R omero Alves Freitas
94
Estranhamento ou empatia?
Notas sobre o problema do
conhecimento histórico em
Walter Benjamin
R omero Alves Freitas *
Fustel de Coulanges recomenda ao historiador, caso queira
reviver [nacherleben] uma época, que tire da cabeça tudo o
que sabe sobre o curso posterior da história. Não há como
caracterizar melhor o procedimento com o qual rompeu
o materialismo histórico. É um procedimento de empatia.
Sua origem é a inércia do coração, a acedia, que desanima
de apropriar-se da genuína imagem do passado, que brilha [aufblitzt] fugazmente. [...] A natureza dessa tristeza se
tornará mais clara se colocarmos a questão sobre precisamente com quem o historiador do historicismo mantém a
relação de empatia. A resposta será, inequivocamente: com
o vencedor. Os dominadores de cada época são, porém,
os herdeiros de todos aqueles que já venceram. A empatia
com o vencedor beneficia sempre, portanto, os dominadores de cada época. Para o materialista histórico, isso diz o
suficiente. Todos os que até agora venceram acompanham
o cortejo triunfal que os dominadores atuais fazem passar sobre os que hoje estão prostrados. Os despojos, como
mente, são levados juntos com o corteacontece freqüentemente,
jo triunfal. Nós os caracterizamos como os bens culturais.
No materialista histórico, eles encontrarão um observador
distanciado.1
Professor-adjunto do
Departamento de Filosofia da
UFOP
*
Benjamin, Walter. Gesammelte
Schriften, I-2. Frankfurt (M),
Suhrkamp, 1991, p. 696.
1
Esse texto bem conhecido de Walter Benjamin encontra-se em Sobre o
conceito da história (1940), na tese de número VII. Paralelamente a uma
crítica da identificação do sujeito do conhecimento histórico com os
poderosos do passado, nele encontra-se uma defesa implícita do estranhamento como princípio do conhecimento produzido pela história.
Isso se tornará claro se inserirmos a tese VII no contexto das outras
teses e de outras reflexões da mesma época. Perceberemos, então, que
na filosofia da história de Benjamin a rejeição do método da empatia
tem raízes mais profundas que a simples idéia da “identificação com os
poderosos”. Trata-se, na verdade, de uma parte da problemática “continuidade versus descontinuidade”, “totalidade versus fragmento”, que
é central na obra de Benjamin, se é que não constitui o seu próprio
centro organizador.
Antes de tratarmos do conceito de empatia, que será criticado
nos últimos textos de Benjamin, faremos uma incursão pela sua filoso-
95
Artefilosofia, O uro Preto, n.1, p.94-102, jul. 2006
fia da linguagem, que surge principalmente nos escritos de juventude.
É nessa fase que encontraremos o essencial a respeito do problema da
identificação entre sujeitos através da linguagem, seja na história, na
filosofia ou na literatura. Nos ensaios Sobre a linguagem em geral e sobre
a linguagem do homem (1916) e A tarefa do tradutor (1921), Benjamin
pensa as diversas línguas existentes como versões “decaídas” de uma
língua “originária”. Sem discutirmos aqui o que significa o conceito
de “originário” nesses dois textos, observe-se apenas que não devemos
confundi-lo com a idéia usual que se faz das noções de origem ou
fundamento
amento2. A “origem” (Ursprung), tal como Benjamin a define no
prefácio de Origem do drama barroco alemão (1927), não é uma totalidade sem lacunas, uma perfeição inicial, que se corromperia com o
tempo. Ela é pensada antes como condição histórica de possibilidade
da escrita da história. Ela não se encontra simplesmente nos fatos,
como numa metodologia empirista, mas também não está além da
experiência possível, como na filosofia da história de Kant. Ao reunir
em si tanto a “unicidade” quanto a “repetição”, tanto a “restauração”
quanto o “inacabamento”, tanto a “totalidade” quanto os “extremos”
extremos”3,
a noção de origem torna-se uma espécie de totalidade incompleta,
fragmentária, e é nesse sentido que ela pode ser simultaneamente histórica e fundamento da história.
Na teoria da linguagem desenvolvida nos primeiros trabalhos de
Benjamin, filosofia e literatura são formas de expressão que, pela sua
própria natureza “escritural”, material, pertencem ao mundo “decaído” das representações históricas. No prefácio do livro sobre o drama
barroco, essa “queda” da filosofia no espaço fragmentário da história
se dá na forma de um afastamento do platonismo típico da fundamentação “à maneira dos geômetras”, que ignora tanto a história como o
lugar do conflito político quanto o caráter necessariamente histórico
dos signos da escrita. Nesse sentido, a inserção da filosofia na história
é solidária com uma imersão do pensamento na linguagem, de modo
que a totalidade de pensamento defendida por Hegel será substituída por uma constelação histórico-lingüística: “É próprio da escrita
[Schrifttum] filosófica colocar-se sempre de novo diante da questão da
apresentação. [...] A doutrina filosófica baseia-se na codificação [Kodifikation] histórica. Assim, ela não pode também ser invocada more
geometrico. Tão claramente quanto prova que a eliminação total do
problema da apresentação [...] é o sinal do conhecimento autêntico,
a matemática mostra sua renúncia ao âmbito da verdade que é visado
pelas línguas”.
guas”.4
No ensaio As “Afinidades eletivas” de Goethe (1922), Benjamin
elaborou um conceito que permite esclarecer o aspecto intrinsecamente fragmentário do conhecimento histórico-lingüístico: o “sem
expressão” (Ausdruckslose). O Ausdruckslose é o que impede a coincidência entre a materialidade e o sentido, a essência e a aparência na
obra de arte. Ele é a antítese da “bela unidade” de que falavam Schiller
e Hegel, como harmonia do individual e do coletivo, do ético e do
estético, do sensível e do supra-sensível. Seu exemplo mais simples é o
cadáver, tal como aparece no drama barroco alemão. O cadáver, com
efeito, é o produto mais direto da alegoria barroca, pois ele exibe tudo
aquilo que há de mais sofrido e malogrado na história. Como na esté-
Cf. Agamben, Giorgio.
Langue et histoire. Catégories
historiques et catégories
linguistiques dans la pensée de
Walter Benjamin. In:Wismann,
Heinz (Org). Walter Benjamin
et Paris. Paris, Les Éditions du
Cerf, 1986. Agamben, Giogio.
Enfance et histoire - destruction de
l’expérience et origine de l’histoire.
Paris, Payot, 1989. Gagnebin,
Jeanne-Marie. História e narrativa
em Walter Benjamin. São Paulo,
Perspectiva, 1994. Idem,
Histoire, memóire et oubli
chez Walter Benjamin, Revue de
Métaphysique et de Morale, Ano
99, n. 3 (1994).
2
3
Benjamin. Gesammelte Schriften,
I-1, p. 226-227.
4
Benjamin. Gesammelte Schriften,
I-1, p. 207.
R omero Alves Freitas
96
Benjamin. Gesammelte Schriften,
I-1, p. 343.
5
Note-se, de passagem, como
o exemplo é diametralmente
oposto ao de Aristóteles no
livro IV da Poética, quando se
trata de argumentar a favor do
poder de “alquimia” da mímesis,
essa forma de atividade capaz
de transformar o repugnante
em fonte de prazer: “nós
contemplamos com prazer as
imagens mais exatas daquelas
mesmas coisas que olhamos
com repugnância, por exemplo,
[as representações de] animais
ferozes e [de] cadáveres”.
Aristóteles, Aristóteles II. São
Paulo, Abril Cultural, 1984, p.
243. (Os Pensadores).
6
7
Benjamin. Gesammelte Schriften,
I-1, p. 181.
Cf. Menninghaus, Winfried.
Lo inexpresivo: las variaciones
de la ausencia de imagem
em Walter Benjamin. In:
Massuh, Gabriela/ Fehrmann,
Silvia (Org.). SobreWalter
Benjamin - vanguardias, história,
estética y literatura. Una visión
latinoamericana. Buenos Aires,
Alianza Editorial, 1993.
8
Cf. Kant, Immanuel. Crítica da
faculdade do juízo. R io de Janeiro,
Forense Universitária, 1993, p.
90 (B75) e 116 (B118).
9
Kant. Crítica da faculdade do
juízo, p. 104 (B98).
10
Nietzsche, Friedrich. Sämtliche
Werke (KSA), I. München,
DTV/ de Gruyter, 1999, p. 245.
Benjamin. Gesammelte Schriften,
I-2, p. 700.
11
tica de Burke, a morte designa aqui a figura do sublime. A morte “cava
do modo mais profundo a linha dentada entre a physis e a signifi
gnificação”5, pois o cadáver
ver inviabiliza6 esta possibilidade de representação do
espiritual no sensível que a estética clássica chamava de “beleza”.
A citação é celebre: “O sem-expressão é a violência crítica que,
se não consegue separar a aparência da essência na arte, proíbe os
dois de se misturarem. [...] Ele faz em pedaços aquilo que em toda
bela aparência perdura ainda como herança do caos: a totalidade falsa,
enganadora - a absoluta. Somente isso consuma a obra: o que a transforma na obra em pedaços, no fragmento do mundo verdadeiro, no
torso de um símbolo”7. Se o Ausdruckslose é semelhante ao sublime
kantiano, como já se observou8, é menos porque elevaria o sujeito
acima da natureza sensível - como acontece em Kant - e mais porque demonstra a incapacidade das formas artísticas na representação
da totalidade. Isso se dá porque o fracasso da imaginação estética na
representação da totalidade (a grandeza infinita ou a força ilimitada)
é apenas um dos momentos na constituição do sublime na Crítica
da faculdade do juízo. O outro momento é o de uma vitória da razão
justamente sobre os escombros da imaginação: uma efusão da força
vital reprimida no momento anterior, na medida em que um conceito
indeterminado da razão9 aponta ao sujeito o sentimento da sua “destinação
ção supra-sensível”10. Ou seja: para Kant, a totalidade não é acessível
à imaginação, mas, através de uma interação entre imaginação e razão,
ela se apresenta negativamente na experiência estética, torna-se representação sem imagem e sem conceito, converte-se em sentimento.
Deve-se ler com cuidado, portanto, algumas aproximações apressadas
que se fazem entre Kant e Benjamin.
O tema da crítica a uma totalidade ilusória, responsável por uma
remitologização artificial do mundo, ressurge nas teses escritas por
Benjamin em 1940. De modo mais ou menos explícito, esse tema estará presente ao longo de todo o texto. Para associá-lo ao problema da
empatia, deveremos investigá-lo na tese XII, na qual Benjamin faz uma
importante aproximação de sua filosofia da história com o anti-historicismo de Nietzsche. A referência a Nietzsche está na epígrafe dessa
tese, extraída da segunda parte das Considerações extemporâneas, intitulada “Da utilidade e do inconveniente da história para a vida”: “Precisamos da história [Historie], mas não como dela precisa o ocioso malacostumado no jardim
im do saber”11. Diversamente das outras epígrafes,
que limitam-se a ilustrar o texto (teses XIII e IV) ou a apresentar um
comentário antecipado do que se vai ler (teses IX e XIV), a citação de
Nietzsche dialoga diretamente com a tese XII. De início, observe-se
que a associação entre Marx e Nietzsche não é exatamente um lugar
comum em 1940. Benjamin demonstra uma leitura independente de
Nietzsche, alheia às apropriações da época, tanto pelo nacional-socialismo quanto pela filosofia existencial. O que lhe interessa é invocar a
crítica de Nietzsche à sobrevalorização da história em detrimento da
vida, introduzindo-a no seu próprio projeto de crítica do historicismo,
nas duas vertentes em que ele aparece nas teses: o historicismo burguês
de Dilthey e Fustel de Coulanges, marcado pela acedia e o temperamento contemplativo; e o historicismo “progressista” da Segunda Internacional, caracterizado por um necessitarismo ingênuo.
97
Artefilosofia, O uro Preto, n.1, p.94-102, jul. 2006
Inicialmente, trata-se de defender a utilidade (N utzen) da história para a vida, como em Nietzsche, mas orientando-a para a vida política. Essa dimensão política não está ausente na Extemporânea, uma vez
que o excesso de história é considerado danoso tanto para o indivíduo
quanto para a coletividade: “há um grau de insônia, de ruminação, de
sentido histórico, que prejudica o ser vivo, e, por fim, o leva à ruína,
seja ele uma pessoa, um povo ou umaa cultura”12. Em Benjamin, porém, a ênfase num necessário grau de esquecimento é essencialmente
política, pois esse esquecimento ativo é inseparável da ação revolucionária, numa acepção clássica, que remonta a Marx e Blanqui.
A utilidade da história para a vida será interpretada nos termos
de um conhecimento político interessado, por oposição ao universalismo abstrato do historicismo:“O sujeito do conhecimento histórico
nte, oprimida”13. A crítica vale para as duas
é a própria classe combatente,
vertentes do historicismo. No historicismo melancólico e contemplativo
lativo14 o conhecimento histórico atribui a si próprio, de modo ilusório, um desinteresse semelhante ao da teoria da l’art pour l’art. No
historicismo social-democrata, a história aparece como um processo
reificado e dominado pela técnica, obscurecendo a subjetividade dos
agentes em conflito.
Nesse segundo caso, o esquecimento que se deve levar a cabo
é menos o do passado que o do futuro. A social-democracia, diz
Benjamin, atribui à classe operária o papel de uma “salvadora das
gerações futuras”; apagando o impulso revolucionário de Blanqui
e do espartaquismo, ela ignora “tanto o ódio como a vontade de
sacrifício”, que “alimentam-se da imagem dos antepassados escravizados, não do ideal dos netos libertados” 15. Um tal esquecimento
do futuro não está ausente na segunda Extemporânea. Embora a sua
crítica se concentre no historicismo contemplativo, ela atinge igualmente a religião do progresso. Para Nietzsche, o que caracteriza os
“homens históricos” é o fato de que “o olhar voltado para o passado
impulsiona-os para o futuro, acende neles a coragem de ainda poder
ombrear-se com a vida, inflama a esperança de que o bem venha
ainda, de que a felicidade esteja atrás da montanha para a qual eles
se dirigem. Esses homens históricos [historischen] acreditam que o
sentido da existência venha à luz cada vez mais no decurso de um
processo [Prozesses]; eles só olham para trás, portanto, para compreender o presente por meio da consideração do processo até agora, e
para aprender a desejar o futuro de modo mais impetuoso” 16.
A palavra “processo”, que o próprio Nietzsche sublinha, revela-nos a diferença entre essa forma de apreensão do passado e a
teoria da história proposta por Benjamin. Existe, de fato, uma concepção vulgar da idéia de “apropriação do passado”, da qual tanto
Nietzsche quanto Benjamin se afastam, e da qual Nietzsche nos dá
aqui não só o exemplo como o antídoto. Esse “olhar para trás” não
é desinteressado, já que voltado para o futuro. Não é esse tom bemintencionado o que anima a célebre “necessidade de resgatar o passado”, tão freqüente nos discursos oficiais? Diversamente, o elemento
não-processual, descontínuo ou intempestivo é o que une as teses
de 1940 e a segunda Extemporânea na crítica desse “senso comum”
hermenêutico.
Nietzsche. SämtlicheWerke
(KSA), I, p. 250.
12
13
Benjamin. Gesammelte
Schriften, I-2, p. 700.
Benjamin cita como exemplo
de acedia histórica uma frase
de Flaubert sobre Salambô:
“Poucas pessoas adivinharão o
quanto foi necessário ser triste
para ressuscitar Cartago”. In:
Benjamin. Gesammelte Schriften,
I-2, p. 696.
14
15
Benjamin. Gesammelte
Schriften, I-2, p. 700.
Nietzsche. SämtlicheWerke
(KSA), I, p. 255.
16
R omero Alves Freitas
98
Benjamin. Gesammelte
Schriften, II-1, p. 246.
17
Benjamin. Gesammelte
Schriften, I-2, p. 696.
18
Benjamin manifestou-se muitas vezes contra a idéia usual que se
faz da “atualidade” do passado. No texto programático para a revista
Angelus N ovus (que não chegou a ser editada), ele afirma que a revista
estaria consciente do seu caráter efêmero; a sua atualidade (Aktualität)
seria como a dos anjos talmúdicos que, criados a cada instante, “em
hordas incontáveis”, cantavam seu hino diante de Deus e pereciam
(vergehen) imediatamente
diatamente depois17. A verdadeira atualidade, portanto,
não pertence à continuidade totalizante criticada por Nietzsche no
texto citado mais acima.Verdadeiramente atual é, na verdade, o inatual, intempestivo ou extemporâneo (unzeitgemäss). O tempo-de-agora
(tematizado nas teses XIV e XVI) não recupera o passado inserindo-o
numa totalidade, numa marcha para o futuro: ele o utiliza e, ao mesmo
tempo, é utilizado por ele, rompendo com a ilusão do processo contínuo. Ele é inatual no sentido de que se opõe à percepção atual do
tempo histórico: o tempo-processo da modernidade.
A “inatualidade” defendida por Benjamin está presente na sua
crítica da empatia. Na tese VII, a crítica do método da empatia gira em
torno da questão da transmissão dos bens culturais. Benjamin apresenta uma breve genealogia desse método: “Sua origem é a inércia do
coração, a acedia, que desanima de apropriar-se da genuína imagem
do passado, que brilha [aufblitz
ufblitz t] fugazmente”18. A recusa do caráter
irruptivo do conhecimento histórico é o que leva o historicismo a
procurar compreender a história como uma totalidade. Para o historicismo, o conhecimento histórico não é verdadeiramente efetivo,
não altera o sujeito do conhecimento, pelo choque com que emerge
o passado. No modo como procura inserir cada fato no seu contexto,
buscando a sua compreensão empática, o historicismo revela um sujeito que se debruça sobre o passado contemplativamente. A empatia
é, portanto, um álibi que oculta a incapacidade de estranhamento, isto
é, o temor do “sem-expressão”.
A originalidade de Benjamin está em rejeitar a empatia não
apenas por razões metodológicas, mas por perceber nessa identificação
mais do que um erro psicologista: essa feliz harmonia entre consciências
oculta o problema da dominação; ela é, na verdade, um encontro entre
os dominadores de duas épocas distintas. Se a atenção do historiador não
se concentrar nos interstícios dos documentos transmitidos, naquilo que
não foi transmitido e que, pelo seu caráter inaudito, é quase intransmissível, a sua empatia será apenas uma repetição do ponto de vista de um
antigo dominador/ autor. A “inserção no contexto” e a “compreensão
do sentido”, dois motivos da hermenêutica clássica, não permitem que
se alcance o elemento de violência recalcada que existe em cada texto.
Por isso, não se deve dizer que a empatia falha: como o recalque freudiano, na maioria das vezes ela funciona bem; e é devido ao seu êxito que
ela deve ser vista com desconfiança.
A singularidade da posição de Benjamin revela-se nitidamente
nessa questão. Em vez de contrapor o procedimento da empatia ao positivismo, dentro da célebre dicotomia diltheyana entre compreender
(verstehen) e explicar (erklären), ele apresenta a empatia como parte da
concepção positivista. Como se lê numa das notas preparatórias à redação das teses, a empatia com o passado é “a quinta-essência do caráter
propriamente ‘científico’da história, no sentido do positivismo. Ele é ad-
99
Artefilosofia, O uro Preto, n.1, p.94-102, jul. 2006
quirido através da eliminação total de tudo aquilo que lembra a sua [ihre,
dela] determinação originária enquanto rememoração [Eingedenken]. A
falsa vivacidade da atualização, a aniquilação de toda a ressonância do
‘lamento’ da história caracteriza a sua sujeição definitiva sob o moderno
conceito de ciência”19. Como a falsa atualidade, a empatia produz um
saber confortador, que procura garantir um elo vital entre o passado e o
presente. De modo oposto, a história é originariamente rememoração20,
no sentido da atenção ou da receptividade para um passado inesperado, inédito, intempestivo. O conceito positivista de história tem como
pressuposto uma “surdez” para os protestos que o passado nos transmite,
à revelia de nossas boas intenções, quando o interrogamos em busca
de uma lição portadora de atualidade. Para Benjamin, a afinidade entre
compreensão e explicação, entre positivismo e hermenêutica, está na
perspectiva política subjacente a ambas. Por isso, os dois historicismos, o
contemplativo e o progressista, são objeto da mesma crítica: escamotear
as descontinuidades da história, favorecendo o status quo.
Pouco antes da redação das teses, no ensaio Sobre alguns temas
em Baudelaire (1939), Benjamin apresentou uma crítica da filosofia da
vida (Lebensphilosophie) que contém em germe uma série de pontos
semelhantes aos da crítica da empatia. Benjamin interpretará a temática
baudelaireana do spleen nos termos do conceito de “vivência” (Erlebnis). Nos poemas de Baudelaire, a melancolia e o aborrecimento resultam de um esforço da consciência para “aparar” os choques do mundo
externo: “Quanto maior a participação do momento de choque nas
impressões particulares, mais ininterruptamente a consciência precisa
agir no interesse da proteção contra o estímulo; quanto maior o êxito
com o qual ela opera, menos elas se integram à experiência [Erfahrung],
mais satisfazem ao conceito dee vivência [Erlebnis]”21. O conceito de
experiência remonta a Experiência e Pobrez a, escrito em 1933. O conceito oposto, vivência, será definido nesse segundo momento, através
de uma interpretação do spleen, empregando-se a noção de “proteção contra estímulo” (Reiz schutz ) desenvolvida por Freud em Além do
io de Prazer22.
Princípio
A vivência é a forma de sensibilidade específica das sociedades
modernas. O spleen baudelaireano é um testemunho disso, uma espécie
de correspondente poético da vivência. Nele, a concentração da consciência na defesa contra os choques do mundo externo, que caracterizam
a vida nas grandes cidades, produz uma barreira contra a elaboração da
experiência no sentido pleno do termo, isto é, gera uma incapacidade de
transformar em experiência coletiva aquilo que o sujeito experimenta
individualmente. Esse conceito de vivência contém uma alusão ao pensamento da Lebensphilosophie. Benjamin refere-se diretamente a Klages,
Jung e Dilthey - autor de A Vivência e a poesia -, embora seu objetivo
principal seja menos a obra desses autores na sua particularidade do
que a caracterização de uma certa ideologia estético-política. O que os
representantes da filosofia da vida têm em comum é o fato de reagirem
de modo conservador à atrofia da experiência na idade moderna, produzindo uma “experiência” reativa, de segunda mão: “Desde o final do
século passado, a filosofia realizou uma série de tentativas de se apropriar
da ‘verdadeira’ experiência, em oposição a uma experiência que está em
ssas civilizadas”23.
decadência na vida normatizada e desnaturada das massas
Benjamin. Gesammelte
Schriften, I-3, p. 1230-1231.
19
Termo que significa algo
diferente do gesto de arquivar e
sistematizar, típico do discurso
histórico no século XIX; pois
a própria palavra Eingedenken
sugere algo da dimensão do
ritual, isto é, da palavra oral e
socialmente compartilhada. O
fato de que Benjamin esteja
tratando aqui do discurso
escrito não é nenhuma
contradição, mas apenas uma
das tensões centrais de sua obra,
resultante do projeto de retradução de algumas categorias
do pensamento pré-moderno
(semelhança, linguagem
originária, experiência
exemplar) no âmbito do
marxismo e das teorias estéticas
das vanguardas (Brecht,
surrealismo, dadaísmo).
20
Benjamin. Gesammelte
Schriften, I-2, p. 615.
21
22
Freud, Sigmund. Gesammelte
Werke, XIII. Frankfurt (M),
Fischer, 1976, p. 23-29.
Benjamin. Gesammelte
Schriften, p. 608.
23
R omero Alves Freitas
100
24
Dilthey, Wilhelm. Gesammelte
Schriften,VII. Stuttgart, B. G.
Teubner, 1986, p. 280.
“Aparece [...] no início do
século [...] uma nova versão
do romance anticapitalista,
sobretudo universitário, do qual
o leitmotif central é a oposição
entre Kultur e Z ivilisation.
Enquanto Kultur define uma
esfera caracterizada por valores
éticos, estéticos e políticos,
um estilo de vida pessoal, um
universal espiritual ‘interior’,
‘natural’, ‘orgânico’, tipicamente
alemão, Z ivilization designa o
progresso material, técnicoeconômico, ‘exterior’, ‘mecânico’,
‘artificial’, de origem anglofrancesa. Esta problemática
fortemente tinta de romantismo
conservador será desenvolvida
por Tönnies, Julius Langbehn,
Alfred Weber e encontrará sua
expressão mais popular (mas
não a mais profunda...) em
‘A Decadência do Ocidente’
de Oswald Spengler (1918). É
preciso acrescentar que uma
corrente ‘neo-romântica’ deste
tipo vai-se manifestar também
entre muitos intelectuais alemães
não universitários, sobretudo os
escritores, que partilham à sua
maneira as preocupações sócioculturais dos mandarins:Theodor
Storm, Stephan George, Paul
Ernst e mesmo, em certa medida,
Thomas Mann”. Löwy, Michael.
Para uma sociologia dos intelectuais
revolucionários - a evolução política
de Lukács. São Paulo, LECH,
1979, p. 19-20
25
Para compreender melhor a idéia benjaminiana de que a vivência é um substituto ilusório para a experiência, pode-se recorrer
a um texto de Dilthey. Em A compreensão de outras pessoas e de suas
manifestações vitais (1910), encontraremos um bom exemplo de como
a filosofia da vida baseia a sua teoria da interpretação numa noção de
intersubjetividade muito próxima da idéia de empatia. Em Dilthey, esta
concepção de intersubjetividade está presente no tema da “revivência”
(N acherleben), mediante a qual o filósofo define a compreensão em
geral:“A compreensão é, em si mesma, uma operação inversa ao curso
efetivo do acontecer. Um pleno reviver requer que a compreensão
caminhe na linha mesma do acontecer. [...] Assim avançamos junto
com a história mesma, com um acontecimento de um país distante
ou com algo que sucede na alma de uma pessoa próxima a nós. A
perfeição se obtém quando o evento passou através da consciência do
poeta, do artista ou do historiador e se encontra agora diante de nós
permanentemente fixado em
m uma obra”24. A obra é, em outras palavras, o lugar em que se concretiza a intersubjetividade. O que garante
a objetividade da compreensão de um texto é o fato de que o autor
não exprime simplesmente as suas vivências, mas, partindo delas, cria
um produto intersubjetivamente acessível.
Essa idéia de uma comunhão espiritual entre autor e leitor é
bastante forte na Alemanha do princípio do século. Em linhas gerais,
ela pertence ao movimento da crítica conservadora da modernidade,
o assim chamado “romantismo anti-burguês”. Podemos compreender
essa tendência a partir do historicismo de R anke, passando pela dicotomia entre “sociedade” e “comunidade”, de Tönnies, e culminando
nos perigosos protestos contra a “decadência ocidental” em Spengler.
Segundo Michael
ael Löwy25, essa reação seria típica tanto do establishment universitário quanto de escritores consagrados, como Stefan George e Theodor Storm. Mas esse espírito de comunhão também pode
ser encontrado nos jovens poetas do expressionismo, na sua inclinação para o messiânico e para um novo humanismo. Tomemos como
exemplo o poema “Ao Leitor” (1916), de Franz Werfel:
Mein einz igerWunsch ist, Dir, o Mensch, verwandt z u sein!
Bist Du N eger, Akrobat, oder ruhst Du noch in tiefer Mutterhut,
Klingt Dein Mädchenlied über den Hof, lenkst Du Dein Floss im
[Abendschein,
Bist Du Soldat, oder Aviatiker voll Ausdauer und Mut.
[… ]
So gehöre ich Dir und Allen!
Wolle mir, bitte, nicht widerstehen!
O, könnte es einmal geschehen,
Dass wir uns, Bruder, in die Arme fallen!
O meu único desejo, oh Homem, é ter contigo afinidades!
Sejas tu negro, acrobata, ou repouses ainda no seio maternal,
Quer o teu canto de virgem se ouça pelo pátio, ou manobres
[a sua jangada no brilho das trindades,
Sejas tu soldado ou aviador pleno de resistência ou de ânimo vital.
[...]
Por isso, pertenço-te, e aTodos os demais!
Peço-te que não tentes resistir!
Oh, quem dera, Irmão, que eu pudesse cair
Um dia nos teus braços fraternais! 26
Artefilosofia, O uro Preto, n.1, p.94-102, jul. 2006
101
Em Benjamin, as coisas se passam de um modo diferente. História e linguagem não podem ser consideradas como fontes de expressões diferenciadas de uma mesma totalidade vital. De fato, o conceito
de “vida”, em Dilthey, equivale à idéia de uma totalidade sem lacunas,
como se evidencia no uso de expressões como “plenitude da vida
psíquica” (Fülle des Seelenlebens) e “plenitude da vida” (Fülle des Lens)27. Em Benjamin, diversamente, a história é possível a partir do
bens
que não pode ser totalmente historicizado, e a linguagem, por sua vez,
origina-se da experiência muda do in-fans, o ser que
ue não fala28 A origem da linguagem e da narrativa histórica, que é também a origem ou
pré-história do próprio sujeito, constitui a fratura da “totalidade vital”
subjacente à hermenêutica diltheyneana.
É interessante observar que Dilthey não está exatamente propondo uma restauração da cultura tradicional. Do seu ponto de vista,
a intersubjetividade descrita pela noção de “revivência” ainda está essencialmente intacta, apesar de constantemente ameaçada pela modernidade. O que a sua teoria da compreensão pressupõe é a permanência
de algo similar à “comunidade” de Tönnies, tomando essa permanência como o solo firme para o ato de interpretação. A tarefa da hermenêutica consiste em redescobrir essa solidariedade afetiva e intelectual,
superando a distância inicial entre o texto e o leitor. A modernidade,
com todas as rupturas efetivas que ela implica, só poderá então ser
considerada um efeito desestabilizador contingente numa história
ocidental essencialmente homogênea. Por isso, deve-se observar que
Dilthey não apenas submeteu a diversidade das épocas e visões de
mundo a uma “vida” totalizante, mas o seu próprio conceito de “vida”
possui marcas de uma situação específica, na qual o combate contra a
Z ivilisation estimula uma recriação imaginária da “comunidade” prémoderna. Mesmo que não nomeada, a intersubjetividade implícita na
idéia de “revivência” desempenha o mesmo papel que a acedia do
historiador historicista. Por isso, em Dilthey e no historicismo, uma
posição nostálgica e contemplativa revela-se incapaz do verdadeiro
conhecimento histórico, por ser incapaz do estranhamento que decorre da impossibilidade de uma relação totalizante com o passado.
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