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Pos-Verdade: O que vale realmente ?

2019, Somanlu - Revista de Estudos Amazônicos

Se você não se pode dar ao luxo de perder tempo, Nunca encontrará a verdade Yuval N. Harari (2018) Resumo O texto foi baseado em duas situações. A primeira é a de um convite para reflexão sobre a temática das fake news, muito em voga no presente momento. A outra questão foi que os autores do manuscrito, participaram de um evento acadêmico, como ouvintes e puderam tirar dali inúmeras ideias para a construção dessa pequena ponderação que partilhamos e compartilhamos neste dossiê. Lembramos que a temática, debatida por nós nos escritos que seguem, está sendo analisada por inúmeros autores, pesquisadores e exegetas de diferentes matizes políticas e ideológicas, na atual conjuntura planetária. Esse fato se deve aos mais recentes acontecimentos, relacionados com algumas eleições, presidenciais, em países ditos democráticos, mas que apresentam alguns indícios de usos de informações mentirosas em suas campanhas para os pleitos que disputaram, sejam eles no continente americano ou no europeu, mais precisamente. Nos baseamos em autores que flertam, especialmente, com preocupações dos direitos humanos, justiça social e contra todas as formas de preconceito. Temas que infelizmente informações mentirosas, como as fake news, contribuem para ampliar. A contemporaneidade nos traz uma discussão urgente: a Pós-Verdade. Essa prática, já tão conhecida nos debates políticos, hoje se apresenta com uma nova roupagem, uma nova nomenclatura, a fake news. Desta maneira, consideramos importante contribuir para uma nova ressignificação do conceito daquilo que devemos realmente considerar nas discussões políticas/sociais, a ética da verdade. Entender o fenômeno da pósverdade nos faz, de certa maneira, melhor preparados para está nova realidade, onde as verdades e as mentiras são construídas por meio de um jogo de interesses. Palavras chave: fake news, pós-verdade, política. 1. O porquê do texto ou de onde surgiu a ideia? O presente escrito está relacionado com um convite que recebemos de uma colega de longa data, que é a

SOMANLU: Revista de Estudos Amazônicos – UFAM ISSN (impresso): 1518-4765 / ISSN (eletrônico): 2316-4123 ANO 19, nº 1, Agos./Dez. 2019 PÓS-VERDADE: O QUE VALE REALMENTE? Ana Cristina Alves Balbino Michel Justamand Se você não se pode dar ao luxo de perder tempo, Nunca encontrará a verdade Yuval N. Harari (2018) Resumo O texto foi baseado em duas situações. A primeira é a de um convite para reflexão sobre a temática das fake news, muito em voga no presente momento. A outra questão foi que os autores do manuscrito, participaram de um evento acadêmico, como ouvintes e puderam tirar dali inúmeras ideias para a construção dessa pequena ponderação que partilhamos e compartilhamos neste dossiê. Lembramos que a temática, debatida por nós nos escritos que seguem, está sendo analisada por inúmeros autores, pesquisadores e exegetas de diferentes matizes políticas e ideológicas, na atual conjuntura planetária. Esse fato se deve aos mais recentes acontecimentos, relacionados com algumas eleições, presidenciais, em países ditos democráticos, mas que apresentam alguns indícios de usos de informações mentirosas em suas campanhas para os pleitos que disputaram, sejam eles no continente americano ou no europeu, mais precisamente. Nos baseamos em autores que flertam, especialmente, com preocupações dos direitos humanos, justiça social e contra todas as formas de preconceito. Temas que infelizmente informações mentirosas, como as fake news, contribuem para ampliar. A contemporaneidade nos traz uma discussão urgente: a Pós-Verdade. Essa prática, já tão conhecida nos debates políticos, hoje se apresenta com uma nova roupagem, uma nova nomenclatura, a fake news. Desta maneira, consideramos importante contribuir para uma nova ressignificação do conceito daquilo que devemos realmente considerar nas discussões políticas/sociais, a ética da verdade. Entender o fenômeno da pósverdade nos faz, de certa maneira, melhor preparados para está nova realidade, onde as verdades e as mentiras são construídas por meio de um jogo de interesses. Palavras chave: fake news, pós-verdade, política. 1 . O porquê do texto ou de onde surgiu a ideia? O presente escrito está relacionado com um convite que recebemos de uma colega de longa data, que é a Professora Doutora Lilian Marta Grisolio Mendes, da Universidade Federal de Goiás – UFG, lotada no Instituto de História e Ciências Sociais – IHCS, campus de Catalão. Mendes foi a incentivadora da nossa pesquisa e, consequentemente, da escrita desse texto sobre a temática da Pós-Verdade. Em nome da pesquisa desse assunto nos debruçamos sobre algumas bibliografias que não tínhamos contato em nossas formações e, por esse motivo, nós atualizamos e ~ 18 ~ SOMANLU: Revista de Estudos Amazônicos – UFAM ISSN (impresso): 1518-4765 / ISSN (eletrônico): 2316-4123 ANO 19, nº 1, Agos./Dez. 2019 entramos em contato com autores que discutem o objeto. Além de pesquisarmos em livros, artigos e periódicos – como os leitores poderão comprovar - participamos de um evento na Universidade de Campinas – UNICAMP, intitulado Seminário “PósVerdade”, ocorrido em 11 de setembro de 2018, no Centro de Convenções da Instituição. Evidente que o tema desperta a necessidade de entender o fenômeno que sempre existiu, mas que agora traz um novo elemento fundamental para sua disseminação, as redes sociais. Ali tomamos conhecimento de uma vasta gama de autores que estão a se debruçar também sobre a questão da Pós-Verdade. Dentre eles estão Michel Foucault e Friedrich Nietzsche que apresentam significativas contribuições que trataremos a seguir. Mas no seminário houve a explanação de uma gama interessante de pesquisadores e comentaristas da temática na atualidade, entre eles Eugênio Bucci, Pablo Ortellado, José de Souza Martins, Laura Capriglione. Esses autores apresentam contribuições em nosso pequeno trabalho. Assim, vejamos queridas e queridos leitores se conseguimos retribuir, a altura da nossa colega Mendes, o convite feito para que transformássemos nossas ideias sobre a Pós-Verdade em conteúdo palpável... 2 . Nossos desdobramentos Vivemos um momento onde todos consideram que tem a “verdade”, são donas (os), sem a possibilidade de questionamentos. Hoje a sociedade vive um período em que as “certezas” são irremediáveis, relações humanas marcadas pela “minha razão”. As eleições presidenciais de 2018 no Brasil são um retrato vivo da Era da “Pós-Verdade”, onde as chamadas fake news, entende-se como fake news notícias falsas, que ganharam força na era digital, por conta da velocidade em que elas se propagam via redes sociais, criando uma relativização sobre o conceito de verdade construíram a verdade que todos possuíam. As fakes acabaram contribuindo para o surgimento de outro conceito, o da Pós-Verdade, que pode ser definida, por exemplo, quando as pessoas desistem de discernir o que é verdade e o que é mentira. Não estamos aqui para decidir o que é a verdade, mas sim contribuir ~ 19 ~ SOMANLU: Revista de Estudos Amazônicos – UFAM ISSN (impresso): 1518-4765 / ISSN (eletrônico): 2316-4123 ANO 19, nº 1, Agos./Dez. 2019 no debate acerca das chamadas fakes, ou seja, como somos capazes de construir e disseminar mentiras. O próprio conceito de verdade se tornou algo difícil de definir na sociedade moderna, principalmente naquelas onde existem inúmeros resquícios de governos ditatoriais e ainda apresentam democracias não consolidadas, tais como países da América Latina, África, leste europeu e regiões da Ásia. Não que em países considerados “desenvolvidos”, verdade seja algo que não sofra ataques, ou seja, desconsiderada, visto que as próprias justificativas do governo estadunidense de George Bush a respeito das armas nucleares no Iraque. Mas o fato é que em países onde existe uma fragilidade democrática as populações sofrem com o jogo de informações. “Verdade é uma daquelas palavras que do ponto de vista estético passou por forte corrosão semântica, sendo hoje tão imprecisa quanto tormentosa” (SAMPAIO, 2009, p. 249). A verdade torna-se algo fundamental para a formação das identidades individuais e coletivas. Algo que as sociedades passam por constantes ameaças, pois, algumas vezes, a verdade é ameaçada por indivíduos, ou grupos que almejam determinados interesses geralmente políticos/econômicos. Desta maneira, nesse momento a “construção das identidades é posta em risco” (SAMPAIO, 2009). A discussão sobre conceitos de verdade e mentira estão presentes nos debates acadêmicos a muito tempo. Foucault e Nietzsche já o faziam um no século XX e outro no XIX, respectivamente. Os dois autores tinham em comum pensar que estamos envoltos e relacionados em nossas sociedades, permanentemente, com questões de controle e vigilância. Lembram que as pessoas, fortemente influenciadas por seu meio, deixam de se importar se o conteúdo/informações são verdadeiros (as) ou não. Isso graças a situação de que a informação é dita e tratada como mercadoria intercambiável. Mas hoje, o tema da pós-verdade está mais do que nunca num debate acalorado. Até onde a onda de fake news será levada? A busca pelo poder, por meio de fakes traz resultados pragmáticos em questões políticas, visto os governos eleitos de Donald Trump nos Estados Unidos, e o de Jair Bolsonaro, no Brasil. As falas dos dois presidentes, podem ser comparadas em vários aspectos (FOLHA.UOL 2018; EM.COM. 2019), e pelos discursos, que agradam parte do eleitorado, assim lembramos dos estudos de Hannah Arendt, ou seja, percebemos o homem como um ser político (ARENDT, 1995), pois suas ~ 20 ~ SOMANLU: Revista de Estudos Amazônicos – UFAM ISSN (impresso): 1518-4765 / ISSN (eletrônico): 2316-4123 ANO 19, nº 1, Agos./Dez. 2019 palavras devem ser escutadas e entendidas como verdades absolutas. Essa é uma característica fundamental da nossa espécie, o convencimento por meio de falas prontas. Mentiras forjadas buscam interesses variados, todavia em sua maioria, apresentam um viés econômico e a busca pelo poder. Ao mesmo tempo devemos lembrar que o fenômeno das fake news é antigo, comum nas áreas da Comunicação e da Política. Ele apenas se destaca hoje da maneira como nos aparece por, possivelmente, e mais uma vez na História7, emergir personagens de cunho fascista, segundo nossa leitura de mundo, como os governos brasileiro e estadunidense, considerando ainda, a questão do protagonismo das redes sociais8. Esse modelo de construção da mentira tem suas bases frágeis e rasas, e não resistem a uma apuração aprofundada. Sua construção e objetivo é o que Nietzsche chama de “a busca do espetáculo” (NIETZSCHE, 2007). Observando as últimas eleições presidenciais no Brasil percebemos bem o sentido desta afirmação. Uma corrida eleitoral marcada pelo uso intenso e exagerado de mensagens via redes sociais. A vitória de Jair Bolsonaro é apontada como sintoma dessa prática tão antiga: a construção da “verdade mentira”, a Pós-Verdade. Ao tratarmos de fakes não podemos deixar de fazer referência a política de construção do Nacional-Socialismo alemão, o Partido Nazista. Joseph Goebbels, ministro da propaganda do governo hitlerista, acabou sendo o grande guru moderno desse segmento quando é atribuída a ele a frase: “uma mentira dita um vez continua uma mentira, mas uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”. A prática tornou-se tão bem sucedida que foi incorporada não apenas por políticos, mas também por empresas para vender seus produtos. Segundo Harari “...você não será capaz de organizar com eficiência grandes massas sem se apoiar em alguma mitologia. Se ficar preso à realidade crua, poucas pessoas o seguirão.” (HARARI, 2018, p. 296). Para o autor, as pessoas perdem mais tempo tentando controlar o mundo, do que tentando compreendê-lo, preferem o poder, e não a verdade, “uma vez mentira, 7 Fazemos referência aos governos de Benito Mussolini, na Itália (1922-45) e de Adolf Hitler, na Alemanha (1933-45), entre tantos outros na História. 8 “Um estudo publicado em março pela revista Science ajuda a entender como esse ímpeto pela fraude funciona na rotina da rede mundial de computadores e quais suas motivações. A pesquisa identificou 126 mil histórias inverídicas compartilhadas por três milhões de vezes pelo Twitter, entre 2006 e 2017, e constatou que a probabilidade de compartilhamento de uma notícia falsa é 70% maior do que o de uma notícia verdadeira. O impulso para multiplicar o alcance de inverdades pode ser compreendido, pelo menos em parte, porque elas são mais atraentes ao leitor por serem mais divertidas, curiosas ou improváveis” (UNICAMP, 2018). ~ 21 ~ SOMANLU: Revista de Estudos Amazônicos – UFAM ISSN (impresso): 1518-4765 / ISSN (eletrônico): 2316-4123 ANO 19, nº 1, Agos./Dez. 2019 sempre verdade” (HARARI, 2018, p. 293). A história é contata pelos vencedores, e se ninguém contestar, a história inventada, se torna verdade. Ditaduras, governos autoritários criam sua própria “noção de verdade” (D`ANCONA, 2018). A democracia no Brasil ainda é algo em construção, e com os recentes desdobramentos políticos observamos como é frágil e vulnerável. A democracia só estará consolidada quando novos personagens forem incorporados à seu sistema, e podemos afirmar que sua existência está em risco no Brasil, visto os atuais discursos de ódio e segregacionistas, numa “democracia exclusiva e excludente” (DUNKER, 2019). Para Christian Ingo Dunker a nova configuração da sociedade mundial, com a experiência digital aproximou pessoas, formando grupos com ideias em comum, mas ao mesmo tempo alimentou o anonimato, como por exemplo, os perfis falsos e algoritmos. A expansão de nossa democracia fez com que um maior número de pessoas tivesse acesso às redes sociais, surgiram novas comunidades, influenciadores digitais, uma nova hierarquia simbólica. Ainda segundo o autor, nosso avanço democrática na identificação e reconhecimento de novos sujeitos, fez com que surgisse o medo da perca dos privilégios em determinados grupos, tais como ricos fazendeiros e empresários, resultando assim no golpe de 2016. O sentimento de posse estava demais ameaçado, e um discurso individualista, e a meritocracia passaram a ser defendidos por esses indivíduos. O impulso para a luta de prestígio e de distinção cria uma espécie de negação da democracia recém-alcançada. Por isso o bolsonarismo capitou ao mesmo tempo o sentimento social contra intelectuais, artistas e políticos, e o desejo de retorno a uma elite mais antiga, como o Exército, combinada com uma nova elite moral formada por pastores neopentecostais. (DUNKER, 2019, p. 124-5) As práticas e discursos dos grupos em ascensão com eleição de Bolsonaro, é o de negar direitos àqueles excluídos da democracia, tais como gays, negros, feministas, ou seja, naquilo que podemos chamar de democracia exclusiva. Além disso, também fazem parte de suas pautas a intolerância, discursos de ódio e a violência por meio da defesa das armas e da militarização da sociedade. A questão do armamento está enraizado numa prática comum à regimes autoritários, e aqui podemos afirmar que o governo Bolsonaro traz características autoritárias, onde a ~ 22 ~ SOMANLU: Revista de Estudos Amazônicos – UFAM ISSN (impresso): 1518-4765 / ISSN (eletrônico): 2316-4123 ANO 19, nº 1, Agos./Dez. 2019 violência é terceirizada, quando, por exemplo, o presidente afirma que não serão punidos fazendeiros que atirarem em pessoas que entrarem em suas propriedades (G1 – Globo 29/04/2019). Os governos do Partido dos Trabalhadores – PT (entre Lula de 2003 a 2010 e de Dilma de 2011 a 2016), apesar das críticas que podemos elencar, tais como a ausência de uma reforma agrária e bancária, só para citar alguns exemplos, trouxeram, com seus projetos, algumas conquistas àqueles que não tinham acesso a questões básicas, tais como vagas em universidades públicas, a chance da casa própria, o aumento real do salário mínimo, a inclusão por meio de cotas e a Bolsa Família. Mas o que de mais significativo que os governos do PT proporcionaram foram as conquistas dos movimentos sociais, no sentido de que novos sujeitos passassem a disputar o espaço público, numa sociedade extremamente patrimonialista. Assistir a negros, domésticas, mulheres e grupos LGBTs terem acesso ao que sempre fora negado, foi considerado uma ameaça aos considerados “valores tradicionais” brasileiros. A derrubada deste modelo de governo, mesmo com suas limitações, era mais do que necessários, e as fakes foram um forte mecanismo para o sucesso da extrema direita nas eleições de 2018. Em um seminário na Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Paula Cesarino Costa citou um artigo publicado na revista Science, onde o texto afirma que as notícias falsas se espalham 70% mais que as verdadeiras, porque são mais atraentes e as redes sociais, que alimentam essas notícias, são mais acessadas e resultam em lucro, pois quando não apresentam um interesse econômico/político diretamente, são acompanhas, pelas redes sociais, de propagandas de empresas. O acesso a essas notícias propiciam a visualização de determinadas marcas9. As fakes são falsas por conta da maneira de como são apresentadas, ou seja, a matéria em pauta pela mídia, por exemplo, é transmitida de maneira deturpada, com o objetivo de aumentar a audiência, ou ainda, por haver interesses econômicos/políticos de determinado (s) grupo (s). A forma como ocorre a falsificação do discurso jornalístico, hoje, é uma novidade, um modo de produção baseada nos tentáculos das mídias sociais, mídias essas que desgastam a política e afetam a democracia. Evidente que todo aquele que lança mão de uma notícia falsa, 9 Seminário “Pós-Verdade”, 11 de setembro de 2018, Centro de Convenções da Unicamp. ~ 23 ~ SOMANLU: Revista de Estudos Amazônicos – UFAM ISSN (impresso): 1518-4765 / ISSN (eletrônico): 2316-4123 ANO 19, nº 1, Agos./Dez. 2019 mesmo sendo um profissional da área do jornalismo, defende posicionamentos políticos, e por vezes, com interesses econômicos. Nada disso nos soa estranho, o período da Ditadura Civil-Militar no Brasil (1964-85), está repleta de fakes. Um olhar não muito apurado sobre a imprensa da época nos faz perceber rapidamente, como a mentira era disseminada. Diário de Notícias Na matéria do Diário de Notícias, de 13 de janeiro de 1970, o jornal afirma que “terroristas” contratavam pessoas “comuns”, que eles chamam de “simples marginais, autênticos marginais” para praticarem atos subversivos em troca de dinheiro, o texto ainda diz que o governo cubano estaria lucrando com as ações “terroristas”, pois quando os bancos eram assaltados, os comunistas fugiam para Cuba, e levavam todo o dinheiro adquirido para a ilha caribenha. Observamos desta maneira, que as notícias falsas são característica comum à época, onde desqualificar a resistência ao regime civil-militar se mostrava extremamente necessário. Jornais e revistas que não se submetiam ao governo eram fechados e os jornalistas perseguidos, contudo aqueles que aceitavam e apoiavam o regime, nas palavras de Álvaro Nunes Laranjeira, eram “cão de guarda do sistema e capitã do mato da ditadura” (LARANJEIRA, 2014). No Brasil as fakes sempre estiveram em nossa História10. O período da ditadura civil-militar é marcado pela falta de comprometimento com a verdade por parte da mídia (no que se refere aos veículos que apoiaram o regime), mas 10 Para Harari, a Pós-Verdade surge com a própria existência humana, sendo, por exemplo, a própria formação dos mitos (narrativas ficcionais), com o objetivo de unir os coletivos humanos, e a partir daí obedecermos às leis e, assim surgir uma rede de cooperação. Narrativas religiosas, por exemplo, são fakes que duram para sempre. (HARARI, 2018) ~ 24 ~ SOMANLU: Revista de Estudos Amazônicos – UFAM ISSN (impresso): 1518-4765 / ISSN (eletrônico): 2316-4123 ANO 19, nº 1, Agos./Dez. 2019 principalmente por parte do governo militar, campeão na disseminação de notícias falsas. O próprio golpe teria sido a tentativa de evitar que um governo “comunista” se instalasse no poder, ou ainda, que grupos cubanos e chineses estivessem apoiando o governo João Goulart, para a futura tomada do poder e a implantação de um governo de esquerda. A imprensa, apoiadora do regime, era “responsável” pela construção de exageros em torno da ideia de terrorismo. Numa passada rápida pelos editorias, nos últimos 50 anos, é possível observar essa prática com certa regularidade. Não que a democracia esteja livre de fakes, ao contrário, mas o fato é que em ditaduras a mentira irá encontrar campo fértil para ser disseminada. A construção de uma mentira pode torná-la absoluta por anos, ou até mesmo se consolidar por toda a História. A memória acaba contribuindo para perpetuar uma inverdade. Por exemplo, na década de 30 houve uma intensa campanha, durante o governo do presidente Getúlio Vargas (1930-45), contra comunistas e anarquistas. Pessoas eram perseguidas em nome da manutenção do sistema vigente. Esta campanha foi alimentada por governos seguintes como o de Eurico Gaspar Dutra (1946-51) e na ditadura civil-militar (1964-85). O ideário popular era de que comunismo era algo ruim, nocivo à sociedade. Nossos avós não viam com bons olhos pessoas que se auto afirmavam comunistas ou anarquistas, sendo tachados de agitadores e baderneiros. Desta maneira, torna-se fundamental o trabalho de profissionais das várias áreas das Ciências Humanas e Sociais e dos Movimentos Sociais, em trazerem o debate sobre Memória e Verdade, dois temas que devem estar juntos em suas definições e discussões, principalmente em sociedades que conheceram práticas de governos autoritários, pensamos diferentemente do que tem sido propagandeado pelo governo Bolsonaro. Para Alessandro Portelli, a luta pela manutenção da memória e seus significados elucidam a História. (PORTELLI, 2008). A própria memória sobre nosso último período ditatorial nos faz levar a este questionamento. Quando vários grupos, inclusive de oposição, apoiaram o silêncio sobre as atrocidades cometidas no período. Afirmavam que a transição democrática era muito traumática e que as feridas precisavam ser fechadas. A transição, desta maneira, foi a imposição do silêncio. “...embora despontassem questionamentos, prevaleceu, em escala social, um denso silêncio sobre os anos da ditadura” (REIS, 2019). Ainda segundo o autor, nossa omissão e silêncio geraram custos, podemos ~ 25 ~ SOMANLU: Revista de Estudos Amazônicos – UFAM ISSN (impresso): 1518-4765 / ISSN (eletrônico): 2316-4123 ANO 19, nº 1, Agos./Dez. 2019 afirmar, por meio dessa reflexão, que o resultado é a ascensão da extrema direita em nosso país. E apesar dos avanços no campo democrático, as forças progressistas brasileiras não foram capazes de articular um futuro político, elas próprias ficaram num jogo de disputa que nada contribuiu para conter avanços conservadores e reacionários. Podemos observar que, com o passar do tempo, as fakes apenas se aprimoraram, hoje elas afetam um maior número de pessoas por conta do poder e da rapidez das redes sociais. Nas palavras de José de Souza Martins “é o tempo curto do falso”. Segundo ele, além das mídias, a ascensão de igrejas neopentecostais apenas alimenta as inverdades a partir do momento que estas despolitizam a política e politizam a religião, numa transformação da religião em partido político11. Evidente que as religiões sempre tiveram seu papel na política, influenciando decisões e rumos a serem tomados, entretanto o atual cenário se mostra despido de qualquer senso de ética e/ou moralidade religiosa. Transformar a religião em política ou em partido político reflete um poder influenciador enorme desses grupos, pois os fiéis não questionam as decisões tomadas, aos nossos olhos, aparentemente, apenas acatam. Em alguns casos já está dada essa situação, há partidos sociais cristãos ligados aos setores evangélicos da sociedade nacional que detém forte porte de decisão nos vários setores políticos, seja municipais, estaduais ou federais, a chamada Bancada Evangélica. Martins indica que essas ações acabam permitindo que a religião, ou essa forma de religiosidade evangélica que vem crescendo no país, tenha influencia em todos os espaços governamentais. Ao mesmo tempo que se deve combater as fakes, também é necessário tomarmos cuidado para não criarmos uma rede de censura. Muitas questões conceituais estão relacionadas à subjetividade e, apesar de sermos contrários a certos posicionamentos, eles devem estar no debate para que haja inclusive uma contribuição nas argumentações e formação de ideias. Hoje todos podem falar, as redes sociais são um leque para muitas vozes, isto faz com que por meio da tela do computador ou smartphone, pessoas que se calam diante dos debates sociais em seu convívio, interajam e opinem por trás das telas. Por outro lado, aumenta o número de pessoas que debatem e/ou opinam sobre determinado assunto. As redes sociais também acabam sendo refúgio para 11 Seminário “Pós-Verdade”, 11 de setembro de 2018, Centro de Convenções da Unicamp. ~ 26 ~ SOMANLU: Revista de Estudos Amazônicos – UFAM ISSN (impresso): 1518-4765 / ISSN (eletrônico): 2316-4123 ANO 19, nº 1, Agos./Dez. 2019 aqueles que encontram ali o lugar para não serem identificados, ao menos imaginam isso. Assim disseminam fakes propositalmente afim de atingirem determinado alvo. Nossa sociedade valoriza reações extremas, e por isso, ações violentas e antiéticas fazem tanto sucesso nas redes sociais. Para Jacqueline Quaresemin existe uma crise do humanismo, as mídias nos inseriram em uma nova realidade, onde o homem não é o centro, mas a máquina12. As pessoas e os veículos de imprensa são aqueles que mais alertam sobre as inverdades, no entanto também são aqueles que mais as disseminam. Para Anne Caroline Lima e Jaime Aquino Alencar: Expostos a uma mídia que cultiva o pensamento único, os brasileiros não têm essa opção. Não encontram uma segunda opinião para acreditar, visto que a prática basilar do jornalismo, de sempre ouvir o “outro lado” nos assuntos apurados, faz tempo que entrou em desuso por aqui. (LIMA; ALENCAR, 2019) Assim como na década de 70, quanto nos dias de hoje, a imprensa tem se tornado a maior divulgadora de fakes. Ao observarmos as justificativas da importância da Reforma da Previdência, por exemplo, vemos nos telejornais entrevistados (ditos especialistas) afirmarem a necessidade de reforma ou o país “quebra”. Afirmações estas que não condizem com o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI da Previdência, de outubro de 2017: O documento alega haver inconsistência de dados e de informações anunciadas pelo Poder Executivo, que "desenham um futuro aterrorizante e totalmente inverossímil”, com o intuito de acabar com a previdência pública e criar um campo para atuação das empresas privadas. Segundo o relatório da CPI, as empresas privadas devem R$ 450 bilhões à previdência e, para piorar a situação, conforme a Procuradoria da Fazenda Nacional, somente R$ 175 bilhões correspondem a débitos recuperáveis. (SENADO, 2017) A expressão pós-verdade se embrenha nos vocabulários da política e do jornalismo. As eleições em todo o globo tem se tornado campo fértil para essa nova velha prática13. As fakes seriam uma falta de compromisso com a verdade. “A busca 12 Seminário “Pós-Verdade”, 11 de setembro de 2018, Centro de Convenções da Unicamp. “A “pós-verdade” despontou para a fama graças ao Dicionário Oxford, editado pela universidade britânica, que anualmente elege uma palavra de maior destaque na língua inglesa. Oxford definiu a acepção e mostrou a evolução do termo, observando que ele não foi cunhado neste annushorribilis da história humana, mas seu uso cresceu 2.000% nele.” Revista Carta Capital, 13/01/2017.Ainda segundo a matéria o termo teria sido usado 13 ~ 27 ~ SOMANLU: Revista de Estudos Amazônicos – UFAM ISSN (impresso): 1518-4765 / ISSN (eletrônico): 2316-4123 ANO 19, nº 1, Agos./Dez. 2019 da ‘imparcialidade’ na veiculação de notícias com frequência cria um falso equilíbrio, à custa da verdade”, afirma The Economist (LIMA; ALENCAR, 2019). A tradição entre os seres humanos na mentira nos tornou especialistas no assunto. Ela está presente em praticamente todas as situações de nossa existência: se somos populares, se estamos com nossa autoestima ameaçada, se estamos com medo, se queremos demonstrar força/poder. A mentira está enraizada e consolidada nas sociedades humanas, sua banalização faz com que pensemos “é apenas uma mentirinha inocente...”, o falso não nos surpreende. A mentira do outro é abominável, a minha desculpável. E assim como nos afirma Ralph Keyes, perdemos a sensibilidade de percebermos uma mentira (KEYES, 2018). Ainda segundo o autor, “... pessoas inteligentes que somos, apresentamos razões para manipular a verdade, de modo que possamos dissimular sem culpa. Eu chamo isso de pósverdade. Vivemos numa era da pós-verdade.” (KEYES, 2018, p. 20). O essencial acaba parecendo ser a conduta dos outros e manipular é o caminho mais adequado. Manipular, em especial, os fluxos das ações das sociedades ditas pós-modernas. Também devemos levar em consideração que muitas pessoas acreditam em sua própria ignorância. Harari nos diz que sujeitos se fecham em um ciclo de amizades com indivíduos que pensam como eles, desta maneira, suas concepções são sempre reiteradas e nunca contestadas, não havendo uma crítica construtiva, uma rede de debates (HARARI, 2018). A discussão, o conhecimento, alimenta nossa capacidade de saber o que é certo e o que é errado, discernir a diferença entre justiça e injustiça, se não há esta troca de informações, não existe formação política. Lembramos ainda as intenções e até mesmo a busca, de modo geral, dos “manipuladores”, grandes empresários, donos de terras, a grande mídia e seus asseclas, que atuam para que as fakes sejam partilhadas, sem descriminação, é a ampliação da renda vinda de seus anunciantes, como primeiro objetivo, entre outros. O segundo seria angariar os desejos de manutenção das metas políticas, algumas citamos anteriormente, como as eleições de representantes dos interesses de alguns poucos em detrimento da maioria. Outro desejo subjacente é o de modelar as maneiras de pensar e de agir da população. Para com esse intuito realizado, outros interesses/desejos sejam adquiridos sem esforços. “pela primeira vez em 1992 pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich, em um ensaio para a revista The Nation”. ~ 28 ~ SOMANLU: Revista de Estudos Amazônicos – UFAM ISSN (impresso): 1518-4765 / ISSN (eletrônico): 2316-4123 ANO 19, nº 1, Agos./Dez. 2019 No evento na UNICAMP sobre Pós-Verdade, Eugenio Bucci apresentou suas contribuições para a questão das fake news. Entre elas a ideia de a remuneração das mentiras é sim uma novidade em nossas sociedades e que, muito provavelmente, essas ações corroem as bases das democracias pelo mundo. Algo que estamos vendo nas eleições e em decisões sócio administrativas como as do BREXIT14, na Inglaterra. O autor lembra que a democracia precisa de cultivo e não de detratores. Pablo Ortellado outro participe do evento na universidade paulista, comentou que as mentiras se difundem muito mais rapidamente do que as verdades, infelizmente. Lembra também que existe uma vontade, atual, de persuadir o outro. A busca pela conquista da mentalidade e dos desejos do outro. Ser automaticamente negador do que foi dito e ou construído, seja na história, seja na sociedade, pelo outro campo político. E é precisamente o que estamos vivendo, nesse momento, com tantos atentados aos direitos conquistados após inúmeras lutas de um campo político-ideológico no mundo, por um outro que estava, de alguma forma, adormecido. 3 . Fechando a conversa... Assim, usamos de uma ponderação de Laura Caprioglione, partícipe do mesmo evento, por nós citado, quando discorre que no mundo presente a comunicação se tornou muito mais complexa do que um dia foi e, grandemente aberto às diversidades e, também ao tamanho da vida social. Esse espaço já está ocupado, porém cabem mais debates e discussões relacionadas à diversidade social que partilhamos no Brasil e no mundo. A sociedade que defendemos reconhece diferenças, partilha bens econômicos, culturais e sociais. A democracia deve ser plena, englobando diferentes sujeitos, de vários segmentos. Entendemos que nossa democracia está sob ameaça de discursos excludentes e individualistas. Um povo não pode excluir seu povo. O liberalismo econômico acompanhado de um conservadorismo não podem caminhar juntos com aqueles que defendem a igualdade e o bem estar social. 14 O Brexit consiste na saída do Reino Unido, da União Europeia. ~ 29 ~ SOMANLU: Revista de Estudos Amazônicos – UFAM ISSN (impresso): 1518-4765 / ISSN (eletrônico): 2316-4123 ANO 19, nº 1, Agos./Dez. 2019 Concluímos nossas reflexões, com a sugestão de que outro mundo é possível. Um mundo onde caibam todas e todos. Onde a verdade de uns poucos não suplante a verdade da maioria. Houve Golpe em 1964 e em 2016 no Brasil. A eleição de 2018 foi manipulada a favor de uma posição política que já estava suplantada, e, que segundo nossa ótica, é fascista e entreguista! 4 . Referências ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo – 7ª edição – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. D`ANCONA, Matthew. Pós-Verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de Fake News. Trad. Carlos Szlak. – 1ª ed. – Barueri: Faro Editorial, 2018. 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Periódicos/Sites Jornal Diário de Notícias, disponível em http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=093718_05&pagfis=41439 PORTELLI, Alessandro. “História, memória e significado de um massacre nazista em Roma”, in Revista Oralidades, nº 3, 2008, P. 153 a 175. https://www.revistas.usp.br/oralidades/article/view/106992 165 Revista Carta Capital, 13/01/2017, disponível em www.cartacapital.com.br/revista/933/a-era-da-pos-verdade. www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/08/trump-mente-quatro-vezes-mais-agora-doque-no-inicio-de-seu-governo.shtml. www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/10/25/cpi-da-previdencia-aprovarelatorio-final-por-unanimidade www.em.com.br/app/noticia/politica/2019/04/01/interna_politica,1042927/internautasprotestam-e-transformam-dia-da-mentira-em-bolsonaro-day.shtml www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2018/09/14/crescimento-das-fake-newsinfluencia-agenda-publica-e-requer-acoes www.g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/04/29/bolsonaro-quer-isentar-depunicao-proprietario-rural-que-atirar-em-invasor.ghtml ~ 31 ~