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A Migração De Riscos Industriais

2006, Caderno Crh

Barry I. Castleman * RESUMO: Este artigo analisa o papel peculiar das empresas multinacionais que dominam a produção e comercialização nos ramos com altos riscos para a saúde e o meio ambiente. Historicamente estas têm exercido papel central na migração dos riscos industriais, especialmente para os países com recursos mínimos destinados à proteção ambiental e à saúde do trabalhador. São abordados vários tópicos dentre os quais a importância dos interesses das grandes empresas na determinação dos padrões de exposição às substâncias tóxicas, na exportação do "pensamento perigoso" sobre os riscos e na adoção de tipos de duplo-padrão de gestão nos países de origem e nos países em desenvolvimento. O autor apresenta vários casos ilustrativos que evidenciam questões puramente econômicas, assim como de ética e moralidade na conduta das multinacionais no cenário internacional contemporâneo, cuja redefinição requer a ação dos governos, das organizações sindicais de trabalhadores e das empresas.

Barry I. Castleman* RESUMO: Este artigo analisa o papel peculiar das empresas multinacionais que dominam a produção e comercialização nos ramos com altos riscos para a saúde e o meio ambiente. Historicamente estas têm exercido papel central na migração dos riscos industriais, especialmente para os países com recursos mínimos destinados à proteção ambiental e à saúde do trabalhador. São abordados vários tópicos dentre os quais a importância dos interesses das grandes empresas na determinação dos padrões de exposição às substâncias tóxicas, na exportação do “pensamento perigoso” sobre os riscos e na adoção de tipos de duplo-padrão de gestão nos países de origem e nos países em desenvolvimento. O autor apresenta vários casos ilustrativos que evidenciam questões puramente econômicas, assim como de ética e moralidade na conduta das multinacionais no cenário internacional contemporâneo, cuja redefinição requer a ação dos governos, das organizações sindicais de trabalhadores e das empresas. PALAVRAS-CHAVE: riscos industriais; proteção ambiental; gestão industrial; indústrias multinacionais; empresas; organizações sindicais. As empresas multinacionais dominam a produção e comercialização de produtos químicos e outros em que se comprova a existência de riscos à saúde e à segurança ocupacional. Felizmente estas empresas possuem muita experiência no controle destes riscos e desenvolveram grandes equipes e procedimentos para controlá-los. Com a tendência cada vez mais freqüente dos acordos de “livre comércio”, prevê-se que o domínio das multinacionais cresça paralelamente ao declínio proporcional das indústrias estatais e de capital nacional privado. Portanto, convém considerar o papel * Consultor ambiental. Endereço para correspondência 1722 Linden Avenue, Baltimore, MD 21217.U.S.A. CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 42 A MIGRAÇÃO DE RISCOS INDUSTRIAIS peculiar das empresas multinacionais como indústrias que se expandem em todo o mundo, especialmente nos países onde os recursos até agora disponíveis para a proteção ambiental e saúde do trabalhador são mínimos. Historicamente, as empresas multinacionais exercem um papel central na migração dos riscos industriais. É preciso analisar este fato para se chegar a uma compreensão do que pode e deve ser feito pelas grandes empresas ao assumirem a responsabilidade de promover uma mudança em termos mundiais, visando à adoção de tecnologias mais seguras. O primeiro tópico a ser considerado é o papel dos interesses empresariais que influenciam os padrões de exposição do trabalhador às substâncias tóxicas adotados em todo o mundo. Os limites estabelecidos para os locais de trabalho tendem a ser considerados como os limites máximos de exposição humana às substâncias tóxicas e, normalmente, são utilizados também como parâmetros para a avaliação dos riscos à saúde humana decorrentes da poluição ambiental do ar. Reconhece-se agora, em termos mundiais, que esses limites se baseiam em dados e análises insuficientes, moldados pelos interesses financeiros de forma muito velada em relação à comunidade científica. A EXPORTAÇÃO DO PENSAMENTO PERIGOSO. O QUE É BOM PARA NÓS, TAMBÉM É BOM PARA VOCÊS Além dos elementos normalmente incluídos na exportação dos riscos para os países em desenvolvimento (exportação de produtos perigosos, indústrias e resíduos), há a exportação das denominadas normas de proteção à saúde. Ao contrário de muitos outros tipos de exportações de risco, trata-se da exportação para os países pobres das mesmas normas adotadas nos Estados Unidos e em muitos outros países industrializados. Os limites de exposição ocupacional (LEOs) são limites da concentração de poluentes do ar nos locais de trabalho. Os limites de exposição ocupacional mais conhecidos são os valores dos limites de tolerância (TLVs), publicados e revisados anualmente desde 1946 por um grupo privado denominado American Conference of Governmental Industrial Hygienists ACGIH1. Países em todo o mundo confiam nos TLVs para estipular os limites permitidos de exposição ocupacional aos poluentes industriais atmosféricos. Dentre os países que utilizaram os TLVs para determinar os limites de exposição ocupacional estão os Estados Unidos, a Bélgica, Alemanha, Áustria, Itália, Holanda, Portugal, Dinamarca, Suécia, Finlândia, Noruega, Espanha, Suíça, o Reino Unido, a África do Sul e o Japão. Embora muitos países já tenham adotado procedimentos independentes para ajustar os limites de exposição ocupacional (LEO), muitos dos limites nas listas de seus LEOs são remanescentes dos anos iniciais que não foram submetidos 1 N.T. Conferência Americana de Higienistas Industriais do Governo. CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 BARRY I. CASTLEMAN 43 à revisão. Os TLVs foram bastante criticados nos últimos anos devido às impropriedades científicas e à influência velada dos fabricantes de produtos químicos na determinação dos mesmos. O uso internacional dos TLVs para fixar padrões e a concepção de que limites seguros para as populações trabalhadoras podem ser deduzidos dos bancos de dados insuficientes, são casos ilustrativos da exportação do pensamento sobre os riscos. Na “documentação” referente aos TLVs publicada em 1986, mais de 100 entre aproximadamente 600 TLVs de substâncias baseavam-se em dados insatisfatórios e não-publicados das empresas2 Os esforços para se obter a documentação original foram em sua grande maioria infrutíferos e alguns dos documentos identificados registravam opiniões não-fundamentadas em dados. Desde então a ACGHI reescreve a “documentação”, eliminando as referências não-publicadas e "perdidas", sem reavaliar os TLVs baseados nas antigas referências3. Tal procedimento contribui mais decisivamente para ocultar a influência dos interesses econômicos, ao invés de eliminá-la. A revisão das atas da comissão de TLV (1970-1988) mostra que, na realidade, os representantes das empresas listados como "consultores" receberam a incumbência básica de fazer um esboço do documento que serviria de base para a definição dos novos TLVs. Essas indicações químicas incluíam muitos produtos de peso para os empregadores dos “consultores”. Aproximadamente 40 produtos da Dow foram atribuídos aos toxicologistas da Dow; 20 produtos da DuPont foram delegados aos empregados da DuPont, “consultores” na comissão de TLVs; e os dez produtos químicos atribuídos a um toxicologista da grande firma alemã Bayer eram todos produtos da Bayer (Tabela 1). Mais de 120 substâncias avaliadas pela comissão de TLV foram atribuídas aos representantes das empresas. As “minutas da documentação” preparadas pelos representantes das empresas eram então discutidas e adotadas pelos voluntários não-remunerados do comitê de TLV oficialmente registrados como membros votantes. Outras críticas referem-se às inexatidões concernentes às referências originais que fundamentariam os TLVs4. As referências citadas mostram de forma consistente os efeitos adversos para a saúde humana ainda quando de exposição abaixo dos TLVs. Os TLVs de 98 substâncias foram criticados como insuficientes em termos de proteção pelo National Institute for Occu- 2 Castleman BI, Ziem Ge., Corporate influence on threshold limit values. Am J Ind Med 1988 13: 531-59 Castleman BI, Ziem Ge. American Conference of Governmental Industrial Hygienists: low threshold of credibility. Am J Ind Med 1994 26: 133-43 4 Roach SA, Rappaport SM. But they are not thresholds: a critical analysis of the documentation of threshold limit values. Am J Ind Med. 1990 17: 727-53. 3 CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 44 A MIGRAÇÃO DE RISCOS INDUSTRIAIS pational Safety and Health dos Estados Unidos5 em sua revisão do padrão de poluentes do ar no local de trabalho analisado em 19886 . Apesar de toda a crítica, a ACGIH continua afirmando que os TLVs “baseiam-se nas melhores informações disponíveis” e que são seguros para “quase todos os trabalhadores”. A ACGHI também se recusou a assumir uma política de conflito de interesses ou a cumprir os requisitos de revelação pública da receita dos membros da comissão de TLV, alguns dos quais são membros do corpo docente da universidade e prestam consultoria às empresas. Este procedimento difere bastante do que se exige dos membros das comissões do conselho científico pelo governo americano. Antes de finalizar o tópico de exportação do pensamento perigoso, deve-se considerar a idéia de se ter uma lista das enfermidades ocupacionais reconhecidas e passíveis de indenização. Numa reunião de médicos das principais indústrias na área de Hanói, perguntou-se a um visitante estrangeiro qual era a lista de doenças ocupacionais em seu país. A resposta foi que não havia lista. A enfermidade considerada ocupacional do ponto de vista médico é coberta por indenização, sem que haja necessidade de esperar pela revisão da lei sempre que a ciência apresenta um avanço. Seria uma triste ironia se o Vietnã tivesse que adotar o sistema antigo de modelo de indenização de doenças, enquanto muda sua economia em direção ao setor privado. O sistema de limitar as indenizações à última lista de doenças revisada pelo governo é praticado na Alemanha como um procedimento restritivo. Lá, quando uma empresa apresenta dados de monitoramento do ar mostrando que a exposição do trabalhador ao agente tóxico em questão está abaixo da MAK (concentração máxima admissível no local de trabalho), o empregador pode até mesmo ser isento de responsabilidade em relação aos casos clínicos encontrados. Não é de surpreender que a MAK apresente uma semelhança marcante com os TLVs, tanto nos próprios números quanto no comprometimento dos empregados da indústria e consultores em fornecê-los. A indústria alemã com certeza não sofreu prejuízos econômicos pelo fato de possuir limites ocupacionais mais rígidos do que os TLVs . Pelo menos um médico de empresa na comissão MAK assume ter uma dupla personalidade. Na maioria das vezes ele é um funcionário leal de uma grande empresa, mas quando vai às reuniões da comissão MAK e, mesmo, ao se preparar para as mesmas, ele se diz um mero cientista. Rejeita qualquer possibilidade de que o seu conhecimento acerca dos produtos de seu empregador, por exemplo, venha a influenciar suas recomendações 5 6 N.T. Instituto Nacional de Segurança Ocupacional e Saúde dos Estados Unidos. Robinson J.C. Paxman D.G. Rappaport S.M. Implications of OSHA’s reliance on TLVs in developing the air contaminants standart. Am J Ind Med, 1991, 19, p.3-13. CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 BARRY I. CASTLEMAN 45 sobre os limites de exposição ocupacional para os referidos produtos. Será que médicos de empresa, esquizofrênicos, serão recebidos noutros países como autoridades? Ou, provavelmente, serão vistos como curiosidades em meio à exportação de produtos perigosos, os Doutores Pangloss7 da atualidade que viajam na primeira classe, alheios à presença esmagadora do poder da empresa e da fragilidade humana no nosso mundo? Tabela 1 Responsabilidade pelos valores dos limites de tolerância (TLVs) atribuída aos representantes das empresas Produto químico Acrilamida Acrilonitrila Amitrole Amianto (Asbesto) Bromacil (“Hyvar X") Bromoclorometano Caprolactama Tetacloreto de carbono Cloro Ácido cloroacético Cloreto de cloroacetila Clorodifluorometano Clorofórmio Cloropentafluoretano Cloropropeno 2-ácido cloropropiónico 2-cloro-6-trimetil piridina (“N-Serve”) Cloropirifos (“Dursban”) Cromatos Clopidol (“Coyden”) Crufomato (“Ruelene”) Dibromocloropropano Dicloromonofluorometano 1,2 Dicloropropano (dicloreto de propileno) 1,3 Dicloropropeno ("Telone”) Diciclopentadieno Dimetilformamida Dimetil sulfato 3,5 Dinitro-o-toluamida (“Zoalene”) Dioxano Dioxina Éter dipropileno glicolmetílico (“Dowanol DPM”) Diuron ("Karmex”) Divinilbenzeno Epiclorohidrina Etanolamina Etileno diamina 1,2 dibromoetano 1,2 dicloroetano Etileno glicol Fenamiphos (“Nemacur”) Fenthion (Baytex) 7 Pessoa designada (Empresa) T. Torkelson (Dow) * T. T.(Dow), J. Morgan (DuPont) * T. T.(Dow), G.Kirnmerie (Bayer)* P. Gross (empresas de amianto)* J. M. (DuPont)* T. T. (Dow)* T. T. (Dow)* T. T. (Dow)* subcomissão* T. T. (Dow)* T. T. (Dow)* T. T. (Dow)* J. M. (DuPont)* T. T. (Dow)* J. M. (DuPont)* J. M. (DuPont)* T. T. (Dow) subcomissão* T. T. (Dow) * J. M. (DuPont)* J. M. (DuPont)* T. T. (Dow)* T. T. (Dow )* T. T. (Dow )* J. M. (DuPont)* T. T. (Dow)* T. T (Dow) T. T. (Dow) ** J. M. (DuPont)* J. M. (DuPont)* T. T. (Dow)* * T. T. (Dow)* T. T. (Dow)* T. T. (Dow )* J. M. (DuPont)* T. T. (Dow)* T. T. (Dow)* subcomissão T. T. Down* T.T. (Dow)* T. T. (Dow) * T. T. (Dow)* T. T. (Dow)* G. K. (Bayert)* G.K. (Bayer)* N.T. O autor utiliza o termo Professor Pangloss relativo ao Doutor Pangloss, personagem de Cândido, romance satírico de Voltaire que se refere ao otimismo dessa personagem. CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 46 A MIGRAÇÃO DE RISCOS INDUSTRIAIS CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 BARRY I. CASTLEMAN 47 (continuação) Produto químico Pessoa Responsável (Companhia) Fibra de vidro P.G (associação de fabricantes de mat. de isolamento) Formamida J.M., G. L. Kennedy (DuPont)* Gasolina J.Hammond (Exxon)* Hexafluoroacetona J.J. (DuPont)* Hexametilfosforamida J.M. (DuPont)* n-Hexano J.H. (Exxon)* Ácido cianídrico J.M. (DuPont)* Gas liquefeito de petróleo (GLP) J.H. (Exxon)* Metomil (“Lannate”) J.M. (DuPont)* Brometo de metila T. T. (Dow)* Cloreto de metila T. T. Dow * 4,4’-Metileno bis (2-cloroanilina) (“MOCA”) J. M. (DuPont)* Cloreto de metileno T. T. (Dow)* 4,4’ Metileno dianilina T.T. (Dow) subcomissão* Metribuzina ("Sencor”) G.K. (Bayer)* Nafta, VM &P J.H. (Exxon)* p-Nitroclorobenzeno G. L. K. (DuPont)* Percloroetileno T. T. (Dow)* Perclorometil mercaptana G.K. (Bayer)* Fenilenodiamina G.K. (Bayer)* Fosgênio J.M. (DuPont)* Picloram (Tordon) T.T. (Dow )* Eter propileno glicol metílico (“Dowanol PM”) T. T. (Dow)* Solvente de Stoddard J.H (Exxon)* Estireno T. T. (Dow)* Sulprofos (“Bolstar”) G.K. (Bayer)* 2,4,5 – T V.K. Rowe (Dow)* Thiram G.K. (Bayer)* m-Toluenodiamina J.M. (DuPont)* o-Toluidina G.K. (Bayer)* 1,2,4 Triclorobenzeno T. T. (Dow)* 1,1,1 Tricloroetano T. T. (Dow)* 1,1,2 Tricloroetano T. T. (Dow)* Tricloroetileno T. T. (Dow)* 1,2,3 Tricloropropano T. T. (Dow)* Triclorotrifluoroetano J.M. (DuPont)* Hidróxido de tricicloexilestanho T. T. (Dowt)* (“Plictran”, cyexatina) Trifluorbromometano J.M. (DuPont)* Cloreto de vinila T. T. (Dow)* Cloreto de vinilideno T. T. (Dow)* Xilidina G.K. (Bayer)* Fontes: Atas da comissão de TLV, atas das subcomissões de TLV e planilhas de cálculo da comissão de TLV, 1970-88. Directory of Chemical Producers, 1986. Chemical Week Buyers' Guide, 1976 and other years; Synthetic Organic Chemicals. U.S. International Trade Commission, 1972-1986 e comunicações pessoais com os membros antigos e atuais das comissões de TLV. * produto da companhia durante o período (ou anterior a este ) de elaboração da documentação referente à TLV ** produto da companhia após o período de elaboração da documentação referente à TLV. CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 48 A MIGRAÇÃO DE RISCOS INDUSTRIAIS DUPLOS PADRÕES A combinação de informações, regulamentos e indenizações elevou os custos do uso de substâncias tóxicas em certos países. Em alguns casos, as empresas transferiram plantas inteiras e exportaram os produtos banidos para os países em desenvolvimento, mas na grande maioria a exportação de produtos perigosos é menos óbvia, salvo nos casos em que é possível estabelecer comparações quantitativas internacionais. Há alguns exemplos em que as empresas multinacionais não estiveram tão presentes no controle de riscos industriais nos países em desenvolvimento quanto nos seus países de origem. Os relatórios mais numerosos relacionados com o “duplo padrão” surgiram em relação ao amianto e outros materiais excepcionalmente perigosos, em que o controle efetivo dos riscos representaria a principal fatia dos custos totais de produção e levaria à redução das vendas. Os casos descritos na década de 1970 e início da década de 1980 envolveram firmas sediadas na Alemanha Ocidental, Estados Unidos, Suíça, Itália, Áustria e Japão8 . Exemplos ilustrativos dos tipos de duplo padrão na gestão industrial são apresentados na Tabela 2. O caso de duplo padrão mais estudado envolve a planta de produção de um pesticida da Union Carbide que causou milhares de mortes e tornou-se um risco permanente à saúde de milhares de pessoas em Bhopal, na Índia, em 1984. A comparação entre a planta de Bhopal e uma planta semelhante operada pela Union Carbide nos Estados Unidos mostrou vários duplos padrões concernentes ao projeto e à operação da planta, às auditorias de segurança, ao treinamento do trabalhador, às equipes de trabalhos de risco, à manutenção da planta e atribuição de responsabilidade à gerência. Fatores adicionais muito importantes foram a falta de regulamentos governamentais e de responsabilidade civil na Índia em comparação com os Estados Unidos9 . A forma de indenização das vítimas de Bhopal foi uma medida embaraçosa que o governo indiano aceitou para não se opor à continuidade de um grande negócio. O pagamento das indenizações por danos, no valor de 470 milhões de dólares, não foi suficiente sequer para custear o tratamento de saúde e monitoramento da população exposta ao gás. A forma 8 Castleman BI, Navarro V. International mobility of hazardous products, and wastes. Annu Ver Public Health, 1987, 8:1-19. 9 Castleman BI, Purkayastha P. Appendix: the Bhopal disaster as a case study in double standards. In Ives JII (ed.). The Export of Hazard. Boston, MA: Routledge, Kegan Paul, 1985, p. 213-22. CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 BARRY I. CASTLEMAN 49 de indenização foi tão favorável à Union Carbide que o preço das ações da empresa apresentou um aumento de 2 dólares por ação na Bolsa de Valores de Nova York no dia em que foi anunciada. Embora impugnado pelo governo indiano subseqüente, de V.P. Singh, o acordo referente às indenizações foi mantido em 1991 pela Suprema Corte Indiana. Mesmo assim, a indústria não deixou de constatar que em alguns países um desastre dessas proporções seria fatal também para a multibilionária empresa responsável pelo mesmo. O desastre de Bhopal concentrou a atenção mundial para as políticas e práticas das multinacionais quanto à proteção à saúde do trabalhador, à segurança e ao meio ambiente. Grandes empresas perceberam de repente que estavam correndo riscos excessivos, passíveis de redução, e passaram a reduzir as quantidades de gases comprimidos altamente tóxicos que armazenavam e transportavam. O transporte de grandes cilindros de gás fosgênio, por exemplo, uma prática comum nos Estados Unidos, passou a ser totalmente evitado. Estas mudanças se devem, em parte, ao pagamento do seguro relativo às conseqüências da liberação de substâncias químicas na atmosfera, que se tornou exorbitante. Além das considerações puramente econômicas, a ética e a moralidade da conduta das multinacionais foram submetidas a uma investigação sem precedentes. Obviamente, os padrões inferiores de proteção ambiental e do trabalhador conferem, no mínimo, economias a curto prazo aos proprietários das fábricas. A tentação de aumentar os lucros cortando certos custos é especialmente maior onde não existem regulamentos governamentais, consciência pública, pressão sindical ou mecanismos de atribuição de responsabilidade pelas perdas e danos quando algo sai errado. O caso Bhopal mostrou que quando os níveis de lucros das operações nos países do terceiro mundo são considerados baixos, há uma pressão adicional da gestão para reduzir os custos de operação por meio de métodos cujos custos imediatos são de pouca monta, mas cujos riscos, a longo prazo, podem ser catastróficos. A estrutura das empresas multinacionais parece, portanto, ideal para eximir a cúpula da gestão empresarial de qualquer responsabilidade pelas conseqüências decorrentes da “obediência aos padrões locais” em todo o mundo. CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 50 A MIGRAÇÃO DE RISCOS INDUSTRIAIS Tabela 2 - Casos de duplo padrão* Indústria Localização Tipo de risco relatado Filiação multinaTipo de filiação cional Moagem de amianto África do Sul Crianças apresentando Cape Asbestos Operação de mina de asbestose grave subsidiária Produção de alfa- Fora do Reino Unido Câncer de bexiga Imperial Chemi- Desconhecida naftilamina cal Industries (RU) Produção de corante Fora do Reino Unido Câncer de bexiga de benzidina Produção de tecido Agua Prieta e Juarez, Não informa aos traba- Amatex (USA) Subsidiária de asbestos México lhadores, não proporciona troca de vestimentas, poluição da vizinhança Produção de tricloro- Seveso, Itália Poluição do ar e do Givaudan do Subsidiária fenol local de trabalho com Hoffmanndioxinas, falta de infor- LaRoche, Suíça mação aos trabalhadores, controles de segurança inadequados no projeto da planta Produção de isola- Brasil Não-fixação de avisos Johns-Manville Subsidiária mento de amianto de advertência quanto (USA) ao risco, não-reformula- Owens-Corning ção dos produtos para (USA) eliminar amianto Fabricação de fricção Bombaim, Índia Numerosos riscos sem Turner & Newall, 74% de participação de amianto e têxtil controle no local de Ltda (RU) trabalho. Trabalhadores não-informados sobre os resultados dos exames médicos Amianto Países que não exigem Não-fixação de rótulos Toda a indústria os requisitos na rotu- de advertência quanto de amianto (Aslagem aos riscos so-ciação Internacional de Amianto) Produção de cimento Ahmedabad, Índia Poluição da água, aterro Johns-Manville Participação minoritáamianto de resíduos sólidos, (USA) ria, exclusividade no não-adoção de medidas mercado de exportade advertência quanto ção, na venda de aos riscos matéria-prima, no projeto da planta e supervisão da implantação Fabricação de reves- Madras, Índia Aterro de resíduos Cape Industries Participação de 25% timento de freio de sólidos (RU) amianto Fabricação de pedais Coréia do Sul Condições de trabalho Desconhecida de freio de amianto abaixo dos padrões Produtos têxteis de República da África Processo industrial Investidores Subsidiária amianto do Sul perigoso transferido da alemães Alemanha Moagem de amianto Quebec, Canadá Falta de controle de Abestos Corp. Subsidiária poeira no local de traba- Ltd of General lho Dynamics (USA) CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 BARRY I. CASTLEMAN 51 Tabela 2. (continuação) Indústria Localização Pedais de freio de Cork, Irlanda amianto Fabricação de baterias Indonésia Spray de epóxi Estaleiros fora Dinamarca Produção de cromato Lecheria, México e dicromato Tipo de risco relatado Filiação multinaTipo de filiação cional Planta de pedais de RaybestosSubsidiária freio recente, utilizan- Manhattan (USA) do ami-anto como matéria-pri-ma Centenas de trabalhado- Union Carbide Subsidiária res com doença renal, (USA) poluição da água potável por mercúrio da Eczema, câncer (?) Desconhecida - Aterro de resíduos, Bayer (Alemanha Participação parcial exposição no local de Ocidental) trabalho resultando em perfuração do septo nasal Fabricação de corante Bombaim, Índia Poluição da água Montedison Participação parcial (Itália) Planta de cloreto de Manágua, Nicarágua Envenenamento por Pennwalt Corp. Participação de 40% e mercúrio mercúrio, poluição da (USA) gestão da planta água Produção de aço Malásia Poluição do ar, riscos Nippon Steel Participação minoritáno local de trabalho (Japan) ria e projeto da planta Produção de policlo- Malásia Alta exposição do traba- companhias Participação parcial reto de vinila lhador a cloreto de japonesas” vinila (carcinogênico) Produção de pragui- Malásia Sintomas de envenena- Diamond Sham- Subsidiária cida arsenical mento por arsênico em rock (USA) trabalhadores, ausência de monitoramento da exposição Policloretos de bifeni- Zacatecas, México Aterro de resíduos Diamond Sham- Empresa de disposilas e outros resíduos rock, B.F. Goo- ção dos resíduos de químicos drich e Mono- grandes firmas americhem (todas dos canas USA) Resíduos de tricloro- Bélgica Disposição de resíduos Chemie Linz Resíduos originários benzeno contaminatóxicos que não foram (Áustria) do produtor rotulados da forma dos com compostos correta de dioxina Produção de pesticida Bhopal, Índia Projeto e operação da Union Carbide 51% de participação planta em condições (USA) inseguras. História de exposições com lesões anterior à desastrosa contaminação por gases em 1984 Fonte: Castleman e Navarro CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 52 A MIGRAÇÃO DE RISCOS INDUSTRIAIS A pesquisa da International Labor Office, Safety and Health Practices of Multinational Enterprises (ILO)10evidenciou que "ao comparar-se os desempenhos em saúde e segurança das matrizes e subsidiárias das empresas multinacionais, pode-se dizer que aquelas com operações em seus países de origem foram melhores do que as subsidiárias nos países em desenvolvimento11 . O relatório do United Nations Centre on Transnational Corporations12 exigiu a avaliação das políticas de saúde e segurança ocupacional das empresas multinacionais. O relatório detectou a presença de “vários exemplos de ‘duplo padrão’, nos quais as medidas de proteção à saúde das comunidades e do trabalhador são bem mais frágeis nos países em desenvolvimento do que as adotadas pelas empresas transnacionais em seus países de origem”. Exemplos desse tipo encontram-se nas indústrias de cloreto de vinila, pesticidas, cromatos, aço, cloro e amianto13 . A reação das maiores multinacionais químicas sediadas nos Estados Unidos e no Reino Unido foi negar que a política da empresa tivesse dois padrões de proteção para as pessoas sujeitas aos mesmos riscos industriais em diferentes países. Entretanto, existem formas diferentes de se expressar esta preocupação, algumas com maior grau de comprometimento do que outras. Apesar disso, muitos continuam céticos, acreditando que existe uma grande distância entre as declarações da política da empresa e a realidade de duplos padrões na conduta desta. BAYER - NA DIANTEIRA DA LISTA DE DOENÇAS OCUPACIONAIS A produção de cromatos da Bayer é um exemplo de duplo padrão. O câncer de pulmão foi acrescentado à lista de doenças ocupacionais indenizáveis para os trabalhadores ligados à produção de cromatos na Alemanha em 1936. As autoridades de indenizações na Alemanha, que não são vistas como simpatizantes dos requerentes, consideram que qualquer trabalhador com mais de três meses de trabalho com cromato tem direito à indenização, caso o câncer de pulmão venha a se desenvolver subseqüentemente. Desde 1939, os especialistas da Bayer publicam artigos sobre câncer de pulmão provocado por cromatos. A Bayer operou uma fábrica de cromato no México que em 1976 10 N.T. - Organização Internacional do Trabalho, Práticas em Segurança e Saúde das Empresas Multinacionais (OIT). 11 Safety and Health Practices of Multinational Enterprises. Geneva: International Labor Office, 1984. 12 N.T. - Centro das Nações Unidas sobre as Empresas Transnacionais. 13 United Latinos Centre on Transnational Corporations, Environmental Aspects of the Activities of Transnational Corporations: A Survey. New York: United Nations, 1985. CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 BARRY I. CASTLEMAN 53 atraiu a atenção da Anistia Internacional e do Excelsion, o principal jornal da Cidade do México. Foi anunciado que 46% dos trabalhadores desta planta apresentavam perfuração do septo nasal, um sinal clássico de exposição maciça aos cromatos. Imensos montes de minérios de cromato e resíduos foram acumulados em volta da planta. Durante aproximadamente 15 anos os resíduos foram despejados e usados para preencher os buracos da pavimentação grosseira da zona industrial chamada Lecheria. Alfred Badillo Sosa explicou a um repórter de uma revista semanal mexicana como ficou aleijado logo após trabalhar durante cinco dias revolvendo resíduos na Cromatos do México. Os pés ficaram tão destruídos pelos resíduos corrosivos de cromo que tinha que usar os joelhos para se locomover. Ainda não ficou claro se este homem ou quaisquer outros trabalhadores incapacitados ou mortos receberam indenização. Aproximadamente 50 crianças que viviam nas proximidades desenvolveram feridas profundas e dolorosas devido à poluição do ar e à contaminação das fontes de água potável. A água da chuva que ficou amarela devido à presença de cromatos no solo, fez com que um visitante americano descrevesse o local como o “Inferno de Dante”. A planta foi fechada várias vezes pelas autoridades mexicanas por ser considerada área de risco à saúde, até finalmente parar de funcionar em 1979. Desde 1968 a Bayer possui a Chrome Chemicals na África do Sul. Um relatório do governo sul-africano de 1976 relata que 46% dos empregados da companhia de Cromato Durban apresentaram perfuração do septo nasal. “Estas descobertas são extremamente constrangedoras e parecem indicar uma falta de preocupação em relação ao bem-estar físico dos empregados”. A preocupação do sindicato em 1990 possibilitou a descoberta de que vários trabalhadores haviam desenvolvido câncer de pulmão, embora nenhum deles tivesse sido informado pelo médico da empresa sobre a possibilidade da causa da doença ter sido o trabalho. A gerência recusou-se a atender à solicitação do sindicato de inspecionar os registros de higiene industrial da fábrica. Em 1991, em meio à publicidade crescente, a Chrome Chemicals suspendeu a maioria de suas operações e demitiu a maioria de seus 216 empregados. Infelizmente, até 1994 o câncer de pulmão não fora acrescentado à lista de enfermidades ocupacionais sujeitas à indenização na África do Sul e os casos que ocorreram anteriormente não têm direito à indenização. A Bayer está bem consciente da situação dos seus antigos empregados, na maioria negros. Dr. Mark Colvin confrontou os diretores na reunião anual dos acionistas da Bayer informando à platéia sobre os pacientes aleijados, desempregados e mortos da Chrome Chemicals. O Dr. Colvin disse que a sua unidade de saúde da Universidade associou-se ao sindicato para pedir à Bayer que organizasse um fundo fiduciário para localizar os exempregados e suas famílias e providenciar a “indenização adequada”. Até CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 54 A MIGRAÇÃO DE RISCOS INDUSTRIAIS o presente momento a Bayer se recusa a pagar a indenização, até mesmo para o número crescente de antigos empregados da sua subsidiária na África do Sul, portadores de câncer de pulmão. A companhia, entretanto, entrou em contato com o dirigente da Universidade de Natal, onde Dr. Colvin trabalha, para disciplinar o médico por não ter procurado a aprovação da administração da universidade antes de sua viagem para a reunião de acionistas. A Bayer, que ajuda financeiramente muitas organizações sociais nos locais onde possui negócios, contribuíra com recursos financeiros para a Universidade de Natal e, evidentemente, considerava a visita do Dr. Colvin à Alemanha como um tipo de quebra de contrato. O não-cumprimento das responsabilidades por parte da Bayer, garantidas por lei aos trabalhadores da África do Sul portadores de câncer de pulmão, poderia levar as vítimas da Chrome Chemicals a processar a Bayer na Alemanha. A Corte alemã teria então que decidir se responsabilizaria a Bayer pelos atos de suas subsidiárias ou se indeferiria o caso, com base nos detalhes tecnicistas das empresas que só os advogados levam a sério. Outras companhias foram acusadas de racismo ambiental, por muito menos do que a Bayer causou no México e na África do Sul. Alguns lembram a tendência pós-guerra da Bayer de empregar como diretores executivos criminosos nazistas que operaram o famoso complexo químico I. G. Farben. É impossível não indagar se o antigo pensamento preconceituoso persiste na diretoria da empresa, que se move sob os retratos de Fritz ter Meer e Wilhelm Mann, em meio a luminárias e mobília imaculada do começo da década de 40. Não é menos chocante como práticas dessa natureza possam ser realizadas por interesses meramente financeiros e serem verbalizadas como: “Agimos dessa forma porque podemos fazê-lo e ganhar milhões de dólares rapidamente. Somos homens de negócios, e não racistas”. POLÍTICAS GLOBAIS DE EMPRESA Em 1986, o presidente da DuPont disse ao se aposentar: “Descobrimos que a segurança pode ser totalmente transferida por intermédio das culturas com paciência, tato e persistência”. Seu sucessor afirmou em 1989: “A indústria precisa manter o mesmo alto nível de padrões ambientais independentemente do país de operação”. Quando solicitada uma explicação mais clara em 1993, o correspondente designado pelo presidente afirmou, por escrito: “Nunca afirmamos que empregamos as normas americanas em qualquer parte do mundo onde operamos... Afirmamos que em todas as nossas operações em termos mundiais, dentre as leis locais ou as políticas da empresa aplicamos as que forem mais rígidas.” Em declarações públicas desde 1990, o presidente da Dow Chemical CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 BARRY I. CASTLEMAN 55 vem reiterando que a Dow pretende obedecer aos padrões americanos ambientais e de segurança em todo o mundo. W. R. Grace afirma o mesmo. O presidente da Imperial Chemical Industries declarou em 1990 que todas as plantas novas “serão construídas conforme as normas que obedecem aos regulamentos previstos nos países com maior preocupação ambiental onde operamos o processo”. A Basf e a Bayer disseram que sua política consiste em atender às normas alemãs em todo o mundo, visando à proteção do trabalhador e do meio ambiente. O porta-voz da Henkel disse ao Hamburg Environmental Institute14 que esta seria uma carga muito pesada em relação à lucratividade. Apesar da afirmação de algumas empresas que observam os mesmos padrões do seu país natal em todo o mundo, nenhuma das companhias obteve classificação alta na categoria “duplo padrão” do Instituto. Em termos gerais, o grupo de Hamburgo descobriu que os desempenhos ambientais das 50 maiores companhias mundiais de produtos químicos e farmacêuticos “estavam sofrendo redução em toda a indústria”. O European Chemical Industry Council (CEFIC)15 afirma nas Guidelines on Transfer of Technology (Safety, Health and Environment Aspects)16 que a transferência de tecnologia deve atingir um grau de segurança, proteção à saúde e ao meio ambiente equivalente ao da tecnologia do fornecedor de onde se origina e “equivalente ao daquela a ser alcançada nas instalações nacionais do fornecedor de tecnologia”17 . Essas diretrizes deveriam ser aplicadas às operações das subsidiárias das multinacionais. O United Nations Environment Program’s Code of Ethics on the International Trade in Chemicals (UNEP)18 retrocede ao afirmar que os fabricantes devem atender às exigências dos países anfitriões, como também às da matriz ou companhia contratante. Este código é uma forma de desculpa oficial das multinacionais que proporcionam salvaguardas mais fracas aos países em desenvolvimento do que as exigidas em seus países de origem. Também favorece aos competidores mais vorazes cujos padrões da matriz são menos protetores, menos utilizados, ou ambos. Por outro lado, o código da UNEP orienta a companhia a “garantir que os trabalhadores e outros não sejam punidos pelo monitoramento e divulgação de seu desempenho”19 . Isto remete ao assédio a um fazendeiro, um cientista, um editor de jornal e a um repórter imposto pela Hoechst, na sua campanha ineficaz de ações legais e táticas de 14 15 16 17 18 19 N.T. - Instituto Ambiental de Hamburgo. N.T. - Conselho Europeu de Indústrias Químicas. N.T. - Diretrizes quanto à Transferência de Tecnologia (Segurança, Saúde e Aspectos Ambientais). CEFIC Guidelines on Transfer Technology (Safety, Health, and Environment Aspects). Brussels. European Chemical Industry Council, (CEFIC), 1991. N.T. - Código de Éticas do Comércio Internacional de Produtos Químicos do Programa Ambiental das Nações Unidas. Code of Ethics on the International Trade in Chemicals. Nairobi: Programa Ambiental das Nações Unidas, 1994. CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 56 A MIGRAÇÃO DE RISCOS INDUSTRIAIS ameaça para fazer o governo das Filipinas retroceder na proibição do pesticida endosulfan20 . Existem grandes variações entre as principais empresas para elaborar um plano global e ainda mais para implementá-lo. As multinacionais que possuem base em muitos países, incluindo Japão, Suíça, Alemanha, França e Formosa parecem ter sido submetidas a investigações menos rigorosas quanto às políticas globais. As revistas de comércio e indústria pouco publicam sobre as políticas dessas empresas e suas práticas de implementação. ALGUNS OUTROS TIPOS DE DUPLO PADRÃO O problema de duplo padrão traz uma série de desafios para os tomadores de decisões políticas nas empresas. Desde 1988 são exigidos nos Estados Unidos os dados do Toxic Release Inventory (Inventário de Liberação Tóxica) para cada substância poluente liberada no ar, na água e no solo em cada planta. Embora as principais multinacionais de produtos químicos, sediadas nos Estados Unidos e em outros países, operem plantas que obedecem a estes requisitos nos Estados Unidos, a divulgação para o público de dados semelhantes ou de plantas em todo o mundo não constitui política constante da empresa. Em 1993, o porta voz da DuPont informou que a empresa estava reunindo os referidos dados de plantas não-americanas “e que informaria ao público próximo às nossas instalações, logo que os mesmos estivessem disponíveis”. A informação pública nos Estados Unidos agora inclui a Análise de Riscos de Processo. Uma análise típica identifica riscos potenciais e as possíveis conseqüências se houver falha do sistema de segurança e faz as recomendações para a redução e eliminação de riscos. Em 1994, requereuse a primeira das avaliações de risco dos processos mais perigosos para ser fornecida aos trabalhadores. Os grupos comunitários também pediram as cópias desses relatórios às indústrias, sendo eliminadas as informações empresariais confidenciais. As empresas que se defrontam a esta exigência nos Estados Unidos, enfrentam o desafio de mostrar imparcialidade ao atender às solicitações de informações semelhantes em cenários de acidentes graves nos outros países. Muitos países, incluindo aqueles que possuem as indústrias químicas que estão crescendo mais rapidamente, possuem capacidade limitada ou 20 Macfarlane R. Citizens Pesticides: Hoechst/The Story of Endosulfan and Triphenyltin. Penang, Malaysia: Pesticide Action Network, Asia and the Pacific, 1994 Também, Tengam SV. Women and pesticides in Asia: campaign for change. Global Pesticide Campaigner. September 1994; 4:1. CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 BARRY I. CASTLEMAN 57 praticamente inexistente quanto à eliminação de resíduos perigosos conforme as tecnologias de ponta já alcançadas com esta finalidade. Uma vez que a criação de resíduos perigosos é uma característica de projeto de muitas plantas operadas pelas multinacionais nos países em desenvolvimento, o resultado é um padrão duplo na eliminação de resíduos perigosos, salvo nos casos em que as companhias em questão garantam a construção das instalações necessárias para a eliminação desses resíduos, atendendo aos padrões encontrados na Europa e na América do Norte. Muitas vezes os padrões de proteção específica ao trabalhador e ao meio ambiente nos Estados Unidos e em outros países são impugnados na justiça pelas empresas e associações comerciais, por considerá-los excessivamente rígidos. Se o posicionamento legal de uma empresa é o de julgar um limite de controle excessivamente rígido, pergunta-se se a empresa obedeceria ao limite fora do país em que a norma está em vigor, embora esteja sob ação judicial? Se os Estados Unidos ou qualquer outro país proibisse o uso de um pesticida cujo uso seja garantido pela empresa, esta continuaria a comercializá-lo apesar de tal proibição? Se uma empresa retira “voluntariamente” um pesticida cujo uso está sendo submetido à avaliação por uma agência de regulamentação dos Estados Unidos, isto significa que o mesmo será retirado do mercado em qualquer outro lugar do mundo? A disposição das multinacionais em divulgar informações relacionadas com a saúde e com o meio ambiente é facilmente superada quando são requeridos: uma lista de todas as plantas das empresas e dos produtos de cada uma destas; cópias das diretrizes de segurança e de saúde ocupacional da empresa; diretrizes ambientais da empresa; cópias das auditorias ambientais e de segurança da planta; limites de exposição ocupacional da empresa quanto a produtos químicos, incluindo substâncias para as quais não existem limites governamentais correspondentes; análise de impacto sobre a saúde e segurança das novas plantas propostas, incluindo a exposição esperada à substâncias tóxicas; análise de impacto ambiental das novas plantas propostas; saúde na empresa, critérios ambientais e de segurança para decidir se os novos pesticidas devem ser comercializados ou não e diretrizes para implementar as políticas da empresa quanto à saúde, segurança e meio ambiente. Os grandes grupos ambientalistas e sindicatos defendem a política de acesso público e a divulgação das informações sobre as substâncias tóxicas liberadas para o ambiente de trabalho e para o meio ambiente, como os itens acima referidos. As “recomendações de uso” do produto apresentam outros desafios éticos às multinacionais. Esta expressão refere-se à responsabilidade do fornecedor quanto à prevenção de danos causados pelos produtos comercializados durante o ciclo de vida de uso do produto e de sua eliminação. CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 58 A MIGRAÇÃO DE RISCOS INDUSTRIAIS Inclui a responsabilidade de garantir que a companhia que compra o produto químico do fornecedor não fará uso perigoso do mesmo. Pelo menos uma firma americana, a Dow Chemical, há muito manifesta a política de se recusar a vender produtos químicos aos clientes que não obedecem às determinações. Em 1992, as companhias membros da Chemical Manufacturers Association21 nos EUA adotaram um código que determina a suspensão das vendas aos clientes que não corrijam as práticas incorretas referentes ao uso dos produtos químicos que elas comercializam. O papel ativo das empresas relativamente aos clientes quanto às recomendações de uso dos produtos químicos seria um avanço positivo na saúde pública se comparado com a relação tradicional entre fornecedores e compradores na maior parte do mundo. Porém os detalhes de implementação deste papel são decisivos para assegurar que o uso incorreto dos produtos químicos seja passível de identificação e correção. Numa reunião com executivos da DuPont em 1991, os representantes do Greenpeace foram informados de que a empresa enviava pessoal de confiança com o objetivo de visitar plantas em todo o mundo para identificar os riscos que precisariam ser corrigidos. Mas ficou provado que estes supostos supervisores eram os representantes de vendas da empresa. É claro que o pessoal de vendas não possui o treinamento nem os estímulos para avaliar criticamente a higiene industrial e as medidas de controle de poluição para seus clientes. O executivo que transmitia as informações parecia não ter consciência de que um representante de vendas poderia tornar-se vice-presidente da empresa antes que cada uma das pessoas que usassem os produtos vendidos por ele contraísse câncer ocupacional. Este fato ilustra a diferença entre simplesmente proclamar uma política de empresa e comprometer-se a levá-la a cabo adequadamente. A DuPont superou mais de uma década de resistência da comunidade até começar a construir a planta de nylon-6/6 no estado indiano de Goa. Na minuta dos termos da participação da DuPont, os advogados da companhia tiveram o cuidado de incluir cláusulas que isentassem esta empresa de qualquer responsabilidade em caso de acidente. O acordo de indenização também tentou arrumar uma adjudicação de responsabilidade por arbitragem no Reino Unido, evitando, dessa forma, o julgamento sob as leis americanas ou indianas. Em janeiro de 1995, os ambientalistas, fazendeiros locais e moradores das aldeias entraram em conflito com as forças de segurança e uma pessoa foi morta. O ministro indiano de meio ambiente solicitou à Thapar DuPont que interrompesse a construção até que estudos complementares do impacto ambiental da planta fossem realizados. 21 N.T. - Associação de Produtores de Produtos Químicos. CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 BARRY I. CASTLEMAN 59 São muitos os exemplos da necessidade de divulgação das recomendações de uso correto do produto por parte dos fabricantes de pesticidas. São causas freqüentes de morte e de doenças a colocação de pesticidas nas embalagens plásticas usadas para alimentos e o uso de tambores de pesticida para armazenar água potável. O uso e armazenagem de pesticidas e de seus recipientes pelos pequenos fazendeiros refletem uma falta de treinamento geral que os fabricantes poderiam fornecer. No caso de pesticidas altamente tóxicos, a recomendação de uso significaria retirar o produto do mercado nos países onde o clima é demasiado quente para o uso de vestimentas adequadas de segurança. A Rhône-Poulenc começou a produzir alguns pesticidas em forma de gel, embalados em pequenos sacos de polivinila solúveis em água. Estes sacos fechados podem ser imersos nos tanques de mistura usados pelos fazendeiros, evitando a exposição direta do trabalhador e os problemas de descarte do recipiente. Resta ver quão rapidamente este método será adaptado aos mercados fora da América do Norte pela Rhône-Poulence e outras, incluindo a Hoechst. No Valley Costanza na República Dominicana, o desfolhamento causado por uso excessivo de pesticidas fez com que o local fosse chamado Vale da Morte. Quando a área atraiu a atenção dos meios de comunicação em 1991, a Ciba-Geigy introduziu um programa para ensinar aos pequenos fazendeiros noções de agronomia, controle integrado de pragas e segurança. Reconheceu-se que o uso de pesticidas no vale tinha que ser reduzido. A reação da comunidade aos esforços da Ciba para “demonstrar os benefícios econômicos e sociais de um mercado sustentável” foi relatada na imprensa para servir de estímulo. A Ciba opera programas semelhantes para os pequenos fazendeiros na Colômbia, Filipinas, Indonésia, Paquistão, Mali, Moçambique e Nigéria. A Pesticide Action Network22 é cética quanto às versões da empresa de “controle integrado de pragas” que enfatiza a “melhor mistura” de pesticidas ao invés de treinar as pessoas nas técnicas em que o uso de pesticidas é visto como último recurso. O abuso e uso incorreto de pesticidas deve estar realmente muito difundido, pois seus fabricantes prevêem agora, publicamente, uma redução continuada na quantidade de pesticidas usada mundialmente. Assim sendo, é ingenuidade destes continuarem adotando uma atitude dissimulada quanto aos abusos da comercialização do produto, culpando os comerciantes locais e afirmando “Só estamos aceitando encomendas”. No campo das indenizações tal aspecto é tão ridículo quanto a defesa de Eichmann contra a pena de morte. Um aspecto importante quanto ao uso do produto é o grau de edu22 N.T. - Rede de Ação de Pesticida. CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 60 A MIGRAÇÃO DE RISCOS INDUSTRIAIS cação ambiental dos trabalhadores e do público usuário mediante rótulos, brochuras e programas de treinamento de clientes. Em relação a certos produtos perigosos e containers nos quais estes são vendidos, as recomendações de uso do produto visam recuperar os materiais que os clientes tendem a usar de forma inadequada ou descartar como resíduos perigosos. Nas cortes americanas, são estimuladas as recomendações de uso do produto devido ao mecanismo de atribuição de responsabilidade por danos causados por produtos perigosos e poluição. Os indivíduos prejudicados pelos produtos cujos riscos não foram expressos nos avisos dos fabricantes receberam indenização por perda econômica, dor e sofrimento, e em alguns casos pelas lesões incapacitantes. Os fabricantes retiraram do mercado americano alguns produtos que podem causar anormalidades reprodutivas no experimento com animais, ao invés de arriscar milhões de dólares em processos judiciais movidos pelos filhos dos trabalhadores com defeitos de nascença devido ao manuseio de agentes perigosos pelos pais. Algumas vezes tais agentes continuam a ser comercializados pelas mesmas companhias em outros países, onde não existe responsabilidade legal pelo produto. A responsabilidade e os regulamentos impuseram a obrigação aos fabricantes de alguns países de desenvolver processos e produtos menos tóxicos. Porém, na falta de consciência pública, responsabilidade e regulamentos, é possível que tecnologias superadas e mais perigosas continuem sendo economicamente competitivas, podendo até existir um “mercado” para a tecnologia mais velha a ser explorado em muitos países. Assim, apesar dos avanços das multinacionais visando ao desenvolvimento de “tecnologias limpas”, não há motivos para se esperar que estas melhorias venham a ser rapidamente levadas para a África, Ásia, América Latina e Europa Central e Leste da Europa. É bem possível que algumas das indústrias construídas recentemente nessas regiões façam uso de equipamentos usados e importados. Este fato impõe um desafio ético às multinacionais proprietárias do equipamento que está sendo substituído na Europa e na América do Norte. Nos últimos anos deram-se vários avanços que, sem dúvida, contribuem para a proteção da saúde pública e do meio ambiente nos lugares onde são empregados. Dentre os exemplos estão incluídos: a substituição de éter glicólico, solventes clorados e solventes de clorofluorocarbono como agentes de limpeza em processamento microeletrônico; a substituição de solventes orgânicos por solventes hidrofílicos em adesivos e seladores; a redução de solventes orgânicos e voláteis em muitas tintas, favorecendo o uso de tintas solúveis em água, a tecnologia de pintura com spray usando o dióxido de carbono e revestimentos em pó; a substituição de cádmio e chumbo nos pigmentos; a eliminação da poluição do ar por óxiCADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 BARRY I. CASTLEMAN 61 do nitroso na produção de ácido adípico (usado na fabricação de nylon, poliester e poliuretano); a substituição de acrilamida e N-metilacrilamida nos componentes de resinas; a substituição de alvejante à base de cloro na fabricação de papel; a conversão de fosgênio, arsina e outros gases tóxicos em intermediários menos tóxicos que podem ser manuseados em processos industriais, evitando-se assim a necessidade de armazenar e transportar grandes quantidades de gases comprimidos altamente tóxicos; a substituição de processo de fosgênio para produzir policarbonatos pelo processo com dimetilcarbonato; a síntese de isocianatos alifáticos a partir de aminas e dióxido de carbono ao invés de processo que usa fosgênio; a substituição de ácido fluorídrico por ácido sulfúrico ou, melhor ainda, por catalisadores sólidos nas unidades de alquilação de gasolina na refinaria de petróleo; o uso de zeolitos como catalisadores na produção de cumeno, substituindo ácido fosfórico ou catalisadores de cloreto de alumínio, eliminando-se os problemas de emissão de resíduos ácidos e o manuseio de materiais corrosivos. Os químicos dedicados à pesquisa industrial, cujo objetivo tradicional é a maximização do rendimento do produto, com pouca preocupação quanto à toxicidade dos produtos e subprodutos, agora discutem o desenvolvimento de tecnologias menos tóxicas em simpósios sobre os “químicos verdes” ou “ecologia industrial”23 . Grandes companhias de produtos químicos têm a responsabilidade de promover essas mudanças independentemente de onde realizam seus negócios e não apenas nos países onde as mudanças são impostas pela atribuição de responsabilidades e regulamentos. A promoção mundial de tecnologias menos tóxicas pode ser desempenhada pelas multinacionais individualmente ou em grupos. A cooperativa industrial para proteção da camada de ozônio é um veículo usado pelas grandes empresas para promover a tecnologia ambientalmente superior. Por meio desta organização, com apoio adicional do Banco Mundial, a IBM vem tentando ajudar as companhias na Ásia e na América Latina a mudarem e adotarem a limpeza e secagem das placas de circuitos e componentes de segurança com compostos solúveis em água. GOVERNO A expansão industrial está presente em muitos países e os governos, ao considerarem os novos projetos industriais, têm a oportunidade e a responsabilidade de avaliar riscos de segurança e saúde da tecnologia impor- 23 Illman DL., Environmentally benign chemistry aims for processes that don’t pollute. Chem & Eng News, Sept 5, 1994; pp 22-7. CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 62 A MIGRAÇÃO DE RISCOS INDUSTRIAIS tada. O país anfitrião deve procurar garantir que as novas operações atingirão padrões elevados de desempenho. O candidato ao projeto deve se comprometer a alcançar níveis específicos de emissão de poluentes que não serão excedidos durante as operações da planta e a observar os limites de exposição do trabalhador às substâncias tóxicas. O candidato deve estar disposto a pagar ao governo para obter o equipamento de monitoramento necessário para garantir que estes limites sejam observados na prática e permitir acesso imediato aos fiscais do governo a qualquer momento. Deve-se concentrar a atenção especialmente em conseguir que os candidatos descrevam sua experiência anterior com a tecnologia em questão e seus riscos. O governo anfitrião tem inteira razão e todo o direito a conhecer os níveis de riscos no ambiente de trabalho e os níveis de poluição presentes nas fábricas semelhantes operadas pelos candidatos ao projeto. Ao mesmo tempo, é importante tomar conhecimento das leis, regulamentos e padrões de proteção à saúde pública que são cumpridos pelos candidatos em instalações semelhantes noutros países. O processo de seleção do país anfitrião deve incluir a avaliação crítica do ponto de vista das reais necessidades de tais projetos. Em caso de resposta afirmativa, a análise de acompanhamento deve tentar garantir que a tecnologia foi projetada para obter processos com o mínimo de riscos e produtos que atendam às exigências. Este procedimento obedece às políticas das principais multinacionais. O cumprimento de obrigações éticas pelos governos e pelas empresas são a melhor garantia para que os avanços tecnológicos na área de saúde pública sejam transmitidos rapidamente para todo o mundo. Os principais projetos dos países em desenvolvimento normalmente incluem a participação de multinacionais como investidores estrangeiros. As diretrizes listadas no apêndice foram publicadas pelo Greenpeace e pela Third World Network (Malásia)24 , detalhando as informações que os governos têm o direito de solicitar dos investidores estrangeiros25 . Quando as informações sobre a tecnologia e seus riscos não forem fornecidas pelos possíveis investidores estrangeiros, os governos podem e devem adotar medidas para obter estas informações de modo independente. Os riscos industriais não são as únicas razões que devem despertar o interesse dos países nas revisões dos impactos ambientais e os projetos industriais não são as únicas formas de se fazer esta investigação. A importação e o uso difundido de tecnologia não-eficaz para a produção de refrigeradores, motores elétricos e iluminação causou problemas sérios. Em 24 25 N.T. - Rede do Terceiro Mundo. Guidelines for environmental review of industrial projects evaluated by developing countries. In: Bruno K (ed). Screening Foreign Investiments. Penang, Malaysia: Third World Network, 1994, pp 63-6. CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 BARRY I. CASTLEMAN 63 muitos países, a geração de energia elétrica mal dava para acompanhar a demanda, mesmo quando a eficiência energética era um critério de avaliação da nova tecnologia e de projeto de prédios comerciais. A falta de eficiência energética é um dos principais entraves ao desenvolvimento, incluindo o custo de construção, a capacidade excessiva de operação, a poluição e a falta de incentivos à expansão causados por abastecimentos de energia não-confiáveis e interrupções. A eficiência energética e o maior uso de recursos renováveis poderiam liberar grandes recursos para atender às necessidades básicas, ao invés da construção e operação de centrais elétricas desnecessárias. Os países industrializados têm a responsabilidade de impedir que as multinacionais exportem os riscos conhecidos e as tecnologias superadas para os países mais pobres, por intermédio de informações, regulamentos e processos de indenização. Indenização é uma área ignorada pela indústria de produtos químicos em seu programa de “atuação responsável”, e muitos países em desenvolvimento não possuem a infra-estrutura judicial ou a intrepidez de mover processos legais por perdas e danos contra empresas globais. A lei americana Comprehensive Environmental Response, Compensation, and Liability Act inclui a proposição adequada para que os partidos nos outros países processem as companhias americanas por terem criado locais de lixos tóxicos, embora o registro desses dados não tenha sido comprovado. Foram movidas poucas ações judiciais contra os fabricantes e empresas agrícolas pelas vítimas de produtos químicos tóxicos nos países em desenvolvimento. A Dow e a Shell foram processadas por aproximadamente 800 trabalhadores nas plantações de banana da Costa Rica na Corte do Texas, resultando no pagamento de uma indenização de 20 milhões de dólares em 1992. Em muitos países da América Central os trabalhadores ficaram estéreis pelo manuseio de nematócido dibromocloropropano (DBCP), mesmo após o uso do DBCP ter sido restrito e proibido em 1979, mas ainda assim exportado pelos Estados Unidos. Em 1994, uma ação coletiva foi movida no Texas contra a Dow, Shell, Standard Fruit e Chiquita Brands, constando como autores da ação 16.000 trabalhadores rurais em 12 países. Os governos podem também ser apoiados pelas leis de órgãos internacionais, especialmente quando se trata de tecnologia emergente. Os países em desenvolvimento que não possuem regulamentos de biossegurança temem ser usados como solo de teste pelas multinacionais para organismos vivos, modificados. Junto com alguns países nórdicos, os países em desenvolvimento exigiram em unanimidade o estabelecimento de requerimentos internacionais e legais no encontro da Convenção de Biodiversidade de 1994 em Nairobi. As multinacionais estão sendo pressionadas a adoCADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 64 A MIGRAÇÃO DE RISCOS INDUSTRIAIS tarem as mesmas restrições na biotecnologia de teste de campo que enfrentariam no país de origem dos organismos vivos em modificação. ORGANIZAÇÕES DE TRABALHADORES Os sindicatos dos trabalhadores das indústrias químicas em muitos países se preocupam com os padrões duplos das companhias mais importantes. Os esforços dos sindicatos internacionais tiveram maior impacto depois do desastre de Bhopal. Tanto nos países industrializados quanto nos países em desenvolvimento, os trabalhadores reconhecem que possuem um interesse comum na prevenção do uso dos países pobres como “zonas-francas” para poluição, riscos no ambiente de trabalho e tecnologias desacreditadas. Os sindicatos mantêm contato constante em todo o mundo informando sobre os riscos industriais e relatos das empresas. Na Alemanha, onde o sindicato dos trabalhadores da indústria química tenta evitar criticar a indústria, apareceram grupos de empregados rebeldes em algumas empresas. O grupo de empregados da Bayer em Wuppertal, que, normalmente, faz circular um boletim criticando a companhia por padrões duplos internacionais, desenvolveu ligações com outros trabalhadores da Bayer e sindicatos em outros países, incluindo o Brasil. Os grupos de trabalhadores dentro da grande companhia alemã têm, neste caso, a curiosa oportunidade de funcionarem como “consciências” para seus empregadores e de executarem medidas para aumentar os padrões de desempenho das empresas em todo o mundo. CONCLUSÃO As multinacionais exercem um papel importantíssimo na determinação da tecnologia a ser transferida para os países na Ásia, África, América Latina, Europa Central e Leste da Europa. As grandes companhias têm a obrigação ética e moral de implementar imediatamente políticas globais para eliminar os duplos padrões no tocante à saúde pública e ao meio ambiente. As vidas das gerações futuras e presentes serão afetadas de forma decisiva à medida que tecnologias limpas, apropriadas e com menos riscos, sejam transferidas para todo o mundo. Os governos têm o dever ético de fazer a triagem crítica e independente dos projetos industriais e comerciais. A melhor forma de exercer este papel é através da avaliação das tecnologias e das empresas em questão. A credibilidade e eficácia do processo de seleção dependerá muito da abertura pública do processo e da participação do público no mesmo. CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 BARRY I. CASTLEMAN 65 Apêndice Informações dos investidores estrangeiros para a revisão ambiental A. O investidor estrangeiro deve fornecer a Análise de Impacto Ambiental do projeto proposto, incluindo: 1. Lista de matérias-primas, intermediários, produtos e resíduos (com diagrama de fluxo); 2. Lista dos padrões de saúde ocupacional e de segurança assim como dos padrões ambientais (liberação de efluentes, taxas de emissão atmosférica para todos os poluentes do ar, descrição detalhada e taxa de geração de resíduos sólidos ou de outros resíduos a serem descartados na terra ou por incineração); 3. Plano de controle de saúde ocupacional e de riscos de segurança durante a operação da planta, armazenagem e transporte de matérias-primas potencialmente perigosas, produtos e resíduos; 4. Cópia das diretrizes da empresa dos investidores estrangeiros que estão conduzindo as análises do impacto sobre a saúde ocupacional e segurança de todos os projetos novos; 5. Folha de dados de segurança do fabricante de todas as substâncias em questão. B. O investidor estrangeiro fornecerá as informações completas quanto às localizações, idades e desempenho das plantas já existentes e das plantas que foram fechadas durante os últimos 5 anos, de posse total ou parcial do investidor estrangeiro, nas quais processos e produtos semelhantes são utilizados, incluindo: 1. Lista de todos os padrões aplicáveis de saúde ocupacional, ambientais e de segurança, incluindo os requisitos legais (padrões, leis, regulamentos) e os padrões e práticas voluntárias da empresa para o controle de riscos ocupacionais e ambientais de todos os tipos; 2. Descrição de todos os casos de invalidez permanente e/ou total mantidas ou supostamente mantidas pelos trabalhadores, incluindo as reivindicações de indenização ; 3. Explicação de todas as multas, penalidades, citação judicial, acordos regulamentares e reivindicações de danos civis incluindo assuntos de saúde ocupacional e ambiental e assuntos de segurança, como também riscos ou lesões atribuídos à comercialização e transporte dos produtos das referidas empresas; 4. Descrição da percentagem de participação do investidor estrangeiro e do envolvimento tecnológico em cada local de planta, e informações semelhantes sobre a posição societária do sócio e provedores da CADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 66 A MIGRAÇÃO DE RISCOS INDUSTRIAIS tecnologia; 5. Nomes e endereços das autoridades governamentais que controlam e supervisionam a saúde ambiental e ocupacional e a segurança de cada localização da planta. 6. Explicação dos casos em que o impacto ambiental da planta está sujeito a controvérsias dentro da comunidade local ou com as autoridades regulamentares, incluindo a descrição das práticas criticadas e como a crítica foi solucionada em cada caso; 7. Cópias, com o resumo, de todas as auditorias ambientais, de saúde ocupacional e de segurança da empresa, incluindo as referidas auditorias e relatórios dos consultores: 8. Cópias dos relatórios de segurança, relatórios de avaliação de riscos e relatórios de análise de riscos realizados com a mesma tecnologia pelo investidor estrangeiro e seus consultores. 9. Cópias dos formulários de liberação de substâncias tóxicas que foram submetidos aos órgãos governamentais (por exemplo, a agência americana de proteção ambiental ou agências semelhantes em outros países), nos últimos 5 anos, para todas as localizações da planta; 10. Quaisquer informações consideradas relevantes pelo investidor estrangeiro. Acordos sobre o plano de ação C. O investidor estrangeiro submeterá uma declaração da política da empresa sobre o desempenho relacionado com a saúde, segurança e o meio ambiente das operações mundiais. Esta deve incluir a política da empresa sobre leis, regulamentos, padrões e diretrizes e as práticas de novos projetos industriais e instalações de produção. O investidor estrangeiro explicará a implementação de sua política global descrevendo a equipe responsável pelo desempenho dessa política, sua autoridade e responsabilidades, e sua posição na estrutura do investidor estrangeiro e na estrutura da empresa. As referidas descrições incluirão o nome, endereço e número de telefone dos gerentes seniors da empresa encarregados dessa função de equipe. O investidor estrangeiro afirmará se segue os mesmos padrões de proteção ambiental e para o trabalhador em todos os projetos em todo o mundo - em caso contrário, explicará o motivo. D. O investidor estrangeiro concorda em proporcionar ao país em desenvolvimento o acesso imediato às instalações industriais propostas durante sua operação para realizar inspeções e durante o monitoramento da exposição dos trabalhadores aos riscos, e acesso às amostras de liberações poluentes. E. O investidor estrangeiro concorda em fornecer ao país em desenvolvimento equipamentos para analisar a exposição no ambiente de trabalho e a geração de poluentes, incluindo mas sem se limitar a todo o projeto proposto. O investidor estrangeiro concorda que o projeto proposto arcará com os custos governamentais do país relacionados com o moniCADERNO CRH, Salvador, n.24/25, p.41-67, jan./dez. 1996 BARRY I. CASTLEMAN 67 toramento médico e com a exposição durante a vida útil deste projeto. F. O investidor estrangeiro concorda que o projeto proposto indenizará totalmente qualquer pessoa cuja saúde, capacidade auditiva ou propriedade seja danificada, em conseqüência de riscos ocupacionais do projeto e de impacto ambiental, conforme determinado pelo governo do país em desenvolvimento. G. O investidor estrangeiro observará as salvaguardas de comercialização obedecendo às mesmas restrições impostas por outros países, garantindo que os trabalhadores e membros da comunidade não sejam prejudicados pelo uso de seus produtos. H. Se o investidor estrangeiro tornar-se consciente do risco substancial de lesão à saúde ou ao meio ambiente em conseqüência de uma substância que fabrica ou comercializa num país em desenvolvimento, um risco que não é conhecido e que pode ser revelado a qualquer hora, o investidor concorda em notificar imediatamente a agência de proteção ambiental e o governo do país em desenvolvimento da existência do referido risco. (Semelhante às exigências sob seção 8 c da Lei de Controle de Segurança Tóxicas dos Estados Unidos da América). Tradução* : Maria Lavínia Sobreira de Magalhães** REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CASTLEMAN B.I, ZIEM G.E 1994 American Conference of Governmental Industrial Hygienists: low threshold of credibility. Am J Ind Med, 26, p.133-43. 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