao cardeal Montini,
6
LIBÂNIO, Concílio Vaticano II, op. cit., p. 59.
7
MÉRIDA, Vinícius Couzzi. Tradicionalismo Católico: Resistência
e Cisma na Diocese de Campos dos Goytacazes. Dissertação.
2016. (Mestrado em Ciências da Religião) – Faculdade Unida de
Vitória, Vitória, 2016.
230
eleito papa com o nome de Paulo VI, a função de dar
sequência às Sessões Conciliares, que, ao todo foram
quatro, ocorridas nos anos de 1962, 1963, 1964 e 1965.8
Confirmando o pensamento de seu antecessor, o papa
Paulo VI entendeu que o Concílio objetivava: 1) a
exposição da Teologia da Igreja; 2) sua renovação interior;
3) a promoção da unidade dos cristãos; e 4) o diálogo com
o mundo contemporâneo.9
Havia na Igreja, desde o século XIX, algumas
correntes que disputavam influência. O presente trabalho
destaca a oposição entre os modernistas e os antimodernos.
Influenciados pelas filosofias racionalistas e cientificistas e
pelo evolucionismo e positivismo do século XIX, o clero
progressista quis nortear a Igreja em uma perspectiva
mais racional, aplicando o método histórico-crítico e
adaptando a teologia católica ao mundo contemporâneo.
Nesse sentido, um novo Concílio seria a ocasião ideal
para que as ideias progressistas fossem disseminadas com
maior eficiência dentro da Igreja e espalhadas por todo
o mundo católico pós-conciliar.10 Até esse momento, a
cúpula católica permanecia numa postura antimoderna,
cuja gênese estava no século XIX.11
8
Ibid., p. 60.
9
ALBERIGO, Giuseppe. História dos Concílios Ecumênicos.
São Paulo: Paulus, 1995.
10 MÉRIDA, Tradicionalismo Católico, op. cit., p. 3
11 CALDEIRA, Rodrigo Coppe. Os baluartes da tradição: o
conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II.
Curitiba: CRV, 2011.
231
O clero reformador foi liderado por prelados e teólogos
da Europa Central,12 e o clero conservador, à medida que
percebeu os movimentos reformistas que havia no Concílio,
mobilizou-se em torno do (CIP), cujo objetivo era conter
as reformas dentro da Igreja Católica.13 Alguns nomes
destacaram-se dentro desse grupo, como o do arcebispo
francês Marcel Lefebvre (1905-1991), do arcebispo de
Diamantina, D. Geraldo de Proença Sigaud (1909-1999) e
do bispo de Campos dos Goytacazes, D. Antônio de Castro
Mayer. Os membros desse grupo entenderam-se como
guardiões da Tradição Católica.14
Enquanto membro ativo do CIP, Castro Mayer fez
trinta intervenções no Concílio, tendo sido o segundo bispo
brasileiro que mais interveio nas sessões conciliares.15 De forma
mais ardorosa, o bispo de Campos trabalhou muito para que a
missa continuasse sendo celebrada em latim, sem alterações.16
Assim, nas sessões conciliares, o clero presente sob
as abóbodas da Basílica de São Pedro travou batalhas
12 WILTGEN, Ralph. O Reno se lança sobre o Tibre: O Concílio
desconhecido. Niterói: Permanência, 2007.
13 ROY-LYSENCOURT, Philippe. O Coetus Internationalis
Patrum no Concílio Vaticano II: apresentação e resultados de
uma pesquisa. Horizonte, v. 13, n. 38, p. 1051-1079, 2015.
14 CALDEIRA, Os baluartes da tradição, op. cit., p. 13.
15 BEOZZO, José Oscar. Os Padres Conciliares Brasileiros no
Concílio Vaticano II: Participação e Prosopografia 19591965. 2001. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2001.
16 WILGENT, O Reno se lança sobre o Tibre, op. cit., p. 45.
232
teológicas de acordo com suas crenças pastorais a respeito
dos rumos que o catolicismo romano deveria seguir. Ao
término do Concílio, a Igreja Católica Romana vivenciou
um novo período de importantes reformas. Esse período foi
o chamado momento de recepção ao Concílio Vaticano II.
Diocese de Campos dos Goytacazes:
ruptura e permanência
Nos anos que se seguiram ao término do Concílio,
o bispo de Campos revelou-se um prelado agoniado,
porque ele estava em desacordo com o modo de recepção
conciliar. O processo pós-Concílio foi visto por Castro
Mayer como um movimento de infiltração modernista na
Igreja, que, na sua visão, abrira-se demasiadamente para
as incursões dos teólogos modernistas.17 Entre os pontos
criticados por Castro Mayer, estava o fortalecimento
das conferências episcopais pelo mundo católico, em
detrimento da Cúria Romana e do poder monárquico
do Papa. De igual maneira, opunha-se ao ecumenismo,
à tolerância e à liberdade religiosa e, principalmente, à
Reforma Litúrgica.18 Além desses elementos, o alvo das
maiores críticas de Castro Mayer foi o missal romano de
Paulo VI, promulgado em 1969. As reservas do bispo de
Campos foram tão severas que o Novus Ordo Missae só
foi oficialmente implantado em Campos no ano de 1981,
quando a Diocese foi assumida por D. Carlos Alberto
Etchandy Gimeno Navarro (1931-2003). Mesmo assim,
17 MÉRIDA, Tradicionalismo Católico, op. cit., p. 71.
18 CALDEIRA, Os baluartes da tradição, op. cit., p. 182.
233
D. Carlos Alberto Navarro celebrava o rito de Paulo VI
em latim, para não escandalizar os fiéis.19
A carta escrita ao Papa, em 12 de setembro de
1969, evidencia a posição de Castro Mayer sobre o Novus
Ordo Missae:
Tendo examinado atentamente o “Novus Ordo
Missae”, a entrar em vigor no próximo dia 30 de
novembro, depois de muito rezar e refletir, julguei
de meu dever, como sacerdote e como bispo,
apresentar a Vossa Santidade, minha angústia de
consciência, e formular, com a piedade e confiança
filiais que devo ao Vigário de Jesus Cristo, uma
súplica. O “Novus Ordo Missae”, pelas omissões
e mutações que introduz no Ordinário da Missa,
e por muitas de suas normas gerais que indicam o
conceito e a natureza do novo Missal, em pontos
essenciais, não exprime, como deveria, a Teologia
do Santo Sacrifício da Eucaristia, estabelecida
pelo Sacrossanto Concílio de Trento, na sessão
XXII. Fato que a simples catequese não consegue
contrabalançar. Em anexo, junto as razões que, a
meu ver, justificam esta conclusão.20
Após as reformas propostas pelo Concílio Vaticano
II, Castro Mayer voltou à sua Diocese, onde procurou dar
uma correta intepretação da atualização proposta por João
19 SEIBLITZ, Zélia. Os arquitetos do paraíso. 1992. Tese
(Doutorado em Antropologia) – Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1992.
20 ARQTRAD: Arquivo que reúne material de pesquisa
produzido na diocese de Campos dos Goytacazes, por conta
da crise diocesana que assolou a Igreja particular de Campos
dos Goytacazes. Carta de Castro Mayer a Paulo VI. Campos
dos Goytacazes, 12 set. 1969.
234
XXIII – o que, na prática, significou conservar o mesmo
modelo de Igreja pré-Vaticano II, adotando apenas algumas
reformas propostas pelo missal de 1962.21 Assim, nos anos
que seguiram o término do Concílio, Castro Mayer foi
afastando-se paulatinamente da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB), uma vez que ele e a maioria do
episcopado brasileiro trilharam caminhos distintos.
Em 1981, Castro Mayer, então com 77 anos de idade,
tornou-se bispo emérito de Campos dos Goytacazes, após
trinta e três anos à frente da diocese. Com a sua substituição,
inicia-se um grave problema: a divisão diocesana. Até aquele
momento, a maioria absoluta do clero diocesano ainda
celebrava o rito tridentino, a exemplo do bispo (emérito) de
Campos. Nos anos seguintes a sua aposentadoria, de forma
aberta, Castro Mayer aproximou-se de D. Marcel Lefebvre na
resistência às reformas promovidas pelo Concílio Vaticano II.
Ao tomar posse, dentre suas primeiras medidas, o novo bispo
diocesano criou um conjunto de pastorais, cujo secretariado
atuava diretamente nas decisões junto ao bispado. Entre os
secretários, estavam casais que atuaram como pontes junto à
população local nas comissões diocesanas, para dinamizar o
apostolado da Igreja, a Campanha da Fraternidade e outras
pastorais que não existiam na Diocese até então.22
Como novidade pastoral, D. Carlos Alberto Navarro
deu espaço para o advento da Renovação Carismática Católica
21 MÉRIDA, Tradicionalismo Católico, op. cit., p. 60.
22 RIBEIRO, Márcio André dos Santos; PAZ, Roberto
Francisco Ferreria. História da diocese de Campos: 100 anos
de evangelização (1922-2022). Campos dos Goytacazes:
Encontrografia: 2022.
235
(RCC),23 que não existia em Campos, porque Castro Mayer a
via como um movimento da “nova religião protestantizada”.24
A RCC, de fato, era uma novidade, pois, até então, o laicato
era regido pelo clero e integrava as associações de fiéis, a
saber: Cruzada Eucarística, Liga Católica, Congregação
Mariana, Legião de Maria, Pia União das Filhas de Maria e
Apostolado da Oração, Ordem Terceira do Carmo.25
A doutrina recebida pelo laicato de Campos dos
Goytacazes sempre destacou, por determinação do bispado
diocesano, que havia distinção entre as funções, e que os
“simples leigos eram a parte discente da Igreja. Pois, essas
diferenças ministeriais eram dogmas de fé”.26 Então, tendo
em vista o conjunto de transformações que aconteciam na
Igreja Católica em outras partes do mundo, o novo bispo
sabia que Campos dos Goytacazes tinha uma situação
peculiar em relação ao Concílio. Todavia, ainda não tinha a
dimensão da hostilidade que enfrentaria pelas divergências
pastorais e eclesiológicas que eram praticadas pelo bispo
emérito. Afinal, Castro Mayer, deliberadamente, agiu na
mentalidade anticonciliar para barrar as reformas na Diocese,
23 Ibid., p. 58.
24 MAYER, Antônio de Castro. O pensamento de Dom Antônio
de Castro Mayer: textos selecionados 1972-1989. Niterói:
Permanência, 2010.
25 ARQDIOCAMPOS: Arquivo da Diocese de Campos dos
Goytacazes. Relatório quinquenal da diocese de Campos 19751980, Campos dos Goytacazes, 1981.
26 ARQTRAD: Arquivo de pesquisa material referente aos
padres e fiéis tradicionalistas da diocese de Campos dos
Goytacazes. Jubileu dos 50 anos da Pia União das Filhas de
Maria. Varre-Sai, 1983.
236
o que atrasou o processo de recepção conciliar,27 haja vista
o depoimento do padre Rosário, Vigário Geral da diocese:
Expirado o prazo, pensei que deveria, inevitavelmente,
pôr em prática as mudanças prescritas na celebração
da Missa. E a isso já me dispunha, quando recebi
oficialmente nova orientação da Diocese: continuar
com o antigo rito, uma vez que o Novo Ordo não tinha
caráter obrigatório. Estranhei um pouco a reviravolta,
mas nada objetei, confiando plenamente no critério
da Autoridade Diocesana. E como continuava a não
morrer de amores pela nova Missa, tranquilizei-me
[..]. Formou-se, então, na Diocese de Campos dupla
corrente: uns, por motivo de fé, rejeitaram a Nova
Missa. Outros, também por fidelidade à sua fé, viamse no dever de adotar o missal vindo de Roma […]
Continuei, pois, com o antigo missal, considerando
que o novo, como me fora dito, não era obrigatório.
Mas como não levava em viagem o missal de São
Pio V, aceitava o que me fosse apresentado fora da
Diocese de Campos.28
O depoimento do padre Rosário é claro ao dizer que
o bispado de Campos tinha preferência pelo rito de Pio V.
Além das memórias do padre Rosário, o boletim diocesano, de
junho de 1977, oito anos após a promulgação do Novus Ordo
Missae, também serve como fonte que aponta a mentalidade
presente no catolicismo campista, que privilegiava o uso do
latim em detrimento da língua vernácula:
Eis que o Latim tem a vantagem de acentuar o lado
misterioso do Sacrossanto Sacrifício da Missa, e
27 MÉRIDA, Tradicionalismo Católico, op. cit., p. 71.
28 ROSÁRIO, Antônio Ribeiro. Reflexões e Lembranças de um padre
suas lutas e fracassos. Itaperuna: Damadá Artes Gráficas, 1984.
237
conciliar maior respeito por tão augusto Sacrifício.
O vernáculo, pelo contrário, supõe a pretensão
de penetrar o âmago do grande Mistério. Tenta,
portanto, dissipá-lo ou, ao menos, diminui-lo. Vem
a ser uma tentação contra a Fé. Nela caiu Lutero, e
os Protestantes em geral, que não admitem que na
Santa Missa haja um verdadeiro e próprio sacrifício.
[…] Em segundo lugar, porque o Latim torna mais
consciente, no homem, a transcendência de Deus.
O Latim, pois, é um instrumento sobremodo útil
para o fiel compenetrar-se dos sentimentos, com
que deve se unir ao Sacerdote que se oferece sobre o
Altar torna a participação da Santa Missa, também
sob este aspecto, mais frutuosa.29
O latim e a liturgia de Pio V foram defendidos como
forma de manutenção do afervoramento da fé, em detrimento
das ideias reformistas, vistas pelo bispado de Campos como
destruidoras da fé católica. Por isso, segundo Castro Mayer,
era necessário vigiar os movimentos progressistas:
Daí, vermo-nos a braços com os destemperos
heretizantes de Küng, Schillebeeckx, Pothiers etc., e
com erupções heterodoxas disseminadas em revistas,
outrora católicas, que predispõem os fiéis à aceitação
de uma nova igreja que não é a Igreja de Jesus Cristo.
Mais do que nunca é preciso vigiar e orar.30
29 ARQTRAD: Arquivo de pesquisa material acumulado
durante a pesquisa sobre os padres e fiéis tradicionalistas
da diocese de Campos dos Goytacazes. Documento circular
diocesano sobre liturgia. Campos dos Goytacazes, 1977.
30 ARQTRAD: Arquivo de pesquisa material acumulado durante
a pesquisa sobre os padres e fiéis tradicionalistas da diocese de
Campos dos Goytacazes. Documento circular diocesano sobre a
reforma litúrgica. Campos dos Goytacazes, 1980.
238
Os documentos pesquisados demonstram que o bispo
emérito distanciara-se do episcopado brasileiro, pois havia a
pressão de D. Eugênio Sales (1920-2012, arcebispo do RJ)
para que se celebrasse a missa de acordo com o missal de 1969.
A razão para esse afastamento é justificada pelas crenças do
bispo de Campos que observava o processo de transformação
conciliar como infiltração modernista e marxista na Igreja, no
intuito de destruí-la por dentro.31 Por isso, a Igreja particular
de Campos ficou alheia aos movimentos católicos na América
Latina, como as conferências episcopais de Medellín, na
Colômbia, em 1968, e Puebla, no México, em 1979, assim
como as celebrações anuais da Campanha da Fraternidade.32
A proposta era conservar a prática anticonciliar de
maneira perene na Diocese, mesmo após a chegada do novo
bispo, porque a corrente tradicionalista entendia que a Igreja
era sempre a mesma, e por isso, não muda.
São Tomás de Aquino declara que as leis
humanas não devem ser mudadas, a não ser
quando haja evidente necessidade, ou ao menos,
grande utilidade que o exija. E dá como razão
o fato de que a própria mudança encerra uma
imperfeição, de vez que lança certo descrédito
sobre a mesma lei. Que diria, então, São Tomás,
da Fé? Porque a Fé não impõe apenas uma prática
de procedimento, que pode variar. A Fé versa
sobre verdades reveladas por Deus. Portanto, é,
31 MAYER, Antônio de Castro. Por um Cristianismo Autêntico.
São Paulo: Editora Vera Cruz, 1971.
32 ARQDIOCAMPOS: Arquivo da diocese de Campos dos
Goytacazes. Livro de tombo da paróquia Nossa Senhora do
Rosário. Campos dos Goytacazes, 30 out. 1979.
239
de si, imutável. Daí, o axioma sintetizado na frase
latina “immota f ides”, para significar perfeita em
matéria de Fé.33
A manutenção do discurso conservador em Campos
era ampla e tocava diferentes frentes que preconizavam o
antiecumenismo, a rigorosa observância do uso da batina pelo
clero, a comunhão de joelhos e dada diretamente na boca do
fiel, a conservação do latim na liturgia, a expressa proibição
das mulheres exercerem qualquer atividade litúrgica, a
reprovação social de que os católicos frequentassem clubes,
bailes, praias e piscinas e, no aspecto político, o bispado de
Campos recomendava que os católicos votassem somente
em candidatos que fossem contra o divórcio.34
O processo de recepção conciliar no catolicismo
brasileiro inseriu a Igreja na missão crítico-profética que
desencadeou a pastoral social, que incluiu grande parcela do
clero e do laicato nas denúncias contra as iniquidades sociais,
que expressavam uma relação entre opressores e oprimidos,
desde o nível das empresas e dos grupos, até o das nações
e povos.35 Diante do crescimento dessa vertente social na
Teologia brasileira e das problematizações das questões
sociais na Igreja, Castro Mayer escreveu um pequeno
33 MAYER, O pensamento de Dom Antônio de Castro Mayer, op.
cit., p. 26.
34 ARQDIOCAMPOS: Arquivo da diocese de Campos dos
Goytacazes. Livro de tombo da paróquia Nossa Senhora do
Rosário. Campos dos Goytacazes, 28 jan. 1978.
35 MORAIS, João Francisco de Régis. Os bispos e a política no
Brasil: o pensamento social da CNBB. São Paulo: Cortez;
Autores Associados, 1982.
240
artigo direcionado aos diocesanos, cujo título era “Azares
do aggiornamento”. O bispo demonstrava as preocupações
pastorais concernentes ao Concílio, que o atormentavam.
João XXIII não desceu aos pormenores, como
faria esse aggiornamento. Essa seria a tarefa
do Concílio. Acontece que o “Modernismo” –
confluência de todas as heresias, como definiu
São Pio X no seu postulado – não pedia uma
adaptação da Teologia ao mundo moderno,
continuou ele a agir, através de “sociedades
secretas”, nas expressões do mesmo São Pio X
(AAS, 1910, p. 665). Não é de estranhar tenha ele
aproveitado a oportunidade, e se tenha insinuado
nos meios eclesiásticos, para desviar, no seu
sentido de verdadeira mudança doutrinária, o
aggiornamento, na expressão proposta pelo papa
Roncalli. Eis como se explica a lamentação de
Paulo VI – realizador do Concílio – quando se
entristecia ao ver, após o sínodo, em vez de uma
unidade viva e florescentes, surgirem, na Igreja,
dissensões, ambiguidades e incertezas.36
Desde o final da década de 1960, até o período em que foi
substituído no governo diocesano, Castro Mayer manteve polidez
em relação ao Papa, embora criticasse as reformas conciliares e
os teólogos progressistas abertamente. Todavia, em público, o
bispo emérito poupou Paulo VI e João Paulo II, reservando suas
críticas aos pontífices somente nos momentos particulares, como
nas cartas que escreveu para o arcebispo francês.37
36 MAYER, O pensamento de Dom Antônio de Castro Mayer, op.
cit., p. 26.
37 ARQÉcône: Carta de Castro Mayer a Dom Lefebvre, Écône, 26
jan. 1970, Arquivo do Seminário de Écône – FSSPX (ASE).
241
O bispo anticonciliar procurou uma boa política com
Roma, nos limites que a situação permitia – tendo feito
a visita Ad Limina, em maio de 1980, acompanhado pelo
padre Fernando Rifan. Todavia, foi insuficiente para que o
bispado de Campos se tornasse mais flexível às reformas que
aconteciam na Igreja naquele momento. Por isso, quando D.
Carlos Alberto Navarro chegou à Diocese, havia um clima
de animosidade, porque todos os padres das congregações
religiosas já celebravam pelo missal de Paulo VI, enquanto
os padres diocesanos não.38 A conservação do modelo de
Igreja pré-conciliar está diretamente ligada às crenças de
Antônio de Castro Mayer, que entendeu que o Concílio foi
influenciado pelo modernismo condenado por Pio X (18351914).39 Como o Concílio Vaticano II buscou um diálogo
convergente com o mundo contemporâneo, Castro Mayer
ficou reticente e decidiu não aderir às suas indicações.
Com a chegada de D. Carlos Alberto Navarro, a partir
de 1981, a Diocese de Campos entrou em um processo de
divisão, porque a maioria do clero diocesano, 25 padres no
total, não aceitou a reforma litúrgica. Essa ruptura teve
repercussão no âmbito católico mundial, pois os padres
que recusaram as reformas conciliares posicionaram-se
publicamente de acordo com a formação recebida de Castro
Mayer. Ao agirem assim, o clero tradicionalista não rompeu
somente com o novo bispo diocesano, mas, também, com
a Igreja Católica Romana enquanto instituição universal.40
38 RIBEIRO; PAZ, História da diocese de Campos, op. cit., p. 58.
39 MAYER, Por um Cristianismo Autêntico, op. cit., p. 23.
40 MÉRIDA, Tradicionalismo Católico, op. cit., p. 144.
242
O clero que seguiu Castro Mayer condenou publicamente
o Concílio e orientou seus paroquianos a não seguirem as
direções do novo bispo, que contou apenas com poucos
padres diocesanos e algumas ordens religiosas para pastorear
a diocese dividida.41 Essa realidade chegou à Santa Sé,
chamando muito a atenção do papa João Paulo II (19202005) e da cúria romana.
Desta forma, os primeiros anos do episcopado de D.
Carlos Alberto Navarro em Campos foram difíceis, pois, além
de contar com poucos padres diocesanos e algumas ordens
religiosas, ainda teve o constrangedor papel de retirar os padres
tradicionalistas de suas paróquias e, para tanto, o bispo de
Campos fez uso de ordens judiciais e auxílio de força policial.
Esse período de exoneração ocorreu entre 1982 e 1987.42
Para blindar a diocese do “espírito do mundo
moderno”, Castro Mayer fomentou na Igreja local de Campos,
paulatinamente, a doutrina de que o Vaticano II seria o antisyllabus. Segundo o bispo de Campos, o Concílio “representa
uma tentativa de reconciliação oficial da Igreja com o mundo”,
de maneira destacada, por meio da Constituição Gaudium et
Spes.43 Então, ao passo que a aposentadoria de Castro Mayer
tornava-se iminente, o bispado teve a preocupação de reforçar
doutrinariamente a narrativa que primava pela conservação
do modelo de Igreja anticonciliar.44
41 Ibid., p. 66.
42 SEIBLITZ, Os arquitetos do paraíso, op. cit., p. 169.
43 MAYER, O pensamento de Dom Antônio de Castro Mayer, op.
cit., p. 86.
44 MÉRIDA, Tradicionalismo Católico, op. cit., p. 70.
243
O grande mentor de todo esse esquema de
mobilização tradicionalista na Diocese foi o bispo emérito,
que formara em seu clero a mentalidade anticonciliar, sob
alegação de que o Vaticano II seria um evento “heretizante”,
orquestrado por grupos progressistas.45 À vista dessa
situação, a resistência conciliar aconteceu em toda a diocese,
e, com ela, houve a instauração de uma guerra religiosa que
dividiu o catolicismo romano em dois polos. Segundo o
depoimento do padre Fernando Rifan,
De nossa parte, temos a plena convicção de que o
melhor serviço que podemos prestar à Igreja, ao
Papa, ao Bispo e ao povo cristão é defendermos a
Tradição, a doutrina que a Igreja sempre ensinou,
mesmo à custa de sermos perseguidos, injuriados e
até expulsos das igrejas. Podem nos tirar os templos,
mas jamais a nossa Fé! Assim o dizemos, confiados
unicamente na Graça de Deus. A história nos
dará razão! E, mais do que o tribunal da história, o
tribunal de Deus, para o qual apelamos! Que Nossa
Senhora nos dê coragem e perseverança.46
Em diversos casos de remoções paroquiais, D. Carlos
Alberto Navarro viu-se obrigado a solicitar a presença da
polícia, impetrar ação na justiça e pedir apoio à CNBB e
à Santa Sé para fazer valer a determinação diocesana no
processo de recuperação das paróquias, capelas e objetos
religiosos como âmbulas, ostensórios e outros objetos
valiosos usados na liturgia e na ornamentação das igrejas.47
45 SEIBLITZ, Os arquitetos do paraíso, op. cit., p. 196.
46 RIFAN, Fernando Arêas. Quer agrade quer desagrade. Campos
dos Goytacazes: Gráfica Lobo, 1999.
47 SEIBLITZ, Os arquitetos do paraíso, op. cit., p. 196.
244
O estrondo na Diocese foi tão grande, que extrapolou as
fronteiras diocesanas, como registrou o padre Rosário:
Com a vinda para Campos do Senhor Dom Carlos
Alberto, calculava que, concomitantemente,
teríamos novas diretrizes. Aguardei-as. Presente
a uma reunião do Conselho Presbiteral, percebi o
mal-estar que se esboçava no ânimo dos Revmos.
Conselheiros, com relação ao Novo Ordo. O
Senhor Dom Carlos Alberto, então, declarou que
respeitava a consciência de todos, e sugeriu que os
descontentes apresentassem as suas razões à Santa
Sé. Aceito o alvitre, redigiu-se um memorial, para
ser enviado ao Santo Padre. Subscreveram-no 23
padres […] A resposta de Roma demorou a vir, mas
veio. E, segundo fui informado, veio desfavorável.
Os 23 signatários não se submeteram. O pior
foi que arrastaram muita gente, principalmente
mulheres nervosas, para sua rebelde dissidência.48
As pesquisas demonstram que o clero removido por
D. Carlos Alberto Navarro deixava as paróquias em eventos
repletos de comoção, com a presença de centenas de fiéis e
dezenas de padres tradicionalistas.Todavia, Castro Mayer nunca
estava presente. As cerimônias de despedidas mobilizavam os
fiéis, que, organizados em procissões, caminhavam até o local
de apoio para o início da nova comunidade.49
Os novos locais das celebrações tridentinas, após
as exonerações, eram variados: uma capela particular
pertencente a alguma associação de fiéis, casas, garagens,
48 ROSÁRIO, Reflexões e Lembranças de um padre suas lutas e
fracassos, op. cit., p. 271.
49 MÉRIDA, Tradicionalismo Católico op. cit., p. 75.
245
cinemas desativados, galpões, barracões, asilos etc. O
improviso predominava na gênese das novas comunidades
tradicionalistas, que surgiam em toda a Diocese ao longo
da década de 1980. Para tanto, era fundamental o suporte
do laicato que cedia o espaço e fazia doações, a despeito das
ordens de D. Carlos Alberto Navarro.50
Na década de 1980, a Diocese era composta por onze
municípios.51 Em todos eles, houve manifestações públicas
dos tradicionalistas, que se organizaram mediante cartas,
panfletos, programas de rádio, jornais, procissões etc.52 A
esse respeito, em suas memórias, o padre Rosário escreveu:
Calculava que o novo Bispo encontraria aqui
resistências. Mas, longe estava de supor que a
radicalização chegasse a tal extremo. E tudo em
nome da fé e da consciência! Não ignorava que
os grupos dissidentes faziam restrições ao Novus
Ordo Missae. Não imaginava, entretanto, que se
considerasse pecado mortal a própria assistência a
Missa instituída pelo Papa Paulo VI. Gravíssima
se tornou a situação. Os jornais de Campos viviam
inundados de publicações, as mais agressivas
contra a nova Autoridade Diocesana, e até – quem
diria! – contra o Papa. Nunca pensei ver tanta
desenvoltura no nosso meio religioso. Nem cuidava
que um católico pudesse sentir-se tão à vontade,
para – diante de Deus e dos homens – investir com
50 WHITE, David A. The Mouth of the Lion. Kansas: Angelus
Press, 1993.
51 Arquivo da Diocese de Campos dos Goytacazes. Relatório
pessoal reservado da Diocese de Campos. Campos dos
Goytacazes, ago. 1981.
52 MÉRIDA, Tradicionalismo Católico, op. cit., p. 76.
246
tal desrespeito contra uma Atividade Religiosa.
Repugna-me transladar a esta página. Feiíssimas
expressões dirigidas por católicos ao seu Bispo,
nunca dantes ouvidas da boca de anticlericais.53
O primeiro ano de D. Carlos Alberto Navarro foi
desafiador, já que foi nesse período que todos os padres
tradicionalistas manifestaram-se publicamente e colocaram
seus fiéis contra o Concílio e contra a nova liturgia. Uma
pergunta é necessária: qual era a fundamentação teológica
e doutrinal que justificava a resistência dos padres junto
aos fiéis católicos na Diocese? Para explicar esta questão,
diversos documentos serão utilizados para demonstrar o
discurso tradicionalista na Diocese.
O agravamento dos conflitos e a recusa conciliar
Por ocasião da Páscoa de 1982, os padres tradicionalistas
de Campos assinaram e publicaram a “Profissão de fé católica
face aos erros atuais”. Esse documento foi um dos grandes
norteadores da luta tradicionalista em Campos, pois foi
apresentado pelo clero como um manifesto de afirmação da
“doutrina tradicional” da Igreja contra os “males conciliares” e
da plena rejeição às reformas religiosas. Estas, segundo Castro
Mayer e os padres de Campos, substituíram o catolicismo para
promover a “nova religião”, eivada de humanismo e esvaziada
da antiga moral católica, que estava combalida pelo espírito
secularizado das revoluções modernas.54
53 ROSÁRIO, Reflexões e Lembranças de um padre suas lutas e
fracassos, op. cit., p. 269.
54 ARQTRAD: Arquivo de pesquisa material acumulado durante
a pesquisa sobre os padres e fiéis tradicionalistas da diocese
247
Houve repetidos encontros e discussões entre o
bispo diocesano de Campos e os padres tradicionalistas.
No entanto, a corrente anticonciliar revelava-se cada vez
mais intransigente, porque seus representantes sentiam-se
estribados pela bula Quo Primum Tempore, na qual Pio V dava
indulto perpétuo para a celebração do missal tridentino:
de Campos dos Goytacazes. Documento circular “a missa nova
em questão”. Campos dos Goytacazes, 1982. O documento foi
assinado pelos seguintes padres: Mons. Licínio Rangel, reitor
do seminário; Mons. Benigno de Brito Costa, professor
do Seminário e Capelão das Irmãs Redentoristas; Mons.
Francisco Apoliano, vigário em Bom Jesus do Itabapoana;
Mons. Ovídio Simón Calvo, vigário em São Fidélis; Mons.
Henrique Conrado Fisher (1927-1921), Cura da Catedral
de Campos; Pe. Emanuel José Possidente, diretor espiritual
e professor do Seminário; Pe. Fernando Arêas Rifan, pároco
da Igreja do Rosário em Campos e professor do Seminário;
Pe. José Collaço, vigário em Porciúncula; Pe. Edmundo G.
Delgado, vigário em Cambuci; Pe. José Moacir Pessanha,
pároco em Natividade; Pe. Eduardo Athayde, pároco em
Santo Antônio de Pádua; Pe. Antônio Alves de Siqueira,
pároco em Varre-Sai; Pe. Gervásio Gobato, pároco em
Lage do Muriaé; Pe. José Olavo Pires Trindade, pároco em
Miracema; Pe. Élcio Murucci, vigário paroquial em Ururaí
em Campos; Pe. David Francisquini, pároco em Cardoso
Moreira; Pe. Antônio Paula da Silva, pároco em Italva; Pe.
José Eduardo Pereira, pároco em São João da Barra; Pe.
José Gualandi, pároco da Igreja do Terço em Campos; Pe.
Jonas dos Santos Lisboa, vigário paroquial em São Fidélis;
Pe. Geraldo Gualandi, pároco da igreja de Nossa Senhora de
Fátima em Itaperuna; Pe. José Ronaldo de Menezes, enviado
por Dom Carlos para Bom Jesus do Itabapoana; Pe. Alfredo
Oelkers, vigário emérito da Paróquia de Nossa Senhora do
Rosário em Campos; Pe. José Onofre Martins de Abreu,
reitor da Igreja de Nossa Senhora do Rosário em Campos; e
Pe. Alfredo Gualandi, vigário cooperador em Santo Antônio
de Pádua.
248
[…] em virtude de nossa autoridade apostólica,
pelo teor da presente bula, concedemos e damos
o indulto seguintes: que, doravante, para cantar
ou rezar a missa em qualquer igreja, se possa, sem
restrição, seguir este missal como permissão e poder
usá-lo livre e licitamente, sem nenhum escrúpulo de
consciência e sem que se possa incorrer em nenhuma
pena, sentença e censura, e isto, perpetuamente.55
Tendo em vista as determinações acima, o clero
tradicionalista via-se no direito de conservar o rito de Pio
V, em detrimento do missal de 1969. Castro Mayer e seus
padres justificavam a intransigência em conservar o rito de
Pio V, reformado pela Igreja em 1962, respaldados em três
características da bula Quo Primum Tempore: a finalidade da
bula, o método de estabelecimento e a autoria.56 Segundo os
padres tradicionalistas de Campos,
A finalidade da bula era a criação de um missal
idêntico distribuído por toda a urbe católica, que
protegia a unidade da fé católica através da unidade
e uniformidade da oração pública. O método de
estabelecimento foi a restauração do missal romano
primitivo, que constituiu a missa da Tradição católica,
e o autor do missal foi um Papa que avocou toda a
sua autoridade Apostólica em conformidade com
toda a Tradição de um concílio ecumênico infalível,
alinhado com a Tradição ininterrupta da Igreja.57
55 ARQTRAD: Arquivo de pesquisa material acumulado
durante a pesquisa sobre os padres e fiéis tradicionalistas da
diocese de Campos dos Goytacazes. Documento circular “a
missa nova em questão”. Campos dos Goytacazes, 1982.
56 Id.
57 Id.
249
Além desses elementos, que fundamentaram a
preferência de Castro Mayer e dos padres tradicionalistas
de Campos em detrimento do missal de 1962, é necessário
destacar que o cerne do problema em Campos foi a recusa em
relação ao Novus Ordo Missae. Então, a Diocese foi polarizada
entre a crença que desejava conservar a “Igreja de Sempre”,
contraposta ao modelo de “Igreja infiltrada pela fumaça
de satanás”,58 supostamente influenciada pela “infiltração
modernista promovida por teólogos e sacerdotes hereges que
desejavam minar a Igreja”.59 Alegando a “preservação da fé e
dos bons costumes”, o clero tradicionalista rejeitou a missa
de Paulo VI, independentemente do idioma, porque ela
“constitui, tanto no seu conjunto como em pontos particulares
um impressionante afastamento da Teologia católica da santa
missa tal como foi definido pelo concílio de Trento”.60 Essa
afirmação foi escrita em vários documentos tradicionalistas
para recusarem o Novus Ordo, porque eles tinham total
desconfiança sobre a validade litúrgica do novo missal.
Na esteira das rejeições, o clero tradicionalista
atribuiu ao Concílio a “nova moral católica”, que patrocinava
subjetivismo; “a profanação das igrejas”, degradada pelas
vestes imodestas; a “nova Teologia”, acusada de modernista
e revolucionária; “os novos catecismos”, entendidos
como subversivos; “a Teologia da libertação”, acusada de
58 SEIBLITZ, Os arquitetos do paraíso, op. cit., p. 251.
59 ARQTRAD: Arquivo de pesquisa material referente aos
padres e fiéis tradicionalistas da diocese de Campos dos
Goytacazes. Documento “Profissão de fé católica face aos erros
atuais”. Campos dos Goytacazes, 11 abr. 1982.
60 Id.
250
inclinar a Igreja ao Socialismo e ao Comunismo pela
interpretação marxista dos evangelhos e da doutrina da
Igreja; “a secularização do clero”, esvaziado dos elementos
sacralizantes da Igreja; “a reforma dos seminários”, vistos
como mundanizados por conta da secularização da
sociedade contemporânea; e “a diluição” da fé católica no
sentimentalismo contemporâneo e do clero.61
Nesse contexto, ao longo dos anos de 1980, Castro
Mayer foi afastando-se cada vez mais da Santa Sé e, em
nome de suas crenças, prestou assistência a 25 padres
diocesanos, que formaram a União Sacerdotal São João
Maria Vianney, criando paróquias paralelas na Diocese,
organizando, assim, duas dioceses em Campos: a Diocese
conciliar e a Diocese tradicionalista.
Por terem a mesma interpretação a respeito das reformas
implementadas pelo Concílio Vaticano II, a aproximação de
Castro Mayer e Marcel Lefebvre foi às últimas consequências:
a excomunhão, quando ambos os bispos realizaram a sagração
de quatro bispos sem mandato apostólico, sendo eles o
francês Bernard Tissier de Mallerais, o suíço Bernard Fellay,
o espanhol Alfonso de Galarreta e o inglês Richard Nelson
Williamson. Castro Mayer participou dessa sagração em
Écône como cossagrante, em 30 de junho de 1988. Essa
sagração foi punida, como recomenda o Código de Direito
Canônico no parágrafo 1382, e, desse modo, D. Lefebvre, o
cossagrante e os bispos consagrados incorreram na grave pena
da excomunhão prevista pela disciplina eclesiástica.62
61 Id.
62 MÉRIDA, Tradicionalismo Católico, op. cit., p. 80.
251
Em 18 de dezembro daquele mesmo ano, Castro
Mayer realizou a ordenação sacerdotal do diácono Manoel
Macêdo de Farias, na cidade de Varre-Sai, noroeste
fluminense. Essa ordenação foi sua última participação em
evento público, tendo em vista sua idade avançada e seu
estado de saúde debilitado. Em 25 de abril de 1991, Castro
Mayer faleceu na cidade de Campos dos Goytacazes, na
casa onde funcionou o seminário da União Sacerdotal São
João Maria Vianney, à rua Riachuelo.
O legado deixado por Castro Mayer provocou em
Campos uma ruptura clerical e religiosa que durou vinte
anos, entre 1981 e 2001. Assim, a Diocese de Campos
permaneceu dividida, pois havia o clero diocesano – alinhado
ao pensamento conciliar e que seguia as diretrizes do
Concílio Vaticano II, após a chegada de D. Carlos Alberto
Navarro – e o clero integrante da União Sacerdotal São João
Maria Vianney – futuramente denominada Administração
Apostólica Pessoal São João Maria Vianney – que seguia
Castro Mayer, sendo, posteriormente, assistida pelo bispo D.
Licínio Rangel (1936-2002).63 Em 2001, o papa João Paulo
II criou a Administração Apostólica Pessoal São João Maria
Vianney, regularizando a situação dos “padres de Campos”,
tirando-os da situação de excomunhão.
Conclusão
A situação da diocese de Campos dos Goytacazes
é um fato singular no mundo católico. Atualmente, há
convivência harmoniosa do bispo titular da Diocese, D.
63 Ibid., p. 89.
252
Roberto Francisco Ferreria Paz, e do clero diocesano com o
Bispo da Administração Apostólica São João Maria Vianney,
D. Fernando Arêas Rifan, além do seu clero que atende aos
fiéis católicos que preferem o modelo de Igreja pré-Vaticano
II. Na perspectiva de permanências e rupturas, a Diocese de
Campos é um modelo que precisa ser mais estudado, pois a
sua história foi diretamente marcada pela divisão e contornada
com a criação de uma Administração Apostólica Pessoal, o
que significa que ela está diretamente ligada ao Papa. Essa
realidade não tem paralelo no mundo católico.
Iniciada por uma crise pós-conciliar, a permanência e
conservação do modelo de Igreja pré-Vaticano II elucida que
a Igreja Católica Romana é plural em suas diversas formas de
religiosidade, o que a caracteriza como Universal. Portanto,
cabe à cúpula católica entender o movimento da pluralidade
para que possa agregar mais diferenças ao seio de uma
religião que tem em Roma a sede, mas que contempla, ao
mesmo tempo, os setores mais populares de diversas culturas
pelo mundo. O entendimento da universalidade e de sua
consequente pluralidade é vital para que haja a permanência
da diversidade na Igreja Católica Romana. Caso contrário,
ela falará apenas para si mesma, negligenciando o mundo
que ainda lhe dá ouvidos.
Autoras e Autores
Ana Rosa Cloclet da Silva
Doutora em História pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), com pós-doutorado em História pela
Universidade de São Paulo (USP). Docente da Faculdade de
História e do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião da Pontifícia Universidade Católica de Campinas
(PUC-Campinas). Coordena o Grupo de Pesquisa “História
das Religiões e Religiosidades”, certificado pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq – Brasil). Investiga a articulação entre religião e política
no Brasil, com ênfase na vertente ultramontana do catolicismo
oitocentista por meio da imprensa católica. Integra a Red
Ibero-americana de Historia Conceptual (Iberconceptos) e atua
em parceria com pesquisadores da Red de Estudios de Historia
de la Laicidad y la Secularización (REDHISEL/ConicetArgentina). Entre suas publicações na área, destacam-se
as coletâneas coorganizadas com Roberto Di Stefano:
Catolicismos en perspectiva histórica: Brasil-Argentina (Buenos
Aires: Teseo, 2021); História das Religiões em perspectiva:
desafios conceituais, diálogos interdisciplinares e questões
metodológicas (Curitiba: Prismas, 2018).
Douglas Ferreira Barros
Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo
(USP), com estágio de doutorado na École des Hautes Études
en Sciences Sociales (EHESS, Paris). Professor da Faculdades
de Filosofia e Membro do corpo docente permanente do
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião
254
da PUC-Campinas. Tem se dedicado à investigação da
teologia política moderna e contemporânea, da soberania,
das filosofias política e da religião, com ênfase para o
tema da exclusão. Líder do grupo de pesquisa “Religião,
ética e política”, certificado pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq – Brasil).
Em coautoria com Breno Martins, é autor do capítulo “O
‘Verdadeiro cristianismo’ como desafio aos cristianismos:
uma análise do fundamentalismo protestante no Brasil”, do
livro “Quem são os evangélicos?”, organizado por Carlos Caltas
e Jaqueline Ziroldo (Campinas: Saber Criativo, 2023).
Gilles Routhier
É Doutor em Teologia pelo Instituto Católico
de Paris (1992). Doutor em História das Religiões e
Antropologia Religiosa pela Université Paris – Sorbonne/
Paris IV (1992). Graduado em Teologia pela Université
Laval (Canadá, 1976). É professor titular de eclesiologia e
teologia prática na Faculté de Théologie et Sciences Religieues da
Université Laval (Quebec, Canadá). Especialista em Concílio
Vaticano II, publicou numerosas obras e artigos sobre a
história deste Concílio, o seu ensino, a sua hermenêutica e
a sua recepção, dentre os quais: Vatican II: Herméneutique et
réception. (Quebec: FIDES, 2015). Tal interesse o levou a
estudar o desenvolvimento do catolicismo no último século.
Ele recebeu dois títulos Doctor Honoris Causa. É membro da
Société Royale du Canada.
Gizele Zanotto
Doutora em História Cultural pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), com pós-doutorado
255
em História da América pela Universidad de Buenos Aires
(UBA). Professora da Universidade de Passo Fundo (UPF),
onde atua nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em
História. Dedica-se ao estudo do integrismo católico
tefepista, bem como da expansão do pensamento e ação da
TFP para outros países. Estuda, ainda, o ultramontanismo
de D. João Becker, arcebispo de Porto Alegre entre 1912
e 1946. Entre suas publicações são destaques a edição em
e-book de Tradição, Família e Propriedade (TFP) (Ed.
Acervus, 2022) e as coletâneas O pensamento de Plinio
Correa de Oliveira e a atuação transnacional da TFP (Ed.
Acervus, 2020) e Direitas e Religião no Brasil (1920-1940)
(Ed. Acervus, 2023).
Ítalo Domingos Santirocchi
É Doutor em História e Bens Culturais da Igreja
pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma. É
Professor Adjunto na Universidade Federal do Maranhão
(UFMA). Foi presidente (2021-2023) da Sociedade
Brasileira de Estudos do Oitocentos (SEO). Pesquisa
História do Catolicismo; Ultramontanismo; História do
Brasil Monárquico; Processo de Independência e formação
do Estado nacional Brasileiro. Autor do livro Questão de
consciência: os ultramontanos no Brasil e o regalismo do
Segundo Reinado (1840-1889) (Belo Horizonte: Fino
Traço, 2015). Coautor, junto com João Paulo Pimenta, do
livro: A Independência do Brasil em perspectiva mundial (São
Paulo: Alameda Casa Editorial, 2022), no qual publicou
o capítulo: “‘É constitucional, é católico romano, é justo e
virtuoso’: A Igreja Católica e o processo de Independência”.
Dentre seus artigos publicados, destaca-se Cartas Pastorais
256
Constitucionais no contexto da Independência do Brasil:
dioceses setentrionais (1822), na Revista Brasileira de
História (2022).
Philippe Roy-Lysencourt
Doutor em História e em Ciências das Religiões.
É professor de História do Cristianismo Moderno e
Contemporâneo e de História das Religiões na Université
Laval (Quebec, Canadá), onde também é diretor do Centre
d’Études Marie de l’Incarnation. Suas pesquisas concentramse na história do cristianismo moderno e contemporâneo,
abordando particularmente o Concílio Vaticano II, o
tradicionalismo católico, as relações entre a Igreja Católica e
o judaísmo, as relações diplomáticas da Santa Sé e a história
religiosa da Nouvelle-France. Em 2015, fundou o Institut
d’Étude du Christianisme – Strasbourg, do qual é diretor.
Além disso, desde 2021 é presidente da Société canadienne
d’histoire de l’Église catholique.
Rodrigo Coppe Caldeira
Rodrigo Coppe Caldeira é Doutor em Ciências da
Religião e professor do Programa de Pós-graduação em
Ciências da Religião (PPGCR) da PUC Minas. Atualmente
é o coordenador do PPGCR e Chefe do Departamento
de Ciências da Religião. Suas áreas de pesquisa incluem:
catolicismo contemporâneo, Concílio Vaticano II,
conservadorismo, tradicionalismo, direita católica e
secularização. É autor do livro Os Baluartes da Tradição: o
conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II
(Curitiba: CRV, 2011).
257
Tiago Tadeu Contiero
É Doutor em Ciência da Religião pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Bacharel e
Licenciado em História pela Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita (UNESP). Tem experiência em História
das Religiões com ênfase em história da Igreja Católica, mais
especificamente no estudo do Concílio Vaticano II. Atua
principalmente nos seguintes temas: Concílio de Trento,
Igreja Católica nos séculos XIX e XX, Ultramontanismo,
Teologia da Libertação, Doutrina Social da Igreja Católica,
Concílio Vaticano II e formação sacerdotal. É Professor
Assistente do Claretiano – Centro Universitário de Rio
Claro. É Pró-Reitor de Extensão e Ação Comunitária do
Claretiano – Centro Universitário de Rio Claro, atuando
também na área de Pastoral.
Víctor Almeida Gama
É Doutor e Mestre pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (PUC Minas); Graduado
em História pela Universidade Federal Fluminense
(UFF). Membro do Laboratório de Estudos em Religião,
Modernidade e Tradição (LERMOT), do Laboratório de
Estudos da Imanência e Transcendência (LEIT), atuando
nos campos da História e Ciências da Religião com os
temas direita católica, tradicionalismo católico, Sociedade
Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade
(TFP), com especial ênfase nos discursos produzidos pelos
intelectuais integristas do laicato católico brasileiro do
século XX.
258
Vinícius Couzzi Mérida
É Doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) em
cotutela com a Université Laval (Quebec, Canadá); Mestre em
Ciências da Religião pela Faculdade Unida de Vitória (20142016); Graduado em História pelo Centro Universitário
São José de Itaperuna (2006); Graduado em Pedagogia pelo
Centro Universitário ETEP (2023); é Especialista em Política
Brasileira pelo Centro Universitário São José de Itaperuna
(2010). Estuda o Concílio Vaticano I; Concílio Vaticano II,
movimentos tradicionalistas, diocese de Campos e história
contemporânea do catolicismo romano.
Lista de Quadros
Quadro 1 – Principais bispos ultramontanos durante o
Segundo Reinado
Quadro 2 – País de formação
Quadro 3 – Formação em seminários dirigidos por Ordens
Religiosas
Quadro 4 – Estrutura de Revolução e Contra-Revolução
(1998)
Índice Remissivo
A
Aggiornamento
31, 119, 135, 142, 210, 227,
240, 269
Antimodernismo
268
B
Brasil
13, 14, 17, 18, 27-29, 32,
34, 35, 73-79, 81-94, 96,
97, 106, 110, 159, 165,
170-174, 180, 182, 184,
189, 190, 191, 193-195,
198, 203, 205-207, 215,
216, 225, 227, 228,
230, 231, 234, 238, 239,
253-258, 261, 267
Brasil oitocentista
17, 75, 84, 85, 96, 268
C
Catolicismo
9-15, 17, 21,
30, 32, 33, 34,
43, 46, 47, 50,
65-67, 73-79,
22, 26-29,
37, 38, 41,
54, 56, 59,
85-88, 94,
96, 135, 137, 158, 166, 167,
169, 170-173, 175, 182,
184, 185, 187, 188, 189,
192, 194, 196, 197, 200,
201, 204, 206, 208, 214,
217, 225, 227, 228, 229,
232, 236, 239, 243, 246,
253-256, 258, 267
Catolicismo Liberal
21, 75, 78, 85-88, 265
Catolicismo Intransigente
30, 32, 33, 37, 38, 43, 47, 59,
73-75, 77, 78, 135, 170, 188,
267
Catolicismo Romanizado
74, 76, 268
Cœtus Internationalis
Patrum
101, 102, 269
Concílio Vaticano I
12, 17, 22, 30-32, 34, 46, 57,
61, 63, 65, 70, 73, 99, 101,
102, 107, 109, 114, 116, 122,
129, 131, 133, 134-136, 139,
168, 188, 189, 193, 194, 196,
198, 199, 200, 203, 204, 208,
213, 214, 216, 217, 220, 221,
223, 225-234, 241, 250, 251,
254, 256- 258, 262, 267, 261
262
Concílio Vaticano II
12, 17, 30-32, 34, 46, 57, 61,
63, 65, 70, 99, 101, 102, 107,
109, 114, 116, 122, 129,
131, 133-136, 139, 188,
193, 194, 196, 198- 200,
203, 204, 208, 213, 214, 216,
220, 221, 223, 225-234, 241,
250, 251, 254, 256-258, 262
Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil
205, 216, 234, 269
Conservadorismo
17, 32, 34, 168, 228, 230,
256, 261
Constitucionalismo
74, 81, 82, 84, 268
Contrarrevolução católica
262
Cristianismo
13, 15, 38, 39, 126, 238,
241, 254, 256, 262
D
Diocese de Campos
173, 228, 229, 232-239,
241, 245, 246, 248, 249,
251, 252, 258, 268
Dom Antônio de Castro
Mayer
205, 235, 239, 240, 242, 262
Dom Geraldo de Proença
Sigaud
269
E
Episcopado
43, 48, 51-54, 75, 82-84,
87, 88, 199, 202-205, 216,
218, 225, 234, 238, 242, 268
Erros da modernidade
17, 24, 28, 168, 262
F
França
20, 34, 35, 56, 57, 75, 78,
80, 81, 85, 88-91, 93, 95,
96, 108, 111, 116, 174, 197,
267
Fraternidade São Pio X
101, 122, 123, 125, 129, 262
G
Galicanismo
22, 86, 262
Galicano
22, 87, 262
263
Gaudium et Spes
55, 135, 136, 142-147, 151,
155, 156, 158-162, 242, 267
Intransigência católica
17, 24, 29, 31, 34, 38, 97, 263
I
João XXIII
32, 40-46, 59, 135, 138,
139, 140-144, 147, 161,
163, 196, 200, 201, 210,
227-229, 233, 240, 263
Igreja Católica
13, 17, 20, 23, 25, 32, 34, 42,
50, 53, 74, 76, 83, 85, 114,
115, 120, 135, 137, 161, 169,
174, 185, 187, 194, 195, 197,
198, 203, 219, 221, 222, 226,
227, 231, 232, 235, 241, 252,
255, 256, 257, 261
J
L
Laicidade
33, 126, 263
Individualismo
83, 263
Leão XIII
59, 65, 137, 169, 269
Integrismo
34, 75, 165, 168, 169, 170,
171, 179, 182, 184, 185,
188, 190, 255, 267, 263
Lefebvrista
215, 263
Integrismo católico
170, 171, 182, 184, 188, 255
Intransigência
9-11, 13, 15, 17, 18, 24, 25,
29, 30, 31, 33, 34, 38, 39,
67, 75, 80, 81, 83, 84, 88,
96, 97, 188, 248, 263, 267
Intransigentismo
9-14, 24, 25, 30, 31, 33, 34,
38, 81, 96, 167, 188, 191, 263
Liberalismo
11, 18, 22-24, 26, 67, 74,
80, 83, 87, 88, 166, 181,
182, 201, 263
Liberdade religiosa
28, 45, 47-54, 57, 58, 64,
106, 113, 117-119, 221,
232, 268
Liturgia
47, 55, 108-110, 113, 126,
194, 211, 213, 222, 237,
239, 243, 246, 268
264
M
P
Missa tridentina
33, 264
Padroado
27, 29, 86, 264
Modernidade
9, 10, 17, 19, 20, 21, 23-29,
43, 80, 85, 86, 88, 128, 139,
165, 168, 185, 198, 199,
257, 267
Papa Francisco
33, 121, 267
Modernismo
66, 107, 201, 214, 240, 241,
267
Monsenhor Lefebvre
209, 267
Mundo contemporâneo
13, 80, 172, 191, 227, 230,
241, 264
Mundo moderno
32, 34, 38, 40, 43, 45, 46,
56, 107, 115, 135, 137, 142,
147, 151, 159, 185, 196,
202, 203, 207, 240, 242, 267
N
Novus Ordo Missae
60, 111, 197, 206, 210, 215,
216, 223, 226, 232, 233,
236, 245, 249, 264
Paulo VI
33, 53, 60-62, 108-110,
115, 116, 118, 145, 188,
204, 206- 211, 213, 215,
216, 219, 221-223, 229,
230, 232, 233, 240, 241,
245, 249, 264
Pio IX
22-24, 31, 54, 60, 166, 168,
208, 264
Plinio Corrêa de Oliveira
171, 172, 175, 182, 193,
194, 198, 200, 204, 205,
207, 209, 211, 213, 215,
216, 223, 224, 268
Q
Quanta Cura
24, 60, 81, 168, 264
R
Racionalismo
22, 168, 264
265
Radicalismo
38, 67, 112, 134, 268
Recepção
34, 38, 59, 64, 99, 100-102,
107-109, 119, 121, 122,
124, 127, 131-134, 193,
198, 214, 222, 223, 225,
226, 232, 236, 239, 254, 265
Reforma
33, 38, 60, 61, 64, 67, 77, 84,
85, 92, 94, 95, 109-112, 114,
116, 118, 122, 127, 166,
181, 182, 191, 194, 195,
215, 216, 218, 219, 221,
222, 228, 231-235, 237,
240, 241, 246, 248, 250, 264
Regalismo
27, 28, 77, 86, 92- 94, 255,
265
Regalista
24, 27, 76, 87, 265
Religião
13, 14, 17, 19, 20, 21, 25,
26-28, 31, 32, 34, 35, 42,
49, 51, 77, 82, 84, 86, 105,
115, 118, 126, 139, 168,
170, 180, 182, 198, 205,
214, 216, 229, 235, 246,
252-258, 268
Religiões
13, 17, 20, 38, 55, 64, 117,
118, 221, 253, 254, 256,
257, 265
Rerum Novarum
30, 169, 265
Revolução Francesa
10, 13, 18, 19, 20, 21, 23,
24, 26, 29, 30, 31, 56, 113,
170, 181, 182, 200, 265
Romanização
77, 79, 267
Roma
9, 10, 20, 22, 24, 25, 29, 30,
33, 53, 61, 67, 73, 74, 76, 77,
79, 82, 83, 89, 90, 93, 95, 101,
104, 105, 109, 110, 114, 118,
119, 120, 121-125, 127, 132134, 138, 142, 166-169, 187,
194, 195, 200, 204, 210, 217,
219, 222, 227-229, 232, 236,
241-244,248,252,255,258,265
S
Santa Sé
23, 28, 33, 42, 78, 81, 88,
95, 101, 104, 114, 118,
266
121, 123, 133, 167, 228,
242-244, 250, 256, 265
Secularização
17-19, 21, 23-25, 27-29,
31, 33, 85, 250, 256, 266
Sedevacantista
33, 111, 116, 132, 209, 266
Sedevacantismo
115, 199, 208, 266
Syllabus
24, 76, 81, 87, 88, 242, 266
T
Teologia da Libertação
34, 77, 249, 257, 268
Tradição
12, 17, 19, 23, 24, 26, 32, 33,
41, 47, 48, 57, 59-65, 68, 69,
76, 83, 101, 103, 105-107,
121, 126, 128, 130-132,
140, 160, 165, 168, 171,
173, 182, 189, 190, 193, 205,
207, 211, 214, 219, 230-232,
243, 248, 255-257, 266
Tradicionalismo
32, 34, 81, 100, 121, 132,
134, 229, 230, 232, 234,
236, 241, 242, 244, 245,
250, 256, 257, 266
Tradição, Família
e Propriedade (TFP)
32, 165, 173, 182, 193, 205,
207, 255, 257, 266
U
Ultramontano
27, 73-78, 81, 83, 84, 87,
89, 92, 93-96, 166, 216,
217, 255, 259, 267
Ultramontanismo
24, 28, 34, 73, 74, 75, 77-79,
80, 81, 88, 94, 95, 167, 255,
257, 267
V
Vaticano II
12, 17, 30, 31, 32, 34, 42, 46,
57, 60, 61, 63-65, 70, 99,
100-109, 113, 114, 116, 119,
122, 124-127, 128-136, 138-140,
143,150,152,154,156,158, 159,
162, 163, 173, 188, 193,
194, 196-204, 206, 208,
210, 213, 214, 216, 217,
219, 220-223, 225-234,
241-243, 250-252, 254,
256-258, 266
Primeira edição, dezembro de 2024.
Impresso no Brasil.
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