Antigas inquietações sob novos temas
Mônica Junqueira de Camargo
pós-
006
O denso conteúdo desta edição ilustra o avanço
que as pesquisas acadêmicas têm proporcionado ao
campo da arquitetura e do urbanismo, começando com
a oportuna apresentação da Profa. Dra. Maria Lucia
Refinetti Martins, na qual analisa as especificidades da
pesquisa nessa área de conhecimento, a partir de sua
experiência como presidente da Comissão de PósGraduação da FAUUSP e como membro do Conselho
Central de Pós-Graduação da USP. Nesse texto, a
professora faz um balanço das pesquisas produzidas
na área a partir dos trabalhos editados, para o qual
coordenou um raro esforço de classificação,
resultando todo um inédito panorama da configuração
do conjunto de trabalhos do último triênio. A partir dos
dados obtidos é possível avaliar o estado da pesquisa
em arquitetura, refletir sobre sua trajetória e debater
sobre os rumos a seguir.
Os dez artigos aprovados para esta edição
referem-se a pesquisas inéditas, que avançam sobre
textos ou projetos já explorados anteriormente;
entretanto, são novas leituras que estabelecem novas
relações na área da arquitetura, ampliando,
consideravelmente, o conhecimento do campo
disciplinar e reforçando a inesgotabilidade dos temas.
Dois temas foram privilegiados pelas pesquisas
apresentadas: a complexidade das cidades
contemporâneas, do ponto de vista da infra-estrutura,
da paisagem e da habitação e as questões conceituais
no âmbito da estética e da filosofia da arte e da
arquitetura, embora as investigações da área da técnica
sempre confirmem presença, que nesta edição são
discutidas em dois artigos. Os quatro primeiros artigos
contribuem para o questionamento da produção do
ambiente urbano contemporâneo, trazendo reflexões
que podem contribuir para o avanço das discussões
sobre as cidades e a melhoria do espaço urbano.
A análise de Marcelo Sacenco Asquino sobre os
desafios contemporâneos da metrópole paulistana,
intitulada “Governança metropolitana e infra-estrutura
em São Paulo: O desafio de conciliar interesses
regionais e impacto local”, é muito oportuna diante da
complexidade de intervir-se nessa cidade, tendo em
vista a amplitude de sua escala regional. A partir de
uma retrospectiva histórica que localiza alguns pontos
decisivos de sua evolução urbana, e com base na
problemática de alguns projetos atuais, como a
ampliação da calha do rio Tietê e o Rodoanel Trecho
Sul, o autor traz à discussão os embates do sistema de
planejamento metropolitano de 1970, com as novas
condições impostas pelos processos de licenciamento
ambiental, concluindo com a necessidade de uma
revisão e atualização do modelo metropolitano em vigor,
segundo novas premissas.
Sob o título de “O new urbanism e sua influência no
Brasil: O caso da ‘Cidade Universitária Pedra Branca’ em
Palhoça, SC”, Fernando Pinto Ribeiro analisa esse
modelo americano surgido na década de 1980 em
reação ao fenômeno da suburbanização característico
do pós-segunda guerra, discutindo sua apropriação pelo
empreendimento, Pedra Branca, no município de
Palhoça, SC. Com base em princípios urbanísticos que
privilegiam as cidades menores e densas, com
zoneamento multifuncional, e onde a mobilidade minimize
o uso do automóvel, está se estruturando um loteamento
que integra um importante processo de reconfiguração
urbana da região metropolitana de Florianópolis.
Entretanto, a análise de Ribeiro revela que a simples
implantação de tais princípios não garantira às
experiências americanas a pretendida diversidade social
e arquitetônica, e que essas se aproximam mais da
realidade de um condomínio fechado, malgrado o
disfarce de abertura, uma vez que esses loteamentos
não são murados, do que uma nova sociabilidade
urbana. Também sua adaptação à realidade brasileira se
configura como um espaço da segregação.
Leandro Medrano, no artigo “Habitação coletiva e
cidade. Invenção sem ruptura”, questiona a produção
arquitetônica contemporânea em sua incapacidade de
criar vida urbana, contestando a inadequação de seus
pressupostos teóricos. A partir da análise de duas
experiências habitacionais muito distintas entre si, mas
exemplares, segundo a avaliação do autor, são
apontadas as estratégias dos respectivos arquitetos, de
qualificação e desenvolvimento do ambiente urbano. A
primeira em Barcelona, em meados dos anos 50,
Vivendas del Congresso Eucarístico, dos arquitetos Carles
Marqués i Maristany, Antoni Pineda i Gualba e Josep
Soteras i Mauri, cujo desenho urbano muito dinâmico
teve como base estrutural distintas tipologias. A segunda
é um projeto, do início dos anos 80, de Alvaro Siza para
Doedijnstraat, Holanda, que tem como premissa a visão
crítica e dialética da cultura e história locais.
pós v.17 n.28 • são paulo • dez embro 2010
Internet e das tecnologias digitais sobre a produção
cultural contemporânea.
A partir da observação do conjunto residencial
projetado por Zaha Hadid em Viena, Igor Guatelli
desenvolve uma investigação sobre as relações do objeto
construído e as condições em que se insere.
Especulando sobre a possibilidade de a arquitetura ser
pensada como um rastro, daí o título do artigo,
“Indeléveis rastros”, Guatelli busca entender o objeto
construído, para além dele próprio, ao mesmo tempo
valorizando sua presença e questionando sua autosuficiência. O conjunto de três blocos de habitações
estudantis localiza-se sobre uma estação de metrô e um
viaduto, projetado pelo arquiteto vienense Otto Wagner,
de um ramal férreo desativado, hoje transformado em
uma ciclovia. Mais preocupado com as articulações que
a arquitetura estabelece com o público e a cidade, o
autor destaca a capacidade de a arquiteta saber
trabalhar a complexa articulação entre o novo e as
preexistências, de modo que sua arquitetura, não apenas
respeita, mas se fortalece com a condição urbana que
lhe é dada.
Fellipe de Andrade Abreu e Lima em “Ética e
estética nas arte, arquitetura e urbanismo
contemporâneos – Uma crítica realista” lança-se ao
desafio de examinar o conflito atual no campo das artes,
principalmente da arquitetura, no sentido de identificar a
dimensão social dessa produção. Para tanto, a autor
traça um longo percurso do renascimento à
modernidade, valendo-se de autores e conceitos muito
distintos que exigirá do leitor certo empenho para
acompanhar seu raciocínio.
As investigações recentes no âmbito da tecnologia
são apresentadas nos dois artigos seguintes. Sob o título
de “O seringueiro amazônico e a sustentabilidade de sua
habitação,” Valdeci Candido de Lima analisa a cultura da
exploração da borracha no estado do Acre desde a
chegada dos primeiros seringueiros, na época áurea
dessa atividade econômica até meados do século 20.
Analisando o modo de vida do seringueiro, a autora
identifica, na arquitetura vernácula que se produz
naquela região, uma cultura construtiva que se encaixa
nos atuais conceitos de sustentabilidade. Ainda que
construídas de modo empírico, as moradias dos
seringueiros apresentam bons índices de adequação ao
ambiente em que se inserem, fazem o uso parcimonioso
apre se ntação • p. 0 06-0 08
pós-
007
A persistente investigação de Vladimir Bartalini sobre
a conformação da paisagem paulistana – brinda-nos no
artigo “Palcos e bastidores” (ainda sobre córregos
ocultos), com uma análise muito precisa das rotas dos
córregos: do Sapateiro, que conforma o lago do Parque
do Ibirapuera e os da Aclimação, Pedra Azul, que passa
a chamar-se Cambuci, a abastecerem o lago do parque
de mesmo nome. Bartalini apresenta uma incrível
proposta de unir esses dois importantes espaços de
lazer, distantes entre si quatro quilômetros, por meio dos
percursos desses córregos, abrindo alternativas para
pedestres e ciclistas, mas também oportunidades para
vivificar a memória desses sítios.
Os quatro artigos seguintes tomam a senda do
campo teórico e conceitual, recuperando idéias
exploradas por consagrados teóricos para a
compreensão da problemática contemporânea.
Rafael Urano Frajndlich, em seu artigo “Pórticos,
letreiros, lareiras. Le Corbusier e Robert Venturi, sobre
simbolismo e velocidade no modernismo”, investiga a
leitura de Robert Venturi sobre as obras de Le Corbusier.
Atento não só aos textos, mas ao material gráfico que os
acompanham, Rafael identifica as considerações do
mestre franco-suíço entre arquitetura e comunicação,
como a retórica, a alusão, a memória dos centros
históricos e dos interiores decorados, que foram
amplamente explorados pelos discursos pós-modernistas,
especialmente o de Robert Venturi, seu astuto
interlocutor, e apontam parte do dilema da tradição no
cerne da modernidade.
Em “O conceito de aura de Walter Benjamin e a
indústria cultural” Bráulio Santos Rabelo de Araújo
apresenta o confronto de idéias de dois textos
consagrados: A obra de arte na era da reprodutibilidade
técnica, de 1935, de Walter Benjamin, e A indústria
cultural: O esclarecimento como mistificação das massas,
de Theodor Adorno e Max Horkheimer, de 1947,
comprovando a importância e atualidade das idéias
debatidas. A partir da observação das manifestações
artísticas necessariamente reprodutíveis como cinema,
música e livro, o autor conclui que os elementos centrais
da aura (autenticidade e unicidade) nas técnicas
analisadas por Benjamin, não foram superados, mas, ao
contrário, adaptaram-se às mudanças técnicas
decorrentes da industrialização e levanta questões
interessantes para a reflexão a respeito dos impactos da
pós-
008
dos materiais nativos e têm um bom padrão de
conforto, tanto térmico como de iluminação, sugerindo
que a sustentabilidade também pode ser uma questão
de intuição.
Em “A influência das reflexões internas como
contribuição da iluminação natural no ambiente
construído”, Raphaela Walger da Fonseca apresenta o
resultado de suas investigações sobre a influência das
reflexões internas na iluminação natural do ambiente
construído. Discutindo elementos que interferem nos
valores e na distribuição da luz, como a geometria do
espaço interno, as propriedades das superfícies, bem
como a área, a posição e a distribuição das aberturas,
influenciam nos valores e na distribuição atribuídos à
iluminação refletida interna. A partir de métodos
gráficos e analíticos criados durante a pesquisa, foi
possível a comparação entre geometrias e entre
conceitos de iluminação natural propostos, e a
verificação da qualidade e da eficiência do projeto de
iluminação em relação ao aproveitamento das reflexões
da luz. Trata-se da criação de recursos que poderão
orientar o arquiteto em seu processo de projeto.
As seções Eventos e Resenhas comprovam a
vitalidade dos convênios e parcerias do curso de
Arquitetura da FAUUSP, que nesta edição registra, com
satisfação, dois prêmios de destaque para a história da
FAU. O primeiro é o título de professor emérito da
FAUUSP ao arquiteto Paulo Mendes da Rocha, pelo
reconhecimento de sua contribuição às atividades
acadêmicas, cuja saudação do Prof. Dr. Hugo Segawa
destaca a qualidade de sua trajetória e o
reconhecimento internacional que tem recebido. O
homenageado, por sua vez, retoma sua formação
profissional, apontando a importância de alguns
professores e trazendo a público sua reflexão, o papel
da arquitetura na sociedade contemporânea.
O segundo é um prêmio nacional – Marta Rossetti
Batista, organizado pelo IEB-USP para a melhor
pesquisa inédita sobre arte e arquitetura escrita no
Brasil, que, em 2009, foi atribuído ao doutorado de
Rodrigo Almeida Bastos, desenvolvido na FAUUSP sob
a orientação do Prof. Dr. Mario Henrique D’Agostino –
A maravilhosa fábrica de virtudes: O decoro na
arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (17111822) é uma leitura inédita do patrimônio arquitetônico
brasileiro do século 18, por meio dos preceitos e das
doutrinas artísticas que fundamentavam a prática
arquitetônica daquela época.
Os relatos dos laboratórios de pesquisa
apresentam algumas atividades com caráter de
extensão, importante aspecto do ensino universitário
que nem sempre tem recebido o devido destaque. São
propostas que buscam integrar as investigações
acadêmicas a um público mais amplo, tanto
especializado como da comunidade, também
predispostos a discutir sobre cidade. Em “aprender sobre
a cidade ou aprender com a cidade? Projeto arte no
Heliópolis (2009)”, Euler Sandeville Jr. traz a experiência
de sua disciplina optativa da graduação – “Arte e Projeto
da Paisagem”, estabelecendo um processo coletivo de
concepção e organização, que envolveu alunos,
moradores e artistas independentes. A partir da
compreensão de paisagem como uma experiência
partilhada e socialmente construída, o projeto se funda
na proposição da espiral da sensibilidade e do
conhecimento e na proposição de um programa de
educação-pesquisa-aprendizagem em ação.
Considerando a relevância dos laboratórios na formação
discente e na relação com a comunidade, a Comissão
Editorial decidiu abrir espaço para as outras instituições
relatarem suas experiências, que pretendemos acolher a
partir da próxima edição.
O relato de Manoel Rodrigues Alves sobre o
seminário “Cidade(s): Novas Espacialidades e
Territorialidades”, apresenta, além do quadro recente
das pesquisas sobre o urbanismo, as formas emergentes
de urbanidade em suas dimensões socioculturais,
correlacionando suas especificidades territoriais,
ambientais, sociais e públicas, seus processos de
transformação e suas permanências, seus elementos
estruturantes e suas linhas de força, enquanto as
discussões do “III Colóquio Internacional Sobre Comércio
e Cidade: Uma Relação de Origem” são relatadas pela
pela Profa. Dra. Heliana Comin Vargas.
As seis resenhas são reveladoras do grau de
inquietação e de amadurecimento das reflexões no
campo da arquitetura, começando pela inédita tradução
para o português de um tratado fundamental como “Os
quatro livros de arquitetura”, de Andrea Palladio, de
1570, que Andrea Buchidid Loewen analisa em detalhes.
Na seqüência, “Além das formas. Introdução ao
pensamento contemporâneo no design, nas artes e na
arquitetura”, por Milena Szafir; “Lina por escrito: Textos
escolhidos de Lina Bo Bardi 1943-1991”; “Ideologia da
casa própria... sem casa própria. O programa de
arrendamento residencial na cidade de João PessoaPB”, por Pedro Fiori Arantes; “The political economy of
public space”, por Sergio Abrahão; e “Canteiro
experimental”, que tive o prazer de comentar.
Boa leitura.
Mônica Junqueira de Camargo
Editora-chefe
pós v.17 n.28 • são paulo • dez embro 2010