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100 Anos da Literatura de Sodoma

2023, Via Atlântica

100 ANOS DA LITERATURA DE SODOMA 100 YEARS OF LITERATURE OF SODOM Degeneração e decadência eram conceitos comuns que designavam a condição da civilização ocidental nos fins do século XIX e nos primeiros anos do século XX. Oriundas de um discurso sanitarista, sua contrapartida, a regeneração e a ascensão, eram entendidas não só como urgências históricas, mas também assuntos de saúde pública. Quando em Portugal deu-se a proclamação da República (1910), o discurso sanitarista estava presente desde, pelo menos, meados do século anterior, quando os intelectuais da Geração de 1870 debateram intensamente a necessidade da regeneração nacional – a literatura de Eça de Queirós, bem como o Naturalismo, é pródiga de exemplos que dão contas das enfermidades nacionais e da urgência de seu tratamento e profilaxia. Dessa forma, e lembrando que o século XIX celebrou a comunhão entre saúde física e moralidade, as sexualidades desviantes, Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 4-12, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.209625 4 deixando de ser pecado, passaram a assunto clínico, sanitário e, também, criminal. A poética e a reflexão acerca da homossexualidade e do homoerotismo em Portugal remete-nos a momentos dramáticos da História que antecederam e, de certa forma, anteciparam os anos sombrios da Ditadura Militar e do Estado Novo (1926-1974). De certa maneira, essa antecipação nos leva a constatar que o conservadorismo, no âmbito da sexualidade e das relações interpessoais, não apenas encobre as ações mais violentas da vigilância e do poder do Estado, atendendo a olhares desatentos e muitas vezes ingênuos, mas também abre caminho para as atitudes mais vis de efetivo extermínio de parcelas populacionais em nome de uma profilaxia e regeneração que se pretende urgente. A reação portuguesa à chamada “Literatura de Sodoma” foi movida, basicamente, por inspiração nacionalista e religiosa (não se pode esquecer a comoção popular portuguesa, gerada em 1917 pelo milagre de Fátima, e pelo claro sentimento de reconstrução que tomava Portugal desde a ditadura sidonista, 19171918). O ambiente estava favorável às manifestações dessa ordem, de forma que não se pode deixar de lado a rede de relações discursivas que eram tecidas pela e na Literatura e que se atava com fortes nós à História portuguesa. A polêmica intitulada “Literatura de Sodoma” iniciou-se com a crítica de Fernando Pessoa às Canções Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 4-12, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.209625 5 de António Botto, publicada na Revista Contemporânea, em 1922. As reflexões de Pessoa sobre a obra de Botto desencadearam uma série de protestos contra o conteúdo e contra quem viesse em defesa dos autores1. O principal detrator de Pessoa, Álvaro Maia, publicou, em novembro de 1922, três meses após Pessoa, na mesma revista, o ensaio intitulado “Literatura de Sodoma”, com ataques e condenação ao amor homo/ lesbo, difamando Botto, Pessoa e qualquer texto com conteúdo que, hoje, poderia ser considerado queer. Raul Leal adentra essa querela com a publicação, incialmente, no jornal O Dia, a 16 de novembro de 1922, do artigo intitulado “António Botto e o sentido íntimo do ritmo”. Leal refere que acabou de ler a segunda edição de Canções, muito aumentada, que saíra pela editora Olisipo, de Fernando Pessoa, provocando admiráveis impressões sobre o ritmo e a musicalidade dos versos, admitindo que qualquer que fossem as críticas contra o poeta, devido às suas “tendências éticas”, dever-se-ia observar o grande artista que era Botto, independentemente da moralidade ou imoralidade de sua obra, que não acrescentariam juízo de valor à obra Canções. Contudo, é o opúsculo com data de 1 Há uma série de artigos, opúsculos e textos diversos que envolvem nessa polêmica. Os textos dessa polêmica foram recolhidos por Zetho Cunha Gonçalves (2014) num trabalho intitulado Notícias do maior escândalo erótico-social do século XX em Portugal. Todas as referências dos jornais sobre as polêmicas estão contidas nesta obra citada. A extensa recolha de Gonçalves foi precedida pela edição de Sodoma divinizada, de Raul Leal, com a organização, introdução e cronologia de Anibal Fernandes, publicada em 1989. Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 4-12, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.209625 6 15 de fevereiro de 19232 que gerou reações não apenas contra a obra de Botto, mas contra as próprias reflexões de Leal, a Sodoma divinizada, que veio a lume com a intenção de defender a obra de António Botto e de expressar a sua própria opinião sobre as relações homossexuais, a partir de uma concepção mística. Em 22 de fevereiro de 1923, o antigo diretor da Federação Acadêmica de Lisboa e aluno do 4º ano de Matemática da Escola Politécnica, Pedro Theotonio Pereira, concedeu uma entrevista a M. R. L. no jornal A época sobre livros e publicações pornográficas e revelou que dia 19 de fevereiro os estudantes das Escolas Superiores de Lisboa resolveram formar uma liga de ação direta com o objetivo de exercer “funções preventivas e, ao mesmo tempo, repressivas” (GONÇALVES, 2014, p. 108), numa espécie de “higiene moral e social”, com o intuito de combater “meninos desavergonhados” que frequentem clubes e bailes duvidosos, de senhores que possuem “maneiras femininas”, afirmando que os estudantes tomaram para si a responsabilidade de “queimar a ferro e brasa” o que ele chamava de “cancros moribundos”, numa associação direta da homossexualidade a doenças degenerativas. E sem ter citado nomes, afirmou que a função dessa liga de estudantes era: “fiscalizar as livrarias e 2 Segundo José Barreto (2012, p. 242) “No espólio de Fernando Pessoa existe uma cópia de um documento de Raul Leal, datado de 15 de fevereiro de 1923, declarando a edição em 350 exemplares de ‘Sodoma Divinizada’ que ‘vai ser posta à venda ao preço de um escudo e cinquenta centavos cada exemplar’ (BNP/E3, 1153-25). O registo obrigatório da obra na Biblioteca Nacional foi feito a 17 de fevereiro (BNP/E3, 28A-26)”. Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 4-12, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.209625 7 meter também na ordem os artistas decadentes, os poetas de Sodoma, os editores, autores e vendedores de livros imorais” (GONÇALVES, 2014, p. 108), e alude o chefe do distrito e a polícia, que nenhum caso faziam sobre essa imoralidade que permeava a sociedade– o entrevistador diz que Theotonio lhe citou vários folhetos e publicações, mas por uma questão de “limpeza” não os citaria nos jornais. Certamente, na lista referida pelo estudante, estariam as publicações de Botto, que desde 1921 vinha incomodando os mais conservadores, os textos de Raul Leal e a obra de Judith Teixeira, Decadência, publicada dias antes. Anunciou, ainda, que o movimento foi recebido com entusiasmos e cerca de 300 adesões, após a publicação em jornais, e iria exercer uma rigorosa censura nos teatros e cinemas. Não por acaso, em 25 de fevereiro de 1923, outra nota foi publicada, desta vez no jornal A época, com o mesmo tom de censura dos então emergentes movimentos fascistas e anunciando a repressão que a Ditadura Militar, que se instalaria em 1926, iria exercer. Na forma de texto-manifesto, “Livros para o fogo” conclamava uma violenta perseguição a artistas, certamente escrito pela liga dos estudantes, afirmava que “ao fogão vão parar certas publicações” (GONÇALVES, 2014, p. 110), elogiadas em jornais, e que deveriam ser de domínio da polícia porque seriam produções de “manicómio com título pornográfico”, referindo Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 4-12, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.209625 8 que o fogo purificador iria alimentar esses livros que não se ousam referir os nomes. Devido a essa polêmica, as obras de António Botto, Raul Leal e Judith Teixeira ficaram conhecidas pelo epíteto de “Literatura de Sodoma”, e foram recolhidas, em 1923, pelo Governo Civil de Lisboa, passando a habitar um limbo crítico e uma quase total exclusão nas histórias literárias, aparentemente seguindo a trilha dos críticos conservadores, como Marcelo Caetano, que consideraram essas publicações “obscenas” ou “arte sem moral nenhuma” (GONÇALVES, 2014). O evento, enfim, encerra a livre circulação de livros em Portugal, na medida em que por sua causa foi instalada uma censura oficial que não era praticada desde os tempos da Revolução Constitucionalista de 1820. Este dossiê especial de Via Atlântica propôs, assim, a partir desse evento histórico, (re)pensar a sua abrangência nas Literaturas de Língua Portuguesa e suas reverberações no tempo e no espaço (transatlântico). Considerando que a polêmica foi recuperada incialmente por Aníbal Fernandes ao republicar, em 1989, a Sodoma divinizada, de Raul Leal, salta-nos à vista o lugar que a obra de Judith Teixeira passou a ocupar no correr de mais de três décadas. Mais do que uma autora e um episódio esquecidos, como consideramos anteriormente (LUGARINHO, 2003), a sua paulatina recuperação demonstra o próprio desenvolvimento da crítica, animada não apenas pelos estudos sobre mulheres, mas também pela teoria queer, Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 4-12, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.209625 9 já definitivamente incorporada à teoria e à crítica literária. Assim, o dossiê apresenta dez contribuições de pesquisadores e especialistas de origens variadas que se dispuseram a (re)pensar a Literatura de Sodoma. António Fernando Cascais, decano português dos estudos queer, apresentou-nos suas reflexões em torno de O meu manifesto a toda a gente, de António Botto, considerada peça menor na polémica da “Literatura de Sodoma. Anna Klobucka se dispôs a reexaminar a participação de Judith Teixeira na polêmica, Cláudia Pazos-Alonso dedicou-se à “Satânia”, também de Judith Teixeira, enquanto Chris Gerry apresentou reflexões sobre a tradução para a Língua Inglesa da mesma autora, e Telma Silva buscou as intercessões entre a autora de Decadência e a produção da brasileira Angélica Freitas. Eduardo da Cruz e Julie Oliveira da Silva dedicaram-se à obra de Eunice Caldas, poetisa brasileira, contemporânea de Judith Teixeira, cujas temáticas convergiam de maneira flagrante e que, talvez por isso, tenham sido relegadas ao esquecimento. Fabio Mario da Silva volta-se para o centro da polêmica ao analisar a própria Sodoma divinizada, de Raul Leal, em suas implicações com a obra de António Botto. Para apreciarmos as reverberações da Literatura de Sodoma, Letticia Batista Rodrigues Leite introduz-nos em Shimmy: a revista da vida moderna, publicada no Rio de Janeiro, entre 1925 e 1933, e suas referências a Safo e à Ilha de Lesbos; e Izabela Leal e Rodrigo Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 4-12, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.209625 10 Brito de Oliveira visitaram a obra poética do capixaba Waldo Mota, no ensejo de Sodoma; enquanto Rafaella Teotônio e João Pedro da Cunha de Almeida atentaram para a morte de Gisberta, evento de trágica memória, relido no romance do português Afonso Reis Cabral, Pão de Açúcar (2018). Por outro lado, Henrique Marques Samyn, ao ler uma cantiga medieval, atualizou-a à luz da teoria queer. Por fim, temos a resenha de Andreia Andrade, acerca de recente estudo sobre a obra de Judith Teixeira. A seção “Outros Textos” traz cinco artigos que se não dialogam com a proposta do dossiê, demonstram o vigor e a variedade da produção crítica em nossos tempos. Celdon Fritzen reflete sobre o ensino da Literatura Portuguesa na Educação Básica. Lucía González apresenta-nos suas reflexões acerca da Viagem a Buenos Aires, de João do Rio, enquanto Geraldo Augusto Fernandes analisa a pervivênvia da cantiga medieval nas criações dos poetas palacianos portugueses. Cintia Moraes e Wilberth Salgueiro analisam a crônica “A conversa”, de Luis Fernando Verissimo, e suas implicações na crítica literária; e, por fim, Karina Helena Ramos apresenta sua investigação em torno da serventia que as bananas tiveram aos projetos imperiais. Por fim, com muita tristeza, introduzimos a seção “In memoriam’, com uma contribuição enviada pelo professor José Nicolau Gregorin Filho, poucos dias Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 4-12, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.209625 11 antes de sua passagem. Uma pequena homenagem a tão grande colaborador e professor da USP. Acreditamos, com isso, estarmos celebrando não apenas a memória de mais um centenário, mas, sobretudo, a renovação da crítica literária e a urgente revisão de seus cânones. Fabio Mario Da Silva (UFRPE) Mário César Lugarinho (USP) Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 4-12, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.209625 12 REFERÊNCIAS ALONSO, Cláudia Pazos. Judith Teixeira: um caso modernista insólito. In: TEXEIRA, Judith. Poesia e prosa. Organização e estudos introdutórios de Cláudia Pazos Alonso e Fabio Mario da Silva. Lisboa: Dom Quixote, 2015. p. 21-38. BARRETO, José. Fernando Pessoa e Raul Leal contra a campanha moralizadora dos -estudantes em 1923. Pessoa Plural: A Journal of Fernando Pessoa Studies, Providence, n. 2, p. 240-270, 2012. Disponível em: https://digitalis-dsp.uc.pt/ bitstream/10316.2/27612/3/PP2_artigo8.pdf. Acesso em: 19 fev. 2023. GONÇALVES, Zetho Cunha (org.). Notícia do maior escândalo erótico-social do século XX em Portugal. Lisboa: Letra Livre, 2014. LEAL, Raul. Sodoma divinizada. Organização, introdução e cronologia de Aníbal Fernandes. Lisboa: Guimarães, 2010. LUGARINHO, Mário. “Literatura de Sodoma”: o cânone literário e a identidade homossexual. Gragoatá, Niterói, n. 14, p. 103-145, 2003. Disponível em: https://periodicos. uff.br/gragoata/article/view/33451/19438. Acesso em: 19 fev. 2023. Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 4-13, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.209625 13