Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
entrevistas sobre filosofia africana
1
Marcos Carvalho Lopes
Ada Agada (Nigéria), Adeshina Afolayan (Nigéria), Alena
Rettová (República Tcheca), Albert Aoussine (Camarões),
Antonio de Diego Gonzales (Espanha), Ayodeji Ogunnaike
(Nigéria); Bayibayi Molongwa (Congo -); Bruce Janz
(Canada); Delphine Abadie M. (Canadá); Fernando Potro
Gutierrez
(Argentina);
Frederick
Ochieng'-Odhiambo
(Quênia), Godfrey Tangwa (Camarões), Grivas Muchineripi
Kayange (Malaui); Herman Lodewyckx (Bélgica); Issiaka-P.
Latoundji Lalèyê (Senegal); Jonathan Chimakonan (Nigéria);
Kasereka Kavwahirehi (Congo); Leonhard Praeg (África do
Sul);
Louise
Muller
(Holanda);
Mechthild
Nagel
(USA/German); Michael Onyebuchi Eze (Nigéria); MSC
Okolo (Nigéria); Mofefi Kete Asante (EUA); Muyiwa Falaiye
(Nigéria); Nathalie Ethoke (Camarões); Omatade Adgbibdin
(Nigéria); Phambu Ngoma-Binda (República Democrática do
Congo); Polikarp Ikuenobe (Nigéria); Romuald Bambara
(Burkina Faso); Samuel Wolde-Yohannes (Etiopia); Sanya
Osha (Nigéria); Seloua Luste Boulbina (França/Algéria);
Tanella Boni (Costa do Marfin); Yusef Waghid (África do Sul).
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Marcos Carvalho Lopes
(ed.)
entrevistas sobre filosofia africana
Marcos Carvalho Lopes
Copyright © Marcos Carvalho Lopes
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos do autor.
Marcos Carvalho Lopes
Tcholonadur: entrevistas sobre filosofia africana. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2024. 431p. 16 x 23 cm.
ISBN: 978-65-265-0825-1 [Impresso]
978-65-265-0826-8 [Digital]
DOI: 10.51795/9786526508268
1. Tcholonadur. 2. Entrevistas. 3. Filosofia africana. I. Título.
CDD – 100/370
Capa: Petricor Design
Ficha Catalográfica: Hélio Márcio Pajeú – CRB - 8-8828
Preparação dos originais e revisão: Giovanna Pozzer
Diagramação: Diany Akiko Lee
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito
Conselho Científico da Pedro & João Editores:
Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Hélio
Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da
Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil);
Ana Cláudia Bortolozzi (UNESP/Bauru/Brasil); Mariangela Lima de Almeida
(UFES/Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco de Mello
(UFF/Brasil); Camila Caracelli Scherma (UFFS/Brasil); Luís Fernando Soares
Zuin (USP/Brasil).
Pedro & João Editores
www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 – São Carlos – SP
2024
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Para meu filho Ulisses e para todas as pessoas que me
ensinaram a seguir o rio e acreditar no mar
Marcos Carvalho Lopes
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Prólogo
Um provérbio kamita diz que não se deve nunca perturbar a
atenção daquele que está engajado no seu trabalho, pois o Criador
fala sempre através do trabalho bem feito. E de facto, que
monumental, esta obra, bem pensada, bem projetada,
diligentemente trabalhada, escrita e comunicada, que o Prof.
Marcos Carvalho Lopes, após longos anos de tanto e paciente
trabalho, audácia e abnegação, nos dá hoje como dom. Trata-se de
uma obra sobre a figura, o papel e o objeto de estudo do
Tcholonadur, ou melhor, o “Hemouou”, isto é, o “artesão” da
“palavra criadora” (Médou Nétcher), e que para nós se revela
fundamental num período particularmente difícil da história da
nossa humanidade em geral e de modo particular do continente
africano e latino-americano que estamos a viver, devido
propriamente, em grande parte, a total “humilhação da
palavra”(Ellul) em curso por toda a parte do planeta terra. Como
Bissau-guineense só posso regozijar-me e expressar a minha
imensa e reconhecida gratidão ao nosso autor, pela profunda
releitura do carisma, da missão e do objeto de estudo do tcholonadur
que ele nos oferece através desta sua extraordinária obra.
O ser humano é antes de mais, recorda Amadou Hampaté Bâ,
a sua palavra. Já na sua XXIV máxima sobre o “bom uso da
palavra”, Ptahhotep advertia os tcholonaduris da sua época, dizendo
entre outros, o seguinte: se és um homem excelente de que se
confia, que está sentado no conselho do seu senhor, reúne todos os
corações para “Saq-ib”, que significa a perfeição. Ou melhor,
tcholonadur só é um artesão da perfeição quando é um sujeito
confiante, seguro de si, capaz de criar harmonia na sede do
Conselho do seu senhor onde está sentado e onde representa a
“boca, o ouvido e os olhos do seu senhor” perante o povo, e por
Marcos Carvalho Lopes
isso mesmo ele/a está sempre atento/a à sua boca e sobretudo a sua
língua, pois sabe muito bem, que o silêncio é muito mais útil do que
o bati papo que às vezes está na origem da “filosofia do feitiço”;
fala somente quando sabe que da sua palavra trará “Ouhá”, isto é,
uma solução, para a sua comunidade vital; quando tem consciência
que o peso da sua palavra, reside no fato de ser sempre uma
palavra criadora, uma palavra-ação concreta; ou melhor quando é
consciente que ele é depositário daquela palavra libertadora que
faz derreter os corações endurecidos, capaz de desatar um nó social
não biófilo e sobretudo de esclarecer um problema comunitário
que aflige o coração e a mente das pessoas. É neste preciso sentido
que tcholonadur deve ser sempre um/a excelente “hemouou”,
artesão, isto é, aquele/a capaz de trabalhar a palavra como algo
material, aquele/a que fala no Conselho enquanto boca, orelha e
olhos do seu senhor perante o seu povo e tem perfeitamente
consciência do significado autêntico, do valor, do peso da sua arte
de usar da palavra; sabe que o falar é o mais difícil de qualquer
outro trabalho ou missão que existe na face da terra. Enfim,
tcholonadur é aquele/a que melhor personifica, interpreta, derrete,
explica corretamente esta máxima ptahhotepiana da arte e do “bom
uso da palavra”, pois ele/ela é o único/a a conferir autoridade à
palavra criadora: quando ele/a aceita de assumir responsavelmente
a sua missão de tcholonadur e a missão do seu objeto de estudo,
ele/a é o/a único/a capaz de colocar a palavra no palito e orientar a
humanidade para uma filosofia finalmente sem feitiço.
Neste sentido, tcholonadur é, no seio da sua comunidade de
vida, um ma/âkhr, que significa, um enviado, um mensageiro, um
servidor, um anjo da guarda do “Médou Nétcher” no seio da sua
comunidade de vida e por conseguinte o anjo da guarda, um/a
servidor/a do Maat (verdade – equidade – justiça – equilíbrio), do
Ubuntu(o nós estamos juntos como criaturas da mesma mãe terra)
e do Bambarãm (o Pano materno: nós somos chamados a viver em
fraternidade e sororidade) no seio da própria comunidade de vida
e como humanidade em geral. De fato, na língua kamita, Maat
significa também, conduzir, dirigir, guiar, orientar e/ou enviar, do
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
mesmo modo que Akhr significa um espírito divino, luminoso e/ou
glorioso. Por conseguinte, podemos dizer que Tcholonadur nas
sendas de Maa Akhr significa o Enviado do divino, o servidor do
divino, o anjo da guarda da comunidade de vida. E este é de fato o
verdadeiro significado do tcholonadur, da sua missão e do seu
objeto de estudo que nos revela Marcos Carvalho Lopes nesta sua
fantástica obra e de que tanto necessitávamos para ajudar a fazer
face aos desafios dos novos ventos do panafricanismo do nosso
século XXI, que nos são lançados a partir, novamente, da África
ocidental de modo particular. E a este respeito, o autor nos deixa
uma lição metodológica e em termos de conteúdo, bastante
importante: o longo percurso por ele percorrido por quase todos os
ângulos do continente africano para convidar os seus interlocutores
a tomar parte do “Djemberem” dos tcholonaduris do nosso
continente, sobre a possibilidade de uma “filosofia sem feitiço”
para a África no mundo contemporâneo, independentemente das
quadrantes linguísticas coloniais e regionais, é um exemplo para
nos recordar que mesmo quando os rios nos impedem de os
atravessar, eles nunca nos impedem de procurar contorná-los;
também porque os percursos das estradas, dos rios não são nunca
longínquos ou difíceis de atravessar, quando amamos de verdade,
as pessoas que queremos ir visitar. No fundo, o tcholonadur Marcos
Carvalho, sabia de ir encontrar gente e lugares que ele tanto ama,
revelando, desta forma, um imenso amor aos nossos países e povos.
Disso lhe somos eternamente gratos.
Filomeno Lopes
é nascido na Guiné-Bissau, jornalista da Rádio Vaticano e Doutor em
Filosofia e Ciências de Comunicação Social. É autor de importantes obras sobre a
Filosofia Africana como “Filosofia em volta do fogo” (2001), “Filosofia sem
feitiço” (2004), “E Se a África desaparecesse do Mapa Mundo?, Uma reflexão
filosófica” (2009), “Da mediocridade à excelência: reflexões filosóficas de um
imigrante africano” (2015), “Filodramática: os Palop, entre a filosofia e a crise de
consciência histórica” (2019) e “Non amo i razzisti dilettanti” (2020).
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
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Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Prefácio
Este livro é uma antologia, como sugere o subtítulo, de
“entrevistas
sobre
a
Filosofia
Africana”
sistemática
contemporânea. Marcos Carvalho Lopes, um militante engajado da
Filosofia Africana no Brasil, é o tcholonadur (o mensageiro) que, na
sua tríplice função de entrevistador, tradutor e editor, transporta as
mensagens dos entrevistados para os espaços “geoepistemológicos” de expressão portuguesa. Que mensagens o livro
revela, para que finalidade o faz assim como que tipo de tcholonadur
– embusteiro, intriguista ou fiel amante do seu povo, dos emissores
e destinatários das mensagens – vislumbra são questões que
apelam para um debate posterior. Os entrevistados são trinta e três
profissionais de Filosofia Africana marcados pela diversidade de
raça, língua, género, proveniência, faixa etária, experiência, local de
trabalho e perspectivas filosóficas bem como pelo facto de não
serem de expressão portuguesa.
As questões colocadas aos entrevistados, cuja pertinência e
urgência são relativas a contextos socio-históricos e a
idiossincrasias subjectivas, são oito. Elas traduzem as inquietações
e prioridades do editor e, quiçá, da filosofia afro-brasileira, e
podem ser coligidas em três grupos relativamente distintos. No
primeiro, estão as subjectivas e de mera curiosidade, sobre as
experiências do primeiro contacto com a Filosofia Africana das
pessoas entrevistadas, que filósofo/a seu conhecido é considerado
mais importante e preferências relativamente aos filósofos
africanos. No segundo grupo figuram questões mais temáticas da
Filosofia Africana: actualidade ou não da questão da identidade e
desenvolvimento desta área disciplinar, questões actuais, como
sejam a abordagem da Filosofia Africana sobre as temáticas de
género e identidade sexual e, mais concretamente, a relação do
Marcos Carvalho Lopes
feminismo e mulherismo com a Filosofia Africana. O derradeiro
grupo, hipoteticamente o que justifica a elaboração deste livro, é
mais voltado para a criação de uma agenda futura. Lida com a
(im)possibilidade de unidade na Filosofia Africana tendo em conta
o factor linguístico e o predomínio dos EUA e do Caribe versus a
quase inexistência do Brasil e dos Países Africanos de Língua
Oficial Portuguesa no debate.
O livro editado por Lopes é um contributo valioso para o
estudo da Filosofia Africana por falantes da língua portuguesa.
Primeiro, o editor conglutina tão diferentes e distantes filósofos no
mesmo livro e em torno das mesmas questões. Isso alarga a lista de
autores estudados na «lusofonia», enriquece o acervo bibliográfico
e a compreensão das temáticas que são objecto da entrevista.
Segundo, ele vale, mutantis mutandi, pelo recurso a um método caro
às ciências sociais, à sagacidade filosófica de Henry Odera Oruka,
à filodramática de Filomeno Lopes e à intersubjectivação de José
Castiano, o da entrevista, combinado com uma breve revisão
biobibliográfica de cada entrevistado. Este método rompe as
fronteiras canónicas da Filosofia em geral e da Africana em
particular, acolhendo novas linguagens e formas de fazer Filosofia.
No caso deste livro, ele é combinado com o uso de endereço
eletrónico. Em terceiro lugar e não menos importante, ele é
apetecível pelas provocações temáticas feitas pelo tcholonadur e
pelas ideias arroladas pelos entrevistados.
Os temas sugeridos pelas questões do editor têm um sentido
digno de realce. As questões da definição e do primeiro contacto
com a Filosofia Africana remetem à autoconsciência do
entrevistado sobre o seu ser filósofo e fazer filosófico, contra a ideia
de uma filosofia espontânea ou sem filósofos; a questão de
identidade e desenvolvimento da Filosofia Africana remete à
tomada de consciência sobre a história recente da Filosofia
Africana; a pergunta sobre as questões actuais da Filosofia Africana
suscita o situar-se do filósofo no seu tempo, evitando
anacronismos; a questão sobre o feminismo e o mulherismo apela
para a sensibilidade a um dos problemas sociais actuais a que a
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Filosofia não se deve furtar de debater; as questões do filósofo
africano mais importante e preferido apelam para a necessidade de
respeito pelos companheiros de luta (predecessores e actuais);
finalmente, a questão sobre as fronteiras linguísticas chama para a
unidade das pessoas fazedoras da Filosofia, para o caminhar
juntos. Estas questões suscitam e outras que se afiguram
fundamentais: qual é o lugar do Brasil e da “lusofonia” na história
da Filosofia Africana contemporânea e, acima de tudo, qual é o
estatuto da Filosofia Africana nos curricula da educação formal
secundária e superior e nas vidas dos nossos povos e Estados. É
possível falar de uma educação e um viver afrocentrados?
A profundidade de algumas das respostas às questões dadas
não deixa nada a desejar relativamente a outras filosofias. São
respostas sistematizadas, reflexivas e críticas. Algumas delas
concorrem para a descolonização não apenas da Filosofia Africana,
mas de toda a Filosofia bem assim das relações entre géneros,
classes sociais, raças, culturas e civilizações. Outrossim, em cada
grupo de questões são notórias a perspectiva filosófica de cada
entrevistado e as divergências entre eles, o que desmitifica as
acusações de unanimidade, dogmatismo e acriticidade na Filosofia
Africana e reforça a sua filosoficidade. São exemplos loquazes as
diferentes posições sobre a esgotabilidade ou não do debate em torno
da identidade no desenvolvimento da Filosofia Africana e a
relação, significado e lugar dos debates de género, entre feministas
e mulheristas, na mesma filosofia. Não há dúvidas de que este livro
vai impulsionar o estudo da Filosofia Africana nos estudantes e
estudiosos dos países de expressão portuguesa, mesmo e
mormente na mais vanguardista das escolas desses países, a
moçambicana. Bem-haja ao editor!
Severino Elias Ngoenha & Ergimino Pedro Mucale
Maputo, Agosto de 2023.
Marcos Carvalho Lopes
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Sumário
Introdução
17
Ada Agada e a disposição para filosofar
31
Yusef Waghid e a filosofia africana da educação
39
Tanella Boni e as mulheres na filosofia africana
47
Sanya Osha e a recontextualização da filosofia africana
59
Mechthild Nagel e a Ética Ubuntu aplicada à Justiça Delphine
75
Abadie e a África como caminho de reconstrução da
83
filosofia
Godfrey B. Tangwa, uma perspectiva africana da filosofia
93
Mofefi Kete Asante, uma obra na tradição de Maat
103
Adeshina Afolayan e a filosofia africana fora da caverna
111
Fernando Proto Gutierrez e o diálogo entre África e Abya
121
Yala
Leonhard Praeg e a retrodicção da filosofia africana Omotade
129
Adegbindin e o Ifá como filosofia
141
Samuel Wolde-Yohannes e o debate sobre a filosofia etíope
159
Bayibayi Molongwa: nós da egiptologia e filosofia africana
163
Bruce Janz e o lugar da filosofia africana
173
Louise Müller e o jogo da filosofia africana
183
Albert Aoussine: a filosofia africana sem condescendência
Muyiwa Falaiye: a filosofia africana como Grundnorm dos
estudos africanos
195
203
Phambu Ngoma-Binda e a inflexão da filosofia africana
211
Polikarp A. Ikuenobe e a perspectiva comunal da filosofia
223
africana
Antonio de Diego González e a filosofia africana não-eurófona
231
Marcos Carvalho Lopes
Jonathan O Chimakonam e a filosofia africana como
construção de sistemas
243
Nathalie Etoke, a filosofia e a melancolia africana
259
Herman Lodewyckx e a filosofia como hermenêutica da
situação existencial africana
267
Issiaka-P. L. Lalèyê e a restituição da filosofia africana
277
Romuald Évariste Bambara e a filosofia africana como Utopia
289
MSC Okolo e a literatura como filosofia africana
311
Kasereka Kavwahirehi e a filosofia africana como
descolonização do universal
319
Seloua Luste Boulbina: travessias transatlânticas?
331
Ayodeji Ogunnaike e a (im)pureza da filosofia africana
345
Frederick Ochieng'-Odhiambo: a sagacidade como caminho
para a filosofia africana
355
Grivas M. Kayange e as perspectivas da filosofia africana
387
Alena Rettová e as filosofias africanas afrofônicas
393
Michael O. Ezé e a dádiva da humanidade que devemos uns
aos outros
405
Sobre o autor
431
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Introdução
Si cego falau no flertcha n utru, sibi i masa pedra
(se um cego te convidar para uma batalha de pedras,
saiba que ele tem mais pedras debaixo dos pés)
A pandemia da covid-19 teve efeitos potencialmente
disruptivos, impondo o isolamento social e a mudança de hábitos.
Naquele momento, na posição de professor da Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB),
responsável pela disciplina de filosofia africana, desenvolvi duas
iniciativas complementares para adensar o campo de debates no
Brasil: (1) uma série de entrevistas, que denominei Djemberém
(cabana de conversação em Guiné-Bissau, um espaço em que se
exerce a palavra (palabre) em busca de construção de consenso que
restaurem a harmonia da comunidade) no formato de podcast com
pessoas que desenvolvem a filosofia africana em espaços da África
lusófona1; e (2) e uma série de entrevistas com pessoas que
desenvolvem a filosofia africana fora da lusofonia, chamada de
Tcholonadur e que resultaram neste livro.
Embora estes projetos não sejam resultados de iniciativas
institucionais, é preciso reconhecer como o contexto da UNILAB foi
importante para seu desenvolvimento. Trabalhando no Campus dos
Malês, que fica em São Francisco do Conde, na Bahia, vivenciava
O episódios com Severino Ngoenha (Moçambique), Filomeno Lopes (Guiné
Bissau), José Paulino Castino (Moçambique), Luiz Kandjimbo (Angola), Ergimino
Mucale (Moçambique), Arminda Filipa (Angola) e Jessemusse Cacinda
(Moçambique) podem ser acessados aqui: https://filosofiapop.com.br/tag/
djemberem/ Indico também a série de entrevistas sobre a COVID-19 em África do
podcast Vozes da UNILAB, com episódios com Severino Ngoenha, Filomeno
Lopes, Elisio Macamo e Maria Paula Meneses: http://vozesdaunilab.
unilab.edu.br/index.php/tag/covid-19/.
1
17
Marcos Carvalho Lopes
uma encruzilhada de saberes: por um lado, o Recôncavo Baiano é
uma região extremamente rica culturalmente (origem da capoeira,
samba de roda, candomblé, maculelê etc.) e com uma base de matriz
africana, com a população de maioria negra (sendo São Francisco do
Conde, com 90% da população, a cidade mais negra do Brasil); por
outro lado, os estudantes da África lusófona (Angola, Moçambique,
Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde) vinham de lugares
diferentes do continente, mas tendo em comum a língua e
colonização portuguesa. O que esse encontro de culturas pode
significar em termos de possibilidades epistemológicas e de
potencialização de saberes é algo ainda a se desvendar. Mas, quando
desafiado pelos estudantes a trabalhar filosofia africana, o que
pediam era também que as questões e o horizonte cultural que
vivenciavam no continente não fossem ignoradas em favor do que
no Brasil se imaginava ser a África. Também, que as diferenças que
fazem diferença pudessem ser consideradas, para um tipo de
solidariedade mais efetiva possa se articular.
Nessa introdução quero explicar a forma como essas
entrevistas foram realizadas e algumas das dificuldades
decorrentes da metodologia empregada; e, por fim, responder
sobre o significado do termo Tcholonadur e como ele ilustra uma
possibilidade de diálogo filosófico intercultural.
Este livro reúne 34 entrevistas realizadas com pessoas que
trabalham com a filosofia africana fora do contexto da lusofonia.
Essas entrevistas foram realizadas por e-mail a partir de um
questionário fechado com 8 perguntas, que pedem uma
apresentação da abordagem e contexto em que cada qual
desenvolve seu trabalho; descrição de quais problemas considera
relevantes; como articula e se situa em relação a história recente da
filosofia africana e seus debates; e, finalmente, como pensa a
ausência de diálogo mais efetivo com o Brasil e o contexto da
lusofonia africana. As perguntas foram as seguintes:
- Como você define a filosofia africana?
- Como entrou em contato com a filosofia africana?
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Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
- No início, a busca pela identidade era o mote para o
desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está
desatualizada?
- Em sua perspectiva, que questões movem a filosofia africana
hoje?
- Como você vê as disputas sobre mulherismo e feminismo em
relação à filosofia africana? Como a filosofia africana aborda as
questões relacionadas às diferenças de gênero e identidade sexual?
- Das/os filósofas/os africanas/os que você conheceu
pessoalmente, qual é o mais importante em sua opinião?
- Qual é a/o sua/seu filósofa/o africana/o favorita/o?
- O Brasil é o país com a maior população negra fora da África.
Entretanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos EUA e do
Caribe são geralmente ouvidas, mas não as do Brasil. Esse também
é um problema comum em relação à África de língua portuguesa.
Em termos práticos, as fronteiras linguísticas são divisões para a
filosofia africana ou é possível articular uma unidade que leve em
conta esses espaços?
Em setembro de 2020 comecei a buscar/selecionar contatos e a
enviar e-mails pedindo entrevistas para pesquisadores que
trabalham com filosofia africana em inglês, francês e espanhol. Em
novembro de 2020 publiquei a primeira tradução deste projeto que
seguiu por mais de um ano recebendo respostas, sendo a última
tradução publicada na internet em Março de 2022.2 A entrevista
com o filósofo nigeriano Michael Onyebuchi Eze é a única inédita e
foi transcrita através de uma conversa realizada na forma de live
mediada pelo professor Paulo Donizéti Siepierski.
Busquei contactar autores da África anglófona e francófona,
para romper as fronteiras de mútuo desconhecimento que
geralmente existe entre essas tradições. Também procurei autores
A entrevista com Sanya Osha incorporou algumas conversas que tivemos por email dando origem a seguinte publicação: LOPES, Marcos Carvalho; OSHA,
Sanya. Aguda Blues, from Salvador de Bahia to the Gulf of Benin: Marcos
Carvalho Lopes Interviews Sanya Osha. Journal of World Philosophies, v. 6, n. 1,
p. 174–182-174–182, 2021.
2
19
Marcos Carvalho Lopes
que trabalham com a filosofia africana em países da Europa,
Estados Unidos e América Latina. Originalmente são 21 entrevistas
em inglês, 10 em francês e 3 em espanhol. Apesar do esforço para
entrevistar filósofas, o desequilíbrio de gênero do resultado não
deixa de ser um problema: 8 entrevistadas, sendo 4 de
nacionalidades africanas. Tendo em vista a impossibilidade de
cobrir todos os contextos de debate, procurei abordar o espaço
nigeriano de forma mais densa (com 10 entrevistas), escolha
justificada pela quantidade relevante de autores e escolas
filosóficas. A condição paradigmática da filosofia africana na
Nigéria pode ser comprovada a partir do livro The Palgrave
Handbook of African Philosophy (Springer, 2017), editado por Toyin
Falola e Adeshina Afolayan, obra que foi uma das bases para coleta
de contatos. Em ordem alfabética, as pessoas entrevistadas foram:
Ada Agada (Nigéria);
Adeshina Afolayan (Nigéria);
Alena Rettová (República Tcheca);
Albert Aoussine (Camarões);
Antonio de Diego Gonzales (Espanha);
Ayodeji Ogunnaike (Nigéria);
Bayibayi Molongwa (Guiné Equatorial);
Bruce Janz (Canadá);
Delphine Abadie M. (Canadá);
Fernando Potro Gutierrez (Argentina);
Frederick Ochieng'-Odhiambo (Quênia);
Godfrey Tangwa (Camarões);
Grivas Muchineripi Kayange (Malaui);
Herman Lodewyckx (Bélgica);
Issiaka-P. Latoundji Lalèyê (Senegal);
Jonathan Chimakonan (Nigéria);
Kasereka Kavwahirehi (República Democrática do Congo);
Leonhard Praeg (África do Sul);
Louise Muller (Holanda);
Mechthild Nagel (EUA/Alemanha);
Michael Onyebuchi Eze (Nigéria)
20
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
MSC Okolo (Nigéria);
Mofefi Kete Asante (EUA);
Muyiwa Falaiye (Nigéria);
Nathalie Ethoke (Camarões);
Omatade Adgbibdin (Nigéria);
Phambu Ngoma-Binda (República Democrática do Congo);
Polikarp Ikuenobe (Nigéria);
Romuald Bambara (Burkina Faso);
Samuel Wolde-Yohannes (Etiópia);
Sanya Osha (Nigéria);
Seloua Luste Boulbina (França/Argélia);
Tanella Boni (Costa do Marfim);
Yusef Waghid (África do Sul)
O método e a forma de abordagem deste trabalho geraram
alguns problemas: (1) as questões fechadas acabaram limitando as
possibilidades de conversação, já que muitos autores não
trabalham com "filosofia", mas com uma perspectiva mais ampla
de pensamento africano (que rompe com as fronteiras
disciplinares); (2) algumas das questões acabaram se mostrando
redundantes ou de difícil tradução. É o caso do questionamento
sobre a filósofa ou filósofo mais importante ou aquele de que mais
gosta, que pensada inicialmente em inglês não trazia a questão da
diferença de gênero (problema que repercute em todo processo de
tradução); a adjetivação de "africana" também gera tensões entre
quem pode fazer ou faz parte da filosofia africana (por exemplo,
Seloua Bolbina fala pelo norte da África e sua exclusão; o espanhol
Antonio de Diego Gonzales, trabalha com as tradições
muçulmanas etc.); (3) nem sempre as questões eram as mais
indicadas para as pessoas entrevistadas, por se chocarem com
pressupostos ou proporem um tipo de fechamento/definição, que
muitas vezes não é o que a atividade filosófica exige. Por isso
alguns convidados se recusaram a tratar de determinadas
perguntas, fundiram respostas ou corrigiram o caminho do
questionamento (ou os termos das perguntas).
21
Marcos Carvalho Lopes
Muitas das pessoas convidadas, com razão, estranharam esse
projeto. que parte de um contato por e-mail, feito por alguém
desconhecido, de um espaço periférico e com uma proposta
inusitada: a tradução e publicação em um site na internet
(filosofiapop.com.br) e a possibilidade de posterior publicação em
livro. Neste contato eu explicava o interesse em promover a
filosofia africana no Brasil indo além das idealizações tão comuns
(e necessárias) na diáspora, destacando a possibilidade de dialogar
com o público brasileiro e de língua portuguesa; e necessidade de
ajuda para adensar os debates em torno das filosofias africanas e de
cooperação com o esforços de institucionalização de projetos como
o da UNILAB em um momentos em que perspectivas de extrema
direita ameaçam qualquer iniciativa de educação emancipatória,
inclusiva e antirracista. Diante do contexto de pandemia todas as
pessoas que receberam essa “carta” do Brasil entendiam de modo
forte a necessidade política de responder. Por motivos diversos,
muitas respostas prometidas não se efetivaram, mas
unanimemente recebi palavras de incentivo e a compreensão da
importância de construir caminhos de diálogo.
Um ditado bissau-guineense ensina que devemos nos
precaver quando somos desafiados por um cego para um
confronto em que uma pessoa lança pedradas em direção à outra:
com certeza o desafiante escondeu pedras próximas aos seus pés.
Quando nos dispomos a encarar o embate com a filosofia
acadêmica, com o objetivo de justificar a pertinência da filosofia
africana, temos que lidar com uma situação de desigualdade
vinculada tanto ao racismo e busca de manter privilégios, quanto
ao cinismo de quem não quer desvalorizar seu capital cultural e
perder possibilidades de emprego.
A abordagem da filosofia africana tem dificuldades
específicas, nas formas de inclusão e representatividade que
precisam se desviar da comodificação (transformação em
mercadoria) da diferença, tomada como algo exótico e
incomensurável, resultando em uma guetificação paradoxal, com
uma inclusão excludente (geralmente, tomando algum nome da
22
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
moda como sendo um “ente privilegiado” que sintetiza e incorpora
tudo que se precisa citar para cumprir as demandas do momento).
Nalguns casos, com formas de autoindulgência sem resultados que
vão além de uma espécie cada vez mais comum de ubuntu neoliberal, que inverte a fórmula tradicional zulu “eu sou, porque nós
somos”, e afirma, que “nós somos, porque EU sou”. Noutros casos,
para além dessa “visibilidade segregada” teorizada por Stuart Hall,
que por meio da “representatividade” atende as demandas do
mercado, criamos um tipo de exclusão mais eficaz e tipicamente
brasileira, pois resolve (ou melhor, dissipa) a questão de maneira
cordial: realizam-se mesas-redondas, como uma forma de carnaval
epistemológico, que aparentemente inverte “a ordem natural das
coisas”, as pessoas falam, mas não são ouvidas e as práticas se
mantém inalteradas. Chamo isso de invisibilidade segregada, porque
o que é mais visível torna-se invisível, pois efetivamente não faz
parte do jogo.
Em contraste com a dupla-consciência que permeia as
abordagens da filosofia afro-americana e de outras tradições
diaspóricas, no Brasil, aqueles que desejam contemplar a filosofia
africana precisam lidar com uma dupla-alienação: (1) não fazemos
parte de uma tradição reconhecida de debates e produção
filosófica. Abordar a filosofia africana também implica considerar
a filosofia de maneira contextualizada, questionando o discurso
que pressupõe o universalismo da filosofia europeia e desafiando
as práticas coloniais de superioridade e submissão. Isso demanda
dar espaço às vozes que foram injustamente ignoradas. Se você
reconhece que o cânone filosófico foi moldado e institucionalizado
com base em modelos racistas e sexistas, mas não faz nada
pessoalmente para modificar essa realidade, de acordo com Jay L.
Garfield, mesmo que de forma passiva, você está perpetuando o
racismo e/ou sexismo. O problema é que a maioria silenciosa da
academia brasileira não reconhece a filosofia africana como
filosofia. Como resultado, o impasse persiste, e a maior parte das
pesquisas neste tema continuam sendo realizada fora dos
departamentos de filosofia. Aqueles que se dedicam ao tema
23
Marcos Carvalho Lopes
geralmente estão em outras áreas, como educação, antropologia
etc. Aqueles com formação linear em filosofia que buscam dialogar
com a filosofia africana/afro-brasileira são vistos com ceticismo e
desconfiança, o que é compreensível, dadas as circunstâncias.; e (2)
não possuímos a identidade racial como um elemento explícito,
como ocorre nos EUA. A tecnologia do racismo por denegação,
nega a existência ou a relevância das questões raciais, minimizando
ou ignorando a discriminação racial e suas consequências (muitas
vezes alegando que vivemos em uma sociedade pós-racial ou que
o racismo é um problema do passado). O racismo por denegação
pode se manifestar pela recusa em reconhecer a existência do
racismo; a desvalorização das experiências e perspectivas das
pessoas racializadas; a negação do privilégio branco; e a rejeição de
ações afirmativas destinadas a corrigir desigualdades raciais. Ao
negar a realidade do racismo, essa postura perpetua estereótipos, a
discriminação e a exclusão, contribuindo para a manutenção das
desigualdades existentes.
O estudo e ensino da filosofia africana no Brasil tende a seguir
o caminho comum dos estudos africanos na diáspora, destacando
aspectos da herança cultural que estão encarnados em práticas de
resistência e reinvenção, que traduzem a violência e opressão do
racismo, em afirmações da vida e da solidariedade que vincula a
população afrodescendente. Deste modo, a África que é
reinventada e celebrada não funciona como uma busca por
correspondência com os contextos e questões vivenciadas hoje
pelas pessoas no continente africano.
O questionamento do lugar da história da filosofia e de qual
história da filosofia ensinamos, vem sempre acompanhado do
lance dramático dos que, de modo estridente, preferem negar a
necessidade de estudar qualquer história em nome do aprender a
filosofar como prática direta. Nesta via, de negar o valor da história
da filosofia, muitas vezes tratam de defender a inovação em um
sentido tão radical, que cada qual deve criar os seus próprios
termos-conceitos, e que o debate é coisa de ressentidos (e a crítica é
sempre um ataque pessoal). Quando a filosofia africana é tomada
24
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
deste modo, é fácil desconsiderar tudo aquilo que não cabe em
nossa experiência imediata, desenvolver discursos acríticos, em
que o jogo de pedir e dar razões é menos relevante do que a
autoafirmação.3 Caindo numa perspectiva não-histórica, de forma
acrítica, repete-se o gesto moderno e colonial ao afirmar um tipo de
sujeito africano eterno e imutável ou com categorias cognitivas
incomensuráveis, desconhecendo os debates e posições diversas
que fazem parte da filosofia africana.
A narrativa do Grande Debate que inaugura a filosofia
africana acadêmica no século XX precisa ser conhecida para que
não repitamos muitos dos problemas que neste debate foram
superados ou redescritos. Lewis R. Gordon (2015) chega a defender
que é esta narrativa que deve fundamentar os estudos africanos. O
filósofo moçambicano, Severino Ngoenha, ao narrar essa trajetória
no livro Das Independências às Liberdades: filosofia africana, de 1993,
inaugura essa possibilidade de apropriação reflexiva dos debates
sobre a filosofia africana em língua portuguesa. Mas, estaríamos no
Brasil prontos para ler o livro de Ngoenha e dialogar com suas
questões? Ou seria melhor deixá-lo de lado, como um esforço que
cai na tradição de fazer história da filosofia, mais do que
efetivamente filosofar? Mas, seria possível efetivamente filosofar
ignorando os debates que moldaram o campo da filosofia africana?
O filósofo e jornalista bissau-guineense Filomeno Lopes (2004)
em seu livro Filosofia Senza Feticci entrevistou diversos nomes da
filosofia, comunicação, história e sociologia africanas, assim como
da filosofia da libertação latino-americana (como Raul Fournet
Betancourt e Enrique Dussel), procurando os caminhos de
articulação de uma filosofia que reconheça e enfrente os dramas de
vida e morte que afetam a maior parte das populações do Sul
Global, em meio a guerras fraticidas que devoram a possibilidade
O que contrasta com a proposta criativa da Escola Conversacional de Jonathan
Chimakonam, que ao mesmo tempo em que incentiva a criação de sistemas
filosóficos criativos, não renuncia à formação filosófica e à construção dialógica do
conhecimento.
3
25
Marcos Carvalho Lopes
de futuro, a naturalização da desigualdade, da arbitrariedade e da
violência constituem uma encarnação do Mal que precisa ser
enfrentada/pensada. A filosofia fetichista, com as suas formas de
pensamento refinado e autoindulgente, ignora e – por omissão –
reforça a manutenção deste quadro de colonialidade. O diálogo
proposto com as entrevistas é uma forma de gerar comunicação e
reconhecimento e reforçar a luta em comum pela vida, contra a
formas de desumanização e morte.
É um pressuposto deste projeto a abordagem desenvolvida
por Samuel Olouch Imbo (1998) em seu livro An introduction to
African philosophy que apresenta a filosofia africana partir de cinco
perguntas fundamentais: “o que é filosofia africana?”; “a filosofia
africana é única?”; “a etnofilosofia é realmente filosofia?”; quais são
as línguas/linguagens da filosofia africana? e “quais as relações
entre a filosofia africana e as filosofias feministas e afroamericanas?”. A abordagem que descreve possibilidades diversas
de resposta é extremamente didática e considero que contribui para
gerar uma espécie de paradigma que oriente as pesquisas e a
socialização dos debates sobre a filosofia africana. As respostas
podem ser sempre recontextualizadas, como fiz no livro Conversas
com notas de rodapé: questões para a filosofia africana (LOPES, 2022).
Então, falar em filosofia africana não é somente desafiar a
colonialidade e seus pressupostos racistas, mas colocar em questão
a agenda, os interlocutores, as questões e a forma desta disciplina,
que geram ou repercutem desigualdades e injustiças, por meio do
silenciamento ou ridicularização. Neste quadro, não é por acaso
que as leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que estabelecem o ensino de
"História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena" na educação básica,
não tiveram impacto significativo nas instituições acadêmicas
brasileiras de filosofia. A legislação não provocou alterações nas
disciplinas da grande maioria dos cursos, não geraram
oportunidades de trabalho especializado e não incentivaram
pesquisas nos programas de pós-graduação em Filosofia.
O nome tcholonadur marca uma perspectiva sobre a
possibilidade de diálogo intercultural, que em muito se justifica
26
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
pela experiência docente vivenciada na UNILAB. Em março de
2016, por ocasião da realização do primeiro Seminário de Filosofia
Africana (organizado junto com o professor Bas’Ilele Malomalo
(UNILAB) e participação do professor Willis Santiago Guerra Filho
(UNIRIO)), em minha palestra “Muntu e Lusotopia” tomei como
mote a língua portuguesa como traço em comum que permitiria
pensar a filosofia na UNILAB. Porém, logo nos debates os
estudantes problematizaram a direção de minha investigação:
apesar da língua oficial portuguesa ser um traço em comum, a
maioria dos estudantes não tinham essa como sua língua materna
ou aquela que usam no cotidiano. Partir do português seria
naturalizar uma dimensão colonizada como ponto de partida para
pensar o que temos em comum.
A experiencia de desenvolvimento do projeto de extensão
botAfala, em que utilizamos o hip-hop como ferramenta para
construção de uma educação democrática mostrou que a questão
da língua merecia muito mais cuidado. Na hora de compor
canções, os rappers sempre utilizavam sua língua materna quando
pretendiam transmitir aspectos emocionais mais intensos, recados
mais fortes etc. Por isso, para dialogar é preciso aceitar essa
mediação, perguntar e procurar entender o outro em sua
alteridade, e não na busca por reduzi-lo ao mesmo.4
Tcholonadur é uma palavra da língua kriol de Guiné-Bissau que
é bem descrita por Moema Parente Augel:
é uma figura do cotidiano guineense; é o que intermedeia, que serve de
ponte entre o falante e o ouvinte, pessoa necessária, mesmo indispensável,
com atribuições diversas, tanto nas culturas com base nas chamadas
religiões naturais, como nas coletividades muçulmanas. Quando há algo há
tratar entre dois contraentes. Muitas vezes falantes de diferentes línguas, não
é possível, segundo os costumes locais, que os dois dialoguem diretamente,
tornando-se necessária a presença de um terceiro, tradutor (mas não
necessariamente), mediador ou intermediário, que então passa para cada um
o que o outro diz ou responde. A posição dos oponentes, muitas vezes
Essa proposta converge com a de Michael O. Ezé descrita na introdução de sua
entrevista neste livro.
4
27
Marcos Carvalho Lopes
sentados de costas viradas um para o outro, indica ou estabelece a distância,
o antagonismo que o tcholonadur tenta superar. Para as etnias não
muçulmanas, o papel de intermediário representado pelo tcholonadur tem
cunho religioso, mesmo místico, de mediação entre os indivíduos e a
divindade. É quem possui o poder de decifrar e transmitir a mensagem do
iran, cujos sons nem sempre são inteligíveis para aqueles que o foram
consultar” (AUGEL, 2007, p.330).
A palavra guarda um grau de ambiguidade que não conhecia,
mas para o qual fui alertado por Filomeno Lopes: o tcholonadur
pode ser visto como um embusteiro, fofoqueiro, um “leva e traz”.
Em muitos aspectos acredito que o papel de quem procura
desenvolver a filosofia de modo intercultural é esse do tcholonadur
e não o daquela pessoa que é “dona da palavra”, da razão, do logos.
Existe uma precariedade e uma desconfiança que fazem parte de
sua condição socrática: este mesmo filósofo grego, era descrito
como marcado pela soberba, na galhofa de Aristófanes; postura que
foi transformada por Platão em sua proverbial ironia. Mas aqui é
melhor considerar as muitas faces de Exu, que na descrição de
Henry Louis Gates, estão presentes na escrita afro-diaspórica,
tendo um discurso múltiplo, com uma perspectiva voltada para
quem é de fora e outra para quem pertence a comunidade. Nossa
palavra está no meio do caminho, na travessia.
Na poesia da bissau-guineense Odete Semedo o personagemconceito tcholonadur ganha uma representação poderosa, como o
“mensageiro”, aquele que faz a mediação do conflito fratricida que
levou o país a guerra civil (ela opõe Guiné e Bissau, encarnando as
posições divergentes). Este mensageiro, é “teu”, lhe dirige a
palavra diretamente e pede que mantenha a atenção cuidadosa
necessária para a escuta. O poema “bu tcholonadur/teu mensageiro” é
apresentado em forma bilíngue (aqui trago sua versão em
português) (SEMEDO, 2007):
Não te afastes
aproxima-te de mim
traz a tua esteira e senta-te
28
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Vejo tremenda aflição no teu rosto
mostrando desespero
andas
e os teus passos são incertos
Aproxima-te de mim
pergunta-me e eu contar-te-ei
pergunta-me onde mora o dissabor
pede-me que te mostre
o caminho do desassossego
o canto do sofrimento
porque sou eu o teu mensageiro
Não me subestimes
aproxima-te de mim
não olhes estas lágrimas
descendo pelo meu rosto
nem desdenhes as minhas palavras
por esta minha voz trémula
de velhice impertinente
Aproxima-te de mim
não te afastes
vem...
senta-te que a história não é curta.
O mensageiro de Semedo é exigente e pede que o leitor mude
sua postura para ouvir o seu canto. Quero fazer este mesmo pedido
para as pessoas que lerão essas entrevistas, com a diferença de que
para desvelar seus sentidos ambíguos, presentes na diversidade de
posições e posturas, não pressuponha um tipo de convergência que
apaga todas as diferenças. A filosofia como algo vivo não pede
condescendência, mas a vontade de participar do jogo de pedir e
dar razões com a coragem de mudar a si mesmo.
Este trabalho é dedicado ao meu filho, Ulisses, que está
lutando para aprender a falar. Suas palavras eram ainda raras e
pouco articuladas quando diante da situação de uma consulta
médica começou a repetir “obrigado, obrigado, obrigado” (algo
que nunca havia dito), numa tentativa de se livrar do exame e ir
29
Marcos Carvalho Lopes
logo embora. Talvez ele tenha mimetizado esse “obrigado” que
comumente uso me despedindo em situações diversas. Não tenho
certeza, mas aqui sou eu quem vai copiá-lo. Ao invés de fazer uma
lista de agradecimentos, que seria incompleta, parcial e incapaz
de expressar a alegria de terminar este projeto, vou repetir essa
palavra (com a qual terminava os e-mails dentro destes muitos
diálogos): muito obrigado!
Marcos Carvalho Lopes
Jataí, 21 de agosto de 2023.
Referências
AUGEL, Moema Parente. O desafio do escombro: nação,
identidade e pós-colonialismo na literatura da Guiné-Bissau.
Garamond, 2007.
GORDON, Lewis R. Disciplinary decadence: Living thought in
trying times. Routledge, 2015.
IMBO, Samuel Olouch. An introduction to African philosophy.
Rowman & Littlefield Publishers, 1998.
LOPES, Filomeno. Filosofia senza feticci: risposte interdisciplinari
al dramma umano del 21. secolo. Edizioni associate, 2004.
LOPES, Marcos Carvalho (ed.). BotAfala: ocupando a Casa
Grande. São Carlos: Pedro & João Editores, 2020.
LOPES, Marcos Carvalho. Conversa com notas de rodapé.
Questões para a filosofia africana. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2022.
NGOENHA, Severino. Das independências às liberdades:
filosofia africana. 2ª ed. - Prior Velho: Paulinas, 2014.
SEMEDO, Odete. No fundo do canto. Belo Horizonte: Nandyala,
2007.
30
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Ada Agada e a disposição para filosofar*
Jonathan O. Chimakonam no prefácio do livro Existence and
Consolation descreve com entusiasmo o trabalho de Ada Agada,
afirmando que “emergiu há algum tempo como uma força
revolucionária na filosofia africana”, que “descolonizou e reabriu a
mente africana fechada nas garras estranguladoras do eurocentrismo (...) ele quebrou as correntes da filosofia de cópia,
comentário e transliteração na África”. Por isso, Chimakonam
sentencia “Ada Agada é, sem dúvida, a própria evolução da filosofia africana contemporânea”.
Tenho acompanhado há algum tempo os trabalhos de Ada
Agada e as palavras de Chimakonam estão bem justificadas. A
intensidade do gesto de pensamento de Agada o fez, por exemplo,
reavaliar o lugar da etnofilosofia, tomando a necessidade de
contextualizar culturalmente o pensamento como parte da
possibilidade de efetivamente filosofar (ou seja, ir além das
armadilhas metafilosóficas). Isso significa uma escolha entre três
caminhos considerados por ele como possibilidades para quem
desenvolve a filosofia africana: “(1) Adotar uma postura
subserviente que reconheça timidamente a soberania da filosofia
ocidental e localizar a filosofia africana como um subconjunto da
filosofia ocidental, (2) Rejeitar a pretensão da filosofia ocidental
ao universalismo absoluto e lamentar incessantemente a injustiça
epistêmica, sem insistir numa solução radical que implique um
regresso ao mundo do pensamento africano; (3) Rejeitar a
reivindicação universalista absoluta da filosofia ocidental e ir em
frente para começar do zero a formular sistemas de pensamento
africanos que reivindiquem o universalismo e, depois, desafiar a
filosofia ocidental a fugir à insularidade intelectual e a ir ao
*
https://doi.org/10.51795/97865265082683137
31
Marcos Carvalho Lopes
encontro dos sistemas de pensamento africanos originais
recentemente formulados na mesa redonda da filosofia
intercultural, na qual todos podem iniciar a procura de um
universalismo mais representativo” (AGADA, 2020).5
Por essa descrição já podemos entender que Agada segue por
este terceiro caminho, numa trilha comum à chamada Escola da
Conversação Filosófica (Conversational School of Philosophy,
CSP), que insiste na necessidade de criar sistemas culturalmente
informados. É nesse sentido que o autor propõe o seu
Consolacionismo ou Filosofia da Consolação, conceito que
descreve o ser humano como um “ser melancólico (homo
melancholicus) que encontra sua própria natureza racional e
emocional espelhada no mundo externo, com seus próprios
impulsos vitais não radicalmente diferentes dos impulsos
difundidos por todo o universo como anseios da totalidade da
natureza. A projeção da racionalidade e da emocionalidade na
matéria a partir do local da consciência sublinha a transgressão das
fronteiras e a centralidade do esforço eterno no universo”
(AGADA, 2020). O Consolacionismo de Agada toma o conceito de
ânimo/disposição (mood) como o centro de uma metafísica que
pretende se desviar de diversas dicotomias (como mente/corpo;
determinismo/liberdade etc.).
Essa disposição de não se curvar ao imperialismo
epistemológico do Ocidente, mas de construir sua própria posição
de modo sistemático e informado, utilizando as metodologias filosóficas ocidentais — analíticas, fenomenológicas, existenciais etc.
— como ferramentas circunstancialmente úteis para determinado
fim, representam o próprio filosofar de Ada Agada, como é
possível ler nesta breve entrevista.
AGADA, Ada. “Consolationism in and beyond African philosophy. A systematic
approach to intercultural philosophy”. Disponível em: <https://unituebingen.de/einrichtungen/zentrale-einrichtungen/center-for-interdisciplinaryand-intercultural-studies/forschung/fellows/senior-fellows/agada/>. Consultado
em 28/10/2020.
5
32
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
A entrevista a seguir foi realizada por e-mail e, como todas as
que fazem parte deste projeto, baseia-se em um conjunto fechado
de questões. É importante ressaltar que na tradução se perde a
neutralidade de gênero que a língua inglesa permite.
Como você define a filosofia africana?
Ada Agada — Definirei a filosofia africana como um campo de
investigação filosófica que envolve questões sobre o mundo e a
existência humana a partir da perspectiva cultural dos povos
africanos. A filosofia africana — como as filosofias ocidental,
asiática e latina — tem raízes culturais e aspira à universalidade na
aplicabilidade do horizonte intelectual criado por suas perguntas,
respostas e proposições.
Como você entrou em contato com a filosofia africana?
Entrei em contato com a filosofia africana com a mesma
naturalidade com que nasci africano! Como Aristóteles notou, os
humanos procuram saber. Esse desejo produz filosofia. Como um
africano que se relacionou (acquainted) com a filosofia ocidental
antes da filosofia africana, descobri-me consciente e
inconscientemente avaliando a filosofia ocidental e usando
categorias (inclusive a linguagem) que minha cultura africana
fornecia. Eu tentava transplantar as ideias dos filósofos ocidentais
para o solo filosófico africano, ou cosmovisões, se preferir. Felizmente, a filosofia africana como disciplina havia sido estabelecida
na época em que comecei meus estudos de graduação.
Posteriormente, decidi me dedicar à filosofia africana sabendo que
os pensadores africanos só fariam contribuições importantes para
a filosofia mundial quando avançassem as questões universais a
partir de perspectivas culturais.
Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote
para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está
ultrapassada?
33
Marcos Carvalho Lopes
A filosofia africana ainda está em busca de uma identidade, embora
não da maneira intensa e, de fato, avassaladora (all-consuming) de
algumas décadas atrás. Há trinta anos, havia dúvidas sobre se a
filosofia africana era real. Consequentemente, a disciplina enfrentou
a questão da identidade. Hoje, a filosofia africana é uma disciplina
estabelecida e próspera; no entanto, ela ainda luta com a questão da
identidade porque continua sendo muito marginalizada. Uma coisa
que sempre achei preocupante sobre a tradição filosófica dominante
do Ocidente é a profunda falta de interesse de seus praticantes pelas
tradições filosóficas das sociedades não ocidentais. Dado o domínio
da filosofia ocidental, os filósofos africanos continuam a adaptar
seus pensamentos às filosofias ocidentais analíticas e continentais na
esperança de obter o reconhecimento do Ocidente. Esta condescendência (pandering)6 atinge a originalidade. O déficit de liberdade e
originalidade significa que a questão da identidade persiste para a
filosofia africana.
Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia
africana hoje?
As questões dominantes da filosofia africana hoje são metafísicas,
lógicas, epistemológicas e especialmente éticas e sócio-políticas.
Muito já foi escrito sobre ética e filosofia sociopolítica, tendo as
questões da pessoa humana, do afro-comunitarismo e da vida boa
O verbo pander, que Agada usa duas vezes nessa entrevista para falar da relação
com a colonização epistemológica do imperialismo Ocidental, tem uma etimologia
curiosa. O verbo teria origem no personagem Pandaro da história de Tróilo e
Cressida. Na narrativa medieval, Pandaro, um aristocrata troiano que aparecia na
Ilíada com virtudes guerreiras, passou a ser retratado como alguém licencioso e
condescendente que faz a mediação para o namoro de Tróilo e sua sobrinha
Cressida. Essa forma de entregar a sobrinha seria a origem do verbo pander, que
indica a cessão condescendente, uma relação de exploração que beneficia o outro.
Pandero não deixa de remeter a Pandora, cujo nome em grego significa algo como
“toda-doadora” (pan- todo, doron – presente), que teria aberto a jarra/caixa que
espalhou o mal pelo mundo. Se for possível descontar a dimensão patriarcal
presente na narrativa que engendra essa palavra, é bom ter em vista como ela
traduz a disposição mental de subserviência própria da colonialidade.
6
34
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
em destaque. Alguns de nós, que pertencemos à quarta geração
(que uso aqui para me referir aos filósofos recém-surgidos),
descobriram que é necessário explorar questões metafísicas, lógicas
e epistemológicas da relação entre mentalidade e materialidade, do
conhecedor e da coisa conhecida e da possibilidade de sistemas
lógicos culturalmente informados que sejam universalmente
aplicáveis. Há assim uma mudança de foco de questões
metafilosóficas sobre a natureza da filosofia africana para questões
substantivas sobre o mundo e a existência humana.
Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo
(womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia
africana aborda questões relacionadas às diferenças de gênero e
identidade sexual?
Sobre feminismo e mulherismo (womanism), bem, algumas filósofas
africanas sentiram que a visão mediada pelo Ocidente, de que a
África pré-colonial funcionava como um patriarcado rígido e
uniforme, era uma deturpação. Elas também sentiram que o
feminismo, como recebido do Ocidente, favorecia (pandered) principalmente às preocupações ocidentais e subestimava a experiência
africana. Algumas filósofas africanas abraçaram assim a ideia do
mulherismo. Eu acho que as mulheristas fizeram uma opção bem
justificada. Até onde se tem registro, em toda história africana as
mulheres desempenharam papéis importantes.
Os estudos de gênero estão agora firmemente estabelecidos na
filosofia africana e as questões de sexualidade estão gradualmente
fazendo seu caminho na filosofia africana dominante. No entanto,
o conservadorismo do continente africano significa que as questões
da sexualidade não são discutidas com a frequência que deveriam.
Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é
o mais importante em sua opinião?
O mais importante filósofo africano entre aqueles que conheço
pessoalmente? Esta é uma questão complicada, uma questão
controversa. Tenho dúvidas de que um único filósofo possa ser
35
Marcos Carvalho Lopes
identificado. Eu diria que Paulin Hountondji é o filósofo africano
mais importante que conheço pessoalmente. Ele é um colosso
filosófico africano. Existem outros, mas não tive a honra de
conhecê-los.
Qual é o seu filósofo africano preferido?
Meu filósofo africano favorito é um pensador nigeriano chamado
Innocent I. Asouzu. Se você me permitir adicionar um segundo e
um terceiro, mencionarei Mogobe B. Ramose e L.S. Senghor.
O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No
entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados
Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil.
Esse também é um problema comum em relação à África de
língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são
divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma
unidade que leve em conta esses espaços?
É verdade que o Brasil e a África Lusófona ainda não entraram
plenamente no diálogo sobre a filosofia africana. Como você notou,
o caso do Brasil é estranho, dada sua grande população africana, a
maior fora da África na verdade! Os falantes de inglês e francês
atualmente dominam o diálogo devido ao uso em grande escala
das duas línguas. A língua não deve separar os filósofos africanos
porque estou convencido de que falantes de português e espanhol
podem revigorar a disciplina com suas perspectivas únicas. Uma
forma de aumentar a qualidade do diálogo por meio da
participação irrestrita é vermos mais traduções. Obras filosóficas
escritas em português por pensadores afrodescendentes devem
estar disponíveis em inglês e francês, assim como os textos em francês e inglês devem ser traduzidos para o português. Assim, todos
começaremos a conversar seriamente uns com os outros. A barreira
do idioma não deve e não pode subsistir.
Ada Agada
36
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
é um filósofo nigeriano e autor de Existence and Consolation: Reinventing
Ontology, Gnosis, and Values in African Philosophy, vencedor do prémio
Outstanding Academic Title (OAT) da CHOICE em 2015. Estudou na Nigéria
e atuou como pesquisador e professor em África e na Europa. Atualmente, é
investigador sénior na Conversational School of Philosophy (CSP), em Calabar,
na Nigéria.
Referências
AGADA, Ada. Existence and consolation: Reinventing ontology,
gnosis and values in African philosophy. Paragon House, 2015.
______. The future question in African philosophy. In:
CHIMAKONAM,
Jonathan
(Ed.). Atuolu
omalu:
Some
unanswered questions in contemporary African philosophy.
University Press of America, 2015. p. 241-267.
______. Consolationism in and beyond African philosophy. A
systematic approach to intercultural philosophy. Disponível em:
<https://unituebingen.de/einrichtungen/zentrale-einrichtungen
/center-for-interdisciplinary-and-intercultural-studies/forschung/
fellows/senior-fellows/agada/>. Consultado em 28/10/2020.
37
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
38
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Yusef Waghid e a filosofia africana da educação*
O professor Yusef Waghid é uma referência para quem quer
pensar a educação no sentido de construção de uma cidadania
global. Essa dimensão cosmopolita de sua proposta de filosofia da
educação não deixa de lado as lições de Paulo Freire sobre a
necessidade de contextualização das práticas educacionais e o
compromisso de construção de uma sociedade mais justa. Isso
significa para Waghid propor uma filosofia africana da educação
que não se reifique em torno de um dogma identitário, mas que
reconheça a contingência e a necessidade de constante redescrição.
Isso significa a valorização da conversação como caminho para
a construção de uma filosofia africana da educação que conjugue a
ação dependente da cultura com aquela justificada de modo
argumentativo. Como descreve Waghid no início de seu livro
African philosophy of education reconsidered: On being human:
Grande parte da literatura sobre uma filosofia africana de educação parece
justapor duas vertentes da filosofia africana como entidades mutuamente
exclusivas, a saber, a tradicional etnofilosofia, por um lado, e a filosofia
científica africana, por outro. Enquanto a etnofilosofia tradicional está
associada aos artefatos culturais, narrativas, folclore e música dos povos
africanos, a filosofia científica africana se preocupa principalmente com as
explicações, interpretações e justificações do pensamento e da prática africana de acordo com o raciocínio crítico e transformador. Estas duas
vertentes diferentes da filosofia africana invariavelmente têm um impacto
diferente no entendimento da educação: isto é, a educação como
constituída pela ação cultural como sendo mutuamente independente da
educação constituída pela ação fundamentada. A posição que defendo (...)
é a de uma filosofia africana de educação orientada por uma ação
comunitária, razoável e dependente da cultura, a fim de superar a divisão
conceitual e prática entre etnofilosofia africana e filosofia científica africana. Ao contrário daqueles que argumentam que a filosofia africana de
*
https://doi.org/10.51795/97865265082683945
39
Marcos Carvalho Lopes
educação não pode existir porque não invoca a razão, ou que a filosofia
africana de educação racional não é possível, eu defendo, em vez disso,
uma filosofia africana de educação constituída por uma ação racional,
dependente da cultura. (WAGHID, 2013, p. 1).
Nessa direção, Waghid toma a africanização como uma
tradição de investigação, de diálogo em que se reconhece a
interdependência humana (ubuntu) e a relacionalidade (ukama), em
que o indivíduo não é apagado em relação a comunidade, mas
ambos se constituem de modo conversacional. Se a palavra shona
ubuntu é relativamente conhecida como sendo um lema do
humanismo africano, que remete ao provérbio “Munhu munhu
navanhu” (uma pessoa é uma pessoa por causa de outras pessoas);
a palavra shona ukama não tem a mesma popularidade, mas parte
da mesma cosmoperspectiva ética para designar relacionalidade ou
inter-relações. Etimologicamente “ukama” é composta da palavra
kama, que significa ordenhar um animal, cuja raiz é “hama”, que
significa relativo, parente, sendo “u” o prefixo que lhe transforma
em adjetivo: o trabalho de aproximação de um animal para
ordenha implica uma rede de afetos e proximidade, na conexão e
interdependência entre o que sustenta e o que é sustentato; o
provérbio “Wako ndewako kuseva unosiya muto” (“Ao se alimentar,
mesmo com muito pouco apetite ou sopa (no seu prato), você sempre se lembrará de deixar um pouco para seu parente”) traria o
contexto de seu significado que vincula a pessoa à comunidade (a
família
extensa,
antepassados
etc.)
(NDOFIREPI
e
SHANYANANA, 2016). A ética ligada a ukama, como
reconhecimento da interdependência na relação com os demais,
complementa o sentido de ubuntu, mostrando que a crítica sobre
uma negação do indivíduo não se justifica.
Waghid não toma esses termos como imutáveis, mas sim
dentro de uma perspectiva de educação para a mudança e ruptura
com os padrões de colonialidade e a necessidade de construção de
novas formas de ensino e aprendizagem: “as coisas nunca são
concluídas e finalizadas. O conceito de ruptura significa que tudo,
incluindo conceitos como o Ubuntu em si, tem o potencial de ser
40
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
visto de forma diferente. Sempre há espaço para novas formas de
entender os acontecimentos do mundo e o mesmo ocorre com os
encontros pedagógicos”.
O reconhecimento da necessidade de rupturas mostra que não
se trata de uma proposta de fechamento em si mesmo, mas de uma
forma de relacionamento com outras culturas em que é preciso (1)
aprender a ter ao mesmo tempo hospitalidade e hostilidade
(Derrida), tratando “a visão dos outros com respeito e
reconhecimento da diferença”, (2) abrindo-se a novidade com
lealdade ao que já se conhece e (3) enfatizando o valor da palavra e
do debate argumentativo para construção de um consenso como
marcas da africanidade (WAGHID, 2018). Estes elementos se
articulam na direção de uma educação para a cidadania
democrática e cosmopolita, quando os temas que trazemos para o
debate colocam em questão o mundo em que vivemos, os
problemas que temos em comum e a busca pela criação de soluções.
O professor Yusef Waghid tem buscado trazer essa proposta
de filosofia africana da educação tanto para construção de uma
perspectiva de educação islâmica democrática, quanto para o
contexto das novas tecnologias e do ensino a distância. Nessa
segunda direção, juntamente com seus filhos Faiq Waghid e Zayd
Waghid, criou um curso online livre em que aplicou sua proposta
de filosofia africana da educação. O projeto, que atendeu milhares
de pessoas espalhadas pelo mundo, propõe procedimentos de
aplicação de ubuntu e ukama, e gerou o livro Rupturing African
philosophy on teaching and learning: Ubuntu justice and
education. No contexto atual de pandemia, no qual as
universidades são obrigadas a aderir a educação a distância de um
modo coercitivo, essa experiência pode ser inspiradora e merece ser
estudada com mais atenção.
Nesta entrevista muito breve, feita por e-mail com o professor
Yusef Waghid, as questões muito gerais não foram as mais
adequadas para tratar especificamente de suas propostas. No
entanto, podemos perceber que ele destaca os caminhos para os
quais se direciona, ao enfatizar o papel do pós-estruturalismo e de
41
Marcos Carvalho Lopes
autores como Jacques Derrida, Paulo Freire, Franz Fanon e Kwame
Anthony Appiah.
Como você define a filosofia africana?
Yusef Waghid — Identificar problemas no continente e examinar
suas implicações para a educação. Meu foco é a filosofia africana da
educação.
Como você entrou em contato com a filosofia africana?
Eu me identifico com a África pós-colonial e fui iniciado no
pensamento pós-colonial por meio de minha leitura crítica de
Fanon.
Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote
para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está
ultrapassada?
Olhar para a identidade seria apenas um tanto existencialista. Eu
argumentaria que o cultivo da filosofia africana (da educação)
surgiu em oposição aos ideais universalistas eurocêntricos de
logocentrismo.
Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia
africana hoje?
Compreender o que prejudica as práticas humanas e fazer algo
para mudar isso. A filosofia africana da educação pode ser
considerada uma crítica dissonante das reivindicações de
conhecimento hegemônico.
Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo
(womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia
africana aborda questões relacionadas às diferenças de gênero e
identidade sexual?
Bastante relevante e considero isso como parte dos discursos póscríticos daqui. Como que subvertendo-os de forma desconstrutiva.
42
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é
o mais importante em sua opinião?
Aqueles que são inspirados pelo pensamento pós-estruturalista e
eu não necessariamente associo muitos pensadores a tal visão.
Qual é o seu filósofo africano preferido?
Eu consideraria Jacques Derrida (um desconstrucionista) com
raízes argelinas como uma filosofia africana trabalhando na
diáspora com o pós-estruturalismo francês. No entanto, se eu fosse
ser mais específico, consideraria Kwame Anthony Appiah como
tal, porque ele trabalha em uma área pela qual me sinto atraído, ou
seja, o cosmopolitismo.
O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No
entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados
Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil.
Esse também é um problema comum em relação à África de
língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são
divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma
unidade que leve em conta esses espaços?
Sim, é possível na tradição pós-analítica que parece ser dominante
aqui no continente. A propósito, o trabalho de Paulo Freire inspirou
principalmente o meu próprio pensamento de uma filosofia da
educação africana crítica e ele chegou a África do Sul.7
Yusef Waghid
tem três doutorados: em Educação, pela University of the Western Cape, em
Política e em Filosofia, pela Stellenbosch University. É um dos principais filósofos da educação da África atualmente. Como professor distinto
(distinguished professor) da Universidade de Stellenbosch, tem sido um
Waghid escreveu “he was in South Africa”, que não significa uma presença física
de Freire na África do Sul, país africano que nunca visitou, mas sobre o qual
escreveu e se posicionou na luta contra o apartheid. Sobre a importância de Paulo
Freire na África do Sul, ver, por exemplo: <https://www.thetricontinental.org/ptpt/dossie-34-paulo-freire-e-africa-do-sul/>
7
43
Marcos Carvalho Lopes
prolífico autor, com 378 publicações até hoje, das quais quarenta e três são livros
acadêmicos e setenta e três capítulos de livro. Seu compromisso com o avanço da
educação se dá também no trabalho de orientações de pós-graduação, tendo
orientado trinta e uma teses de doutoramento e examinado setenta e oito
doutorados, atividade que culminou em ter sido homenageado pela Associação
para o Desenvolvimento da Educação na África em 2015 como um digno
ganhador do prestigioso Prêmio de Pesquisa em Educação na África: Destaque
Mentor de Pesquisadores em Educação. Suas contribuições acadêmicas mais
notáveis no campo da filosofia africana do ensino superior figuram em importantes livros acadêmicos internacionais que incluem, dentre
outros, Academic Activism Reimagined: Towards a New Philosophy of
Higher Education (Springer, 2020, com Nuraan Davids); Towards a
Philosophy of Caring in Higher Education: Pedagogy and Nuances of
Care (Palgrave-MacMillan, 2019); Education for Decoloniality and
Decolonisation in Africa (Palgrave-MacMillan, 2019, com Chikumbutso
Herbert Manthalu); Rupturing African Philosophy of Teaching and
Learning (Palgrave-MacMillan, 2018, com Faiq Waghid & Zayd Waghid);
e African Philosophy of Education Reconsidered: On Being
Human (Routledge, 2014). Em reconhecimento a seus trabalhos acadêmicos e
tendo publicado em muitas das principais revistas de sua área, a National
Research Foundation na África do Sul o classificou como um acadêmico
internacionalmente aclamado que oferece liderança exemplar no avanço da
filosofia do ensino superior na África. Concomitantemente, ele foi pioneiro no
inovador projeto africano MOOC (Massive Open Online Course) sobre Ensino
para a Mudança (Teaching for Change), selecionado pela Academia SDG das
Nações Unidas: Aula Central como um curso internacional online gratuito para
aprender sobre as metas de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas
(2016-2020). Ele foi homenageado com as editorias de duas importantes revistas
acadêmicas, a saber, Citizenship, Teaching and Learning, e South African Journal
of Higher Education, através da qual ele meritoriamente apoia os estudiosos a
publicar seus trabalhos seminais. De 2020 a 2021, colaborou com renomados
estudiosos internacionais em um projeto de pesquisa pioneiro da UNESCO,
Education for Flourishing and Flourishing in Education iniciado pelo Instituto
Mahatma Gandhi de Educação para a Paz e o Desenvolvimento Sustentável. Seu
trabalho no ensino superior na África é também reconhecido pelo Conselho de
Ensino Superior na África do Sul, do qual é conselheiro desde 2019.
44
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Referências
NDOFIREPI, Amasa Philip; SHANYANANA, Rachel N.
Rethinking ukama in the context of ‘Philosophy for Children’in
Africa. Research Papers in Education, v. 31, n. 4, p. 428-441, 2016.
WAGHID, Yusef. African philosophy of education reconsidered:
On being human. Routledge, 2013.
______. African philosophies of education re-imagined: Looking
beyond postmodernism. Educational Philosophy and Theory, v.
50, n. 14, p. 1432-1433, 2018. DOI: 10.1080/00131857.2018.1462468
WAGHID, Yusef; WAGHID, Faiq; WAGHID, Zayd. Rupturing
African philosophy on teaching and learning: Ubuntu justice and
education. Springer, 2018.
45
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
46
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Tanella Boni e as mulheres na filosofia africana*
a dignidade humana — a ideia, o princípio, a exigência — que brilha pela
sua ausência na vida quotidiana de muitos indivíduos, manifesta-se em cada
relação humana desde o primeiro olhar, a primeira palavra, o primeiro
encontro como um reconhecimento mútuo um do outro. Mas esse reconhecimento pode acabar sendo uma tarefa sem fim. E devemos ser capazes de
pensar que até os mortos nos reconhecem como seres humanos quando
inclinamos a cabeça diante de sua memória, que eleva nosso espírito para o
que está além da vida. (BONI, 2007, p. 215).
A filósofa costa-marfinense Suzanne Tanella Boni (1954),
além de professora na Universidade Félix Houphouët Boigny, em
Abidjan, Costa do Marfim, e em Toulouse, na França; é uma
escritora premiada com romances, poemas, livros infantis e
ensaios. Seu cuidado com as palavras vem acompanhado do
peculiar hábito filosófico de desconfiar de reificações teóricas, que
tornam moedas gastas e sem valor aquilo mesmo que deveria ser
pensado. Esse cuidado poético muitas vezes se confronta com as
reificações que no cotidiano mortificam e banalizam formas de
desigualdade e violência. O filósofo senegalês Souleymane Bachir
Diagne, no prefácio do livro de Boni Chaque jour l'espérance,
afirmou que a escrita da autora se faz “para defender a vida contra
a morte circundante”, nesse sentido busca “dizer para cada dia a
esperança que ele carrega. Porque escrever contra o horror não é
perseguir indefinidamente a tentativa de falar de desastre indizível. É cantar a força para viver e ter esperança. Esta forma de ver é
a de Tanella Boni, poetisa e filósofa que, à negação que é a recusa
da morte, prefere a afirmação da força de viver e de gostar”. Esse
gesto de pensamento ajuda a explicar como ela vivência a escrita.
*
https://doi.org/10.51795/97865265082684758
47
Marcos Carvalho Lopes
Além da entrevista, que exemplifica bem esse modo de
proceder, vale a pena descrever um pouco como a autora se
aproxima da questão da mulher e do feminismo em África. Boni
descreve ter sido por mais de 20 anos a única mulher em um
Departamento de Filosofia e ter encontrado no estudo da filosofia
grega antiga, mais especificamente, estudando os conceitos de vida
e matéria em Aristóteles, elementos que justificavam a
inferioridade feminina e sua exclusão do debate público. Apesar de
reticente em relação ao uso da palavra feminista e aos recortes de
gênero, Boni diz ter em certo momento percebido que estruturas
patriarcais condicionam o campo filosófico:
No mundo social, político, cultural e acadêmico em que vivi, a desigualdade
e a injustiça eram lei. Compreendi que um homem e uma mulher com igual
competência não tinham chances iguais de serem ouvidos ou levados a sério
no campo da produção de conhecimento ou do debate acadêmico. Algo se
quebrou em mim; nunca seria capaz de ver o mundo da mesma maneira.
Daquele momento em diante, me permiti imaginar meu ambiente como um
mundo de paredes e obstáculos que se tornam visíveis e audíveis apenas
quando se desenvolve a consciência deles. (BONI, 2017, p. 51).
Isso não significava necessariamente aderir automaticamente
a palavra feminismo, porque compreendia que tal ordem
patriarcal, que obviamente vai além do campo da filosofia, afetava
todos os corpos e sexualidades que desafiavam suas normas. Por
isso mesmo, o movimento de Boni de dar um passo atrás e perguntar “o que é uma mulher?” não é também uma rejeição do
feminismo, mas propõe uma recontextualização que não se fecha
na questão de gênero, mas busca desvelar as causas das situações
de desigualdade e injustiça vivenciadas pelas mulheres e procura
formas de resolvê-las. Para ela:
Mesmo que seja uma questão filosófica, existe um vasto abismo entre a
palavra “mulher” e a palavra “feminista”. O que separa os dois não é a busca
por uma definição da categoria das mulheres; é, antes, uma forma de
engajamento. É, por um lado, uma questão fria e desapaixonada que pode
ser dissecada externamente e pode dar origem a todos os tipos de
interpretações e discussões, assim como qualquer questão filosófica. Mas por
48
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
outro lado, é um engajamento envolvente, uma abordagem que vem do
nosso corpo e da nossa alma e talvez até de nossas entranhas, onde existe
raiva, revolta e determinação. Todos os feminismos me parecem ser dessa
ordem, e os feminismos que tratam da África em um grau ainda maior. (...)
Em um nível individual, então, eu diria que não se entra no feminismo da
mesma forma que se entra na religião, ou seja, por escolha. Em vez disso,
nos tornamos feministas porque não temos escolha. Lutamos e resistimos
para que possamos “nos encontrar”, assumir responsabilidades, ter um
lugar no mundo, e fazemos isso apoiando e cuidando de nós mesmas e de
nossos entes queridos. Desta forma, a preocupação consigo mesma e com os
outros é um passo anterior a todo raciocínio e ativismo que podemos querer
qualificar como “feministas”. (BONI, 2017, p. 51).
Nesse sentido, a pergunta sobre “O que é uma mulher?”
quando feita na África ganha um contexto que gera respostas
diferentes daquelas de outros espaços. De todo modo, as formas de
violência e opressão provocadas pela falocracia existem em
diversas parte do mundo, como ela destaca em seu livro Que
vivent les femmes d’Afrique? [O que vivenciam as mulheres na
África?]: “Em toda parte, e em todas as culturas, há mulheres que
são espancadas, estupradas, assediadas, dominadas. A falocracia
ou ideologia construída em torno do homem que, como resultado,
se dá todos os direitos, está longe de ser uma invenção africana (...).
Mas como a dominação masculina se manifesta na África?” (BONI,
2008, p. 7-8). A questão proposta então é dupla: “O que há de
específico nestas mulheres que estão de alguma forma ligadas às
culturas africanas? O que elas compartilham com todas as outras
mulheres do mundo?” (ibid., p. 16).8
Dois exemplos descritos por Boni são infelizmente muito familiares para o
contexto brasileiro, como quando trata da coerção constante sobre padrões de
comportamento que manipulam a acusação de “loucura” — “as mulheres
africanas não nascem “loucas”, elas se tornam “loucas” aos olhos dos homens - e
aos olhos de outras mulheres - que têm que censurá-las pela vida que levam, por
não obedecerem a leis não escritas, por não obedecerem, por não se submeterem,
mas também pelo fato de não serem simplesmente mulheres, ou seja, corpos
perfeitamente maleáveis” (BONI, 2008, p. 57) — ou as formas de assedio e
situações de discriminação no trabalho — “No mundo do trabalho, além das
situações de discriminação, o assédio sexual é onipresente e pode assumir todas
8
49
Marcos Carvalho Lopes
Como diversas questões — ligadas ao desejo de descolonização,
de busca de identidade, resistência ao imperialismo — se
entrecruzam na constituição do feminismo africano; Boni considera
justificada a busca teórica de inspiração em um passado pré-colonial,
mas não deixa de contestar como esse caminho se afasta dos problemas vivenciados pelas mulheres africanas hoje. Por isso mesmo,
recontextualizar as questões significa deslocar a interrogação baseada somente no gênero, mas não deixar de denunciar as formas de
opressão promovidas pela falocracia.9
as formas: piadas atrevidas, flerte, dever de cozinhar (...) Se alguma vez as
mulheres cederem, sua reputação é atingida. A fim de salvaguardar sua
dignidade, as mulheres resistem a essa violência multifacetada, mesmo que isso
signifique ser chamadas por todos os tipos de nomes, e, no local de trabalho, o
caminho está cheio de armadilhas” (BONI, 2008, p. 53).
9 Boni explica esse ponto no artigo “Feminism, Philosophy, and Culture in Africa”:
“O ato de ser uma feminista africana é um desafio que alguém se coloca para si
mesma. Na verdade, as culturas, tradições e todos os tipos de particularidades nos
mostram que ‘gênero’ não designa uma relação de dominação composta de apenas
dois polos: a mulher na posição inferior e o homem na posição superior. As
relações de dominação se reproduzem e se interligam; para saber disso, basta
perguntar o que é família. O que é uma mãe? O que é um pai? O ‘casal’ existe? O
que é sexualidade? Por que os pais costumam estar fisicamente ausentes quando
toda a vida familiar, social, espiritual e intelectual é organizada em seu nome?
Questões filosóficas fundamentais nos mostram o grau em que a palavra ‘gênero’
merece ser questionada. Pode ser que as próprias mulheres estejam no centro do
desenvolvimento da vida econômica informal, embora isso ainda precise ser
provado. O gênero deve ser entendido do ponto de vista de etnias exclusivas em
uma África plural que inclui milhares de ‘grupos étnicos’, línguas, religiões e
culturas? Embora possa haver muitos tipos de dominação, a ideologia patriarcal
defende os interesses dos homens, independentemente de sua situação. Quer se
trate de relações entre indivíduos em uma família ou em um contexto estatal — e
nas cúpulas estatais há mães e pais presentes, assim como na família — tudo gira
em torno da organização de masculinidades que devem permanecer infalíveis,
viris e poderosas. Também entendemos porque as pessoas identificadas como
LGBTI têm tão poucos direitos em muitos países africanos e são perseguidas pela
opinião pública e política e pelas leis morais, sociais e religiosas. Ser feminista não
é, então, afinal, romper a ordem construída pela ideologia patriarcal que se
reproduz em todos os níveis de sociabilidade em nome da normalidade?” (BONI,
2017, p. 56-57).
50
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Mas quais diferenças existem entre se tornar mulher no
Ocidente e na África? Um exemplo utilizado pela autora é a
diferença em relação a descrição de Simone de Beauvoir sobre a
gravidez como uma alienação do corpo da mulher, enquanto nas
culturas africanas a esterilidade feminina é algo que toma
dimensões trágicas:
Trata-se de uma referência à ideia de que o corpo feminino é feito para gerar
filhos e preservar a honra do marido. Porém, a mãe não é apenas aquela que
dá vida; seu papel também é fornecer alimentos, cuidados e educação.
Existem mães nutridoras, mães espirituais e mães protetoras e, dessa forma,
elas são poderosas e têm homens e mulheres sob seu controle. As sogras
podem governar famílias inteiras. As relações de irmandade (sisterhood),
aliás, nem sempre são horizontais, mas hierarquizadas. A irmandade
(sisterhood) é, para as mulheres africanas, um ponto de integração e
estabilidade na família. O conceito de família, então, precisa ser revisitado e
adaptado às realidades locais; não corresponde a ideias de família que vêm
de outros lugares. A noção de ‘casal’ também precisa ser repensada. A que
se refere ‘casal’? A pergunta vale a pena fazer quando, em certas situações,
a poligamia está em jogo em suas formas mais insidiosas, e mesmo entre
homens e mulheres educados e conscientes de seus direitos. Pergunta-se,
então, como explicar essas situações complexas que parecem ser socialmente
aceitáveis ao mesmo tempo em que estão em contradição com as leis escritas.
Que recurso está disponível para as mulheres cujos direitos são violados, se
as leis escritas não as protegem e as leis orais e tradicionais não reconhecem
as injustiças que elas são obrigadas a suportar? (BONI, 2017, p. 55).10
Sobre o tema, Tanella Boni faz referência aqui ao seu livro Que Vivent les
Femmes d’Afrique? (Paris: Karthala, 2011). Nessa mesma direção, Déborah Alves
Miranda e Josilene Pinheiro Mariz, no interessante artigo “Liberdade sexual
feminina em Aya de Yopougon: uma leitura a partir de três personagens”, citam
um trecho do livro de Boni que toca nesta questão: “’É uma menina!’ é o grito de
exclamação que ressoa profundamente nos ouvidos da mãe como uma dupla
desgraça: a sua, que se repete; e, a da sua filha, que começa. O pai, frequentemente
ausente no momento do nascimento de uma criança, entra nessa história
fundadora um pouco depois (...) o homem vê o nascimento de sua enésima filha
como uma grande desgraça (...). Uma filha não é educada como um menino, isso
não é próprio da África.” (BONI, 2011, p. 31-32). Nesse mesmo sentido, a autora
no artigo “Feminism, Philosophy, and Culture in Africa”, explica que “a vida
individual das mulheres africanas é marcada por uma longa e paradoxal história
de violência. A violência começa na família. Estou falando aqui sobre a vida,
10
51
Marcos Carvalho Lopes
Quando consideramos o campo da filosofia africana e seu
desenvolvimento inicial, não temos a participação de mulheres e de
temáticas que lhes contemplem. Na verdade, falar de filósofas
africanas é algo que ainda causa incômodo, já que a maioria dos
nomes reivindicados não têm sua formação dentro dessa disciplina. Exceções como Sophie Oluwole (falecida em dezembro de
2018), Nkiru Nzegwu, Betty Wambui e a própria Tanella Boni, não
deixam de confirmar essa dificuldade, quando não são citadas e
nem lembradas como vozes relevantes. Boni destaca ainda as
fronteiras linguísticas que, nas aproximações filosóficas sobre sexualidade e gênero, têm sido extremamente severas, já que os
debates têm se desenvolvido em inglês de um modo amplo e
multifacetado, mas em francês não acontece algo parecido e o
diálogo com outras línguas é ainda menos efetivo.
A solução para essa situação está para Boni na escrita, na
necessidade de continuar produzindo e problematizando esses
temas, já que, quando se olha desde os países do Sul Global, a
própria filosofia africana ainda sofre com o silenciamento e a
ausência de espaço nos currículos, que repetem de modo acrítico a
veneração a tradições eurocêntricas. Para as filósofas africanas vale
alimentar a mesma força e autoridade semântica que é algo comum
a muitas mulheres africanas, uma dignidade que Boni diz ter
porque é onde tudo começa: não pode haver emancipação, nem liberdade, nem
justiça se não tivermos primeiro o direito à vida. E esse direito é ameaçado quando
se nasce menina. O papel de menino não tem mais valor do que o de menina?
Muitas mulheres africanas que desejam ter um filho, e não apenas as que vivem
nas áreas rurais, têm inúmeras gestações, muitas vezes em condições difíceis, até
que nasça o filho desejado do sexo masculino. O desejo de um filho homem é, a
meu ver, uma internalização dos princípios patriarcais pelas próprias mulheres,
que involuntariamente participam de sua reprodução. Se uma família aceita o
nascimento de uma menina de qualquer maneira, não é porque, desde o momento
de seu nascimento, ela já entrou no quadro de uma troca simbólica? A menina vai
se casar, e isso será de grande benefício econômico para seus pais” (BONI, 2017,
p. 55).
52
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
aprendido com sua mãe:11 “Elas mostram, a cada oportunidade,
uma vontade firme de viver e de não se deixar morrer. Assim, ao
contrário do que se poderia pensar, toda mulher, onde quer que ela
viva, sabe dizer ‘eu’. E para defender os valores e culturas em que
ela acredita, que não são necessariamente os de seus pais ou
ancestrais; este é um bom sinal” (BONI, 2008, p. 48).
Como você define a filosofia africana?
Tanella Boni — A questão da filosofia africana não é tão simples
assim. Do ponto de vista do reconhecimento dessa filosofia como
uma filosofia, nos anos 70, tratava-se de saber se ela existia ou não.
Pergunto-me se, cinquenta anos depois, ela será reconhecida como
uma filosofia por direito próprio. Por exemplo, que parte ocupa,
nos antigos países colonizadores, nos currículos universitários? Na
França, uma pequena parte ou nenhuma. Nos países africanos
francófonos, ainda busca seu lugar nos currículos universitários, já
que uma grande parte dos programas diz respeito aos filósofos
ocidentais, desde a antiguidade greco-latina até o século XXI.
De que ponto de vista se fala em “filosofia africana”? E a que
significado se refere “africano”? É a “África” no sentido geográfico?
Ou melhor, no sentido histórico? Na minha opinião, não se pode
limitar a um sentido geográfico, pela boa razão de que a África está
na história há muito tempo. A África entrou em relações — na maiEm entrevista recente, Boni descreve como sua mãe, que não tinha formação
escolar e nunca saiu de seu país, influiu em sua formação, sendo uma inspiração
decisiva. Com a mãe, ela aprendeu a cultivar o “respeito pela palavra dada, o que
torna a pessoa ‘digna de fé’. Não há contrato em nossa cultura. Para uma
transação comercial, um compromisso familiar, é a confiança que conta. E, de fato,
minha mãe sabia da importância de ser digna disso. Mas ela também tinha uma
capacidade preciosa de distinguir entre as coisas em nossas tradições africanas, de
discernir o que nos eleva e o que nos motiva, nós mulheres. Como excisão,
poligamia, submissão (...). Ela tinha uma mente crítica e uma sensação de dúvida
que transmitiu a mim. É por isso que posso dizer que, até meus estudos de
filosofia, minha principal filósofa era minha mãe!”. c. f. <https://www.lacroix.com/Monde/Afrique/Tanella-Boni-LAfrique-cree-pense-imagine-2020-0512-1201093808>.
11
53
Marcos Carvalho Lopes
oria das vezes, de forma violenta — com outros continentes,
notadamente a Europa e as Américas. Já na década de 1930 do século
XX, quando o movimento de negritude nasceu em Paris, ficou claro
que aqueles que participaram dele vieram não só da África (como
L.S. Senghor), mas também da América e das ilhas (Césaire, Damas,
as irmãs Nardal — que não devem ser esquecidas12). Poderíamos
falar longamente sobre este “mundo negro” que pensa e se pensa.
Mas me contento em mencionar que foi muito ativo no século 20,
especialmente em torno da revista e da editora Présence Africaine,
a partir de 1947. Portanto, a expressão “filosofia africana” deve levar
em conta essa história. Ela inclui as filosofias do continente, mas
também das diásporas. Hoje, nas universidades americanas, essa
história do pensamento filosófico, ligado de uma forma ou de outra
à África, está dividida em African Philosophy, Africana philosophy
ou Afro-american Philosophy. Posso dizer que o que é chamado de
“filosofia africana” é múltiplo e diversificado e inclui muitos autores
que, na maioria das vezes, escrevem nos idiomas coloniais (francês,
inglês, espanhol, português), estes idiomas que também podem ser
seus próprios idiomas (para aqueles que não têm outro idioma).
Eu acrescentaria que os filósofos africanos são “individualidades”
que não se assemelham uns aos outros. Portanto, assim como na
história da filosofia ocidental existem filósofos que são
mencionados pelo nome, pertencentes a um determinado período,
também aqui existem filósofos em escolas e períodos. Assim, podese classificar as correntes na história da filosofia africana, que eu
vejo como plural e diversa.
Como você entrou em contato com a filosofia africana?
Creio não ter tido uma formação acadêmica em “filosofia africana”.
Tendo concluído todos os meus estudos universitários na França,
passei por um curso de filosofia clássica ocidental. Conheci a
filosofia africana através de minhas leituras e então conheci alguns
Boni tem destacado a importância das irmãs Nardal c.f. BONI, 2014 e espanhol
BONI, 2020.
12
54
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
filósofos nos anos 70-80, 90 e posteriormente. Nos anos 80 ou antes,
eu tinha conhecido Abdoulaye Elimane Kane, Paulin Hountondji,
Aloyse-Raymond Ndiaye, Fabien Eboussi Boulaga (que era meu
colega em Abidjan antes de voltar para os Camarões), Alassane
Ndaw, Tshiamalenga Ntumba, Elungu Pene Elungu (que também
foi meu colega em Abidjan), Lucius Outlaw (norte-americano)
Kwasi Wiredu, Sophie Oluwole, Aminata Diaw, Souleymane
Bachir Diagne etc., são apenas alguns exemplos. Em Abidjan, meu
colega Niamkey Koffi estava ensinando filosofia africana naquela
época. E, ao longo dos anos, conheci muitos filósofos na Costa do
Marfim, Senegal, Benin ou em qualquer outro lugar, na Europa ou
nos Estados Unidos, durante simpósios internacionais.
Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote
para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está
ultrapassada?
Parece-me que existem muitas outras questões que surgem hoje. A
“filosofia africana”, qualquer que seja a definição dada a ela, deve
ser capaz de questionar tudo e todas as situações e fazê-lo de forma
crítica. A busca da identidade não desapareceu. Acredito que ela
não pode desaparecer por causa dos traumas vividos e do não
reconhecimento por outros (e, também, por nós mesmos) de nosso
conhecimento e saber prático (savoir-faire). Temos coisas para dizer,
para escrever, para propor ao mundo. Trata-se de uma tarefa
imensa que deve ser realizada com um forte compromisso de nossa
parte. Mas o compromisso também significa um envolvimento
muito pessoal com o que somos, com o que acreditamos e pensamos. Pensamos com o que somos, o que temos sido e o que
aspiramos ser.
Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia
africana hoje?
Ainda há muito a ser feito, como por exemplo, pensar em
Democracia é uma questão urgente, mas quando nós fazemos essa
pergunta, tenho a impressão de que ainda estamos nos limitando a
55
Marcos Carvalho Lopes
alguns clássicos da história da filosofia ocidental, quando
deveríamos estar levando em conta as experiências locais.
Reflexões sobre as artes e literatura também são muito importantes,
assim como, pensar sobre o lugar do ser humano na sociedade e no
mundo. A questão da migração é eminentemente filosófica; tudo
acontece como se não tivéssemos lugar no mundo para “viver”. E
qual lugar o sujeito-feminino (sujet-femme) na história da filosofia
africana: uma questão inescapável na minha opinião. Mas agimos
como se a “mulher” como um sujeito que pensa e como um objeto
de pensamento não existisse... Há muitas perguntas, desde que
tentemos pensar por nós mesmos.
Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo
(womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia
africana aborda as questões relacionadas às diferenças de gênero
e identidade sexual?
Eu me sentiria tentada a dizer que a filosofia africana não aborda
suficientemente essas questões, pelo menos nas universidades de
língua francesa. Nas universidades de língua inglesa (em Gana,
Nigéria, Quênia, África do Sul etc.) existem departamentos ou
institutos de pesquisa que tratam destas questões muito
importantes. Muitas pesquisadoras feministas nigerianas que
ensinam e trabalham em universidades norte-americanas têm suas
próprias teorias sobre as mulheres (estou pensando em Ifi
Amadiume, Obioma Nnaemeka, Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí etc.); eles
também são numerosos nas universidades nigerianas.13 Também é
preciso levar em conta os escritos de romancistas, ensaístas e
poetisas. Elas fazem avançar a compreensão do que é uma
“mulher”. Em Dakar, Senegal, o CODESRIA também promove a
pesquisa sobre gênero e feminismo na África. Entre as escritoras,
Na Nigéria, surgiram diferentes denominações de feminismos como
mulherismo (womanism), em que é preciso diferenciar a posição de Chikwenye
Okonjo Ogunyemi das da norte-americana Alice Walker; stiwanism, de Molara
Ogundipe-Leslie; nego-feminismo, de Obioma Nnaemeka. Tais denominações
não alcançaram uma convergência dos feminismos africanos (BONI, 2017, p. 54).
13
56
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
gostaria de começar citando Mariama Bâ, que, com Une si longue
lettre, mostra como uma mulher, através da escrita, assume o poder
simbólico.
Acho que o verdadeiro problema aqui é definir o que queremos
dizer com “feminismo”. Quais são as ferramentas a serem usadas
quando se trata de mulheres africanas e, antes de tudo, para
perguntar “o que é uma mulher”? Falar de “gênero e
desenvolvimento”, como vem sendo entendido há décadas, não é
suficiente. É necessário falar das mulheres como indivíduos (que
corpo, que mente, que faculdades, que conhecimentos e saberprático). As mulheres como sujeitos de suas vidas, conhecimentos,
aspirações etc. Devemos nos perguntar por que a cultura e a
situação particular de cada mulher devem ser levadas em conta.
Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é
o mais importante em sua opinião?
Todos aqueles que conheci são mais ou menos importantes.
Quem é o seu filósofo africano preferido?
Acho que ainda não o conheci!
O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No
entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados
Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil.
Esse também é um problema comum em relação à África de
língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são
divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma
unidade que leve em conta esses espaços?
Lembro-me de ter feito uma viagem muito enriquecedora ao Rio
em 2007. Foi por ocasião de um Simpósio de filosofia sobre
democracia patrocinado pela UNESCO. Eu gostaria de ter ido à
Bahia e a outras cidades, mas a oportunidade não surgiu. Percebi
quanto africanos e brasileiros têm coisas a compartilhar (especialmente crenças religiosas, culturas, incluindo tradições culinárias);
eles deveriam se conhecer melhor, mas existem muitas barreiras
57
Marcos Carvalho Lopes
que dificultam o encontro entre eles. Os textos não circulam,
especialmente entre a África francófona e o Brasil. Os acordos de
cooperação entre universidades, caso existam, não são realmente
ativos. A língua é uma verdadeira fronteira que pode ser
atravessada através da tradução de textos de ambos os lados. Acho
que deveríamos realmente traduzir os textos, pois seria uma forma
de ler um ao outro, de nos conhecermos e de podermos discutir.
Suzanne Tanella Boni
(1954) nasceu em Abidjan, capital da Costa do Marfim. Poetisa,
romancista, filósofa e autora de livros infantis, é professora da
Universidade Félix Houphouët-Boigny, em Abidjan, e vice-presidente da
Federação Internacional de Sociedades Filosóficas (FISP). Também é
membro da Academia de Ciências, Artes e Culturas da África e das
Diásporas Africanas (ASCAD).
Referências
BONI, Tanella. The Dignity of the Human Person: On the Integrity
of the Body and the Struggle for Recognition. Diogenes, v. 54, n. 3,
p. 59-68, 2007.
______. Feminism, Philosophy, and Culture in Africa. In: GARRY,
Ann; KHADER, Serene J.; STONE, Alison. The Routledge
Companion to Feminist Philosophy. Routledge, 2017. p. 49-59.
______. Femmes en Négritude: Paulette Nardal et Suzanne
Césaire. Rue Descartes, n. 4, p. 62-76, 2014.
BONI, Tanella; ORDOQUI, Florencia. Mujeres en Negritud:
Paulette Nardal y Suzanne Césaire. Estudios de Filosofía Práctica
e Historia de las ideas, v. 22, p. 1-15, 2020.
MIRANDA, Déborah Alves; MARIZ, Josilene Pinheiro. Liberdade
sexual feminina em Aya de Yopougon: uma leitura a partir de três
personagens. Antares: Letras e Humanidades, v. 11, n. 22, p. 72-92,
2019.
58
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Sanya Osha e a recontextualização da
filosofia africana*
Quando comecei a estudar filosofia africana procurei logo
tentar compreender quais autores pautavam os debates mais
interessantes e que seriam incontornáveis no desenvolvimento
atual da área. Dentre os autores que se encaixavam nessas
características o ganês Kwasi Wiredu foi um dos que escolhi como
referência. Procurei adquirir seus textos e os de comentadores.
Dentre essas obras, está o trabalho do filósofo nigeriano Sanya
Osha Kwasi Wiredu e Beyond: The Text, Writing and Thought in
Africa (2007). Esse texto chamou minha atenção por não se encaixar
no tipo de comentário hagiográfico que é comum nas academias
brasileiras: Sanya Osha apresentava e se contrapunha a Wiredu,
procurava ocupar seu espaço, ter a sua voz dentro do debate. Esse
gesto de pensamento que recontextualiza e rearticula as questões,
para seguir o jogo de pedir e dar razões dentro da filosofia africana,
é algo que se mantém como um traço que a leitura da entrevista a
seguir irá reafirmar.
Na divisão já clássica de Isaiah Berlin entre as pessoas que na
filosofia se mantém como ouriços (defendendo e expandindo uma
ideia única) e os que são como raposas (sempre prontos a mudar,
farejando novidades), colocaria Sanya Osha na posição de raposa.
Mesmo sabendo do reducionismo dessa classificação (acredito que
toda raposa tem um pouco de ouriço e vice-versa), ela é
suficientemente chamativa para ressaltar a multiplicidade de
interesses que os trabalhos do autor abarcam. No livro
Postethnophilosophy (2011), o autor parte do reconhecimento de
uma ruptura da relação fundamental entre filosofia a antropologia
*
https://doi.org/10.51795/97865265082685973
59
Marcos Carvalho Lopes
que foi encenada pela etnofilosofia, considerando que a
complexidade da África contemporânea coloca, dentro do contexto
da globalização, novas interrogações que demandam uma reorientação/modificação dos discursos e temáticas. Não basta modificar
as temáticas, mas, considerando os questionamentos quanto ao
“falogocentrismo” do pensamento ocidental (dialogando com
Derrida, Mbembe e Mudimbe), buscar se desviar desses modos de
discurso e ampliar o horizonte das autoras e autores com quem se
dialoga dentro da filosofia africana. Nesse livro, além das questões
de gênero e raça (e suas relações com a raciologia), “os traumas e
realidades da colonização, a dinâmica da subjetivação pós-colonial,
processos de descolonização, questões de agência e modos de
construção do conhecimento em África” (p. XIX). O difícil no caso
das raposas é que não podemos facilmente resumir aquilo que
farejam: quem lê tem também de afiar seus sentidos para o que o
texto possa causar (no mesmo sentido em que o autor se diz afetado
por Mudimbe).
A troca de e-mails com Sanya Osha virou ela mesma um
diálogo que aparece na entrevista adaptada, como uma questão
“extra” em que, muito sumariamente descrevo algo do cenário da
filosofia africana no Brasil. O texto da entrevista não fala por si só,
mas — se funcionar — incita a mais leituras e questionamentos.
Vale ressaltar que Sanya Osha começou sua carreira como
jornalista e trabalhou como professor de filosofia em diversas
universidades da Nigéria, ocupando posições acadêmicas posteriormente na África do Sul, Estados Unidos e Holanda (onde é
fellow no Centro de Estudos da África, em Leiden).
60
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Como você define a filosofia africana?14
Sanya Osha — Eu a definiria, antes de tudo, parafraseando a
definição de Paulin J. Hountondji em seu famoso livro African
Philosohpy: Mito e Realidade, como o conjunto de textos escritos
por africanos que se consideram filósofos. No entanto, essa definição em si mesma incorreu na ira de alguns críticos que a
consideram muito fechada e restritiva. Deste modo, considero a
definição como uma espécie de ponto de partida para iniciar uma
conversa sobre filosofia africana com o objetivo de expandir e
refinar os limites do diálogo. E então isto pode ser estendido para
incluir questões filosóficas que nos preocupam como africanos ao
longo do tempo e do espaço. Quais são as questões existenciais
importantes com as quais nos confrontamos como africanos e como
lidamos com elas filosoficamente e em um contexto espaçotemporal historicamente amplo?
A este respeito, há dois tipos de pressão que têm sido exercidas
sobre a disciplina. O primeiro tipo deriva das pressões exercidas
pelos filósofos africanos sobre si mesmos para demarcar os limites
e as orientações da disciplina. O segundo tipo de pressão provém
de um estímulo externo. Sendo a África um continente em
desenvolvimento, espera-se que os filósofos façam parte do esforço
geral para desenvolver suas sociedades e, ao fazê-lo, são obrigados
a examinar os parâmetros de sua disciplina para discernir como de
fato estão sendo filosóficos ou fracassando. Mas talvez mais
importante ainda, como eles podem ser considerados pessoas que
auxiliam no desenvolvimento de suas sociedades? Sem dúvida,
esses dois tipos de pressão há muito têm pautado a autodefinição
da/do filósofa/filósofo africano e seu(s) papel/papéis na sociedade.
Durante muito tempo, a questão fundamental da filosofia africana
foi que “o que ela é?” ou “ela existe?” Uma quantidade
A tradução do texto sofre com o determinismo de gênero da língua portuguesa.
Em muitos contextos em que no original havia palavras neutras, não encontramos
solução em português. É o caso da palavra “philosopher” que ao ser traduzida como
filósofo traz todas as implicações deste determinismo de gênero.
14
61
Marcos Carvalho Lopes
surpreendente de literatura tem sido produzida lidando com essa
interrogação fundacional e, ao abordá-la, surgiram tendências
específicas na disciplina. De forma mais instrutiva, os contornos
das orientações futuras podem ser discernidos agora. A filosofia
africana como disciplina abordou uma infinidade de aspectos
históricos e de questões da vanguarda acadêmica, numa tentativa
de se afirmar e assegurar sua contínua relevância.
Alguns desses tópicos incluem, mas não estão limitados à
Democracia e à questão dos Direitos Humanos, comunitarismo,
universais e particulares, feminismos africanos, cultura intelectual
pública, sexualidade e sistemas de conhecimento endógeno. Vários
filósofos africanos e africanistas abordaram estes importantes tópicos com uma notável pletora de perspectivas metodológicas.
Como tal, houve um extenso alargamento dos parâmetros
disciplinares da filosofia africana para incluir quase todas as
tendências acadêmicas contemporâneas. Embora eu deva acrescentar que esse aspecto difuso pode se tornar problemático se a(s)
questão(ões) fundamental(is) da filosofia africana for(em)
completamente ignorada(s).
Como você entrou em contato com a filosofia africana?
Eu entrei em contato com a filosofia africana basicamente desde
meu primeiro ano como estudante de filosofia na Universidade de
Ibadan, Nigéria. O falecido Professor Olusegun Oladipo, que fez a
passagem em 2009, foi meu professor e mais tarde se tornou um
colega na mesma universidade. Ele ministrou cursos de filosofia
africana nos quais foram discutidos filósofos como Kwasi Wiredu,
Paulin Hountondji, Henry Oruka e Claude Sumner. O próprio
Wiredu havia sido professor no departamento no início dos anos
80 e sua imensa sombra pairava naquele espaço.
Oladipo também publicou um livro fino, mas importante, sobre
filosofia africana intitulado The Idea of African Philosophy, que
foi lançado em 1992, no mesmo ano de publicação do livro de
Kwame Anthony Appiah In My’Father's House: Africa in
philosophy of culture. Tive a grande oportunidade de ler as
62
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
provas de partes do livro de Oladipo que me atraíram
tremendamente. Oladipo, através dessa importante oportunidade
de revisão, foi capaz de demonstrar como um filósofo africano nos
tempos contemporâneos deveria abordar a filosofia. Minhas
conversas com ele também me permitiram entrar no
funcionamento de sua mente, nos dilemas e desafios que ele
enfrentou ao confrontar a filosofia a partir de uma perspectiva
africana. Ele revelou que se sentiu inicialmente alienado pela
tradição da filosofia ocidental e descreveu sua jornada ao formular
questões filosóficas em chave africana. De repente, a filosofia não
parecia mais tão intimidadora. Posteriormente, tive outras
oportunidades de trabalhar com ele, o que me permitiu afiar ainda
mais minhas perspectivas sobre a filosofia africana. Talvez eu
devesse acrescentar que Oladipo também editou e publicou um volume de ensaios de Wiredu intitulado Conceptual Decolonization
in African Philosophy,15 que eu revisei para um jornal de filosofia
e que acabou me fornecendo a inspiração para minha tese de
doutorado sobre o filósofo ganense. Tal exposição e treinamento
provaram ser imensamente benéficos para mim.
Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote
para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está
ultrapassada?
Não creio que seja um tema totalmente ultrapassado. Nos últimos
anos, a filosofia africana ganhou um tremendo impulso conceitual
e teórico, no qual suas fronteiras também se deslocaram
radicalmente. Obviamente, alguns puristas ficariam consternados
com este desenvolvimento e é realmente fácil para a disciplina
perder o foco ou seus ancoradouros fundacionais e por isso é
necessário continuar a interrogação acerca de sua raison d’etre e das
várias realidades e possibilidades em relação a sua identidade.
Temos sempre que nos assegurar quanto a seus pontos de origem,
WIREDU, Kwasi; OLADIPO, Olusegun. Conceptual Decolonization in African
Philosophy. Four Essays. 1995.
15
63
Marcos Carvalho Lopes
objetivos e intenções, mesmo quando embarcamos em novas
buscas e questões filosóficas. A própria natureza do
empreendimento filosófico exige que façamos e reestruturemos
essas perguntas fundamentais para determinar onde estamos
agora, onde queremos estar e onde deveríamos estar. A localização
de nossas amarras fundacionais nos ajudará a alimentar nossas
deliberações com novos insights.
Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia
africana hoje?
Hoje, há uma variedade quase infinita de perguntas que
preocupam os filósofos africanos, a julgar pela pesquisa que está
sendo realizada atualmente. Parece que os filósofos africanos
idealizariam uma abordagem filosófica para qualquer questão
social, política ou cultural enfrentada por uma determinada
sociedade. Há uma tendência para utilizar novos conceitos,
metáforas e metodologias na abordagem de uma grande variedade
de questões epistemológicas. Há também uma luta evidente para
entronizar novos heróis filosóficos, uma luta para estabelecer
novos modos de pensar e abordagens filosóficas. Em muitos
aspectos, tudo está em um estado de fluxo epistêmico. As
possibilidades conceituais parecem ser infinitas, mas o potencial de
sérios reveses e desventuras também é enorme, porque esta é uma
época em que o populismo acadêmico barato e a decadência
disciplinar poderiam criar raízes e florescer.
Seria fácil equiparar esse florescimento discursivo aos debates
fundacionais que assistiram ao nascimento da filosofia africana
moderna na era de Wiredu, Peter O. Bodunrin, Oruka e Hountondji
cerca de cinquenta anos atrás. A diferença é que, desta vez, o campo
é muito mais amplo e há tantos jogadores de diferentes credenciais
e capacidades, todos ativos no mesmo espaço, de modo que há
muito mais oportunidades para charlatães e impostores se manterem firmes.
Outra característica da filosofia africana contemporânea é que ela
se tornou muito mais ampla em seu escopo e mais internacionalista
64
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
em sua visão. Há norte-americanos e europeus ativamente
engajados na filosofia africana e, portanto, pode-se apontar para o
declínio de sua insularidade, se pudermos descrever isso sem
rodeios. Mais uma vez, esse desenvolvimento se refere ao estado
de fluxo que mencionei anteriormente. Há um impulso evidente
para empurrar os limites da disciplina no que se assemelha a uma
corrida ao ouro, onde tudo está à mão.
Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo
(womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia
africana aborda as questões relacionadas às diferenças de gênero
e identidade sexual?
Acho que esse é um debate que teve maior impacto nas áreas de
estudos de gênero, estudos africanos ou talvez sociologia e
antropologia cultural. Os principais nomes nestes debates são: a
falecida Molara Ogundipe-Leslie, Oyeronke Oyewunmi, Ifi
Amadiume, Amina Mama e Nkiru Nzeogwu. Portanto, a maioria
dentro desse grupo não são filósofos em si, mas seu trabalho tem
sido altamente influente e tem um significado filosófico
considerável.
No entanto, há filósofos africanos (geralmente do sexo feminino)
conduzindo pesquisas sobre esses temas e outros semelhantes.
Além disso, os filósofos africanos também estão trabalhando nas
áreas de mutilação genital feminina, relações entre pessoas do
mesmo sexo e outras preocupações relacionadas. Portanto, pode-se
argumentar que, atualmente o debate feminismo/mulherismo está
sendo substituído — ou pelo menos completado — por outras
preocupações de pesquisa, mesmo quando essas preocupações são
de natureza semelhante.
Sobre a segunda parte de sua pergunta, como os filósofos africanos
abordam questões relacionadas a gênero e identidade sexual? Essa
área de pesquisa é apenas uma das muitas que os filósofos africanos
enfrentam atualmente. Portanto, ela depende dos filósofos
envolvidos e de seus interesses específicos de pesquisa. E há
opiniões diferentes sobre esse tópico como seria de se esperar.
65
Marcos Carvalho Lopes
Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é
o mais importante em sua opinião?
Obviamente, essa é uma questão muito controversa. Eu não
conheci muitos grandes filósofos africanos pessoalmente, mas eu
me inspirei profundamente no trabalho da maioria deles. Um dos
mais importantes filósofos africanos tem que ser Wiredu,
simplesmente por sua abordagem metodológica poderosamente
sucinta. Ele não é exatamente um filósofo da moda, mas certamente
é um dos mais influentes pensadores do final do século XX, a julgar
pela enorme quantidade de estudiosos da filosofia,
particularmente na África Ocidental e Oriental, que foram
influenciados por sua abordagem. Wiredu tenta criar uma síntese
entre a modernidade e a cultura tradicional africana, empregando
ideias empíricas concretas. É uma abordagem quase absurdamente
simples, mas também cheia do máximo de pragmatismo, em outras
palavras, uma abordagem que só poderia ter sido concebida em um
momento de surpreendente clareza conceitual.
Eu poderia imaginar que Wiredu estivesse pensando em como
colocar as sociedades africanas em movimento nesta “era de
descolonização”? Como a filosofia pode sair de sua posição arrogante e sujar as mãos? Até certo ponto, sua abordagem implicou
uma desmistificação da filosofia, a fim de garantir sua contínua
relevância social.
Há muitos pensadores africanos com mentes brilhantes e
percepções impressionantes sobre a condição africana, mas esses
por si só não constituíram um método filosófico viável e seguindo
esse critério, penso que apenas Wiredu e talvez alguns poucos
filósofos façam parte desse grupo. As abordagens desenvolvidas na
filosofia da sagacidade (sage philosophy) parecem constituir outro
método filosófico, enquanto a etnofilosofia, em consequência da
crítica feroz de Hountondji, é frequentemente desvalorizada.
Entretanto, a etnofilosofia, nas mãos dos filósofos e não dos
antropólogos, pode desfrutar de uma revitalização e sua preocupação central com o conhecimento endógeno, um foco principal
66
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
das reflexões de Hountondji no final da carreira, faz dela (etnofilosofia) uma candidata a um renovado escrutínio filosófico.
A afrocentricidade de Cheikh Anta Diop e Molefi Kete Asante tem
atributos filosóficos interessantes, mas também implica um
domínio de uma grande variedade de especialidades acadêmicas.
Não se destina aos preguiçosos ou aos covardes (faint-hearted). Em
outras palavras, é composto de várias visões conceituais que
envolvem um trabalho intelectual estratégico e tático meticuloso. E
talvez seja por isso que essa abordagem parece ser menos
favorecida entre os filósofos africanos contemporâneos, mesmo
que sua atração ideológica e seu significado sejam, em grande
parte, incontestáveis.
A afrocentricidade, cujo desenvolvimento é um pouco semelhante
à filosofia da ancestralidade no Brasil — em termos de sua intenção
de efetuar uma descontinuidade radical com a [filosofia] moderna
e não com a [filosofia] Antiga [na sua] tradição ocidental —, não é
frequentemente considerada um ramo poderoso da filosofia
africana porque os pioneiros modernos, como Wiredu, Hountondji,
Oruka e Kwame Gyekye e outros dessa geração, preferiram se
dedicar à filosofia como uma empresa pós-Kantiana ou como uma
disciplina universalista e, talvez também, sem se envolverem com
a bagagem de racismo da disciplina [1] para assegurar a
profissionalização de suas práticas, [2] para impulsionar as
supostas credenciais científicas — seguindo a prescrição de
Hountondji — de seus métodos. E finalmente, há a questão das
fronteiras e limites. A noção pré-socrática de filosofia,
comparativamente falando, é muito mais ampla do que a
concepção pós-Kantiana, que a maioria dos modernistas africanos
herdou do colonialismo.
A noção pré-socrática era dominante na África antiga e em sua
concepção mais purista atual só pode ser praticada por dissidentes
e acadêmicos outsiders, então, talvez isso a torne menos atraente.
Além disso, essa noção incrivelmente expansiva de filosofia não se
conforma prontamente com as numerosas restrições disciplinares
da academia moderna. Em terceiro lugar, poderia ser terrivelmente
67
Marcos Carvalho Lopes
demorado e dispendioso de ser perseguido. E então os africanos
pós-libertação (com exceção dos ex-Rodesianos e sul-africanos)
talvez estivessem menos expostos aos malefícios e toxinas do
racismo. Isso provavelmente tornou a disciplina de filosofia como
um todo menos suspeita racialmente.
Até hoje no Brasil, apenas uma tese de doutorado defendida em
departamentos de filosofia teve como tema a filosofia africana.
Nunca houve uma cátedra dedicada a filosofia africana. Isso é
sintoma de uma situação disciplinar que continua, na prática,
desqualificando essas temáticas. A maioria das pessoas que se
dedica a filosofia africana o faz em departamentos de Educação
(principalmente na filosofia da educação) e às vezes em
departamentos de Antropologia. Em geral, essas abordagens
sofrem de um problema comum aos estudos africanos
desenvolvidos na diáspora: as questões locais de luta contra o
racismo, busca de identidade e perspectivas afro-brasileiras se
sobrepõe a qualquer abordagem do continente.
Concomitantemente ao surgimento de uma legislação que tornou
obrigatório o ensino de história e cultura africana, afro-brasileira
e indígena nas escolas públicas, surgiu a demanda por uma
perspectiva filosófica que abarcasse esse amplo espectro. Nesse
sentido, a proposta de uma filosofia da ancestralidade, que
abarcaria todos os povos ligados a heranças ancestrais, tem
ganhado espaço. De fato, o candomblé, em seu desenvolvimento,
justapôs em um mesmo espaço (os terreiros), diversos orixás e
divindades indígenas. A filosofia da ancestralidade é, em sua
maioria, desenvolvida por pessoas vinculadas às religiões afrobrasileiras. É uma perspectiva muito recente para ser descrita de
uma forma viável, mas o conceito de ancestralidade parece ser
uma ferramenta interessante no contexto brasileiro. Outra
proposta, ainda no espírito de atender a essa legislação, foi a de
uma junção do perspectivismo ameríndio, de Eduardo Viveiros
de Castro; a afrocentricidade, de Molefi Asante e o quilombismo
68
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
de Abdias Nascimento, formando uma afroperspectiva (proposta
de Renato Noguera).
Não sei se você já ouviu falar de Abdias Nascimento, mas ele é o
grande nome da filosofia afro-brasileira do século passado e um
precursor incontornável de todas as correntes contemporâneas de
filosofia africana no Brasil. Ele criou uma companhia de teatro
negro no Brasil nos anos 40, defendeu políticas públicas de
reparação e cotas raciais, denunciou, no começo da década de 70,
o genocídio da população negra feito pelo Estado brasileiro... ele
viveu nos EUA nos anos 70 e por um período na Nigéria. Nos
EUA, conheceu e ficou amigo de Molefi Asante, trabalhando na
mesma universidade. Curiosamente, no mesmo ano de 1978,
Asante lançou o conceito de afrocentricidade e Abdias sua ideia
do quilombismo. Abdias teve uma grande atuação política, sendo
eleito senador e trazendo questões raciais para a agenda pública.
Ele foi reconhecido como Doutor Honoris Causa em várias
universidades, mas isso não significou que sua obra tivesse uma
recepção ou aceitação tão eloquente na academia. Quilombismo
e a afrocentricidade são mesmo parentes próximos.
É claro, eu conheço Abdias Nascimento. Seu colega, Wole Soyinka,
da Universidade de Ife (agora Universidade Obafemi Awolowo),
Nigéria, o chamou de “o Rottweiler da afirmação cultural africana
no Brasil”, em seu livro Of Africa, publicado pela Yale University
Press em 2012. Ele também foi entrevistado por Henry Louis Gates
Jr. em sua série de televisão sobre negros na América Central e do
Sul. Sei que Nascimento retornou ao Brasil após sua carreira
acadêmica nos Estados Unidos (na SUNY, para ser mais preciso) e
teve uma carreira de sucesso como político. Mas nunca soube que
ele conviveu com Molefi Kete Asante nos Estados Unidos quando
ambos trabalhavam na SUNY. Interessante...
Também é interessante notar que Nascimento começou sua carreira
como profissional de teatro e depois se ramificou em outras áreas
de estudo acadêmico. Mas eu também não tinha ideia de que ele
era crucial para estabelecer o conceito de ancestralidade como um
tropo chave na filosofia afro-brasileira. Seu homólogo acadêmico
69
Marcos Carvalho Lopes
na Nigéria a esse respeito seria Wande Abimbola, um renomado
defensor da espiritualidade Orisa, um acadêmico que também
trabalhou extensivamente nos EUA, particularmente na
Universidade de Boston depois de servir como vice-chanceler da
Universidade Obafemi Awolowo, onde Nascimento tinha trabalhado. Outro paralelo interessante é que Abimbola foi um
visitante frequente no Brasil, onde continuou fortalecendo os laços
culturais com os Nagos e promovendo a espiritualidade Orixá
(como vocês escrevem no Brasil). Abimbola também foi por um
breve período senador na Nigéria durante o fim do governo militar,
entre o final da década de 1980 e o início da década de 1990.
Abimbola publicou livros amplamente citados sobre a
espiritualidade Orixá, notadamente os volumes que ele lançou
através da UNESCO, por volta de 1976. Mas sua obra não teve o
mesmo impacto nos círculos filosóficos nigerianos ou africanos e
ele não é considerado um filósofo da mesma forma que Nascimento
é considerado nos círculos filosóficos afro-brasileiros porque os
filósofos profissionais na África Ocidental seguiram uma trajetória
diferente que não tinha muito em comum com filosofias que se
assemelhavam à ancestralidade, quilombismo e afrocentricidade,
em grande parte devido a direção diferente tomada pelo trabalho
de Wiredu e seus outros colegas da África Ocidental.
Estou feliz por estarmos tendo essa conversa específica. Ela está
trazendo à tona perspectivas aparentemente marginais do que
poderia vir a ser um ponto central... podemos notar mais paralelos
entre o Brasil e a África.
Quem é o seu filósofo africano preferido?
Novamente essa é outra questão polêmica. Eu admiro muitos
filósofos africanos por uma variedade de razões. Penso que seria
útil ligar essa pergunta com a anterior. Imagino que meu filósofo
africano favorito também deveria ser capaz de exercer influência
considerável sobre a direção futura da disciplina. O ideal seria que
meu filósofo africano favorito servisse como um desbravador de
caminhos, um abridor de portas, um pioneiro. Talvez me divirta
70
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
um pouco com isso. Wiredu é simplesmente magnífico, mas será
que sempre o acho agradável? Eu responderia que não. Isso não
por razões de brilho decrescente ou lapsos de lógica, mas porque
sua coerência conceitual infalível às vezes parece boa demais para
ser verdade. Mas, no entanto, eu nunca me esquivaria de afirmar
seu considerável impacto e influência.
Tenho sentimentos sedutoramente ambivalentes em relação ao
trabalho de V.Y. Mudimbe, que muitas vezes se revelam
extremamente produtivos. Seu trabalho me dá a sensação de
mergulhar em um banho gelado. Através de sua espantosa
erudição acadêmica, ele é um instigador de pensamentos agitados
e os efeitos que cria nunca são de natureza leve. Ele tem o efeito de
te lançar para uma viagem indisciplinada, uma viagem da qual se
você conseguir voltar, nunca mais será o mesmo. Tal é a natureza
contraditória dos poderosos efeitos que ele tem sobre mim. Devo
acrescentar também que a força de Mudimbe está em ser capaz de
extrair significado filosófico de uma grande variedade de textos,
sejam eles antropológicos, artísticos, arqueológicos ou literários.
Não é uma abordagem metodológica que seja fácil de seguir, mas
que lhe serve bem na construção de sua prática.
Assim, nos termos específicos da sua pergunta, é difícil dar uma
resposta sucinta porque diferentes filósofos africanos me afetam de
forma diferente e eu uso seu trabalho para diferentes propósitos,
dependendo do que estou procurando.
O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No
entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados
Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil.
Esse também é um problema comum em relação à África de
língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são
divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma
unidade que leve em conta esses espaços?
Sim, eu pensaria que o fator linguístico seria responsável por
grande parte da suposta falta de conexão cultural. Mas então o
71
Marcos Carvalho Lopes
impulso imperial brasileiro também é muito menor do que o da
França, dos Estados Unidos e do Reino Unido, por exemplo.
Curiosamente, a África Ocidental mantém grande parte da
influência cultural brasileira ainda nos dias de hoje. Existem bairros
afro-brasileiros espalhados por toda a costa da África Ocidental,
particularmente nas cidades de Lagos, Porto-Novo, Cotonou,
Quidah, Grand Popo, Agoue, Lome, Savi e Allada. A presença de
famílias afro-brasileiras de Santos, Reis, Assumpção, Cruz, Pedro,
Antonio, Oliveira, Souza, Fernandez, Pereira, Medeiros, Gomez, da
Costa, da Silva, da Rocha e Augusto atestam a presença brasileira
evidente nos municípios costeiros e cidades da África Ocidental.
Os negros brasileiros que se rebelaram contra a escravidão no Brasil
entre 1830 e 1835 às vezes retornaram à África Ocidental e foram
capazes de criar uma cultura distinta completa, com festivais,
corporações e redes profissionais, uma cultura culinária saborosa e
grandes marcos arquitetônicos. Em Lagos, Nigéria, essa manifestação cultural e seu povo são chamados de Aguda. Assim como o
candomblé no Brasil e a Santeria em Cuba são derivados da
espiritualidade Orisa, a cultura Aguda também é afro-brasileira.
Essa fertilização cruzada de culturas tem ocorrido sem coerção ou
violência indevidas, o que por si só é um traço arraigado da espiritualidade Orisa. A espiritualidade Orisa é simplesmente capaz
de atrair seus convertidos e acólitos sem a necessidade de
colonizar, matar e mutilar. Eu iria ainda mais longe para afirmar
que a cultura afro-brasileira na África Ocidental, ao contrário das
religiões mundiais agressivas do Islã e do Cristianismo, funciona
como a espiritualidade Orisa ou Ifa e talvez por isso sua influência
tenha sido menos hegemônica ou menos difundida, mas isso não
significa que ela não exista ou que não tenha transformado vidas
de maneiras muito significativas. Eu, por exemplo, admiro muito
a cultura afro-brasileira na África Ocidental.
Talvez diversos governos brasileiros tenham estado muito menos
dispostos a carimbar a marca brasileira na África. Devemos
lembrar que os EUA, Reino Unido, Holanda, Alemanha e França
têm programas elaborados de intercâmbio cultural em toda a
72
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
África e são bastante visíveis e também influentes. Nesse sentido,
o Brasil é muito menos visível e influente.
Em vez disso, a polinização transcultural entre a África e o Brasil
parece ocorrer como resultado dos esforços de indivíduos e
iniciativas privadas com pouco ou nenhum apoio institucional.
Digo isso geralmente sobre a marca cultural brasileira na África
Ocidental, onde residem muitos afrodescendentes brasileiros, mas
isso também poderia ser aplicado para explicar a escassez de trocas
intelectuais entre filósofos africanos e brasileiros.
As possibilidades de propagação do imperialismo na África são
perigosamente grandes. Os Estados Unidos, França, China, Índia,
Rússia, Turquia, os Emirados Árabes Unidos (EAU) têm formas
variadas de presença militar em diferentes partes da África e não
devemos descartar as implicações culturais deste desenvolvimento. Em outras palavras, não devemos ignorar os atributos
convincentes do poder suave do qual a cultura e suas variadas
manifestações são parte integrante. Nem Portugal nem Brasil são
mencionados nesta nova disputa pela África. É claro que não é que
eu esteja justificando este novo surto intrusivo, mas estou apenas
aludindo a ele na tentativa de dar uma explicação a sua pergunta.
Sanya Osha
é autor de várias obras como scholar e pesquisador do Centro de Estudos
da África, Leiden, Holanda. Desde 2002, ele faz parte do Conselho Editorial da
Quest: An African Jornal of Philosophy/Revue Africaine de Philosophie. Seus
livros incluem, Kwasi Wiredu e Beyond: The Text, Writing and Thought in
Africa (2005’, Ken Saro-Wiwa's Shadow: Politics, Nationalism and the Ogoni
Protest Movement (2007), Postethnophilosophy (2011) e African Postcolonial
Modernity: informal subjectivities and the democratic consensus (2014).
Outras publicações importantes incluem Truth in Politics (2004), co-editado
com J. P Salazar e W. van Binsbergen, e African Feminisms (2006) como editor.
Seu livro mais recente é o Afrikology de Dani Nabudere: A Quest for African
Holism (2018).
73
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
74
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Mechthild Nagel e a Ética Ubuntu
aplicada à Justiça*
Dois exemplos de procedimentos jurídicos, o primeiro no
Quênia e o segundo na África do Sul (no contexto de reconstrução
do país no pós-apartheid) servem de mote para uma aproximação
que visa pensar o que seria uma ética ubuntu.
A grande controvérsia jurídica em torno do funeral do famoso
advogado queniano S.M. Otieno (Silvano Melea Otieno) se arrastou
por 5 meses: de sua morte em 20 de novembro de 1986 até seu
sepultamento em 27 de maio de 1987, a justiça queniana vivenciou um
debate que acirrou os ânimos de toda a sociedade do país. S. M. Otieno
era Luo, enquanto sua esposa, Wambui Otieno, era Gikuyu; os dois
tinham um elevado grau de instrução, fazendo parte de uma
burguesia queniana que se ocidentalizou, distanciando-se das
identidades étnicas e de seus valores. Após a morte do marido,
Wambui Otieno decidiu que seu corpo seria enterrado na fazenda do
casal. Mas essa decisão feria a dinâmica social da sociedade Luo, e o
irmão mais velho do falecido e todo o seu clã Umira Kager
reclamaram o direito de realizar o enterro em seu território. O funeral
entre os Luo é um ritual de extrema importância, por estabelecer a
conexão entre mortos e vivos, de tal modo que, a não realização de
modo adequado do sepultamento poderia causar um desequilíbrio
que geraria prejuízos para toda comunidade. Neste caso, as crenças e
os costumes do direito consuetudinário entravam em conflito com a
configuração Ocidental de toda estrutura legal herdada do sistema colonial. Depois deste longo período de embates, a Suprema Corte
decidiu em favor do direito costumeiro (consuetudinário) e o corpo
de S. M. Otieno foi enterrado entre os Luo.
*
https://doi.org/10.51795/97865265082687581
75
Marcos Carvalho Lopes
Em 1993, a norte-americana Amy Biehl tinha 26 anos e era
estudante de Stanford, quando foi assassinada na África do Sul.
Ela, uma mulher branca, levava amigos negros para o bairro de
Gugulethu, na Cidade do Cabo. Um grupo de militantes do
movimento pan-africanista, que na luta contra o apartheid tinham
como slogan “Um Colono Uma Bala”, ao verem uma mulher
branca em seu território explodiram numa onda de fúria e
violência. Quatro pessoas foram condenadas pela morte de Amy
Biehl. Em 1996, diante do Comitê de Justiça e Reconciliação, pediram anistia e relataram sua participação no assassinato,
contextualizando-a com sua militância na luta pan-africanista. Em
1997 os pais de Amy compareceram ao tribunal e testemunharam
na audiência, falando em apoio à reconciliação e ao diálogo. No ano
seguinte o tribunal determinou que eles seriam soltos depois de
cumprirem 5 anos de detenção. Dois dos homens que assassinaram
Amy foram conhecer os pais de Amy e pediram que estes os
adotassem para suprir a ausência da filha (uma prática comum de
justiça em diversas culturas indígenas é que o conselho de anciões
decida que para expiar um assassinato se solicita que a pessoa
passe a morar com a família da vítima). Estes dois jovens — Easy
Nofemela e Ntobeko Peni — foram contratados pela Fundação
Amy Biehl (que desenvolve diversas obras sociais em Gugulethu,
atendendo a mais de 1500 crianças). Na cerimônia pelos 20 anos do
assassinato, Molefema acompanhou Linda Biehl, a quem chama de
“Makulu”, palavra que em xhosa quer dizer avó ou mulher sábia.16
Sobre essa convivência e o perdão, Linda Biehl declarou “eu os
perdoei (…) Todos os dias eu acordo e minha filha está morta. A
maioria dos dias eu acordo e tenho que ficar cara a cara com seus
assassinos. Algumas vezes, tenho que perdoá-los novamente”.
(citado em: TUTU, Desmond e TUTU, Mpho A. O livro do perdão.
Trad. Heloísa Leal. 4ª ed. Rio de Janeiro: Valentina, 2017, p. 62)
Amy Biehl legacy: Reconciliation that spans generations – Orange County
Register (ocregister.com)
16
76
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Nesses dois exemplos, temos práticas de justiça em que se
levam em conta dimensões geralmente desconsideradas pelo
pensamento ocidental: no primeiro caso, as conexões espirituais e
rituais com os antepassados; no segundo, que nenhuma punição
seria capaz de restaurar a vida em comum e a harmonia pessoal e
social. Ambos os exemplos podem ser identificados como parte de
uma ética em que a interdependência humana se sobrepõe a
perspectivas individualistas, na direção de uma ética Ubuntu,
articulada a partir de diversas práticas que se articulam na
expressão em Nguni “umuntu ngumuntu ngabantu” (alguém
somente é humano através de outros seres humanos ou um ser
humano é um ser humano através da alteridade de outros seres
humanos). Como a ética ubuntu poderia ser articulada para
transformar o sistema de justiça?
A professora Mechthild Nagel — alemã radicada nos EUA —
é uma abolicionista penal que procura utilizar a ética Ubuntu como
uma chave para questionar o sistema penal e promover uma
transformação ampla na justiça. Professora na State University of
New York (SUNY Cortland), nos Estados Unidos; é diretora
do Center for Ethics, Peace, and Social Justice (CEPS) e editora da
revista Wagadu. Nagel tem desenvolvido uma abordagem da Ética
Ubuntu, problematizando aproximações e apropriações do termo
que o fariam perder especificidade (como um cosmopolitismo
africano) ou cair nas armadilhas de um ethos masculino, perdendo
sua dimensão feminina de cuidado. A autora também chama atenção para a necessidade de considerar a dimensão religiosa do
termo, faz isso, por exemplo, citando esta descrição:
“Para o ocidental, a máxima “Uma pessoa é uma pessoa
através de outras pessoas” não tem conotações religiosas óbvias.
Provavelmente ele/ela a interpretará apenas como um apelo geral
para tratar os outros com respeito e decência. Entretanto, na
tradição africana, esta máxima tem um significado profundamente
religioso. A pessoa que deve se tornar “através de outras pessoas”
é, em última análise, um ancestral. E, da mesma forma, estas
“outras pessoas” incluem os antepassados. Os antepassados são
77
Marcos Carvalho Lopes
uma família estendida. Morrer é, em última instância, um retorno
ao lar. Portanto, não somente os vivos devem compartilhar e cuidar
uns dos outros, mas os vivos e os mortos dependem uns dos
outros.” (Van Niekerk, 1994, p. 2; Ndaba, 1994, p. 13-14, citado em
Louw, 1998; re-citado por NAGEL, 2013, p. 179).
A ética ubuntu, além de servir para o questionamento e a busca
de alternativas para as práticas de encarceramento em massa, traria
consigo uma problematização mais ampla da noção de justiça, que
iria “além de julgar conflitos, o que incluiria demandas para
desmantelar estruturas de poder que favorecem a elite de um por
cento sobre os noventa e nove por cento da base, em todos os
aspectos da sociedade. Esse realmente pode ser um ideal pelo qual
vale a pena lutar (pacificamente) e significaria o fim da punição”
(NAGEL, 2013, p. 186). Nesse sentido, caminha numa direção
convergente aos trabalhos de, por exemplo, Sérgio São Bernardo e
de outros que tem buscado articular essa aproximação com formas
africanas de conceber a justiça.
Recentemente, Mechthild Nagel desenvolveu o conceito de
Ubuntu lúdico, pensando em formas de resistência como a
Capoeira ou de Beyonce cantando “Formation” no Superbowl, de
2016: na malícia, na mandinga, na canção, no jogo se aprendem
formas de reconstruir comunidade e resistir com alegria e força.
Haveria um aprendizado na transição da justiça como vingança e
violência, que nega o outro; das formas de ressentimento que
buscam o ressarcimento de um débito ou uma exclusão; não
bastaria o perdão e a reconciliação de uma justiça restaurativa, mas
há a necessidade de uma justiça transformativa, reconhecendo a
interconexão, alimentando o amar ao que é e abrindo espaço para
o alívio lúdico (NAGEL, 2014). Atualmente ela escreve um livro
sobre Ubuntu lúdico e Black Lives Matter.
A entrevista a seguir foi um “jogo rápido” em que a autora não
deixou de dar algumas pistas de seu modo – como uma mulher
branca europeia que vive nos EUA – de abordar a filosofia africana.
78
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Como você define a filosofia africana?
Mechthild Nagel — Eu aprecio a filosofia Africana (Africana
philosophy),17 portanto, a Bahia certamente faz parte dessa
dimensão (diaspórica).
Como você entrou em contato com a filosofia africana?
Através de estudiosos africanos. Especialmente Emmanuel
Chukwudi Eze (1963-2007).
Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote
para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está
ultrapassada?
Bem, qualquer coisa que mencione Placide [Tempels], eu gostaria
apenas de jogar fora.
Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia
africana hoje?
Não estou tão qualificada para discutir isso, dada minha
perspectiva “de fora”, como uma mulher branca (da Europa,
vivendo nos EUA). Mas eu certamente sei que não é a busca em
relação a existência de algo chamado filosofia africana. Essa é uma
questão racista/colonial.
Meu próprio campo é bastante estreito e se cruza com os estudos
de ciência social/justiça crítica. Minha pergunta de pesquisa é o que
“nós” (no contexto anglo-americano) podemos aprender com a
resolução de conflitos/práticas de paz indígenas africanas para que
nos despojemos do sistema prisional primitivo.
A Africana philosophy inclui as contribuições do continente e dos povos
africanos na diáspora. Deste modo abarca a African philosophy, que se refere ao
continente africano. Não encontrei uma solução para tradução destes termos,
preferindo indicar qual foi usado.
17
79
Marcos Carvalho Lopes
Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo
(womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia
africana aborda as questões relacionadas às diferenças de gênero
e identidade sexual?
A análise interseccional não é tão bem desenvolvida em conversas
filosóficas. Recebo mais inspiração sobre esse tema das sociólogas
africanas e das feministas negras americanas.
Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é
o mais importante em sua opinião?
[Emmanuel] Eze realmente animou algumas das discussões e
“escreveu de volta”, ou “estudou” – escrevendo uma grande crítica
a Kant.
Qual é o seu filósofo africano preferido?
Agora, dada minha pesquisa em Ética Ubuntu, é Mogobe Ramose.
O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No
entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados
Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil.
Esse também é um problema comum em relação à África de
língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são
divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma
unidade que leve em conta esses espaços?
Esta é uma pergunta geral sobre os cânones de descolonização e as
editoras, assim como sobre as práticas das revistas. (Eu sou editora
de Wagadu,18 e publicamos resumos em português).
Também escrevi sobre Capoeira e adoraria viajar um dia para a
Bahia. Estudo práticas de resistência e a Capoeira é um exemplo
inspirador do que eu chamo de práticas Ubuntu Lúdicas.19
<https://sites.cortland.edu/wagadu/>
NAGEL, MECHTHILD “Chapter six black Athena and the play of imagination
Nagel”. In: Transnational Trills in the Africana World, 2019. p. 131.
18
19
80
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Mechthild Nagel
alemã radicada nos EUA — é professora de filosofia e african studies na
State University of New York (SUNY Cortland), nos Estados Unidos; é diretora
do Center for Ethics, Peace, and Social Justice (CEPS) e editora da
revista Wagadu. É uma abolicionista penal que procura utilizar a Ética Ubuntu
como uma chave para questionar o sistema penal e promover uma transformação
ampla na justiça. Atualmente está escrevendo um livro intitulado Rethinking
Indigenous Justice: Towards a Ludic Ubuntu Ethics para a série Studies in
Penal Abolition and Transformative Justice da editora Routledge (com lançamento previsto para 2022). Site pessoal: <https://web.cortland.edu/nagelm/>.
Referências
NAGEL, Mechthild. An Ubuntu Ethic of Punishment. In: NAGEL,
Mechthild E.; NOCELLA II, Anthony J. The End of Prisons. Brill
Rodopi, 2013. p. 177-186.
______. Ludic Ubuntu: An appeal toward transformative justice.
SSRN Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2637042 ou http://
dx.doi.org/10.2139/ssrn.2637042 (November 1, 2014).
______. Ludic Ubuntu in the Search for Transformative Justice.
In: ASA 2017 Annual Meeting Paper, 2017.
81
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
82
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Delphine Abadie e a África como caminho de
reconstrução da filosofia*
No dia 9 de janeiro de 2021 a lei 10.639, que determinou o
ensino de História e cultura africana e afro-brasileira no ensino
fundamental e médio, completou 18 anos. E o que essa lei significou
para o campo da filosofia no Brasil? A resposta pode contemplar
algumas iniciativas e criar um otimismo indulgente com o que já
foi feito, mas isso seria uma forma de autoilusão que não é
produtiva. A forma de inclusão da filosofia africana no Brasil é
decepcionante – embora o mote da descolonização tenha se tornado
um lugar comum. Pouco adianta chamar uma mulher negra para
falar de filosofia africana em novembro, se esse conteúdo
permanece como um exótico safari intelectual de fim de ano. Esse
espaço, tomado como a abertura para vozes que se articularam em
outros departamentos de pós-graduação (porque na filosofia não
existe espaço de pesquisa, ensino e, muito menos, emprego), é uma
forma de manter a desconversação. Deixar esse trabalho como algo
exterior, que deve ser feito por outras áreas (história, antropologia,
filosofia da educação, teologia etc.) e não transforma os currículos
e a forma de pensar a/na filosofia, suas questões, cânones e
perspectivas. Dar voz, nesse sentido, pode garantir a medalha de
diversidade e boa consciência, mas não é um modo de desenvolver
um diálogo.
O que poderia ser a filosofia se levássemos a sério a ideia de
descolonização do conhecimento? Essa é a interrogação que move
o trabalho da filósofa canadense Delphine Abadie M., que
defendeu sua tese Reconstruire la philosophie à partir de l’Afrique: une
utopie postcoloniale pela Universidade de Montreal em 2018. Sua
*
https://doi.org/10.51795/97865265082688392
83
Marcos Carvalho Lopes
proposta de reconstrução da filosofia a partir do diálogo com a
filosofia africana é instigante e promissora para que a retórica de
descolonização do conhecimento se articule de um modo menos
redundante. Na entrevista a seguir, Delphine Abadie, de modo
generoso, nos oferece uma série de referências e caminhos para
investigação, trazendo a filosofia africana como uma prática viva
de reflexão e debate. Nos próximos anos, com a publicação
iminente de artigos, capítulos de livro, livro etc., o trabalho de
Abadie tende a se tornar cada vez mais relevante e incontornável
para quem quer pensar a filosofia africana.
Como você define a filosofia africana?
Delphine Abadie — A questão das propriedades relacionadas com
a existência da filosofia africana preocupa os filósofos do
continente há várias décadas, ao ponto de ser difícil oferecer uma
definição substancial que não seja necessariamente controversa.
Embora a utilização do termo “filosofia africana” seja polissémico,
é útil, no entanto, adotar uma definição operativa a fim de conter a
confusão e de chegar a um acordo sobre o seu significado. A
filosofia africana, segundo Fabien Eboussi Boulaga (2013), é “este
tipo de investigação coletiva feita por indivíduos situados mais ou
menos da mesma forma na história. Uma história que podem viver
de muitas maneiras. Uma história de derrota, submissão, opressão
e que apela à libertação. Ou uma história de grande esquecimento,
de um grande parêntese da sua própria história, e que os obriga a
se reconectar não mais com o passado, mas com aqueles atos pelos
quais o homem se situa como humano e se mantém como humano
ao longo da história” (p. 126).
Deve se acrescentar que existe uma diferença entre a filosofia
chamada africana, tal como teorizada por Lucius Outlaw, e a filosofia
africana (philosophie africaine), a primeira englobando a segunda.20
Outlaw faz uma diferença entre African philosophy (que tem seu foco no
continente africano) e Africana philosophy (que engloba o continente e as
diásporas africanas). Usei filosofia africana em minúscula para designar a African
philosophy e filosofia Africana para designar a segunda.
20
84
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Outras contribuições críticas das diásporas também ajudam à filosofia
Africana. A filosofia Africana engloba, por outras palavras, discursos
críticos das Áfricas, geográfica e diaspórica, que partilham um
conjunto comum de pressupostos relacionados com o legado de
desumanização do povo negro ao longo de vários séculos, as formas
políticas de terror racial que têm acompanhado as epistemologias da
raça, as consequências éticas do racismo contemporâneo, a adopção
da hermenêutica existencialista etc.
A filosofia africana contemporânea, por outro lado, por ter sido
organizada como disciplina académica no continente africano,
partilha um horizonte antiessencialista que é bastante característico
da resolução de uma longa disputa epistêmica sobre a sua
definição, e que não é tão paradigmaticamente partilhada pelas
filosofias africanas da diáspora. Embora seja importante iluminar
estas nuances, é também importante não criar falsas oposições
entre estes diferentes grupos de discursos. Do ponto de vista da
exigência filosófica, só reconhecendo os postulados específicos das
diferentes tradições de luta, incluindo as epistêmicas, é que uma
verdadeira aliança panafricana pode emergir, sem gerar novas
formas de violência.
Como você entrou em contato com a filosofia africana?
Sou uma africanista por formação. Uma grande parte
do corpus que me foi ensinado e que serve de cânone para a ciência
política africana pareceu-me gradualmente problemático. Foi
enquanto lia Valentin-Yve Mudimbe que percebi o que me parecia
problemático em torno de um preconceito epistemológico radical,
herdado da ideologia colonialista. De fato, em diferentes graus, a
África é sempre retratada como “atrasada” num estado de coisas
ou numa história de progresso apresentada como referências
normativas neutras: democracia, desenvolvimento, justiça de
gênero, moral etc. Que a África podia ter o seu próprio caminho, os
seus próprios critérios para alcançar esses ideais ou que podia
perseguir outros, não parecia tocar as mentes dos seus autores:
tinham de se converter.
85
Marcos Carvalho Lopes
Por conseguinte, eu me demorei na filosofia, para elucidar
os postulados que tornaram o edifício teórico frágil para analisar
os fenômenos africanos contemporâneos, ao familiarizar-me com o
que os próprios filósofos africanos tinham a dizer sobre o assunto.
Uma vez que a filosofia africana não é ensinada no mundo
francófono, tive de reconstruir meticulosamente o retrato da
disciplina, de referência em referência, a fim de ter uma ideia
precisa do seu objetivo. De leitura em leitura, compreendi que os
autores escolhidos como figuras centrais no cânone da filosofia
ensinada no Ocidente, a escrita da sua história, os seus índices de
admissão e de exclusão etc., desempenharam um papel
fundamental na marginalização e no descrédito da filosofia
africana. As fantasias sobre o exotismo naturalista da filosofia africana também participam neste imaginário da raça.
Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote
para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está
ultrapassada?
No momento em que a filosofia africana estava nascendo como
disciplina acadêmica — com autores como Placide Tempels, Alexis
Kagame e Léopold Sédar Senghor —, a espinhosa questão da
existência de uma filosofia especificamente africana e do que
constitui a sua identidade era, na minha opinião, um passo necessário. O grande sopro da descolonização exigia a sua contrapartida
epistemológica: era preciso libertar-se da tutela mental e da
alienação inoculada pelos discursos filosóficos e antropológicos da
colonização. O que estava fundamentalmente em jogo, no meio das
disputas sobre a autenticidade africana era a necessidade visceral
de reconquistar uma humanidade negada pela violência racial, diz
Achille Mbembe em Sortir de la grande nuit. Embora o ângulo de
identidade persista em alguns escritos, o que me parece
característico da maioria das contribuições para a filosofia africana
desde os anos 80 é que interiorizaram os argumentos dos seus mais
velhos e ultrapassaram a fase da justificação. Pois, ao final, todas as
deliberações sobre a identidade nunca são mais do que questões
86
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
sobre a natureza da relação com o Outro. Os filósofos
contemporâneos se libertaram deste desejo de reconhecimento.
Nesse sentido, a minha proposta é que a filosofia africana no século
XXI tem características das teorias pós-coloniais, ou seja, continua
o projeto dos mais velhos — de desconstruir a colonialidade —,
mas não tem ilusões sobre a plenitude de uma quididade précolonial decaída ou de uma essência africana. Dito isso, a filosofia
africana não pode adiar indefinidamente o exame crítico de uma
certa forma de estar no mundo partilhada por culturas de todo o
continente. A corrente hermenêutica, muito mais desenvolvida
pelos filósofos anglófonos, tenta conciliar (com diferentes graus de
sucesso) a crítica da etnofilosofia e a análise das expressões
culturais
próprias:
Odera
Oruka
sobre
os sage
philosophers (filósofos da sagacidade); Magobe Ramose sobre
o ubuntu; a democracia consensual de Kwasi Wiredu etc.
Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia
africana hoje?
O ser africano — questionamento ontológico que animou a longa
disputa da filosofia africana — parece-me ter dado lugar ao do
seu futuro (devenir). O trabalho de descolonização epistêmica não
foi totalmente concluído, mas parece que fomos além do momento
negativo para elaborar uma nova alternativa crítica. Não tendo
experimentado as Independências, nascidas na altura das
democratizações traídas, os jovens africanos do continente estão
menos interessados em recuperar uma identidade perdida no
decurso da história, do que em assegurar um futuro para o
continente. Nesse contexto, vários filósofos contemporâneos partilham uma certa atitude, que pode ser chamada de várias
maneiras, que adota o futuro (e não o passado da tradição) como
ponto de referência: pensamento prospectivo, filosofia utópica,
nova autenticidade etc. Com Kasereka Kavwahirehi, acredito que
a filosofia africana se beneficiaria do desenvolvimento de uma
filosofia social das formas culturais modernas que a africanidade
87
Marcos Carvalho Lopes
assume: artes visuais, rap, pantsula,21 fé evangélica etc. Na
sequência do apelo lançado por Kwasi Wiredu e Ngugi wa
Thiong’o há algumas décadas, o recurso das línguas africanas
para questionar a universalidade de certos conceitos, a produção
de uma linguagem filosófica em línguas vernáculas e a tradução
de pensamentos, também me parecem particularmente
promissoras. Uma vez que a África não é estranha ao resto do
mundo e que estas questões estão conquistando espaços no
mundo da investigação, espero também ver o reforço de uma
filosofia sobre gênero e um pensamento político anti-imperialista
para o século XXI.
Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo
(womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia
africana aborda as questões relacionadas com as diferenças de
gênero e identidade sexual?
Na língua francesa, as questões de gênero e identidade sexual são
apenas marginalmente tematizadas pela filosofia africana. Em
inglês, alguns textos pretendem corrigir essa deficiência —
incluindo um número inteiro da revista Quest (2006, vol. XX; p. 12) —, mas de um modo geral, são os sociólogos ou filósofos da
diáspora que se dedicam às questões feministas. Isso pode ser
explicado em parte pela baixíssima representação das mulheres na
filosofia africana, mas também pela reprodução inconsciente de
uma certa hierarquia temática herdada da filosofia em geral. A
extroversão, que caracteriza o tratamento dessas questões, não
deixa de induzir a distorções epistêmicas que são muitas vezes mal
percebidas pelos ativistas da área. Por exemplo, a tese muito popular de Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí sobre a invenção do gênero em África
é bastante mal-recebida pelas feministas do continente, que a
Uma forma de dança sul-africana que se desenvolveu como uma forma de
protesto no período do apartheid e vem ganhando novos sentidos na medida em
que ocupa novos espaços e é apropriada por outros atores. C.f.
<https://www.theguardian.com/stage/2018/oct/08/pantsula-dance-south-africavia-kanana>.
21
88
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
reprovam por romantizar a situação real das mulheres africanas e
[ser] uma forma de cumplicidade com o patriarcado. De fato, se o
gênero é uma invenção ocidental, falar de feminismo para contextos africanos expõe-nos ao anátema da alienação e nos priva dos
instrumentos conceituais para examinar experiências vivenciadas
de dominação do gênero. Quanto ao mulherismo (womanism) de
Filomena Steady ou Ifi Amadiume, como nota Jean-Godefroy
Bidima num texto pouco conhecido sobre essa questão, podem,
sem dúvida, ser responsabilizados pelas mesmas armadilhas que a
etnofilosofia: método híbrido, essencialização, generalização
abusiva, política da diferença radical etc.22 A literatura de ficção
está cheia de material para o diagnóstico da injustiça de gênero na
África. Entre os filósofos, eu, por exemplo, gosto muito da obra
crítica de Bibi Bakare Yusuf.23
Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é
o mais importante em sua opinião?
Não gosto de pontuar como “bons” e “maus” a um ou a outro, pois
a sua importância é relativa aos contextos em que e para os quais
escrevem e aos critérios pelos quais são avaliados. Filosofar em
África é uma prática existencial. Assim, por exemplo, se alguém
começar a reconhecer prontamente (no Ocidente) A Crise do
Muntu (La Crise du Muntu), de Fabien Eboussi Boulaga, como uma
grande obra, estará muito menos interessado no seu Cristianismo
sem fetiche (Christianisme sans fetiche), com exceção dos
departamentos de teologia. Contudo, o fato religioso em África é
demasiado central para não ser tematizado pela filosofia, o que já
não é o caso no Ocidente secular. Inversamente, alguns autores são
Bidima, J.-G. “Womanism” et autoréflexion. Mise en discours et critique de
l’Expérience-vécue des “féministes africaines”. Femmes africaines et globalisation
culturelle, p. 109-120, 2000.
23 Bibi Bakare-Yusuf. Yoruba’s Don’t Do Gender: A Critical Review of Oyèrónkẹ
́ Oyěwùmí’s “The Invention of Women: Making an African Sense of Western
Gender Discourses”, Dakar, CODESRIA, 2003. Disponível em: <https://www.
codesria.org/IMG/pdf/BAKERE_YUSUF.pdf>.
22
89
Marcos Carvalho Lopes
altamente aclamados nas redes de investigação transnacionais pela
sua criatividade teórica, mas os seus discursos são, por vezes, vistos
como extrovertidos por aqueles que trabalham no continente. Creio
que há lugar para todos, todas as abordagens e todas as questões e
que o pluralismo epistêmico deve ser cultivado, mesmo que isso
signifique debatê-lo. Não é isso, em última análise, a filosofia?
Quem é o seu filósofo africano preferido?
Embora aprecie as contribuições teóricas e a originalidade de vários
filósofos africanos, Souleymane Bachir Diagne é, sem hesitação, o
meu filósofo preferido. Foi através do seu trabalho e do de Achille
Mbembe, que já conhecia pelos seus escritos sobre as patologias da
pós-colônia, que me meti o pé na porta da filosofia africana. O
trabalho de Bachir Diagne mostra uma disposição bem equilibrada
de erudição, interdisciplinaridade, rigor e compromisso ético.
Bachir Diagne não é apenas um investigador experiente, mas
também um professor profundamente ligado aos seus alunos e ao
que eles lhe ensinam em troca. Ele não foi meu professor, mas tive
o prazer de o ter como examinador externo da minha tese e desde
então o adotei como meu mentor, uma responsabilidade a que ele
nunca se esquivou. Estando com ele, você pode vivenciar a medida
da sua integridade, uma qualidade que muitas vezes falta no
mundo acadêmico. Basicamente, partilhamos esta preocupação de
prosseguir simultaneamente um duplo objetivo na nossa investigação, a saber, pensar o que é próprio, ou seja, as questões que afetam
as particularidades dos mundos africanos, ao mesmo tempo em
que teoricamente reconstruímos um universal pós-colonial, livre
de todas as tentações hegemônicas. Esta postura consiste em adotar
em primeiro lugar a humanidade como um horizonte ético, ao
mesmo tempo em que filosofa com a África como seu centro,
religando as nossas duas perspectivas.
O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No
entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados
Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil.
90
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Esse também é um problema comum em relação à África de
língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são
divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma
unidade que leve em conta esses espaços?
Mencionei anteriormente a natureza problemática dos critérios que
contribuem para a classificação hierárquica da importância de
certos discursos em detrimento de outros. Na costa ocidental do
mundo atlântico, onde também trabalhei, a influência dos estudos
negros americanos acabou por impor uma certa interpretação da
filosofia Africana que abarca as tradições de outras esferas
geográficas, ou reinterpreta-as à luz de postulados que não são
necessariamente endógenos. A prevalência do inglês como língua
científica e o fato de as universidades africanas nos países de língua
inglesa estarem geralmente mais bem integradas nas redes internacionais de investigação explica a predominância de certos
autores, certas questões e teorias que não estão necessariamente na
ordem do dia noutras esferas linguísticas. Assim, a partir das
universidades norte-americanas, a filosofia praticada na África do
Sul parece ser o arquétipo da filosofia africana, enquanto as formas
extremas que o racismo tomou na África Austral tornam-na
bastante singular.
Com exceção de Amílcar Cabral, faz bem salientar que as
contribuições lusófonas são inaudíveis. Num texto que discute as
questões em jogo na delimitação de um cânone da filosofia africana,
a filósofa austríaca Anke Graness observa com razão que as
antologias reproduzem frequentemente essa clivagem linguística
na sua apresentação temática das correntes da filosofia africana,
mas também excluem arbitrariamente todas as contribuições
afrofônicas (filosofia em suaíli, iorubá, wolof etc.), o que é absurdo.
Outros campos são também proibidos, tais como a filosofia
islâmica em África ou questões de gênero. De fato, a disciplina
acadêmica de filosofia africana atingiu, sem dúvida, um ponto na
sua história de institucionalização onde deve colocar a si própria
certas questões metateóricas sobre as condições estruturais da sua
91
Marcos Carvalho Lopes
organização. Por outras palavras, ainda não terminou a
descolonização.
Delphine Abadie M.
possui um Ph.D. em Filosofia Africana e um Mestrado em Ciência Política
Africana. Site pessoal: <https://hekimaphilosopher.com/>.
Referências
ABADIE, D. Reconstruire la philosophie à partir de l’Afrique:
Une utopie postcoloniale [Tese de Doutorado], Universidade de
Montreal, 2018. Disponível em: <https://papyrus.bib.umontreal.ca/
xmlui/handle/1866/20587>. Consultado em 01/02/2023.
EBOUSSI-BOULAGA, Fabien; SERRES, Thomas. De la mutuelle
décolonisation de notre pensée, NAQD, n. 1, p. 67-91, 2013.
92
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Godfrey B. Tangwa,
uma perspectiva africana da filosofia*
Godfrey B. Tangwa é um dos filósofos africanos que mais
gosto (embora, nem sempre concorde com suas posições). Isso por
encontrar em seus textos respostas e articulações que, com simplicidade e elegância, não apenas mudam as peças de lugar, mas
modificam o sentido do jogo. É assim, por exemplo, que articula os
problemas da filosofia africana no artigo “African philosophy:
Appraisal of a recurrent problematic”, publicado no The Palgrave
Handbook of African Philosophy (2017). O filósofo camaronês separa
dois sentidos para o termo filosofia: um primeiro, que se relaciona
com modos de vida, como o “sistema de crenças fundamentais e
convicções que usualmente se refletem nas ações”, nessa primeira
visão ter uma filosofia não significa ser um(a) filósofa/filósofo; e
um segundo, acadêmico e técnico, refere-se a um “discurso crítico
(verbal ou escrito) e articulado de forma consciente, que é
necessariamente individual em sua origem, e, de modo secundário
ao corpus ou sistema de tais discursos juntamente com as estruturas
que os suportam nas quais estão simbolicamente codificados”
(2017, p. 22). Desse modo, redescreve o alvo da atividade
acadêmica da filosofia “o principal objetivo da filosofia no segundo
sentido delimitado acima deveria ser o de se converter em filosofia,
no primeiro sentido. Em outras palavras, filosofar não é e não deve
ser um exercício sem objetivo, um prêmio no vácuo, por assim
dizer. Seu objetivo deve ser a descoberta do verdadeiro, do bom,
ou do belo com uma perspectiva de como fazer uso deles na vida.
A relação entre o pensamento e a ação é dialética no sentido de que
o pensamento sincero necessariamente se manifesta em ação
*
https://doi.org/10.51795/978652650826893101
93
Marcos Carvalho Lopes
enquanto a ação não pode deixar de fornecer a agenda para
reflexão” (ibid., p. 22).
Como o próprio autor destaca, essa dupla divisão da filosofia
não é uma novidade e ganhou nomes diversos na terminologia de
outros pensadores africanos — universalista/culturalista, em
Odera Oruka; filosofia popular/filosofia, em Kwasi Wiredu etc.
(ibid., p. 24) —, o que chama atenção é como Tangwa articula essas
descrições de modo pragmático, como círculos de lealdade
epistemológica para pensar os diferentes horizontes das questões
que a filosofia, em segundo sentido, pode abordar:
Considero as culturas como formando círculos concêntricos. Por exemplo,
existe uma cultura peculiar à linhagem da minha família. Além disso, o
grupo de famílias que compõem a minha aldeia compartilha uma certa
cultura em comum. Então, há a cultura da minha tribo, a Nso, que é comum
a todos os povos falantes de Lamno. Mas o que chamamos de cultura Nso é
um subconjunto de uma cultura que é claramente comum a todos os
chamados povos graffi dos Camarões. Camarões como um todo tem uma
cultura peculiar que pode não ser muito marcante para aqueles
camaronenses que nunca tiveram o privilégio desse distanciamento
oferecido por viagens ao exterior. De dentro, pode parecer que não existe
cultura camaronense além das várias culturas tribais ou regionais. E, no
entanto, a cultura dos Camarões é apenas um subconjunto da cultura
africana, o que nenhum africano que foi residente ou viveu no exterior
colocaria em dúvida. Mas a cultura africana é apenas um subconjunto do
que podemos chamar de cultura humana em geral.
Parece-me que a importância de um tópico ou problema pode ser vista como
sendo diretamente proporcional ao diâmetro do círculo cultural sobre o qual
se estende. Eu poderia fazer uma contribuição para tópicos ou problemas
peculiares à minha cultura tribal. Mas, mas essa seria relativamente menos
importante do que uma contribuição simular que diz respeito à cultura
camaronense em geral teria, por sua vez, é menos importante quando
comparada a uma contribuição para cultura africana. Desse modo, a mais
importante contribuição seria relevante para a cultura humana em geral e,
se alguma coisa é relevante para a cultura humana em geral, então é também
relevante para todas as culturas particulares. Então, se uma contribuição é
feita por um filósofo africano, esta pode não ser classificada como filosofia
africana, mas, no entanto, continua a ser relevante e pode facilmente se
tornar filosofia africana a segunda vista, quando reconhecida e utilizada por
um filosofo africano especificamente para propósitos africanos. Anarquistas
94
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
culturais extremos podem não se convencer com essa linha de raciocínio.
Mas esta é inevitável desde que nós admitimos que a filosofia não é sua
própria justificativa, nem um prêmio no vácuo, e que o propósito geral no
segundo sentido em que nos delimitamos é torná-la filosofia em um
primeiro sentido. (TANGWA, 2017a, p. 31-32)
Ora, Tagwa é normalmente identificado como um dos nomes
de referência da bioética, no entanto, essa percepção é articulada
através dos trabalhos que ele tem desenvolvido fora de Camarões,
mas não é o tema de seus esforços cotidianos e nem seria possível
fazer uma carreira em seu país com essa dedicação exclusiva ao
tema da bioética. Mas a contribuição de Tangwa ao
desenvolvimento da bioética deveria ser incontornável para todos
que se dedicam ao tema; isso porque, muitas vezes ele mostra de
modo contundente que descrições que se pretendiam universais
(como as críticas ao especismo de Peter Singer ou o valor moral de
células embrionárias, descrito por John Harris) na verdade são
contraintuitivas quando pensadas do ponto de vista da cultura
africana. Seu artigo sobre como não comparar a medicina ocidental
com a medicina tradicional africana é muito assertivo ao
diferenciar a lógica e o contexto do tratamento daquela da
descoberta e validação científica. Mas até que ponto o Ocidente
estaria disposto a validar as descobertas cientificas desenvolvidas
em espaços africanos? Essa questão pode ser pensada com o
tratamento silenciador e ausência de qualquer apoio a promissora
proposta do médico camaronês Victor Anomah Ngu (falecido em
2011) de uma vacina contra o HIV. Também o desdém do Sul
Global em relação as propostas de terapia da COVID-19 feitas por
países africanos, não deixam de marcar uma grande distância entre
a articulação local de uma busca colaborativa de soluções e a
procura e disputa industrial que tornam inseparáveis a medicina e
o mercado (TANGWA e MUNUNG, 2020, p. 5).
No trabalho que liderou no departamento de filosofia da
Univeridade de Yaounde 1, desenvolveu pesquisas em diversos
outros temas da filosofia, mas sem perder de vista a busca por fazer
diferença no mundo real. Um exemplo da articulação desses
95
Marcos Carvalho Lopes
interesses diversos está em outra contribuição para o citado The
Palgrave Handbook of African Philosophy, em que Tangwa faz uma
revisão da questão da linguagem na filosofia africana (“Revisisting
the Language Question in African Philosophy”), contribuição que,
embora não faça referência a qualquer evento especifico, ganha
sentido quando pensada de modo contextualizado com o conflito
civil que hoje Camarões vive, contrapondo as partes anglófonas e
francófonas do país.24
Hoje aposentado, Tangwa continua desenvolvendo pesquisas,
liderando e participando de grupos de investigação, orientando e
publicando trabalhos. Mas o que pode significar a filosofia em um
contexto social em que a violência da guerra civil destrói as
condições de vida? Enviei essa proposta de entrevista ao professor
Tangwa em setembro de 2021. Sem resposta, reenviei no mês
seguinte. As respostas desta breve entrevista vieram junto com a
explicação das dificuldades de ter uma vida acadêmica normal no
contexto de quatro anos de guerra civil, fazer isso lhe parecia um
ato de luxuria. Respondi com palavras de incentivo, externalizando
a admiração e impacto de seu trabalho. Mas, alguns dias depois,
vendo a notícia de que nesse conflito oito crianças foram
assassinadas durante a invasão de uma escola na cidade de Kumba,
minhas palavras se esvaziaram.25 Quero agradecer por essa
entrevista: muito obrigado! Beri wo!
Como você define a filosofia africana?
Godfrey B. Tangwa — Para mim, a filosofia é o resultado de um pensamento crítico reflexivo e a filosofia africana é o pensamento crítico
reflexivo de qualquer africano ou não africano sobre questões
particularmente africanas. [Ver Godfrey B. Tangwa, “African
Philosophy”: Appraisal of a Recurrent Problematic”, The Palgrave
Disponível em: <https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/602392>.
Disponível em:
<https://www.aljazeera.com/news/2020/10/24/five-children-killed-in-attack-oncameroonian-school-officials>.
24
25
96
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Handbook of African Philosophy, editado por Adeshina Afolayan e Toyin
Falola, Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2017, p. 19-33].
Como você entrou em contato com a filosofia africana?
Entrei em contato com a filosofia africana, informalmente e
inconscientemente (algo apreciado apenas mais tarde “na
perspectiva do segundo momento”), ouvindo as conversas dos
africanos mais velhos enquanto crescia na minha região natal, o
reino Nso dos campos de pasto do noroeste dos Camarões; e
formalmente como estudante nas Universidades da Nigéria,
Nsukka, Universidade de Ife e Universidade de Ibadan, todas na
vizinha Nigéria (1974-1984).
Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote para
o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está
ultrapassada?
A busca de identidade nunca pode estar desatualizada; é uma
busca perene de raízes, autenticidade e autocompreensão que deve
fazer parte de qualquer filosofia.
Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia
africana hoje?
A descolonização, a globalização e o meio-ambiente.
Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo
(womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia
africana aborda questões relacionadas às diferenças de gênero e
identidade sexual?
Essa é uma discussão seriamente viciada por exageros indevidos e
pela postura militante do feminismo ocidental. [Ver Godfrey B.
Tangwa, “Feminismo e Feminilidade”: Gênero e Maternidade em
África”, Capítulo Dez: Em Elementos da Bioética Africana em uma
Armação Ocidental, Mankon, Bamenda: Langaa Research &
97
Marcos Carvalho Lopes
Publishing CIG, p. 212, 201026]. Ao abordar questões relacionadas
com diferenças de gênero e identidade sexual, a filosofia africana
precisa de se inspirar no facto de que na África tradicional précolonial, enquanto a heterossexualidade era muito valorizada devido à sua ligação direta com a procriação, outras formas de
orientação sexual onde existiam eram, pelo menos discretamente,
toleradas.
No resumo deste texto, o autor afirma que “embora o movimento feminista
ocidental seja amplamente responsável pela mudança positiva global de
consciência e atitudes em relação à mulher e ao status da mulher, os africanos não
precisam professar e/ou praticar o feminismo para realizar a emancipação e o
empoderamento das mulheres africanas. Os modelos e paradigmas ocidentais são
globalmente muito imponentes e influentes, especialmente na África — graças ao
impacto cumulativo dos vários legados coloniais. Mas o verdadeiro
desenvolvimento não alienante na África exige que o uso de todas as influências
estrangeiras e externas seja feito de forma consciente como materiais de
construção para um edifício cuja fundação é puramente africana. Ou então, há o
risco de acabar com uma estrutura instável, cuja fundação e centro de gravidade
não estão firmemente no chão, mas flutuando de forma instável em algum lugar
acima dele. A opressão, supressão e a marginalização das mulheres no mundo
ocidental tem sido de uma textura, calibre e caráter diferente do que pode ser
considerado em fenômenos semelhantes ou idênticos dentro de outras culturas.
Além disso, na tentativa para libertar-se e emancipar-se, as mulheres ocidentais
agiram e reagiram de maneiras cujo efeito cumulativo tem sido prejudicial para
feminilidade, família, heterossexualidade e o papel da mulher como mãe, um
papel que é central na cultura e concepções africanas, como definindo e
circunscrevendo o status da mulher. A emancipação e o empoderamento das
mulheres africanas podem e devem se basear em fundamentos tradicionais
africanos, onde o patriarcado não poderia ser validamente contraposto ao
matriarcado e onde a mulher, como mãe, esposa, filha ou irmã, já tinha um status
reverenciado e invejável, mesmo que não sendo exatamente igual ao dos homens
em muitos aspectos. É minha opinião que os africanos poderiam tomar
emprestado com segurança o espírito, mas não a letra ou a agenda do feminismo
ocidental” (TANGWA, 2010, p. 123). Recentemente o professor Tangwa escreveu
uma postagem em seu blog em que retoma sua avaliação do feminismo
dialogando com Chimamanda Adchie: Disponível em: <https://www.gobata.com/
2019/08/chimamanda-and-feminism.html>.
26
98
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é
o mais importante em sua opinião?
Kwasi Wiredu
Quem é o seu filósofo africano preferido?
Kwasi Wiredu, pela sua simplicidade e clareza combinadas com o
mais alto rigor conceitual.27
O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No
entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados
Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil.
Esse também é um problema comum em relação à África de
língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são
divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma
unidade que leve em conta esses espaços?
Esta é uma questão difícil e complexa de discutir. Existe uma certa
identidade comum para todos os africanos e pessoas de ascendência africana em todas as partes em que estão conscientes das suas
raízes e identidade. Mas a experiência histórica, a evolução
individual e a linguagem de expressão são importantes. A
hegemonia do colonialismo e das fronteiras coloniais só permitirá
a emergência da filosofia africana sem compartimentos ou espaços
cegos após esforços articulados de descolonização e valorização
dos autênticos valores africanos.
Em entrevista, Tangwa precisou sua apreciação do trabalho do filósofo ganês
que foi um de seus examinadores quando defendeu o doutorado em 1979: “Kwasi
Wiredu é, em minha opinião, o filósofo africano cujo pensamento e obra são mais
claros e mais rigorosos. Ele é o único filósofo conhecido por mim que parece não
só entender completamente a teoria dos tipos de Bertrand Russell, mas também
ter avançado além dela. O fato de ele não estar normalmente listado entre os
grandes lógicos e epistemólogos mundiais do século 20 talvez se deva ao fato de
seu trabalho “Paradoxes” ser publicado em uma revista africana de filosofia
(Second Order: An African Journal of philosophy, v. 4, n. 2, julho de 1976, p. 3-26)
e não em uma das revistas ocidentais de “alto impacto”.” (TANGWA, Godfrey B.
Leaders in ethics education: Godfrey B. Tangwa. International Journal of Ethics
Education, v. 1, n. 1, p. 91-105, 2016).
27
99
Marcos Carvalho Lopes
Beri wo, e amáveis cumprimentos dos Camarões!
Godfrey B. Tangwa
é professor emérito da Universidade de Yaounde 1, em Camarões, onde foi
chefe do Departamento de Filosofia de 2004 a 2009. É membro da Academia de
Ciências dos Camarões (CAS) e da Academia Africana de Ciências (AAS), vicepresidente da Iniciativa de Bioética dos Camarões (CAMBIN), que ele fundou em
2005, membro do comitê executivo do Pan-Africano Iniciativa de Bioética
(PABIN) e presidente da Iniciativa Cultural, Antropológica Social e Econômico
(CASE), do Grupo de Trabalho do Global Emerging Pathogens Treatment
Consortium (GET). Tem ampla experiência de ensino e pesquisa em domínios da
filosofia e da bioética. Ele obteve um BA (1977) do Universidade da Nigéria,
Nsukka; mestrado (1979) pela Universidade de Ife (agora Obafemi Awolowo
University), Ile Ife; e um PhD (1984) da Universidade de Ibadan, tudo na Nigéria.
Trabalhou em vários comitês consultivos especializados para o OMS, tem sido
membro do Grupo Consultivo de Ética Científica (SEAG) de Hoffmann La Roche
desde 2005 e atualmente também é membro do conselho consultivo tanto da
ALERRT (African coaLition for Epidemic Research, Response and Training)
quanto da SARETI (South African Research Ethics Training Initiative). Publicou uma dezena de livros, 35 capítulos e 45 artigos em periódicos.
ORCID: orcid.org/0000-0003-0062-8108
Cameroon Bioethics Initiative: http://www.cam-bin.org
Personal Blog: http://www.gobata.com
Referências
TANGWA, Godfrey B. Leaders in ethics education: Godfrey B.
Tangwa. International Journal of Ethics Education, v. 1, n. 1, p. 91105, 2016.
______. African philosophy: Appraisal of a recurrent problematic.
In: AFOLAYAN, Adeshina; FALOLA, Toyin (Ed.). The Palgrave
Handbook of African Philosophy, Palgrave Macmillan, New
York, 2017a. p. 19-33.
______. Revisiting the Language Question in African Philosophy.
In: AFOLAYAN, Adeshina; FALOLA, Toyin (Ed.). The Palgrave
100
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Handbook of African Philosophy, Palgrave Macmillan, New
York, 2017b. p. 129-140.
TANGWA, Godfrey B.; MUNUNG, Nchangwi Syntia. COVID-19:
Africa’s relation with epidemics and some imperative ethics
considerations of the moment. Research Ethics, v. 16, n. 3-4, p. 111, 2020.
TANGWA, Godfrey B. Elements of African bioethics in a Western
frame. African Books Collective, 2010.
101
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
102
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Mofefi Kete Asante,
uma obra na tradição de Maat*
Molefi Kete Asante é uma pessoa imhotepiana. Ele, segue os
passos de Imhotep, o médico, cientista e filosofo egípcio que viveu
no ano 2900 a.C, como inspiração de seu modo de vida e
pensamento, continuamente procurando servir a causa da Justiça,
Harmonia e Verdade, numa palavra egípcia, Maat. Foi com essa
dedicação que se tornou um autor tão profícuo (com cerca de 90
livros e mais de 500 artigos publicados) e importante (sendo um
dos autores negros mais citados e reconhecidos), fundador da
teoria da Afrocentricidade, tem uma contribuição tanto na
institucionalização dos estudos africanos (fundador do primeiro
programa de doutorado em estudos afro-americanos dos Estados
Unidos, em 1988, na Universidade de Temples), quanto por seu
trabalho docente (orientou centenas de teses de doutorado), como
ativista político e militante do movimento negro.
Essa descrição de Asante — como imhotepiano — é, na
verdade, um espelho da forma como ele apresentou seu amigo
Abdias Nascimento no texto “Uma obra na Tradição de Ma’at”.28 É
que, diante da dificuldade de descrever um nome tão conhecido e
presente, tanto na divulgação e desenvolvimento dos estudos
africanos, como na promoção do agenciamento pan-africanista,
encontrei como melhor recurso fazer retornar a ele as palavras com
as quais descreveu um amigo e estudioso que admirava e com quem
tinha muita convergência. Os dois foram colegas durante a década
de 70, como docentes na Universidade do Estado de Nova Iorque,
https://doi.org/10.51795/9786526508268103109
ASANTE, Molefi K. “Uma obra na tradição de Ma´at”. In: NASCIMENTO, Elisa
Larkin. Abdias Nascimento 90 anos – Memória Viva, Rio de Janeiro: IPEAFRO,
2006. p. 17-18.
*
28
103
Marcos Carvalho Lopes
no campus de Búfalo e, no mesmo período — fim dos 70, início dos
anos 80 —, articularam suas propostas de Quilombismo e
Afrocentricidade, que, como descreveu a professora Elisa Larkin
Nascimento, são semelhantes:29 “Os caminhos de elaboração das
duas propostas se entrelaçam no objetivo comum: criar um
instrumento próprio de luta e de reflexão contra o racismo e em
benefício aos povos negros. O que importava a ambos era localizar o
ponto de partida da teoria social na experiência própria do povo cuja
luta ela informa” (NASCIMENTO, Elisa Larkin. Abdias
Nascimento: grandes vultos que honraram o senado. Brasília:
Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2014. p. 227-228).
Asante — na contramão da maioria de seus colegas norteamericanos — faz questão de sempre negritar a importância do
Brasil e de Abdias Nascimento para qualquer articulação panafricanista.
O professor Asante foi muito solicito e atencioso.30 O leitor
perceberá isso no cuidado com que lida com as questões de modo
a se desviar das formulações que considera equivocadas e fornecer
respostas construtivas, que ajudem as pessoas que o leem a se
direcionar. A grande contribuição da Afrocentricidade no contexto
brasileiro não é um acaso, mas parte dessa postura e inspiração que
A professora Elisa Larkin Nascimento descreve também a proximidade entre as
posições que Abdias desenvolveu no Teatro Experimentado do Negro e aquelas
de Maulana Karenga (criador da filosofia Kawaida) e Molefi Asante tinham na
década de 70, como “porta-vozes do nacionalismo negro, que insistia no efeito
libertador e na necessidade política de construir identidade e autoestima positivas
para a população negra” (NASCIMENTO, Elisa Larkin. Abdias Nascimento:
grandes vultos que honraram o senado. Brasília: Senado Federal, Coordenação
de Edições Técnicas, 2014. p. 206).
30 Em 2014 entremos em contato com o professor Asante que gentilmente
autorizou a tradução e publicação de dois textos na revista Capoeira –
Humanidades e Letras: ASANTE, Molefi Kete. “Uma Origem Africana da
Filosofia: Mito ou Realidade?”. Trad. Marcos Carvalho Lopes. CapoeiraHumanidades e Letras, v. 1, n. 1, p. 116-121, 2014. e ASANTE, Molefi Kete. “Raça
na Antiguidade: na verdade, provém da África”. Trad. Fernando Lopes Tomé.
Capoeira-Humanidades e Letras, v. 1, n. 3, p. 105-113, 2015.
29
104
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
faz com que muitas pessoas sigam seus passos e agenda para o
pensamento africano.
Como você define a filosofia africana?
Molefi Kete Asante — Existem dois aspectos da filosofia: como é
praticada e como é estudada. A filosofia africana refere-se à
participação de pessoas de ascendência africana no processo da
prática e de teoria da filosofia. Isso não deve ser confundido com a
noção ocidental de filosofia acadêmica como uma participação em
questões individualistas de ser e identidade. Existem africanos que
participam desse tipo de filosofia, mas muitas vezes não conhecem
a sua própria história. Para mim, a filosofia africana deve significar
várias coisas: uma crítica das ideologias impostas pelo Ocidente ao
povo africano; uma afirmação da narrativa africana de comunidade
baseada nos princípios de harmonia, ordem, equilíbrio e
reciprocidade; e a proposta de uma voz panafricana no âmbito
epistêmico.
Como você entrou em contato com a filosofia africana?
Como você sabe, sou um estudante de história da África e foi
através da África antiga que descobri que o livro mais antigo do
mundo era Os Ensinamentos de Ptahhotep. Esse livro me levou à
procura de outros africanos que haviam praticado e estudado a
sociedade humana e foi onde eu encontrei Imhotep, Amenemhat,
Duauf, Merikare, Amenhotep, o filho de Hapu e outros filósofos
africanos que viveram centenas e em casos milhares de anos antes
de Tales, Isócrates, Sócrates, Platão e Aristóteles. Meu livro The
Egyptian Philosophers31 foi publicado depois de minha
descoberta. Mais tarde, conheci muitos estudiosos africanos que
estavam engajados na filosofia, mas, infelizmente, eles haviam se
tornado parte da filosofia acadêmica contínua a do Ocidente, onde
Publicado recentemente em português como Os filósofos egípcios: vozes
africanas ancestrais: de Inhotep à Akhenaton. Trad. Akili O. Bakari. São Paulo:
Editora Ananse, 2022.
31
105
Marcos Carvalho Lopes
se dizia que a origem da filosofia era Tales, Pitágoras e Isócrates.
Eu queria examinar a origem africana da filosofia.
Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote
para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está
ultrapassada?
Talvez você queira dizer com essa pergunta que esse era o lema
daqueles africanos que participaram da ideia de filosofia
europeia/ocidental. Eu não me envolvo nessa busca. A palavra
europeia filosofia é frequentemente chamada de “o estudo da
sabedoria ou o amante da sabedoria”, mas a palavra “filosofia” é
composta da palavra grega “philo” e da palavra derivada da África
“seba” que se torna “Sofia” para os gregos. Na verdade, os
dicionários de etimologia dizem que “philo” é de origem grega e
que “sophia” não é. Dizem que a origem é desconhecida, mas isso
só confirma que não olharam para a África antiga, onde a palavra
“seba” era usada para “sabedoria” mais de mil anos antes de
Homero, o grego, aparecer pela primeira vez. O que é encontrado
no reinado do rei egípcio, Antef II, por volta de 2050 a.C..
Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia
africana hoje?
Filósofos africanos, no sentido em que falo de praticantes e
estudantes, estão interessados na natureza da ética e da estética, o
bom e o belo e, na maioria dos casos, são as mesmas expressões.
Portanto, nossas perguntas devem estar relacionadas a questões de
comunidade, ecologia e justiça.
Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo
(womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia
africana aborda questões relacionadas às diferenças de gênero e
identidade sexual?
A filosofia africana exige um retorno ao matriarcado fundado nos
princípios da reciprocidade. O feminismo é baseado nas noções
ocidentais de patriarcado e nas respostas a ele. Os africanos que
106
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
avançaram o Mulherismo (Womanism) o fizeram como uma reação
ao feminismo, que consideraram uma continuação do patriarcado.
O Mulherismo, especialmente o Mulherismo africano, é um apelo
para que busquemos a reciprocidade em vez da continuação do
patriarcado que leva, mesmo no feminismo no Ocidente, à
entronização da hierarquia onde as mulheres europeias assumem
cargos mais elevados do que outras mulheres; isso nada mais é do
que patriarcado e a elevação da escada racial.
Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é
o mais importante em sua opinião?
Os filósofos africanos mais importantes no sentido contemporâneo
são Maulana Karenga, especialmente seu trabalho sobre Maat e
Kofi Asare Opoku, e seu trabalho sobre ética, moralidade e religião.
Para os filósofos que estão em sintonia com o Ocidente, também
vejo Theophile Obenga, um afrocentista, e Lewis Gordon, um
fanoniano, como filósofos-chave com base na compreensão da mais
longa tradição no estudo da humanidade. Também foi possível
perceber como Abdias Nascimento, Ama Mazama, Achille
Mbembe, Sylvia Wynter e Molara Ogundipe-Leslie podem ser
vistos como pensadores-chave no sentido contemporâneo.
Qual é o seu filósofo africano preferido?
Maulana Karenga.
O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No
entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados
Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil.
Esse também é um problema comum em relação à África de
língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são
divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma
unidade que leve em conta esses espaços?
Marcos, acho que os afro-brasileiros raramente expressaram seu
quilombismo de forma panafricana. Este é o aspecto limitante da
voz dos afro-brasileiros. Nos Estados Unidos e no Caribe, fomos
107
Marcos Carvalho Lopes
influenciados pelo início de nossa compreensão de nossas
identidades no continente africano e civilizações antigas como uma
bússola para discutir outros aspectos da vida. Não se pode
esquecer que o homo sapiens começou na África ou que a civilização
humana começou na África. Isso significa que devemos lutar contra
a tentativa de nos marginalizar simplesmente pelo acidente da
história que viu tantos africanos escravizados. Acredito que
aqueles que foram escravizados pelos franceses e ingleses
examinaram a natureza do poder filosófico, das injustiças raciais,
do patriarcado e da hierarquia, pesquisando nossas próprias
tradições. O Brasil, nosso centro populacional mais importante nas
Américas, está em melhor posição para ajudar a liderar essa luta.
Estou ansioso por um Brasil afrocêntrico mais assertivo, onde a
atuação do povo africano seja considerada necessária para
restaurar a verdade, a retidão e a justiça.
Molefi Kete Asante
é Professor e Presidente do Departamento de Africologia e Estudos AfroAmericanos da Temple University na Filadélfia. Ele também atua como
Organizador Internacional da Afrocentricity International e é Presidente do
Molefi Kete Asante Institute for Afrocentric Studies. Asante é Professor
convidado da Universidade Zhejiang, Hangzhou, China e Professor
Extraordinário da Universidade da África do Sul. É reconhecido como o mais
prolífico estudioso afro-americano e publicou 90 livros, dentre os mais recentes
estão Radical Insurgencies, The History of Africa (3a. edição); The African
American People: A Global History; Erasing Racism: The Survival of the
American Nation; Revolutionary Pedagogy; African American History: A
Journey of Liberation; African Pyramids of Knowledge; Facing South to
Africa, e, o livro de memórias, As I Run Toward Africa. Asante publicou mais
de 500 artigos e é considerado um dos autores africanos vivos mais citados, assim
como um dos mais distintos pensadores do mundo africano. Ele recebeu seu Ph.D.
da Universidade da Califórnia, Los Angeles, aos 26 anos de idade, e foi nomeado
professor titular aos 30 anos de idade na Universidade Estadual de Nova York em
Buffalo. Na Temple University, criou o primeiro Programa de Doutorado em
Estudos Afro-Americanos em 1988, dirigiu mais de 135 teses de Ph.D. É o
fundador da teoria da afrocentricidade.Site: http://www.asante.net/
108
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Referências
ASANTE, Molefi Kete. “Uma origem africana da filosofia: mito ou
realidade?”.
Trad.
Marcos
Carvalho
Lopes. CapoeiraHumanidades e Letras, v. 1, n. 1, p. 116-121, 2014.
______. “Raça na antiguidade: na verdade, provém da África”. Trad.
Fernando Lopes Tomé. Capoeira-Humanidades e Letras, v. 1, n. 3,
p. 105-113, 2015.
______. Afrocentricidade: A teoria de mudança social. Trad. Ana
Monteiro Ferreira. Philadeilphia: Afrocentricity, 2003.
______. Afrocentricidade como crítica do paradigma hegemônico
ocidental: Introdução a uma idéia. Ensaios Filosóficos, Rio de
Janeiro, v. 16, p. 6-18, dez., 2016.
______. “Uma obra na tradição de Ma´at”. In: NASCIMENTO, Elisa
Larkin. Abdias Nascimento 90 anos – Memória Viva, Rio de
Janeiro: IPEAFRO, 2006. p. 17-18.
NASCIMENTO, Elisa Larkin. Abdias Nascimento: grandes vultos
que honraram o senado. Brasília: Senado Federal, Coordenação de
Edições Técnicas, 2014.
______. Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica
inovadora. Selo Negro, 2013.
109
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
110
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Adeshina Afolayan e a filosofia africana
fora da caverna*
A imagem platônica da Filosofia e suas redescrições modernas
colocam como sua tarefa principal salvaguardar as fronteiras entre
aparências e realidade, pressupondo o acesso privilegiado a coisa
em si mesma.32 As pessoas que querem filosofar precisam se afastar
da cultura comum e vulgar, que são como sombras, multiplicando
aparências e nos afastando da Verdade. Ora, a filosofia no
continente africano muitas vezes seguiu esse caminho de desprezo
pela cultura, buscando justificar uma posição incomensurável e
fundacionista (como fundamento de qualquer saber válido).
Quando se aproxima da cultura é daquela que seria tradicional e
não da popular, ocidentalizada, degenerada e vendida pela
indústria cultural, como produto massificado, infantilizado,
alienante etc.
Ora, se essa perspectiva da Filosofia africana não dialoga com
o teatro ou a literatura, muito menos com o cinema e de forma
alguma com as cópias precárias dessas práticas ocidentais, como os
rappers africanos que emulam os norte-americanos ou os filmes
digitais populares nigerianos, da chamada Nollywood.
Mas vamos imaginar que uma dessas pessoas que cresceram e
construíram toda sua formação amarrada numa visão da Filosofia
https://doi.org/10.51795/9786526508268111120
Adeshina Afolayan avalia as consequências epistemológicas do
antirepresenacionismo de Richard Rorty, quando o filósofo norte-americano em
Philosophy and the mirror of nature (p. 3) destrói a imagem segundo a qual “A
preocupação central da Filosofia é ser uma teoria geral de representação, uma
teoria que dividirá a cultura nas áreas que representam a realidade bem, aqueles
que a representam de modo pior, e aquelas que não a representam de forma
alguma (apesar de sua pretensão de fazê-lo).”
*
32
111
Marcos Carvalho Lopes
fundacionista, percebesse que essa pressuposição de acesso
privilegiado à Verdade não é mais do que uma celebração
autoindulgente de sua profissão. Vamos dizer que ela tivesse
coragem de descer de seu alto cavalo e buscasse novamente, de
forma desconcertada e cambaleante, o caminho da Caverna. Neste
caso, explica o filósofo nigeriano Adeshina Afolayan, que:
“Infelizmente para os filósofos africanos, em um retorno à caverna,
sua tarefa vai além de convencer os ‘habitantes das cavernas’ sobre
a futilidade de ficar presos a uma falsa apreensão da realidade. Pelo
contrário, essa deve ser uma experiência humilhante para as
filósofas/os porque os ‘habitantes das cavernas’ já estão esperando
por ela ou ele. O primeiro fato que a filósofa/o filósofo na África
tem que aprender num diálogo aberto com os ‘habitantes das
cavernas de Nollywood’ é que Nollywood, e o cinema, constitui
agora um meio singular para gerar conhecimento e crença sobre a
realidade” (AFOLAYAN, 2017a, p. 533).
Adeshina Afolayan não faz essa afirmação de modo gratuito,
já que nasceu “em uma família de teatro. Meu pai fez parte da
última fase da tradição teatral itinerante iorubá, e entre os
primeiros a fazer a transição para o cinema celulóide. Antes de
falecer em 1996, Nollywood já estava em seus anos iniciais de
enérgica proliferação”. Impressionado com o salto de qualidade
das produções de Nollywood, representado pelo filme Sete anos
de Sorte (The Figurine),33 de 2009, dirigido por seu irmão, Kunle
Afolayan, o filósofo editou o livro Aueteuring Nollywood: Critical
Perspectives on The Figurine para analisar e dialogar com o
impacto que essa produção lhe causou. Sua tentativa de dialogar
com a cultura popular a partir do cinema de Nollywood significa
uma forma de redescrever e descolonizar a atividade filosófica
africana. Seu objetivo seria “delinear uma perspectiva
multidisciplinar que traga a filosofia africana para uma relação
simbiótica com Nollywood de uma maneira que alcance uma
Atualmente disponível na Netflix, assim como outros filmes dirigidos por por
Kunle Afolayan.
33
112
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
redenção mútua. Por um lado, a filosofia africana se reconecta a
uma análise concreta da situação africana a partir de uma
perspectiva de performance. E, por outro lado, Nollywood recebe
uma reavaliação conceitual crítica que poderia facilitar uma
melhoraria em sua visão cinematográfica da re-presentação”.34 É
interessante considerar que os filmes de Nollywood eram
desprezados em seu valor artístico, a partir da desqualificação
técnica da produção digital, da baixa qualidade de roteiros e
atuações voltadas para um consumo local. Esse cinema
improvisado se tornou uma indústria cada vez mais qualificada e,
surpreendente, que lições de descolonização poderíamos tirar
desse fenômeno?
Afolayan, em seu diálogo com Nollywood, pretende também
deslocar as questões acerca da modernidade e da pós-modernidade
e da própria ideia de África. Nesse sentido, a aproximação com o
cinema africano ajudaria a articular o imperativo de autodefinição
narrativa de um horizonte panafricano, o que seria “a primeira
condição se a África tiver que enfrentar sua necessidade de
desenvolvimento autossustentável como uma exigência moderna.
Os esforços do cinema africano para construir mundos (worldmaking) e a visão de mundo (world-viewing) da filosofia africana estão
ligados à necessidade de fazer mitos, um grande imaginário que se
estende sobre o passado e o futuro da África. Com o imperativo de
fazer mitos na dinâmica da crise de identidade da África, a identidade da África depende de um processo criativo de falsificação da
memória coletiva” (2017a, p. 534). Nesse último ponto, de modo
polêmico, Afolayan argumenta que, se todas as nações são
alicerçadas em narrativas falsas e idealizas, mentiras sinceras, ou
melhor, falsas memórias — como as construídas pelo cinema —
também interessam para a construção do panafricanismo (neste
ponto não se afasta das nobres mentiras platônicas).
Apresentação disponível em: Philosophy of/and Nollywood. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/303820958_Philosophy_ofand_Nolly
wood>. Consultado em: 05/02/2021.
34
113
Marcos Carvalho Lopes
O modo como Afolayan trabalha com conceitos e autores
ocidentais sempre gera uma recontextualização. É, por exemplo, o
que faz ao examinar o conceito de modernidade, problematizando
a narrativa única eurocêntrica e propondo uma articulação desse
conceito a partir da noção Yoruba de Òlàju. Essa palavra, que
significa literalmente “abrir os olhos para ver”, aponta tanto para o
desenvolvimento técnico quanto para o processo coletivo de
gradualmente abrir os olhos, mantendo certa ambiguidade
valorativa — como nos ditos “kà sí ìbòwò f’ágbà mò; àwọn ọmọ ti l’ajú
s’ódì” (não existe mais o respeito adequado pelos mais velhos
porque as crianças são agora excessivamente iluminadas) e “òlàjú ti
sọ ayé di dídára ju tàtijò lọ” (òlàjú fez o mundo melhor do que antes)
(AFOLAYAN, 2021). Como explica, sua abordagem usa: “o
conceito Yorùbá de Òlàjú como uma lente conceitual para reconfigurar a compreensão dessa modernidade multilateral. Com Ólàjú,
chegamos à conclusão de que tanto a Europa como a não-Europa
são cúmplices na formação e configuração do que significa ser
moderno. O espírito moderno percorre o mundo inteiro. É somente
a partir dessa premissa que os alicerces das múltiplas modernidades podem ser erigidos adequadamente. É também a partir
dessa premissa que várias sociedades podem assumir o controle
dos elementos da mudança social, bem como do poder e da
dinâmica do conhecimento nela envolvida. Isso essencialmente
leva tal sociedade a um diálogo crítico consigo mesma e com os
outros” (AFOLAYAN, 2021).
Adeshina Afolayan é um aliado para todas as pessoas que
querem pensar a filosofia africana hoje se afastando de uma visão
romantizada de tradições imutáveis e identidades fixa, mas
buscando contribuir para a construção de uma perspectiva
panafricana.
Como você define a filosofia africana?
Adeshina Afolayan — Para mim, a filosofia africana é o corpo de
reflexões filosóficas não somente sobre as dificuldades póscoloniais africanas de autoidentidade e desenvolvimento, mas tam-
114
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
bém sobre as questões amplas e universais de significado filosófico
e como elas fazem sentido filosófico africanamente (Aficanly).
Como você entrou em contato com a filosofia africana?
Os meus estudos de graduação e pós-graduação se tornaram mais
interessantes pelos antagonismos ideológicos latentes e abertos
sobre o estatuto e significado histórico da Filosofia Africana. Esse
foi o período em que a filosofia africana estava apenas fazendo sua
aparição no espaço intelectual global. E essa emergência foi
prejudicada pelo infeliz e eurocêntrico raciocínio intelectual
induzido pelo racismo sobre se a Filosofia Africana é
suficientemente filosófica para ser integrada no espaço filosófico
universal (leia-se: Ocidental).
Houve também um subconjunto desse debate que tornou o
Departamento de Filosofia da Universidade de Ibadan, Nigéria,
intelectualmente muito inflamável. E essa era a questão de saber se
a África podia ser considerada como sendo simultaneamente póscolonial e pós-moderna. Esses debates e discursos animaram os
currículos de Filosofia Africana e estimularam as mentes ávidas
dos estudantes de graduação. Estávamos ansiosos por prosseguir
com algumas das questões convincentes no interstício entre as
filosofias ocidental e africana e entre a colonial, a racial e a póscolonial. Os currículos nos inflamaram e enfureceram. Devorámos
com fome todos os livros disponíveis sobre Filosofia Africana e
Afro-diaspórica (African and Africana philosophy).35
A tradução aqui não consegue explicar a distinção utilizada por Afolayan entre
African Philosophy e Africana Philosophy: a primeira se refere ao continente africano
e a segunda incorpora as produções de populações negras fora da África (sendo
um guarda-chuva mais amplo, que teria dentro de si a African philosohy).
35
115
Marcos Carvalho Lopes
Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote
para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está
ultrapassada?
No que diz respeito a África, a procura de identidade própria
nunca estará desatualizada. Isso na medida em que a questão da
identidade deve sempre preceder a questão do desenvolvimento.
Por conseguinte, a África, enquanto continente, se confronta com
os imperativos da autodefinição e da auto-constituição, para que
seja capaz de determinar a direção de desenvolvimento que precisa
urgentemente tomar. Isso tudo é mais acentuado num mundo
global sob o domínio onipotente da hegemonia capitalista
neoliberal, eufemisticamente chamada globalização.
Infelizmente, o panafricanismo não parece ter captado o vapor
ideológico suficiente para iniciar a necessária libertação do
continente em autoconsciência. Embora a China tenha articulado o
Consenso de Pequim como uma alternativa ideológica ao Consenso
de Washington capitalista, a África requer um modelo político e
econômico que tome posição contra os dois modelos
predominantes. Mas o continente ainda está solto na corrente
giratória das águas capitalistas infestadas de tubarões.
Continuamos a contar os nossos ganhos em termos capitalistas (ou,
em tempos recentes, também em termos chineses!). É nessa medida
que a questão da autodefinição ainda se mantém no centro da situação pós-colonial africana.
Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia
africana hoje?
Essa é uma questão significativa. A filosofia africana de hoje se
tornou um espaço fundamental para uma miscelânea de diferentes
tipos de debates e discursos filosóficos e filosoficamente relevantes.
No Palgrave Handbook of African Philosophy (2017), tentamos
reunir um corpus específico de algumas dessas questões
interessantes que são significativas para o ser-no-mundo africano
hoje. As questões vão desde a autoimagem da própria filosofia africana (em relação a outras tradições filosóficas cognatas: Filosofias
116
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
afro-diaspóricas e afro-caribenhas, por exemplo) ao feminismo e
gênero, desenvolvimento da África, governança democrática,
nacionalismo, descolonização, filosofia da arte, ambientalismo, ao
sistema de conhecimento indígena, ciência e tecnologia, filosofia da
educação e assim por diante.
Realmente, parte do meu projeto atual é sobre a autoimagem da
filosofia africana (de fato, o foco central do meu livro de 2018,
Filosofia e Desenvolvimento Nacional na Nigéria), é a
necessidade de ir além da trajetória e da imagem da filosofia
africana acadêmica, para um ponto crítico em que essa começará a
se envolver com as filosofias da vida real através das quais os
africanos constroem sentido para sua existência e lutas existenciais.
Isso exige duas abordagens relacionadas. Primeiramente, a filosofia
africana deve abandonar a sua arrogância e entrar em espaços
transdisciplinares e interdisciplinares como os estudos africanos.
Em segundo lugar, e por implicação, a filosofia africana deve estar
pronta para incorporar o significado filosófico daquilo que muitas
vezes consideramos como não-filósofico. Tenho defendido, por
exemplo, a relevância filosófica de estudiosos africanos como Toyin
Falola e do falecido Abiola Irele. Não faz qualquer sentido
intelectual insistir que esses brilhantes estudiosos não são
“filósofos africanos” simplesmente porque não tiveram formação
filosófica ou porque não são filósofos profissionais.
Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo
(womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia
africana aborda questões relacionadas com as diferenças de
gênero e identidade sexual?
O feminismo global se tornou tão conceitualmente,
ideologicamente e metodologicamente fragmentado a ponto de
quase derrotar os seus próprios objetivos. Não existe sequer
consenso sobre o ponto mais singular do seu arsenal conceitual: a
ideia de mulher. Por conseguinte, é agora grosseiramente pouco
esclarecedor falar mais sobre o feminismo no singular. A dissonância ideológica é o que levou à emergência do feminismo
117
Marcos Carvalho Lopes
africano e o enfoque no mulherismo como um quadro mais
iluminador para teorizar as experiências pós-coloniais e globais das
mulheres africanas. No entanto, mesmo o feminismo africano já
não pode ser visto como um espaço para uma concepção singular
do que é o feminismo ou mulherismo.
Infelizmente, os discursos de gênero não têm animado o espaço
filosófico africano com a mesma profundidade que as questões de
desenvolvimento e política. Graças às pesquisas seminais e
definidoras de estudiosos filosoficamente significativos como Ifi
Amadiume e Oyèrónkẹ Oyěwùmí, bem como de filósofas feministas como Nkiru Nzeogwu e outras, os discursos de gênero
têm vindo a ganhar terreno com as reflexões filosóficas sobre o(s)
feminismo(s) africano(s) e a condição para sua(s) possibilidade(s).
Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é
o mais importante em sua opinião?
Duvido que alguém consiga articular uma resposta coerente para
essa difícil questão. Todas aquelas que articulam um discurso
filosófico e filosoficamente relevante sobre África são, na minha
opinião, relevantes. A beleza do empreendimento filosófico
africano é que a base lançada pela primeira geração de filósofos
africanos foi elaborada, analisada, criticada, reabilitada e ampliada
pelas gerações seguintes, todas as reflexões acumuladas num
grande corpo de textos, discursos e propostas sobre como a África
chegou onde chegou e como a libertação e o progresso poderiam
ser alcançados. Dentro desta trajetória, é mais difícil identificar o
filósofo ou filósofos “mais importantes” sem causar danos
extremos às reflexões definidoras de muitos outros.
Quem é o seu filósofo africano preferido?
Tenho muitos deles: Kwasi Wiredu, John Olubi Sodipo, Lepold
Sedar Senghor, Sophie Oluwole, Emmanuel Chuwkudi Eze,
Olusegun Oladipo, A. G. A. Bello, Barry Hallen.
Mesmo essa listagem é difícil de enumerar. Na listagem, a minha
mente percorre aquilo a que podemos chamar “gerações de
118
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
reflexão filosoficamente significativa”. A lista tal como está, é
apenas parcialmente indicativa. Continuar listando já inviabiliza o
objetivo da lista e o conceito de “favorito”.
O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No
entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados
Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil.
Esse também é um problema comum em relação à África de
língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são
divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma
unidade que leve em conta esses espaços?
No Palgrave Handbook of African Philosophy, tentámos resolver essa
omissão crítica no espaço filosófico africano com a inclusão da tão
caluniada filosofia africana lusófona. Quando se fala de “filosofia
africana”, a atenção é normalmente dirigida para as filosofias
africanas francófona e anglófona. Mesmo a preeminência destas
fronteiras não sugere quaisquer relações internas. A maioria dos
textos definitivos em qualquer dos contextos não estão
prontamente disponíveis para o outro. E os textos traduzidos
apresentam os seus próprios problemas filosóficos. É nesse sentido
que as fronteiras linguísticas se tornam críticas como limitações
filosóficas. Por exemplo, o sentido do feminismo sob o discurso no
contexto africano anglófono será essencialmente diferente no
contexto francófono. A única consolação que temos é o fato de que
a diversidade linguística coalesce em torno de uma unidade
temática e continental sobre as mesmas questões de libertação,
descolonização, desenvolvimento e progresso. E uma vez que não
há forma de minar a diversidade, a tradução se torna o meio através
do qual a fronteira pode entrar parcialmente em colapso, de modo
a facilitar conversas filosóficas eficazes para além das fronteiras.
Não há forma para a filosofia africana evitar conversas através de
fronteiras linguísticas e culturais com um contexto filosófico como
o Brasil e a sua significativa continuidade e descontinuidade
cultural com o continente africano.
119
Marcos Carvalho Lopes
Adeshina Afolayan
é professor de filosofia na Universidade de Ibadan, Nigéria. Ele é co-editor
de The Palgrave Handbook of African Philosophy (2017), Pentecostalism
and Politics in Africa (2018), e autor de Philosophy and National
Development in Nigeria (2018).
Referências
AFOLAYAN, Adeshina (Ed.). Auteuring Nollywood: critical
perspectives on the figurine. University Press, Nigeria, 2015.
AFOLAYAN, Adeshina; FALOLA, Toyin (Ed.). The Palgrave
handbook of African philosophy. New York: Palgrave Macmillan,
2017.
AFOLAYAN, Adeshina. African Philosophy at the African
Cinema. In: The Palgrave Handbook of African Philosophy.
Palgrave Macmillan, New York, 2017a. p. 525-537.
______. “Is Modernity Single and Universal?: Òlàjú and the
Multilateral Modernity”. Yorùbá Studies Review. Vol. 1 No. 1
(2016)Disponível em: <https://www.researchgate.net/profile/A
deshina_Afolayan/publication/307995447_Is_Modernity_Single_a
nd_Universal_O_laju_and_the_Multilateral_Modernity/links/57d6
8e3708ae0c0081ea3b44.pdf>. Consultado em 01/02/2021
_____. Philosophy and National Development in Nigeria:
Towards a Tradition of Nigerian Philosophy. Routledge, 2018.
120
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Fernando Proto Gutierrez e o diálogo
entre África e Abya Yala*
O filósofo Eugenio Nkogo Ondó não escondeu seu entusiasmo
ao descrever o trabalho de seu amigo e discípulo argentino
Fernando Proto Gutierrez: “Não seria um exagero se eu estivesse
inclinado a acreditar que sua dedicação bem-sucedida à pesquisa,
empreendida precisamente no limiar de uma idade tão jovem, o
colocou no topo dos filósofos mais jovens do século XXI”. Essa
aposta de Ondó é também uma parceria, a construção de uma
ponte entre a filosofia africana e a filosofia latino-americana. Se a
filosofia africana é fruto de um cultivo e convivência, em que o
reconhecimento da alteridade e suas diversas conformações, que
devem ser harmonizados para servir à Justiça, então a lição que
devemos aprender com Gutierrez nesta entrevista é a parte feliz da
colheita de um trabalho em comum
Como você define a filosofia africana?
Fernando Proto Gutierrez — Em princípio, é possível relembrar as
palavras de Aristóteles — como aquela trazidas do passado
imemorial para o presente da memória histórica — e, então,
conjeturar que a filosofia africana se diz de muitos modos. Werner
Marx, em “Heidegger e Tradição”, contribuiu ao descrever as
características do “ser” europeu, a rigor: identidade, necessidade,
inteligibilidade e eternidade. O filósofo argentino Juan Carlos
Scannone opôs a ela as características do “acontecer” judaicocristão: alteridade, gratuidade, mistério e novidade histórica. Com base
em ambas as dimensões categóricas, deduziu as notas características do “ser” latino-americano — em referência a Rodolfo Kusch
*
https://doi.org/10.51795/9786526508268121128
121
Marcos Carvalho Lopes
—, em “Novo ponto de partida na filosofia latino-americana”:
ambiguidade, destinalidade, abissalidade e arqueicidade. Assim, no
artigo “Ubuntu e Ma'at no Donsolu Kalikan”36 publicado na FAIA e
apresentado em 8 de junho de 2015, naquela que foi a primeira
conferência sobre filosofia africana proposta por Enrique Del
Percio, com PIDESONE [1] na Faculdade de Direito da
Universidade de Buenos Aires (200 anos depois de sua fundação,
não havia notícias sobre filosofia africana), apresentei o que
interpreto serem as notas do “ntu” ou “força”, como ponto de
partida da filosofia africana: relacionalidade (ubu-ntu), justiça
(Ma'at), pluriformidade e comemoratividade.
O pedido de uma “definição” do que se deve entender como
“filosofia africana” vem de tentativas essencialistas que
comprometem as modalidades euro-americanas de elucidação e
análise conceitual e que, portanto, requerem a conciliação de
definições claras e diferentes para determinar a natureza de um
pensamento. Mas, a filosofia africana nem é, nem acontece, nem está,
então, pelo contrário, é cultivada em, com e a partir da relacionalidade
comunitária (ubu-ntu) e seus muitos frutos (pluriformidade) são
colhidos com critérios de justiça (recordo, para o caso, as regras do
jogo Oware); a força dessa filosofia se faz-ver na lógica
radical/seminal que comemora o ritual do trabalho coletivo inexorável. Em outras palavras, não há possibilidade da filosofia africana
sem pensar na alteridade como uma dimensão ética primária que
lhe dá sentido e sem parar para entender que a força procede, sem
mais, da comunidade que lhe faz brotar, repetidamente, os frutos
da terra: a filosofia se mostra assim como a rememoração dessa
dinâmica originária, traduzida num registro oral de aforismos ou
poemas. No Gbeme-Ho, Kutome-Ho do Antigo Reino do Daomé
está escrito: “Do corpo que envelhece na terra, os cupins farão sua
parte”. A filosofia africana é dita de muitas maneiras, como muitas
GUTIERREZ, Fernando Proto. Ubuntu y Maat en el Donsolu Kalikan. Revista
FAIA-Filosofía Afro-Indo-Abiayalense, v. 4, n. 22, 2016.
36
122
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
também são as maneiras pelas quais as forças da comunidade, da
terra e do céu, cultivam, colhem e nutrem o vínculo.
Como você entrou em contato com a filosofia africana?
Por volta do ano de 2003, em Buenos Aires, comecei a suspeitar da
canônica “passagem do mito ao logos”, postulada pelas
historiografias whig europeias do século XIX, racistas e colonialistas. Esse suposto “milagre helênico”, padronizado por John
Burnet e revisitado por Jean-Pierre Vernant (para legitimar o
caráter racional da República Francesa), coincidiu com uma forma
de epistemicídio, ou seja, com uma compreensão monológica da
racionalidade filosófica-científica que exclui e nega as contribuições
afro-asiáticas ao pensamento pré-socrático e platônico. Nessa linha,
encontrei a obra mais significativa em espanhol, que trata do problema a partir de uma perspectiva liberacionista: Síntese
Sistemática da Filosofia Africana do filósofo pan-africanista
Eugenio Nkogo Ondó, fundador da Escola de Pensamento Radical.
Desse modo, a porta da África foi a egiptologia, levando-me a
escrever artigos que revisam as relações filosóficas entre a Grécia e
o Egito (não mais desde o difusionismo de Grafton Elliot Smith):
“A matemática egípcia e o modelo ariano-racista: uma nova leitura
crítica da origem da filosofia europeia” (GUTIÉRREZ, 2017), “Paralelos entre o Kemético e a matemática pitagórica-platônica”
(GUTIÉRREZ,2016), “Aspectos essenciais da matemática egípcia”(
GUTIÉRREZ, 2012), “Teologia Kemética”, “Translógico ou
ana(dia)lético no pensamento Kemético” (GUTIÉRREZ, 2016), isto
é, como se pode ver, que a hipótese de trabalho consistia em
interpretar, especificamente, a relação entre o pitagorismo e o
pensamento egípcio, hipótese que merece maior atenção e
quantidade de estudos extensos. Essas contribuições foram
posteriormente sintetizadas e expandidas no livro “Filosofia da
Lógica: Origem Afro-Asiática da Filosofia Europeia”, cuja
primeira edição foi intitulada “A Essência do Pensamento
Kemético” (2012).
123
Marcos Carvalho Lopes
Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote
para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está
ultrapassada?
Essa busca pela própria identidade, sem dúvida, foi vista nos
séculos XIX e XX vinculada à teorização panafricanista e à luta
política pela libertação continental; não é possível compreender o
panafricanismo dessa forma se o quadro epistemológico da práxis
ético-política está dividido. Assim, não é prudente dizer que o inquérito sobre a identidade africana terminou, uma vez que muitos
dos pan-africanistas morreram, foram assassinados ou desapareceram, fomentando a geração de um vazio teórico ocupado então
por outras preocupações, na medida em que o neocolonialismo se
apropriou do discurso acadêmico, midiático e público da África: a
des-atualização do debate em torno da identidade africana se deve
ao triunfo das tecnologias neoliberais do bio-poder colonial e da
cooptação do discurso acadêmico; isso não significa que as novas
preocupações não sejam urgentes, mas que a sua resolução ficará
truncada se, como pressuposto, não se compreender o problema
fundamental de dar à África um nome próprio.
Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia
africana hoje?
Até certo ponto, as questões vinculadas a uma agenda global
comum devem se tornar o objeto de investigação filosófica. Além
disso, mostrarei experimentalmente que os novos ou velhos
assuntos africanos também podem ser problematizados a partir da
categoria do habitar (como existenciario), para conotar, assim, o feixe
de complexidade e riqueza de significados que poderiam ocorrer
se os esquemas hermenêuticos fossem expandidos aos esquemas
hermenêuticos-conceituais de interpretação:
1. Habitar a terra (“terra”, no sentido simbólico) em tempos de
mudanças climáticas (e de mudança de época) e de tecnologização
dos processos de produção, que envolvem também a apropriação
do território, com dinâmicas de territorialidade e territorialização
que alimentam uma diversidade de conflitos em uma chave
124
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
neocolonial; o território torna-se substrato inabitável, na medida em
que os interesses de lucro em torno de sua exploração envolvem a
morte como um tributo oferecido em troca da posse de “recursos
naturais” (ex: exploração de petróleo na Nigéria);
2. Habitar com/contra o outro/Outro, em termos de Ubu-ntu e, nesse
sentido, assumindo o caráter conflituoso da fraternidade que, por
isso, habilita dar vida para aquele outro/Outro com quem
realmente acontece uma identificação primária. Além disso, essa
ética trilógica que nos fala de um si mesmo como outro, de um si
mesmo por o outro (procura e cura do ser do outro) e de um si
mesmo contra o outro, hoje mostra vítimas (sacrificáveis) que se
deslocam de um lugar para o outro do território, fugindo da morte:
refugiados, crianças-soldado, escravas sexuais... O outro como
sacrifício dado por e para possuir os recursos da terra;
3. (In)habitar em, com e a partir da violência, enquanto a
territorialidade/territorialização colonialista é violenta e se inscreve
como um discurso/prática que se encarna, niilizando: esvazia a
terra com secas, expulsões (in)humanas e abre com fome os
cadáveres dos somalis, sudaneses ou malianos.
Esse habitar é apenas uma perspectiva de abordagem que envolve
pensar o território, na alteridade e na violência, pois também se
pressupõe que a partir de uma reflexão que inclui a violência como
uma de suas dimensões, também seria pertinente incluir a nãoviolência como um horizonte ético-político de ação.
Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é
o mais importante em sua opinião?
No que diz respeito aos temas da filosofia africana, considero-me
discípulo do filósofo guineense Eugenio Nkogo Ondó, que também
me ofereceu a sua amizade. Com ele, concordamos sobre a
necessidade e urgência de construir uma ponte intercontinental de
trabalho filosófico que comunique os problemas da África e de
Abya Yala; ele próprio tem refletido sobre o assunto em “A
reconstrução da ponte Afro-Euro-Abiayalense de comunicação e
conhecimento”. Nesse sentido, no nosso Programa Internacional de
125
Marcos Carvalho Lopes
Filosofia Intercultural da Libertação, em conjunto com a Escola do
Pensamento Decolonial e a Rede do Pensamento Decolonial, têmse desenvolvido múltiplos projetos como a Revista FAIA,
testemunho da correspondência que mantenho com Nkogo Ondó
desde o 2007 e o trabalho conjunto realizado desde então.
Eugenio Nkogo Ondó nasceu em outubro de 1944 em Bibás,
Akonibe, Rio Muni, Guiné Equatorial. É Doutor em Filosofia pela
Universidade Complutense de Madrid, onde frequentou os cursos
ministrados por [Xavier] Zubiri, tendo também estudado na
Universidade de Paris-Sorbonne. Ele foi professor na Universidade
de Gana-Legon, Accra (1978-1980). De lá, ele se mudou para os
Estados Unidos da América conduzindo uma investigação privada
na Universidade de Georgetown, Washington D.C. (1980-1981).
Publicou La Pensée Radicale, no final de 2005, pela Société des
Écrivains, de Paris. É membro da Association des Auteurs Autoédités
(AAA) e participa de pesquisas, redações e conferências nacionais
e internacionais.
Além da correspondência, recebi a aprovação de sua hospitalidade
durante o Natal de 2016; em ocasiões anteriores, tivemos encontros
de trabalho e estudo anteriores no Colloque d'études décoloniales:
Déplacements épistémologiques du pouvoir, de l'être et des savoirs,
organizado pelo nosso amigo Sébastien Lefevre na l'Université
Lumière Lyon 2.
Qual é o seu filósofo africano preferido?
Há um número significativo de pensadores africanos que já se
tornaram clássicos da história da filosofia: da Argélia: Albert
Camus, Louis Althusser, Agostinho de Hipona, Jacques Derrida,
Frantz Fanon; no Congo, Theophile Obenga; no Egito, Ptah-Hotep,
Plotino ou Maimonides; em Gana, Kwame Nkrumah e Du Bois; em
Ruanda, Alexis Kagame; no Senegal, Cheikh Anta Diop; na África
do Sul, Steve Biko; na Guiné Equatorial, Eugenio Nkogo Ondó. Sem
dúvida, minha seleção também mostra minhas preferências e
também um viés quanto ao gênero dos autores.
126
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No
entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados
Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil.
Esse também é um problema comum em relação à África de
língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são
divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma
unidade que leve em conta esses espaços?
Com a pesquisadora e ensaísta francesa Claude Bourguignon
Rougier, discuti o problema da tradução; a partir da Réseau d'Études
Décoloniales — e por meio da oficina de tradução “La Minga” — são
realizadas traduções de escritos de filosofia descolonial latinoamericana. Sem dúvida, a linguagem atua como um fator limitante
no que diz respeito à enunciação onto-semiótica do que se
manifesta como dado nas reflexões filosóficas contemporâneas.
A relação entre a Rede Latino-americana Decolonial e a Réseau
d'Études Décoloniales realizam esforços substanciais para reunir e
traduzir filósofos latino-americanos, europeus e africanos. Nesse
sentido, cabe destacar que Sébastien Lefevre deu continuidade ao
seu trabalho de trazer o colóquio de São Luís do Senegal em 2017
para a UNILAB do Brasil em 2019, por meio do colóquio
“Representações de africanos e afrodescendentes na escola manuais: perspectivas afrodecoloniais, visões práticas e teóricas”, dos
quais tenho feito parte como membro da Comissão Científica.
Mesmo assim, as pontes de comunicação com a África são
difíceis, não só por causa das barreiras linguísticas, mas também
por razões políticas, ou porque o trabalho sobre a filosofia decolonial ou de libertação está suspenso na academia africana e é difícil
então estabelecer diálogos sistemáticos sobre ambos os lados do
Atlântico.
Fernando Proto Gutierrez
nasceu no General Rodriguez, Província de Buenos Aires, em 1988. Prof.
Licenciado em Filosofía pela Universidad del Salvador e em En Gestión de las
Instituciones Educativas, pela Universidad Abierta Interamericana. É docenteInvestigador en el Depto. De Ciencias de la Salud de la Universidad Nacional de
127
Marcos Carvalho Lopes
La Matanza (Argentina). Dirige o Programa Internacional de Pesquisa em
Filosofia Intercultural da Libertação que edita a revista FAIA | Filosofia AfroIndo-Americana (ISSN 2250-6810). Ele é membro do Seminário de Pesquisa
Científica da Associação Latino-Americana de Filosofia e Ciências Sociais.
Membro da Equipe de Estudo sobre Fraternidade e Justiça do Departamento de
Ciências Sociais (UBA). Membro do Comitê de Avaliação Externa da Revista
Nuevo Pensamiento, Colegio Máximo San José de San Miguel (Universidad del
Salvador). Membro do Comitê Científico do Colloque d’études décoloniales:
déplacements épistémologiques du pouvoir, de l’être et des savoirs Université
Lumière Lyon 2.
Referências
GUTIERREZ, Fernando Proto. Ubuntu y Maat en el Donsolu
Kalikan. Revista FAIA-Filosofía Afro-Indo-Abiayalense, v. 4, n.
22, 2016.
_____, La matemática egipcia y el modelo ario-racista. Re-lectura
crítica del origen de la filosofía europea. Revista nuestrAmérica, v.
5, n. 9, p. 121-134, 2017.
_____. Paralelos entre matemática egipcia y pitagóricaplatónica. Revista FAIA-Filosofía Afro-Indo-Abiayalense, v. 1, n.
6, 2016.
______, Aspectos esenciales de la matemática egipcia. Revista
FAIA, v. 1, n. 4, p. 2-5, 2012.
________. . Translógica o Ana (dia) léctica en el pensamiento
kemético. Revista FAIA-Filosofía Afro-Indo-Abiayalense, v. 1, n.
3, 2016.
_________. La esencia del pensamiento kemético. A Eugenio Nkogo
Ondé (1/6). Revista FAIA, v. 1, n. 1, p. 8, 2012.
128
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Leonhard Praeg e a retrodicção da
filosofia africana*
A riqueza do debate acadêmico sobre a palavra de ubuntu na
maioria das vezes é ocultada por abordagens reducionistas e
instrumentais que se esquivam das dificuldades e dimensões
turvas para oferecer um sentido unívoco. Outra postura — adotada
por um professor africano especialista nas questões raciais do Brasil
— é se esquivar das elucubrações teóricas e resumir o significado
do termo como designando simplesmente “humanidade compartilhada”. Como um exercício, sugiro que o leitor atente às seguintes
descrições de Ubuntu e decida qual é a verdadeira:
1. “O Ubuntu é uma filosofia exclusivamente africana que pode ser
recuperada e implantada para fins emancipatórios no pós-colonial”;
2. “O Ubuntu é um conceito ou filosofia exclusivamente africana e outras
sociedades do mundo podem aprender muito com ele; ele pode ser aplicado
globalmente para conter os excessos do individualismo de estilo ocidental,
tanto no domínio político quanto no econômico”;
3. “Ubuntu, qua humanismo comunitário, é intolerante à liberdade
individual; força os indivíduos a se conformarem ao coletivo e como tal é
incompatível com as normas e valores da democracia liberal”;
4. “O Ubuntu não é exclusivo da África e o nexo de valores a ele associado é
típico de qualquer sociedade com um modo de produção pré-capitalista, ou
seja, pré-surplus”;
5. “O Ubuntu pode ser retrodito para fins pós-coloniais, mas não há nada de
particularmente singular nele, na verdade, ele é indistinguível de outras
formas contemporâneas de comunitarismo, nomeadamente de uma ética
feminista de cuidado”;
6. “O arquivo histórico escrito sobre a África, dominado pelo Ocidente, torna
fútil qualquer tentativa de reapresentar o significado original e autêntico do
Ubuntu”. (PRAEG, 2017a, p. 494-495).
*
https://doi.org/10.51795/9786526508268129140
129
Marcos Carvalho Lopes
Afinal, qual das descrições é a verdadeira? Nenhuma delas é a
verdadeira? Todas as descrições são verdadeiras? Para o filósofo
sul-africano Leonhard Praeg, a ideia de um significado unívoco é
um anseio problemático de colocar fim à conversação e sua busca
contínua e política de articular sentido. Todas essas descrições
podem ser parcialmente verdadeiras e montam um rico cenário de
debate. Praeg relaciona cada uma dessas descrições à “personagens
conceituais” distintos, que postulam abordagens políticas
diferentes quando se busca pensar o sentido de Ubuntu.
Respectivamente temos o Revolucionário (1), o Salvador (2), o
Conformista (3), o Cosmopolita historicista (4), o Cosmopolita
contemporâneo (5) e o Arquivista (6). Apesar da arbitrariedade
dessa taxonomia de interpretações, ela funciona como um modo de
reconhecer tensões e uma pluralidade de posições que estão em
jogo quando se pensa em Ubuntu.
Como pressuposto em sua análise, Praeg propõe uma
distinção entre a prática africana pré-colonial de ubuntu (com letra
minúscula), como uma forma de vida comunitária, com uma
economia política de obrigações; e a articulação teórica e filosófica
pós-colonial de Ubuntu (com letra maiúscula). Deste modo, não
quer produzir uma dicotomia, mas situar o debate acadêmico sobre
Ubuntu como marcado por um contexto global, com distintas
abordagens teóricas e apropriações/cooptações informadas pelas
práticas locais africanas. Reconhecer a tensão entre ubuntu e Ubuntu
é um caminho para tentar continuamente desenvolver uma forma
de humanismo crítico, cujo foco central “não é simplesmente o
humano — a capacidade humana para a ciência, a beleza e o
conhecimento em um mundo que não mais difere o significado de
uma fonte transcendental. No humanismo crítico, o “humano” é
um conceito secundário; (...) um conceito mais fundamental ou
preocupação primária está nas relações de poder que
sistematicamente excluem certas pessoas de serem consideradas
humanas em primeira instância”. Neste humanismo crítico,
reconhecer a tensão e aporia entre ubuntu e Ubuntu é um modo de
evitar formas de descrição que paradoxalmente (Praeg fala em
130
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
paradoxo da diferenciação) utilizam a natureza dialógica e relacional
de Ubuntu como uma espécie de justificativa assertiva para o
exclusivismo racial.
Essas tensões são evidentes quando consideramos o(s) uso(s)
de Ubuntu como elemento fundador do Estado da África do Sul no
pós-apartheid a partir da Comissão de Justiça e Reconciliação. Ao
mesmo tempo, houve a tentativa de resgatar um modo de vida précolonial e descreve-lo conceitualmente em termos teóricos e
práticos, como fundamento para procedimentos e atos de justiça
baseados no reconhecimento da humanidade compartilhada. Esse
nós que deveria ser reconhecido é a base do pacto de re-fundação
de um Estado que toma a forma de uma Democracia liberal. Como
conciliar o comunitarismo de Ubuntu com o modo de vida e as
práticas individualistas/individualizantes da democracia liberal?
São suficientes os atos de justiça simbólicos que não trouxeram
redistribuição economia e social de poder?
Todas essas tensões e aporias em torno de um termo que
muitas vezes é tomado de forma simplista, são marcas de um
trabalho filosófico cuidadoso e analítico que procura articular uma
investigação dentro da filosofia africana que tem como gancho as
palavras de dois pensadores africanos. Por um lado, o tanzaniano
Julius Nyerere explicava o sentido do pan-africanismo dizendo:
“Desejamos contribuir para o desenvolvimento do Homem se
pudermos, mas nós não afirmamos ter a ‘solução’; nossa única
afirmação é que pretendemos avançar no escuro, em direção a um
objetivo tão distante que até a compreensão real dele está além de
nós (...)”; por outro lado, o franco-argelino Jacques Derrida, em
entrevista, ponderou que “todo questionamento genuíno é
convocado por um certo tipo de escatologia, embora seja
impossível definir essa escatologia em termos filosóficos”.
Cruzando essas citações, que são epígrafes para o livro de Praeg A
Report to Ubuntu (2014, p. vii), podemos nos perguntar pela
esperança que move o autor ao pensar Ubuntu.
131
Marcos Carvalho Lopes
Na entrevista a seguir, o leitor poderá também ter um gancho
para se aproximar da abordagem de Leonhard Prag da filosofia
africana.
Como você define a filosofia africana?
Leonhard Praeg — Acho útil distinguir entre 'Filosofia Africana
tradicional' (Tradicional African Philosophy) e “Filosofia Africana
Moderna” (Modern African Philosophy). Como a primeira, entendo a
filosofia africana pré-colonial ou pensamento africano, o que
alguns descartariam como 'visão do mundo africano' ou
Weltanschaung; outra forma de chegar à filosofia africana
tradicional seria dizer que ela se refere às antigas ou consuetudinárias (tradicional) tradições (traditions) de sabedoria africana que
a etnofilosofia e a filosofia da sagacidade revigoraram ou
“retrodisseram” (retrodicted) (para usar a palavra útil de
Mudimbe37) como filosofia moderna. Como filosofia africana
moderna entendo aquela nascida da dupla consciência, o tipo de
pensamento que reconhece a natureza política fundamental do
pensamento africano como pensamento contra-hegemônico;
nascido no momento moderno, no cadinho do colonialismo como
um pensamento de volta ou contra, mas também dentro da
modernidade ocidental. A relação entre filosofia africana
tradicional e filosofia africana moderna é complexa, mas talvez
Avaliando o que chama de teologia da adaptação, de autores como John Mbiti,
Vincent Mulago ou Dominique Nothomb, Mudimbe identifica que seu método de
análise “sugere uma política de ‘retrodicção’ (retrodiction), ou seja, o oposto de
previsão. Estabelece um paralelo análogo entre o desempenho missionário sob o
domínio colonial e o futuro do cristianismo sob a iniciativa africana. Insiste na
necessidade de buscar, nos sistemas tradicionais de crenças, sinais ou harmonias
unânimes que possam ser incorporados ao cristianismo, a fim de africanizá-lo sem
modificá-lo fundamentalmente. Politicamente, o método aceita a universalidade
de um Deus Christianorum mas questiona os resultados, tanto estatísticos quanto
psicológicos, do desempenho missionário. De fato, dado o espírito e a força global
dessa teologia da adaptação, a empresa missionária poderia e deveria ter tido mais
sucesso se seu objetivo fosse elevar o Deus Abscondito africano à sua realização no
Deus Christianorum” (MUDIMBE, 1991, p. 13-14).
37
132
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
possamos dizer: filosofia africana tradicional é pensamento
africano não contaminado pelo desejo moderno de se apresentar
em termos das exigências disciplinares do que veio a ser conhecido
como “filosofia”.
Como você entrou em contato com a filosofia africana?
Fui treinado na tradição continental ocidental — muito antes da
Filosofia Africana ter sido aceita pelos filósofos da África do Sul
como uma subdisciplina válida. Meu primeiro posto de professor em
tempo integral foi na Universidade de Fort Hare (1996-1998), onde
se esperava que eu ensinasse o que eu havia sido treinado. Os
estudantes não se saíram nada bem e, após meu primeiro ano, pensei
que ou eles eram inúteis no estudo de filosofia ou eu era inútil no
ensino. Então percebi que existe uma terceira possibilidade: talvez o
currículo esteja fora do lugar, deslocado; talvez eu estivesse
ensinando respostas (será que toda teoria filosófica não é uma
resposta a um problema?) a perguntas que eles não tinham feito
porque o contexto sociológico do qual a filosofia continental emergia
era radicalmente diferente do contexto sociológico no qual eles
estudavam e que, se eles estudassem filosofia, deveriam ser
encorajados a encontrar respostas filosóficas para as perguntas
levantadas por seu próprio contexto. Quando percebi isso, abandonei o doutorado em Foucault em que estava trabalhando e me
inscrevi novamente para um doutorado em filosofia africana, posteriormente publicado como African Philosophy and the Quest for
Autonomy, Amsterdã: Rodopi (2000).
Em um primeiro momento, a busca pela identidade foi o mote
para o desenvolvimento da filosofia africana. Essa busca está
ultrapassada?
Aqui vou inserir um breve discurso que fiz no ano passado, quando
fui solicitado por nossos alunos para abordar a questão: O que é
filosofia (sul-africana).
1. A questão O que é filosofia (sul-africana)? é uma versão da
pergunta que deu origem ao que ficou conhecido como o Grande
133
Marcos Carvalho Lopes
Debate que grassou nas décadas de 70 e 80, a saber: O que é
Filosofia Africana (AP)?
2. Naquela época, a questão assumia duas formas: Existe algo
como Filosofia Africana? e ‘O que é Filosofia Africana?
3. Na minha leitura, o Grande Debate acabou por desabar de
fadiga conceitual, porque, para ter uma resposta, ambas as
questões dependiam das respostas para duas questões
pressupostas por ambas: O que queremos dizer com África? e o que
queremos dizer com filosofia?
• Quanto à ‘África’: a Filosofia Africana só pode ser feita por
africanos que vivem em África ou também por diáspora, ou seja,
africanos de descendência? E quanto aos filósofos brancos: eles
podem fazer filosofia ‘africana’ mesmo que não sejam africanos de
nascimento ou descendência?
• Quanto à definição de Filosofia: todos sabemos que NÃO ser
capaz de definir o que isso significa é a razão de ser da disciplina.
4. Portanto, o problema com ambas as questões que definiram
os parâmetros para o Grande Debate era que um termo indefinível
era dependente de outro termo indefinível.
5. A questão colocada aqui repete os parâmetros desse debate
com a única diferença de que não se espera que definamos ‘África’,
mas sim ‘África do Sul’. E, no entanto, o problema permanece:
quem são os sul-africanos que podem responder à pergunta? Mais
radicalmente, existe algo como um ‘Sul-africano’? Acho que não.
6. É por isso que no que se segue, não vou ficar dentro dos
limites de sua pergunta, mas sim recuar para me concentrar em
uma tensão específica que eu acho que é mais fértil, mais produtiva;
uma tensão que penso ser constitutiva da Filosofia Africana e de
todas as outras tradições filosóficas emergentes do sul global. Que
tensão é essa? É talvez uma que devemos abordar obliquamente,
circunscrevendo-a.
7. Para principiar a circunscrever a tensão que tenho em
mente, quero começar fazendo uma série de perguntas que têm em
comum o fato de todas terem a mesma resposta:
• Primeira pergunta: Jesus era cristão?
134
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
• Segunda pergunta: Marx era marxista?
• Terceira pergunta: os artistas da Renascença se
consideravam artistas da Renascença?
• Quarta pergunta: os filósofos ocidentais modernos
pensaram em si mesmos como filósofos ocidentais modernos?
• Quinta pergunta: Descartes se considerava o “pai fundador
da filosofia ocidental”?
• Por último: era Confúcio um confucionista?
8. A resposta a todas essas perguntas é NÃO. Jesus não era
cristão; Confúcio NÃO era confucionista e Marx certamente NÃO
era marxista. Em cada caso, há um evento (digamos, o renascimento do classicismo que ficaria conhecido como Renascimento
ou filosofia ocidental), ou uma pessoa (digamos, Jesus, Confúcio ou
Marx) que aparece no cenário mundial e que, em retrospecto, tornase um 'ismo' ou uma tradição. Em cada caso, a tradição que nasce
ou que surge está associada, em retrospecto, ao acontecimento ou
pessoa fundadora.
9. Vamos simplificar: em todos os casos acima, há uma
diferença entre uma declaração histórica (pessoa ou evento) e a
identidade subsequentemente concedida a essa pessoa ou evento
pelas pessoas que vêm falar em seu nome. Desta forma, o
Cristianismo surgiu falando em nome do evento que eram os
ensinamentos de Jesus; O confucionismo e o marxismo surgiram
como tradições de pensamento que pretendiam representar a
intenção de Confúcio, Marx e assim por diante.
10. O que é peculiar a essa diferença entre o tempo da pessoa
ou evento e a identidade que lhe foi conferida é o fato de que o
tempo transcorreu entre o evento e a invenção do evento em termos
identitários. Em cada caso, há uma diferença temporal entre o
evento e o fato de se tornar uma reivindicação identitária.
11. Aqui, um exemplo deve bastar: o que chamamos de
'renascimento europeu' era uma afirmação que, na época de sua
ocorrência, se referia ao “renascimento” cultural, artístico, político
e econômico europeu após a Idade Média e é geralmente descrito
como tendo ocorrido do século XIV ao século XVII. Mas o nome ou
135
Marcos Carvalho Lopes
o que estou chamando aqui de identidade de “Renascimento”
refere-se a um termo que foi conferido retrospectivamente a esse
evento pelo historiador francês Jules Michelet em 1858. Portanto, o
evento que associamos ao Renascimento precedeu a invenção do
nomeie 'Renascença' por pelo menos 100 anos.
12. O que isso tem a ver com Filosofia Africana?
13. Minha própria maneira de contornar o beco sem saída que
foi o Grande Debate é distinguir entre Filosofia Africana
Tradicional e Filosofia Africana Moderna. A Filosofia Africana
Tradicional remonta a pelo menos 2.000 anos para incluir o
pensamento egípcio. Reservo o nome Filosofia Africana Moderna
para o pensamento que resultou como consequência do colonialismo, enraizado na dupla consciência, ou seja, quando os
pensadores africanos passaram explicitamente a se considerar
negros e como pensadores africanos. Antes do colonialismo, os
filósofos africanos tradicionais não se consideravam negros nem
africanos. E aqui está uma das ideias mais difíceis e muitas vezes
mal compreendidas de Fanon. Quando ele afirmou que ‘negritude
é uma construção branca’, ele quis dizer, explica Lewis Gordon,
que “as pessoas que se tornaram conhecidas como negras são
descendentes de pessoas que não tinham razão para se
considerarem [negras ou africanas]. Como consequência, a história
dos negros tem o motivo constante de tais pessoas encontrarem sua
negritude ‘de fora’, por assim dizer, e então desenvolverem, de
forma dialética, uma forma de negritude que transcende a série
inicial negativa de eventos”.
14. Para ser franco: no século 15 teria sido inconcebível para
um “sábio africano” pensar no ubuntu como uma filosofia africana
ou negra, porque no século 15 os africanos não se consideravam
africanos ou negros. Depois do colonialismo, e na tentativa de
superar as associações negativas da negritude, os pensadores
africanos, que agora se consideravam negros e africanos, definiram
o Ubuntu como uma filosofia peculiar aos negros africanos. Então,
para ser mordaz, vamos parafrasear Fanon e dizer: “Ubuntu é uma
construção branca”.
136
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
15. O que me traz de volta à relevância de minhas perguntas
sobre Jesus, Marx, confucionistas e a filosofia ocidental. Ao contrário
dos casos em que houve um lapso de tempo entre fazer a declaração
e, subsequentemente, anexar uma identidade a ela, a filosofia
africana como uma declaração nasce de, ou é função de, articular
uma identidade. Mais sucintamente ainda: Filosofia Africana é a
articulação de declaração e identidade ao mesmo tempo.
16. E esta é a tensão a que aludi no início, quando disse que
não irei abordar sua pergunta diretamente, mas sim circunscrevêla com uma tensão que é constitutiva tanto da Filosofia Africana
quanto da Filosofia Africana da África do Sul.
17. Nosso desafio é pensar sobre o que significa fazer filosofia
quando a declaração e a identidade coincidem; ou mais
agudamente, quando a identidade é a razão para fazer a
declaração; o que significa fazer filosofia quando não há lapso de
tempo entre o enunciado e uma identidade atribuída a ele?
18. Dado o tempo limitado, destacarei apenas uma
manifestação dessa tensão e o desafio que ela representa no
contexto do apelo à descolonização da filosofia. É inconcebível que
o projeto descolonial possa ser empreendido sem invocar a
identidade como razão, justificativa e catalisador para fazer
diferentes tipos de afirmações filosóficas: invocamos a identidade
toda vez que criticamos a filosofia ocidental por não articular a
experiência de pessoas que têm identidades diferentes dessa de ser
ocidental, homem, heterossexual, branco e assim por diante.
Portanto, neste momento em que declaração e identidade
coincidem, mobilizamos, como devemos, tratar de identidade para
informar a nova afirmação do que deve ser a filosofia. Devemos
insistir que a identidade de ser negro e ser africano deve informar
nossa práxis filosófica.
19. Mas também há perigo nisso. Pois, ao mesmo tempo que
essa identidade pode ser invocada para expandir nossa práxis
filosófica, ela também pode funcionar para encerrar a práxis
filosófica. Só os negros africanos podem teorizar o Ubuntu?
137
Marcos Carvalho Lopes
20. Não há solução fácil para isso: não se trata de dizer que a
identidade não pode ser invocada, mas também não devemos
alegar que a identidade é o único critério da verdade. É por isso que
chamo de tensão. Mas é uma tensão produtiva; uma que exige de
nós que continuemos trabalhando os dois lados da equação o
tempo todo: invocar a identidade para que a filosofia se torne mais
inclusiva, ao mesmo tempo em que permanecemos alertas para a
possibilidade de que a identidade também possa servir como um
mecanismo de exclusão.
21. De forma simples, a questão é esta: quando a invocação da
identidade nos dá mais afirmações filosóficas e quando nos dá
menos?
22. Em minha opinião, dizer que “estudiosos brancos não
podem teorizar o Ubuntu porque não são negros”, nos dá
afirmações menos filosóficas. Por outro lado, dizer “como um
acadêmico branco eu teorizo sobre o Ubuntu o melhor que posso,
mas sempre permaneço aberto a pessoas com a identidade negra e
que cresceram experimentando o ubuntu, corrigir minha
interpretação disso”, nos dá afirmações mais filosóficas.
23. Este é o convite, creio eu: responder à tensão entre
afirmação e identidade com abertura recíproca.
Em sua perspectiva, quais são as questões que movem a filosofia
africana hoje?
Eu só posso falar por mim. Sempre tive uma relação muito pessoal
e de resolução de problemas com a filosofia, nascida da apreciação
de que, como disciplina, é muito adequada para abordar algumas
das questões mais difíceis com as quais me senti confrontado
especificamente na África do Sul e no pós-colonial em geral: num
primeiro momento, e durante muitos anos, a questão da violência
coletiva e nos últimos dois anos, a questão muito complexa de
teorizar Ubuntu ou humanismo africano em relação a uma ordem
constitucional democrática liberal.
138
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Como você vê os argumentos sobre feminismo e mulherismo
(womanism) em relação à filosofia africana? Como a filosofia
africana aborda questões relacionadas às diferenças de gênero e
identidade sexual?
Não tive oportunidade de teorizar a questão do gênero.
Dos filósofos africanos que você conheceu pessoalmente, quem é
o mais importante em sua opinião? Quem é o seu filósofo
africano preferido?
Vou me dirigir aos 6 e 7 juntos. O filósofo ocidental que mais
influenciou meu pensamento foi Jacques Derrida e o filósofo
africano que mais me influenciou e inspirou, V-Y Mudimbe.
O Brasil é o país com a maior população negra fora da África. No
entanto, no diálogo da filosofia africana, as vozes dos Estados
Unidos e do Caribe são geralmente mais ouvidas que as do Brasil.
Esse também é um problema comum em relação à África de
língua portuguesa. Na prática, as fronteiras linguísticas são
divisões para a filosofia africana ou é possível articular uma
unidade que leve em conta esses espaços?
Acho que não fazemos o suficiente para abordar os diferentes
modos de filosofar feitos nas várias zonas linguísticas —
francófona, anglofonas, lusófona etc. E esse é um dos problemas da
hegemonia e do pensamento contra-hegemônico, uma forma muito
diferente de voltar à questão da identidade que assombra a África:
devemos sequer pensar na “África” como uma entidade ou um
todo, ou seja, a filosofia africana? Isso não equivale a aceitar um
binarismo (África/Ocidente) imposto ao continente como resultado
do colonialismo? Não seria mais apropriado identificar zonas
epistêmicas endógenas — e aqui as zonas linguísticas do francês,
inglês, do português, mas também as línguas indígenas africanas
— que podem ser tomadas como marcadores que limitam e
delimitam tais zonas epistêmicas. Isso é apenas uma reflexão.
Leonhard Praeg
139
Marcos Carvalho Lopes
(M.Ed Rhodes, Ph.D US) é chefe do departamento de filosofia da
Universidade de Pretória. Antes lecionou no Departamento de Filosofia da Educação da University of the Western Cape (1993), no Departamento de Filosofia da
Universidade de Fort Hare (1996-1998) e no Departamento de Estudos Políticos
e Internacionais da Universidade de Rhodes (2003-2014). Ele é autor de
numerosos artigos, capítulos de livros, antologias e monografias no domínio da
filosofia africana e é editor do Thinking Africa Imprint (UKZN Press). Em 2017
publicou o seu primeiro romance filosófico intitulado Imitation (UKZN Press,
South Africa).
Referências
MUDIMBÉ, V. Y. Parables and fables: Exegesis, textuality, and
politics in central Africa. Univ of Wisconsin Press, 1991.
PRAEG, Leonhard. A report on Ubuntu. Pietermaritzburg:
University of KwaZulu-Natal Press, 2014.
______. Ubuntu and the Emancipation of Law. In: AFOLAYAN,
Adeshina; FALOLA, Toyin (Ed.). The Palgrave handbook of
African philosophy. Palgrave Macmillan, New York, 2017a. p. 493506.
______. African Philosophy in a World of Terror. In: AFOLAYAN,
Adeshina; FALOLA, Toyin (Ed.). The Palgrave Handbook of African
Philosophy. Palgrave Macmillan, New York, 2017. p. 659-670.
______. An Answer to the Question: What is [ubuntu]?. South
African Journal of Philosophy, v. 27, n. 4, p. 367-385, 2008.
PRAEG, Leonhard; MAGADLA, Siphokazi (Ed.). Ubuntu:
Curating the archive. University of KwaZulu-Natal Press, 2014.
140
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Omotade Adegbindin e o Ifá como filosofia*
O livro Ifa in Yoruba Thought System (2014, p. xvii), de Omotade
Adgbindin, procura demonstrar o significado filosófico do Ifá
dentro do sistema cultural Yorùba. Não que Adegbindin tenha sido
o primeiro a fazer essa proposta, mas seguindo os passos de Sophie
Olowule (1998) e de Olúfémi Táíwò (2005), pôde aprofundar sua
análise e incorporar uma avaliação mais ampla e sistemática do
corpus do Ifá. Isso porque seu trabalho dá continuidade e traz
novas questões para serem analisadas, como a necessidade de
superar a dicotomia entre oralidade e escrita, reconhecendo a
especificidade, utilidade e limitações de cada forma de
conhecimento. A seguinte narrativa contada pelo autor ilustra bem
essas posições:
Em sua comunidade, há muito tempo, Tartaruga afirmou que era a mais
sábia e tinha provado isso com sucesso em muitas ocasiões quando chamada
para lidar com qualquer problema urgente. Por ter reivindicado o
monopólio da sabedoria, ela decidiu esconder toda a sabedoria humana
dentro de uma cabaça lendária, para que nenhum outro indivíduo pudesse
ter acesso a ela. Ela havia proposto pendurar a cabaça em cima de uma
palmeira. Finalmente chegou à palmeira e decidiu escalar a árvore. Mas fez
várias tentativas de escalar a árvore sem sucesso e sem saber o que o estava
impedindo. Ela lutou para escalar a árvore, uma e outra vez... ainda estava
lutando para escalar a árvore quando um caramujo, passando
preguiçosamente, o surpreendeu. O caramujo ficou parado por um tempo
em grande divertimento, sabendo que seria impossível para a Tartaruga ter
sucesso em sua tarefa. Depois de um tempo, o caramujo chamou a atenção
da Tartaruga e disse à Tartaruga que amarrar a cabaça no peito a
impossibilitaria de subir na árvore; sua tarefa seria cumprida se ela
amarrasse a cabaça nas costas. Relutantemente, porém, Tartaruga tentou a
sugestão do caracol e descobriu que teria sido capaz de subir na árvore se
*
https://doi.org/10.51795/9786526508268141157
141
Marcos Carvalho Lopes
tivesse amarrado a cabaça nas costas. Ela percebeu que estava errada ao
supor que era a mais sábia de sua comunidade. (2010, p. 23-24).
As tentativas de dar à noção grega de sophia um caráter
universal, amarrado ao nome e aos desenvolvimentos científicos
contemporâneos, é uma narrativa que tem semelhanças com essa
sobre a Tartaruga. Se avaliada com mais cuidado, já na Grécia
antiga a ideia de uma sabedoria vinculada à vida, vai se descolando
do cotidiano em direção à valorização da contemplação teórica. A
mutação de sophia na trajetória medieval e moderna,
principalmente com o advento da ciência, permitem postular uma
cisão entre as preocupações com as condições de possibilidade do
conhecimento que movem a filosofia acadêmica e a filosofia da
sabedoria, como a atividade reflexiva de uma vida examinada, o
amor à sabedoria. O autor não quer aprofundar esse fosso, dando
as costas para o desencantamento do mundo (como veremos em
sua entrevista), mas quer o reconhecimento de outras formas de
filosofia que não se prendam à limitada visão de que a sabedoria é
sinônimo de ciência.
O Ifá é para a cultura Yorùba o “guardião da sabedoria” (“Akéré-finú-ṣọgbọ́n”), a enciclopédia que preserva sua filosofia. Para
interpretá-lo é preciso grande cuidado hermenêutico, para não
gerar reificações e descrições literais e empobrecidas, como aquelas
que enxergam no conceito de orí o fatalismo da ideia ocidental de
destino. A consciência de uma especificidade pode ser o caminho
para sua superação.38 É deste modo que, interpretando a partir do
Ifá, o autor pôde descrever as deficiências para além dos modelos
ocidentais marcados pela descrição médica ou de patologia social
(c.f. 2021). Desse modo, a noção de sabedoria Yorùba se afasta da
concepção de ciência teorética, como explica Adegnindin:
os Yorùbá usam a palavra ọgbọ́n (sabedoria) (...) para descrever a
habilidade elevada, uma compreensão fundamentada ou na descrição de
Nessa mesma direção, veja o ensaio de Severino Ngoenha, Luca Bussotti e Carlos
Carvalho: Disponível em:
<https://filosofiapop.com.br/texto/elogio-da-consciencia/>.
38
142
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
atos associados ao julgamento imparcial de argumentos. Ọgbọ́n
(sabedoria), portanto, não pode ser removido da discussão da arte do
pensamento reflexivo. É por isso que os Yorùbá usam os substantivos ọlọ́
gbọ́n e ọ̀jọ̀gbọ́n para se referir a “um homem sábio” e “um decano”,
respectivamente. Os Yorùbá às vezes usam os dois substantivos para
venerar um homem que possui qualquer habilidade técnica ou arte
particular baseada na experiência, um homem de intelecto sagaz ou um
filósofo, embora o substantivo amòye seja comumente usado para se referir
ao filósofo. No entanto, não é enganoso usar ọlọ́gbọ́n ou ọ̀jọ̀gbọ́n e
amòye de forma intercambiável. (...) o povo Yorùbá, portanto, consulta o
ọlọ́gbọ́n ou ọ̀jọ̀gbọ́n e amòye em questões que afetam suas vidas e a
sociedade e também o reverenciam como um homem que entende a
preeminência da razão ou do pensamento correto em todos os aspectos dos
negócios humanos. (2017, p. 323).
Omotade Adegbindin não se afasta da tradição de
comentadores e sábios do Ifá, nem das tradições de debate
acadêmicos da filosofia. Acredito que esta breve entrevista que ele
nos concedeu pode nos ajudar a desistir de “subir na palmeira”. O
texto a seguir de Adegbindin foi escrito como resposta às questões
propostas nessa série de entrevistas.39
1. Definindo Filosofia africana
O problema de definir a Filosofia Africana é meta-filosófico
porque a maioria das definições que foram apresentadas se
baseiam no que os autores acham que deveria(m) ser a(s) coisa(s)
importante(s) ou o conteúdo da Filosofia Africana. Outras
definições favorecidas por alguns escritores são escolhidas com
base no que eles consideram ser a melhor abordagem ou
metodologia a ser utilizada na Filosofia Africana. Além disso, a
maioria das definições da Filosofia Africana foi desenvolvida por
aqueles que as aceitam, de modo que tais definições se tornaram a
estrutura para uma escola de pensamento, uma tendência ou uma
orientação na Filosofia Africana. Assim:
As respostas de Adegbindin não tinham as indicações dos textos citados, que
procurei recuperar no processo de tradução através de notas.
39
143
Marcos Carvalho Lopes
a. A Filosofia Africana como a Lógica da Tradição Oral:
Uma das primeiras definições populares da Filosofia Africana
é a que diz que o entendimento de porque os africanos tradicionais
fizeram ou disseram as coisas que eles fizeram irá contribuir muito
para “trazer à tona” ou “desvendar” a filosofia por trás de tais
palavras e ações. Por que nossos antepassados formularam certos
provérbios, expressões idiomáticas e discursos de sabedoria? Será
que eles tinham razões que informavam suas crenças a respeito de
certas coisas — seja na religião ou nas práticas agrícolas? De que
modo a contação de histórias e o folclore tinha o objetivo de
transmitir certos valores e crenças morais que guiariam os
indivíduos e a sociedade?
O clérigo John S. Mbiti é um dos que pensavam que “o sistema
filosófico de diferentes povos africanos... pode ser encontrado... na
(a) religião, provérbios, tradições orais, ética e moral da sociedade
em questão”. Por essa razão, Mbiti conclui que a Filosofia Africana
pode ser definida como “a compreensão, a atitude mental, a lógica
e a percepção por trás da maneira como os povos africanos pensam,
agem ou falam em diferentes situações da vida” (Mbiti, 1969, p. 2).
b. A Filosofia Africana como a Disputa entre os Tradicionalistas e os
Modernistas:
Através de livros publicados e artigos sobre Filosofia Africana,
é provável que cheguemos à conclusão de que a Filosofia Africana
é, afinal, o resultado do desacordo entre aqueles a quem nos
referimos como os tradicionalistas e os modernistas. A Filosofia
Africana pode de fato ser entendida como a reflexão filosófica e a
análise dos sistemas conceituais africanos, como foi empreendida
tanto pelos tradicionalistas quanto pelos modernistas.
Historicamente falando, quando a Filosofia Africana
contemporânea começou, seguindo o trabalho do Padre Tempels
em 1945, dois grandes campos evoluíram, a saber, o campo
tradicionalista e o campo modernista. No campo tradicionalista
estão aqueles que acreditavam fortemente que a autêntica Filosofia
Africana pode ser descoberta se voltarmos às nossas origens ou ao
144
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
nosso passado tradicional para procurá-la. Nossa busca por uma
autêntica Filosofia Africana, argumentam eles, seria melhor se
refizéssemos nossos passos sem a influência de ideias e culturas
estrangeiras.
O segundo campo conhecido como os “modernistas”, no
entanto, rejeita a posição dos tradicionalistas. Os modernistas
simplesmente dizem que a sociedade africana de hoje precisa de
desenvolvimento. Eles argumentam que o desenvolvimento não
pode ser alcançado se confiarmos nas crenças dos africanos
tradicionais do passado, porque a sociedade africana tradicional
foi, na opinião deles, guiada erroneamente pelo autoritarismo, pela
religiosidade e pela superstição. Por essa razão, deveríamos antes
abraçar a ciência e a tecnologia (Bodunrin, 1985, p. xi). A destilação
do precedente significaria que: (i) para os tradicionalistas, a
autêntica Filosofia Africana está no passado, e [deve ser resgatada]
para o bem do presente e (ii) para os modernistas, a Filosofia
Africana deveria incentivar a ciência e a tecnologia no presente,
para o bem do futuro.
c. A Filosofia Africana como “Textos Escritos”.
Essa definição de Filosofia Africana transmite a perspectiva de
que a Filosofia Africana é uma coleção de textos produzidos por
filósofos africanos, bem como de escritos filosóficos sobre a África.
Isto pode implicar: (i) textos escritos por filósofos africanos, (ii)
textos filosóficos escritos por qualquer africano sobre a África, e (iii)
textos filosóficos escritos por não-africanos sobre a África.
2. Entrando em contato com a filosofia africana
- Primeiro, ao ver o filme Roots no final dos anos 70 e depois
a leitura de Alex Harley Negras Raízes (Roots) há muitos anos;
- Algumas partes da filosofia africana foram apresentadas a
nós no primeiro ano, no nível de graduação.
145
Marcos Carvalho Lopes
3. A questão da identidade africana
As pesquisas acadêmicas filosóficas sobre a identidade
africana têm uma origem colonial. Isso porque a difamação do
povo e da cultura africanas pelos estudiosos europeus como Hegel,
Hume, Levy-Bruhl, para justificar a conquista europeia teve que ser
rejeitada em sua totalidade. Isso levou à afirmação de uma
identidade africana apressadamente articulada, representando os
africanos como tendo uma cultura única através da qual conduzem
suas vidas. Isso é óbvio na tentativa de Leopold Sedar Senghor que,
através de sua teoria da Negritude, postulou uma única filosofia do
conhecimento para os africanos. Há duas grandes questões
relativas à identidade africana, a saber, “a questão de como melhor
responder à difamação colonial ou à subestimação das culturas e
tradições africanas, e as questões de como melhor alcançar o
desenvolvimento na África sem comprometer nossa identidade”
(Oladipo, 1995, p. 59). Por inferência, portanto, pode-se argumentar
que a principal motivação para a discussão sobre a identidade
africana está na tentativa de combater a visão eurocêntrica de que
os africanos são uma raça inferior. Não se surpreende, portanto,
que os estudos acadêmicos nas ciências sociais e humanas africanas
tenham sido dominados por uma tentativa de afirmar a identidade
ou a personalidade africana. De fato, há uma tentativa de projetar
o que tem sido chamado de nacionalismo cultural africano ou
afrocentrismo.
No grupo daqueles que propõem uma ideia rígida da
identidade africana ou nacionalismo cultural estão Leopold Sedar
Senghor, Frantz Fanon, Walter Rodney, Edward W. Blyden, Molefi
Asante, Wole Soyinka, Alexis Kagame, E.B. Idowu, John Mbiti,
entre outros. No entanto, há alguns estudiosos africanos que
acreditam que, embora seja difícil ignorar nossa dinâmica cultural,
devemos ir além de nosso relativismo para abraçar uma cultura
universalista. Para esse grupo, o conceito de raça é uma ilusão e só
podemos falar sobre a raça humana. Anthony Appiah pertence a
esse grupo.
146
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
Segundo Mudimbe, o desejo de buscar uma autenticidade
africana levanta algumas questões fundamentais sobre a
identidade africana e os estudiosos africanos têm usado vários
meios para chegar a essa identidade. Por exemplo, A Filosofia
Bantu, de Tempels, pode ser vista como uma ferramenta para a
possível emergência da autenticidade, enquanto estudiosos como
Cesaire, Fanon e Rodney têm feito amplo uso do colonialismo para
engendrar a identidade africana.
P.O. Bodunrin defende a visão de que a chave para o
desenvolvimento e a modernização no mundo contemporâneo é a
ciência e a tecnologia. Ele acredita que o passado tradicional
africano foi dominado por intensa religiosidade, espiritualismo,
autoritarismo e sobrenaturalismo que são contrários ao
pensamento científico (Bodunrin, 1985, p. xii). Ele argumenta que a
superioridade racial dos europeus foi incorporada em nós numa
mentalidade colonial, por conta das conquistas científicas e
tecnológicas dos brancos. Para Bodunrin, portanto, as
características essenciais do espírito científico que faltavam na
cultura tradicional africana incluem liberdade de inquérito,
abertura à crítica, um tipo geral de ceticismo e falibilismo e a não
veneração de autoridades.
Em sua tentativa de encontrar um equilíbrio entre aqueles
estudiosos que defendem rigidamente a identidade africana e
aqueles que são de inclinação científica ocidental, Abiola Irele
(1982) opina que há uma maneira de reconciliar as duas posições,
especialmente considerando suas implicações para o desenvolvimento africano. Assim, Abiola Irele sugere que todos nós temos
reivindicações para a civilização ocidental. Mais fundamentalmente, ele sugere que só poderíamos nos beneficiar mais dessa
civilização se negligenciássemos o passado colonial e
minimizássemos o traço do nacionalismo cultural. A adoção dessas
recomendações fez o Japão emergir mais forte após a devastadora
Segunda Guerra Mundial.
De acordo com Irele, a língua e a cultura não são mais
obstáculos nos tempos contemporâneos, quando a ciência e a
147
Marcos Carvalho Lopes
tecnologia transformaram o mundo em uma aldeia global,
reforçando assim nossa consciência de uma humanidade comum.
Com um espírito semelhante, Appiah acredita que a pureza cultural não pode ser mantida pelos africanos devido à interação e
interdependência da sociedade global contemporânea. Ele
acredita que a modernidade abomina o nacionalismo cultural e a
cultura moderna, em virtude da tecnologia de impressão, apenas
incentiva a privacidade e o individualismo. Portanto, se existe
solidariedade entre as pessoas, ela é apenas solidariedade da
humanidade e não da raça.
Deve-se notar que a questão da identidade africana era mais
premente imediatamente após a pós-independência. Embora a
questão da identidade africana ainda seja relevante, ela deve ser
discutida de acordo com os desafios modernos que o continente
africano enfrenta, tais como os desafios econômicos, políticos e
religiosos.
4. A seguir, o que deve constituir as preocupações da filosofia
africana de hoje:
A primeira tarefa da filosofia africana é a correção da
impressão errada criada sobre a natureza do homem africano. Tais
relatos errados e distorcidos do homem africano retratam o homem
africano primitivo como pré-lógico. Tais concepções errôneas do
homem africano tiveram implicações terríveis e essas incluem: (i) a
degradação dos africanos aos olhos do mundo; (ii) essa concepção
errada engendrou um complexo de inferioridade em muitos
africanos; (iii) essa concepção explica em grande parte a dúvida
sobre a existência de uma Filosofia Africana; e (iv) também resultou
na aceitação inquestionável de qualquer coisa ocidental como
sendo melhor e mais desejável. Essa atitude é agravada por nossa
experiência colonial.
Em segundo lugar, a viabilização do processo de
descolonização que se iniciou na África é outra tarefa para a
filosofia africana de hoje. É óbvio que as sociedades africanas
precisam de mais do que uma descolonização política para ter um
148
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
regime completamente descolonizado. Precisamos também de uma
descolonização intelectual. Uma boa maneira de facilitar esse
processo é empreender o que Kwasi Wiredu descreveu como
“orientação comparativa”. Esse estudo comparativo deve envolver:
a. Uma análise crítica da cultura tradicional africana com o
objetivo de identificar seus aspectos retrógrados. Esses devem ser
separados dos aspectos que vale a pena manter. Tais elementos
retrógrados foram descritos por Wiredu como incluindo crenças e
práticas anacrônicas, supersticiosas e autoritárias. Ao realizar essa
análise crítica de nossa cultura, chegaremos ao valor correto e
objetivo de nossa cultura. Essa análise crítica é descrita, em alguns
quadrantes, como “autoavaliação interna” (internal self-appraisal).
b. Uma análise crítica da cultura e da técnica ocidentais. Isso
deve ser feito com a intenção de identificar os aspectos que são
desejáveis e necessários na sociedade africana contemporânea.
c. Um estudo comparativo da cultura tradicional ocidental e
da cultura tradicional africana: isso revelará as características que
são genuinamente ocidentais e as que são genuinamente africanas.
Essa iniciativa nos ajudará a ver onde as duas culturas se
sobrepõem. Além disso, um estudo comparativo nos permitirá
compreender os fatores que facilitaram a transição do período précientífico para o período científico na cultura ocidental. Essa
compreensão nos dará uma melhor percepção do que é necessário
para o crescimento e desenvolvimento na África.
Em terceiro lugar, dentre as tarefas com a quais os filósofos
africanos devem se preocupar, também incluem a consideração
crítica de questões como: “o que é mudança social?”, “que tipo de
sociedade desejamos?”. As resoluções dessas questões exigem
diferentes tipos de perguntas e análises. Outras análises críticas
revelam que a mudança necessária na perspectiva mental pode ser
vista a partir de muitas perspectivas diversas:
a. Há uma necessidade de mudança do modo sobrenatural e
pessoal de explicação prevalecente na sociedade africana
tradicional para o modo impessoal e natural que prevalece nas sociedades ocidentais mais orientadas para a ciência.
149
Marcos Carvalho Lopes
b. Antes de podermos colher todos os benefícios da ciência e
da tecnologia, existe a necessidade de uma renovação de nosso
sistema de pensamento. Precisamos colocar mais ênfase no modo
naturalista ou científico, se explicarmos os fenômenos como
contrários ao modo sobrenatural.
c. Na sociedade tradicional, não se dá muita ênfase à
necessidade de rigor e precisão. A “cultura da precisão” tem de ser
cultivada. Tomemos, por exemplo, a prática da medicina
tradicional. Ao preparar as misturas medicinais, nossos
“farmacêuticos tradicionais” apenas misturam as diversas ervas
em qualquer proporção que desejem. Essa prática, no entanto, não
produzirá o resultado ideal.
Em quarto lugar, outra preocupação da filosofia africana é
encontrar uma base teórica que seja adequada à sociedade africana
contemporânea. Essa será utilizada para justificar as instituições
sociais existentes ou para refiná-las, caso haja necessidade. Toda
instituição ou prática social é teoricamente fundada. Os trabalhos
de pensadores como Rousseau, Jefferson, Locke etc. constituem a
base teórica das instituições sociais nas sociedades ocidentais.
Cinco, a filosofia africana tem um papel importante a
desempenhar em nossa compreensão e promoção da ciência e
tecnologia na África. De fato, o desenvolvimento da ciência e da
tecnologia em si pode ser diretamente rastreado através dos
desenvolvimentos em Lógica e Matemática. Como tal, pode-se afirmar corretamente que, sem filosofia, a ciência depende
principalmente da indução. A indução, entretanto, é uma das áreas
de interesse da filosofia.
O desenvolvimento da ciência e da tecnologia na África será
um afastamento de pelo menos alguns aspectos do sistema
tradicional e um movimento em direção à ciência. Essa transição
precisa de uma compreensão profunda do ponto de partida do
padrão de pensamento tradicional e do ponto de chegada ao
padrão de pensamento científico. Tal compreensão só pode surgir
através de uma análise conceitual da transição. Tal análise é melhor
confiada aos filósofos africanos.
150
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
5. Diferenças de Gênero e Identidade Sexual na África
Para a maioria das teóricas sociais feministas, a sexualidade é
uma importante área de discussão, já que existe a noção popular de
que a opressão da mulher é frequentemente expressa através da
“sexualidade”. De fato, o discurso feminista localiza a sexualidade
dentro da teoria da desigualdade de gênero que coloca os homens
acima das mulheres. Dessa forma, a sexualidade é frequentemente
tratada como uma construção engendrada pelo domínio ou poder
masculino. Assim, é através da sexualidade que nos familiarizamos
com as narrativas sobre o status da mulher como de segunda classe,
a mulher como propriedade, a submissão feminina contra a
dominação masculina, o poder masculino e a impotência feminina e
assim por diante.
Para entender a visão africana da sexualidade feminina, é
preciso entender o fato de que as normas africanas se baseiam na
crença de que o indivíduo é parte da comunidade, o que, por sua
vez, valoriza o papel decisivo da comunidade no que diz respeito
à vida ou existência do indivíduo. Esta destaca a natureza
comunalista da vida social africana. Nesse sentido, o conceito
africano de sexualidade é melhor compreendido dentro dessa
matriz de status social e ideologias, do casamento e das
preocupações espirituais que ajudam na manutenção da ordem
social da comunidade.
Concordo com Mary Wangila (2013, p. 104), para quem a
feminilidade na África “está associada à reprodução, cuidado,
generosidade, modéstia e dignidade da perseverança, obediência,
submissão, conformidade e dependência”.40
Não encontrei o texto de 2013 citado pelo autor, mas a mesma citação aparece
em outros escritos de Mary Nyangweso Wangila (NYANGWESO, Mary e
TRIVEDI, 2019 e WANGILA, 2015) referindo-se ao caso do Quênia. A descrição
que complementa o texto de 2015 vale a pena citar: “A masculinidade, por outro
lado, está associada à virilidade, força, autoridade, poder, liderança e capacidade
de suportar a dor física e oferecer proteção e sustento econômico. Esses valores
são geralmente inculcados no indivíduo desde a infância; os meninos são
ensinados a não chorar porque ‘os homens não choram’, e as meninas são
40
151
Marcos Carvalho Lopes
Contemporaneamente, a filosofia africana tenta, através de
uma séria desconstrução, ir além do discurso dualista sobre a
sexualidade feminina africana, gênero e todas essas categorias.
Deve-se ressaltar, no entanto, que a articulação de gênero na
África não está isenta de desafios. Há o desafio de localizar o
gênero dentro de uma unidade ou cultura etnolinguística
particular, por causa de diferentes variações ou práticas culturais.
Tomemos como exemplo os iorubás do sudoeste da Nigéria:
Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, uma das maiores estudiosas no campo
da diferença de gênero e identidade sexual, argumenta que o
gênero não existia na sociedade iorubá tradicional. Para ela, o
gênero foi algo projetado na cultura iorubá por europeus que
vieram para a região. Ela apresenta um conceito virtual excepcionalista de gênero (que transmite a impressão de que a sociedade
iorubá tradicional, nas palavras de Peel, “atribuía um valor cultural
muito forte à capacidade fisiológica complementar de mulheres e
homens para bimo (suportar/gerar crianças)".41 Essa tese não representa o(s) caso(s) de outras sociedades africanas.
6. Isto depende da(s) tendência(s) que subscrevo.
Nas minhas publicações, é fácil discernir que defendo os
pontos de vista da etnofilosofia como uma orientação na filosofia
ensinadas a não insultar os meninos ou a serem enérgicas ou serão consideradas
‘mulheres macho’. Os papéis de gênero na maioria das comunidades quenianas
são determinados por essas características restritivas. As atitudes em relação à
força de um homem e à fraqueza de uma mulher são geralmente traduzidas em
todas as partes de um casamento, incluindo as relações sexuais. O papel sexual da
mulher é ser mais ou menos secundária ou passiva e não se espera que ela tome a
iniciativa em atividades sexuais como o namoro, para mostrar desejo de ter
relações sexuais ou mesmo para indicar que ela está desfrutando do sexo —
correndo o risco de ser rotulada de prostituta".
41 PEEL, John DY. Gender in Yoruba religious change. Journal of Religion in
Africa, v. 32, n. 2, p. 136-166, 2002. A descrição de Peel é respondida por Oyèrónkẹ
́ Oyěwùmí em OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. What gender is motherhood?: Changing
Yoruba ideals of power, procreation, and identity in the age of modernity.
Springer, 2016. p. 122 (nota do tradutor).
152
Tcholonadur – entrevistas sobre filosofia africana
africana. Por implicação, portanto, tenho em alta estima aqueles
estudiosos que compartilham a ideia de que a tradição oral africana
poderia servir como bom material para a filosofia.
7. Não está claro
8. A questão da língua na Filosofia Africana
O problema da língua na filosofia africana tem sua gênese na
concepção da filosofia como um empreendimento ocidental.
Muitos debates foram travados para saber se os africanos tinham
uma filosofia antes de seu contato com os brancos. Entretanto,
deve-se notar que os primeiros Filósofos Profissionais Africanos de
diferentes países africanos foram treinados em Filosofia Ocidental
usando línguas europeias, como o inglês e o francês. Tornou-se um
fato consumado que os primeiros filósofos africanos estavam
fazendo filosofia africana em língua estrangeira.
São muitas as questões que surgem do fato de fazer filosofia
africana em línguas estrangeiras. Em primeiro lugar, pode-se dizer
que os filósofos estavam realmente fazendo filosofia africana com
língua estrangeira (foreign) ou exótica (alien), dadas as
peculiaridades de cada cultura em relação a nuances, expressões
idiomáticas, provérbios e ditados de sabedoria das culturas
africanas? Segundo, não é o caso que os filósofos africanos estavam
procurando equivalentes linguísticos de conceitos filosóficos
ocidentais em suas próprias culturas?
Em terceiro lugar, outro problema tem a ver com a tradução
precisa de certos conceitos das culturas indígenas africanas para
línguas estrangeiras. Pode-se perguntar se é possível traduzir
conceitos indígenas, especialmente aqueles conceitos que lidam
com afirmações teóricas, para línguas estrangeiras como o inglês e
o francês e vice-versa. Há também o problema da inter-relação da
linguagem do discurso sobre a realidade e do desenvolvimento
africano.
Ao traduzir um idioma para outro dentro de diferentes
culturas, acredita-se que um conjunto de manuais de tradução que
153
Marcos Carvalho Lopes
contenham os significados exatos das palavras e conceitos em
diferentes culturas irá ajudar. Entretanto,