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Ebook Catolicismo No Mundo Contemporaneo

2024, O catolicismo no mundo contemporâneo: debatendo o intransigentismo no Brasil

Livro traz capítulos de especialistas num dos fenômenos mais importantes do catolicismo contemporâneo: a instransigência. Baixe para ler.

© Editora Saber Criativo, 2024. conselho científico Dr. Roberto Di Stefano Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (ConicetArgentina)/Instituto de Historia Argentina y Americana “Dr. Emilio Ravignani” Dr. José Zanca Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (ConicetArgentina)/Investigaciones Socio Históricas Regionales (ISHIRRosario/Santa Fe) Dr. Emerson Sena da Silveira Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Dr. Candido Rodrigues Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Dr. Renato Amado Peixoto Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Dra. Irineia Maria Franco dos Santos Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Dr. Jefferson Zeferino Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) Dr. Glauco Barsalini Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) conselho editorial Wanderley Pereira da Rosa (UNIDA-ES) Roberto Zwetsch (EST-RS) Pedro Evaristo Conceição Santos (FTB-SP) Valéria Cristina Vilhena (UMESP-SP) Sidney de Moraes Sanches (IPEMIG-SP) Gerson Leite de Moraes (Mackenzie-SP) projeto gráfico Elissa Gabriela revisão Leandro Penna Ranieri editora Regina de Cássia Fernandes imagem de capa Church of The Nativity of the Blessed Virgin Mary, Flagstaff, EUA. Foto de Joseph Pillado na Unsplash. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Eliane de Freitas Leite - Bibliotecária - CRB 8/8415 O Catolicismo no mundo contemporâneo [livro eletrônico] : debatendo o intransigentismo no Brasil / organização Ana Rosa Cloclet da Silva,Philippe RoyLysencourt, Rodrigo Coppe Caldeira. -Campinas, SP : Editora Saber Criativo, 2024. PDF Vários autores. Bibliografia. ISBN 978-65-87446-83-7 1. Cristianismo 2. Igreja Católica 3. Igreja Católica - Influência 4. Modernidade I. Silva, Ana Rosa Cloclet da. II. Roy-Lysencourt, Philippe. III. Caldeira, Rodrigo Coppe. 24-243115 CDD-282.09 Índices para catálogo sistemático 1. Igreja Católica : Interculturalidade : História 282.09 Sumário Prefácio 9 Douglas F. Barros A intransigência católica como resposta à modernidade 17 Ana Rosa Cloclet da Silva Philippe Roy-Lysencourt Rodrigo Coppe Caldeira O Catolicismo intransigente 37 Gilles Routhier Pensar o catolicismo intransigente para o Brasil do século XIX 73 Ítalo Domingos Santirocchi Os católicos tradicionalistas e a recepção do Concílio Vaticano II 99 Philippe Roy-Lysencourt Catolicismo intransigente: análises das disputas ao redor da construção da Constituição Pastoral Gaudium et Spes 135 Tiago Tadeu Contiero Integrais na fé católica: o integrismo doutrinário e operativo da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) Gizele Zanotto 165 Navegando em águas turvas: a recepção tefepista do Concílio Vaticano II 193 Víctor Almeida Gama Campos dos Goytacazes: uma diocese atípica na história do catolicismo brasileiro 227 Vinícius Couzzi Mérida Autoras e Autores 253 Lista de Quadros 259 Índice Remissivo 261 Prefácio Douglas F. Barros O conceito de intransigência envolve a ideia de rigidez e inflexibilidade. Quando pensado sob o prisma dos historiadores, a noção encarna-se numa tensão. O estudo da História supõe investigar o movimento, a transição entre períodos no tempo, entre valores, costumes, moedas, grupos e o entrelaçamento de indivíduos em uma dada sociedade, para impulsionar e engendrar novas formas sociais e políticas. A História investiga a transitividade e a transformação. Intransigente na História é o ato que tenciona conter a afluência destruidora da passagem do tempo. Os estudos do catolicismo romano referidos ao intransigentismo remetem à investigação de tensões assumidas pela Igreja e seus representantes em face às mudanças gestadas pela e na modernidade. As crises que precederam o grande evento transformador da história europeia e mundial no século XVIII alteraram, definitivamente, a nossa compreensão acerca do telos da história. A ordem do tempo, ensinou-nos Agostinho, envolve a percepção humana acerca da memória, intenção e espera (passado, presente e futuro). As criaturas em sua finitude instransponível encaminham-se à salvação apenas no reencontro com Deus na eternidade: o tempo escoa em uma só direção. 10 A Revolução Francesa impôs um desarranjo completo na compreensão sobre as possibilidades de passagem do tempo. A ordem do tempo secular é atravessada pelas forças políticas em sintonia com a projeção de transformações vinculadas a grupos específicos. Na História, são gestadas tanto uma ordem política, que incorpora estratos sociais excluídos dos jogos do poder, como a ruptura da influência da Igreja sobre os negócios do Estado. Além disso, forjase outra compreensão acerca do cidadão, vinculando a esse novo personagem uma nova acepção acerca dos direitos e da própria condição humana. A reação natural de certas correntes do catolicismo romano foi a de responder na forma de intransigência a essa imposição transformadora oriunda no tempo secular. Observado em perspectiva histórica, esse posicionamento intransigente foi, por um lado, multifacetado e, por outro, permeado por contradições. Como dissemos, a postura intransigente envolve a inflexibilidade. Contudo, a investigação dos documentos do catolicismo europeu e do que se enraizou nas Américas desde o século XIX nos autoriza a concluir que o intransigentismo adquiriu uma multiplicidade tamanha que dificulta, quando não impede, o emprego da terminologia rígida ao caso. Sabe-se que as reações do catolicismo à modernidade liberal, que se ergue após a Revolução, originaram-se em várias frentes. Algumas delas são claramente antimodernas, outras alinham-se a uma reação tradicionalista acerca dos costumes, restauracionista em relação ao protagonismo social e político da Igreja, mas afeita e identificada aos novos horizontes abertos pela economia de mercado. O 11 intransigentismo refere-se tanto a uma reação frontal e programática ao liberalismo como à incorporação de novos ventos que modulam a nascente sociedade civil desde antes da Revolução, a qual se tornou, no geral, cada vez menos instruída, segundo os princípios doutrinários católicos. O catolicismo da reação intransigente na Europa do século XIX apresentou-se como uma barreira. Em sua origem, ele visava conservar as prerrogativas da Igreja diante da influência dos poderes terrenos. Desde o século XVI, em inúmeras regiões, alastrou-se uma movimentação política, indicando e exigindo o desgarramento dos novos atores, alheios ao poder monárquico, em face do poder religioso. A elaboração filosófica em defesa da liberdade política e individual, desde a publicação das obras de Maquiavel, alimentou o espírito insurgente, até a eclosão da grande Revolução. O combate ao cânone eclesiástico traduziu-se na crítica, na confrontação teórica e na desmontagem das hierarquias afiançadas pelas tradições hereditárias. Emergiu o cidadão livre e aquele que luta pela emancipação e conquista de direitos. A disputa política constituiu-se em torno de demandas pela ampliação de direitos civis e humanos fora do abrigo eclesiástico. A reação de intransigência não admitia a conciliação com os novos tempos: parte da Igreja reafirmava-se como a matriz e moldura insubstituível – a forma e o conteúdo – do todo social. Incapaz de resistir à força dos eventos transformadores, a barreira representada pelo intransigentismo modelou-se para atuar seja como voz de oposição a essa nova realidade originada pelo liberalismo político, seja observando, na recente configuração social e política europeia, um novo 12 lócus de atuação. A sociedade de perfil mais horizontal se abria para a agência eclesiástica por meio de organizações sociais mensageiras das doutrinas assentadas na tradição do catolicismo e resistentes à aceitação (liberal) do pluralismo religioso e do Estado laico. As novas feições da reação intransigente ajustaramse ao século XX. Expoentes da atuação religiosa secular fortaleceram-se e fincaram raízes além das fronteiras europeias, com a estratégica de manter acesa a chama da integridade doutrinária e da restauração dos valores tradicionais. Na travessia para as Américas, a muralha reivindicou a manutenção da imunidade da Igreja aos ideais liberalizantes de valores morais tradicionais, questionadores da infalibilidade papal e refratários à obediência hierárquica eclesial, entre outros aspectos. Tais posições foram suficientes para manter o intransigentismo influente, social e politicamente. A mudança doutrinária que caracterizou no Concílio Vaticano II, já nos anos de 1960, reacendeu o espírito de combate intra e extra eclesial. A Igreja em transformação tornou-se um alvo da reação intransigente. A resistência às mudanças na ritualística e no modo de ser e de agir do catolicismo pulverizou-se. Diferentes grupos e tendências do catolicismo assumiram posições que vão desde a negação da legitimidade conciliar até os que se alinham e endossam pontos nevrálgicos das novas diretrizes doutrinárias. A oposição às decisões e às transformações após o Concílio Vaticano II atualizou a resistência modernizadora. Ademais, o clamor migrou para os apoiadores conciliares e da Doutrina Social, que cobraram dos católicos e da Igreja uma 13 adesão intransigente à causa dos pobres no Brasil, na América Latina e no restante do mundo. A opção intransigente pelos excluídos de todos os matizes apresentou-se como o mote transformador e pilar sustentador da Igreja Católica, desde a Conferência de Puebla. A reivindicação intransigente difundiu-se em várias frentes, inclusive no cristianismo protestante. O fato de o intransigentismo apresentarse contemporaneamente como desafio ao escrutínio dos estudiosos deve-se tanto ao prolongamento de sua influência no tempo como à variada atuação no âmbito eclesial e na sociedade como um todo. O conceito de intransigência adquire, assim, pertinência e atualidade a ponto de constituir, desde o século XIX, um tema incontornável aos estudos do catolicismo. Compreender o intransigentismo hoje exige do estudioso a investigação de uma diversidade de fenômenos, que só podem ser descritos cada qual em sua singularidade. A avaliação da sua abrangência semântica é uma chave de acesso ao estudo das transformações do catolicismo e do cristianismo, em sentido amplo, desde o seu enraizamento local na Europa, após a Revolução Francesa, e nas Américas desde o século XIX, até a sua difusão e atuação global no século XX e na atualidade. É valiosa a contribuição do livro “O catolicismo no mundo contemporâneo: debatendo o intransigentismo no Brasil” para os estudos em Ciências da Religião, História das Religiões e Teologia, em curso tanto na Europa como nas Américas. O livro ora apresentado é resultado de investigações desenvolvidas por vários autores. Resulta, particularmente, de cooperação nacional e internacional 14 entre pesquisadores em Ciências da Religião, Teologia, História e Filosofia da PUC-Campinas e da PUC Minas (Brasil) e da Université Laval (Canadá). O Colóquio Internacional “História do catolicismo no Brasil: debatendo as múltiplas faces do intransigentismo (séculos XIX-XXI)”, realizado entre os dias 8 e 12 de maio de 2023, acolheu pesquisadores e especialistas das Universidades acima e da Universidad de Buenos Aires (Argentina, apoiados pelo Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas – Conicet), da PUC-SP, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), da Universidade de Passo Fundo (RS) e do Centro Universitário Claretiano. No decorrer dos debates, avaliou-se desde a pertinência e atualidade do conceito até suas ramificações e abrangência semântica na história contemporânea. Além disso, o tema foi aprofundado no curso “Tópicos em Ciências da Religião”, voltado a discentes da pós-graduação, da graduação e convidados da comunidade acadêmica interessados, ministrado pelos professores Dr. Gilles Routhier (Université Laval), Dr. Philippe Roy-Lysencourt (Université Laval), Dra. Ana Rosa Cloclet da Silva (PUC-Campinas) e Dr. Rodrigo Coppe Caldeira (PUC Minas). A realização de Seminários Temáticos no evento possibilitou o debate junto aos pósgraduandos, distribuídos em Grupos de trabalho segundo os temas: “Catolicismo e Protestantismo”; “Religião, Política e Teologia no espaço público”; “Mística e Espiritualidade”; “Religião e Arte” e “Perspectivas de pesquisa em Ciências da Religião”. O leitor encontrará no livro um mapeamento da disputa conceitual em torno do intransigentismo. É cristalina a intenção 15 dos autores de abrir o debate entre nós e desafiar os limites das formulações que circunscrevem o tema a um episódio perdido na poeira das estantes, que costuma enfocar o catolicismo francês e o italiano no século XIX. O estudo qualificado e abrangente acerca da intransigência religiosa, do século XIX aos dias atuais, joga luz sobre as matrizes teóricas e doutrinárias das várias manifestações, oposições e alinhamentos estratégicos do catolicismo e do cristianismo contemporâneos. Ótima leitura! Campinas, setembro de 2024 A intransigência católica como resposta à modernidade Ana Rosa Cloclet da Silva Philippe Roy-Lysencourt Rodrigo Coppe Caldeira O estudo da Igreja Católica contemporânea, bem como das várias manifestações do catolicismo nas sociedades seculares, envolve um debate conceitual que, nas últimas décadas, tem buscado dar conta da complexa relação entre religião e modernidade.1 Um desses conceitos é o de 1 LAGRÉE, Michel. Religion et modernité, France, XIXeXXe siècles. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2015; LAGRÉE, Jacqueline; PORTIER, Philippe Portier (org.). La Modernité contre la religion ? Pour une nouvelle approche de la laïcité. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2010; LIBÂNIO, João Batista. Igreja contemporânea: encontro com a modernidade. São Paulo: Edições Loyola, 2000; SILVA, Ana Rosa Cloclet da; COSTA, Estela Maria Frota da. A Igreja perante a modernidade: uma análise das encíclicas papais no século XIX. Estudos de Religião, v. 35, p. 331-358, 2021; SILVA, Ana Rosa Cloclet da; CARVALHO, Thais Rocha. A Cruzada ultramontana contra os erros da modernidade. Revista Brasileira de História das Religiões, v. 35, p. 9-42, 2019; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. O paradigma tridentino e a Igreja Católica no Brasil oitocentista: modernidade e secularização. Reflexão, v. 42, n. 2, p. 169-181, 2017; CALDEIRA, Rodrigo Coppe. Os Baluartes da Tradição: o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II. Curitiba: CRV, 2011. 18 “intransigência”, que se refere a uma das respostas da Igreja aos desafios desencadeados – ou no mínimo acentuados – pela Revolução Francesa (1789). De forma resumida, podese afirmar que este evento de inegáveis proporções – que “afetou o mundo inteiro, extensivamente, e todos os homens, intensivamente” –2 acelerou consideravelmente um processo que já estava em curso há séculos: a secularização. Catalisada pelo liberalismo, que pôs em evidência a autonomia do sujeito e a liberdade de consciência, a secularização gradualmente se tornou a nova norma nas sociedades contemporâneas. Por um lado, acentuouse a oposição entre o espiritual e o secular – que esteve na origem do sentido canônico e político-jurídico do conceito –,3 acelerando a perda do poder temporal da Igreja diante da emergência de novos Estados pautados nos atributos conferidos pela soberania popular, que já podiam 2 KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise. Tradução: Luciana Castelo-Branco. Rio de Janeiro: EDUERJ/Contraponto, 1999, p. 10. 3 Quanto ao sentido eclesiástico-jurídico, o conceito de secularização foi usado primeiramente em francês, ainda no século XVI, para designar a transferência de um clérigo regular para o status secular. Fora dos muros da Igreja, comportou uma conotação político-jurídica desde a Paz de Vestfália (1648), referindo-se ao processo jurídico de expropriação de posses e confisco de bens eclesiásticos pelos Estados modernos. Sobre este sentido histórico do termo, diversos autores concordam que não há como hesitar, sendo esta a acepção originalmente presente na obra de Max Weber. PIERUCCI, Antônio Flávio. Secularização em Max Weber: da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 13, n. 37, 1998. 19 prescindir dos fundamentos religiosos do poder.4 Por outro, simultaneamente a esse processo, a secularização adquiriu uma dimensão histórico-filosófica, em que todos os esquemas interpretativos do mundo passaram a ser submetidos ao imperativo da “temporalização”. Segundo Koselleck, a categoria “temporalização” traduz a mudança subjetiva na percepção do tempo, característica da modernidade: um tempo acelerado, ditado por processos inerentes ao mundo – em nível político, tecnológico, demográfico – que, desde a Revolução Francesa, autonomizou-se em relação às expectativas escatológicas cristãs, implicando que a solução para os problemas e desafios do tempo histórico passasse a ser buscada “dentro do próprio tempo histórico”.5 O dinamismo imposto por mudanças incessantes e sem precedentes – que remontam ao nascimento de uma Europa liberal e positivista, convulsionada por transformações qualitativas na ordem política, pelo avanço das ciências naturais e pela cosmovisão que trazia em seu bojo, somado ao desenvolvimento industrial e dos meios de comunicação – e a imprevisibilidade dele resultante implicaram uma sensação generalizada de ruptura com a continuidade. Surgiu, então, a pretensão de rejeitar a tradição, visto que as experiências passadas tornavam-se 4 HAUPT, Heinz-Gerherd. Religião e nação na Europa no século XIX: algumas notas comparativas. Estudos Avançados, v. 22, n. 62, p. 77-94, 2008. 5 KOSELLECK, Reinhart. Estratos do Tempo: Estudo sobre História. Tradução: Marcus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-RJ, 2014, p. 182-183. 20 cada vez menos pertinentes para pautar o presente e projetar expectativas para futuro.6 Inevitavelmente, estas transformações acarretaram impactos profundos nas religiões, que precisaram ajustar-se a fenômenos produzidos em esferas que delas começavam a se diferenciar. No âmbito institucional, a Igreja católica enfrentou a perda de seu poder temporal e de seu papel social na nova configuração dos espaços públicos na Europa ocidental, além de atestar o enfraquecimento de sua capacidade normativa e formadora das consciências. Do ponto de vista dos sujeitos sociais vinculados à nova ordem, as classes dirigentes, influenciadas pelo imaginário burguês do progresso constante e sem limites e das liberdades civis – entre elas a liberdade intelectual e perspectivas francamente hostis à religião – criaram uma conjuntura desafiadora para a Igreja romana. A ofensiva do laicismo anticlerical, que grassava desde a Revolução Francesa,7 foi agravada pelo rápido progresso da descrença entre as elites intelectuais. Sob a dupla inspiração liberal e secularista, em pouco mais de cem anos (1789-1905), a França assistiu à desconfessionalização do Estado, à 6 Segundo Koselleck, “só se pode conceber a modernidade como um tempo novo a partir do momento em que as expectativas passam a distanciar-se cada vez mais das experiências feitas até então”. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução: Wilma Patrícia Maas, Carlos A. Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006, p. 314. 7 MENOZZI, Danielle. Cristianesimo e rivoluzione francese. Brescia: Queriniana, 1977. 21 expulsão das referências religiosas do espaço público e à laicização do ensino.8 Alguns católicos aceitaram essa nova situação e tentaram lidar com ela, resultando em reconfigurações complexas da religião em sociedades que continuaram a reivindicá-la como condição para se pensarem autônomas em relação aos sistemas religiosos hegemônicos.9 Emergiu desse contexto um catolicismo liberal, cujos representantes passaram a ver na secularização “uma oportunidade para a Igreja construir um novo tipo de posição dentro da sociedade, mais respeitadora da distinção entre o temporal e o espiritual, bem como da liberdade dos indivíduos e, portanto, mais evangélica”.10 Entretanto, outros recusaram essa postura, defendendo a orientação e a posição tradicional da Igreja, sendo denominados de intransigentes. Émile Poulat argumenta que toda a história do catolicismo desde a Revolução Francesa resume-se à oposição entre essas duas tendências centrais na Igreja: uma que defende os direitos da Igreja e outra que reclama o direito à conciliação e à adaptação, levando à constituição de “ideologias de adaptação, de assimilação, de integração 8 MERCIER, Charles. Permanence d’un catholicisme intransigeant? Études, v. 419, n. 10, p. 353-361, 2013. 9 Daniéle Hévieu-Léger nos mostra isso a partir do panorama religioso francês, no contexto da modernidade. HERVIEULÉGER, Daniéle. El peregrino y el convertido: La religión en movimiento. México: Ediciones del Helénico, 2004, p. 37. 10 MERCIER, Permanence d’un catholicisme intransigeant?, op. cit., p. 354. (tradução nossa) 22 e às contra-ideologias de recusa”.11 No caso francês, os embates no interior do catolicismo – entre aqueles que defendiam maior autonomia da Igreja nacional e os que se mantinham subordinados ao papa – desdobravam-se desde o século XVII e culminaram em um verdadeiro espírito antirromano, que se desenvolveu nas franjas do jansenismo e do galicanismo acarretou tensões por todo o século XIX.12 Tais embates levaram, às vésperas do Concílio Vaticano I (1869), Roma a experimentar três traumas: o galicanismo, o controle da Igreja pelo Estado e, por fim, o liberalismo e o racionalismo.13 Contra essas tendências, a Igreja pautou sua ênfase no princípio da autoridade e dos valores da 11 POULAT, Émile. Église contre bourgeoisie: Introduction au devenir do catholicisme actuel. Tournai: Casterman, 1977, p. 91. (tradução nossa) 12 Vale frisar que estes movimentos se reconfiguraram desde o início do século XIX. Além disso, mesmo postulando a superioridade do Concílio em relação ao papa, o galicanismo revelou-se “romano” sob muitos aspectos. Segundo Catherine Maire, “Os movimentos jansenistas e galicanos refletiriam assim o mesmo paradoxo francês que pode ser esquematicamente caracterizado como o desenvolvimento da liberdade e da autonomia na procura da manutenção da hierarquia e da subordinação, sendo o efeito paradoxal deste ideal de moderação encorajar o aparecimento de ‘extremismos de moderação’, se ousamos dizer”. MAIRE, Catherine Laurence. Quelques mots piégés en histoire religieuse moderne : jansénisme, jésuitisme, gallicanisme, ultramontanisme. Annales de l’Est, v.1, p. 13-45, 2007. (tradução nossa) 13 POTTMEYER, Hermann J. Towards a papacy in communion: perspectives from Vatican Councils I & II. New York: Herder and Herder, 1998, p. 36; CALDEIRA, R. Coppe. O Concílio Vaticano I (1869-1870). Os cardeais respondem à consulta de Pio IX. Caminhos, v. 21, n. 1, p. 275-285, 2023. 23 tradição. Como consequência, uma das características principais da situação eclesiástica naquele período foi a predominância de uma teologia apologética, cujo objetivo central era levantar-se contra o liberalismo e outros “erros modernos”, reivindicando os direitos da Santa Sé contra seus inimigos externos e internos.14 Em resumo, tratavase, “a partir do patrimônio legado pelos séculos anteriores, de barrar a modernidade conquistadora”.15 E tratava-se de fazê-lo no duplo sentido assumido pela secularização desde a Revolução Francesa: o político-jurídico – mediante o qual a Igreja católica continuará resistindo à perda de seu poder temporal – e o histórico-filosófico, visando conter a aceleração do tempo histórico, por meio da reivindicação de uma tradição ancorada no “paradigma tridentino”. Na definição do historiador Paolo Prodi,16 tratavase de reabilitar esse projeto de longa duração, que teria marcado a história da Igreja desde a crise do Medievo até a segunda metade do século XX, por meio do qual o Magistério procurava estabelecer e fortalecer uma soberania paralela e universal, representada por um corpo eclesiástico supranacional e supraestatal, em concorrência com outros projetos de modernidade em voga. Esse paradigma encontrou seu apogeu durante o pontificado de Pio IX (1848-1878) e orientou dois documentos publicados em dezembro de 1864: 14 AUBERT, Roger. Storia dela Chiesa. Il pontificato di Pio IX (1846-1878). 2. ed. Torino: San Paolo, 1976, p. 10-12. 15 MERCIER, Permanence d’un catholicisme intransigeant?, op. cit., p. 354. (tradução nossa) 16 PRODI, Paolo. Il paradigma tridentino, un’epoca della storia della Chiesa. Brescia: Morcelliana, 2010. 24 a Encíclica Quanta Cura e seu anexo, o Syllabus errorum, que listava oitenta supostos “erros da modernidade”.17 Portanto, a discussão sobre o conceito de “intransigência católica” não se produz em um vazio histórico. Ao contrário, apresenta-se como uma perspectiva de ação da instituição eclesiástica profundamente conectada ao Zeitgeist do período, marcado pela marcha da secularização. Essa dinâmica não se reduziu a uma disputa de poder entre Igreja e Estado, mas comportou “uma significação de ordem espiritual”, que traduziu as divergências em verdadeiras “batalhas de princípio”: de um lado, a tradição regalista, que defendia o direito do Estado de interferir nos assuntos da Igreja e regulamentar a política de cultos; de outro, a tradição de fidelidade incondicional à Igreja romana, que reivindicava sua independência total em relação ao poder secular. Ao longo do século XIX, essa última tendência encontrou “uma expressão sistemática no intransigentismo católico e obteve um dinamismo incomparável no ultramontanismo”,18 cujo antiliberalismo teve como contrapartida a defesa da romanidade papal como baluarte da ordem e da estabilidade, abaladas pela Revolução Francesa. A intransigência designa a atitude daqueles que, no seio do mundo católico, rejeitam categoricamente a secularização 17 PIO IX. Encíclica Quanta Cura: condenação e proscrição dos graves erros do tempo presente. 1864. Disponível em: https:// www.vatican.va/content/pius-ix/it/documents/encyclicaquanta-cura-8-decembris-1864.html. 18 RÉMOND, René. Réligion et Société em Europe: La sécularisation au XIXe et XXe siècles (1789-2000). Paris: Édition du Seuil, 2001, p. 107-109. 25 e o pensamento liberal, permanecendo “aferrados à defesa de posições tradicionais”.19 Contudo, se em nível institucional representou a resposta ortodoxa da Igreja à sociedade contemporânea, tal atitude não se limitou a uma série de batalhas contra seus inimigos externos ou internos. Ao contrário, representou uma recomposição profunda da própria instituição, após sua marginalização do quadro institucional das sociedades modernas, além de novas estratégias de atuação para manter sua influência em algum nível. Se a intransigência defende princípios considerados indiscutíveis, ela não implica, necessariamente, em posições imutáveis. Isso permite concordar que uma das características do intransigentismo católico foi sua “capacidade de adaptação tática”,20 de tal forma que, […] no confronto com os movimentos revolucionários e com os avanços da secularização, a Igreja Católica esteve obrigada a mudar seus métodos, estratégias e conteúdos, levando seus representantes a compartilharem muitas das características e ferramentas de seus oponentes […].21 É nesse sentido que,compreender as respostas da religião a fenômenos produzidos em esferas que dela começavam a se 19 MERCIER, Permanence d’un catholicisme intransigeant?, op. cit., p. 354. (tradução nossa) 20 Segundo Charles Mercier: “O intransigente, que não desistiu de mudar a sociedade global, está pronto para usar certos aspectos da modernidade, especialmente a nível tecnológico, para melhor combatê-la” (ibid., p. 355). 21 MARTÍNEZ, Ignácio; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Iglesia Atlântica. Iglesia Universal. Iglesia Romana. Escenario de la Modernidad Católica en el siglo XIX. Almanack, n. 26, p. 1-8, 2020, p. 4. (tradução nossa) 26 diferenciar e que atestavam a perda de sua influência e sua tutela sobre a sociedade, exige um distanciamento crítico da lógica dicotômica de certas abordagens que tenderam a conceber tal dinâmica a partir da dialética entre clericalismo e anticlericalismo, Igreja e sociedade, poder temporal e poder espiritual, razão e fé. Tais abordagens, além de ofuscarem os “fenômenos híbridos” que daí resultaram – “como as origens religiosas da Revolução Francesa, o catolicismo revolucionário ou o liberalismo católico” –, acabaram por cunhar a imagem do catolicismo como um elemento atávico no processo de construção das sociedades modernas e seculares. Por sua vez, a Igreja foi “representada sob a aparência da imobilidade, seja como guardiã da tradição, seja como obstáculo ‘anacrônico’ ao progresso”.22 Entretanto, é preciso considerar que, “sob esta mesma aparência de imobilidade, a religião muda, se reestrutura, se adapta, toma a iniciativa e enfrenta as provações da modernidade. É neste sentido que ela é moderna”.23 Como a própria história da modernidade – que deve ser compreendida como a história da constituição e reconstituição contínua de uma multiplicidade de programas culturais, que assumem formas institucionais e ritmos variados –,24 a reação católica a ela implica abordar 22 SOLANS, Francisco Javier Ramón. Le triomphe du SaintSiège (1799-1823). Une transition de l’Ancien Régime à l’ultramontanisme? Siècles, v. 43, p. 1-12, 2016. (tradução nossa) 23 Ibid. 24 Segundo Eisenstadt, tal compreensão da modernidade desdobrase em duas evidências: a primeira delas “é que modernidade e ocidentalização não são idênticas”; a segunda é “o reconhecimento de que essas modernidades não são ‘estáticas’, encontrando-se 27 um processo complexo e não linear. Esse processo resulta “da evolução de relações de força entre tendências atuais e tradições” e que “não pararam de variar segundo o tempo, de um país a outro, e em função dos embates”.25 No Brasil, por exemplo, essa tendência do catolicismo encontrou condições concretas para sua ascensão apenas ao longo da segunda metade do século XIX. Compartilhando uma experiência comum a outros países latino-americanos – onde a secularização teve lugar a partir da crise das metrópoles coloniais –, a transição para a “modernidade política”26 não podia prescindir da religião como ingrediente civilizatório e elemento coesivo indispensável à formação da nação. Aliás, esse foi um ponto comum entre regalistas e ultramontanos, que, embora rivalizassem em modelos distintos de Igreja – episcopalista versus curialista –, operaram uma transição relativamente pacífica e consensual para o regime constitucional, garantindo ao catolicismo o status de religião oficial do Império sob o regime do padroado.27 Dessa forma, embora a independência e a subsequente formação do Estado nacional brasileiro em constante mutação. EISENSTADT, Shmuel N. Multiple Modernities. Daedalus, v. 129, n. 1, p. 1-29, 2000. 25 RÉMOND, Réligion et Société en Europe, op. cit., p. 110. (tradução nossa) 26 GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independencias: ensayos sobre las revoluciones hispánicas. Madrid: Encuentro, 2009. 27 SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Do regalismo pombalino ao regalismo imperial: herança e ruptura na formação do Estado nacional brasileiro. In: OLIVEIRA, Luiz Eduardo et al. (org.). Pombal e os Projetos de Brasil – reflexões em 28 tenham implicado reconfigurações profundas da religião em reposta às transformações operadas em outros planos – configurando contextos de “modernidade religiosa” –,28 o ultramontanismo neste país só assumiria uma postura mais intransigente, combativa e a antiliberal na segunda metade do século XIX, quando essa vertente do catolicismo foi respaldada pelas diretrizes da Santa Sé, combatendo o regalismo do Estado, a liberdade religiosa e de consciência, bem como outros supostos “erros da modernidade”.29 Assim, é possível afirmar que, no Brasil da segunda metade do século XIX, verificou-se algo semelhante ao que ocorreu em países europeus: a Igreja local, respondendo às transformações provocadas pelos avanços da secularização, torno do Bicentenário da Independência. Aracajú: Criação Editora; Lisboa: Theya, 2023, p. 27-48. 28 Conceito que remete às transformações operadas nas “formas como os individuos se relacionavam com o sagrado e com as instituições que o administravam”; as “funções e a organização dessas instituições”, bem como “os vínculos que estabeleciam até então com um poder civil, cujos fundamentos já não remetiam à religião herdada”, embora dela não pudessem prescindir. DI STEFANO, Roberto. Modernidad religiosa y secularización en la Argentina del siglo XIX. In: MARANHÃO FILHO, Eduardo Meinberg de Albuquerque (org.). Política, Religião e diversidades: Educação e Espaço Público. v. 1. Florianópolis: ABHR/ Fogo, 2018, p. 135 29 Para tanto, representantes do ultramontanismo, clérigos e leigos adaptaram taticamente suas estratégias de combate, valendo-se, por exemplo, dos recursos proporcionados pela imprensa periódica. SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Imprensa católica e identidade ultramontana no Brasil do século XIX: uma análise a partir do jornal O Apóstolo. Horizonte, v. 18, p. 542-569, 2020. 29 buscou inserir-se na soberania paralela e universal representada pelo poder pontifício. No entanto, enquanto na Europa essa soberania paralela surgiu em razão da incapacidade da Igreja de competir com os Estados no plano dos ordenamentos jurídicos, no caso brasileiro, onde vigorava o regime do padroado, o fortalecimento da autoridade pontifícia serviu para intensificar sua capacidade de concorrer com outros projetos de modernidade em voga.30 Em ambos os casos, é possível afirmar que, em resposta às transformações revolucionárias operadas desde o final do século XVIII, o catolicismo, em diversas circunstâncias, precisou transigir com a modernidade. Embora essa dinâmica já estivesse em curso anteriormente,31 foi a Revolução Francesa o marco fundamental que deflagrou a intransigência católica, a qual continuou a se desenvolver posteriormente. 30 SILVA, Ana Rosa Cloclet da; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. O século da secularização e a contribuição brasileira para a universalização do catolicismo. Rivista di Storia del Cristianesimo, v. 17, n. 2, p. 351-366, 2020. 31 Segundo Fantappiè, as estratégias de universalização do catolicismo no contexto da modernidade estavam em curso desde antes da Revolução Francesa, o que obrigou a própria Igreja romana a moldar suas relações jurídicas e institucionais com os Estados-nações e as respectivas igrejas nacionais. Para tanto, além da normatização – implementada por meio de figuras e instrumentos informativos específicos, representados pelas nunciaturas e os núncios, assim como pelas bulas, cartas encíclicas etc. –, a cúria pontifícia valeu-se de estratégias de “flexibilização” – que passavam por “adaptação” e “disciplinamento” –, de modo a conter as tensões entre os diferentes contextos e sua estrutura central e a normativa. FANTAPPIÈ, Carlo. La Santa Sede e il mondo in prospettiva storico-giuridica. Rechtgeschichte Legal History, n. 20, p. 332-335, 2012. 30 Contudo, até quando a perturbação causada pela propagação da onda revolucionária justificaria o intransigentismo? Que outros eventos posteriores, direta ou indiretamente relacionados à Revolução Francesa, reconfiguraram seu escopo? E qual a relação desse movimento com outras tendências do catolicismo, especialmente as propagadas após o Concílio Vaticano II (1962-1965)? O debate em torno da permanência de um catolicismo intransigente é complexo e divide opiniões. Émile Poulat, cuja obra permanece uma das principais referências para o caso francês, enxerga na intransigência o modelo estruturante do catolicismo ainda no pontificado de João Paulo II. Segundo ele, Contrariamente ao que usualmente se crê, o Vaticano II não remiu na causa nem modificou substancialmente este modelo [isto é, aquele estruturado em torno da centralização romana]. Ele, antes, procedeu a reequilíbrios, justificando aquisições, podando seus galhos secos, cujos efeitos os padres conciliares não eram capazes de supor. E, além disso, ele libertou energias, suscitou novas esperanças, tal como em 1891, a encíclica Rerum Novarum. Bem mais, por seu apelo à abertura, à renovação, pareceu legitimar e encorajar diretivas que tinham sido sempre consideradas suspeitas, se não condenáveis. Um período de turbulência e de confusão deveria seguir-se, dando a impressão de que tudo estava mudado, isto é, ou permitido, ou desatualizado, ou possível.32 Por outro lado, René Rémond considera que o catolicismo sempre foi plural, e “se o modelo intransigente foi 32 POULAT, Église contre bourgeoisie, op. cit., p. 292. (tradução nossa) 31 dominante de Pio IX a Pio XII, ele evoluiu progressivamente antes de ser abandonado pelos bispos no curso do Vaticano II”.33 Segundo o historiador, As instituições eclesiais não aceitaram à altura a convulsão provocada pela Revolução Francesa nas suas relações com a sociedade. Um século depois, já não se conformavam com os avanços da secularização, extravagantes ou rastejantes, que iam gradualmente desgastando a sua posição no Estado e na comunidade. Seguros como estavam de possuir a verdade de todas as coisas, como poderiam ter consentido em perder o status que lhes dava a sua eminente especificidade? Ficaram ainda menos tentados porque sentiram que a sociedade também teria tudo a perder: não são as Igrejas os princípios de uma organização harmoniosa do corpo social? […] No início do século XX, as Igrejas também continuaram a opor-se com toda a sua força às medidas que tendem dissociar sociedade e religião e apelar aos fiéis para se mobilizarem para a restauração da ordem tradicional.34 Nesse sentido, assim como a Revolução Francesa pode ser vista como a condição da intransigência católica no século XIX, o Concílio Vaticano II, por meio de sua proposta de aggiornamento da Igreja, acabou por suscitar uma nova forma de intransigentismo, que começou a se manifestar na resistência do Coetus Internationalis Patrum 33 MERCIER, Permanence d’un catholicisme intransigeant?, op. cit., p. 357. (tradução nossa) 34 RÉMOND, Réligion et Société en Europe, op. cit., p. 215-216. (tradução nossa) 32 (CIP) às orientações tomadas por esse Concílio convocado pelo Papa João XXIII, que tentou oficialmente conciliar a Igreja católica com o mundo moderno.35 No período pósconciliar, dois bispos continuaram a se opor frontalmente a esse espírito de conciliação: o bispo francês Mons. Marcel Lefebvre e o brasileiro Mons. Castro Mayer, da diocese fluminense de Campos de Goytacazes, dando origem a um tradicionalismo católico composto por diversos movimentos e que, hoje, ganha numerosos adeptos.36 Atualmente, alguns desses movimentos – “cuja ideologia não coincide necessariamente com o catolicismo intransigente” anterior ao Vaticano II –37 distinguem-se pelo teor conservador de seus alinhamentos políticos com governos de extrema direita.38 É este o caso no Brasil, onde há a atuação da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) e, mais recentemente, do Centro Dom Bosco (CDB), organizações formadas por católicos leigos que se autodefinem como “tradicionalistas”. 35 ROY-LYSENCOURT, Philippe. O Coetus Internationalis Patrum no Concílio Vaticano II: apresentação e resultados de uma pesquisa. Horizonte, v. 13, n. 38, p. 1051-1079, 2015. 36 CALDEIRA, Rodrigo Coppe. Os baluartes da tradição: o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II. Curitiba: CRV, 2011. 37 Tendência esta que não se reduz ao caso do Brasil. MERCIER, Permanence d’un catholicisme intransigeant?, op. cit., p. 361. (tradução nossa) 38 BARSALINI, Glauco. Religião, Política e Violência no Brasil: vivemos em uma Democracia ou em um Estado de Exceção? Interações, v. 15, n. 1, p. 108-120, 2020. 33 Além disso, o catolicismo intransigente é composto por uma multiplicidade de movimentos, cujas relações com a Santa Sé também variam. Embora para todos eles importe a questão litúrgica – sobretudo no que toca à defesa da missa tridentina –, alguns movimentos continuam seguindo a linha do arcebispo Marcel Lefebvre, que reconhece o Papa e a Santa Sé sem, contudo, obedecê-los em orientações opostas à tradição católica. Outros “realinham-se” com Roma e inserem-se no seio da própria Igreja, mesmo não estando profundamente de acordo com as orientações dela emanadas. Há, ainda, posturas francamente sedevacantistas, que não reconhecem a legitimidade dos pontificados desde Paulo VI, traduzindo-se atualmente em fortes oposições ao programa de reformas do Papa Francisco. Portanto, dadas as suas reconfigurações e dinâmicas diferenciadas, que se desdobram desde início do século XIX e que acompanham as variadas experiências históricas da secularização e os diferentes modelos de laicidade em cada país, o tema do intransigentismo demanda aproximações de caráter histórico, capazes de fornecer fundamentos empíricos para a compreensão de suas múltiplas manifestações, formas de presença nas sociedades contemporâneas e conexões internacionais. Diríamos mais: demanda uma radical historicização, que rejeita os usos normativos do próprio conceito de “intransigência”, obrigando-nos a proceder segundo o exercício de “flexibilização” pelo qual, segundo Antoine Prost, os conceitos e categorias analíticas “perdem seu rigor, cessam de ser utilizados sob a forma absoluta para receberem imediatamente uma especificação”.39 39 PROST, Antoine. Doze Lições sobre a História. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008, p. 127. 34 Nesse sentido, justifica-se a proposta da coletânea presente, fruto da interlocução e parceria entre pesquisadores vinculados a duas Pontifícias Universidades Católicas brasileiras (PUC-Campinas e PUC Minas) e à Université Laval, de Quebec (Canadá). Os autores que contribuem com seus respectivos capítulos participaram das mesas e conferências que compuseram o Colóquio Internacional “História do Catolicismo no Brasil: debatendo as múltiplas faces do intransigentismo”, sediado pelo Programa de PósGraduação em Ciências da Religião da PUC-Campinas, em maio de 2023, evento que deu ensejo a um debate profícuo e imprescindível aos estudos sobre o catolicismo no Brasil.40 Afinal, aborda um tema que, embora tornado objeto de estudos nos últimos cinquenta anos, especialmente na França e na Itália, revela-se ainda incipiente na historiografia brasileira, marcada pela chave interpretativa proveniente da “Teologia da Libertação” e sua “opção preferencial pelos pobres”, que representou uma das formas de recepção do Concílio Vaticano II na América Latina. Tal viés tendeu a realçar as forças progressistas do catolicismo, deixando de fora – talvez propositalmente – outras tendências designadas pelos conceitos de ultramontanismo, tradicionalismo, conservadorismo, integrismo, reacionarismo etc. Dessa forma, para além de alguns trabalhos cronológica e geograficamente 40 Deste evento resultou o dossiê “A Igreja católica perante o mundo Moderno: debatendo o intransigentismo”, cujo editorial constitui uma versão preliminar do texto ora apresentado no formato de Introdução. SILVA, Ana Rosa Cloclet da; CALDEIRA, Rodrigo Coppe. A intransigência católica como resposta ao mundo moderno. Revista Reflexão, v. 48, p. 1-8, 2023. 35 circunscritos, nenhuma síntese global foi produzida sobre o tema até o momento, justificando esforços no seu estudo comparado, a partir de escalas que vão do local ao global. Nas páginas que seguem, os leitores encontrarão uma primeira iniciativa no sentido de preencher esta lacuna, seja por meio dos dados empíricos que embasam pesquisas em curso no Brasil, Canadá e França, seja pelas referências bibliográficas com as quais cada autor dialoga criticamente. Embora esse “movimento pendular entre o que se tem por sabido e as evidências empíricas da sua incompletude”41 não constitua exatamente uma novidade na produção do conhecimento histórico, permanece como condição imprescindível para aquele exercício de “elucidação historiográfica”, definido por Dominique Julia como a “ferramenta por meio da qual é possível assumir a herança que pesa sobre o domínio preciso de que nos ocupamos e traçar os seus limites”.42 41 JANCSÓ, István. Brasil e brasileiros – Notas sobre modelagem de significados políticos na crise do Antigo Regime português na América. Estudos Avançados, v. 22, n. 62, 2008, p. 257. 42 JULIA, Dominique. A religião: história religiosa. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (org.). História: novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 125. O Catolicismo intransigente Gilles Routhier Mais conscientes das exigências éticas do que costumavam ser, os investigadores agora são frequentemente solicitados a declarar seus interesses quando realizam pesquisas, assim como a explicitar seus preconceitos. Sinto a mesma exigência quando faço uma apresentação sobre o catolicismo intransigente. A expressão não é neutra. Designa uma postura na qual algumas pessoas reconhecem-se, ou pode ser tomada como uma categoria que nos permite classificar um grupo pessoas que consideramos afiliadas a essa forma de catolicismo. É grande o risco de se desenvolver uma narrativa maniqueísta, em que há “bons” e “maus”. O risco é aumentado em um mundo e em uma Igreja polarizados, como é o caso na atualidade. Mesmo se quisesse dar um passo atrás, estou inevitavelmente falando a partir de um contexto e, mesmo que quisesse ser o mais sereno, matizado, benevolente e neutro possível em minha descrição, não posso escapar de algumas preferências. Mesmo que não tenhamos a intenção de fazer isso, ainda assim arriscamos dizer coisas que ofendam ou magoem quem as ouve, pois nossas palavras chegam a um leitor excessivamente sensível, de uma sensibilidade prejudicada por brigas ou exclusões passadas. 38 O tema da recepção já foi exaustivamente por mim trabalhado; não pude ignorar que sempre há uma distância não apenas entre as intenções do orador e o que ele diz, mas, acima de tudo, entre o que é dito e o que é recebido e compreendido. Por isso, estou caminhando na ponta dos pés por esse controverso e polêmico objeto: o intransigentismo católico. Tentarei descrevê-lo e, sobretudo, entendê-lo nas páginas que seguem. Cabe distinguir a intransigência do radicalismo, dois termos que podem ser facilmente confundidos. A radicalidade pertence ao cristianismo e, de modo mais amplo, às religiões. Não é um fenômeno excepcional e, sobretudo, não deve ser vista como uma perversão do cristianismo, especialmente se entendermos que seguir Cristo exige uma escolha clara, decisiva, franca e radical. Neste sentido, o cristianismo é intransigente. Esse radicalismo pode ser encontrado em toda a sua história, ilustrado, por exemplo, pelo movimento monástico e pelos vários movimentos de reforma. Por outro lado, Cristo não é duro, rígido, inflexível, intratável ou intolerante, sinônimos estes de uma pessoa intransigente. Cristo e, seguindo seus passos, o cristianismo não são intransigentes. Assim, precisamos ser claros quanto ao que queremos dizer com intransigência. Portanto, no que se constitui a intransigência católica? Uma relação conflituosa com o mundo moderno Um primeiro marcador, de natureza genética, na esperança de que ele possa lançar alguma luz, é uma resposta à questão: quais são as circunstâncias que tornam o catolicismo intransigente? A primeira resposta é simples, mesmo que 39 precise ser complementada: é no desenvolvimento de sua relação com o mundo (o Estado, a sociedade, a cultura, a ciência etc.) que o cristianismo desenvolve uma forma de intransigência e é, sobretudo, quando está em minoria e quando é atacado, que tende a se tornar intransigente. O cristianismo é colocado em uma situação de alteridade radical pelo encontro com o outro, pela exposição à diferença, pelo confronto com o que é distinto, e é por meio do confronto com o estrangeiro que o cristianismo arrisca tornar-se intransigente. Até agora, não analisei as coisas do ponto de vista da personalidade ou da psicologia dos atores intransigentes, mas sim do ponto de vista da situação social e cultural que favorece o desenvolvimento da intransigência. Confrontado com a diferença, especialmente quando é ameaçado e desafiado, o cristianismo, como outros movimentos religiosos, sociais, políticos ou culturais, tem o potencial de se tornar intransigente, endurecer-se, tornar-se intolerante e afirmar-se por meio de estratégias de exclusão e do desenvolvimento de uma identidade polêmica, que parece ser uma medida de proteção. A situação social em que uma pessoa ou um grupo encontra-se é caracterizada por três aspectos: 1) um encontro com a alteridade, que questiona sua identidade, sua visão de mundo e sua forma de entendê-los, de entender suas referências, suas convicções e seu lugar na sociedade; 2) a situação de minoria em que se encontra para enfrentar essa nova situação; e 3) o fato de se sentir ameaçado, rejeitado, à margem, pressionado ou atacado por esse “novo mundo” que desestrutura seu universo. Esses três elementos cruzam-se e 40 apoiam-se mutuamente. Todavia, a combinação entre eles não é suficiente para desenvolver uma postura intransigente. A situação deve provocar insegurança em um indivíduo ou grupo, ou ser subjetivamente percebida como uma ameaça à identidade e à sobrevivência do grupo ou indivíduo que deve ser combatida. Os indivíduos ou grupos que perceberem essa nova situação como uma agressão, uma declaração de guerra ou o início de hostilidades endurecerão sua posição e tornarse-ão intransigentes. Quando o inimigo for identificado, não hesitarão em lutar. Entretanto, outra atitude é possível, e, provavelmente, várias outras atitudes e estratégias são possíveis. Um exemplo disso é a leitura sapiencial que João XXIII fez da situação mundial no início da década de 1960. Cito apenas duas passagens; a primeira delas é da Constituição Apostólica Humanae Salutis, de 25 de dezembro de 1961, em que ele dedica um parágrafo às convulsões dos tempos modernos, intitulado “Averiguações dolorosas”: A Igreja assiste, hoje, à grave crise da sociedade. Enquanto para a humanidade surge uma era nova, obrigações de uma gravidade e amplitude imensas pesam sobre a Igreja, como nas épocas mais trágicas da sua história. Trata-se, na verdade, de pôr em contacto com as energias vivificadoras e perenes do evangelho o mundo moderno: mundo que se exalta por suas conquistas no campo da técnica e da ciência, mas que carrega também as consequências de uma ordem temporal que alguns quiseram reorganizar prescindindo de Deus.1 1 JOÃO XXIII. Constituição Apostólica Humanae Salutis. 1961. § 3. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-xxiii/pt/ 41 Angelo Guiseppe Roncalli ( João XXIII) certamente estava ciente de que o mundo de sua infância em Bérgamo era coisa do passado e de uma era passada. Sabia disso pela sua experiência de alteridade e pela diferença que desafiava o catolicismo de sua infância. Todavia, tendo vivido durante duas guerras mundiais, na Bulgária e depois na Grécia e na Turquia – ou seja, fora do Ocidente católico –, enfrentou esse desafio à tradição católica de uma maneira diferente. De fato, João XXIII é o único papa do século XX que teve a experiência de viver, como católico, em uma situação de minoria em mundos não católicos, na fronteira entre o Oriente e o Ocidente. Primeiramente, foi Vigário Apostólico na Bulgária (1925-1934), em um mundo ortodoxo que nunca havia conhecido antes; esteve em missão em um complexo país dos Bálcãs, às portas, de um lado, da Turquia secular – embora marcada pela presença do islamismo – e, de outro, da Rússia ortodoxa, bolchevique e oficialmente ateia. Em seguida, serviu como delegado apostólico na Grécia e na Turquia (1934-1944), onde entrou em contato com um Estado ortodoxo confessional (Grécia) e com o secularismo do regime de Atatürk (Turquia). Embora fizesse parte de uma minoria e fosse um estrangeiro, seus cadernos de anotações nos dizem que Roncalli estava longe de viver à margem da vida desses países, especialmente durante a guerra. Ao contrário, participou da vida local, comprometendo-se totalmente, como pastor e irmão, com o seu povo. Muitas vezes informalmente e à margem do protocolo, seus contatos frequentes com a apost_constitutions/1961/documents/hf_j-xxiii_apc_19611225_ humanae-salutis.html. 42 hierarquia ortodoxa na Turquia e na Grécia, em uma época em que as relações entre católicos e ortodoxos estavam em baixa, já anunciavam o Vaticano II. Seu respeito pelas leis destes dois Estados – o primeiro secular e o segundo confessional, nos quais a Igreja Católica representava uma minoria insignificante, e onde Roncalli tivera uma posição marginal, tendo, inicialmente, o estatuto de bispo católico e representante não reconhecido da Santa Sé na Bulgária – marcou uma experiência única que lhe permitiu repensar a posição da Igreja na sociedade e em relação ao Estado. Portanto, João XXIII enfrentava um novo mundo e estava ciente de que “a Igreja hoje está testemunhando uma grave crise na sociedade humana, que está caminhando para grandes mudanças”.2 Viver em contato com o comunismo, nas fronteiras do bloco soviético, em uma sociedade secular (Turquia) dominada pelo islamismo e em um país onde a religião ortodoxa é a religião oficial do Estado (Grécia) provavelmente tornou-o consciente de sua condição de minoria, relegado às margens da sociedade, o que desafiava seu universo católico, com suas referências e sua visão de mundo. Na nova sociedade que se desenvolvia às vésperas do Concílio – essa “nova era”, como a chamou –, ele estava bem ciente de que “vastas tarefas aguardam a Igreja, como tem sido o caso em todos os períodos difíceis”. Assim, ele não era desatento, nem ingênuo. Entretanto, essa situação perturbadora não fez de João XXIII um homem de combate, em oposição ao contexto que encontrou. Era um homem que havia sido treinado no 2 Id. 43 catolicismo social, que representava a ponta de lança do catolicismo intransigente, sob o episcopado de seu mestre, Radini-Tedeschi. Ele entendeu que o que é exigido dele agora é infundir as energias eternas, vivificantes e divinas do Evangelho nas veias do mundo moderno, um mundo que se orgulha de suas últimas conquistas técnicas e científicas, mas que está sofrendo as consequências de uma ordem temporal que alguns tentaram reorganizar ignorando Deus.3 O que ele tem em mente é o Evangelho “nas veias do mundo moderno”, marcado pela ciência e pela tecnologia, um mundo que alguns querem reorganizar sem Deus. Em suma, João XXIII não quer restaurar a velha ordem, mas infundir o Evangelho na modernidade. O próximo parágrafo de sua Constituição Apostólica, intitulado “Motivos de confiança”, é ainda mais revelador. Embora nos lembrem da necessidade de vigilância, as “dolorosas averiguações” do parágrafo anterior não criam a angústia que ele observou em muitos de seus contemporâneos: Estas dolorosas averiguações conclamam ao dever da vigilância e despertam o senso da responsabilidade. Almas sem confiança veem apenas trevas tomando conta da face da terra. Nós, porém, preferimos rearmar toda a nossa confiança em nosso Salvador, que não se afastou do mundo, por ele remido. Antes, mesmo, apropriando-nos da recomendação de Jesus, de saber distinguir “os sinais do tempo” (Mt 16,3), pareceu-nos vislumbrar, no meio de tanta treva, não poucos indícios que dão sólida esperança de 3 Id. 44 tempos melhores para a Igreja e a humanidade. Pois mesmo as guerras sangrentas que se seguiram em nossos tempos, as ruínas espirituais causadas por tantas ideologias e os frutos de experiências tão amargas, não se processaram sem deixar úteis ensinamentos. E o progresso científico, que deu ao homem a possibilidade de criar instrumentos catastróficos para a sua destruição, fez com que se levantassem interrogações angustiosas: obrigou os seres humanos a se tornarem mais ponderados, mais conscientes dos próprios limites, mais desejosos de paz, atentos à importância dos valores do espírito; acelerou o processo de mais estreita colaboração e mútua integração entre os indivíduos, classes e nações, à qual, embora entre mil incertezas, parece já encaminhada a família humana. Tudo isto facilita, sem dúvida, o apostolado da Igreja, pois muitos que ontem não percebiam a importância de sua missão, hoje, ensinados pela experiência, estão mais dispostos a acolher suas advertências.4 Sua leitura sapiencial e espiritual da História opõese à leitura apocalíptica ou catastrófica que era comum na época em que a Igreja sentia-se como uma “fortaleza sitiada”. João XXIII não ignorava os males que afligiam o mundo, mas queria olhar para além deles, ver a história no plano de Deus e a confiança que sentia nele. Em um nível mais profundo, sua visão do mundo o levou a discernir os “sinais dos tempos”, uma expressão que se tornou popular no Concílio.5 Em sua opinião, o progresso técnico e as 4 Ibid., § 4. Grifos do autor. 5 ROUTHIER, Gilles. “Les signes des temps”. Fortune et infortune d’une expression du concile Vatican II. Transversalités, n.118, p. 79-102, 2011. 45 perturbações estariam causando ansiedade e levando as pessoas a se questionarem. O que as tornava propensas a uma nova abertura para os bens espirituais, representando uma oportunidade para a Igreja. O discurso de abertura do Concílio, em 11 de outubro de 1962, foi na mesma linha. Aqui, também, João XXIII distanciou-se de uma leitura apocalíptica do mundo moderno. Sua passagem sobre os profetas da desgraça foi citada e comentada com frequência: No exercício cotidiano do nosso ministério pastoral ferem nossos ouvidos sugestões de almas, ardorosas sem dúvida no zelo, mas não dotadas de grande sentido de discrição e moderação. Nos tempos atuais, elas não veem senão prevaricações e ruínas; vão repetindo que a nossa época, em comparação com as passadas, foi piorando; e portam-se como quem nada aprendeu da história, que é também mestra da vida, e como se no tempo dos Concílios Ecumênicos precedentes tudo fosse triunfo completo da ideia e da vida cristã, e da justa liberdade religiosa. Mas parece-nos que devemos discordar desses profetas da desventura, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo. No presente momento histórico, a Providência está-nos levando para uma nova ordem de relações humanas, que, por obra dos homens e o mais das vezes para além do que eles esperam, se dirigem para o cumprimento de desígnios superiores e inesperados; e tudo, mesmo as adversidades humanas, dispõe para o bem maior da Igreja.6 6 JOÃO XXIII, Discurso na abertura solene do SS. Concílio Gaudet Mater Ecclesia. 1962. § 2-4. Disponível em: https://www.vatican. 46 O que está em jogo é, acima de tudo, uma “maneira de ver as coisas”, uma maneira que João XXIII considera mal ajustada (a “falta de correção e equilíbrio”no modo das pessoas verem as coisas), que levaria a uma interpretação errônea do tempo presente. Em suma, seria uma maneira particular de ler a situação atual que levaria à posição representada pelo catolicismo integral. Segundo ele, o problema não era a situação atual em si, mas o que era visto e percebido “na situação atual da sociedade” pelos representantes desta vertente do catolicismo: “Eles veem apenas ruína e calamidade”, sem “reconhecer os misteriosos desígnios da Divina Providência [que] organizam tudo sabiamente para o bem da Igreja, até mesmo eventos contrários”.7 Enfim, é no diagnóstico que os católicos divergirão e dividir-se-ão, acabando por formar dois campos opostos. Eles dividir-se-ão, especialmente, sobre como denominar o presente e quais as estratégias a serem adotadas no mundo moderno. Experiência histórica como linha divisória Apresso-me a fazer uma advertência aqui, porque acho execrável dividir o mundo em dois campos e aplicar um esquema explicativo binário que constrói dois grupos opostos. Meus estudos sobre o Concílio Vaticano II muitas vezes me permitiram identificar outros fatores explicativos, e resisto, como é feito com frequência, a classificar alguns no grupo conservador e outros no grupo progressista. Mostrei, va/content/john-xxiii/pt/speeches/1962/documents/hf_j-xxiii_ spe_19621011_opening-council.html. Grifos do autor. 7 Id. 47 por exemplo, que o debate sobre liberdade religiosa obedece a uma lógica diferente. Quis ilustrar isso em um livro que editei, intitulado Le Concile au risque de l’histoire et des espaces humains.8 Por exemplo, se os bascos favoreciam mais do que os espanhóis o uso do vernáculo na liturgia, isso não se devia ao fato de os primeiros serem progressistas e os últimos conservadores, mas estava ligado à militância nacionalista e estava baseada na identidade dos primeiros. Também mostrei, com base em dois casos, que as linhas divisórias não estão simplesmente no relacionamento com a tradição.9 Isso fica claro em uma análise das intervenções dos bispos na discussão sobre liberdade religiosa, o principal documento do catolicismo intransigente. Pode-se pensar que todo o debate baseiase na fidelidade à tradição – as condenações dos séculos XVIII e XIX – como as posições tomadas por Siri, Morcillo, Velasco e muitos outros parecem indicar. Contudo, no final, o que é decisivo parece estar em outro lugar. Os bispos americanos, por exemplo, notadamente Spellman, que em outras questões poderia ser classificado como intransigente e conservador, leem os mesmos textos do passado, mas chegam a conclusões diferentes. Então, em que base os dois grupos diferem? Identifiquei o critério da experiência histórica, embora ele não seja o único. 8 ROUTHIER, Gilles (org.). Réceptions de Vatican II: Le Concile au risque de l’histoire et des espaces humains. Leuven: Peeters, 2004. 9 ROUTHIER, Gilles. L’élaboration de la doctrine sur la liberté religieuse et de l’enseignement conciliaire sur l’Église dans le monde de ce temps. Ephemerides theologicae lovanienses, v. 82, n. 4, 2006, p. 333-371. 48 Enquanto os oponentes da liberdade religiosa apelam constantemente para a autoridade da tradição, aqueles que falam a favor da declaração frequentemente apelam para a autoridade da experiência.10 De fato, o forte argumento a favor da liberdade religiosa apresentado pelo cardeal Conway (Irlanda), defendido no terceiro dia do debate, foi baseado na experiência. Seu relato sobre a privação, por quase dois séculos, do direito à liberdade religiosa na Irlanda não é único, e ele fala com base na experiência daqueles que foram privados deste direito na época, especialmente os fiéis das Igrejas que viviam atrás da Cortina de Ferro. Todo o episcopado polonês pareceu concordar, como demonstrado pela forte intervenção do bispo Baraniak.11 Os representantes dos episcopados da Iugoslávia e da Tchecoslováquia também apelaram para a experiência. O cardeal Seper (Iugoslávia) afirmou explicitamente refletir sobre a questão a partir de specif icis experientiis [experiências específicas]. Com base nisso, a liberdade religiosa parecia-lhe uma necessidade fundamental.12 O cardeal Beran (Tchecoslováquia), que dedicou seu primeiro discurso conciliar ao debate sobre liberdade religiosa após sua libertação da prisão alguns meses antes, também falou “ex experientia” [a partir da experiência] e “ex historia” [a partir da história]. De acordo 10 Distingui vários tipos de autoridade em “Introduction”, em: ROUTHIER, Gilles; JOBIN, Guy (org.), L’Autorité et les Autorités. L’herméneutique théologique de Vatican II. Paris: Cerf, 2010, p. 7-9. 11 Ver também os discursos de Wojtyla (AS, IV/2, p. 11-13) e de Wyszynski (AS IV/1, p. 387-390). 12 AS IV/1, p. 292. 49 com sua experiência, qualquer restrição à liberdade de consciência levaria à hipocrisia e corromperia a fibra moral e o espírito de um povo.13 Outro bispo da Europa Oriental, o cardeal Wyszynski (Varsóvia),14 também reivindicou a autoridade da experiência. Embora tenha apoiado francamente o objetivo da declaração “ut huiusmodi libertas salvetur” [que a liberdade possa ser preservada], ele pediu que ela fosse precedida por uma introdução que ajudasse a evitar a confusão, a má compreensão e a interpretação errônea que são frequentemente atribuídas a textos magisteriais na Europa Oriental. Entre os bispos ocidentais, o bispo de Oslo, D. Gran, que vivia em um país onde a religião luterana estava estabelecida e era oficialmente reconhecida, também fala explicitamente ex experientia.15 Da mesma forma, o discurso do cardeal Cardijn, um homem que teve o benefício de sessenta anos de experiência de trabalho com jovens em 13 Referindo-se à condenação de John Hus, ele mostra como a história de sua terra natal nos ensina que o recurso ao braço secular para fazer valer os direitos da Igreja, longe de servir ao progresso da desta instituição, instila um trauma duradouro na mente das pessoas que impede todo o progresso religioso. Com base nesses dois fundamentos, sua conclusão é vigorosa: “Sic historia quoque nos admonet, ut in hoc Concilio principium libertatis religiosae et libertatis conscientiae claris verbis et sine ulla restrictione, quae ex rationibus opportunisticis proflueret” [Assim, a história recorda-nos também que neste Concílio o princípio da liberdade religiosa e da liberdade de consciência foi expresso em termos claros e sem qualquer restrição que derivasse de razões oportunistas]. 14 AS, IV/1, p. 387-390. 15 Ver seu discurso, Ibid., p. 411-413. 50 todo o mundo, foi autoritário em virtude do conhecimento experimental que trouxe.16 Portanto, não há tradicionalistas e conservadores de um lado, e liberais progressistas de outro. Spellman, Conway, Wyszynski e muitos outros não são monumentos do progressismo, embora se manifestem a favor da liberdade religiosa. A influência de diferentes contextos políticos e diferentes experiências históricas na compreensão das pessoas sobre um problema doutrinário – o dos direitos da Igreja Católica na sociedade – torna-se, portanto, decisiva. As posições adotadas basearam-se em contextos locais e situações políticas específicas, como estados confessionais (muçulmanos ou cristãos, católicos ou não católicos), regimes de concordata ou separação onde a liberdade religiosa está consagrada na lei fundamental do país, estados totalitários e assim por diante. Enquanto os bispos espanhóis, que viviam sob o regime de concordata da Espanha de Franco, opunhamse à liberdade religiosa com a maior energia, os bispos da Europa Oriental, perseguidos pelas medidas de Stálin contra o catolicismo, exigiam-na, com quase tanto ardor, mas por motivos diferentes, quanto os bispos dos Estados Unidos, onde os católicos viviam em um país pluralista, cuja constituição garantia a liberdade em questões religiosas em seu primeiro artigo. Enquanto o esquema foi 16 Em uma carta para Bruxelas, datada de 14 de julho de 1965, Cardijn pediu ao padre Congar que o ajudasse a preparar um documento sobre o esquema (Fundo: Congar pro 1285). Ver também a outra correspondência entre Congar e Cardijn sobre liberdade religiosa e o Esquema XIII, Fundo: Congar pro 1279-1284. 51 apoiado timidamente pelos bispos da Europa Ocidental e com certa tibieza – se não com hostilidade total – pelo episcopado italiano,17 os bispos que viviam em países muçulmanos abraçaram a causa e não hesitaram em defendê-la. Considerada perigosa para as Igrejas da bacia do Mediterrâneo (especialmente Itália e Espanha) e para vários bispos latino-americanos, a Declaração sobre a Liberdade Religiosa [Dignitatis humanae] foi vista sob uma luz diferente em países com experiências históricas e estruturas políticas diversas. A maioria a favor do texto parecia ter que ser construída a partir de uma nova base e não deveria mais se apoiar no bloco de países europeus. Essa divisão é evidente em vários pontos em discussão, principalmente na questão do reconhecimento de uma religião específica ou de um estado confessional. Monsenhor Lourdusamy (de Bangalor, na Índia) estava convencido de que seria melhor remover qualquer referência a esse reconhecimento do esquema. Ele estava falando a partir de contexto político forte. Posições semelhantes foram tomadas pelos bispos do Líbano (Ziade e Doumith),18 falando em nome de mais de setenta bispos da África e da Ásia. Todos esses bispos viviam em países com forte presença e influência muçulmana. Sobre outra questão, a dos limites legítimos que os Estados podem impor à liberdade religiosa, as posições 17 Entretanto, houve algumas reservas notáveis, especialmente por parte do Cardeal Urbani. 18 Para a contribuição da Ziade, ver AS IV/1, p. 272-273, e para Doumith, AS IV/2, p. 13-14. 52 também variam de acordo com situações políticas específicas. A este respeito, o cardeal Wyszynski, em nome de todo o episcopado polonês, insistiu, até o fim, sobre o fato de que a concessão que permitia aos Estados restringir a liberdade religiosa, quando a ordem pública e a segurança assim o exigissem, deveria ser limitada.19 Portanto, torna-se claro que os diferentes contextos políticos tiveram uma grande influência sobre as posições tomadas. Alguns dos padres viram isso claramente, como o cardeal Jäger, que enfatizou muito o peso dos contextos históricos na avaliação dessa questão, lembrando de passagem que a sociedade medieval havia desaparecido e que, diante de novas circunstâncias históricas, a Igreja não podia resolver a questão apenas com base no ensinamento clássico, mas tinha que tratar em termos que agora eram diferentes. Essa questão dos contextos históricos também foi abordada por Meouchi e Slipyi, para citar apenas alguns. Como o cardeal Journet diria mais tarde, em sua tentativa de resumir as diferentes correntes que foram expressas na assembleia, o problema foi apreciado de forma diferente, dependendo da situação pastoral. A liberdade religiosa era vista como uma necessidade pastoral em países pluralistas, era claramente necessária em países sob 19 Ver carta a De Smedt (28 de outubro de 1965) e seu modus operandi sobre esse tema, bem como a resposta de De Smedt (5 de novembro), FDS 1651, 1653, 1654. Wyszinski resolveu votar contra o texto se ele não fosse emendado de forma satisfatória. Além disso, ele pediu que a observação que ele havia feito na aula sobre a distinção entre o vocabulário ocidental e marxista sobre essa questão fosse inserida no esboço. Ver FPRgn 1614 (14.11.65), p. 1. 53 o domínio do totalitarismo, era fortemente desejada em países de missão onde os católicos eram minoria (Índia, países muçulmanos, Oriente) e parecia suspeita em países mediterrâneos sob o regime da concordata (Itália, Espanha). Intransigente porque teórico Se alguns padres viram claramente a determinação histórica do debate, ligada a situações particulares e contextos específicos, esse fator escapa a muitos outros. Pouquíssimos bispos admitiram que suas posições estavam ligadas às suas respectivas experiências históricas ou aos seus contextos particulares. Isso demonstra o quanto levamos o debate para o nível doutrinário, sugerindo que a doutrina é a-histórica e universal, sobretudo nas vezes que pretendemos universalizar nossa posição. É neste sentido que, até o fim, o episcopado espanhol pressionou para que a Declaração sobre a Liberdade Religiosa fosse retirada da agenda conciliar. Mesmo após o encerramento do debate, em 17 de outubro, um grupo de bispos espanhóis enviou uma carta a Paulo VI denunciando a Declaração, não por motivos políticos, mas por motivos doutrinários. De acordo com estes bispos, a Declaração representou uma nova direção no Magistério doutrinário da Igreja Católica. Essa nova doutrina realmente constituía uma ruptura inaceitável, e o ensinamento dos pontífices romanos não podia ser abandonado ou contradito.20 Em 30 de outubro, J. Guerra 20 O número exato de signatários não é conhecido. Entre eles estão Arriba y Castro e o Cardeal Larraona, que, embora fosse cardeal da Cúria, juntou-se ao episcopado espanhol pela causa. Esse texto pode ser encontrado em IRIBARREN, Jesús. Papeles y memorias: medio siglo de relaciones Iglesia- 54 enviou algumas observações sobre o textus recognitus [texto revisado], observações que correspondiam, segundo ele, às preocupações fundamentais de um número bastante grande de padres, particularmente do episcopado espanhol.21 No segundo dia do debate, o patriarca maronita de Antioquia expôs o problema imediatamente: “Centum annis post illas condemnationes errorum saeculi praeteriti, contra veram notionem libertatis religiosae, a Pio IX, […], nostrum Concilium, in idem problema libertatis arduum, attentionem dirigit, sed cum mentalitatum et circumstantiarum historicarum diversitate”.22 A discussão, então, concentra-se menos na questão específica da liberdade religiosa e mais no desenvolvimento da doutrina, ou melhor, na natureza histórica dos desenvolvimentos Estado en España (1936-1986). Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1992. 21 FDS 1630 e o modus FDS 1631. Mais ou menos na mesma ocasião, os católicos catalães, a maioria deles ligados aos movimentos da Ação Católica, estavam fazendo ouvir uma voz diferente em sua “Mensagem dos Católicos de Barcelona aos Padres do Concílio” (28 de outubro de 1965, 2 páginas). A situação religiosa espanhola não foi apresentada como ideal, mas como um catolicismo em crise (um processo de descristianização, especialmente entre intelectuais, jovens e trabalhadores), caracterizado por uma “absoluta falta de respeito pelos direitos e liberdades da pessoa humana na vida pública e política” e pela opressão, especialmente com relação ao idioma, à cultura e às instituições catalãs. 22 “Cem anos depois das condenações dos erros do século passado, contra o verdadeiro conceito de liberdade religiosa, por Pio IX, […], o nosso Concílio volta a sua atenção para o mesmo difícil problema da liberdade, mas com mentalidades e em circunstâncias históricas diferentes” (AS, IV/1, p. 233). (tradução livre). 55 doutrinários. Eles estão sujeitos à evolução, conforme as mudanças de mentalidade e as circunstâncias históricas? Essa é a questão em jogo neste debate. Eu poderia continuar a demonstração submetendo outros dossiês para exame, em particular aquele sobre a linguagem litúrgica, que foi uma questão submetida a três comissões preparatórias, dedicadas, respectivamente, à liturgia, às missões e às Igrejas orientais. A primeira, dominada pelos ocidentais, que apesar de estarem na vanguarda da renovação litúrgica, propusera que o latim fosse mantido, especialmente para a oração eucarística. Os orientais eram abertamente a favor do uso de línguas vernáculas, assim como a Comissão de Missões. Assim, pode-se concluir que, quanto mais afastados da cultura ocidental, menos favoreciam o latim. A divisão da assembleia conciliar sobre a declaração Nostra Aetate [Nossa Era],23 sobre religiões não cristãs, também não se baseou na divisão entre progressistas e tradicionalistas. Os “orientalistas”, em particular o atriarca Maximos IV, que tinha a reputação de ser aberto em várias questões, estavam unidos em sua oposição ao projeto. A mesma divisão pode ser vista em alguns capítulos da segunda parte da Constituição Gaudium et Spes [Alegria e Esperança], especialmente quando se trata de discutir questões econômicas ou guerra e paz. Em suma, não faz sentido resolver tudo com base em uma grade interpretativa que divide o mundo em um grupo 23 Ou Declaração sobre a Relação da Igreja com as Religiões Não-Cristãs. (N.E.) 56 de tradicionalistas e um grupo de progressistas. Concordo com a observação do historiador francês Jean-Marie Mayeur, que escreve: Observadores, ensaístas e historiadores concordam prontamente que, no catolicismo contemporâneo, há um choque entre duas escolas de pensamento e duas tradições: intransigente e liberal, conservadora e progressista, direita e esquerda, a última preocupada em adaptar a Igreja ao mundo moderno, a primeira hostil a qualquer transformação. Os jornalistas que, há alguns anos, descreveram os debates conciliares adotaram esse esquema de interpretação, para o qual não faltaram referências históricas. De fato, há uma boa dose de verdade em tal representação. Para nos convencermos disso, precisamos apenas pensar na intensidade dos conflitos que colocaram duas tradições espirituais uma contra a outra por mais de um século. Veuillot e Montalembert, l’Action Française e le Sillon, l’Aube e l’Écho de Paris, Témoignage chrétien e la France catholique – esses pares antagônicos simbolizam, até hoje, um confronto que, muito além do político e do social, refere-se a mentalidades e psicologias, espiritualidades e teologias que são singularmente diferentes. Como todas as explicações dualistas, tal esquema exige, para ser aceitável, uma preocupação constante com as nuances e a complexidade da realidade. Tampouco é óbvio que esse esquema de explicação, que é válido para a compreensão da história da Igreja após a Revolução Francesa, possa ser aplicado fora do universo mental em que nasceu, ou que permita uma compreensão adequada das mudanças e crises da Igreja pósconciliar. Mas essa é outra história […] a validade de um sistema de explicação […] pode não ser 57 suficiente para dar conta de todos os aspectos de uma realidade cuja riqueza ainda não foi esgotada pela investigação histórica.24 Doutrina, tradição e história Gostaria de voltar brevemente ao debate conciliar sobre liberdade religiosa, uma questão que estava no centro da rejeição do Concílio Vaticano II pelos católicos intransigentes. Para me limitar ao debate do primeiro dia (que contou com oito contribuições), podemos dizer que a polêmica partiu de dois a priori e duas estruturas epistêmicas diferentes. Por um lado, os discursos dos bispos estadunidenses (Spellman e Cushing) são baseados em solicitações atuais: “Cum praesertim in hodiernis…”; “est hodie necessitas pastoralis primi ordini”.25 Ambos referemse ao contexto pastoral: a credibilidade da Igreja com os Estados Unidos e com os não católicos, para Spellman, e a credibilidade da Igreja na proclamação do Evangelho, para Cushing; ambos referem-se ao mundo concreto, à 24 MAYEUR, Jean-Marie. Catholicisme intransigeant, catholicisme social, démocratie chrétienne. Annales. Économies, sociétés, civilisations, 27ᵉ année, n. 2, p. 483-499, 1972. René Rémond destacou com veemência as dimensões desse conflito, mencionado por Mayeur. Ver RÉMOND, René. Droite et gauche dans le catholicisme français contemporain. Revue française de science politique, v. 8, n. 3, p. 529-544; 803-820, 1958. 25 “Visto que, sobretudo hoje em dia […], existe hoje uma necessidade pastoral de primeira ordem”. O discurso de Spellman havia sido preparado por John Courtney Murray (AS IV/2 p. 200). As várias formas de “hodie” são mencionadas cinco vezes no discurso de Cushing (AS IV/2 p. 215-216). 58 vida da Igreja e à vida das pessoas na sociedade, bem como às expectativas dos contemporâneos.26 Por outro lado, as intervenções de Ruffini e Siri, em particular, estão em outro nível: o da defesa do “ordo divinus” e da “lex divina” (Siri), um argumento mais tarde retomado pelo arcebispo Marcel Lefebvre. A primeira abordagem é concreta e histórica, baseando-se na pragmática do discurso, enquanto a outra é metafísica e não histórica. Também podemos considerar que, em um caso, há as pessoas – as quais são sujeitos de direito –, enquanto, no outro, há a verdade, a qual é objeto de um direito. Somos levados de volta à História, o que significa contexto,situação,pessoas concretas etc.Não há simplesmente doutrina de um lado e situações de outro, porque em ambos os casos estamos proclamando nossa fidelidade à doutrina. Isso é evidente nas intervenções dos bispos americanos, na maioria inspirados por John Courtney-Murray, que se esforçaram para demonstrar que o esquema não se opunha à doutrina tradicional da Igreja. A intervenção do cardeal Sehan (Baltimore) é exemplar nesse aspecto. Seu objetivo era destruir um dos principais argumentos dos oponentes do esquema explicativo: o da falta de fidelidade da Declaração sobre a Liberdade Religiosa à doutrina católica tradicional.27 Em uma argumentação firme e sistemática, Shehan analisa 26 A questão da credibilidade da Igreja será recorrente em intervalos regulares nesta discussão. Ela será abordada novamente no terceiro dia da discussão por Heenan e Baldassari. 27 AS, IV/1, p. 396-399. Ele afirma em sua introdução que essa doutrina também é confirmada pelas Escrituras, o que ele não tem como desenvolver em seu discurso. 59 os ensinamentos de Leão XIII, Pio XI, Pio XII e João XXIII, colocando em perspectiva os desenvolvimentos que podem ser observados durante um longo período e corrigindo as afirmações incorretas dos detratores do esquema. A demonstração é rigorosa e muito factual. A conclusão cai como uma fruta madura: “Doctrina… quæ invenitur in schemate est sana et salutifera et cum corpore doctrinae ab Ecclesia traditae omnino congrua”.28 Portanto, a questão não é se devemos recorrer à tradição, mas, na verdade, diz respeito ao caráter histórico da tradição e sua hermenêutica. Isso nos leva de volta ao problema de como ler a tradição em um contexto diferente – sem mencionar o fato de que a Declaração não se propõe a responder à mesma pergunta que os Papas de períodos anteriores. O problema subjacente é o da relação com a História, sobretudo a historicidade da tradição e a condição histórica do leitor, que naturalmente remete à sua experiência. Em suma, a linha divisória entre os dois grupos é traçada pelo tipo de relação com a tradição: uma tradição reificada, descontextualizada e desvinculada de seus acervos históricos, ou uma tradição relida a partir de uma história, contextos e experiências particulares. A tensão sobre a tradição na época do Concílio tornou-se uma questão central no momento de sua recepção e no desenvolvimento de um novo movimento de catolicismo intransigente. Já em 1969, a implementação do Concílio foi 28 “A doutrina […] encontrada no esquema é sólida e salutar e inteiramente consistente com o corpo de doutrina transmitido pela Igreja”. (tradução livre) 60 atacada, porque o novo Ordo missae não era fiel à tradição, com base no fato de que a teologia que ele incorporava não estava conforme o ensinamento de Trento.29 Para os opositores do Concílio, o ensinamento do Vaticano II representou uma séria ruptura com a tradição, entendida como um conjunto de declarações magisteriais, particularmente com relação aos ensinamentos pontifícios da segunda metade do século XIX e da primeira metade do século XX.30 Essa oposição ao Concílio e às reformas conciliares em nome da tradição foi expressa em um texto-manifesto de rara violência, publicado pelo arcebispo Lefebvre apenas alguns dias após a visita apostólica ordenada pela comissão de cardeais criada por Paulo VI para lidar com o problema levantado pela Sociedade de São Pio X,31 que foi um prelúdio para o suspense a divinis, que ocorreu em 22 de julho de 1976: 29 Ele inclui o Breve esame critico del Novus Ordo Missae dirigido a Paulo VI pelos cardeais Ottaviani e Bacci, em 25 de setembro de 1969. O texto foi publicado na revista “tradicionalista” Itinéraires. Chroniques et Documents, v. LXVII, n. 138, p. 22-24, 1969. Para conhecer a história desse texto, consulte SENÈZE, Nicolas. La crise intégriste. Vingt ans après le schisme de Mgr Lefebvre. Paris: Bayard, 2008, p. 75-76. Ver também MALLERAIS, Bernard Tissier de. Marcel Lefebvre, une vie. Étampes: Clovis, 2002, p. 420. Ele foi inspirado, se não escrito, por Gérard des Lauriers, um colaborador próximo do arcebispo Lefebvre, que participou do projeto. 30 Ver, em particular, sua apresentação sinóptica de algumas das “proposições afirmadas pelo Vaticano II em Dignitatis humanae”, em comparação com algumas das “proposições condenadas por Pio IX em Quanta Cura em LEFEBVRE, Marcel. Ils l’ont découronné. Du libéralisme à l’apostasie. La tragédie conciliaire. Escurolle: Fideliter, 1987, p. 183-184. 31 O texto foi publicado em 21 de novembro de 1974. 61 Aderimos de todo o coração, com toda a nossa alma, à Roma católica, guardiã da fé católica e de suas tradições necessárias para a manutenção dessa fé, à Roma eterna, mestra da sabedoria e da verdade. Por outro lado, nós nos recusamos e sempre nos recusaremos a seguir as tendências neomodernistas e neoprotestantes de Roma, que se manifestaram claramente no Concílio Vaticano II e, depois do Concílio, em todas as reformas que dele resultaram.32 Essa maneira de se cobrir com o manto da tradição e fazer dela a bandeira de sua cruzada contra o Concílio rendeu Lefebvre uma severa repreensão de Paulo VI, na qual a noção de Tradição ocupa um lugar central (13 ocorrências) no argumento: Você afirma estar sujeito à Igreja, fiel à Tradição, pelo simples fato de obedecer a certas normas do passado, ditadas pelos predecessores daquele a quem Deus agora conferiu os poderes dados a Pedro. Isso significa que, também nesse ponto, o conceito de “Tradição” que você invoca está distorcido A Tradição não é um fato fixo ou morto, uma espécie de fato estático que bloquearia, em um determinado momento da história, a vida desse organismo ativo que é a Igreja, ou seja, o corpo místico de Cristo. Cabe ao papa e aos concílios fazer um julgamento para discernir, nas tradições da Igreja, o que não é possível renunciar sem infidelidade ao Senhor e ao Espírito Santo – o depósito da fé – e o que, 32 Ver também sua homilia nas ordenações em junho de 1976, que levou ao suspense a divinis: “Essa nova missa é um símbolo, uma expressão de uma nova fé, uma fé modernista”. Ou ainda, como afirmava: “O concílio, dando as costas à Tradição e rompendo com a Igreja do passado, é um concílio cismático”. MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 513-514. 62 ao contrário, pode e deve ser atualizado, a fim de facilitar a oração e a missão da Igreja através da variedade de tempos e lugares, para melhor traduzir a mensagem divina na linguagem de hoje e para melhor comunicá-la, sem comprometimentos indevidos. Portanto, a Tradição não pode ser separada do Magistério vivo da Igreja, assim como não pode ser separada da Sagrada Escritura […].33 Paulo VI não apenas critica o arcebispo Lefebvre por operar com um conceito distorcido de Tradição – uma ideia à qual o papa retorna mais tarde em sua carta –,34 como também especifica de que forma esse conceito é errôneo. Segundo ele, o erro consiste em identificar a “Tradição” com “certas normas do passado” ou com “tradições”; em outras palavras, consiste em identificá-la com uma forma de expressão histórica e contingente da “Tradição”. Essa concepção fixista não deixa espaço para a Igreja ser o sujeito da Tradição, o que Paulo VI afirma. Pouco depois de sua eleição, João Paulo II recebeu o arcebispo Lefebvre, em 18 de novembro de 1978. Repetindo um trecho do discurso do papa ao consistório em 5 de novembro, Lefebvre disse estar pronto para “aceitar o Concílio lido à luz da Tradição”.35 Aqui, mais uma vez, 33 Ver a carta de Paulo VI ao arcebispo Lefebvre, de 11 de outubro de 1976. Disponível em: https://lacriseintegriste. typepad.fr/weblog/1976/10/lettre-de-paul.html. 34 De acordo com Paulo VI, fazer uma concessão disciplinar em questões litúrgicas “seria para nós aceitar a introdução de uma concepção seriamente errônea da Igreja e da Tradição”. 35 Em 5 de novembro, em seu discurso na abertura do consistório, João Paulo II declarou que não poderíamos “correr presunçosamente 63 revisitou a noção de Tradição. Seguiu-se uma fase de conversações, que culminou com o envio, pelo arcebispo Lefebvre, de uma minuta de acordo a João Paulo II (16 de outubro de 1980). Nessa minuta, o arcebispo Lefebvre escreveu que estava preparado para aceitar “o Concílio à luz da tradição”.36 Como aponta o biógrafo do bispo de Écône, D. Lefebvre pretendia aplicar “o critério da tradição aos vários documentos do Concílio para saber o que deveria ser mantido, o que deveria ser esclarecido e o que deveria ser rejeitado”.37 Mais tarde, ele esforçar-se-ia para mostrar que, interpretado “à luz de toda a Sagrada Tradição”, o Concílio não deveria conter nada de novo. Nas discussões que se seguiram com o novo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Ratzinger, a noção de tradição era onipresente. Assim, em sua resposta ao papa João Paulo II, em 5 de abril de 1983, D. Lefebvre voltou à sua concepção da interpretação do Concílio à luz da tradição, afirmando: Quanto ao primeiro parágrafo relativo ao Concílio, concordo prontamente em assiná-lo no sentido de que a Tradição é o critério para a interpretação dos à frente […] em direção a formas de ser cristão […] que não se abrigam sob o ensino integral do Concílio; integral, isto é, entendido à luz de toda a Sagrada Tradição e com base no magistério constante da Igreja”. 36 “Declaro também que concordo com as palavras de Sua Santidade João Paulo II sobre o assunto do Concílio Vaticano II, em 6 de novembro de 1979: “que ele deve ser interpretado à luz de toda a Sagrada Tradição e com base no magistério constante da Igreja”. 37 MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 529. 64 documentos, que é, além disso, o significado da nota do Concílio sobre a interpretação dos textos. Pois está claro que a Tradição não é compatível com a Declaração sobre Liberdade Religiosa […].38 Entre as soluções apresentadas, ele pediu “uma reforma das afirmações ou expressões do Concílio que são contrárias ao Magistério oficial da Igreja, especialmente na Declaração sobre Liberdade Religiosa, na Declaração sobre a Igreja e o Mundo e no Decreto sobre Religiões Não Cristãs etc.”. Não apenas a Tradição não é distinguida aqui do Magistério da Igreja, mas é identificada com um conjunto de declarações e proposições que são expressões datadas, contidas no ensinamento dos papas. Ela é um objeto, e a Igreja não é seu sujeito. Poderíamos continuar essa discussão, chegando até o discurso do papa Bento XVI à Cúria, em 22 de dezembro de 2005, no qual ele faz uma clara distinção entre expressões da Tradição e a própria Tradição.39 Nesse caso, é mais uma vez concebível que a Igreja seja o sujeito da tradição. Em suma, mais uma vez, na recepção do Vaticano II, a oposição não se dá entre tradicionalistas e progressistas, que constituem categorias inadequadas para descrever ambos os lados. De fato, seria uma honra muito grande dedicar a categoria de tradição e tradicionalistas aos cismáticos ou 38 Disponível em: https://lacriseintegriste.typepad.fr/weblog/1983/04/ lettre-de-mgr-lefebvre-%C3%A0-jeanpaul-ii.html 39 Ver ROUTHIER, Gilles. Sull’interpretazione del Vaticano II. L’ermeneutica della riforma, compito per la teologia, I e II. La Rivista del Clero italiano, v. XCII, n. 11-12, p. 744759; 827-841, 2011. 65 dissidentes de todos os tipos que não subscrevem o Concílio Vaticano II. Esse Concílio, ao contrário, é a expressão da tradição no sentido pleno do termo, transmitindo a fé que vem dos apóstolos em um novo contexto cultural. Durante esse Concílio, como foi o caso durante as outras assembleias conciliares, a Igreja tornou-se o sujeito da tradição. Émile Poulat escreveu que o catolicismo social e integral promovido por Leão XIII desfez-se sob Pio X, quando confrontado com problemas concretos de organização e orientação, particularmente no que toca à questão dos sindicatos.40 Em suma, tratava-se de situar as coisas na história. Elas não podiam ser abordadas de forma puramente teórica. Conclusão Isso nos aproxima de uma solução para nossa pergunta inicial: como nos tornamos intransigentes? Como dissemos, a situação social em que alguém ou algum grupo encontrase41 pode continuar sendo insuficiente para que a pessoa ou o grupo de pessoas torne-se intransigente. Juntamente com René Rémond, também enfatizamos os fatores psicológicos. Por fim, 40 POULAT, Émile. Église contre bourgeoisie: Introduction au devenir du catholicisme actuel. Tournai: Casterman, 1977, p. 109-134. 41 Uma situação que caracterizamos de três maneiras: 1) um encontro com a alteridade que questiona sua identidade, sua visão de mundo e sua forma de compreendê-lo, suas referências, suas convicções, seu lugar na sociedade; 2) a situação de minoria na qual ele é colocado para enfrentar essa nova situação; e 3) o fato de se sentir ameaçado, rejeitado à margem, pressionado ou atacado por esse “novo mundo” que desestrutura seu universo fornece um terreno fértil favorável. 66 insistimos na relação com a história concreta, com as realidades e com a historicidade das coisas, inclusive das doutrinas. Como Poulat ressalta, um mesmo movimento (catolicismo integral e social) desfez-se por causa de questões concretas e situacionais. Da mesma forma, em nível intelectual, sem cair no modernismo, algumas pessoas, como o padre Congar, quiseram concretizar na Igreja as exigências justas e legítimas feitas por certos pensadores que queriam integrar o pensamento moderno. Eles foram chamados de progressistas, por falta de uma categoria melhor. De certa forma, não estamos diante de uma nova disputa entre os antigos e os modernos, mas diante de ideólogos, no sentido definido pelo dicionário Larousse – “pessoa que vive no mundo das ideias, que ignora as realidades” –,42 e de realistas, no sentido de pessoas que levam em conta as realia, as situações concretas, o mundo real. Provavelmente, não se trata simplesmente de situar-se na linha de continuidade ou na linha de progresso, para usar as categorias de De Smedt em sua relatio que inaugurou o debate sobre Dignitatis humanae. É mais uma questão de situar a doutrina na história, como Bento XVI tentará fazer: É claro que em todos estes sectores, que no seu conjunto formam um único problema, podia emergir alguma forma de descontinuidade que, de certo modo, se tinha manifestado, de facto uma descontinuidade, na qual, todavia, feitas as diversas distinções entre as situações históricas concretas e as suas exigências, resultava não abandonada a continuidade nos princípios facto 42 Le Petit Larousse illustré. Paris, Larousse, 2024, p. 526. 67 que facilmente escapa a uma primeira percepção. É exatamente neste conjunto de continuidade e descontinuidade a diversos níveis que consiste na natureza da verdadeira reforma. Neste processo de novidade na continuidade devíamos aprender a compreender mais concretamente do que antes que as decisões da Igreja em relação às coisas contingentes por exemplo, certas formas concretas de liberalismo ou de interpretação liberal da Bíblia deviam necessariamente ser essas mesmas acidentais, justamente porque referidas a uma determinada realidade em si mesma mutável. Era preciso aprender a reconhecer que, em tais decisões, somente os princípios exprimem o aspecto duradouro, permanecendo subjacente e motivando a decisão a partir de dentro. Não são, por sua vez, igualmente permanentes as formas concretas, que dependem da situação histórica e podem, portanto, ser submetidas a mutações.43 O papa, portanto, distingue entre contextos, situações históricas concretas, fatos contingentes e formas concretas, por um lado, e princípios, por outro. Sem a história e o reconhecimento da historicidade da doutrina, o catolicismo integral, portador de um certo radicalismo, transforma-se em intransigência. De uma forma mais sutil, poderíamos retomar a caracterização de duas tendências na teologia observadas 43 BENTO XVI. Discurso do papa Bento XVI aos cardeais, arcebispos e prelados da cúria romana na apresentação dos votos de Natal, 22 de dezembro de 2005. Disponível em: https:// www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2005/ december/documents/hf_ben_xvi_spe_20051222_romancuria.html. 68 por Gerard Philips, durante a primeira sessão do Concílio.44 A primeira está “mais preocupada com a fidelidade à declaração tradicional, a outra está mais preocupada em divulgar a mensagem ao homem contemporâneo”. A primeira, poderíamos dizer, para usar as categorias do cardeal Suhard, vê tudo como “imutável e atemporal”, enquanto a segunda está mais atenta a pessoas em situações concretas. Em seus cadernos conciliares, Gerard Philips distinguiu entre “a teologia jurídica nocional e uma teologia aberta da revelação que leva em conta o trabalho científico moderno”, ou entre duas concepções: “a concepção angustiada que quer preservar as posições estabelecidas a todo custo, e a tendência que quer levar a mensagem do Evangelho à humanidade”.45 De sua parte, Henri de Lubac distinguiu os grupos da seguinte forma: Podemos dizer […] que há dois tipos de teólogos; alguns dizem: vamos reler as Escrituras, São Paulo etc.; vamos examinar a Tradição; vamos ouvir os grandes teólogos clássicos; não vamos nos esquecer de prestar atenção aos gregos; não vamos negligenciar a História; vamos situar os textos eclesiásticos nesse vasto contexto e entendê-los de acordo com ele; não vamos deixar de nos informar sobre os problemas, as necessidades, as dificuldades de hoje etc. Os outros dizem: releiamos todos os textos eclesiásticos dos últimos cem anos, encíclicas, cartas, discursos, decisões tomadas 44 PHILIPS, Gerard. Les deux tendances dans la théologie contemporaine, NRT, v. LXXXV, n. 3, p. 225-238, 1963. 45 Ver SCHELKENS, Karim (org.). Carnets conciliaires de Mgr Gérard Philips secrétaire adjoint de la Commission doctrinale. Leuven: Peeters, 2006, p. 114. 69 contra esta ou aquela pessoa, monita [avisos] do Santo Ofício etc.; a partir de tudo isso, sem deixar que nada se perca ou corrigir a menor palavra, façamos uma marchetaria, levemos o pensamento um pouco mais longe, demos a cada afirmação um valor mais forte. Acima de tudo, não vamos olhar para o mundo exterior. Não nos percamos em novas pesquisas sobre as Escrituras ou a Tradição, ou a fortiori sobre o pensamento recente, o que nos levaria a arriscar relativizar nosso absoluto. Somente o segundo tipo de teólogo é considerado “seguro” em um determinado meio.46 Outra testemunha, P. Vallain, distinguiu entre uma “teologia conceitual, racional, até mesmo racionalista” e uma “teologia viva, renovada pelas suas fontes… consistente com a mentalidade de hoje, mais tradicional…”.47 Finalmente, R. Laurentin fez distinção entre duas escolas teológicas: A primeira pensa em termos de noções e normas, e toma muito cuidado para torná-las irrefragavelmente claras e, se possível, inequívocas. Para ele, a tarefa da teologia é promover fórmulas dogmáticas irreformáveis, para reduzir as áreas de obscuridade onde a discussão teológica ainda é livre. Ela se ressente dessas hesitações, que são inconsistentes com a natureza monolítica da verdade. Portanto, ela está inclinada a definir e condenar. […] A outra escola pensa em termos da História da Salvação e da proclamação da “Boa Nova”, ou seja, do Evangelho, à humanidade. Ela insiste em manter contato, acima de tudo, com essa fonte jorrante e inesgotável. Daí a 46 LUBAC, Henri de. Carnets du concile. v. 1. Paris: Cerf, 2007, p. 53. 47 VALLAIN, P. Rythmes du monde, v. 1, 1963, p. 53. 70 importância que atribui ao […] reabastecimento, ou seja, o culto do retorno às fontes […] Quanto à raiz da divergência, ela é dupla. Há aqueles que tomaram o caminho da renovação e aqueles que não o tomaram.48 Refletindo sobre a teologia praticada pelo Concílio Vaticano II, Yves Congar observou que o Concílio tinha ido além da “mentalidade conceitualista”, com seu “ideal de definir exatamente os contornos de uma noção cuidadosamente isolada de outras e considerada em um contexto atemporal”. Em sua opinião, “o Concílio seguiu um caminho diferente, buscou uma abordagem mais concreta da realidade, uma abertura para as perguntas dos outros; muitas vezes, os fatos precederam e guiaram as ideias”.49 Ele continua esclarecendo seu pensamento: O conhecimento da verdade pode ser alimentado e enriquecido a partir de dentro, menos pelo raciocínio a partir de conceitos e palavras, como faziam os teólogos anteriores, do que pela contemplação e experiência da realidade da qual estamos falando, pela releitura das fontes que falam dela – a Sagrada Escritura em particular – com base nas perguntas das pessoas. No fundo, a diferença entre as duas atitudes era entre uma abordagem mais conceitual e uma abordagem real das coisas.50 48 LAURENTIN, René. L’enjeu du concilie: Bilan de la première session. Paris: Seuil, 1963, p. 29-34. 49 CONGAR, Yves. La théologie depuis 1939. In: CONGAR, Yves. Situation et tâches présentes de la théologie. Paris: Cerf, 1967, p. 21. 50 CONGAR, Yves. La théologie au Concile. Le ‘théologiser’ du Concile, em CONGAR, Situation et tâches présentes de la 71 Portanto, não se trata de criar um grupo de tradicionalistas ou conservadores, de um lado, e um grupo de progressistas ou liberais, de outro. A linha divisória está em outro lugar: entre aqueles que vivem no mundo concreto da história e aqueles que vivem no mundo dos conceitos e normas. A esse grupo pertencem os intransigentes. théologie, op. cit., p. 43. Pensar o catolicismo intransigente para o Brasil do século XIX Ítalo Domingos Santirocchi Yo vengo de una república, yo soy republicano, y también católico, apostólico y romano, ¡miradme!, soy también ultramontano.1 A frase foi dita pelo Bispo de Conceptíon, no Chile, Hipólito Sales, em 1870, na sessão de 24 de maio do Concílio Vaticano I, defendendo o seu voto pela infalibilidade papal. Algo parecido poderia ter sido dito por Zacarias de Góis e Vasconcelos, no senado imperial brasileiro. Ele foi um importante político, constitucionalista, liberal, católico apostólico romano e ultramontano.2 Fatos como 1 Bispo de Conceptíon, no Chile, Hipólito Sales, em 1870, na sessão de 24 de maio do Concílio Vaticano I. (apud SOLANS, Francisco Javier Ramón. ¿Una historia conceptual del ultramontanismo? Reflexiones en torno a la obra de Ítalo Domingos Santirocchi. Debates de Redhisel, v. 3, n. 2, 2019, p. 53. 2 Zacarias de Góis e Vasconcelos era um advogado e importante político brasileiro nascido na capitania do Rio de Janeiro, em 1815. Inicialmente, filiou-se ao partido conservador, ocupando muitos cargos eletivos e de nomeação imperial. Nos anos de 1860, alinhou-se, juntamente com uma dissidência dos conservadores, ao novo Partido Liberal, fundado oficialmente em 1870. Escreveu uma das mais duras crítica ao poder moderador de D. Pedro II, “Da natureza e limites do poder moderador”, de 1861. Católico e convicto ultramontano, atuou, 74 esse, de um liberal ou republicano declarando-se também católico ultramontano, são importantes para ilustrar como diferentes contextos criam dificuldades sérias aos conceitos, que não podem simplesmente ser transplantados. Também demonstram que, quando ampliamos a escala de análise, para além daquelas nacionais ou continentais, os conceitos precisam abarcar uma variedade de situações e complexidade maiores. Enquanto na América Latina a conivência do ultramontanismo com os constitucionalismos, liberalismos políticos e repúblicas foi algo constitutivo de sua formação, na Europa isso deu-se no combate a tais ideias. Essa variedade deveria ser mascarada no discurso ortodoxo da alta hierarquia católica, que buscou unificar as práticas. No presente texto, faremos o exercício de demonstrar os limites de determinados conceitos, não com a intenção de refutálos, mas para ampliar os debates que buscam aprimorá-los como instrumentos eficientes de análise historiográfica. O tema desta coletânea é o conceito que utilizaremos como objeto de reflexões no texto: “catolicismo intransigente”. A historiografia brasileira o tem utilizado pouco para analisar o catolicismo no Brasil do século XIX, diferentemente do XX. O conceito mais recorrente para aquele contexto é o de “catolicismo romanizado”, seguido pelo de “catolicismo em 1874, como advogado de defesa, do bispo D. Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira no Supremo Tribunal de Justiça, numa “Questão Religiosa” entre a Igreja Católica e a Maçonaria, a qual resultou na prisão do referido bispo Vital Maria, em 1872. OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles. Zacarias de Góis e Vasconcelos. São Paulo: Editora 34, 2002. 75 ultramontano”. Buscaremos, portanto, discutir sobre as possíveis contribuições que o conceito “catolicismo intransigente” pode trazer para a compreensão do catolicismo no Brasil oitocentista, bem como buscaremos perceber as suas similaridades e diferenças com os outros dois conceitos aqui citados. Primeiramente, buscaremos traçar as diferenças entre ultramontanismo e intransigência, focando o debate nos contextos da França e Itália. Em seguida, demonstraremos como o ultramontanismo é mais amplo e capaz de englobar em seu seio o catolicismo intransigente. Para tanto, traçaremos uma definição esquemática entre dois grupos: o catolicismo liberal e o catolicismo intransigente na Europa, demarcando suas diferenças. Isso é importante para demonstrarmos a nossa hipótese: que o episcopado ultramontano brasileiro oitocentista possuía não só características de ambos os grupos, mas, também, suas próprias. Nas tramas dos conceitos O conceito de catolicismo intransigente é muito pouco utilizado pela historiografia para analisar o catolicismo no Brasil do século XIX, tornando-se um pouco mais presente nos estudos sobre o período republicano. Mesmo assim, essa presença não é tão marcante, pois conceitos como restauração católica e integrismo são mais recorrentes. Existem algumas exceções, principalmente por parte de alguns historiadores formados na França, como é o caso, por exemplo, de Francisco José Silva Gomes (1991),3 que teve 3 GOMES, Francisco José Silva. Le Système de Néo Chrétienté dans le diocèse de Rio de Janeiro (1869-1915). 1991. Tese de doutorado – Université de Toulouse Le-Mirail, Toulouse, 1991. 76 um maior contato com a historiografia desse país e dialogou com ela, enquanto outros enfocaram o debate na tradição historiográfica luso-brasileira.4 Podemos dizer que, ao contrário de outros campos historiográficos, a História da Igreja no Brasil desenvolveuse de modo contextualizado com o debate histórico e historiográfico, por um lado, luso-brasileiro, desde o século XIX, a partir das polêmicas entre os ditos regalistas e ultramontanos, e, por outro, latino-americano, a partir de meados do século XX. Todavia, isso não deixou a História da Igreja no Brasil imune, é claro, a todo o influxo teóricoconceitual europeu dos anos de 1970 até a atualidade, que foi sendo absorvido pela historiografia do catolicismo; o influxo consistia, por exemplo, nas influências da sociologia weberiana, da História Social Inglesa, da nova História Cultural, da Micro-História, da História Conectada, entre outras. O conceito mais utilizado no Brasil para tratar da História da Igreja Católica no século XIX é o de “catolicismo romanizado”, seguido por aquele de “catolicismo ultramontano”. O segundo é um conceito utilizado desde o século XIX, que fazia parte da contenda política. O primeiro, apesar de também presente nesse período, desenvolveu- 4 O historiador brasileiro com formação alemã Sergio da Mata prefere utilizar o conceito de “fundamentalismo” ou “xiitismo papal”, defendendo que o Kulturkampf seria um fenômeno “histórico-universal” vinculado a Ranck, que se aplicaria a América Latina. MATA, Sergio da. Entre Syllabus e Kulturkampf: revisitando o “reformismo” católico na Minas Gerais do Segundo Reinado. In: CHAVES, Cláudia Maria das Graças; SILVEIRA, Marco Antonio (org.). Território, conflito e identidade. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2007, p. 225-244. 77 se fortemente nos anos de 1970 e 1980, sob o influxo da Teologia da Libertação e da História vista de baixo, com influência da História Social Inglesa, principalmente de E. Hobsbawm, e da sociologia weberiana.5 A romanização aproxima-se mais do conceito de catolicismo intransigente, focado no discurso antimoderno, sendo os ultramontanos executores fiéis das diretrizes romanas e empenhados em uma luta contra o catolicismo popular. Parte da recente historiografia6 crítica a esse 5 SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Uma questão de revisão de conceitos: romanização, ultramontanismo, reforma. Temporalidades, v. 2, n. 2, p. 24-33, 2010; AQUINO, Maurício. O conceito de romanização do catolicismo brasileiro e a abordagem histórica da Teologia da Libertação. Horizonte, v. 11, n. 32, p. 1485-1505, 2013. 6 VIEIRA, Dilermando Ramos. O processo de Reforma e reorganização da Igreja no Brasil (1844-1926). Aparecida: Editora Santuário, 2007; DUTRA NETO, Luciano. Das terras baixas da Holanda às montanhas de Minas. Uma contribuição à história das missões redentoristas, durante os primeiros trinta anos de trabalho em Minas Gerais. 2006. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2006; MARTÍNEZ, Ignacio. Uma nación para la Iglesia argentina: construcción del Estado y jurisdicciones eclesiásticas en el siglo XIX. Buenos Aires: Academia Nacional de la Historia, 2013; AQUINO, O conceito de romanização do catolicismo brasileiro e a abordagem histórica da Teologia da Libertação, op. cit.; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Questão de Consciência: os ultramontanos no Brasil e o regalismo do Segundo Reinado (1840-1889). Belo Horizonte: Fino Traço, 2015; SOLANS, Francisco Javier Ramón. Más allá de los Andes: los orígenes ultramontanos de una Iglesia latinoamericana (1851-1910). Bilbao: Universidad del País Vasco Servicio Editorial, 2020; SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Imprensa católica e identidade ultramontana no 78 conceito ressalta as diferenças entre o discurso e a prática ultramontana, que não provêm somente de cima (Santa Sé), mas também foram frutos de uma demanda vinda dos contextos locais, devido aos conflitos com o poder do Estado. Tal historiografia ressalta a circularidade dessas ideias, bem como as adaptações dos institutos religiosos a fim de se inserirem em meio às populações mais pobres e como os ultramontanos foram acolhidos pelos fiéis,7 tornando-se hegemônicos na segunda metade do século XIX.8 Sobre o catolicismo liberal e intransigente na França, Sylvain Milbach (2013),9 no texto Cattolicesimo intransigente e cattolicesimo liberale nel XIX secolo [Catolicismo intransigente e catolicismo liberal no século XIX], afirma que essas duas respostas não afetaram diretamente o catolicismo vivido pela maioria dos fiéis, mas sim aquele vivido pelas elites católicas, Brasil do século XIX: uma análise a partir do jornal O Apóstolo. Horizonte, v. 18, p. 542-569, 2020; entre outros. 7 SANTIROCCHI, Pryscylla Cordeiro Rodrigues. “Evangelizare pauperibus misit me”: ortodoxia e ortoprática dos padres lazaristas nas missões do Ceará (1870-1877). 2019. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2019; SANTIROCCHI, Pryscylla Cordeiro Rodrigues; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Os desafios para a universalização da Congregação da Missão no superiorato do pe. Jean-Baptiste Étienne (1843-1874). Almanack, n. 26, p. 1-52, 2020. 8 AZEVEDO, Ferdinand. A inesperada trajetória do ultramontanismo no Brasil império. Perspectiva Teológica, v. 20, n. 51, p. 201-218, 1988. 9 MILBACH, Sylvain. Cattolicesimo intransigente e cattolicesimo liberale nel XIX secolo. In: VINCENT, Catherine; TALLON, Alain (org.). Storia religiosa della Francia. v. II. Milão: Centro Ambrosiano, 2013, p. 491. 79 sejam leigas ou clericais. Além disso, ele destaca que as definições de católicos “liberais” e “intransigentes” raramente são reivindicadas por aqueles que as representam, pois, segundo ele, os termos adquiriram conotações pejorativas no oitocentos. No Brasil, o ultramontanismo teve impacto no catolicismo vivido por grande parte dos fiéis, o que gerou um debate historiográfico envolvendo o chamado “catolicismo popular”.10 Enquanto a teoria da romanização defende que o ultramontanismo combatia este último, pesquisas atuais vêm destacando uma identificação do catolicismo popular com o ultramontanismo e uma adaptação deste para se aproximar da população.11 10 Especialmente a partir da segunda metade do século XX, abordagens das Ciências Humanas e Sociais propuseramse a classificar a prática católica do Brasil, denominando de popular o catolicismo que se constituiu a partir das demandas socioculturais próprias do “povo”, originado a partir das particularidades presentes na vivência religiosa da Colônia. Ou ainda um catolicismo rústico, característico dos espaços interioranos, notadamente rurais, oposto àquele desenvolvido nos centros urbanos. Se referem também a expressões religiosas que, à revelia da Igreja, reelaboram o que é emanado por seus quadros institucionais. É possível perceber a existência de múltiplas definições para a religiosidade tida como espontânea e originária do povo, das camadas ditas populares, em diferentes períodos da História do Brasil. Cf. SOUSA, Emerson José Ferreira de. O catolicismo popular brasileiro: notas em torno da sua invenção historiográfica. Temporalidades, v. 13, n. 2, p. 724-745, 2021. 11 AZEVEDO, A inesperada trajetória do ultramontanismo no Brasil império, op. cit.; SANTIROCCHI, Questão de Consciência, op. cit.; SANTIROCCHI; SANTIROCCHI, Os desafios para a universalização da Congregação da Missão no superiorato do pe. Jean-Baptiste Étienne (1843-1874), op. cit.; SANTIROCCHI, Pryscylla, “Evangelizare pauperibus misit me”, op. cit. 80 Na França, a intransigência tende a ser confundida com o “ultramontanismo”, que era utilizado na década de 1820 para denunciar as tentativas de ingerência do poder espiritual no poder temporal. No entanto, Milbach ressalta que o ultramontanismo inclui várias realidades, como diferentes formas de piedade, eclesiologia, bem como alguns aspectos da teologia moral e dogmática. Esses diferentes elementos têm uma coerência entre si, embora os confundir fez parte do uso polêmico de ultramontanismo no século XIX, principalmente no âmbito político12. Já Giacomo Martina (1998),13 na organização do seu livro clássico Storia della Chiesa da Lutero ai nostri giorni [História da Igreja de Lutero aos nossos dias], define primeiramente o ultramontanismo para, em seguida, apresentar os católicos intransigentes e liberais. Essa sequência leva ao entendimento de que estas duas últimas correntes (ou parte delas) poderiam estar contidas na primeira, até porque o autor adota a mesma lógica quando trabalha com os intransigentes, dividindo-os em grupos que ele chama de “extrema esquerda”, “moderados” e “extrema direita”. Tais grupos abrangem desde aqueles que tinham uma maior abertura prática ao liberalismo até os que negavam totalmente a modernidade e defendiam um retorno ao Antigo Regime. A intransigência refere-se às posições da Igreja em relação ao mundo contemporâneo. Nesse sentido, Milbach14 12 MILBACH, Cattolicesimo intransigente e cattolicesimo liberale nel XIX secolo, op. cit., p. 493. 13 MARTINA, Giacomo. Storia della Chiesa da Lutero ai nostri giorni. vol. 3, L’età del liberalismo. Brescia: Morcelliana, 1998. 14 MILBACH, Cattolicesimo intransigente e cattolicesimo liberale nel XIX secolo, op. cit., p. 493. 81 afirma que a assimilação polêmica entre ultramontanismo e intransigência não convence, já que esta última não seria um atributo exclusivo da Santa Sé, pois, como destaca Gérard Gengembre,15 as condenações feitas pelo Syllabus, de 1864, foram essenciais para o intransigentismo e encontraram terreno fértil na França.16 Portanto, o que é ressaltado pelos autores é uma matriz francesa do intransigentismo, enquanto o ultramontanismo teria laços mais fortes com a Santa Sé. Milbach também menciona a forte herança filosófica contrarrevolucionária presente em parte da elite católica francesa, constituída pela influência dos pensadores como Louis de Bonald, Joseph de Maistre e Félicité de Lamennais.17 Os bispos brasileiros, inclusive os ultramontanos, nunca questionaram os princípios liberais de 1820 (Revolução do Porto) e nem o constitucionalismo,18 conforme veremos em seguida em seguida. O Syllabus e a Quanta Cura foram adotados por porta-vozes fervorosos da intransigência francesa, que regularam suas condutas com base nesses documentos nas décadas seguintes. Todavia, a intransigência já vinha desenvolvendo-se na França desde o tradicionalismo católico do início do século, que, segundo Paul Bénichou 15 GENGEMBRE, Gérard. La Contre-Révolution ou l’Histoire desesperante. Paris: Imago, 1989. 16 Este documento foi baseado em um inventário de erros contemporâneos elaborado pelo bispo de Perpignan, Mons. Gerbet, e enviado ao Papa, em 1860. 17 MILBACH, Cattolicesimo intransigente e cattolicesimo liberale nel XIX secolo, op. cit., p. 493. 18 Todavia, esses autores são muito citados por alguns dos ultramontanos brasileiros e em seus jornais. 82 (1997),19 era caracterizado pelo anticonstitucionalismo: nenhum contrato social seria possível se não fosse permitido por Deus. É uma filosofia da história antitética à filosofia das Luzes, que condena especialmente o papel histórico da livre investigação, nascida do cisma protestante, e que era tida como a origem distante da Revolução. Tal característica não se encontra, de um modo geral, no episcopado brasileiro, que apoiou o Triênio Liberal português, o constitucionalismo e a independência do Brasil. Em uma pastoral de janeiro de 1822, D. Romualdo Coelho, bispo de Belém do Pará, pauta-se exatamente em um diálogo com as “Luzes”, para, em seguida, apresentar o conceito de pacto social, no qual ele apoia-se para defender o constitucionalismo. Segundo o bispo, à medida que o espírito humano se adianta em conhecimentos, preenche mais dignamente os seus deveres, e ofícios com relação a Deus, a si, e aos seus semelhantes; ninguém pode duvidar, que o estado progressivo de luzes, em que nos achamos, fará cada vez mais indissolúveis os sagrados vínculos da Religião, e por consequência mais sólidos os fundamentos da Sociedade Civil.20 19 BÉNICHOU, Paul. Il tempo dei profeti: dottrine dell’età romantica. Bologna: Il Mulino, 1997. 20 COELHO, Romualdo de Sousa. Pastoral do bispo do Pará dom Romualdo de Souza Coelho: prevenindo os seus diocesanos contra opiniões abusivas e sediciosas sobre a verdadeira inteligência do sistema constitucional que a nação tem adoptado, para manter a sua segurança, e prosperidade. Com aditamento de hum edital análogo. Lisboa: Na Tipográfica Patriótica, 1822, p. 4. 83 Não houve resistência por parte do episcopado brasileiro à Revolução do Porto; somente dois bispos, o do Maranhão e o da Bahia, resistiram à independência do Brasil e foram destituídos. Portanto, a Igreja no Brasil Independente não nasceu antirrevolucionária, embora tenha sido fruto da revolução, como a própria nação da qual faz parte. Após a independência, bispos e padres de diferentes matizes foram eleitos deputados e senadores durante todo o Período Imperial e atuaram dentro do espectro constitucionalista, sem nunca o questionar.21 Para a intransigência europeia, o princípio de autoridade encarnado pela Igreja, em resposta ao liberalismo e ao individualismo, condena a Revolução como expressão do orgulho e, mais precisamente, da razão e da arrogância. A tradição era considerada elemento constitutivo da ordem social e política: a ordem social não seria decretada, mas seria fruto da revelação e da história que dela procede. Os ultramontanos no Brasil condenaram, em seus escritos, o “orgulho e arrogância” da razão liberal, e a tradição era 21 SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. “É constitucional, é católico romano, é justo e virtuoso”: A Igreja Católica e o processo de Independência. In: PIMENTA, João Paulo; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. A Independência do Brasil em perspectiva mundial. São Paulo: Alameda, 2022, p. 145170; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Cartas Pastorais Constitucionais no contexto da Independência do Brasil: dioceses setentrionais (1822). Revista Brasileira de História, v. 42, p. 77-10, 2022; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. As independências do Brasil e a Igreja. In: OLIVEIRA, Kelly Eleutério Machado; FERNANDES, Renata Silva. A Independência do Brasil: temas de pesquisa ensino de história. Belo Horizonte: Fino Traço, 2022, p. 201-236. 84 fonte de conhecimento para a atuação no presente, guiando suas ações no ambiente constitucional, mas não contra ele.22 Portanto, por mais conservadores que fossem, eram-no dentro do constitucionalismo político oitocentista. Assim, os intransigentes europeus possuíam solidariedade com correntes mais conservadoras e reacionárias em questões políticas, confrontando as ideias nascidas da Revolução e defendendo a religião como fundamento da ordem social. Milbach23 resume quatros pontos que a intransigência francesa rejeitava: a Reforma, o Iluminismo, a Revolução e o Estado liberal. É difícil ver todos esses aspectos no episcopado brasileiro. Talvez um ou outro bispo possa aproximar-se deles em certos momentos; ou alguns, acusados de serem excessivamente zelosos, como era o caso do bispo de Pernambuco, D. Vital (1844-1878), poderiam realmente ser intransigentes em um estilo próximo ao francês. Contudo, no geral, como já referido, viviam e aceitavam a monarquia 22 Pode-se perceber isso nas obras de Candido Mendes de Almeida, um dos maiores intelectuais ultramontanos do século XIX no Brasil. Ver ANGELELLI, Gustavo. Cândido Mendes de Almeida: Um jurista-historiador no Brasil oitocentista. São Paulo: Almedina, 2022. 23 MILBACH, Cattolicesimo intransigente e cattolicesimo liberale nel XIX secolo, op. cit., p. 496. Pontos também destacados por BOUTRY, Philippe. Ce catholicisme qu’on pourrait dire intransigeant. In: SACQUIN, Michèle. Entre Bossuet et Maurras: L’antiprotestantisme en France de 1814 à 1870. Paris: École des Chartes, 1998; BOUTRY, Philippe. Le mouvement vers Rome. In: RÉMOND, René; LE GOFF, Jacques; JOUTARD, Philippe (org.). Histoire de la France religieuse, XVIIIe-XIXe siècle. v. 3. Paris: Seuil, 1991, t. 3. 85 constitucional liberal como forma de governo, faziam política jogando o seu jogo e as suas regras, inclusive utilizando autores iluministas em seus jornais, para defenderem suas posições em relação ao que chamavam de liberdade ou autonomia da Igreja perante o Estado. Certamente condenavam a Reforma Protestante e certos aspectos do ocidente pós-revolucionário, os quais definiam como excessivos, principalmente aqueles que atacavam a soberania papal sobre os estados pontifícios ou diminuíam a influência da Igreja sobre a sociedade brasileira e sobre o controle dos fiéis. Todavia, não se viam como antimodernos, mas tinham uma proposta de modernidade concorrente, uma modernidade católica.24 No outro campo, temos o catolicismo liberal, que, segundo Marcel Prélot e Françoise Gallouédec-Genuys (1969),25 cresceu em defesa do direito de a Igreja possuir suas próprias escolas na França. Tais limitações são consideradas, por esse grupo, como um abuso de poder do Estado. Segundo Milbach, “leigos e clérigos se organizam para reivindicar as liberdades religiosas em relação a um Estado que estende suas prerrogativas além de suas competências e em desrespeito aos direitos da consciência (especificamente, o direito dos pais de escolherem a educação de seus filhos)”.26 24 ANGELELLI, Cândido Mendes de Almeida, op. cit.; SANTIROCHI, Ítalo Domingos. O paradigma tridentino e a Igreja Católica no Brasil oitocentista: modernidade e secularização. Revista Reflexão, v. 42, n.2, p. 161-181, 2018. 25 PRÉLOT, Marcel; GALLOUÉDEC-GENUYS, Françoise. Le Libéralisme catholique. Paris: Colin, 1969. 26 MILBACH, Cattolicesimo intransigente e cattolicesimo liberale nel XIX secolo, op. cit., p. 497. 86 O jornal “L’Avenir” era o maior defensor do catolicismo liberal. Com base em Milbach e Jean-René Derré,27 podemos resumir da seguinte maneira as ideias do periódico: afirmava que a monarquia legítima estava morta e não era capaz de servir aos interesses católicos; condenava o galicanismo, ainda predominante no alto clero, por comprometer os interesses religiosos, subordinando a Igreja ao poder do Estado; reconhecia as liberdades adquiridas pela Revolução como meio de restaurar a influência do catolicismo e, em nome disso, defendia as mesmas liberdades para todos os cidadãos, inclusive os católicos, que deveriam ser capazes de se organizar de maneira completamente independente em questões escolares e associativas (ordens religiosas e congregações); e, por fim, defendia que a influência da religião também dependia de seu impacto nas ciências modernas. Mesmo os grupos menos radicais acreditavam que a Igreja deveria inserir-se na modernidade para poder influenciá-la, que os católicos deveriam aprender a utilizar as novas liberdades em vantagem própria e que era necessária a independência do poder da Igreja em relação ao do Estado, mesmo se isso significasse a separação. Encontramos muitas características dos bispos brasileiros oitocentistas na descrição acima: condenação ao regalismo do Estado (às vezes até mesmo ao regime do padroado); reconhecimento, pelo menos na prática, de algumas liberdades adquiridas após as revoluções, utilizando-as com o intuito de manter e ampliar a influência do catolicismo; uso do discurso da 27 Ibid., p. 498; DERRÉ, Jean-René. Le renouvellement de la pensée religieuse em France de 1824 à 1834: Essai sur les origines et la signification du mennaisianisme. Paris: Klincksieck, 1962. 87 liberdade individual e associativa, para defender os interesses da Igreja; diálogo com as ciências modernas; e, até mesmo, na segunda metade do século XIX, alguns setores do clero chegaram a cogitar que a separação entre o Estado e a Igreja seria o melhor para a conquista da liberdade desta última. Tanto é assim, que encontramos ultramontanos brasileiros no partido liberal. Esses traços do catolicismo liberal francês também se aproximam muito do chamado “ liberalismo eclesiástico” no Brasil, que teve como um dos seus principais representantes o Pe. Diogo Feijó. Todavia, existia um traço fundamental que os diferia: os brasileiros eram fortemente regalistas, apoiando a ingerência do Estado na Igreja; já os franceses eram antigalicanos e buscavam a autonomia em relação aos governos civis. Então, por que não enquadrar o episcopado brasileiro, ou parte dele, dentro do conceito europeu de “catolicismo liberal”? Porque os ultramontanos abraçaram, pelo menos no discurso, os documentos oficiais como o Syllabus – defenderam veementemente a infalibilidade papal, dialogaram com autores tradicionalistas e intransigentes franceses, espanhóis e italianos, enquanto o clero liberal, como dito antes, era fortemente regalista. Mesmo assim, ambos os grupos acolheram na sua maioria a República, em 1889, e a separação entre Igreja e Estado. Grande número de ultramontanos entendia que, apesar dos riscos, esse caminho fortaleceria a autoridade pontifícia e favoreceria a liberdade de ação dos bispos e do clero. O episcopado ultramontano no Brasil Nosso episcopado ultramontano não fez como Dupanloup, bispo de Orléans (1849-1878), que escreveu 88 uma interpretação menos rigorosa do Syllabus, utilizando da velha estratégia da tese e da hipótese – interpretação que, inclusive, não foi condenada pela Santa Sé. Contudo, o grupo fez uso prático disso, ao adotar o discurso ortodoxo como tese e, nas ações, ao se adaptar à modernidade, no que era possível ou estratégico. Essa atitude também nunca foi condenada pela Santa Sé, mesmo, quando por vezes, divergiu de suas orientações. Os conceitos de intransigência e de catolicismo liberal, como entendidos na Europa, podem ser importantes contrapontos para nos ajudar a refletir sobre o catolicismo no Brasil, sobretudo para pensar sobre quem ou o que enquadramos em noções como liberalismo eclesiástico e ultramontanismo. Como vimos, ambos têm aproximações e distinções em relação aos dois grupos na França e na Itália. São importantes para compreender, também, a atuação dos bispos e suas cisões internas, pois vários deles fizeram sua formação, ou parte dela, na França e na Itália oitocentista, como podemos ver a seguir, restringindo-nos ao episcopado mais identificado com o ultramontanismo: 89 Quadro 1 Principais bispos ultramontanos durante o Segundo Reinado Bispo Antônio Ferreira Viçoso Antônio Joaquim de Mello José Afonso de Morais Torres Luís Antônio dos Santos João Antônio dos Santos Nascimento Peniche (Portugal) Formação Condição Eclesiástica Seminário da Congregação da Missão (Portugal) Regular (Lazarista) Itu (SP) Convento de S. Francisco; Aulas Episcopais (SP - Brasil) Secular Rio de Janeiro Seminário de Jacuecanga (RJ); Seminário do Caraça (MG - Brasil) Regular (Lazarista) Angra dos Reis (RJ) Seminário de Jacuecanga (RJ - Brasil); Seminário do Caraça (MG Brasil); Colégio Romano (Itália) Secular S. Gonçalo do Rio Preto (MG) Seminário do Caraça; Congonhas do Campo (MG Brasil); Colégio Romano (Itália); S. Sulpício (França) Secular 90 Pedro Maria de Lacerda Rio de Janeiro Seminário do Caraça, Congonhas do Campo; Seminário Episcopal de Mariana (MG - Brasil); Colégio Romano (Itália) Antônio Cândido de Alvarenga S. Paulo Seminário de S. Paulo (Brasil) Secular Joaquim J. Vieira Itapetininga (SP) Seminário de S. Paulo (Brasil) Secular Engenho do Rosário (BA) Seminário Salvador (BA Brasil); Colégio S. Celestino (Bourges), Seminário de S. Sulpício (França); Academia de S. Apolinário (Itália) Secular Aracati (CE) Seminário de Olinda (PE - Brasil); Seminário de S. Sulpício (França); Univ. Sapienza (Itália) Secular Antônio de Macedo Costa Manuel do Rego Medeiros Secular 91 Recife (PE) Univ. Sapienza e Seminário de Strezza (Itália); Colégio de Ratcliffe e Rugby (Inglaterra) Regular (Rosminiano) Vital Maria G. de Oliveira Pedras de Fogo (PE) Seminário de Olinda (PE - Brasil); Seminário S. Sulpício, Convento de Versalhes, Perpignan e Toulouse (França) Regular (Capuchinho) Manuel Joaquim da Silveira Rio de Janeiro Seminário São José (RJ Brasil) Secular Campos (RJ) Mosteiro de S. Bento e Seminário de S. José (RJ Brasil) Secular Turiaçù (PA, depois incorporada ao MA) Seminário Episcopal de Belém (PA Brasil) Secular Salvador (BA) Seminário da Congregação dos Padres das Missões (França) Regular (Lazarista) Francisco Cardoso Aires Antônio Maria C. de Sá e Benevides Joaquim Gonçalves de Azevedo Cláudio José G. Ponce de Leão Carlos Luís D’Amour S. Luís (MA) Seminário de S. Antônio (MA Brasil) Secular 92 Lino Deodato R. de Carvalho S. Bernardo das Russas (CE) Seminário de Olinda (PE Brasil) Secular Feliciano José Rodrigues de Araújo Prates Aldeia dos Anjos (Gravataí, RS) Seminário N. S. Lapa (RJ Brasil) Secular Caetité (BA) Seminário de Salvador (BA - Brasil); Univ. Sapienza (Itália) Secular Sebastião Dias Laranjeiras Fonte: SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Questão de Consciência: os ultramontanos no Brasil e o regalismo do Segundo Reinado (1840-1889). Belo Horizonte: Fino Traço, 2015, p. 208-210. Adaptado pelo autor. No Quadro 1, levamos em consideração quatro aspectos para análise: local de nascimento, formação, locais de formação e condição eclesiástica, ou seja, secular ou regular. O primeiro quesito não nos interessa para essa análise; por isso, vamos começar pelo último quesito. Entre os vinte bispos listados, a grande maioria (quinze deles) pertenceu ao clero secular, e somente cinco eram religiosos, sendo três lazaristas, um rosminiano e um capuchinho. Fica clara a importância dos lazaristas no processo de reforma, mas, também, a preferência pela nomeação do clero secular para ocupar as cadeiras episcopais. Para compreender as conexões internacionais, os locais de formação podem dar algum indício. Para isso, no Quadro 2 são informados os locais por onde os bispos passaram durante sua formação, já que muitos deles começaram no Brasil e, posteriormente, foram para o exterior, sendo que 93 alguns passaram por mais de um país, como pode ser visto no Quadro 1. Quadro 2 País de formação Local Brasil Itália França Portugal Inglaterra Quant. 17 7 5 1 1 Fonte: SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Questão de Consciência: os ultramontanos no Brasil e o regalismo do Segundo Reinado (1840-1889). Belo Horizonte: Fino Traço, 2015, p. 211. Adaptado pelo autor. Podemos notar que, dos vinte bispos, somente três não tiveram formação religiosa no Brasil, sendo feita totalmente no exterior. A grande maioria iniciou sua formação eclesiástica em território nacional e foi complementá-la na Europa. O país mais frequentado foi a Itália, com sete bispos passando por lá. Roma foi a cidade que teve a maior concentração, sendo que o Colégio Romano/ Pontifícia Universidade Gregoriana, dirigido pelos jesuítas, e a Universidade Sapienza foram as instituições mais procuradas. Logo em seguida encontramos a França, com cinco prelados, com a concentração de bispos estudando em Paris, principalmente no Seminário de São Sulpício. Temos um prelado em Portugal e outro na Inglaterra. Podemos notar também que, ao mesmo tempo em que três bispos tiveram formação totalmente estrangeira, oito tiveram formação exclusivamente nacional, ou seja, quase a metade. 94 Quadro 3 Formação em seminários dirigidos por Ordens Religiosas Ordens Lazarista Capuchinho Sulpiciano Quant. 6 4 4 Ordens Jesuíta Rosminiano Carmelita Quant. 3 1 1 Ordens Beneditino Franciscanos Quant. 1 1 Fonte: SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Questão de Consciência: os ultramontanos no Brasil e o regalismo do Segundo Reinado (1840-1889). Belo Horizonte: Fino Traço, 2015, p. 213. Adaptado pelo autor. Este último quadro (3), juntamente com os demais, confirma a importância da Congregação dos Padres da Missão para o ultramontanismo no Brasil, sendo que a maioria dos bispos ultramontanos no Segundo Reinado passou por um dos seus seminários. Em seguida, temos os capuchinhos e sulpicianos, também tendo significativa presença os jesuítas. Essas quatro ordens influíram diretamente na reforma ultramontana da Igreja durante o Império, por meio de sua atuação educativa. Se atentarmos para o fato que a grande maioria dos lazaristas que vieram para o Brasil eram franceses, tendo muitos deles entre os capuchinhos, e que a formação sulpiciana era feita toda em Paris, notaremos que o influxo do catolicismo francês sobre o ultramontanismo brasileiro é marcante, vindo os italianos logo em seguida. Tal fato reforça a importância de termos escolhido esses dois países com pontos de comparação e diálogo, devido ao papel da Itália 95 e da França na formação final de parte significativa de nossos bispos. Destacamos, conforme o Quadro 1, os três bispos mais diretamente envolvidos na Questão Religiosa. O primeiro, D. Pedro Maria de Lacerda, bispo do Rio de Janeiro, deu início a ela e, em seguida, abaixou os tons. Em um segundo momento, no final dos anos 1870, resistiu às ordens da Santa Sé para reformar as irmandades religiosas, para não entrar em conflito com o Estado novamente. Foi um dos únicos bispos que adotaram um posicionamento reticente em relação a Proclamação da República e que tinham fortes tendências monarquistas. O segundo, D. Antônio de Macedo Costa, bispo de Belém do Pará, transformou-se no líder da ala mais radical do ultramontanismo, opondo-se fortemente ao que considerava intervencionismo do Estado Imperial nos assuntos da Igreja. Acolheu a República e foi o principal interlocutor da Igreja com o governo nos seus primeiros anos, vindo a falecer em 1891. O terceiro, D. Vital Maria G. de Oliveira, bispo de Pernambuco, foi o mais ativo e mais radical na Questão Religiosa. Investiu todas suas forças nesse conflito, vindo a falecer em seguida, em 1878. Era constantemente acusado de ser zeloso ao extremo (fora as acusações que eram comum a todos os ultramontanos, como a de serem jesuítas disfarçados, papistas, romanistas etc.). D. Lacerda, de formação lazarista e italiana, foi o menos radical dos três. Apesar de ter iniciado o conflito, logo se retraiu e buscou manter uma relação pacífica com o Estado monárquico. D. Macedo, com formação na França e na Itália, ao mesmo tempo que foi um grande 96 defensor da doutrina e da autonomia da Igreja, também foi um hábil político, capaz de estabelecer diálogos e negociações com uma nascente República com fortes traços positivistas e até anticlericais. D. Vital, o mais feroz combatente católico na Questão Religiosa, teve sua formação na França, no Seminário São Sulpício, Convento de Versalhes, Perpignan e Toulouse, sendo muito influenciado pelo catolicismo ultramontano francês e, provavelmente, pelo intransigentismo. Conclusão Refletir sobre a noção de intransigência pode auxiliar a compreender certos aspectos das ações e ideias do clero brasileiro, como o zeloso D. Vital na Questão Religiosa, ou o monarquismo e a resistência à República de D. Lacerda, ou, até mesmo, a rigidez doutrinária de D. Macedo. O tema do intransigentismo no século XIX nos ajuda a trazer novos elementos para o debate teórico e historiográfico sobre a Igreja no Brasil oitocentista, bem como o desdobramento desse movimento no contexto brasileiro poderá ajudar a aprofundar o debate europeu e norte-americano. Essa necessidade de redimensionar os conceitos para o continente americano também é defendida pelo colega Francisco Solans, no livro Más allá de los Andes, quando diz: El hecho de que las tendencias ultramontanas intransigentes de corte legitimista fueran hegemónicas en la Europa continental del siglo XIX ha distorsionado la percepción que tenemos de este movimiento. Si extendernos nuestro marco de estudios a Reino Unido, Estados Unidos, 97 Canadá y Latinoamérica, el claro compromiso intransigente se desdibuja notablemente.28 Nos últimos anos, muitos de nós temos sentido a necessidade de um debate teórico-conceitual mais profundo, que ajude a melhorar o nosso instrumental de análise. Contudo, podemos concluir que o conceito de intransigência católica, do modo que é pensado na Europa, apresenta limites teóricos para sua aplicação à realidade brasileira específica do século XIX. Neste sentido, continuar refletindo sobre ele, a partir de bases empíricas, revela-se fundamental para entender o nosso contexto em perspectivas globais. 28 SOLANS, Más allá de los Andes, op. cit., p. 24. Os católicos tradicionalistas e a recepção do Concílio Vaticano II Philippe Roy-Lysencourt A recepção do Concílio Vaticano II pelos católicos tradicionalistas é um tema pouco explorado no campo das pesquisas acadêmicas. Embora existam alguns estudos,1 os trabalhos sobre a questão encontram-se em seus primeiros passos, longe, portanto, de cobrir toda a temática e de oferecer uma visão global e sintética do assunto. Ao contrário, convidam à realização de investigações aprofundadas, que só poderão fornecer resultados convincentes após investigação exaustiva. Desse modo, 1 Ver, particularmente, ROY-LYSENCOURT, Philippe. La première réception du concile Vatican II par les catholiques traditionalistes (1965-1969). In: QUISINSKY, Michael; SCHELKENS, Karim; AMHERDT, François-Xavier (org.). Theologia semper iuvenescit: Études sur la réception de Vatican II offertes à Gilles Routhier. Fribourg: Academic Press Fribourg, 2013, p. 53-98; ROY-LYSENCOURT, Philippe. Les catholiques traditionalistes et la première réception de Vatican II. In: SORREL, Christian (org.). Renouveau conciliaire et crise doctrinale: Rome et les Églises nationales (1966-1968). Actes du colloque international de Lyon (1213 mai 2016). Lyon: Laboratoire de Recherche Historique Rhône-Alpes, 2017, p. 99-113; ROY-LYSENCOURT, Philippe. La première réception du concile Vatican II par les catholiques traditionalistes (1965-1969). Archives de sciences sociales des religions, n. 175, p. 319-339, 2016. 100 não pretendemos oferecer aqui uma síntese conclusiva, mas apresentar um primeiro inventário da situação atual, cujos limites estamos plenamente conscientes.2 Vale dizer que o presente texto está longe de ser exaustivo; o mundo tradicionalista é uma galáxia complexa, e os indivíduos, movimentos e redes a serem considerados são numerosos demais para que seja possível abordar sua totalidade no espaço de algumas páginas. Desse modo, trata-se aqui da exposição dos primeiros resultados de uma investigação histórica que merece ser consideravelmente aprofundada. Salientemos que não vamos entrar, neste capítulo, nos detalhes da história do tradicionalismo pós-conciliar; centraremos nossa análise na questão da recepção do Vaticano II e de sua evolução, contentando-nos em relatar os eventos essenciais para a compreensão de nosso propósito, sem analisar conjunturas, pessoas ou grupos que se formaram ao longo do tempo e das circunstâncias. As fontes utilizadas, de língua francesa e italiana, podem parecer privilegiadas. Isso não se deve a uma escolha deliberada ou restrição do assunto, mas ao fato de estarmos situados em uma história de ideias em relação às quais as reflexões teóricas desenvolveram-se principalmente nessas zonas geográficas. Uma história do tradicionalismo católico3 teria implicado 2 O presente texto é uma versão ligeiramente modificada de capítulo de coletivo já publicado: ROY-LYSENCOURT, Philippe. The Reception of the Second Vatican Council by Traditionalist Catholics, In: CLIFFORD, Catherine E.; FAGGIOLI, Massimo Faggioli (org.). The Oxford Handbook of Vatican II. Oxford: Oxford University Press, 2023, p. 360-378. 3 Sobre este assunto,ver CHIRON,Yves. Histoire des traditionalistes. Paris: Éditions Tallandier, 2022. 101 um desdobramento geográfico diferente de uma história da recepção do Vaticano II. No estado atual da pesquisa, se excluirmos a recepção que ocorreu durante o próprio Concílio e partirmos do encerramento do evento, podemos considerar que a recepção do Vaticano II pelos tradicionalistas ocorreu em três grandes fases que comporão as partes deste capítulo. Em primeiro lugar, podemos distinguir uma primeira recepção que durou de 8 de dezembro de 1965 a 30 de novembro de 1969, ou seja, desde o encerramento do evento até a entrada em vigor das prescrições da Constituição apostólica Missale romanum, de 3 de abril de 1969. A partir dessa data, a recepção do Vaticano II pelos opositores ao Concílio entrou em uma nova fase, que durou até o ano 2000, quando a Fraternidade São Pio X organizou uma peregrinação a Roma por ocasião do Ano Santo. Este evento deu origem a discussões doutrinais entre a referida Fraternidade e a Santa Sé e abriu ao mesmo tempo um novo período, o terceiro, na recepção do Vaticano II pelos tradicionalistas. Primeira fase (1965-1969): uma recepção à luz da Tradição Estudar a recepção do Concílio Vaticano II pelos tradicionalistas implica considerar a história e as lutas do Coetus Internationalis Patrum (CIP), que foi o principal grupo de opositores no Concílio.4 Chefiado por Mons. 4 Sobre esse tema, ver ROY-LYSENCOURT, Philippe. Le Cœtus Internationalis Patrum, un groupe d’opposants au sein du concile Vatican II. 2011. 2331 p. Tese de doutorado – Faculté de théologie et de sciences religieuses, Université Laval; 102 Lefebvre, esse “comitê” opôs-se à orientação do Concílio, já que seus membros e simpatizantes o consideravam em oposição à doutrina tradicional da Igreja. O antagonismo desses conservadores começou na primeira sessão do Concílio, em um “piccolo comitato”, e prosseguiu durante todo o evento. O que deve ser considerado aqui é que as posições e lutas pós-conciliares dos católicos tradicionalistas têm sua origem em grande parte nas lutas do CIP e na inflexibilidade doutrinária de seus principais membros. Desse modo, é necessário examinar inicialmente a primeira recepção do Conselho pelos antigos membros deste grupo, o que será feito em uma primeira subseção, antes de se estudar a recepção do evento por outras personalidades e grupos. Antigos membros do Coetus Internationalis Patrum O que se pode ver ao estudar a recepção do Concílio Vaticano II junto aos antigos membros do CIP é que, a princípio, nenhum deles criticou publicamente os Faculté des Lettres et Civilisations, Université Jean Moulin Lyon 3, Lyon, 2011; ROY-LYSENCOURT, Philippe, Les membres du Cœtus Internationalis Patrum au concile Vatican II: Inventaire des interventions et souscriptions des adhérents et sympathisants. Liste des signataires d’occasion et des théologiens. Leuven: Peeters, 2014; ROY-LYSENCOURT, Philippe. Les vota préconciliaires des dirigeants du Cœtus Internationalis Patrum. Strasbourg: Institut d’Étude du Christianisme, 2015; ROY-LYSENCOURT, Philippe. Recueil de documents du Coetus Internationalis Patrum pour servir à l’histoire du concile Vatican II. Strasbourg: Institut d’Étude du Christianisme, 2019; ROY-LYSENCOURT, Philippe. O Coetus Internationalis Patrum no Concílio Vaticano II: apresentação e resultados de uma pesquisa. Horizonte, v. 13, n. 38, p. 1051-1079, 2015. 103 textos promulgados. Pelo contrário, eles os defenderam interpretando-os e pedindo que fossem interpretados de acordo com a doutrina tradicional da Igreja. Existem muitos exemplos. Em 1966, Mons. Geraldo de Proença Sigaud publicou um artigo em La Pensée catholique, no qual propunha uma linha de conduta a ser adotada pelo “padre tradicional” diante das “forças que sonhavam com um ‘ConcílioRevolução’” e que, “decepcionadas com os textos conciliares”, procurariam “manter a confusão” e “fazer crer que os textos dos decretos conciliares são ruins”.5 Segundo ele, “o padre tradicional” não deve ignorar o Vaticano II ou opor-se a ele, mas “colaborar com a hierarquia, e à sua frente o papa, para a aplicação sábia, generosa e sobrenatural do Concílio, sempre fiel à legítima tradição da Igreja”. Segundo o arcebispo de Diamantina, “[…] opor-se ao Concílio seria, para ‘o sacerdote tradicional’, uma traição ao seu passado e um suicídio”, seria também “fazer o jogo dos inimigos da Igreja” e, finalmente, “seria opor a voz do Espírito Santo, ao sopro de sua ação, ser um obstáculo à ação de Deus em sua Igreja”.6 No mesmo ano, La Pensée catholique publicou um artigo de outra figura importante do CIP, Mons. Luigi Maria Carli, que buscava nos documentos do Concílio “a resposta solene da Igreja às dúvidas, às ansiedades suscitadas pela questão da obediência sacerdotal”.7 Na mesma edição, a revista publicou uma homilia pronunciada por Mons. 5 SIGAUD, Geraldo de Proença. Le Concile et le prêtre traditionnel. La Pensée catholique, n. 100, 1966, p. 17. 6 Ibid., p. 19-20. 7 CARLI, Luigi Maria Carli. L’obéissance du prêtre à la lumière de Vatican II. La Pensée catholique, v. 102, 1966, p. 9. 104 Lefebvre em 7 de maio de 1966, na qual convidava seus ouvintes a uma renovação interior em nome do Concílio.8 Em 24 de julho de 1966, o cardeal Alfredo Ottaviani, prefeito da Congregação para a Doutrina da fé, dirigiu uma carta aos presidentes das conferências episcopais e aos superiores das congregações religiosas. Oito meses após o encerramento do Vaticano II, ele relatou “notícias alarmantes sobre crescentes abusos na interpretação da doutrina do Concílio” e deplorou o aparecimento de “opiniões estranhas e audaciosas que […] perturbam demasiado as mentes de muitos fiéis”. O cardeal especificou tratar-se de “numerosas afirmações que, ultrapassando facilmente os limites da mera opinião ou hipótese, parecem minar de alguma forma o próprio dogma e os fundamentos da fé”. Deu dez exemplos dessas opiniões e erros, pediu aos diferentes membros do alto clero que se esforçassem para contê-los ou evitá-los, bem como para tratá-los e relatá-los à Santa Sé antes do Natal.9 Como superior dos Espiritanos (Congregação dos Padres do Espírito Santo), Mons. Lefebvre respondeu à carta do cardeal Ottaviani, em 20 de dezembro de 1966.10 Sua resposta é valiosa para se conhecer sua apreciação íntima 8 LEFEBVRE, Marcel. Le concile Vatican II, appel à la saintété. La Pensée catholique, v. 102, 1966, p. 38. 9 OTTAVIANI, Alfredo. Epistula ad venerabiles praesules conferentiarum episcopalium. Roma, 24 jul. 1966, em Acta Apostolicae Sedis, v. LVIII, n. 30, p. 659-661, 1966. (Tradução francesa em La Pensée catholique, n. 103, p. 14-16, 1966) 10 Archives du Séminaire d’Écône (ASE), E02-19, 001, carta do Mons. Marcel Lefebvre ao cardeal Alfredo Ottaviani, Roma, 20 dez. 1966. Reproduzida em LEFEBVRE, Marcel. J’accuse le Concile!. Martigny: Éditions Saint-Gabriel, 1976, p. 107-111. 105 do Concílio, um ano após seu fechamento. Escreveu ao cardeal que, “quando o Concílio inovou, abalou a certeza das verdades ensinadas pelo Magistério autêntico da Igreja como definitivamente pertencentes ao tesouro da Tradição”. Segundo ele, “o Concílio favoreceu de forma inconcebível a disseminação de erros liberais”. Acrescentou ainda: “A fé, a moral e a disciplina eclesiástica são abaladas em seus alicerces, de acordo com as previsões de todos os papas”.11 Poucos meses depois, em 19 de março de 1967, Lefebvre escreveu ao padre Victor-Alain Berto, que havia sido seu teólogo particular no Vaticano II, que o Concílio havia sido falsificado e corrompido por “falsos teólogos”, e que aqueles que compuseram os esquemas queriam introduzir doutrinas contrárias ao magistério eclesiástico”.12 Pouco mais de um ano e meio depois, em outubro de 1968, escreveu ao mesmo correspondente: “Enquanto a Igreja se fechar nos textos conciliares, ela estará minada”. Na mesma carta, afirmou que a Igreja que emergiu do Concílio era uma “nova religião”.13 Apesar de tudo, Lefebvre ainda não rejeitava o Vaticano II, como evidencia um artigo que publicou na revista Itinéraires em novembro de 1968: “Os textos do Concílio […] foram assinados pelo papa e pelos bispos, por isso não podemos duvidar de seu conteúdo”. Todavia, interrogava-se: “E, no entanto, como interpretar, por exemplo, 11 Ibid., p. 109-110. 12 Archives des Dominicaines du Sant-Esprit (ADSE), Fonds Victor-Alain Berto, dossier “Le deuxième Concile du Vatican”, carta do Mons. Marcel Lefebvre ao abade VictorAlain Berto, 19 mar. 1967. 13 Ibid., Roma, 29 out. 1968. 106 o texto sobre a liberdade religiosa que traz em si uma certa contradição interna? […] O que devemos fazer em última análise?”.14 Seus confrades e amigos brasileiros, os bispos Geraldo de Proença Sigaud e Antônio de Castro Mayer, também se questionavam, como evidenciado por uma carta que este último enviou a Mons. Lefebvre, em junho de 1968.15 No plano psicológico, os textos do Concílio e a evolução da Igreja conciliar colocam em profundo transtorno os antigos membros do CIP, pelo menos os mais convencidos. Algumas freiras dominicanas da comunidade fundada pelo abade Berto afirmam que seu fundador morreu como resultado deste Concílio,16 o que parece plausível à luz da correspondência do abade.17 No entanto, como escreveu explicitamente, o abade aceitou o Vaticano II em sua totalidade.18 Os beneditinos de Solesmes, mesmo os ex-alunos do Seminário francês que colaboraram com o CIP, igualmente aceitaram todos os textos do Vaticano II. As comunicações que fizeram sobre o assunto, em particular as de Mons. Prou,19 confirmam tal 14 LEFEBVRE,Marcel.Lueurs d’espérance. Itinéraires. Chroniques et documents, n. 127, 1968, p. 105. 15 ASE, E05-01, carta do Mons. Antônio de Castro Mayer ao Mons. Marcel Lefebvre, Campos, 29 jun. 1968. 16 Depoimento dado ao autor por uma freira da comunidade. 17 Veja a correspondência conciliar e pós-conciliar no ADSE. 18 ADSE, Fonds Victor-Alain Berto, dossier “Le deuxième Concile du Vatican”, esboço de carta (não enviada) do abade Victor-Alain Berto ao abade Harang, 3 jul. 1968. 19 Archives de l’abbaye Saint-Pierre de Solesmes (AASPS), dossier “Dom Jean Prou – Sur le Concile. Le regard de la foi sur le Concile Vatican II”. Ver também AASPS, Fonds dom Georges Frénaud. 107 fato, bem como a evolução subsequente da Congregação. Da mesma forma, Mons. Carli, que permaneceu conservador e tradicionalista, aceitou os textos do Concílio e mais tarde se tornou arcebispo de Gaeta. Os cardeais Ottaviani, Siri e Ruffini tiveram a mesma posição.20 A recepção do Vaticano II por outras personalidades e grupos A recepção do ConcílioVaticano II por tradicionalistas que não eram antigos membros do CIP não foi fundamentalmente diferente dos primeiros, mas se pode identificar posições mais radicais entre eles. Pensemos em particular no abade Georges de Nantes que, entre os sacerdotes, foi provavelmente o primeiro a resistir publicamente ao Vaticano II. Em uma de suas famosas Lettres à mes amis, publicou uma carta datada de 16 de julho de 1966, que havia escrito ao cardeal Ottaviani. Nela, argumentava que “um Concílio reunido para reconciliar a Igreja com o mundo moderno parece uma contradição em seus próprios termos”, que os Padres do Concílio traíram sua missão e caíram no modernismo.21 Outra figura que deve ser considerada é a do dominicano Roger-Thomas Calmel.22 Este religioso sustentava que o 20 Service des Archives de l’Archidiocèse de Sherbrooke (SAAS), P43/7.1 1937-1969 60, carta do Mons. Antonino Romeo ao Mons. Georges Cabana, 29 mar. 1967. 21 Lettre de l’abbé de Nantes au cardinal Ottaviani. Disponível em: http://crc-resurrection.org/notre-pere-fondateur/la-situationcanonique-de-labbe-de-nantes/lettre-de-labbe-de-nantes-aucardinal-ottaviani/ 22 FABRE, Père Jean-Dominique. Le père Roger-Thomas Calmel 1914-1975. Un fils de saint Dominique au XXe siècle. Suresnes: Clovis, 2012. 108 Vaticano II poderia ser pura e simplesmente ignorado: “Quanto à autoridade do Concílio … ele não definiu nada; assim, não somos obrigados – em virtude da fé – a levar a sério o que eles nos dizem”.23 Até sua morte, em 1975, escreveu artigos sobre teologia e espiritualidade na revista Itinéraires. Fundada em 1956 por Jean Madiran, esta revista tradicionalista deu a conhecer sua posição sobre o Vaticano II em seu primeiro número de 1966. Em um editorial intitulado “Recevoir les décisions du Concile”, pode-se ler: “[…] recebemos todas as decisões conciliares e […], na medida em que dependeria de nós, convidamos nossos leitores a recebê-las”. Especificava-se, porém, que esta recepção era feita “em conformidade com as decisões dos Concílios anteriores” e que, se um ou outro texto parecesse suscetível a várias interpretações, “a interpretação justa é fixada precisamente pelos Concílios anteriores e com o conjunto dos ensinamentos do Magistério”.24 Durante o período que nos preocupa, deve-se igualmente mencionar as lutas do abade Louis Coache. Em fevereiro de 1968, fundou a publicação mensal Le Combat de la Foi para divulgar suas lutas contra a “heresia modernista”. Naquele ano, publicou seu famoso Vade Mecum do católico f iel, assinado por 170 padres principalmente da França, mas, também, de vários outros países. Esses padres não se manifestaram contra o Concílio, mas contestavam o “‘espírito pós-conciliar’ denunciado por Paulo VI, que tende a suprimir toda adoração externa”. Em matéria de liturgia, eles lembravam aos padres “que 23 Lettre de Roger-Thomas Calmel, 10 fev. 1966, em Ibid., p. 318. 24 Editorial II. Recevoir les décisions du Concile. Itinéraires, n. 99, p. 21-26, 1966. 109 as regras anteriores ao Concílio Vaticano II permanecem em vigor, a menos que expressamente derrogadas por leis posteriores”. Em nome do Concílio, insistiam no uso do latim na liturgia, sublinhando o fato de que “os sacerdotes que conservam o latim para a celebração da Missa não são […] contra o Concílio”.25 Esse documento permite identificar a grande preocupação dos católicos tradicionalistas no final dos anos 1960, que seria determinante na recepção do Concílio: a reforma litúrgica e sua aplicação. Segunda fase (1969-2000): no caminho da rejeição do Concílio Após a promulgação (3 de abril de 1969) e a implementação (30 de novembro de 1969) das prescrições da constituição apostólica Missale Romanum,26 a recepção do Concílio Vaticano II pelos tradicionalistas entrou em uma nova fase. As questões doutrinais não foram ocultadas, mas a nova missa e os abusos litúrgicos tornaram-se um dos principais pontos de discórdia dos oponentes ao Concílio, como veremos em uma primeira subseção. Em seguida, nos deteremos na evolução da visão adotada por Mons. Lefebvre e pela Fraternidade Sacerdotal São Pio X sobre o Concílio Vaticano II, bem como das comunidades Ecclesia Dei, após as consagrações de 1988. 25 Vade Mecum du catholique fidèle. Face à la destruction concertée de l’Église 170 prêtre rappellent les principes essentiels de la vie chrétienne. Paris: Imp. Ferrey, 1968, p. 5-7. 26 PAULO VI. Constitutio apostolica Missale Romanum. Acta Apostolicae Sedis, v. LXI, n. 4, p. 217-222, 1969. 110 A questão litúrgica Os católicos tradicionalistas criticaram a reforma litúrgica conciliar antes de 1969. De fato, vários deles já haviam expressado reservas sobre isso e sobre a forma como era aplicada tal reforma nas dioceses e paróquias. Desde 1964, a pedido de Borghild Krane, uma psicóloga norueguesa, vários católicos organizaramse em associações nacionais para defender a liturgia tradicional. Em 1965, após uma primeira reunião feita em Roma com delegados de seis dessas associações, foi criada em Zurique, em 8 de janeiro de 1967, uma Foederatio Internationalis Una Voce.27 Foi nas instalações desta associação, apoiada por Mons. Lefebvre, que se redigiu o famoso Bref examen crítique du Nouvel Ordo Missae, de 5 de junho de 1969, e co-assinado pelos cardeais Ottaviani e Bacci. Na carta que acompanhava este documento, está escrito que o novo rito “se afasta de forma impressionante, no geral e nos detalhes, da teologia católica da santa missa, tal qual formulada na XXa sessão do concílio de Trento”. Esta carta terminava com uma súplica na qual se pedia ao papa que “não […] fosse vetada a possibilidade de recorrer ao íntegro e fecundo Missal romano de Saint Pie V”.28 Os ataques tradicionalistas contra a nova missa vieram de todos os lados: de Mons. Antônio de Castro Mayer, bispo da dioceses fluminense de Campos, no Brasil, e antigo membro do comitê diretor do CIP, que escreveu a Paulo VI para expressar as preocupações que afligiam 27 Foederatio internationalis Una Voce, “Bref historique”. Disponível em: http://www.fiuv.org/p/fr-who-we-are.html 28 “Bref Examen critique de la nouvelle messe”. Itinéraires, n. 141, p. 216-218,1970. 111 seu coração como sacerdote e bispo diante da reforma da missa, e lhe implorava a “autorizar que continuasse a usar o Ordo missae de Saint Pie V”;29 do abade Raymond Dulac que, em um artigo que se tornou referência entre os tradicionalistas,30 fez uma crítica extremamente severa ao novo ordo e afirmou explicitamente que se recusava a aplicá-lo;31 do abade de Nantes que, em sua revista Contreréforme catholique, denunciou “a substituição fraudulenta da Ceia luterana e de uma celebração progressista do Santo Sacrifício da missa católica”;32 de Jean Madiran, a quem parecia “absolutamente impossível, em plena consciência, que a aceitação da nova missa […] nunca vá além de uma reservada aceitação prudente, circunspecta e desolada”;33 do padre Calmel, que “considera seu dever como sacerdote recusar-se a celebrar a missa em um rito equívoco”;34 do padre Guérard des Lauriers – o futuro bispo sedevacantista – que declarou “não poder usar o novo Ordo missae”;35 do 29 MAYER, Antônio de Castro. “Carta ao papa Paolo VI, Considerações sobre o ‘Novus ordo missae’”. Ontem Hoje Sempre, v. 56, 2000. 30 VAQUIÉ, Jean. La Révolution liturgique. Chiré-enMontreuil: Diffusion de la Pensée Française, 1971, p. 182. 31 DULAC, Raymond. Courrier de Rome, n. 49, 25 jun. 1969 apud VAQUIÉ, La Révolution liturgique, op. cit., p. 171. 32 NANTES, Georges. Contre-réforme catholique, n. 27, dez. 1969 apud VAQUIÉ, La Révolution liturgique, op. cit., p. 184. 33 MADIRAN, Jean. Sous réserve, pas plus. Itinéraires, n. 139, 1970, p. 28. 34 Déclaration du P. Calmel O. P. Itinéraires, n. 139, 1970, p. 74. 35 LAURIERS, Michel-Louis Guérard. Déclaration. Itinéraires, n. 142, 1970, p. 50. 112 abade Coache, que convidou “de maneira expressa todos os fiéis, preocupados com a verdadeira fé e união com Deus, a se absterem desta nova Missa”;36 de Paul Scortesco, que afirma que “esta é a missa da Revolução”, sendo que ela “não é mais um sacrifício, mas um sacrilégio”;37 de Jean Vaquié, que, em 1971, escreveu um livro intitulado La Révolution Liturgique, no qual denunciava a nova missa como um passo de uma conspiração e como uma protestantização do culto católico38 etc. Quanto ao Mons. Lefebvre, este aceitou as primeiras reformas litúrgicas de 196539 e, a princípio, teve uma atitude bastante hesitante em relação ao Novus Ordo. Em 1970, afirmou que era “um exagero dizer que a maioria dessas missas são inválidas” e que era melhor assistir à nova missa do que se abster.40 No início da reforma, aconselhava os padres a manterem ao menos o ofertório e o cânone de antes.41 Inicialmente, ele não compartilhava do radicalismo de algumas das personagens mencionadas acima. No entanto, seu julgamento evoluiu com o tempo. Em 1971, quando o uso do novo missal tornou-se 36 COACHE, Louis. Combat de la foi, 1 dez. 1969, p. 5 apud VAQUIÉ, La Révolution liturgique, op. cit., p. 188. 37 SCORTESCO, Paul. Messe: sacrifice ou sacrilège. Lumière, 15 ago. 1970, p. 10 apud VAQUIÉ, La Révolution liturgique, op. cit., p. 188. 38 VAQUIÉ, La Révolution liturgique, op. cit., p. 141-142. 39 MALLERAIS, Bernard Tissier de. Marcel Lefebvre, une vie. Étampes: Clovis, 2002, p. 440. 40 Carta do Mons. Marcel Lefebvre a Gérald Wailliez, 17 fev. 1970 apud MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 442. 41 MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 489. 113 obrigatório, ele claramente o rejeitou.42 Diante dos abusos litúrgicos e do agravamento da crise pós-conciliar, ele se tornou cada vez mais severo. Em 1975, afirmou que a nova missa “não obriga ao cumprimento do dever dominical”43 e, em 1977, disse que era necessário evitar “quase que radicalmente, toda a participação na nova missa”.44 Mais tarde, em 1981, ele qualificou a nova missa como “missa envenenada”.45 Há, portanto, uma evolução no julgamento e na atitude de Mons. Lefebvre em relação à nova liturgia, o que igualmente aconteceu em relação à sua posição quanto ao Concílio. Vaticano II visto por Mons. Lefebvre e pela Fraternidade Sacerdotal São Pio X Nas décadas de 1970 e 1980, Mons. Lefebvre viajou pelo mundo exortando os fiéis e estabelecendo em diferentes locais a Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX), que fundara em 1970. Ele criticava cada vez mais fortemente o Concílio, comparando suas principais doutrinas aos ideais da Revolução Francesa: a liberdade religiosa corresponderia à Liberdade; a colegialidade, à Igualdade; o ecumenismo, à Fraternidade.46 Em 1974, escreveu um manifesto que causou 42 Ibid., p. 487-488. Depoimento do abade Paul Aulagnier. Fideliter, n. 59, p. 118-119, 1987. 43 Carta do Mons. Marcel Lefebvre à M. Lenoir, 23 nov. 1975 apud MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 490. 44 COSPEC (Conférences spirituelles à Ecône) 42 B, 21 mar. 1977. 45 COSPEC 86 A e B, 24 e 25 jun. 1981. 46 Por exemplo, LEFEBVRE, Marcel. Un évêque parle, Mgr Lefebvre: Écrits et allocutions, v. 1, 1963-1974. Jarzé: Éditions Dominique Martin Morin, 1974, p. 196-197. 114 grande comoção, contribuindo para federar pessoas ao seu redor e que teve consequências em suas relações com a Santa Sé. Nesse documento, datado de 21 de novembro, declarou em particular que se recusava a “seguir a Roma de tendência neomodernista e neoprotestante que se manifestou claramente no Concílio Vaticano II e depois do Concílio em todas as reformas que dele resultaram”.47 Após esta declaração contundente, foi convocado a seguir para Roma e exigido que se explicasse, o que fez em 13 de fevereiro e 3 de março de 197548. Em 22 de julho de 1976, foi atingido por suspensão a divinis,49 ao que ele respondeu: “Pedem-me que obedeça à ‘Igreja Conciliar’, como o arcebispo Benelli a chama. Mas esta Igreja conciliar é uma Igreja cismática, porque rompe com a Igreja Católica de todos os tempos”.50 Em 29 de agosto de 1976, a pedido das “Associações tradicionais”, Mons. Lefebvre celebrou uma missa na feira comercial de Lille, onde se encontravam cerca de 7 mil pessoas.51 Nesta ocasião, declarou: “[…] o que a Revolução fez não é nada comparado ao que o Concílio Vaticano II fez, nada! Teria sido melhor se os 30, 40, 50.000 padres que abandonaram suas batinas, que abandonaram seu juramento diante de Deus, tivessem sido martirizados, ido para o 47 Déclaration de Mgr Marcel Lefebvre. Itinéraires, n. 189, p. 5-8, 1975. 48 MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 507. 49 Ibid., p. 514. 50 LEFEBVRE, Marcel. Quelques réflexions à propos de la ‘suspense a divinis’”, 29 jul. 1976 apud MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 514. 51 MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 516. 115 cadafalso, eles teriam pelo menos ganhado suas almas. Agora eles correm o risco de perdê-las”.52 Naquele ano, ele também publicou um livro intitulado J’accuse le Concile, um título que ele justificou escrevendo “que o espírito que dominou o Concílio e inspirou tantos textos ambíguos e equívocos e até francamente errôneos não é o Espírito Santo, mas o espírito do mundo moderno, um espírito liberal, teilhardiano, modernista, oposto ao reino de Nosso Senhor Jesus Cristo”.53 Sedevacantismo Paralelamente às críticas de Mons. Lefebvre, da Fraternidade Sacerdotal São Pio X e das comunidades amigas que o cercavam, desenvolveu-se um movimento radical em suas conclusões, o sedevacantismo. Em 1971, o jesuíta mexicano Joaquín Sáenz y Arriaga publicou um livro no qual afirmava que Paulo VI havia fundado uma nova religião e, portanto, não poderia ser papa da Igreja Católica.54 Mais tarde, em 1973, ele publicou outra obra na qual concluiu que a Sé de Pedro estava vaga por causa das heresias de Paulo VI.55 Esses dois livros irão contribuir para o desenvolvimento do sedevacantismo, que foi implantado pela primeira vez no México, Estados Unidos e 52 LEFEBVRE, Marcel. Lille – 29 août 1976. Homélies “Été chaud 1976”. Textes officiels – Fraternité Saint-Pie X. Martigny: Éditions Saint-Gabriel, [s.d.], p. 28. 53 LEFEBVRE, J’accuse le Concile!. Martigny: Éditions SaintGabriel, 1976, p. 9ss. 54 SÁENZ Y ARRIAGA, Joaquín. La nueva iglesia montiniana. Palmdale: The Christian Book Club of America, 1971. 55 SÁENZ Y ARRIAGA, Joaquín. Sede Vacante. “Paulo VI no es legitimo papa”. México: Editores Asociados, 1973. 116 Espanha, assim como na França, com o dominicano MichelLouis Guérard des Lauriers, que também esteve muito envolvido na redação do Bref examen crítique du nouvel Ordo Missae. Em 1979, em um estudo intitulado Le siège apostolique est-il vacant?, ele desenvolveu uma tese segundo a qual Paulo VI seria papa “materialiter”, mas não “formaliter”, porque ele não tem mais o “propósito usual, real e efetivo” de “promover o Bien Fin que compete à Igreja”. Em consequência, escreveu: “não há mais nenhuma Comunicação procedente do Cristo, nem Autoridade realmente exercida”.56 Desde então, os movimentos sedevacantistas desenvolveram-se em múltiplos grupos desunidos (sedeprivatistas, católicos Semper Idem, conclavistas), mas que estão ligados por um ponto em comum: a rejeição do Concílio Vaticano II e de todas as reformas que se seguiram, bem como a afirmação de que a Sé de Pedro está vaga desde a morte de Pio XII, devido às heresias formuladas pelos papas que o sucederam. Neste aspecto, há um profundo ponto de divergência com a Fraternidade Sacerdotal São Pio X e as comunidades próximas a ela. Da rejeição do Concílio à excomunhão Em 1983, diante da “autodestruição da Igreja”, Mons. Lefebvre e Mons. Castro Mayer redigem uma carta aberta ao papa, seguida de um “Bref résumé des principales erreurs de l’écclésiologie conciliaire”, na qual denunciavam os principais erros que deram origem à situação em que a Igreja encontrava- 56 GUÉRARD DES LAURIERS, Michel-Louis. Le Siège apostolique est-il vacant?. Cahiers de Cassiciacum, n. 1, 1979, p. 57. 117 se.57 Mais tarde, em agosto de 1985, antes da realização do sínodo extraordinário dos bispos por ocasião do vigésimo aniversário do encerramento do Concílio, os dois prelados escreveram novamente a João Paulo II para expressar suas apreensões e anseios. Em particular, denunciavam a liberdade religiosa e suas consequências, afirmando que “se o próximo Sínodo não retornar ao magistério tradicional da Igreja em matéria de liberdade religiosa, mas confirmar este grave erro, fonte de heresias, [eles estarão] no direito de pensar que os membros do Sínodo não professam mais a fé católica”.58 Em 25 de janeiro de 1986, João Paulo II anunciou a realização de “um encontro especial de oração pela paz que seria realizado na cidade de Assis”, “com representantes não apenas das várias Igrejas e comunhões cristãs, mas também de outras religiões do mundo”.59 Para Mons. Lefebvre, foi “um insulto a Nosso Senhor Jesus Cristo”.60 Em 27 de agosto de 1986, escreveu a oito cardeais para lhes pedir que protestassem contra “o cortejo de religiões planejado na cidade de São Francisco”.61 Após o congresso, Mons. Lefebvre e Mons. Castro Mayer protestaram publicamente e com extremo vigor contra esta reunião, em uma declaração conjunta datada de 2 de dezembro de 1986: 57 ASE, Fonds Marcel Lefebvre, E 03-17, carta aberta de Mons. Marcel Lefebvre e de Mons. Antônio de Castro Mayer a João Paulo II, Rio de Janeiro, 21 nov. 1983. 58 Solennelle mise en garde de Mgr Lefebvre et de Mgr de Castro Mayer au Pape Jean-Paul II. Fideliter, n. 49, 1986, p. 4-6. 59 La Documentation catholique, n. 1913, 1986. col. 235. 60 COSPEC 117 B, 28 jan. 1986. 61 MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 565. 118 O ápice desta ruptura com o magistério anterior da Igreja realizou-se em Assis, depois da visita à Sinagoga. O pecado público contra a unicidade de Deus, contra o Verbo Encarnado e a sua Igreja faz-nos estremecer de horror: João Paulo II encorajando as falsas religiões a orar aos seus falsos deuses: um escândalo sem medida e sem precedentes […] somos forçados a notar que esta religião modernista e liberal da Roma moderna e conciliar está se afastando cada vez mais de nós, que professamos a fé católica dos onze papas que condenaram [“desde 1789 a 1958”] esta falsa religião. A ruptura, portanto, não vem de nós, mas de Paulo VI e João Paulo II, que rompem com seus predecessores. […] Consideramos assim, nulo e sem efeito tudo o que foi inspirado por esse espírito de negação: todas as Reformas pós-conciliares e todos os atos de Roma que são realizados nessa impiedade.62 Além disso, em 1987, Mons. Lefebvre recebeu da Santa Sé a resposta às dubia [dúvidas] sobre a liberdade religiosa que havia submetido em outubro de 1985 à Congregação para a Doutrina da Fé.63 Tal resposta o decepcionou enormemente, e ele a considerou ainda mais grave do que o encontro inter-religioso de Assis: “Uma coisa 62 Déclaration de Mgr Lefebvre et de Mgr Antônio de Castro Mayer faisant suite à la visite de Jean-Paul II à la Synagogue et au congrès des religions à Assise, Fideliter, n. 55, 1987, p. 19-20. 63 Publicada e intitulada como Mes doutes sur la liberté religieuse. Étampes: Clovis, 2000 (com primeira edição de 1987 com o título Dubia sur la déclaration conciliaire sur la liberté religieuse présentés à la S.C.R. pour la Doctrine de la Foi par S. Exc. Mgr Marcel Lefebvre, archevêque-évêque émérite de Tulle, fondateur de la Fraternité Sacerdotale Saint-Pie X). 119 é simplesmente realizar uma ação grave e escandalosa, outra é afirmar princípios falsos e errôneos, que consequentemente têm conclusões desastrosas na prática”.64 Naquele ano, publicou um livro intitulado Ils l’ont découronné. Du libéralisme à l’apostasie. La tragédie conciliaire.65 Nessa obra, ele denunciava o que chamava de “banditismo do Vaticano II”, em referência ao “banditismo de Éfeso”. Encontra-se igualmente na obra um dos argumentos que será cada vez mais usado pelos tradicionalistas para rejeitar o Concílio, ou pelo menos para não aplicá-lo, o do caráter pastoral do evento: “Declarando este concílio ‘pastoral’ e não dogmático, enfatizando o aggiornamento e o oecumenismo, esses papas imediatamente privaram o Concílio e a si mesmos da intervenção do carisma da infalibilidade que os teria preservado de todo erro”.66 Depois de Assis, após a resposta às suas dubia sobre a liberdade religiosa e diante do fracasso de uma tentativa de acordo com Roma, Mons. Lefebvre tomou a decisão de consagrar bispos, o que fará com Mons. Castro Mayer, em 30 de junho de 1988,67 incorrendo em excomunhão latae sententiae [sentença automática]. Essas consagrações geraram uma profunda divisão dentro do mundo tradicionalista e tiveram consequências sobre a recepção do Concílio. Para 64 Mgr Lefebvre: Rome est dans les ténèbres. Fideliter, n. 5, 1987, p. 2. 65 LEFEBVRE, Marcel. Ils l’ont découronné. Du libéralisme à l’apostasie. La tragédie conciliaire. Escurolles: Éditions “Fideliter”, 1987. 66 Ibid., p. 163. 67 Sobre esse assunto, ver Fideliter, n. 64, 1988. 120 aqueles que permaneceram no rebanho da FSSPX, a rejeição foi cada vez mais acentuada e total, e os laços com Roma enfraqueciam-se; para aqueles que se recusaram a seguir Mons. Lefebvre, ocorreu de modo diferente. As Comunidades Ecclesia Dei Em 2 de julho de 1988, imediatamente após as consagrações, João Paulo II publicou o Motu Proprio Ecclesia Dei, que instituia uma comissão com o mesmo nome, cuja proposta era colaborar com os bispos, os dicastérios da Cúria romana e os grupos interessados, com o objetivo de facilitar a plena comunhão eclesial de sacerdotes, seminaristas, comunidades religiosas ou religiosos individuais que até então tinham vínculos com a Fraternidade fundada por Mons. Lefebvre e que desejam permanecer unidos ao sucessor de Pedro na Igreja Católica preservando suas tradições espirituais e litúrgicas.68 No dia das consagrações, uma quinzena de padres e outra de seminaristas deixaram a FSSPX. Em 2 de julho, no mesmo dia da criação da comissão Ecclesia Dei, esses sacerdotes assinaram em Paris uma declaração de intenções na qual expressavam o desejo de poderem ser canonicamente erigidos novamente pelas autoridades eclesiásticas competentes para a realização de sua vocação específica, para poderem se consagrar ao cuidado dos fiéis, e especialmente, à formação dos sacerdotes 68 JOÃO PAULO II. Motu proprio Ecclesia Dei, 2 jul. de 1988, em Acta Apostolicae Sedis, v. LXXX, n. 12, p. 1495-1498, 1988. 121 em um espírito autenticamente católico… e poder celebrar o culto divino segundo as diretrizes de uma tradição incontestavel.69 Dentre eles, alguns foram recebidos em Roma dias depois e foram encorajados a fundar uma associação de vida apostólica que tomou o nome de Fraternidade São Pedro.70 Tal associação foi oficialmente estabelecida em 18 de julho de 1988 na Abadia de Hauterive e canonicamente erigida em 18 de outubro de 1988.71 Esta dependia da Comissão Ecclesia Dei, até esta segunda ser desfeita em 17 de janeiro de 2019.72 Vários outros atores do tradicionalismo juntaram-se à Santa Sé por meio desta Comissão. Pensemos, por exemplo, em Dom Gérard Calvet, fundador e primeiro abade de Sainte-Madeleine du Barroux, que se distanciou de Mons. Lefebvre a partir das consagrações e que assinou um acordo com Roma em 29 de julho de 1988.73 Essa formalização implicava numa recepção mais positiva por parte do Concílio, bem como um reconhecimento da validade da missa e dos sacramentos promulgados pelos papas pós-conciliares.74 69 Declaração publicada em BOUCLIER, Thierry. L’abbé Denis Coiffet. Zélé serviteur de l’Église. Boulogne: Terra Mare Éditions, 2016, p. 110-111. 70 Ibid., p. 115. 71 Ibid., p. 121. 72 PAPA FRANCISCO. Motu proprio Da oltre trent’anni. 19 jan. 2019. 73 CHIRON, Yves. Dom Gérard, Tourné vers le Seigneur. Le Barroux: Éditions Sainte-Madeleine, 2018, p. 399-400. 74 Carta do cardeal Mayer a D. Gérard, 10 set. 1988, em CHIRON, Dom Gérard, Tourné vers le Seigneur, op. cit., p. 498-499. 122 Mons. Lefebvre guardava um julgamento severo contra aqueles que se aliavam à Roma: “É evidente que, colocando-se nas mãos das atuais autoridades conciliares, eles admitem implicitamente o Concílio e as reformas que dele resultaram, mesmo que recebam privilégios que permanecem excepcionais e provisórios”.75 As chamadas comunidades Ecclesia Dei trilharão o caminho do compromisso. No que diz respeito à recepção do Concílio Vaticano II, é difícil propor uma análise precisa no estado atual da pesquisa, especialmente porque os estudos sobre o tema são extremamente reservados, não estando em uma situação como a da Fraternidade São Pio X, que não tem, por assim dizer, mais nada a perder. De um modo geral, remarca-se uma aceitação mínima do Vaticano II, uma ocultação ou, a partir do discurso de Bento XVI em 2005, uma adesão à “hermenêutica da reforma na continuidade do único tema-Igreja”.76 Após as consagrações de 1988, testemunhamos uma fratura importante no mundo tradicionalista, que conduziu a uma recepção diferente do Vaticano II. A partir dessa data, deve-se distinguir entre a recepção do Concílio pelas comunidades Ecclesia Dei, que “recebiam” o Concílio sem entusiasmo ou que se calavam sobre o que pensavam, e a recepção do evento por aqueles que seguiram Mons. Lefebvre e que continuaram a rejeitar o Concílio como antes. 75 Carta do Mons. Lefebvre ao abade Daniel Couture, 18 mar. 1989 apud MALLERAIS, Marcel Lefebvre, une vie, op. cit., p. 600. 76 BENTO XVI. Discours du pape Benoît XVI à la curie romaine à l’occasion de la présentation des vœux de Noël, 22 dez. 2005. 123 Terceira fase (2000-): aprofundamento teológico e reflexão crítica Após as consagrações de 1988, as discussões entre a FSSPX e Roma foram praticamente inexistentes, apesar de alguns contatos não oficiais e esporádicos. O jubileu do ano 2000 mudará o contexto. Para tal ocasião, a FSSPX organizou uma grande peregrinação a Roma que reuniu mais de 6 mil pessoas. Tendo tomado conhecimento deste evento pela imprensa, o cardeal Castrillón Hoyos, presidente da Comissão Ecclesia Dei, tomou a iniciativa pessoal de se encontrar com os bispos da Fraternidade São Pio X. Seguiuse a abertura oficial das discussões doutrinais com vistas à reconciliação, discussões para as quais, visando assegurar sua continuidade, a FSSPX exigiu dois pré-requisitos : 1) que a Santa Sé permitisse que todos os padres católicos celebrassem a missa de acordo com o chamado rito de São Pio V e 2) que as excomunhões pronunciadas contra os quatro bispos da FSSPX fossem suspensas.77 Embora a Santa Sé tenha cedido a esses pedidos, em 7 de julho de 2007 para o primeiro78 e em 21 de janeiro de 2009 para o segundo,79 as discussões estagnaram-se por razões doutrinárias, exceto para a União Sacerdotal Saint-Jean-Marie-Vianney, fundada pelo Mons. Castro Mayer em 1982, que havia sido associada 77 Lettre du cardinal Darío Castrillón Hoyos à Mgr Bernard Fellay. Éstado do Vaticano, 5 abr. 2002. 78 BENTO XVI. Motu Proprio Summorum pontificum. Acta Apostolicae Sedis, v. XCIX, n. 9, p. 777-781, 2007. 79 BATTISTA RE, Giovanni, Décret de la Congrégation pour les évêques. Rome, 21 jan. 2009. Acta Apostolicae Sedis, v. CI, n. 2, p. 150-151, 6 fev. 2009. 124 às discussões: ela foi elevada à condição de Administração Apostólica em 18 de Janeiro de 2002.80 As necessidades de discussões doutrinais, no centro das quais estava o Vaticano II, levaram a recepção do Concílio pelos tradicionalistas da FSSPX a uma nova fase envolvendo estudos muito mais aprofundados sobre os pontos do Concílio que funcionavam como obstáculos. Discussões da FSSPX com Roma e aprofundamento da reflexão As discussões doutrinárias entre Roma e a FSSPX deram origem a colóquios e publicações produzidos pela Fraternidade, que tinham por objetivo preparar os intercâmbios e constituir um fundo doutrinário para as reuniões. É fundamental enfatizar a organização pela FSSPX de quatro simpósios teológicos sobre o Concílio em 2002, 2003, 2004 e 2005, ocorridos em Paris. Tais eventos foram intitulados, respectivamente: La religion et le Vatican II, La conscience dans la religion de Vatican II, L’unité spirituelle du genre humain dans la religion de Vatican II e Autorité et réception du concile Vatican II.81 Entre os participantes, estavam tanto 80 BATTISTA RE, Giovanni, Decretum de Administratione Apostolica personali “Sancti Ioannis Mariae Vianney” condenda. Roma: Congrégation pour les évêques,18 jan. 2002, em Acta Apostolicae Sedis, v. XCIV, n. 4, p. 305-308, 2002. 81 La religin de Vatican II. Études théologiques. Premier symposium de Paris, 4-5-6 octobre 2002. Paris: Les Cercles de Tradition de Paris éditeurs, 2003; La conscience dans la religion de Vatican II. Études théologiques. Deuxième symposium de Paris, 9-10-11 octobre 2003. Avrillé: suplemento da revista Le Sel de la terre, n. 50, 2004; L’unité spirituelle du genre humain dans la religion de 125 sacerdotes da FSSPX e vários professores universitários como membros de comunidades amigas, como os dominicanos de Avrillé e a Fraternidade da Transfiguração. Nas palavras de D. Richard Williamson (um dos quatro bispos consagrados em 1988) em seu discurso de abertura do primeiro simpósio, tratava-se de tirar “os ensinamentos em vista do diálogo com as autoridades romanas”.82 Segundo outros oradores, tratase de uma “batalha teológica”,83 de uma preparação “para os confrontos futuros”.84 A ideia é construir “um pequeno arsenal que contribuirá […] para colocar em evidência a responsabilidade irrefutável do Vaticano II na crise da Igreja”.85 Ao término desse simpósio, os sessenta conferencistas produziram uma “declaração final” que se entendia síntese da recusa do Concílio por parte da FSSPX após quarenta anos de resistência, assim como um “esforço de clarificação e de unidade”, tanto por tais membros como em relação à “Igreja oficial”.86 Esse documento, que condensa o pensamento da Fraternidade São Vatican II. Études théologiques. Troisième symposium de Paris, 7-8-9 octobre 2004. Paris: edição especial da revista Vu de haut, 2005; Autorité et réception de Vatican II. Études théologiques. Quatrième symposium de Paris, 6-7-8 octobre 2005. Paris: edição especial da revista Vu de haut, 2006. 82 WILLIAMSON, Richard. Allocution d’ouverture. In: La religion de Vatican II, p. 5. 83 SÉLEGNY, Arnaud Sélégny. Préface. In: La conscience dans la religion de Vatican II, p. 4. 84 CACQUERAY, Régis. Allocution d’ouverture. In: Autorité et réception de Vatican II, p. 10. 85 Ibid., p. 8. 86 MALLERAIS, Bernard Tissier de. Préface. In: La religion de Vatican II, p. 1. 126 Pio X e daqueles que lhe são próximos no que tange ao Vaticano II, comporta oito pontos nos quais é claramente afirmado que o Concílio “elabora um novo cristianismo”, uma “religião diferente” ao “serviço do homem”. Segundo os autores da declaração, a Igreja conciliar não se vê como tão somente um “sinal da presença invisível de Deus entre os homens”; ela renuncia “a ser a única sociedade da salvação” e sua pastoral “negligencia o pecado original e a degradação da natureza humana”. Nesse documento, deplora-se igualmente que a ideia de cristianismo mostre-se ultrapassada e que a Igreja associe-se “oficialmente à visão liberal da laicidade do Estado, como sendo a única apta a favorecer a unidade do gênero humano”. No que tange à liturgia pós-conciliar, os assinantes do documento denunciavam que “a celebração se apresente como um memorial, não da cruz, mas da ceia na qual a assembleia se oferece ela mesma”. Na conclusão de tal documento, afirmou-se que o Vaticano II surgia “em ruptura radical com a Tradição católica […] totalmente centralizada em Deus, seu louvor e seu serviço”, enquanto que “o Concílio fundou as bases de uma nova religião destinada principalmente a exaltar a pessoa humana e a realizar a unidade do gênero humano”. Consequentemente, os conferencistas do simpósio reafirmavam “sua ligação inquestionável à religião católica tal qual ela foi vivida pelos fiéis e ensinada por todos os papas até o dia anterior ao Vaticano II”.87 A Hermenêutica de Bento XVI e suas repercussões no mundo tradicionalista Além da FSSPX, um evento dará origem a muitos trabalhos no mundo tradicionalista em seu sentido amplo. 87 Déclaration finale. In: La religion de Vatican II, p. 357-359. 127 Trata-se do discurso pronunciado por Bento XVI na Cúria romana em 22 de dezembro de 2005, por ocasião da apresentação dos votos de Natal e dos quarenta anos do encerramento do Vaticano II. Referindo-se à recepção e à hermenêutica do Concílio, o papa desenvolveu a ideia de que a recepção do Vaticano II era difícil porque duas hermenêuticas contrárias foram confrontadas e entraram em conflito. Uma causou confusão, a outra, silenciosamente mas mais visivelmente, gerou e continua dando frutos. Por um lado, há uma interpretação que eu gostaria de chamar de “hermenêutica da descontinuidade e da ruptura”; esta pôde contar muitas vezes com a simpatia dos meios de comunicação de massa, e também de uma parte da teologia moderna. Por outro lado, há a “hermenêutica da reforma”, da renovação na continuidade do único tema-Igreja, que o Senhor nos deu; é um tema que cresce com o tempo e se desenvolve, mas permanece sempre o mesmo, o único tema do Povo de Deus em movimento.88 Em 2009, no contexto do debate provocado por esse discurso, Mons. Gherardini, que foi professor de eclesiologia e de ecumenismo na Pontifícia Universidade Lateranense até 1995, publicou um livro intitulado Le Concile Œcuménique Vatican II. Un débat à ouvrir.89 Nessa obra, o autor deplorava que o enraizamento do Vaticano II no Magistério precedente não tenha sido suficientemente 88 BENTO XVI. Discours du pape Benoît XVI à la curie romaine à l’occasion de la présentation des vœux de Noël, 22 dez. 2005. 89 GHERARDINI, Brunero. Le Concile Œcuménique Vatican II: Un débat à ouvrir. Frigento: Casa Mariana Editrice, 2009. 128 desvendado, à exceção, escreveu ele, dos ensaios de Mons. Agostino Marchetto.90 Ele insurgia-se igualmente contra a Histoire du concile Vatican II publicada sob a direção de Giuseppe Alberigo, “que tem por objetivo exclusivo criar as bases de uma única ideia: o Concílio-evento, para ultrapassar o conflito entre a Igreja pré-conciliar e a modernidade”.91 Segundo ele, “uma reflexão histórica e crítica sobre os textos conciliais impõe-se atualmente pela necessidade: uma reflexão que busque as ligações desses textos (no caso de efetivamente tais ligações existirem) com a Tradição católica em sua continuidade”.92 Deplorava “que o Magistério, os teólogos e os responsáveis pastorais fizeram do Vaticano II um absoluto”. Segundo ele, havia ali “um erro fundamental […] contra o qual torna-se imperativo reagir”.93 O autor solicitava assim um trabalho “de revisão e de reavaliação” dos textos conciliais por uma equipe de especialistas.94 Nos anos que se seguiram, Mons. Gherardini, que alimentava claramente uma simpatia cada vez mais 90 Ver particularmente MARCHETTO, Agostino. Il Concilio ecumenico Vaticano II: Contrappunto per la sua storia. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2005. Depois da publicação da obra de Mons. Gherardini, Mons. Agostino Marchetto publicou ainda o seguinte livro sobre o Vaticano II: Il Concilio Ecumenico Vaticano II: Per una sua corretta ermeneutica. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2012. 91 GHERARDINI, Le Concile Œcuménique Vatican II, op. cit., p. 17. 92 Ibid., p. 19. 93 Ibid., p. 26. 94 Ibid., p. 27. 129 marcada pela Fraternidade São Pio X,95 tornou-se gradual e explicitamente crítico em relação ao Concílio. Em 2011, publicou novo livro em continuidade ao primeiro, intitulado Concile Vatican II. Un débat qui n’a pas eu lieu.96 No ano seguinte, publicou o livro Il Vaticano II. Alle radici d’un equivoco,97 no qual respondia às críticas que lhe haviam sido feitas e resumia o problema do Concílio ao seu antropocentrismo.98 É interessante notar que a tradução francesa de seu livro Concilio Vaticano II, Il discorso mancato foi publicada pelo Courrier de Rome, associação que, a partir de 2004, toma a iniciativa de organizar vários colóquios sobre o Concílio Vaticano II, entre os quais se notam especialmente os seguintes: “Penser Vatican II quarante ans après” (de 2 a 4 de janeiro de 2004);99 “Vatican II : un débat à ouvrir” (de 8 a 10 de janeiro de 2010),100 na trilha da obra de Mons. Gherardini; “Vatican II, 50 ans après, quel bilan 95 GHERARDINI, Brunero. Quod et tradidi vobis: La Tradizione, vita e giovinezza della Chiesa. Frigento: Casa Mariana Editrice, 2010. 96 GHERARDINI, Brunero. Concilio Vaticano II: Il discorso mandato. Torino: Lindau, 2011. (Traduzido em francês no mesmo ano, com o título: Concile Vatican II. Un débat qui n’a pas eu lieu. Versailles: Courrier de Rome, 2011) 97 GHERARDINI, Brunero, Il Vaticano II: Alle radici d’un equivoco. Torino: Lindau, 2012. 98 Ibid., p. 367. 99 Penser Vatican II quarante ans après. Actes du VIe Congrès Théologique de Sì Sì No No. Rome – Janvier 2004. Versailles: Publications du « Courrier de Rome », 2004. 100 Vatican II : Un débat à ouvrir. Actes du IXe Congrès Théologique du Courrier de Rome. Paris, les 8-9 et 10 janvier 2010. Versailles: Publications du « Courrier de Rome », 2011. 130 pour l’Église” (de 4 a 6 de janeiro de 2013)101 e “1914-2014, la réforme de l’Église selon saint Pie X et selon Vatican II” (de 9 a 11 de janeiro de 2015).102 Após a publicação do livro do Mons. Gherardini em 2009, os Franciscanos da Imaculada organizaram um colóquio (de 16 a 18 de dezembro de 2010), cujo objetivo era fazer uma análise histórica, filosófica e teológica do Concílio.103 A perspectiva desse grupo é amplamente a mesma de Mons. Gherardini, ou seja, que o problema vem essencialmente da interpretação do Concílio e da dogmatização da dimensão pastoral do evento. Em 2012, o padre Serafino Lanzetta, dos Franciscanos da Imaculada, publicou um livro, Iuxta Modum. Il Vaticano II riletto alla luce della Tradizione della Chiesa,104 no qual ele argumenta que o Vaticano II deve ser considerado como um “momento” da Tradição e não como contendo toda a Tradição, enquanto afirma que o Vaticano II, em sua linguagem pastoral, nem sempre foi suficientemente claro. 101 Vatican II, 50 ans après, quel bilan pour l’Église. Actes du XIe Congrès Théologique du Courrier de Rome, 4-5-6 janvier 2013. Versailles: Publications du « Courrier de Rome », 2013. 102 1914-2014, la réforme de l’Église selon saint Pie X et selon Vatican II. Actes du XIIe Congrès Théologique du Courrier de Rome, 9-10-11 janvier 2015. Versailles: Publications du « Courrier de Rome », 2016. 103 MANELLI, Stefano Maria; LANZETTA, Serafino M. (org.). Concilio Ecumenico Vaticano II. Un Concilio Pastorale. Analisi storico-filosofico-teologica. Frigento: Casa Mariana Editrice, 2011. 104 LANZETTA, Serafino. Iuxta Modum. Il Vaticano II riletto alla luce della Tradizione della Chiesa. Siena: Cantagalli, 2012. 131 Conclusão Estas poucas páginas mostram que a recepção do Concílio Vaticano II pelos católicos tradicionalistas é um fenômeno extremamente complexo, comportando evoluções, bem como diferenças de interpretação e de reações, de acordo com os períodos e conjunturas. Tentamos abordá-lo por meio de uma periodização em três tempos, que exige aperfeiçoamentos e que se considera discutível, mas que permite oferecer uma visão geral da questão. Em um primeiro momento, podemos perceber junto à maioria dos tradicionalistas e particularmente junto aos antigos membros do CPI uma recepção dos textos intepretados à luz da Tradição, acompanhada da rejeição do espírito do Concílio, julgado contrário à Tradição. Assim, por exemplo, contra aqueles que interpretavam Vaticano II segundo sua “lógica” ou seu “espírito”, o abade Luc J. Lefèvre insistia sobre o fato de que se deveria guardar exclusivamente os textos.105 No entanto, tal posição não foi mantida por longo tempo, já que os textos do Vaticano II eram impregnados do famoso “espírito do Concílio”. Durante esse primeiro período, podemos igualmente constatar a gradual implantação de três atitudes junto aos tradicionalistas: 1) alguns deles aceitavam integralmente os textos conciliais e aderiam progressivamente ao “espírito do Concílio”; 2) outros, como Mons. Lefebvre, interrogavam-se sobre o valor dos ensinamentos do Vaticano II e sobre a aceitação que deveriam lhe dar diante da crise que se intensificava; e 3) 105 LEFÈVRE, Luc J. Y a-t-il un concile Vatican II ? oui ou non… La Pensée catholique, n. 121, 1969, p. 7. 132 outros ainda – e não se trata aqui de membros antigos do CIP – já se opunham radicalmente ao evento. Dois outros pontos devem ser evidenciados. Em primeiro lugar, globalmente, a reação não parece assentar-se sobre uma reflexão intelectual e teológica de grande profundidade (seria necessário aqui um estudo mais aprofundado para confirmação), mas, sobretudo, assenta-se sobre constatações concretas ligadas à crise pós-conciliar e a seus efeitos. Em seguida, os tradicionalistas são a descendência intelectual e espiritual desses “romanos” tão diferentes em relação ao papado e ao Magistério antes do Concílio. Eles encontraram-se assim totalmente desamparados e atormentados diante dos textos do Vaticano II, que julgavam em oposição à doutrina tradicional da Igreja. Em 1969, a promulgação e implementação da constituição apostólica Missale Romanum abriu uma nova fase na qual a questão da recepção do Vaticano II foi amplamente cristalizada pela recepção do novo missal. Durante esse período, testemunhou-se o estabelecimento gradual das três grandes tendências do tradicionalismo pós-conciliar: 1) a de Mons. Lefebvre, da FSSPX e de suas comunidades amigas, que gradualmente evoluíram para uma rejeição totalmente assumida do Concílio como um todo, bem como de uma grande parte do Magistério pós-conciliar (na medida em que este foi julgado contrário ao Magistério anterior e à Tradição) e que culminou nas consagrações de 1988; 2) a das chamadas comunidades Ecclesia Dei, que fizeram da rejeição da nova missa a principal ponta de lança de sua luta e evitaram pronunciar-se publicamente sobre o Vaticano II; e 3) a dos mais radicais, os sedevacantistas, que 133 apoiavam a ideia de que a Sé apostólica estaria vacante desde a morte de Pio XII devido às heresias professadas pelos papas desde o Concílio Vaticano II, cujos ensinamentos eles rejeitavam totalmente. Com exceção das comunidades Ecclesia Dei, a recepção é caracterizada por uma rejeição formal do Concílio e por reações negativas e fortes. Para esses movimentos, o Concílio é um corpo estranho na vida da Igreja, como um câncer a ser combatido. A partir do ano 2000, as discussões entre a Santa Sé e o movimento fundado por Mons. Lefebvre levaram a recepção do Concílio pelos tradicionalistas a uma nova fase. Para afirmar sua posição em Roma, a FSSPX viu-se obrigada a preparar suas armas e aprofundar suas reflexões teológicas sobre o Concílio, o que fez especialmente por meio de congressos e publicações, entre os quais devem ser destacadas as obras sobre o valor magisterial do Vaticano II. Além disso, essas discussões puseram fim ao consenso interno da FSSPX, pois deram origem a um movimento de “resistência” caracterizado pela recusa de qualquer relacionamento com Roma até que ela se “convertesse”. Para alguns, não é apenas o princípio dos acordos que deve ser revisto, mas também o das próprias discussões. Deve-se notar que, após a supressão da Comissão Ecclesia Dei, em janeiro de 2019, todas as ações devem agora ocorrer dentro da Congregação para a Doutrina da Fé. Durante esse período, devem ainda ser destacadas as consequências do discurso pronunciado por Bento XVI, em 22 de dezembro de 2005. Pela primeira vez, pessoas em perfeita comunhão com a Santa Sé, algumas delas próximas à antiga escola romana de teologia, expressaram oficialmente reservas sobre o Concílio, aproximando-se não apenas das ideias da FSSPX, mas da própria FSSPX. 134 A recepção do Concílio Vaticano II para católicos tradicionalistas é assim feita de evoluções e de rupturas, de divisões e de reaproximações, de renúncias e de radicalismos. Em consequência, estabelecer uma periodização do fenômeno torna-se uma operação extremamente complexa e, forçosamente, um tanto artificial. Como em história de modo geral a periodização é uma construção do historiador, um novo período comporta frequentemente uma quantidade maior de elementos de continuidade que aqueles de ruptura. Desse modo, se a data de 1969 marca certamente uma fratura e permite propor o início de uma nova fase na recepção do Concílio, 1988 – com as consagrações – poderia igualmente justificar a abertura de uma nova fase, com a cisão que ela gera no mundo tradicionalista e a criação da Comissão Ecclesia Dei. Todavia, embora se sugira a existência inegável de uma ruptura na história do tradicionalismo, não parece que tenha realmente havido tal fratura se olharmos o fenômeno unicamente sob o ângulo da recepção. De fato, tal gesto não traz qualquer mudança fundamental no discurso da FSSPX ou de suas comunidades amigas, e não parece igualmente ter provocado – em todo caso, não de imediato – uma evolução do pensamento dos membros das comunidades Ecclesia Dei, naquele momento ainda nascente. O silêncio que se observa em relação ao tema Vaticano II, junto aos movimentos ditos “aliados” à Roma, parece ser muito mais uma estratégia para guardar seus privilégios que uma real adesão ao Concílio. Porém, trata-se aqui de uma questão que mereceria um estudo aprofundado, como aliás mereceriam muitos outros aspectos da recepção do Concílio Vaticano II por católicos tradicionalistas. Catolicismo intransigente: análises das disputas ao redor da construção da Constituição Pastoral Gaudium et Spes Tiago Tadeu Contiero Na proximidade de comemorarmos os sessenta anos do encerramento do Concílio Vaticano II (1962-1965), não há dúvidas de que ele se revela como um marco no que diz respeito à relação da Igreja Católica com o mundo moderno, sendo responsável por reposicionar o catolicismo na sociedade contemporânea após séculos de embates. Tendo sido convocado de maneira inesperada pelo papa João XXIII, o Concílio teve como principal finalidade justamente realizar um aggiornamento do catolicismo, ou seja, atualizar a Igreja e alinhá-la ao novo contexto no qual estava inserida. De suas Declarações, Decretos e Constituições, destaca-se aqui o último documento aprovado pela Assembleia Conciliar: a Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS). Sendo o último dos documentos aprovados, a GS pode ser entendida como a materialização do “espírito” conciliar e dos ideais almejados por João XXIII. Mais do que isso, a análise detalhada de sua elaboração, bem como do documento final, permite-nos contemplar a disputa existente 136 por detrás do Vaticano II, que se refletiu posteriormente nos embates pela interpretação do Concílio como um todo. Ao longo desse capítulo, faremos uma análise do processo de elaboração da GS, destacando de maneira pormenorizada como ela reflete essas disputas internas pela condução do Concílio, com a forte influência desempenhada por setores da Igreja tidos como “conservadores” ou intransigentes. Fundamentando-se na análise de fontes primárias, como os diários dos Padres Conciliares, bem como em obras de referência sobre o tema, é possível constatar como a ação dos conservadores não foi capaz de impedir a promulgação da GS, mas contribuiu para que o documento final tivesse um tom mais alinhado aos seus interesses, possibilitando diversas interpretações e uma disputa pelo seu real sentido, que segue até os dias atuais. Os antecedentes do Concílio Vaticano II e sua convocação Sempre que se aborda a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, faz-se necessário uma rápida contextualização, a fim de situá-la no interior do Concílio Vaticano II, sendo essa Constituição o último dos documentos aprovados e promulgados pela Assembleia Conciliar, já em 1965. Para entender esse documento, bem como as disputas que marcaram toda a sua elaboração, temos que retornar até o ano de 1958, quando se encerrou o longo e complexo pontificado de Pio XII. Os quase vinte anos durante os quais ocupou o Trono de Pedro foram marcados, principalmente em seu início, pelo desenrolar da Segunda Guerra Mundial e, na sequência, por todo o desenvolvimento da Guerra Fria e da 137 reconstrução da Europa. Tratou-se de um período de intensas transformações sociais e culturais que alteraram as estruturas políticas, econômicas e religiosas da época e lançaram as bases para o desenvolvimento de uma nova sociedade, que se consolidaria nos anos seguintes e que se mostrava, de certa maneira, cada vez mais desalinhada em relação aos ensinamentos e doutrinas emanados pelo catolicismo. Com a morte de Pio XII, o Conclave que elegeu seu sucessor foi claramente dividido entre dois lados marcados por visões distintas da Igreja e do papel que esta teria frente a essa nova sociedade, que se desenhava já nos anos 1950. Desse modo, um grupo de cardeais, que poderíamos chamar hoje de “progressistas”, entendiam a necessidade de uma Igreja mais aberta ao mundo moderno, que dialogasse com as novas realidades sociais, inserida no interior delas. Um outro grupo de cardeais, por sua vez, seguiu o caminho oposto, compreendendo a necessidade de manter a Igreja no rumo já estabelecido pelos pontífices até então e consolidado por Pio XII, ou seja, de mantê-la afastada do mundo moderno, com concessões pontuais em alguns aspectos que não afetassem o catolicismo como um todo.1 1 São inúmeros os autores que abordam as aberturas tidas como pontuais efetuadas pela Igreja Católica na fase final do século XIX, aberturas essas que não comprometiam todo o arcabouço doutrinário desenvolvido para fazer frente ao mundo moderno. Destaca-se, nesse sentido, o estabelecimento de uma Doutrina Social da Igreja, a partir do pontificado do papa Leão XIII e seu posterior desenvolvimento ao longo das primeiras décadas do século XX. Tais avanços podem ser 138 Frente ao longo pontificado de Pio XII e ao impasse estabelecido entre os dois grupos, a opção direcionou-se para um cardeal de consenso, que fizesse um pontificado curto, considerado como um “Papa de Transição”. A partir desse posicionamento, o nome do cardeal de Veneza, Angelo Roncalli, começou a ganhar força. Eleito Papa, o cardeal Roncalli assumiu para si o nome de João XXIII. Pouco tempo depois de sua eleição, em 25 de janeiro de 1959, João XXIII anunciou ao mundo um audacioso projeto de pontificado, que consistia na realização de um Sínodo para a Diocese de Roma, na atualização do Código de Direito Canônico e, o mais complexo, em um Concílio Ecumênico para a Igreja. Não seria um Concílio como os demais que marcaram a História da Igreja. O primeiro aspecto distintivo deu-se pela sua convocação, que se mostrou como um fruto da ação individual de João XXIII e não de profundos estudos sobre algum aspecto doutrinário específico. Tampouco é possível afirmar que a convocação coincidisse com alguma grande crise dogmática, ou a consequência de algum cisma que fosse decorrente de interpretações variadas do ensinamento da Igreja. Desse modo, o Vaticano II já se afastava irreversivelmente dos dois grandes Concílios que o antecederam: Trento (1545-1563) e o Vaticano I (1869-1870), mesmo que em seu anúncio, o Sumo Pontífice não tenha esclarecido quais seriam os objetivos específicos do novo Concílio. constatados em CAMACHO, Ildefonso. Doutrina Social da Igreja: abordagem histórica. São Paulo: Loyola, 1995. 139 Objetivos do Concílio Vaticano II Os objetivos almejados pelo Concílio estão presentes na primeira Encíclica de João XXIII, Ad Petri Cathedram. Nela, o papa afirma: Profundamente animados por esta suavíssima esperança, anunciamos publicamente o nosso propósito de convocar um Concílio Ecumênico, em que hão de participar os sagrados pastores do orbe católico para tratarem dos graves problemas da religião, principalmente para se conseguirem o incremento da fé católica e a saudável renovação dos costumes no povo cristão e para a disciplina eclesiástica se adaptar melhor às necessidades dos nossos tempos.2 O excerto acima possibilita a compreensão dos objetivos de João XXIII. O primeiro deles seria o incremento da fé católica. Em seguida, a saudável renovação dos costumes cristãos e, por fim, adaptar a disciplina eclesiástica para atender às necessidades e exigências do tempo. Os três objetivos elencados indicam, na verdade, um único caminho: a atualização da mensagem cristã para a modernidade. Por ocasião da abertura dos trabalhos das comissões preparatórias, o papa expressa sua consciência da unicidade do Vaticano II. João XXIII resgata a história dos vinte Concílios anteriores, demonstrando os motivos pelos quais foram convocados e as medidas fundamentais que foram 2 JOÃO XXIII. Ad Petri Catedram, 1959. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/johnxxiii/pt/encyclicals/ documents/hf_j-xxiii_enc_29061959_ad-petri.html. Acesso em: 15 jul. 2024. (Tradução nossa) 140 tomadas por eles. É nesse aspecto que diferencia o Vaticano II, afirmando que: Na época moderna, com um mundo de fisionomia profundamente mudada e que se sustenta com dificuldades em meio aos atrativos e aos perigos da busca quase exclusiva dos bens materiais, ante o esquecimento ou debilidade dos princípios de ordem espiritual e sobrenatural que caracterizaram a implantação e a expansão da civilização cristã através dos séculos; na época moderna, digo, melhor do que levar um ou outro ponto doutrinário ou disciplinar até as fontes da Revelação e da Tradição, trata-se de renovar em seu valor e esplendor a substância do pensar e do viver humano e cristão, do qual a Igreja é depositária e mestra pelos séculos.3 Tratava-se, portanto, de um Concílio que se reconhecia enquanto distinto dos demais, preocupando-se não em levar às fontes os ensinamentos ou doutrinas, mas sim efetuar uma verdadeira renovação no conjunto de vida humana-cristã. Observemos que todas essas considerações eram oriundas do Papa. De modo ainda mais claro, os objetivos do Concílio são expostos na Sacrae laudis, Exortação Apostólica de João XXIII proferida no dia 6 de janeiro de 1962. O papa conclama que os sacerdotes rezem para que Concílio seja 3 JOÃO XXIII. Alocucíon del Santo Padre Juan XXIII a los membros de las comissiones pontifícias y secretariados preparatórios del Concílio Ecuménico Vaticano II, 1960. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/john-xxiii/es/speeches/1960/ documents/hf_j-xxiii_spe_19601114_commissionipreparatorie.html. Acesso em: 9 abr. 2024. (Tradução nossa) 141 uma nova Epifania, ou seja, uma nova manifestação de Deus no meio do mundo. Além dessa afirmação, essa mesma exortação indica o caminho que o Concílio deveria seguir. Nesse sentido, João XXIII afirma: Este corresponderá tanto mais perfeitamente à sua finalidade e à expectativa geral, quanto mais comportar, além de um revigoramento da fé católica e uma adaptação da legislação da Igreja conforme às circunstâncias hodiernas, também um esforço coletivo, decisivo e unânime, de santificação geral.4 Podemos afirmar que a finalidade do Concílio seria o revigoramento da fé católica e uma adaptação da legislação da Igreja que atendesse às circunstâncias de seu tempo. Além disso, objetivava uma santificação geral. Observa-se claramente que João XXIII não intencionava um Concílio que tivesse condenações aos “erros modernos” tampouco, que promulgasse novos dogmas. O objetivo era claramente atualizar a mensagem da Igreja, a fim de proporcionar um revigoramento da fé católica. A santificação geral, presente também na Exortação do Papa, poderia tranquilamente ser compreendida não apenas como uma santificação da Igreja e de seu clero, mas de toda a sociedade, de toda a humanidade. Fazer-se compreender por essa nova humanidade era tarefa essencial 4 JOÃO XXIII. Sacrae Laudis. Sacrae Laudis, 1962. Disponível em: https://w2.vatican.va/content/john-xxiii/pt/apost_exhortations/ documents/hf_j-xxiii_exh_19620106_sacrae-laudis. Acesso em: 15 jul. 2024. (Tradução nossa) 142 do Concílio e parte integrante da proposta que João XXIII expressava desde seu anúncio. A Gaudium et Spes Por que reforçarmos todos esses aspectos antes de tratarmos da Gaudium et Spes? Nossa perspectiva é que a Gaudium et Spes consolida justamente a finalidade do Concílio e consiste na tentativa de se consolidar, por meio de uma Constituição Pastoral, o “espírito conciliar” que conduziu João XXIII e deveria inspirar os padres conciliares. Para que o ideal de João XXIII predominasse no Concílio, foi necessária uma virada que ocorreu na primeira sessão e rompeu com o predomínio prévio da Cúria Romana sobre os trabalhos conciliares, mudando o eixo de forças na Igreja para as Conferências Episcopais. Tratou-se, de fato, de uma vitória das forças mais progressistas, o que abriu espaço para que o Concílio seguisse o rumo pensado pelo papa em sua convocação e que se materializaria, ao menos em parte, na Gaudium et Spes. João XXIII deixara claro que o Concílio, ao menos em sua concepção, deveria preocupar-se em tratar da relação entre Igreja e mundo moderno. O tão sonhado aggiornamento passaria, necessariamente, pelo modo como a Igreja e o mundo relacionavam-se. Entretanto, Kloppenburg, tratando da gênese da Constituição, afirma que, durante a fase de preparação, não se pensou em um esquema que abordasse os problemas do mundo moderno e que colocasse a Igreja positivamente frente a eles, indo no sentido contrário do que o papa esperava. Evidentemente, isso ocorreu devido ao clima ainda bastante tradicional que predominou durante 143 toda a fase preparatória do Vaticano II, sendo rompido nos primeiros dias do Concílio.5 Desse modo, a Gaudium et Spes não foi um documento tratado nos momentos de preparação do Concílio, não tendo sido desenvolvida antes da grande transformação ocorrida com a primeira sessão. Foi apenas na Aula Conciliar, que os padres formaram consciência da necessidade de se analisar os problemas da Igreja para além dos seus limites, ou seja, indo além do ad intra que tanto havia sido abordado nos esquemas preparatórios e que, naquele momento, mostravam seus limites para com os interesses reais do Concílio. Era isso que o cardeal Suenens tinha em mente, ao propor um novo documento abordando a relação Igreja-mundo. É na Gaudium et Spes, é no pensar ad extra que realmente o Concílio voltar-se-ia às questões do homem contemporâneo, deixando de lado aspectos estritamente doutrinais ou sistemáticos, inserindo-se efetivamente nos problemas sofridos pela humanidade – não apenas os católicos, mas toda a humanidade – e refletindo efetivamente a partir da realidade terrestre. Após o término da Primeira Sessão, João XXIII sentiu a necessidade de uma maior organização dos trabalhos e instalou uma Comissão Coordenadora para conduzir o Concílio. Coube a essa comissão a reorganização dos esquemas pré-conciliares, que de setenta foram reduzidos a dezessete, sendo que o último fora denominado De praesentia Activa Ecclesiae in Mundo (Da presença ativa da Igreja 5 KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II. Vol. III: Segunda Sessão. Petrópolis: Vozes, 1964. 144 no Mundo). Não se tratava mais apenas de uma presença pautada em princípios teológicos e doutrinários, mas, sim, na aplicação destes junto à realidade social, fundamentando-se na teologia das realidades terrestres, detalhada mais adiante. Para a construção desse documento, a Comissão Coordenadora estabeleceu uma Comissão Mista, formada pela Comissão Teológica e pela Comissão para o Apostolado dos Leigos. A eles foi confiada a elaboração do chamado Esquema XVII, cujo relator eleito fora o próprio cardeal Suenens. Segundo McGrath, o cardeal Suenens havia sugerido um esquema fundamentado em seis capítulos partindo da “admirável vocação do homem” e explorando temas como: direitos da pessoa, família, cultura, ordem socioeconômica, entre outros mais. Trata-se, portanto, de uma temática bastante vasta e intensa de ser trabalhada.6 Apesar da lentidão inicial, justificada pela necessidade de se refazer um documento chave para o Concílio, um primeiro esboço do Esquema XVII fora confeccionado, e a Comissão Mista entregou à Comissão Coordenadora o texto previsto em seus seis capítulos. Vale ressaltar que o esquema apresentado a João XXIII em maio era, na verdade, o segundo texto produzido. O primeiro deles, conforme nos diz Camacho, fora elaborado no mês de março de 1963. Esse primeiro esboço foi reestruturado pela Comissão Mista, contando ainda com 6 MCGRATH, Marcus Gregorio. Notas históricas sobre a Constituição Pastoral “Gaudium et spes”. In: BARAÚNA, Guilherme. A Igreja no mundo de hoje. Petrópolis: Vozes, 1967. 145 a presença de diversos observadores leigos. Elaborou-se, então, uma segunda versão, concluída no mês de maio.7 No mês de setembro, ainda antes da abertura da Segunda Sessão, uma terceira versão do texto foi composta por um grupo de especialistas conduzidos pelo cardeal Suenens. Segundo Camacho, Nele se destaca o tema da Igreja, que se sente inserida no mundo e, ao mesmo tempo, enviada a ele: essa missão não esgota a intervenção de Deus na história (daí a importância de discernir os sinais dos tempos) e, além do mais, é ultrapassada pela própria realidade do mundo e sua autonomia (a Igreja não tem resposta para todos os seus problemas).8 Essa terceira versão do texto já deixava claro que uma das chaves de leitura mais condizentes para compreensão do Esquema XVII seria, justamente, a teologia das realidades terrestres. Camacho destaca isso no excerto acima, ao afirmar que a realidade do mundo e sua autonomia ultrapassam a missão da Igreja. Entretanto, Paulo VI, no discurso de abertura da Segunda Sessão, não faz menção específica ao documento, mas, ao reforçar os quatro objetivos do Concílio, enfatiza que um deles é o estabelecimento de uma ponte entre a Igreja e o mundo, algo que viria a se concretizar com a Gaudium et Spes. Apenas ao final dessa segunda sessão é que se voltou a ter notícias do Esquema XVII. Entretanto, o documento 7 CAMACHO, Doutrina Social da Igreja, op. cit. 8 Ibid., p. 269. 146 não chegou às mãos dos Padres Conciliares, uma vez que a Comissão Coordenadora do Concílio, agora denominada de Conselho da Presidência, considerou que o texto apresentado ainda não estava apto a ser levado aos debates na Aula Conciliar, devendo, portanto, ser reelaborado. Essa decisão tomada pela Comissão fora justificada a partir de vários aspectos. Um deles, segundo McGrath, consiste no fato do primeiro capítulo ter sido considerado bastante deficitário, o que por si só já justificaria a necessidade de revisões antes de sua apresentação.9 Camacho concorda, entendendo que a Comissão Coordenadora concluiu que o texto apresentado possui um tom excessivamente teológico, distante da finalidade esperada para esse documento.10 Evidentemente, essa concepção fundamenta-se no fato de que o texto fora construído tendo por base justamente o esquema da fase preparatória, conservando diversos aspectos doutrinários – algo que prova a força de setores tradicionais nos bastidores do Concílio. Coube novamente ao cardeal Suenens preparar o novo Esquema a partir das considerações feitas pela Comissão Coordenadora. O trabalho teve início ainda em 1963, na cidade belga de Malines. Nesse momento, ocorreram os primeiros debates intensos acerca do tom a ser adotado pelo Esquema. Segundo McGrath, Sucedeu um verdadeiro debate entre aqueles que argumentavam que a verdadeira abordagem 9 MCGRATH, Notas históricas sobre a Constituição Pastoral “Gaudium et spes”, op. cit., p. 140. 10 CAMACHO, Doutrina Social da Igreja, op. cit., p. 270. 147 conciliar de questões sociais deveria ser especificamente teológica, no sentido de partir dos dados da revelação e ir até as conclusões doutrinais, e a outra escola, que, baseada no profundo impacto causado no mundo pelas duas grandes encíclicas sociais do papa João XXIII (Mater et Magistra e Pacem in Terris), defendia ardentemente a ideia de que todo documento destinado a falar ao mundo moderno devia partir de uma consideração dos problemas do mundo, e falar aos homens com uma linguagem e argumentos compreensíveis e aceitáveis para eles.11 O excerto de Mcgrath nos mostra a divisão existente no interior da comissão mista, que seria responsável pela elaboração do Esquema que, por volta dessa época, já era denominado de Esquema XIII, nome definitivo que seria mantido até a fase final de sua aprovação pelos Padres Conciliares. Essa divisão, como já era de praxe, refletia a divisão interna existente no próprio Concílio. No caso específico da discussão desse Esquema, colocado o ineditismo da temática proposta, os debates assumiriam um aspecto ainda mais intenso do que vinha ocorrendo nas Aulas Conciliares. O problema maior é que esses debates estavam acontecendo no interior do grupo responsável pela elaboração do texto e não na assembleia do Concílio. Na visão de quase todos os membros da Comissão, isso estava ocorrendo pela quantidade grande de membros que compunham o grupo – eram cerca de sessenta membros, assessorados por aproximadamente mais 11 MCGRATH, Notas históricas sobre a Constituição Pastoral “Gaudium et spes”, op. cit., p. 140. 148 cinquenta teólogos. Desse modo, caso seguissem no ritmo que vinham demonstrando, somando-se ainda a necessidade já comprovada de refazer o trabalho que anteriormente havia sido desenvolvido, havia grande chance de se manter o impasse e de o texto não ficar em condições de ser apresentado e votado. A solução foi a criação de uma subcomissão mista central, constituída por apenas seis membros, sendo três da Comissão Doutrinal e outros três da Comissão do Apostolado Leigo. Os seis eleitos eram europeus, motivo pelo qual foi requerido que outros dois bispos, um norteamericano e um africano, fossem acrescentados. A primeira decisão desse pequeno grupo foi trabalhar mais intensamente o capítulo primeiro, que assumiria uma posição mais doutrinal; os demais seriam publicados em forma de “anexos”, ou seja, não seriam debatidos nas Aulas Conciliares, uma vez que se entendia que eram temas particulares e temporais e que poderiam comprometer muito tempo em debates. Essa decisão, segundo McGrath, era bemintencionada, mas não foi bem-vista por parte dos Padres Conciliares, e, dado que o próprio Concílio preocupou-se cada vez mais em tratar de temas particulares, os anexos foram reincorporados ao texto principal, assumindo forma de capítulos.12 Passados os momentos iniciais, quando o documento ainda não tinha uma forma explícita, e os debates deixavam 12 Ibid., p. 141. 149 claro que não havia sequer um rumo específico a ser adotado por ele, a formação de uma subcomissão reduzida marcaria o início de uma segunda fase no processo histórico da construção do texto, em que o documento tomou uma forma mais concreta. Isso ocorreu a partir de uma reunião da subcomissão em Zurique, no começo de 1964. Conforme nos diz McGrath, nessa elaboração já era possível ter uma maior convicção dos conteúdos que seriam abordados no documento, bem como do seu estilo e do método a ser efetivamente utilizado. Dado o local onde ele foi produzido, o documento ficou conhecido como o Texto de Zurique.13 Foram substanciais os avanços trazidos por essa subcomissão. Segundo Delhaye, A perspectiva da exposição está completamente mudada. Passaram da teologia à pastoral, dos princípios aos fatos. Não se trata mais dos fundamentos teológicos ou metafísicos da dignidade humana. O que se põe na vanguarda são as situações psicológicas ou sociais […].14 Aqui, constatamos que ocorreu uma mudança na maneira como o documento estava sendo construído, posto que a ala ligada aos setores mais tradicionais perdeu espaço para os setores mais progressistas. Ao mesmo tempo, a Comissão alterou o foco do documento, que seguia sendo abordar o ser humano em sua realidade. O que foi transformado foi o modo como isso dar-se-ia: deixava-se 13 Ibid., p. 142 14 DELHAYE, Philippe. A dignidade da pessoa humana. In: BARAÚNA, Guilherme. A Igreja no mundo de hoje. Petrópolis: Vozes, 1967, p. 268. 150 de lado os aspectos teológicos para se favorecer uma análise de cunho pastoral, preocupada não apenas em teorizar sobre a pessoa, mas, sim, em refletir sobre sua prática, sobre sua realidade social a partir do mundo no qual o ser humano insere-se. Esse texto fora encaminhado à Comissão Mista que o analisou e, juntamente com as opiniões dos teólogos observadores, propôs algumas alterações que seriam atendidas por parte da subcomissão. Alberigo ressalta que a expectativa criada ao redor do Esquema XIII foi ampliando-se com o passar do tempo e, então, teria oportunidade de se concretizar ou não. Segundo o autor, Talvez seja realmente difícil dar-se conta hoje da amplitude da expectativa que rodeava então esse esquema. Falava-se da “obra prima” do Concílio, da obra acabada. Muitos pensavam de verdade que fosse chegado o momento para a Igreja, depois de se ter definido a si mesma, empenhar-se pelos problemas do mundo com clareza e generosidade, exatamente à medida que estava segura de ser distinta do mundo, mas co-responsável por sua salvação.15 Esse esperado documento foi apresentado no dia 20 de outubro de 1964. Nesse momento, D. Guano ressaltou: […] a urgente necessidade deste esquema como sendo o esforço da Igreja em transpor o hiato da ignorância mútua, desconfiança, indiferença ou aparente hostilidade, muitas vezes evidente, entre a Igreja e o mundo da idade moderna. […], ele deu 15 ALBERIGO, Giuseppe. Breve história do Vaticano II. Aparecida: Santuário, 2006, p. 128. 151 ênfase ao esquema como veículo e sinal do novo diálogo da Igreja com o mundo.16 A apresentação do texto alinhou-se às expectativas, ao ressaltar seus objetivos de superar o abismo criado entre a Igreja e o mundo moderno, abismo marcado pela desconfiança e hostilidade de ambas as partes e pelo fechamento da Igreja. Ressaltava a vontade da Igreja de estabelecer um novo diálogo com o mundo, superando essas diferenças. Entretanto, antes mesmo que o texto fosse aprovado para ser discutido, constatou-se que algumas expressões e conceitos necessitariam de um maior aprofundamento teológico/doutrinal. Ainda assim, o Concílio aprovou o Esquema com uma maioria absoluta de 1.576 votos favoráveis contra apenas 296 contrários. Essa aprovação garantiria que o texto fosse analisado de modo aprofundado e que seus capítulos fossem igualmente estudados e debatidos na Aula Conciliar. Sobre o texto em si, McGrath afirma que esse consistia em um pequeno prólogo identificando a Igreja com as alegrias e tristezas do mundo moderno e ressaltando a vontade do Concílio em falar a todos os fiéis. Seguiam-se três capítulos que versavam sobre a vocação do homem, o compromisso da Igreja a serviço do homem e o modo como os cristãos deveriam comportar-se no mundo. O quarto capítulo abordava os problemas da atualidade e era seguido por uma conclusão.17 16 MCGRATH, Notas históricas sobre a Constituição Pastoral “Gaudium et spes”, op. cit., p. 144. 17 Ibid. p. 143. 152 Efetivamente, havia problemas na construção textual, que não tardaram a aparecer. Até mesmo o cardeal Cento, ao apresentar o documento aos Padres Conciliares, reconheceu a existência de lacunas. Em seus diários do Concílio, Kloppenburg afirma que o cardeal Cento teria apresentado o documento nos seguintes termos: Não nos poupamos ao trabalho e, por isso, pedimos a vossa benevolência, embora o texto que apresentamos à vossa consideração contenha imperfeições e lacunas. Mas contamos com a contribuição das vossas observações e pareceres para o seu aperfeiçoamento definitivo, de modo que ele possa ser dado ao conhecimento de todos os homens, católicos ou acatólicos, crentes ou ateus, como mensagem de esperança num futuro melhor em que reine a paz de Cristo entre os homens.18 Além do reconhecimento dos problemas existentes no texto, a apresentação do cardeal Cento reforça o caráter ecumênico que o texto deveria ter e sua intenção de falar a todos os homens, transmitindo, da parte do Concílio e da Igreja como um todo, uma mensagem de esperança à humanidade. Kloppenburg indica que, após a apresentação do cardeal Cento, D. Guano, relator responsável pelo documento, tomou a palavra para proferir uma “longa e minuciosa” explicação do texto.19 Segundo Kloppenburg, D. Guano teria afirmado sobre o Esquema: 18 KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II. Vol. IV: Terceira Sessão. Petrópolis: Vozes, 1965, p. 199. 19 Id. 153 Trata-se de promover sempre mais o diálogo com todos os homens, para ouvi-los falar do que pensam, das condições em que vivem e dos problemas que os afligem e, ao mesmo tempo, para fazê-los conhecer o que a Igreja pensa sobre as condições, orientações e problemas principais do nosso tempo; para revelar-lhes de que modo a Igreja participa da evolução do nosso tempo e como os cristãos devem contribuir para a solução dos grandes problemas da hora presente.20 Observemos novamente o reforço do relator em destacar a finalidade universal do Esquema. Para que essa finalidade seja alcançada, D. Guano ressalta que o texto foi: “[…] redigido num estilo consentâneo ao modo de pensar e de falar do homem de hoje, sem, contudo, sacrificar a pureza e a plenitude da mensagem evangélica”.21 Justificava-se, desse modo, uma mudança de estilo que seria uma marca do documento final. D. Guano tratou das dificuldades que a Comissão encontrou ao longo de seu trabalho, destacando aqui a complexidade do tema e a multiplicidade de aspectos teológicos que poderiam embasá-lo. Fora isso, ressaltou a dificuldade em equilibrar a mensagem evangélica com as condições do mundo em que essa mensagem seria aplicada além das rápidas e intensas transformações sociais que alteram as condições que o texto poderia apresentar. Por fim, afirmou que a expectativa criada ao redor do Esquema também demandou uma grande exigência, a fim de corresponder a tudo que se espera do texto, o que gerou certas dificuldades até mesmo pelo fato do trabalho ter 20 Id. 21 Id. 154 partido do zero, não tendo passado por nenhuma Comissão preparatória, mesmo que sua primeira versão tenha trazido elementos de documentos emanados nessas fases anteriores. No nosso entender, esse último aspecto é deveras relevante e pode ser analisado a partir de dois pontos distintos. O primeiro deles é a dificuldade destacada por D. Guano, uma vez que a produção do Esquema não tinha uma fundamentação prévia definitiva. Por outro lado, tendo em vista a mesma premissa, o Esquema pode desenvolverse a partir do espírito do Concílio, sem ter passado pelas instâncias burocráticas anteriores. Trata-se, certamente, de uma “vantagem” quando comparado a outros Esquemas e documentos que tiveram que lidar com esses aparatos da burocracia curial. Dado que o Esquema apresentava problemas e que esses eram reconhecidos até mesmo pelos seus relatores, os debates mostraram-se bastante extensos. Kloppenburg ressalta que ocorreram 171 discursos, sem contar as intervenções e sugestões escritas. Tudo isso somado, gerou um total de 830 páginas de observações dos Padres Conciliares. Evidentemente, constatou-se que era necessária uma retomada em diversos aspectos que levariam ainda a uma nova redação do documento.22 De modo geral, os problemas relacionavam-se a questões de redação, como o uso deficitário do latim ou repetições do mesmo assunto em diversos momentos do texto. Fora isso, notou-se que diversas citações bíblicas 22 KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II. Vol. V: Quarta Sessão. Petrópolis: Vozes, 1966. 155 estavam incorretas ou ao menos imprecisas. A pressa em produzir o texto, conjuntamente a outros documentos, comprometia sua redação. A partir de então, caberia à comissão a reorganização dos trabalhos, a fim de sanar os problemas indicados pelos padres e atender às observações coletadas. É válido ressaltar que, com esse debate, o próprio papel da Comissão seria alterado, uma vez que agora deveriam levar em consideração os apontamentos feitos na Aula Conciliar para adaptar o texto àquilo que fora sugerido. Para tanto, McGrath indica que foram tomadas quatro medidas. A primeira delas foi a ampliação da subcomissão (ou comitê orientador). Além dos oito membros que efetivamente haviam trabalhado no Texto de Zurique, acrescentaram outros oito, sendo a maioria de fora da Europa, ampliando assim a possibilidade de se elaborar um texto que englobasse “toda a humanidade”.23 A segunda medida foi a indicação de seis peritos para compor um grupo de redatores. Caberia a eles a redação do novo texto, tendo a supervisão de D. Guano. O terceiro ponto consistia na elaboração de um texto introdutório, que fizesse uma exposição geral do mundo. Por fim, a quarta medida determinava que os anexos ainda restantes fossem retrabalhados e efetivamente incorporados ao texto. Entretanto, não se pode ignorar que, apesar dos problemas, os Padres Conciliares concordaram que o texto apresentado tinha condições de servir ao menos como base 23 MCGRATH, Notas históricas sobre a Constituição Pastoral “Gaudium et spes”, op. cit., p. 146. 156 para o seguimento do trabalho. Assim, o ponto de partida havia sido definido pelo Texto de Zurique, mas ainda não se tratava da versão definitiva daquela que viria a ser a Gaudium et Spes. Kloppenburg afirma que a nova redação do texto deveria ter como base o Texto de Zurique, porém, caso se mostrasse necessário adequá-lo ou refazê-lo para atender ao que os Padres haviam indicado, isso deveria ocorrer.24 A fim de dinamizar a atividade, foi definido que cada parte do documento seria trabalhada por uma subcomissão específica, o que se mostrou bastante produtivo e trouxe resultados interessantes em termos da produção, que fora executada em um tempo relativamente curto. Além disso, a grande inovação dessa equipe reunida em Ariccia foi mostrarse mais atenta para as necessidades do documento, que já haviam sido destacadas ao longo da primeira discussão. Segundo Delhaye, o novo texto, chamado então de Texto de Ariccia – elaborado entre os dias 31 de janeiro e 06 de fevereiro de 1965 –, exaltava os valores humanos e a dignidade da pessoa em suas diversas dimensões como o corpo, alma, consciência; também se dava devida atenção ao valor da liberdade e uma ênfase especial sobre o problema do ateísmo. Aspectos de cunho mais teológicos, como, por exemplo, a abordagem do homem enquanto imagem de Deus, faziam-se presentes, mas ocupavam um segundo plano.25 Havia inúmeras correções a serem feitas, e a Comissão Mista seguiu em um ritmo acelerado para concluir tudo até o mês de maio. Finalmente, no dia 11 de maio, o Esquema 24 KLOPPENBURG, Concílio Vaticano II. 1966, op. cit., p. 57. 25 DELHAYE, A dignidade da pessoa humana, op. cit., p. 269. 157 foi aprovado pela Comissão Coordenadora do Concílio e enviado aos Padres Conciliares para que pudessem discutilo na última sessão do Concílio. O texto que foi encaminhado aos Padres Conciliares trazia algumas especificações que o marcariam de modo definitivo. Como exemplo, podemos indicar que já se apresentava explicitamente como sendo uma Constituição Pastoral, algo até então desconhecido no meio conciliar e que, finalmente, estabelecia o caráter que o documento deveria ter. O Esquema XIII não seria um Decreto, mas ocuparia uma nova categoria de Constituição, não doutrinária, mas preocupada em aplicar a doutrina a partir de princípios pastorais. Quanto ao conceito de “Pastoral”, justifica-se na medida em que o documento reconhece que sua finalidade não é doutrinal, mas sim versar sobre a aplicação da doutrina nos tempos atuais. Esse aspecto pastoral refletirse-ia ainda no estilo assumido pelo texto, uma vez que se propôs a falar com toda a humanidade. Isso implicaria na necessidade de não fazer uso de linguagem eclesiástica mais rebuscada e não se fundamentar apenas nas Sagradas Escrituras. Podemos afirmar, desse modo, que se tratava de um ineditismo de estilo. Isso deu-se pelo fato de os redatores entenderem que o texto do Esquema XIII deveria ser simples e estabelecido a partir dos fatos vividos pela humanidade em sua totalidade, independentemente de suas verdades serem ou não condizentes com os ensinamentos do Magistério católico. Assim, a Igreja falava à humanidade e esperava que o documento fosse lido não apenas por seus fiéis, mas por todos. 158 Após passar para a Comissão Mista, alguns outros ajustes foram feitos em Ariccia e prorrogaram-se de fevereiro a julho. Mas, de modo geral, podemos considerar que fora esse o texto enviado aos Padres Conciliares e cuja discussão estabelecer-se-ia na Quarta e última Sessão do Concílio. Acreditava-se que o texto já atenderia a todas as recomendações feitas por ocasião da exposição e do debate na Terceira Sessão do Concílio. Contudo, isso não se concretizou, uma vez que os debates foram novamente intensos na Aula Conciliar, expondo opiniões radicalmente opostas. Segundo Kloppenburg, vários Padres Conciliares exaltaram não apenas o documento, mas, também, o trabalho vigoroso desenvolvido pela Comissão em um período relativamente curto, entre a Terceira e a Quarta Sessões.26 As críticas à Gaudium et Spes Por outro lado, não foram poucas as críticas ao documento apresentado. Delhaye afirma que as críticas acentuadas da Quarta Sessão podem ser compreendidas como sendo uma grande surpresa, uma vez que o texto fora reescrito tendo como base as solicitações e indicações emanadas na sessão anterior.27 Kloppenburg afirma que a crítica mais intensa veio de D. Geraldo de Proença Sigaud, bispo de Diamantina e vinculado a setores mais tradicionais do catolicismo. Para ele, o documento apresentado, além de favorecer a fenomenologia existencialista, ainda se alinhava perigosamente ao marxismo.28 26 KLOPPENBURG, Concílio Vaticano II. 1966, op. cit., p. 58-59. 27 DELHAYE, A dignidade da pessoa humana, op. cit., p. 270. 28 KLOPPENBURG, Concílio Vaticano II. 1966, op. cit., p. 59. 159 A crítica de D. Sigaud precisa ser contextualizada com maior atenção, principalmente quanto ao grupo ao qual ele pertenceu. D. Sigaud era membro do Coetus Internationalis Patrum (CIP), grupo que foi formado ao longo do Concílio, tinha em suas fileiras diversos bispos e cardeais que seguiam uma linha tradicionalista e que, de maneira geral, mostravamse profundamente críticos a qualquer possibilidade de abertura da Igreja, incluindo aqui um diálogo mais franco com o mundo moderno que, na visão deles, já havia sido condenado pelo Magistério pontifício desde os séculos anteriores.29 Ainda de acordo com Kloppenburg, na concepção de D. Sigaud, os problemas da Gaudium et Spes começavam já pela sua designação de “Constituição”. Nesse sentido, o uso do termo “Constituição” seria inapropriado, uma vez que daria ao documento um peso de lei, o que, na concepção do bispo brasileiro, era altamente inapropriado, uma vez que não era esse o objetivo do texto.30 Ademais, para fazer frente ao alinhamento à fenomenologia moderna e ao marxismo, D. Sigaud propôs que o documento aderisse ao espírito da Escolástica, bem como aos seus métodos e princípios. De modo geral, a intervenção de D. Sigaud está atrelada aos princípios pré-conciliares que se mostravam ultrapassados pelos avanços promovidos pelo próprio Concílio e que se materializariam definitivamente na 29 Para maiores informações sobre o Coetus, sugerimos a leitura de ROY-LYSENCOURT, Philippe. Les membres du Coetus Internationalis Patrum au Concilie Vatican II. Inventaire des interventions et souscriptions des adhérents et sympathisants. Liste des signataires d’occasion et des théologiens. Leuven: Peeters, 2014. 30 KLOPPENBURG, Concílio Vaticano II. 1966, op. cit., p. 59-60. 160 Gaudium et Spes. Talvez esse tenha sido um dos motivos pelos quais suas considerações não foram levadas adiante. Ainda assim, é evidente que o grupo de oposição ao documento, representado nas proposições de D. Sigaud, constituía um percentual da Assembleia Conciliar que, mesmo se mostrando mais reduzido do que era esperado inicialmente, ainda indicava a existência de uma parte do alto clero vinculado à antiga tradição católica. Ao mesmo tempo, ocorreram críticas mais construtivas, que partiam normalmente da indicação dos aspectos positivos do documento, antes de apontar para o que entendiam que teria que ser melhorado. Diversos Padres Conciliares indicaram que a Constituição ainda não tinha devidamente esclarecido o uso do termo “mundo” e da expressão “povo de Deus”. O problema mais sério a ser tratado era a ausência de um maior aprofundamento teológico, que se refletia em uma compreensão deficitária sobre o mundo e sobre a ação da Igreja. Coube aos redatores a tarefa de corrigir o documento de acordo com aquilo que vinha sendo proposto, mantendo a estrutura do documento que estava sendo analisado. Segundo McGrath, “conforme os discursos e as observações escritas invadiam o secretariado, iam sendo lançadas em fichas, de acordo com a arte a que se referiam. Cada subcomissão tinha uma semana para reescrever sua sessão, seguindo as novas observações”.31 Essa nova versão do texto seria denominada de Textus recognitus e foi apresentada para nova votação no mês de novembro. Ressalta-se que, nesse momento, já não seria mais debatido, 31 MCGRATH, Notas históricas sobre a Constituição Pastoral “Gaudium et spes”, op. cit., p. 150. 161 apenas votado, uma vez que o Concílio caminhava para seu encerramento, e entendia-se que todos os debates anteriores já haviam sido suficientes. Finalmente, em 7 de dezembro de 1965, a Constituição era aprovada com apenas setenta e cinco votos contrários. McGrath indica que a sensação do momento era que um milagre havia acontecido, uma vez que o texto havia sido reformulado e ainda teve centenas de pontos modificados após essa reformulação e, tudo isso, em apenas dois meses, podendo ser votado e aprovado.32 Após anos de trabalho, a Comissão Mista responsável pela elaboração do Esquema XVII, que veio a se tornar o Esquema XIII, finalmente concluiu seu trabalho. O Esquema XIII agora seria chamado oficialmente a partir das duas primeiras palavras que o compõem: Gaudium et Spes (Alegria e Esperança), nome bastante apropriado não apenas pelo conteúdo em si, mas, também, por fechar o Concílio retomando a alegria preconizada por João XXIII na sua abertura. Válido destacar que Roy-Lysencourt afirma que a força do CIP fez-se presente no documento final da GS, posto que o grupo conseguiu inserir uma nota sobre as condenações prévias feitas pela Igreja Católica contra o comunismo. Ainda assim, uma vitória pequena, posto que a intenção desse grupo era que o documento explicitasse a condenação ao comunismo, algo que não ocorreu.33 32 Id. 33 ROY-LYSENCOURT, Les membres du Coetus Internationalis Patrum au Concilie Vatican II, op. cit. 162 Conclusão Esse breve esboço do caminhar histórico que conduziu à elaboração da Gaudium et Spes expôs as dificuldades que o documento teve desde suas primeiras proposições. Muitas dessas dificuldades são próprias da elaboração de um documento durante a própria realização do Concílio, uma vez que não havia sido pensado nenhum documento nesse teor durante a preparação do Vaticano II. Por outro lado, a presença de grupos contrários aos avanços propostos pelo Concílio e estabelecidos desde sua convocação marcou também um movimento de oposição ao documento, exigindo que este, no seu diálogo com o mundo, se voltasse às condenações já efetuadas no passado. A força desse grupo mostrou-se evidente, também, quanto aos ajustes na maneira como o documento apresentava-se, a começar pela crítica quanto à sua definição enquanto Constituição, passando pela composição da escrita mais acessível que os demais textos produzidos pelo Concílio. Na realidade, é evidenciado que, durante todos os movimentos de sua elaboração, a Constituição passou pela dura oposição de setores da Igreja que observavam com preocupação os rumos que o documento adotava. Essas preocupações fundamentavam-se nas transformações teológicas em curso, muitas das quais não foram compreendidas pelo setor intransigente que buscava adequar a GS a um modelo de Igreja que caminhava para seu final no próprio evento conciliar. Contudo, as forças ditas 163 conservadoras mostraram-se menores e menos influentes do que era esperado ou imaginado antes do Concílio, o que pôde ser comprovado desde as constantes viradas e avanços obtidos como vitória pelos setores liberais. Quanto à GS, essa mostrou-se como sendo a consolidação do Espírito Conciliar e dos avanços idealizados por João XXIII, quando da convocação do Vaticano II. Mas sua elaboração não deixa de evidenciar a força conservadora em ação que, mesmo de forma reduzida, mostrou-se capaz de influenciar em diversos aspectos do documento final. Integrais na fé católica: o integrismo doutrinário e operativo da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) Gizele Zanotto Os princípios católicos não mudam porque os anos passam, porque os países são diferentes, por causa das novas descobertas ou por questões de utilidade. Os princípios católicos ainda são os mesmos que Cristo ensinou, que a Igreja proclamou, que os papas e os concílios definiram, que os santos mantiveram, que os doutores defenderam. Convém tomá-los como são ou deixá-los como são. Quem os aceita em sua plenitude e rigor é católico; quem hesita, tergiversa, se acomoda aos tempos, cede, poderá dar a si mesmo o tempo que quiser, porém, diante de Deus e da Igreja, trata-se de um rebelde e traidor.1 Em 1899, o periódico Civiltá Cattolica, revista de cultura italiana fundada por jesuítas em abril de 1850, em Nápoles, trazia em suas páginas um “manifesto” pela adesão aos 1 SCHLEGEL, Jean-Louis. Fundamentalistas e Integristas ante a modernidade. In: AÇÃO DOS CRISTÃOS PELA ABOLIÇÃO DA TORTURA (ACAT). Fundamentalismos, integrismos: Uma ameaça aos direitos humanos. São Paulo: Paulinas, 2001, p. 142. 166 “princípios católicos” referendados pelos papas e Concílios, adesão essa sem concessões. A publicação segue ativa, todavia, com sede em Roma, para onde foi transferida ainda no século XIX. Incentivada por Pio IX, justamente no contexto de defesa da civilização católica ante o avanço do liberalismo, o Civiltá Cattolica prestou-se à reafirmação da autoridade papal e condenava os que rejeitavam o catolicismo e os católicos que não se alinhavam à sua autocompreensão de Igreja. Eleito pontífice em 1846, Giovanni Maria MastaiFerretti adotou o nome de Pio IX (1846-1878), em um cenário de conflitos entre os chamados católicos “liberais” – que entendiam a necessidade de a Igreja renovar-se – e os ultramontanos – conservadores, que defendiam a manutenção do poder temporal e sacral da Igreja e a adesão total ao papado. O novo pontífice, movimentando-se entre esses dois grupos, logo promoveu estudos para implantação de uma estrada de ferro nos Estados pontifícios, instalou iluminação a gás nas ruas de Roma, criou um instituto agrícola para aumentar a produtividade e auxiliar os agricultores, promoveu uma reforma nas tarifas para estimular o comércio, anistiou revolucionários dos Estados papais, enfim, articulou várias ações que fizeram dele, em seus anos iniciais, um importante gestor – inclinado a concessões democráticas – e pastor.2 A alteração da postura de Pio IX para a austeridade conservadora deu-se a partir de 1848, tempo da chamada 2 DUFFY, Eamon. Santos & Pecadores. História dos Papas. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. 167 “terceira onda” das revoluções liberais, quando das lutas que visavam à unificação italiana e à expulsão austríaca de territórios ao norte. Naquele contexto, o papa acabou eximindo-se de declarar guerra a uma nação católica – a Áustria –, angariando, com isso, a pecha de “traidor” dos peninsulares ao se refugiar no território napolitano. Anos depois, em 1850, o pontífice retornou a Roma com apoio de tropas francesas e manteve-se no poder com esse amparo, unido ao de tropas austríacas. Progressivamente, seu poder temporal diminuía, dada a perda dos territórios pontifícios e a ampliação do movimento de unificação. Entretanto, seu papel como líder religioso aumentava. No mesmo contexto, os adeptos ao intransigentismo ou ultramontanismo3 ampliavam seus quadros de adesão, bem como as manifestações de piedade. Nesse cenário, têm destaque o culto mariano, com a declaração da Imaculada Concepção de Maria (tornada dogma em 8 de dezembro de 1854), o culto ao Sagrado Coração de Jesus e a devoção ao papa.4 3 O ultramontanismo designa a tendência do catolicismo no século XIX de buscar o fortalecimento do papado, tanto no governo como no Magistério da Igreja. Por consequência, os católicos deveriam ver no Papa o principal líder e o mediador entre a sociedade e o mundo espiritual. Os leigos e os religiosos deveriam ser submissos às iniciativas e diretrizes da Santa Sé. SANTOS, Patrícia Teixeira. Ultramontanismo. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira; MEDEIROS, Sabrina Evangelista; VIANNA, Alexander Martins (org.). Dicionário Crítico do pensamento de direita: idéias, instituições e personagens. Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2000, p. 444-445. 4 Id. 168 A adesão de Pio IX ao conservadorismo católico intransigente ficou consagrada com a publicação da encíclica Quanta Cura (1864), adida do Sillabo dei principali errori dell´età nostra, che son notati nelle allocuzioni consistoriali, nelle encicliche e in altre letter apostoliche del SS Signor Nostro Papa Pio IX,5 documento com oitenta proposições derivadas de pontífices anteriores e reiteradas pelo papa em exercício, condenando os supostos “erros da modernidade”. Em 1864, o papa convocou um Concílio para enfrentar a descrença e o racionalismo e, certamente, fortalecer a Igreja contra sociedades e Estados hostis. Conforme Raimundo, retomando os estudos de Jedin, foram os Concílios de Trento (1545-1563) e Vaticano I (1969-1870), este último interrompido pelos episódios da guerra de unificação dos reinos italianos, que estabeleceram a “definição solene do poder jurisdicional supremo, bem como da infalibilidade do Romano Pontífice, o processo de centralização dogmática e disciplinar que resultou na consolidação dos quadros hierárquicos da Igreja”.6 Não à toa, Civiltá Cattolica, ainda em fins do século XIX, repercutia a tensão entre os católicos adeptos de sinais da modernidade e os antimodernistas7. 5 PIO IX. Enciclica Quanta Cura, Roma, 8 dez. 1864. Disponível em: https://www.vatican.va/content/pius-ix/it/documents/encyclicaquanta-cura-8-decembris-1864.html. Acesso em: 20 maio 2024. 6 JEDIN, Hubert apud RAIMUNDO, Mariana de Matos Ponte. Concílio Vaticano I (1869-1870): textos e contextos, tradição e representação. 2019. 201f. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2019, p. 29. 7 Uma discussão mais detida sobre o integrismo pode ser acessada em ZANOTTO, Gizele. O integrismo tefepista da segunda metade do século XX. Reflexão, n. 48, p. 1-17, 2023. 169 O integrismo, como movimento de ideias e ações que reforçou a posição intransigente do catolicismo, consolidou-se na virada do século XIX para o XX, a partir de uma ruptura do movimento intransigente que condenava a conciliação da Igreja Católica com a sociedade moderna. Buscando as “verdades da fé” no “ultramontes” (além dos Alpes, na península itálica, em alusão a Roma e ao papado), religiosos intransigentes sistematizaram a doutrina de um processo maléfico, que há mais de cinco séculos vinha destruindo a cristandade e que deveria contar com um movimento opositor, caracterizado pela defesa incondicional e absoluta do papado e pela intervenção política para a “recristianização” social. Embora fileiras tenham sido cerradas ante os católicos ditos liberais, os intransigentes acabaram por se fragmentar por ocasião da interpretação da encíclica Rerum Novarum (Das coisas novas, 1891) do papa Leão XIII (1878-1903). A encíclica foi recebida pelos intransigentes como uma condenação da moderna sociedade burguesa. A interpretação dos religiosos vinculados ao chamado catolicismo social foi outra.8 A partir dessa ruptura interna no campo intransigente católico, nasceu o chamado integrismo, batizado dessa forma no século XIX na Espanha9 e definido como “corrente política 8 PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da Diferença. São Paulo: USP, Curso de Pós-Graduação em Sociologia; Editora 34, 1999. 9 Ver ainda SANZ DE DIEGO, Rafael Maria. Una aclaración sobre los orígenes del integrismo: la peregrinación de 1882. Estudios Eclesiasticos, n. 53, p. 91-122, 1977;| MONTEIRO, Feliciano. El peso del integrismo en la Iglesia y el catolicismo español del siglo XX. Mélanges de la Casa de Velázquez, n. 44-1, p. 131-156, 2014. 170 que pretendia impregnar com catolicismo intransigente toda a vida da nação e recusava qualquer tipo de separação entre profano e sagrado, entre laico e confessional”.10 Tôrres lembra que o integrismo funda-se em dois fatos emblemáticos, quais sejam: o caráter perfeito da revelação, que, como palavra de Deus dirigida aos homens, é perfeita e plenamente realizada, o que deriva na crença de que “sendo o ensinamento da Igreja verdadeiro, e a Verdade imutável, o ensinamento da Igreja deve ser imutável”;11 de outra parte, o caráter catastrófico da história, iniciada com o pecado original e que estabeleceria para o homem uma luta entre contrários que o levaria à redenção ou à danação.12 Assim, sintetiza o autor, o integrismo conforma-se como uma posição que considera imutáveis os dogmas e as formas pelas quais a religião apresenta-se. Émile Poulat, por sua vez, enfatiza que a gênese do mal depreende-se da contestação protestante, da Revolução Francesa, do Iluminismo e das transformações políticas, culturais e sociais decorrentes. Se, a princípio, o movimento era contra a sociedade moderna, lembra o autor, acabou por configurar-se em movimento 10 FOUILLOUX, Étienne. Integrismo católico e direitos humanos. In: AÇÃO DOS CRISTÃOS PELA ABOLIÇÃO DA TORTURA (ACAT). Fundamentalismos, integrismos: Uma ameaça aos direitos humanos. São Paulo: Paulinas, 2001, p. 11-12. 11 TÔRRES, João Camilo de Oliveira. História das Idéias Religiosas no Brasil. São Paulo: Editorial Grijarbo, 1968, p. 220. 12 Ibid., p. 222. 171 contrário às mudanças internas na instituição católica, à defesa de valores religiosos e à “autêntica tradição”.13 Apesar de ganhar novos adeptos, adversários e bandeiras, a pugna de católicos integristas contra as transformações do período moderno manteve-se ao longo do século XX e chegou ao XXI, revigorada e atualizado, não só em sua retórica e meios de ação, mas também nas tecnologias e apelos que lhe angariam novos neófitos para o “combate”. Neste capítulo, pretendemos avaliar uma das sintetizações do integrismo católico, elaboradas pelo brasileiro Plinio Corrêa de Oliveira (1908-1995) na primeira metade do século XX e publicada, em sua primeira versão, como ensaio intitulado Revolução e Contrarrevolução (1959), nas páginas do mensário Catolicismo (1951-). Oliveira ascendeu no meio católico paulista na década de 1920 como congregado mariano. Posteriormente, destacou-se entre os membros da juventude católica de São Paulo, atuando como diretor do periódico O Legionário (1933-1947), o que o levou a ser indicado como um dos candidatos da Liga Eleitoral Católica (LEC) para a Assembleia Nacional Constituinte (1934-1937), cargo para o qual foi eleito como um dos representantes das demandas católicas. Oliveira seguiu ativo na Igreja, sagrando-se presidente da junta Arquidiocesana da Ação Católica Paulista (1940-1943). Para Souza, a Ação Católica Brasileira (ACB), capitaneada a partir do Rio 13 POULAT, Émile. Intégrisme. In: ENCYCLOPAEDIA UNIVERSALIS. v. 9. Paris: Encyclopaedia Universalis, 1985, p. 1249. 172 de Janeiro, foi palco de várias disputas de orientação. Seu presidente nacional foi Alceu Amoroso Lima, converso ao catolicismo em 1928, ligado ao neotomismo, criticado pelos conservadores católicos; em São Paulo, o dirigente da ACB era Oliveira. No entendimento de Souza, de “um lado era um esforço para entender o mundo contemporâneo, repensar o problema da liberdade, da democracia e da participação social e de outro a atitude de rejeição a tudo o que era moderno e considerado anticristão”.14 A postura combativa de Oliveira como defensor do catolicismo ante as transformações e adaptações litúrgicas do movimento católico, dos chamados “progressismos”, consagrou-o como referência, sobretudo pela sua posição de poder em O Legionário e na Ação Católica Paulista, de onde foi progressivamente afastado quando da ascensão de líderes leigos mais comprometidos com o catolicismo social e com as transformações eclesiais.15 O ano de 1947 marcou o deslocamento de Oliveira e do grupo de redatores de O Legionário da condução do jornal. Daí em diante, o grupo – articulado em 14 SOUZA, Luiz Alberto Gomes. Ação Católica Brasileira: O despertar da consciência histórica na preparação de Medellín. In: SCHÜHLY, Gunther; KÖNIG, Hans-Joachim; SCHNEIDER, José Odelso (org.). Consciência Social: A história de um processo através da Doutrina Social da Igreja. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1994, p. 184. 15 Sobre aspectos biográficos de Oliveira, ver INTROVIGNE, Massimo. Uma battaglia nella notte: Plinio Corrêa de Oliveira e la crise del secolo XX nella Chiesa. Milano: Sugarco Edizioni, 2008; MATTEI, Roberto de. O Cruzado do Século XX: Plinio Corrêa de Oliveira. Porto: Livraria Civilização Editora, 1997. 173 torno a Oliveira e ampliado com outros membros – seria o promotor da criação, inicialmente do mensário Catolicismo, em 1951, avalizado pela Diocese de Campos de Goytacazes/RJ, visto que D. Antônio de Castro Mayer (bispo de campos e futuro participante do Vaticano II) alinhava-se ao grupo. Já a partir de 1960, o grupo passou a atuar como associação civil católica de caráter confessional nomeada Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), cujo instrumento norteador de interpretação da realidade e de sua operatividade foi o ensaio Revolução e Contrarrevolução (doravante R:CR), como dito, publicado inicialmente em 1959 (Introdução; partes I e II, conclusão), ampliada em 1976 (parte III) e atualizada em 1992, quando também adida de posfácio. Conforme nos informam os seguidores do pensamento pliniano (em referência ao autor, Plinio C. de Oliveira), atualmente, a publicação tem traduções para castelhano, francês, italiano, inglês, romeno, alemão, polonês, bielorusso, húngaro, russo, lituano, ucraniano, letão, estoniano, finlandês e japonês, totalizando 51 edições e a produção de 174.995 exemplares, dados esses de março de 2020.16 Esses números ainda são multiplicados pelas edições on-line e gratuitas disponíveis em inúmeros sites e pela miríade de instituições católicas de matiz integrista configuradas no Brasil e no mundo, algumas delas, como a Associação Internacional de Direito Pontifício Arautos 16 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. Revolução e Contra-Revolução. Disponível em: http://www.pliniocorreadeoliveira.info/RCR_0000_ indice.htm#.Y-9qJ3bMJhE. Acesso em: 25 maio 2024. 174 do Evangelho (AE), dentro do espectro institucional da Igreja Católica. Com base em R:CR e em fontes europeias de compreensão do mundo e de Igreja a partir da “eterna” luta entre o bem e o mal, Oliveira produziu essa obra, a qual se tornou referência para grupos católicos conservadores mundo afora, sobretudo aqueles reunidos nas TFPs criadas pelos cinco continentes e lideradas pelo autor no período de 1960 a 1995, quando de seu falecimento.17 Revolução e Contrarrevolução estabeleceu uma linhagem de sentidos, consolidou-se como fonte explicativa, informativa e operativa para os católicos. Nesse sentido, evidencia-se o poder simbólico derivado deste ensaio, que, “como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo, e deste modo a ação sobre o mundo”,18 segue atual e mobilizador. A gênese da Revolução e suas metamorfoses 17 Pelo mapeamento realizado pela autora até aqui, existem ou existiram entidades da rede TFP nos seguintes países, por continentes: América (Argentina, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, EUA, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela), Europa (Alemanha, Áustria, Bélgica, Croácia, Espanha, Estônia, França, Holanda, Hungria, Irlanda, Itália, Lituânia, Polônia, Portugal, Reino Unido), África (África do Sul), Oceania (Austrália, Nova Zelândia) e Ásia (Filipinas). 18 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p 14. 175 Abril de 1959. Na centésima edição do mensário Catolicismo, é publicado o ensaio Revolução e Contrarrevolução, por Plinio Corrêa de Oliveira. A proposta da publicação é pedagógica, pois explica didaticamente os fatores da decadência da cristandade; analítica, pois avalia suas raízes, características, intenções e resultados; e, por fim, operativa, já que traz orientações de como combatê-la em seus diferentes âmbitos de atuação. Na interpretação de Pinto, podemos filiar-nos à ideia de que R:CR mostra-se como um discurso político, enquanto tipologia geral, visto ser ele uma peça de linguagem alinhada ao discurso de um sujeito que, por excelência, tem poder e saber, e que, em suas interlocuções (sejam orais, escritas, imagéticas etc.), pretende impor verdades sobre um tema específico. Além disso, é um discurso de visões de mundo no qual o princípio é a polêmica – que o retroalimenta –, e a deslegitimação do outro.19 Nessa linha, afirma a autora que: A característica fundamental do discurso político é que este necessita para sua sobrevivência impor a sua verdade a muitos e, ao mesmo tempo, é o que está mais ameaçado de não conseguir. É o discurso cuja verdade está sempre ameaçada em um jogo de significações. Ele sofre cotidianamente a desconstrução, ao mesmo tempo só se constrói pela desconstrução do outro. É portanto, dinâmico, frágil e, facilmente, expõe sua condição provisória.20 19 PINTO, Céli Regina Jardim. Elementos para uma análise de discurso político. Barbarói, v. 24, p. 78-109, 2006, p. 92. 20 Ibid., p. 89. 176 A posição de discurso político tem na própria organização da obra outra forma de reforço. A estrutura da publicação, original e com suas atualizações, evidencia um texto que se quer didático, entremeado de capítulos com títulos autoexplicativos que guiam a leitura e marcam as ideias principais defendidas pelo autor. 177 Quadro 4 Estrutura de Revolução e Contra-Revolução (1998) PARTE/ANO CAPÍTULOS Introdução (1959) Parte I A REVOLUÇÃO (1959) Parte II A CONTRA-REVOLUÇÃO (1959) Capítulo I. Crise do homem contemporâneo Capítulo II. Crise do homem ocidental e cristão Capítulo III. Caracteres dessa crise Capítulo IV. As metamorfoses do processo revolucionário Capítulo V. As três profundidades da Revolução: Nas tendências, nas idéias, nos fatos Capítulo VI. A marcha da Revolução Capítulo VII. A essência da Revolução Capítulo VIII. A inteligência, a vontade e a sensibilidade na determinação dos atos humanos Capítulo IX. Também é filho da Revolução o “semi-contrarevolucionário” Capítulo X. A cultura, a arte e os ambientes, na Revolução Capítulo XI. A Revolução, o pecado e a Redenção. A utopia revolucionária Capítulo XII. Caráter pacifista e antimilitarista da Revolução Capítulo I. Contra-Revolução é reação Capítulo II. Reação e imobilismo histórico Capítulo III. A Contra-Revolução e o prurido de novidades 178 Parte II A CONTRA-REVOLUÇÃO (1959) Parte III REVOLUÇÃO E CONTRA-REVOLUÇÃO - Vinte anos depois (1976 e 1992) Capítulo IV. O que é um contrarevolucionário? Capítulo V. A tática da ContraRevolução Capítulo VI. Os meios de ação da Contra-Revolução Capítulo VII. Obstáculos à Contra-Revolução Capítulo VIII. O caráter processivo da Contra-Revolução e o “choque” contra-revolucionário Capítulo IX. Força propulsora da Contra-Revolução Capítulo X. A Contra-Revolução, o pecado e a Redenção Capítulo XI. A Contra-Revolução e a sociedade temporal Capítulo XII. A Igreja e a ContraRevolução Capítulo I. A Revolução, um processo em transformação contínua Capítulo II. Apogeu e crise da III Revolução Capítulo III. A IV Revolução que nasce Conclusão (1959) Posfácio (1992) Fonte: OLIVEIRA, Plinio Corrêa. Revolução e Contra-Revolução. 4. ed. São Paulo: Artpress, 1998. Quadro elaborado pela autora. Há, ainda, em muitos capítulos, a separação em letras, números ou outras formas de divisão e marcação de ideias e conteúdo. Esse tipo de configuração estrutural é bastante comum em obras que buscam alcançar público amplo, o que se dá pela facilidade com que as informações 179 são apresentadas, pelo recurso a textos curtos, pelo reforço de informações por meio de títulos sintetizadores, além do fato de que se trata de uma obra também referencial, permeada de citações de santos, papas e padres da Igreja. O apelo à autoridade, à legitimidade do sujeito enunciador ou mencionado é, em grande parte, responsável pela adesão aos enunciados ou pela intenção de filiação a eles, pelo mecanismo de projeção. Como lembra Costa, ao estudar discursos católicos, “quem não se identifica com os enunciados estará se reconhecendo como não-católico, colocando-se em posição adversa”.21 Ainda pensando em R:CR como um todo, antes de adentrarmos o seu conteúdo e alinhamento ao integrismo, destacamos outras questões quanto à sua forma. Orlandi nos lembra que os textos (peças de linguagem) podem ser tidos por “bólidos de sentidos”, pois são essencialmente multidimensionais; um texto “parte em inúmeras direções, em múltiplos planos significantes”.22 Entendendo a significação como resultado de nossas concepções, conhecimentos, visões de mundo, mas, também, como resultado da materialidade que possibilita diferentes “gestos de significação”, compreendemos a atenção de uma obra como R:CR com seu “embasamento” em figuras de autoridade, bem como pela tentativa de barrar o que Chartier denomina de “invenção criadora no processo de 21 COSTA, Eleonora Z. Sobre o acontecimento discursivo. In: SWAIN, Tânia Navarro. História no Plural. Brasília: Ed. UNB, 1994, p. 197. 22 ORLANDI, Eni Puccinelli. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 14. 180 interpretação”,23 pois se entende o leitor como sujeito ativo na interpretação e na ressignificação de mensagens. Nessa linha, visando conter o “espaço de interpretação”, Orlandi trata das notas de rodapé como instrumentos que aparecem quando há possibilidade de “fuga dos sentidos”, “onde a alteridade ameaça a estabilidade dos sentidos”. Assim, segue a autora, as notas manifestam-se como “aparato de controle”, de “administração da polissemia”.24 O livro Revolução e Contrarrevolução inicia-se com uma contextualização articulada à justificativa da obra. Na Introdução, é explicitada a situação incongruente do cenário católico brasileiro, no qual estatisticamente teríamos 94% da população adepta da religião, mas cuja vivência fiel deixa a desejar. No que concerne à indicação de que possíveis causas dessa situação pudessem ser vislumbradas no espiritismo, protestantismo, ateísmo ou comunismo, o autor é contundente em afirmar que não. Esse “terrível inimigo”, segue Oliveira, chama-se Revolução (com R maiúsculo), definida como “um movimento que visa a destruir um poder ou uma ordem legítima e pôr em seu lugar um estado de coisas (intencionalmente não queremos dizer ordem de coisas) ou um poder ilegítimo”.25 Esse movimento, explica Oliveira, pode ser cruento ou incruento, e objetiva destruir a civilização católica, entendida como “a estruturação de todas as relações humanas, de todas as instituições humanas, 23 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988, p. 136. 24 ORLANDI, Interpretação, op. cit., p.13. 25 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. Revolução e Contra-Revolução. 4. ed. São Paulo: Artpress, 1998, p. 55. 181 e do próprio Estado, segundo a doutrina da Igreja”.26 Como universal, una, total, dominante e progressiva, a Revolução visa a atingir a cultura, as artes, as leis, os costumes e as instituições, enfim, todos os domínios da atividade humana. A causa profunda desse processo revolucionário seria identificada no orgulho e na sensualidade. Para Oliveira, O orgulho leva ao ódio a toda superioridade, e, pois, à afirmação de que a desigualdade é em si mesma, em todos os planos, inclusive e principalmente nos planos metafísico e religioso, um mal. É o aspecto igualitário da Revolução. A sensualidade, de si, tende a derrubar todas as barreiras. Ela não aceita freios e leva à revolta contra toda autoridade e toda lei, seja divina ou humana, eclesiástica ou civil. É o aspecto liberal da Revolução.27 Dessas causas profundas, segue o autor na versão de 1959, derivaram três grandes revoluções, quais sejam: a “Pseudo-Reforma”, que implantou o liberalismo religioso, o igualitarismo eclesiástico e o espírito de dúvida; a Revolução Francesa, que consolidou o igualitarismo religioso (ateísmo) e político (“pela falsa máxima de que toda desigualdade é uma injustiça, toda autoridade um perigo, e a liberdade o bem supremo”);28 e o comunismo, que adequou o igualitarismo aos âmbitos social e econômico. Embora se tenha legado a Oliveira – pelo seu séquito de tefepistas (os assim chamados aderentes à TFP) e neófitos, durante sua vida e agora, pelos 26 Ibid., p. 60. 27 Ibid., p. 13-14. 28 Ibid., p. 14. 182 adeptos do pensamento pliniano articulados em TFPs ou em outras associações dedicadas ao intelectual (a exemplo, no Brasil, do Instituto Plinio Corrêa de Oliveira – IPCO) – a indicação do “profetismo” e da “inerrância”,29 há que se destacar que sua sistematização de momentos específicos em que a ruptura de uma ordem cristã cristalizou-se é ponto pacífico no pensamento católico conservador e, especificamente, integrista. Fouilloux referenda essa compreensão ao afirmar: A resposta da Igreja ao mundo que surgiu com a Reforma e principalmente com a Revolução Francesa ou com os seus êmulos, com a agressão laica ou anticlerical veiculada por estes, veio por meio da construção de um modelo de catolicismo integral e ao mesmo tempo intransigente. Integral porque rejeita qualquer forma de liberalismo que separe o público do privado e tenda a repelir a religião para o domínio do privado por intermédio do processo de laicização. O catolicismo integral reivindica para a religião o direito de instruir todas as atividades humanas, sejam elas quais forem.30 A edição ampliada de R:CR, produzida em 1976, trouxe a discussão do apogeu e crise da denominada terceira 29 Ver CASTRO, Marcelo Lúcio Ottoni de. Política e Imaginação: Um estudo sobre a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP). 1991. 202f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de Brasília, Brasília, 1991; ZANOTTO, Gizele. Tradição, Família e Propriedade (TFP): as idiossincrasias de um movimento católico no Brasil (1960-1995). Passo Fundo: Méritos, 2012. 30 FOUILLOUX, Integrismo católico e direitos humanos, op. cit., p. 14-15. 183 revolução, a comunista, enfatizando que a Revolução Russa de 1917 encetou um movimento que seguiria ativo e que teria atingido seu apogeu pela extensão e população das nações comunistas, pelas “dimensões da máquina vermelha”. Oliveira adverte que “se o curso do processo revolucionário continuar como até aqui, é humanamente inevitável que o triunfo geral da III Revolução acabe se impondo ao mundo inteiro”.31 Já na atualização de 1992, com o declínio do mundo soviético e o esfacelamento da União Soviética, ante às políticas que antecederam esse cenário – quais sejam: a glasnost (transparência) e perestroika (reestruturação) –, o que estaríamos vivenciando não era o fim do comunismo, mas sua metamorfose, sua atuação sob outras vias, menos mobilizadoras de opositores por estar camuflada. Ainda antes desse processo de transformação, outra revolução, a quarta, nasceria, estabelecendo um modelo de sociedade tribal, tendo como auge a liberdade individual e o coletivismo consentido.32 Seria a face cultural e das tendências da Revolução, que teria como um dos marcos a Revolução Cultural de 1968, e que teria instaurado uma “guerra revolucionária psicológica total”.33 A gênese da Revolução, como vimos, derivaria do orgulho e da sensualidade, fatores fragilizados na natureza humana corrupta e que capitaneariam não só ideias, mas ações deletérias, inspiradas pelas forças do mal, pois que sua “inspiradora e fautora suprema” […] é 31 OLIVEIRA, Revolução e Contra-Revolução, op. cit., p. 152. 32 Ibid., p. 181. 33 Ibid., p. 164. 184 a Serpente”, já vencida por Maria, que, portanto, é tida como padroeira dos contrarrevolucionários. Sobretudo pela invocação de Nossa Senhora de Fátima, os adeptos do combate à Revolução mantêm sua esperança, pois que “Ela já lhes deu a certeza da vitória, quando anunciou ainda que, ainda mesmo depois da um eventual surto de comunismo no mundo inteiro, ‘por fim meu Imaculado Coração triunfará’”.34 Criada a sistematização da Revolução por Oliveira, estabelecida uma linhagem de sentidos ancorada no integrismo católico e materializada nas fileiras da TFP brasileira e nas congêneres mundo afora, a pugna estava sendo organizada. Para tanto, a constituição da TFP como entidade civil não dependente da hierarquia eclesiástica é, para nós, fundamental. Com um lócus organizativo, estruturante e operativo, a ação contrarrevolucionária encetada pelas TFPs mirava católicos e acatólicos, agindo nos campos político-social e no campo religioso, sobretudo ao adotar (mesmo como grupo civil) formas rígidas e atemporais de catolicismo (sobretudo o tridentino); ao se propiciar a constituição de sentidos ímpares aos quais se adere total e acriticamente; ao fomentar o dogmatismo seletivo; ao crer no profetismo e na inerrância do líder; a adotar comportamento moral e austero; ao promover o exclusivismo; e ao compreender sua posição como “a verdade”. Em sua defesa, não se aceitam concessões, uma vez que estas são interpretadas como erros e como evidências do avanço da própria Revolução. 34 Ibid., p. 192. 185 Uma reação específica e direta contra a Revolução O integrismo, além de destacar o combate aos inimigos do catolicismo, fora do campo da Igreja, destaca-se pela vigilância, pela oposição, pela crítica e pela denúncia de “inimigos internos”. Atuando por uma lógica binária, do bem contra o mal, o integrismo consolidou-se também como ferrenho opositor das adesões e adaptações ao mundo moderno pelas lideranças, religiosos e leigos que atuam em todo mundo sob as hostes do catolicismo, que, como sabemos, é múltiplo em suas formas de autocompreensão,35 doutrinas e práticas, configurando o próprio catolicismo como plural, embora com hegemonia específica de alguma autocompreensão. Nessa linha, situa-se a proposta pliniana da contrarrevolução, como “uma re-ação, isto é, uma ação dirigida contra outra ação”.36 Oliveira entende que a contrarrevolução visa a restaurar a ordem, a civilização cristã, mas, para tanto, precisa adaptarse à modernidade da luta à qual se propõe. Nessa linha, um contrarrevolucionário seria o conhecedor da Revolução, de suas doutrinas e métodos; seria alguém que ama a 35 Ao alinharmo-nos ao entendimento da Igreja Católica como um universo múltiplo, ou seja, ao compreender que há uma multiplicidade de formas de entendimento do que é a Igreja, estamos aderindo à proposta de Saucerotte, que defende que a história da Igreja é das sucessivas autocompreensões que se tornam hegemônicas em cada papado, adequandose à realidade dos tempos e à proposta de seus líderes, em cada contexto específico. SAUCEROTTE, Antônio. As sucessivas autocompreensões da Igreja vistas por um marxista. Concilium, n. 7, p. 906-914, 1971. 36 OLIVEIRA, Revolução e Contra-Revolução, op. cit., p. 91. 186 contrarrevolução e que faz desse amor o eixo de seus ideais, preferências e atividades.37 Oliveira entende que, do mesmo modo que a Revolução, a sua oposição deriva de uma “potente força propulsora”; todavia, essa resultaria do “vigor da alma que vem ao homem pelo fato de Deus governar nele a razão, a razão dominar a vontade, e esta dominar a sensibilidade”.38 Visando a dar conta da teodiceia – ou seja, da bondade de Deus ante a catástrofe e a existência do mal no mundo –, os seguidores do pensamento pliniano prospectam a expectativa de uma vida de graças no futuro, ou, em outras palavras, na vitória da contrarrevolução, prometida, segundo sua interpretação, por Nossa Senhora de Fátima. Além disso, com base na interpretação milenarista pliniana de um futuro reino de glória para os “eleitos” e de danação sofrimento aos infiéis,39 esperam o futuro Reino de Maria. Na tentativa de participar desse reino dos virtuosos, os fiéis intensificam suas atividades religiosas sempre que o advento do reino pareça iminente. Essa espera milenarista também está ligada à noção de um tempo idealizado, localizado temporalmente no passado e que teria sido arruinado no curso da história. Seu tempo ideal seria vinculado ao mito da “idade de ouro”, que seria a própria imagem de uma ordem, de uma sociedade, de um tipo de civilização. Nessa linha, Pio X (19031914) assim definia seu ideal a restaurar: […] a civilização não mais está para ser inventada, nem a cidade nova para ser construída nas nuvens. 37 Ibid., p. 99. 38 Ibid., p. 123. 39 DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma história do paraíso. São Paulo: Cia das Letras, 1997. 187 Ela existiu, ela existe; é a civilização cristã, é a cidade católica. Trata-se apenas de instaurá-la e restaurála sem cessar sobre seus fundamentos naturais e divinos contra os ataques sempre nascentes da utopia malsã, da revolta e da impiedade.40 Restaurar a civilização cristã, austera e hierárquica seria então restaurar uma ordem política, social e econômica em consonância com os princípios da lei natural e da lei de Deus; implicaria reconhecer a Igreja Católica Apostólica Romana como a única verdadeira e acreditar no seu Magistério como infalível; e restaurar a reta disposição das coisas conforme seu fim natural e sobrenatural. Assim, assevera Oliveira, […] a Contra-Revolução não é destinada a salvar a Esposa de Cristo. Apoiada na promessa de seu Fundador, não precisaria Esta dos homens para sobreviver. Pelo contrário, a Igreja é que dá vida à ContraRevolução, que, sem Ela, nem seria exeqüível, nem sequer concebível. A Contra-Revolução quer concorrer para que se salvem tantas almas ameaçadas pela Revolução, e para que se afastem os cataclismos que ameaçam a sociedade temporal. […] Se a Contra-Revolução é a luta para extinguir a Revolução e construir a Cristandade nova, toda resplendente de Fé, de humilde espírito hierárquico e de ilibada pureza, é claro que isto se fará sobretudo por uma ação profunda nos corações. Ora, esta ação é obra da própria Igreja, que ensina a doutrina católica e a faz amar e praticar. A Igreja é, pois, a própria alma da Contra-Revolução.41 40 PIO X. Notre Change Apostolique, Roma, 25 ago. 1910 apud OLIVEIRA, Plinio Corrêa de. Auto-Retrato Filosófico. Catolicismo, São Paulo, n. 550, 1996, p. 6. 41 OLIVEIRA, Revolução e Contra-Revolução, op. cit., p. 136-137. 188 Desse modo, apesar do discurso vinculado e embora alinhada ao que seria a ortodoxia católica, como vimos, a ação tefepista, de inspiração pliniana, entende que a “verdadeira Igreja” é representada na entidade fundada por Oliveira, ou seja, a TFP. Essa narrativa deriva da interpretação de que o erro e o mal infiltraram-se na “Esposa de Cristo”, fazendo com que a apostasia reinasse na instituição que deveria ser a ponta de lança de seu combate. Como “evidência” dessa situação, apontase a expressão de Paulo VI42 de que a “fumaça” teria penetrado o templo de Deus, numa alusão – em termos tefepistas – à Revolução em si, atuando entre os religiosos. Como lembra Malimacci, o catolicismo intransigente encontra-se “en la convicción concreta, visible, palpable, real, de que la fe cristiana es el principio de verdad absoluta, que todo valor verdadero proviene de ella”.43 Além disso, ainda que o intransigentismo ou integrismo tenha sido “reduzido a contragosto ao estatuto de grupo de pressão minoritário, ou de oposição, em razão da rejeição parcial da Igreja ao modelo anterior”, é preciso reconhecer que “é um grupo de pressão que luta para reconduzir a Igreja à intransigência que a caracterizou durante séculos”.44 42 Oliveira destacou tal interpretação no próprio R:CR: “a evidência dos fatos nos aponta, nesse sentido, o Concílio Vaticano II como uma das maiores calamidades, se não a maior, da História da Igreja. A partir dele, penetrou na Igreja, em proporções impensáveis, a “fumaça de Satanás”, que se vai dilatando dia a dia mais, com a terrível força de expansão dos gases”. Ibid., p. 167-168. 43 MALLIMACI, Fortunato. El catolicismo integral en la Argentina (1930-1946). Buenos Aires: Editorial Biblos, 1988, p. 5. 44 FOUILLOUX, Integrismo católico e direitos humanos, op. cit., p. 17. 189 Ainda em 1959, o texto de R:CR enfatizava a urgente necessidade de luta contra a Revolução. Para tanto, além da formação de um “corpo de tropa”, preparado doutrinária, ritual e fisicamente, via TFPs, havia que se dedicar espiritualmente à causa que, embora prenunciada como ganha, demandaria um esforço continuado de membros da elite católica. Conformada como grupo de pressão, atuando como entidade civil confessional, mobilizando seus recursos humanos e financeiros na luta contrarrevolucionária, os tefepistas marcaram o cenário público brasileiro com campanhas públicas acusatórias dos “desvios” do catolicismo. Desde sua formação, em 1960, foram muitas as bandeiras e as campanhas realizadas pelo país e exterior em prol do que consideram valores positivos da civilização cristã, sempre frágil e ameaçada. Ante a incompreensão social – mesmo porque os tefepistas são um grupo reduzido, declaradamente adepto do elitismo –, fazem da ridicularização social ou mesmo da oposição pública que recebem a ressignificação de que são combatidos porque estão corretos. Junto a isso, entendem que sua espera milenarista por um novo reino, onde, enfim, serão tidos por especiais, fiéis de fato, auxilia na coesão e na fortaleza com que defendem seus ideais. Como lembra Rémond, os integristas convivem com paradoxos. O primeiro liga-se ao apego à tradição, ao Concílio Vaticano I e à infalibilidade papal, que, por um lado, são tidos como âncoras para denunciar o que denominam de “infiltração” do espírito do livre exame na Igreja, e, por outro, são argumentos utilizados para ir contra papas tidos por representantes do erro. O segundo paradoxo 190 seria justamente o apego à autoridade para se revoltar contra ela. E, por fim, o terceiro seria a defesa da tradição ante as mudanças da própria instituição, ou seja, a vinculação a uma ideologia da repetição que tem na imutabilidade uma prova da “verdade”.45 Baseando-se em divisões dualistas, lembra o autor, o integrismo entende que, de um lado, está a verdade e, de outro, o erro, e tudo o que não adere explicitamente à primeira deve ser denunciado e combatido.46 Conclusão Retomando uma terminologia de Neil Datta,47 adaptada de termos internos à TFP, seus membros, os “cruzados modernos”, seguem atuando como “arautos dos últimos tempos” em defesa das bandeiras tradicionais, conservadoras e mesmo reacionárias, que se estabeleceram na dogmática integrista sistematizada por Oliveira. Para tanto, enfatiza Datta, a própria análise de sua conformação institucional auxilia no entendimento de como tais grupos disseminaram-se, cresceram, dividiram-se e multiplicaramse em fins do século. Nessa linha, o autor entende que a TFP passou por quatro fases. A primeira deu-se no período marcado pela fundação da TFP brasileira em 1960 e estendeu-se até o início dos anos 1990, tempo da expansão para múltiplos países do continente americano, 45 RÉMOND, René. L’integrisme catholique. intellectuel. Études, n. 1, p. 95-105, 1989, p. 95-97. Portrait 46 Ibid., p. 100. 47 DATTA, Neil. Modern-day crusaders in Europe. Tradition, Family and Property: analysis of a transnational,ultra-conservative, catholic-inspired influence network. Političke perspektive: časopis za istraživanje politike, v. 8, n. 3, p. 69-105, 2018. 191 de ênfase na luta anticomunista, contra a reforma agrária, progressismo político e católico. A segunda fase seria a de reconfiguração derivada da derrubada do muro de Berlim em 1989, da subsequente fragmentação da União Soviética e da pretensa vitória do modelo capitalista liberal, quando o foco das campanhas detém-se em questões como aborto e direitos humanos, sexuais e reprodutivos, com destaque para a atuação de movimentos da TFP e afins na Europa. A terceira fase inicia-se com a morte do fundador, em 1995, gerando uma crise de carisma e a fragmentação dos membros em dois blocos mais visíveis: um que hoje está representado pelo IPCO e outro pelos AE impactantes no Brasil. Já a quarta e última fase, denominada por Datta de renascimento na Europa, vê instaurar uma maior autonomia em relação à liderança brasileira e tem como características a expansão e a consolidação expressiva no cenário europeu. Findamos este capítulo reforçando que é dessa atualização tefepista, ora mais vigorosa, ora menos, que estamos tratando. Embora a doutrina tenha sido sistematizada a partir do século XIX, remetendo a elementos de base anteriores, o mundo contemporâneo contou e conta com uma obra que sustenta inúmeros grupos e movimentos mundo afora, reforçando o intransigentismo católico que vigora com força em muitos países, sobretudo americanos e europeus. Desde a publicação de Revolução e Contrarrevolução, o mundo como um todo transformou-se intensamente; as formas de organização social, econômica, política e cultural pluralizaram-se e conformaram a perspectiva da diversidade como marca de nossa era. Assim, ainda que tais transformações sejam amplamente 192 aceitas, grupos como o de seguidores de Oliveira seguem ativos, intermitentemente surgindo no cenário público de países ocidentais, levantando bandeiras que, para muitos, parecem anacrônicas, como a defesa da monogamia, o casamento indissolúvel, a ilegalidade do aborto e de direitos reprodutivos, o armamento de civis, a desigualdade de riquezas, a estrutura hierárquica de mando, o governo das elites etc. Defendendo que sua “verdade” está na perenidade, tefepistas e outros integristas seguem arrogando-se o direto da “correta e única” leitura possível do catolicismo, reforçando sua adesão e salvação, ante a danação de quem com eles não se identifica. Navegando em águas turvas: a recepção tefepista do Concílio Vaticano II Víctor Almeida Gama A Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) inscreve-se em um amplo quadro de tendências muito comuns no ambiente do laicato católico, a partir da década de 1920, que podemos denominar de forma arbitrária de “direita católica”. Arbitrária porque muitos desses intelectuais e organizações posicionados neste quadrante – incluídos a própria TFP e seu líder, Plinio Corrêa de Oliveira – não se reconheciam como tais. Influenciados pelo pensamento de Bergson e de Farias Brito, assumiram posição reacionária, tanto religiosa como politicamente. Essa qualificação, por isso mesmo, não é puramente pessoal e subjetiva, mas ressalta a característica mais externa e saliente da organização tefepista, que é seu caráter de grupo de pressão política alinhado a valores conservadores. Este nos parece ser, no entanto, um corte transversal na história da organização, que deixa escapar o lado mais interno, religioso, e que não identifica em sua ação política a motivação religiosa subjacente, que no caso da TFP entendemos como sua característica fundamental. Neste sentido, torna-se crucial apresentar a TFP como uma organização eminentemente religiosa, que 194 adota um modelo de catolicismo pré-conciliar, alinhado com sua visão de mundo politicamente reacionária. Este estudo visa a destacar o impacto do Concílio Vaticano II em uma organização laical sem um estatuto canônico regular no interior do catolicismo institucional. A partir dos elementos teóricos da História das Ideias, discutiremos as expectativas e imagens criadas pela TFP sobre o Concílio, desde sua convocação até seu término, em 1965, e descreveremos a reconfiguração da vida religiosa da organização e de seus membros, em consequência das reformas e determinações da Igreja Católica Romana após o Vaticano II, sobretudo por meio dos documentos produzidos pela organização.1 Antes de adentrarmos na análise proposta, cabe ressaltar que a TFP, fundada pelo advogado paulistano Plinio Corrêa de Oliveira, em 1960, aparece no cenário religioso e político brasileiro da segunda metade do século XX como uma instituição civil de inspiração católica, empenhada na defesa e promoção das formas tradicionais do catolicismo romano em sua teologia, moral e liturgia. A TFP é conhecida por suas campanhas públicas contra o comunismo, publicações e ações de mobilização em defesa do que compreende ser a herança cristã presente na sociedade brasileira. Suas atividades frequentemente incluem a publicação de livros e artigos, a organização de eventos e conferências, bem como a realização de campanhas de rua para promover suas ideias. 1 Os documentos utilizados neste trabalho são transcrições de reuniões destinadas aos membros da organização e relatórios produzidos pelos mesmos membros. 195 Na historiografia especializada, ainda persiste uma percepção parcial do que é a TFP, referida exclusivamente como um movimento de pressão política e sua inspiração católica como um fundo pálido. Destacou-se na história política brasileira recente por sua intensa oposição à reforma agrária, à “esquerda católica” e pela defesa de pautas moralizadoras, como a condenação do divórcio, do aborto e da “imoralidade televisiva”. Internamente, a TFP autodefinia-se como uma confraternitas laicalis,2 organizando-se nos moldes de institutos de vida consagrada católicos, ou mesmo como as sociedades privadas de fiéis, embora praticando os votos de obediência, castidade e pobreza. Suas atividades e vida religiosa eram centradas na figura do fundador, visto como dotado de atributos especiais, tais como o poder de exorcizar, o discernimento dos espíritos e, principalmente, o dom do profetismo.3 Embora tendo aspectos de ordem religiosa, não tinha personalidade canônica regular, criando assim um formato único, que combinava contemplação e ação, fora dos domínios institucionais da Igreja Católica Romana. Cria, desse modo, um formato próprio: organiza-se como ordem religiosa, com uma vida mista de contemplação e ação, e que centra não apenas suas atividades, mas até mesmo sua vida religiosa, na figura do fundador. 2 O termo diz respeito à forma como a TFP se compreende diante do ordenamento canônico: movimento leigo, que se ordena a um fim religioso, sem com isso estabelecer uma vinculação formal com a hierarquia católica, nem um enquadramento nos formatos dispostos na legislação canônica. 3 GUIMARÃES, Átila Sinke. Servitudo ex caritate. São Paulo: Artpress, 1985. 196 As expectativas tefepistas sobre o Concílio Vaticano II Parece-nos, portanto, que a TFP deve ser encarada – em suas atividades e pensamento, embora se situe nos quadrantes mais conservadores como um grupo de pressão política –, como uma organização essencialmente religiosa, mas que mantém com o catolicismo institucional uma relativa distância, a fim de garantir sua independência de ação. A TFP olha para o Concílio Vaticano II de forma ambivalente, projetando, a princípio, uma expectativa de um Concílio de tendências reacionárias, um prolongamento do Vaticano I, condenando o mundo moderno. O próprio discurso de abertura do evento pelo papa João XXIII indicava, ao mesmo tempo em que evocava o ensinamento da “verdade do Senhor que permanece sempre”, que o mesmo Concílio pretendia mais apresentar a validade dos ensinamentos católicos para o momento presente da humanidade que proferir sentenças de condenação.4 Ao ver sua expectativa reacionária não concretizada, posiciona-se como uma das primeiras organizações tradicionalistas,5 que reage não 4 JOÃO XXIII. El principal objetivo del concilio. In: GONZÁLEZ, Casimiro Morcillo. Concilio Vaticano II: constituciones. Decretos. Declaraciones. Documentos pontifícios complementários. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1965. 5 Adotamos o termo para designar o conjunto de organizações que, de alguma forma, opõem-se ao Concílio Vaticano II e às determinações pós-conciliares – como o ecumenismo, tal qual proposto no decreto Unitatis Redintegratio (1964) e, sobretudo, na declaração Nostra Aetate (1965), os novos ritos de celebração dos sacramentos como o novo texto da missa (1969) ou os novos ritos de ordenação sacerdotal e sagração episcopal (1968) e o novo Código de Direito Canônico 197 apenas ao Concílio e suas determinações, mas, sobretudo, às autoridades eclesiásticas oficiais da Igreja Católica. É a partir de uma série de documentos produzidos pela própria organização ao longo de aproximadamente quarenta anos, que podemos perceber mais claramente os elementos que mostram uma representação ambivalente do Vaticano II, dos papas conciliares e do catolicismo pós-conciliar, a saber: produtores de uma confusão e crises sem precedentes, omissos e coniventes com desvios em matéria de fé, mas ao mesmo tempo garantidores de maiores atuação e independência de atividade para o laicato, que permitiam, por exemplo, a instituição de ministros leigos para distribuição da Eucaristia, e que produziam documentos que endossavam o discurso moral tefepista, como a Humanae Vitae (1968). Os documentos utilizados neste capítulo são: as conferências proferidas por Plinio de Oliveira aos membros da TFP, ao longo do recorte compreendido entre 1959 e 1995; relatórios sobre o problema do Novus Ordo Missae, elaborados por comissões teológicas internas da organização; e as obras La Nouvelle Messe de Paul VI: qu’en penser? (1975)6 e In the murky waters of Vatican II (1997),7 de autoria, respectivamete, de (1983), entre outros temas – e adotam práticas e disciplinas anteriores ao Vaticano II, como forma de resistência, de não-reconhecimento do Concílio ou simplesmente como expressão de uma sensibilidade pré-conciliar. 6 SILVEIRA, Arnaldo Vidigal Xavier da. La nouvelle messe de Paul VI: Qu’en penser? Chiré-en-Montreuil: Difusion de la Pensée Française, 1975. 7 GUIMARÃES, Átila Sinke. In the murky waters of Vatican II. Metairie: Maeta, 1997. 198 Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira e Átila Sinke Guimarães, dois integrantes da TFP e membros de comissões internas especializadas no tema do Vaticano II. A periodização desse processo de recepção conciliar tefepista leva em conta três critérios principais, elencados por Gilles Routhier,8 para se pensar a história da recepção: 1) a própria história do movimento, que neste contexto está relacionada à história geral do movimento tradicionalista; 2) a evolução da própria Igreja Católica ao longo desse período; e 3) o contexto histórico, político e social dos acontecimentos que, no caso tefepista, deve ser considerado o período da Guerra Fria como determinante para se compreender sua recusa conciliar, uma vez que o comunismo era compreendido como o grande mal da modernidade, o qual a Igreja deveria ter combatido no Concílio. Em um trabalho anterior, intitulado “A recepção tefepista do Concílio Vaticano II (1959-1988)”,9 abordamos as representações construídas pela organização antes, durante e no período imediato pós-Concílio. O presente estudo é um desdobramento daquele, e adaptamos o título como referência ao livro do diretor da TFP brasileira, Átila Sinke Guimarães, The Murky Waters of Vatican II (1997). A obra, desenvolvida ao longo de décadas sob a orientação de Plinio Corrêa de Oliveira, visa a denunciar as consequências 8 ROUTHIER, Gilles. La réception d’un concile. Paris: CERF, 1993, p. 81. 9 GAMA, Víctor Almeida. As Representações Tefepistas do Concílio Vaticano II (1959-1988). Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2020. 199 do Vaticano II para a Igreja e a sociedade. Ela argumenta que a decadência moral e espiritual do Ocidente teria raízes na crise instalada após o Vaticano II. O livro carrega prefácio de Malachi Martin, expoente do sedevacantismo, corrente que considera que os papas conciliares e pós-conciliares carecem de legitimidade e autoridade, estando por isso a Igreja sem seu chefe visível. Ao mesmo tempo em que a TFP pretendia denunciar as águas turvas do Vaticano II, com suas doutrinas com “odor de heresia” e suas ambiguidades, aproveita-se de certas condições, oferecidas pelo próprio Concílio e suas decisões posteriores, para organizar a vida religiosa da entidade de forma cada vez mais independente. Às vésperas do Concílio Vaticano II, a TFP projeta grandes expectativas sobre o evento, esperando que ele atuasse como um novo Concílio Vaticano I, condenando a modernidade, seus valores e ideias consideradas perniciosas, como o comunismo. Vale destacar que, para os movimentos tradicionalistas, a doutrina católica revestir-se-ia de um aspecto transhistórico, e apresentava-se em um quadro de permanência, estabilidade e fixidez. A TFP posiciona-se no contexto do Vaticano II como uma difusora de valores tradicionais – ou seja, valores e crenças comunicados como imutáveis – e, para isso, coordena uma reação aos avanços teológicos que ameaçavam a rigidez da disciplina tridentina.10 O Concílio deveria ser reduzido a um resultado óbvio segundo concepções tefepistas, o que dispensaria, na prática, a própria participação do episcopado. Essas 10 Doutrina do Concílio de Trento (1545-1563). 200 expectativas e a percepção das mudanças como ameaçadoras são brevemente mencionadas no livro They Have Uncrowned Him: From Liberalism to Apostasy, the Conciliar Tragedy (2003),11 de Marcel Lefebvre, e mais detalhadamente em O Concílio Vaticano II: Uma História Nunca Escrita (2012),12 de Roberto de Mattei. Essa expectativa revela-se de forma clara no registro de um diálogo entre Plinio Corrêa de Oliveira e o arcebispo de Diamantina Geraldo de Proença Sigaud: “Está tudo resolvido: o Santo Padre agora vai pôr em ordem todas as cabecinhas dos bispos e o caso da Igreja estará resolvido.” – O papa era João XXIII. Eu pensei o contrário: “São os Estados gerais da Igreja, o começo da Revolução na Igreja”. Eu quis dizer isto a ele, mas notei que não encontraria a menor ressonância. Eu via a Revolução Francesa, ele via o Reino de Maria.13 A expectativa revelada pelo fragmento acima, de que o Papa executasse uma intervenção objetiva e condenatória, não se realizou. Ela parte de uma concepção de poder quase absoluto do papado e da máquina governativa da Igreja, que naquele momento já não se mostrava mais tão enraizada na consciência católica. Ela também está presente em quase todos os artigos do jornal editado pela TFP, Catolicismo, 11 LEFEBVRE, Marcel. They uncrowned him: from liberalism to apostasy, the conciliar tragedy. Kansas City: Angelus Press, 2003. 12 DE MATTEI, Roberto. O Concílio Vaticano II: uma história nunca escrita. Lisboa: Caminhos Romanos, 2012. 13 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. Minha vida pública: compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira. São Paulo: Artpress, 2015, p. 481-482. 201 encontrados entre o anúncio do Concílio, em junho de 1959, e a primeira sessão de trabalhos, em 1962. Particularmente sensível era a expressão do desejo de que a nova teologia fosse definitivamente condenada pelas deliberações conciliares, afastando a perspectiva da colegialidade – entendimento segundo o qual o papa governaria a Igreja não como um monarca absoluto, mas em composição com os demais bispos – e com a recusa da verticalidade da Igreja, da ideia de um sacerdócio em relação de proximidade com o laicato e da resistência às influências do setor progressista. Até 1963, quando os trabalhos conciliares já estavam em curso, toda a expectativa apresentada aos leitores do jornal Catolicismo é de um triunfalismo das teses conservadoras.14 Toda essa esperança manifestada neste jornal considera, no entanto, a proposta dialogal de João XXIII: No Vaticano II não há notícias de que alguma heresia especial será condenada. Mas todo o liberalismo, todo o modernismo, todo o existencialismo, todo o socialismo serão, por certo, alvo das decisões do Concílio. Estas heresias sairão dele feridas de morte, assim o esperamos, e a Hierarquia inteira voltará a suas circunscrições orientada para a realização de um Catolicismo sempre mais autêntico e total, que impregne todos os aspectos da vida individual, familiar e social. Encontramo-nos em plena heresia laicista, que ignora o reinado social do Sagrado Coração. O Concílio mobilizará as almas para a grande tarefa da penetração e do domínio de todos os 14 CATOLICISMO. O Concilio mobilizará as almas para a grande tarefa da erradicação da heresia laicista. Catolicismo, n. 142, 1962, p. 7. Disponível em: https://catolicismo.com.br/Acervo/ Num/0142/P06-07.html. Acesso em: 15 de junho de 2024. 202 aspectos da vida social pelo Evangelho, de sorte que Jesus Cristo seja o Rei dos corações e da sociedade. Mobilizar a Hierarquia e o laicato para a construção do reinado social do Sagrado Coração e do reino de Maria, será a grande tarefa e o grande fruto do II Concílio Ecumênico do Vaticano. Ele assim terá levantado a bandeira da luta contra o comunismo em todas as suas formas, contra o comunismo que é a negação total do reinado do Sagrado Coração sobre a vida humana, mormente sobre a vida social, e que afirma e impõe como único dono dos destinos humanos e das instituições humanas o Estado sem Deus e o Estado contra Deus. Na santíssima Assembleia que está para se inaugurar será decidida a sorte do comunismo e será selada a sua derrota total; em vez de uma humanidade sem Deus, cimentada no ódio e na inveja, o Concílio gerará uma humanidade segundo Deus e firmada na caridade e na fraternidade, brotadas da chaga do sacrossanto lado de Cristo, transpassado na Cruz.15 A TFP espera a condenação de um conjunto de ideias que considera nefastas no mundo moderno, tais como as teorias evolucionistas de Teilhard de Chardin (1881-1955), a Nouvelle Théologie e, principalmente, o comunismo. É neste último que residiria o principal problema com o qual a Igreja teria que lidar em seu tempo e enviar sua energia às atividades de colaboração com os bispos conservadores no Coetus Internationalis Patrum (CIP),16 visando, pelo menos, uma condenação formal do comunismo, tal como havia sido 15 Id. 16 Grupo formado pela parcela conservadora do episcopado presente no Vaticano II, que reuniu cerca de 250 bispos em torno da figura do arcebispo francês Marcel Lefebvre, do 203 feito por Pio XI (1937) e Pio XII. Renovar uma condenação já feita por um papa e ratificada por seu sucessor, que poderia parecer uma redundância desnecessária, apresentava-se, naquele contexto de apogeu de Guerra Fria, como uma urgência para a TFP. É durante a Primeira Sessão do Concílio Vaticano II, em 1962, que a TFP começa a atuar nos bastidores do CIP, um grupo formado pelo episcopado conservador com o objetivo de influenciar os debates conciliares e promover uma interpretação conservadora dos temas debatidos. Ela trabalhou como articuladora das forças integristas, buscando um giro conservador no Concílio para obter a condenação do comunismo, seu principal alvo. Além das atividades nos bastidores, a TFP promoveu ações práticas como abaixoassinados contra o comunismo, liderados pelos bispos D. Geraldo de Proença Sigaud e D. Antônio de Castro Mayer. No entanto, essas iniciativas não tiveram resultados práticos e não foram discutidas no Concílio. Consideramos, em um trabalho anterior,17 que a vida religiosa da TFP e de seus membros passa a ser fortemente impactada pela não consecução de seus objetivos no Vaticano II. Se ele recusava-se a expedir uma denúncia solene contra o que o grupo de leigos entendia ser o problema mais grave do mundo moderno, que visava a atingir inclusive a Igreja Católica limitando seu campo de ação e liberdade, este arcebispo brasileiro Geraldo de Proença Sigaud e outros, a fim de frear as inserções do setor progressista do episcopado. 17 GAMA, As Representações Tefepistas do Concílio Vaticano II (1959-1988), op. cit. 204 Concílio passava a representar uma contra-Igreja que nascia ali, alinhada com valores e correntes de pensamento que até então o catolicismo combatia. Em conversa com membros da TFP, em 1993, dirá Plinio de Oliveira, recordando a presença de seu movimento em Roma no período do Concílio: A questão é a seguinte: é que eu acho, tenho como certo, inclusive pelo exemplo de D. Mayer, D. Sigaud e Mons. Lefebvre, que ao concílio faltou liberdade. Paulo VI não deu aos padres conciliares a liberdade de discutir e de decidir. […] Isso corresponde à seguinte pergunta: qual o grau de culpa que tem o indivíduo que aprovou aquilo? Não é o nosso caso, o nosso caso é outro: qual o grau de convicção última que ele tinha quando ele aprovou aquilo? Porque ele deveria ter votado segundo a sua convicção. Se ele sofreu uma pressão que a fraqueza dele podia ceder, ele não foi livre. Se ele não foi livre, ele não tem expressão de vontade.18 O texto demonstra um contraste com o diálogo entre Plinio Corrêa de Oliveira e o bispo Geraldo de Proença Sigaud, já relatado anteriormente. Ao mesmo tempo em que esperavam do papa a intervenção decisiva e imposta desde a autoridade de sua cátedra, também aguardavam a plena participação ativa nas decisões conciliares do episcopado que, na visão tefepista, teria sido coagido pelo mesmo papa a assumir posições mais progressistas. Os choques entre a expectativa não realizada e o desejo de manter uma forma de religiosidade que o Concílio Vaticano II procurava superar, com as atualizações 18 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. Reunião almoço, 13 dez. 1993, p. 5. 205 efetivamente impostas à Igreja, resultaram, em nossa análise, em uma nova formatação da vida religiosa da TFP e de seus integrantes. Observa-se uma mudança de direção, inclusive discursiva, operada pela TFP após as reiteradas tentativas fracassadas do episcopado conservador de condenar o comunismo no Concílio. Isso fixou uma nova perspectiva de atuação para o movimento. Reforçou-se, internamente, o sentimento de autonomia em relação às autoridades eclesiásticas, ao mesmo tempo em que a figura de Plinio Corrêa de Oliveira passou a acumular, além das atribuições de liderança política, também a de líder religioso.19 A TFP atribui a si mesma autonomia decisória em questões religiosas, progressivamente transferindo a função diretiva do clero católico, considerado apóstata, para a figura de seu fundador. Externamente, isso manifesta-se no que Antônio de Castro Mayer, bispo de Campos dos Goytacazes (RJ), classificou como anticlericalismo entre os membros da TFP.20 Esse anticlericalismo não passou despercebido pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que, em 1985, emitiu uma nota desaconselhando a filiação de 19 GAMA, Víctor Almeida. Os ardis da seita comunista: a construção das representações religiosas no anticomunismo da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP). 2024. Tese (Doutorado em Ciências da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2024. 20 MAYER, Antônio de Castro. Carta de Dom Antônio de Castro Mayer sobre a TFP. 1984. Associação Cultural Montfort. Disponível em: http://www.montfort.org.br:84/dom-mayeradverte-o-anti-clericalismo-habitual-da-tfp-faz-dela-umaseita-heretica/. Acesso em: 15 jun. 2024. 206 católicos à TFP, citando a notória falta de comunhão entre a TFP, a Igreja no Brasil, sua hierarquia e o Santo Padre.21 Rejeitar para preservar: a reconfiguração da vida religiosa tefepista no pós-Concílio É neste terceiro momento, que compreende o período que vai do encerramento do Concílio até as sagrações episcopais operadas pelo arcebispo Lefebvre, em 1988, que a TFP busca conformar-se com a realidade pós-conciliar, embora mantendo-se numa posição de resistência e operando como um dos primeiros grupos tradicionalistas a organizar uma resistência ao Novus Ordo Missae de Paulo VI, em 1969 – com o estudo La nouvelle messe de Paul VI: qu’en penser? –, e à própria figura do Papa, com a série de seis artigos publicados por Arnaldo Vidigal no jornal Catolicismo naquele ano, aventando a possibilidade de defecção de um papa – guardião da fé. Também seria inserido no livro um capítulo destinado a trabalhar a ideia de possibilidade de um papa cair em heresia. Neste estudo, focaremos especificamente quando as ambivalências da TFP tornam-se mais evidentes, isto é, no imediato pós-Concílio, até o ano de 1988, com as sagrações episcopais realizadas pelo arcebispo Lefebvre, sem a autorização do Papa. No período de implementação das normativas conciliares, a organização adota uma vida religiosa mais idiossincrática, buscando preservar sua visão de mundo e suas práticas baseadas no modelo tridentino, em explícita recusa à nova consciência católica surgida do Vaticano II. Por exemplo, os membros começam a se ausentar das missas 21 CNBB. Nota sobre a TFP. Folha de São Paulo, 20 abr. 1985, p. 3. 207 dominicais das paróquias. O bispo de Campos, que apoiou a TFP até 1981, oferece então um sacerdote de sua diocese para conduzir os serviços religiosos segundo os antigos rituais. Analisamos, a partir de agora, esta reconfiguração do contexto religioso tefepista a partir de três exemplos: a dependência religiosa da figura do fundador, a recusa em adotar os ritos dos sacramentos reformulados segundo as determinações do documento conciliar Sacrossantum Concilium (1963)22 e a resistência formal à política diplomática do Vaticano, a partir do Manifesto da Resistência (1974). Propomos, a partir de uma hipótese explorada em outro trabalho,23 que a TFP confere progressivamente mais autoridade a seu fundador, o que é inversamente proporcional ao reconhecimento da autoridade dos papas pós-conciliares. Plinio Corrêa de Oliveira, percebido como profeta, dotado de atributos divinos e inspiração para identificar e denunciar os erros do mundo moderno, evolui de líder leigo a profeta escolhido, “varão da destra de Maria”. A historiadora Gizele Zanotto observa que o perfil tefepista transforma-se, de modo que os membros passam de atuantes em um movimento político católico para seguidores do profeta. Segundo ela, “a doutrina da organização consolidaria uma nova orientação principal para os tefepistas: de leigos atuantes na sociedade temporal para sequazes do profeta”.24 22 PAULO VI, Sacrossantum Concilium. Disponível em: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_ council/documents/vat-ii_const_19631204_sacrosanctumconcilium_po.html. Acesso em: 15 jun. 2024. 23 GAMA, Os ardis da seita comunista, op. cit. 24 ZANOTTO, Gizele. Tradição, Família e Propriedade (TFP): as idiossincrasias de um movimento católico no Brasil (1960- 208 Surge no interior da organização um modo de viver o catolicismo que prescinde das autoridades eclesiásticas, transferindo a autoridade do Papa, guardião da doutrina, para o fundador da TFP, considerado um profeta e o canal pelo qual Deus expressaria Sua vontade. Desenvolve-se, assim, um catolicismo idiossincrático, livre das limitações e controles impostos pela hierarquia católica e pelo direito canônico, mas que ainda reivindica uma fidelidade irredutível a esses elementos. A figura da autoridade máxima do catolicismo é reduzida a um personagem que existe para sustentar o princípio consagrado no Concílio Vaticano I, na Constituição Apostólica Pastor Aeternus (1871),25 que estabelece a existência de sucessores perpétuos na cátedra de Pedro. A negação explícita da legitimidade de um papa resultaria em um problema teológico que a TFP, como sociedade laical e sem teólogos autorizados em seu meio, não poderia resolver. No entanto, o sedevacantismo prático sempre esteve presente entre os membros da TFP, resultando em uma formulação sui generis, segundo a qual a autoridade máxima é transferida da figura do papa para seu fundador.26 Em uma reunião interna destinada aos membros mais antigos de seu movimento, ao relatar a conversa entre o arcebispo francês Marcel Lefebvre e o papa Paulo VI 1995). Passo Fundo: Méritos, 2012. 25 PIO IX. Pastor Aeternus. Disponível em: https://www.vatican. va/archive/hist_councils/i-vatican-council/documents/ vat-i_const_18700718_pastor-aeternus_it.html. Acesso em: 15 jun. 2024. 26 GAMA, As Representações Tefepistas do Concílio Vaticano II (1959-1988), op. cit. 209 sobre os rumos do movimento tradicionalista que Lefebvre liderava, Plinio de Oliveira revela a tendência sedevacantista de seu pensamento: Na audiência, Monsenhor Lefebvre, a julgar pelo “Estado”, não cedeu nada, a não ser no seguinte: que ele reconheceu de todas as maneiras Paulo VI como Papa ainda reinante. Não tanto porque ele chamou Paulo VI de Paulo VI, de Santo Padre, etc., porque se Paulo VI é um Papa duvidoso, a cortesia manda tratá-lo como se ele fosse certamente Papa. Isso se poderia conceber. Mas por outro lado, a própria démarche dele junto a Paulo VI, para se esclarecer naqueles termos e naquela forma, indica que ele reconhece Paulo VI como juiz da Fé e, portanto, podendo exercer validamente as funções de poder julgar em matéria de Fé, que são funções inerentes ao Papado. Isso seria um reconhecimento que à minha consciência teria sido extremamente duro prestar, porque eu não tenho essa certeza se ele é Papa. Eu não teria prestado. Vamos imaginar que Paulo VI me concedesse uma audiência. Eu aceitaria? Sem dúvida: ele me chamou. Eu converso com qualquer pessoa. Eu o teria tratado como se deve tratar o Papa. Mas eu teria dado a ele um título de cortesia, porque não estou certo de que ele é Papa. Tenho certa dúvida […].27 Nesta tendência sedevacantista que Plinio Corrêa de Oliveira imprime à TFP, pode estar a origem do anticlericalismo denunciado pelo bispo Castro Mayer e a autoridade espiritual que exerce sobre seus discípulos. Esta autoridade leva todo um movimento que, na década de 27 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. Santo do dia, 14 jun. 1976. 210 1970, contava com 1.500 membros, segundo números da própria organização,28 recusava um Concílio Ecumênico e fazia a opção por um modo de espiritualidade já superada pelo aggiornamento conciliar. Tal fenômeno demonstra a força que a figura de Plinio de Oliveira exercia sobre os integrantes da TFP, capaz de levar um grupo coerentemente a aderir ao rito da missa substituído pelo Missale Romanum, de 1969. Essa mudança ocorre em dois níveis: no das ideias e no das práticas. No primeiro, a TFP organiza uma resistência intelectual ao Vaticano II. Produz obras críticas de robustez teológica, sendo o livro La nouvelle messe de Paul VI: qu’en penser?, de 1975, o ponto de partida de muitos tradicionalistas em sua crítica à nova missa instituída por Paulo VI. O próprio bispo Castro Mayer usará o livro como documento que fundamentaria a posição teológica assumida por si e por parte significativa de seu clero, na resistência conciliar. Já o segundo nível é uma manifestação da reação anticonciliar, que consiste na recusa do Novus Ordo Missae, promulgado pelo papa Paulo VI em 1969. Com essa legislação de caráter universal, o pontífice estabelece que o rito romano, a partir de então, deveria celebrar os sacramentos segundo um novo formato. Com um novo texto da missa e dos ritos sacramentais em língua vernácula e com o sacerdote celebrante voltado ao povo, essa nova missa parece à TFP uma ruptura e um contraste com a própria proposta conciliar expressa por João XXIII em seu discurso de abertura do Vaticano II, quando, evocando a sucessão 28 TFP. E o anticristo, já veio? 1999. 211 dos vinte Concílios Ecumênicos precedentes, afirmava a vinculação da proposta conciliar a uma longa tradição doutrinária e litúrgica da Igreja.29 Num simpósio interno ocorrido em 1998 sobre a obra (já citada) de Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira, expõe-se a razão pela qual Plinio de Oliveira e seu movimento aderiam ao antigo rito da missa: Em vista das considerações apresentadas, impõese a conclusão de que não se pode aceitar a nova Missa. Fazemos essa afirmação com sumo pesar, tendo bem presente a gravidade das conseqüências que dela decorrem; mas fazemo-la também com plena convicção. Não é necessário retomar aqui todas as razões que nos levaram a esta conclusão; queremos, entretanto, salientar uma, que a nosso ver não tem sido devidamente focalizada em anteriores debates sobre “Ordo” de Paulo VI. Tratase do princípio de que um rompimento formal com os costumes fundados em Tradição apostólica, sobretudo em matéria de culto, envolve cisma. Ora, uma liturgia tendente à “dessacralização” não tem base alguma na Tradição; pelo contrário, constitui uma ruptura formal e violenta de todas as regras que até hoje orientaram o culto católico. A fim de evitar mal-entendidos que poderiam falsear nossa posição, é mister deixar bem claro que as restrições que fazemos aos diversos tópicos da nova Missa não são todas de igual importância.30 A anuência de Plinio Corrêa de Oliveira às teses do livro é evidente: “Com o livro do Arnaldo Xavier, ninguém 29 Id. 30 Id. 212 dentro do Grupo fez tantos elogios quanto eu”.31 E continua afirmando: “Eu tinha certeza absoluta da iliceidade desta missa, muito mais pelo ambiente péssimo que dela reina, e o manifesto mal espírito que a domina por assim dizer de ponta a ponta, do que por uma consideração teológica do assunto”.32 O alinhamento das ideias tefepistas com as teses tradicionalistas é inegável. Contudo, o movimento parece manter uma certa distância desses grupos, especialmente após o rompimento institucional provocado pelo arcebispo Lefebvre, em 1988, com a sagração de quatro bispos sem autorização papal, resultando na excomunhão dele, do bispo cossagrante Antônio de Castro Mayer e dos bispos consagrados. A condição laical da TFP e a falta de um estatuto canônico regular conferem-lhe a liberdade de abordar temas da teologia católica sem se comprometer com as autoridades eclesiásticas, evitando, assim, as penas disciplinares que recaem sobre os tradicionalistas que rompem com a institucionalidade católica. No território da Arquidiocese de São Paulo, onde se instalava o núcleo central da entidade, foi criada uma comissão de estudos composta, da parte da TFP, por Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira, autor do livro em questão, Paulo Corrêa de Brito Filho e Gregório Vivanco Lopez como secretário. Da parte da Arquidiocese, dois padres assumiram o papel de analisar as teses tefepistas. Um abandonou o sacerdócio, outro tornou-se bispo, inviabilizando a continuidade dos trabalhos da comissão que visava discutir 31 DIAS, João Scognamiglio Clá. Reunião Jour le Jour, 5 out. 1997. 32 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. Grafonena, 15 fev. 1993. 213 e esclarecer a postura da organização diante da aplicação das leis litúrgicas.33 Em um relato deixado pelo secretário da mesma comissão, observa-se a profunda preocupação de Plinio Corrêa de Oliveira com o princípio da lex orandi, lex credendi, isto é, a ideia de que a oração da Igreja, particularmente a missa, expressa sua fé. Plinio temia que uma liturgia que se afastasse da compreensão tradicional do sacrifício litúrgico católico representasse uma nova fé emergente após o Concílio Vaticano II. O secretário relata: O Sr. Dr. Plinio chamou este escravo de Maria e disse [mais ou menos o seguinte]: “Olha, eu estou muito preocupado com o pontificado de Paulo VI, porque com esse pós-concílio, estou vendo que as coisas vão para a heresia, elas vão indo para o pior que possa haver. Então eu quero que se façam estudos para ver quais são os limites da infalibilidade, para ver até onde pode ir um Papa herege ou não. Até onde as coisas podem caminhar dentro da Igreja, e que papel um simples fiel pode resistir a essa onda que está vindo. Mas resistir com base na doutrina da Igreja. Então, eu encarreguei o Dr. Arnaldo para fazer uns estudos, e eu quero que você ajude ele nisso, em tudo o que for necessário. […] Nós estamos caminhando para uma trombada com Paulo VI. E nós precisamos ter todo o nosso arsenal doutrinário superafiado, superestudado, superpronto”.34 33 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. Reunião de Recortes, 26 nov. 1973. 34 LOPEZ, Gregório Vivanco. Reunião no auditório Nossa Senhora Auxiliadora, 18 set. 1997. 214 A partir desta movimentação, começam a surgir artigos no jornal Catolicismo, liderado pela TFP, sobre a possibilidade de um papa cair em heresia, até que ponto um fiel é herege ou não, até que ponto gestos, insinuações, caracterizam ou não caracterizam um herege etc.35 De fato, no ano de 1969, o jornal Catolicismo foi responsável por uma série de artigos, já mencionados, que levantavam o problema da possibilidade de um papa herege, fundamentado especialmente nas teses do cardeal Belarmino (1642-1621), um dos poucos a tratar desta possibilidade teológica. Aqui se manifesta, mais uma vez, a recepção seletiva do Concílio Vaticano II por parte desse movimento laical. A missa, maior manifestação do dogma católico, tendo sido alterada na sua expressão estética e até mesmo nos fundamentos teológicos, seria inaceitável de contemporizar. Uma missa que sintetizava em si cerca de 500 anos de tradição agora seria substituída por uma nova missa, despida de muitos de seus aspectos simbólicos e teológicos mais significativos. A renovação litúrgica significava, para a TFP e para os demais grupos que se mantiveram resistentes ao chamado Novus Ordo, a materialização de uma nova Igreja, cujas características centrais seriam heranças do modernismo: “Tudo o que toca na missa toca, pois, no que a religião tem de mais nobre, sensível e vital”.36 A preocupação com 35 Id. 36 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. O direito de saber. Folha de São Paulo, São Paulo, 25 jan. 1970. Disponível em: https://www. pliniocorreadeoliveira.info/o-direito-de-saber-folha-de-spaulo-25-de-janeiro-de-1970/#gsc.tab=0. Acesso em: 15 jun. 2024. 215 a preservação da fé herdada de uma Igreja considerada imutável está sempre presente. No mesmo relato, diz Gregório Lopez: Em 3 de Abril de 69, Paulo VI promulga uma constituição apostólica instituindo o “Novus Ordo Missae”para entrar em vigor em 30 de novembro […] Como medida provisória, antes de qualquer estudo, [Dr. Plinio] declarou que, a partir de novembro de 69, quando entrava em vigor a Nova Missa, nós deveríamos assistir Missa de São Pio V com algum padre amigo nosso, ou ir [à igreja dos] Melquitas. Mas que, provisoriamente, antes de qualquer coisa não se devia participar da nova Missa.37 Em 1970, após a conclusão do livro, Plinio Corrêa de Oliveira organizou um simpósio de estudos para revisar a obra. Posteriormente, outro simpósio foi realizado com a presença do bispo Antônio de Castro Mayer, que, juntamente com Plinio, revisou e propôs emendas teológico-litúrgicas ao texto. Após essas revisões, e ciente de que o debate sobre a reforma litúrgica ganhava ampla repercussão na Europa, especialmente devido à resistência liderada pelo arcebispo Marcel Lefebvre, Plinio decidiu informar o público brasileiro sobre o crescente problema litúrgico que causava grandes preocupações ao papa Paulo VI, diante da adesão crescente de católicos ao movimento lefebvrista. Em um artigo intitulado “O direito de saber”, Plinio de Oliveira trouxe ao público brasileiro não apenas os debates ocorridos na imprensa secular sobre a questão, mas, também, mencionou as objeções levantadas pelos cardeais Alfredo 37 Id. 216 Ottaviani (1890-1979) e Antonio Bacci (1885-1971), que foram reconhecidos como autores do “Breve Exame Crítico sobre o Novus Ordo Missae”, embora o texto tenha sido de fato escrito pelo monge dominicano Gérard des Lauriers.38 Uma conduta assumida por muitos integrantes foi a de esperar nas portas das igrejas para apenas receber a comunhão nas missas celebradas segundo o Novus Ordo Missae e, logo em seguida, ausentarem-se, a fim de não reduzirem a nenhuma sua participação nos sacramentos onde não havia a disponibilidade de um sacerdote amigo da TFP. O bispo da diocese de Nova Friburgo, D. Clemente Isnard (1917-2011), também presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) entre 1979 e 1983, emitiu um comunicado proibindo a distribuição da Eucaristia aos membros da TFP, devido a este comportamento. A CNBB, em 1985, emitirá um comunicado desaconselhando os católicos do Brasil a filiação à TFP, visto a falta de sintonia e submissão ao episcopado brasileiro. O terceiro ponto central para nossa análise é a resistência da TFP à autoridade dos papas conciliares e pós-conciliares. A figura do papa Paulo VI, responsável pela maior parte do Concílio Vaticano II e pela implementação das reformas, é crucial para se entender as movimentações do pensamento tefepista sobre o papado. O historiador Rodrigo Coppe Caldeira39 destaca em sua dissertação de 38 Id. 39 CALDEIRA, Rodrigo Coppe. O influxo ultramontano no Brasil e o pensamento de Plinio Corrêa de Oliveira. 2005. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião) – Instituto 217 mestrado o caráter ultramontano da TFP, que se autodefinia como defensora do papado e de seus direitos, conforme a constituição dogmática Pastor Aeternus (1871) do Concílio Vaticano I, que estabeleceu o dogma da infalibilidade papal em matéria de fé e moral. Na visão ultramontana, a referência ao papa transcendia esses pontos, abrangendo orientação em política, ciência, filosofia, entre outros. No entanto, essa tendência ultramontana parece enfraquecida após o Vaticano II. Baseando-se nos estudos de Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira sobre a possibilidade de um papa cair em heresia, a TFP ajusta sua percepção sobre o papado. Tradicionalmente, o papa era visto como pastor e mestre infalível em teologia católica. Se um papa cair em heresia, sua infalibilidade, proclamada como dogma, seria defeituosa. Este dilema entre a tese de possível heresia papal e a crença fundamental do catolicismo romano é compatível com a postura de resistência da TFP e sua recusa em aceitar o Vaticano II como um Concílio legítimo. Dois exemplos que ilustram a resistência ao clero católico são os livros publicados pela TFP, entre final da década de 1970 e início dos anos de 1980. A Igreja ante a ameaça da escalada comunista (1977)40 trazia um arsenal de imagens de padres e freiras atuando em guerrilhas, mostrando-os como fundamentais articuladores das resistências armadas de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2005. 40 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. A Igreja ante a ameaça da escalada comunista. São Paulo: Vera cruz, 1977. 218 às ditaduras de direita pela América Latina. A segunda obra, denominada Sou católico: posso ser contra a reforma agrária? (1981),41 que trazia uma evidente resposta positiva ao questionamento que a nomeava, assumia o episcopado como adversário ao se opor claramente ao apoio oferecido pelo episcopado nacional, reunido em Itaici (SP), à reforma agrária, por meio do documento “Igreja e problemas da Terra” (1980). Por fim, selando os conflitos públicos com o clero católico em razão de seu anticomunismo, temos o livro As CEBS… das quais muito se fala, pouco se conhece: a TFP as descreve como são (1982),42 que acusa as Comunidades Eclesiais de Base (CEB)43 de serem, ao invés de núcleos de leitura e estudo bíblicos, focos de insurreição dos mais simples, alimentando neles o ideal de luta de classes. A luta anticomunista, tornada eixo de atuação da TFP, a partir da década de 1960, é vista, assim, como pura emanação do Magistério católico. Ela é transposta para novo campo de ação. Não é apenas na sociedade temporal que esta luta deve ser executada, mas, também, dentro da Igreja, que neste momento já estaria penetrada por tais ideias. Até o ano de 1974, data da publicação do que ficou conhecido nos ambientes internos da TFP como Manifesto 41 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. Sou católico: posso ser contra a reforma agrária? São Paulo: Artpress, 1981. 42 OLIVEIRA, Plinio Corrêa. As CEBS… das quais muito se fala, pouco se conhece: a TFP as descreve como são. São Paulo: Vera Cruz, 1982. 43 Muito populares a partir da década de 1970 na América Latina, as Comunidades Eclesiais de Base (ou CEBs), eram grupos de pessoas que se reuniam para a leitura da Bíblia articulada com as realidades político-sociais locais. 219 da Resistência, o movimento tradicionalista católico internacional, do qual a TFP faz parte, não tinha ainda manifestado formalmente e por escrito o que poderíamos chamar de doutrina da resistência ao Papa. Em novembro do mesmo ano, o arcebispo francês Marcel Lefebvre publica uma declaração, na qual expressa sua inconformidade com as reformas pós-Vaticano II: “A única atitude de fidelidade à Igreja e à doutrina católica, para bem da nossa salvação, é uma negativa categórica à aceitação da Reforma”.44 O gesto da TFP, que não recebeu nenhuma censura pública por sua desobediência, pode ter aberto as portas para as muitas manifestações públicas de resistência por parte dos católicos tradicionalistas, ainda com poucos deles avançando a ponto de pôr em dúvida a legitimidade da autoridade de um pontífice romano. O manifesto tefepista insere-se em um contexto de múltiplas publicações da organização acusando o clero católico de ser, após o Vaticano II, não apenas condescendente, mas canal de veiculação do comunismo na Igreja Católica. Sob o título A política de distenção do Vaticano com os governos comunistas. Para a TFP: omitir-se? ou resistir? (1974), a TFP acusa a Paulo VI de uma política de aproximação com o bloco soviético, traindo a longa tradição de condenações do Magistério católico ao comunismo: 44 LEFEBVRE, Marcel. Declaração de 1974. Fraternidade Sacerdotal São Pio X. Disponível em: https://www.fsspx.com.br/ declaracao-de-1974/#:~:text=%C3%89%2C%20pois%2C%20 imposs%C3%ADvel%20para%20todo,categ%C3%B3rica%20 %C3%A0%20aceita%C3%A7%C3%A3o%20da%20Reforma. Acesso em: 15 jun. 2024. 220 Aí o que fazer? As laudas da presente declaração seriam insuficientes para conter o elenco de todos os Padres da Igreja, Doutores, moralistas e canonistas – muitos deles elevados à honra dos altares – que afirmam a legitimidade da resistência. Uma resistência que não é separação, não é revolta, não é acrimônia, não é irreverência. Pelo contrário, é fidelidade, é união, é amor, é submissão.45 No Manifesto da Resistência, a TFP afirma que sua posição fundamentalmente anticomunista resultaria das convicções católicas de seus membros e, em nome desses princípios católicos, que os diretores, sócios e militantes da TFP seriam anticomunistas.46 O anticomunismo é constituído não apenas como posição ideológica em sintonia colateral com o mais puro pensamento da Doutrina Social católica, mas como a própria doutrina da Igreja. A denúncia sistemática do clero católico pela TFP é, a um só tempo, uma forma de indicar a distância que se estabelece entre ela – organização de inspiração católica, mas sem personalidade canônica – e uma forma de responsabilizar ante a opinião pública este mesmo clero pelo avanço dos ideais comunistas, uma vez que ele estaria operando desde o Concílio Vaticano II, na visão tefepista, como quem oferecia estruturas de articulação para essas ideias nos ambientes eclesiais. Conclusão Embora a TFP possua um estatuto de organização civil e careça de personalidade canônica, não se abstém 45 Id. 46 Id. 221 de abordar temas teológicos, construindo suas próprias interpretações. Desde a convocação do Concílio Vaticano II, a TFP adota duas posturas distintivas: 1) uma manifestação pública de adesão às determinações papais, expressas em livros e publicações da organização, e 2) um assentimento seletivo interno às normas e determinações conciliares e pós-conciliares. Esta ambivalência é evidente na rejeição de certas mudanças, como a reforma litúrgica de 1969 e a declaração Dignitatis Humanae sobre liberdade religiosa. Os documentos conciliares são vistos pela TFP como ambíguos e repletos de concessões, pois não fornecem fundamentos claros para suas práticas e visão de mundo. A TFP alerta a opinião pública sobre as consequências dessas ambiguidades. Um exemplo significativo é o abaixo-assinado de 1968 dirigido ao papa Paulo VI, que ganhou repercussão internacional e registrou a TFP no Livro dos Recordes, solicitando ações contra a infiltração comunista na Igreja. A TFP rejeita a concessão do Concílio a outras religiões. A ideia de que a Igreja Católica é portadora da verdade integral é considerada implícita, mas não explícita, em documentos como a Lumen Gentium (1964).47 Uma das principais ambiguidades identificadas pela TFP nos documentos conciliares refere-se ao texto do novo rito da missa. Na primeira parte do livro La Nouvelle Messe de Paul VI: Qu’en penser?, a ausência de termos definitivos que reafirmassem a doutrina católica sobre a missa é considerada uma debilidade condenável no documento 47 PAULO VI. Lumen Gentium. 1964. Disponível em: https:// www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/ documents/vat-ii_const_19641121_lumen-gentium_ po.html. Acesso em: 15 jun. 2024. 222 Sacrossanctum Concilium,48 onde o papa Paulo VI determina a reforma da liturgia romana, e no Institutio Generalis Missalis Romani,49 que introduziu as modificações litúrgicas. As omissões e ambiguidades teriam como consequência uma crise disciplinar na Igreja, resultando, segundo a TFP, em profundas crises de fé e moral, tese sustentada por Átila Sike Guimarães em The Murky Waters of Vatican II.50 Em resposta, a TFP manteve a prática da missa segundo o rito do papa São Pio V em suas sedes. Apesar de ser uma organização civil de militância política, suas sedes passaram a se organizar cada vez mais como mosteiros paralelos, com uma intensa vida religiosa, embora não estivessem sob o controle das autoridades oficiais da Igreja Católica. A recepção seletiva do Vaticano II pela TFP não se restringiu à organização, mas se expandiu para uma diocese inteira, refletindo os mesmos pressupostos religiosos. No entanto, a TFP aproveitou-se de certas oportunidades oferecidas pela Igreja no pós-Concílio, como a instituição dos “ministros extraordinários de distribuição da Eucaristia” estabelecida pelo papa Paulo VI, em 1972, por meio do 48 PAULO VI. Sacrossantum Concilium. 1965. Disponível em: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/ documents/vat-ii_const_19631204_sacrosanctum-concilium_ po.html. Acesso em: 11 set. 2024. 49 PAULOVI.InstruciónGeneraldelMisalRomano.1969.Disponível em: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/ccdds/ documents/rc_con_ccdds_doc_20030317_ordinamentomessale_sp.html. Acesso em: 15 jun. 2024. 50 GUIMARÃES, In the murky waters of Vatican II, op. cit. 223 Motu Proprio Ministeria Quaedam.51 Esta prática permitiu à TFP evitar a frequência às igrejas onde a “missa nova” era celebrada, transformando suas sedes em mosteiros paralelos. Todas essas atitudes são tomadas ao mesmo tempo em que se colocam numa posição de resistência ao papa reinante. Cabe destacar que Plinio Corrêa de Oliveira, embora manifestasse em círculos mais próximos sua desconfiança acerca da legitimidade dos papas pós-conciliares, não deixava de apelar à figura dos pontífices para abalizar as posições tefepistas sobre os mais variados assuntos. Em 1968, ao organizar seu abaixo-assinado ao papa Paulo VI pedindo medidas contra a infiltração comunista na Igreja, reconhece indiretamente a figura do papa reinante. Embora estejamos limitados ao período em recorte, que vai de 1959 a 1988, pode-se dizer que a recepção tefepista do Concílio Vaticano II ainda está em pleno processo de desenvolvimento nos ambientes tefepistas e naqueles que surgiram após a divisão da organização em dois ramos distintos. Os episódios internos da organização após a morte do fundador, como a divisão ocorrida em 1998 em que um dos pontos-chave foi precisamente a adesão ao Novus Ordo Missae por parte importante da organização, demonstra a dinâmica deste processo de recepção em curso. O numeroso grupo levanta suas objeções às posições defendidas publicamente por Plinio ao longo de décadas, bem 51 PAULO VI. Ministeria Quaedam. 1972. Disponível em: https:// www.vatican.va/content/paul-vi/es/motu_proprio/documents/ hf_p-vi_motu-proprio_19720815_ministeria-quaedam.html. Acesso em 15 jun. 2024. 224 como pela TFP e a integralidade de seus membros até então. Reclamam uma nova interpretação das relações do movimento com a hierarquia eclesiástica, provocando uma fissura no tecido até então aparentemente homogêneo da doutrina tefepista. A coerência interna que até então caracterizava o movimento, que se dava em razão do carisma profético de Plinio de Oliveira, compreendido como o ato de emitir “formulações de hipóteses adequadas a respeito dos acontecimentos futuros - o que supunha um auxílio da graça”,52 passa a não existir com o desaparecimento do fundador, possibilitando múltiplas interpretações sobre o seu legado. O setor dissidente da organização requisita um estatuto que antes a TFP não possuía. Constituem, então, os Arautos do Evangelho, como uma associação privada internacional de fiéis de direito pontifício, alcançando uma aprovação de seus estatutos pela Igreja e a consequente regularização canônica que a TFP não possuía, por se tratar de uma associação civil. Criou-se, também, duas sociedades de vida apostólica, que compreendem o ramo feminino da organização (que até o momento da morte de Plinio Corrêa de Oliveira não havia) e um setor eclesiástico, constituindose na sua maioria por ex-membros da TFP que se ordenaram sacerdotes católicos nos Arautos do Evangelho. Essa condição de instituto secular ou societas laicalis fora anteriormente rejeitada pela TFP, que o descreve como uma ação “imprudente fazer qualquer transformação na TFP, levando-a a depender da autoridade eclesiástica”.53 52 GUIMARÃES, Servitudo ex caritate, op. cit., p. 41-42. 53 TFP. Reunião do Conselho Nacional, 5 fev. 1976. 225 Ao apresentar as tensões estruturais, o imaginário tridentino e a redefinição da vida religiosa de uma organização complexa e que escapa às configurações de uma Igreja local, acreditamos ter oferecido uma reflexão sobre a possiblidade de se perceber a recepção conciliar numa circunstância em que se ultrapassa os limites do mero debate teológico, ao trazer este conceito para analisar uma organização civil de inspiração católica. O objetivo principal foi identificar as ambivalências tefepistas em relação ao Concílio Vaticano II e ao Magistério pós-conciliar, que aparece na Igreja do século XX como uma tentativa de modernização do Catolicismo. Temos, portanto, um cenário em que a TFP, no período imediatamente a seguir ao encerramento do Concílio, intensifica um processo que está em sua gênese, que é o da automarginalização no interior do catolicismo institucional, reconfigurando a vida religiosa da entidade e seus membros. A TFP se torna uma pioneira na criação de uma trincheira anticonciliar no Brasil, fornecendo elementos importantes para a criação de um imaginário negativo em relação ao Concílio, ao episcopado nacional e ao clero, que ainda hoje persiste em muitos grupos da direita católica brasileira. Ao mesmo tempo em que se posicionava como resistência, a TFP não deixava de desfrutar de possibilidades construídas no bojo do pós-Concílio, que garantiam à organização certa independência religiosa. Essa posição ambivalente, a nosso ver, propiciou as transformações profundas pelas quais passou a organização após a morte do fundador, resultando numa aderência ao menos parcial 226 ao Concílio Vaticano II, ao Novus Ordo Missae e aos papas pós-conciliares. Desse modo, pode-se inferir que a história da recepção conciliar pela TFP, assim como para toda a Igreja Católica, está em pleno andamento, não tendo se esgotado. É um processo que está ainda em seu desdobramento, acenando sempre para mudanças, rupturas, permanências e regresso às tradições. Campos dos Goytacazes: uma diocese atípica na história do catolicismo brasileiro Vinícius Couzzi Mérida Nos séculos XIX e XX, alguns acontecimentos históricos trouxeram mudanças muito profundas para o pensamento ocidental. Por isso, no final da década de 1958, no pontificado de João XXIII (1881-1963), a Igreja Católica Romana viu a necessidade de um novo Concílio que respondesse às questões pertinentes ao homem contemporâneo, uma vez que as respostas trazidas pelo Concílio Vaticano I (18691870) já não eram mais suficientes para responder às novas demandas do século XX, que em função da complexidade dos eventos históricos, caracterizou-se como “impossível de definir e possível apenas de tentar entender”.1 Assim sendo, diante da complexidade do mundo contemporâneo, João XXIII propôs o aggiornamento da Igreja.2 Por essa medida, o papado demonstrava seu interesse em dialogar com a sociedade contemporânea por meio do Concílio Vaticano II (1962-1962), que foi anunciado 1 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX. 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 2 POULAT, Émile. Une Église ébranlée: changement, conflit et continuité de Pio XII à JeanPaul II. Paris: Casterman, 1980. 228 por João XXIII em 25 de janeiro de 1959.3 O anúncio foi inesperado e criou algumas incertezas dentro do clero. Por isso, o Vaticano II teve sua fase preparatória em um mundo tensionado; afinal, tratava-se de um evento que teria lugar em meio aos conflitos da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.4 Os conflitos do mundo externo também aconteceram no interior da Igreja e na própria estrutura eclesiástica, porque os padres conciliares dos quatro cantos do globo levaram para Roma diferentes visões de mundo, que se chocaram já na fase preparatória do Concílio. Por isso, as aulas conciliares foram momentos de tensão, marcados por ideologias opostas que colidiram a fim de dar o tom que iria governar a Igreja nas décadas seguintes.5 Entre os nomes do conservadorismo católico que se colocaram contra os movimentos reformistas, havia o nome do bispo de Campos dos Goytacazes, Antônio de Castro Mayer (1904-1991). Esse personagem se destaca na história do catolicismo romano do Brasil, porque, durante o Concílio, compôs a mesa diretora do principal grupo conversador, o Coetus Internationalis Patrum (CIP), e, após o Concílio, ele recusou-se a implementar na Diocese de Campos as reformas conciliares, como era o projeto da Santa Sé. Este fato conferiu a Campos uma realidade atípica no catolicismo romano, devido à postura conservadora e intransigente do seu bispo 3 LIBÂNIO, João Batista. Concílio Vaticano II: em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Loyola, 2005. 4 HOBBSBAWM, Era dos Extremos, op. cit., p. 152 5 LIBÂNIO, Concílio Vaticano II, op. cit., p. 59. 229 diocesano, que rompeu com a cúpula do catolicismo romano, a ponto de chegar à sua excomunhão pelo papa João Paulo II, em 1988, configurando uma situação singular na história do catolicismo no século XX. O Concílio Vaticano II João XXIII (1881-1963) tornou-se papa em 1958, após a morte de Pio XII (1876-1958). De forma surpreendente, ele anunciou ao mundo, em janeiro de 1959, sua intenção de realizar um Concílio Ecumênico e o tornou oficial no Natal de 1961, pela bula Humanae Salutis.6 A necessidade de um Concílio já rondava a Igreja há algumas décadas. Entretanto, ela atravessou a primeira metade do século XX hesitando sobre esta decisão. As tensões ideológicas da primeira metade do século XX, o fim da Segunda Guerra Mundial, o advento da Guerra Fria, as revoluções políticas, culturais e sociais vivenciadas por aquele século promoveram mudanças na mentalidade do Ocidente. Foi nesse contexto que a Igreja viu-se impelida a promover um evento de caráter global, cujo intuito seria posicionar o catolicismo romano nesse cenário complexo.7 Assim, o Concílio Vaticano II foi aberto em 11 de outubro de 1962 e encerrado em 8 de dezembro de 1965 por Paulo VI (1897-1978), em virtude do falecimento do papa João XXIII em 1963. Coube ao cardeal Montini, 6 LIBÂNIO, Concílio Vaticano II, op. cit., p. 59. 7 MÉRIDA, Vinícius Couzzi. Tradicionalismo Católico: Resistência e Cisma na Diocese de Campos dos Goytacazes. Dissertação. 2016. (Mestrado em Ciências da Religião) – Faculdade Unida de Vitória, Vitória, 2016. 230 eleito papa com o nome de Paulo VI, a função de dar sequência às Sessões Conciliares, que, ao todo foram quatro, ocorridas nos anos de 1962, 1963, 1964 e 1965.8 Confirmando o pensamento de seu antecessor, o papa Paulo VI entendeu que o Concílio objetivava: 1) a exposição da Teologia da Igreja; 2) sua renovação interior; 3) a promoção da unidade dos cristãos; e 4) o diálogo com o mundo contemporâneo.9 Havia na Igreja, desde o século XIX, algumas correntes que disputavam influência. O presente trabalho destaca a oposição entre os modernistas e os antimodernos. Influenciados pelas filosofias racionalistas e cientificistas e pelo evolucionismo e positivismo do século XIX, o clero progressista quis nortear a Igreja em uma perspectiva mais racional, aplicando o método histórico-crítico e adaptando a teologia católica ao mundo contemporâneo. Nesse sentido, um novo Concílio seria a ocasião ideal para que as ideias progressistas fossem disseminadas com maior eficiência dentro da Igreja e espalhadas por todo o mundo católico pós-conciliar.10 Até esse momento, a cúpula católica permanecia numa postura antimoderna, cuja gênese estava no século XIX.11 8 Ibid., p. 60. 9 ALBERIGO, Giuseppe. História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995. 10 MÉRIDA, Tradicionalismo Católico, op. cit., p. 3 11 CALDEIRA, Rodrigo Coppe. Os baluartes da tradição: o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II. Curitiba: CRV, 2011. 231 O clero reformador foi liderado por prelados e teólogos da Europa Central,12 e o clero conservador, à medida que percebeu os movimentos reformistas que havia no Concílio, mobilizou-se em torno do (CIP), cujo objetivo era conter as reformas dentro da Igreja Católica.13 Alguns nomes destacaram-se dentro desse grupo, como o do arcebispo francês Marcel Lefebvre (1905-1991), do arcebispo de Diamantina, D. Geraldo de Proença Sigaud (1909-1999) e do bispo de Campos dos Goytacazes, D. Antônio de Castro Mayer. Os membros desse grupo entenderam-se como guardiões da Tradição Católica.14 Enquanto membro ativo do CIP, Castro Mayer fez trinta intervenções no Concílio, tendo sido o segundo bispo brasileiro que mais interveio nas sessões conciliares.15 De forma mais ardorosa, o bispo de Campos trabalhou muito para que a missa continuasse sendo celebrada em latim, sem alterações.16 Assim, nas sessões conciliares, o clero presente sob as abóbodas da Basílica de São Pedro travou batalhas 12 WILTGEN, Ralph. O Reno se lança sobre o Tibre: O Concílio desconhecido. Niterói: Permanência, 2007. 13 ROY-LYSENCOURT, Philippe. O Coetus Internationalis Patrum no Concílio Vaticano II: apresentação e resultados de uma pesquisa. Horizonte, v. 13, n. 38, p. 1051-1079, 2015. 14 CALDEIRA, Os baluartes da tradição, op. cit., p. 13. 15 BEOZZO, José Oscar. Os Padres Conciliares Brasileiros no Concílio Vaticano II: Participação e Prosopografia 19591965. 2001. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. 16 WILGENT, O Reno se lança sobre o Tibre, op. cit., p. 45. 232 teológicas de acordo com suas crenças pastorais a respeito dos rumos que o catolicismo romano deveria seguir. Ao término do Concílio, a Igreja Católica Romana vivenciou um novo período de importantes reformas. Esse período foi o chamado momento de recepção ao Concílio Vaticano II. Diocese de Campos dos Goytacazes: ruptura e permanência Nos anos que se seguiram ao término do Concílio, o bispo de Campos revelou-se um prelado agoniado, porque ele estava em desacordo com o modo de recepção conciliar. O processo pós-Concílio foi visto por Castro Mayer como um movimento de infiltração modernista na Igreja, que, na sua visão, abrira-se demasiadamente para as incursões dos teólogos modernistas.17 Entre os pontos criticados por Castro Mayer, estava o fortalecimento das conferências episcopais pelo mundo católico, em detrimento da Cúria Romana e do poder monárquico do Papa. De igual maneira, opunha-se ao ecumenismo, à tolerância e à liberdade religiosa e, principalmente, à Reforma Litúrgica.18 Além desses elementos, o alvo das maiores críticas de Castro Mayer foi o missal romano de Paulo VI, promulgado em 1969. As reservas do bispo de Campos foram tão severas que o Novus Ordo Missae só foi oficialmente implantado em Campos no ano de 1981, quando a Diocese foi assumida por D. Carlos Alberto Etchandy Gimeno Navarro (1931-2003). Mesmo assim, 17 MÉRIDA, Tradicionalismo Católico, op. cit., p. 71. 18 CALDEIRA, Os baluartes da tradição, op. cit., p. 182. 233 D. Carlos Alberto Navarro celebrava o rito de Paulo VI em latim, para não escandalizar os fiéis.19 A carta escrita ao Papa, em 12 de setembro de 1969, evidencia a posição de Castro Mayer sobre o Novus Ordo Missae: Tendo examinado atentamente o “Novus Ordo Missae”, a entrar em vigor no próximo dia 30 de novembro, depois de muito rezar e refletir, julguei de meu dever, como sacerdote e como bispo, apresentar a Vossa Santidade, minha angústia de consciência, e formular, com a piedade e confiança filiais que devo ao Vigário de Jesus Cristo, uma súplica. O “Novus Ordo Missae”, pelas omissões e mutações que introduz no Ordinário da Missa, e por muitas de suas normas gerais que indicam o conceito e a natureza do novo Missal, em pontos essenciais, não exprime, como deveria, a Teologia do Santo Sacrifício da Eucaristia, estabelecida pelo Sacrossanto Concílio de Trento, na sessão XXII. Fato que a simples catequese não consegue contrabalançar. Em anexo, junto as razões que, a meu ver, justificam esta conclusão.20 Após as reformas propostas pelo Concílio Vaticano II, Castro Mayer voltou à sua Diocese, onde procurou dar uma correta intepretação da atualização proposta por João 19 SEIBLITZ, Zélia. Os arquitetos do paraíso. 1992. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1992. 20 ARQTRAD: Arquivo que reúne material de pesquisa produzido na diocese de Campos dos Goytacazes, por conta da crise diocesana que assolou a Igreja particular de Campos dos Goytacazes. Carta de Castro Mayer a Paulo VI. Campos dos Goytacazes, 12 set. 1969. 234 XXIII – o que, na prática, significou conservar o mesmo modelo de Igreja pré-Vaticano II, adotando apenas algumas reformas propostas pelo missal de 1962.21 Assim, nos anos que seguiram o término do Concílio, Castro Mayer foi afastando-se paulatinamente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), uma vez que ele e a maioria do episcopado brasileiro trilharam caminhos distintos. Em 1981, Castro Mayer, então com 77 anos de idade, tornou-se bispo emérito de Campos dos Goytacazes, após trinta e três anos à frente da diocese. Com a sua substituição, inicia-se um grave problema: a divisão diocesana. Até aquele momento, a maioria absoluta do clero diocesano ainda celebrava o rito tridentino, a exemplo do bispo (emérito) de Campos. Nos anos seguintes a sua aposentadoria, de forma aberta, Castro Mayer aproximou-se de D. Marcel Lefebvre na resistência às reformas promovidas pelo Concílio Vaticano II. Ao tomar posse, dentre suas primeiras medidas, o novo bispo diocesano criou um conjunto de pastorais, cujo secretariado atuava diretamente nas decisões junto ao bispado. Entre os secretários, estavam casais que atuaram como pontes junto à população local nas comissões diocesanas, para dinamizar o apostolado da Igreja, a Campanha da Fraternidade e outras pastorais que não existiam na Diocese até então.22 Como novidade pastoral, D. Carlos Alberto Navarro deu espaço para o advento da Renovação Carismática Católica 21 MÉRIDA, Tradicionalismo Católico, op. cit., p. 60. 22 RIBEIRO, Márcio André dos Santos; PAZ, Roberto Francisco Ferreria. História da diocese de Campos: 100 anos de evangelização (1922-2022). Campos dos Goytacazes: Encontrografia: 2022. 235 (RCC),23 que não existia em Campos, porque Castro Mayer a via como um movimento da “nova religião protestantizada”.24 A RCC, de fato, era uma novidade, pois, até então, o laicato era regido pelo clero e integrava as associações de fiéis, a saber: Cruzada Eucarística, Liga Católica, Congregação Mariana, Legião de Maria, Pia União das Filhas de Maria e Apostolado da Oração, Ordem Terceira do Carmo.25 A doutrina recebida pelo laicato de Campos dos Goytacazes sempre destacou, por determinação do bispado diocesano, que havia distinção entre as funções, e que os “simples leigos eram a parte discente da Igreja. Pois, essas diferenças ministeriais eram dogmas de fé”.26 Então, tendo em vista o conjunto de transformações que aconteciam na Igreja Católica em outras partes do mundo, o novo bispo sabia que Campos dos Goytacazes tinha uma situação peculiar em relação ao Concílio. Todavia, ainda não tinha a dimensão da hostilidade que enfrentaria pelas divergências pastorais e eclesiológicas que eram praticadas pelo bispo emérito. Afinal, Castro Mayer, deliberadamente, agiu na mentalidade anticonciliar para barrar as reformas na Diocese, 23 Ibid., p. 58. 24 MAYER, Antônio de Castro. O pensamento de Dom Antônio de Castro Mayer: textos selecionados 1972-1989. Niterói: Permanência, 2010. 25 ARQDIOCAMPOS: Arquivo da Diocese de Campos dos Goytacazes. Relatório quinquenal da diocese de Campos 19751980, Campos dos Goytacazes, 1981. 26 ARQTRAD: Arquivo de pesquisa material referente aos padres e fiéis tradicionalistas da diocese de Campos dos Goytacazes. Jubileu dos 50 anos da Pia União das Filhas de Maria. Varre-Sai, 1983. 236 o que atrasou o processo de recepção conciliar,27 haja vista o depoimento do padre Rosário, Vigário Geral da diocese: Expirado o prazo, pensei que deveria, inevitavelmente, pôr em prática as mudanças prescritas na celebração da Missa. E a isso já me dispunha, quando recebi oficialmente nova orientação da Diocese: continuar com o antigo rito, uma vez que o Novo Ordo não tinha caráter obrigatório. Estranhei um pouco a reviravolta, mas nada objetei, confiando plenamente no critério da Autoridade Diocesana. E como continuava a não morrer de amores pela nova Missa, tranquilizei-me [..]. Formou-se, então, na Diocese de Campos dupla corrente: uns, por motivo de fé, rejeitaram a Nova Missa. Outros, também por fidelidade à sua fé, viamse no dever de adotar o missal vindo de Roma […] Continuei, pois, com o antigo missal, considerando que o novo, como me fora dito, não era obrigatório. Mas como não levava em viagem o missal de São Pio V, aceitava o que me fosse apresentado fora da Diocese de Campos.28 O depoimento do padre Rosário é claro ao dizer que o bispado de Campos tinha preferência pelo rito de Pio V. Além das memórias do padre Rosário, o boletim diocesano, de junho de 1977, oito anos após a promulgação do Novus Ordo Missae, também serve como fonte que aponta a mentalidade presente no catolicismo campista, que privilegiava o uso do latim em detrimento da língua vernácula: Eis que o Latim tem a vantagem de acentuar o lado misterioso do Sacrossanto Sacrifício da Missa, e 27 MÉRIDA, Tradicionalismo Católico, op. cit., p. 71. 28 ROSÁRIO, Antônio Ribeiro. Reflexões e Lembranças de um padre suas lutas e fracassos. Itaperuna: Damadá Artes Gráficas, 1984. 237 conciliar maior respeito por tão augusto Sacrifício. O vernáculo, pelo contrário, supõe a pretensão de penetrar o âmago do grande Mistério. Tenta, portanto, dissipá-lo ou, ao menos, diminui-lo. Vem a ser uma tentação contra a Fé. Nela caiu Lutero, e os Protestantes em geral, que não admitem que na Santa Missa haja um verdadeiro e próprio sacrifício. […] Em segundo lugar, porque o Latim torna mais consciente, no homem, a transcendência de Deus. O Latim, pois, é um instrumento sobremodo útil para o fiel compenetrar-se dos sentimentos, com que deve se unir ao Sacerdote que se oferece sobre o Altar torna a participação da Santa Missa, também sob este aspecto, mais frutuosa.29 O latim e a liturgia de Pio V foram defendidos como forma de manutenção do afervoramento da fé, em detrimento das ideias reformistas, vistas pelo bispado de Campos como destruidoras da fé católica. Por isso, segundo Castro Mayer, era necessário vigiar os movimentos progressistas: Daí, vermo-nos a braços com os destemperos heretizantes de Küng, Schillebeeckx, Pothiers etc., e com erupções heterodoxas disseminadas em revistas, outrora católicas, que predispõem os fiéis à aceitação de uma nova igreja que não é a Igreja de Jesus Cristo. Mais do que nunca é preciso vigiar e orar.30 29 ARQTRAD: Arquivo de pesquisa material acumulado durante a pesquisa sobre os padres e fiéis tradicionalistas da diocese de Campos dos Goytacazes. Documento circular diocesano sobre liturgia. Campos dos Goytacazes, 1977. 30 ARQTRAD: Arquivo de pesquisa material acumulado durante a pesquisa sobre os padres e fiéis tradicionalistas da diocese de Campos dos Goytacazes. Documento circular diocesano sobre a reforma litúrgica. Campos dos Goytacazes, 1980. 238 Os documentos pesquisados demonstram que o bispo emérito distanciara-se do episcopado brasileiro, pois havia a pressão de D. Eugênio Sales (1920-2012, arcebispo do RJ) para que se celebrasse a missa de acordo com o missal de 1969. A razão para esse afastamento é justificada pelas crenças do bispo de Campos que observava o processo de transformação conciliar como infiltração modernista e marxista na Igreja, no intuito de destruí-la por dentro.31 Por isso, a Igreja particular de Campos ficou alheia aos movimentos católicos na América Latina, como as conferências episcopais de Medellín, na Colômbia, em 1968, e Puebla, no México, em 1979, assim como as celebrações anuais da Campanha da Fraternidade.32 A proposta era conservar a prática anticonciliar de maneira perene na Diocese, mesmo após a chegada do novo bispo, porque a corrente tradicionalista entendia que a Igreja era sempre a mesma, e por isso, não muda. São Tomás de Aquino declara que as leis humanas não devem ser mudadas, a não ser quando haja evidente necessidade, ou ao menos, grande utilidade que o exija. E dá como razão o fato de que a própria mudança encerra uma imperfeição, de vez que lança certo descrédito sobre a mesma lei. Que diria, então, São Tomás, da Fé? Porque a Fé não impõe apenas uma prática de procedimento, que pode variar. A Fé versa sobre verdades reveladas por Deus. Portanto, é, 31 MAYER, Antônio de Castro. Por um Cristianismo Autêntico. São Paulo: Editora Vera Cruz, 1971. 32 ARQDIOCAMPOS: Arquivo da diocese de Campos dos Goytacazes. Livro de tombo da paróquia Nossa Senhora do Rosário. Campos dos Goytacazes, 30 out. 1979. 239 de si, imutável. Daí, o axioma sintetizado na frase latina “immota f ides”, para significar perfeita em matéria de Fé.33 A manutenção do discurso conservador em Campos era ampla e tocava diferentes frentes que preconizavam o antiecumenismo, a rigorosa observância do uso da batina pelo clero, a comunhão de joelhos e dada diretamente na boca do fiel, a conservação do latim na liturgia, a expressa proibição das mulheres exercerem qualquer atividade litúrgica, a reprovação social de que os católicos frequentassem clubes, bailes, praias e piscinas e, no aspecto político, o bispado de Campos recomendava que os católicos votassem somente em candidatos que fossem contra o divórcio.34 O processo de recepção conciliar no catolicismo brasileiro inseriu a Igreja na missão crítico-profética que desencadeou a pastoral social, que incluiu grande parcela do clero e do laicato nas denúncias contra as iniquidades sociais, que expressavam uma relação entre opressores e oprimidos, desde o nível das empresas e dos grupos, até o das nações e povos.35 Diante do crescimento dessa vertente social na Teologia brasileira e das problematizações das questões sociais na Igreja, Castro Mayer escreveu um pequeno 33 MAYER, O pensamento de Dom Antônio de Castro Mayer, op. cit., p. 26. 34 ARQDIOCAMPOS: Arquivo da diocese de Campos dos Goytacazes. Livro de tombo da paróquia Nossa Senhora do Rosário. Campos dos Goytacazes, 28 jan. 1978. 35 MORAIS, João Francisco de Régis. Os bispos e a política no Brasil: o pensamento social da CNBB. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1982. 240 artigo direcionado aos diocesanos, cujo título era “Azares do aggiornamento”. O bispo demonstrava as preocupações pastorais concernentes ao Concílio, que o atormentavam. João XXIII não desceu aos pormenores, como faria esse aggiornamento. Essa seria a tarefa do Concílio. Acontece que o “Modernismo” – confluência de todas as heresias, como definiu São Pio X no seu postulado – não pedia uma adaptação da Teologia ao mundo moderno, continuou ele a agir, através de “sociedades secretas”, nas expressões do mesmo São Pio X (AAS, 1910, p. 665). Não é de estranhar tenha ele aproveitado a oportunidade, e se tenha insinuado nos meios eclesiásticos, para desviar, no seu sentido de verdadeira mudança doutrinária, o aggiornamento, na expressão proposta pelo papa Roncalli. Eis como se explica a lamentação de Paulo VI – realizador do Concílio – quando se entristecia ao ver, após o sínodo, em vez de uma unidade viva e florescentes, surgirem, na Igreja, dissensões, ambiguidades e incertezas.36 Desde o final da década de 1960, até o período em que foi substituído no governo diocesano, Castro Mayer manteve polidez em relação ao Papa, embora criticasse as reformas conciliares e os teólogos progressistas abertamente. Todavia, em público, o bispo emérito poupou Paulo VI e João Paulo II, reservando suas críticas aos pontífices somente nos momentos particulares, como nas cartas que escreveu para o arcebispo francês.37 36 MAYER, O pensamento de Dom Antônio de Castro Mayer, op. cit., p. 26. 37 ARQÉcône: Carta de Castro Mayer a Dom Lefebvre, Écône, 26 jan. 1970, Arquivo do Seminário de Écône – FSSPX (ASE). 241 O bispo anticonciliar procurou uma boa política com Roma, nos limites que a situação permitia – tendo feito a visita Ad Limina, em maio de 1980, acompanhado pelo padre Fernando Rifan. Todavia, foi insuficiente para que o bispado de Campos se tornasse mais flexível às reformas que aconteciam na Igreja naquele momento. Por isso, quando D. Carlos Alberto Navarro chegou à Diocese, havia um clima de animosidade, porque todos os padres das congregações religiosas já celebravam pelo missal de Paulo VI, enquanto os padres diocesanos não.38 A conservação do modelo de Igreja pré-conciliar está diretamente ligada às crenças de Antônio de Castro Mayer, que entendeu que o Concílio foi influenciado pelo modernismo condenado por Pio X (18351914).39 Como o Concílio Vaticano II buscou um diálogo convergente com o mundo contemporâneo, Castro Mayer ficou reticente e decidiu não aderir às suas indicações. Com a chegada de D. Carlos Alberto Navarro, a partir de 1981, a Diocese de Campos entrou em um processo de divisão, porque a maioria do clero diocesano, 25 padres no total, não aceitou a reforma litúrgica. Essa ruptura teve repercussão no âmbito católico mundial, pois os padres que recusaram as reformas conciliares posicionaram-se publicamente de acordo com a formação recebida de Castro Mayer. Ao agirem assim, o clero tradicionalista não rompeu somente com o novo bispo diocesano, mas, também, com a Igreja Católica Romana enquanto instituição universal.40 38 RIBEIRO; PAZ, História da diocese de Campos, op. cit., p. 58. 39 MAYER, Por um Cristianismo Autêntico, op. cit., p. 23. 40 MÉRIDA, Tradicionalismo Católico, op. cit., p. 144. 242 O clero que seguiu Castro Mayer condenou publicamente o Concílio e orientou seus paroquianos a não seguirem as direções do novo bispo, que contou apenas com poucos padres diocesanos e algumas ordens religiosas para pastorear a diocese dividida.41 Essa realidade chegou à Santa Sé, chamando muito a atenção do papa João Paulo II (19202005) e da cúria romana. Desta forma, os primeiros anos do episcopado de D. Carlos Alberto Navarro em Campos foram difíceis, pois, além de contar com poucos padres diocesanos e algumas ordens religiosas, ainda teve o constrangedor papel de retirar os padres tradicionalistas de suas paróquias e, para tanto, o bispo de Campos fez uso de ordens judiciais e auxílio de força policial. Esse período de exoneração ocorreu entre 1982 e 1987.42 Para blindar a diocese do “espírito do mundo moderno”, Castro Mayer fomentou na Igreja local de Campos, paulatinamente, a doutrina de que o Vaticano II seria o antisyllabus. Segundo o bispo de Campos, o Concílio “representa uma tentativa de reconciliação oficial da Igreja com o mundo”, de maneira destacada, por meio da Constituição Gaudium et Spes.43 Então, ao passo que a aposentadoria de Castro Mayer tornava-se iminente, o bispado teve a preocupação de reforçar doutrinariamente a narrativa que primava pela conservação do modelo de Igreja anticonciliar.44 41 Ibid., p. 66. 42 SEIBLITZ, Os arquitetos do paraíso, op. cit., p. 169. 43 MAYER, O pensamento de Dom Antônio de Castro Mayer, op. cit., p. 86. 44 MÉRIDA, Tradicionalismo Católico, op. cit., p. 70. 243 O grande mentor de todo esse esquema de mobilização tradicionalista na Diocese foi o bispo emérito, que formara em seu clero a mentalidade anticonciliar, sob alegação de que o Vaticano II seria um evento “heretizante”, orquestrado por grupos progressistas.45 À vista dessa situação, a resistência conciliar aconteceu em toda a diocese, e, com ela, houve a instauração de uma guerra religiosa que dividiu o catolicismo romano em dois polos. Segundo o depoimento do padre Fernando Rifan, De nossa parte, temos a plena convicção de que o melhor serviço que podemos prestar à Igreja, ao Papa, ao Bispo e ao povo cristão é defendermos a Tradição, a doutrina que a Igreja sempre ensinou, mesmo à custa de sermos perseguidos, injuriados e até expulsos das igrejas. Podem nos tirar os templos, mas jamais a nossa Fé! Assim o dizemos, confiados unicamente na Graça de Deus. A história nos dará razão! E, mais do que o tribunal da história, o tribunal de Deus, para o qual apelamos! Que Nossa Senhora nos dê coragem e perseverança.46 Em diversos casos de remoções paroquiais, D. Carlos Alberto Navarro viu-se obrigado a solicitar a presença da polícia, impetrar ação na justiça e pedir apoio à CNBB e à Santa Sé para fazer valer a determinação diocesana no processo de recuperação das paróquias, capelas e objetos religiosos como âmbulas, ostensórios e outros objetos valiosos usados na liturgia e na ornamentação das igrejas.47 45 SEIBLITZ, Os arquitetos do paraíso, op. cit., p. 196. 46 RIFAN, Fernando Arêas. Quer agrade quer desagrade. Campos dos Goytacazes: Gráfica Lobo, 1999. 47 SEIBLITZ, Os arquitetos do paraíso, op. cit., p. 196. 244 O estrondo na Diocese foi tão grande, que extrapolou as fronteiras diocesanas, como registrou o padre Rosário: Com a vinda para Campos do Senhor Dom Carlos Alberto, calculava que, concomitantemente, teríamos novas diretrizes. Aguardei-as. Presente a uma reunião do Conselho Presbiteral, percebi o mal-estar que se esboçava no ânimo dos Revmos. Conselheiros, com relação ao Novo Ordo. O Senhor Dom Carlos Alberto, então, declarou que respeitava a consciência de todos, e sugeriu que os descontentes apresentassem as suas razões à Santa Sé. Aceito o alvitre, redigiu-se um memorial, para ser enviado ao Santo Padre. Subscreveram-no 23 padres […] A resposta de Roma demorou a vir, mas veio. E, segundo fui informado, veio desfavorável. Os 23 signatários não se submeteram. O pior foi que arrastaram muita gente, principalmente mulheres nervosas, para sua rebelde dissidência.48 As pesquisas demonstram que o clero removido por D. Carlos Alberto Navarro deixava as paróquias em eventos repletos de comoção, com a presença de centenas de fiéis e dezenas de padres tradicionalistas.Todavia, Castro Mayer nunca estava presente. As cerimônias de despedidas mobilizavam os fiéis, que, organizados em procissões, caminhavam até o local de apoio para o início da nova comunidade.49 Os novos locais das celebrações tridentinas, após as exonerações, eram variados: uma capela particular pertencente a alguma associação de fiéis, casas, garagens, 48 ROSÁRIO, Reflexões e Lembranças de um padre suas lutas e fracassos, op. cit., p. 271. 49 MÉRIDA, Tradicionalismo Católico op. cit., p. 75. 245 cinemas desativados, galpões, barracões, asilos etc. O improviso predominava na gênese das novas comunidades tradicionalistas, que surgiam em toda a Diocese ao longo da década de 1980. Para tanto, era fundamental o suporte do laicato que cedia o espaço e fazia doações, a despeito das ordens de D. Carlos Alberto Navarro.50 Na década de 1980, a Diocese era composta por onze municípios.51 Em todos eles, houve manifestações públicas dos tradicionalistas, que se organizaram mediante cartas, panfletos, programas de rádio, jornais, procissões etc.52 A esse respeito, em suas memórias, o padre Rosário escreveu: Calculava que o novo Bispo encontraria aqui resistências. Mas, longe estava de supor que a radicalização chegasse a tal extremo. E tudo em nome da fé e da consciência! Não ignorava que os grupos dissidentes faziam restrições ao Novus Ordo Missae. Não imaginava, entretanto, que se considerasse pecado mortal a própria assistência a Missa instituída pelo Papa Paulo VI. Gravíssima se tornou a situação. Os jornais de Campos viviam inundados de publicações, as mais agressivas contra a nova Autoridade Diocesana, e até – quem diria! – contra o Papa. Nunca pensei ver tanta desenvoltura no nosso meio religioso. Nem cuidava que um católico pudesse sentir-se tão à vontade, para – diante de Deus e dos homens – investir com 50 WHITE, David A. The Mouth of the Lion. Kansas: Angelus Press, 1993. 51 Arquivo da Diocese de Campos dos Goytacazes. Relatório pessoal reservado da Diocese de Campos. Campos dos Goytacazes, ago. 1981. 52 MÉRIDA, Tradicionalismo Católico, op. cit., p. 76. 246 tal desrespeito contra uma Atividade Religiosa. Repugna-me transladar a esta página. Feiíssimas expressões dirigidas por católicos ao seu Bispo, nunca dantes ouvidas da boca de anticlericais.53 O primeiro ano de D. Carlos Alberto Navarro foi desafiador, já que foi nesse período que todos os padres tradicionalistas manifestaram-se publicamente e colocaram seus fiéis contra o Concílio e contra a nova liturgia. Uma pergunta é necessária: qual era a fundamentação teológica e doutrinal que justificava a resistência dos padres junto aos fiéis católicos na Diocese? Para explicar esta questão, diversos documentos serão utilizados para demonstrar o discurso tradicionalista na Diocese. O agravamento dos conflitos e a recusa conciliar Por ocasião da Páscoa de 1982, os padres tradicionalistas de Campos assinaram e publicaram a “Profissão de fé católica face aos erros atuais”. Esse documento foi um dos grandes norteadores da luta tradicionalista em Campos, pois foi apresentado pelo clero como um manifesto de afirmação da “doutrina tradicional” da Igreja contra os “males conciliares” e da plena rejeição às reformas religiosas. Estas, segundo Castro Mayer e os padres de Campos, substituíram o catolicismo para promover a “nova religião”, eivada de humanismo e esvaziada da antiga moral católica, que estava combalida pelo espírito secularizado das revoluções modernas.54 53 ROSÁRIO, Reflexões e Lembranças de um padre suas lutas e fracassos, op. cit., p. 269. 54 ARQTRAD: Arquivo de pesquisa material acumulado durante a pesquisa sobre os padres e fiéis tradicionalistas da diocese 247 Houve repetidos encontros e discussões entre o bispo diocesano de Campos e os padres tradicionalistas. No entanto, a corrente anticonciliar revelava-se cada vez mais intransigente, porque seus representantes sentiam-se estribados pela bula Quo Primum Tempore, na qual Pio V dava indulto perpétuo para a celebração do missal tridentino: de Campos dos Goytacazes. Documento circular “a missa nova em questão”. Campos dos Goytacazes, 1982. O documento foi assinado pelos seguintes padres: Mons. Licínio Rangel, reitor do seminário; Mons. Benigno de Brito Costa, professor do Seminário e Capelão das Irmãs Redentoristas; Mons. Francisco Apoliano, vigário em Bom Jesus do Itabapoana; Mons. Ovídio Simón Calvo, vigário em São Fidélis; Mons. Henrique Conrado Fisher (1927-1921), Cura da Catedral de Campos; Pe. Emanuel José Possidente, diretor espiritual e professor do Seminário; Pe. Fernando Arêas Rifan, pároco da Igreja do Rosário em Campos e professor do Seminário; Pe. José Collaço, vigário em Porciúncula; Pe. Edmundo G. Delgado, vigário em Cambuci; Pe. José Moacir Pessanha, pároco em Natividade; Pe. Eduardo Athayde, pároco em Santo Antônio de Pádua; Pe. Antônio Alves de Siqueira, pároco em Varre-Sai; Pe. Gervásio Gobato, pároco em Lage do Muriaé; Pe. José Olavo Pires Trindade, pároco em Miracema; Pe. Élcio Murucci, vigário paroquial em Ururaí em Campos; Pe. David Francisquini, pároco em Cardoso Moreira; Pe. Antônio Paula da Silva, pároco em Italva; Pe. José Eduardo Pereira, pároco em São João da Barra; Pe. José Gualandi, pároco da Igreja do Terço em Campos; Pe. Jonas dos Santos Lisboa, vigário paroquial em São Fidélis; Pe. Geraldo Gualandi, pároco da igreja de Nossa Senhora de Fátima em Itaperuna; Pe. José Ronaldo de Menezes, enviado por Dom Carlos para Bom Jesus do Itabapoana; Pe. Alfredo Oelkers, vigário emérito da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário em Campos; Pe. José Onofre Martins de Abreu, reitor da Igreja de Nossa Senhora do Rosário em Campos; e Pe. Alfredo Gualandi, vigário cooperador em Santo Antônio de Pádua. 248 […] em virtude de nossa autoridade apostólica, pelo teor da presente bula, concedemos e damos o indulto seguintes: que, doravante, para cantar ou rezar a missa em qualquer igreja, se possa, sem restrição, seguir este missal como permissão e poder usá-lo livre e licitamente, sem nenhum escrúpulo de consciência e sem que se possa incorrer em nenhuma pena, sentença e censura, e isto, perpetuamente.55 Tendo em vista as determinações acima, o clero tradicionalista via-se no direito de conservar o rito de Pio V, em detrimento do missal de 1969. Castro Mayer e seus padres justificavam a intransigência em conservar o rito de Pio V, reformado pela Igreja em 1962, respaldados em três características da bula Quo Primum Tempore: a finalidade da bula, o método de estabelecimento e a autoria.56 Segundo os padres tradicionalistas de Campos, A finalidade da bula era a criação de um missal idêntico distribuído por toda a urbe católica, que protegia a unidade da fé católica através da unidade e uniformidade da oração pública. O método de estabelecimento foi a restauração do missal romano primitivo, que constituiu a missa da Tradição católica, e o autor do missal foi um Papa que avocou toda a sua autoridade Apostólica em conformidade com toda a Tradição de um concílio ecumênico infalível, alinhado com a Tradição ininterrupta da Igreja.57 55 ARQTRAD: Arquivo de pesquisa material acumulado durante a pesquisa sobre os padres e fiéis tradicionalistas da diocese de Campos dos Goytacazes. Documento circular “a missa nova em questão”. Campos dos Goytacazes, 1982. 56 Id. 57 Id. 249 Além desses elementos, que fundamentaram a preferência de Castro Mayer e dos padres tradicionalistas de Campos em detrimento do missal de 1962, é necessário destacar que o cerne do problema em Campos foi a recusa em relação ao Novus Ordo Missae. Então, a Diocese foi polarizada entre a crença que desejava conservar a “Igreja de Sempre”, contraposta ao modelo de “Igreja infiltrada pela fumaça de satanás”,58 supostamente influenciada pela “infiltração modernista promovida por teólogos e sacerdotes hereges que desejavam minar a Igreja”.59 Alegando a “preservação da fé e dos bons costumes”, o clero tradicionalista rejeitou a missa de Paulo VI, independentemente do idioma, porque ela “constitui, tanto no seu conjunto como em pontos particulares um impressionante afastamento da Teologia católica da santa missa tal como foi definido pelo concílio de Trento”.60 Essa afirmação foi escrita em vários documentos tradicionalistas para recusarem o Novus Ordo, porque eles tinham total desconfiança sobre a validade litúrgica do novo missal. Na esteira das rejeições, o clero tradicionalista atribuiu ao Concílio a “nova moral católica”, que patrocinava subjetivismo; “a profanação das igrejas”, degradada pelas vestes imodestas; a “nova Teologia”, acusada de modernista e revolucionária; “os novos catecismos”, entendidos como subversivos; “a Teologia da libertação”, acusada de 58 SEIBLITZ, Os arquitetos do paraíso, op. cit., p. 251. 59 ARQTRAD: Arquivo de pesquisa material referente aos padres e fiéis tradicionalistas da diocese de Campos dos Goytacazes. Documento “Profissão de fé católica face aos erros atuais”. Campos dos Goytacazes, 11 abr. 1982. 60 Id. 250 inclinar a Igreja ao Socialismo e ao Comunismo pela interpretação marxista dos evangelhos e da doutrina da Igreja; “a secularização do clero”, esvaziado dos elementos sacralizantes da Igreja; “a reforma dos seminários”, vistos como mundanizados por conta da secularização da sociedade contemporânea; e “a diluição” da fé católica no sentimentalismo contemporâneo e do clero.61 Nesse contexto, ao longo dos anos de 1980, Castro Mayer foi afastando-se cada vez mais da Santa Sé e, em nome de suas crenças, prestou assistência a 25 padres diocesanos, que formaram a União Sacerdotal São João Maria Vianney, criando paróquias paralelas na Diocese, organizando, assim, duas dioceses em Campos: a Diocese conciliar e a Diocese tradicionalista. Por terem a mesma interpretação a respeito das reformas implementadas pelo Concílio Vaticano II, a aproximação de Castro Mayer e Marcel Lefebvre foi às últimas consequências: a excomunhão, quando ambos os bispos realizaram a sagração de quatro bispos sem mandato apostólico, sendo eles o francês Bernard Tissier de Mallerais, o suíço Bernard Fellay, o espanhol Alfonso de Galarreta e o inglês Richard Nelson Williamson. Castro Mayer participou dessa sagração em Écône como cossagrante, em 30 de junho de 1988. Essa sagração foi punida, como recomenda o Código de Direito Canônico no parágrafo 1382, e, desse modo, D. Lefebvre, o cossagrante e os bispos consagrados incorreram na grave pena da excomunhão prevista pela disciplina eclesiástica.62 61 Id. 62 MÉRIDA, Tradicionalismo Católico, op. cit., p. 80. 251 Em 18 de dezembro daquele mesmo ano, Castro Mayer realizou a ordenação sacerdotal do diácono Manoel Macêdo de Farias, na cidade de Varre-Sai, noroeste fluminense. Essa ordenação foi sua última participação em evento público, tendo em vista sua idade avançada e seu estado de saúde debilitado. Em 25 de abril de 1991, Castro Mayer faleceu na cidade de Campos dos Goytacazes, na casa onde funcionou o seminário da União Sacerdotal São João Maria Vianney, à rua Riachuelo. O legado deixado por Castro Mayer provocou em Campos uma ruptura clerical e religiosa que durou vinte anos, entre 1981 e 2001. Assim, a Diocese de Campos permaneceu dividida, pois havia o clero diocesano – alinhado ao pensamento conciliar e que seguia as diretrizes do Concílio Vaticano II, após a chegada de D. Carlos Alberto Navarro – e o clero integrante da União Sacerdotal São João Maria Vianney – futuramente denominada Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney – que seguia Castro Mayer, sendo, posteriormente, assistida pelo bispo D. Licínio Rangel (1936-2002).63 Em 2001, o papa João Paulo II criou a Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney, regularizando a situação dos “padres de Campos”, tirando-os da situação de excomunhão. Conclusão A situação da diocese de Campos dos Goytacazes é um fato singular no mundo católico. Atualmente, há convivência harmoniosa do bispo titular da Diocese, D. 63 Ibid., p. 89. 252 Roberto Francisco Ferreria Paz, e do clero diocesano com o Bispo da Administração Apostólica São João Maria Vianney, D. Fernando Arêas Rifan, além do seu clero que atende aos fiéis católicos que preferem o modelo de Igreja pré-Vaticano II. Na perspectiva de permanências e rupturas, a Diocese de Campos é um modelo que precisa ser mais estudado, pois a sua história foi diretamente marcada pela divisão e contornada com a criação de uma Administração Apostólica Pessoal, o que significa que ela está diretamente ligada ao Papa. Essa realidade não tem paralelo no mundo católico. Iniciada por uma crise pós-conciliar, a permanência e conservação do modelo de Igreja pré-Vaticano II elucida que a Igreja Católica Romana é plural em suas diversas formas de religiosidade, o que a caracteriza como Universal. Portanto, cabe à cúpula católica entender o movimento da pluralidade para que possa agregar mais diferenças ao seio de uma religião que tem em Roma a sede, mas que contempla, ao mesmo tempo, os setores mais populares de diversas culturas pelo mundo. O entendimento da universalidade e de sua consequente pluralidade é vital para que haja a permanência da diversidade na Igreja Católica Romana. Caso contrário, ela falará apenas para si mesma, negligenciando o mundo que ainda lhe dá ouvidos. Autoras e Autores Ana Rosa Cloclet da Silva Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com pós-doutorado em História pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Coordena o Grupo de Pesquisa “História das Religiões e Religiosidades”, certificado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq – Brasil). Investiga a articulação entre religião e política no Brasil, com ênfase na vertente ultramontana do catolicismo oitocentista por meio da imprensa católica. Integra a Red Ibero-americana de Historia Conceptual (Iberconceptos) e atua em parceria com pesquisadores da Red de Estudios de Historia de la Laicidad y la Secularización (REDHISEL/ConicetArgentina). Entre suas publicações na área, destacam-se as coletâneas coorganizadas com Roberto Di Stefano: Catolicismos en perspectiva histórica: Brasil-Argentina (Buenos Aires: Teseo, 2021); História das Religiões em perspectiva: desafios conceituais, diálogos interdisciplinares e questões metodológicas (Curitiba: Prismas, 2018). Douglas Ferreira Barros Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), com estágio de doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS, Paris). Professor da Faculdades de Filosofia e Membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião 254 da PUC-Campinas. Tem se dedicado à investigação da teologia política moderna e contemporânea, da soberania, das filosofias política e da religião, com ênfase para o tema da exclusão. Líder do grupo de pesquisa “Religião, ética e política”, certificado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq – Brasil). Em coautoria com Breno Martins, é autor do capítulo “O ‘Verdadeiro cristianismo’ como desafio aos cristianismos: uma análise do fundamentalismo protestante no Brasil”, do livro “Quem são os evangélicos?”, organizado por Carlos Caltas e Jaqueline Ziroldo (Campinas: Saber Criativo, 2023). Gilles Routhier É Doutor em Teologia pelo Instituto Católico de Paris (1992). Doutor em História das Religiões e Antropologia Religiosa pela Université Paris – Sorbonne/ Paris IV (1992). Graduado em Teologia pela Université Laval (Canadá, 1976). É professor titular de eclesiologia e teologia prática na Faculté de Théologie et Sciences Religieues da Université Laval (Quebec, Canadá). Especialista em Concílio Vaticano II, publicou numerosas obras e artigos sobre a história deste Concílio, o seu ensino, a sua hermenêutica e a sua recepção, dentre os quais: Vatican II: Herméneutique et réception. (Quebec: FIDES, 2015). Tal interesse o levou a estudar o desenvolvimento do catolicismo no último século. Ele recebeu dois títulos Doctor Honoris Causa. É membro da Société Royale du Canada. Gizele Zanotto Doutora em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com pós-doutorado 255 em História da América pela Universidad de Buenos Aires (UBA). Professora da Universidade de Passo Fundo (UPF), onde atua nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em História. Dedica-se ao estudo do integrismo católico tefepista, bem como da expansão do pensamento e ação da TFP para outros países. Estuda, ainda, o ultramontanismo de D. João Becker, arcebispo de Porto Alegre entre 1912 e 1946. Entre suas publicações são destaques a edição em e-book de Tradição, Família e Propriedade (TFP) (Ed. Acervus, 2022) e as coletâneas O pensamento de Plinio Correa de Oliveira e a atuação transnacional da TFP (Ed. Acervus, 2020) e Direitas e Religião no Brasil (1920-1940) (Ed. Acervus, 2023). Ítalo Domingos Santirocchi É Doutor em História e Bens Culturais da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma. É Professor Adjunto na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Foi presidente (2021-2023) da Sociedade Brasileira de Estudos do Oitocentos (SEO). Pesquisa História do Catolicismo; Ultramontanismo; História do Brasil Monárquico; Processo de Independência e formação do Estado nacional Brasileiro. Autor do livro Questão de consciência: os ultramontanos no Brasil e o regalismo do Segundo Reinado (1840-1889) (Belo Horizonte: Fino Traço, 2015). Coautor, junto com João Paulo Pimenta, do livro: A Independência do Brasil em perspectiva mundial (São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2022), no qual publicou o capítulo: “‘É constitucional, é católico romano, é justo e virtuoso’: A Igreja Católica e o processo de Independência”. Dentre seus artigos publicados, destaca-se Cartas Pastorais 256 Constitucionais no contexto da Independência do Brasil: dioceses setentrionais (1822), na Revista Brasileira de História (2022). Philippe Roy-Lysencourt Doutor em História e em Ciências das Religiões. É professor de História do Cristianismo Moderno e Contemporâneo e de História das Religiões na Université Laval (Quebec, Canadá), onde também é diretor do Centre d’Études Marie de l’Incarnation. Suas pesquisas concentramse na história do cristianismo moderno e contemporâneo, abordando particularmente o Concílio Vaticano II, o tradicionalismo católico, as relações entre a Igreja Católica e o judaísmo, as relações diplomáticas da Santa Sé e a história religiosa da Nouvelle-France. Em 2015, fundou o Institut d’Étude du Christianisme – Strasbourg, do qual é diretor. Além disso, desde 2021 é presidente da Société canadienne d’histoire de l’Église catholique. Rodrigo Coppe Caldeira Rodrigo Coppe Caldeira é Doutor em Ciências da Religião e professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião (PPGCR) da PUC Minas. Atualmente é o coordenador do PPGCR e Chefe do Departamento de Ciências da Religião. Suas áreas de pesquisa incluem: catolicismo contemporâneo, Concílio Vaticano II, conservadorismo, tradicionalismo, direita católica e secularização. É autor do livro Os Baluartes da Tradição: o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II (Curitiba: CRV, 2011). 257 Tiago Tadeu Contiero É Doutor em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita (UNESP). Tem experiência em História das Religiões com ênfase em história da Igreja Católica, mais especificamente no estudo do Concílio Vaticano II. Atua principalmente nos seguintes temas: Concílio de Trento, Igreja Católica nos séculos XIX e XX, Ultramontanismo, Teologia da Libertação, Doutrina Social da Igreja Católica, Concílio Vaticano II e formação sacerdotal. É Professor Assistente do Claretiano – Centro Universitário de Rio Claro. É Pró-Reitor de Extensão e Ação Comunitária do Claretiano – Centro Universitário de Rio Claro, atuando também na área de Pastoral. Víctor Almeida Gama É Doutor e Mestre pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas); Graduado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro do Laboratório de Estudos em Religião, Modernidade e Tradição (LERMOT), do Laboratório de Estudos da Imanência e Transcendência (LEIT), atuando nos campos da História e Ciências da Religião com os temas direita católica, tradicionalismo católico, Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), com especial ênfase nos discursos produzidos pelos intelectuais integristas do laicato católico brasileiro do século XX. 258 Vinícius Couzzi Mérida É Doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) em cotutela com a Université Laval (Quebec, Canadá); Mestre em Ciências da Religião pela Faculdade Unida de Vitória (20142016); Graduado em História pelo Centro Universitário São José de Itaperuna (2006); Graduado em Pedagogia pelo Centro Universitário ETEP (2023); é Especialista em Política Brasileira pelo Centro Universitário São José de Itaperuna (2010). Estuda o Concílio Vaticano I; Concílio Vaticano II, movimentos tradicionalistas, diocese de Campos e história contemporânea do catolicismo romano. Lista de Quadros Quadro 1 – Principais bispos ultramontanos durante o Segundo Reinado Quadro 2 – País de formação Quadro 3 – Formação em seminários dirigidos por Ordens Religiosas Quadro 4 – Estrutura de Revolução e Contra-Revolução (1998) Índice Remissivo A Aggiornamento 31, 119, 135, 142, 210, 227, 240, 269 Antimodernismo 268 B Brasil 13, 14, 17, 18, 27-29, 32, 34, 35, 73-79, 81-94, 96, 97, 106, 110, 159, 165, 170-174, 180, 182, 184, 189, 190, 191, 193-195, 198, 203, 205-207, 215, 216, 225, 227, 228, 230, 231, 234, 238, 239, 253-258, 261, 267 Brasil oitocentista 17, 75, 84, 85, 96, 268 C Catolicismo 9-15, 17, 21, 30, 32, 33, 34, 43, 46, 47, 50, 65-67, 73-79, 22, 26-29, 37, 38, 41, 54, 56, 59, 85-88, 94, 96, 135, 137, 158, 166, 167, 169, 170-173, 175, 182, 184, 185, 187, 188, 189, 192, 194, 196, 197, 200, 201, 204, 206, 208, 214, 217, 225, 227, 228, 229, 232, 236, 239, 243, 246, 253-256, 258, 267 Catolicismo Liberal 21, 75, 78, 85-88, 265 Catolicismo Intransigente 30, 32, 33, 37, 38, 43, 47, 59, 73-75, 77, 78, 135, 170, 188, 267 Catolicismo Romanizado 74, 76, 268 Cœtus Internationalis Patrum 101, 102, 269 Concílio Vaticano I 12, 17, 22, 30-32, 34, 46, 57, 61, 63, 65, 70, 73, 99, 101, 102, 107, 109, 114, 116, 122, 129, 131, 133, 134-136, 139, 168, 188, 189, 193, 194, 196, 198, 199, 200, 203, 204, 208, 213, 214, 216, 217, 220, 221, 223, 225-234, 241, 250, 251, 254, 256- 258, 262, 267, 261 262 Concílio Vaticano II 12, 17, 30-32, 34, 46, 57, 61, 63, 65, 70, 99, 101, 102, 107, 109, 114, 116, 122, 129, 131, 133-136, 139, 188, 193, 194, 196, 198- 200, 203, 204, 208, 213, 214, 216, 220, 221, 223, 225-234, 241, 250, 251, 254, 256-258, 262 Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 205, 216, 234, 269 Conservadorismo 17, 32, 34, 168, 228, 230, 256, 261 Constitucionalismo 74, 81, 82, 84, 268 Contrarrevolução católica 262 Cristianismo 13, 15, 38, 39, 126, 238, 241, 254, 256, 262 D Diocese de Campos 173, 228, 229, 232-239, 241, 245, 246, 248, 249, 251, 252, 258, 268 Dom Antônio de Castro Mayer 205, 235, 239, 240, 242, 262 Dom Geraldo de Proença Sigaud 269 E Episcopado 43, 48, 51-54, 75, 82-84, 87, 88, 199, 202-205, 216, 218, 225, 234, 238, 242, 268 Erros da modernidade 17, 24, 28, 168, 262 F França 20, 34, 35, 56, 57, 75, 78, 80, 81, 85, 88-91, 93, 95, 96, 108, 111, 116, 174, 197, 267 Fraternidade São Pio X 101, 122, 123, 125, 129, 262 G Galicanismo 22, 86, 262 Galicano 22, 87, 262 263 Gaudium et Spes 55, 135, 136, 142-147, 151, 155, 156, 158-162, 242, 267 Intransigência católica 17, 24, 29, 31, 34, 38, 97, 263 I João XXIII 32, 40-46, 59, 135, 138, 139, 140-144, 147, 161, 163, 196, 200, 201, 210, 227-229, 233, 240, 263 Igreja Católica 13, 17, 20, 23, 25, 32, 34, 42, 50, 53, 74, 76, 83, 85, 114, 115, 120, 135, 137, 161, 169, 174, 185, 187, 194, 195, 197, 198, 203, 219, 221, 222, 226, 227, 231, 232, 235, 241, 252, 255, 256, 257, 261 J L Laicidade 33, 126, 263 Individualismo 83, 263 Leão XIII 59, 65, 137, 169, 269 Integrismo 34, 75, 165, 168, 169, 170, 171, 179, 182, 184, 185, 188, 190, 255, 267, 263 Lefebvrista 215, 263 Integrismo católico 170, 171, 182, 184, 188, 255 Intransigência 9-11, 13, 15, 17, 18, 24, 25, 29, 30, 31, 33, 34, 38, 39, 67, 75, 80, 81, 83, 84, 88, 96, 97, 188, 248, 263, 267 Intransigentismo 9-14, 24, 25, 30, 31, 33, 34, 38, 81, 96, 167, 188, 191, 263 Liberalismo 11, 18, 22-24, 26, 67, 74, 80, 83, 87, 88, 166, 181, 182, 201, 263 Liberdade religiosa 28, 45, 47-54, 57, 58, 64, 106, 113, 117-119, 221, 232, 268 Liturgia 47, 55, 108-110, 113, 126, 194, 211, 213, 222, 237, 239, 243, 246, 268 264 M P Missa tridentina 33, 264 Padroado 27, 29, 86, 264 Modernidade 9, 10, 17, 19, 20, 21, 23-29, 43, 80, 85, 86, 88, 128, 139, 165, 168, 185, 198, 199, 257, 267 Papa Francisco 33, 121, 267 Modernismo 66, 107, 201, 214, 240, 241, 267 Monsenhor Lefebvre 209, 267 Mundo contemporâneo 13, 80, 172, 191, 227, 230, 241, 264 Mundo moderno 32, 34, 38, 40, 43, 45, 46, 56, 107, 115, 135, 137, 142, 147, 151, 159, 185, 196, 202, 203, 207, 240, 242, 267 N Novus Ordo Missae 60, 111, 197, 206, 210, 215, 216, 223, 226, 232, 233, 236, 245, 249, 264 Paulo VI 33, 53, 60-62, 108-110, 115, 116, 118, 145, 188, 204, 206- 211, 213, 215, 216, 219, 221-223, 229, 230, 232, 233, 240, 241, 245, 249, 264 Pio IX 22-24, 31, 54, 60, 166, 168, 208, 264 Plinio Corrêa de Oliveira 171, 172, 175, 182, 193, 194, 198, 200, 204, 205, 207, 209, 211, 213, 215, 216, 223, 224, 268 Q Quanta Cura 24, 60, 81, 168, 264 R Racionalismo 22, 168, 264 265 Radicalismo 38, 67, 112, 134, 268 Recepção 34, 38, 59, 64, 99, 100-102, 107-109, 119, 121, 122, 124, 127, 131-134, 193, 198, 214, 222, 223, 225, 226, 232, 236, 239, 254, 265 Reforma 33, 38, 60, 61, 64, 67, 77, 84, 85, 92, 94, 95, 109-112, 114, 116, 118, 122, 127, 166, 181, 182, 191, 194, 195, 215, 216, 218, 219, 221, 222, 228, 231-235, 237, 240, 241, 246, 248, 250, 264 Regalismo 27, 28, 77, 86, 92- 94, 255, 265 Regalista 24, 27, 76, 87, 265 Religião 13, 14, 17, 19, 20, 21, 25, 26-28, 31, 32, 34, 35, 42, 49, 51, 77, 82, 84, 86, 105, 115, 118, 126, 139, 168, 170, 180, 182, 198, 205, 214, 216, 229, 235, 246, 252-258, 268 Religiões 13, 17, 20, 38, 55, 64, 117, 118, 221, 253, 254, 256, 257, 265 Rerum Novarum 30, 169, 265 Revolução Francesa 10, 13, 18, 19, 20, 21, 23, 24, 26, 29, 30, 31, 56, 113, 170, 181, 182, 200, 265 Romanização 77, 79, 267 Roma 9, 10, 20, 22, 24, 25, 29, 30, 33, 53, 61, 67, 73, 74, 76, 77, 79, 82, 83, 89, 90, 93, 95, 101, 104, 105, 109, 110, 114, 118, 119, 120, 121-125, 127, 132134, 138, 142, 166-169, 187, 194, 195, 200, 204, 210, 217, 219, 222, 227-229, 232, 236, 241-244,248,252,255,258,265 S Santa Sé 23, 28, 33, 42, 78, 81, 88, 95, 101, 104, 114, 118, 266 121, 123, 133, 167, 228, 242-244, 250, 256, 265 Secularização 17-19, 21, 23-25, 27-29, 31, 33, 85, 250, 256, 266 Sedevacantista 33, 111, 116, 132, 209, 266 Sedevacantismo 115, 199, 208, 266 Syllabus 24, 76, 81, 87, 88, 242, 266 T Teologia da Libertação 34, 77, 249, 257, 268 Tradição 12, 17, 19, 23, 24, 26, 32, 33, 41, 47, 48, 57, 59-65, 68, 69, 76, 83, 101, 103, 105-107, 121, 126, 128, 130-132, 140, 160, 165, 168, 171, 173, 182, 189, 190, 193, 205, 207, 211, 214, 219, 230-232, 243, 248, 255-257, 266 Tradicionalismo 32, 34, 81, 100, 121, 132, 134, 229, 230, 232, 234, 236, 241, 242, 244, 245, 250, 256, 257, 266 Tradição, Família e Propriedade (TFP) 32, 165, 173, 182, 193, 205, 207, 255, 257, 266 U Ultramontano 27, 73-78, 81, 83, 84, 87, 89, 92, 93-96, 166, 216, 217, 255, 259, 267 Ultramontanismo 24, 28, 34, 73, 74, 75, 77-79, 80, 81, 88, 94, 95, 167, 255, 257, 267 V Vaticano II 12, 17, 30, 31, 32, 34, 42, 46, 57, 60, 61, 63-65, 70, 99, 100-109, 113, 114, 116, 119, 122, 124-127, 128-136, 138-140, 143,150,152,154,156,158, 159, 162, 163, 173, 188, 193, 194, 196-204, 206, 208, 210, 213, 214, 216, 217, 219, 220-223, 225-234, 241-243, 250-252, 254, 256-258, 266 Primeira edição, dezembro de 2024. Impresso no Brasil. Você tem a liberdade de compartilhar, copiar, distribuir e transmitir esta obra, desde que cite o autor e não faça uso comercial. www.editorasabercriativo.com.br [email protected] fb.com/sabercriativo instagram.com/@sabercriativo tipografia impressão miolo capa League Spartan e Adobe Caslon DPRINT Avena 80g Cartão Supremo 250g/m2 269 270 271