Intelligere, Revista de História Intelectual
nº 9, jul. 2020
ARTIGOS - ARTICLES
Ciências Humanas: o que são, para que servem
Osvaldo Coggiola1
Professor Titular de História Contemporânea da Universidade de São Paulo
[email protected]
Como citar este artigo: COGGIOLA, O. “Ciências Humanas: o que são, para que servem”, Intelligere, Revista de História
Intelectual, nº9, pp. 14-38. 2020. Disponível em <http://revistas.usp.br/revistaintelligere>. Acesso em dd/mm/aaaa.
Resumo: As ciências do homem surgem no interior do processo de evolução
econômica do capitalismo. A ideia de homem que constitui seu objeto provém
da elaboração abstrata do conceito de trabalho em suas dimensões sociais e
históricas. A crescente divisão social do trabalho, aliada à valorização das
técnicas, conduziu à especialização crescente do trabalho científico que
também afetou as ciências humanas. Isso se manifestou como processo de
fragmentação do conhecimento que o segmenta profundamente da realidade e
de si mesmo. Daí a necessidade de relativizar a divisão das ciências em exatas e
humanas e a atualidade de recuperar a dialética materialista como uma
perspectiva de unificação dos conhecimentos. Surgida como teoria no bojo da
revolução cientifica associada ao desenvolvimento do capitalismo, ela contudo
se apresentou como uma nova síntese superadora que, no mesmo momento
em que se desenvolvia a fragmentação das ciências, propunha a unidade da
ciência em nova base.
Palavras-chave: ciências do homem; trabalho abstrato; dialética materialista;
unidade do conhecimento.
Human Sciences: what they are, what they are for
Abstract: The sciences of man emerge within the process of the economic
evolution of capitalism. The idea of Man that constitutes its object comes from
the abstract elaboration of the concept of labor in its social and historical
dimensions. The growing social division of labor, coupled with the valorization
of technical knowledge, led to the increasing specialization of scientific work
that also affected the humanities. This has been as a process of fragmentation
of knowledge that segments it deeply both from reality and itself. Hence the
1
Graduado em Economia Política e História na Université Paris VIII (1979). É doutor em
História Comparada das Sociedades Contemporâneas pela École des Hautes Études em
Sciences Sociales (1983). Atualmente professor titular da Universidade de São Paulo na área de
História Contemporânea. Atua principalmente nos seguintes temas: marxismo, América Latina,
movimento operário, capitalismo e socialismo.
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Contato pelo e-mail:
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Grupo de Pesquisa em História Intelectual
Centro Interunidades de História da Ciência - USP
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need to relativize the division of sciences into exact and human sciences and
the relevance to recover materialistic dialectics as a perspective for the
unification of knowledge. Emerging as a theory during the scientific revolution
associated with the development of capitalism it nevertheless presented itself as
a new overcoming synthesis. As sciences were going through a process of
fragmentation the new theoretical approach proposed the unity of science on a
new basis.
Keywords: human sciences; abstract labor; materialistic dialectic; unity of
knowledge.
Em tempos recentes, apontou-se a prioridade crescente, nas instituições
de ensino superior e, sobretudo, nos órgãos financiadores da pesquisa, das
ciências exatas e biológicas (estas, com a genética e as “biociências” em geral,
as grandes vedetes do investimento científico dos últimos anos) em detrimento
das chamadas, alternativa e ambiguamente, “ciências humanas” ou
“humanidades”, (Pomar, 2002) termos estes que não escondem a inclinação
para destituí-las de caráter científico. Tendeu-se, em reação a isso, a construir
um discurso adjudicando às ciências humanas um quase monopólio do saber
crítico, sendo as biológicas e exatas relegadas a simples (ou complexas) funções
técnicas. Se esse discurso foi um fator mobilizador, não deixa de ser também o
reverso simétrico do discurso “tecnicista” ou “tecnocrático”, que valoriza as
ciências em função de uma “utilidade” imediatamente avaliada (em termos
supostamente científicos ou simplesmente econômicos), apoiado numa
evidente, mas inconfessa, “filosofia” de caráter pragmático.
Desde as suas origens, porém, a ciência fez de seu caráter de saber
crítico uma das suas pedras basais: “No mundo grego do século VI a.C.
produzir-se-ia a revolução intelectual que possibilitaria a ciência como a
conhecemos hoje: um saber crítico, objetivo, abstrato, consciente da sua
própria missão e do sentido de responsabilidade que lhe impõe a exigência de
verificação” (Babini,1971, p.20). Se a área coberta pelas atualmente chamadas
ciências humanas foi sempre objeto inseparável da concepção dos grandes
pensadores filosóficos e científicos (em Aristóteles, por exemplo, já
encontramos a indicação, mas não o desenvolvimento, de uma “antropologia”)
a constituição de um corpus de disciplinas específicas sistematizadas sob a
comum denominação de “ciências humanas” mal ultrapassa um século, e
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atende à estruturação institucional específica das universidades ocidentais,
desenvolvidas como modelo universal com a expansão europeia ou
“ocidentalização do mundo”. A vocação “técnica” (ou “utilitária”) das
disciplinas científicas, eufemisticamente chamadas de “duras”, não precedeu à
Revolução Industrial, isto é, à apropriação pelo capital da esfera da produção
(ou à vitória histórica do modo de produção capitalista): “A técnica, até o
século XVIII, permaneceu alheia à ‘filosofia científica’. Depois de um período
de desenvolvimento paralelo, uma fecunda interação iniciou-se entre as receitas
práticas e as explicações da natureza. A partir do século XIX, as principais
técnicas se transformaram quase todas em simples aplicações da ciência”
(Kourganoff,1959,p..22).2 A impulsão histórica para o nascimento das
disciplinas que foram chamadas de ciências “humanas” ou “sociais” surgiu no
mesmo período histórico, e obedecendo a causas semelhantes:
O que deu unidade às ideias sobre a estrutura e o
desenvolvimento da sociedade nascidas em Europa no
inacreditável século que vai da revolução inglesa à francesa,
século que se denomina tradicionalmente como Ilustração?
Fundamentalmente, foi um interesse comum: aplicar ao estudo
do homem e da sociedade esses métodos ‘científicos’ de
investigação que haviam demonstrado recentemente seu valor e
importância no campo das ciências naturais. O pressuposto dos
filósofos franceses e escoceses era que, assim como acontece no
reino físico, na sociedade e na história todas as coisas estavam
unidas por uma complexa trama de causas e efeitos, e que
desvendá-la era a principal tarefa dos que se dedicavam ao estudo
do homem e a sociedade, os científicos sociais (Meek,1971, p.1).
O projeto enciclopedista estava animado pelo mesmo espírito de
sistematização que incorporava tanto os conhecimentos oriundos das ciências
físico-naturais como aqueles que seriam postos sob a égide das “ciências
sociais”:
O projeto de reunir todos os conhecimentos humanos
estruturando-os em torno da nova fé ilustrada no homem e na
natureza apareceu na França na primeira metade do século
XVIII, expressa por homens e grupos em aparência diversos e
longínquos. Chegavam a essa ideia pelo comum desejo de uma
grande prova de força, que animava a todos. Sabiam que estavam
vivendo um momento excepcional da história: finalmente chegara
o século das luzes, era natural que nascesse o sonho de erigir um
2 A própria biologia se inscreve nesse processo: “O ponto de partida da biologia situa-se na
época do racionalismo europeu, em meados do século XVIII, momento em que se pode
certificar historicamente o início do predomínio do método experimental na ciência. (Os
precursores) colocam uma questão de enorme importância para a nascente ciência biológica: a
relação existente entre matéria e vida” (Rostand, 1985,III).
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grande monumento em que ficassem registrados todos os frutos
da atividade humana, que atingia seu cume, consciente de si
mesma e liberada dos obstáculos que nos séculos passados
tinham entravado seu livre desenvolvimento”(Venturi, 1980,
p.14).3
O projeto de Marx, desenvolvido em meados do século XIX, não era
alheio ao “espírito da época”, embora encarnasse este último de maneira mais
crítica. Os primeiros “cientistas sociais” admitiam que o modo de produção (e
reprodução) da vida social constituía a única resolução possível do enigma do
ethos grego ou do “espírito das leis” de Montesquieu tal como fazia William
Robertson, em 1790: “em toda investigação sobre a ação dos homens
enquanto estão juntos em sociedade, o primeiro objeto de atenção deve ser o
seu modo de subsistência. Segundo as variações deste, suas leis e políticas serão
diversas”.(Robertson; Lacoste,1971) São mais recentes as investigações que
apontaram no pensador árabe Ibn Khaldun, bem antes do iluminismo europeu,
a primeira reflexão sistemática acerca da dinâmica, progressiva ou regressiva, da
sociedade humana, que ficaria geograficamente confinada devido à limitação da
expansão (e, posteriormente, derrota e colonização pelas potências europeias)
da sociedade dita “islâmica”: “Embora consagrada à África do Norte, a obra de
Ibn Khaldun apresenta uma significação universal. Ao estudar porque, nessa
região, uma sucessão de peripécias históricas não conseguiu provocar, no longo
prazo, uma verdadeira evolução histórica, Ibn Khaldun descreveu uma das
formas do fenômeno do bloqueio estrutural que, com exceção da Europa
ocidental, conheceu durante séculos o mundo inteiro” (Lacoste,1971, p.11).4
Em Marx e Engels a investigação acerca da origem, estrutura e dinâmica
da sociedade humana, ficou permanentemente unida à preocupação científica
geral, como seguramente em nenhum outro autor. Quando a obra de Marx
escolheu como centro a “anatomia da sociedade burguesa” (a economia
política) ela não se emancipou da sua base epistemológico-científica. A
revolução teórica do marxismo consiste em ter posto no centro da “crítica da
economia política” a teoria do valor-trabalho, como uma superação da
Para Umberto Cerroni, “a história da cultura revela-se dividida em dois grandes períodos, um
caracterizado por uma submissão geral da ciência físico-natural à filosofia, este submetida por
sua vez à teologia, o outro pela progressiva aquisição de autonomia das ciências, no quadro de
uma tendência para a laicização de todo tipo de saber” (Cerroni, 1978, p. 11). Cf.Chadwick,
1993.
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Sobre Ibn Khaldun, ver também: Malek: Chatelet, 1983, pp. 130-151.
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dicotomia entre ciências naturais e sociais, operação que teve por base a
junção, na produção capitalista, da ciência com a própria produção, ou a
“transformação da ciência em força produtiva imediata”, quando o capital se
fez dono da esfera de produção: “O conceito do trabalho aparece assim
verdadeiramente no momento em que a mecânica prática e a mecânica racional
puderam se juntar, ou seja, quando a formalização física pôde ser posta ao
serviço da economia da máquina. Essa junção se operou entre os séculos
XVIII e XIX, entre 1780 e 1830, aproximadamente. Ela é contemporânea da
‘revolução industrial’ e do nascimento da economia política ‘clássica’”. (Vatin,
1993, p.9)
Se a economia política moderna (com Adam Smith) nasceu da crítica da
dimensão naturalista do pensamento fisiocrático (fundamentando a economia
como uma “ciência social”, separada das ciências naturais), Marx superou a
economia clássica reintroduzindo a dimensão natural na ciência econômica
(tendo como ponto de partida a análise da contradição da mercadoria,
simultaneamente “valor de uso” e “valor”) e resolvendo teoricamente o
mesmo problema que a ciência natural da época tentava resolver ao se
transformar em tecnologia:
“O objetivo fundamental é o mesmo: encontrar uma medida
comum do valor do trabalho e do gasto de energia permitindo,
relacionando um ao outro, obter uma ratio expressando a
eficiência produtiva. Trata-se nos dois casos de tornar
compatíveis uma teoria do equilíbrio com uma teoria do
movimento e da transformação. Na teoria mecânica, a dinâmica
se fundamenta na estática, isto é, na noção de equilíbrio, porém,
evidentemente, o movimento não pode ser plenamente expresso
dessa maneira; o estudo dos processos termodinâmicos (e a
transformação da ‘força viva’ em ‘trabalho’ já é, de certa maneira,
um processo desse tipo) vai complicar ainda mais esse problema.
Em matéria econômica, a interrogação central da obra de Marx é
também a insuficiência da teoria da troca tal como ela é
apresentada pelos liberais clássicos. A troca, efetivamente,
repousa ontologicamente sobre um princípio de equivalência; ora,
se a atividade econômica não é senão uma série de trocas, como
explicar o aparecimento de uma mais-valia? ” (Vatin, p.107)
A crítica da sociedade capitalista tomou como ponto de apoio tanto a
ciência natural quanto a social. As incursões de Marx e Engels na primeira,
destarte, não podem ser consideradas como um exercício especulativo
destinado a satisfazer uma curiosidade intelectual, mas passam a ser parte
integral da crítica teórico-prática da sociedade existente. Sendo o exercício do
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trabalho em qualquer regime econômico ao longo da história um dispêndio
físico de energia, somente sob o regime capitalista encontraremos na força de
trabalho humana a particularidade de ser fonte de valor. O valor é um
fenômeno puramente social, o valor de um produto é, portanto, uma função
social e não uma função natural adquirida por representar um valor de uso ou
trabalho nos sentidos fisiológico ou técnico-material. O pensamento
econômico evoluiu no sentido de buscar desvendar as formas sociais e
históricas das relações de trabalho abstraindo todas as formas concretas de
trabalho. O trabalho abstrato não possui um átomo sequer de materialidade,
sua forma é puramente social e é especificamente uma construção social da
economia mercantil-capitalista.
Vale observar que o trabalho abstrato não prescinde do trabalho
fisiológico ou concreto, pois estes constituem o suposto do trabalho abstrato.
Responsável por ser o criador de valor na sociedade capitalista, a realização do
trabalho abstrato está na dependência da expansão e consumação do modo
capitalista de produção. A necessidade de universalização colocou-se na base
do processo histórico que engendrou o trabalho abstrato como aquele que cria
valor. “Quando a troca está restrita aos limites nacionais, o trabalho abstrato
não existe em sua forma mais desenvolvida. O caráter abstrato do trabalho
atinge sua inteireza quando o comércio internacional vincula e unifica todos os
países, e quando o produto do trabalho nacional perde suas propriedades
concretas específicas por estar destinado ao mercado mundial e igualado aos
produtos do trabalho das mais variadas indústrias nacionais”. (Rubin,1980,
p.160) Ao mesmo tempo em que o trabalho abstrato se constituiu numa
espécie de trabalho socialmente igualado, não se encontra no mercado mundial
nenhuma outra mercadoria capaz de regular o conjunto das diversas economias
a não ser o próprio trabalho. A generalização do trabalho abstrato nas suas
dimensões sociais e históricas fez Isaak Rubin conceber um marco na
elaboração da ideia de homem e de trabalho, que é justamente a base do surgimento
das ciências humanas: “Não estaríamos exagerando se disséssemos que talvez o
conceito de homem em geral e de trabalho humano em geral surgiram sobre a base da
economia mercantil. Era precisamente isto que Marx queria mostrar quando
indicou que o caráter humano geral do trabalho se expressa no trabalho
abstrato”. (Rubin, p.154, grifo nosso) O trabalho foi o denominador comum
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deste processo que permitiu a emergência da Revolução Industrial e,
simultaneamente, da economia política clássica. Ambas foram amplamente
preparadas por um processo que combinou vários elementos de síntese.
Do ponto de vista da história da ciência, a partir do século XVII se
iniciou um movimento de renovação do pensamento. "Nos títulos de centenas
e centenas de livros científicos publicados no decorrer do século XVII, o
termo novus é recorrente. Não se tratava apenas de uma fórmula literária;
através dele, exprimiam-se significativamente as exigências, inquietações e
insatisfações de uma época sensível à insuficiência dos modos tradicionais de
formação do homem ”. (Rossi,1989, p.67) No século XVII, o pensamento
cartesiano transformou-se na linha de reelaboração do pensamento filosófico.
A obra de Descartes foi a base das fundamentações epistemológicas
engendradas pela renovação dos conhecimentos acumulados. Nesse contexto a
matemática ocupou um papel de destaque: “Para os filósofos do século XVII a
língua de Deus era a matemática”. (Vatin, p.13) Porém, o pensamento
cartesiano ainda era incapaz de propor e elaborar a síntese entre a ciência e a
tecnologia: “O progresso efetivo da ciência depende, para Descartes, da obra
dos teóricos. A técnica, enquanto tal, não traz nenhuma contribuição para o
progresso do saber científico”. (Rossi, p.95) A separação entre ciência e
tecnologia se desfez no interior do processo de evolução econômica do
capitalismo. Na raiz deste processo está a elaboração do conceito de trabalho,
que foi elaborado em referência explícita ao conceito de trabalho humano. Esta
elaboração foi produto do trabalho intelectual de físicos-engenheiros na
articulação do final do século XVIII e início do século XIX, mais precisamente
entre 1780 e 1830. Isso foi possível devido ao processo histórico de elaboração
das grandes sínteses responsáveis pelo desdobramento posterior do
capitalismo. Para que isto possa ser inteiramente compreendido faz-se
necessário relativizar a separação e/ou divisão das ciências, em ciências
humanas e exatas.
O pensamento marxista elaborou-se neste contexto em que, de 1848, com
a publicação do Manifesto Comunista, a 1867, com a publicação do primeiro
volume de O Capital, Marx e Engels, intervindo diretamente no movimento
revolucionário da época, criaram uma síntese explicativa do processo histórico
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a partir do trabalho social. A junção teórica das sínteses elaboradas no curso do
século XIX encontra uma explicação na elaboração do conceito de trabalho,
tanto na sua dimensão físico-mecânica quanto na político-econômica. “Em sua
construção como em seu objetivo, a teoria mecânica do trabalho e a teoria do
valor de Marx são com efeito surpreendentemente similares. O objetivo
fundamental é o mesmo: encontrar uma medida comum de valor do produto”
(Vatin, p.107). Verificamos, no século XIX, a confecção de sínteses que
somente puderam se combinar sobre a base do fenômeno social e histórico da
Revolução Industrial. Longe de ser um fenômeno objetivado pelos diversos
fatores que a historiografia habitualmente enumera, devemos buscar nas
mudanças das relações sociais de produção e, portanto, nas relações de
trabalho, a origem dos processos ocorridos na passagem do século XVIII ao
XIX. Em O Capital, Marx não se limitou à análise das consequências da
acumulação capitalista para o trabalhador, mas também para o meio natural:
“Com o predomínio sempre crescente da população urbana,
acumulada em grandes centros, a produção capitalista concentra,
por um lado, a força motriz histórica da sociedade, mas, por
outro, dificulta o intercâmbio entre o ser humano e a natureza,
isto é, o regresso à terra dos elementos do solo gastos pelo
homem na forma de meios de alimentação e vestuário, ou seja,
perturba a eterna condição natural de uma fecundidade duradoura
da terra. Com isso a produção capitalista destrói ao mesmo
tempo a saúde física dos trabalhadores urbanos e a vida mental
dos trabalhadores rurais... Todo o progresso da agricultura
capitalista é um progresso não apenas da arte de depredar o
trabalhador, mas também, ao mesmo tempo, da arte de depredar
o solo; todo o progresso no aumento de sua fecundidade por um
determinado prazo é ao mesmo tempo um progresso na ruína das
fontes duradouras dessa fecundidade. Por isso a produção
capitalista não desenvolve a técnica e a combinação do processo
social de produção mais do que minando ao mesmo tempo as
fontes das quais emana toda riqueza: a terra e o trabalhador”.
(Marx, 1966)
A economia política clássica iniciou um movimento que foi arrematado
por Marx: o do deslocamento do foco de atenção da troca (circulação), que
tinha caracterizado o pensamento mercantilista, para a produção, e para a noção
de modo de produção como chave de interpretação da história humana e, a partir
de certo desenvolvimento, também da história natural. Marx e Engels sempre
consideraram a história humana como parte da história natural: “As diversas
formações socioeconômicas que se sucedem historicamente são diversos
modos de auto mediação da natureza. Desdobrada em homem e material a ser
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trabalhado, a natureza está sempre em si mesma apesar desse desdobramento.”
(Schmidt, 1976, p.87) Pelo seu caráter tendencialmente mundial, o modo de
produção capitalista mudava qualitativamente as relações homem-natureza: “O
capital eleva-se a um nível tal que faz todas as sociedades anteriores
aparecerem como desenvolvimentos puramente locais da humanidade, e como
uma idolatria da natureza... A natureza se converte em objeto para o homem,
em coisa útil”. (Marx, 1973) Se, para Marx, o progresso científico era parte do
progresso social geral, era impossível considerá-lo em si, senão imerso no
quadro das relações sociais imperantes, constituindo com elas um todo
orgânico. Objetivamente, isto é admitido pelos representantes da ciência
“básica”, que não podem evitar a penetração das relações sociais nos seus
gabinetes de pesquisa: “Quando se fala hoje em física, o primeiro pensamento
vai para as armas atômicas”. (Heisenberg, 1971, p.9)
Marx se opôs ao transporte da “organicidade material” para o âmbito da
história humana, antecipando a crítica às concepções organicistas de Oswald
Spengler ou de Arnold Toynbee: “As falhas do materialismo abstrato fundado
sobre as ciências naturais, excluindo o processo histórico, são logo percebidas
quando nos detemos nas concepções abstratas e ideológicas de seus portavozes, sempre que se aventuram a ultrapassar os limites da sua especialidade”.
(Marx, 1966, p.425) A dialética materialista foi filha da revolução científica
provocada pelo desenvolvimento do capitalismo, como uma nova síntese
superadora que, no mesmo momento em que se desenvolvia a fragmentação
das ciências, repunha a unidade da ciência:
“A ciência da história se inscreve no grandioso processo de
extensão da cientificidade. Mais ainda, converge com os grandes
descobrimentos do século em razão de que a constituição da
ciência da história é contemporânea do progresso fundamental
das ciências da natureza no século XIX, de sua integração na
dimensão temporal, de sua historização: cosmologia racional,
teoria das formas da energia, teoria celular, teoria da evolução.
Portanto, toda ciência é realista e materialista, mas implica uma
forma de materialismo incompatível com a forma mecanicista
dominante desde o século XVIII, desautorizada pelos progressos
do XIX, que implicam a integração do tempo. Trate-se da nova
biologia (Darwin), da nova energética (R. Mayer) ou da ciência
das sociedades (Marx confirmado por Morgan quanto às
sociedades primitivas), o racionalismo científico caminha, na
realidade, ao longo de uma mesma frente, mas de uma frente com
duas vertentes, a anti-idealista e a anti-mecanicista”.(Tosel, 1986,
p.292)
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A ilusão de um “método científico único” esteve na base da crítica de
Karl Popper à teoria marxista, para a qual pretendeu aplicar o mesmo teste de
verificação próprio das ciências exatas e naturais. Na verdade, a filosofia da
ciência viveu tropeçando desde o seu nascedouro na ilusão do estabelecimento
do “método único”, o que significaria a redução da toda realidade à ciência,
uma operação cuja impossibilidade se verifica, justamente, no conceito de
método:
“A fim de chegar a este conceito unívoco, tanto filósofos quanto
historiadores do método científico tiveram que selecionar um
aspecto particular do procedimento científico: observação dos
fatos, indução, experimentação, medição e dedução matemática,
postulação hipotética, predição, e possivelmente verificação e
falsificação. Tentar um conceito unívoco abarca necessariamente
a exclusão de outros elementos essenciais, e a real tragédia desta
univocidade não reside na exclusão de uma determinada
característica particular - posto que o elemento abandonado acaba
reaparecendo, resgatado por algum outro autor - nem na própria
perda do conceito de método”. (Weisheipl, 1967, p.117)
Marx e Engels não pretenderam unificar abstratamente as diversas
ciências e os métodos específicos de cada uma delas. Seu método consistia na
superação da velha concepção filosófica (herdada do pensamento grego) que
considerava a filosofia como “mãe” de todas as ciências, seja porque estas são
derivadas daquela, seja porque aquela generaliza no plano da abstração os
resultados concretos destas. Esta concepção refletia, no pensamento, a escassa
divisão social do trabalho existente nas sociedades pré-capitalistas (se
comparada com a existente na sociedade burguesa). A Revolução Industrial fez
explodir a base material dessa concepção:
“Nos períodos anteriores havia íntima relação entre ciência e
filosofia, ambas não se distinguiam muito bem (caso da Idade
Média, quando elas eram identificadas), ou a relação era óbvia
(nos grandes sistemas filosóficos do século XVII, a ciência tinha
um papel de dependência). No século XVIII encontramos a
separação entre elas, pelo menos na formulação de seus
problemas. Este é o século das especificações de várias disciplinas
científicas, das especializações. Depois do século XIX e,
sobretudo, no nosso século, encontramos uma separação radical
entre ciência e filosofia, pelo menos numa visão superficial, pois
se olharmos com o devido cuidado e profundidade, veremos que
suas relações são muito mais fortes daquilo que aparece ou é
proclamado (Paty,1990, p.95).
O sistema hegeliano levou até suas últimas consequências metodológicas
o desenvolvimento filosófico anterior, definindo o método dialético, mas
persistindo na inversão idealista das relações entre ciência e filosofia:
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“Foi exatamente por esse motivo que Hegel fez que sua filosofia
fosse mal vista pelos cientistas. Ele se imiscuía em todas as
ciências, a partir de seu sistema da lógica dialética. O que
resultava daí era, na maioria das vezes, realmente ridículo. Na
melhor das hipóteses, tratava-se de uma reprodução muito
superficial das concepções científicas de seu tempo. Jamais
conseguiu ele ir além daquilo a que a própria ciência já havia
chegado. Ao contrário, as tentativas de aplicação de sua lógica na
maior parte dos campos levavam a absurdos conceituais. Foi por
isso que esse grande pensador dialético não pôde ser de qualquer
proveito para as Ciências Naturais. Suas concepções e
manifestações foram finalmente consideradas como inúteis e
dispensáveis pela maioria dos cientistas da natureza. Em verdade,
a dialética só pode ser apreendida em sua concretude. Quando
separamos a dialética de seu concretismo e a transformamos em
uma formalística abstrata, ela passa a ser um esquema inócuo.
Petrifica-se em um sistema que, além do mais, se apresenta como
o que há de mais universal, significativo e profundo que o espírito
humano pode atingir. Isolada da realidade, a dialética deixa de sêlo. Isolada da realidade, a dialética se transforma em disputa
gratuita sob a forma de contradições absurdas, fantásticas e sem
sentido. Tal dialética evidentemente não pode ser materialista”.
(Havemann,1967, p.16)
Marx avalia que seu método dialético “é não só fundamentalmente
diferente do hegeliano, mas inclusive seu oposto. Para Hegel, o processo do
pensamento (que ele transforma em objeto independente, dando-lhe o nome
de ideia) é o criador do real. Para ele, o real é somente a manifestação exterior
da ideia. No meu enfoque, pelo contrário, o ideal não é senão o material
transferido e transposto na mente humana”. (Marx, 1966)
A tendência para a “fragmentação” da ciência refletiu a tendência para a
fragmentação da produção, para o crescimento desordenado da divisão social
(capitalista) do trabalho. Isto não significava a emancipação da ciência da
filosofia, mas a sua submissão às “ideias dominantes de uma época”, que foi
consagrada filosoficamente pelo positivismo francês (ou pelo utilitarismo
anglo-saxão, inspirado por aquele):
“Todo cientista, mesmo quando trata de problemas de sua
especialidade, é sempre orientado por determinadas concepções
filosóficas. Como dizia Engels, os cientistas são sempre escravos
de determinada Filosofia; quanto mais atacam a Filosofia, tanto
mais se transformam em escravos das Filosofias mais atrasadas e
mais limitadas. É preciso que se tenha clareza de que sempre se
pensa ‘filosoficamente’”. (Havemann,1967, p.16)
A sociologia comtiana na França, o historicismo alemão, o utilitarismo
de Jeremy Bentham, o empirismo lógico de John Stuart Mill (que direcionou o
positivismo comtiano para a psicologia), na Inglaterra, e outras vertentes mais
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desaguaram, na passagem do século XIX para o século XX, na fundamentação
da área das ciências “sociais” ou “humanas”, que concluíram tentando absorver
institucionalmente as pré-existentes “filosofia”, “história” e “geografia”: o
monumental projeto de Max Weber tentou integrar criticamente quase todas
estas vertentes, num diálogo de oposição, às mais das vezes implícito, com
Marx, então ignorado pela universidade e a academia em geral (com exceções,
como a crítica que lhe fora feita pelo economista austríaco Böhm-Bawerk); um
autor chamou Max Weber de “Marx da burguesia”. (Freund, 1968)
Caberia qualificar in totum todo este desenvolvimento como “vulgar”,
tal como Marx fizera com a economia pós-clássica, preocupada com as
condições do equilíbrio econômico, e não mais com as condições históricosociais da formação do valor? Certos desenvolvimentos filosóficos, a partir do
pragmatismo, forneceram a base epistemológica para a (contra) revolução
“marginalista” na economia. Mas nem os marxistas mais críticos das “ciências
humanas” chegaram a formular completamente o ponto de vista suposto
acima. Desde o seu início, a tradição das “ciências sociais” - Comte, Durkheim,
Weber, depois Parsons e Lévi-Strauss - defendeu a existência de um ponto
ideal a partir do qual o investigador poderia estudar imparcial e objetivamente
os fenômenos sociais, com a condição de liberar-se das noções e prejuízos
devidos a sua educação. Pierre Fougeyrollas concluiu que isso seria, na melhor
das hipóteses,
“algo comparável à cosmologia matemática antes da teoria da
relatividade. As disciplinas chamadas ‘ciências sociais’ produziram
saberes fragmentários consideráveis, mas suas teorias globais
continuam delimitadas pelo horizonte das sociedades existentes e
tributárias da ideologia que garante sua sustentação... A
pretendida conciliação entre ciências sociais e marxismo é
comparável ao casamento da água com o fogo, que só pode
resultar na extinção do fogo... com o marxismo é possível integrar
os saberes fragmentários das ciências sociais, enquanto
trabalhando com as ciências sociais é completamente impossível
‘integrar’ o marxismo”. (Fougeyrollas,1979,p.11)
Segundo o mesmo autor, “As ‘ciências sociais’ nasceram do esforço
histórico da burguesia para estender os métodos da ciência matemática da
natureza aos fenômenos humanos. Não se podem compreender os seus limites
senão a partir da ideologia do Século das Luzes... Diante das ‘ciências sociais’,
tributárias, no nível da sua sistematização global, da tradição especulativa, isto
é, da ideologia dominante, o marxismo torna possível o acesso à ciência, sob
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Osvaldo Coggiola:
Ciências Humanas: o que são, para que servem
condição de ser compreendido como unidade viva da teoria e da prática”.
(Fougeyrollas,1979, p.16)
Um ponto de vista mais compreensivo poderia se desenvolver a partir da
consideração das relações entre ciência e política (ou Estado) em cada estágio
do desenvolvimento histórico. Em época de liberalismo, de laissez faire, foi
proposta na Inglaterra (em 1872) a criação de um Ministério da Ciência,
proposta fracassada, porque ainda imatura (ou não adaptada à “necessidade
histórica” do capital). A oposição entre ciência e política defendida (e
preconizada) por Max Weber, foi talvez o último suspiro de um liberalismo
agonizante, superado pelo entrelaçamento crescente entre Estado e economia
próprio do capital monopolista. A crise econômica da década de 1930 varreu
os últimos “preconceitos”: em 1933, nos Estados Unidos, Roosevelt criou o
Science Advisory Board, para vincular os pesquisadores ao “New Deal”; a
Alemanha de Hitler radicalizou o corporativismo, não deixando nem sombra
da independência da ciência (e da cultura em geral); na França, na véspera da
Segunda Guerra Mundial (em 1939) criou-se o Conselho Nacional da
Investigação Científica (CNRS), que centralizou e quase monopolizou a
investigação científica. (Solomon, 1974, pp.35,45,57)
As ciências humanas, confinadas às universidades e institutos de
pesquisa, tiveram que adaptar-se ao novo “modelo”, que determinou
crescentemente sua morfologia e seu conteúdo: a busca de uma “tecnologia
social” oriunda da pesquisa sociológica, antropológica, politológica, histórica, e
até filosófica, transformou-se em fato corriqueiro (Leaf, 1981; Mercier, 1989).
Claude Lévi-Strauss não chegou, na década de 1950, a defender a aplicabilidade
da sua “etnografia” alegando sua utilidade para a integração da mão de obra
estrangeira (principalmente norte-africana) na sociedade francesa? O lugar das
ciências humanas ficou preservado pela especificidade do seu objeto,
contraposto ao “tecnicismo” crescente das ciências “duras”, o que fez nascer o
mito das ciências humanas como portadoras exclusivas do saber “crítico”:
“A física é, a meu ver, a única ciência quantitativamente exata
(pelo menos em parte), e isso é um milagre que não se repetirá
mais nas outras ciências; (mas) quando se leem certos textos de
Strauss, Max Weber ou Jacobson, tem-se de imediato a impressão
de uma inteligência extraordinária. Vê-se que se trata de espíritos
poderosos, ao contrário do que acontece nas ciências
experimentais; como disse Heidegger, ‘a ciência não pensa’. A
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Intelligere, Revista de História Intelectual
nº 9, jul.2020
maioria dos cientistas de fato não pensa, e a teoria à qual se
referem é, em geral, uma teoria extraordinariamente rudimentar,
baseada em efeitos causativos de caráter imediato. Nas ciências
humanas podemos ser inteligentes, enquanto nas ciências exatas é
muito mais difícil. Nas ciências humanas manipulam-se conceitos
extremamente sutis e que desempenham um papel fundamental
na nossa interpretação das sociedades”. (Thom, 1989)
Por outro lado, “as ciências sociais, e certamente a sociologia, raramente
foram institucionalizadas como as ciências naturais, e mesmo até onde
chegaram, os cientistas sociais pareceram muito mais capazes de resistir à
pressão que seus colegas. Parece realmente haver uma diferença qualitativa.
Num dos casos, o discordante é ignorado e não recompensado. No outro, ele é
aplaudido e respeitado”. (Hawthorn, 1982, p.17) A crescente divisão social do
trabalho, aliada ao “tecnicismo” científico, foram produzindo uma
fragmentação e especialização crescentes do trabalho científico, que também
afetou as ciências humanas (basta ver, hoje, qualquer universidade
relativamente importante, a quantidade de “faculdades” vinculadas às ciências
humanas, ou a quantidade de “departamentos” dentro das faculdades de
filosofia). Isso se manifestou como processo de fragmentação do
conhecimento que o segmenta profundamente da realidade e de si mesmo: o
discurso que prevalece sobre os fatos, a forma que prevalece sobre o conteúdo,
e a infinidade de seitas acadêmicas que coexistem sem debate nem intercâmbio
algum entre elas e com o resto das ciências. Esse fenômeno não é exclusivo
das ciências humanas, e é possivelmente mais grave (por suas consequências)
no caso das ciências exatas e biológicas.
O editor do British Medical Journal (uma das publicações mais relevantes
dessa área), Richard Smith, declarou que “apenas 5% dos artigos publicados
(nas publicações médicas) têm o padrão mínimo de eficiência científica e
relevância clínica” (no entanto, eles são considerados a base da medição da
produtividade universitária, nos mais diversos países). Alan Sokal provocou um
escândalo ao atacar uma das consequências da fragmentação alienante das
ciências
humanas:
esse
físico
norte-americano
publicou
um
artigo
propositalmente escrito de modo ridículo (a começar pelo próprio título) na
prestigiada revista americana de ciências sociais Social Text, que o aceitou como
“coisa séria”. As revistas de grande tiragem, habituadas a “incorporar” artigos
das revistas científicas, reproduziram algumas vezes os artigos ridículos. A
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Osvaldo Coggiola:
Ciências Humanas: o que são, para que servem
novidade no “caso Sokal” foi que a enganada não foi uma revista comercial,
mas científica. Posteriormente, Sokal, da Universidade de Nova York publicou,
junto com o físico da Universidade de Louvain, Jean Bricmont, o livro
Imposturas Intelectuais, cujo eixo foi a denúncia do uso indevido e abusivo de
conceitos das ciências exatas por renomados representantes das ciências
humanas. A crítica, no entanto, acabou questionando a totalidade do discurso
pós-moderno, ao revelá-lo como um discurso no qual o hermetismo se limitava
a ocultar a falta de sentido. O questionamento de Sokal e Bricmont não se
referiu apenas a representantes recentes das ciências humanas (Gilles Deleuze,
Jacques Lacan, entre outros), mas remontou ao passado: analisaram, por
exemplo, a completa incompreensão da teoria da relatividade por Bergson, o
que não impediu que este a criticasse e extrapolasse essa crítica para o terreno
da filosofia. Sokal e Bricmont não questionaram a totalidade das ciências
humanas: “Não se trata – disseram - de um ataque à filosofia ou às ciências
humanas em geral (mas) de um modesto esforço para apoiar os nossos colegas
nesses campos, que há muito tempo denunciam os efeitos perniciosos de um
jargão obscurantista e do relativismo visceral”. (Sokal; Bricmont,1999)
Muitos especialistas nas ciências humanas perceberam o vazio de certos
“discursos”, dissimulado por um obscuro palavreado pseudocientífico, quando
não por meros jogos de palavras. Poucos, no entanto, empreenderam a tarefa
de demoli-los em seu próprio campo, talvez porque quase todos sentiram a
mesma dúvida expressa por Sokal e Bricmont: “Quando tomamos contato
com os textos de Lacan, Deleuze e outros, nos surpreendemos com seus
abusos grosseiros, mas não sabíamos se valia a pena perder tempo para revelálos”. (Sokal; Bricmont,1999) É certo, por outro lado, que essa “revelação”
exigia um manejo das ciências exatas e físico-naturais de que carece a quase
totalidade dos “humanistas” (enquanto não são poucos os “cientistas”
familiarizados com os conceitos das ciências humanas).
Para Lucien Goldmann, a recuperação da unidade das ciências humanas
só seria possível com a proclamação da hegemonia de uma delas (a “sociologia
histórica” ou “história sociológica”) e excluiria qualquer aproximação com as
ciências físico-naturais “O processo do conhecimento científico implica,
quando se trata de estudar a vida humana, a identidade parcial entre sujeito e
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objeto do conhecimento. Por essa razão, o problema da objetividade se
apresenta de modo diferente nas ciências humanas do que na física ou na
química”.(Goldman, 1967, p.22) Para Jean Piaget, pelo contrário, tanto a
evolução as ciências humanas como a das físico-naturais (em especial a
biologia) tendeu a criar uma ponte entre esses domínios aparentemente
opostos:
“Desde a época em que se quis opor o sujeito à natureza e fazer
dele um campo de estudos reservado às ciências do espírito mais
vizinhas da metafísica que das chamadas ciências exatas e
naturais, produziu-se um grande número de modificações na
evolução das ciências em geral; as tendências atuais, embora
insistam na especificidade dos problemas a todos os níveis da
realidade, estão longe de ser favoráveis a uma simples dicotomia.
Um primeiro fato é a evolução da biologia, cujas interpretações
atuais são de grande importância para as interpretações da
formação do ‘sujeito’... Uma segunda zona fundamental de
ligação entre as ciências da natureza e as do homem é constituída
pelo intercâmbio dos métodos. As ciências do homem são
levadas a utilizar cada vez mais métodos estatísticos e
probabilísticos, assim como modelos abstratos que foram
desenvolvidos no campo das ciências da natureza... Lembremos
as convergências entre as noções de entropia em física e em teoria
da informação”. (Piaget, 1971, pp.104-107)
O debate acerca da cientificidade das humanidades reconheceu duas
vertentes. Uma, vulgar, foi corrente nos Estados Unidos. As humanidades,
segundo essa versão, seriam incapazes de conclusões exatas, ou seja, de
formular prognósticos, portanto de “gerar tecnologia” (principalmente,
políticas estatais para a “sociedade”, ergo, os conflitos sociais). A essa
preocupação, que pouco ou nada se interroga acerca da historicidade e,
sobretudo, da contraditoriedade da própria “ciência”, respondeu, por exemplo,
a “nova história econômica” postulando uma abordagem hipotéticoquantitativa susceptível de incorporar, para o estudo da sociedade, métodos
semelhantes,
senão
idênticos,
aos
das
disciplinas
científicas
em
geral.(Andreano, 1975)5 Outra vertente foi a da “futurologia”: em 1975, Daniel
Para uma crítica da “nova história económica”, ver: Fontana, 1972. A “mensurabilidade”
como critério científico está também presente em Frédéric Mauro: “A matéria humana é
diferente das outras e as ciências humanas chamam-se assim em oposição às ciências em geral,
e também pela semelhança com elas. O determinismo social e a liberdade humana, a ação do
observado sobre o observador, a transformação -mais profunda do que na Física- do
observado pelo observador, a dificuldade de repetir as experiências e ainda outros caracteres
separam muito bem estes dois tipos de disciplinas. Naturalmente, é preciso distinguir bem as
Ciências Humanas de disciplinas que por várias razões não são propriamente científicas. A
Filosofia, por exemplo, que os programas das universidades colocam abusivamente no grupo
das Ciências Humanas, embora não seja ciência, mas reflexão sobre a Ciência e também sobre
5
29
Osvaldo Coggiola:
Ciências Humanas: o que são, para que servem
Bell presidiu uma comissão criada pela Academia Americana de Artes e
Ciências, composta por cientistas de diversas áreas, inclusive humanas (como
W. Leontief, R. Wood, Z. Brzezinski, D. P. Moynihan, Herman Kahn) que,
através de um esforço interdisciplinar, propunha-se determinar os cenários
(prováveis) do ano 2000: a “futurologia” assim criada expandiu-se como uma
praga mundial, embora seus resultados nunca justificassem sua popularidade,
que tornou célebres (ou melhor, best sellers) teorias como a da “terceira onda”,
de Hermann Kahn.(Bell, 1982)
Na URSS a vulgata stalinista nunca foi superada, sendo apenas um pouco
“sofisticada”: num Dicionário Filosófico soviético, o verbete “ciência”, era seguido
pelo verbete “ciência natural”, não havendo nenhum item consagrado à
“ciência humana” ou “social”. (Rosenthal-Ludin, 1967). No trabalho muito
elaborado, ou pelo menos muito longo (mais de mil páginas) de B. M. Kedróv
acerca da “classificação das ciências”, apenas pouco mais de uma página era
consagrada às “ciências sociais... marxistas”, havendo também referências
tangenciais
à
psicologia
e
à
sociologia,
definidas
como
“ciências
morais”.(Kédrov, 1976) É evidente que negar a existência de “problemas
sociais” ou “humanos” no “campo socialista” era parte do sistema de
dominação burocrática. A outra vertente da crítica ao caráter científico das
humanidades foi realizada em nome da crítica ao “discurso científico” em
geral, e ao reducionismo da “loucura da razão racional”, própria da “dialética
de Aufklärung”, nos termos de Max Horkheimer e Theodor Adorno, que
a ação e a criação. A filosofia política não é a Ciência Política. As doutrinas econômicas não
são a Ciência Econômica. É preciso aqui reagir com vigor contra uma concepção geralmente
partilhada pelos marxistas e contra a qual se ergueu Roger Garaudy: a confusão do científico e
do filosófico. Como todas as ciências, as Ciências Humanas estão pouco a pouco se separando
da Filosofia, esta sendo o conjunto das perguntas que precisam ser colocadas mas que não se
podem resolver. A partir do momento em que um problema encontra sua solução científica,
ele passa do domínio da Filosofia ao domínio da Ciência. Quem não vê como é infantil a
pretensão marxista de querer responder a tudo, mesmo às questões filosóficas e de pretender
ao mesmo tempo que o marxismo seja uma ciência? Ou, se se quiser, de pensar que a "ciência"
marxista põe fim à Filosofia? O que é verdadeiro na Filosofia está a fortiori da Teologia ou da
Filosofia fundada sobre a Revelação. Na medida em que Toynbee faz uma teoria geral das
civilizações, seu trabalho é científico. Na medida em que pensa que, diferentemente das
precedentes, as civilizações atuais serão salvas pelo fomento cristão, faz uni ato de fé e entra na
especulação teológica: trabalho inteiramente legítimo, mas que sai da Ciência. A Arte e a
Literatura não são nesse caso ciências do homem, mas são o homem criando, pensando e
modificando o mundo. Seu estudo positivo é ciência humana ou social. Mas ele se une
frequentemente à crítica, cujos juízos de valor, se eles utilizam as Ciências Humanas,
ultrapassam-nos e desembocam na arte nova ou na Filosofia”. (Mauro, 1975) A medida (a
aritmética) como base histórica do racionalismo científico ocidental está analisada em Crosby,
1999.
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nº 9, jul.2020
criticaram um racionalismo abstrato que desfraldaria o seu conteúdo de
barbárie nos campos de concentração de Auschwitz e assemelhados, antes e
depois do nazismo. Segundo Michel Foucault, o Discurso sobre o Método de
Descartes foi, de algum modo, um discurso de guerra: a razão cartesiana deu
conta, desde o seu nascimento, do Outro, isto é, daquilo que o mundo clássico
percebeu (e qualificou) como o “Mal”. (Foucault, 1977)
Se a inspiração da corrente pós-moderna (mal definida e extremamente
variada) encontrava-se explicitamente em Martin Heidegger, suas raízes, já
notadas por Georges Friedmann em meados da década de 1930, remontavam
mais longe:
“[No final do século XIX]... o bergsonismo se localizava na
corrente de desconfiança respeito da razão humana, e da ciência
produto dela. São sintomas de uma espécie de desequilíbrio nas
ideologias burguesas, que coincidem com o começo do
imperialismo e a maturação das contradições na economia e na
política mundiais... Antes da I Guerra Mundial, no coração de
uma época aparentemente ainda racionalista, que confiava na
ciência, estimulada pelas últimas ondas cartesianas, se desenhava
já um movimento claramente irracionalista, cujos pólos, na
França, eram a crítica ao mecanicismo científico e o bergsonismo;
nos EUA e na Inglaterra, o pragmatismo e o pluralismo; na
Alemanha, os impulsos românticos e místicos ao redor das
‘filosofias da vida’. Todos, em definitiva, tinham o mesmo
sentido”. (Friedmann, 1977, pp.70,184)
Também a “teoria crítica” (herdeira da “Escola de Frankfurt”) tinha
tomado distancia, a partir de uma inicial inspiração marxista, do racionalismo
abstrato do projeto iluminista. A crítica ao “tecnicismo cientificista” teve ponto
de apoio na dialética marxista: “A emergência do homem da ordem universal
da natureza, e sua desnaturação como mera manifestação construída
intelectualmente, não fornece nenhum critério de explicação... A reviravolta
cartesiano-kantiana, da ontologia para a filosofia transcendental, ofereceu o
esquema fundamental para tematização técnico-científica do mundo, que
permeava a primeira revolução industrial, em conexão estreita com a definição
das relações capitalistas de produção”.(Holz, 1996, p.46)
O que Foucault acrescentou foi uma crítica ao “discurso científico”
específico das ciências humanas, vinculado ao das ciências em geral e às suas
pretensões ilusórias de “conhecimento”:
“As ciências humanas (são) esse corpo de conhecimentos
(palavra demasiado forte: digamos, para sermos mais neutros,
31
Osvaldo Coggiola:
Ciências Humanas: o que são, para que servem
esse conjunto de discursos) que toma por objeto o homem no
que ele tem de empírico... O homem tornava-se aquilo a partir do
qual todo conhecimento podia ser constituído em sua evidência
imediata e não problematizada; tornava-se, a fortiori, aquilo que
autoriza o questionamento de todo conhecimento do homem.
Daí esta dupla e inevitável contestação: a que institui o perpétuo
debate entre as ciências do homem e as ciências propriamente
ditas, tendo as primeiras a pretensão invencível de fundar as
segundas que, sem cessar, são obrigadas a buscar seu próprio
fundamento, a justificação de seu método e a purificação de sua
história, contra o ‘psicologismo’, contra o ‘sociologismo’ contra o
‘historicismo’; e a que institui o perpétuo debate entre a filosofia,
que objeta às ciências humanas a ingenuidade com a qual tentam
fundar-se a si mesmas, e essas ciências humanas, que reivindicam
como seu objeto próprio o que teria constituído outrora o
domínio da filosofia. (...) Na época clássica, desde o projeto de
uma análise da representação até o tema da mathesis universalis, o
campo do saber era perfeitamente homogêneo: todo
conhecimento, qualquer que fosse, procedia às ordenações pelo
estabelecimento das diferenças e definia as diferenças pela
instauração de uma ordem (...) Mas, a partir do século XIX, o
campo epistemológico se fragmentou ou, antes, explodiu em
direções diferentes. Dificilmente se escapa ao prestígio das
classificações e das hierarquias lineares à maneira de Comte; mas
buscar alinhar todos os saberes modernos a partir das
matemáticas é submeter ao ponto de vista único da objetividade
do conhecimento a questão da positividade dos saberes, de seu
modo de ser, de seu enraizamento nessas condições de
possibilidade que lhes dá, na história, a um tempo, seu objeto e
sua forma”. (Foucault, 1981, pp.361-363)
A “crise cognitiva” das ciências humanas, revelada pela crítica externa ou
evidenciada pela sua implosão interna, não fez senão pôr a questão da sua
unidade novamente sobre o tapete, não via uma hipotética interdisciplinaridade,
mas através da reconstituição da sua base teórica: Quentin Skinner conseguiu
reunir autores de todas as correntes mencionadas acima num volume
consagrado à “volta da grande teoria nas ciências humanas”(Skinner, 1994). As
ciências humanas são recentes “porque seu objeto é bastante recente: o homem
como objeto científico foi uma ideia surgida apenas no século XIX. Até então,
tudo quanto se referia ao humano era estudado pela filosofia.” (Chaui, 1994,
p.281) Tirar o Homem do céu da abstração religiosa ou metafísica, ao preço de
transforma-lo numa abstração científica, era um passo tão necessário quanto
libertar a força produtiva do trabalho humano dos grilhões do trabalho
compulsório pela via da exploração do trabalho assalariado. Na sua Crítica da
Filosofia do Direito de Hegel, Marx deu o passo que o humanismo burguês foi
incapaz de realizar:
“O homem não é um ser abstrato, exterior ao mundo real. O
homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este
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Intelligere, Revista de História Intelectual
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estado, esta sociedade, produzem a religião, uma consciência
errada do mundo, porque eles próprios constituem um mundo
falso. A religião é a teoria geral deste mundo, seu compendium
enciclopédico, sua lógica sob forma popular, seu ponto de honra
espiritualista, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu
complemento solene, sua razão geral de consolação e de
justificação. É a realização fantástica da essência humana, porque
a essência humana não tem realidade verdadeira”. (Marx, 2005)
Quando o estruturalismo chegou para “queimar o campo das defuntas
ciências humanas”, nas palavras de François Wahl, ou para, segundo JeanMarie Benoist, “enclausurar definitivamente uma época onde os conceitos e
disciplinas científicas se deixaram contaminar por essa noção mole e vaga, esse
balaio de gatos filosófico: o Homem”, chegou com um século de atraso para
realizar de um modo mecanicista (e regressivo) o que já fora realizado de modo
dialético, e estaria também abrindo o flanco para ser, por sua vez, criticado por
sua suposta “cientificidade” contraposta ao “humanismo” filosófico: “A
filosofia nada a tem a ganhar imitando a ciência”.(Dumas, 1990)6 Foucault e o
estruturalismo (Viet, 1970) expressaram um mal-estar que não podia ser
preenchido pela generalização do modelo e os métodos da linguística ao campo
das “defuntas ciências humanas”.7
A crítica ao individualismo humanista e à racionalidade científica abstrata,
como projetos de dominação que desaguariam na barbárie (a eliminação do
Outro), não poderia esquecer o realismo que percorria as representações
abstratas da racionalidade ocidental, que devia ser resgatado do seu invólucro
idealista:
“O formalismo romano, a tendência para criar sólidas estruturas
convencionais para conformar o sistema da convivência, deixou
uma marca profunda no espírito ocidental. A própria Igreja não
teria subsistido sem essa tendência do espírito romano alheio às
vagas e imprecisas explosões dos sentimentos, e as formas do
Estado ocidental acusaram de modo perdurável essa mesma
influência. Por trás do formalismo se ocultava um realismo muito
vigoroso que descobria com certeira intuição as relações
Já em 1937, em Teoria Tradicional e Teoria Crítica, Max Horkheimer, defendia que “não é nas
ciências da natureza, fundamentadas na matemática como um Logos eterno, que o homem
pode aprender a conhecer-se; e na teoria crítica da sociedade como ela é, inspirada e dominada
pelo desejo de estabelecer uma ordem conforme a razão”. O Logos matemático reconheceu a
sua especificidade para a apreensão do real: “A linguagem matemática tem uma especificidade
própria; suas regras, seu language game, são determinadas pelo valor demonstrativo de suas
proposições. As regras prescrevem a construção dos enunciados e indicam seu significado no
discurso. Elas são prescritivas do uso linguístico e indicam não apenas ‘como’ a coisa é, mas
como ‘deve’ ser” (Manno, s.d.p., p. 117).
6
7
Para uma crítica, ver Mc Nally, 1999.
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Ciências Humanas: o que são, para que servem
concretas do homem com a natureza e dos homens entre si. Esse
realismo - também implícito na casuística jurídica e na ideia das
relações entre o homem e as divindades - operava eficazmente
sobre a vida prática conferindo à experiência um alto valor, muito
por cima da pura especulação. Essa atitude frente à natureza e a
sociedade, seria legada pela romanidade ao mundo ocidental,
informando um ativismo radical e, a partir de certa época, um
individualismo acentuado. ” (Romero, 1986, p.17)
A “implosão” das ciências humanas não as eliminou, mas colocou a
necessidade do resgate da sua unidade, superando as abstrações teóricas contra
as quais Charles Wright Mills quis opor a “imaginação” (sociológica, no seu
caso).8 Certamente, “no caso do físico, ou do matemático, o passado da ciência
pode, no limite, ser relegado ao inconsciente. No caso do sociólogo ou do
historiador, toda inovação de certa importância supõe uma releitura explícita
do passado do pensamento” (Dumont, 1972, p.16). Para Thomas S. Kuhn, a
história da ciência é a história das revoluções científicas, uma história das
transições de um paradigma para outro, que é explicada pelo fato recorrente de
que homens racionais, que são racionais em virtude de serem homens, e não
por serem cientistas, encontram fatos que seus paradigmas não podem
explicar.9
O inventário das ciências humanas concluiu repondo a necessidade de sua
recomposição, pois “em que pese a crise que atravessam -- resultados incertos,
mal-estar ideológico global, esmigalhamento dos conhecimentos que contribui
para desilusões nesse campo do saber -- elas desfraldam uma pluralidade de
aproximação e nos dirigem para múltiplas redes de significação, para a verdade
objetiva do subjetivo e do homem... Diversos pontos revelam, para além das
diferenças específicas, um grande parentesco na evolução das ideias que
subjazem, profundamente, a atividade das ciências humanas”. (Russ,1994, pp.
265,310) Problemas cada vez mais agudos, como os da crise ecológica,
sublinharam a urgência da necessidade da superação das barreiras entre ciências
humanas e físico-naturais.10 A realização dessa superação não é só um processo
8
Para as ciências exatas e naturais colocou-se problema semelhante. Ver Holton, 1985. Desde
outro ângulo ver Medawar, 1989.
9
Para uma discussão acerca da aplicabilidade do conceito de Tomas S. Kuhn as ciências
humanas, ver Barnes, 1982.
10
Uma superação reacionária dessas barreiras foi proposta pela sociobiologia de Edward O.
Wilson, que foi aceita pelo neodarwinismo social: “Na visão microscópica, as humanidades e
ciências sociais se reduzem a ramos especializados da biologia. A história, a biografia e a ficção
são os protocolos da investigação da etologia humana; a antropologia e a sociologia unidas
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Intelligere, Revista de História Intelectual
nº 9, jul.2020
(ou projeto) científico, mas histórico-social, que coloca a superação dialética da
distinção entre dois tipos de vida humana - o homo faber e o homo sapiens orientados, o primeiro, para a criação prática da técnica produtiva e o segundo
para a reflexão contemplativa e a ciência pura; ou seja, vinculados, um ao uso
da mão, o outro da inteligência. (Mondolfo, 1971, p.9)11 Só na superação social
da divisão entre trabalho manual e intelectual poderia encontrar base histórica
real o projeto que Marx viu desenhar-se no próprio desenvolvimento histórico:
“Chegará o dia em que a ciência natural abranja a ciência do homem, ao
mesmo tempo em que a ciência do homem abrangerá a ciência natural: não
haverá mais do que uma só ciência”.
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constituem a biologia social de uma só espécie de primatas”. (Wilson, 1975) Reduzindo as
humanidades a ramos derivados da biologia, Wilson definiu o futuro programa da biotecnologia
capitalista (que não deve confundir-se com a biogenética): a resolução dos problemas humanos
através da manipulação genética daquilo que o cientista-empresário Craig Venter e um
presidente norte-americano definiram como “a linguagem de Deus”. Cf. Coggiola, 2001.
11
Ver também Mondolfo, 1967.
35
Osvaldo Coggiola:
Ciências Humanas: o que são, para que servem
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