A VIRADA MATERIAL: ENTREVISTA COM RODRIGO TONIOL
EL GIRO MATERIAL: ENTREVISTA A RODRIGO TONIOL
THE MATERIAL TURN: INTERVIEW WITH RODRIGO TONIOL
Bruno Ferraz BARTEL1
e-mail:
[email protected]
Maria Gleiciane Fontenele PEREIRA2
e-mail:
[email protected]
Como referenciar este artigo:
BARTEL, B. F.; PEREIRA, M. G. F. A virada material:
entrevista com Rodrigo Toniol. Rev. Cadernos de Campo,
Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024. e-ISSN: 23592419. DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289
| Submetido em: 15/03/2024
| Revisões requeridas em: 01/04/2024
| Aprovado em: 02/04/2024
| Publicado em: 30/09/2024
Editores: Profa. Dra. Maria Teresa Miceli Kerbauy
Prof. Me. Thaís Cristina Caetano de Souza
Prof. Me. Paulo Carvalho Moura
Prof. Thiago Pacheco Gebara
Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio De Janeiro – RJ – Brasil. Doutor em Antropologia pela
Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGAnt)
da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Integrante do Instituto de Estudos Comparados em Administração
Institucional de Conflitos (INCT-InEAC) e do Núcleo de Estudos do Oriente Médio (NEOM) da UFF.
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Universidade Federal do Piauí (UFPI), Teresina – PI – Brasil. Mestre em Antropologia do Programa de PósGraduação em Antropologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI).
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Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024.
DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289
e-ISSN: 2359-2419
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A virada material: entrevista com Rodrigo Toniol
RESUMO: Na entrevista, Rodrigo Toniol discute seu percurso desde a sua formação
acadêmica até sua participação em projetos relacionados à consolidação de um campo de estudo
sobre as materialidades na antropologia brasileira. O autor argumenta que, em alguns casos,
precisamos unir a virada espacial com a virada material para pensarmos a religião.
PALAVRAS-CHAVE: Virada Material. Virada espacial. Religião.
RESUMEN: En la entrevista, Rodrigo Toniol discute su trayectoria desde su formación
académica hasta su participación en proyectos relacionados con la consolidación de un campo
de estudio sobre las materialidades en la antropología brasileña. El autor argumenta que, en
algunos casos, necesitamos combinar el giro espacial con el giro material para pensar en la
religión.
PALABRAS CLAVE: Giro material. Giro espacial. Religión.
ABSTRACT: In the interview, Rodrigo Toniol discusses his journey from his academic
formation to his participation in projects related to the consolidation of a field of study on
materialities in Brazilian anthropology. The author argues that, in some cases, we need to
combine the spatial turn with the material turn to think about religion.
KEYWORDS: Material Turn. Spatial Turn. Religion.
Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024.
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Bruno Ferraz BARTEL e Maria Gleiciane Fontenele PEREIRA
Rodrigo Toniol é professor adjunto no Departamento de Antropologia Cultural da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da
Unicamp. Eleito membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências. Possui bolsa de
produtividade do CNPq e é graduado em Ciências Sociais, com mestrado e doutorado em
Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Durante parte de seu
doutoramento, realizou estudos no Programa de Antropologia da University of California San
Diego (UCSD). Também foi pesquisador visitante no Ciesas/Guadalajara (México) e na
Universidade de Utrecht (Holanda).
Suas pesquisas se concentram nos temas de corpo, saúde, ciência e religião. Entre seus
trabalhos, destacam-se a função de editor e autor da “Encyclopedia of Latin American
Religions” (ed. Springer), a autoria dos livros “On the Nature Trail” (ed. N.Science Publishers,
2015) e “Do Espírito na Saúde” (Ed. LiberArs, 2018), além da organização de obras como
“Conservadorismos, Fascismos e Fundamentalismos” (Ed. Unicamp, 2018), “Como as Coisas
Importam: Uma Abordagem Material da Religião” (ed. UFRGS, 2019), “Cientistas Sociais e
o Coronavírus” (ed. Anpocs, 2020), “Entre Trópicos: Diálogos de Estudios Nueva Era entre
México y Brasil” (Casa Chata, 2018) e “Religião e Materialidades” (Papeis Selvagens, 2021).
Na entrevista, Rodrigo Toniol discute seu percurso desde a sua formação acadêmica até
sua participação em projetos relacionados à consolidação de um campo de estudo sobre as
materialidades na antropologia brasileira.
Bruno Bartel: Quando, ao longo de sua trajetória acadêmica, você deparou-se com esse
ponto de inflexão em relação à temática das materialidades?
Rodrigo Toniol: Vou tentar percorrer esse caminho. O primeiro capítulo do livro que escrevi,
intitulado “Religião e materialidades: Novos horizontes empíricos e desafios teóricos”, em
parceria com Renata Menezes, professora da UFRJ/Museu Nacional, aborda esse aspecto.
Minha incursão na temática da materialidade está relacionada ao meu interesse pelo debate
acerca do corpo. Isso ocorreu durante meu doutorado sanduíche na UC San Diego,
supervisionado por Thomas Csordas. Ele é um estudioso que desenvolve e fundamenta toda
uma perspectiva sobre a corporeidade. A abordagem de Csordas sobre o corpo, fortemente
embasada na fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty, destaca a relação fundamental entre o
corpo e o mundo. É interessante notar que, à medida que comecei a focar no corpo e a refletir
sobre ele, passei também a contemplar o mundo. Passei a refletir sobre aquilo que no mundo
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A virada material: entrevista com Rodrigo Toniol
gera engajamento corporal. É essa espécie de envolvimento com o mundo que proporciona ao
corpo uma série de sensações incríveis ou experiências de maravilhamento. Nesse momento,
minha incursão no debate sobre materialidade estava intrinsecamente ligada a uma perspectiva
fenomenológica, envolvendo autores como Merleau-Ponty, Csordas e Tim Ingold. Foi assim
que esses pensadores passaram a influenciar meu trabalho.
Bruno Bartel: Incluiria também o trabalho de Thomas Csordas nessa relação entre
materialidade e corpo?
Rodrigo Toniol: Eu incluiria, embora não saiba se ele incluiria o próprio trabalho nisso. Ele
está há anos escrevendo um livro sobre o assunto, mas que nunca foi lançado, e eu acredito que
nunca será, para ser honesto. Ele está envolvido em outras atividades, como fazer música. Mas
seria um livro no qual ele tentaria desenvolver a noção de materialidade. No entanto, o debate
dele sobre o corpo não envolve a questão da materialidade. Ele inclusive tem muitas
discordâncias com o [Tim] Ingold, por exemplo. Csordas comenta que um dos problemas dessa
antropologia, que se inclina muito para o campo da materialidade ou para a antropologia dos
fluxos, é que elas acabam obscurecendo os humanos. O que nos interessa são os humanos.
Nunca podemos esquecer disso. Acho que há uma tensão nessa proposta por ele. Curiosamente,
tudo isso despertava meu interesse teórico. Minha pesquisa inicial, por exemplo, mesmo não
tinha nada a ver com isso, seja com materialidade ou essas outras questões. Foi quando terminei
o doutorado na Unicamp e fui fazer um pós-doutorado que me interessei muito teoricamente
pelo debate sobre materialidade. Fui para a Holanda porque, empiricamente e teoricamente,
isso me interessava. Comecei a pesquisar a relação entre saúde, espiritualidade e ciência. Fiz
uma pesquisa extensa sobre como a noção de espiritualidade era mobilizada pelas ciências
médicas. Como os médicos mobilizam a noção de espiritualidade? Fui para a OMS, laboratórios
de pesquisa médica, clínicas e o Hospital das Clínicas de São Paulo. O que encontrei foi algo
muito instigante devido à produção extensa da medicina sobre o tema da saúde e espiritualidade.
Basicamente, os médicos dizem o seguinte: se você tiver mais espiritualidade, enfartará menos.
Esse é o tipo de formulação que muitos médicos produzem a partir de pesquisas. No entanto,
para fazer uma formulação como essa, eles precisam criar uma métrica da espiritualidade.
Precisam criar algum tipo de critério para medir espiritualidade. Segundo minha elaboração,
eles precisam materializar a espiritualidade. Precisam transformar esse conceito tão abstrato em
uma entidade descritível, manipulável e observável. Quando fui para o pós-doutorado, minha
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reflexão era como a espiritualidade se transformava em materialidade para a medicina, seja em
um gráfico, número ou exame. Minha pergunta era: como a espiritualidade se torna um objeto
material ou algo circunscrito?
Bruno Bartel: E isso, de alguma maneira, já aparecia na sua tese de doutorado sobre o
SUS?
Rodrigo Toniol: Mais ou menos. Na verdade, não. A questão da materialidade, conforme
aparece na minha tese sobre terapias alternativas no SUS, está relacionada aos medicamentos e
procedimentos médicos. Contudo, na época, não me aprofundei nesse aspecto. De fato, não
dediquei tanta atenção quanto poderia. Viajei para Utrecht, na Holanda, para integrar o
departamento de Filosofia e Ciência da Religião (Religion Studies) e trabalhar com Birgit
Meyer. Fiquei lá por quase três anos, somando todos os períodos. Birgit liderava um projeto
extenso, sendo uma africanista que pesquisa há muitos anos sobre Gana e questões relacionadas
aos pentecostais locais. Desde os anos 2000, ela se uniu a outros importantes pesquisadores do
campo, como Matthew Engler, formando um grupo relevante na produção da Material Religion
(Religião Material). Juntos, fundaram um periódico, e Birgit liderava um projeto milionário
para investigar “how religious matters” Uso a expressão em inglês porque acredito que há um
jogo de palavras crucial: “matters”como materialidade e algo que importa. Tentamos refletir
isso no título do livro [“Como as Coisas Importam: Uma Abordagem Material da Religião”],
mas em português perde seu sentido. Essa era a atmosfera quando cheguei lá. No entanto, o que
encontrei foi um grupo muito ativo e diversificado em termos de composição. As pessoas
vinham da antropologia, filosofia e estudos de religião, pesquisando temas diversos, mas todos
centrados na temática da religião material. Mas o que significa pensar em religião material nesse
contexto? De modo geral, o interesse das ciências sociais por coisas e objetos é histórico, sendo
um tema clássico. Podemos remeter a Malinowski em uma aula sobre a circulação de colares e
braceletes, onde os objetos desempenham um papel importante. No entanto, no campo da
religião material, há uma formulação verdadeiramente inovadora. Isso provoca deslocamentos,
pois não se trata apenas de observar as materialidades ou objetos, mas de compreender que a
religião é materialidade. Isso representa um corte significativo em relação à maneira como as
ciências sociais tradicionalmente elaboram a noção de religião, focando no simbólico, ritual ou
ideias em um nível cognitivo. Birgit argumenta que nossa abordagem da religião [de forma
iconoclasta] é resultado de um viés protestante. Isso propõe repensar a questão da colonialidade
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a partir da noção de religião. Como podemos deslocar nossa compreensão da religião não por
um viés protestante, mas sim a partir de suas materialidades? Birgit destaca que a materialidade
é fundamental, defendendo que objetos num contexto religioso não são meras representações,
pois são a própria religião; não há religião sem objetos. Isso é um foco de pesquisa para Birgit.
Ainda não sei se vou por esse caminho, mas é uma proposta forte. Ela define religião como
aquilo que transforma o invisível em visível, conferindo visibilidade às coisas. Nessa
formulação, a religião seria um princípio de visibilização ou materialização, ou seja, tornar
tangível o que é intangível. Essa seria uma definição do fenômeno religioso. No Brasil,
tínhamos apenas uma tradução dos textos de Birgit, feita por Carly Machado, professora da
UFRRJ, na revista Campus da UFPR. E só. Havia muito pouca literatura sobre materialidade e
religião naquele momento.
Bruno Bartel: Se eu não me engano, esse texto indicava a relação entre religião e mídia,
certo?
Rodrigo Toniol: Isso, exatamente. É por esse caminho que a Carly inicia o debate, pela coisa
da mídia3.
Bruno Bartel: Mas você estava comentando algo sobre sua experiência na Holanda. O que
era?
Rodrigo Toniol: Sim, mas isso exige uma contextualização mais institucional. Existe um ponto
que é a relação da Holanda com alguns pesquisadores, acadêmicos e antropólogos brasileiros
de longa data. Isso tem um caminho e uma trajetória que é institucionalmente importante. Vou
falar brevemente sobre isso. Existe um começo marcante a partir das relações entre os
professores André Droogers e Ary Pedro Oro [professor da UFRGS]. André pesquisou durante
muito tempo os pentecostais na América Latina. Então o caminho [empírico] foi via os
[movimentos] pentecostais. Antes disso, no Brasil, teve a tese da Marjo de Theije, uma
holandesa que fez pesquisas sobre catolicismo popular no Nordeste. Ela pesquisou na cidade
de Garanhuns e publicou um livro chamado “Tudo o que é de Deus é bom: uma antropologia
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Disponível em: https://ojs.homologa.ufpr.br/campos/article/view/53445. Acesso em: 10 jan. 2024.
Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024.
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do catolicismo liberacionista em Garanhuns, Brasil”4]. Inicialmente, a tese da Marjo foi sobre
essa temática e tinha esse vínculo com Ari. Também no Nordeste, Mísia Reesink [professora
da UFPE] tinha uma relação antiga com a Holanda. A partir daí, começa um fluxo: Carlos Steil
[professor da UFRGS] vai para a Holanda inicialmente. Depois disso, João Rickli [professor da
UFPR] faz seu doutorado na Holanda e um pós-doutorado com Birgit. E junto comigo irá
Emerson Giumbelli [professor da UFRGS]. Isso ajudou a estabelecer convênios. Várias pessoas
da Unicamp foram para a Holanda devido a esse vínculo, ou seja, a partir desse fluxo. Por
exemplo, Bruno Reinhardt [professor da UFSC] fez um pós-doutorado na Holanda com Birgit.
Além disso, Carly continua a visitar a Holanda com muita frequência, por várias razões, entre
as quais eu destacaria duas pessoas: Martijn Oosterbaan, que faz pesquisa em favelas no Rio de
Janeiro há anos (décadas, na verdade), e Mattijs Van de Port, que pesquisa candomblé na Bahia.
Eu diria que esse é o grupo que cria uma relação muito íntima entre Brasil e Holanda.
Buno Bartel: O contexto de publicação do livro “Aesthetic Formations: Media, Religion,
and the Senses” [editada por Birgit Meyer em 2009] celebra o encontro desse grupo, não?
Rodrigo Toniol: É isso aí. Essa publicação é um marco dessa conversa. Isso demonstra o fluxo
desses pesquisadores. Entre os pesquisadores brasileiros, a Holanda virou um lugar para
conhecer outros pesquisadores. Eu destacaria a relação que Jeremy Stolow, um pesquisador
canadense, estabeleceu com o Brasil. Ele acabou de publicar um livro sobre aura incrível. Mas
isso tem a ver com o fato de o Jeremy ir para Holanda também. Quando eu estava lá, Emerson
Giumbelli também estava inserido no grupo da Birgit. Foi lá que surgiu essa ideia de produzir
uma tradução de textos da Birgit. Foi um processo muito legal, desde a seleção dos textos,
porque esse livro, enquanto uma composição de artigos específicos, só existe em português. Foi
uma composição que montamos junto com ela. No final, foi uma seleção de artigos que
achávamos que fazia sentido. Nós tínhamos uma parceria com colegas da UFRGS para produzir
as traduções. Porém, ficamos muito tempo tomando decisões com a Birgit sobre os modos de
traduzir algumas coisas que eram difíceis, que envolviam várias questões. Posso falar um pouco
sobre isso depois. Quando eu volto para o Brasil, conseguimos lançar o livro pela editora da
UFRGS, que foi um super sucesso. O livro está esgotado e nem tem mais para vender devido
Sobre o livro, ver a resenha de Braga AM da C. Tudo que é de Deus é bom: uma antropologia do catolicismo
liberacionista em Garanhuns, Brasil. Horizontes antropológicos, 10 (22): 364-372, 2004.
https://doi.org/10.1590/S0104-71832004000200017. Acesso em: 10 de janeiro de 2024.
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Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024.
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ao limite das editoras universitárias. Não que elas não conseguem dar conta do mercado. Mas
o livro circulou bastante. Eu acho que essa tradução para o português ajudou bastante para a
circulação desse debate. Nós incluímos uma entrevista com ela, por exemplo.
Buno Bartel: E vocês têm planos para uma próxima edição?
Rodrigo Toniol: Editora universitária é uma coisa muito difícil.
Buno Bartel: Você tem mais ou menos uma ideia de quanto foi a tiragem na época?
Rodrigo Toniol: 500 exemplares. Terminou em seis meses. Eu disponibilizei no meu [site do]
academia.edu5. Quando voltei da Holanda, publicamos o livro e trouxemos Birgit para o Brasil.
Ela circulou bastante pelo Brasil. Logo em seguida, trouxemos Csordas também. Mas foi
somente quando retornei ao Brasil que passei a estreitar relações com Renata Menezes. Já nos
conhecíamos, mas ela tinha um GT [grupo de trabalho] na ABA [Associação Brasileira de
Antropologia]. Acredito que a primeira edição disso, não tenho certeza, foi feita com Ronaldo
[de Almeida – professor da Unicamp]. Ele foi meu colega e trabalhava na Unicamp. Quando
retornei, Renata propôs uma reedição [do GT]. No entanto, várias pessoas do grupo de Renata
também estavam trabalhando com a temática das materialidades. Ela conduzia uma pesquisa
sobre Cosme e Damião. Na Unicamp, várias pessoas também estavam trabalhando com outros
temas. Planejamos realizar um seminário, mas optamos por duas ações: um seminário na
Unicamp reunindo o grupo dela [do Museu Nacional] com as pessoas da Unicamp que
trabalhavam com o tema das materialidades, e o GT na RBA [Reunião Brasileira de
Antropologia]. Dessa união surgiu a ideia do livro "Religião e Materialidades”. Na introdução
do livro, explicamos um pouco sobre isso. A entrada de Renata nesse debate segue outros
caminhos. É um debate mais francês, pois se apropria de outras literaturas e bibliografias. Isso
é interessante porque também amplia nossa imaginação. Eu acho que esse livro apresenta
muitas situações em que é possível olhar para as materialidades a partir da religião.
Disponível
em:
https://www.academia.edu/42285540/Como_as_coisas_importam_Uma_abordagem_material_da_religi%C3%A
3o_Intro_ Acesso em: 01/02/2024.
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Buno Bartel: Quais serão seus próximos passos nesta temática?
Rodrigo Toniol: Assim que publicamos esse livro e encerrou meu período da bolsa de
produtividade sobre a temática da espiritualidade, iniciei um novo projeto. O primeiro texto
desse projeto será publicado na revista Religião & Sociedade [A vida, a morte e o pós-vida das
materialidades de uma igreja demolida para a construção da Avenida Presidente Vargas, no Rio
de Janeiro], assinado por Marcella Araújo [professora da UFRJ] que pesquisa cidades. O tema
da pesquisa são igrejas católicas demolidas. Eu comecei a observar o processo de demolição de
várias igrejas católicas. Existem três casos iniciais que são muito interessantes, as igrejas que
foram demolidas para a construção da Avenida Presidente Vargas, no centro do Rio de Janeiro.
Basicamente, o que estou propondo com a equipe de bolsistas é que sigamos os objetos das
igrejas demolidas. A pergunta norteadora é: o que aconteceu com os objetos ou com as
materialidades? Existem três aspectos que gostaria de destacar aqui. O primeiro é que somente
olhando a partir da temática da materialidade é que consigo realizar essa pesquisa. É apenas
porque presto atenção nisso que consigo observar igrejas demolidas e construir um problema.
E ao construí-lo, sobre a materialidade das igrejas, podemos deslocar a ideia do templo como
um lugar fechado, encerrado em si mesmo. Ao olharmos para as igrejas e para a circulação dos
objetos, percebemos um fluxo imenso entre objetos e igrejas. Não só nas igrejas que ainda estão
de pé, mas, sobretudo, no meu caso, [os objetos] das igrejas demolidas vão para vários outros
lugares. Conseguimos provocar um pouco a ideia do templo como um espaço fechado ou
encerrado. Parto da ideia de entender os templos como um espaço de muita circulação. O
segundo aspecto refere-se à observação da circulação dos objetos das igrejas demolidas. O que
já temos mapeado, e isso será abordado no artigo, é como esses objetos passam a se inscrever
em universos absolutamente diferentes do universo religioso. Ou seja, eles começam a circular,
por exemplo, em museus. Tornam-se peças em leilões de arte ou decoração em prédios civis
públicos. Existe outra questão que é: o que fazer com os corpos enterrados nas igrejas? Há,
portanto, uma circulação entre cemitérios. Alguns desses objetos, por exemplo, acabam em
outras igrejas, ocupando outros lugares. O terceiro ponto seria o tamanho da agenda de pesquisa
que comecei a considerar a partir da temática material. Minha sensação é que abri uma caixa
de Pandora. Começamos a fazer um levantamento das igrejas demolidas no Brasil. Só no século
XX, a Igreja Católica possui mais de 200 igrejas catalogadas, várias devido a obras viárias. A
circulação desses objetos é incrível para pensar, por exemplo, a presença da religião no espaço
público. Isso abre uma série de questões e é isso que estou me dedicando agora. O debate sobre
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A virada material: entrevista com Rodrigo Toniol
a materialidade me leva a pensar nos templos religiosos e algo além dos próprios templos, que
seria uma espécie de pós-vida dos objetos. Outro ponto tem sido o impacto dessa chamada
virada material. Ao olharmos para as igrejas e esses processos de demolição, existe outra virada
que a antropologia ainda não incorporou: a virada espacial. Ou seja, como iremos pensar o
espaço na religião ou a relação entre religião e espaço? Acho que ainda discutimos pouco sobre
isso. O espaço é usualmente visto como paisagem ou cenário.
Bruno Bartel: Ou atrelado aos velhos sistemas de classificações, certo?
Rodrigo Toniol: Exatamente. Mas eu acho que nós pensamos muito pouco sobre a produção
do espaço, que é um tema muito clássico para a Geografia e a Sociologia Urbana.
Bruno Bartel: Eu acho tudo isso muito curioso, pois sou formado em Geografia. Saí da
Geografia para estudar outras coisas nas Ciências Sociais.
Rodrigo Toniol: Vamos ter que voltar para o [Henri] Lefebvre. Mas acho que há algo
importante aqui. Marcella, o grupo e eu temos uma pesquisa sobre a construção da Avenida
Presidente Vargas. Foi daí que surgiu esse olhar para as igrejas demolidas. Mas começamos a
descobrir uma literatura que, pelo menos eu, particularmente, não conhecia e que foi
recentemente publicada no início de 2023. Em maio, foi publicado um dossiê chamado “Ritos
e Pedras”, numa revista chamada Espaço e Cultura, que nós traduzimos. Tudo isso será
publicado na revista Debates do NER. Basicamente, o argumento é que precisamos unir a virada
espacial com a virada material para pensar a religião. Existem casos em que espaço e religião
importam de várias maneiras. Darei um exemplo contido no dossiê que mencionei de uma
antropóloga indiana chamada Leilah Vevania. Ela conta a história de dois templos zoroastristas
que seriam afetados pela construção do metrô em Mumbai. Isso que seria um objeto clássico da
Sociologia ou da Geografia não aparece na Antropologia Urbana. Ou seja, encerramos o templo
nele mesmo, não olhamos para o espaço e para as coisas. Enfim, meu direcionamento agora é
passar a olhar para o espaço com mais atenção.
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Bruno Bartel: Você diria que essa quase obsessão por pontos fixos ainda estaria ligada a
uma leitura durkheimiana a partir da divisão entre sagrado e profano?
Rodrigo Toniol: Absolutamente. Eu acho que esse é o ponto. Resolvemos a charada.
Bruno Bartel: Isso é interessante de ver na obra de Talal Asad. Quando ele constrói a
noção de secularismo, é com base nessa discussão. A Igreja Católica construiu seus pontos
fixos para depois diluí-los.
Rodrigo Toniol: Exatamente.
Bruno Bartel: A própria ideia dele acerca da religião já diz muito sobre isso, não? Para
Asad, a categoria religião não deixa de ter essa base [espaços fixos]. Se Birgit reflete a
partir do protestantismo, Asad refletiria a partir do mundo cristão [católico].
Rodrigo Toniol: Sim. Acho que estamos em uma posição privilegiada para juntar essas coisas.
Eu acho mesmo que temos algo para contribuir a partir da formação das nossas cidades e da
formação do nosso espaço público a partir dos espaços religiosos.
Bruno Bartel: Você me fez lembrar algo das aulas de Geografia Urbana. As cidades
europeias possuíam a formação “x”; as cidades árabes formavam o tipo “y”; as nossas
seriam...
Rodrigo Toniol: Exato. Ficamos com uma visão fixa sobre essas coisas. Não enxergamos essa
circulação ou esses fluxos. Eu confesso que, olhando e fazendo essa pesquisa, do ponto de vista
de como os objetos circulam, eu fico muito feliz, mas, ao mesmo tempo, também muito
frustrado por não ter visto isso antes. Nossa imaginação sociológica é muito fixa. O cerne de
toda essa questão da materialidade é também pensar essa circulação das coisas. Essa seria uma
vantagem devido à abertura sociológica feita sobre nossa imaginação da vida social das coisas.
Vemos uma coisa circulando e virando outra coisa. Isso é um convite para olharmos para o
fluxo e para a transformação. Isso seria um bom ponto de partida para deixarmos de fixar as
coisas.
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A virada material: entrevista com Rodrigo Toniol
Bruno Bartel: Quando você fala em fluxos, destacaria uma certa diferença desta noção
diante de uma leitura processual clássica? Se tudo é fluxo, não corremos o risco de vê-lo
como algo que se estende ao infinito? Se não, quando é que ele termina? Uma das minhas
grandes críticas à análise processual decorre desta visão de que o processo nunca termina.
Qual seria a diferença entre fluxo e processo?
Rodrigo Toniol: É bom que você tenha perguntado isso. Eu acho que esse problema existe.
Faço essa crítica também. Compartilho isso com você. Essa é uma boa pergunta: onde se deve
parar com a análise da rede?
Bruno Bartel: Voltamos à questão do velho [Franz] Boas. Quando termina a pesquisa
etnográfica? Ele foi de um grupo para outro até...
Rodrigo Toniol: É meio paranoico, não? Tudo está conectado...
Bruno Bartel: Uma obsessão típica do pensamento iluminista, não? Uma totalidade que
precisa ser analisada...
Rodrigo Toniol: Sim, eu tive que lidar com esse problema de um jeito bem pragmático: onde
irei cortar a minha pesquisa? Como irei propor esse projeto? Existem duas coisas que gostaria
de destacar. A primeira é que a pesquisa tem fases muito claras. Ao observar as igrejas
demolidas, percebo três momentos distintos: a) as controvérsias sobre a demolição desses
locais; b) os processos que conduzem as obras de demolição (podem acontecer muitas coisas
aqui, por exemplo, quando uma série de funcionários se recusa a destruir uma igreja. A ação de
uma martelada no altar não seria algo trivial, certo?); e c) o pós-vida, que são as próprias
circulações dos objetos envolvidos (o que aconteceu com os objetos até este momento?).
Portanto, existe um corte bastante preciso aqui. Além disso, esta é uma pesquisa baseada em
pesquisa de arquivos. Neste caso, estou essencialmente examinando documentos. Minhas
bolsistas e eu estamos imersos na Biblioteca Nacional, explorando a hemeroteca e a coleção de
jornais. Leitura de jornais antigos é fundamental para construir essas controvérsias. No caso de
algumas igrejas tombadas, os dossiês do IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional] têm sido muito úteis. Estamos lendo cartas. É uma antropologia de arquivo a partir
Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024.
DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289
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Bruno Ferraz BARTEL e Maria Gleiciane Fontenele PEREIRA
dos documentos. Neste caso, a pesquisa está rigidamente circunscrita a este universo. Portanto,
não há muita margem para cair na paranoia de que tudo está conectado com tudo.
Bruno Bartel: Você já deixou isso claro no título desta sua produção que será publicada
agora [na revista Religião & Sociedade].
Rodrigo Toniol: Exato. Meu movimento tem sido como alguém que observa e se interessa pelo
campo da materialidade. Curiosamente, tenho direcionado meu olhar para o universo da Igreja
Católica, que é absolutamente material e bastante explorado, mas ainda muito estático. Eu
desejo examinar esses fluxos e transformações a partir das materialidades. Pois, mesmo quando
os templos caem, as materialidades permanecem. O campo da religião tem recebido mais
atenção nos últimos anos, devido às questões políticas envolvendo a religião. Todo mundo está
observando isso. Há várias questões políticas hoje, desde o conflito Israel-Palestina até nossas
políticas domésticas. Eu acho que há um risco de simplesmente ficar respondendo a essas
contingências. Existe um risco de deixar de lado as reflexões diárias sobre as coisas não
contingenciais ou mais estruturais do pensamento da antropologia da religião e da sociologia
da religião. Há uma espécie de canto da sereia em querer responder às demandas públicas do
momento, como nas eleições. Todos os pesquisadores de religião são convocados novamente:
tomar posição ou falar sobre o tema? Eu fico um pouco preocupado, confesso, olhando para os
GTs sobre religião. Eles têm sido quase todos monotemáticos. Daí a nossa tentativa, minha e
do João Rickli, de retomar um GT clássico da ANPOCS [Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Ciências Sociais] sobre religião e sociedade. Temas abertos assim:
vamos falar sobre religião. Aí, cabe todo mundo. Porque o debate é sobre religião. Assim, ele
seria menos segmentado.
Bruno Bartel: Quando você enfatiza as controvérsias, eu fico imaginando não apenas no
peso das intenções dessas ações, mas também nas ambiguidades, paradoxos e contradições
dessas situações. Paula Monteiro desenvolveu essa questão das controvérsias da religião
para o caso brasileiro. No caso do mundo islâmico, existem os trabalhos de Samuli
Schielke, que confronta as proposições de Saba Mahmood. O papel das contradições na
produção da vida diária me parece fundamental aqui. Mesmo que ele não foque na
questão dos objetos, mas sim na construção dos modos de vida dos muçulmanos. Essa
ideia da controvérsia seria muito salutar no caso dos objetos, não?
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A virada material: entrevista com Rodrigo Toniol
Rodrigo Toniol: Eu poderia dizer duas coisas sobre isso. A primeira seria mencionar que
acabei de publicar um texto em um dossiê da [revista] Sociologia & Antropologia [da UFRJ]
sobre [Michael] Taussig. Fizemos uma tradução.
Bruno Bartel: Um texto com o título de desfiguração6?
Rodrigo Toniol: Sim. O texto foi elaborado pelo Emerson [Giumbelli] anos atrás.
Bruno Bartel: Eu vi alguns nomes conhecidos envolvidos no texto, como Christina Vital
da Cunha e Edilson Pereira. São pessoas com as quais já convivi em eventos acadêmicos.
Rodrigo Toniol: Ótimo. Na época, fizemos uma entrevista com ele [Taussig], e eu escrevi um
texto tentando sistematizar o que ele pensa sobre religião e magia. Voltando ao tema da
controvérsia e tendo a obra dele como foco, a noção de transgressão seria fundamental. Um ato
transgressor possuiria uma ação de absoluta ativação do sagrado, pois, na medida em que você
o ataca, você ativa aquilo que há de mais sagrado no sagrado. Isso é uma imagem muito
poderosa, sobretudo lendo os materiais nos quais estou me debruçando na pesquisa. Nos casos
em que se quer destruir uma igreja, o que se faz com ela? Às vezes, pode-se tentar uma ação de
preservação, acionando a ideia da sacralidade diante das marretadas que ela começa a receber.
Porém, existe um lado da controvérsia durante a realização dessa obra. Por exemplo, a ação do
operário que dá marretadas visando demolir a igreja produz toda uma série de crônicas. E há
outro lado que é da controvérsia pública. Por exemplo, a demolição da Igreja de São Pedro dos
Clérigos. Ela era uma igreja muito importante e uma das primeiras tombadas pelo IPHAN. A
controvérsia pública em torno desta igreja não era a partir do suposto aspecto sagrado contido
nela, mas sim a partir do seu valor artístico e histórico. Isso é curioso. Se a gente ficar só olhando
e tentando entender as controvérsias sem considerar os objetos religiosos, deixaremos de ver
muita coisa. O caso dessa igreja não era apenas uma questão de controvérsia religiosa. Ela se
dá noutros termos. Ela é uma controvérsia em termos de destruição de um patrimônio nacional.
Disponível
https://www.academia.edu/109950888/Desfigurac_a_o_Michael_Taussig_Tradu%C3%A7%C3%A3o_
em: 01 fev. 2024.
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Rev. Cadernos de Campo, Araraquara, v. 24, n. esp. 1, e024012, 2024.
DOI: https://doi.org/10.47284/cdc.v24iesp.1.19289
em:
Acesso
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Bruno Ferraz BARTEL e Maria Gleiciane Fontenele PEREIRA
Além disso, existiram várias tentativas de preservação da igreja e do traçado da avenida
[Presidente Vargas], que tinha que ser em linha reta.
Bruno Bartel: E a [Igreja da] Candelária posicionada como se tudo desembocasse nela,
certo?
Rodrigo Toniol: Haveria um problema nela, pois ela estaria de costas [com relação à avenida].
É muito curioso ler as cartas sobre isso porque eles tentam achar soluções técnicas. Inclusive,
uma delas seria reposicionar a Candelária. Paula Montero e Carlos Procópio acabaram de
publicar um livro chamado “Arquiteturas Religiosas e a Construção da Esfera Pública”. É
muito legal olhar para esse processo de construção contido no livro enquanto eu estou olhando
um pouco para o avesso dessa história que é a destruição. Seria a construção da esfera pública
da religião a partir da destruição e não da construção.
Bruno Bartel: Destruição enquanto um projeto, certo?
Rodrigo Toniol: Exatamente.
Bruno Bartel: Você está me fazendo lembrar de outro contraponto em termos da
historiografia de países de maioria muçulmana. Na Arábia Saudita, por exemplo, muitos
mausoléus de santos [homens dotados de uma capacidade miraculosa] foram destruídos.
Locais como esses possuem, por exemplo, uma presença significativa especialmente no
Norte da África, como no caso do Marrocos, onde realizei pesquisas etnográficas. Na
Arábia Saudita, em meados do século XIX, houve uma destruição dessas construções,
como se as tumbas desses santos nunca tivessem existido por lá. Os santos foram
literalmente apagados do plano urbano da cidade para se alinhar com as novas visões
políticas e religiosas locais. Hoje, existe também o caso dos sons emitidos pelos minaretes
das mesquitas na Europa. Há um debate se o chamado para as orações por meio de
microfones interfere ou não no espaço público...
Rodrigo Toniol: É um tópico fascinante: processos de destruição e construção. No caso, estou
me referindo muito mais à destruição. São eventos críticos que abrem espaço para a imaginação.
Isso é muito potente. Os casos dos minaretes são significativos. Como eles são construídos,
destruídos, se haverá som ou não...
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A virada material: entrevista com Rodrigo Toniol
Bruno Bartel: Essa questão do som levanta questões importantes. O problema não seria
o minarete em si, mas sim quando ele emite sons.
Rodrigo Toniol: Sim. Uma saída para isso tem sido a não emissão das chamadas para as preces.
Mas podemos verificar que, em alguns casos, criou-se todo um sistema de iluminação para os
minaretes durante as chamadas das orações, o que retorna essas questões de um jeito diferente.
Bruno Bartel: E ninguém reclama quando a Torre de Paris emite suas luzes à noite como
se fosse um grande pisca-pisca, não?
Rodrigo Toniol: Exatamente. Temos que olhar para a cidade, ou seja, temos que olhar para o
espaço. Tenho descoberto uma bibliografia superinteressante sobre isso. Existe uma biografia
mais próxima, mas também existe outra que precisamos trabalhar, conhecer e desenvolver. É
isso que tentamos fazer um pouco neste dossiê. Existe uma possibilidade de dialogarmos com
a Geografia e com a Sociologia Urbana. Elas ampliam certas questões de um jeito singular. É
um debate sobre espaço, certo? Existe uma contribuição a ser feita. Por exemplo, a partir [da
obra] de Lefebvre.
Bruno Bartel: Estou pensando nas igrejas ortodoxas russas que foram alteradas durante
o período soviético e que hoje retomaram sua centralidade nos governos atuais da Rússia.
Rodrigo Toniol: Sim, acho incrível tudo isso. Conversões e refuncionalizações dos espaços.
Na Europa, essa discussão aparece basicamente devido às igrejas que deixaram de ser templos
e viraram bares, por exemplo. No Brasil, essa questão parece meio contrária. As igrejas
pentecostais passaram a ocupar espaços que não eram religiosos, como os antigos cinemas. Mas
aqui existe uma provocação para pensarmos nessas funções dos espaços e nessas novas formas
de circulação. A palavra na ordem do dia é circulação. Isso rende reflexões. Eu moro na Tijuca,
ao lado da [Igreja] Nossa Senhora do Líbano. Só de conversar com as pessoas sobre a circulação
das coisas que habitam a igreja já renderia algo.
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Bruno Bartel: Eles se conectam, de alguma forma, com o Oriente Médio. O papel da
transnacionalização na construção dos imaginários locais está na ordem do dia, não?
Rodrigo Toniol: Sim. As ciências sociais da religião no Brasil ficaram sempre impressionadas
com a vinda das pedras de Israel, por exemplo, para a construção do Templo de Salomão. Isso
aconteceu porque nunca olhamos para as pedras ou para outras coisas que também circulam o
tempo inteiro.
Bruno Bartel: Eu ouvi histórias de túmulos de judeus marroquinos que foram
transportados para Israel a partir de 1967. Mesmo que a comunidade judaica marroquina
não tenha o mesmo peso do passado, é significativo pensar nesses exemplos criativos, onde
não se abandona nem mesmo os mortos.
Rodrigo Toniol: Isso é outra coisa que pode render muito: olhar para os cemitérios e para os
corpos. Como os corpos circulam? Porque aí dá para pensar em materialidade. Uma vez
apropriado o debate da materialidade, podemos ter também outras rentabilidades em lugares
menos óbvios. Como devemos olhar para os corpos enquanto uma materialidade?
Bruno Bartel: Um dos centros rituais sufis que pesquisei no Marrocos tentavam
revitalizar seus espaços junto aos projetos da prefeitura local. Uma das justificativas é
que esses espaços abrigavam corpos enterrados de membros importantes para a cidade.
Havia alguma chance de enquadrar isso a partir da ideia de patrimônio. Havia o tempo
todo uma configuração de categorias em jogo, como cultura, religião ou patrimônio.
Rodrigo Toniol: Essa trinca [cultura, religião ou patrimônio] é algo que tenho me deparado o
tempo inteiro. Quando olhamos para esses objetos, essa modalidade do debate sobre o
patrimônio vai ficando mais e mais central.
Maria Gleiciane: Eu ainda estava pensando na questão do fixo envolvendo as igrejas
católicas, por exemplo. Essas localizações fixas acabam se tornando patrimônio devido à
relação delas com suas comunidades reunidas. Mas o que quero destacar são as relações
desenvolvidas pelas igrejas evangélicas. Elas mudam de lugar o tempo todo. Isso é
diferente no caso de uma igreja católica, pois ela permanece anos naquele mesmo local, e
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A virada material: entrevista com Rodrigo Toniol
tudo cresce ao redor dela. Muitas cidades se formaram ao redor de uma igreja católica.
No entanto, as igrejas evangélicas abrem e fecham suas portas em qualquer lugar. Aqui,
teríamos um movimento contrário: não é a cidade que cresce ao redor das igrejas; são
elas que se fixam ao redor da cidade. O que você falaria sobre isso? No caso da Umbanda,
os terreiros podem se deslocar porque acompanham as trajetórias dos pais e mães de
santo. Como pensar nas materialidades desses espaços?
Bruno Bartel: Eu desconheço uma etnografia sobre processos de reassentamento [de
terreiros].
Rodrigo Toniol: Eu também não conheço. Mas tenho uma aluna que está querendo
acompanhar isso. Quanto ao tema anterior, essas circulações que você mencionou têm uma
prática na cidade. Elas estão produzindo a cidade e os mapas desta cidade. A pergunta que surge
é: que cidade é essa que está sendo feita por essas práticas religiosas? Eu vejo duas questões. A
primeira diz respeito ao papel das igrejas itinerantes que atualizam o valor dessa circulação em
espaços urbanos e de como a cidade vai sendo produzida também por essas igrejas. A segunda
são as casas de oração que se transformam em igrejas, especialmente aos domingos. No caso
do universo evangélico, em determinado momento, a casa vira o espaço sagrado ou o espaço
da igreja. Tudo isso chama a atenção para esse fluxo e para a circulação. Isso faz com que a
gente, de fato, passe a olhar para esses templos e espaços religiosos a partir de uma visão antifixidez.
Bruno Bartel: Casas de cristãos carismáticos que transformam seus espaços íntimos em
locais de culto aos domingos...
Maria Gleiciane: Casas de católicos que organizam novenas...
Rodrigo Toniol: Exato. Mas isso não aparece nos trabalhos. O jeito como pensamos a religião
não é a partir dessa circulação ou desse tipo de ocupação no espaço. Exemplos como estes são
perfeitos, pois apresentam materialidade, espaço e circulação.
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