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A virada material: entrevista com Rodrigo Toniol

2024

https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289

Na entrevista, Rodrigo Toniol discute seu percurso desde a sua formação acadêmica até sua participação em projetos relacionados à consolidação de um campo de estudo sobre as materialidades na antropologia brasileira. O autor argumenta que, em alguns casos, precisamos unir a virada espacial com a virada material para pensarmos a religião.

A VIRADA MATERIAL: ENTREVISTA COM RODRIGO TONIOL EL GIRO MATERIAL: ENTREVISTA A RODRIGO TONIOL THE MATERIAL TURN: INTERVIEW WITH RODRIGO TONIOL Bruno Ferraz BARTEL1 e-mail: [email protected] Maria Gleiciane Fontenele PEREIRA2 e-mail: [email protected] Como referenciar este artigo: BARTEL, B. F.; PEREIRA, M. G. F. A virada material: entrevista com Rodrigo Toniol. Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. e-ISSN: 23592419. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 | Submetido em: 15/03/2024 | Revisões requeridas em: 01/04/2024 | Aprovado em: 02/04/2024 | Publicado em: 30/09/2024 Editores: Profa. Dra. Maria Teresa Miceli Kerbauy Prof. Me. Thaís Cristina Caetano de Souza Prof. Me. Paulo Carvalho Moura Prof. Thiago Pacheco Gebara Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio De Janeiro – RJ – Brasil. Doutor em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGAnt) da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Integrante do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC) e do Núcleo de Estudos do Oriente Médio (NEOM) da UFF. 2 Universidade Federal do Piauí (UFPI), Teresina – PI – Brasil. Mestre em Antropologia do Programa de PósGraduação em Antropologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI). 1 Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 e-ISSN: 2359-2419 1 A virada material: entrevista com Rodrigo Toniol RESUMO: Na entrevista, Rodrigo Toniol discute seu percurso desde a sua formação acadêmica até sua participação em projetos relacionados à consolidação de um campo de estudo sobre as materialidades na antropologia brasileira. O autor argumenta que, em alguns casos, precisamos unir a virada espacial com a virada material para pensarmos a religião. PALAVRAS-CHAVE: Virada Material. Virada espacial. Religião. RESUMEN: En la entrevista, Rodrigo Toniol discute su trayectoria desde su formación académica hasta su participación en proyectos relacionados con la consolidación de un campo de estudio sobre las materialidades en la antropología brasileña. El autor argumenta que, en algunos casos, necesitamos combinar el giro espacial con el giro material para pensar en la religión. PALABRAS CLAVE: Giro material. Giro espacial. Religión. ABSTRACT: In the interview, Rodrigo Toniol discusses his journey from his academic formation to his participation in projects related to the consolidation of a field of study on materialities in Brazilian anthropology. The author argues that, in some cases, we need to combine the spatial turn with the material turn to think about religion. KEYWORDS: Material Turn. Spatial Turn. Religion. Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 e-ISSN: 2359-2419 2 Bruno Ferraz BARTEL e Maria Gleiciane Fontenele PEREIRA Rodrigo Toniol é professor adjunto no Departamento de Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Unicamp. Eleito membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências. Possui bolsa de produtividade do CNPq e é graduado em Ciências Sociais, com mestrado e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Durante parte de seu doutoramento, realizou estudos no Programa de Antropologia da University of California San Diego (UCSD). Também foi pesquisador visitante no Ciesas/Guadalajara (México) e na Universidade de Utrecht (Holanda). Suas pesquisas se concentram nos temas de corpo, saúde, ciência e religião. Entre seus trabalhos, destacam-se a função de editor e autor da “Encyclopedia of Latin American Religions” (ed. Springer), a autoria dos livros “On the Nature Trail” (ed. N.Science Publishers, 2015) e “Do Espírito na Saúde” (Ed. LiberArs, 2018), além da organização de obras como “Conservadorismos, Fascismos e Fundamentalismos” (Ed. Unicamp, 2018), “Como as Coisas Importam: Uma Abordagem Material da Religião” (ed. UFRGS, 2019), “Cientistas Sociais e o Coronavírus” (ed. Anpocs, 2020), “Entre Trópicos: Diálogos de Estudios Nueva Era entre México y Brasil” (Casa Chata, 2018) e “Religião e Materialidades” (Papeis Selvagens, 2021). Na entrevista, Rodrigo Toniol discute seu percurso desde a sua formação acadêmica até sua participação em projetos relacionados à consolidação de um campo de estudo sobre as materialidades na antropologia brasileira. Bruno Bartel: Quando, ao longo de sua trajetória acadêmica, você deparou-se com esse ponto de inflexão em relação à temática das materialidades? Rodrigo Toniol: Vou tentar percorrer esse caminho. O primeiro capítulo do livro que escrevi, intitulado “Religião e materialidades: Novos horizontes empíricos e desafios teóricos”, em parceria com Renata Menezes, professora da UFRJ/Museu Nacional, aborda esse aspecto. Minha incursão na temática da materialidade está relacionada ao meu interesse pelo debate acerca do corpo. Isso ocorreu durante meu doutorado sanduíche na UC San Diego, supervisionado por Thomas Csordas. Ele é um estudioso que desenvolve e fundamenta toda uma perspectiva sobre a corporeidade. A abordagem de Csordas sobre o corpo, fortemente embasada na fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty, destaca a relação fundamental entre o corpo e o mundo. É interessante notar que, à medida que comecei a focar no corpo e a refletir sobre ele, passei também a contemplar o mundo. Passei a refletir sobre aquilo que no mundo Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 e-ISSN: 2359-2419 3 A virada material: entrevista com Rodrigo Toniol gera engajamento corporal. É essa espécie de envolvimento com o mundo que proporciona ao corpo uma série de sensações incríveis ou experiências de maravilhamento. Nesse momento, minha incursão no debate sobre materialidade estava intrinsecamente ligada a uma perspectiva fenomenológica, envolvendo autores como Merleau-Ponty, Csordas e Tim Ingold. Foi assim que esses pensadores passaram a influenciar meu trabalho. Bruno Bartel: Incluiria também o trabalho de Thomas Csordas nessa relação entre materialidade e corpo? Rodrigo Toniol: Eu incluiria, embora não saiba se ele incluiria o próprio trabalho nisso. Ele está há anos escrevendo um livro sobre o assunto, mas que nunca foi lançado, e eu acredito que nunca será, para ser honesto. Ele está envolvido em outras atividades, como fazer música. Mas seria um livro no qual ele tentaria desenvolver a noção de materialidade. No entanto, o debate dele sobre o corpo não envolve a questão da materialidade. Ele inclusive tem muitas discordâncias com o [Tim] Ingold, por exemplo. Csordas comenta que um dos problemas dessa antropologia, que se inclina muito para o campo da materialidade ou para a antropologia dos fluxos, é que elas acabam obscurecendo os humanos. O que nos interessa são os humanos. Nunca podemos esquecer disso. Acho que há uma tensão nessa proposta por ele. Curiosamente, tudo isso despertava meu interesse teórico. Minha pesquisa inicial, por exemplo, mesmo não tinha nada a ver com isso, seja com materialidade ou essas outras questões. Foi quando terminei o doutorado na Unicamp e fui fazer um pós-doutorado que me interessei muito teoricamente pelo debate sobre materialidade. Fui para a Holanda porque, empiricamente e teoricamente, isso me interessava. Comecei a pesquisar a relação entre saúde, espiritualidade e ciência. Fiz uma pesquisa extensa sobre como a noção de espiritualidade era mobilizada pelas ciências médicas. Como os médicos mobilizam a noção de espiritualidade? Fui para a OMS, laboratórios de pesquisa médica, clínicas e o Hospital das Clínicas de São Paulo. O que encontrei foi algo muito instigante devido à produção extensa da medicina sobre o tema da saúde e espiritualidade. Basicamente, os médicos dizem o seguinte: se você tiver mais espiritualidade, enfartará menos. Esse é o tipo de formulação que muitos médicos produzem a partir de pesquisas. No entanto, para fazer uma formulação como essa, eles precisam criar uma métrica da espiritualidade. Precisam criar algum tipo de critério para medir espiritualidade. Segundo minha elaboração, eles precisam materializar a espiritualidade. Precisam transformar esse conceito tão abstrato em uma entidade descritível, manipulável e observável. Quando fui para o pós-doutorado, minha Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 e-ISSN: 2359-2419 4 Bruno Ferraz BARTEL e Maria Gleiciane Fontenele PEREIRA reflexão era como a espiritualidade se transformava em materialidade para a medicina, seja em um gráfico, número ou exame. Minha pergunta era: como a espiritualidade se torna um objeto material ou algo circunscrito? Bruno Bartel: E isso, de alguma maneira, já aparecia na sua tese de doutorado sobre o SUS? Rodrigo Toniol: Mais ou menos. Na verdade, não. A questão da materialidade, conforme aparece na minha tese sobre terapias alternativas no SUS, está relacionada aos medicamentos e procedimentos médicos. Contudo, na época, não me aprofundei nesse aspecto. De fato, não dediquei tanta atenção quanto poderia. Viajei para Utrecht, na Holanda, para integrar o departamento de Filosofia e Ciência da Religião (Religion Studies) e trabalhar com Birgit Meyer. Fiquei lá por quase três anos, somando todos os períodos. Birgit liderava um projeto extenso, sendo uma africanista que pesquisa há muitos anos sobre Gana e questões relacionadas aos pentecostais locais. Desde os anos 2000, ela se uniu a outros importantes pesquisadores do campo, como Matthew Engler, formando um grupo relevante na produção da Material Religion (Religião Material). Juntos, fundaram um periódico, e Birgit liderava um projeto milionário para investigar “how religious matters” Uso a expressão em inglês porque acredito que há um jogo de palavras crucial: “matters”como materialidade e algo que importa. Tentamos refletir isso no título do livro [“Como as Coisas Importam: Uma Abordagem Material da Religião”], mas em português perde seu sentido. Essa era a atmosfera quando cheguei lá. No entanto, o que encontrei foi um grupo muito ativo e diversificado em termos de composição. As pessoas vinham da antropologia, filosofia e estudos de religião, pesquisando temas diversos, mas todos centrados na temática da religião material. Mas o que significa pensar em religião material nesse contexto? De modo geral, o interesse das ciências sociais por coisas e objetos é histórico, sendo um tema clássico. Podemos remeter a Malinowski em uma aula sobre a circulação de colares e braceletes, onde os objetos desempenham um papel importante. No entanto, no campo da religião material, há uma formulação verdadeiramente inovadora. Isso provoca deslocamentos, pois não se trata apenas de observar as materialidades ou objetos, mas de compreender que a religião é materialidade. Isso representa um corte significativo em relação à maneira como as ciências sociais tradicionalmente elaboram a noção de religião, focando no simbólico, ritual ou ideias em um nível cognitivo. Birgit argumenta que nossa abordagem da religião [de forma iconoclasta] é resultado de um viés protestante. Isso propõe repensar a questão da colonialidade Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 e-ISSN: 2359-2419 5 A virada material: entrevista com Rodrigo Toniol a partir da noção de religião. Como podemos deslocar nossa compreensão da religião não por um viés protestante, mas sim a partir de suas materialidades? Birgit destaca que a materialidade é fundamental, defendendo que objetos num contexto religioso não são meras representações, pois são a própria religião; não há religião sem objetos. Isso é um foco de pesquisa para Birgit. Ainda não sei se vou por esse caminho, mas é uma proposta forte. Ela define religião como aquilo que transforma o invisível em visível, conferindo visibilidade às coisas. Nessa formulação, a religião seria um princípio de visibilização ou materialização, ou seja, tornar tangível o que é intangível. Essa seria uma definição do fenômeno religioso. No Brasil, tínhamos apenas uma tradução dos textos de Birgit, feita por Carly Machado, professora da UFRRJ, na revista Campus da UFPR. E só. Havia muito pouca literatura sobre materialidade e religião naquele momento. Bruno Bartel: Se eu não me engano, esse texto indicava a relação entre religião e mídia, certo? Rodrigo Toniol: Isso, exatamente. É por esse caminho que a Carly inicia o debate, pela coisa da mídia3. Bruno Bartel: Mas você estava comentando algo sobre sua experiência na Holanda. O que era? Rodrigo Toniol: Sim, mas isso exige uma contextualização mais institucional. Existe um ponto que é a relação da Holanda com alguns pesquisadores, acadêmicos e antropólogos brasileiros de longa data. Isso tem um caminho e uma trajetória que é institucionalmente importante. Vou falar brevemente sobre isso. Existe um começo marcante a partir das relações entre os professores André Droogers e Ary Pedro Oro [professor da UFRGS]. André pesquisou durante muito tempo os pentecostais na América Latina. Então o caminho [empírico] foi via os [movimentos] pentecostais. Antes disso, no Brasil, teve a tese da Marjo de Theije, uma holandesa que fez pesquisas sobre catolicismo popular no Nordeste. Ela pesquisou na cidade de Garanhuns e publicou um livro chamado “Tudo o que é de Deus é bom: uma antropologia 3 Disponível em: https://ojs.homologa.ufpr.br/campos/article/view/53445. Acesso em: 10 jan. 2024. Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 e-ISSN: 2359-2419 6 Bruno Ferraz BARTEL e Maria Gleiciane Fontenele PEREIRA do catolicismo liberacionista em Garanhuns, Brasil”4]. Inicialmente, a tese da Marjo foi sobre essa temática e tinha esse vínculo com Ari. Também no Nordeste, Mísia Reesink [professora da UFPE] tinha uma relação antiga com a Holanda. A partir daí, começa um fluxo: Carlos Steil [professor da UFRGS] vai para a Holanda inicialmente. Depois disso, João Rickli [professor da UFPR] faz seu doutorado na Holanda e um pós-doutorado com Birgit. E junto comigo irá Emerson Giumbelli [professor da UFRGS]. Isso ajudou a estabelecer convênios. Várias pessoas da Unicamp foram para a Holanda devido a esse vínculo, ou seja, a partir desse fluxo. Por exemplo, Bruno Reinhardt [professor da UFSC] fez um pós-doutorado na Holanda com Birgit. Além disso, Carly continua a visitar a Holanda com muita frequência, por várias razões, entre as quais eu destacaria duas pessoas: Martijn Oosterbaan, que faz pesquisa em favelas no Rio de Janeiro há anos (décadas, na verdade), e Mattijs Van de Port, que pesquisa candomblé na Bahia. Eu diria que esse é o grupo que cria uma relação muito íntima entre Brasil e Holanda. Buno Bartel: O contexto de publicação do livro “Aesthetic Formations: Media, Religion, and the Senses” [editada por Birgit Meyer em 2009] celebra o encontro desse grupo, não? Rodrigo Toniol: É isso aí. Essa publicação é um marco dessa conversa. Isso demonstra o fluxo desses pesquisadores. Entre os pesquisadores brasileiros, a Holanda virou um lugar para conhecer outros pesquisadores. Eu destacaria a relação que Jeremy Stolow, um pesquisador canadense, estabeleceu com o Brasil. Ele acabou de publicar um livro sobre aura incrível. Mas isso tem a ver com o fato de o Jeremy ir para Holanda também. Quando eu estava lá, Emerson Giumbelli também estava inserido no grupo da Birgit. Foi lá que surgiu essa ideia de produzir uma tradução de textos da Birgit. Foi um processo muito legal, desde a seleção dos textos, porque esse livro, enquanto uma composição de artigos específicos, só existe em português. Foi uma composição que montamos junto com ela. No final, foi uma seleção de artigos que achávamos que fazia sentido. Nós tínhamos uma parceria com colegas da UFRGS para produzir as traduções. Porém, ficamos muito tempo tomando decisões com a Birgit sobre os modos de traduzir algumas coisas que eram difíceis, que envolviam várias questões. Posso falar um pouco sobre isso depois. Quando eu volto para o Brasil, conseguimos lançar o livro pela editora da UFRGS, que foi um super sucesso. O livro está esgotado e nem tem mais para vender devido Sobre o livro, ver a resenha de Braga AM da C. Tudo que é de Deus é bom: uma antropologia do catolicismo liberacionista em Garanhuns, Brasil. Horizontes antropológicos, 10 (22): 364-372, 2004. https://doi.org/10.1590/S0104-71832004000200017. Acesso em: 10 de janeiro de 2024. 4 Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 e-ISSN: 2359-2419 7 A virada material: entrevista com Rodrigo Toniol ao limite das editoras universitárias. Não que elas não conseguem dar conta do mercado. Mas o livro circulou bastante. Eu acho que essa tradução para o português ajudou bastante para a circulação desse debate. Nós incluímos uma entrevista com ela, por exemplo. Buno Bartel: E vocês têm planos para uma próxima edição? Rodrigo Toniol: Editora universitária é uma coisa muito difícil. Buno Bartel: Você tem mais ou menos uma ideia de quanto foi a tiragem na época? Rodrigo Toniol: 500 exemplares. Terminou em seis meses. Eu disponibilizei no meu [site do] academia.edu5. Quando voltei da Holanda, publicamos o livro e trouxemos Birgit para o Brasil. Ela circulou bastante pelo Brasil. Logo em seguida, trouxemos Csordas também. Mas foi somente quando retornei ao Brasil que passei a estreitar relações com Renata Menezes. Já nos conhecíamos, mas ela tinha um GT [grupo de trabalho] na ABA [Associação Brasileira de Antropologia]. Acredito que a primeira edição disso, não tenho certeza, foi feita com Ronaldo [de Almeida – professor da Unicamp]. Ele foi meu colega e trabalhava na Unicamp. Quando retornei, Renata propôs uma reedição [do GT]. No entanto, várias pessoas do grupo de Renata também estavam trabalhando com a temática das materialidades. Ela conduzia uma pesquisa sobre Cosme e Damião. Na Unicamp, várias pessoas também estavam trabalhando com outros temas. Planejamos realizar um seminário, mas optamos por duas ações: um seminário na Unicamp reunindo o grupo dela [do Museu Nacional] com as pessoas da Unicamp que trabalhavam com o tema das materialidades, e o GT na RBA [Reunião Brasileira de Antropologia]. Dessa união surgiu a ideia do livro "Religião e Materialidades”. Na introdução do livro, explicamos um pouco sobre isso. A entrada de Renata nesse debate segue outros caminhos. É um debate mais francês, pois se apropria de outras literaturas e bibliografias. Isso é interessante porque também amplia nossa imaginação. Eu acho que esse livro apresenta muitas situações em que é possível olhar para as materialidades a partir da religião. Disponível em: https://www.academia.edu/42285540/Como_as_coisas_importam_Uma_abordagem_material_da_religi%C3%A 3o_Intro_ Acesso em: 01/02/2024. 5 Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 e-ISSN: 2359-2419 8 Bruno Ferraz BARTEL e Maria Gleiciane Fontenele PEREIRA Buno Bartel: Quais serão seus próximos passos nesta temática? Rodrigo Toniol: Assim que publicamos esse livro e encerrou meu período da bolsa de produtividade sobre a temática da espiritualidade, iniciei um novo projeto. O primeiro texto desse projeto será publicado na revista Religião & Sociedade [A vida, a morte e o pós-vida das materialidades de uma igreja demolida para a construção da Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro], assinado por Marcella Araújo [professora da UFRJ] que pesquisa cidades. O tema da pesquisa são igrejas católicas demolidas. Eu comecei a observar o processo de demolição de várias igrejas católicas. Existem três casos iniciais que são muito interessantes, as igrejas que foram demolidas para a construção da Avenida Presidente Vargas, no centro do Rio de Janeiro. Basicamente, o que estou propondo com a equipe de bolsistas é que sigamos os objetos das igrejas demolidas. A pergunta norteadora é: o que aconteceu com os objetos ou com as materialidades? Existem três aspectos que gostaria de destacar aqui. O primeiro é que somente olhando a partir da temática da materialidade é que consigo realizar essa pesquisa. É apenas porque presto atenção nisso que consigo observar igrejas demolidas e construir um problema. E ao construí-lo, sobre a materialidade das igrejas, podemos deslocar a ideia do templo como um lugar fechado, encerrado em si mesmo. Ao olharmos para as igrejas e para a circulação dos objetos, percebemos um fluxo imenso entre objetos e igrejas. Não só nas igrejas que ainda estão de pé, mas, sobretudo, no meu caso, [os objetos] das igrejas demolidas vão para vários outros lugares. Conseguimos provocar um pouco a ideia do templo como um espaço fechado ou encerrado. Parto da ideia de entender os templos como um espaço de muita circulação. O segundo aspecto refere-se à observação da circulação dos objetos das igrejas demolidas. O que já temos mapeado, e isso será abordado no artigo, é como esses objetos passam a se inscrever em universos absolutamente diferentes do universo religioso. Ou seja, eles começam a circular, por exemplo, em museus. Tornam-se peças em leilões de arte ou decoração em prédios civis públicos. Existe outra questão que é: o que fazer com os corpos enterrados nas igrejas? Há, portanto, uma circulação entre cemitérios. Alguns desses objetos, por exemplo, acabam em outras igrejas, ocupando outros lugares. O terceiro ponto seria o tamanho da agenda de pesquisa que comecei a considerar a partir da temática material. Minha sensação é que abri uma caixa de Pandora. Começamos a fazer um levantamento das igrejas demolidas no Brasil. Só no século XX, a Igreja Católica possui mais de 200 igrejas catalogadas, várias devido a obras viárias. A circulação desses objetos é incrível para pensar, por exemplo, a presença da religião no espaço público. Isso abre uma série de questões e é isso que estou me dedicando agora. O debate sobre Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 e-ISSN: 2359-2419 9 A virada material: entrevista com Rodrigo Toniol a materialidade me leva a pensar nos templos religiosos e algo além dos próprios templos, que seria uma espécie de pós-vida dos objetos. Outro ponto tem sido o impacto dessa chamada virada material. Ao olharmos para as igrejas e esses processos de demolição, existe outra virada que a antropologia ainda não incorporou: a virada espacial. Ou seja, como iremos pensar o espaço na religião ou a relação entre religião e espaço? Acho que ainda discutimos pouco sobre isso. O espaço é usualmente visto como paisagem ou cenário. Bruno Bartel: Ou atrelado aos velhos sistemas de classificações, certo? Rodrigo Toniol: Exatamente. Mas eu acho que nós pensamos muito pouco sobre a produção do espaço, que é um tema muito clássico para a Geografia e a Sociologia Urbana. Bruno Bartel: Eu acho tudo isso muito curioso, pois sou formado em Geografia. Saí da Geografia para estudar outras coisas nas Ciências Sociais. Rodrigo Toniol: Vamos ter que voltar para o [Henri] Lefebvre. Mas acho que há algo importante aqui. Marcella, o grupo e eu temos uma pesquisa sobre a construção da Avenida Presidente Vargas. Foi daí que surgiu esse olhar para as igrejas demolidas. Mas começamos a descobrir uma literatura que, pelo menos eu, particularmente, não conhecia e que foi recentemente publicada no início de 2023. Em maio, foi publicado um dossiê chamado “Ritos e Pedras”, numa revista chamada Espaço e Cultura, que nós traduzimos. Tudo isso será publicado na revista Debates do NER. Basicamente, o argumento é que precisamos unir a virada espacial com a virada material para pensar a religião. Existem casos em que espaço e religião importam de várias maneiras. Darei um exemplo contido no dossiê que mencionei de uma antropóloga indiana chamada Leilah Vevania. Ela conta a história de dois templos zoroastristas que seriam afetados pela construção do metrô em Mumbai. Isso que seria um objeto clássico da Sociologia ou da Geografia não aparece na Antropologia Urbana. Ou seja, encerramos o templo nele mesmo, não olhamos para o espaço e para as coisas. Enfim, meu direcionamento agora é passar a olhar para o espaço com mais atenção. Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 e-ISSN: 2359-2419 10 Bruno Ferraz BARTEL e Maria Gleiciane Fontenele PEREIRA Bruno Bartel: Você diria que essa quase obsessão por pontos fixos ainda estaria ligada a uma leitura durkheimiana a partir da divisão entre sagrado e profano? Rodrigo Toniol: Absolutamente. Eu acho que esse é o ponto. Resolvemos a charada. Bruno Bartel: Isso é interessante de ver na obra de Talal Asad. Quando ele constrói a noção de secularismo, é com base nessa discussão. A Igreja Católica construiu seus pontos fixos para depois diluí-los. Rodrigo Toniol: Exatamente. Bruno Bartel: A própria ideia dele acerca da religião já diz muito sobre isso, não? Para Asad, a categoria religião não deixa de ter essa base [espaços fixos]. Se Birgit reflete a partir do protestantismo, Asad refletiria a partir do mundo cristão [católico]. Rodrigo Toniol: Sim. Acho que estamos em uma posição privilegiada para juntar essas coisas. Eu acho mesmo que temos algo para contribuir a partir da formação das nossas cidades e da formação do nosso espaço público a partir dos espaços religiosos. Bruno Bartel: Você me fez lembrar algo das aulas de Geografia Urbana. As cidades europeias possuíam a formação “x”; as cidades árabes formavam o tipo “y”; as nossas seriam... Rodrigo Toniol: Exato. Ficamos com uma visão fixa sobre essas coisas. Não enxergamos essa circulação ou esses fluxos. Eu confesso que, olhando e fazendo essa pesquisa, do ponto de vista de como os objetos circulam, eu fico muito feliz, mas, ao mesmo tempo, também muito frustrado por não ter visto isso antes. Nossa imaginação sociológica é muito fixa. O cerne de toda essa questão da materialidade é também pensar essa circulação das coisas. Essa seria uma vantagem devido à abertura sociológica feita sobre nossa imaginação da vida social das coisas. Vemos uma coisa circulando e virando outra coisa. Isso é um convite para olharmos para o fluxo e para a transformação. Isso seria um bom ponto de partida para deixarmos de fixar as coisas. Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 e-ISSN: 2359-2419 11 A virada material: entrevista com Rodrigo Toniol Bruno Bartel: Quando você fala em fluxos, destacaria uma certa diferença desta noção diante de uma leitura processual clássica? Se tudo é fluxo, não corremos o risco de vê-lo como algo que se estende ao infinito? Se não, quando é que ele termina? Uma das minhas grandes críticas à análise processual decorre desta visão de que o processo nunca termina. Qual seria a diferença entre fluxo e processo? Rodrigo Toniol: É bom que você tenha perguntado isso. Eu acho que esse problema existe. Faço essa crítica também. Compartilho isso com você. Essa é uma boa pergunta: onde se deve parar com a análise da rede? Bruno Bartel: Voltamos à questão do velho [Franz] Boas. Quando termina a pesquisa etnográfica? Ele foi de um grupo para outro até... Rodrigo Toniol: É meio paranoico, não? Tudo está conectado... Bruno Bartel: Uma obsessão típica do pensamento iluminista, não? Uma totalidade que precisa ser analisada... Rodrigo Toniol: Sim, eu tive que lidar com esse problema de um jeito bem pragmático: onde irei cortar a minha pesquisa? Como irei propor esse projeto? Existem duas coisas que gostaria de destacar. A primeira é que a pesquisa tem fases muito claras. Ao observar as igrejas demolidas, percebo três momentos distintos: a) as controvérsias sobre a demolição desses locais; b) os processos que conduzem as obras de demolição (podem acontecer muitas coisas aqui, por exemplo, quando uma série de funcionários se recusa a destruir uma igreja. A ação de uma martelada no altar não seria algo trivial, certo?); e c) o pós-vida, que são as próprias circulações dos objetos envolvidos (o que aconteceu com os objetos até este momento?). Portanto, existe um corte bastante preciso aqui. Além disso, esta é uma pesquisa baseada em pesquisa de arquivos. Neste caso, estou essencialmente examinando documentos. Minhas bolsistas e eu estamos imersos na Biblioteca Nacional, explorando a hemeroteca e a coleção de jornais. Leitura de jornais antigos é fundamental para construir essas controvérsias. No caso de algumas igrejas tombadas, os dossiês do IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] têm sido muito úteis. Estamos lendo cartas. É uma antropologia de arquivo a partir Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 e-ISSN: 2359-2419 12 Bruno Ferraz BARTEL e Maria Gleiciane Fontenele PEREIRA dos documentos. Neste caso, a pesquisa está rigidamente circunscrita a este universo. Portanto, não há muita margem para cair na paranoia de que tudo está conectado com tudo. Bruno Bartel: Você já deixou isso claro no título desta sua produção que será publicada agora [na revista Religião & Sociedade]. Rodrigo Toniol: Exato. Meu movimento tem sido como alguém que observa e se interessa pelo campo da materialidade. Curiosamente, tenho direcionado meu olhar para o universo da Igreja Católica, que é absolutamente material e bastante explorado, mas ainda muito estático. Eu desejo examinar esses fluxos e transformações a partir das materialidades. Pois, mesmo quando os templos caem, as materialidades permanecem. O campo da religião tem recebido mais atenção nos últimos anos, devido às questões políticas envolvendo a religião. Todo mundo está observando isso. Há várias questões políticas hoje, desde o conflito Israel-Palestina até nossas políticas domésticas. Eu acho que há um risco de simplesmente ficar respondendo a essas contingências. Existe um risco de deixar de lado as reflexões diárias sobre as coisas não contingenciais ou mais estruturais do pensamento da antropologia da religião e da sociologia da religião. Há uma espécie de canto da sereia em querer responder às demandas públicas do momento, como nas eleições. Todos os pesquisadores de religião são convocados novamente: tomar posição ou falar sobre o tema? Eu fico um pouco preocupado, confesso, olhando para os GTs sobre religião. Eles têm sido quase todos monotemáticos. Daí a nossa tentativa, minha e do João Rickli, de retomar um GT clássico da ANPOCS [Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Ciências Sociais] sobre religião e sociedade. Temas abertos assim: vamos falar sobre religião. Aí, cabe todo mundo. Porque o debate é sobre religião. Assim, ele seria menos segmentado. Bruno Bartel: Quando você enfatiza as controvérsias, eu fico imaginando não apenas no peso das intenções dessas ações, mas também nas ambiguidades, paradoxos e contradições dessas situações. Paula Monteiro desenvolveu essa questão das controvérsias da religião para o caso brasileiro. No caso do mundo islâmico, existem os trabalhos de Samuli Schielke, que confronta as proposições de Saba Mahmood. O papel das contradições na produção da vida diária me parece fundamental aqui. Mesmo que ele não foque na questão dos objetos, mas sim na construção dos modos de vida dos muçulmanos. Essa ideia da controvérsia seria muito salutar no caso dos objetos, não? Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 e-ISSN: 2359-2419 13 A virada material: entrevista com Rodrigo Toniol Rodrigo Toniol: Eu poderia dizer duas coisas sobre isso. A primeira seria mencionar que acabei de publicar um texto em um dossiê da [revista] Sociologia & Antropologia [da UFRJ] sobre [Michael] Taussig. Fizemos uma tradução. Bruno Bartel: Um texto com o título de desfiguração6? Rodrigo Toniol: Sim. O texto foi elaborado pelo Emerson [Giumbelli] anos atrás. Bruno Bartel: Eu vi alguns nomes conhecidos envolvidos no texto, como Christina Vital da Cunha e Edilson Pereira. São pessoas com as quais já convivi em eventos acadêmicos. Rodrigo Toniol: Ótimo. Na época, fizemos uma entrevista com ele [Taussig], e eu escrevi um texto tentando sistematizar o que ele pensa sobre religião e magia. Voltando ao tema da controvérsia e tendo a obra dele como foco, a noção de transgressão seria fundamental. Um ato transgressor possuiria uma ação de absoluta ativação do sagrado, pois, na medida em que você o ataca, você ativa aquilo que há de mais sagrado no sagrado. Isso é uma imagem muito poderosa, sobretudo lendo os materiais nos quais estou me debruçando na pesquisa. Nos casos em que se quer destruir uma igreja, o que se faz com ela? Às vezes, pode-se tentar uma ação de preservação, acionando a ideia da sacralidade diante das marretadas que ela começa a receber. Porém, existe um lado da controvérsia durante a realização dessa obra. Por exemplo, a ação do operário que dá marretadas visando demolir a igreja produz toda uma série de crônicas. E há outro lado que é da controvérsia pública. Por exemplo, a demolição da Igreja de São Pedro dos Clérigos. Ela era uma igreja muito importante e uma das primeiras tombadas pelo IPHAN. A controvérsia pública em torno desta igreja não era a partir do suposto aspecto sagrado contido nela, mas sim a partir do seu valor artístico e histórico. Isso é curioso. Se a gente ficar só olhando e tentando entender as controvérsias sem considerar os objetos religiosos, deixaremos de ver muita coisa. O caso dessa igreja não era apenas uma questão de controvérsia religiosa. Ela se dá noutros termos. Ela é uma controvérsia em termos de destruição de um patrimônio nacional. Disponível https://www.academia.edu/109950888/Desfigurac_a_o_Michael_Taussig_Tradu%C3%A7%C3%A3o_ em: 01 fev. 2024. 6 Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 em: Acesso e-ISSN: 2359-2419 14 Bruno Ferraz BARTEL e Maria Gleiciane Fontenele PEREIRA Além disso, existiram várias tentativas de preservação da igreja e do traçado da avenida [Presidente Vargas], que tinha que ser em linha reta. Bruno Bartel: E a [Igreja da] Candelária posicionada como se tudo desembocasse nela, certo? Rodrigo Toniol: Haveria um problema nela, pois ela estaria de costas [com relação à avenida]. É muito curioso ler as cartas sobre isso porque eles tentam achar soluções técnicas. Inclusive, uma delas seria reposicionar a Candelária. Paula Montero e Carlos Procópio acabaram de publicar um livro chamado “Arquiteturas Religiosas e a Construção da Esfera Pública”. É muito legal olhar para esse processo de construção contido no livro enquanto eu estou olhando um pouco para o avesso dessa história que é a destruição. Seria a construção da esfera pública da religião a partir da destruição e não da construção. Bruno Bartel: Destruição enquanto um projeto, certo? Rodrigo Toniol: Exatamente. Bruno Bartel: Você está me fazendo lembrar de outro contraponto em termos da historiografia de países de maioria muçulmana. Na Arábia Saudita, por exemplo, muitos mausoléus de santos [homens dotados de uma capacidade miraculosa] foram destruídos. Locais como esses possuem, por exemplo, uma presença significativa especialmente no Norte da África, como no caso do Marrocos, onde realizei pesquisas etnográficas. Na Arábia Saudita, em meados do século XIX, houve uma destruição dessas construções, como se as tumbas desses santos nunca tivessem existido por lá. Os santos foram literalmente apagados do plano urbano da cidade para se alinhar com as novas visões políticas e religiosas locais. Hoje, existe também o caso dos sons emitidos pelos minaretes das mesquitas na Europa. Há um debate se o chamado para as orações por meio de microfones interfere ou não no espaço público... Rodrigo Toniol: É um tópico fascinante: processos de destruição e construção. No caso, estou me referindo muito mais à destruição. São eventos críticos que abrem espaço para a imaginação. Isso é muito potente. Os casos dos minaretes são significativos. Como eles são construídos, destruídos, se haverá som ou não... Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 e-ISSN: 2359-2419 15 A virada material: entrevista com Rodrigo Toniol Bruno Bartel: Essa questão do som levanta questões importantes. O problema não seria o minarete em si, mas sim quando ele emite sons. Rodrigo Toniol: Sim. Uma saída para isso tem sido a não emissão das chamadas para as preces. Mas podemos verificar que, em alguns casos, criou-se todo um sistema de iluminação para os minaretes durante as chamadas das orações, o que retorna essas questões de um jeito diferente. Bruno Bartel: E ninguém reclama quando a Torre de Paris emite suas luzes à noite como se fosse um grande pisca-pisca, não? Rodrigo Toniol: Exatamente. Temos que olhar para a cidade, ou seja, temos que olhar para o espaço. Tenho descoberto uma bibliografia superinteressante sobre isso. Existe uma biografia mais próxima, mas também existe outra que precisamos trabalhar, conhecer e desenvolver. É isso que tentamos fazer um pouco neste dossiê. Existe uma possibilidade de dialogarmos com a Geografia e com a Sociologia Urbana. Elas ampliam certas questões de um jeito singular. É um debate sobre espaço, certo? Existe uma contribuição a ser feita. Por exemplo, a partir [da obra] de Lefebvre. Bruno Bartel: Estou pensando nas igrejas ortodoxas russas que foram alteradas durante o período soviético e que hoje retomaram sua centralidade nos governos atuais da Rússia. Rodrigo Toniol: Sim, acho incrível tudo isso. Conversões e refuncionalizações dos espaços. Na Europa, essa discussão aparece basicamente devido às igrejas que deixaram de ser templos e viraram bares, por exemplo. No Brasil, essa questão parece meio contrária. As igrejas pentecostais passaram a ocupar espaços que não eram religiosos, como os antigos cinemas. Mas aqui existe uma provocação para pensarmos nessas funções dos espaços e nessas novas formas de circulação. A palavra na ordem do dia é circulação. Isso rende reflexões. Eu moro na Tijuca, ao lado da [Igreja] Nossa Senhora do Líbano. Só de conversar com as pessoas sobre a circulação das coisas que habitam a igreja já renderia algo. Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 e-ISSN: 2359-2419 16 Bruno Ferraz BARTEL e Maria Gleiciane Fontenele PEREIRA Bruno Bartel: Eles se conectam, de alguma forma, com o Oriente Médio. O papel da transnacionalização na construção dos imaginários locais está na ordem do dia, não? Rodrigo Toniol: Sim. As ciências sociais da religião no Brasil ficaram sempre impressionadas com a vinda das pedras de Israel, por exemplo, para a construção do Templo de Salomão. Isso aconteceu porque nunca olhamos para as pedras ou para outras coisas que também circulam o tempo inteiro. Bruno Bartel: Eu ouvi histórias de túmulos de judeus marroquinos que foram transportados para Israel a partir de 1967. Mesmo que a comunidade judaica marroquina não tenha o mesmo peso do passado, é significativo pensar nesses exemplos criativos, onde não se abandona nem mesmo os mortos. Rodrigo Toniol: Isso é outra coisa que pode render muito: olhar para os cemitérios e para os corpos. Como os corpos circulam? Porque aí dá para pensar em materialidade. Uma vez apropriado o debate da materialidade, podemos ter também outras rentabilidades em lugares menos óbvios. Como devemos olhar para os corpos enquanto uma materialidade? Bruno Bartel: Um dos centros rituais sufis que pesquisei no Marrocos tentavam revitalizar seus espaços junto aos projetos da prefeitura local. Uma das justificativas é que esses espaços abrigavam corpos enterrados de membros importantes para a cidade. Havia alguma chance de enquadrar isso a partir da ideia de patrimônio. Havia o tempo todo uma configuração de categorias em jogo, como cultura, religião ou patrimônio. Rodrigo Toniol: Essa trinca [cultura, religião ou patrimônio] é algo que tenho me deparado o tempo inteiro. Quando olhamos para esses objetos, essa modalidade do debate sobre o patrimônio vai ficando mais e mais central. Maria Gleiciane: Eu ainda estava pensando na questão do fixo envolvendo as igrejas católicas, por exemplo. Essas localizações fixas acabam se tornando patrimônio devido à relação delas com suas comunidades reunidas. Mas o que quero destacar são as relações desenvolvidas pelas igrejas evangélicas. Elas mudam de lugar o tempo todo. Isso é diferente no caso de uma igreja católica, pois ela permanece anos naquele mesmo local, e Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 e-ISSN: 2359-2419 17 A virada material: entrevista com Rodrigo Toniol tudo cresce ao redor dela. Muitas cidades se formaram ao redor de uma igreja católica. No entanto, as igrejas evangélicas abrem e fecham suas portas em qualquer lugar. Aqui, teríamos um movimento contrário: não é a cidade que cresce ao redor das igrejas; são elas que se fixam ao redor da cidade. O que você falaria sobre isso? No caso da Umbanda, os terreiros podem se deslocar porque acompanham as trajetórias dos pais e mães de santo. Como pensar nas materialidades desses espaços? Bruno Bartel: Eu desconheço uma etnografia sobre processos de reassentamento [de terreiros]. Rodrigo Toniol: Eu também não conheço. Mas tenho uma aluna que está querendo acompanhar isso. Quanto ao tema anterior, essas circulações que você mencionou têm uma prática na cidade. Elas estão produzindo a cidade e os mapas desta cidade. A pergunta que surge é: que cidade é essa que está sendo feita por essas práticas religiosas? Eu vejo duas questões. A primeira diz respeito ao papel das igrejas itinerantes que atualizam o valor dessa circulação em espaços urbanos e de como a cidade vai sendo produzida também por essas igrejas. A segunda são as casas de oração que se transformam em igrejas, especialmente aos domingos. No caso do universo evangélico, em determinado momento, a casa vira o espaço sagrado ou o espaço da igreja. Tudo isso chama a atenção para esse fluxo e para a circulação. Isso faz com que a gente, de fato, passe a olhar para esses templos e espaços religiosos a partir de uma visão antifixidez. Bruno Bartel: Casas de cristãos carismáticos que transformam seus espaços íntimos em locais de culto aos domingos... Maria Gleiciane: Casas de católicos que organizam novenas... Rodrigo Toniol: Exato. Mas isso não aparece nos trabalhos. O jeito como pensamos a religião não é a partir dessa circulação ou desse tipo de ocupação no espaço. Exemplos como estes são perfeitos, pois apresentam materialidade, espaço e circulação. Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289 e-ISSN: 2359-2419 18 %UXQR)HUUD]%$57(/H0DULD*OHLFLDQH)RQWHQHOH3(5(,5$ &5HGL7$XWKRU6WDWHPHQW  5HFRQKHFLPHQWRV1DGDDGHFODUDU  )LQDQFLDPHQWR(VWHHVWXGRIRLILQDQFLDGRSHOD)$3(5-)XQGDomR&DUORV&KDJDV)LOKR GH$PSDURj3HVTXLVDGR(VWDGRGR5LRGH-DQHLUR3URFHVVR6(,  &RQIOLWRVGHLQWHUHVVH1mRKi  $SURYDomRpWLFD6LP  'LVSRQLELOLGDGHGHGDGRVHPDWHULDO6LP  &RQWULEXLo}HV GRV DXWRUHV %UXQR )HUUD] %DUWHO WUDEDOKRX QD FRQFHSomR GR DUWLJR QD UHYLVmRGHFRQWH~GRHQDUHGDomRILQDOGRPDQXVFULWR0DULD*OHLFLDQH)RQWHQHOH3HUHLUD %)%WUDEDOKRXQDFRQFHSomRGRDUWLJRHQDUHYLVmRGHFRQWH~GR                                  3URFHVVDPHQWRHHGLWRUDomR(GLWRUD,EHUR$PHULFDQDGH(GXFDomR 5HYLVmRIRUPDWDomRQRUPDOL]DomRHWUDGXomR   5HY&DGHUQRVGH&DPSR$UDUDTXDUDYQHVSH '2, KWWSVGRLRUJFGFYLHVS  H,661