CADEIAS ANAFÓRICAS. QUE REFERÊNCIA?*
Uma das questões clássicas de semântica linguística diz respeito à forma como as línguas naturais processam a referência, e à
própria noção de referência. São de facto múltiplos os tratamentos
de que este assunto tem sido objecto desde Stuart Mill1 e Frege2.
Em ligação directa com o conceito de referência e levantando até
a hipótese de um mecanismo geral e comum, estão as descrições
definidas, os nomes próprios, está a quantificação e estão ainda os
demonstrativos. Os pontos de vista diversificam-se sobretudo quando
se encara a diversidade do carácter das ocorrências dos chamados
artigos, nas formas singular e plural, as leituras variadas que eles
suscitam de acordo com a sua distribuição relativamente a nomes
contáveis ou não-contáveis, o seu carácter de genéricos ou não (e em
que sentido), o exercício de uma função referencial ou então atributiva 3 e ainda (entre outros) os contrastes que permitem distinguir
entre a designação de indivíduos, de espécies naturais {natural Kinds),
de fases ou aspectos distintos de um mesmo indivíduo (stages), de
matérias (materiais) ou outras entidades massivas, de abstractos (de
vários tipos lógicos), de colectivos, etc.
Não analisaremos aqui a especificidade de cada variante morfológica, sintáctica ou semântica de artigo, na acepção tradicional-
* Este texto é, em grande parte, a comunicação que apresentei ao
Colóquio «Teoria do Texto», realizado em Évora, em Março de 1985.
Esta investigação foi subsidiada pelo Projecto P 97/85 da Universidade
do Porto.
1
MILL, S. — A System of Logic, Londres, Longman, 1949 (l.a edição:
1724).
2
F REGE , G. — Uber Sinn und Bedeutung, 1982; trad. francesa: Êcrits
Logiques et Philosophiques, Paris, Ed. Seuil, 1971, pp. 102-126.
3
Cf. DONNELLAN, K. — Reference and Definite Descriptions in «Philosophical Review», LXXXV, pp. 281-304.
125
FÁTIMA OLIVEIRA
mente estrita, e mais recentemente por vezes bastante lata 4, de artigo,
nem mesmo formas de referência atrás mencionadas. As facetas aqui
focadas terão exclusivamente que ver com a possibilidade de construção de cadeias anafóricas do tipo «um [...]. O [...]» ou «um [...].
Este [...]». No entanto, a capacidade linguística de realizar estas
cadeias levanta problemas ao tratamento de tais determinantes, e daí
que o interesse desta questão seja, não apenas estritamente semântico
mas também textual.
Observemos, para começar, a seguinte frase:
(1) — Comprei um jornal na tabacaria. O jornal está na mesa,
em que se verifica a passagem, em anáfora fiel, de um para o. Um,
neste caso, representa em certa medida um quantificador lógico
existencial, e tem provavelmente uma marcha de unicidade, pelo
menos em relação ao âmbito situacional que é activado e à comunicação iniciada: a informação dada refere-se a certo jornal retirado
de certo conjunto de jornais à venda. Como é então possível passar
para o definido?
R. Martin5 sugeriria talvez que tal «um» é específico para o
locutor, uma vez que este sabe qual o jornal que comprou e está
portanto em condições de explicitar qualquer predicado que possibilite
a sua identificação. Mas já não é possível invocar a capacidade de
identificação pelo locutor quando se trata de um texto dialogai como:
(2) — Comprei um jornal.
— Onde está o jornal?
em que definitização também ocorre, mas feita por alguém que não
está em condições de identificar o jornal, podendo até admitir-se
que tenha dúvidas acerca da existência de um jornal comprado nas
condições supostas de diálogo. O o, neste caso, para além de uma
pressuposição de existência de que o primeiro interlocutor é o
garante, mantém a interlocução sobre uma pressuposição de unidade
definida, no sentido de que assinala o referente pela propriedade
4
Cf. STOCKWELL, R.; SCHACHTER, P.; PARTEE, B. — The Major Syntatic
Structures of English, Nova Iorque, Holt, Rinehart and Wiston, 1973.
5
Cf. M ARTIN , R. — Pour une Logique du Sens, Paris, P.U.F., 1983,
pp. 150-183.
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CADEIAS ANAFÓRICAS. QUE REFERÊNCIA ?
de ter sido mencionado como comprado em dada tabacaria. Esta
definitização é uma proposta de referência com referente re-identificável por cadeia anafórica no discurso dialogai encetado. É neste
sentido que Karttunen6 introduz a fórmula de «discourse referent».
O artigo definido assinala que, em certo sentido, está a ser
feita uma referência identificante, e o que nos importa aqui é saber
como isso se processa, tendo em vista a alternativa constituída pela
definitização por meio de demonstrativos. Do ponto de vista linguístico textual não é satisfatória a teoria das descrições definidas de
B. Russell7, segundo a qual um SN referencial iniciado por artigo
definido no singular exprime uma conjunção proposicional que assegura que uma, e só uma, entidade nomeada pelo nome comum
correspondente satisfaz a uma dada propriedade, em contraste com
as descrições indefinidas, que afirmam a existência, não necessariamente única, de um membro de dada classe a que determinada
propriedade convém. Os semanticistas esquecem frequentemente o
paralelismo de SN com o artigo definido, quer no singular, quer no
plural, apesar da advertência a este respeito formulada por M. Bierwisch 8. Além disso, em situação de discurso, os artigos definidos só
assinalam a unicidade de determinado conjunto nominalmente expresso
(singular ou plural) dentro da mesma cadeia anafórica.
As cadeias anafóricas que aqui nos interessam só se estabelecem
em determinadas condições, nomeadamente quando se trata de, pelo
menos, duas frases sucessivas emitidas num mesmo acto de enunciação,
afectado portanto pelos mesmos índices de tempo, lugar, etc, (1), ou
de duas enunciações em que o locutor difere mas os outros índices
pertinentes coincidem, (2), devendo sublinhar-se que uma cadeia anafórica é uma sequência de termos de tal forma relacionados que, se
o primeiro termo refere algo, todos os outros referem o mesmo 9, isto
sem exclusão de complicadas relações que remetem para diferentes
tipos de abstracção, a que nos referiremos, embora excluindo, entre
outros casos, os dos pronouns of laziness («Aquele que confia a
6
KARTTUNEN, L. — Discourse Referents in «International Conference
on Computational Linguistics», Oslo, 1969.
7
RUSSEL, B. — On Denoting, in «Mind» 14, 1905, pp. 479-493.
8
BIERWISH, M. — On Classifying Semantic Features in BIERWISH, M.;
H EIDOLF , K. E. (org.) Progress in Linguistics, Haia, Mouton, 1970, pp. 27-50.
9
CHASTAIN, C. — Reference and Context in GUNDERSON, K. (org.)
Language, Mind and Knowledge, Minneapolis, Univ. Minnesota Press, 1975.
127
FÁTIMA OLIVEIRA
carteira à amante é mais imprudente do que o que a confia à mulher»
Geach, 1962).
Pode talvez supor-se que aquilo a que Donellan10 chama
«speaker reference» seja elucidativo de algumas ocorrências, no
sentido de permitir apreender a referência através do que o falante
tem em mente e que para ele se reveste da evidência psíquica individualizadora de um «vivid name» T1; mas, num acto de referência
consumado, isso implica uma «condição griceana»12 o alocutário
apreende o referente na medida em que apreende a intenção, por
parte do locutor, de lhe indicar esse mesmo referente. Neste caso,
a diferença essencial entre «um» e «o» não reside no facto de «um»
funcionar caracteristicamente como elemento introdutor13, pois o «o»
também pode funcionar assim em certos casos. Embora se possa
dizer que é toda a frase onde figura o artigo indefinido que constitui
a introdução da entidade considerada, em muitos casos não podemos
garantir que o locutor tenha a intenção de que a descrição e os
conhecimentos previamente correlatos singularizem uma entidade de
modo a possibilitar a sua identificação. Uma frase introdutória
fornece, basicamente, uma simples nomeação, e a diferença entre
«um» e «o» consiste, aí, em o locutor supor que o interlocutor
não está, ou está, em condições de apreender a referência independentemente de poder reidentificar a entidade nomeada, como por
exemplo em:
(3) — Vai-me buscar o embrulho que deixei no carro (Kleiber)14.
Nesta medida, as descrições definidas podem servir como antecedentes a uma cadeia anafórica, se não em todos os contextos
referenciais, pelo menos em contextos atributivos.
10
Cf. DONNELLAN, K. — Speaker Reference, Descripiions and Anaphora
in C OLE , P. (org.) Syntax and Semantics, 9, Londres, Academic Press, 1978,
pp. 47-68.
11
KAPLAN, D. — Quantifying in in DAVíDSON, D.; HINTIKKA, H. (org.)
Words and Objections, Dordrecht, D. Reidel, 1969, pp. 178-214.
12
SCHWARZ, D. — Naming and Refering, Berlim, de Gruyter, 1979.
13
WEINRICH, H. — The Textual Fuction of French Article, in CHATMAN
(org.) — Literary Style, Londres, 1971, pp. 221-240.
14
KLEIBER, G. — Problèmes de Reference: Descriptions Définies et
Noms Propres, Paris, Klincksieck, Paris, 1981.
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CADEIAS ANAFÓRICAS. QUE REFERÊNCIA ?
Nos casos das frases (1) e (2) não parece fundamentalmente
importante a referência identificadora do locutor (speaker referencé),
pois em certos contextos «o» forma, a seguir a um SN com «um»,
uma cadeia anafórica sem que a identificação seja cabal: pode não
importar que o locutor ou o interlocutor tenha identificado, ou possa
vir a identificar, o referente, para outro efeito que não seja o do
«language game» dialogai em curso. Basta a menção no discurso
(discourse referencé) para que o uso de «o» seja possível: a própria
enunciação, inscrita num determinado enquadramento socialmente
típico (frame), ou inerente à situação particular de comunicação,
restringe os possíveis referentes no sentido de se considerar que há
um único elemento adequado à comunicação em curso, quer se trate
do artigo no singular ou no plural, conforme esteja em causa um
conjunto de um só elemento ou vários, ou uma parte mereológica
de uma entidade massiva.
Observemos a propósito o exemplo:
(4) — Quero dar-lhe um livro de presente, mas o livro ainda
está por escolher.
Nem para o locutor é neste caso possível fazer referência
identificadora ao livro («um livro» está sob o escopo de um predicado
intensional, «quero») e, no entanto, o facto de mencionar um livro
autoriza-o, logo a seguir, a definitizar a referência, na medida em
que se considera haver, na frase onde comparece o SN indefinido,
circunstâncias de avaliação referencial suficientes para abertura da
cadeia anafórica com o artigo definido.
Outro tipo possível de cadeia anafórica, que acarreta problemas
específicos de ordem semântica e pragmática, é constituído por
frases como:
(5) — O João comprou ura livro. Este livro é de matéria
linguística;
(6) — Encontrei um amigo. Este amigo disse-me que [...];
(7) — Comi uma toranja. Este citrino é (era) ácido;
(8) — Deu-se um acidente na Avenida. Este acidente é o segundo
desta semana;
em que a cadeia anafórica se estabelece entre «um» e «este». Vale
a pena comparar com frases em que a retoma do SN de indefinido
se faz por meio de SN com artigo definido:
129
FÁTIMA OLIVEIRA
(5')— O João comprou um livro. O livro é de matéria
linguística;
(6') — Encontrei um amigo. O amigo disse-me que [...];
(7') — Comi uma toranja. O citrino é (era) ácido;
(8') — Deu-se um acidente na Avenida. O acidente é o segundo
desta semana;
e ainda frases como:
(9) — O Zé ia sendo atropelado por um carro e confirmou
que o carro ia a alta velocidade;
(9') — O Zé ia sendo atropelado por um carro e confirmou
que este carro passa todos os dias a alta velocidade.
Algumas teorias sobre os demonstrativos tratam-nos como
designadores rígidos15, como redutíveis ao sentido dos nomes do
que está presente para o locutor16 ou egocêntricos1T. No entanto, o
uso dos demonstrativos que aqui nos interessa é aquele em que
eles se integram em cadeias anafóricas, um uso diferente do de
puros demonstrativos. Contudo, o facto de esses demonstrativos apresentarem certa especificidade em relação ao artigo definido advém,
possivelmente, do comércio que eles têm com os dícticos puros. Se
compararmos as frases (5), (6), (7), e (8) com (5'), (6'), (7') e (8'),
respectivamente, verificamos que a comutação entre «este» e «o»
acarreta alterações semânticas e/ou pragmáticas. (5')> embora possível, apresenta algo que lembra o afrouxamento da coesão textual da
linguagem infantil, ao passo que a aceitabilidade de (5) está talvez
ligada a um certo efeito de oposição entre o livro recém-mencionado
e outros que poderia ter comprado; (6) e (7) parecem aceitáveis,
enquanto (6') e (7') não, salvo quando (7') tem o verbo da segunda
frase no pretérito perfeito, o que transforma a mais natural leitura
genérica dessa segunda frase com verbo no presente numa leitura
15
Cf. K RIPKE , S. — Naming and Necessity, in D AVIBSGN ; H ARMANN
(org.)—Semantics of Natural Languages, D. Reidel, 1972, pp. 253-355; trad.
francesa: La Logique des Noms Propres, Paris, Ed. Minuit, 1982, e em certa
medida K APLAN , D.—Dthat in C OLE , P., (org.) — Syntax and Semantics, 9,
pp. 221-244 e ainda KAPLAN, D.—Demonstratives, dactilografado, 1977, 99 p.
16
R USSELL , B., ob. cit.
17
F REGE , G., ob. cit.
130
CADEIAS ANAFÓRICAS. QUE REFERÊNCIA ?
semelfactiva, que se torna coerente com a do pretérito perfeito da
sua primeira frase.
(8') Tem uma aceitabilidade inferior à da sua contrapartida (8), mas essa aceitabilidade aumentaria na medida em que a
referência ao desastre se circunstancializasse mais.
(8") — Deu-se um acidente na Avenida, provocado por excesso
de velocidade, e que me horrorizou. O acidente é o segundo desta
semana.
Problemas semânticos análogos se levantam a propósito das
seguintes frases, em que as cadeias anafóricas se referem a nomes
massivos:
(10) — Bebi água do Luso. Esta água é muito leve;
(11) — Não como carne de porco. Esta carne faz-me mal;
(10') — Bebi água do Luso. A água é muito leve;
(II7) — Não como carne de porco. A carne faz-me mal.
É de notar a falta de co-referencialidade em (10') e (11')
como a de (7') que se relaciona com o facto de a retomada do nome
se poder fazer com um SN (simples em (7') e qualificado em (10')
e (110) que exprime um sobreconjunto em relação àquilo que
corresponde a ocorrência correspondente na 2.a frase. O demonstrativo em (7), (10) e (11) especifica o hiperónimo, de modo a reduzir
a sua extensão à do antecedente, tratando-se em (7) de designações
discretas e em (10) e (11) de designações massivas. Ora como opera
essa especificação? O demonstrativo parece operar de um modo
referencialmente mais directo do que o artigo definido, pois tem
como «repère» o contexto da enunciação embora não deixe de ser
um operador semântico (isto é, uma constante, ou invariante, semântica) a determinar uma dada vizinhança num espaço topológico dado
por evidência discursiva. Esta vizinhança, sendo mais básica do que
a de inclusão de conjuntos calculados em intensão (deveria antes
dizer-se do que o cálculo de predicados, mesmo unário), permite
uma alternativa entre o cômputo meramente topológico designatório
(o dos demonstrativos) e o cômputo predicativo inerente ao sistema
nominal, com a cabeça de nome de cada SN mais ou menos rodeada
de predicados adjectivais, incluindo orações relativas, sintagmas prepositivos, etc. que permitem determinar a referência. O artigo definido
131
FÁTIMA OLIVEIRA
(não-genérico) em cadeia anafórica é a conclusão de cálculo de
predicados, quando o tipo do predicado verbal (especialmente se
semelfactivo) e o grau de circunstancialização, ou qualificação, permitem a candidatura de um nome à sua exportação em cadeia
anafórica. Daí que em (9') este seja mais aceitável do que o, pois
se dá uma alteração do aspecto que em (9) não se verifica. O problema
que estamos a abordar é em grande parte o dos parâmetros que
permitem essa exportação catofórica «definida», em geral, e concretamente em português. Nos casos em que tal exportação não é
possível (por falta de suficiente densidade referencial predicativa),
então entra em funções o sistema operatório referencial mais básico
dos demonstrativos. Acrescente-se, no entanto, que muitas vezes a
própria situação imediata fornece as condições de avaliação e por
isso se diz:
(12) — Atenção ao carro
e não:
(13) — Atenção a este carro.
Se apenas, na linha de Kaplan/Kleiber, se fala em referência
directa marcada pelos demonstrativos em oposição à referência relativamente mais indirecta do artigo definido, é por, no caso dos artigos
definidos, se tratar de uma definitização dada pelo conhecimento do
mundo (unicidade de a Lua), pelo carácter sistémico de um frame
de práxis social (a bilheteira do teatro), ou como no caso aqui
exposto por um co-texto muito circunstancializado, nomeadamente
um pré-texto (é caso do (8), sobretudo se se especificar mais (8'")
«Houve um acidente horrível na Avenida da Boavista, devido a uma
imprudência. O acidente é o segundo desta semana no mesmo local»),
enquanto que para o demonstrativo a referência é feita a partir da
própria enunciação. Isto significa que, em cadeia anafórica, a referência feita pelo artigo definido é avaliada em função dos circunstanciais considerados e apenas esses. Por isso, em certas cadeias, a
anáfora se perde ou a presença do artigo definido obriga a saltos
de abstracção aplicados ao mesmo nome. O demonstrativo, por seu
turno, efectua um contrato referencial a partir do contexto de enunciação, sendo esse contrato renovado em função de novos actos de
enunciação, independentemente da circunstancialização fornecida
132
CADEIAS ANAFÔR1CAS. QUE REFERÊNCIA ?
anteriormente. Nesta medida o operador semântico que enquadra a
variabilidade referencial de cada demonstrativo evidencia-se pela
necessidade de correlação díctica regular quando da passagem do
discurso de um enunciador ao seu relato por outro enunciador (os
contrastes paradigmáticos do tipo este/esse/aquele), em que o novo
enunciador primário adapta as suas próprias coordenadas dícticas às
do discurso relatado.
Porém, como se trata de cadeia anafórica, o demonstrativo
continua a usar-se mesmo quando o sujeito è da 3.a pessoa (e não
da l.a) e quando as coordenadas espácio-temporais e outras apresentam valores remotos relativamente à situação de enunciação:
(14) — Os Gregos bebiam pouco vinho. Esta bebida era mais
cara e rara e mais ou menos ritual.
Em (14), a substituição de esta por a conduz a uma alteração
do grau de abstracção e ao desfazer da cadeia anafórica, verificando-se
o mesmo se fosse o vinho.
Ora, a co-referência definitizadora por artigo ou demonstrativo
deve ser estudada tendo em vista não apenas as relações conjuntivas
ou mereológicas (estas, em especial quanto aos massivos) entre os
denotata, como as relações (estudadas por Carlson18), entre nomes
que, no texto dizem respeito a fases (ou facetas) individuais, a indivíduos ou a espécies naturais. Vejamos os seguintes exemplos:
(15) — Fui arranhado por um gato. Os gatos são felinos.
(16)— »
»
» »
» O gato é um felino.
(17)— »
»
» »
» Este gato é um felino.
(18) — »
»
» »
» O gato fugiu logo.
(19) — Gosto de melão. Este fruto é aromático.
(20) — Comi ontem melão. O fruto era muito aromático.
Qualquer das seis sequências pode ler-se como texto coerente,
mas essa coerência supõe relações semânticas diferentes, que se relacionam obviamente com as respectivas definitizações. Em (15) e (16),
enquanto a l.a frase se refere a um indivíduo (como o SN é indefinido,
está excluída a leitura do acto de arranhar como tendo como agente
18
Cf. CARI£ON, G.—A Unified Analysis of The English Bare Plurais
in «Linguistics and Philosophy», I, 1977, pp. 413-457.
133
FÁTIMA OLIVEIRA
um stage, ou fase, de dado animal), a 2.a frase diz respeito à espécie
dos gatos, quer no plural quer no singular. (17) pelo contrário não
permite uma passagem de indivíduo a espécie. Em (18) trata-se de
um espécime da classe dos gatos que aparece como suficientemente
individualizado para ser referido como entidade pública para efeito
da comunicação em curso. O carácter semelfactivo de (18) facilita
essa definitização por intermédio de artigo, embora o acréscimo de
circunstancialização proporcionasse uma maior aceitabilidade. A aparente semelhança de (19) e (20) mascara um problema semântico.
Em (19) «melão», com o artigo zero, tanto pode ser interpretado
intensionalmente como a extensão universalmente quantificada.
O demonstrativo subsequente do SN «este fruto» assinala, de qualquer modo, uma espécie de fruto cuja designação é definitizada, sendo
porém discutível se o predicado «aromático» se refere à espécie ou
(por postulado de sentido) a qualquer dos respectivos espécimes:
a l.a leitura é mais natural em coerência com o adjectivo, embora a
cópula «é» aponte para uma leitura gnómica, sobretudo se atendermos
ao carácter genérico que o verbo «ser» mantém em português em
contraste com «estar». Em (20), o só permite cadeia anafórica se o
verbo estiver no passado, pois, caso contrário, desfaz-se a cadeia.
É curioso observar as variantes deste exemplo:
(20') — Este fruto é muito aromático.
(20") — »
» era muito aromático,
na medida em que a anáfora se mantém, quer se trate ou não da
passagem de indivíduo a espécie, apesar do hiperónimo.
O que estes exemplos parecem sugerir é que há qualquer coisa
de irredutível na intuição de que os demonstrativos trazem consigo
uma força de deixis relativamente imediata, lançando um repto aos
esquemas de lógica intensional aplicada à semântica linguística.
O que nos parece agora mais evidente é que o tipo de referência
estabelecido pelos definidos e pelos demonstrativos é diferente, aproximando-se estes através de uma designação mais directa, dos nomes
próprios sem que, no entanto, se possam confundir com eles, na
medida em que, através do seu funcionamento, podemos observar
que não é possível formalizar todo o sentido de uma frase em termos
de índices de extensionalização.
Perante esta impossibilidade (ou limite), certos semanticistas
propõem um tratamento não-intensional para os dícticos como faz
134
CADEIAS ANAFÓRICAS. QUE REFERÊNCIA ?
Kaplan19 para o demonstrativo inglês «that». Sob a forma convencional «dthat», Kaplan regista uma função desse demonstrativo que
consistiria, não em assinalar uma posição vazia a ligar por dado
valor de uma dada variável, mas consistiria em propiciar a percepção
de algo de único, como o objecto a que aponta o nome próprio, ou
seja, uma designação própria rígida, um objecto sempre idêntico
através de todas as alternativas que se imaginem para a situação real
de nomeação.
Dos exemplos aqui tratados, algumas conclusões nos parecem
possíveis. Para o estudo da referência em cadeia anafórica é não só
relevante a Ia frase, pois ela pode fornecer ou não as circunstâncias
que permitem avaliar o valor do determinante, mas também toda a
2.a frase 20, em que o artigo ou o demonstrativo surgem. Importante
é, também, ter em conta o aspecto.
Diríamos, assim, que a deixis mais ou menos imediata (ou
imediatizada) e a nomeação própria não poderiam funcionar sem o
apoio de conectores, operadores, itens lexicais, descrições, definições,
e de outras regras, como precisamente aquelas que (melhor ou pior)
estruturam os sistemas de operadores dicticos em termos de discursos
que relatam e modulam outros discursos, de cadeias anafóricos, de
conexões por concordância sintáctica entre o léxico e tais operadores
(nomeadamente este, esse, aquele), de enquadramento de práxis social
(frames), etc.
Como é evidente, muito fica por dizer, nomeadamente sobre
a relação destes demonstrativos com a deixis veiculada por eles, a
relevância do aspecto, o tipo de predicação, a relação tema/rema,
as cadeias anafóricas com uma coordenação na primeira frase, etc.
Pensamos, no entanto, que, de uma forma muito limitada, expusemos
questões de algum interesse para o estudo dos mecanismos de processamento da referência linguística.
Fátima Oliveira
19
K A P L A N , D., ob. cit., 1978.
K LEIBER , G.—Adjectif Démonstratif et Article Defini en Anaphore
Fideie, comunicação apresentada ao Colóquio «Les Déterminants», Metz, 1984.
20
135