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Grivas M. Kayange e as perspectivas da filosofia africana

2022

Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana entrevistas sobre filosofia africana 1 Marcos Carvalho Lopes Ada Agada (Nigéria), Adeshina Afolayan (Nigéria), Alena Rettová (República Tcheca), Albert Aoussine (Camarões), Antonio de Diego Gonzales (Espanha), Ayodeji Ogunnaike (Nigéria); Bayibayi Molongwa (Congo -); Bruce Janz (Canada); Delphine Abadie M. (Canadá); Fernando Potro Gutierrez (Argentina); Frederick Ochieng'-Odhiambo (Quênia), Godfrey Tangwa (Camarões), Grivas Muchineripi Kayange (Malaui); Herman Lodewyckx (Bélgica); Issiaka-P. Latoundji Lalèyê (Senegal); Jonathan Chimakonan (Nigéria); Kasereka Kavwahirehi (Congo); Leonhard Praeg (África do Sul); Louise Muller (Holanda); Mechthild Nagel (USA/German); Michael Onyebuchi Eze (Nigéria); MSC Okolo (Nigéria); Mofefi Kete Asante (EUA); Muyiwa Falaiye (Nigéria); Nathalie Ethoke (Camarões); Omatade Adgbibdin (Nigéria); Phambu Ngoma-Binda (República Democrática do Congo); Polikarp Ikuenobe (Nigéria); Romuald Bambara (Burkina Faso); Samuel Wolde-Yohannes (Etiopia); Sanya Osha (Nigéria); Seloua Luste Boulbina (França/Algéria); Tanella Boni (Costa do Marfin); Yusef Waghid (África do Sul). Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Marcos Carvalho Lopes (ed.) entrevistas sobre filosofia africana Marcos Carvalho Lopes Copyright © Marcos Carvalho Lopes Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos do autor. Marcos Carvalho Lopes Tcholonadur: entrevistas sobre filosofia africana. São Carlos: Pedro & João Editores, 2024. 431p. 16 x 23 cm. ISBN: 978-65-265-0825-1 [Impresso] 978-65-265-0826-8 [Digital] DOI: 10.51795/9786526508268 1. Tcholonadur. 2. Entrevistas. 3. Filosofia africana. I. Título. CDD – 100/370 Capa: Petricor Design Ficha Catalográfica: Hélio Márcio Pajeú – CRB - 8-8828 Preparação dos originais e revisão: Giovanna Pozzer Diagramação: Diany Akiko Lee Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito Conselho Científico da Pedro & João Editores: Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Hélio Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil); Ana Cláudia Bortolozzi (UNESP/Bauru/Brasil); Mariangela Lima de Almeida (UFES/Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco de Mello (UFF/Brasil); Camila Caracelli Scherma (UFFS/Brasil); Luís Fernando Soares Zuin (USP/Brasil). Pedro & João Editores www.pedroejoaoeditores.com.br 13568-878 – São Carlos – SP 2024 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Para meu filho Ulisses e para todas as pessoas que me ensinaram a seguir o rio e acreditar no mar Marcos Carvalho Lopes Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Prólogo Um provérbio kamita diz que não se deve nunca perturbar a atenção daquele que está engajado no seu trabalho, pois o Criador fala sempre através do trabalho bem feito. E de facto, que monumental, esta obra, bem pensada, bem projetada, diligentemente trabalhada, escrita e comunicada, que o Prof. Marcos Carvalho Lopes, após longos anos de tanto e paciente trabalho, audácia e abnegação, nos dá hoje como dom. Trata-se de uma obra sobre a figura, o papel e o objeto de estudo do Tcholonadur, ou melhor, o “Hemouou”, isto é, o “artesão” da “palavra criadora” (Médou Nétcher), e que para nós se revela fundamental num período particularmente difícil da história da nossa humanidade em geral e de modo particular do continente africano e latino-americano que estamos a viver, devido propriamente, em grande parte, a total “humilhação da palavra”(Ellul) em curso por toda a parte do planeta terra. Como Bissau-guineense só posso regozijar-me e expressar a minha imensa e reconhecida gratidão ao nosso autor, pela profunda releitura do carisma, da missão e do objeto de estudo do tcholonadur que ele nos oferece através desta sua extraordinária obra. O ser humano é antes de mais, recorda Amadou Hampaté Bâ, a sua palavra. Já na sua XXIV máxima sobre o “bom uso da palavra”, Ptahhotep advertia os tcholonaduris da sua época, dizendo entre outros, o seguinte: se és um homem excelente de que se confia, que está sentado no conselho do seu senhor, reúne todos os corações para “Saq-ib”, que significa a perfeição. Ou melhor, tcholonadur só é um artesão da perfeição quando é um sujeito confiante, seguro de si, capaz de criar harmonia na sede do Conselho do seu senhor onde está sentado e onde representa a “boca, o ouvido e os olhos do seu senhor” perante o povo, e por Marcos Carvalho Lopes isso mesmo ele/a está sempre atento/a à sua boca e sobretudo a sua língua, pois sabe muito bem, que o silêncio é muito mais útil do que o bati papo que às vezes está na origem da “filosofia do feitiço”; fala somente quando sabe que da sua palavra trará “Ouhá”, isto é, uma solução, para a sua comunidade vital; quando tem consciência que o peso da sua palavra, reside no fato de ser sempre uma palavra criadora, uma palavra-ação concreta; ou melhor quando é consciente que ele é depositário daquela palavra libertadora que faz derreter os corações endurecidos, capaz de desatar um nó social não biófilo e sobretudo de esclarecer um problema comunitário que aflige o coração e a mente das pessoas. É neste preciso sentido que tcholonadur deve ser sempre um/a excelente “hemouou”, artesão, isto é, aquele/a capaz de trabalhar a palavra como algo material, aquele/a que fala no Conselho enquanto boca, orelha e olhos do seu senhor perante o seu povo e tem perfeitamente consciência do significado autêntico, do valor, do peso da sua arte de usar da palavra; sabe que o falar é o mais difícil de qualquer outro trabalho ou missão que existe na face da terra. Enfim, tcholonadur é aquele/a que melhor personifica, interpreta, derrete, explica corretamente esta máxima ptahhotepiana da arte e do “bom uso da palavra”, pois ele/ela é o único/a a conferir autoridade à palavra criadora: quando ele/a aceita de assumir responsavelmente a sua missão de tcholonadur e a missão do seu objeto de estudo, ele/a é o/a único/a capaz de colocar a palavra no palito e orientar a humanidade para uma filosofia finalmente sem feitiço. Neste sentido, tcholonadur é, no seio da sua comunidade de vida, um ma/âkhr, que significa, um enviado, um mensageiro, um servidor, um anjo da guarda do “Médou Nétcher” no seio da sua comunidade de vida e por conseguinte o anjo da guarda, um/a servidor/a do Maat (verdade – equidade – justiça – equilíbrio), do Ubuntu(o nós estamos juntos como criaturas da mesma mãe terra) e do Bambarãm (o Pano materno: nós somos chamados a viver em fraternidade e sororidade) no seio da própria comunidade de vida e como humanidade em geral. De fato, na língua kamita, Maat significa também, conduzir, dirigir, guiar, orientar e/ou enviar, do Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana mesmo modo que Akhr significa um espírito divino, luminoso e/ou glorioso. Por conseguinte, podemos dizer que Tcholonadur nas sendas de Maa Akhr significa o Enviado do divino, o servidor do divino, o anjo da guarda da comunidade de vida. E este é de fato o verdadeiro significado do tcholonadur, da sua missão e do seu objeto de estudo que nos revela Marcos Carvalho Lopes nesta sua fantástica obra e de que tanto necessitávamos para ajudar a fazer face aos desafios dos novos ventos do panafricanismo do nosso século XXI, que nos são lançados a partir, novamente, da África ocidental de modo particular. E a este respeito, o autor nos deixa uma lição metodológica e em termos de conteúdo, bastante importante: o longo percurso por ele percorrido por quase todos os ângulos do continente africano para convidar os seus interlocutores a tomar parte do “Djemberem” dos tcholonaduris do nosso continente, sobre a possibilidade de uma “filosofia sem feitiço” para a África no mundo contemporâneo, independentemente das quadrantes linguísticas coloniais e regionais, é um exemplo para nos recordar que mesmo quando os rios nos impedem de os atravessar, eles nunca nos impedem de procurar contorná-los; também porque os percursos das estradas, dos rios não são nunca longínquos ou difíceis de atravessar, quando amamos de verdade, as pessoas que queremos ir visitar. No fundo, o tcholonadur Marcos Carvalho, sabia de ir encontrar gente e lugares que ele tanto ama, revelando, desta forma, um imenso amor aos nossos países e povos. Disso lhe somos eternamente gratos. Filomeno Lopes é nascido na Guiné-Bissau, jornalista da Rádio Vaticano e Doutor em Filosofia e Ciências de Comunicação Social. É autor de importantes obras sobre a Filosofia Africana como “Filosofia em volta do fogo” (2001), “Filosofia sem feitiço” (2004), “E Se a África desaparecesse do Mapa Mundo?, Uma reflexão filosófica” (2009), “Da mediocridade à excelência: reflexões filosóficas de um imigrante africano” (2015), “Filodramática: os Palop, entre a filosofia e a crise de consciência histórica” (2019) e “Non amo i razzisti dilettanti” (2020). Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana 10 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Prefácio Este livro é uma antologia, como sugere o subtítulo, de “entrevistas sobre a Filosofia Africana” sistemática contemporânea. Marcos Carvalho Lopes, um militante engajado da Filosofia Africana no Brasil, é o tcholonadur (o mensageiro) que, na sua tríplice função de entrevistador, tradutor e editor, transporta as mensagens dos entrevistados para os espaços “geoepistemológicos” de expressão portuguesa. Que mensagens o livro revela, para que finalidade o faz assim como que tipo de tcholonadur – embusteiro, intriguista ou fiel amante do seu povo, dos emissores e destinatários das mensagens – vislumbra são questões que apelam para um debate posterior. Os entrevistados são trinta e três profissionais de Filosofia Africana marcados pela diversidade de raça, língua, género, proveniência, faixa etária, experiência, local de trabalho e perspectivas filosóficas bem como pelo facto de não serem de expressão portuguesa. As questões colocadas aos entrevistados, cuja pertinência e urgência são relativas a contextos socio-históricos e a idiossincrasias subjectivas, são oito. Elas traduzem as inquietações e prioridades do editor e, quiçá, da filosofia afro-brasileira, e podem ser coligidas em três grupos relativamente distintos. No primeiro, estão as subjectivas e de mera curiosidade, sobre as experiências do primeiro contacto com a Filosofia Africana das pessoas entrevistadas, que filósofo/a seu conhecido é considerado mais importante e preferências relativamente aos filósofos africanos. No segundo grupo figuram questões mais temáticas da Filosofia Africana: actualidade ou não da questão da identidade e desenvolvimento desta área disciplinar, questões actuais, como sejam a abordagem da Filosofia Africana sobre as temáticas de género e identidade sexual e, mais concretamente, a relação do Marcos Carvalho Lopes feminismo e mulherismo com a Filosofia Africana. O derradeiro grupo, hipoteticamente o que justifica a elaboração deste livro, é mais voltado para a criação de uma agenda futura. Lida com a (im)possibilidade de unidade na Filosofia Africana tendo em conta o factor linguístico e o predomínio dos EUA e do Caribe versus a quase inexistência do Brasil e dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa no debate. O livro editado por Lopes é um contributo valioso para o estudo da Filosofia Africana por falantes da língua portuguesa. Primeiro, o editor conglutina tão diferentes e distantes filósofos no mesmo livro e em torno das mesmas questões. Isso alarga a lista de autores estudados na «lusofonia», enriquece o acervo bibliográfico e a compreensão das temáticas que são objecto da entrevista. Segundo, ele vale, mutantis mutandi, pelo recurso a um método caro às ciências sociais, à sagacidade filosófica de Henry Odera Oruka, à filodramática de Filomeno Lopes e à intersubjectivação de José Castiano, o da entrevista, combinado com uma breve revisão biobibliográfica de cada entrevistado. Este método rompe as fronteiras canónicas da Filosofia em geral e da Africana em particular, acolhendo novas linguagens e formas de fazer Filosofia. No caso deste livro, ele é combinado com o uso de endereço eletrónico. Em terceiro lugar e não menos importante, ele é apetecível pelas provocações temáticas feitas pelo tcholonadur e pelas ideias arroladas pelos entrevistados. Os temas sugeridos pelas questões do editor têm um sentido digno de realce. As questões da definição e do primeiro contacto com a Filosofia Africana remetem à autoconsciência do entrevistado sobre o seu ser filósofo e fazer filosófico, contra a ideia de uma filosofia espontânea ou sem filósofos; a questão de identidade e desenvolvimento da Filosofia Africana remete à tomada de consciência sobre a história recente da Filosofia Africana; a pergunta sobre as questões actuais da Filosofia Africana suscita o situar-se do filósofo no seu tempo, evitando anacronismos; a questão sobre o feminismo e o mulherismo apela para a sensibilidade a um dos problemas sociais actuais a que a Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Filosofia não se deve furtar de debater; as questões do filósofo africano mais importante e preferido apelam para a necessidade de respeito pelos companheiros de luta (predecessores e actuais); finalmente, a questão sobre as fronteiras linguísticas chama para a unidade das pessoas fazedoras da Filosofia, para o caminhar juntos. Estas questões suscitam e outras que se afiguram fundamentais: qual é o lugar do Brasil e da “lusofonia” na história da Filosofia Africana contemporânea e, acima de tudo, qual é o estatuto da Filosofia Africana nos curricula da educação formal secundária e superior e nas vidas dos nossos povos e Estados. É possível falar de uma educação e um viver afrocentrados? A profundidade de algumas das respostas às questões dadas não deixa nada a desejar relativamente a outras filosofias. São respostas sistematizadas, reflexivas e críticas. Algumas delas concorrem para a descolonização não apenas da Filosofia Africana, mas de toda a Filosofia bem assim das relações entre géneros, classes sociais, raças, culturas e civilizações. Outrossim, em cada grupo de questões são notórias a perspectiva filosófica de cada entrevistado e as divergências entre eles, o que desmitifica as acusações de unanimidade, dogmatismo e acriticidade na Filosofia Africana e reforça a sua filosoficidade. São exemplos loquazes as diferentes posições sobre a esgotabilidade ou não do debate em torno da identidade no desenvolvimento da Filosofia Africana e a relação, significado e lugar dos debates de género, entre feministas e mulheristas, na mesma filosofia. Não há dúvidas de que este livro vai impulsionar o estudo da Filosofia Africana nos estudantes e estudiosos dos países de expressão portuguesa, mesmo e mormente na mais vanguardista das escolas desses países, a moçambicana. Bem-haja ao editor! Severino Elias Ngoenha & Ergimino Pedro Mucale Maputo, Agosto de 2023. Marcos Carvalho Lopes Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Sumário Introdução 17 Ada Agada e a disposição para filosofar 31 Yusef Waghid e a filosofia africana da educação 39 Tanella Boni e as mulheres na filosofia africana 47 Sanya Osha e a recontextualização da filosofia africana 59 Mechthild Nagel e a Ética Ubuntu aplicada à Justiça Delphine 75 Abadie e a África como caminho de reconstrução da 83 filosofia Godfrey B. Tangwa, uma perspectiva africana da filosofia 93 Mofefi Kete Asante, uma obra na tradição de Maat 103 Adeshina Afolayan e a filosofia africana fora da caverna 111 Fernando Proto Gutierrez e o diálogo entre África e Abya 121 Yala Leonhard Praeg e a retrodicção da filosofia africana Omotade 129 Adegbindin e o Ifá como filosofia 141 Samuel Wolde-Yohannes e o debate sobre a filosofia etíope 159 Bayibayi Molongwa: nós da egiptologia e filosofia africana 163 Bruce Janz e o lugar da filosofia africana 173 Louise Müller e o jogo da filosofia africana 183 Albert Aoussine: a filosofia africana sem condescendência Muyiwa Falaiye: a filosofia africana como Grundnorm dos estudos africanos 195 203 Phambu Ngoma-Binda e a inflexão da filosofia africana 211 Polikarp A. Ikuenobe e a perspectiva comunal da filosofia 223 africana Antonio de Diego González e a filosofia africana não-eurófona 231 Marcos Carvalho Lopes Jonathan O Chimakonam e a filosofia africana como construção de sistemas 243 Nathalie Etoke, a filosofia e a melancolia africana 259 Herman Lodewyckx e a filosofia como hermenêutica da situação existencial africana 267 Issiaka-P. L. Lalèyê e a restituição da filosofia africana 277 Romuald Évariste Bambara e a filosofia africana como Utopia 289 MSC Okolo e a literatura como filosofia africana 311 Kasereka Kavwahirehi e a filosofia africana como descolonização do universal 319 Seloua Luste Boulbina: travessias transatlânticas? 331 Ayodeji Ogunnaike e a (im)pureza da filosofia africana 345 Frederick Ochieng'-Odhiambo: a sagacidade como caminho para a filosofia africana 355 Grivas M. Kayange e as perspectivas da filosofia africana 387 Alena Rettová e as filosofias africanas afrofônicas 393 Michael O. Ezé e a dádiva da humanidade que devemos uns aos outros 405 Sobre o autor 431 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Introdução Si cego falau no flertcha n utru, sibi i masa pedra (se um cego te convidar para uma batalha de pedras, saiba que ele tem mais pedras debaixo dos pés) A pandemia da covid-19 teve efeitos potencialmente disruptivos, impondo o isolamento social e a mudança de hábitos. Naquele momento, na posição de professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB), responsável pela disciplina de filosofia africana, desenvolvi duas iniciativas complementares para adensar o campo de debates no Brasil: (1) uma série de entrevistas, que denominei Djemberém (cabana de conversação em Guiné-Bissau, um espaço em que se exerce a palavra (palabre) em busca de construção de consenso que restaurem a harmonia da comunidade) no formato de podcast com pessoas que desenvolvem a filosofia africana em espaços da África lusófona1; e (2) e uma série de entrevistas com pessoas que desenvolvem a filosofia africana fora da lusofonia, chamada de Tcholonadur e que resultaram neste livro. Embora estes projetos não sejam resultados de iniciativas institucionais, é preciso reconhecer como o contexto da UNILAB foi importante para seu desenvolvimento. Trabalhando no Campus dos Malês, que fica em São Francisco do Conde, na Bahia, vivenciava O episódios com Severino Ngoenha (Moçambique), Filomeno Lopes (Guiné Bissau), José Paulino Castino (Moçambique), Luiz Kandjimbo (Angola), Ergimino Mucale (Moçambique), Arminda Filipa (Angola) e Jessemusse Cacinda (Moçambique) podem ser acessados aqui: https://filosofiapop.com.br/tag/ djemberem/ Indico também a série de entrevistas sobre a COVID-19 em África do podcast Vozes da UNILAB, com episódios com Severino Ngoenha, Filomeno Lopes, Elisio Macamo e Maria Paula Meneses: http://vozesdaunilab. unilab.edu.br/index.php/tag/covid-19/. 1 17 Marcos Carvalho Lopes uma encruzilhada de saberes: por um lado, o Recôncavo Baiano é uma região extremamente rica culturalmente (origem da capoeira, samba de roda, candomblé, maculelê etc.) e com uma base de matriz africana, com a população de maioria negra (sendo São Francisco do Conde, com 90% da população, a cidade mais negra do Brasil); por outro lado, os estudantes da África lusófona (Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde) vinham de lugares diferentes do continente, mas tendo em comum a língua e colonização portuguesa. O que esse encontro de culturas pode significar em termos de possibilidades epistemológicas e de potencialização de saberes é algo ainda a se desvendar. Mas, quando desafiado pelos estudantes a trabalhar filosofia africana, o que pediam era também que as questões e o horizonte cultural que vivenciavam no continente não fossem ignoradas em favor do que no Brasil se imaginava ser a África. Também, que as diferenças que fazem diferença pudessem ser consideradas, para um tipo de solidariedade mais efetiva possa se articular. Nessa introdução quero explicar a forma como essas entrevistas foram realizadas e algumas das dificuldades decorrentes da metodologia empregada; e, por fim, responder sobre o significado do termo Tcholonadur e como ele ilustra uma possibilidade de diálogo filosófico intercultural. Este livro reúne 34 entrevistas realizadas com pessoas que trabalham com a filosofia africana fora do contexto da lusofonia. Essas entrevistas foram realizadas por e-mail a partir de um questionário fechado com 8 perguntas, que pedem uma apresentação da abordagem e contexto em que cada qual desenvolve seu trabalho; descrição de quais problemas considera relevantes; como articula e se situa em relação a história recente da filosofia africana e seus debates; e, finalmente, como pensa a ausência de diálogo mais efetivo com o Brasil e o contexto da lusofonia africana. As perguntas foram as seguintes: - Como você define a filosofia africana? - Como entrou em contato com a filosofia africana? 18 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana - No início, a busca pela identidade era o mote para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está desatualizada? - Em sua perspectiva, que questões movem a filosofia africana hoje? - Como você vê as disputas sobre mulherismo e feminismo em relação à filosofia africana? Como a filosofia africana aborda as questões relacionadas às diferenças de gênero e identidade sexual? - Das/os filósofas/os africanas/os que você conheceu pessoalmente, qual é o mais importante em sua opinião? - Qual é a/o sua/seu filósofa/o africana/o favorita/o? - O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. Entretanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos EUA e do Caribe são geralmente ouvidas, mas não as do Brasil. Esse também é um problema comum em relação à África de língua portuguesa. Em termos práticos, as fronteiras linguísticas são divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma unidade que leve em conta esses espaços? Em setembro de 2020 comecei a buscar/selecionar contatos e a enviar e-mails pedindo entrevistas para pesquisadores que trabalham com filosofia africana em inglês, francês e espanhol. Em novembro de 2020 publiquei a primeira tradução deste projeto que seguiu por mais de um ano recebendo respostas, sendo a última tradução publicada na internet em Março de 2022.2 A entrevista com o filósofo nigeriano Michael Onyebuchi Eze é a única inédita e foi transcrita através de uma conversa realizada na forma de live mediada pelo professor Paulo Donizéti Siepierski. Busquei contactar autores da África anglófona e francófona, para romper as fronteiras de mútuo desconhecimento que geralmente existe entre essas tradições. Também procurei autores A entrevista com Sanya Osha incorporou algumas conversas que tivemos por email dando origem a seguinte publicação: LOPES, Marcos Carvalho; OSHA, Sanya. Aguda Blues, from Salvador de Bahia to the Gulf of Benin: Marcos Carvalho Lopes Interviews Sanya Osha. Journal of World Philosophies, v. 6, n. 1, p. 174–182-174–182, 2021. 2 19 Marcos Carvalho Lopes que trabalham com a filosofia africana em países da Europa, Estados Unidos e América Latina. Originalmente são 21 entrevistas em inglês, 10 em francês e 3 em espanhol. Apesar do esforço para entrevistar filósofas, o desequilíbrio de gênero do resultado não deixa de ser um problema: 8 entrevistadas, sendo 4 de nacionalidades africanas. Tendo em vista a impossibilidade de cobrir todos os contextos de debate, procurei abordar o espaço nigeriano de forma mais densa (com 10 entrevistas), escolha justificada pela quantidade relevante de autores e escolas filosóficas. A condição paradigmática da filosofia africana na Nigéria pode ser comprovada a partir do livro The Palgrave Handbook of African Philosophy (Springer, 2017), editado por Toyin Falola e Adeshina Afolayan, obra que foi uma das bases para coleta de contatos. Em ordem alfabética, as pessoas entrevistadas foram: Ada Agada (Nigéria); Adeshina Afolayan (Nigéria); Alena Rettová (República Tcheca); Albert Aoussine (Camarões); Antonio de Diego Gonzales (Espanha); Ayodeji Ogunnaike (Nigéria); Bayibayi Molongwa (Guiné Equatorial); Bruce Janz (Canadá); Delphine Abadie M. (Canadá); Fernando Potro Gutierrez (Argentina); Frederick Ochieng'-Odhiambo (Quênia); Godfrey Tangwa (Camarões); Grivas Muchineripi Kayange (Malaui); Herman Lodewyckx (Bélgica); Issiaka-P. Latoundji Lalèyê (Senegal); Jonathan Chimakonan (Nigéria); Kasereka Kavwahirehi (República Democrática do Congo); Leonhard Praeg (África do Sul); Louise Muller (Holanda); Mechthild Nagel (EUA/Alemanha); Michael Onyebuchi Eze (Nigéria) 20 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana MSC Okolo (Nigéria); Mofefi Kete Asante (EUA); Muyiwa Falaiye (Nigéria); Nathalie Ethoke (Camarões); Omatade Adgbibdin (Nigéria); Phambu Ngoma-Binda (República Democrática do Congo); Polikarp Ikuenobe (Nigéria); Romuald Bambara (Burkina Faso); Samuel Wolde-Yohannes (Etiópia); Sanya Osha (Nigéria); Seloua Luste Boulbina (França/Argélia); Tanella Boni (Costa do Marfim); Yusef Waghid (África do Sul) O método e a forma de abordagem deste trabalho geraram alguns problemas: (1) as questões fechadas acabaram limitando as possibilidades de conversação, já que muitos autores não trabalham com "filosofia", mas com uma perspectiva mais ampla de pensamento africano (que rompe com as fronteiras disciplinares); (2) algumas das questões acabaram se mostrando redundantes ou de difícil tradução. É o caso do questionamento sobre a filósofa ou filósofo mais importante ou aquele de que mais gosta, que pensada inicialmente em inglês não trazia a questão da diferença de gênero (problema que repercute em todo processo de tradução); a adjetivação de "africana" também gera tensões entre quem pode fazer ou faz parte da filosofia africana (por exemplo, Seloua Bolbina fala pelo norte da África e sua exclusão; o espanhol Antonio de Diego Gonzales, trabalha com as tradições muçulmanas etc.); (3) nem sempre as questões eram as mais indicadas para as pessoas entrevistadas, por se chocarem com pressupostos ou proporem um tipo de fechamento/definição, que muitas vezes não é o que a atividade filosófica exige. Por isso alguns convidados se recusaram a tratar de determinadas perguntas, fundiram respostas ou corrigiram o caminho do questionamento (ou os termos das perguntas). 21 Marcos Carvalho Lopes Muitas das pessoas convidadas, com razão, estranharam esse projeto. que parte de um contato por e-mail, feito por alguém desconhecido, de um espaço periférico e com uma proposta inusitada: a tradução e publicação em um site na internet (filosofiapop.com.br) e a possibilidade de posterior publicação em livro. Neste contato eu explicava o interesse em promover a filosofia africana no Brasil indo além das idealizações tão comuns (e necessárias) na diáspora, destacando a possibilidade de dialogar com o público brasileiro e de língua portuguesa; e necessidade de ajuda para adensar os debates em torno das filosofias africanas e de cooperação com o esforços de institucionalização de projetos como o da UNILAB em um momentos em que perspectivas de extrema direita ameaçam qualquer iniciativa de educação emancipatória, inclusiva e antirracista. Diante do contexto de pandemia todas as pessoas que receberam essa “carta” do Brasil entendiam de modo forte a necessidade política de responder. Por motivos diversos, muitas respostas prometidas não se efetivaram, mas unanimemente recebi palavras de incentivo e a compreensão da importância de construir caminhos de diálogo. Um ditado bissau-guineense ensina que devemos nos precaver quando somos desafiados por um cego para um confronto em que uma pessoa lança pedradas em direção à outra: com certeza o desafiante escondeu pedras próximas aos seus pés. Quando nos dispomos a encarar o embate com a filosofia acadêmica, com o objetivo de justificar a pertinência da filosofia africana, temos que lidar com uma situação de desigualdade vinculada tanto ao racismo e busca de manter privilégios, quanto ao cinismo de quem não quer desvalorizar seu capital cultural e perder possibilidades de emprego. A abordagem da filosofia africana tem dificuldades específicas, nas formas de inclusão e representatividade que precisam se desviar da comodificação (transformação em mercadoria) da diferença, tomada como algo exótico e incomensurável, resultando em uma guetificação paradoxal, com uma inclusão excludente (geralmente, tomando algum nome da 22 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana moda como sendo um “ente privilegiado” que sintetiza e incorpora tudo que se precisa citar para cumprir as demandas do momento). Nalguns casos, com formas de autoindulgência sem resultados que vão além de uma espécie cada vez mais comum de ubuntu neoliberal, que inverte a fórmula tradicional zulu “eu sou, porque nós somos”, e afirma, que “nós somos, porque EU sou”. Noutros casos, para além dessa “visibilidade segregada” teorizada por Stuart Hall, que por meio da “representatividade” atende as demandas do mercado, criamos um tipo de exclusão mais eficaz e tipicamente brasileira, pois resolve (ou melhor, dissipa) a questão de maneira cordial: realizam-se mesas-redondas, como uma forma de carnaval epistemológico, que aparentemente inverte “a ordem natural das coisas”, as pessoas falam, mas não são ouvidas e as práticas se mantém inalteradas. Chamo isso de invisibilidade segregada, porque o que é mais visível torna-se invisível, pois efetivamente não faz parte do jogo. Em contraste com a dupla-consciência que permeia as abordagens da filosofia afro-americana e de outras tradições diaspóricas, no Brasil, aqueles que desejam contemplar a filosofia africana precisam lidar com uma dupla-alienação: (1) não fazemos parte de uma tradição reconhecida de debates e produção filosófica. Abordar a filosofia africana também implica considerar a filosofia de maneira contextualizada, questionando o discurso que pressupõe o universalismo da filosofia europeia e desafiando as práticas coloniais de superioridade e submissão. Isso demanda dar espaço às vozes que foram injustamente ignoradas. Se você reconhece que o cânone filosófico foi moldado e institucionalizado com base em modelos racistas e sexistas, mas não faz nada pessoalmente para modificar essa realidade, de acordo com Jay L. Garfield, mesmo que de forma passiva, você está perpetuando o racismo e/ou sexismo. O problema é que a maioria silenciosa da academia brasileira não reconhece a filosofia africana como filosofia. Como resultado, o impasse persiste, e a maior parte das pesquisas neste tema continuam sendo realizada fora dos departamentos de filosofia. Aqueles que se dedicam ao tema 23 Marcos Carvalho Lopes geralmente estão em outras áreas, como educação, antropologia etc. Aqueles com formação linear em filosofia que buscam dialogar com a filosofia africana/afro-brasileira são vistos com ceticismo e desconfiança, o que é compreensível, dadas as circunstâncias.; e (2) não possuímos a identidade racial como um elemento explícito, como ocorre nos EUA. A tecnologia do racismo por denegação, nega a existência ou a relevância das questões raciais, minimizando ou ignorando a discriminação racial e suas consequências (muitas vezes alegando que vivemos em uma sociedade pós-racial ou que o racismo é um problema do passado). O racismo por denegação pode se manifestar pela recusa em reconhecer a existência do racismo; a desvalorização das experiências e perspectivas das pessoas racializadas; a negação do privilégio branco; e a rejeição de ações afirmativas destinadas a corrigir desigualdades raciais. Ao negar a realidade do racismo, essa postura perpetua estereótipos, a discriminação e a exclusão, contribuindo para a manutenção das desigualdades existentes. O estudo e ensino da filosofia africana no Brasil tende a seguir o caminho comum dos estudos africanos na diáspora, destacando aspectos da herança cultural que estão encarnados em práticas de resistência e reinvenção, que traduzem a violência e opressão do racismo, em afirmações da vida e da solidariedade que vincula a população afrodescendente. Deste modo, a África que é reinventada e celebrada não funciona como uma busca por correspondência com os contextos e questões vivenciadas hoje pelas pessoas no continente africano. O questionamento do lugar da história da filosofia e de qual história da filosofia ensinamos, vem sempre acompanhado do lance dramático dos que, de modo estridente, preferem negar a necessidade de estudar qualquer história em nome do aprender a filosofar como prática direta. Nesta via, de negar o valor da história da filosofia, muitas vezes tratam de defender a inovação em um sentido tão radical, que cada qual deve criar os seus próprios termos-conceitos, e que o debate é coisa de ressentidos (e a crítica é sempre um ataque pessoal). Quando a filosofia africana é tomada 24 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana deste modo, é fácil desconsiderar tudo aquilo que não cabe em nossa experiência imediata, desenvolver discursos acríticos, em que o jogo de pedir e dar razões é menos relevante do que a autoafirmação.3 Caindo numa perspectiva não-histórica, de forma acrítica, repete-se o gesto moderno e colonial ao afirmar um tipo de sujeito africano eterno e imutável ou com categorias cognitivas incomensuráveis, desconhecendo os debates e posições diversas que fazem parte da filosofia africana. A narrativa do Grande Debate que inaugura a filosofia africana acadêmica no século XX precisa ser conhecida para que não repitamos muitos dos problemas que neste debate foram superados ou redescritos. Lewis R. Gordon (2015) chega a defender que é esta narrativa que deve fundamentar os estudos africanos. O filósofo moçambicano, Severino Ngoenha, ao narrar essa trajetória no livro Das Independências às Liberdades: filosofia africana, de 1993, inaugura essa possibilidade de apropriação reflexiva dos debates sobre a filosofia africana em língua portuguesa. Mas, estaríamos no Brasil prontos para ler o livro de Ngoenha e dialogar com suas questões? Ou seria melhor deixá-lo de lado, como um esforço que cai na tradição de fazer história da filosofia, mais do que efetivamente filosofar? Mas, seria possível efetivamente filosofar ignorando os debates que moldaram o campo da filosofia africana? O filósofo e jornalista bissau-guineense Filomeno Lopes (2004) em seu livro Filosofia Senza Feticci entrevistou diversos nomes da filosofia, comunicação, história e sociologia africanas, assim como da filosofia da libertação latino-americana (como Raul Fournet Betancourt e Enrique Dussel), procurando os caminhos de articulação de uma filosofia que reconheça e enfrente os dramas de vida e morte que afetam a maior parte das populações do Sul Global, em meio a guerras fraticidas que devoram a possibilidade O que contrasta com a proposta criativa da Escola Conversacional de Jonathan Chimakonam, que ao mesmo tempo em que incentiva a criação de sistemas filosóficos criativos, não renuncia à formação filosófica e à construção dialógica do conhecimento. 3 25 Marcos Carvalho Lopes de futuro, a naturalização da desigualdade, da arbitrariedade e da violência constituem uma encarnação do Mal que precisa ser enfrentada/pensada. A filosofia fetichista, com as suas formas de pensamento refinado e autoindulgente, ignora e – por omissão – reforça a manutenção deste quadro de colonialidade. O diálogo proposto com as entrevistas é uma forma de gerar comunicação e reconhecimento e reforçar a luta em comum pela vida, contra a formas de desumanização e morte. É um pressuposto deste projeto a abordagem desenvolvida por Samuel Olouch Imbo (1998) em seu livro An introduction to African philosophy que apresenta a filosofia africana partir de cinco perguntas fundamentais: “o que é filosofia africana?”; “a filosofia africana é única?”; “a etnofilosofia é realmente filosofia?”; quais são as línguas/linguagens da filosofia africana? e “quais as relações entre a filosofia africana e as filosofias feministas e afroamericanas?”. A abordagem que descreve possibilidades diversas de resposta é extremamente didática e considero que contribui para gerar uma espécie de paradigma que oriente as pesquisas e a socialização dos debates sobre a filosofia africana. As respostas podem ser sempre recontextualizadas, como fiz no livro Conversas com notas de rodapé: questões para a filosofia africana (LOPES, 2022). Então, falar em filosofia africana não é somente desafiar a colonialidade e seus pressupostos racistas, mas colocar em questão a agenda, os interlocutores, as questões e a forma desta disciplina, que geram ou repercutem desigualdades e injustiças, por meio do silenciamento ou ridicularização. Neste quadro, não é por acaso que as leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que estabelecem o ensino de "História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena" na educação básica, não tiveram impacto significativo nas instituições acadêmicas brasileiras de filosofia. A legislação não provocou alterações nas disciplinas da grande maioria dos cursos, não geraram oportunidades de trabalho especializado e não incentivaram pesquisas nos programas de pós-graduação em Filosofia. O nome tcholonadur marca uma perspectiva sobre a possibilidade de diálogo intercultural, que em muito se justifica 26 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana pela experiência docente vivenciada na UNILAB. Em março de 2016, por ocasião da realização do primeiro Seminário de Filosofia Africana (organizado junto com o professor Bas’Ilele Malomalo (UNILAB) e participação do professor Willis Santiago Guerra Filho (UNIRIO)), em minha palestra “Muntu e Lusotopia” tomei como mote a língua portuguesa como traço em comum que permitiria pensar a filosofia na UNILAB. Porém, logo nos debates os estudantes problematizaram a direção de minha investigação: apesar da língua oficial portuguesa ser um traço em comum, a maioria dos estudantes não tinham essa como sua língua materna ou aquela que usam no cotidiano. Partir do português seria naturalizar uma dimensão colonizada como ponto de partida para pensar o que temos em comum. A experiencia de desenvolvimento do projeto de extensão botAfala, em que utilizamos o hip-hop como ferramenta para construção de uma educação democrática mostrou que a questão da língua merecia muito mais cuidado. Na hora de compor canções, os rappers sempre utilizavam sua língua materna quando pretendiam transmitir aspectos emocionais mais intensos, recados mais fortes etc. Por isso, para dialogar é preciso aceitar essa mediação, perguntar e procurar entender o outro em sua alteridade, e não na busca por reduzi-lo ao mesmo.4 Tcholonadur é uma palavra da língua kriol de Guiné-Bissau que é bem descrita por Moema Parente Augel: é uma figura do cotidiano guineense; é o que intermedeia, que serve de ponte entre o falante e o ouvinte, pessoa necessária, mesmo indispensável, com atribuições diversas, tanto nas culturas com base nas chamadas religiões naturais, como nas coletividades muçulmanas. Quando há algo há tratar entre dois contraentes. Muitas vezes falantes de diferentes línguas, não é possível, segundo os costumes locais, que os dois dialoguem diretamente, tornando-se necessária a presença de um terceiro, tradutor (mas não necessariamente), mediador ou intermediário, que então passa para cada um o que o outro diz ou responde. A posição dos oponentes, muitas vezes Essa proposta converge com a de Michael O. Ezé descrita na introdução de sua entrevista neste livro. 4 27 Marcos Carvalho Lopes sentados de costas viradas um para o outro, indica ou estabelece a distância, o antagonismo que o tcholonadur tenta superar. Para as etnias não muçulmanas, o papel de intermediário representado pelo tcholonadur tem cunho religioso, mesmo místico, de mediação entre os indivíduos e a divindade. É quem possui o poder de decifrar e transmitir a mensagem do iran, cujos sons nem sempre são inteligíveis para aqueles que o foram consultar” (AUGEL, 2007, p.330). A palavra guarda um grau de ambiguidade que não conhecia, mas para o qual fui alertado por Filomeno Lopes: o tcholonadur pode ser visto como um embusteiro, fofoqueiro, um “leva e traz”. Em muitos aspectos acredito que o papel de quem procura desenvolver a filosofia de modo intercultural é esse do tcholonadur e não o daquela pessoa que é “dona da palavra”, da razão, do logos. Existe uma precariedade e uma desconfiança que fazem parte de sua condição socrática: este mesmo filósofo grego, era descrito como marcado pela soberba, na galhofa de Aristófanes; postura que foi transformada por Platão em sua proverbial ironia. Mas aqui é melhor considerar as muitas faces de Exu, que na descrição de Henry Louis Gates, estão presentes na escrita afro-diaspórica, tendo um discurso múltiplo, com uma perspectiva voltada para quem é de fora e outra para quem pertence a comunidade. Nossa palavra está no meio do caminho, na travessia. Na poesia da bissau-guineense Odete Semedo o personagemconceito tcholonadur ganha uma representação poderosa, como o “mensageiro”, aquele que faz a mediação do conflito fratricida que levou o país a guerra civil (ela opõe Guiné e Bissau, encarnando as posições divergentes). Este mensageiro, é “teu”, lhe dirige a palavra diretamente e pede que mantenha a atenção cuidadosa necessária para a escuta. O poema “bu tcholonadur/teu mensageiro” é apresentado em forma bilíngue (aqui trago sua versão em português) (SEMEDO, 2007): Não te afastes aproxima-te de mim traz a tua esteira e senta-te 28 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Vejo tremenda aflição no teu rosto mostrando desespero andas e os teus passos são incertos Aproxima-te de mim pergunta-me e eu contar-te-ei pergunta-me onde mora o dissabor pede-me que te mostre o caminho do desassossego o canto do sofrimento porque sou eu o teu mensageiro Não me subestimes aproxima-te de mim não olhes estas lágrimas descendo pelo meu rosto nem desdenhes as minhas palavras por esta minha voz trémula de velhice impertinente Aproxima-te de mim não te afastes vem... senta-te que a história não é curta. O mensageiro de Semedo é exigente e pede que o leitor mude sua postura para ouvir o seu canto. Quero fazer este mesmo pedido para as pessoas que lerão essas entrevistas, com a diferença de que para desvelar seus sentidos ambíguos, presentes na diversidade de posições e posturas, não pressuponha um tipo de convergência que apaga todas as diferenças. A filosofia como algo vivo não pede condescendência, mas a vontade de participar do jogo de pedir e dar razões com a coragem de mudar a si mesmo. Este trabalho é dedicado ao meu filho, Ulisses, que está lutando para aprender a falar. Suas palavras eram ainda raras e pouco articuladas quando diante da situação de uma consulta médica começou a repetir “obrigado, obrigado, obrigado” (algo que nunca havia dito), numa tentativa de se livrar do exame e ir 29 Marcos Carvalho Lopes logo embora. Talvez ele tenha mimetizado esse “obrigado” que comumente uso me despedindo em situações diversas. Não tenho certeza, mas aqui sou eu quem vai copiá-lo. Ao invés de fazer uma lista de agradecimentos, que seria incompleta, parcial e incapaz de expressar a alegria de terminar este projeto, vou repetir essa palavra (com a qual terminava os e-mails dentro destes muitos diálogos): muito obrigado! Marcos Carvalho Lopes Jataí, 21 de agosto de 2023. Referências AUGEL, Moema Parente. O desafio do escombro: nação, identidade e pós-colonialismo na literatura da Guiné-Bissau. Garamond, 2007. GORDON, Lewis R. Disciplinary decadence: Living thought in trying times. Routledge, 2015. IMBO, Samuel Olouch. An introduction to African philosophy. Rowman & Littlefield Publishers, 1998. LOPES, Filomeno. Filosofia senza feticci: risposte interdisciplinari al dramma umano del 21. secolo. Edizioni associate, 2004. LOPES, Marcos Carvalho (ed.). BotAfala: ocupando a Casa Grande. São Carlos: Pedro & João Editores, 2020. LOPES, Marcos Carvalho. Conversa com notas de rodapé. Questões para a filosofia africana. São Carlos: Pedro & João Editores, 2022. NGOENHA, Severino. Das independências às liberdades: filosofia africana. 2ª ed. - Prior Velho: Paulinas, 2014. SEMEDO, Odete. No fundo do canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007. 30 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Ada Agada e a disposição para filosofar* Jonathan O. Chimakonam no prefácio do livro Existence and Consolation descreve com entusiasmo o trabalho de Ada Agada, afirmando que “emergiu há algum tempo como uma força revolucionária na filosofia africana”, que “descolonizou e reabriu a mente africana fechada nas garras estranguladoras do eurocentrismo (...) ele quebrou as correntes da filosofia de cópia, comentário e transliteração na África”. Por isso, Chimakonam sentencia “Ada Agada é, sem dúvida, a própria evolução da filosofia africana contemporânea”. Tenho acompanhado há algum tempo os trabalhos de Ada Agada e as palavras de Chimakonam estão bem justificadas. A intensidade do gesto de pensamento de Agada o fez, por exemplo, reavaliar o lugar da etnofilosofia, tomando a necessidade de contextualizar culturalmente o pensamento como parte da possibilidade de efetivamente filosofar (ou seja, ir além das armadilhas metafilosóficas). Isso significa uma escolha entre três caminhos considerados por ele como possibilidades para quem desenvolve a filosofia africana: “(1) Adotar uma postura subserviente que reconheça timidamente a soberania da filosofia ocidental e localizar a filosofia africana como um subconjunto da filosofia ocidental, (2) Rejeitar a pretensão da filosofia ocidental ao universalismo absoluto e lamentar incessantemente a injustiça epistêmica, sem insistir numa solução radical que implique um regresso ao mundo do pensamento africano; (3) Rejeitar a reivindicação universalista absoluta da filosofia ocidental e ir em frente para começar do zero a formular sistemas de pensamento africanos que reivindiquem o universalismo e, depois, desafiar a filosofia ocidental a fugir à insularidade intelectual e a ir ao * https://doi.org/10.51795/97865265082683137 31 Marcos Carvalho Lopes encontro dos sistemas de pensamento africanos originais recentemente formulados na mesa redonda da filosofia intercultural, na qual todos podem iniciar a procura de um universalismo mais representativo” (AGADA, 2020).5 Por essa descrição já podemos entender que Agada segue por este terceiro caminho, numa trilha comum à chamada Escola da Conversação Filosófica (Conversational School of Philosophy, CSP), que insiste na necessidade de criar sistemas culturalmente informados. É nesse sentido que o autor propõe o seu Consolacionismo ou Filosofia da Consolação, conceito que descreve o ser humano como um “ser melancólico (homo melancholicus) que encontra sua própria natureza racional e emocional espelhada no mundo externo, com seus próprios impulsos vitais não radicalmente diferentes dos impulsos difundidos por todo o universo como anseios da totalidade da natureza. A projeção da racionalidade e da emocionalidade na matéria a partir do local da consciência sublinha a transgressão das fronteiras e a centralidade do esforço eterno no universo” (AGADA, 2020). O Consolacionismo de Agada toma o conceito de ânimo/disposição (mood) como o centro de uma metafísica que pretende se desviar de diversas dicotomias (como mente/corpo; determinismo/liberdade etc.). Essa disposição de não se curvar ao imperialismo epistemológico do Ocidente, mas de construir sua própria posição de modo sistemático e informado, utilizando as metodologias filosóficas ocidentais — analíticas, fenomenológicas, existenciais etc. — como ferramentas circunstancialmente úteis para determinado fim, representam o próprio filosofar de Ada Agada, como é possível ler nesta breve entrevista. AGADA, Ada. “Consolationism in and beyond African philosophy. A systematic approach to intercultural philosophy”. Disponível em: <https://unituebingen.de/einrichtungen/zentrale-einrichtungen/center-for-interdisciplinaryand-intercultural-studies/forschung/fellows/senior-fellows/agada/>. Consultado em 28/10/2020. 5 32 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana A entrevista a seguir foi realizada por e-mail e, como todas as que fazem parte deste projeto, baseia-se em um conjunto fechado de questões. É importante ressaltar que na tradução se perde a neutralidade de gênero que a língua inglesa permite. Como você define a filosofia africana? Ada Agada — Definirei a filosofia africana como um campo de investigação filosófica que envolve questões sobre o mundo e a existência humana a partir da perspectiva cultural dos povos africanos. A filosofia africana — como as filosofias ocidental, asiática e latina — tem raízes culturais e aspira à universalidade na aplicabilidade do horizonte intelectual criado por suas perguntas, respostas e proposições. Como você entrou em contato com a filosofia africana? Entrei em contato com a filosofia africana com a mesma naturalidade com que nasci africano! Como Aristóteles notou, os humanos procuram saber. Esse desejo produz filosofia. Como um africano que se relacionou (acquainted) com a filosofia ocidental antes da filosofia africana, descobri-me consciente e inconscientemente avaliando a filosofia ocidental e usando categorias (inclusive a linguagem) que minha cultura africana fornecia. Eu tentava transplantar as ideias dos filósofos ocidentais para o solo filosófico africano, ou cosmovisões, se preferir. Felizmente, a filosofia africana como disciplina havia sido estabelecida na época em que comecei meus estudos de graduação. Posteriormente, decidi me dedicar à filosofia africana sabendo que os pensadores africanos só fariam contribuições importantes para a filosofia mundial quando avançassem as questões universais a partir de perspectivas culturais. Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está ultrapassada? 33 Marcos Carvalho Lopes A filosofia africana ainda está em busca de uma identidade, embora não da maneira intensa e, de fato, avassaladora (all-consuming) de algumas décadas atrás. Há trinta anos, havia dúvidas sobre se a filosofia africana era real. Consequentemente, a disciplina enfrentou a questão da identidade. Hoje, a filosofia africana é uma disciplina estabelecida e próspera; no entanto, ela ainda luta com a questão da identidade porque continua sendo muito marginalizada. Uma coisa que sempre achei preocupante sobre a tradição filosófica dominante do Ocidente é a profunda falta de interesse de seus praticantes pelas tradições filosóficas das sociedades não ocidentais. Dado o domínio da filosofia ocidental, os filósofos africanos continuam a adaptar seus pensamentos às filosofias ocidentais analíticas e continentais na esperança de obter o reconhecimento do Ocidente. Esta condescendência (pandering)6 atinge a originalidade. O déficit de liberdade e originalidade significa que a questão da identidade persiste para a filosofia africana. Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia africana hoje? As questões dominantes da filosofia africana hoje são metafísicas, lógicas, epistemológicas e especialmente éticas e sócio-políticas. Muito já foi escrito sobre ética e filosofia sociopolítica, tendo as questões da pessoa humana, do afro-comunitarismo e da vida boa O verbo pander, que Agada usa duas vezes nessa entrevista para falar da relação com a colonização epistemológica do imperialismo Ocidental, tem uma etimologia curiosa. O verbo teria origem no personagem Pandaro da história de Tróilo e Cressida. Na narrativa medieval, Pandaro, um aristocrata troiano que aparecia na Ilíada com virtudes guerreiras, passou a ser retratado como alguém licencioso e condescendente que faz a mediação para o namoro de Tróilo e sua sobrinha Cressida. Essa forma de entregar a sobrinha seria a origem do verbo pander, que indica a cessão condescendente, uma relação de exploração que beneficia o outro. Pandero não deixa de remeter a Pandora, cujo nome em grego significa algo como “toda-doadora” (pan- todo, doron – presente), que teria aberto a jarra/caixa que espalhou o mal pelo mundo. Se for possível descontar a dimensão patriarcal presente na narrativa que engendra essa palavra, é bom ter em vista como ela traduz a disposição mental de subserviência própria da colonialidade. 6 34 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana em destaque. Alguns de nós, que pertencemos à quarta geração (que uso aqui para me referir aos filósofos recém-surgidos), descobriram que é necessário explorar questões metafísicas, lógicas e epistemológicas da relação entre mentalidade e materialidade, do conhecedor e da coisa conhecida e da possibilidade de sistemas lógicos culturalmente informados que sejam universalmente aplicáveis. Há assim uma mudança de foco de questões metafilosóficas sobre a natureza da filosofia africana para questões substantivas sobre o mundo e a existência humana. Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo (womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia africana aborda questões relacionadas às diferenças de gênero e identidade sexual? Sobre feminismo e mulherismo (womanism), bem, algumas filósofas africanas sentiram que a visão mediada pelo Ocidente, de que a África pré-colonial funcionava como um patriarcado rígido e uniforme, era uma deturpação. Elas também sentiram que o feminismo, como recebido do Ocidente, favorecia (pandered) principalmente às preocupações ocidentais e subestimava a experiência africana. Algumas filósofas africanas abraçaram assim a ideia do mulherismo. Eu acho que as mulheristas fizeram uma opção bem justificada. Até onde se tem registro, em toda história africana as mulheres desempenharam papéis importantes. Os estudos de gênero estão agora firmemente estabelecidos na filosofia africana e as questões de sexualidade estão gradualmente fazendo seu caminho na filosofia africana dominante. No entanto, o conservadorismo do continente africano significa que as questões da sexualidade não são discutidas com a frequência que deveriam. Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é o mais importante em sua opinião? O mais importante filósofo africano entre aqueles que conheço pessoalmente? Esta é uma questão complicada, uma questão controversa. Tenho dúvidas de que um único filósofo possa ser 35 Marcos Carvalho Lopes identificado. Eu diria que Paulin Hountondji é o filósofo africano mais importante que conheço pessoalmente. Ele é um colosso filosófico africano. Existem outros, mas não tive a honra de conhecê-los. Qual é o seu filósofo africano preferido? Meu filósofo africano favorito é um pensador nigeriano chamado Innocent I. Asouzu. Se você me permitir adicionar um segundo e um terceiro, mencionarei Mogobe B. Ramose e L.S. Senghor. O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil. Esse também é um problema comum em relação à África de língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma unidade que leve em conta esses espaços? É verdade que o Brasil e a África Lusófona ainda não entraram plenamente no diálogo sobre a filosofia africana. Como você notou, o caso do Brasil é estranho, dada sua grande população africana, a maior fora da África na verdade! Os falantes de inglês e francês atualmente dominam o diálogo devido ao uso em grande escala das duas línguas. A língua não deve separar os filósofos africanos porque estou convencido de que falantes de português e espanhol podem revigorar a disciplina com suas perspectivas únicas. Uma forma de aumentar a qualidade do diálogo por meio da participação irrestrita é vermos mais traduções. Obras filosóficas escritas em português por pensadores afrodescendentes devem estar disponíveis em inglês e francês, assim como os textos em francês e inglês devem ser traduzidos para o português. Assim, todos começaremos a conversar seriamente uns com os outros. A barreira do idioma não deve e não pode subsistir. Ada Agada 36 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana é um filósofo nigeriano e autor de Existence and Consolation: Reinventing Ontology, Gnosis, and Values in African Philosophy, vencedor do prémio Outstanding Academic Title (OAT) da CHOICE em 2015. Estudou na Nigéria e atuou como pesquisador e professor em África e na Europa. Atualmente, é investigador sénior na Conversational School of Philosophy (CSP), em Calabar, na Nigéria. Referências AGADA, Ada. Existence and consolation: Reinventing ontology, gnosis and values in African philosophy. Paragon House, 2015. ______. The future question in African philosophy. In: CHIMAKONAM, Jonathan (Ed.). Atuolu omalu: Some unanswered questions in contemporary African philosophy. University Press of America, 2015. p. 241-267. ______. Consolationism in and beyond African philosophy. A systematic approach to intercultural philosophy. Disponível em: <https://unituebingen.de/einrichtungen/zentrale-einrichtungen /center-for-interdisciplinary-and-intercultural-studies/forschung/ fellows/senior-fellows/agada/>. Consultado em 28/10/2020. 37 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana 38 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Yusef Waghid e a filosofia africana da educação* O professor Yusef Waghid é uma referência para quem quer pensar a educação no sentido de construção de uma cidadania global. Essa dimensão cosmopolita de sua proposta de filosofia da educação não deixa de lado as lições de Paulo Freire sobre a necessidade de contextualização das práticas educacionais e o compromisso de construção de uma sociedade mais justa. Isso significa para Waghid propor uma filosofia africana da educação que não se reifique em torno de um dogma identitário, mas que reconheça a contingência e a necessidade de constante redescrição. Isso significa a valorização da conversação como caminho para a construção de uma filosofia africana da educação que conjugue a ação dependente da cultura com aquela justificada de modo argumentativo. Como descreve Waghid no início de seu livro African philosophy of education reconsidered: On being human: Grande parte da literatura sobre uma filosofia africana de educação parece justapor duas vertentes da filosofia africana como entidades mutuamente exclusivas, a saber, a tradicional etnofilosofia, por um lado, e a filosofia científica africana, por outro. Enquanto a etnofilosofia tradicional está associada aos artefatos culturais, narrativas, folclore e música dos povos africanos, a filosofia científica africana se preocupa principalmente com as explicações, interpretações e justificações do pensamento e da prática africana de acordo com o raciocínio crítico e transformador. Estas duas vertentes diferentes da filosofia africana invariavelmente têm um impacto diferente no entendimento da educação: isto é, a educação como constituída pela ação cultural como sendo mutuamente independente da educação constituída pela ação fundamentada. A posição que defendo (...) é a de uma filosofia africana de educação orientada por uma ação comunitária, razoável e dependente da cultura, a fim de superar a divisão conceitual e prática entre etnofilosofia africana e filosofia científica africana. Ao contrário daqueles que argumentam que a filosofia africana de * https://doi.org/10.51795/97865265082683945 39 Marcos Carvalho Lopes educação não pode existir porque não invoca a razão, ou que a filosofia africana de educação racional não é possível, eu defendo, em vez disso, uma filosofia africana de educação constituída por uma ação racional, dependente da cultura. (WAGHID, 2013, p. 1). Nessa direção, Waghid toma a africanização como uma tradição de investigação, de diálogo em que se reconhece a interdependência humana (ubuntu) e a relacionalidade (ukama), em que o indivíduo não é apagado em relação a comunidade, mas ambos se constituem de modo conversacional. Se a palavra shona ubuntu é relativamente conhecida como sendo um lema do humanismo africano, que remete ao provérbio “Munhu munhu navanhu” (uma pessoa é uma pessoa por causa de outras pessoas); a palavra shona ukama não tem a mesma popularidade, mas parte da mesma cosmoperspectiva ética para designar relacionalidade ou inter-relações. Etimologicamente “ukama” é composta da palavra kama, que significa ordenhar um animal, cuja raiz é “hama”, que significa relativo, parente, sendo “u” o prefixo que lhe transforma em adjetivo: o trabalho de aproximação de um animal para ordenha implica uma rede de afetos e proximidade, na conexão e interdependência entre o que sustenta e o que é sustentato; o provérbio “Wako ndewako kuseva unosiya muto” (“Ao se alimentar, mesmo com muito pouco apetite ou sopa (no seu prato), você sempre se lembrará de deixar um pouco para seu parente”) traria o contexto de seu significado que vincula a pessoa à comunidade (a família extensa, antepassados etc.) (NDOFIREPI e SHANYANANA, 2016). A ética ligada a ukama, como reconhecimento da interdependência na relação com os demais, complementa o sentido de ubuntu, mostrando que a crítica sobre uma negação do indivíduo não se justifica. Waghid não toma esses termos como imutáveis, mas sim dentro de uma perspectiva de educação para a mudança e ruptura com os padrões de colonialidade e a necessidade de construção de novas formas de ensino e aprendizagem: “as coisas nunca são concluídas e finalizadas. O conceito de ruptura significa que tudo, incluindo conceitos como o Ubuntu em si, tem o potencial de ser 40 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana visto de forma diferente. Sempre há espaço para novas formas de entender os acontecimentos do mundo e o mesmo ocorre com os encontros pedagógicos”. O reconhecimento da necessidade de rupturas mostra que não se trata de uma proposta de fechamento em si mesmo, mas de uma forma de relacionamento com outras culturas em que é preciso (1) aprender a ter ao mesmo tempo hospitalidade e hostilidade (Derrida), tratando “a visão dos outros com respeito e reconhecimento da diferença”, (2) abrindo-se a novidade com lealdade ao que já se conhece e (3) enfatizando o valor da palavra e do debate argumentativo para construção de um consenso como marcas da africanidade (WAGHID, 2018). Estes elementos se articulam na direção de uma educação para a cidadania democrática e cosmopolita, quando os temas que trazemos para o debate colocam em questão o mundo em que vivemos, os problemas que temos em comum e a busca pela criação de soluções. O professor Yusef Waghid tem buscado trazer essa proposta de filosofia africana da educação tanto para construção de uma perspectiva de educação islâmica democrática, quanto para o contexto das novas tecnologias e do ensino a distância. Nessa segunda direção, juntamente com seus filhos Faiq Waghid e Zayd Waghid, criou um curso online livre em que aplicou sua proposta de filosofia africana da educação. O projeto, que atendeu milhares de pessoas espalhadas pelo mundo, propõe procedimentos de aplicação de ubuntu e ukama, e gerou o livro Rupturing African philosophy on teaching and learning: Ubuntu justice and education. No contexto atual de pandemia, no qual as universidades são obrigadas a aderir a educação a distância de um modo coercitivo, essa experiência pode ser inspiradora e merece ser estudada com mais atenção. Nesta entrevista muito breve, feita por e-mail com o professor Yusef Waghid, as questões muito gerais não foram as mais adequadas para tratar especificamente de suas propostas. No entanto, podemos perceber que ele destaca os caminhos para os quais se direciona, ao enfatizar o papel do pós-estruturalismo e de 41 Marcos Carvalho Lopes autores como Jacques Derrida, Paulo Freire, Franz Fanon e Kwame Anthony Appiah. Como você define a filosofia africana? Yusef Waghid — Identificar problemas no continente e examinar suas implicações para a educação. Meu foco é a filosofia africana da educação. Como você entrou em contato com a filosofia africana? Eu me identifico com a África pós-colonial e fui iniciado no pensamento pós-colonial por meio de minha leitura crítica de Fanon. Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está ultrapassada? Olhar para a identidade seria apenas um tanto existencialista. Eu argumentaria que o cultivo da filosofia africana (da educação) surgiu em oposição aos ideais universalistas eurocêntricos de logocentrismo. Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia africana hoje? Compreender o que prejudica as práticas humanas e fazer algo para mudar isso. A filosofia africana da educação pode ser considerada uma crítica dissonante das reivindicações de conhecimento hegemônico. Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo (womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia africana aborda questões relacionadas às diferenças de gênero e identidade sexual? Bastante relevante e considero isso como parte dos discursos póscríticos daqui. Como que subvertendo-os de forma desconstrutiva. 42 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é o mais importante em sua opinião? Aqueles que são inspirados pelo pensamento pós-estruturalista e eu não necessariamente associo muitos pensadores a tal visão. Qual é o seu filósofo africano preferido? Eu consideraria Jacques Derrida (um desconstrucionista) com raízes argelinas como uma filosofia africana trabalhando na diáspora com o pós-estruturalismo francês. No entanto, se eu fosse ser mais específico, consideraria Kwame Anthony Appiah como tal, porque ele trabalha em uma área pela qual me sinto atraído, ou seja, o cosmopolitismo. O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil. Esse também é um problema comum em relação à África de língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma unidade que leve em conta esses espaços? Sim, é possível na tradição pós-analítica que parece ser dominante aqui no continente. A propósito, o trabalho de Paulo Freire inspirou principalmente o meu próprio pensamento de uma filosofia da educação africana crítica e ele chegou a África do Sul.7 Yusef Waghid tem três doutorados: em Educação, pela University of the Western Cape, em Política e em Filosofia, pela Stellenbosch University. É um dos principais filósofos da educação da África atualmente. Como professor distinto (distinguished professor) da Universidade de Stellenbosch, tem sido um Waghid escreveu “he was in South Africa”, que não significa uma presença física de Freire na África do Sul, país africano que nunca visitou, mas sobre o qual escreveu e se posicionou na luta contra o apartheid. Sobre a importância de Paulo Freire na África do Sul, ver, por exemplo: <https://www.thetricontinental.org/ptpt/dossie-34-paulo-freire-e-africa-do-sul/> 7 43 Marcos Carvalho Lopes prolífico autor, com 378 publicações até hoje, das quais quarenta e três são livros acadêmicos e setenta e três capítulos de livro. Seu compromisso com o avanço da educação se dá também no trabalho de orientações de pós-graduação, tendo orientado trinta e uma teses de doutoramento e examinado setenta e oito doutorados, atividade que culminou em ter sido homenageado pela Associação para o Desenvolvimento da Educação na África em 2015 como um digno ganhador do prestigioso Prêmio de Pesquisa em Educação na África: Destaque Mentor de Pesquisadores em Educação. Suas contribuições acadêmicas mais notáveis no campo da filosofia africana do ensino superior figuram em importantes livros acadêmicos internacionais que incluem, dentre outros, Academic Activism Reimagined: Towards a New Philosophy of Higher Education (Springer, 2020, com Nuraan Davids); Towards a Philosophy of Caring in Higher Education: Pedagogy and Nuances of Care (Palgrave-MacMillan, 2019); Education for Decoloniality and Decolonisation in Africa (Palgrave-MacMillan, 2019, com Chikumbutso Herbert Manthalu); Rupturing African Philosophy of Teaching and Learning (Palgrave-MacMillan, 2018, com Faiq Waghid & Zayd Waghid); e African Philosophy of Education Reconsidered: On Being Human (Routledge, 2014). Em reconhecimento a seus trabalhos acadêmicos e tendo publicado em muitas das principais revistas de sua área, a National Research Foundation na África do Sul o classificou como um acadêmico internacionalmente aclamado que oferece liderança exemplar no avanço da filosofia do ensino superior na África. Concomitantemente, ele foi pioneiro no inovador projeto africano MOOC (Massive Open Online Course) sobre Ensino para a Mudança (Teaching for Change), selecionado pela Academia SDG das Nações Unidas: Aula Central como um curso internacional online gratuito para aprender sobre as metas de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas (2016-2020). Ele foi homenageado com as editorias de duas importantes revistas acadêmicas, a saber, Citizenship, Teaching and Learning, e South African Journal of Higher Education, através da qual ele meritoriamente apoia os estudiosos a publicar seus trabalhos seminais. De 2020 a 2021, colaborou com renomados estudiosos internacionais em um projeto de pesquisa pioneiro da UNESCO, Education for Flourishing and Flourishing in Education iniciado pelo Instituto Mahatma Gandhi de Educação para a Paz e o Desenvolvimento Sustentável. Seu trabalho no ensino superior na África é também reconhecido pelo Conselho de Ensino Superior na África do Sul, do qual é conselheiro desde 2019. 44 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Referências NDOFIREPI, Amasa Philip; SHANYANANA, Rachel N. Rethinking ukama in the context of ‘Philosophy for Children’in Africa. Research Papers in Education, v. 31, n. 4, p. 428-441, 2016. WAGHID, Yusef. African philosophy of education reconsidered: On being human. Routledge, 2013. ______. African philosophies of education re-imagined: Looking beyond postmodernism. Educational Philosophy and Theory, v. 50, n. 14, p. 1432-1433, 2018. DOI: 10.1080/00131857.2018.1462468 WAGHID, Yusef; WAGHID, Faiq; WAGHID, Zayd. Rupturing African philosophy on teaching and learning: Ubuntu justice and education. Springer, 2018. 45 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana 46 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Tanella Boni e as mulheres na filosofia africana* a dignidade humana — a ideia, o princípio, a exigência — que brilha pela sua ausência na vida quotidiana de muitos indivíduos, manifesta-se em cada relação humana desde o primeiro olhar, a primeira palavra, o primeiro encontro como um reconhecimento mútuo um do outro. Mas esse reconhecimento pode acabar sendo uma tarefa sem fim. E devemos ser capazes de pensar que até os mortos nos reconhecem como seres humanos quando inclinamos a cabeça diante de sua memória, que eleva nosso espírito para o que está além da vida. (BONI, 2007, p. 215). A filósofa costa-marfinense Suzanne Tanella Boni (1954), além de professora na Universidade Félix Houphouët Boigny, em Abidjan, Costa do Marfim, e em Toulouse, na França; é uma escritora premiada com romances, poemas, livros infantis e ensaios. Seu cuidado com as palavras vem acompanhado do peculiar hábito filosófico de desconfiar de reificações teóricas, que tornam moedas gastas e sem valor aquilo mesmo que deveria ser pensado. Esse cuidado poético muitas vezes se confronta com as reificações que no cotidiano mortificam e banalizam formas de desigualdade e violência. O filósofo senegalês Souleymane Bachir Diagne, no prefácio do livro de Boni Chaque jour l'espérance, afirmou que a escrita da autora se faz “para defender a vida contra a morte circundante”, nesse sentido busca “dizer para cada dia a esperança que ele carrega. Porque escrever contra o horror não é perseguir indefinidamente a tentativa de falar de desastre indizível. É cantar a força para viver e ter esperança. Esta forma de ver é a de Tanella Boni, poetisa e filósofa que, à negação que é a recusa da morte, prefere a afirmação da força de viver e de gostar”. Esse gesto de pensamento ajuda a explicar como ela vivência a escrita. * https://doi.org/10.51795/97865265082684758 47 Marcos Carvalho Lopes Além da entrevista, que exemplifica bem esse modo de proceder, vale a pena descrever um pouco como a autora se aproxima da questão da mulher e do feminismo em África. Boni descreve ter sido por mais de 20 anos a única mulher em um Departamento de Filosofia e ter encontrado no estudo da filosofia grega antiga, mais especificamente, estudando os conceitos de vida e matéria em Aristóteles, elementos que justificavam a inferioridade feminina e sua exclusão do debate público. Apesar de reticente em relação ao uso da palavra feminista e aos recortes de gênero, Boni diz ter em certo momento percebido que estruturas patriarcais condicionam o campo filosófico: No mundo social, político, cultural e acadêmico em que vivi, a desigualdade e a injustiça eram lei. Compreendi que um homem e uma mulher com igual competência não tinham chances iguais de serem ouvidos ou levados a sério no campo da produção de conhecimento ou do debate acadêmico. Algo se quebrou em mim; nunca seria capaz de ver o mundo da mesma maneira. Daquele momento em diante, me permiti imaginar meu ambiente como um mundo de paredes e obstáculos que se tornam visíveis e audíveis apenas quando se desenvolve a consciência deles. (BONI, 2017, p. 51). Isso não significava necessariamente aderir automaticamente a palavra feminismo, porque compreendia que tal ordem patriarcal, que obviamente vai além do campo da filosofia, afetava todos os corpos e sexualidades que desafiavam suas normas. Por isso mesmo, o movimento de Boni de dar um passo atrás e perguntar “o que é uma mulher?” não é também uma rejeição do feminismo, mas propõe uma recontextualização que não se fecha na questão de gênero, mas busca desvelar as causas das situações de desigualdade e injustiça vivenciadas pelas mulheres e procura formas de resolvê-las. Para ela: Mesmo que seja uma questão filosófica, existe um vasto abismo entre a palavra “mulher” e a palavra “feminista”. O que separa os dois não é a busca por uma definição da categoria das mulheres; é, antes, uma forma de engajamento. É, por um lado, uma questão fria e desapaixonada que pode ser dissecada externamente e pode dar origem a todos os tipos de interpretações e discussões, assim como qualquer questão filosófica. Mas por 48 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana outro lado, é um engajamento envolvente, uma abordagem que vem do nosso corpo e da nossa alma e talvez até de nossas entranhas, onde existe raiva, revolta e determinação. Todos os feminismos me parecem ser dessa ordem, e os feminismos que tratam da África em um grau ainda maior. (...) Em um nível individual, então, eu diria que não se entra no feminismo da mesma forma que se entra na religião, ou seja, por escolha. Em vez disso, nos tornamos feministas porque não temos escolha. Lutamos e resistimos para que possamos “nos encontrar”, assumir responsabilidades, ter um lugar no mundo, e fazemos isso apoiando e cuidando de nós mesmas e de nossos entes queridos. Desta forma, a preocupação consigo mesma e com os outros é um passo anterior a todo raciocínio e ativismo que podemos querer qualificar como “feministas”. (BONI, 2017, p. 51). Nesse sentido, a pergunta sobre “O que é uma mulher?” quando feita na África ganha um contexto que gera respostas diferentes daquelas de outros espaços. De todo modo, as formas de violência e opressão provocadas pela falocracia existem em diversas parte do mundo, como ela destaca em seu livro Que vivent les femmes d’Afrique? [O que vivenciam as mulheres na África?]: “Em toda parte, e em todas as culturas, há mulheres que são espancadas, estupradas, assediadas, dominadas. A falocracia ou ideologia construída em torno do homem que, como resultado, se dá todos os direitos, está longe de ser uma invenção africana (...). Mas como a dominação masculina se manifesta na África?” (BONI, 2008, p. 7-8). A questão proposta então é dupla: “O que há de específico nestas mulheres que estão de alguma forma ligadas às culturas africanas? O que elas compartilham com todas as outras mulheres do mundo?” (ibid., p. 16).8 Dois exemplos descritos por Boni são infelizmente muito familiares para o contexto brasileiro, como quando trata da coerção constante sobre padrões de comportamento que manipulam a acusação de “loucura” — “as mulheres africanas não nascem “loucas”, elas se tornam “loucas” aos olhos dos homens - e aos olhos de outras mulheres - que têm que censurá-las pela vida que levam, por não obedecerem a leis não escritas, por não obedecerem, por não se submeterem, mas também pelo fato de não serem simplesmente mulheres, ou seja, corpos perfeitamente maleáveis” (BONI, 2008, p. 57) — ou as formas de assedio e situações de discriminação no trabalho — “No mundo do trabalho, além das situações de discriminação, o assédio sexual é onipresente e pode assumir todas 8 49 Marcos Carvalho Lopes Como diversas questões — ligadas ao desejo de descolonização, de busca de identidade, resistência ao imperialismo — se entrecruzam na constituição do feminismo africano; Boni considera justificada a busca teórica de inspiração em um passado pré-colonial, mas não deixa de contestar como esse caminho se afasta dos problemas vivenciados pelas mulheres africanas hoje. Por isso mesmo, recontextualizar as questões significa deslocar a interrogação baseada somente no gênero, mas não deixar de denunciar as formas de opressão promovidas pela falocracia.9 as formas: piadas atrevidas, flerte, dever de cozinhar (...) Se alguma vez as mulheres cederem, sua reputação é atingida. A fim de salvaguardar sua dignidade, as mulheres resistem a essa violência multifacetada, mesmo que isso signifique ser chamadas por todos os tipos de nomes, e, no local de trabalho, o caminho está cheio de armadilhas” (BONI, 2008, p. 53). 9 Boni explica esse ponto no artigo “Feminism, Philosophy, and Culture in Africa”: “O ato de ser uma feminista africana é um desafio que alguém se coloca para si mesma. Na verdade, as culturas, tradições e todos os tipos de particularidades nos mostram que ‘gênero’ não designa uma relação de dominação composta de apenas dois polos: a mulher na posição inferior e o homem na posição superior. As relações de dominação se reproduzem e se interligam; para saber disso, basta perguntar o que é família. O que é uma mãe? O que é um pai? O ‘casal’ existe? O que é sexualidade? Por que os pais costumam estar fisicamente ausentes quando toda a vida familiar, social, espiritual e intelectual é organizada em seu nome? Questões filosóficas fundamentais nos mostram o grau em que a palavra ‘gênero’ merece ser questionada. Pode ser que as próprias mulheres estejam no centro do desenvolvimento da vida econômica informal, embora isso ainda precise ser provado. O gênero deve ser entendido do ponto de vista de etnias exclusivas em uma África plural que inclui milhares de ‘grupos étnicos’, línguas, religiões e culturas? Embora possa haver muitos tipos de dominação, a ideologia patriarcal defende os interesses dos homens, independentemente de sua situação. Quer se trate de relações entre indivíduos em uma família ou em um contexto estatal — e nas cúpulas estatais há mães e pais presentes, assim como na família — tudo gira em torno da organização de masculinidades que devem permanecer infalíveis, viris e poderosas. Também entendemos porque as pessoas identificadas como LGBTI têm tão poucos direitos em muitos países africanos e são perseguidas pela opinião pública e política e pelas leis morais, sociais e religiosas. Ser feminista não é, então, afinal, romper a ordem construída pela ideologia patriarcal que se reproduz em todos os níveis de sociabilidade em nome da normalidade?” (BONI, 2017, p. 56-57). 50 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Mas quais diferenças existem entre se tornar mulher no Ocidente e na África? Um exemplo utilizado pela autora é a diferença em relação a descrição de Simone de Beauvoir sobre a gravidez como uma alienação do corpo da mulher, enquanto nas culturas africanas a esterilidade feminina é algo que toma dimensões trágicas: Trata-se de uma referência à ideia de que o corpo feminino é feito para gerar filhos e preservar a honra do marido. Porém, a mãe não é apenas aquela que dá vida; seu papel também é fornecer alimentos, cuidados e educação. Existem mães nutridoras, mães espirituais e mães protetoras e, dessa forma, elas são poderosas e têm homens e mulheres sob seu controle. As sogras podem governar famílias inteiras. As relações de irmandade (sisterhood), aliás, nem sempre são horizontais, mas hierarquizadas. A irmandade (sisterhood) é, para as mulheres africanas, um ponto de integração e estabilidade na família. O conceito de família, então, precisa ser revisitado e adaptado às realidades locais; não corresponde a ideias de família que vêm de outros lugares. A noção de ‘casal’ também precisa ser repensada. A que se refere ‘casal’? A pergunta vale a pena fazer quando, em certas situações, a poligamia está em jogo em suas formas mais insidiosas, e mesmo entre homens e mulheres educados e conscientes de seus direitos. Pergunta-se, então, como explicar essas situações complexas que parecem ser socialmente aceitáveis ao mesmo tempo em que estão em contradição com as leis escritas. Que recurso está disponível para as mulheres cujos direitos são violados, se as leis escritas não as protegem e as leis orais e tradicionais não reconhecem as injustiças que elas são obrigadas a suportar? (BONI, 2017, p. 55).10 Sobre o tema, Tanella Boni faz referência aqui ao seu livro Que Vivent les Femmes d’Afrique? (Paris: Karthala, 2011). Nessa mesma direção, Déborah Alves Miranda e Josilene Pinheiro Mariz, no interessante artigo “Liberdade sexual feminina em Aya de Yopougon: uma leitura a partir de três personagens”, citam um trecho do livro de Boni que toca nesta questão: “’É uma menina!’ é o grito de exclamação que ressoa profundamente nos ouvidos da mãe como uma dupla desgraça: a sua, que se repete; e, a da sua filha, que começa. O pai, frequentemente ausente no momento do nascimento de uma criança, entra nessa história fundadora um pouco depois (...) o homem vê o nascimento de sua enésima filha como uma grande desgraça (...). Uma filha não é educada como um menino, isso não é próprio da África.” (BONI, 2011, p. 31-32). Nesse mesmo sentido, a autora no artigo “Feminism, Philosophy, and Culture in Africa”, explica que “a vida individual das mulheres africanas é marcada por uma longa e paradoxal história de violência. A violência começa na família. Estou falando aqui sobre a vida, 10 51 Marcos Carvalho Lopes Quando consideramos o campo da filosofia africana e seu desenvolvimento inicial, não temos a participação de mulheres e de temáticas que lhes contemplem. Na verdade, falar de filósofas africanas é algo que ainda causa incômodo, já que a maioria dos nomes reivindicados não têm sua formação dentro dessa disciplina. Exceções como Sophie Oluwole (falecida em dezembro de 2018), Nkiru Nzegwu, Betty Wambui e a própria Tanella Boni, não deixam de confirmar essa dificuldade, quando não são citadas e nem lembradas como vozes relevantes. Boni destaca ainda as fronteiras linguísticas que, nas aproximações filosóficas sobre sexualidade e gênero, têm sido extremamente severas, já que os debates têm se desenvolvido em inglês de um modo amplo e multifacetado, mas em francês não acontece algo parecido e o diálogo com outras línguas é ainda menos efetivo. A solução para essa situação está para Boni na escrita, na necessidade de continuar produzindo e problematizando esses temas, já que, quando se olha desde os países do Sul Global, a própria filosofia africana ainda sofre com o silenciamento e a ausência de espaço nos currículos, que repetem de modo acrítico a veneração a tradições eurocêntricas. Para as filósofas africanas vale alimentar a mesma força e autoridade semântica que é algo comum a muitas mulheres africanas, uma dignidade que Boni diz ter porque é onde tudo começa: não pode haver emancipação, nem liberdade, nem justiça se não tivermos primeiro o direito à vida. E esse direito é ameaçado quando se nasce menina. O papel de menino não tem mais valor do que o de menina? Muitas mulheres africanas que desejam ter um filho, e não apenas as que vivem nas áreas rurais, têm inúmeras gestações, muitas vezes em condições difíceis, até que nasça o filho desejado do sexo masculino. O desejo de um filho homem é, a meu ver, uma internalização dos princípios patriarcais pelas próprias mulheres, que involuntariamente participam de sua reprodução. Se uma família aceita o nascimento de uma menina de qualquer maneira, não é porque, desde o momento de seu nascimento, ela já entrou no quadro de uma troca simbólica? A menina vai se casar, e isso será de grande benefício econômico para seus pais” (BONI, 2017, p. 55). 52 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana aprendido com sua mãe:11 “Elas mostram, a cada oportunidade, uma vontade firme de viver e de não se deixar morrer. Assim, ao contrário do que se poderia pensar, toda mulher, onde quer que ela viva, sabe dizer ‘eu’. E para defender os valores e culturas em que ela acredita, que não são necessariamente os de seus pais ou ancestrais; este é um bom sinal” (BONI, 2008, p. 48). Como você define a filosofia africana? Tanella Boni — A questão da filosofia africana não é tão simples assim. Do ponto de vista do reconhecimento dessa filosofia como uma filosofia, nos anos 70, tratava-se de saber se ela existia ou não. Pergunto-me se, cinquenta anos depois, ela será reconhecida como uma filosofia por direito próprio. Por exemplo, que parte ocupa, nos antigos países colonizadores, nos currículos universitários? Na França, uma pequena parte ou nenhuma. Nos países africanos francófonos, ainda busca seu lugar nos currículos universitários, já que uma grande parte dos programas diz respeito aos filósofos ocidentais, desde a antiguidade greco-latina até o século XXI. De que ponto de vista se fala em “filosofia africana”? E a que significado se refere “africano”? É a “África” no sentido geográfico? Ou melhor, no sentido histórico? Na minha opinião, não se pode limitar a um sentido geográfico, pela boa razão de que a África está na história há muito tempo. A África entrou em relações — na maiEm entrevista recente, Boni descreve como sua mãe, que não tinha formação escolar e nunca saiu de seu país, influiu em sua formação, sendo uma inspiração decisiva. Com a mãe, ela aprendeu a cultivar o “respeito pela palavra dada, o que torna a pessoa ‘digna de fé’. Não há contrato em nossa cultura. Para uma transação comercial, um compromisso familiar, é a confiança que conta. E, de fato, minha mãe sabia da importância de ser digna disso. Mas ela também tinha uma capacidade preciosa de distinguir entre as coisas em nossas tradições africanas, de discernir o que nos eleva e o que nos motiva, nós mulheres. Como excisão, poligamia, submissão (...). Ela tinha uma mente crítica e uma sensação de dúvida que transmitiu a mim. É por isso que posso dizer que, até meus estudos de filosofia, minha principal filósofa era minha mãe!”. c. f. <https://www.lacroix.com/Monde/Afrique/Tanella-Boni-LAfrique-cree-pense-imagine-2020-0512-1201093808>. 11 53 Marcos Carvalho Lopes oria das vezes, de forma violenta — com outros continentes, notadamente a Europa e as Américas. Já na década de 1930 do século XX, quando o movimento de negritude nasceu em Paris, ficou claro que aqueles que participaram dele vieram não só da África (como L.S. Senghor), mas também da América e das ilhas (Césaire, Damas, as irmãs Nardal — que não devem ser esquecidas12). Poderíamos falar longamente sobre este “mundo negro” que pensa e se pensa. Mas me contento em mencionar que foi muito ativo no século 20, especialmente em torno da revista e da editora Présence Africaine, a partir de 1947. Portanto, a expressão “filosofia africana” deve levar em conta essa história. Ela inclui as filosofias do continente, mas também das diásporas. Hoje, nas universidades americanas, essa história do pensamento filosófico, ligado de uma forma ou de outra à África, está dividida em African Philosophy, Africana philosophy ou Afro-american Philosophy. Posso dizer que o que é chamado de “filosofia africana” é múltiplo e diversificado e inclui muitos autores que, na maioria das vezes, escrevem nos idiomas coloniais (francês, inglês, espanhol, português), estes idiomas que também podem ser seus próprios idiomas (para aqueles que não têm outro idioma). Eu acrescentaria que os filósofos africanos são “individualidades” que não se assemelham uns aos outros. Portanto, assim como na história da filosofia ocidental existem filósofos que são mencionados pelo nome, pertencentes a um determinado período, também aqui existem filósofos em escolas e períodos. Assim, podese classificar as correntes na história da filosofia africana, que eu vejo como plural e diversa. Como você entrou em contato com a filosofia africana? Creio não ter tido uma formação acadêmica em “filosofia africana”. Tendo concluído todos os meus estudos universitários na França, passei por um curso de filosofia clássica ocidental. Conheci a filosofia africana através de minhas leituras e então conheci alguns Boni tem destacado a importância das irmãs Nardal c.f. BONI, 2014 e espanhol BONI, 2020. 12 54 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana filósofos nos anos 70-80, 90 e posteriormente. Nos anos 80 ou antes, eu tinha conhecido Abdoulaye Elimane Kane, Paulin Hountondji, Aloyse-Raymond Ndiaye, Fabien Eboussi Boulaga (que era meu colega em Abidjan antes de voltar para os Camarões), Alassane Ndaw, Tshiamalenga Ntumba, Elungu Pene Elungu (que também foi meu colega em Abidjan), Lucius Outlaw (norte-americano) Kwasi Wiredu, Sophie Oluwole, Aminata Diaw, Souleymane Bachir Diagne etc., são apenas alguns exemplos. Em Abidjan, meu colega Niamkey Koffi estava ensinando filosofia africana naquela época. E, ao longo dos anos, conheci muitos filósofos na Costa do Marfim, Senegal, Benin ou em qualquer outro lugar, na Europa ou nos Estados Unidos, durante simpósios internacionais. Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está ultrapassada? Parece-me que existem muitas outras questões que surgem hoje. A “filosofia africana”, qualquer que seja a definição dada a ela, deve ser capaz de questionar tudo e todas as situações e fazê-lo de forma crítica. A busca da identidade não desapareceu. Acredito que ela não pode desaparecer por causa dos traumas vividos e do não reconhecimento por outros (e, também, por nós mesmos) de nosso conhecimento e saber prático (savoir-faire). Temos coisas para dizer, para escrever, para propor ao mundo. Trata-se de uma tarefa imensa que deve ser realizada com um forte compromisso de nossa parte. Mas o compromisso também significa um envolvimento muito pessoal com o que somos, com o que acreditamos e pensamos. Pensamos com o que somos, o que temos sido e o que aspiramos ser. Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia africana hoje? Ainda há muito a ser feito, como por exemplo, pensar em Democracia é uma questão urgente, mas quando nós fazemos essa pergunta, tenho a impressão de que ainda estamos nos limitando a 55 Marcos Carvalho Lopes alguns clássicos da história da filosofia ocidental, quando deveríamos estar levando em conta as experiências locais. Reflexões sobre as artes e literatura também são muito importantes, assim como, pensar sobre o lugar do ser humano na sociedade e no mundo. A questão da migração é eminentemente filosófica; tudo acontece como se não tivéssemos lugar no mundo para “viver”. E qual lugar o sujeito-feminino (sujet-femme) na história da filosofia africana: uma questão inescapável na minha opinião. Mas agimos como se a “mulher” como um sujeito que pensa e como um objeto de pensamento não existisse... Há muitas perguntas, desde que tentemos pensar por nós mesmos. Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo (womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia africana aborda as questões relacionadas às diferenças de gênero e identidade sexual? Eu me sentiria tentada a dizer que a filosofia africana não aborda suficientemente essas questões, pelo menos nas universidades de língua francesa. Nas universidades de língua inglesa (em Gana, Nigéria, Quênia, África do Sul etc.) existem departamentos ou institutos de pesquisa que tratam destas questões muito importantes. Muitas pesquisadoras feministas nigerianas que ensinam e trabalham em universidades norte-americanas têm suas próprias teorias sobre as mulheres (estou pensando em Ifi Amadiume, Obioma Nnaemeka, Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí etc.); eles também são numerosos nas universidades nigerianas.13 Também é preciso levar em conta os escritos de romancistas, ensaístas e poetisas. Elas fazem avançar a compreensão do que é uma “mulher”. Em Dakar, Senegal, o CODESRIA também promove a pesquisa sobre gênero e feminismo na África. Entre as escritoras, Na Nigéria, surgiram diferentes denominações de feminismos como mulherismo (womanism), em que é preciso diferenciar a posição de Chikwenye Okonjo Ogunyemi das da norte-americana Alice Walker; stiwanism, de Molara Ogundipe-Leslie; nego-feminismo, de Obioma Nnaemeka. Tais denominações não alcançaram uma convergência dos feminismos africanos (BONI, 2017, p. 54). 13 56 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana gostaria de começar citando Mariama Bâ, que, com Une si longue lettre, mostra como uma mulher, através da escrita, assume o poder simbólico. Acho que o verdadeiro problema aqui é definir o que queremos dizer com “feminismo”. Quais são as ferramentas a serem usadas quando se trata de mulheres africanas e, antes de tudo, para perguntar “o que é uma mulher”? Falar de “gênero e desenvolvimento”, como vem sendo entendido há décadas, não é suficiente. É necessário falar das mulheres como indivíduos (que corpo, que mente, que faculdades, que conhecimentos e saberprático). As mulheres como sujeitos de suas vidas, conhecimentos, aspirações etc. Devemos nos perguntar por que a cultura e a situação particular de cada mulher devem ser levadas em conta. Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é o mais importante em sua opinião? Todos aqueles que conheci são mais ou menos importantes. Quem é o seu filósofo africano preferido? Acho que ainda não o conheci! O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil. Esse também é um problema comum em relação à África de língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma unidade que leve em conta esses espaços? Lembro-me de ter feito uma viagem muito enriquecedora ao Rio em 2007. Foi por ocasião de um Simpósio de filosofia sobre democracia patrocinado pela UNESCO. Eu gostaria de ter ido à Bahia e a outras cidades, mas a oportunidade não surgiu. Percebi quanto africanos e brasileiros têm coisas a compartilhar (especialmente crenças religiosas, culturas, incluindo tradições culinárias); eles deveriam se conhecer melhor, mas existem muitas barreiras 57 Marcos Carvalho Lopes que dificultam o encontro entre eles. Os textos não circulam, especialmente entre a África francófona e o Brasil. Os acordos de cooperação entre universidades, caso existam, não são realmente ativos. A língua é uma verdadeira fronteira que pode ser atravessada através da tradução de textos de ambos os lados. Acho que deveríamos realmente traduzir os textos, pois seria uma forma de ler um ao outro, de nos conhecermos e de podermos discutir. Suzanne Tanella Boni (1954) nasceu em Abidjan, capital da Costa do Marfim. Poetisa, romancista, filósofa e autora de livros infantis, é professora da Universidade Félix Houphouët-Boigny, em Abidjan, e vice-presidente da Federação Internacional de Sociedades Filosóficas (FISP). Também é membro da Academia de Ciências, Artes e Culturas da África e das Diásporas Africanas (ASCAD). Referências BONI, Tanella. The Dignity of the Human Person: On the Integrity of the Body and the Struggle for Recognition. Diogenes, v. 54, n. 3, p. 59-68, 2007. ______. Feminism, Philosophy, and Culture in Africa. In: GARRY, Ann; KHADER, Serene J.; STONE, Alison. The Routledge Companion to Feminist Philosophy. Routledge, 2017. p. 49-59. ______. Femmes en Négritude: Paulette Nardal et Suzanne Césaire. Rue Descartes, n. 4, p. 62-76, 2014. BONI, Tanella; ORDOQUI, Florencia. Mujeres en Negritud: Paulette Nardal y Suzanne Césaire. Estudios de Filosofía Práctica e Historia de las ideas, v. 22, p. 1-15, 2020. MIRANDA, Déborah Alves; MARIZ, Josilene Pinheiro. Liberdade sexual feminina em Aya de Yopougon: uma leitura a partir de três personagens. Antares: Letras e Humanidades, v. 11, n. 22, p. 72-92, 2019. 58 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Sanya Osha e a recontextualização da filosofia africana* Quando comecei a estudar filosofia africana procurei logo tentar compreender quais autores pautavam os debates mais interessantes e que seriam incontornáveis no desenvolvimento atual da área. Dentre os autores que se encaixavam nessas características o ganês Kwasi Wiredu foi um dos que escolhi como referência. Procurei adquirir seus textos e os de comentadores. Dentre essas obras, está o trabalho do filósofo nigeriano Sanya Osha Kwasi Wiredu e Beyond: The Text, Writing and Thought in Africa (2007). Esse texto chamou minha atenção por não se encaixar no tipo de comentário hagiográfico que é comum nas academias brasileiras: Sanya Osha apresentava e se contrapunha a Wiredu, procurava ocupar seu espaço, ter a sua voz dentro do debate. Esse gesto de pensamento que recontextualiza e rearticula as questões, para seguir o jogo de pedir e dar razões dentro da filosofia africana, é algo que se mantém como um traço que a leitura da entrevista a seguir irá reafirmar. Na divisão já clássica de Isaiah Berlin entre as pessoas que na filosofia se mantém como ouriços (defendendo e expandindo uma ideia única) e os que são como raposas (sempre prontos a mudar, farejando novidades), colocaria Sanya Osha na posição de raposa. Mesmo sabendo do reducionismo dessa classificação (acredito que toda raposa tem um pouco de ouriço e vice-versa), ela é suficientemente chamativa para ressaltar a multiplicidade de interesses que os trabalhos do autor abarcam. No livro Postethnophilosophy (2011), o autor parte do reconhecimento de uma ruptura da relação fundamental entre filosofia a antropologia * https://doi.org/10.51795/97865265082685973 59 Marcos Carvalho Lopes que foi encenada pela etnofilosofia, considerando que a complexidade da África contemporânea coloca, dentro do contexto da globalização, novas interrogações que demandam uma reorientação/modificação dos discursos e temáticas. Não basta modificar as temáticas, mas, considerando os questionamentos quanto ao “falogocentrismo” do pensamento ocidental (dialogando com Derrida, Mbembe e Mudimbe), buscar se desviar desses modos de discurso e ampliar o horizonte das autoras e autores com quem se dialoga dentro da filosofia africana. Nesse livro, além das questões de gênero e raça (e suas relações com a raciologia), “os traumas e realidades da colonização, a dinâmica da subjetivação pós-colonial, processos de descolonização, questões de agência e modos de construção do conhecimento em África” (p. XIX). O difícil no caso das raposas é que não podemos facilmente resumir aquilo que farejam: quem lê tem também de afiar seus sentidos para o que o texto possa causar (no mesmo sentido em que o autor se diz afetado por Mudimbe). A troca de e-mails com Sanya Osha virou ela mesma um diálogo que aparece na entrevista adaptada, como uma questão “extra” em que, muito sumariamente descrevo algo do cenário da filosofia africana no Brasil. O texto da entrevista não fala por si só, mas — se funcionar — incita a mais leituras e questionamentos. Vale ressaltar que Sanya Osha começou sua carreira como jornalista e trabalhou como professor de filosofia em diversas universidades da Nigéria, ocupando posições acadêmicas posteriormente na África do Sul, Estados Unidos e Holanda (onde é fellow no Centro de Estudos da África, em Leiden). 60 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Como você define a filosofia africana?14 Sanya Osha — Eu a definiria, antes de tudo, parafraseando a definição de Paulin J. Hountondji em seu famoso livro African Philosohpy: Mito e Realidade, como o conjunto de textos escritos por africanos que se consideram filósofos. No entanto, essa definição em si mesma incorreu na ira de alguns críticos que a consideram muito fechada e restritiva. Deste modo, considero a definição como uma espécie de ponto de partida para iniciar uma conversa sobre filosofia africana com o objetivo de expandir e refinar os limites do diálogo. E então isto pode ser estendido para incluir questões filosóficas que nos preocupam como africanos ao longo do tempo e do espaço. Quais são as questões existenciais importantes com as quais nos confrontamos como africanos e como lidamos com elas filosoficamente e em um contexto espaçotemporal historicamente amplo? A este respeito, há dois tipos de pressão que têm sido exercidas sobre a disciplina. O primeiro tipo deriva das pressões exercidas pelos filósofos africanos sobre si mesmos para demarcar os limites e as orientações da disciplina. O segundo tipo de pressão provém de um estímulo externo. Sendo a África um continente em desenvolvimento, espera-se que os filósofos façam parte do esforço geral para desenvolver suas sociedades e, ao fazê-lo, são obrigados a examinar os parâmetros de sua disciplina para discernir como de fato estão sendo filosóficos ou fracassando. Mas talvez mais importante ainda, como eles podem ser considerados pessoas que auxiliam no desenvolvimento de suas sociedades? Sem dúvida, esses dois tipos de pressão há muito têm pautado a autodefinição da/do filósofa/filósofo africano e seu(s) papel/papéis na sociedade. Durante muito tempo, a questão fundamental da filosofia africana foi que “o que ela é?” ou “ela existe?” Uma quantidade A tradução do texto sofre com o determinismo de gênero da língua portuguesa. Em muitos contextos em que no original havia palavras neutras, não encontramos solução em português. É o caso da palavra “philosopher” que ao ser traduzida como filósofo traz todas as implicações deste determinismo de gênero. 14 61 Marcos Carvalho Lopes surpreendente de literatura tem sido produzida lidando com essa interrogação fundacional e, ao abordá-la, surgiram tendências específicas na disciplina. De forma mais instrutiva, os contornos das orientações futuras podem ser discernidos agora. A filosofia africana como disciplina abordou uma infinidade de aspectos históricos e de questões da vanguarda acadêmica, numa tentativa de se afirmar e assegurar sua contínua relevância. Alguns desses tópicos incluem, mas não estão limitados à Democracia e à questão dos Direitos Humanos, comunitarismo, universais e particulares, feminismos africanos, cultura intelectual pública, sexualidade e sistemas de conhecimento endógeno. Vários filósofos africanos e africanistas abordaram estes importantes tópicos com uma notável pletora de perspectivas metodológicas. Como tal, houve um extenso alargamento dos parâmetros disciplinares da filosofia africana para incluir quase todas as tendências acadêmicas contemporâneas. Embora eu deva acrescentar que esse aspecto difuso pode se tornar problemático se a(s) questão(ões) fundamental(is) da filosofia africana for(em) completamente ignorada(s). Como você entrou em contato com a filosofia africana? Eu entrei em contato com a filosofia africana basicamente desde meu primeiro ano como estudante de filosofia na Universidade de Ibadan, Nigéria. O falecido Professor Olusegun Oladipo, que fez a passagem em 2009, foi meu professor e mais tarde se tornou um colega na mesma universidade. Ele ministrou cursos de filosofia africana nos quais foram discutidos filósofos como Kwasi Wiredu, Paulin Hountondji, Henry Oruka e Claude Sumner. O próprio Wiredu havia sido professor no departamento no início dos anos 80 e sua imensa sombra pairava naquele espaço. Oladipo também publicou um livro fino, mas importante, sobre filosofia africana intitulado The Idea of African Philosophy, que foi lançado em 1992, no mesmo ano de publicação do livro de Kwame Anthony Appiah In My’Father's House: Africa in philosophy of culture. Tive a grande oportunidade de ler as 62 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana provas de partes do livro de Oladipo que me atraíram tremendamente. Oladipo, através dessa importante oportunidade de revisão, foi capaz de demonstrar como um filósofo africano nos tempos contemporâneos deveria abordar a filosofia. Minhas conversas com ele também me permitiram entrar no funcionamento de sua mente, nos dilemas e desafios que ele enfrentou ao confrontar a filosofia a partir de uma perspectiva africana. Ele revelou que se sentiu inicialmente alienado pela tradição da filosofia ocidental e descreveu sua jornada ao formular questões filosóficas em chave africana. De repente, a filosofia não parecia mais tão intimidadora. Posteriormente, tive outras oportunidades de trabalhar com ele, o que me permitiu afiar ainda mais minhas perspectivas sobre a filosofia africana. Talvez eu devesse acrescentar que Oladipo também editou e publicou um volume de ensaios de Wiredu intitulado Conceptual Decolonization in African Philosophy,15 que eu revisei para um jornal de filosofia e que acabou me fornecendo a inspiração para minha tese de doutorado sobre o filósofo ganense. Tal exposição e treinamento provaram ser imensamente benéficos para mim. Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está ultrapassada? Não creio que seja um tema totalmente ultrapassado. Nos últimos anos, a filosofia africana ganhou um tremendo impulso conceitual e teórico, no qual suas fronteiras também se deslocaram radicalmente. Obviamente, alguns puristas ficariam consternados com este desenvolvimento e é realmente fácil para a disciplina perder o foco ou seus ancoradouros fundacionais e por isso é necessário continuar a interrogação acerca de sua raison d’etre e das várias realidades e possibilidades em relação a sua identidade. Temos sempre que nos assegurar quanto a seus pontos de origem, WIREDU, Kwasi; OLADIPO, Olusegun. Conceptual Decolonization in African Philosophy. Four Essays. 1995. 15 63 Marcos Carvalho Lopes objetivos e intenções, mesmo quando embarcamos em novas buscas e questões filosóficas. A própria natureza do empreendimento filosófico exige que façamos e reestruturemos essas perguntas fundamentais para determinar onde estamos agora, onde queremos estar e onde deveríamos estar. A localização de nossas amarras fundacionais nos ajudará a alimentar nossas deliberações com novos insights. Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia africana hoje? Hoje, há uma variedade quase infinita de perguntas que preocupam os filósofos africanos, a julgar pela pesquisa que está sendo realizada atualmente. Parece que os filósofos africanos idealizariam uma abordagem filosófica para qualquer questão social, política ou cultural enfrentada por uma determinada sociedade. Há uma tendência para utilizar novos conceitos, metáforas e metodologias na abordagem de uma grande variedade de questões epistemológicas. Há também uma luta evidente para entronizar novos heróis filosóficos, uma luta para estabelecer novos modos de pensar e abordagens filosóficas. Em muitos aspectos, tudo está em um estado de fluxo epistêmico. As possibilidades conceituais parecem ser infinitas, mas o potencial de sérios reveses e desventuras também é enorme, porque esta é uma época em que o populismo acadêmico barato e a decadência disciplinar poderiam criar raízes e florescer. Seria fácil equiparar esse florescimento discursivo aos debates fundacionais que assistiram ao nascimento da filosofia africana moderna na era de Wiredu, Peter O. Bodunrin, Oruka e Hountondji cerca de cinquenta anos atrás. A diferença é que, desta vez, o campo é muito mais amplo e há tantos jogadores de diferentes credenciais e capacidades, todos ativos no mesmo espaço, de modo que há muito mais oportunidades para charlatães e impostores se manterem firmes. Outra característica da filosofia africana contemporânea é que ela se tornou muito mais ampla em seu escopo e mais internacionalista 64 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana em sua visão. Há norte-americanos e europeus ativamente engajados na filosofia africana e, portanto, pode-se apontar para o declínio de sua insularidade, se pudermos descrever isso sem rodeios. Mais uma vez, esse desenvolvimento se refere ao estado de fluxo que mencionei anteriormente. Há um impulso evidente para empurrar os limites da disciplina no que se assemelha a uma corrida ao ouro, onde tudo está à mão. Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo (womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia africana aborda as questões relacionadas às diferenças de gênero e identidade sexual? Acho que esse é um debate que teve maior impacto nas áreas de estudos de gênero, estudos africanos ou talvez sociologia e antropologia cultural. Os principais nomes nestes debates são: a falecida Molara Ogundipe-Leslie, Oyeronke Oyewunmi, Ifi Amadiume, Amina Mama e Nkiru Nzeogwu. Portanto, a maioria dentro desse grupo não são filósofos em si, mas seu trabalho tem sido altamente influente e tem um significado filosófico considerável. No entanto, há filósofos africanos (geralmente do sexo feminino) conduzindo pesquisas sobre esses temas e outros semelhantes. Além disso, os filósofos africanos também estão trabalhando nas áreas de mutilação genital feminina, relações entre pessoas do mesmo sexo e outras preocupações relacionadas. Portanto, pode-se argumentar que, atualmente o debate feminismo/mulherismo está sendo substituído — ou pelo menos completado — por outras preocupações de pesquisa, mesmo quando essas preocupações são de natureza semelhante. Sobre a segunda parte de sua pergunta, como os filósofos africanos abordam questões relacionadas a gênero e identidade sexual? Essa área de pesquisa é apenas uma das muitas que os filósofos africanos enfrentam atualmente. Portanto, ela depende dos filósofos envolvidos e de seus interesses específicos de pesquisa. E há opiniões diferentes sobre esse tópico como seria de se esperar. 65 Marcos Carvalho Lopes Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é o mais importante em sua opinião? Obviamente, essa é uma questão muito controversa. Eu não conheci muitos grandes filósofos africanos pessoalmente, mas eu me inspirei profundamente no trabalho da maioria deles. Um dos mais importantes filósofos africanos tem que ser Wiredu, simplesmente por sua abordagem metodológica poderosamente sucinta. Ele não é exatamente um filósofo da moda, mas certamente é um dos mais influentes pensadores do final do século XX, a julgar pela enorme quantidade de estudiosos da filosofia, particularmente na África Ocidental e Oriental, que foram influenciados por sua abordagem. Wiredu tenta criar uma síntese entre a modernidade e a cultura tradicional africana, empregando ideias empíricas concretas. É uma abordagem quase absurdamente simples, mas também cheia do máximo de pragmatismo, em outras palavras, uma abordagem que só poderia ter sido concebida em um momento de surpreendente clareza conceitual. Eu poderia imaginar que Wiredu estivesse pensando em como colocar as sociedades africanas em movimento nesta “era de descolonização”? Como a filosofia pode sair de sua posição arrogante e sujar as mãos? Até certo ponto, sua abordagem implicou uma desmistificação da filosofia, a fim de garantir sua contínua relevância social. Há muitos pensadores africanos com mentes brilhantes e percepções impressionantes sobre a condição africana, mas esses por si só não constituíram um método filosófico viável e seguindo esse critério, penso que apenas Wiredu e talvez alguns poucos filósofos façam parte desse grupo. As abordagens desenvolvidas na filosofia da sagacidade (sage philosophy) parecem constituir outro método filosófico, enquanto a etnofilosofia, em consequência da crítica feroz de Hountondji, é frequentemente desvalorizada. Entretanto, a etnofilosofia, nas mãos dos filósofos e não dos antropólogos, pode desfrutar de uma revitalização e sua preocupação central com o conhecimento endógeno, um foco principal 66 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana das reflexões de Hountondji no final da carreira, faz dela (etnofilosofia) uma candidata a um renovado escrutínio filosófico. A afrocentricidade de Cheikh Anta Diop e Molefi Kete Asante tem atributos filosóficos interessantes, mas também implica um domínio de uma grande variedade de especialidades acadêmicas. Não se destina aos preguiçosos ou aos covardes (faint-hearted). Em outras palavras, é composto de várias visões conceituais que envolvem um trabalho intelectual estratégico e tático meticuloso. E talvez seja por isso que essa abordagem parece ser menos favorecida entre os filósofos africanos contemporâneos, mesmo que sua atração ideológica e seu significado sejam, em grande parte, incontestáveis. A afrocentricidade, cujo desenvolvimento é um pouco semelhante à filosofia da ancestralidade no Brasil — em termos de sua intenção de efetuar uma descontinuidade radical com a [filosofia] moderna e não com a [filosofia] Antiga [na sua] tradição ocidental —, não é frequentemente considerada um ramo poderoso da filosofia africana porque os pioneiros modernos, como Wiredu, Hountondji, Oruka e Kwame Gyekye e outros dessa geração, preferiram se dedicar à filosofia como uma empresa pós-Kantiana ou como uma disciplina universalista e, talvez também, sem se envolverem com a bagagem de racismo da disciplina [1] para assegurar a profissionalização de suas práticas, [2] para impulsionar as supostas credenciais científicas — seguindo a prescrição de Hountondji — de seus métodos. E finalmente, há a questão das fronteiras e limites. A noção pré-socrática de filosofia, comparativamente falando, é muito mais ampla do que a concepção pós-Kantiana, que a maioria dos modernistas africanos herdou do colonialismo. A noção pré-socrática era dominante na África antiga e em sua concepção mais purista atual só pode ser praticada por dissidentes e acadêmicos outsiders, então, talvez isso a torne menos atraente. Além disso, essa noção incrivelmente expansiva de filosofia não se conforma prontamente com as numerosas restrições disciplinares da academia moderna. Em terceiro lugar, poderia ser terrivelmente 67 Marcos Carvalho Lopes demorado e dispendioso de ser perseguido. E então os africanos pós-libertação (com exceção dos ex-Rodesianos e sul-africanos) talvez estivessem menos expostos aos malefícios e toxinas do racismo. Isso provavelmente tornou a disciplina de filosofia como um todo menos suspeita racialmente. Até hoje no Brasil, apenas uma tese de doutorado defendida em departamentos de filosofia teve como tema a filosofia africana. Nunca houve uma cátedra dedicada a filosofia africana. Isso é sintoma de uma situação disciplinar que continua, na prática, desqualificando essas temáticas. A maioria das pessoas que se dedica a filosofia africana o faz em departamentos de Educação (principalmente na filosofia da educação) e às vezes em departamentos de Antropologia. Em geral, essas abordagens sofrem de um problema comum aos estudos africanos desenvolvidos na diáspora: as questões locais de luta contra o racismo, busca de identidade e perspectivas afro-brasileiras se sobrepõe a qualquer abordagem do continente. Concomitantemente ao surgimento de uma legislação que tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena nas escolas públicas, surgiu a demanda por uma perspectiva filosófica que abarcasse esse amplo espectro. Nesse sentido, a proposta de uma filosofia da ancestralidade, que abarcaria todos os povos ligados a heranças ancestrais, tem ganhado espaço. De fato, o candomblé, em seu desenvolvimento, justapôs em um mesmo espaço (os terreiros), diversos orixás e divindades indígenas. A filosofia da ancestralidade é, em sua maioria, desenvolvida por pessoas vinculadas às religiões afrobrasileiras. É uma perspectiva muito recente para ser descrita de uma forma viável, mas o conceito de ancestralidade parece ser uma ferramenta interessante no contexto brasileiro. Outra proposta, ainda no espírito de atender a essa legislação, foi a de uma junção do perspectivismo ameríndio, de Eduardo Viveiros de Castro; a afrocentricidade, de Molefi Asante e o quilombismo 68 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana de Abdias Nascimento, formando uma afroperspectiva (proposta de Renato Noguera). Não sei se você já ouviu falar de Abdias Nascimento, mas ele é o grande nome da filosofia afro-brasileira do século passado e um precursor incontornável de todas as correntes contemporâneas de filosofia africana no Brasil. Ele criou uma companhia de teatro negro no Brasil nos anos 40, defendeu políticas públicas de reparação e cotas raciais, denunciou, no começo da década de 70, o genocídio da população negra feito pelo Estado brasileiro... ele viveu nos EUA nos anos 70 e por um período na Nigéria. Nos EUA, conheceu e ficou amigo de Molefi Asante, trabalhando na mesma universidade. Curiosamente, no mesmo ano de 1978, Asante lançou o conceito de afrocentricidade e Abdias sua ideia do quilombismo. Abdias teve uma grande atuação política, sendo eleito senador e trazendo questões raciais para a agenda pública. Ele foi reconhecido como Doutor Honoris Causa em várias universidades, mas isso não significou que sua obra tivesse uma recepção ou aceitação tão eloquente na academia. Quilombismo e a afrocentricidade são mesmo parentes próximos. É claro, eu conheço Abdias Nascimento. Seu colega, Wole Soyinka, da Universidade de Ife (agora Universidade Obafemi Awolowo), Nigéria, o chamou de “o Rottweiler da afirmação cultural africana no Brasil”, em seu livro Of Africa, publicado pela Yale University Press em 2012. Ele também foi entrevistado por Henry Louis Gates Jr. em sua série de televisão sobre negros na América Central e do Sul. Sei que Nascimento retornou ao Brasil após sua carreira acadêmica nos Estados Unidos (na SUNY, para ser mais preciso) e teve uma carreira de sucesso como político. Mas nunca soube que ele conviveu com Molefi Kete Asante nos Estados Unidos quando ambos trabalhavam na SUNY. Interessante... Também é interessante notar que Nascimento começou sua carreira como profissional de teatro e depois se ramificou em outras áreas de estudo acadêmico. Mas eu também não tinha ideia de que ele era crucial para estabelecer o conceito de ancestralidade como um tropo chave na filosofia afro-brasileira. Seu homólogo acadêmico 69 Marcos Carvalho Lopes na Nigéria a esse respeito seria Wande Abimbola, um renomado defensor da espiritualidade Orisa, um acadêmico que também trabalhou extensivamente nos EUA, particularmente na Universidade de Boston depois de servir como vice-chanceler da Universidade Obafemi Awolowo, onde Nascimento tinha trabalhado. Outro paralelo interessante é que Abimbola foi um visitante frequente no Brasil, onde continuou fortalecendo os laços culturais com os Nagos e promovendo a espiritualidade Orixá (como vocês escrevem no Brasil). Abimbola também foi por um breve período senador na Nigéria durante o fim do governo militar, entre o final da década de 1980 e o início da década de 1990. Abimbola publicou livros amplamente citados sobre a espiritualidade Orixá, notadamente os volumes que ele lançou através da UNESCO, por volta de 1976. Mas sua obra não teve o mesmo impacto nos círculos filosóficos nigerianos ou africanos e ele não é considerado um filósofo da mesma forma que Nascimento é considerado nos círculos filosóficos afro-brasileiros porque os filósofos profissionais na África Ocidental seguiram uma trajetória diferente que não tinha muito em comum com filosofias que se assemelhavam à ancestralidade, quilombismo e afrocentricidade, em grande parte devido a direção diferente tomada pelo trabalho de Wiredu e seus outros colegas da África Ocidental. Estou feliz por estarmos tendo essa conversa específica. Ela está trazendo à tona perspectivas aparentemente marginais do que poderia vir a ser um ponto central... podemos notar mais paralelos entre o Brasil e a África. Quem é o seu filósofo africano preferido? Novamente essa é outra questão polêmica. Eu admiro muitos filósofos africanos por uma variedade de razões. Penso que seria útil ligar essa pergunta com a anterior. Imagino que meu filósofo africano favorito também deveria ser capaz de exercer influência considerável sobre a direção futura da disciplina. O ideal seria que meu filósofo africano favorito servisse como um desbravador de caminhos, um abridor de portas, um pioneiro. Talvez me divirta 70 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana um pouco com isso. Wiredu é simplesmente magnífico, mas será que sempre o acho agradável? Eu responderia que não. Isso não por razões de brilho decrescente ou lapsos de lógica, mas porque sua coerência conceitual infalível às vezes parece boa demais para ser verdade. Mas, no entanto, eu nunca me esquivaria de afirmar seu considerável impacto e influência. Tenho sentimentos sedutoramente ambivalentes em relação ao trabalho de V.Y. Mudimbe, que muitas vezes se revelam extremamente produtivos. Seu trabalho me dá a sensação de mergulhar em um banho gelado. Através de sua espantosa erudição acadêmica, ele é um instigador de pensamentos agitados e os efeitos que cria nunca são de natureza leve. Ele tem o efeito de te lançar para uma viagem indisciplinada, uma viagem da qual se você conseguir voltar, nunca mais será o mesmo. Tal é a natureza contraditória dos poderosos efeitos que ele tem sobre mim. Devo acrescentar também que a força de Mudimbe está em ser capaz de extrair significado filosófico de uma grande variedade de textos, sejam eles antropológicos, artísticos, arqueológicos ou literários. Não é uma abordagem metodológica que seja fácil de seguir, mas que lhe serve bem na construção de sua prática. Assim, nos termos específicos da sua pergunta, é difícil dar uma resposta sucinta porque diferentes filósofos africanos me afetam de forma diferente e eu uso seu trabalho para diferentes propósitos, dependendo do que estou procurando. O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil. Esse também é um problema comum em relação à África de língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma unidade que leve em conta esses espaços? Sim, eu pensaria que o fator linguístico seria responsável por grande parte da suposta falta de conexão cultural. Mas então o 71 Marcos Carvalho Lopes impulso imperial brasileiro também é muito menor do que o da França, dos Estados Unidos e do Reino Unido, por exemplo. Curiosamente, a África Ocidental mantém grande parte da influência cultural brasileira ainda nos dias de hoje. Existem bairros afro-brasileiros espalhados por toda a costa da África Ocidental, particularmente nas cidades de Lagos, Porto-Novo, Cotonou, Quidah, Grand Popo, Agoue, Lome, Savi e Allada. A presença de famílias afro-brasileiras de Santos, Reis, Assumpção, Cruz, Pedro, Antonio, Oliveira, Souza, Fernandez, Pereira, Medeiros, Gomez, da Costa, da Silva, da Rocha e Augusto atestam a presença brasileira evidente nos municípios costeiros e cidades da África Ocidental. Os negros brasileiros que se rebelaram contra a escravidão no Brasil entre 1830 e 1835 às vezes retornaram à África Ocidental e foram capazes de criar uma cultura distinta completa, com festivais, corporações e redes profissionais, uma cultura culinária saborosa e grandes marcos arquitetônicos. Em Lagos, Nigéria, essa manifestação cultural e seu povo são chamados de Aguda. Assim como o candomblé no Brasil e a Santeria em Cuba são derivados da espiritualidade Orisa, a cultura Aguda também é afro-brasileira. Essa fertilização cruzada de culturas tem ocorrido sem coerção ou violência indevidas, o que por si só é um traço arraigado da espiritualidade Orisa. A espiritualidade Orisa é simplesmente capaz de atrair seus convertidos e acólitos sem a necessidade de colonizar, matar e mutilar. Eu iria ainda mais longe para afirmar que a cultura afro-brasileira na África Ocidental, ao contrário das religiões mundiais agressivas do Islã e do Cristianismo, funciona como a espiritualidade Orisa ou Ifa e talvez por isso sua influência tenha sido menos hegemônica ou menos difundida, mas isso não significa que ela não exista ou que não tenha transformado vidas de maneiras muito significativas. Eu, por exemplo, admiro muito a cultura afro-brasileira na África Ocidental. Talvez diversos governos brasileiros tenham estado muito menos dispostos a carimbar a marca brasileira na África. Devemos lembrar que os EUA, Reino Unido, Holanda, Alemanha e França têm programas elaborados de intercâmbio cultural em toda a 72 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana África e são bastante visíveis e também influentes. Nesse sentido, o Brasil é muito menos visível e influente. Em vez disso, a polinização transcultural entre a África e o Brasil parece ocorrer como resultado dos esforços de indivíduos e iniciativas privadas com pouco ou nenhum apoio institucional. Digo isso geralmente sobre a marca cultural brasileira na África Ocidental, onde residem muitos afrodescendentes brasileiros, mas isso também poderia ser aplicado para explicar a escassez de trocas intelectuais entre filósofos africanos e brasileiros. As possibilidades de propagação do imperialismo na África são perigosamente grandes. Os Estados Unidos, França, China, Índia, Rússia, Turquia, os Emirados Árabes Unidos (EAU) têm formas variadas de presença militar em diferentes partes da África e não devemos descartar as implicações culturais deste desenvolvimento. Em outras palavras, não devemos ignorar os atributos convincentes do poder suave do qual a cultura e suas variadas manifestações são parte integrante. Nem Portugal nem Brasil são mencionados nesta nova disputa pela África. É claro que não é que eu esteja justificando este novo surto intrusivo, mas estou apenas aludindo a ele na tentativa de dar uma explicação a sua pergunta. Sanya Osha é autor de várias obras como scholar e pesquisador do Centro de Estudos da África, Leiden, Holanda. Desde 2002, ele faz parte do Conselho Editorial da Quest: An African Jornal of Philosophy/Revue Africaine de Philosophie. Seus livros incluem, Kwasi Wiredu e Beyond: The Text, Writing and Thought in Africa (2005’, Ken Saro-Wiwa's Shadow: Politics, Nationalism and the Ogoni Protest Movement (2007), Postethnophilosophy (2011) e African Postcolonial Modernity: informal subjectivities and the democratic consensus (2014). Outras publicações importantes incluem Truth in Politics (2004), co-editado com J. P Salazar e W. van Binsbergen, e African Feminisms (2006) como editor. Seu livro mais recente é o Afrikology de Dani Nabudere: A Quest for African Holism (2018). 73 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana 74 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Mechthild Nagel e a Ética Ubuntu aplicada à Justiça* Dois exemplos de procedimentos jurídicos, o primeiro no Quênia e o segundo na África do Sul (no contexto de reconstrução do país no pós-apartheid) servem de mote para uma aproximação que visa pensar o que seria uma ética ubuntu. A grande controvérsia jurídica em torno do funeral do famoso advogado queniano S.M. Otieno (Silvano Melea Otieno) se arrastou por 5 meses: de sua morte em 20 de novembro de 1986 até seu sepultamento em 27 de maio de 1987, a justiça queniana vivenciou um debate que acirrou os ânimos de toda a sociedade do país. S. M. Otieno era Luo, enquanto sua esposa, Wambui Otieno, era Gikuyu; os dois tinham um elevado grau de instrução, fazendo parte de uma burguesia queniana que se ocidentalizou, distanciando-se das identidades étnicas e de seus valores. Após a morte do marido, Wambui Otieno decidiu que seu corpo seria enterrado na fazenda do casal. Mas essa decisão feria a dinâmica social da sociedade Luo, e o irmão mais velho do falecido e todo o seu clã Umira Kager reclamaram o direito de realizar o enterro em seu território. O funeral entre os Luo é um ritual de extrema importância, por estabelecer a conexão entre mortos e vivos, de tal modo que, a não realização de modo adequado do sepultamento poderia causar um desequilíbrio que geraria prejuízos para toda comunidade. Neste caso, as crenças e os costumes do direito consuetudinário entravam em conflito com a configuração Ocidental de toda estrutura legal herdada do sistema colonial. Depois deste longo período de embates, a Suprema Corte decidiu em favor do direito costumeiro (consuetudinário) e o corpo de S. M. Otieno foi enterrado entre os Luo. * https://doi.org/10.51795/97865265082687581 75 Marcos Carvalho Lopes Em 1993, a norte-americana Amy Biehl tinha 26 anos e era estudante de Stanford, quando foi assassinada na África do Sul. Ela, uma mulher branca, levava amigos negros para o bairro de Gugulethu, na Cidade do Cabo. Um grupo de militantes do movimento pan-africanista, que na luta contra o apartheid tinham como slogan “Um Colono Uma Bala”, ao verem uma mulher branca em seu território explodiram numa onda de fúria e violência. Quatro pessoas foram condenadas pela morte de Amy Biehl. Em 1996, diante do Comitê de Justiça e Reconciliação, pediram anistia e relataram sua participação no assassinato, contextualizando-a com sua militância na luta pan-africanista. Em 1997 os pais de Amy compareceram ao tribunal e testemunharam na audiência, falando em apoio à reconciliação e ao diálogo. No ano seguinte o tribunal determinou que eles seriam soltos depois de cumprirem 5 anos de detenção. Dois dos homens que assassinaram Amy foram conhecer os pais de Amy e pediram que estes os adotassem para suprir a ausência da filha (uma prática comum de justiça em diversas culturas indígenas é que o conselho de anciões decida que para expiar um assassinato se solicita que a pessoa passe a morar com a família da vítima). Estes dois jovens — Easy Nofemela e Ntobeko Peni — foram contratados pela Fundação Amy Biehl (que desenvolve diversas obras sociais em Gugulethu, atendendo a mais de 1500 crianças). Na cerimônia pelos 20 anos do assassinato, Molefema acompanhou Linda Biehl, a quem chama de “Makulu”, palavra que em xhosa quer dizer avó ou mulher sábia.16 Sobre essa convivência e o perdão, Linda Biehl declarou “eu os perdoei (…) Todos os dias eu acordo e minha filha está morta. A maioria dos dias eu acordo e tenho que ficar cara a cara com seus assassinos. Algumas vezes, tenho que perdoá-los novamente”. (citado em: TUTU, Desmond e TUTU, Mpho A. O livro do perdão. Trad. Heloísa Leal. 4ª ed. Rio de Janeiro: Valentina, 2017, p. 62) Amy Biehl legacy: Reconciliation that spans generations – Orange County Register (ocregister.com) 16 76 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Nesses dois exemplos, temos práticas de justiça em que se levam em conta dimensões geralmente desconsideradas pelo pensamento ocidental: no primeiro caso, as conexões espirituais e rituais com os antepassados; no segundo, que nenhuma punição seria capaz de restaurar a vida em comum e a harmonia pessoal e social. Ambos os exemplos podem ser identificados como parte de uma ética em que a interdependência humana se sobrepõe a perspectivas individualistas, na direção de uma ética Ubuntu, articulada a partir de diversas práticas que se articulam na expressão em Nguni “umuntu ngumuntu ngabantu” (alguém somente é humano através de outros seres humanos ou um ser humano é um ser humano através da alteridade de outros seres humanos). Como a ética ubuntu poderia ser articulada para transformar o sistema de justiça? A professora Mechthild Nagel — alemã radicada nos EUA — é uma abolicionista penal que procura utilizar a ética Ubuntu como uma chave para questionar o sistema penal e promover uma transformação ampla na justiça. Professora na State University of New York (SUNY Cortland), nos Estados Unidos; é diretora do Center for Ethics, Peace, and Social Justice (CEPS) e editora da revista Wagadu. Nagel tem desenvolvido uma abordagem da Ética Ubuntu, problematizando aproximações e apropriações do termo que o fariam perder especificidade (como um cosmopolitismo africano) ou cair nas armadilhas de um ethos masculino, perdendo sua dimensão feminina de cuidado. A autora também chama atenção para a necessidade de considerar a dimensão religiosa do termo, faz isso, por exemplo, citando esta descrição: “Para o ocidental, a máxima “Uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas” não tem conotações religiosas óbvias. Provavelmente ele/ela a interpretará apenas como um apelo geral para tratar os outros com respeito e decência. Entretanto, na tradição africana, esta máxima tem um significado profundamente religioso. A pessoa que deve se tornar “através de outras pessoas” é, em última análise, um ancestral. E, da mesma forma, estas “outras pessoas” incluem os antepassados. Os antepassados são 77 Marcos Carvalho Lopes uma família estendida. Morrer é, em última instância, um retorno ao lar. Portanto, não somente os vivos devem compartilhar e cuidar uns dos outros, mas os vivos e os mortos dependem uns dos outros.” (Van Niekerk, 1994, p. 2; Ndaba, 1994, p. 13-14, citado em Louw, 1998; re-citado por NAGEL, 2013, p. 179). A ética ubuntu, além de servir para o questionamento e a busca de alternativas para as práticas de encarceramento em massa, traria consigo uma problematização mais ampla da noção de justiça, que iria “além de julgar conflitos, o que incluiria demandas para desmantelar estruturas de poder que favorecem a elite de um por cento sobre os noventa e nove por cento da base, em todos os aspectos da sociedade. Esse realmente pode ser um ideal pelo qual vale a pena lutar (pacificamente) e significaria o fim da punição” (NAGEL, 2013, p. 186). Nesse sentido, caminha numa direção convergente aos trabalhos de, por exemplo, Sérgio São Bernardo e de outros que tem buscado articular essa aproximação com formas africanas de conceber a justiça. Recentemente, Mechthild Nagel desenvolveu o conceito de Ubuntu lúdico, pensando em formas de resistência como a Capoeira ou de Beyonce cantando “Formation” no Superbowl, de 2016: na malícia, na mandinga, na canção, no jogo se aprendem formas de reconstruir comunidade e resistir com alegria e força. Haveria um aprendizado na transição da justiça como vingança e violência, que nega o outro; das formas de ressentimento que buscam o ressarcimento de um débito ou uma exclusão; não bastaria o perdão e a reconciliação de uma justiça restaurativa, mas há a necessidade de uma justiça transformativa, reconhecendo a interconexão, alimentando o amar ao que é e abrindo espaço para o alívio lúdico (NAGEL, 2014). Atualmente ela escreve um livro sobre Ubuntu lúdico e Black Lives Matter. A entrevista a seguir foi um “jogo rápido” em que a autora não deixou de dar algumas pistas de seu modo – como uma mulher branca europeia que vive nos EUA – de abordar a filosofia africana. 78 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Como você define a filosofia africana? Mechthild Nagel — Eu aprecio a filosofia Africana (Africana philosophy),17 portanto, a Bahia certamente faz parte dessa dimensão (diaspórica). Como você entrou em contato com a filosofia africana? Através de estudiosos africanos. Especialmente Emmanuel Chukwudi Eze (1963-2007). Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está ultrapassada? Bem, qualquer coisa que mencione Placide [Tempels], eu gostaria apenas de jogar fora. Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia africana hoje? Não estou tão qualificada para discutir isso, dada minha perspectiva “de fora”, como uma mulher branca (da Europa, vivendo nos EUA). Mas eu certamente sei que não é a busca em relação a existência de algo chamado filosofia africana. Essa é uma questão racista/colonial. Meu próprio campo é bastante estreito e se cruza com os estudos de ciência social/justiça crítica. Minha pergunta de pesquisa é o que “nós” (no contexto anglo-americano) podemos aprender com a resolução de conflitos/práticas de paz indígenas africanas para que nos despojemos do sistema prisional primitivo. A Africana philosophy inclui as contribuições do continente e dos povos africanos na diáspora. Deste modo abarca a African philosophy, que se refere ao continente africano. Não encontrei uma solução para tradução destes termos, preferindo indicar qual foi usado. 17 79 Marcos Carvalho Lopes Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo (womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia africana aborda as questões relacionadas às diferenças de gênero e identidade sexual? A análise interseccional não é tão bem desenvolvida em conversas filosóficas. Recebo mais inspiração sobre esse tema das sociólogas africanas e das feministas negras americanas. Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é o mais importante em sua opinião? [Emmanuel] Eze realmente animou algumas das discussões e “escreveu de volta”, ou “estudou” – escrevendo uma grande crítica a Kant. Qual é o seu filósofo africano preferido? Agora, dada minha pesquisa em Ética Ubuntu, é Mogobe Ramose. O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil. Esse também é um problema comum em relação à África de língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma unidade que leve em conta esses espaços? Esta é uma pergunta geral sobre os cânones de descolonização e as editoras, assim como sobre as práticas das revistas. (Eu sou editora de Wagadu,18 e publicamos resumos em português). Também escrevi sobre Capoeira e adoraria viajar um dia para a Bahia. Estudo práticas de resistência e a Capoeira é um exemplo inspirador do que eu chamo de práticas Ubuntu Lúdicas.19 <https://sites.cortland.edu/wagadu/> NAGEL, MECHTHILD “Chapter six black Athena and the play of imagination Nagel”. In: Transnational Trills in the Africana World, 2019. p. 131. 18 19 80 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Mechthild Nagel alemã radicada nos EUA — é professora de filosofia e african studies na State University of New York (SUNY Cortland), nos Estados Unidos; é diretora do Center for Ethics, Peace, and Social Justice (CEPS) e editora da revista Wagadu. É uma abolicionista penal que procura utilizar a Ética Ubuntu como uma chave para questionar o sistema penal e promover uma transformação ampla na justiça. Atualmente está escrevendo um livro intitulado Rethinking Indigenous Justice: Towards a Ludic Ubuntu Ethics para a série Studies in Penal Abolition and Transformative Justice da editora Routledge (com lançamento previsto para 2022). Site pessoal: <https://web.cortland.edu/nagelm/>. Referências NAGEL, Mechthild. An Ubuntu Ethic of Punishment. In: NAGEL, Mechthild E.; NOCELLA II, Anthony J. The End of Prisons. Brill Rodopi, 2013. p. 177-186. ______. Ludic Ubuntu: An appeal toward transformative justice. SSRN Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2637042 ou http:// dx.doi.org/10.2139/ssrn.2637042 (November 1, 2014). ______. Ludic Ubuntu in the Search for Transformative Justice. In: ASA 2017 Annual Meeting Paper, 2017. 81 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana 82 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Delphine Abadie e a África como caminho de reconstrução da filosofia* No dia 9 de janeiro de 2021 a lei 10.639, que determinou o ensino de História e cultura africana e afro-brasileira no ensino fundamental e médio, completou 18 anos. E o que essa lei significou para o campo da filosofia no Brasil? A resposta pode contemplar algumas iniciativas e criar um otimismo indulgente com o que já foi feito, mas isso seria uma forma de autoilusão que não é produtiva. A forma de inclusão da filosofia africana no Brasil é decepcionante – embora o mote da descolonização tenha se tornado um lugar comum. Pouco adianta chamar uma mulher negra para falar de filosofia africana em novembro, se esse conteúdo permanece como um exótico safari intelectual de fim de ano. Esse espaço, tomado como a abertura para vozes que se articularam em outros departamentos de pós-graduação (porque na filosofia não existe espaço de pesquisa, ensino e, muito menos, emprego), é uma forma de manter a desconversação. Deixar esse trabalho como algo exterior, que deve ser feito por outras áreas (história, antropologia, filosofia da educação, teologia etc.) e não transforma os currículos e a forma de pensar a/na filosofia, suas questões, cânones e perspectivas. Dar voz, nesse sentido, pode garantir a medalha de diversidade e boa consciência, mas não é um modo de desenvolver um diálogo. O que poderia ser a filosofia se levássemos a sério a ideia de descolonização do conhecimento? Essa é a interrogação que move o trabalho da filósofa canadense Delphine Abadie M., que defendeu sua tese Reconstruire la philosophie à partir de l’Afrique: une utopie postcoloniale pela Universidade de Montreal em 2018. Sua * https://doi.org/10.51795/97865265082688392 83 Marcos Carvalho Lopes proposta de reconstrução da filosofia a partir do diálogo com a filosofia africana é instigante e promissora para que a retórica de descolonização do conhecimento se articule de um modo menos redundante. Na entrevista a seguir, Delphine Abadie, de modo generoso, nos oferece uma série de referências e caminhos para investigação, trazendo a filosofia africana como uma prática viva de reflexão e debate. Nos próximos anos, com a publicação iminente de artigos, capítulos de livro, livro etc., o trabalho de Abadie tende a se tornar cada vez mais relevante e incontornável para quem quer pensar a filosofia africana. Como você define a filosofia africana? Delphine Abadie — A questão das propriedades relacionadas com a existência da filosofia africana preocupa os filósofos do continente há várias décadas, ao ponto de ser difícil oferecer uma definição substancial que não seja necessariamente controversa. Embora a utilização do termo “filosofia africana” seja polissémico, é útil, no entanto, adotar uma definição operativa a fim de conter a confusão e de chegar a um acordo sobre o seu significado. A filosofia africana, segundo Fabien Eboussi Boulaga (2013), é “este tipo de investigação coletiva feita por indivíduos situados mais ou menos da mesma forma na história. Uma história que podem viver de muitas maneiras. Uma história de derrota, submissão, opressão e que apela à libertação. Ou uma história de grande esquecimento, de um grande parêntese da sua própria história, e que os obriga a se reconectar não mais com o passado, mas com aqueles atos pelos quais o homem se situa como humano e se mantém como humano ao longo da história” (p. 126). Deve se acrescentar que existe uma diferença entre a filosofia chamada africana, tal como teorizada por Lucius Outlaw, e a filosofia africana (philosophie africaine), a primeira englobando a segunda.20 Outlaw faz uma diferença entre African philosophy (que tem seu foco no continente africano) e Africana philosophy (que engloba o continente e as diásporas africanas). Usei filosofia africana em minúscula para designar a African philosophy e filosofia Africana para designar a segunda. 20 84 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Outras contribuições críticas das diásporas também ajudam à filosofia Africana. A filosofia Africana engloba, por outras palavras, discursos críticos das Áfricas, geográfica e diaspórica, que partilham um conjunto comum de pressupostos relacionados com o legado de desumanização do povo negro ao longo de vários séculos, as formas políticas de terror racial que têm acompanhado as epistemologias da raça, as consequências éticas do racismo contemporâneo, a adopção da hermenêutica existencialista etc. A filosofia africana contemporânea, por outro lado, por ter sido organizada como disciplina académica no continente africano, partilha um horizonte antiessencialista que é bastante característico da resolução de uma longa disputa epistêmica sobre a sua definição, e que não é tão paradigmaticamente partilhada pelas filosofias africanas da diáspora. Embora seja importante iluminar estas nuances, é também importante não criar falsas oposições entre estes diferentes grupos de discursos. Do ponto de vista da exigência filosófica, só reconhecendo os postulados específicos das diferentes tradições de luta, incluindo as epistêmicas, é que uma verdadeira aliança panafricana pode emergir, sem gerar novas formas de violência. Como você entrou em contato com a filosofia africana? Sou uma africanista por formação. Uma grande parte do corpus que me foi ensinado e que serve de cânone para a ciência política africana pareceu-me gradualmente problemático. Foi enquanto lia Valentin-Yve Mudimbe que percebi o que me parecia problemático em torno de um preconceito epistemológico radical, herdado da ideologia colonialista. De fato, em diferentes graus, a África é sempre retratada como “atrasada” num estado de coisas ou numa história de progresso apresentada como referências normativas neutras: democracia, desenvolvimento, justiça de gênero, moral etc. Que a África podia ter o seu próprio caminho, os seus próprios critérios para alcançar esses ideais ou que podia perseguir outros, não parecia tocar as mentes dos seus autores: tinham de se converter. 85 Marcos Carvalho Lopes Por conseguinte, eu me demorei na filosofia, para elucidar os postulados que tornaram o edifício teórico frágil para analisar os fenômenos africanos contemporâneos, ao familiarizar-me com o que os próprios filósofos africanos tinham a dizer sobre o assunto. Uma vez que a filosofia africana não é ensinada no mundo francófono, tive de reconstruir meticulosamente o retrato da disciplina, de referência em referência, a fim de ter uma ideia precisa do seu objetivo. De leitura em leitura, compreendi que os autores escolhidos como figuras centrais no cânone da filosofia ensinada no Ocidente, a escrita da sua história, os seus índices de admissão e de exclusão etc., desempenharam um papel fundamental na marginalização e no descrédito da filosofia africana. As fantasias sobre o exotismo naturalista da filosofia africana também participam neste imaginário da raça. Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está ultrapassada? No momento em que a filosofia africana estava nascendo como disciplina acadêmica — com autores como Placide Tempels, Alexis Kagame e Léopold Sédar Senghor —, a espinhosa questão da existência de uma filosofia especificamente africana e do que constitui a sua identidade era, na minha opinião, um passo necessário. O grande sopro da descolonização exigia a sua contrapartida epistemológica: era preciso libertar-se da tutela mental e da alienação inoculada pelos discursos filosóficos e antropológicos da colonização. O que estava fundamentalmente em jogo, no meio das disputas sobre a autenticidade africana era a necessidade visceral de reconquistar uma humanidade negada pela violência racial, diz Achille Mbembe em Sortir de la grande nuit. Embora o ângulo de identidade persista em alguns escritos, o que me parece característico da maioria das contribuições para a filosofia africana desde os anos 80 é que interiorizaram os argumentos dos seus mais velhos e ultrapassaram a fase da justificação. Pois, ao final, todas as deliberações sobre a identidade nunca são mais do que questões 86 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana sobre a natureza da relação com o Outro. Os filósofos contemporâneos se libertaram deste desejo de reconhecimento. Nesse sentido, a minha proposta é que a filosofia africana no século XXI tem características das teorias pós-coloniais, ou seja, continua o projeto dos mais velhos — de desconstruir a colonialidade —, mas não tem ilusões sobre a plenitude de uma quididade précolonial decaída ou de uma essência africana. Dito isso, a filosofia africana não pode adiar indefinidamente o exame crítico de uma certa forma de estar no mundo partilhada por culturas de todo o continente. A corrente hermenêutica, muito mais desenvolvida pelos filósofos anglófonos, tenta conciliar (com diferentes graus de sucesso) a crítica da etnofilosofia e a análise das expressões culturais próprias: Odera Oruka sobre os sage philosophers (filósofos da sagacidade); Magobe Ramose sobre o ubuntu; a democracia consensual de Kwasi Wiredu etc. Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia africana hoje? O ser africano — questionamento ontológico que animou a longa disputa da filosofia africana — parece-me ter dado lugar ao do seu futuro (devenir). O trabalho de descolonização epistêmica não foi totalmente concluído, mas parece que fomos além do momento negativo para elaborar uma nova alternativa crítica. Não tendo experimentado as Independências, nascidas na altura das democratizações traídas, os jovens africanos do continente estão menos interessados em recuperar uma identidade perdida no decurso da história, do que em assegurar um futuro para o continente. Nesse contexto, vários filósofos contemporâneos partilham uma certa atitude, que pode ser chamada de várias maneiras, que adota o futuro (e não o passado da tradição) como ponto de referência: pensamento prospectivo, filosofia utópica, nova autenticidade etc. Com Kasereka Kavwahirehi, acredito que a filosofia africana se beneficiaria do desenvolvimento de uma filosofia social das formas culturais modernas que a africanidade 87 Marcos Carvalho Lopes assume: artes visuais, rap, pantsula,21 fé evangélica etc. Na sequência do apelo lançado por Kwasi Wiredu e Ngugi wa Thiong’o há algumas décadas, o recurso das línguas africanas para questionar a universalidade de certos conceitos, a produção de uma linguagem filosófica em línguas vernáculas e a tradução de pensamentos, também me parecem particularmente promissoras. Uma vez que a África não é estranha ao resto do mundo e que estas questões estão conquistando espaços no mundo da investigação, espero também ver o reforço de uma filosofia sobre gênero e um pensamento político anti-imperialista para o século XXI. Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo (womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia africana aborda as questões relacionadas com as diferenças de gênero e identidade sexual? Na língua francesa, as questões de gênero e identidade sexual são apenas marginalmente tematizadas pela filosofia africana. Em inglês, alguns textos pretendem corrigir essa deficiência — incluindo um número inteiro da revista Quest (2006, vol. XX; p. 12) —, mas de um modo geral, são os sociólogos ou filósofos da diáspora que se dedicam às questões feministas. Isso pode ser explicado em parte pela baixíssima representação das mulheres na filosofia africana, mas também pela reprodução inconsciente de uma certa hierarquia temática herdada da filosofia em geral. A extroversão, que caracteriza o tratamento dessas questões, não deixa de induzir a distorções epistêmicas que são muitas vezes mal percebidas pelos ativistas da área. Por exemplo, a tese muito popular de Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí sobre a invenção do gênero em África é bastante mal-recebida pelas feministas do continente, que a Uma forma de dança sul-africana que se desenvolveu como uma forma de protesto no período do apartheid e vem ganhando novos sentidos na medida em que ocupa novos espaços e é apropriada por outros atores. C.f. <https://www.theguardian.com/stage/2018/oct/08/pantsula-dance-south-africavia-kanana>. 21 88 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana reprovam por romantizar a situação real das mulheres africanas e [ser] uma forma de cumplicidade com o patriarcado. De fato, se o gênero é uma invenção ocidental, falar de feminismo para contextos africanos expõe-nos ao anátema da alienação e nos priva dos instrumentos conceituais para examinar experiências vivenciadas de dominação do gênero. Quanto ao mulherismo (womanism) de Filomena Steady ou Ifi Amadiume, como nota Jean-Godefroy Bidima num texto pouco conhecido sobre essa questão, podem, sem dúvida, ser responsabilizados pelas mesmas armadilhas que a etnofilosofia: método híbrido, essencialização, generalização abusiva, política da diferença radical etc.22 A literatura de ficção está cheia de material para o diagnóstico da injustiça de gênero na África. Entre os filósofos, eu, por exemplo, gosto muito da obra crítica de Bibi Bakare Yusuf.23 Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é o mais importante em sua opinião? Não gosto de pontuar como “bons” e “maus” a um ou a outro, pois a sua importância é relativa aos contextos em que e para os quais escrevem e aos critérios pelos quais são avaliados. Filosofar em África é uma prática existencial. Assim, por exemplo, se alguém começar a reconhecer prontamente (no Ocidente) A Crise do Muntu (La Crise du Muntu), de Fabien Eboussi Boulaga, como uma grande obra, estará muito menos interessado no seu Cristianismo sem fetiche (Christianisme sans fetiche), com exceção dos departamentos de teologia. Contudo, o fato religioso em África é demasiado central para não ser tematizado pela filosofia, o que já não é o caso no Ocidente secular. Inversamente, alguns autores são Bidima, J.-G. “Womanism” et autoréflexion. Mise en discours et critique de l’Expérience-vécue des “féministes africaines”. Femmes africaines et globalisation culturelle, p. 109-120, 2000. 23 Bibi Bakare-Yusuf. Yoruba’s Don’t Do Gender: A Critical Review of Oyèrónkẹ ́ Oyěwùmí’s “The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses”, Dakar, CODESRIA, 2003. Disponível em: <https://www. codesria.org/IMG/pdf/BAKERE_YUSUF.pdf>. 22 89 Marcos Carvalho Lopes altamente aclamados nas redes de investigação transnacionais pela sua criatividade teórica, mas os seus discursos são, por vezes, vistos como extrovertidos por aqueles que trabalham no continente. Creio que há lugar para todos, todas as abordagens e todas as questões e que o pluralismo epistêmico deve ser cultivado, mesmo que isso signifique debatê-lo. Não é isso, em última análise, a filosofia? Quem é o seu filósofo africano preferido? Embora aprecie as contribuições teóricas e a originalidade de vários filósofos africanos, Souleymane Bachir Diagne é, sem hesitação, o meu filósofo preferido. Foi através do seu trabalho e do de Achille Mbembe, que já conhecia pelos seus escritos sobre as patologias da pós-colônia, que me meti o pé na porta da filosofia africana. O trabalho de Bachir Diagne mostra uma disposição bem equilibrada de erudição, interdisciplinaridade, rigor e compromisso ético. Bachir Diagne não é apenas um investigador experiente, mas também um professor profundamente ligado aos seus alunos e ao que eles lhe ensinam em troca. Ele não foi meu professor, mas tive o prazer de o ter como examinador externo da minha tese e desde então o adotei como meu mentor, uma responsabilidade a que ele nunca se esquivou. Estando com ele, você pode vivenciar a medida da sua integridade, uma qualidade que muitas vezes falta no mundo acadêmico. Basicamente, partilhamos esta preocupação de prosseguir simultaneamente um duplo objetivo na nossa investigação, a saber, pensar o que é próprio, ou seja, as questões que afetam as particularidades dos mundos africanos, ao mesmo tempo em que teoricamente reconstruímos um universal pós-colonial, livre de todas as tentações hegemônicas. Esta postura consiste em adotar em primeiro lugar a humanidade como um horizonte ético, ao mesmo tempo em que filosofa com a África como seu centro, religando as nossas duas perspectivas. O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil. 90 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Esse também é um problema comum em relação à África de língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma unidade que leve em conta esses espaços? Mencionei anteriormente a natureza problemática dos critérios que contribuem para a classificação hierárquica da importância de certos discursos em detrimento de outros. Na costa ocidental do mundo atlântico, onde também trabalhei, a influência dos estudos negros americanos acabou por impor uma certa interpretação da filosofia Africana que abarca as tradições de outras esferas geográficas, ou reinterpreta-as à luz de postulados que não são necessariamente endógenos. A prevalência do inglês como língua científica e o fato de as universidades africanas nos países de língua inglesa estarem geralmente mais bem integradas nas redes internacionais de investigação explica a predominância de certos autores, certas questões e teorias que não estão necessariamente na ordem do dia noutras esferas linguísticas. Assim, a partir das universidades norte-americanas, a filosofia praticada na África do Sul parece ser o arquétipo da filosofia africana, enquanto as formas extremas que o racismo tomou na África Austral tornam-na bastante singular. Com exceção de Amílcar Cabral, faz bem salientar que as contribuições lusófonas são inaudíveis. Num texto que discute as questões em jogo na delimitação de um cânone da filosofia africana, a filósofa austríaca Anke Graness observa com razão que as antologias reproduzem frequentemente essa clivagem linguística na sua apresentação temática das correntes da filosofia africana, mas também excluem arbitrariamente todas as contribuições afrofônicas (filosofia em suaíli, iorubá, wolof etc.), o que é absurdo. Outros campos são também proibidos, tais como a filosofia islâmica em África ou questões de gênero. De fato, a disciplina acadêmica de filosofia africana atingiu, sem dúvida, um ponto na sua história de institucionalização onde deve colocar a si própria certas questões metateóricas sobre as condições estruturais da sua 91 Marcos Carvalho Lopes organização. Por outras palavras, ainda não terminou a descolonização. Delphine Abadie M. possui um Ph.D. em Filosofia Africana e um Mestrado em Ciência Política Africana. Site pessoal: <https://hekimaphilosopher.com/>. Referências ABADIE, D. Reconstruire la philosophie à partir de l’Afrique: Une utopie postcoloniale [Tese de Doutorado], Universidade de Montreal, 2018. Disponível em: <https://papyrus.bib.umontreal.ca/ xmlui/handle/1866/20587>. Consultado em 01/02/2023. EBOUSSI-BOULAGA, Fabien; SERRES, Thomas. De la mutuelle décolonisation de notre pensée, NAQD, n. 1, p. 67-91, 2013. 92 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Godfrey B. Tangwa, uma perspectiva africana da filosofia* Godfrey B. Tangwa é um dos filósofos africanos que mais gosto (embora, nem sempre concorde com suas posições). Isso por encontrar em seus textos respostas e articulações que, com simplicidade e elegância, não apenas mudam as peças de lugar, mas modificam o sentido do jogo. É assim, por exemplo, que articula os problemas da filosofia africana no artigo “African philosophy: Appraisal of a recurrent problematic”, publicado no The Palgrave Handbook of African Philosophy (2017). O filósofo camaronês separa dois sentidos para o termo filosofia: um primeiro, que se relaciona com modos de vida, como o “sistema de crenças fundamentais e convicções que usualmente se refletem nas ações”, nessa primeira visão ter uma filosofia não significa ser um(a) filósofa/filósofo; e um segundo, acadêmico e técnico, refere-se a um “discurso crítico (verbal ou escrito) e articulado de forma consciente, que é necessariamente individual em sua origem, e, de modo secundário ao corpus ou sistema de tais discursos juntamente com as estruturas que os suportam nas quais estão simbolicamente codificados” (2017, p. 22). Desse modo, redescreve o alvo da atividade acadêmica da filosofia “o principal objetivo da filosofia no segundo sentido delimitado acima deveria ser o de se converter em filosofia, no primeiro sentido. Em outras palavras, filosofar não é e não deve ser um exercício sem objetivo, um prêmio no vácuo, por assim dizer. Seu objetivo deve ser a descoberta do verdadeiro, do bom, ou do belo com uma perspectiva de como fazer uso deles na vida. A relação entre o pensamento e a ação é dialética no sentido de que o pensamento sincero necessariamente se manifesta em ação * https://doi.org/10.51795/978652650826893101 93 Marcos Carvalho Lopes enquanto a ação não pode deixar de fornecer a agenda para reflexão” (ibid., p. 22). Como o próprio autor destaca, essa dupla divisão da filosofia não é uma novidade e ganhou nomes diversos na terminologia de outros pensadores africanos — universalista/culturalista, em Odera Oruka; filosofia popular/filosofia, em Kwasi Wiredu etc. (ibid., p. 24) —, o que chama atenção é como Tangwa articula essas descrições de modo pragmático, como círculos de lealdade epistemológica para pensar os diferentes horizontes das questões que a filosofia, em segundo sentido, pode abordar: Considero as culturas como formando círculos concêntricos. Por exemplo, existe uma cultura peculiar à linhagem da minha família. Além disso, o grupo de famílias que compõem a minha aldeia compartilha uma certa cultura em comum. Então, há a cultura da minha tribo, a Nso, que é comum a todos os povos falantes de Lamno. Mas o que chamamos de cultura Nso é um subconjunto de uma cultura que é claramente comum a todos os chamados povos graffi dos Camarões. Camarões como um todo tem uma cultura peculiar que pode não ser muito marcante para aqueles camaronenses que nunca tiveram o privilégio desse distanciamento oferecido por viagens ao exterior. De dentro, pode parecer que não existe cultura camaronense além das várias culturas tribais ou regionais. E, no entanto, a cultura dos Camarões é apenas um subconjunto da cultura africana, o que nenhum africano que foi residente ou viveu no exterior colocaria em dúvida. Mas a cultura africana é apenas um subconjunto do que podemos chamar de cultura humana em geral. Parece-me que a importância de um tópico ou problema pode ser vista como sendo diretamente proporcional ao diâmetro do círculo cultural sobre o qual se estende. Eu poderia fazer uma contribuição para tópicos ou problemas peculiares à minha cultura tribal. Mas, mas essa seria relativamente menos importante do que uma contribuição simular que diz respeito à cultura camaronense em geral teria, por sua vez, é menos importante quando comparada a uma contribuição para cultura africana. Desse modo, a mais importante contribuição seria relevante para a cultura humana em geral e, se alguma coisa é relevante para a cultura humana em geral, então é também relevante para todas as culturas particulares. Então, se uma contribuição é feita por um filósofo africano, esta pode não ser classificada como filosofia africana, mas, no entanto, continua a ser relevante e pode facilmente se tornar filosofia africana a segunda vista, quando reconhecida e utilizada por um filosofo africano especificamente para propósitos africanos. Anarquistas 94 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana culturais extremos podem não se convencer com essa linha de raciocínio. Mas esta é inevitável desde que nós admitimos que a filosofia não é sua própria justificativa, nem um prêmio no vácuo, e que o propósito geral no segundo sentido em que nos delimitamos é torná-la filosofia em um primeiro sentido. (TANGWA, 2017a, p. 31-32) Ora, Tagwa é normalmente identificado como um dos nomes de referência da bioética, no entanto, essa percepção é articulada através dos trabalhos que ele tem desenvolvido fora de Camarões, mas não é o tema de seus esforços cotidianos e nem seria possível fazer uma carreira em seu país com essa dedicação exclusiva ao tema da bioética. Mas a contribuição de Tangwa ao desenvolvimento da bioética deveria ser incontornável para todos que se dedicam ao tema; isso porque, muitas vezes ele mostra de modo contundente que descrições que se pretendiam universais (como as críticas ao especismo de Peter Singer ou o valor moral de células embrionárias, descrito por John Harris) na verdade são contraintuitivas quando pensadas do ponto de vista da cultura africana. Seu artigo sobre como não comparar a medicina ocidental com a medicina tradicional africana é muito assertivo ao diferenciar a lógica e o contexto do tratamento daquela da descoberta e validação científica. Mas até que ponto o Ocidente estaria disposto a validar as descobertas cientificas desenvolvidas em espaços africanos? Essa questão pode ser pensada com o tratamento silenciador e ausência de qualquer apoio a promissora proposta do médico camaronês Victor Anomah Ngu (falecido em 2011) de uma vacina contra o HIV. Também o desdém do Sul Global em relação as propostas de terapia da COVID-19 feitas por países africanos, não deixam de marcar uma grande distância entre a articulação local de uma busca colaborativa de soluções e a procura e disputa industrial que tornam inseparáveis a medicina e o mercado (TANGWA e MUNUNG, 2020, p. 5). No trabalho que liderou no departamento de filosofia da Univeridade de Yaounde 1, desenvolveu pesquisas em diversos outros temas da filosofia, mas sem perder de vista a busca por fazer diferença no mundo real. Um exemplo da articulação desses 95 Marcos Carvalho Lopes interesses diversos está em outra contribuição para o citado The Palgrave Handbook of African Philosophy, em que Tangwa faz uma revisão da questão da linguagem na filosofia africana (“Revisisting the Language Question in African Philosophy”), contribuição que, embora não faça referência a qualquer evento especifico, ganha sentido quando pensada de modo contextualizado com o conflito civil que hoje Camarões vive, contrapondo as partes anglófonas e francófonas do país.24 Hoje aposentado, Tangwa continua desenvolvendo pesquisas, liderando e participando de grupos de investigação, orientando e publicando trabalhos. Mas o que pode significar a filosofia em um contexto social em que a violência da guerra civil destrói as condições de vida? Enviei essa proposta de entrevista ao professor Tangwa em setembro de 2021. Sem resposta, reenviei no mês seguinte. As respostas desta breve entrevista vieram junto com a explicação das dificuldades de ter uma vida acadêmica normal no contexto de quatro anos de guerra civil, fazer isso lhe parecia um ato de luxuria. Respondi com palavras de incentivo, externalizando a admiração e impacto de seu trabalho. Mas, alguns dias depois, vendo a notícia de que nesse conflito oito crianças foram assassinadas durante a invasão de uma escola na cidade de Kumba, minhas palavras se esvaziaram.25 Quero agradecer por essa entrevista: muito obrigado! Beri wo! Como você define a filosofia africana? Godfrey B. Tangwa — Para mim, a filosofia é o resultado de um pensamento crítico reflexivo e a filosofia africana é o pensamento crítico reflexivo de qualquer africano ou não africano sobre questões particularmente africanas. [Ver Godfrey B. Tangwa, “African Philosophy”: Appraisal of a Recurrent Problematic”, The Palgrave Disponível em: <https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/602392>. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/news/2020/10/24/five-children-killed-in-attack-oncameroonian-school-officials>. 24 25 96 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Handbook of African Philosophy, editado por Adeshina Afolayan e Toyin Falola, Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2017, p. 19-33]. Como você entrou em contato com a filosofia africana? Entrei em contato com a filosofia africana, informalmente e inconscientemente (algo apreciado apenas mais tarde “na perspectiva do segundo momento”), ouvindo as conversas dos africanos mais velhos enquanto crescia na minha região natal, o reino Nso dos campos de pasto do noroeste dos Camarões; e formalmente como estudante nas Universidades da Nigéria, Nsukka, Universidade de Ife e Universidade de Ibadan, todas na vizinha Nigéria (1974-1984). Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está ultrapassada? A busca de identidade nunca pode estar desatualizada; é uma busca perene de raízes, autenticidade e autocompreensão que deve fazer parte de qualquer filosofia. Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia africana hoje? A descolonização, a globalização e o meio-ambiente. Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo (womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia africana aborda questões relacionadas às diferenças de gênero e identidade sexual? Essa é uma discussão seriamente viciada por exageros indevidos e pela postura militante do feminismo ocidental. [Ver Godfrey B. Tangwa, “Feminismo e Feminilidade”: Gênero e Maternidade em África”, Capítulo Dez: Em Elementos da Bioética Africana em uma Armação Ocidental, Mankon, Bamenda: Langaa Research & 97 Marcos Carvalho Lopes Publishing CIG, p. 212, 201026]. Ao abordar questões relacionadas com diferenças de gênero e identidade sexual, a filosofia africana precisa de se inspirar no facto de que na África tradicional précolonial, enquanto a heterossexualidade era muito valorizada devido à sua ligação direta com a procriação, outras formas de orientação sexual onde existiam eram, pelo menos discretamente, toleradas. No resumo deste texto, o autor afirma que “embora o movimento feminista ocidental seja amplamente responsável pela mudança positiva global de consciência e atitudes em relação à mulher e ao status da mulher, os africanos não precisam professar e/ou praticar o feminismo para realizar a emancipação e o empoderamento das mulheres africanas. Os modelos e paradigmas ocidentais são globalmente muito imponentes e influentes, especialmente na África — graças ao impacto cumulativo dos vários legados coloniais. Mas o verdadeiro desenvolvimento não alienante na África exige que o uso de todas as influências estrangeiras e externas seja feito de forma consciente como materiais de construção para um edifício cuja fundação é puramente africana. Ou então, há o risco de acabar com uma estrutura instável, cuja fundação e centro de gravidade não estão firmemente no chão, mas flutuando de forma instável em algum lugar acima dele. A opressão, supressão e a marginalização das mulheres no mundo ocidental tem sido de uma textura, calibre e caráter diferente do que pode ser considerado em fenômenos semelhantes ou idênticos dentro de outras culturas. Além disso, na tentativa para libertar-se e emancipar-se, as mulheres ocidentais agiram e reagiram de maneiras cujo efeito cumulativo tem sido prejudicial para feminilidade, família, heterossexualidade e o papel da mulher como mãe, um papel que é central na cultura e concepções africanas, como definindo e circunscrevendo o status da mulher. A emancipação e o empoderamento das mulheres africanas podem e devem se basear em fundamentos tradicionais africanos, onde o patriarcado não poderia ser validamente contraposto ao matriarcado e onde a mulher, como mãe, esposa, filha ou irmã, já tinha um status reverenciado e invejável, mesmo que não sendo exatamente igual ao dos homens em muitos aspectos. É minha opinião que os africanos poderiam tomar emprestado com segurança o espírito, mas não a letra ou a agenda do feminismo ocidental” (TANGWA, 2010, p. 123). Recentemente o professor Tangwa escreveu uma postagem em seu blog em que retoma sua avaliação do feminismo dialogando com Chimamanda Adchie: Disponível em: <https://www.gobata.com/ 2019/08/chimamanda-and-feminism.html>. 26 98 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é o mais importante em sua opinião? Kwasi Wiredu Quem é o seu filósofo africano preferido? Kwasi Wiredu, pela sua simplicidade e clareza combinadas com o mais alto rigor conceitual.27 O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil. Esse também é um problema comum em relação à África de língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma unidade que leve em conta esses espaços? Esta é uma questão difícil e complexa de discutir. Existe uma certa identidade comum para todos os africanos e pessoas de ascendência africana em todas as partes em que estão conscientes das suas raízes e identidade. Mas a experiência histórica, a evolução individual e a linguagem de expressão são importantes. A hegemonia do colonialismo e das fronteiras coloniais só permitirá a emergência da filosofia africana sem compartimentos ou espaços cegos após esforços articulados de descolonização e valorização dos autênticos valores africanos. Em entrevista, Tangwa precisou sua apreciação do trabalho do filósofo ganês que foi um de seus examinadores quando defendeu o doutorado em 1979: “Kwasi Wiredu é, em minha opinião, o filósofo africano cujo pensamento e obra são mais claros e mais rigorosos. Ele é o único filósofo conhecido por mim que parece não só entender completamente a teoria dos tipos de Bertrand Russell, mas também ter avançado além dela. O fato de ele não estar normalmente listado entre os grandes lógicos e epistemólogos mundiais do século 20 talvez se deva ao fato de seu trabalho “Paradoxes” ser publicado em uma revista africana de filosofia (Second Order: An African Journal of philosophy, v. 4, n. 2, julho de 1976, p. 3-26) e não em uma das revistas ocidentais de “alto impacto”.” (TANGWA, Godfrey B. Leaders in ethics education: Godfrey B. Tangwa. International Journal of Ethics Education, v. 1, n. 1, p. 91-105, 2016). 27 99 Marcos Carvalho Lopes Beri wo, e amáveis cumprimentos dos Camarões! Godfrey B. Tangwa é professor emérito da Universidade de Yaounde 1, em Camarões, onde foi chefe do Departamento de Filosofia de 2004 a 2009. É membro da Academia de Ciências dos Camarões (CAS) e da Academia Africana de Ciências (AAS), vicepresidente da Iniciativa de Bioética dos Camarões (CAMBIN), que ele fundou em 2005, membro do comitê executivo do Pan-Africano Iniciativa de Bioética (PABIN) e presidente da Iniciativa Cultural, Antropológica Social e Econômico (CASE), do Grupo de Trabalho do Global Emerging Pathogens Treatment Consortium (GET). Tem ampla experiência de ensino e pesquisa em domínios da filosofia e da bioética. Ele obteve um BA (1977) do Universidade da Nigéria, Nsukka; mestrado (1979) pela Universidade de Ife (agora Obafemi Awolowo University), Ile Ife; e um PhD (1984) da Universidade de Ibadan, tudo na Nigéria. Trabalhou em vários comitês consultivos especializados para o OMS, tem sido membro do Grupo Consultivo de Ética Científica (SEAG) de Hoffmann La Roche desde 2005 e atualmente também é membro do conselho consultivo tanto da ALERRT (African coaLition for Epidemic Research, Response and Training) quanto da SARETI (South African Research Ethics Training Initiative). Publicou uma dezena de livros, 35 capítulos e 45 artigos em periódicos. ORCID: orcid.org/0000-0003-0062-8108 Cameroon Bioethics Initiative: http://www.cam-bin.org Personal Blog: http://www.gobata.com Referências TANGWA, Godfrey B. Leaders in ethics education: Godfrey B. Tangwa. International Journal of Ethics Education, v. 1, n. 1, p. 91105, 2016. ______. African philosophy: Appraisal of a recurrent problematic. In: AFOLAYAN, Adeshina; FALOLA, Toyin (Ed.). The Palgrave Handbook of African Philosophy, Palgrave Macmillan, New York, 2017a. p. 19-33. ______. Revisiting the Language Question in African Philosophy. In: AFOLAYAN, Adeshina; FALOLA, Toyin (Ed.). The Palgrave 100 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Handbook of African Philosophy, Palgrave Macmillan, New York, 2017b. p. 129-140. TANGWA, Godfrey B.; MUNUNG, Nchangwi Syntia. COVID-19: Africa’s relation with epidemics and some imperative ethics considerations of the moment. Research Ethics, v. 16, n. 3-4, p. 111, 2020. TANGWA, Godfrey B. Elements of African bioethics in a Western frame. African Books Collective, 2010. 101 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana 102 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Mofefi Kete Asante, uma obra na tradição de Maat* Molefi Kete Asante é uma pessoa imhotepiana. Ele, segue os passos de Imhotep, o médico, cientista e filosofo egípcio que viveu no ano 2900 a.C, como inspiração de seu modo de vida e pensamento, continuamente procurando servir a causa da Justiça, Harmonia e Verdade, numa palavra egípcia, Maat. Foi com essa dedicação que se tornou um autor tão profícuo (com cerca de 90 livros e mais de 500 artigos publicados) e importante (sendo um dos autores negros mais citados e reconhecidos), fundador da teoria da Afrocentricidade, tem uma contribuição tanto na institucionalização dos estudos africanos (fundador do primeiro programa de doutorado em estudos afro-americanos dos Estados Unidos, em 1988, na Universidade de Temples), quanto por seu trabalho docente (orientou centenas de teses de doutorado), como ativista político e militante do movimento negro. Essa descrição de Asante — como imhotepiano — é, na verdade, um espelho da forma como ele apresentou seu amigo Abdias Nascimento no texto “Uma obra na Tradição de Ma’at”.28 É que, diante da dificuldade de descrever um nome tão conhecido e presente, tanto na divulgação e desenvolvimento dos estudos africanos, como na promoção do agenciamento pan-africanista, encontrei como melhor recurso fazer retornar a ele as palavras com as quais descreveu um amigo e estudioso que admirava e com quem tinha muita convergência. Os dois foram colegas durante a década de 70, como docentes na Universidade do Estado de Nova Iorque, https://doi.org/10.51795/9786526508268103109 ASANTE, Molefi K. “Uma obra na tradição de Ma´at”. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin. Abdias Nascimento 90 anos – Memória Viva, Rio de Janeiro: IPEAFRO, 2006. p. 17-18. * 28 103 Marcos Carvalho Lopes no campus de Búfalo e, no mesmo período — fim dos 70, início dos anos 80 —, articularam suas propostas de Quilombismo e Afrocentricidade, que, como descreveu a professora Elisa Larkin Nascimento, são semelhantes:29 “Os caminhos de elaboração das duas propostas se entrelaçam no objetivo comum: criar um instrumento próprio de luta e de reflexão contra o racismo e em benefício aos povos negros. O que importava a ambos era localizar o ponto de partida da teoria social na experiência própria do povo cuja luta ela informa” (NASCIMENTO, Elisa Larkin. Abdias Nascimento: grandes vultos que honraram o senado. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2014. p. 227-228). Asante — na contramão da maioria de seus colegas norteamericanos — faz questão de sempre negritar a importância do Brasil e de Abdias Nascimento para qualquer articulação panafricanista. O professor Asante foi muito solicito e atencioso.30 O leitor perceberá isso no cuidado com que lida com as questões de modo a se desviar das formulações que considera equivocadas e fornecer respostas construtivas, que ajudem as pessoas que o leem a se direcionar. A grande contribuição da Afrocentricidade no contexto brasileiro não é um acaso, mas parte dessa postura e inspiração que A professora Elisa Larkin Nascimento descreve também a proximidade entre as posições que Abdias desenvolveu no Teatro Experimentado do Negro e aquelas de Maulana Karenga (criador da filosofia Kawaida) e Molefi Asante tinham na década de 70, como “porta-vozes do nacionalismo negro, que insistia no efeito libertador e na necessidade política de construir identidade e autoestima positivas para a população negra” (NASCIMENTO, Elisa Larkin. Abdias Nascimento: grandes vultos que honraram o senado. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2014. p. 206). 30 Em 2014 entremos em contato com o professor Asante que gentilmente autorizou a tradução e publicação de dois textos na revista Capoeira – Humanidades e Letras: ASANTE, Molefi Kete. “Uma Origem Africana da Filosofia: Mito ou Realidade?”. Trad. Marcos Carvalho Lopes. CapoeiraHumanidades e Letras, v. 1, n. 1, p. 116-121, 2014. e ASANTE, Molefi Kete. “Raça na Antiguidade: na verdade, provém da África”. Trad. Fernando Lopes Tomé. Capoeira-Humanidades e Letras, v. 1, n. 3, p. 105-113, 2015. 29 104 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana faz com que muitas pessoas sigam seus passos e agenda para o pensamento africano. Como você define a filosofia africana? Molefi Kete Asante — Existem dois aspectos da filosofia: como é praticada e como é estudada. A filosofia africana refere-se à participação de pessoas de ascendência africana no processo da prática e de teoria da filosofia. Isso não deve ser confundido com a noção ocidental de filosofia acadêmica como uma participação em questões individualistas de ser e identidade. Existem africanos que participam desse tipo de filosofia, mas muitas vezes não conhecem a sua própria história. Para mim, a filosofia africana deve significar várias coisas: uma crítica das ideologias impostas pelo Ocidente ao povo africano; uma afirmação da narrativa africana de comunidade baseada nos princípios de harmonia, ordem, equilíbrio e reciprocidade; e a proposta de uma voz panafricana no âmbito epistêmico. Como você entrou em contato com a filosofia africana? Como você sabe, sou um estudante de história da África e foi através da África antiga que descobri que o livro mais antigo do mundo era Os Ensinamentos de Ptahhotep. Esse livro me levou à procura de outros africanos que haviam praticado e estudado a sociedade humana e foi onde eu encontrei Imhotep, Amenemhat, Duauf, Merikare, Amenhotep, o filho de Hapu e outros filósofos africanos que viveram centenas e em casos milhares de anos antes de Tales, Isócrates, Sócrates, Platão e Aristóteles. Meu livro The Egyptian Philosophers31 foi publicado depois de minha descoberta. Mais tarde, conheci muitos estudiosos africanos que estavam engajados na filosofia, mas, infelizmente, eles haviam se tornado parte da filosofia acadêmica contínua a do Ocidente, onde Publicado recentemente em português como Os filósofos egípcios: vozes africanas ancestrais: de Inhotep à Akhenaton. Trad. Akili O. Bakari. São Paulo: Editora Ananse, 2022. 31 105 Marcos Carvalho Lopes se dizia que a origem da filosofia era Tales, Pitágoras e Isócrates. Eu queria examinar a origem africana da filosofia. Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está ultrapassada? Talvez você queira dizer com essa pergunta que esse era o lema daqueles africanos que participaram da ideia de filosofia europeia/ocidental. Eu não me envolvo nessa busca. A palavra europeia filosofia é frequentemente chamada de “o estudo da sabedoria ou o amante da sabedoria”, mas a palavra “filosofia” é composta da palavra grega “philo” e da palavra derivada da África “seba” que se torna “Sofia” para os gregos. Na verdade, os dicionários de etimologia dizem que “philo” é de origem grega e que “sophia” não é. Dizem que a origem é desconhecida, mas isso só confirma que não olharam para a África antiga, onde a palavra “seba” era usada para “sabedoria” mais de mil anos antes de Homero, o grego, aparecer pela primeira vez. O que é encontrado no reinado do rei egípcio, Antef II, por volta de 2050 a.C.. Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia africana hoje? Filósofos africanos, no sentido em que falo de praticantes e estudantes, estão interessados na natureza da ética e da estética, o bom e o belo e, na maioria dos casos, são as mesmas expressões. Portanto, nossas perguntas devem estar relacionadas a questões de comunidade, ecologia e justiça. Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo (womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia africana aborda questões relacionadas às diferenças de gênero e identidade sexual? A filosofia africana exige um retorno ao matriarcado fundado nos princípios da reciprocidade. O feminismo é baseado nas noções ocidentais de patriarcado e nas respostas a ele. Os africanos que 106 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana avançaram o Mulherismo (Womanism) o fizeram como uma reação ao feminismo, que consideraram uma continuação do patriarcado. O Mulherismo, especialmente o Mulherismo africano, é um apelo para que busquemos a reciprocidade em vez da continuação do patriarcado que leva, mesmo no feminismo no Ocidente, à entronização da hierarquia onde as mulheres europeias assumem cargos mais elevados do que outras mulheres; isso nada mais é do que patriarcado e a elevação da escada racial. Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é o mais importante em sua opinião? Os filósofos africanos mais importantes no sentido contemporâneo são Maulana Karenga, especialmente seu trabalho sobre Maat e Kofi Asare Opoku, e seu trabalho sobre ética, moralidade e religião. Para os filósofos que estão em sintonia com o Ocidente, também vejo Theophile Obenga, um afrocentista, e Lewis Gordon, um fanoniano, como filósofos-chave com base na compreensão da mais longa tradição no estudo da humanidade. Também foi possível perceber como Abdias Nascimento, Ama Mazama, Achille Mbembe, Sylvia Wynter e Molara Ogundipe-Leslie podem ser vistos como pensadores-chave no sentido contemporâneo. Qual é o seu filósofo africano preferido? Maulana Karenga. O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil. Esse também é um problema comum em relação à África de língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma unidade que leve em conta esses espaços? Marcos, acho que os afro-brasileiros raramente expressaram seu quilombismo de forma panafricana. Este é o aspecto limitante da voz dos afro-brasileiros. Nos Estados Unidos e no Caribe, fomos 107 Marcos Carvalho Lopes influenciados pelo início de nossa compreensão de nossas identidades no continente africano e civilizações antigas como uma bússola para discutir outros aspectos da vida. Não se pode esquecer que o homo sapiens começou na África ou que a civilização humana começou na África. Isso significa que devemos lutar contra a tentativa de nos marginalizar simplesmente pelo acidente da história que viu tantos africanos escravizados. Acredito que aqueles que foram escravizados pelos franceses e ingleses examinaram a natureza do poder filosófico, das injustiças raciais, do patriarcado e da hierarquia, pesquisando nossas próprias tradições. O Brasil, nosso centro populacional mais importante nas Américas, está em melhor posição para ajudar a liderar essa luta. Estou ansioso por um Brasil afrocêntrico mais assertivo, onde a atuação do povo africano seja considerada necessária para restaurar a verdade, a retidão e a justiça. Molefi Kete Asante é Professor e Presidente do Departamento de Africologia e Estudos AfroAmericanos da Temple University na Filadélfia. Ele também atua como Organizador Internacional da Afrocentricity International e é Presidente do Molefi Kete Asante Institute for Afrocentric Studies. Asante é Professor convidado da Universidade Zhejiang, Hangzhou, China e Professor Extraordinário da Universidade da África do Sul. É reconhecido como o mais prolífico estudioso afro-americano e publicou 90 livros, dentre os mais recentes estão Radical Insurgencies, The History of Africa (3a. edição); The African American People: A Global History; Erasing Racism: The Survival of the American Nation; Revolutionary Pedagogy; African American History: A Journey of Liberation; African Pyramids of Knowledge; Facing South to Africa, e, o livro de memórias, As I Run Toward Africa. Asante publicou mais de 500 artigos e é considerado um dos autores africanos vivos mais citados, assim como um dos mais distintos pensadores do mundo africano. Ele recebeu seu Ph.D. da Universidade da Califórnia, Los Angeles, aos 26 anos de idade, e foi nomeado professor titular aos 30 anos de idade na Universidade Estadual de Nova York em Buffalo. Na Temple University, criou o primeiro Programa de Doutorado em Estudos Afro-Americanos em 1988, dirigiu mais de 135 teses de Ph.D. É o fundador da teoria da afrocentricidade.Site: http://www.asante.net/ 108 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Referências ASANTE, Molefi Kete. “Uma origem africana da filosofia: mito ou realidade?”. Trad. Marcos Carvalho Lopes. CapoeiraHumanidades e Letras, v. 1, n. 1, p. 116-121, 2014. ______. “Raça na antiguidade: na verdade, provém da África”. Trad. Fernando Lopes Tomé. Capoeira-Humanidades e Letras, v. 1, n. 3, p. 105-113, 2015. ______. Afrocentricidade: A teoria de mudança social. Trad. Ana Monteiro Ferreira. Philadeilphia: Afrocentricity, 2003. ______. Afrocentricidade como crítica do paradigma hegemônico ocidental: Introdução a uma idéia. Ensaios Filosóficos, Rio de Janeiro, v. 16, p. 6-18, dez., 2016. ______. “Uma obra na tradição de Ma´at”. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin. Abdias Nascimento 90 anos – Memória Viva, Rio de Janeiro: IPEAFRO, 2006. p. 17-18. NASCIMENTO, Elisa Larkin. Abdias Nascimento: grandes vultos que honraram o senado. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2014. ______. Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. Selo Negro, 2013. 109 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana 110 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Adeshina Afolayan e a filosofia africana fora da caverna* A imagem platônica da Filosofia e suas redescrições modernas colocam como sua tarefa principal salvaguardar as fronteiras entre aparências e realidade, pressupondo o acesso privilegiado a coisa em si mesma.32 As pessoas que querem filosofar precisam se afastar da cultura comum e vulgar, que são como sombras, multiplicando aparências e nos afastando da Verdade. Ora, a filosofia no continente africano muitas vezes seguiu esse caminho de desprezo pela cultura, buscando justificar uma posição incomensurável e fundacionista (como fundamento de qualquer saber válido). Quando se aproxima da cultura é daquela que seria tradicional e não da popular, ocidentalizada, degenerada e vendida pela indústria cultural, como produto massificado, infantilizado, alienante etc. Ora, se essa perspectiva da Filosofia africana não dialoga com o teatro ou a literatura, muito menos com o cinema e de forma alguma com as cópias precárias dessas práticas ocidentais, como os rappers africanos que emulam os norte-americanos ou os filmes digitais populares nigerianos, da chamada Nollywood. Mas vamos imaginar que uma dessas pessoas que cresceram e construíram toda sua formação amarrada numa visão da Filosofia https://doi.org/10.51795/9786526508268111120 Adeshina Afolayan avalia as consequências epistemológicas do antirepresenacionismo de Richard Rorty, quando o filósofo norte-americano em Philosophy and the mirror of nature (p. 3) destrói a imagem segundo a qual “A preocupação central da Filosofia é ser uma teoria geral de representação, uma teoria que dividirá a cultura nas áreas que representam a realidade bem, aqueles que a representam de modo pior, e aquelas que não a representam de forma alguma (apesar de sua pretensão de fazê-lo).” * 32 111 Marcos Carvalho Lopes fundacionista, percebesse que essa pressuposição de acesso privilegiado à Verdade não é mais do que uma celebração autoindulgente de sua profissão. Vamos dizer que ela tivesse coragem de descer de seu alto cavalo e buscasse novamente, de forma desconcertada e cambaleante, o caminho da Caverna. Neste caso, explica o filósofo nigeriano Adeshina Afolayan, que: “Infelizmente para os filósofos africanos, em um retorno à caverna, sua tarefa vai além de convencer os ‘habitantes das cavernas’ sobre a futilidade de ficar presos a uma falsa apreensão da realidade. Pelo contrário, essa deve ser uma experiência humilhante para as filósofas/os porque os ‘habitantes das cavernas’ já estão esperando por ela ou ele. O primeiro fato que a filósofa/o filósofo na África tem que aprender num diálogo aberto com os ‘habitantes das cavernas de Nollywood’ é que Nollywood, e o cinema, constitui agora um meio singular para gerar conhecimento e crença sobre a realidade” (AFOLAYAN, 2017a, p. 533). Adeshina Afolayan não faz essa afirmação de modo gratuito, já que nasceu “em uma família de teatro. Meu pai fez parte da última fase da tradição teatral itinerante iorubá, e entre os primeiros a fazer a transição para o cinema celulóide. Antes de falecer em 1996, Nollywood já estava em seus anos iniciais de enérgica proliferação”. Impressionado com o salto de qualidade das produções de Nollywood, representado pelo filme Sete anos de Sorte (The Figurine),33 de 2009, dirigido por seu irmão, Kunle Afolayan, o filósofo editou o livro Aueteuring Nollywood: Critical Perspectives on The Figurine para analisar e dialogar com o impacto que essa produção lhe causou. Sua tentativa de dialogar com a cultura popular a partir do cinema de Nollywood significa uma forma de redescrever e descolonizar a atividade filosófica africana. Seu objetivo seria “delinear uma perspectiva multidisciplinar que traga a filosofia africana para uma relação simbiótica com Nollywood de uma maneira que alcance uma Atualmente disponível na Netflix, assim como outros filmes dirigidos por por Kunle Afolayan. 33 112 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana redenção mútua. Por um lado, a filosofia africana se reconecta a uma análise concreta da situação africana a partir de uma perspectiva de performance. E, por outro lado, Nollywood recebe uma reavaliação conceitual crítica que poderia facilitar uma melhoraria em sua visão cinematográfica da re-presentação”.34 É interessante considerar que os filmes de Nollywood eram desprezados em seu valor artístico, a partir da desqualificação técnica da produção digital, da baixa qualidade de roteiros e atuações voltadas para um consumo local. Esse cinema improvisado se tornou uma indústria cada vez mais qualificada e, surpreendente, que lições de descolonização poderíamos tirar desse fenômeno? Afolayan, em seu diálogo com Nollywood, pretende também deslocar as questões acerca da modernidade e da pós-modernidade e da própria ideia de África. Nesse sentido, a aproximação com o cinema africano ajudaria a articular o imperativo de autodefinição narrativa de um horizonte panafricano, o que seria “a primeira condição se a África tiver que enfrentar sua necessidade de desenvolvimento autossustentável como uma exigência moderna. Os esforços do cinema africano para construir mundos (worldmaking) e a visão de mundo (world-viewing) da filosofia africana estão ligados à necessidade de fazer mitos, um grande imaginário que se estende sobre o passado e o futuro da África. Com o imperativo de fazer mitos na dinâmica da crise de identidade da África, a identidade da África depende de um processo criativo de falsificação da memória coletiva” (2017a, p. 534). Nesse último ponto, de modo polêmico, Afolayan argumenta que, se todas as nações são alicerçadas em narrativas falsas e idealizas, mentiras sinceras, ou melhor, falsas memórias — como as construídas pelo cinema — também interessam para a construção do panafricanismo (neste ponto não se afasta das nobres mentiras platônicas). Apresentação disponível em: Philosophy of/and Nollywood. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/303820958_Philosophy_ofand_Nolly wood>. Consultado em: 05/02/2021. 34 113 Marcos Carvalho Lopes O modo como Afolayan trabalha com conceitos e autores ocidentais sempre gera uma recontextualização. É, por exemplo, o que faz ao examinar o conceito de modernidade, problematizando a narrativa única eurocêntrica e propondo uma articulação desse conceito a partir da noção Yoruba de Òlàju. Essa palavra, que significa literalmente “abrir os olhos para ver”, aponta tanto para o desenvolvimento técnico quanto para o processo coletivo de gradualmente abrir os olhos, mantendo certa ambiguidade valorativa — como nos ditos “kà sí ìbòwò f’ágbà mò; àwọn ọmọ ti l’ajú s’ódì” (não existe mais o respeito adequado pelos mais velhos porque as crianças são agora excessivamente iluminadas) e “òlàjú ti sọ ayé di dídára ju tàtijò lọ” (òlàjú fez o mundo melhor do que antes) (AFOLAYAN, 2021). Como explica, sua abordagem usa: “o conceito Yorùbá de Òlàjú como uma lente conceitual para reconfigurar a compreensão dessa modernidade multilateral. Com Ólàjú, chegamos à conclusão de que tanto a Europa como a não-Europa são cúmplices na formação e configuração do que significa ser moderno. O espírito moderno percorre o mundo inteiro. É somente a partir dessa premissa que os alicerces das múltiplas modernidades podem ser erigidos adequadamente. É também a partir dessa premissa que várias sociedades podem assumir o controle dos elementos da mudança social, bem como do poder e da dinâmica do conhecimento nela envolvida. Isso essencialmente leva tal sociedade a um diálogo crítico consigo mesma e com os outros” (AFOLAYAN, 2021). Adeshina Afolayan é um aliado para todas as pessoas que querem pensar a filosofia africana hoje se afastando de uma visão romantizada de tradições imutáveis e identidades fixa, mas buscando contribuir para a construção de uma perspectiva panafricana. Como você define a filosofia africana? Adeshina Afolayan — Para mim, a filosofia africana é o corpo de reflexões filosóficas não somente sobre as dificuldades póscoloniais africanas de autoidentidade e desenvolvimento, mas tam- 114 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana bém sobre as questões amplas e universais de significado filosófico e como elas fazem sentido filosófico africanamente (Aficanly). Como você entrou em contato com a filosofia africana? Os meus estudos de graduação e pós-graduação se tornaram mais interessantes pelos antagonismos ideológicos latentes e abertos sobre o estatuto e significado histórico da Filosofia Africana. Esse foi o período em que a filosofia africana estava apenas fazendo sua aparição no espaço intelectual global. E essa emergência foi prejudicada pelo infeliz e eurocêntrico raciocínio intelectual induzido pelo racismo sobre se a Filosofia Africana é suficientemente filosófica para ser integrada no espaço filosófico universal (leia-se: Ocidental). Houve também um subconjunto desse debate que tornou o Departamento de Filosofia da Universidade de Ibadan, Nigéria, intelectualmente muito inflamável. E essa era a questão de saber se a África podia ser considerada como sendo simultaneamente póscolonial e pós-moderna. Esses debates e discursos animaram os currículos de Filosofia Africana e estimularam as mentes ávidas dos estudantes de graduação. Estávamos ansiosos por prosseguir com algumas das questões convincentes no interstício entre as filosofias ocidental e africana e entre a colonial, a racial e a póscolonial. Os currículos nos inflamaram e enfureceram. Devorámos com fome todos os livros disponíveis sobre Filosofia Africana e Afro-diaspórica (African and Africana philosophy).35 A tradução aqui não consegue explicar a distinção utilizada por Afolayan entre African Philosophy e Africana Philosophy: a primeira se refere ao continente africano e a segunda incorpora as produções de populações negras fora da África (sendo um guarda-chuva mais amplo, que teria dentro de si a African philosohy). 35 115 Marcos Carvalho Lopes Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está ultrapassada? No que diz respeito a África, a procura de identidade própria nunca estará desatualizada. Isso na medida em que a questão da identidade deve sempre preceder a questão do desenvolvimento. Por conseguinte, a África, enquanto continente, se confronta com os imperativos da autodefinição e da auto-constituição, para que seja capaz de determinar a direção de desenvolvimento que precisa urgentemente tomar. Isso tudo é mais acentuado num mundo global sob o domínio onipotente da hegemonia capitalista neoliberal, eufemisticamente chamada globalização. Infelizmente, o panafricanismo não parece ter captado o vapor ideológico suficiente para iniciar a necessária libertação do continente em autoconsciência. Embora a China tenha articulado o Consenso de Pequim como uma alternativa ideológica ao Consenso de Washington capitalista, a África requer um modelo político e econômico que tome posição contra os dois modelos predominantes. Mas o continente ainda está solto na corrente giratória das águas capitalistas infestadas de tubarões. Continuamos a contar os nossos ganhos em termos capitalistas (ou, em tempos recentes, também em termos chineses!). É nessa medida que a questão da autodefinição ainda se mantém no centro da situação pós-colonial africana. Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia africana hoje? Essa é uma questão significativa. A filosofia africana de hoje se tornou um espaço fundamental para uma miscelânea de diferentes tipos de debates e discursos filosóficos e filosoficamente relevantes. No Palgrave Handbook of African Philosophy (2017), tentamos reunir um corpus específico de algumas dessas questões interessantes que são significativas para o ser-no-mundo africano hoje. As questões vão desde a autoimagem da própria filosofia africana (em relação a outras tradições filosóficas cognatas: Filosofias 116 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana afro-diaspóricas e afro-caribenhas, por exemplo) ao feminismo e gênero, desenvolvimento da África, governança democrática, nacionalismo, descolonização, filosofia da arte, ambientalismo, ao sistema de conhecimento indígena, ciência e tecnologia, filosofia da educação e assim por diante. Realmente, parte do meu projeto atual é sobre a autoimagem da filosofia africana (de fato, o foco central do meu livro de 2018, Filosofia e Desenvolvimento Nacional na Nigéria), é a necessidade de ir além da trajetória e da imagem da filosofia africana acadêmica, para um ponto crítico em que essa começará a se envolver com as filosofias da vida real através das quais os africanos constroem sentido para sua existência e lutas existenciais. Isso exige duas abordagens relacionadas. Primeiramente, a filosofia africana deve abandonar a sua arrogância e entrar em espaços transdisciplinares e interdisciplinares como os estudos africanos. Em segundo lugar, e por implicação, a filosofia africana deve estar pronta para incorporar o significado filosófico daquilo que muitas vezes consideramos como não-filósofico. Tenho defendido, por exemplo, a relevância filosófica de estudiosos africanos como Toyin Falola e do falecido Abiola Irele. Não faz qualquer sentido intelectual insistir que esses brilhantes estudiosos não são “filósofos africanos” simplesmente porque não tiveram formação filosófica ou porque não são filósofos profissionais. Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo (womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia africana aborda questões relacionadas com as diferenças de gênero e identidade sexual? O feminismo global se tornou tão conceitualmente, ideologicamente e metodologicamente fragmentado a ponto de quase derrotar os seus próprios objetivos. Não existe sequer consenso sobre o ponto mais singular do seu arsenal conceitual: a ideia de mulher. Por conseguinte, é agora grosseiramente pouco esclarecedor falar mais sobre o feminismo no singular. A dissonância ideológica é o que levou à emergência do feminismo 117 Marcos Carvalho Lopes africano e o enfoque no mulherismo como um quadro mais iluminador para teorizar as experiências pós-coloniais e globais das mulheres africanas. No entanto, mesmo o feminismo africano já não pode ser visto como um espaço para uma concepção singular do que é o feminismo ou mulherismo. Infelizmente, os discursos de gênero não têm animado o espaço filosófico africano com a mesma profundidade que as questões de desenvolvimento e política. Graças às pesquisas seminais e definidoras de estudiosos filosoficamente significativos como Ifi Amadiume e Oyèrónkẹ Oyěwùmí, bem como de filósofas feministas como Nkiru Nzeogwu e outras, os discursos de gênero têm vindo a ganhar terreno com as reflexões filosóficas sobre o(s) feminismo(s) africano(s) e a condição para sua(s) possibilidade(s). Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é o mais importante em sua opinião? Duvido que alguém consiga articular uma resposta coerente para essa difícil questão. Todas aquelas que articulam um discurso filosófico e filosoficamente relevante sobre África são, na minha opinião, relevantes. A beleza do empreendimento filosófico africano é que a base lançada pela primeira geração de filósofos africanos foi elaborada, analisada, criticada, reabilitada e ampliada pelas gerações seguintes, todas as reflexões acumuladas num grande corpo de textos, discursos e propostas sobre como a África chegou onde chegou e como a libertação e o progresso poderiam ser alcançados. Dentro desta trajetória, é mais difícil identificar o filósofo ou filósofos “mais importantes” sem causar danos extremos às reflexões definidoras de muitos outros. Quem é o seu filósofo africano preferido? Tenho muitos deles: Kwasi Wiredu, John Olubi Sodipo, Lepold Sedar Senghor, Sophie Oluwole, Emmanuel Chuwkudi Eze, Olusegun Oladipo, A. G. A. Bello, Barry Hallen. Mesmo essa listagem é difícil de enumerar. Na listagem, a minha mente percorre aquilo a que podemos chamar “gerações de 118 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana reflexão filosoficamente significativa”. A lista tal como está, é apenas parcialmente indicativa. Continuar listando já inviabiliza o objetivo da lista e o conceito de “favorito”. O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil. Esse também é um problema comum em relação à África de língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma unidade que leve em conta esses espaços? No Palgrave Handbook of African Philosophy, tentámos resolver essa omissão crítica no espaço filosófico africano com a inclusão da tão caluniada filosofia africana lusófona. Quando se fala de “filosofia africana”, a atenção é normalmente dirigida para as filosofias africanas francófona e anglófona. Mesmo a preeminência destas fronteiras não sugere quaisquer relações internas. A maioria dos textos definitivos em qualquer dos contextos não estão prontamente disponíveis para o outro. E os textos traduzidos apresentam os seus próprios problemas filosóficos. É nesse sentido que as fronteiras linguísticas se tornam críticas como limitações filosóficas. Por exemplo, o sentido do feminismo sob o discurso no contexto africano anglófono será essencialmente diferente no contexto francófono. A única consolação que temos é o fato de que a diversidade linguística coalesce em torno de uma unidade temática e continental sobre as mesmas questões de libertação, descolonização, desenvolvimento e progresso. E uma vez que não há forma de minar a diversidade, a tradução se torna o meio através do qual a fronteira pode entrar parcialmente em colapso, de modo a facilitar conversas filosóficas eficazes para além das fronteiras. Não há forma para a filosofia africana evitar conversas através de fronteiras linguísticas e culturais com um contexto filosófico como o Brasil e a sua significativa continuidade e descontinuidade cultural com o continente africano. 119 Marcos Carvalho Lopes Adeshina Afolayan é professor de filosofia na Universidade de Ibadan, Nigéria. Ele é co-editor de The Palgrave Handbook of African Philosophy (2017), Pentecostalism and Politics in Africa (2018), e autor de Philosophy and National Development in Nigeria (2018). Referências AFOLAYAN, Adeshina (Ed.). Auteuring Nollywood: critical perspectives on the figurine. University Press, Nigeria, 2015. AFOLAYAN, Adeshina; FALOLA, Toyin (Ed.). The Palgrave handbook of African philosophy. New York: Palgrave Macmillan, 2017. AFOLAYAN, Adeshina. African Philosophy at the African Cinema. In: The Palgrave Handbook of African Philosophy. Palgrave Macmillan, New York, 2017a. p. 525-537. ______. “Is Modernity Single and Universal?: Òlàjú and the Multilateral Modernity”. Yorùbá Studies Review. Vol. 1 No. 1 (2016)Disponível em: <https://www.researchgate.net/profile/A deshina_Afolayan/publication/307995447_Is_Modernity_Single_a nd_Universal_O_laju_and_the_Multilateral_Modernity/links/57d6 8e3708ae0c0081ea3b44.pdf>. Consultado em 01/02/2021 _____. Philosophy and National Development in Nigeria: Towards a Tradition of Nigerian Philosophy. Routledge, 2018. 120 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Fernando Proto Gutierrez e o diálogo entre África e Abya Yala* O filósofo Eugenio Nkogo Ondó não escondeu seu entusiasmo ao descrever o trabalho de seu amigo e discípulo argentino Fernando Proto Gutierrez: “Não seria um exagero se eu estivesse inclinado a acreditar que sua dedicação bem-sucedida à pesquisa, empreendida precisamente no limiar de uma idade tão jovem, o colocou no topo dos filósofos mais jovens do século XXI”. Essa aposta de Ondó é também uma parceria, a construção de uma ponte entre a filosofia africana e a filosofia latino-americana. Se a filosofia africana é fruto de um cultivo e convivência, em que o reconhecimento da alteridade e suas diversas conformações, que devem ser harmonizados para servir à Justiça, então a lição que devemos aprender com Gutierrez nesta entrevista é a parte feliz da colheita de um trabalho em comum Como você define a filosofia africana? Fernando Proto Gutierrez — Em princípio, é possível relembrar as palavras de Aristóteles — como aquela trazidas do passado imemorial para o presente da memória histórica — e, então, conjeturar que a filosofia africana se diz de muitos modos. Werner Marx, em “Heidegger e Tradição”, contribuiu ao descrever as características do “ser” europeu, a rigor: identidade, necessidade, inteligibilidade e eternidade. O filósofo argentino Juan Carlos Scannone opôs a ela as características do “acontecer” judaicocristão: alteridade, gratuidade, mistério e novidade histórica. Com base em ambas as dimensões categóricas, deduziu as notas características do “ser” latino-americano — em referência a Rodolfo Kusch * https://doi.org/10.51795/9786526508268121128 121 Marcos Carvalho Lopes —, em “Novo ponto de partida na filosofia latino-americana”: ambiguidade, destinalidade, abissalidade e arqueicidade. Assim, no artigo “Ubuntu e Ma'at no Donsolu Kalikan”36 publicado na FAIA e apresentado em 8 de junho de 2015, naquela que foi a primeira conferência sobre filosofia africana proposta por Enrique Del Percio, com PIDESONE [1] na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires (200 anos depois de sua fundação, não havia notícias sobre filosofia africana), apresentei o que interpreto serem as notas do “ntu” ou “força”, como ponto de partida da filosofia africana: relacionalidade (ubu-ntu), justiça (Ma'at), pluriformidade e comemoratividade. O pedido de uma “definição” do que se deve entender como “filosofia africana” vem de tentativas essencialistas que comprometem as modalidades euro-americanas de elucidação e análise conceitual e que, portanto, requerem a conciliação de definições claras e diferentes para determinar a natureza de um pensamento. Mas, a filosofia africana nem é, nem acontece, nem está, então, pelo contrário, é cultivada em, com e a partir da relacionalidade comunitária (ubu-ntu) e seus muitos frutos (pluriformidade) são colhidos com critérios de justiça (recordo, para o caso, as regras do jogo Oware); a força dessa filosofia se faz-ver na lógica radical/seminal que comemora o ritual do trabalho coletivo inexorável. Em outras palavras, não há possibilidade da filosofia africana sem pensar na alteridade como uma dimensão ética primária que lhe dá sentido e sem parar para entender que a força procede, sem mais, da comunidade que lhe faz brotar, repetidamente, os frutos da terra: a filosofia se mostra assim como a rememoração dessa dinâmica originária, traduzida num registro oral de aforismos ou poemas. No Gbeme-Ho, Kutome-Ho do Antigo Reino do Daomé está escrito: “Do corpo que envelhece na terra, os cupins farão sua parte”. A filosofia africana é dita de muitas maneiras, como muitas GUTIERREZ, Fernando Proto. Ubuntu y Maat en el Donsolu Kalikan. Revista FAIA-Filosofía Afro-Indo-Abiayalense, v. 4, n. 22, 2016. 36 122 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana também são as maneiras pelas quais as forças da comunidade, da terra e do céu, cultivam, colhem e nutrem o vínculo. Como você entrou em contato com a filosofia africana? Por volta do ano de 2003, em Buenos Aires, comecei a suspeitar da canônica “passagem do mito ao logos”, postulada pelas historiografias whig europeias do século XIX, racistas e colonialistas. Esse suposto “milagre helênico”, padronizado por John Burnet e revisitado por Jean-Pierre Vernant (para legitimar o caráter racional da República Francesa), coincidiu com uma forma de epistemicídio, ou seja, com uma compreensão monológica da racionalidade filosófica-científica que exclui e nega as contribuições afro-asiáticas ao pensamento pré-socrático e platônico. Nessa linha, encontrei a obra mais significativa em espanhol, que trata do problema a partir de uma perspectiva liberacionista: Síntese Sistemática da Filosofia Africana do filósofo pan-africanista Eugenio Nkogo Ondó, fundador da Escola de Pensamento Radical. Desse modo, a porta da África foi a egiptologia, levando-me a escrever artigos que revisam as relações filosóficas entre a Grécia e o Egito (não mais desde o difusionismo de Grafton Elliot Smith): “A matemática egípcia e o modelo ariano-racista: uma nova leitura crítica da origem da filosofia europeia” (GUTIÉRREZ, 2017), “Paralelos entre o Kemético e a matemática pitagórica-platônica” (GUTIÉRREZ,2016), “Aspectos essenciais da matemática egípcia”( GUTIÉRREZ, 2012), “Teologia Kemética”, “Translógico ou ana(dia)lético no pensamento Kemético” (GUTIÉRREZ, 2016), isto é, como se pode ver, que a hipótese de trabalho consistia em interpretar, especificamente, a relação entre o pitagorismo e o pensamento egípcio, hipótese que merece maior atenção e quantidade de estudos extensos. Essas contribuições foram posteriormente sintetizadas e expandidas no livro “Filosofia da Lógica: Origem Afro-Asiática da Filosofia Europeia”, cuja primeira edição foi intitulada “A Essência do Pensamento Kemético” (2012). 123 Marcos Carvalho Lopes Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está ultrapassada? Essa busca pela própria identidade, sem dúvida, foi vista nos séculos XIX e XX vinculada à teorização panafricanista e à luta política pela libertação continental; não é possível compreender o panafricanismo dessa forma se o quadro epistemológico da práxis ético-política está dividido. Assim, não é prudente dizer que o inquérito sobre a identidade africana terminou, uma vez que muitos dos pan-africanistas morreram, foram assassinados ou desapareceram, fomentando a geração de um vazio teórico ocupado então por outras preocupações, na medida em que o neocolonialismo se apropriou do discurso acadêmico, midiático e público da África: a des-atualização do debate em torno da identidade africana se deve ao triunfo das tecnologias neoliberais do bio-poder colonial e da cooptação do discurso acadêmico; isso não significa que as novas preocupações não sejam urgentes, mas que a sua resolução ficará truncada se, como pressuposto, não se compreender o problema fundamental de dar à África um nome próprio. Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia africana hoje? Até certo ponto, as questões vinculadas a uma agenda global comum devem se tornar o objeto de investigação filosófica. Além disso, mostrarei experimentalmente que os novos ou velhos assuntos africanos também podem ser problematizados a partir da categoria do habitar (como existenciario), para conotar, assim, o feixe de complexidade e riqueza de significados que poderiam ocorrer se os esquemas hermenêuticos fossem expandidos aos esquemas hermenêuticos-conceituais de interpretação: 1. Habitar a terra (“terra”, no sentido simbólico) em tempos de mudanças climáticas (e de mudança de época) e de tecnologização dos processos de produção, que envolvem também a apropriação do território, com dinâmicas de territorialidade e territorialização que alimentam uma diversidade de conflitos em uma chave 124 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana neocolonial; o território torna-se substrato inabitável, na medida em que os interesses de lucro em torno de sua exploração envolvem a morte como um tributo oferecido em troca da posse de “recursos naturais” (ex: exploração de petróleo na Nigéria); 2. Habitar com/contra o outro/Outro, em termos de Ubu-ntu e, nesse sentido, assumindo o caráter conflituoso da fraternidade que, por isso, habilita dar vida para aquele outro/Outro com quem realmente acontece uma identificação primária. Além disso, essa ética trilógica que nos fala de um si mesmo como outro, de um si mesmo por o outro (procura e cura do ser do outro) e de um si mesmo contra o outro, hoje mostra vítimas (sacrificáveis) que se deslocam de um lugar para o outro do território, fugindo da morte: refugiados, crianças-soldado, escravas sexuais... O outro como sacrifício dado por e para possuir os recursos da terra; 3. (In)habitar em, com e a partir da violência, enquanto a territorialidade/territorialização colonialista é violenta e se inscreve como um discurso/prática que se encarna, niilizando: esvazia a terra com secas, expulsões (in)humanas e abre com fome os cadáveres dos somalis, sudaneses ou malianos. Esse habitar é apenas uma perspectiva de abordagem que envolve pensar o território, na alteridade e na violência, pois também se pressupõe que a partir de uma reflexão que inclui a violência como uma de suas dimensões, também seria pertinente incluir a nãoviolência como um horizonte ético-político de ação. Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é o mais importante em sua opinião? No que diz respeito aos temas da filosofia africana, considero-me discípulo do filósofo guineense Eugenio Nkogo Ondó, que também me ofereceu a sua amizade. Com ele, concordamos sobre a necessidade e urgência de construir uma ponte intercontinental de trabalho filosófico que comunique os problemas da África e de Abya Yala; ele próprio tem refletido sobre o assunto em “A reconstrução da ponte Afro-Euro-Abiayalense de comunicação e conhecimento”. Nesse sentido, no nosso Programa Internacional de 125 Marcos Carvalho Lopes Filosofia Intercultural da Libertação, em conjunto com a Escola do Pensamento Decolonial e a Rede do Pensamento Decolonial, têmse desenvolvido múltiplos projetos como a Revista FAIA, testemunho da correspondência que mantenho com Nkogo Ondó desde o 2007 e o trabalho conjunto realizado desde então. Eugenio Nkogo Ondó nasceu em outubro de 1944 em Bibás, Akonibe, Rio Muni, Guiné Equatorial. É Doutor em Filosofia pela Universidade Complutense de Madrid, onde frequentou os cursos ministrados por [Xavier] Zubiri, tendo também estudado na Universidade de Paris-Sorbonne. Ele foi professor na Universidade de Gana-Legon, Accra (1978-1980). De lá, ele se mudou para os Estados Unidos da América conduzindo uma investigação privada na Universidade de Georgetown, Washington D.C. (1980-1981). Publicou La Pensée Radicale, no final de 2005, pela Société des Écrivains, de Paris. É membro da Association des Auteurs Autoédités (AAA) e participa de pesquisas, redações e conferências nacionais e internacionais. Além da correspondência, recebi a aprovação de sua hospitalidade durante o Natal de 2016; em ocasiões anteriores, tivemos encontros de trabalho e estudo anteriores no Colloque d'études décoloniales: Déplacements épistémologiques du pouvoir, de l'être et des savoirs, organizado pelo nosso amigo Sébastien Lefevre na l'Université Lumière Lyon 2. Qual é o seu filósofo africano preferido? Há um número significativo de pensadores africanos que já se tornaram clássicos da história da filosofia: da Argélia: Albert Camus, Louis Althusser, Agostinho de Hipona, Jacques Derrida, Frantz Fanon; no Congo, Theophile Obenga; no Egito, Ptah-Hotep, Plotino ou Maimonides; em Gana, Kwame Nkrumah e Du Bois; em Ruanda, Alexis Kagame; no Senegal, Cheikh Anta Diop; na África do Sul, Steve Biko; na Guiné Equatorial, Eugenio Nkogo Ondó. Sem dúvida, minha seleção também mostra minhas preferências e também um viés quanto ao gênero dos autores. 126 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil. Esse também é um problema comum em relação à África de língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma unidade que leve em conta esses espaços? Com a pesquisadora e ensaísta francesa Claude Bourguignon Rougier, discuti o problema da tradução; a partir da Réseau d'Études Décoloniales — e por meio da oficina de tradução “La Minga” — são realizadas traduções de escritos de filosofia descolonial latinoamericana. Sem dúvida, a linguagem atua como um fator limitante no que diz respeito à enunciação onto-semiótica do que se manifesta como dado nas reflexões filosóficas contemporâneas. A relação entre a Rede Latino-americana Decolonial e a Réseau d'Études Décoloniales realizam esforços substanciais para reunir e traduzir filósofos latino-americanos, europeus e africanos. Nesse sentido, cabe destacar que Sébastien Lefevre deu continuidade ao seu trabalho de trazer o colóquio de São Luís do Senegal em 2017 para a UNILAB do Brasil em 2019, por meio do colóquio “Representações de africanos e afrodescendentes na escola manuais: perspectivas afrodecoloniais, visões práticas e teóricas”, dos quais tenho feito parte como membro da Comissão Científica. Mesmo assim, as pontes de comunicação com a África são difíceis, não só por causa das barreiras linguísticas, mas também por razões políticas, ou porque o trabalho sobre a filosofia decolonial ou de libertação está suspenso na academia africana e é difícil então estabelecer diálogos sistemáticos sobre ambos os lados do Atlântico. Fernando Proto Gutierrez nasceu no General Rodriguez, Província de Buenos Aires, em 1988. Prof. Licenciado em Filosofía pela Universidad del Salvador e em En Gestión de las Instituciones Educativas, pela Universidad Abierta Interamericana. É docenteInvestigador en el Depto. De Ciencias de la Salud de la Universidad Nacional de 127 Marcos Carvalho Lopes La Matanza (Argentina). Dirige o Programa Internacional de Pesquisa em Filosofia Intercultural da Libertação que edita a revista FAIA | Filosofia AfroIndo-Americana (ISSN 2250-6810). Ele é membro do Seminário de Pesquisa Científica da Associação Latino-Americana de Filosofia e Ciências Sociais. Membro da Equipe de Estudo sobre Fraternidade e Justiça do Departamento de Ciências Sociais (UBA). Membro do Comitê de Avaliação Externa da Revista Nuevo Pensamiento, Colegio Máximo San José de San Miguel (Universidad del Salvador). Membro do Comitê Científico do Colloque d’études décoloniales: déplacements épistémologiques du pouvoir, de l’être et des savoirs Université Lumière Lyon 2. Referências GUTIERREZ, Fernando Proto. Ubuntu y Maat en el Donsolu Kalikan. Revista FAIA-Filosofía Afro-Indo-Abiayalense, v. 4, n. 22, 2016. _____, La matemática egipcia y el modelo ario-racista. Re-lectura crítica del origen de la filosofía europea. Revista nuestrAmérica, v. 5, n. 9, p. 121-134, 2017. _____. Paralelos entre matemática egipcia y pitagóricaplatónica. Revista FAIA-Filosofía Afro-Indo-Abiayalense, v. 1, n. 6, 2016. ______, Aspectos esenciales de la matemática egipcia. Revista FAIA, v. 1, n. 4, p. 2-5, 2012. ________. . Translógica o Ana (dia) léctica en el pensamiento kemético. Revista FAIA-Filosofía Afro-Indo-Abiayalense, v. 1, n. 3, 2016. _________. La esencia del pensamiento kemético. A Eugenio Nkogo Ondé (1/6). Revista FAIA, v. 1, n. 1, p. 8, 2012. 128 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Leonhard Praeg e a retrodicção da filosofia africana* A riqueza do debate acadêmico sobre a palavra de ubuntu na maioria das vezes é ocultada por abordagens reducionistas e instrumentais que se esquivam das dificuldades e dimensões turvas para oferecer um sentido unívoco. Outra postura — adotada por um professor africano especialista nas questões raciais do Brasil — é se esquivar das elucubrações teóricas e resumir o significado do termo como designando simplesmente “humanidade compartilhada”. Como um exercício, sugiro que o leitor atente às seguintes descrições de Ubuntu e decida qual é a verdadeira: 1. “O Ubuntu é uma filosofia exclusivamente africana que pode ser recuperada e implantada para fins emancipatórios no pós-colonial”; 2. “O Ubuntu é um conceito ou filosofia exclusivamente africana e outras sociedades do mundo podem aprender muito com ele; ele pode ser aplicado globalmente para conter os excessos do individualismo de estilo ocidental, tanto no domínio político quanto no econômico”; 3. “Ubuntu, qua humanismo comunitário, é intolerante à liberdade individual; força os indivíduos a se conformarem ao coletivo e como tal é incompatível com as normas e valores da democracia liberal”; 4. “O Ubuntu não é exclusivo da África e o nexo de valores a ele associado é típico de qualquer sociedade com um modo de produção pré-capitalista, ou seja, pré-surplus”; 5. “O Ubuntu pode ser retrodito para fins pós-coloniais, mas não há nada de particularmente singular nele, na verdade, ele é indistinguível de outras formas contemporâneas de comunitarismo, nomeadamente de uma ética feminista de cuidado”; 6. “O arquivo histórico escrito sobre a África, dominado pelo Ocidente, torna fútil qualquer tentativa de reapresentar o significado original e autêntico do Ubuntu”. (PRAEG, 2017a, p. 494-495). * https://doi.org/10.51795/9786526508268129140 129 Marcos Carvalho Lopes Afinal, qual das descrições é a verdadeira? Nenhuma delas é a verdadeira? Todas as descrições são verdadeiras? Para o filósofo sul-africano Leonhard Praeg, a ideia de um significado unívoco é um anseio problemático de colocar fim à conversação e sua busca contínua e política de articular sentido. Todas essas descrições podem ser parcialmente verdadeiras e montam um rico cenário de debate. Praeg relaciona cada uma dessas descrições à “personagens conceituais” distintos, que postulam abordagens políticas diferentes quando se busca pensar o sentido de Ubuntu. Respectivamente temos o Revolucionário (1), o Salvador (2), o Conformista (3), o Cosmopolita historicista (4), o Cosmopolita contemporâneo (5) e o Arquivista (6). Apesar da arbitrariedade dessa taxonomia de interpretações, ela funciona como um modo de reconhecer tensões e uma pluralidade de posições que estão em jogo quando se pensa em Ubuntu. Como pressuposto em sua análise, Praeg propõe uma distinção entre a prática africana pré-colonial de ubuntu (com letra minúscula), como uma forma de vida comunitária, com uma economia política de obrigações; e a articulação teórica e filosófica pós-colonial de Ubuntu (com letra maiúscula). Deste modo, não quer produzir uma dicotomia, mas situar o debate acadêmico sobre Ubuntu como marcado por um contexto global, com distintas abordagens teóricas e apropriações/cooptações informadas pelas práticas locais africanas. Reconhecer a tensão entre ubuntu e Ubuntu é um caminho para tentar continuamente desenvolver uma forma de humanismo crítico, cujo foco central “não é simplesmente o humano — a capacidade humana para a ciência, a beleza e o conhecimento em um mundo que não mais difere o significado de uma fonte transcendental. No humanismo crítico, o “humano” é um conceito secundário; (...) um conceito mais fundamental ou preocupação primária está nas relações de poder que sistematicamente excluem certas pessoas de serem consideradas humanas em primeira instância”. Neste humanismo crítico, reconhecer a tensão e aporia entre ubuntu e Ubuntu é um modo de evitar formas de descrição que paradoxalmente (Praeg fala em 130 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana paradoxo da diferenciação) utilizam a natureza dialógica e relacional de Ubuntu como uma espécie de justificativa assertiva para o exclusivismo racial. Essas tensões são evidentes quando consideramos o(s) uso(s) de Ubuntu como elemento fundador do Estado da África do Sul no pós-apartheid a partir da Comissão de Justiça e Reconciliação. Ao mesmo tempo, houve a tentativa de resgatar um modo de vida précolonial e descreve-lo conceitualmente em termos teóricos e práticos, como fundamento para procedimentos e atos de justiça baseados no reconhecimento da humanidade compartilhada. Esse nós que deveria ser reconhecido é a base do pacto de re-fundação de um Estado que toma a forma de uma Democracia liberal. Como conciliar o comunitarismo de Ubuntu com o modo de vida e as práticas individualistas/individualizantes da democracia liberal? São suficientes os atos de justiça simbólicos que não trouxeram redistribuição economia e social de poder? Todas essas tensões e aporias em torno de um termo que muitas vezes é tomado de forma simplista, são marcas de um trabalho filosófico cuidadoso e analítico que procura articular uma investigação dentro da filosofia africana que tem como gancho as palavras de dois pensadores africanos. Por um lado, o tanzaniano Julius Nyerere explicava o sentido do pan-africanismo dizendo: “Desejamos contribuir para o desenvolvimento do Homem se pudermos, mas nós não afirmamos ter a ‘solução’; nossa única afirmação é que pretendemos avançar no escuro, em direção a um objetivo tão distante que até a compreensão real dele está além de nós (...)”; por outro lado, o franco-argelino Jacques Derrida, em entrevista, ponderou que “todo questionamento genuíno é convocado por um certo tipo de escatologia, embora seja impossível definir essa escatologia em termos filosóficos”. Cruzando essas citações, que são epígrafes para o livro de Praeg A Report to Ubuntu (2014, p. vii), podemos nos perguntar pela esperança que move o autor ao pensar Ubuntu. 131 Marcos Carvalho Lopes Na entrevista a seguir, o leitor poderá também ter um gancho para se aproximar da abordagem de Leonhard Prag da filosofia africana. Como você define a filosofia africana? Leonhard Praeg — Acho útil distinguir entre 'Filosofia Africana tradicional' (Tradicional African Philosophy) e “Filosofia Africana Moderna” (Modern African Philosophy). Como a primeira, entendo a filosofia africana pré-colonial ou pensamento africano, o que alguns descartariam como 'visão do mundo africano' ou Weltanschaung; outra forma de chegar à filosofia africana tradicional seria dizer que ela se refere às antigas ou consuetudinárias (tradicional) tradições (traditions) de sabedoria africana que a etnofilosofia e a filosofia da sagacidade revigoraram ou “retrodisseram” (retrodicted) (para usar a palavra útil de Mudimbe37) como filosofia moderna. Como filosofia africana moderna entendo aquela nascida da dupla consciência, o tipo de pensamento que reconhece a natureza política fundamental do pensamento africano como pensamento contra-hegemônico; nascido no momento moderno, no cadinho do colonialismo como um pensamento de volta ou contra, mas também dentro da modernidade ocidental. A relação entre filosofia africana tradicional e filosofia africana moderna é complexa, mas talvez Avaliando o que chama de teologia da adaptação, de autores como John Mbiti, Vincent Mulago ou Dominique Nothomb, Mudimbe identifica que seu método de análise “sugere uma política de ‘retrodicção’ (retrodiction), ou seja, o oposto de previsão. Estabelece um paralelo análogo entre o desempenho missionário sob o domínio colonial e o futuro do cristianismo sob a iniciativa africana. Insiste na necessidade de buscar, nos sistemas tradicionais de crenças, sinais ou harmonias unânimes que possam ser incorporados ao cristianismo, a fim de africanizá-lo sem modificá-lo fundamentalmente. Politicamente, o método aceita a universalidade de um Deus Christianorum mas questiona os resultados, tanto estatísticos quanto psicológicos, do desempenho missionário. De fato, dado o espírito e a força global dessa teologia da adaptação, a empresa missionária poderia e deveria ter tido mais sucesso se seu objetivo fosse elevar o Deus Abscondito africano à sua realização no Deus Christianorum” (MUDIMBE, 1991, p. 13-14). 37 132 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana possamos dizer: filosofia africana tradicional é pensamento africano não contaminado pelo desejo moderno de se apresentar em termos das exigências disciplinares do que veio a ser conhecido como “filosofia”. Como você entrou em contato com a filosofia africana? Fui treinado na tradição continental ocidental — muito antes da Filosofia Africana ter sido aceita pelos filósofos da África do Sul como uma subdisciplina válida. Meu primeiro posto de professor em tempo integral foi na Universidade de Fort Hare (1996-1998), onde se esperava que eu ensinasse o que eu havia sido treinado. Os estudantes não se saíram nada bem e, após meu primeiro ano, pensei que ou eles eram inúteis no estudo de filosofia ou eu era inútil no ensino. Então percebi que existe uma terceira possibilidade: talvez o currículo esteja fora do lugar, deslocado; talvez eu estivesse ensinando respostas (será que toda teoria filosófica não é uma resposta a um problema?) a perguntas que eles não tinham feito porque o contexto sociológico do qual a filosofia continental emergia era radicalmente diferente do contexto sociológico no qual eles estudavam e que, se eles estudassem filosofia, deveriam ser encorajados a encontrar respostas filosóficas para as perguntas levantadas por seu próprio contexto. Quando percebi isso, abandonei o doutorado em Foucault em que estava trabalhando e me inscrevi novamente para um doutorado em filosofia africana, posteriormente publicado como African Philosophy and the Quest for Autonomy, Amsterdã: Rodopi (2000). Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está ultrapassada? Aqui vou inserir um breve discurso que fiz no ano passado, quando fui solicitado por nossos alunos para abordar a questão: O que é filosofia (sul-africana). 1. A questão O que é filosofia (sul-africana)? é uma versão da pergunta que deu origem ao que ficou conhecido como o Grande 133 Marcos Carvalho Lopes Debate que grassou nas décadas de 70 e 80, a saber: O que é Filosofia Africana (AP)? 2. Naquela época, a questão assumia duas formas: Existe algo como Filosofia Africana? e ‘O que é Filosofia Africana? 3. Na minha leitura, o Grande Debate acabou por desabar de fadiga conceitual, porque, para ter uma resposta, ambas as questões dependiam das respostas para duas questões pressupostas por ambas: O que queremos dizer com África? e o que queremos dizer com filosofia? • Quanto à ‘África’: a Filosofia Africana só pode ser feita por africanos que vivem em África ou também por diáspora, ou seja, africanos de descendência? E quanto aos filósofos brancos: eles podem fazer filosofia ‘africana’ mesmo que não sejam africanos de nascimento ou descendência? • Quanto à definição de Filosofia: todos sabemos que NÃO ser capaz de definir o que isso significa é a razão de ser da disciplina. 4. Portanto, o problema com ambas as questões que definiram os parâmetros para o Grande Debate era que um termo indefinível era dependente de outro termo indefinível. 5. A questão colocada aqui repete os parâmetros desse debate com a única diferença de que não se espera que definamos ‘África’, mas sim ‘África do Sul’. E, no entanto, o problema permanece: quem são os sul-africanos que podem responder à pergunta? Mais radicalmente, existe algo como um ‘Sul-africano’? Acho que não. 6. É por isso que no que se segue, não vou ficar dentro dos limites de sua pergunta, mas sim recuar para me concentrar em uma tensão específica que eu acho que é mais fértil, mais produtiva; uma tensão que penso ser constitutiva da Filosofia Africana e de todas as outras tradições filosóficas emergentes do sul global. Que tensão é essa? É talvez uma que devemos abordar obliquamente, circunscrevendo-a. 7. Para principiar a circunscrever a tensão que tenho em mente, quero começar fazendo uma série de perguntas que têm em comum o fato de todas terem a mesma resposta: • Primeira pergunta: Jesus era cristão? 134 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana • Segunda pergunta: Marx era marxista? • Terceira pergunta: os artistas da Renascença se consideravam artistas da Renascença? • Quarta pergunta: os filósofos ocidentais modernos pensaram em si mesmos como filósofos ocidentais modernos? • Quinta pergunta: Descartes se considerava o “pai fundador da filosofia ocidental”? • Por último: era Confúcio um confucionista? 8. A resposta a todas essas perguntas é NÃO. Jesus não era cristão; Confúcio NÃO era confucionista e Marx certamente NÃO era marxista. Em cada caso, há um evento (digamos, o renascimento do classicismo que ficaria conhecido como Renascimento ou filosofia ocidental), ou uma pessoa (digamos, Jesus, Confúcio ou Marx) que aparece no cenário mundial e que, em retrospecto, tornase um 'ismo' ou uma tradição. Em cada caso, a tradição que nasce ou que surge está associada, em retrospecto, ao acontecimento ou pessoa fundadora. 9. Vamos simplificar: em todos os casos acima, há uma diferença entre uma declaração histórica (pessoa ou evento) e a identidade subsequentemente concedida a essa pessoa ou evento pelas pessoas que vêm falar em seu nome. Desta forma, o Cristianismo surgiu falando em nome do evento que eram os ensinamentos de Jesus; O confucionismo e o marxismo surgiram como tradições de pensamento que pretendiam representar a intenção de Confúcio, Marx e assim por diante. 10. O que é peculiar a essa diferença entre o tempo da pessoa ou evento e a identidade que lhe foi conferida é o fato de que o tempo transcorreu entre o evento e a invenção do evento em termos identitários. Em cada caso, há uma diferença temporal entre o evento e o fato de se tornar uma reivindicação identitária. 11. Aqui, um exemplo deve bastar: o que chamamos de 'renascimento europeu' era uma afirmação que, na época de sua ocorrência, se referia ao “renascimento” cultural, artístico, político e econômico europeu após a Idade Média e é geralmente descrito como tendo ocorrido do século XIV ao século XVII. Mas o nome ou 135 Marcos Carvalho Lopes o que estou chamando aqui de identidade de “Renascimento” refere-se a um termo que foi conferido retrospectivamente a esse evento pelo historiador francês Jules Michelet em 1858. Portanto, o evento que associamos ao Renascimento precedeu a invenção do nomeie 'Renascença' por pelo menos 100 anos. 12. O que isso tem a ver com Filosofia Africana? 13. Minha própria maneira de contornar o beco sem saída que foi o Grande Debate é distinguir entre Filosofia Africana Tradicional e Filosofia Africana Moderna. A Filosofia Africana Tradicional remonta a pelo menos 2.000 anos para incluir o pensamento egípcio. Reservo o nome Filosofia Africana Moderna para o pensamento que resultou como consequência do colonialismo, enraizado na dupla consciência, ou seja, quando os pensadores africanos passaram explicitamente a se considerar negros e como pensadores africanos. Antes do colonialismo, os filósofos africanos tradicionais não se consideravam negros nem africanos. E aqui está uma das ideias mais difíceis e muitas vezes mal compreendidas de Fanon. Quando ele afirmou que ‘negritude é uma construção branca’, ele quis dizer, explica Lewis Gordon, que “as pessoas que se tornaram conhecidas como negras são descendentes de pessoas que não tinham razão para se considerarem [negras ou africanas]. Como consequência, a história dos negros tem o motivo constante de tais pessoas encontrarem sua negritude ‘de fora’, por assim dizer, e então desenvolverem, de forma dialética, uma forma de negritude que transcende a série inicial negativa de eventos”. 14. Para ser franco: no século 15 teria sido inconcebível para um “sábio africano” pensar no ubuntu como uma filosofia africana ou negra, porque no século 15 os africanos não se consideravam africanos ou negros. Depois do colonialismo, e na tentativa de superar as associações negativas da negritude, os pensadores africanos, que agora se consideravam negros e africanos, definiram o Ubuntu como uma filosofia peculiar aos negros africanos. Então, para ser mordaz, vamos parafrasear Fanon e dizer: “Ubuntu é uma construção branca”. 136 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana 15. O que me traz de volta à relevância de minhas perguntas sobre Jesus, Marx, confucionistas e a filosofia ocidental. Ao contrário dos casos em que houve um lapso de tempo entre fazer a declaração e, subsequentemente, anexar uma identidade a ela, a filosofia africana como uma declaração nasce de, ou é função de, articular uma identidade. Mais sucintamente ainda: Filosofia Africana é a articulação de declaração e identidade ao mesmo tempo. 16. E esta é a tensão a que aludi no início, quando disse que não irei abordar sua pergunta diretamente, mas sim circunscrevêla com uma tensão que é constitutiva tanto da Filosofia Africana quanto da Filosofia Africana da África do Sul. 17. Nosso desafio é pensar sobre o que significa fazer filosofia quando a declaração e a identidade coincidem; ou mais agudamente, quando a identidade é a razão para fazer a declaração; o que significa fazer filosofia quando não há lapso de tempo entre o enunciado e uma identidade atribuída a ele? 18. Dado o tempo limitado, destacarei apenas uma manifestação dessa tensão e o desafio que ela representa no contexto do apelo à descolonização da filosofia. É inconcebível que o projeto descolonial possa ser empreendido sem invocar a identidade como razão, justificativa e catalisador para fazer diferentes tipos de afirmações filosóficas: invocamos a identidade toda vez que criticamos a filosofia ocidental por não articular a experiência de pessoas que têm identidades diferentes dessa de ser ocidental, homem, heterossexual, branco e assim por diante. Portanto, neste momento em que declaração e identidade coincidem, mobilizamos, como devemos, tratar de identidade para informar a nova afirmação do que deve ser a filosofia. Devemos insistir que a identidade de ser negro e ser africano deve informar nossa práxis filosófica. 19. Mas também há perigo nisso. Pois, ao mesmo tempo que essa identidade pode ser invocada para expandir nossa práxis filosófica, ela também pode funcionar para encerrar a práxis filosófica. Só os negros africanos podem teorizar o Ubuntu? 137 Marcos Carvalho Lopes 20. Não há solução fácil para isso: não se trata de dizer que a identidade não pode ser invocada, mas também não devemos alegar que a identidade é o único critério da verdade. É por isso que chamo de tensão. Mas é uma tensão produtiva; uma que exige de nós que continuemos trabalhando os dois lados da equação o tempo todo: invocar a identidade para que a filosofia se torne mais inclusiva, ao mesmo tempo em que permanecemos alertas para a possibilidade de que a identidade também possa servir como um mecanismo de exclusão. 21. De forma simples, a questão é esta: quando a invocação da identidade nos dá mais afirmações filosóficas e quando nos dá menos? 22. Em minha opinião, dizer que “estudiosos brancos não podem teorizar o Ubuntu porque não são negros”, nos dá afirmações menos filosóficas. Por outro lado, dizer “como um acadêmico branco eu teorizo sobre o Ubuntu o melhor que posso, mas sempre permaneço aberto a pessoas com a identidade negra e que cresceram experimentando o ubuntu, corrigir minha interpretação disso”, nos dá afirmações mais filosóficas. 23. Este é o convite, creio eu: responder à tensão entre afirmação e identidade com abertura recíproca. Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia africana hoje? Eu só posso falar por mim. Sempre tive uma relação muito pessoal e de resolução de problemas com a filosofia, nascida da apreciação de que, como disciplina, é muito adequada para abordar algumas das questões mais difíceis com as quais me senti confrontado especificamente na África do Sul e no pós-colonial em geral: num primeiro momento, e durante muitos anos, a questão da violência coletiva e nos últimos dois anos, a questão muito complexa de teorizar Ubuntu ou humanismo africano em relação a uma ordem constitucional democrática liberal. 138 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo (womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia africana aborda questões relacionadas às diferenças de gênero e identidade sexual? Não tive oportunidade de teorizar a questão do gênero. Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é o mais importante em sua opinião? Quem é o seu filósofo africano preferido? Vou me dirigir aos 6 e 7 juntos. O filósofo ocidental que mais influenciou meu pensamento foi Jacques Derrida e o filósofo africano que mais me influenciou e inspirou, V-Y Mudimbe. O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil. Esse também é um problema comum em relação à África de língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma unidade que leve em conta esses espaços? Acho que não fazemos o suficiente para abordar os diferentes modos de filosofar feitos nas várias zonas linguísticas — francófona, anglofonas, lusófona etc. E esse é um dos problemas da hegemonia e do pensamento contra-hegemônico, uma forma muito diferente de voltar à questão da identidade que assombra a África: devemos sequer pensar na “África” como uma entidade ou um todo, ou seja, a filosofia africana? Isso não equivale a aceitar um binarismo (África/Ocidente) imposto ao continente como resultado do colonialismo? Não seria mais apropriado identificar zonas epistêmicas endógenas — e aqui as zonas linguísticas do francês, inglês, do português, mas também as línguas indígenas africanas — que podem ser tomadas como marcadores que limitam e delimitam tais zonas epistêmicas. Isso é apenas uma reflexão. Leonhard Praeg 139 Marcos Carvalho Lopes (M.Ed Rhodes, Ph.D US) é chefe do departamento de filosofia da Universidade de Pretória. Antes lecionou no Departamento de Filosofia da Educação da University of the Western Cape (1993), no Departamento de Filosofia da Universidade de Fort Hare (1996-1998) e no Departamento de Estudos Políticos e Internacionais da Universidade de Rhodes (2003-2014). Ele é autor de numerosos artigos, capítulos de livros, antologias e monografias no domínio da filosofia africana e é editor do Thinking Africa Imprint (UKZN Press). Em 2017 publicou o seu primeiro romance filosófico intitulado Imitation (UKZN Press, South Africa). Referências MUDIMBÉ, V. Y. Parables and fables: Exegesis, textuality, and politics in central Africa. Univ of Wisconsin Press, 1991. PRAEG, Leonhard. A report on Ubuntu. Pietermaritzburg: University of KwaZulu-Natal Press, 2014. ______. Ubuntu and the Emancipation of Law. In: AFOLAYAN, Adeshina; FALOLA, Toyin (Ed.). The Palgrave handbook of African philosophy. Palgrave Macmillan, New York, 2017a. p. 493506. ______. African Philosophy in a World of Terror. In: AFOLAYAN, Adeshina; FALOLA, Toyin (Ed.). The Palgrave Handbook of African Philosophy. Palgrave Macmillan, New York, 2017. p. 659-670. ______. An Answer to the Question: What is [ubuntu]?. South African Journal of Philosophy, v. 27, n. 4, p. 367-385, 2008. PRAEG, Leonhard; MAGADLA, Siphokazi (Ed.). Ubuntu: Curating the archive. University of KwaZulu-Natal Press, 2014. 140 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Omotade Adegbindin e o Ifá como filosofia* O livro Ifa in Yoruba Thought System (2014, p. xvii), de Omotade Adgbindin, procura demonstrar o significado filosófico do Ifá dentro do sistema cultural Yorùba. Não que Adegbindin tenha sido o primeiro a fazer essa proposta, mas seguindo os passos de Sophie Olowule (1998) e de Olúfémi Táíwò (2005), pôde aprofundar sua análise e incorporar uma avaliação mais ampla e sistemática do corpus do Ifá. Isso porque seu trabalho dá continuidade e traz novas questões para serem analisadas, como a necessidade de superar a dicotomia entre oralidade e escrita, reconhecendo a especificidade, utilidade e limitações de cada forma de conhecimento. A seguinte narrativa contada pelo autor ilustra bem essas posições: Em sua comunidade, há muito tempo, Tartaruga afirmou que era a mais sábia e tinha provado isso com sucesso em muitas ocasiões quando chamada para lidar com qualquer problema urgente. Por ter reivindicado o monopólio da sabedoria, ela decidiu esconder toda a sabedoria humana dentro de uma cabaça lendária, para que nenhum outro indivíduo pudesse ter acesso a ela. Ela havia proposto pendurar a cabaça em cima de uma palmeira. Finalmente chegou à palmeira e decidiu escalar a árvore. Mas fez várias tentativas de escalar a árvore sem sucesso e sem saber o que o estava impedindo. Ela lutou para escalar a árvore, uma e outra vez... ainda estava lutando para escalar a árvore quando um caramujo, passando preguiçosamente, o surpreendeu. O caramujo ficou parado por um tempo em grande divertimento, sabendo que seria impossível para a Tartaruga ter sucesso em sua tarefa. Depois de um tempo, o caramujo chamou a atenção da Tartaruga e disse à Tartaruga que amarrar a cabaça no peito a impossibilitaria de subir na árvore; sua tarefa seria cumprida se ela amarrasse a cabaça nas costas. Relutantemente, porém, Tartaruga tentou a sugestão do caracol e descobriu que teria sido capaz de subir na árvore se * https://doi.org/10.51795/9786526508268141157 141 Marcos Carvalho Lopes tivesse amarrado a cabaça nas costas. Ela percebeu que estava errada ao supor que era a mais sábia de sua comunidade. (2010, p. 23-24). As tentativas de dar à noção grega de sophia um caráter universal, amarrado ao nome e aos desenvolvimentos científicos contemporâneos, é uma narrativa que tem semelhanças com essa sobre a Tartaruga. Se avaliada com mais cuidado, já na Grécia antiga a ideia de uma sabedoria vinculada à vida, vai se descolando do cotidiano em direção à valorização da contemplação teórica. A mutação de sophia na trajetória medieval e moderna, principalmente com o advento da ciência, permitem postular uma cisão entre as preocupações com as condições de possibilidade do conhecimento que movem a filosofia acadêmica e a filosofia da sabedoria, como a atividade reflexiva de uma vida examinada, o amor à sabedoria. O autor não quer aprofundar esse fosso, dando as costas para o desencantamento do mundo (como veremos em sua entrevista), mas quer o reconhecimento de outras formas de filosofia que não se prendam à limitada visão de que a sabedoria é sinônimo de ciência. O Ifá é para a cultura Yorùba o “guardião da sabedoria” (“Akéré-finú-ṣọgbọ́n”), a enciclopédia que preserva sua filosofia. Para interpretá-lo é preciso grande cuidado hermenêutico, para não gerar reificações e descrições literais e empobrecidas, como aquelas que enxergam no conceito de orí o fatalismo da ideia ocidental de destino. A consciência de uma especificidade pode ser o caminho para sua superação.38 É deste modo que, interpretando a partir do Ifá, o autor pôde descrever as deficiências para além dos modelos ocidentais marcados pela descrição médica ou de patologia social (c.f. 2021). Desse modo, a noção de sabedoria Yorùba se afasta da concepção de ciência teorética, como explica Adegnindin: os Yorùbá usam a palavra ọgbọ́n (sabedoria) (...) para descrever a habilidade elevada, uma compreensão fundamentada ou na descrição de Nessa mesma direção, veja o ensaio de Severino Ngoenha, Luca Bussotti e Carlos Carvalho: Disponível em: <https://filosofiapop.com.br/texto/elogio-da-consciencia/>. 38 142 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana atos associados ao julgamento imparcial de argumentos. Ọgbọ́n (sabedoria), portanto, não pode ser removido da discussão da arte do pensamento reflexivo. É por isso que os Yorùbá usam os substantivos ọlọ́ gbọ́n e ọ̀jọ̀gbọ́n para se referir a “um homem sábio” e “um decano”, respectivamente. Os Yorùbá às vezes usam os dois substantivos para venerar um homem que possui qualquer habilidade técnica ou arte particular baseada na experiência, um homem de intelecto sagaz ou um filósofo, embora o substantivo amòye seja comumente usado para se referir ao filósofo. No entanto, não é enganoso usar ọlọ́gbọ́n ou ọ̀jọ̀gbọ́n e amòye de forma intercambiável. (...) o povo Yorùbá, portanto, consulta o ọlọ́gbọ́n ou ọ̀jọ̀gbọ́n e amòye em questões que afetam suas vidas e a sociedade e também o reverenciam como um homem que entende a preeminência da razão ou do pensamento correto em todos os aspectos dos negócios humanos. (2017, p. 323). Omotade Adegbindin não se afasta da tradição de comentadores e sábios do Ifá, nem das tradições de debate acadêmicos da filosofia. Acredito que esta breve entrevista que ele nos concedeu pode nos ajudar a desistir de “subir na palmeira”. O texto a seguir de Adegbindin foi escrito como resposta às questões propostas nessa série de entrevistas.39 1. Definindo Filosofia africana O problema de definir a Filosofia Africana é meta-filosófico porque a maioria das definições que foram apresentadas se baseiam no que os autores acham que deveria(m) ser a(s) coisa(s) importante(s) ou o conteúdo da Filosofia Africana. Outras definições favorecidas por alguns escritores são escolhidas com base no que eles consideram ser a melhor abordagem ou metodologia a ser utilizada na Filosofia Africana. Além disso, a maioria das definições da Filosofia Africana foi desenvolvida por aqueles que as aceitam, de modo que tais definições se tornaram a estrutura para uma escola de pensamento, uma tendência ou uma orientação na Filosofia Africana. Assim: As respostas de Adegbindin não tinham as indicações dos textos citados, que procurei recuperar no processo de tradução através de notas. 39 143 Marcos Carvalho Lopes a. A Filosofia Africana como a Lógica da Tradição Oral: Uma das primeiras definições populares da Filosofia Africana é a que diz que o entendimento de porque os africanos tradicionais fizeram ou disseram as coisas que eles fizeram irá contribuir muito para “trazer à tona” ou “desvendar” a filosofia por trás de tais palavras e ações. Por que nossos antepassados formularam certos provérbios, expressões idiomáticas e discursos de sabedoria? Será que eles tinham razões que informavam suas crenças a respeito de certas coisas — seja na religião ou nas práticas agrícolas? De que modo a contação de histórias e o folclore tinha o objetivo de transmitir certos valores e crenças morais que guiariam os indivíduos e a sociedade? O clérigo John S. Mbiti é um dos que pensavam que “o sistema filosófico de diferentes povos africanos... pode ser encontrado... na (a) religião, provérbios, tradições orais, ética e moral da sociedade em questão”. Por essa razão, Mbiti conclui que a Filosofia Africana pode ser definida como “a compreensão, a atitude mental, a lógica e a percepção por trás da maneira como os povos africanos pensam, agem ou falam em diferentes situações da vida” (Mbiti, 1969, p. 2). b. A Filosofia Africana como a Disputa entre os Tradicionalistas e os Modernistas: Através de livros publicados e artigos sobre Filosofia Africana, é provável que cheguemos à conclusão de que a Filosofia Africana é, afinal, o resultado do desacordo entre aqueles a quem nos referimos como os tradicionalistas e os modernistas. A Filosofia Africana pode de fato ser entendida como a reflexão filosófica e a análise dos sistemas conceituais africanos, como foi empreendida tanto pelos tradicionalistas quanto pelos modernistas. Historicamente falando, quando a Filosofia Africana contemporânea começou, seguindo o trabalho do Padre Tempels em 1945, dois grandes campos evoluíram, a saber, o campo tradicionalista e o campo modernista. No campo tradicionalista estão aqueles que acreditavam fortemente que a autêntica Filosofia Africana pode ser descoberta se voltarmos às nossas origens ou ao 144 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana nosso passado tradicional para procurá-la. Nossa busca por uma autêntica Filosofia Africana, argumentam eles, seria melhor se refizéssemos nossos passos sem a influência de ideias e culturas estrangeiras. O segundo campo conhecido como os “modernistas”, no entanto, rejeita a posição dos tradicionalistas. Os modernistas simplesmente dizem que a sociedade africana de hoje precisa de desenvolvimento. Eles argumentam que o desenvolvimento não pode ser alcançado se confiarmos nas crenças dos africanos tradicionais do passado, porque a sociedade africana tradicional foi, na opinião deles, guiada erroneamente pelo autoritarismo, pela religiosidade e pela superstição. Por essa razão, deveríamos antes abraçar a ciência e a tecnologia (Bodunrin, 1985, p. xi). A destilação do precedente significaria que: (i) para os tradicionalistas, a autêntica Filosofia Africana está no passado, e [deve ser resgatada] para o bem do presente e (ii) para os modernistas, a Filosofia Africana deveria incentivar a ciência e a tecnologia no presente, para o bem do futuro. c. A Filosofia Africana como “Textos Escritos”. Essa definição de Filosofia Africana transmite a perspectiva de que a Filosofia Africana é uma coleção de textos produzidos por filósofos africanos, bem como de escritos filosóficos sobre a África. Isto pode implicar: (i) textos escritos por filósofos africanos, (ii) textos filosóficos escritos por qualquer africano sobre a África, e (iii) textos filosóficos escritos por não-africanos sobre a África. 2. Entrando em contato com a filosofia africana - Primeiro, ao ver o filme Roots no final dos anos 70 e depois a leitura de Alex Harley Negras Raízes (Roots) há muitos anos; - Algumas partes da filosofia africana foram apresentadas a nós no primeiro ano, no nível de graduação. 145 Marcos Carvalho Lopes 3. A questão da identidade africana As pesquisas acadêmicas filosóficas sobre a identidade africana têm uma origem colonial. Isso porque a difamação do povo e da cultura africanas pelos estudiosos europeus como Hegel, Hume, Levy-Bruhl, para justificar a conquista europeia teve que ser rejeitada em sua totalidade. Isso levou à afirmação de uma identidade africana apressadamente articulada, representando os africanos como tendo uma cultura única através da qual conduzem suas vidas. Isso é óbvio na tentativa de Leopold Sedar Senghor que, através de sua teoria da Negritude, postulou uma única filosofia do conhecimento para os africanos. Há duas grandes questões relativas à identidade africana, a saber, “a questão de como melhor responder à difamação colonial ou à subestimação das culturas e tradições africanas, e as questões de como melhor alcançar o desenvolvimento na África sem comprometer nossa identidade” (Oladipo, 1995, p. 59). Por inferência, portanto, pode-se argumentar que a principal motivação para a discussão sobre a identidade africana está na tentativa de combater a visão eurocêntrica de que os africanos são uma raça inferior. Não se surpreende, portanto, que os estudos acadêmicos nas ciências sociais e humanas africanas tenham sido dominados por uma tentativa de afirmar a identidade ou a personalidade africana. De fato, há uma tentativa de projetar o que tem sido chamado de nacionalismo cultural africano ou afrocentrismo. No grupo daqueles que propõem uma ideia rígida da identidade africana ou nacionalismo cultural estão Leopold Sedar Senghor, Frantz Fanon, Walter Rodney, Edward W. Blyden, Molefi Asante, Wole Soyinka, Alexis Kagame, E.B. Idowu, John Mbiti, entre outros. No entanto, há alguns estudiosos africanos que acreditam que, embora seja difícil ignorar nossa dinâmica cultural, devemos ir além de nosso relativismo para abraçar uma cultura universalista. Para esse grupo, o conceito de raça é uma ilusão e só podemos falar sobre a raça humana. Anthony Appiah pertence a esse grupo. 146 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana Segundo Mudimbe, o desejo de buscar uma autenticidade africana levanta algumas questões fundamentais sobre a identidade africana e os estudiosos africanos têm usado vários meios para chegar a essa identidade. Por exemplo, A Filosofia Bantu, de Tempels, pode ser vista como uma ferramenta para a possível emergência da autenticidade, enquanto estudiosos como Cesaire, Fanon e Rodney têm feito amplo uso do colonialismo para engendrar a identidade africana. P.O. Bodunrin defende a visão de que a chave para o desenvolvimento e a modernização no mundo contemporâneo é a ciência e a tecnologia. Ele acredita que o passado tradicional africano foi dominado por intensa religiosidade, espiritualismo, autoritarismo e sobrenaturalismo que são contrários ao pensamento científico (Bodunrin, 1985, p. xii). Ele argumenta que a superioridade racial dos europeus foi incorporada em nós numa mentalidade colonial, por conta das conquistas científicas e tecnológicas dos brancos. Para Bodunrin, portanto, as características essenciais do espírito científico que faltavam na cultura tradicional africana incluem liberdade de inquérito, abertura à crítica, um tipo geral de ceticismo e falibilismo e a não veneração de autoridades. Em sua tentativa de encontrar um equilíbrio entre aqueles estudiosos que defendem rigidamente a identidade africana e aqueles que são de inclinação científica ocidental, Abiola Irele (1982) opina que há uma maneira de reconciliar as duas posições, especialmente considerando suas implicações para o desenvolvimento africano. Assim, Abiola Irele sugere que todos nós temos reivindicações para a civilização ocidental. Mais fundamentalmente, ele sugere que só poderíamos nos beneficiar mais dessa civilização se negligenciássemos o passado colonial e minimizássemos o traço do nacionalismo cultural. A adoção dessas recomendações fez o Japão emergir mais forte após a devastadora Segunda Guerra Mundial. De acordo com Irele, a língua e a cultura não são mais obstáculos nos tempos contemporâneos, quando a ciência e a 147 Marcos Carvalho Lopes tecnologia transformaram o mundo em uma aldeia global, reforçando assim nossa consciência de uma humanidade comum. Com um espírito semelhante, Appiah acredita que a pureza cultural não pode ser mantida pelos africanos devido à interação e interdependência da sociedade global contemporânea. Ele acredita que a modernidade abomina o nacionalismo cultural e a cultura moderna, em virtude da tecnologia de impressão, apenas incentiva a privacidade e o individualismo. Portanto, se existe solidariedade entre as pessoas, ela é apenas solidariedade da humanidade e não da raça. Deve-se notar que a questão da identidade africana era mais premente imediatamente após a pós-independência. Embora a questão da identidade africana ainda seja relevante, ela deve ser discutida de acordo com os desafios modernos que o continente africano enfrenta, tais como os desafios econômicos, políticos e religiosos. 4. A seguir, o que deve constituir as preocupações da filosofia africana de hoje: A primeira tarefa da filosofia africana é a correção da impressão errada criada sobre a natureza do homem africano. Tais relatos errados e distorcidos do homem africano retratam o homem africano primitivo como pré-lógico. Tais concepções errôneas do homem africano tiveram implicações terríveis e essas incluem: (i) a degradação dos africanos aos olhos do mundo; (ii) essa concepção errada engendrou um complexo de inferioridade em muitos africanos; (iii) essa concepção explica em grande parte a dúvida sobre a existência de uma Filosofia Africana; e (iv) também resultou na aceitação inquestionável de qualquer coisa ocidental como sendo melhor e mais desejável. Essa atitude é agravada por nossa experiência colonial. Em segundo lugar, a viabilização do processo de descolonização que se iniciou na África é outra tarefa para a filosofia africana de hoje. É óbvio que as sociedades africanas precisam de mais do que uma descolonização política para ter um 148 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana regime completamente descolonizado. Precisamos também de uma descolonização intelectual. Uma boa maneira de facilitar esse processo é empreender o que Kwasi Wiredu descreveu como “orientação comparativa”. Esse estudo comparativo deve envolver: a. Uma análise crítica da cultura tradicional africana com o objetivo de identificar seus aspectos retrógrados. Esses devem ser separados dos aspectos que vale a pena manter. Tais elementos retrógrados foram descritos por Wiredu como incluindo crenças e práticas anacrônicas, supersticiosas e autoritárias. Ao realizar essa análise crítica de nossa cultura, chegaremos ao valor correto e objetivo de nossa cultura. Essa análise crítica é descrita, em alguns quadrantes, como “autoavaliação interna” (internal self-appraisal). b. Uma análise crítica da cultura e da técnica ocidentais. Isso deve ser feito com a intenção de identificar os aspectos que são desejáveis e necessários na sociedade africana contemporânea. c. Um estudo comparativo da cultura tradicional ocidental e da cultura tradicional africana: isso revelará as características que são genuinamente ocidentais e as que são genuinamente africanas. Essa iniciativa nos ajudará a ver onde as duas culturas se sobrepõem. Além disso, um estudo comparativo nos permitirá compreender os fatores que facilitaram a transição do período précientífico para o período científico na cultura ocidental. Essa compreensão nos dará uma melhor percepção do que é necessário para o crescimento e desenvolvimento na África. Em terceiro lugar, dentre as tarefas com a quais os filósofos africanos devem se preocupar, também incluem a consideração crítica de questões como: “o que é mudança social?”, “que tipo de sociedade desejamos?”. As resoluções dessas questões exigem diferentes tipos de perguntas e análises. Outras análises críticas revelam que a mudança necessária na perspectiva mental pode ser vista a partir de muitas perspectivas diversas: a. Há uma necessidade de mudança do modo sobrenatural e pessoal de explicação prevalecente na sociedade africana tradicional para o modo impessoal e natural que prevalece nas sociedades ocidentais mais orientadas para a ciência. 149 Marcos Carvalho Lopes b. Antes de podermos colher todos os benefícios da ciência e da tecnologia, existe a necessidade de uma renovação de nosso sistema de pensamento. Precisamos colocar mais ênfase no modo naturalista ou científico, se explicarmos os fenômenos como contrários ao modo sobrenatural. c. Na sociedade tradicional, não se dá muita ênfase à necessidade de rigor e precisão. A “cultura da precisão” tem de ser cultivada. Tomemos, por exemplo, a prática da medicina tradicional. Ao preparar as misturas medicinais, nossos “farmacêuticos tradicionais” apenas misturam as diversas ervas em qualquer proporção que desejem. Essa prática, no entanto, não produzirá o resultado ideal. Em quarto lugar, outra preocupação da filosofia africana é encontrar uma base teórica que seja adequada à sociedade africana contemporânea. Essa será utilizada para justificar as instituições sociais existentes ou para refiná-las, caso haja necessidade. Toda instituição ou prática social é teoricamente fundada. Os trabalhos de pensadores como Rousseau, Jefferson, Locke etc. constituem a base teórica das instituições sociais nas sociedades ocidentais. Cinco, a filosofia africana tem um papel importante a desempenhar em nossa compreensão e promoção da ciência e tecnologia na África. De fato, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia em si pode ser diretamente rastreado através dos desenvolvimentos em Lógica e Matemática. Como tal, pode-se afirmar corretamente que, sem filosofia, a ciência depende principalmente da indução. A indução, entretanto, é uma das áreas de interesse da filosofia. O desenvolvimento da ciência e da tecnologia na África será um afastamento de pelo menos alguns aspectos do sistema tradicional e um movimento em direção à ciência. Essa transição precisa de uma compreensão profunda do ponto de partida do padrão de pensamento tradicional e do ponto de chegada ao padrão de pensamento científico. Tal compreensão só pode surgir através de uma análise conceitual da transição. Tal análise é melhor confiada aos filósofos africanos. 150 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana 5. Diferenças de Gênero e Identidade Sexual na África Para a maioria das teóricas sociais feministas, a sexualidade é uma importante área de discussão, já que existe a noção popular de que a opressão da mulher é frequentemente expressa através da “sexualidade”. De fato, o discurso feminista localiza a sexualidade dentro da teoria da desigualdade de gênero que coloca os homens acima das mulheres. Dessa forma, a sexualidade é frequentemente tratada como uma construção engendrada pelo domínio ou poder masculino. Assim, é através da sexualidade que nos familiarizamos com as narrativas sobre o status da mulher como de segunda classe, a mulher como propriedade, a submissão feminina contra a dominação masculina, o poder masculino e a impotência feminina e assim por diante. Para entender a visão africana da sexualidade feminina, é preciso entender o fato de que as normas africanas se baseiam na crença de que o indivíduo é parte da comunidade, o que, por sua vez, valoriza o papel decisivo da comunidade no que diz respeito à vida ou existência do indivíduo. Esta destaca a natureza comunalista da vida social africana. Nesse sentido, o conceito africano de sexualidade é melhor compreendido dentro dessa matriz de status social e ideologias, do casamento e das preocupações espirituais que ajudam na manutenção da ordem social da comunidade. Concordo com Mary Wangila (2013, p. 104), para quem a feminilidade na África “está associada à reprodução, cuidado, generosidade, modéstia e dignidade da perseverança, obediência, submissão, conformidade e dependência”.40 Não encontrei o texto de 2013 citado pelo autor, mas a mesma citação aparece em outros escritos de Mary Nyangweso Wangila (NYANGWESO, Mary e TRIVEDI, 2019 e WANGILA, 2015) referindo-se ao caso do Quênia. A descrição que complementa o texto de 2015 vale a pena citar: “A masculinidade, por outro lado, está associada à virilidade, força, autoridade, poder, liderança e capacidade de suportar a dor física e oferecer proteção e sustento econômico. Esses valores são geralmente inculcados no indivíduo desde a infância; os meninos são ensinados a não chorar porque ‘os homens não choram’, e as meninas são 40 151 Marcos Carvalho Lopes Contemporaneamente, a filosofia africana tenta, através de uma séria desconstrução, ir além do discurso dualista sobre a sexualidade feminina africana, gênero e todas essas categorias. Deve-se ressaltar, no entanto, que a articulação de gênero na África não está isenta de desafios. Há o desafio de localizar o gênero dentro de uma unidade ou cultura etnolinguística particular, por causa de diferentes variações ou práticas culturais. Tomemos como exemplo os iorubás do sudoeste da Nigéria: Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, uma das maiores estudiosas no campo da diferença de gênero e identidade sexual, argumenta que o gênero não existia na sociedade iorubá tradicional. Para ela, o gênero foi algo projetado na cultura iorubá por europeus que vieram para a região. Ela apresenta um conceito virtual excepcionalista de gênero (que transmite a impressão de que a sociedade iorubá tradicional, nas palavras de Peel, “atribuía um valor cultural muito forte à capacidade fisiológica complementar de mulheres e homens para bimo (suportar/gerar crianças)".41 Essa tese não representa o(s) caso(s) de outras sociedades africanas. 6. Isto depende da(s) tendência(s) que subscrevo. Nas minhas publicações, é fácil discernir que defendo os pontos de vista da etnofilosofia como uma orientação na filosofia ensinadas a não insultar os meninos ou a serem enérgicas ou serão consideradas ‘mulheres macho’. Os papéis de gênero na maioria das comunidades quenianas são determinados por essas características restritivas. As atitudes em relação à força de um homem e à fraqueza de uma mulher são geralmente traduzidas em todas as partes de um casamento, incluindo as relações sexuais. O papel sexual da mulher é ser mais ou menos secundária ou passiva e não se espera que ela tome a iniciativa em atividades sexuais como o namoro, para mostrar desejo de ter relações sexuais ou mesmo para indicar que ela está desfrutando do sexo — correndo o risco de ser rotulada de prostituta". 41 PEEL, John DY. Gender in Yoruba religious change. Journal of Religion in Africa, v. 32, n. 2, p. 136-166, 2002. A descrição de Peel é respondida por Oyèrónkẹ ́ Oyěwùmí em OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. What gender is motherhood?: Changing Yoruba ideals of power, procreation, and identity in the age of modernity. Springer, 2016. p. 122 (nota do tradutor). 152 Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana africana. Por implicação, portanto, tenho em alta estima aqueles estudiosos que compartilham a ideia de que a tradição oral africana poderia servir como bom material para a filosofia. 7. Não está claro 8. A questão da língua na Filosofia Africana O problema da língua na filosofia africana tem sua gênese na concepção da filosofia como um empreendimento ocidental. Muitos debates foram travados para saber se os africanos tinham uma filosofia antes de seu contato com os brancos. Entretanto, deve-se notar que os primeiros Filósofos Profissionais Africanos de diferentes países africanos foram treinados em Filosofia Ocidental usando línguas europeias, como o inglês e o francês. Tornou-se um fato consumado que os primeiros filósofos africanos estavam fazendo filosofia africana em língua estrangeira. São muitas as questões que surgem do fato de fazer filosofia africana em línguas estrangeiras. Em primeiro lugar, pode-se dizer que os filósofos estavam realmente fazendo filosofia africana com língua estrangeira (foreign) ou exótica (alien), dadas as peculiaridades de cada cultura em relação a nuances, expressões idiomáticas, provérbios e ditados de sabedoria das culturas africanas? Segundo, não é o caso que os filósofos africanos estavam procurando equivalentes linguísticos de conceitos filosóficos ocidentais em suas próprias culturas? Em terceiro lugar, outro problema tem a ver com a tradução precisa de certos conceitos das culturas indígenas africanas para línguas estrangeiras. Pode-se perguntar se é possível traduzir conceitos indígenas, especialmente aqueles conceitos que lidam com afirmações teóricas, para línguas estrangeiras como o inglês e o francês e vice-versa. Há também o problema da inter-relação da linguagem do discurso sobre a realidade e do desenvolvimento africano. Ao traduzir um idioma para outro dentro de diferentes culturas, acredita-se que um conjunto de manuais de tradução que 153 Marcos Carvalho Lopes contenham os significados exatos das palavras e conceitos em diferentes culturas irá ajudar. Entretanto,