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Estranhamento ou empatia

2006, Artefilosofia

R omero Alves Freitas 94 Estranhamento ou empatia? Notas sobre o problema do conhecimento histórico em Walter Benjamin R omero Alves Freitas * Fustel de Coulanges recomenda ao historiador, caso queira reviver [nacherleben] uma época, que tire da cabeça tudo o que sabe sobre o curso posterior da história. Não há como caracterizar melhor o procedimento com o qual rompeu o materialismo histórico. É um procedimento de empatia. Sua origem é a inércia do coração, a acedia, que desanima de apropriar-se da genuína imagem do passado, que brilha [aufblitzt] fugazmente. [...] A natureza dessa tristeza se tornará mais clara se colocarmos a questão sobre precisamente com quem o historiador do historicismo mantém a relação de empatia. A resposta será, inequivocamente: com o vencedor. Os dominadores de cada época são, porém, os herdeiros de todos aqueles que já venceram. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, os dominadores de cada época. Para o materialista histórico, isso diz o suficiente. Todos os que até agora venceram acompanham o cortejo triunfal que os dominadores atuais fazem passar sobre os que hoje estão prostrados. Os despojos, como mente, são levados juntos com o corteacontece freqüentemente, jo triunfal. Nós os caracterizamos como os bens culturais. No materialista histórico, eles encontrarão um observador distanciado.1 Professor-adjunto do Departamento de Filosofia da UFOP * Benjamin, Walter. Gesammelte Schriften, I-2. Frankfurt (M), Suhrkamp, 1991, p. 696. 1 Esse texto bem conhecido de Walter Benjamin encontra-se em Sobre o conceito da história (1940), na tese de número VII. Paralelamente a uma crítica da identificação do sujeito do conhecimento histórico com os poderosos do passado, nele encontra-se uma defesa implícita do estranhamento como princípio do conhecimento produzido pela história. Isso se tornará claro se inserirmos a tese VII no contexto das outras teses e de outras reflexões da mesma época. Perceberemos, então, que na filosofia da história de Benjamin a rejeição do método da empatia tem raízes mais profundas que a simples idéia da “identificação com os poderosos”. Trata-se, na verdade, de uma parte da problemática “continuidade versus descontinuidade”, “totalidade versus fragmento”, que é central na obra de Benjamin, se é que não constitui o seu próprio centro organizador. Antes de tratarmos do conceito de empatia, que será criticado nos últimos textos de Benjamin, faremos uma incursão pela sua filoso- 95 Artefilosofia, O uro Preto, n.1, p.94-102, jul. 2006 fia da linguagem, que surge principalmente nos escritos de juventude. É nessa fase que encontraremos o essencial a respeito do problema da identificação entre sujeitos através da linguagem, seja na história, na filosofia ou na literatura. Nos ensaios Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem (1916) e A tarefa do tradutor (1921), Benjamin pensa as diversas línguas existentes como versões “decaídas” de uma língua “originária”. Sem discutirmos aqui o que significa o conceito de “originário” nesses dois textos, observe-se apenas que não devemos confundi-lo com a idéia usual que se faz das noções de origem ou fundamento amento2. A “origem” (Ursprung), tal como Benjamin a define no prefácio de Origem do drama barroco alemão (1927), não é uma totalidade sem lacunas, uma perfeição inicial, que se corromperia com o tempo. Ela é pensada antes como condição histórica de possibilidade da escrita da história. Ela não se encontra simplesmente nos fatos, como numa metodologia empirista, mas também não está além da experiência possível, como na filosofia da história de Kant. Ao reunir em si tanto a “unicidade” quanto a “repetição”, tanto a “restauração” quanto o “inacabamento”, tanto a “totalidade” quanto os “extremos” extremos”3, a noção de origem torna-se uma espécie de totalidade incompleta, fragmentária, e é nesse sentido que ela pode ser simultaneamente histórica e fundamento da história. Na teoria da linguagem desenvolvida nos primeiros trabalhos de Benjamin, filosofia e literatura são formas de expressão que, pela sua própria natureza “escritural”, material, pertencem ao mundo “decaído” das representações históricas. No prefácio do livro sobre o drama barroco, essa “queda” da filosofia no espaço fragmentário da história se dá na forma de um afastamento do platonismo típico da fundamentação “à maneira dos geômetras”, que ignora tanto a história como o lugar do conflito político quanto o caráter necessariamente histórico dos signos da escrita. Nesse sentido, a inserção da filosofia na história é solidária com uma imersão do pensamento na linguagem, de modo que a totalidade de pensamento defendida por Hegel será substituída por uma constelação histórico-lingüística: “É próprio da escrita [Schrifttum] filosófica colocar-se sempre de novo diante da questão da apresentação. [...] A doutrina filosófica baseia-se na codificação [Kodifikation] histórica. Assim, ela não pode também ser invocada more geometrico. Tão claramente quanto prova que a eliminação total do problema da apresentação [...] é o sinal do conhecimento autêntico, a matemática mostra sua renúncia ao âmbito da verdade que é visado pelas línguas”. guas”.4 No ensaio As “Afinidades eletivas” de Goethe (1922), Benjamin elaborou um conceito que permite esclarecer o aspecto intrinsecamente fragmentário do conhecimento histórico-lingüístico: o “sem expressão” (Ausdruckslose). O Ausdruckslose é o que impede a coincidência entre a materialidade e o sentido, a essência e a aparência na obra de arte. Ele é a antítese da “bela unidade” de que falavam Schiller e Hegel, como harmonia do individual e do coletivo, do ético e do estético, do sensível e do supra-sensível. Seu exemplo mais simples é o cadáver, tal como aparece no drama barroco alemão. O cadáver, com efeito, é o produto mais direto da alegoria barroca, pois ele exibe tudo aquilo que há de mais sofrido e malogrado na história. Como na esté- Cf. Agamben, Giorgio. Langue et histoire. Catégories historiques et catégories linguistiques dans la pensée de Walter Benjamin. In:Wismann, Heinz (Org). Walter Benjamin et Paris. Paris, Les Éditions du Cerf, 1986. Agamben, Giogio. Enfance et histoire - destruction de l’expérience et origine de l’histoire. Paris, Payot, 1989. Gagnebin, Jeanne-Marie. História e narrativa em Walter Benjamin. São Paulo, Perspectiva, 1994. Idem, Histoire, memóire et oubli chez Walter Benjamin, Revue de Métaphysique et de Morale, Ano 99, n. 3 (1994). 2 3 Benjamin. Gesammelte Schriften, I-1, p. 226-227. 4 Benjamin. Gesammelte Schriften, I-1, p. 207. R omero Alves Freitas 96 Benjamin. Gesammelte Schriften, I-1, p. 343. 5 Note-se, de passagem, como o exemplo é diametralmente oposto ao de Aristóteles no livro IV da Poética, quando se trata de argumentar a favor do poder de “alquimia” da mímesis, essa forma de atividade capaz de transformar o repugnante em fonte de prazer: “nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância, por exemplo, [as representações de] animais ferozes e [de] cadáveres”. Aristóteles, Aristóteles II. São Paulo, Abril Cultural, 1984, p. 243. (Os Pensadores). 6 7 Benjamin. Gesammelte Schriften, I-1, p. 181. Cf. Menninghaus, Winfried. Lo inexpresivo: las variaciones de la ausencia de imagem em Walter Benjamin. In: Massuh, Gabriela/ Fehrmann, Silvia (Org.). SobreWalter Benjamin - vanguardias, história, estética y literatura. Una visión latinoamericana. Buenos Aires, Alianza Editorial, 1993. 8 Cf. Kant, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. R io de Janeiro, Forense Universitária, 1993, p. 90 (B75) e 116 (B118). 9 Kant. Crítica da faculdade do juízo, p. 104 (B98). 10 Nietzsche, Friedrich. Sämtliche Werke (KSA), I. München, DTV/ de Gruyter, 1999, p. 245. Benjamin. Gesammelte Schriften, I-2, p. 700. 11 tica de Burke, a morte designa aqui a figura do sublime. A morte “cava do modo mais profundo a linha dentada entre a physis e a signifi gnificação”5, pois o cadáver ver inviabiliza6 esta possibilidade de representação do espiritual no sensível que a estética clássica chamava de “beleza”. A citação é celebre: “O sem-expressão é a violência crítica que, se não consegue separar a aparência da essência na arte, proíbe os dois de se misturarem. [...] Ele faz em pedaços aquilo que em toda bela aparência perdura ainda como herança do caos: a totalidade falsa, enganadora - a absoluta. Somente isso consuma a obra: o que a transforma na obra em pedaços, no fragmento do mundo verdadeiro, no torso de um símbolo”7. Se o Ausdruckslose é semelhante ao sublime kantiano, como já se observou8, é menos porque elevaria o sujeito acima da natureza sensível - como acontece em Kant - e mais porque demonstra a incapacidade das formas artísticas na representação da totalidade. Isso se dá porque o fracasso da imaginação estética na representação da totalidade (a grandeza infinita ou a força ilimitada) é apenas um dos momentos na constituição do sublime na Crítica da faculdade do juízo. O outro momento é o de uma vitória da razão justamente sobre os escombros da imaginação: uma efusão da força vital reprimida no momento anterior, na medida em que um conceito indeterminado da razão9 aponta ao sujeito o sentimento da sua “destinação ção supra-sensível”10. Ou seja: para Kant, a totalidade não é acessível à imaginação, mas, através de uma interação entre imaginação e razão, ela se apresenta negativamente na experiência estética, torna-se representação sem imagem e sem conceito, converte-se em sentimento. Deve-se ler com cuidado, portanto, algumas aproximações apressadas que se fazem entre Kant e Benjamin. O tema da crítica a uma totalidade ilusória, responsável por uma remitologização artificial do mundo, ressurge nas teses escritas por Benjamin em 1940. De modo mais ou menos explícito, esse tema estará presente ao longo de todo o texto. Para associá-lo ao problema da empatia, deveremos investigá-lo na tese XII, na qual Benjamin faz uma importante aproximação de sua filosofia da história com o anti-historicismo de Nietzsche. A referência a Nietzsche está na epígrafe dessa tese, extraída da segunda parte das Considerações extemporâneas, intitulada “Da utilidade e do inconveniente da história para a vida”: “Precisamos da história [Historie], mas não como dela precisa o ocioso malacostumado no jardim im do saber”11. Diversamente das outras epígrafes, que limitam-se a ilustrar o texto (teses XIII e IV) ou a apresentar um comentário antecipado do que se vai ler (teses IX e XIV), a citação de Nietzsche dialoga diretamente com a tese XII. De início, observe-se que a associação entre Marx e Nietzsche não é exatamente um lugar comum em 1940. Benjamin demonstra uma leitura independente de Nietzsche, alheia às apropriações da época, tanto pelo nacional-socialismo quanto pela filosofia existencial. O que lhe interessa é invocar a crítica de Nietzsche à sobrevalorização da história em detrimento da vida, introduzindo-a no seu próprio projeto de crítica do historicismo, nas duas vertentes em que ele aparece nas teses: o historicismo burguês de Dilthey e Fustel de Coulanges, marcado pela acedia e o temperamento contemplativo; e o historicismo “progressista” da Segunda Internacional, caracterizado por um necessitarismo ingênuo. 97 Artefilosofia, O uro Preto, n.1, p.94-102, jul. 2006 Inicialmente, trata-se de defender a utilidade (N utzen) da história para a vida, como em Nietzsche, mas orientando-a para a vida política. Essa dimensão política não está ausente na Extemporânea, uma vez que o excesso de história é considerado danoso tanto para o indivíduo quanto para a coletividade: “há um grau de insônia, de ruminação, de sentido histórico, que prejudica o ser vivo, e, por fim, o leva à ruína, seja ele uma pessoa, um povo ou umaa cultura”12. Em Benjamin, porém, a ênfase num necessário grau de esquecimento é essencialmente política, pois esse esquecimento ativo é inseparável da ação revolucionária, numa acepção clássica, que remonta a Marx e Blanqui. A utilidade da história para a vida será interpretada nos termos de um conhecimento político interessado, por oposição ao universalismo abstrato do historicismo:“O sujeito do conhecimento histórico nte, oprimida”13. A crítica vale para as duas é a própria classe combatente, vertentes do historicismo. No historicismo melancólico e contemplativo lativo14 o conhecimento histórico atribui a si próprio, de modo ilusório, um desinteresse semelhante ao da teoria da l’art pour l’art. No historicismo social-democrata, a história aparece como um processo reificado e dominado pela técnica, obscurecendo a subjetividade dos agentes em conflito. Nesse segundo caso, o esquecimento que se deve levar a cabo é menos o do passado que o do futuro. A social-democracia, diz Benjamin, atribui à classe operária o papel de uma “salvadora das gerações futuras”; apagando o impulso revolucionário de Blanqui e do espartaquismo, ela ignora “tanto o ódio como a vontade de sacrifício”, que “alimentam-se da imagem dos antepassados escravizados, não do ideal dos netos libertados” 15. Um tal esquecimento do futuro não está ausente na segunda Extemporânea. Embora a sua crítica se concentre no historicismo contemplativo, ela atinge igualmente a religião do progresso. Para Nietzsche, o que caracteriza os “homens históricos” é o fato de que “o olhar voltado para o passado impulsiona-os para o futuro, acende neles a coragem de ainda poder ombrear-se com a vida, inflama a esperança de que o bem venha ainda, de que a felicidade esteja atrás da montanha para a qual eles se dirigem. Esses homens históricos [historischen] acreditam que o sentido da existência venha à luz cada vez mais no decurso de um processo [Prozesses]; eles só olham para trás, portanto, para compreender o presente por meio da consideração do processo até agora, e para aprender a desejar o futuro de modo mais impetuoso” 16. A palavra “processo”, que o próprio Nietzsche sublinha, revela-nos a diferença entre essa forma de apreensão do passado e a teoria da história proposta por Benjamin. Existe, de fato, uma concepção vulgar da idéia de “apropriação do passado”, da qual tanto Nietzsche quanto Benjamin se afastam, e da qual Nietzsche nos dá aqui não só o exemplo como o antídoto. Esse “olhar para trás” não é desinteressado, já que voltado para o futuro. Não é esse tom bemintencionado o que anima a célebre “necessidade de resgatar o passado”, tão freqüente nos discursos oficiais? Diversamente, o elemento não-processual, descontínuo ou intempestivo é o que une as teses de 1940 e a segunda Extemporânea na crítica desse “senso comum” hermenêutico. Nietzsche. SämtlicheWerke (KSA), I, p. 250. 12 13 Benjamin. Gesammelte Schriften, I-2, p. 700. Benjamin cita como exemplo de acedia histórica uma frase de Flaubert sobre Salambô: “Poucas pessoas adivinharão o quanto foi necessário ser triste para ressuscitar Cartago”. In: Benjamin. Gesammelte Schriften, I-2, p. 696. 14 15 Benjamin. Gesammelte Schriften, I-2, p. 700. Nietzsche. SämtlicheWerke (KSA), I, p. 255. 16 R omero Alves Freitas 98 Benjamin. Gesammelte Schriften, II-1, p. 246. 17 Benjamin. Gesammelte Schriften, I-2, p. 696. 18 Benjamin manifestou-se muitas vezes contra a idéia usual que se faz da “atualidade” do passado. No texto programático para a revista Angelus N ovus (que não chegou a ser editada), ele afirma que a revista estaria consciente do seu caráter efêmero; a sua atualidade (Aktualität) seria como a dos anjos talmúdicos que, criados a cada instante, “em hordas incontáveis”, cantavam seu hino diante de Deus e pereciam (vergehen) imediatamente diatamente depois17. A verdadeira atualidade, portanto, não pertence à continuidade totalizante criticada por Nietzsche no texto citado mais acima.Verdadeiramente atual é, na verdade, o inatual, intempestivo ou extemporâneo (unzeitgemäss). O tempo-de-agora (tematizado nas teses XIV e XVI) não recupera o passado inserindo-o numa totalidade, numa marcha para o futuro: ele o utiliza e, ao mesmo tempo, é utilizado por ele, rompendo com a ilusão do processo contínuo. Ele é inatual no sentido de que se opõe à percepção atual do tempo histórico: o tempo-processo da modernidade. A “inatualidade” defendida por Benjamin está presente na sua crítica da empatia. Na tese VII, a crítica do método da empatia gira em torno da questão da transmissão dos bens culturais. Benjamin apresenta uma breve genealogia desse método: “Sua origem é a inércia do coração, a acedia, que desanima de apropriar-se da genuína imagem do passado, que brilha [aufblitz ufblitz t] fugazmente”18. A recusa do caráter irruptivo do conhecimento histórico é o que leva o historicismo a procurar compreender a história como uma totalidade. Para o historicismo, o conhecimento histórico não é verdadeiramente efetivo, não altera o sujeito do conhecimento, pelo choque com que emerge o passado. No modo como procura inserir cada fato no seu contexto, buscando a sua compreensão empática, o historicismo revela um sujeito que se debruça sobre o passado contemplativamente. A empatia é, portanto, um álibi que oculta a incapacidade de estranhamento, isto é, o temor do “sem-expressão”. A originalidade de Benjamin está em rejeitar a empatia não apenas por razões metodológicas, mas por perceber nessa identificação mais do que um erro psicologista: essa feliz harmonia entre consciências oculta o problema da dominação; ela é, na verdade, um encontro entre os dominadores de duas épocas distintas. Se a atenção do historiador não se concentrar nos interstícios dos documentos transmitidos, naquilo que não foi transmitido e que, pelo seu caráter inaudito, é quase intransmissível, a sua empatia será apenas uma repetição do ponto de vista de um antigo dominador/ autor. A “inserção no contexto” e a “compreensão do sentido”, dois motivos da hermenêutica clássica, não permitem que se alcance o elemento de violência recalcada que existe em cada texto. Por isso, não se deve dizer que a empatia falha: como o recalque freudiano, na maioria das vezes ela funciona bem; e é devido ao seu êxito que ela deve ser vista com desconfiança. A singularidade da posição de Benjamin revela-se nitidamente nessa questão. Em vez de contrapor o procedimento da empatia ao positivismo, dentro da célebre dicotomia diltheyana entre compreender (verstehen) e explicar (erklären), ele apresenta a empatia como parte da concepção positivista. Como se lê numa das notas preparatórias à redação das teses, a empatia com o passado é “a quinta-essência do caráter propriamente ‘científico’da história, no sentido do positivismo. Ele é ad- 99 Artefilosofia, O uro Preto, n.1, p.94-102, jul. 2006 quirido através da eliminação total de tudo aquilo que lembra a sua [ihre, dela] determinação originária enquanto rememoração [Eingedenken]. A falsa vivacidade da atualização, a aniquilação de toda a ressonância do ‘lamento’ da história caracteriza a sua sujeição definitiva sob o moderno conceito de ciência”19. Como a falsa atualidade, a empatia produz um saber confortador, que procura garantir um elo vital entre o passado e o presente. De modo oposto, a história é originariamente rememoração20, no sentido da atenção ou da receptividade para um passado inesperado, inédito, intempestivo. O conceito positivista de história tem como pressuposto uma “surdez” para os protestos que o passado nos transmite, à revelia de nossas boas intenções, quando o interrogamos em busca de uma lição portadora de atualidade. Para Benjamin, a afinidade entre compreensão e explicação, entre positivismo e hermenêutica, está na perspectiva política subjacente a ambas. Por isso, os dois historicismos, o contemplativo e o progressista, são objeto da mesma crítica: escamotear as descontinuidades da história, favorecendo o status quo. Pouco antes da redação das teses, no ensaio Sobre alguns temas em Baudelaire (1939), Benjamin apresentou uma crítica da filosofia da vida (Lebensphilosophie) que contém em germe uma série de pontos semelhantes aos da crítica da empatia. Benjamin interpretará a temática baudelaireana do spleen nos termos do conceito de “vivência” (Erlebnis). Nos poemas de Baudelaire, a melancolia e o aborrecimento resultam de um esforço da consciência para “aparar” os choques do mundo externo: “Quanto maior a participação do momento de choque nas impressões particulares, mais ininterruptamente a consciência precisa agir no interesse da proteção contra o estímulo; quanto maior o êxito com o qual ela opera, menos elas se integram à experiência [Erfahrung], mais satisfazem ao conceito dee vivência [Erlebnis]”21. O conceito de experiência remonta a Experiência e Pobrez a, escrito em 1933. O conceito oposto, vivência, será definido nesse segundo momento, através de uma interpretação do spleen, empregando-se a noção de “proteção contra estímulo” (Reiz schutz ) desenvolvida por Freud em Além do io de Prazer22. Princípio A vivência é a forma de sensibilidade específica das sociedades modernas. O spleen baudelaireano é um testemunho disso, uma espécie de correspondente poético da vivência. Nele, a concentração da consciência na defesa contra os choques do mundo externo, que caracterizam a vida nas grandes cidades, produz uma barreira contra a elaboração da experiência no sentido pleno do termo, isto é, gera uma incapacidade de transformar em experiência coletiva aquilo que o sujeito experimenta individualmente. Esse conceito de vivência contém uma alusão ao pensamento da Lebensphilosophie. Benjamin refere-se diretamente a Klages, Jung e Dilthey - autor de A Vivência e a poesia -, embora seu objetivo principal seja menos a obra desses autores na sua particularidade do que a caracterização de uma certa ideologia estético-política. O que os representantes da filosofia da vida têm em comum é o fato de reagirem de modo conservador à atrofia da experiência na idade moderna, produzindo uma “experiência” reativa, de segunda mão: “Desde o final do século passado, a filosofia realizou uma série de tentativas de se apropriar da ‘verdadeira’ experiência, em oposição a uma experiência que está em ssas civilizadas”23. decadência na vida normatizada e desnaturada das massas Benjamin. Gesammelte Schriften, I-3, p. 1230-1231. 19 Termo que significa algo diferente do gesto de arquivar e sistematizar, típico do discurso histórico no século XIX; pois a própria palavra Eingedenken sugere algo da dimensão do ritual, isto é, da palavra oral e socialmente compartilhada. O fato de que Benjamin esteja tratando aqui do discurso escrito não é nenhuma contradição, mas apenas uma das tensões centrais de sua obra, resultante do projeto de retradução de algumas categorias do pensamento pré-moderno (semelhança, linguagem originária, experiência exemplar) no âmbito do marxismo e das teorias estéticas das vanguardas (Brecht, surrealismo, dadaísmo). 20 Benjamin. Gesammelte Schriften, I-2, p. 615. 21 22 Freud, Sigmund. Gesammelte Werke, XIII. Frankfurt (M), Fischer, 1976, p. 23-29. Benjamin. Gesammelte Schriften, p. 608. 23 R omero Alves Freitas 100 24 Dilthey, Wilhelm. Gesammelte Schriften,VII. Stuttgart, B. G. Teubner, 1986, p. 280. “Aparece [...] no início do século [...] uma nova versão do romance anticapitalista, sobretudo universitário, do qual o leitmotif central é a oposição entre Kultur e Z ivilisation. Enquanto Kultur define uma esfera caracterizada por valores éticos, estéticos e políticos, um estilo de vida pessoal, um universal espiritual ‘interior’, ‘natural’, ‘orgânico’, tipicamente alemão, Z ivilization designa o progresso material, técnicoeconômico, ‘exterior’, ‘mecânico’, ‘artificial’, de origem anglofrancesa. Esta problemática fortemente tinta de romantismo conservador será desenvolvida por Tönnies, Julius Langbehn, Alfred Weber e encontrará sua expressão mais popular (mas não a mais profunda...) em ‘A Decadência do Ocidente’ de Oswald Spengler (1918). É preciso acrescentar que uma corrente ‘neo-romântica’ deste tipo vai-se manifestar também entre muitos intelectuais alemães não universitários, sobretudo os escritores, que partilham à sua maneira as preocupações sócioculturais dos mandarins:Theodor Storm, Stephan George, Paul Ernst e mesmo, em certa medida, Thomas Mann”. Löwy, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários - a evolução política de Lukács. São Paulo, LECH, 1979, p. 19-20 25 Para compreender melhor a idéia benjaminiana de que a vivência é um substituto ilusório para a experiência, pode-se recorrer a um texto de Dilthey. Em A compreensão de outras pessoas e de suas manifestações vitais (1910), encontraremos um bom exemplo de como a filosofia da vida baseia a sua teoria da interpretação numa noção de intersubjetividade muito próxima da idéia de empatia. Em Dilthey, esta concepção de intersubjetividade está presente no tema da “revivência” (N acherleben), mediante a qual o filósofo define a compreensão em geral:“A compreensão é, em si mesma, uma operação inversa ao curso efetivo do acontecer. Um pleno reviver requer que a compreensão caminhe na linha mesma do acontecer. [...] Assim avançamos junto com a história mesma, com um acontecimento de um país distante ou com algo que sucede na alma de uma pessoa próxima a nós. A perfeição se obtém quando o evento passou através da consciência do poeta, do artista ou do historiador e se encontra agora diante de nós permanentemente fixado em m uma obra”24. A obra é, em outras palavras, o lugar em que se concretiza a intersubjetividade. O que garante a objetividade da compreensão de um texto é o fato de que o autor não exprime simplesmente as suas vivências, mas, partindo delas, cria um produto intersubjetivamente acessível. Essa idéia de uma comunhão espiritual entre autor e leitor é bastante forte na Alemanha do princípio do século. Em linhas gerais, ela pertence ao movimento da crítica conservadora da modernidade, o assim chamado “romantismo anti-burguês”. Podemos compreender essa tendência a partir do historicismo de R anke, passando pela dicotomia entre “sociedade” e “comunidade”, de Tönnies, e culminando nos perigosos protestos contra a “decadência ocidental” em Spengler. Segundo Michael ael Löwy25, essa reação seria típica tanto do establishment universitário quanto de escritores consagrados, como Stefan George e Theodor Storm. Mas esse espírito de comunhão também pode ser encontrado nos jovens poetas do expressionismo, na sua inclinação para o messiânico e para um novo humanismo. Tomemos como exemplo o poema “Ao Leitor” (1916), de Franz Werfel: Mein einz igerWunsch ist, Dir, o Mensch, verwandt z u sein! Bist Du N eger, Akrobat, oder ruhst Du noch in tiefer Mutterhut, Klingt Dein Mädchenlied über den Hof, lenkst Du Dein Floss im [Abendschein, Bist Du Soldat, oder Aviatiker voll Ausdauer und Mut. [… ] So gehöre ich Dir und Allen! Wolle mir, bitte, nicht widerstehen! O, könnte es einmal geschehen, Dass wir uns, Bruder, in die Arme fallen! O meu único desejo, oh Homem, é ter contigo afinidades! Sejas tu negro, acrobata, ou repouses ainda no seio maternal, Quer o teu canto de virgem se ouça pelo pátio, ou manobres [a sua jangada no brilho das trindades, Sejas tu soldado ou aviador pleno de resistência ou de ânimo vital. [...] Por isso, pertenço-te, e aTodos os demais! Peço-te que não tentes resistir! Oh, quem dera, Irmão, que eu pudesse cair Um dia nos teus braços fraternais! 26 Artefilosofia, O uro Preto, n.1, p.94-102, jul. 2006 101 Em Benjamin, as coisas se passam de um modo diferente. História e linguagem não podem ser consideradas como fontes de expressões diferenciadas de uma mesma totalidade vital. De fato, o conceito de “vida”, em Dilthey, equivale à idéia de uma totalidade sem lacunas, como se evidencia no uso de expressões como “plenitude da vida psíquica” (Fülle des Seelenlebens) e “plenitude da vida” (Fülle des Lens)27. Em Benjamin, diversamente, a história é possível a partir do bens que não pode ser totalmente historicizado, e a linguagem, por sua vez, origina-se da experiência muda do in-fans, o ser que ue não fala28 A origem da linguagem e da narrativa histórica, que é também a origem ou pré-história do próprio sujeito, constitui a fratura da “totalidade vital” subjacente à hermenêutica diltheyneana. É interessante observar que Dilthey não está exatamente propondo uma restauração da cultura tradicional. Do seu ponto de vista, a intersubjetividade descrita pela noção de “revivência” ainda está essencialmente intacta, apesar de constantemente ameaçada pela modernidade. O que a sua teoria da compreensão pressupõe é a permanência de algo similar à “comunidade” de Tönnies, tomando essa permanência como o solo firme para o ato de interpretação. A tarefa da hermenêutica consiste em redescobrir essa solidariedade afetiva e intelectual, superando a distância inicial entre o texto e o leitor. A modernidade, com todas as rupturas efetivas que ela implica, só poderá então ser considerada um efeito desestabilizador contingente numa história ocidental essencialmente homogênea. Por isso, deve-se observar que Dilthey não apenas submeteu a diversidade das épocas e visões de mundo a uma “vida” totalizante, mas o seu próprio conceito de “vida” possui marcas de uma situação específica, na qual o combate contra a Z ivilisation estimula uma recriação imaginária da “comunidade” prémoderna. Mesmo que não nomeada, a intersubjetividade implícita na idéia de “revivência” desempenha o mesmo papel que a acedia do historiador historicista. Por isso, em Dilthey e no historicismo, uma posição nostálgica e contemplativa revela-se incapaz do verdadeiro conhecimento histórico, por ser incapaz do estranhamento que decorre da impossibilidade de uma relação totalizante com o passado. Bibliografia BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Frankfurt (M): Suhrkamp, 1991. AGAMBEN, Giorgio. Langue et histoire. Catégories historiques et catégories linguistiques dans la pensée de Walter Benjamin. In:WISMANN, Heinz (Org). Walter Benjamin et Paris. Paris: Les Éditions du Cerf, 1986. ______. Enfance et histoire: destruction de l’expérience et origine de l’histoire. Tradução de Yves Hersant. Paris: Payot, 1989. Original italiano, 1978. In: Barrento, João (Org.). Expressionismo alemão - antologia poética. Lisboa, Ática, s/ d, p. 37-38. 26 Dilthey. Gesammelte Schriften, VII, p. 206. 27 Cf. Agamben. Enfance et histoire, p. 79, 87. 28 R omero Alves Freitas 102 AR ISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. In: Aristóteles II. São Paulo, Abril Cultural, 1984. (Os Pensadores). BAR R ENTO, João (Org.). Expressionismo alemão: antologia poética. Seleção e tradução do organizador. Lisboa: Ática, s/ d. DILTHEY, Wilhelm. Gesammelte Schriften. Stuttgart: B. G. Teubner, 1986. FR EUD, Sigmund. GesammelteWerke. Frankfurt (M): Fischer, 1976. GAGNEBIN, Jeanne-Marie. 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